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MAIO DE 2021 | ANO 22, N. 303

FUTURO
SOB AMEAÇA
Brasil enfrenta desafio de
criar estratégias para garantir
aprendizagem de alunos
afetados pelo fechamento
de escolas e pela oferta
desigual de ensino remoto

Cruzamento Engenheiro Estudo mapeia Expectativa Debate sobre


com neandertais brasileiro da Nasa as principais de vida quebra de patentes
influenciou Ivair Gontijo fala fontes nacionais varia até de vacinas envolve
características de da missão do de apoio à ciência 14 anos em superar barreiras
seres humanos robô Perseverance e sua inserção cidades da tecnológicas
modernos em Marte internacional América Latina e produtivas
FOTOLAB O CONHECIMENTO EM IMAGENS

Sua pesquisa rende fotos bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br


Seu trabalho poderá ser publicado na revista.

Redes letais
Diante de uma invasão de vírus ou bactérias, células do sistema
imunológico humano podem ter uma reação exagerada, chamada netose,
que vem se mostrando pronunciada quando o invasor é o Sars-CoV-2.
“Os núcleos, marcados em azul na imagem, normalmente são redondos”,
explica o farmacologista Flávio Protásio Veras. “Quando acontece
a netose, eles parecem alongados por causa da rede de DNA que sai
das células.” Os pontos vermelhos e verdes são proteínas que ficam
aderidas às redes e reforçam o processo que, na Covid-19, pode causar
danos aos pulmões e acarretar a morte do paciente. Em sua pesquisa,
Veras busca medicamentos que minimizem esses estragos.

Imagem enviada por Flávio Protásio Veras, pesquisador em


estágio de pós-doutorado na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto
da Universidade de São Paulo

PESQUISA FAPESP 303 | 3


303

3 FOTOLAB CAPA ENTREVISTA GENÉTICA


6 COMENTÁRIOS 18 Fechamento de 36 Luiz Bevilacqua, 56 Há 46 mil anos,
7 CARTA DA EDITORA escolas e acesso desigual precursor da Coppe, fala seres humanos modernos
a ensino remoto elevam sobre o desenvolvimento tiveram filhos com
8 BOAS PRÁTICAS evasão e agravam defasagem da pesquisa em neandertais na Europa
Estudo reúne iniciativas no aprendizado engenharia no país
para recompensar BIOLOGIA
pesquisadores com 24 Investimento em BIOTECNOLOGIA 61 Tons da plumagem
comportamentos éticos formação docente 42 Em 25 anos, a CTNBio e vocalização favorecem
e intercâmbio entre escolas aprovou o uso de mais formação de novas espécies
11 DADOS contribuem para de 150 produtos em um grupo de aves
Número de publicações o desempenho dos alunos transgênicos no país
científicas cresceu muito MUDANÇAS CLIMÁTICAS
FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES 2 PICCOLONAMEK / WIKIMEDIA COMMONS

nas últimas três décadas 26 Quebra de patentes INVESTIMENTO 64 Aquecimento global


de vacinas contra Covid-19 48 Estudo mapeia aumenta risco de
12 NOTAS exige a superação de as principais fontes de apoio inundações e deslizamentos
16 NOTAS DA PANDEMIA barreiras para ser efetiva à ciência brasileira e seu de terra no Sul e Sudeste
grau de internacionalização
30 ButanVac usa como AMBIENTE
antígeno versão mais BOAS PRÁTICAS 66 Cientistas dos
estável da proteína spike 52 Pesquisas se debruçam Estados Unidos defendem
sobre conflitos de interesse criação de programa
32 Iniciativas acadêmicas na ciência médica para estudar
recolhem relatos geoengenharia climática
pessoais sobre memórias
e lutos da pandemia
MAIO 2021 WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

Leia no site a edição da revista em português, inglês


e espanhol, além de conteúdo exclusivo

AVIAÇÃO OBITUÁRIO
70 Para voltar a crescer, 88 Alfredo Bosi (1936-2021)
Embraer investe em 90 Fulvio Pileggi (1927-2021)
inovação e usa seu VÍDEO YOUTUBE.COM/USER/PESQUISAFAPESP
portfólio de aeronaves 91 MEMÓRIA
Pensamento de Anísio
ENTREVISTA Teixeira está na base
74 O engenheiro brasileiro da defesa do ensino público,
Ivair Gontijo é um dos gratuito e laico
responsáveis pelo
monitoramento do robô 94 RESENHA
enviado a Marte Alexandre de Gusmão
(1695-1753): O estadista que
ENGENHARIA DE ÓLEO E GÁS desenhou o mapa do Brasil,
78 Nova técnica poderá de Synesio Sampaio Goes Filho. O papel do SUS no combate
facilitar a produção de Por Iris Kantor à Covid-19
petróleo nos poços do pré-sal Sistema Único de Saúde enfrenta
95 CARREIRAS problemas novos e antigos de financiamento
DEMOGRAFIA Participação de pesquisadores e governança
80 Brasil e México na implementação de bit.ly/igVSUSPandemia
apresentam menores médias políticas públicas constitui
de vida, revela estudo oportunidade profissional

ICONOGRAFIA
84 Fenômeno dos
zoológicos humanos
é analisado por meio
de fotografias 1. Crianças estudando em casa, no bairro
Santa Cecília, em São Paulo (CAPA, P. 18)
2. Nuvens tipo cirrus dificultam o escape
de calor da Terra (AMBIENTE, P. 66)

Capa 9 perguntas sobre as variantes


D.G., de 11 anos, estudante da do novo coronavírus
6ª série e moradora de Campos Elíseos,
centro de São Paulo
Virologista Eurico Arruda, da USP,
Foto responde a dúvidas sobre as mutações
LÉO RAMOS CHAVES e suas consequências
2 bit.ly/igVEuricoArruda

PODCAST
Pesquisadores falam do estudo
epidemiológico em Serrana (SP), sobre
a reabilitação de recifes de coral e as
causas de uma inflamação que provoca
queda de cabelos
bit.ly/igPBR17abr21
COMENTÁRIOS cartas@fapesp.br
CONTATOS

revistapesquisa.fapesp.br

redacao@fapesp.br
Covid-19
PesquisaFapesp Lendo a reportagem “O vírus em evolução”
PesquisaFapesp (edição 302), penso que o combate à pandemia
tem de ser uma prioridade mundial. Tudo é
pesquisa_fapesp
consequência do nosso descaso com o planeta.
PesquisaFAPESP Paulo Leonardo Nonato

pesquisafapesp

cartas@fapesp.br Carreiras em uma linguagem que nós, leigos, podemos


R. Joaquim Antunes, 727 Fiz isso (“Um outro diploma”, edição 301). entender (“9 perguntas sobre as variantes do
10º andar Foi terrível, cansativo, exaustivo, mas não me novo coronavírus”).
CEP 05415-012
arrependi nem por um só minuto. Solange Bernardes Carvalhal
São Paulo, SP
Claudia Lopes Borio
Acho que foi o vídeo mais esclarecedor que
assisti.
ASSINATURAS, Campos rupestres Celia Kawazoi
RENOVAÇÃO E MUDANÇA Acompanhei por meio de notícias o projeto de
DE ENDEREÇO
Extrema (MG), citado na reportagem “Para Excelente explanação. Em linguagem simples
Envie um e-mail para
assinaturaspesquisa@fapesp.br
proteger as fontes de água no alto das serras”, e muito clara. Nota 10.
quando morava em Paraisópolis, também em Valdir de Marqui
Minas. Está dando muito certo, muitas nascen-
PARA ANUNCIAR tes foram recuperadas. Parece que a população Uma aula imperdível para todos que, como eu,
Contate: Paula Iliadis envolvida se conscientizou da importância não são do campo da biologia e das ciências
E-mail: de preservar. médicas.
publicidade@fapesp.br
Rita Mendes Tania Cordeiro

De 2014 a 2018, fiz anualmente expedições Que vídeo bem-feito (“O papel do SUS no com-
EDIÇÕES ANTERIORES
Preço atual de capa ao Espinhaço mineiro. Em sua face oeste ele bate à pandemia”). Merece ser compartilhado.
acrescido do custo faz divisa com um Cerrado muito carente de Lair Amaro   
de postagem. cursos d’água. Boa parte da água desce dos
Peça pelo e-mail: campos rupestres no alto da serra. Faz todo Fiquei impressionado com as histórias e quali-
clair@fapesp.br
sentido preservá-la. dade do vídeo “O golpe na academia (parte 1)”.
Igor Messias Gustavo Suto

LICENCIAMENTO
DE CONTEÚDO
Adquira os direitos de Vídeos Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser resumidas
reprodução de textos Perfeitas as explicações de Eurico Arruda e por motivo de espaço e clareza.
e imagens de Pesquisa FAPESP.
E-mail:
mpiliadis@fapesp.br
Reportagens que você lê no site de Pesquisa FAPESP bit.ly/igYpykuera
Algumas populações nativas da América do Sul podem descender, em parte, de povos da Ásia e da Oceania
MARCELLO CASAL JR / AGÊNCIA BRASIL

Indivíduos da etnia
Xavante, uma
das estudadas pelos
geneticistas

6 | MAIO DE 2021
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
CARTA DA EDITORA
PRESIDENTE
Marco Antonio Zago

VICE-PRESIDENTE
Ronaldo Aloise Pilli

CONSELHO SUPERIOR

Carmino Antonio de Souza, Helena Bonciani Nader, Ignácio


Maria Poveda Velasco, João Fernando Gomes de Oliveira,
Liedi Legi Bariani Bernucci, Mayana Zatz, Mozart Neves
Ramos, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski,
Vanderlan da Silva Bolzani

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

DIRETOR-PRESIDENTE
Educação não é privilégio
Carlos Américo Pacheco

DIRETOR CIENTÍFICO Alexandra Ozorio de Almeida | DIRETORA DE REDAÇÃO


Luiz Eugênio Mello

DIRETOR ADMINISTRATIVO

U
Fernando Menezes de Almeida

m dos impactos mais duradouros Datada de 1961, a Lei de Diretrizes e


da pandemia causada pelo novo Bases é um dos principais arcabouços le-
coronavírus recai em uma área gais que norteiam a educação brasileira.
ISSN 1519-8774
vital para todas as nações: a educação, O documento, que defende os preceitos
COMITÊ CIENTÍFICO determinante para o futuro de países em da escola pública, obrigatória, gratuita e
desenvolvimento como o Brasil. Ao já laica, teve como articulador central Aní-
Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente),
Américo Martins Craveiro, Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria

alto número de crianças e adolescentes sio Teixeira, morto há 50 anos (página


Fonseca Almeida, Carlos Américo Pacheco, Catarina Segreti Porto,
Claudia Lúcia Mendes de Oliveira, Deisy das Graças de Souza, Douglas
Eduardo Zampieri, Eduardo de Senzi Zancul, Euclides de Mesquita
Neto, Fabio Kon, Francisco Rafael Martins Laurindo, João Luiz sem matrícula vigente – 1,3 milhão –, 91). Pensador, administrador e político
Filgueiras de Azevedo, José Roberto de França Arruda, José Roberto
Postali Parra, Leticia Veras Costa Lotufo, Lucio Angnes, Luciana teriam se somado mais 4 milhões de alu- da educação, Teixeira ajudou a cons-
Harumi Hashiba Maestrelli Horta, Mariana Cabral de Oliveira, Marco
Antonio Zago, Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia Manso Alves, Marta nos que deixaram de estudar devido à truir ou dirigiu instituições centrais do
Teresa da Silva Arretche, Paula Montero, Richard Charles Garratt,
Roberto Marcondes Cesar Júnior, Rui Monteiro de Barros Maciel, Covid-19, segundo levantamento do Uni- sistema educacional brasileiro, como a
Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral e Walter Colli

COORDENADOR CIENTÍFICO
cef com base em dados da Pnad/IBGE Capes e o Inep (que hoje leva seu nome).
Luiz Henrique Lopes dos Santos (página 18). Educação não é privilégio, título deste
DIRETORA DE REDAÇÃO
Alexandra Ozorio de Almeida
O país, que recentemente alcançou a editorial, é o nome de um de seus livros.
EDITOR-CHEFE
universalização do ensino fundamental, Educação é um dos temas da entrevis-
Neldson Marcolin
defrontava-se com dificuldades históri- ta concedida pelo engenheiro Luiz Be-
EDITORES Fabrício Marques (Política C&T), Glenda Mezarobba
(Humanidades), Marcos Pivetta (Ciência), Yuri Vasconcelos cas de evasão, defasagem e crescentes vilacqua (página 36), idealizador do que
(Tecnologia), Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto (Editores
especiais), Maria Guimarães (Site) diferenças nos níveis de aprendizagem se tornou uma das novas instituições de
REPÓRTERES Christina Queiroz, Rodrigo de Oliveira Andrade dos alunos. Esses problemas foram agra- ensino superior mais inovadoras do país,
REDATORES Jayne Oliveira (Site) e Renata Oliveira vados pela pandemia e pela condução a UFABC. Interdisciplinar por natureza,
do Prado (Mídias Sociais)

ARTE Claudia Warrak (Editora),


do seu combate no país, relata a repor- a universidade não tem departamentos.
Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Designers),
Alexandre Affonso (Editor de infografia), Felipe Braz (Designer digital)
tagem de capa desta edição. Segundo Responsável pelos programas de enge-
FOTÓGRAFO Léo Ramos Chaves
relatório da OCDE, precisamente os nharia civil e mecânica nos primeiros
BANCO DE IMAGENS Valter Rodrigues
países com os piores níveis de escola- anos da Coppe/UFRJ, especialista em
RÁDIO Sarah Caravieri (Produção do programa Pesquisa Brasil) ridade foram os que mantiveram as es- grandes estruturas e pontes, Bevilacqua
REVISÃO Alexandre Oliveira e Margô Negro colas fechadas por mais tempo. Outro buscou construí-las também entre a
COLABORADORES Ana Carolina Fernandes, Ana Paula Orlandi, levantamento mostrou que Alemanha, pesquisa e os desafios tecnológicos das
Bruno de Pierro, Diego Viana, Domingos Zaparolli, Eduardo
Geraque, Elisa Carareto, Igor Zolnerkevic, Iris Kantor, Flávio Reino Unido, Dinamarca e França sus- grandes empresas.
Protásio Veras, Renato Pedrosa, Sidnei Santos de Oliveira

REVISÃO TÉCNICA Célio Haddad, João Luiz Azevedo, José


penderam as aulas por aproximadamen- Principal parceira da Coppe, a Petro-
Roberto Arruda, Maria Beatriz Florenzano, Nathan Berkovitz,
Paulo Artaxo, Walter Colli e William Roberto Wolf
te 90 dias e no Brasil foram mais de 260 bras procurou a instituição quando des-
dias de interrupção. cobriu reservas petrolíferas em águas
É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL
DE TEXTOS, FOTOS, ILUSTRAÇÕES E INFOGRÁFICOS As previsões sobre o agravamento da profundas, área com grandes desafios
SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

TIRAGEM 30.100 exemplares


desigualdade de aprendizagem no país e de pesquisa à época. As atividades de
IMPRESSÃO Plural Indústria Gráfica
DISTRIBUIÇÃO RAC Mídia Editora
na América Latina e Caribe são inquie- pesquisa relativas aos obstáculos da ex-
GESTÃO ADMINISTRATIVA FUSP – FUNDAÇÃO DE APOIO
tantes. Para medir as consequências da ploração de petróleo em grandes pro-
À UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO pandemia na educação, o Banco Mundial fundidades seguem rendendo frutos.
PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727,
10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP usou o conceito de pobreza de aprendi- Metodologia computacional que reúne
FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901,
Alto da Lapa, São Paulo-SP zagem, ideia semelhante à da linha de mecânica de fluidos e inteligência arti-
SECRETARIA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO,
pobreza monetária. Na região, conside- ficial desenvolvida pela Escola de En-
CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
rando o impacto na educação até o início genharia de São Carlos, da USP, pode
de 2021 e o fechamento das escolas por facilitar o gerenciamento do escoamento
10 meses, pode passar de 55% para 71% de óleo e gás natural extraídos de águas
da população classificada como pobre profundas e ultraprofundas até as plata-
de aprendizagem. formas marinhas (página 78).

PESQUISA FAPESP 303 | 7


BOAS PRÁTICAS

Para disseminar U
m artigo publicado no ano pas-
sado na revista PLOS Biology
examinou e esmiuçou os cinco

os Princípios Princípios de Hong Kong, um conjunto


de diretrizes definidas em 2019 na 6ª

de Hong Kong
Conferência Mundial de Integridade
Científica para avaliar o desempenho dos
pesquisadores de forma mais abrangen-
te e recompensar comportamentos éti-
Estudo reúne iniciativas para cos e transparentes. O paper é assinado WILLIAM VANDERSON / FOX PHOTOS / HULTON ARCHIVE / GETTY IMAGES

recompensar pesquisadores que pelo epidemiologista David Moher, da


Universidade de Ottawa, no Canadá, em
compartilham dados e têm parceria com oito pesquisadores que par-
comportamentos éticos e transparentes ticiparam da organização da conferência.
O grupo também enumerou iniciativas
de instituições acadêmicas e agências de
fomento afinadas com as cinco recomen-
dações, em uma espécie de guia de boas
práticas para promover uma cultura de
integridade utilizando critérios apro-
priados de avaliação. “Desenvolvemos
os Princípios de Hong Kong com foco na
necessidade de impulsionar a qualidade
da pesquisa, garantindo que os cientistas

8 | MAIO DE 2021
sejam reconhecidos e recompensados Entre os exemplos apontados, figura o da As cinco diretrizes
por ações que fortaleçam a integridade”, Faculdade de Medicina da Universidade
explicou Moher em sua conta do Twitter, Tecnológica de Nanyang, em Singapura. O que dizem os Princípios
quando o artigo foi lançado. Ela audita os planos de gerenciamen- de Hong Kong
O primeiro princípio propõe a valori- to de dados de seus pesquisadores para
zação de práticas responsáveis em todas verificar se os dados brutos foram real- 1 Valorizar, na avaliação dos
as fases de um projeto científico, de sua mente disponibilizados no repositório pesquisadores, as práticas responsáveis
concepção à divulgação dos resultados. da instituição. desde a concepção até a execução da
Moher e seus colegas criticam a utiliza- pesquisa, incluindo o desenvolvimento

A
ção isolada de indicadores quantitativos, importância de garantir liberdade da ideia inicial do trabalho, o desenho
como número de artigos publicados e aos cientistas é o mote do quarto de pesquisa, a metodologia, a execução
suas citações, para distinguir o mérito princípio de Hong Kong. Ele pro- e a disseminação efetiva dos resultados
acadêmico. A recomendação é premiar põe que sejam reconhecidas as contribui-
também pesquisadores engajados em ções de tipos variados de atividades de 2 Valorizar o relato preciso
ações para reforçar a fidedignidade dos pesquisa, desde aquelas orientadas ape- e transparente das pesquisas,
resultados. Um dos bons exemplos men- nas pela curiosidade dos pesquisadores independentemente dos seus resultados
cionados é o dos Institutos Nacionais de até as que buscam aplicações comerciais
Saúde (NIH) dos Estados Unidos, que – não raro, o desenvolvimento de novas 3 Valorizar as práticas da ciência
em 2018 modificaram as instruções para tecnologias se baseia em descobertas aberta, como métodos, materiais
submissão de projetos. Os proponentes feitas acidentalmente, sem que o autor e dados abertos
são orientados, por exemplo, a utilizar pudesse prever o que alcançaria. Outra
uma ferramenta on-line, o Assistente recomendação é premiar também pesqui- 4 Valorizar um amplo espectro de
de Desenho Experimental (EDA), que sadores que testam ou validam novos mé- pesquisas e contribuições acadêmicas,
ajuda a planejar os experimentos com todos e ferramentas ou os que se ocupam como replicação, inovação, translação,
animais de laboratório, calculando o ta- de confirmar os resultados encontrados síntese e metapesquisa
manho adequado de amostras e orien- por outros, cujo esforço é essencial para
tando a adoção de métodos de análise acionar os mecanismos de autocorreção 5 Valorizar uma série de outras
para prevenir vieses. da ciência. Um dos destaques é a Orga- contribuições para fomentar a pesquisa
O segundo princípio se preocupa em nização Holandesa de Pesquisa, que já responsável e para a atividade
garantir que os dados encontrados em um lançou três editais para financiar estudos acadêmica, como a revisão por
estudo sejam robustos e possam ser re- de replicação de outros trabalhos. pares para projetos e publicações,
produzidos em trabalhos subsequentes. A Por fim, o quinto princípio prevê re- a orientação, a divulgação e a troca
proposta é encontrar formas de conside- conhecer o trabalho de pesquisadores de conhecimento
rar o conjunto completo de informações que se dedicam a atividades vistas co-
obtidas em um experimento científico, mo acessórias, tais como a revisão de
incluindo os resultados negativos, de mo- artigos, a orientação e supervisão de dos como fundamentais no combate à
do a evitar que a divulgação de informa- estudantes e jovens pesquisadores, a pandemia”, diz o odontologista Sigmar
ções parciais ou selecionadas distorçam divulgação científica e as atividades de de Mello Rode, presidente da Abec e
as conclusões. Essa preocupação levou extensão. Há bons exemplos nesse sen- pesquisador da Universidade Estadual
as plataformas de publicação em acesso tido: a Universidade de Glasgow incluiu Paulista (Unesp), que ajudou a tradu-
aberto da Wellcome Trust e da Fundação nos critérios de promoção de docentes zir o artigo com as pesquisadoras Sonia
Bill & Melinda Gates a exigir que autores as atividades de revisão por pares. Isso Vasconcelos, da Universidade Federal
forneçam os protocolos de seus trabalhos é possível quando os periódicos publi- do Rio de Janeiro, e Carmen Penido,
juntamente com os resultados finais, com cam pareceres abertos em que o nome da Fundação Oswaldo Cruz. De acor-
o objetivo de verificar se as hipóteses ini- do avaliador é divulgado. Outra iniciati- do com Rode, há exemplos brasileiros
ciais foram modificadas no decorrer do va é a da Agência Irlandesa de Pesquisa que convergem para os princípios de
projeto. Instituições como a Universidade em Saúde, que oferece a pesquisadores Hong Kong. “No estado de São Paulo,
de Toronto, no Canadá, determinam que financiamentos adicionais para ativida- temos um estímulo crescente para que
seus pesquisadores usem a Ferramenta de des de disseminação, a fim de acelerar as pesquisadores compartilhem seus dados
Protocolo Eletrônico Spirit. Trata-se de aplicações no ambiente clínico. de pesquisa, o que facilita o trabalho de
um software on-line que cria e gerencia O texto do artigo da PLOS Biology foi quem vai replicar os estudos e permite
protocolos de ensaios clínicos, registran- traduzido para o português em janeiro o reaproveitamento das informações
do automaticamente suas informações no pela Associação Brasileira dos Editores em novos trabalhos”, afirma, referindo-
banco de dados clinicaltrials.gov. Científicos (Abec) e pode ser consultado -se a iniciativas da FAPESP, como a que
Já a terceira recomendação envolve no site da instituição em bit.ly/3dUlM4b. instituiu a exigência para que projetos
recompensar quem adota os princípios “Esses princípios são importantes pa- de pesquisa em todas as modalidades
da ciência aberta, um conjunto de prá- ra promover a integridade científica e apresentem planos de gestão de dados.
ticas que promove a transparência na para valorizar o papel da pesquisa e o “Há uma valorização da ciência aber-
pesquisa e o trabalho em colaboração. trabalho dos pesquisadores, reconheci- ta”, afirma. n Fabrício Marques

PESQUISA FAPESP 303 | 9


Dados fabricados em estudo
para avaliar clínicas psiquiátricas

O
psicoterapeuta e epidemiologis- O pesquisador sustenta que não houve do que suspendesse a investigação, caso
ta Hans-Ulrich Wittchen, um má-fé e que o erro não compromete os contrário haveria um “terremoto polí-
respeitado especialista em fo- resultados do estudo. “Os dados estão tico nacional”.
bias e ansiedade que editou um manual cientificamente corretos”, disse. A Universidade Ludwig Maximilian
de diagnóstico de transtornos mentais A fabricação de dados não é a única de Munique, onde Wittchen atuava des-
utilizado por psicólogos da Alemanha, acusação que ele enfrenta. Segundo o de 2017 como professor visitante, anun-
fabricou parte dos dados de um estudo relatório, Wittchen assediou os dois jo- ciou a suspensão de seu contrato no mês
que custou € 2,4 milhões (o equivalente vens pesquisadores que o denunciaram. passado, depois que soube das alegações.
a R$ 16,2 milhões) sobre o desempenho Eles trabalhavam na Associação para A Sociedade Alemã de Psicologia tam-
e a qualidade de clínicas psiquiátricas do Transferência de Conhecimento e Tec- bém se pronunciou, informando que as
país. De acordo com uma investigação de nologia, vinculada à TU Dresden, órgão conclusões da investigação são “muito
dois anos encomendada pela Universi- responsável por executar a avaliação das graves” e que um tribunal interno ava-
dade Técnica de Dresden (TU Dresden), clínicas psiquiátricas. O pesquisador liará a expulsão do pesquisador de seus
onde Wittchen era professor catedrático tentou convencê-los, em vão, a assinar quadros. Um porta-voz da TU Dresden
até se aposentar em 2017, 20 das 93 clíni- uma carta em que retiravam as acusa- informou que outras alegações contra
cas avaliadas não foram sequer visitadas: ções e pediam desculpas. Também re- Wittchen estão sendo investigadas –
o pesquisador orientou seus assistentes comendou a demissão deles, para cortar ele teria empregado a filha no projeto
a atribuir a elas os dados copiados de custos. A universidade foi criticada no sem que ela efetivamente trabalhasse –
outras clínicas. “As violações foram in- relatório por não proteger os denuncian- e deverá anunciar em breve se aplicará
tencionais e não fruto de negligência”, tes. Em 2019, o psicoterapeuta enviou sanções. O Ministério Público em Dres-
informa o relatório da comissão de in- um e-mail ao reitor da universidade na den abriu uma investigação criminal
quérito, reproduzido pela revista Science. época, Hans Müller-Steinhagen, pedin- sobre o caso.

Alarme na pesquisa médica do Irã

U
m grupo de pesquisadores vin- Da mesma forma, o risco de ser pe-
culados a universidades do Irã go cometendo má conduta foi classifi-
enviou um questionário com per- cado como baixo ou muito baixo por
guntas sobre integridade científica para 80,6% dos entrevistados. Os problemas
professores de faculdades de medicina mais frequentes envolveram atribuição
do país. Dos 692 docentes que aceitaram fraudulenta de autoria de artigos, a fal-
participar do levantamento, 72,1% afir- sificação de dados e a manipulação de
maram ter testemunhado pessoalmente resultados para obter conclusões mais
alguma situação de má conduta nos 12 impactantes. O estudo, divulgado no
meses anteriores. Entre as circunstâncias repositório Research Square, foi coor-
que mais influenciam desvios éticos, os denado pela médica Bita Mesgarpour,
entrevistados apontaram a pressão para diretora do Instituto Nacional de De-
obter cargos estáveis, a necessidade de senvolvimento de Pesquisa Médica, em
ampliar a produção científica e a falta de Teerã, e ex-subsecretária de Pesquisa e
empenho das instituições de pesquisa em Tecnologia do Ministério da Saúde do
ALEXANDRE AFFONSO

coibir abusos. Apenas 18,5% dos entrevis- Irã. A conclusão do estudo é de que o
tados classificaram como alta ou muito país necessita de políticas públicas mais
alta a eficácia das regras de suas institui- eficazes para enfrentar as taxas altas de
ções para reduzir casos de má conduta. má conduta na pesquisa médica.

10 | MAIO DE 2021
DADOS Número de publicações científicas cresceu
significativamente nas últimas três décadas

A média trienal de publicações científicas1 com pelo menos um Para os países-membros A participação brasileira
autor sediado no Brasil passou de 3.010 no triênio 1988-90 para da OCDE, a expansão foi de passou de 0,46% para
17.769 em 2003-05 (+490%), e para 63.856 no último triênio 212%, para o total mundial, 2,80% do total mundial no
(+259% sobre o triênio anterior, +2.021% sobre 1988-90) de 252%, nas três décadas período considerado

Publicações científicas1,2 por grandes áreas do conhecimento no Brasil, em países


da OCDE e no mundo, em médias trienais (1988-90, 2003-05, 2018-20)
Brasil Países da OCDE Total mundial
1988-90 2003-05 2018-20 1988-90 2003-05 2018-20 1988-90 2003-05 2018-20

Mat.-C. da Terra 1.066 7.484 19.907 145.774 349.737 495.840 210.402 461.789 868.023
C. Biológicas 1.052 5.106 20.305 127.322 202.044 325.470 154.745 230.675 493.850
Engenharias 319 3.529 12.845 64.135 193.241 346.560 113.099 267.821 649.186
C. da Saúde 773 4.064 16.432 145.186 239.616 423.370 173.202 263.679 546.311
C. Agrícolas 293 1.824 8.434 23.951 40.161 59.405 33.305 49.426 97.828
C. Sociais 28 182 1.863 17.712 31.905 101.629 29.238 42.496 131.297
C. Humanas 126 383 2.378 35.966 58.134 149.864 51.656 70.847 187.498
Ling.-Lit.-Artes 21 46 243 10.284 12.740 28.235 22.079 23.272 40.851
Interdisciplinar 7 10 162 1.864 702 3.557 4.752 1.526 5.581
Total 3.010 17.769 63.856 474.949 890.790 1.480.353 647.997 1.114.346 2.283.593

PARTICIPAÇÃO DAS ÁREAS2,3 MANTÉM PERFIL DIFERENCIADO EM RELAÇÃO A OUTROS PAÍSES


Participação (%)2 das grandes áreas do conhecimento3 no total de publicações (Brasil, países da OCDE
e mundo) em médias trienais (1988-90, 2003-05, 2018-20). Valores marcados para 2018-20

1988-90 2003-05 2018-20

Brasil Países da OCDE Total mundial


Mat.-C. da Terra Mat.-C. da Terra Mat.-C. da Terra

34 39
30

C. Agrícolas C. Biológicas C. Agrícolas C. Biológicas C. Agrícolas C. Biológicas


31 22
13 4 23
0 0 4 0
5 5 5
10 10 10
15 15 15
20 20 20
25 20 25 25
25 30 30 24 24 30
35 29 35 35 29
40 40 40
C. da Saúde Engenharias C. da Saúde Engenharias C. da Saúde Engenharias

Brasil Países da OCDE Total mundial


C. Sociais C. Sociais C. Sociais

7,0
5,9

2,8

0,4
0
2
0
2
1,8 0
2
4 2,0 4 4
6 3,6 6 6
8 8 10,4 8
10
12
10
12
10
12
8,4
Ling.-Lit.-Artes C. Humanas Ling.-Lit.-Artes C. Humanas Ling.-Lit.-Artes C. Humanas

NOTAS (1) PUBLICAÇÕES INDEXADAS NAS BASES WEB OF SCIENCE/INCITES DOS TIPOS “ARTICLE”, “PROCEEDINGS PAPER” E “REVIEW”. (2) A SOMA DOS NÚMEROS DE PUBLICAÇÕES DAS ÁREAS PODE SER MAIOR DO QUE O TOTAL,
POIS UMA PUBLICAÇÃO PODE SER CLASSIFICADA EM MAIS DE UMA GRANDE ÁREA. O MESMO VALE PARA AS PARTICIPAÇÕES, PODEM SOMAR MAIS DO QUE 100%. (3) FOI UTILIZADO O “SCHEMA” FAPESP PARA AS GRANDES ÁREAS.
A ÁREA INTERDISCIPLINAR NÃO FOI INCLUÍDA NOS GRÁFICOS POR APRESENTAR VALORES DE PARTICIPAÇÃO ABAIXO DE 1% AO LONGO DO PERÍODO CONSIDERADO, EM TODOS OS CASOS

FONTES INCITES/CLARIVATE, DADOS BAIXADOS EM 21/04/2021

PESQUISA FAPESP 303 | 11


NOTAS

Trabalhadores
no sítio arqueológico
de Aten, cidade
da era do faraó
Amenófis III

Uma cidade de 3 mil anos


no Vale dos Reis
Arqueólogos e o governo egípcio anunciaram no início de abril a descoberta de uma
cidade com mais de 3 mil anos de idade, a maior do Egito Antigo já desenterrada.
Seus sinais começaram a surgir em setembro de 2020, durante escavações em uma
área próxima a Luxor, a 500 quilômetros ao sul do Cairo, a capital do país, entre
os templos mortuários dos reis Ramsés III e Amenófis III. A equipe do arqueólogo
egípcio Zahi Hawass, ex-secretário-geral do Conselho Supremo de Antiguidades,
buscava vestígios do templo mortuário de Tutancamon, nunca identificado, e acabou
desenterrando uma cidade inteira, composta por três distritos, com ruas e edificações
com paredes intactas, algumas de até 3 metros de altura. A cidade foi identificada
como sendo Aten, fundada no reinado de Amenófis III (1391 a.C.-1353 a.C.), durante
o Império Novo, período em que o domínio dos monarcas egípcios alcançou o seu auge.
Aten possivelmente foi um dos principais centros administrativos e de produção do
império, sendo habitada até o reinado de Tuntancamon (1332 a.C.-1 323 a.C). Entre
os achados na cidade estão uma padaria, com fornos e vasos de armazenamento intactos,
além de um grupo de tumbas de pedra ainda lacradas, semelhantes às do Vale dos Reis.

12 | MAIO DE 2021
Luz sobre a antimatéria
2
Pela primeira vez, pesquisadores do experimento Alpha,
na Organização Europeia para Pesquisa Nuclear (Cern),
conseguiram resfriar átomos de antimatéria usando laser.
O grupo, do qual participam físicos da Universidade Federal
do Rio Janeiro (UFRJ), adaptou uma técnica adotada em
experimentos com átomos e moléculas de matéria para
trabalhar com antimatéria. No caso, foi usada sua forma
mais simples: o anti-hidrogênio. Os átomos de anti-hidrogênio
foram isolados e confinados por campos magnéticos e depois
resfriados com laser. Assim, atingiram a temperatura mais
baixa já alcançada para a antimatéria, cerca de 50 miliKelvin
(Nature, 31 de março). A técnica deve permitir a realização de
Representação artística do movimento
medições mais precisas da estrutura interna do anti-hidrogênio dos átomos de anti-hidrogênio antes (cinza)
e de como ele se comporta sob a ação da gravidade. e depois (branco) do resfriamento

Mais dinheiro para a ciência nos Estados Unidos


O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, apresen- ticas, Biden propôs um acréscimo de 10,2% nas ver-
tou em abril sua primeira proposta de orçamento, bas do Departamento de Energia, que contaria com
para 2022. Falta detalhamento, mas o documento US$ 46,1 bilhões, e de 25,5% no orçamento da Ad-
sinaliza um aumento expressivo do investimento ministração Nacional Atmosférica e Oceânica (Noaa),
público em pesquisa e desenvolvimento (P&D). Pra- que teria à disposição US$ 6,9 bilhões. Os Institutos
ticamente todas as agências federais seriam contem- Nacionais de Saúde (NIH), principal centro de pes-
pladas, sobretudo as ligadas ao combate à Covid-19 quisa biomédica no mundo, receberiam US$ 51 bilhões
e às mudanças climáticas. A peça prevê um aumento (21,4% a mais que neste ano). A proposta ainda será
de 22,5% no orçamento dos Centros para Controle discutida no Congresso, que tem a palavra final sobre
e Prevenção de Doenças (CDC), que, em 2022, con- o orçamento e define quanto cada agência receberá.
taria com US$ 8,7 bilhões. Já a National Science Foun- A notícia, porém, foi recebida com alívio pela comu-
dation, principal agência de fomento à ciência básica nidade científica norte-americana, que vê uma mu-
do país, receberia um reajuste de 20%, alcançando dança radical de postura da Casa Branca em relação
US$ 10,2 bilhões. Para combater as mudanças climá- aos investimentos em ciência e tecnologia.

Um computador quântico
de uso privado
FOTOS 1 KHALED DESOUKI / AFP / GETTY IMAGES 2 CHUKMAN SO / TRIUMF 3 IBM

A Clínica Cleveland, nos Estados Unidos, será


o primeiro cliente privado da IBM a ter um computador
quântico próprio. Antes, a IBM só disponibilizava
computação quântica em nuvem para empresas
e centros de pesquisa. A computação clássica baseia-se
no processamento de unidades de informação (bits),
que podem assumir apenas um valor (0 ou 1) por vez.
Já na computação quântica, as unidades de informação
  

(qubits) podem ter infinitos valores entre 0 e 1 –


  

inclusive o 0 e o 1 a um só tempo. Essa característica


permite ao computador quântico realizar certos
cálculos mais rapidamente que os supercomputadores
atuais. A clínica deve usar o computador para
3 pesquisas sobre patógenos e saúde humana.

PESQUISA FAPESP 303 | 13


1 O engenheiro de alimentos Antonio Unicamp como aluno de graduação
José de Almeida Meirelles, conhecido no curso de engenharia de alimentos
como Tom Zé, foi nomeado em 1976. Fez mestrado na mesma
reitor da Universidade Estadual área na instituição e, em 1987,
de Campinas (Unicamp) pelo concluiu o doutorado em engenharia
governador de São Paulo, João Doria. de processos na Universidade de
A cerimônia de posse ocorreu em 19 Ciências Aplicadas de Merseburg,
de abril, no Palácio dos Bandeirantes. Alemanha. No mesmo ano,
A chapa composta por Tom Zé e pela tornou-se professor da Faculdade

Governador de médica Maria Luiza Moretti, da


Faculdade de Ciências Médicas da
de Engenharia de Alimentos da
Unicamp. Obteve a livre-docência
São Paulo nomeia universidade, foi a primeira colocada, em 1995 e se tornou professor
com 51,97% dos votos, no segundo titular em 2007. Tom Zé comandará
novo reitor turno da consulta para escolha a universidade pelos próximos
do novo reitor, realizado em 24 e 25 quatro anos em substituição ao
da Unicamp de março. Tom Zé iniciou sua vida na físico Marcelo Knobel.

Superlotação
em penitenciária
de El Salvador,
uma das razões do
aumento dos casos
de tuberculose

FOTOS 1 UNICAMP 2 YURI CORTEZ / AFP / GETTY IMAGES 3 VORTEX 4 CHUANG ZHAO 5 NASA / IMAGEPLUS

Tuberculose Os casos de tuberculose na população carcerária da América Latina aumentaram 269%


entre 2011 e 2017, segundo estudo feito por um grupo internacional de pesquisadores, entre
nos presídios eles brasileiros da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS). No trabalho, foram analisados os casos novos e as reinfecções
ocorridas em penitenciárias de 19 países da região. O total de casos saltou de 538, em 2011,
para 2.489, em 2017, nas prisões da América Central. Nas penitenciárias da América do Sul,
pulou de 7.798 para 17.285 no período (The Lancet, 8 abril). No Brasil, o aumento foi de 45%.
Embora o número relativo seja inferior ao de outros países, sua contribuição para o total de
casos foi uma das maiores, já que abriga o maior número de encarcerados da América Latina.
Os casos na região crescem desde 2000. A possível razão? Superlotação das celas, que
costumam ser úmidas, escuras e pouco ventiladas, favorecendo a transmissão da doença.

14 | MAIO DE 2021
Energia gerada por vibração
A geração de energia eólica por meio da vibração de uma haste vertical de fibra
de carbono (foto) é a proposta inovadora que a startup espanhola Vortex Blade-
less começa a testar neste ano. O sistema dispensa as enormes pás e os baru-
lhentos rotores das turbinas eólicas convencionais, potencialmente reduzindo o
impacto nas rotas migratórias de pássaros e no incômodo às comunidades vizi-
nhas. A tecnologia utiliza o fenômeno denominado vortex shedding, descrito em
1911 pelo físico húngaro Theodore von Kármán (1981-1963). Basicamente, o
fluxo do vento gera um padrão cíclico de vórtices e faz vibrar um dispositivo ci-
líndrico fixado no solo. A oscilação gera energia mecânica, que é transformada
em eletricidade por meio de alternadores. O aparelho produz 30% da energia
obtida com um aerogerador tradicional do mesmo porte. A Vortex testará 100
minigeradores de 85 centímetros e, se der certo, repetirá o experimento com o
Vortex Tacoma, de 2,75 metros e potência de 100 watts. Os dois equipamentos
foram projetados para instalação em tetos de galpões e prédios urbanos.
3

O pterossauro das árvores


Um fóssil com 160 milhões de anos descoberto e presente em primatas, roedores, marsupiais,
em Liaoning, no nordeste da China, pertence pererecas e camaleões. Uma análise por
a uma nova espécie de pterossauro, que tomografia do fóssil revelou ainda outros
vem despertando a curiosidade. Batizado de detalhes que confirmam os hábitos arborícolas
Kunpengopterus antipollicatus, o réptil voador do animal do Período Jurássico (Current Biology,
tinha porte pequeno (cerca de 85 centímetros) 12 de abril). O trabalho da equipe internacional
e membros dianteiros que se assemelham de paleontólogos foi liderado por Xuanyu Zhou,
às mãos de primatas, com dois dedos longos da Universidade de Geociências da China, e
e um polegar opositor. Por causa dessa Rodrigo Pêgas, da Universidade Federal do ABC.
característica anatômica, acabou apelidado de A dupla identificou o fóssil, então recém-coletado,
“macacodáctilo” (dedos de macaco). Esse em uma visita ao Museu de Pterossauros de
é o registro mais antigo de polegar opositor Beipiao, na China. “Logo notamos a importância
verdadeiro em pterossauros, uma adaptação do material e pedimos permissão para
típica de animais que vivem em árvores estudá-lo”, lembra o coautor brasileiro.

O mini-helicóptero
Ingenuity pousa em Voo bem-sucedido
teste realizado
em 19 de abril em Marte
Em 19 de abril, o mini-helicóptero
Ingenuity (Engenhosidade),
da Nasa, tornou-se a primeira
aeronave projetada na Terra a fazer
um voo controlado e com propulsão
própria em outro planeta. Depois de
precisar de reinstalação de software
a distância, às 12h33 (horário
de Marte) daquela segunda-feira,
o Ingenuity ligou seus rotores,
levantou voo e permaneceu estável
no ar por 30 segundos, a cerca
de 3 metros do solo, antes de pousar
(ver entrevista na página 74).

PESQUISA FAPESP 303 | 15


NOTAS DA PANDEMIA

Imunidade superior
O estudo de amostras de sangue e tecido
extraídas antes da pandemia de Covid-19 pode
ajudar a explicar por que a doença é mais
grave e mais comum em adultos do que em
crianças. A equipe liderada por Scott Boyd, da
Escola de Medicina da Universidade Stanford,
Estados Unidos, analisou 12 amostras de tecido
de cordão umbilical e de sangue de 93 crianças
de 1 a 3 anos de idade, bem como amostras
de sangue de 114 adultos de várias idades,
além de oito amostras de sangue e de tecidos
de oito adultos falecidos (Science, 12 de abril).
Analisando as amostras, a equipe testou
a capacidade das células do sistema imune
do tipo linfócito B de reconhecer uma série
de patógenos. Descobriram uma frequência
muito maior de linfócitos B capazes de reagir
ao vírus Sars-CoV-2 nas amostras infantis.
Os pesquisadores supõem que a exposição
recente das crianças a outras espécies de
coronavírus permite que o sistema imune delas
identifique melhor o Sars-Cov-2, enquanto
os linfócitos B dos adultos já teriam perdido
a capacidade de lidar com esse tipo de infecção.

Duas vacinas Em um estudo com cerca de 4 mil pessoas com alto risco de contrair
Covid-19, incluindo profissionais de saúde, policiais e bombeiros, os Centros
evitam infecção de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos verificaram
que as vacinas da Pfizer-BioNTech e da Moderna são 80% eficazes na
por Sars-CoV-2 prevenção de infecções pelo vírus Sars-Cov-2 após a primeira dose e 90%
após a segunda (Morbidity and Mortality Weekly Report, 2 de abril). Esse é um
dos primeiros estudos a estimar a eficácia das vacinas em evitar a infecção,
e não apenas em proteger contra o desenvolvimento de casos sintomáticos
de Covid-19, como tem sido feito nos testes clínicos. Ao comentar
os resultados ao jornal norte-americano The Washington Post, a diretora
dos CDC, Rochelle Walensky, disse que o estudo mostra que a vacinação
nos Estados Unidos está realmente funcionando. Em um teste com 2.260
participantes ainda não revisado por especialistas externos, a vacina da
Pfizer-BioNTech também se mostrou eficaz em evitar a Covid-19 em crianças
e adolescentes de 12 a 15 anos. Não se registrou nenhum efeito colateral
sério. Ocorreram 18 casos de infecção sintomática no grupo placebo
e nenhum entre os que receberam vacina (New York Times, 31 de março).

16 | MAIO DE 2021
A importância da As consequências da
resposta celular Covid-19, meses depois
contra o coronavírus
O combate à infecção pelo Sars-CoV-2 não depende
apenas da ação de anticorpos, proteínas que
aderem à superfície do vírus e o impedem de entrar
nas células ou o marcam para serem destruídos.
O controle viral efetivo parece ser exercido em
boa medida pelos linfócitos T, células do sistema
imune capazes de eliminar as células nas quais
o coronavírus se instala. Um grupo de pesquisadores
coordenado pelos imunologistas Edécio Cunha Neto
FOTOS 1 CHRIS HELGREN / REUTERS / FOTOARENA 2 LÉO RAMOS CHAVES 3 SOUMYABRATA ROY/ NURPHOTO VIA GETTY IMAGES

e Jorge Kalil Filho, ambos da Universidade de


São Paulo (USP), e pela geneticista Mayana Zatz,
também da USP, verificou a importância da ação dos
linfócitos T em um pequeno estudo feito com dois
pares de gêmeos idênticos, todos infectados pelo 2

menos uma vez pelo novo coronavírus. Gêmeos Os efeitos de longo prazo da Covid-19 tornam-se mais claros.
idênticos deveriam produzir uma resposta imune Pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido,
semelhante, uma vez que compartilham genes examinaram a ocorrência de 14 distúrbios neurológicos ou psiquiátricos
iguais. Mas não foi assim. Em uma das duplas, em 236.379 pessoas seis meses após a confirmação do diagnóstico
um indivíduo teve Covid-19 uma segunda vez, com da Covid-19. A taxa de prevalência de qualquer um dos problemas
maior gravidade – provavelmente foi uma foi de 33,62% e de 46,42%, respectivamente, entre os que passaram
reinfecção, embora não seja possível eliminar a por tratamento em unidades de terapia intensiva. Os distúrbios
possibilidade de que o vírus tenha permanecido no psiquiátricos mais comuns foram ansiedade (17%), transtornos de
organismo. Analisando a resposta imunológica dos humor (14%), abuso de substâncias (7%) e insônia (5%); entre
quatro participantes, os pesquisadores verificaram as doenças neurológicas, acidente vascular cerebral (2,1%), demência
que os linfócitos T da pessoa que adoeceu pela (0,7%) e hemorragia cerebral (0,6%) (Lancet Psychiatry, 6 de abril).
segunda vez (uma profissional da área da saúde) Outro estudo de pesquisadores britânicos, com 47.780 pessoas que
apresentaram um desempenho pior do que os dos tiveram Covid-19, registrou taxas maiores que na população em geral
outros participantes (medRxiv, 28 de março). também de disfunção múltipla de órgãos, em todas as faixas de idade.
“Nosso trabalho sugere que a resposta imune eficaz Depois de uma média de 140 dias após o diagnóstico de Covid-19,
de linfócitos T específicos contra o Sars-CoV-2 30% dos indivíduos tiveram de ser novamente hospitalizados e 12%
é chave para o controle viral completo e para evitar deles morreram. As taxas de doença respiratória, diabetes e doença
a reincidência da infecção ou a persistência do cardiovascular foram, respectivamente, de 770, 127 e 126 para cada
vírus”, escreveram os autores. grupo de mil pessoas (British Medical Journal, 15 de março).

Novas pistas sobre os coágulos associados


à vacina da AstraZeneca
Avançou-se um passo no sentido de explicar o aderem às plaquetas, que, mesmo em número
mecanismo pelo qual a vacina desenvolvida reduzido, disparam a hipercoagulação. Andreas
pela Universidade de Oxford com a farmacêu- Greinacher, da Universidade de Greifswald, na
tica anglo-sueca AstraZeneca pode levar, em Alemanha, e colaboradores analisaram 11 pa-
casos muito raros, à formação de coágulos em cientes (9 deles mulheres) com idade média de
vasos sanguíneos. Esse fenômeno resultaria de 36 anos. Todos tomaram a vacina AstraZeneca
uma resposta imune semelhante à trombocito- e desenvolveram trombos, acompanhados da
penia induzida por heparina, um tipo raro de diminuição das plaquetas. Seis morreram. Os 11
trombose observada em pacientes tratados com apresentavam anticorpos contra o fator pla-
o anticoagulante heparina. Embora o uso de quetário 4 no sangue, observado na tromboci-
heparina favoreça o sangramento (e não a for- topenia induzida por heparina, embora nenhum
mação de trombos), nessa síndrome o anticoa- deles tenha tomado o medicamento (New En-
gulante estimula a produção de anticorpos que gland Journal of Medicine, 9 de abril).

PESQUISA FAPESP 303 | 17


CAPA

APRENDIZADO
EM RISCO
Em 2020, 170
milhões de alunos
foram afetados
pelo fechamento de
escolas na América
Latina e Caribe
Fechamento prolongado de escolas e acesso
desigual a ensino remoto elevam evasão de alunos
e causam defasagem na aquisição de conhecimento

Christina Queiroz

C
om escolas fechadas por mais tempo Com reflexão similar, o economista André
do que a média latino-americana e Portela, da Escola de Economia de São Paulo da
oferta irregular de ensino remoto, a Fundação Getulio Vargas (FGV-Eesp), avalia que
educação básica brasileira vive um crianças de 6 anos, em fase de alfabetização, ten-
momento crucial, que pode aprofun- dem a ser um dos grupos mais prejudicados. “Com
dar dificuldades históricas envolven- 7 ou 8 anos, a criança consolida a aprendizagem
do evasão, defasagem e desigualdade da alfabetização, que iniciou aos 6, de forma que
de aprendizagem. Publicadas recen- os prejuízos se acumulam”, avalia. Lautharte lem-
temente, pesquisas na área de econo- bra que atualmente o percentual de crianças in-
mia da educação procuram mensurar o impacto capazes de ler e compreender um texto simples,
da pandemia, especialmente sobre os matricula- ao término do ensino fundamental I, já é alto,
dos na rede pública. Análises do Banco Mundial de 51%, na região. Com o fechamento de escolas
desenvolvidas para tratar das consequências da públicas pelo período equivalente a 70% do ano
Covid-19 no setor de educação indicam que dois letivo, essa parcela pode subir para 62,5%, o que
em cada três estudantes da América Latina e representa mais 7,6 milhões de jovens com défi-
Caribe podem chegar aos 10 anos de idade sem cit de aprendizagem. O economista explica que,
conseguir ler textos simples, enquanto o Fundo antes da pandemia, eram cerca de 70 milhões as
das Nações Unidas para a Infância (Unicef ) es- crianças na linha de pobreza de aprendizagem.
tima que cerca de 4 milhões de crianças abando- As análises do Banco Mundial também indicam
naram os estudos no Brasil no último ano. Para que América Latina e Caribe podem apresentar o
reverter esse cenário, pesquisadores chamam a maior crescimento absoluto na parcela de alunos
atenção para a necessidade de investimentos em abaixo dos níveis mínimos de proficiência no Pro-
recursos tecnológicos e no suporte às instituições grama Internacional de Avaliação de Estudantes
de ensino, para o estabelecimento de protocolos (Pisa), estudo comparativo realizado a cada três
de segurança, no momento do retorno presencial. anos pela Organização para a Cooperação e Desen-
No ano passado, na América Latina e Caribe, volvimento Econômico (OCDE). Considerando o
cerca de 170 milhões de alunos foram afetados pelo fechamento de escolas pelo período de 10 meses
fechamento de escolas por um período médio de e a eficácia moderada de estratégias de ensino a
160 dias. Considerando os reflexos da pandemia distância, quando puderam ser aplicadas, a parcela
da Covid-19 na educação até o início de 2021, a de estudantes abaixo dos patamares mínimos de
região pode registrar o segundo maior aumento proficiência estabelecidos pelo Pisa pode subir
de pobreza de aprendizagem do mundo, com um dos atuais 55% para 71%. Alunos pobres tendem
crescimento de 20 pontos percentuais, segundo a ser os mais afetados. Isso significa que aos 15
estudo do Banco Mundial, divulgado em março. anos de idade, estudantes do quintil superior da
“Utilizamos a mesma ideia de linha de pobreza distribuição de renda podem apresentar, em mé-
monetária, que estabelece o valor mínimo diário dia, uma diferença de quase três anos letivos na
para uma pessoa sobreviver, para criar medidas aprendizagem, se comparados aos mais pobres.
de pobreza de aprendizagem”, explica um dos “No Brasil, a efetividade do ensino a distância tem
autores da pesquisa, o economista gaúcho Ildo variado conforme o aluno, a região, o estado ou a
Lautharte. Segundo ele, crianças que chegam aos cidade”, observa Lautharte. De acordo com ele, o
ERALDO PERES / AP PHOTO / IMAGEPLUS

10 anos sem conseguir ler um parágrafo adaptado acesso desigual ao ensino remoto também deverá
à idade são consideradas pobres de aprendizagem resultar no aumento das diferenças de aprendiza-
e podem sofrer as consequências dessa condição gem entre alunos matriculados nos mesmos anos
em todo o processo escolar, na medida em que “o escolares. “Muitos estudantes brasileiros não detêm
domínio da língua portuguesa funciona como um conhecimento adequado ao ano que cursam. Por
andaime a partir do qual todas as outras discipli- exemplo, alguns alunos concluem o 9º ano com o
nas se desenvolvem”. nível de aprendizagem desejado para o 7º ano”, in-

PESQUISA FAPESP 303 | 19


forma. Isso significa que, no contexto da pandemia,
RECURSOS TECNOLÓGICOS os professores precisam estar ainda mais prepara-
dos para lidar com o desnível dentro das turmas.
Censo de 2020 mapeou A pesquisa do Banco Mundial utilizou informa-
infraestrutura existente em escolas ções sobre o desempenho do Brasil no Pisa e das
federais, estaduais e municipais escolas no Sistema de Avaliação da Educação Bá-
sica (Saeb). Elaborado pelo Instituto Nacional de
n Federal (46) n Estadual (22.005)
Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) do Minis-
n Municipal (78.046) n Privada (24.743)
tério da Educação (MEC), o Saeb aplica avaliações
em larga escala nas escolas públicas do país – a
Internet
adesão de instituições particulares é voluntária. O
100% estudo também considerou a situação de crianças
92,1% e jovens fora da escola, a partir de dados do Insti-
64,7% tuto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
97,6%
“Esses indivíduos tampouco conseguem atingir os
níveis mínimos de proficiência, de forma que nos-
Internet banda larga sas estimativas refletem os impactos da evasão no
cenário da aprendizagem”, detalha Lautharte. Com
100%
a perspectiva de que o abandono escolar pode su-
74,7%
bir 15 pontos percentuais neste ano, o economista
52,0% lembra que as mudanças de ciclo, ou seja, do ensi-
88,4% no fundamental I para o II e do ensino fundamen-
tal II para o ensino médio, constituem momentos
Internet para alunos
em que a evasão costuma dar saltos, quando até
89,1% 25% dos estudantes podem deixar as salas de au-
61,3% la. “Ferramentas simples, como questionários que
23,8%
mensuram o nível socioeconômico da família ou as
49,6%
dificuldades enfrentadas para frequentar a escola,
podem ajudar a identificar os alunos com maior
probabilidade de abandonar os estudos”, observa.

A
Internet para uso administrativo

100%
ntes da pandemia, 1,3 milhão de crian-
90,8%
ças e adolescentes brasileiros em ida-
61,6% de escolar não estava matriculado em
93,7% instituições de ensino. Com a chegada
da Covid-19, levantamento do Unicef
Internet para ensino e aprendizagem
a partir de dados da Pesquisa Nacio-
84,8% nal por Amostra de Domicílios (Pnad)
71,5% calcula que outros mais de 4 milhões
33,7%
de meninos e meninas deixaram de
65,3%
estudar. Ítalo Dutra, chefe de educação do Unicef
no Brasil, afirma que a exclusão atinge com mais
FONTE INEP/CENSO ESCOLAR 2020 intensidade pretos, pardos e indígenas e populações

FOTO LÉO RAMOS CHAVES INFOGRÁFICOS ALEXANDRE AFFONSO

20 | MAIO DE 2021
REFLEXOS DA PANDEMIA NA AMÉRICA LATINA E CARIBE
Gráfico simula impacto em leitura Simulação dos efeitos da pandemia
entre estudantes ricos e pobres no universo de estudantes
abaixo do nível mínimo de proficiência
n 20% mais pobres n 20% mais ricos

40 pontos na escala do Pisa ≈ 1 ano de instrução

500 100%
456
426
400 80% 77%
362 71%
321
300 60% 55%

200 40%

100 20%

0 0
Nível de desempenho Nível estimado de Percentual médio Após o Após o
médio no Pisa antes desempenho médio no de alunos abaixo fechamento fechamento
da pandemia Pisa depois do fechamento do nível mínimo, de escolas de escolas
de escolas por 10 meses antes da pandemia por 10 meses por 13 meses

FONTE AGINDO AGORA PARA PROTEGER O CAPITAL HUMANO DE NOSSAS CRIANÇAS – OS CUSTOS E A RESPOSTA AO
IMPACTO DA PANDEMIA DE COVID-19 NO SETOR DE EDUCAÇÃO NA AMÉRICA LATINA E CARIBE/BANCO MUNDIAL/2021

do Norte e Nordeste do país, além de grupos de derou os resultados de pesquisas que mensuraram
nível socioeconômico baixo. “É preciso desenvolver impactos do fechamento em outros contextos. Uma
mecanismos de busca ativa dos estudantes que se delas analisou a situação de estudantes durante o
evadiram”, alerta, mencionando plataforma criada surto de H1N1 no estado de São Paulo, em 2009,
pelo fundo para apoiar gestores na empreitada. quando 13 municípios decidiram adiar em duas ou
As redes de ensino precisam estar preparadas três semanas o retorno das aulas presenciais, após as
para receber estudantes presencialmente, assim férias de julho. “Com base em dados da Prova Brasil,
que a pandemia for controlada, defende Dutra. avaliação em larga escala dos estudantes brasilei-
Ele sustenta que é preciso reduzir as curvas de ros que a partir de 2019 passou a se chamar Saeb, a
casos e mortes no país, antes de reabrir as esco- pesquisa concluiu que as instituições que tiveram
las. Divulgado em setembro de 2020, relatório da de adiar o retorno presencial para amenizar o risco
OCDE mostra que países com piores níveis de es- sanitário trazido pelo surto de H1N1 apresentaram
colaridade são aqueles que, em geral, mantiveram um desempenho de 5% a 10% pior, se comparadas
as escolas fechadas por mais tempo. Já o levanta- com as demais escolas”, conta Portela.
mento da consultoria Vozes da Educação, elabo- Segundo o economista da FGV-Eesp, para co-
rado com apoio da Fundação Lemann e do fundo nhecer as possibilidades de acesso dos estudan-
Imaginable Futures, mostra que se nações como tes brasileiros ao ensino remoto, a pesquisa tam-
Alemanha, Reino Unido, Dinamarca, Singapura e bém considerou as respostas da Pnad Covid-19,
França suspenderam as atividades presenciais por do IBGE. Foi possível identificar se as instituições
cerca de 90 dias, no Brasil, entre março de 2020 e estavam oferecendo atividades remotas e se crian-
janeiro de 2021, foram 267 os dias de interrupção. ças e jovens acompanharam as aulas de casa. A
Para simular em que medida o fechamento de partir daí, a FGV criou um indicador de mitigação
escolas afeta a aprendizagem, a Fundação Lemann de perda de aprendizagem para simular cenários.
encomendou um estudo ao Centro de Aprendizagem No pior deles, em que o acesso ao ensino remoto
em Avaliação e Resultados para o Brasil e a África é precário ou inexistente, a pandemia pode fazer
Lusófona (Clear), vinculado à FGV-Eesp. Coordena- com que o nível de conhecimento dos estudantes
dor do trabalho, divulgado em abril, Portela diz que na etapa final do ensino fundamental retroceda
Jovem durante aula, as análises tomaram por base a escala de aprendiza- quatro anos em língua portuguesa e três anos em
em escola de gem do Saeb. Em cada ano escolar, a aprendizagem matemática, conforme a escala de aprendizagem
São Paulo: redes de
ensino precisam estar
do estudante em português e matemática nos anos do Saeb. “Atividades pedagógicas a distância, mes-
preparadas para finais do ensino fundamental equivale a um ganho mo com suas limitações, são fundamentais para
receber estudantes de 11 a 12 pontos na escala. O estudo também consi- amenizar esse panorama”, defende Portela.

PESQUISA FAPESP 303 | 21


1

A pesquisa do Banco Mundial também analisou trabalho. “A literatura mostra que quando essa pas- Aluna faz a tarefa
como o cenário de defasagem na aprendizagem sagem ocorre em momentos de economia aquecida, de casa com
a mãe e os primos,
tende a causar perdas econômicas. Com 10 meses essas pessoas apresentam trajetórias profissionais na cidade de Camaragibe,
de escolas fechadas e os consequentes impactos mais exitosas, com melhores rendas e empregos, ao em Pernambuco
negativos nos níveis de conhecimento, o estudo longo de toda sua vida, enquanto em períodos de
estima que a região da América Latina e Caribe crise e recessão as dificuldades de inserção no mer-
deve deixar de ganhar cerca de US$ 1,7 trilhão, cado laboral no longo prazo são maiores”, compara.
em valores de 2017. Lautharte esclarece que o va- No Brasil, as dificuldades de aprendizagem são
lor foi calculado a partir de simulações feitas com anteriores à pandemia. Mozart Neves Ramos, ti-
modelos estatísticos, que preveem quanto cada tular da cátedra Sérgio Henrique Ferreira do Ins-
ano de escolaridade impacta na produtividade do tituto de Estudos Avançados da Universidade de
indivíduo. “Aferimos que a pessoa que conclui o São Paulo (IEA-USP), em Ribeirão Preto, e inte-
ensino médio agrega US$ 2 mil em sua renda anual, grante do Conselho Superior da FAPESP, observa
comparando com uma situação em que ela deixou que desde 2003 o Índice de Desenvolvimento da
de estudar no ensino fundamental e foi direto para Educação Básica (Ideb) vinha crescendo, em dife-
o mercado de trabalho”, relaciona o economista. rentes municípios, especialmente nos anos iniciais
Considerando esse panorama, para Portela, um do ensino fundamental. O Ideb é calculado a partir
grupo que merece atenção são os jovens que estão dos resultados do Saeb, considerados os dados de
fazendo a transição da escola para o mercado de fluxo escolar fornecidos pelo Censo Escolar. No

FOTOS 1 LEO MALAFAIA / AFP / GETTY IMAGES 2 E 3 LÉO RAMOS CHAVES INFOGRÁFICOS ALEXANDRE AFFONSO
DEFASAGEM NO BRASIL
Gráficos estimam, em três cenários distintos, perdas na aprendizagem no final do ensino fundamental.
No pior deles, a proficiência em língua portuguesa retrocederia quatro anos; em matemática, três anos

Matemática Português
Sem Covid-19 Otimista Intermediário Pessimista Sem Covid-19 Otimista Intermediário Pessimista

266 264

264 262
Pontuação no Saeb

Pontuação no Saeb

262 260

260 258

258 256

256 254

254 252

252 250

250 248
2015 2017 2019 2020 2015 2017 2019 2020

FONTES CLEAR/FGV/EESP/CENTRO DE APRENDIZAGEM EM AVALIAÇÃO E RESULTADOS PARA O BRASIL E A ÁFRICA LUSÓFONA

22 | MAIO DE 2021
entanto, na última edição, divulgada no segundo socioeconômicos dos estudantes. “Por outro lado,
semestre de 2020 com dados do ano anterior, os essas instituições têm sofrido impactos orçamen-
resultados estagnaram – o índice vai de 0 a 10. tários, por conta dos custos elevados da oferta
“Cidades com Ideb alto, de 6 ou 6,5, registraram de novas metodologias e tecnologias de ensino a
quedas ou estacionaram seus números. Apenas distância, além da perda de alunos”, comenta. No
aquelas com desempenho muito baixo obtiveram país, as escolas particulares respondem por 20%
melhorias”, informa. Além disso, a última edição do das matrículas e as públicas por 80%.
índice mostra que apesar de a média de desempe- Apesar de o MEC ter anunciado a intenção de
nho de jovens do ensino médio ter melhorado em cancelar a edição de 2021 do Saeb, um dos pontos
todos os estados, 95% dos alunos da rede pública de partida defendido pelos pesquisadores para a
concluem a educação básica sem conhecimentos elaboração de estratégias que amenizem os défi-
adequados em matemática, enquanto o percen- cits de aprendizagem envolve justamente a reali-
tual equivalente em língua portuguesa é de 69%. zação de uma avaliação em larga escala no país.

A
“Os resultados do Saeb podem funcionar como
o considerar que neste ano a oferta de base para que as coordenadorias pedagógicas or-
conteúdo tende a acontecer princi- ganizem o processo de recuperação de conteúdo”,
palmente por meio do ensino remoto, avalia Portela. José Francisco Soares, professor
Ramos lamenta a inexistência de um emérito da Universidade Federal de Minas Ge-
plano nacional para aumentar a co- rais (UFMG), defende que o Saeb inclua itens que
nectividade de escolas, professores e permitam identificar como estudantes e escolas
alunos. Por outro lado, ele menciona têm funcionado, durante a pandemia. “O Saeb
as experiências das redes públicas de deve levar algo para as instituições de ensino, não
São Paulo e do Paraná, que ofereceram apenas registrar e coletar informações”, sustenta
aulas síncronas por intermédio de centros de mídia Soares, que foi presidente do Inep entre 2014 e
e aplicativos pedagógicos a partir de parcerias com 2016. Com proposição similar, a socióloga Maria
operadoras de telecomunicação. No caso de São Teresa Gonzaga Alves, da UFMG, defende a cria-
Paulo, aulas também têm sido transmitidas pela ção de metodologias para análises que permitam
TV Cultura. “Mesmo assim, quase 1 milhão de fazer diagnósticos mais precisos sobre a educação
crianças e jovens do estado mais rico da federação em tempos de pandemia. “O Saeb abarca exames
permaneceu sem acesso a atividades remotas. de múltipla escolha. Na situação atual, o mais
O problema atingiu principalmente populações adequado seria, por exemplo, elaborar testes para
que vivem em bolsões de pobreza, sem acesso a medir a capacidade de escrita por amostragem, de
conectividade e a dispositivos eletrônicos, como forma que seja possível identificar como o aluno
computador ou telefone celular”, afirma. está organizando seu raciocínio, algo que provas
Abaixo, criança em Diferentemente das escolas públicas, Ramos ob- de múltipla escolha não captam”, sugere Alves. n
casa e professora
em escola participam
serva que as instituições particulares puderam se
de aulas on-line, adaptar rapidamente ao ensino remoto, em decor- Os artigos científicos e relatórios consultados para esta reportagem
em São Paulo rência de suas condições financeiras e dos níveis estão listados na versão on-line.

2 3

PESQUISA FAPESP 303 | 23


EM BUSCA DE
APERFEIÇOAMENTO
T
Investimento em formação docente rês estudos recentes identificaram
elementos que trazem consequências
e intercâmbio de conhecimento positivas ao desempenho de escolas
da rede pública. Para além de ques-
entre escolas contribuem para melhorar tões envolvendo maior acesso a re-
o desempenho dos alunos cursos financeiros, a colaboração en-
tre instituições, investimentos cons-
tantes na qualificação de professores
e o uso de avaliações externas para
planejar estratégias de melhoria figuram entre
os achados comuns das análises, que envolveram
municípios brasileiros de médio porte, como a ci-
dade de Ribeirão Preto (SP), e o estado do Ceará.
Abrangendo cidades médias brasileiras, com
população entre 100 mil e 500 mil habitantes, o
estudo dos economistas Ricardo Paes de Barros
e Laura Müller Machado, do Insper, feito sob en-
Estudo indica que comenda da cátedra Sérgio Henrique Ferreira, do apoio para qualificação docente também fazem
a riqueza, por si só, Instituto de Estudos Avançados da Universidade parte das iniciativas. Hoje, 10 dos 184 municí-
não explica bons
resultados educacionais
de São Paulo (IEA-USP), em Ribeirão Preto, pios do Ceará figuram entre os 20 primeiros
em municípios constatou que escolas de municípios com Índice no ranking do Ideb, incluindo Sobral, com a
de médio porte de Desenvolvimento Humano (IDH) alto apre- maior pontuação do país. O economista con-
sentam diferenças de até 1,3 ponto nas notas do ta que, atualmente, o Banco Mundial trabalha
Índice de Desenvolvimento da Educação Básica para disseminar o modelo cearense para outras
(Ideb), que vão de 0 a 10. “Porém a riqueza por regiões do Brasil e do mundo.

A
si só não justifica bons resultados educacionais”,
afirma Barros. pesquisa feita por Barros também
Em relação a fatores externos à escola, que in- investigou causas internas que im-
fluenciam positivamente o Ideb, Barros explica pactam os resultados do Ideb. Uma
que cidades médias costumam ter a educação das principais é a formação docen-
como foco, diferentemente das maiores, em que te. “Ter professores com boa qua-
ela pode ficar dispersa entre outras prioridades. lificação é importante, o que cha-
“Nos municípios de médio porte, o status social mamos de pedagogia cristalizada,
do professor é maior e há mais proximidade co- mas o que denominamos pedagogia
tidiana entre os alunos, que se estimulam mutua- em ação influencia muito mais”,
mente”, comenta Barros. Embora isso também afirma Barros, ao citar a participação constan-
ocorra nos municípios pequenos, os médios ga- te dos docentes em atividades de formação e o
nham em economia de escala. “Neles, as insti- diálogo com outros profissionais. “Escolas com
tuições são maiores e é possível oferecer trilhas professores bem formados, que investem em
educacionais variadas”, avalia o economista. A pedagogia em ação registram impactos de 1,6 no
pesquisa também constatou que a quantidade Ideb, como é o caso de Apucarana [PR]”, informa.
de adultos com nível superior residente nas ci- Em instituições com conselhos de classe ativos,
dades contribui para a obtenção de resultados o impacto no Ideb pode chegar a 0,9, conforme
positivos no Ideb. “A ampla existência de pessoas a pesquisa. Já naquelas em que a gestão esco-
graduadas expande a disponibilidade de profes- lar tem foco pedagógico e que usam avaliações
sores para atuar nas escolas e aumenta a pressão externas de alunos para adotar melhorias apre-
da sociedade por bons resultados educacionais.” sentam vantagens de 1 ponto no Ideb, enquanto
Ao comparar os resultados de Sobral (CE) e a existência de infraestrutura, como bibliotecas,
Itabuna (BA), ambas com cerca de 300 mil habi- laboratórios e salas arejadas, traz impacto de 0,9
tantes, mas que registraram Ideb de 8,5 e 4, res- ponto no índice.
pectivamente, o economista do Insper identifica Outro estudo, desenvolvido neste ano por pes-
na cooperação com a rede estadual o fator que quisadores da USP, Universidade Federal de Per-
faz a diferença. “No Brasil, o estado do Ceará e nambuco (UFPE) e Universidade Tiradentes
a cidade de Sobral são modelos de redução da (Unit), de Sergipe, avaliou o desempenho esco-
pobreza de aprendizagem. As melhorias resul- lar e as causas da heterogeneidade entre escolas
tam de um pacote abrangente de reformas na municipais de ensino fundamental de Ribeirão
educação”, afirma o economista Andre Loureiro, Preto. Coordenada por Mozart Neves Ramos, a
do Banco Mundial. Um dos coordenadores de pesquisa constatou que para reduzir diferenças
estudo que investigou as estratégias adotadas de aprendizagem no 5º ano, a Secretaria Mu-
pelo Ceará para melhorar seus níveis educa- nicipal de Educação deveria fomentar a cola-
cionais, Loureiro conta que há 20 anos o esta- boração entre escolas de melhor desempenho
do apresentava baixos níveis de alfabetização, com aquelas que apresentam piores resultados
mas melhorou a qualidade do sistema por meio em todos os anos do primeiro ciclo do ensino
de mudanças na distribuição do Imposto sobre fundamental. O intercâmbio de conhecimento
Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) entre instituições também foi apontado como
para os municípios. Cidades com progressão nas um dos aspectos que viabilizaram melhorias na
metas educacionais, em saúde e meio ambiente educação do Ceará, de acordo com a pesquisa do
passaram a receber mais recursos do tributo, Banco Mundial. Para aprimorar o desempenho no
repassados pelo estado. 9º ano, a estratégia seria outra: ampliar os inves-
“As escolas também recebem apoio técnico do timentos em formação docente em matemática.
estado para programas de alfabetização, além “Com seus mais de 5 mil municípios, o Brasil é
de recompensas pela colaboração com institui- um laboratório a céu aberto na busca pela melho-
LÉO RAMOS CHAVES

ções que apresentam desempenho negativo”, ria da educação. O momento atual de pandemia
detalha Loureiro. Monitoramentos dos resul- é desafiador, mas traz oportunidades de refor-
tados educacionais, que balizam as estratégias mas, em todo o sistema”, conclui Ildo Lautharte,
pedagógicas adotadas em anos posteriores, e o do Banco Mundial. n Christina Queiroz

PESQUISA FAPESP 303 | 25


COVID-19

QUEBRA DE PATENTES
EM DEBATE

A organização Médicos sem Fronteiras pede


a renúncia a patentes de vacinas contra a Covid-19
na frente do prédio da OMC, em Genebra

26 | MAIO DE 2021
Para ter resultados efetivos, a suspensão dos direitos
de propriedade intelectual das vacinas exige
a superação de barreiras tecnológicas e produtivas

Domingos Zaparolli

O
ritmo lento da vacinação contra Co- os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelec-
vid-19 no mundo, principalmente em tual Relacionados ao Comércio, conhecido como
países de renda baixa e média, trouxe Trips, da OMC, prevê que, antes que um país ou um
à tona a discussão sobre a quebra de conjunto de países decretem a licença compulsória
patente desses imunizantes. A sus- de uma patente, os proponentes devem estabele-
pensão dos direitos de propriedade cer uma tentativa de negociação com o titular da
intelectual de um produto farmacêu- propriedade intelectual. Havendo acordo, fixa-se
tico é sempre um tema polêmico que uma renúncia dos direitos por tempo determinado.
gera debates acalorados, mas cujos “Uma solução diplomática conjunta com vários
efeitos práticos ficam normalmente relegados a países ou junto à OMS permite aos proponentes
um segundo plano do embate público. negociar melhores condições comerciais, coope-
No caso das vacinas para combater o vírus Sars- ração produtiva e transferência de tecnologia”,
-CoV-2, sustentam especialistas, barreiras insti- resume a farmacêutica-bioquímica Soraya Sou-
tucionais, tecnológicas e produtivas precisariam bhi Smaili, reitora da Universidade Federal de
ser superadas para que um eventual licencia- São Paulo (Unifesp). Caso não haja acordo, um
mento compulsório se traduzisse em aumento licenciamento compulsório unilateral obriga o
efetivo da produção e ampliação de sua oferta. país proponente a estabelecer os meios de obter
O primeiro dos obstáculos é político. Em outu- o produto. Para isso, é preciso ter capacidade tec-
DENIS BALIBOUSE / REUTERS /

bro de 2020, Índia e África do Sul solicitaram à nológica e produtiva ou fornecedores internacio-
Organização Mundial do Comércio (OMC) que a nais de produtos genéricos disponíveis.
instituição recomendasse uma dispensa tempo- No passado, o Brasil trilhou os dois caminhos a
rária dos direitos de propriedade intelectual de fim de obter medicamentos para tratar pacientes
FOTOARENA

medicamentos e vacinas usados para a Covid-19. infectados pela Aids. Em 2001, o então ministro
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e mais da Saúde José Serra iniciou o processo de quebra
de 100 países de médio ou baixo desenvolvimento de patentes das drogas Efavirenz e Nelfinavir, per-
apoiaram a iniciativa. O Brasil foi voz dissonante tencentes a Merck Sharp & Dohme e Roche, res-
nesse grupo e se aliou às nações ricas, contrárias pectivamente. As empresas se dispuseram a um
à medida. As discussões prosseguem. acordo e reduziram os preços dos produtos tem-
Os países podem optar por atitudes isoladas, porariamente. Em 2007, o ministro da Saúde José
mas uma ação conjunta, com o apoio da OMC, Gomes Temporão não chegou a um acordo com a
aumenta o poder de negociação. O Tratado sobre Merck e efetivou a quebra de patente do Efavirenz.

PESQUISA FAPESP 303 | 27


A situação atual, entretanto, é bem mais com- des produtivas e elevar a oferta global de vacinas,
plexa. Em 2001 e 2007, a capacidade produtiva facilitando o acesso do Brasil ao produto. Além
global dos medicamentos contra Aids era maior disso, aumentaria a possibilidade de fabricação
que a demanda. Hoje a produção de vacinas con- em mais países, além do Brasil. Isso aconteceu,
tra Covid-19 é inferior à demanda. Com isso, não em alguma medida, quando da quebra de patentes
há de onde importar insumos. de medicamentos para o tratamento da Aids no

N
Brasil e na Índia na primeira década deste século.
o Brasil são três os laboratórios capazes A ação a favor da suspensão dos direitos de
de fabricar vacinas: o Instituto Butan- propriedade intelectual das vacinas contra Co-
tan, em São Paulo, a Fundação Oswaldo vid-19 ganha importância diante de um provável
Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, e a cenário de imunização periódica da população
Fundação Ezequiel Dias (Funed), vin- nos próximos anos. “É uma importante carta na
culada à Secretaria de Estado da Saúde mesa, capaz de aumentar consideravelmente o
de Minas Gerais. A Funed tem capaci- poder de barganha dos países emergentes nas
dade produtiva limitada, a Fiocruz já negociações internacionais para obter acesso às
está comprometida com o imunizante vacinas”, diz a pesquisadora da Unifesp.
do consórcio multinacional Oxford/AstraZeneca e Segundo Smaili, se a medida resultar em acor-
o Butantan com a CoronaVac, da chinesa Sinovac. O dos comerciais mais acessíveis, já será um ganho,
estabelecimento de novas capacidades produtivas como ocorreu em 2001 com as drogas do coquetel
no Brasil demandaria, segundo especialistas, in- de combate à Aids. A reitora da Unifesp avalia que
vestimentos públicos significativos e levaria tempo o Brasil deve buscar uma solução negociada, mas,
até ser concluída. A construção da nova fábrica do para ter credibilidade no embate diplomático, a
Butantan para produzir a CoronaVac foi iniciada quebra de patentes e a produção local precisam
em novembro de 2020 e só está prevista para ser ser percebidas como possibilidades reais. Para
concluída em outubro, após investimentos esti- isso, o país deve aumentar o investimento em
mados em R$ 180 milhões. ciência e tecnologia e mostrar planejamento e
Em manifestações públicas recentes no Senado capacidade de agir, caso adote a solução.
Federal, Dimas Covas, diretor do Instituto Butan- Krishna Udayakumar, diretor associado de ino-
tan, e Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz, vação do Duke Global Health Institute, da Univer-
confirmaram que as respectivas instituições não sidade Duke, nos Estados Unidos, avalia a fabrica-
dispõem de infraestrutura capaz de absorver novas ção de vacinas como um processo complexo que
rotas de fabricação e gerar um acesso mais rápido requer conhecimento especializado, know-how e
às vacinas em caso de uma quebra de patentes. No cadeias de suprimentos eficazes. “É improvável
setor privado, nenhum laboratório farmacêutico que a renúncia aos direitos de patente, por si só, Ativistas na frente
instalado no país detém know-how tecnológico leve a um aumento significativo ou urgente na da sede da Moderna,
para produzir imunizantes e as empresas que fabricação de vacinas”, pondera. nos Estados Unidos,
exigem a suspensão
produzem vacinas veterinárias precisariam ter Para o médico, a falta de coordenação entre os dos direitos
seus processos fabris muito aprimorados para setores público e privado pode gerar ineficiências de propriedade
atender às rígidas exigências de segurança sa- ao processo, com competição descoordenada por intelectual da vacina
nitárias para a produção
de inoculantes humanos.
Apesar do contexto des-
favorável, Smaili defende
uma mudança de posição
do Brasil na OMC e o apoio
à iniciativa da Índia e Áfri-
ca do Sul de licenciamen-
to das patentes dos imu-
nizantes contra Covid-19.
A Índia, por sinal, poderá
se beneficiar de eventual
quebra de patentes, uma
vez que detém estrutura
produtiva e está, inclusive,
exportando vacinas.
A flexibilização global
das patentes poderia gerar
investimentos internacio-
nais em novas capacida-

28 | MAIO DE 2021
recursos e matérias-primas depende desse insumo, sem o qual a produção e
escassas. “Existem modelos a imunização mais rápidas se encontram com-
de parcerias público-privadas prometidas”, diz. “Por isso, é preciso assumir a
bem-sucedidos que levam a independência na produção de todos os estágios
melhores resultados de saú- da vacina a fim de garantir a saúde da população.”
NENHUM PAÍS de para todos”, declarou Uda-
yakumar a Pesquisa FAPESP.
Em mensagem encaminhada em resposta a
questionamento da reportagem, o Ministério das
ADOTOU Elizabeth de Carvalhaes, Relações Exteriores (MRE) reafirmou a posição
presidente-executiva da Asso- do governo brasileiro contrária à flexibilização da
O LICENCIAMENTO ciação da Indústria Farmacêu- propriedade intelectual. A iniciativa, segundo o ór-
COMPULSÓRIO tica de Pesquisa (Interfarma),
destaca que houve um imen-
gão, parte de um diagnóstico equivocado, segundo
o qual a suspensão resultaria na produção e na dis-
DE PATENTES. so esforço da indústria para
desenvolver soluções rápidas
tribuição aceleradas de vacinas e medicamentos.
“Uma patente típica contém apenas uma descrição
ESPERA-SE para a pandemia, o que só foi da tecnologia, que não é suficiente para habilitar
possível graças ao sistema de um produtor a replicá-la. Tal esforço leva anos.”
QUE SOLUÇÕES inovação sustentado pelos di- No Congresso Nacional, cinco projetos de lei
PACTUADAS POSSAM reitos de propriedade intelec-
tual. “A flexibilização de paten-
em tramitação na Câmara dos Deputados e um no
Senado Federal favoráveis ao licenciamento com-
SURGIR NA OMC tes pode ter efeitos negativos
sobre a confiança no sistema
pulsório de patentes pretendem fazer o governo
federal rever sua posição na OMC. “O mundo vai
de propriedade intelectual, que saber que o Congresso brasileiro aprova a quebra
funciona bem e permite que a de patentes. É uma pressão sobre o governo. Pre-
indústria realize parcerias com tendemos exigir que o Brasil mude sua posição”,
universidades, centros de pes- defende o senador Paulo Paim (PT-RS), autor do
quisa e outras empresas”, diz. Projeto de Lei nº 12/2021.
Carvalhaes argumenta ainda Em abril deste ano, o ministro Dias Toffoli, do
que a indústria farmacêutica Supremo Tribunal Federal (STF), derrubou um
já desenvolve parcerias com empresas de vários trecho da Lei de Propriedade Industrial que, se-
países para aumentar a capacidade de produção. gundo ele, geraria a interpretação de que a vigência
Outro aspecto que restringe a produção e a dis- de patentes tivesse prazo indefinido. O parágrafo
ponibilidade de vacinas contra Covid-19 é o aces- único do artigo 40 da lei permite que uma paten-
so limitado aos insumos usados na fabricação dos te seja prorrogada automaticamente caso o Ins-
imunizantes, destaca Nelson Mussolini, presidente tituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI)
do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêu- demore mais de 10 anos para analisar seu pedido
ticos (Sindusfarma). “A oferta é condicionada não de registro. Movida pela Procuradoria-geral da
apenas à falta de capacidade instalada, mas tam- República (PGR), a ação estava pautada para ser
bém aos limites de produção de Insumos Farma- analisada pelo plenário da corte. A PGR diz que a
cêuticos Ativos [IFA], o principal ingrediente das revogação do trecho pode facilitar o desenvolvi-
vacinas”, afirma. A flexibilização de patentes, na mento de tratamentos para a Covid-19.
opinião do executivo, não resultará em maior oferta Por enquanto, nenhum país adotou o licencia-
de imunizantes, mas, sim, no esforço conjunto en- mento compulsório de patentes. A expectativa é
tre governos, centros de pesquisa e farmacêuticas. que soluções pactuadas possam surgir no âmbito
Autor da pesquisa de mestrado “A quebra de da OMC. Garantir acesso global e igualitário aos
patentes de medicamentos como instrumento imunizantes contra Covid-19, segundo especialis-
de realização de direitos”, transformada no livro tas, é o caminho mais adequado para interromper
Patente de medicamentos (editora Juruá, 2010), a trajetória de um vírus que já infectou cerca de
o advogado Matheus Ferreira Bezerra, professor 150 milhões de pessoas no mundo e provocou 3,1
do curso de direito da Universidade do Estado da milhões de mortes, causando importante impacto
JESSICA RINALDI / THE BOSTON GLOBE / GETTY IMAGES

Bahia (Uneb), entende que o licenciamento com- na economia global. Um estudo da organização não
pulsório não deve ser uma medida para justificar a governamental Câmara de Comércio Internacional
falta de investimento em pesquisa e saúde pública. (ICC), com sede em Paris, estima que se os gover-
“Um país comprometido com a saúde não deve se nos das nações mais desenvolvidas falharem em
limitar a defender o licenciamento compulsório, garantir o acesso às vacinas da Covid-19 por par-
mas, sim, primeiramente, preocupar-se com os te das economias em desenvolvimento, as perdas
investimentos no setor”, argumenta. globais somarão US$ 9,2 trilhões. Metade desse
O pesquisador, contudo, enxerga como uma prejuízo será arcada pelos próprios países ricos,
medida viável a quebra de patente do IFA a fim que, no geral, encomendaram estoques de vacina
de produzi-lo em larga escala no país. “A vacina em número muito superior ao de suas populações. n

PESQUISA FAPESP 303 | 29


COVID-19

A APOSTA
DA BUTANVAC 1

U
Nova candidata a vacina ma segunda geração mo- mesmos sistemas convencionais de re-
dificada da proteína spike frigeração usados para manter a maioria
usa como antígeno do coronavírus Sars-CoV-2, das vacinas de outras doenças.
causador da Covid-19, faz Proteína de superfície do novo coro-
versão mais estável da parte de uma nova candi- navírus, a spike é a responsável por se
proteína spike data a vacina de baixo custo ligar a receptores na superfície de cé-
contra a doença que recen- lulas humanas e desencadear a infecção
temente entrou em testes pelo Sars-CoV-2. Por isso, tende a ser
Marcos Pivetta clínicos, em seres humanos, empregada nas vacinas contra Covid-19
nos Estados Unidos, Vietnã e Tailândia. como antígeno, ou seja, o elemento re-
Denominado genericamente de NDV- conhecido como externo pelo sistema
-HXP-S, esse imunizante foi concebido imunológico que serve de alvo para a
por uma cooperação internacional para produção de anticorpos especificamente
ser produzido nas instalações de países voltados para combater um patógeno. A
em desenvolvimento, atualmente em- HexaPro, nome da segunda versão modi-
pregadas para fabricar a vacina da gripe ficada da spike, é uma forma aprimorada
em ovos embrionados, e armazenado nos da representação tridimensional dessa
proteína. Segundo seus criadores, ela é creveu, em artigo na revista Science, a com a geração de estruturas em 3D dessa
mais estável e fácil de conservar do que primeira representação tridimensional proteína em outros coronavírus, como
sua versão anterior, a 2P. estabilizada da spike do Sars-CoV-2, que Mers [Síndrome Respiratória do Orien-
No Brasil, a única vacina em desenvol- viria a ser denominada 2P. “Essa pro- te Médio] e HKU1”, explica McLellan.
vimento com a HexaPro é chamada de teína é muito instável antes de o vírus A união entre o trabalho da equipe
ButanVac e será produzida pelo Instituto penetrar nas células humanas”, explica de McLellan com a proteína spike do
Butantan, de São Paulo. No final de abril, McLellan, em entrevista a Pesquisa FA- Sars-CoV-2 e os esforços dos colabora-
o Butantan iniciou a fabricação de um PESP. “Temos de torná-la mais estável, dores de Peter Palese, do Monte Sinai,
lote de 1 milhão de doses do produto. Até por meio de modificações moleculares, na produção de uma versão modificada
15 de junho, o instituto espera produzir para podermos usá-la como antígeno e de fácil cultivo do vírus de Newcastle,
18 milhões de doses da ButanVac, que em uma vacina.” levou ao desenvolvimento da candida-
aguarda autorização da Anvisa para o A 2P apresenta duas dessas modifica- ta a vacina NDV-HXP-S. A parceria foi
início dos testes clínicos. A vacina con- ções (daí seu nome). Trata-se da adição fomentada pela Path, uma organização
tém uma variante modificada do vírus de duas prolinas, um tipo de aminoácido não governamental sediada em Seattle,
da doença aviária de Newcastle, que é que torna mais rígida a normalmente nos Estados Unidos, que trabalha em
praticamente inócua em seres humanos, irrequieta estrutura tridimensional que prol do emprego de soluções inovado-
e foi criada pela equipe de pesquisadores a spike exibe antes de penetrar nas cé- ras de saúde em países em desenvolvi-
de Peter Palese, da Escola Icahn de Me- lulas de seu hospedeiro. As proteínas mento. Em razão da gravidade da pan-
dicina da rede de hospitais Monte Sinai, podem ser formadas por 20 diferentes demia, tanto o grupo de Austin como o
de Nova York, para produzir a HexaPro aminoácidos. Tecidos conectivos, mais de Nova York, que têm patentes sobre
(ver Pesquisa FAPESP nº 302). rígidos, como o colágeno, são ricos em o desenvolvimento do imunizante, con-
Com exceção das vacinas que usam o prolinas. Os biólogos gostam de compa- cordaram em fornecer licenças do pro-
coronavírus inteiro (inativado ou atenua- rar o uso das prolinas para estabilizar duto sem a cobrança de royalties para
do) como antígeno em suas formulações, proteínas ao emprego de grampos mole- um grupo de países de renda média e
como a CoronaVac utilizada no Brasil e culares que tentam manter o composto baixa, Brasil inclusive.

S
produzida pelo Instituto Butantan, os em determinada conformação. No caso
demais imunizantes utilizam apenas a da HexaPro, cuja estrutura em 3D foi egundo a assessoria de im-
proteína spike como forma de estimular divulgada em julho de 2020 em outro prensa da Path, as versões
o sistema imunológico. As vacinas da artigo na Science, foram introduzidas da NDV-HXP-S que estão
Pfizer/BioNTech, Moderna e Janssen, seis prolinas. Com meia dúzia de gram- sendo fabricadas para tes-
as três aprovadas nos Estados Unidos, pos moleculares, essa versão da spike é tes em diferentes países são
usam a 2P como antígeno, assim como o mais estável, o que pode ser útil para comparáveis. Elas usam os
candidato a imunizante da empresa nor- gerar uma melhor resposta imunológi- mesmos materiais de par-
te-americana Novavax. A história da 2P ca, além de permitir a conservação das tida (banco de sementes de
e da HexaPro começou no mesmo lugar. vacinas que a empregam como antígeno vírus), que foram propaga-
Em fevereiro do ano passado, ainda a temperaturas entre 2 e 8 graus Celsius dos, purificados e inativados por méto-
antes de a pandemia de Covid-19 ter che- (ºC). “Conseguimos produzir rapida- dos semelhantes e formulados em va-
gado ao Ocidente, o biólogo estrutural mente versões estabilizadas da spike do cinas com o mesmo ensaio de potência.
norte-americano Jason McLellan, da Sars-CoV-2 porque eu e meus colegas “Portanto, os dados de testes clínicos
Universidade do Texas, em Austin, des- já trabalhávamos, antes da pandemia, realizados com qualquer uma dessas três
vacinas [referência às formulações de
Tailândia, Vietnã e Brasil] devem indicar
os resultados esperados para as outras
duas vacinas”, afirma a assessoria, em
e-mail a Pesquisa FAPESP.
“Altos e baixos fazem parte do desen-
FOTOS 1 LUIS BLANCO / MCW 2 UNIVERSIDADE DO TEXAS EM AUSTIN

2
volvimento de vacinas”, observa o biólo-
go Ricardo Oliveira, diretor de Produção
da Fundação Butantan (ver reportagem
Na página ao lado, ovos “Caminho sinuoso” no site de Pesquisa
usados na fabricação da FAPESP). Mas, segundo Oliveira, “não
vacina da gripe do Instituto deve haver grandes dificuldades em am-
Butantan que podem ser
utilizados para produzir a
pliar a escala de produção” da ButanVac
ButanVac. À esquerda, caso seus testes clínicos sejam bem-suce-
estrutura da proteína didos. Afinal, o imunizante contra a Co-
spike com destaque para vid-19 emprega uma tecnologia conheci-
a localização das
modificações (esferas
da pelo Butantan e usada para produzir a
vermelhas e azuis), que a vacina anual contra gripe disponibiliza-
tornam mais estável da na rede pública de saúde do Brasil. n

PESQUISA FAPESP 303 | 31


COVID-19

EM TEMPO
REAL

Detalhe de jazigo
no cemitério São Luiz,
localizado na zona sul
da capital paulista

32 | MAIO DE 2021
Iniciativas acadêmicas recolhem
relatos pessoais sobre memórias e lutos
vivenciados ao longo da pandemia

Ana Paula Orlandi

“V
ivemos momentos de tantas incertezas, nos sen-
timos sufocados e presos em uma amálgama de
informações, sentimentos, ansiedades e esperas.
Esperamos que tudo passe logo. Esperamos que
não nos infectemos com o vírus, nem a quem
amamos. Esperamos que tudo volte à normalida-
de. Esperamos que nossos governantes possam
se solidarizar com a população e agir em favor
da vida. Esperamos que as pessoas não morram
de fome sem nenhum recurso financeiro.” Assim
começa o texto Reflexões em um dia frio, assinado por Patricia
Fabiana Crosara, moradora da cidade de Ribeirão Preto (SP),
que pode ser lido na plataforma #MemóriasCovid19, da Uni-
versidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Trata-se de um
arquivo virtual voltado à coleta, identificação, processamento
e difusão de olhares sobre a pandemia”, explica a historiadora
Ana Carolina de Moura Delfim Maciel, do Programa de Pós-
-graduação em Multimeios da instituição e responsável pela
iniciativa. “A ideia é compor uma ‘arqueologia’ digital dessa
experiência para além de dados e números, mas pautada pelas
emoções e percepções individuais.”
Lançada no ano passado, a plataforma bilíngue (inglês e por-
tuguês), desenvolvida no âmbito de projeto temático apoiado
pela FAPESP, recebeu até agora 294 relatos, não apenas na for-
ma de textos poéticos ou factuais, mas também de fotografias,
ilustrações, áudios e vídeos oriundos de várias regiões brasi-
leiras e de países como França, Equador e Canadá. Depois de
terem sido selecionadas por uma equipe de nove curadores
de distintas áreas do saber como antropologia, artes visuais e
LÉO RAMOS CHAVES

história, cerca de 180 dessas produções estão disponíveis no


site. Segundo Maciel, o objetivo da curadoria é, sobretudo, ga-
rantir que os relatos veiculados pela plataforma reflitam uma
diversidade de experiências e contemplem distintos suportes.

PESQUISA FAPESP 303 | 33


“Qualquer pessoa pode participar: não existe York e do Arquivo Municipal de Barcelona. “É
restrição de idade, escolaridade ou profissão”, uma memória produzida em tempo real duran-
afirma a historiadora, que, entretanto, observa no te esse momento traumático de alcance global”,
site o predomínio de testemunhos de mulheres constata Maciel, que atualmente prepara um livro
(55%) e estudantes (41,6%). A plataforma, que com a meta de reunir parte dos relatos recebidos
permanece recebendo relatos, também abarca pelo projeto #MemóriasCovid19. “Mesmo que não
interesses variados. “Tem gente que encontra na seja interativo como a plataforma digital, o livro
plataforma um espaço para desabafos e confidên- é um registro perene. Já estamos refletindo como
cias sobre como está lidando com a angústia do salvaguardar esse conteúdo virtual reunido pela
isolamento, a dor do luto ou mesmo com abusos, plataforma em razão das mudanças tecnológicas

P
visto que os índices de violência doméstica cres- cada vez mais ágeis.”
ceram muito na pandemia. É possível, inclusive,
manter o anonimato do relato. Outros utilizam ara o historiador Ricardo dos Santos
a plataforma para expressar posicionamentos Batista, do Programa de Pós-gradua-
políticos ou então para compartilhar produções ção em História da Universidade do
artísticas”, conta Maciel. Estado da Bahia (Uneb), o cenário
Na opinião da historiadora Katia Couto, do interconectado impacta o papel do
Departamento de História da Universidade Fe- historiador contemporâneo. “O his-
deral do Amazonas (Ufam) e uma das curadoras toriador não pode ser apenas aquele
da plataforma, o conteúdo do site perpassa vários intelectual que se refugia nos ar-
momentos históricos. “Ele serve tanto para conec- quivos documentais, e a chegada
tar indivíduos em meio à pandemia quanto para da Covid-19 deixou isso claro. Com
criar um espaço de memória coletiva, que pode a pandemia, houve a necessidade de revisitar
se configurar em fonte de pesquisa no futuro”, histórias sobre epidemias para iluminar o pre-
observa. O escritor Daniel Munduruku, também sente e questionar as fake news, como também
curador da plataforma, completa: “Não estamos para entender uma história do tempo presente,
reunindo os registros oficiais, produzidos pelos que pode ser conhecida pelos relatos dos meios
governantes, mas, a meu ver, um registro muito de comunicação, como jornais, sites e redes so-
mais potente, que é a memória de pessoas comuns ciais”, analisa Batista, autor de artigo a respeito
que estão sentindo na pele o drama da pandemia do tema, publicado no livro Sobre a pandemia:
em seu dia a dia. A memória serve para nos lem- Experiências, tempos e reflexões (editora Huci-
brar quem somos, o que vivemos e o que fazemos tec, 2021). Tal percepção, diz, vai ao encontro
neste mundo. Ela se constrói no presente e nos do conceito de história pública, que surgiu nos
dá força para resistir”. Estados Unidos, na década de 1970. “A história
Um mapeamento divulgado em agosto do ano pública reconhece que os historiadores não são
passado pelo blog da Federação Internacional de os únicos construtores e divulgadores da disci-
História Pública (IFPH) listou cerca de 500 ini- plina. Os indivíduos aprendem história em suas
ciativas no mundo que buscavam reunir relatos relações familiares, no ambiente escolar e pelos
pessoais sobre a pandemia da Covid-19. Oito delas meios de comunicação, por exemplo.”
estavam no Brasil, a exemplo do projeto Testemu- Embora a internet tenha impulsionado a dis-
nhos do Isolamento, desenvolvido pelo Arquivo seminação de relatos em tempo real, não vem de
Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ) e hoje a necessidade de registrar as experiências
inspirado em experiências internacionais como pessoais perante um trauma coletivo, como guer-
da Associação Pública dos Historiadores de Nova ras e crises sanitárias. “No início do século pas-

Foto de Guarabira
Graça Dias, morador de
Natal (RN), integra
o projeto pessoal Solidão
compartilhada e pode ser
vista na plataforma

34 | MAIO DE 2021
Desenho feito por
Eduarda Prado, que vive
em Fortaleza (CE),
encaminhado à plataforma.
Segundo a autora,
a inspiração veio do
livro Eu me chamo Antônio,
de Pedro Gabriel
(Intrínseca, 2013)

sado, as perdas, medos e anseios eram, em geral, Outro objetivo do projeto é mostrar que cada
compartilhados de forma restrita e particular”, indivíduo é um ser único, com suas memórias,
conta Batista. Na pesquisa de pós-doutorado que sonhos e expectativas. “A morte não pode ser
desenvolve na Faculdade de Medicina Preventiva banalizada. Quando uma pessoa morre leva com
da Universidade de São Paulo (USP), ele investi- ela esse repositório particular e irreprodutível de
ga o surto de febre amarela na Bahia e a atuação significados”, observa o psicanalista.
do laboratório criado, em Salvador, pela Funda- Em razão das restrições sanitárias impostas
ção Rockefeller na década de 1920. “Durante a pela pandemia, morrer se tornou um ato mais
pesquisa encontrei diários em que os cientistas solitário. Sem os ritos, as despedidas ficaram in-
anotavam as dificuldades e os conflitos vividos completas e dramáticas, sublinha o pesquisador.
em seu cotidiano”, prossegue Batista. “A quan- “A pandemia vem deixando um rastro de perdas,
tidade de registros pessoais que temos daquela lutos inconclusos e saudades repletas de vazios.
época é infinitamente menor em relação aos dias Estamos passando por uma série imensurável de
de hoje, acelerados e abarrotados de informação. processos muito lesivos e com potencial altamen-
Resta saber como nós, historiadores, vamos con- te traumático em nossas vidas”, aponta. O luto
seguir lidar com esse gigantesco volume de rela- constitui aspecto fundamental da elaboração de

H
tos produzidos durante a pandemia da Covid-19.” perdas significativas, corrobora a psicóloga Maria
Júlia Kovács, do IP-USP e fundadora do Labora-
á cerca de um ano, o psicanalista tório de Estudos sobre a Morte (LEM), daquela
Paulo Cesar Endo, do Instituto de instituição. “E não estamos falando apenas da
Psicologia (IP) da USP, desenvolve morte de pessoas queridas. Circunstâncias que
juntamente com outros seis pesqui- desorganizam nossa rotina, como adoecer, ficar
sadores o “Inventário de sonhos 2 – desempregado ou precisar abandonar a pátria,
Sonhos de pandemia”, investiga- também trazem grande sofrimento psíquico”,
ção vinculada a projeto de pesquisa observa. Nesses momentos, registrar as próprias
apoiado pela FAPESP. Desde março memórias, sonhos e experiências pode ser uma
de 2020, o levantamento já reuniu forma de processar a situação vivida. “A imagi-
1.200 relatos de sonhos pandêmi- nação que se exerce na escrita nunca foi tão ne-
cos, sempre na forma de texto, que devem ser cessária”, conclui Endo. n
publicados anonimamente no site do Museu da
Pessoa. “A ideia não é interpretar esses sonhos,
porque, como dizia Freud, o melhor intérprete Projetos
do sonho é o próprio sonhador”, explica Endo. “O 1. Coletar, identificar, processar, difundir: O ciclo curatorial e a produção
que o acervo pretende é reunir formas criativas do conhecimento (nº 17/07366-1); Modalidade Projeto Temático;
Pesquisadora responsável Ana Gonçalves Magalhães; Investimento
de pensamento sobre essa dura experiência que
FOTOS PLATAFORMA #MEMÓRIASCOVID19

R$ 3.598.403,24.
estamos vivendo e mostrar como os sonhos po- 2. Sonhar o trauma, sobreviver às catástrofes, resistir ao desapareci-
dem ampliar nossa percepção sobre o momento mento: Um estudo comparativo sobre os sonhos de ex-prisioneiros do
campo de Auschwitz e dos sonhos das vítimas de desaparecimento
atual, além de criar um banco de dados inédito forçado durante a ditadura civil-militar no Brasil (nº 19/10946-5);
que possa ser acessado por interessados em in- Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável
vestigar o contexto da pandemia. Os sonhos são Paulo Cesar Endo; Investimento R$ 95.044,34.

sismógrafos do tempo presente, como já definiu a Livro


jornalista Charlotte Beradt, autora do livro Sonhos MOTA, A. (org.) Sobre a pandemia: Experiências, tempos & reflexões.
no Terceiro Reich [editora Três Estrelas, 2017].” São Paulo: Hucitec, 2021.

PESQUISA FAPESP 303 | 35


ENTREVISTA Luiz Bevilacqua

PONTES
PARA A
INTERDISCIPLINARIDADE
O precursor da Coppe e idealizador do modelo
da Universidade Federal do ABC conta
como o desenvolvimento da pesquisa em
engenharia marcou o país

Fabrício Marques | RETRATO Ana Carolina Fernandes

A
os 84 anos recém-completados, o engenheiro carioca Luiz IDADE 84 anos
Bevilacqua vislumbra, de uma posição privilegiada, o de-
ESPECIALIDADE
senvolvimento da ciência e do país nas últimas seis décadas.
Engenharias civil
Formado engenheiro pela Universidade Federal do Rio de
e mecânica
Janeiro (UFRJ) em 1959, resolveu dedicar-se à pesquisa em
uma época em que ela era embrionária no país. Especialista em pontes e FORMAÇÃO
grandes estruturas, passou períodos na Alemanha e nos Estados Unidos e foi Graduação em
o responsável pelos programas de engenharia civil e engenharia mecânica engenharia (UFRJ-1959),
nos primeiros anos do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação especialização em
e Pesquisa em Engenharia (Coppe), uma das mais produtivas instituições estruturas (Universidade
voltadas para a pesquisa em engenharia do país, vinculada à UFRJ. de Tecnologia de
Diversificou seus interesses de pesquisa para apoiar as demandas que Stuttgart), livre-docência
grandes empresas apresentavam à Coppe, mas se demitiu da instituição (UFRJ-1966), doutorado
em meados dos anos 1970 quando ela estava sob intervenção. Foi trabalhar (Universidade Stanford-1971)
na Promon, empresa responsável pelos projetos de engenharia das usinas
PRODUÇÃO
de Angra 1 e 2. Reiniciou a carreira acadêmica nos anos 1980, agora com
52 artigos,
uma forte contribuição em administração acadêmica, que enveredou para
10 capítulos de livros
a gestão do sistema universitário e de ciência e tecnologia em diferentes
governos. Foi secretário-executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia
(1992-1993), criador do comitê de pesquisa interdisciplinar da Coordena-
ção de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, a Capes (1999), e
diretor da Agência Espacial Brasileira (2003-2004). Mais recentemente,
foi reitor (2006-2008) e um dos idealizadores do modelo transdisciplinar
e sem departamentos da Universidade Federal do ABC (UFABC), que em
20 anos de existência se tornou uma destacada instituição de pesquisa.
Na entrevista a seguir, Bevilacqua relembra sua trajetória.

36 | MAIO DE 2021
PESQUISA FAPESP 303 | 37
O senhor se graduou em 1959, quando Que linha de pesquisa desenvolveu? Vários métodos numéricos começaram
se fazia pouca pesquisa em engenharia A cadeira que eu lecionava era a de Re- a ser desenvolvidos. O Programa de
no país. Como desenvolveu seu interesse sistência dos Materiais, que tinha a ver Engenharia Civil liderou essa análise com
pela pesquisa? com estruturas. Eu fui para fundar o Pro- métodos computacionais devido à grande
Sempre tive bastante interesse em ex- grama de Engenharia Civil, do qual fui complexidade de estruturas. Entre 1968
plorar o conhecimento e entrei na Escola chefe, e trouxe para a Coppe o Fernando e 1971 estudei na Universidade Stanford,
de Engenharia. Não era uma escola de Lobo Carneiro [1913-2001]. Ele não era nos Estados Unidos, e fiz um doutorado
pesquisa. Era um excelente curso profis- professor, mas pesquisador do Instituto bastante interessante lá. Nessa época, o
sionalizante, com professores de muito Nacional de Tecnologia [INT]. A Escola que se desenvolvia no Brasil não tinha
boa qualidade, grandes profissionais. A de Engenharia não tinha pesquisa em sustentação matemática suficiente. Eu
matemática era uma exceção. Havia en- laboratório e o INT era um laboratório. me dediquei ao que se chama de métodos
tre os professores pesquisadores de alto Fazia ensaio de vigas, de estruturas está- variacionais para análise de estruturas.
nível, mas eles estavam mais dedicados à ticas e dinâmicas. Lobo Carneiro acabou Foi uma contribuição boa. Ajudou a de-
criação do Instituto de Matemática Pu- abrindo vários laboratórios na Coppe. terminar técnicas de modelagem, técnicas
ra e Aplicada, o Impa. Era o Maurício Havia o Programa de Mecânica, que ficou de desenvolvimento de cálculo com uma
Matos Peixoto [1921-2019], sua esposa, sem um responsável. Alberto Luiz Coim- base científica e analítica forte.
Marilia Chaves Peixoto [1921-1961], o Lin- bra [1923-2018], que era o diretor, pediu
dolpho de Carvalho Dias [1930-1984], o que eu cuidasse desse também. No doutorado em Stanford, a sua tese
Leopoldo Nachbin [1922-1993]. Mas eu foi sobre propagação de ondas em só-
queria fazer pesquisa em engenharia. O Estamos falando de uma época em que lidos, é isso?
professor Roger Castier, que tinha es- o país estava em crescimento e fazia Exatamente. Eu me encantei com a parte
tudado na Alemanha, tentou abrir um grandes obras. Qual foi a contribuição de dinâmica de estruturas, de propaga-
laboratório, mas não havia instalações da Coppe? ção de ondas em sólidos. Quando voltei
nem pessoas que pudessem auxiliá-lo e A grande demanda vinha da Petrobras. para o Brasil, consegui, com dois estu-
ele acabou desistindo. Meus professores A descoberta de petróleo em águas pro- dantes, desenvolver um pouquinho essa
da área de estruturas davam a seguinte fundas causou um grande impacto, pois área e eles continuaram nessa linha. Mas
recomendação: “Quer saber o que está ninguém no mundo trabalhava com is- também tive que me dedicar muito mais
acontecendo no mundo? Leia revistas, so. Ou a Petrobras resolvia aqui ou não a métodos variacionais, porque o Brasil
principalmente as alemãs”. tinha como explorar petróleo. Foi uma precisava disso.
maravilha, porque houve convênios e
O senhor foi para a Alemanha nessa épo- contratos com a Coppe na área de es- Como avalia o papel da sua geração para
ca, não é? truturas, de exploração de petróleo. a engenharia?
Fui para Stuttgart. Lá, não participei de Nessa época, Lobo Carneiro tinha feito Minha geração implantou a pesquisa,
projetos de pesquisa, mas aprendi muito um excelente laboratório de ensaios de preparou a geração seguinte, participou
nos cursos que fiz. Nessa época, comecei estruturas. Cooperamos com o projeto na administração acadêmica, e tinha de
a fazer um trabalho que terminou cinco da ponte Rio-Niterói. A Coppe também fazer tudo isso. Era como se tivesse que
anos depois, no Rio, e foi a minha livre- contribuiu para o desenvolvimento de fazer os pratinhos girarem sem deixar
-docência. Quando voltei para o Brasil, fui métodos numéricos para cálculo de es- nenhum deles cair. A maioria dos cole-
trabalhar em uma empresa, a Geotécnica, truturas. No fim dos anos 1960, início dos gas da minha geração não seguiu o mes-
e desenvolvia essa tese à noite. Durante 1970, conseguiu um computador IBM- mo caminho que eu. Continuaram como
o dia eu trabalhava em projetos. Fizemos 1130, que tinha menos memória do que engenheiros. Quando comecei a me de-

COPPE / UFRJ
uma estrada no Paraguai, de Concepción qualquer celular hoje, mas que ocupa- dicar à pesquisa, encontrei pessoas mais
até Assunção. À noite, trabalhava na te- va uma sala enorme. Foi um espetáculo. jovens do que eu. Eles vinham do curso de
se. Era professor-assistente também da
cadeira de Resistência dos Materiais na
Escola de Engenharia. Saía do trabalho e
ia correndo para lá. Dava aulas e voltava
para o trabalho. Os diretores das empresas
gostavam que alguns dos seus engenheiros
fossem professores na universidade, por-
que dava prestígio. Em 1965 eu apresentei
a minha tese de livre-docência na UFRJ.

O senhor saiu da Geotécnica. Por que foi


para a PUC-RJ?
Aceitei um convite que me foi feito. Passei
um ano lá, mas logo soube que a Coppe
estava se formando na UFRJ. Decidi ir
para a Coppe. Em 2019, Bevilacqua ministra aula inaugural do programa de Engenharia Química da Coppe/UFRJ

38 | MAIO DE 2021
engenharia direto para a pós-graduação Seu retorno para a vida acadêmica no-
e não passavam por empresas. Isso me vamente foi pela PUC-RJ e só mais tarde
permitiu enxergar a pesquisa de outra para a Coppe. O que foi fazer na PUC-RJ?
forma. Eu via como ela poderia ser apli-
cada e a importância que tinha, inclusi- A descoberta O que eu tinha para fazer na Promon esta-
va bastante estabilizado. O Décio já tinha
ve na formação de pesquisadores. Havia saído. O pessoal da área de mecânica da
ligação direta entre a nossa pesquisa e o de petróleo em PUC começou a insistir muito. Queriam
que estava sendo executado. A Petrobras minha cooperação, inclusive com o co-
conectava as duas pontas. A indústria ae-
roespacial fazia isso; a indústria química
águas profundas nhecimento adquirido nos projetos de
Angra 1 e 2. Aceitei. Poucos meses depois
ainda faz. Infelizmente, houve uma trava
nessa cooperação. Várias empresas brasi-
causou grande que entrei, a reitoria da PUC pediu que
eu aceitasse a posição de vice-reitor aca-
leiras foram destruídas nas últimas déca- dêmico. Não pude negar e busquei fazer
das e isso nos deixou em desvantagem. A impacto. da PUC uma universidade mais integra-
China vai construir uma ponte na Bahia da. Fizemos uma nova revisão acadêmi-
entre o continente e a ilha de Itaparica. O Ou a Petrobras ca da PUC. Na mesma época, fui eleito
Brasil fazia pontes maravilhosas. Agora, presidente da Associação Brasileira de
importamos o projeto. É triste.
resolvia aqui Ciências Mecânicas [ABCM]. Não existia
revista brasileira técnica na área de mecâ-
O senhor deixou a Coppe após uma in- nica, então eu fundei com 10 associados a
tervenção no programa. O que ocorreu? ou não tinha Revista Brasileira de Ciências Mecânicas
O professor Coimbra foi preso em 1973. (RBCM). Ela nunca deixou de sair. Tem
Uma pessoa que lecionava estudos de pro- como explorar um fator de impacto muito bom para uma
blemas brasileiros fez um dossiê dizendo revista de engenharia, 1.7. Atualmente é
que ele tinha ideias esquerdistas. O Coim- publicada pela Springer, mas o controle
bra tinha suas convicções, era mais de es- editorial continua com a ABCM.
querda do que de direita, mas não queria mon, e aceitei. Foram cinco anos felizes
implantar ideia nenhuma. Na Coppe, o na Promon, em que resolvemos problemas E o seu retorno para a Coppe?
que existia era ciência. Mas sua saída foi importantes no projeto de tubulações e Voltei como professor convidado, porque
trágica para o instituto. O professor Sid- vasos de pressão de classe nuclear para eu tinha saído do serviço público. Tive
ney Santos, da Escola de Engenharia, foi as usinas de Angra 1 e Angra 2. que fazer todos os concursos de novo,
indicado diretor. Chamavam-no de in- para associado e para titular, para ser ad-
terventor, mas ele levava as coisas sua- Qual foi seu envolvimento nesses pro- mitido na carreira estatutária da UFRJ.
vemente. Passou um ano, um ano e meio. jetos? Logo que cheguei, pediram que eu fosse
Numa das reuniões, tomei coragem e disse: Era preciso desenvolver os projetos dos para a Diretoria de Desenvolvimento. Na-
“Está na hora de fazermos uma reunião equipamentos. Eram quilômetros de tu- quela época, a Petrobras continuava com
do conselho da Coppe e indicar um di- bulações, com vários diâmetros, que não cooperação intensa com a Coppe e preci-
retor”. Até podia ser ele, mas tinha que podiam apresentar vazamento absoluta- sava de um veículo de operação remota.
ter a indicação. Ele ficou muito indigna- mente nenhum. Fizemos certas configu- Era preciso fazer inspeções a grandes
do, mas aceitou. Fez-se uma lista tríplice, rações-padrão de tubulação. Com elas, foi profundidades, impossível para os mer-
que foi encaminhada ao reitor e eu estava possível trabalhar muito mais rápido nos gulhadores. Começamos um projeto in-
nela. Isso foi em janeiro. Passou fevereiro, projetos das tubulações. Se passa nesse terdisciplinar, com gente de mecânica, de
março, abril, eu telefonei para o reitor: “O padrão, então pronto, vamos ver o outro civil, de elétrica, de sistemas. Esse grupo
senhor tem alguma dúvida, quer conversar trecho. Havia um grande problema em começou a desenvolver motores, tecnolo-
comigo?”. Ele disse: “Não o conheço, não Angra 1. Em um trecho, era preciso redu- gias de sensores, mãos mecânicas, braços
vou indicá-lo como diretor da Coppe. Vou zir a pressão na tubulação de um mon- mecânicos, propulsão. Isso foi feito em
designá-lo primeiro para um comitê de tante equivalente a uns 600 metros de cooperação com uma empresa brasileira
pós-graduação da reitoria para ver como altura de coluna d’água. E conter isso em muito competente, a Consub, que proje-
o senhor age, depois eu vejo se o nomeio”. um pedacinho de pouco mais de 1 metro. tava um veículo de operação remota e que
Respondi: “Não fui indicado para esse co- Não havia equipamento que funcionasse. também tinha contrato com a Petrobras.
mitê, então o senhor nomeie outra pessoa”. Quebrava tudo. Fizemos um projeto de 6 Mas aconteceu algo que, infelizmente, se
Fiquei muito desgastado e pedi licença- metros, introduzindo em cada pedaço de tornou comum no Brasil. A Suécia tinha
-prêmio de seis meses. Depois, como nada tubo uma placa com um furinho, que ia desenvolvido um veículo de operação
tinha sido resolvido a contento, pedi ao quebrando a pressão à medida que pas- remota. A Petrobras, quando soube, in-
novo reitor uma licença sem vencimento. sava de um furo para outro. Funcionou. A terrompeu o projeto e comprou deles. Se
Ele negou. Aí tomei uma decisão radical: Promon poderia ter patenteado. A Wes- tivessem continuado, poderíamos ter uma
pedi demissão do serviço público. Eu ti- tinghouse, que era a projetista de Angra empresa de veículos de operação remo-
nha o convite do Décio Leal de Zagottis, 1, parece que utilizou o mesmo projeto ta e a Coppe teria se desenvolvido mais
que estava trabalhando na empresa Pro- para usinas semelhantes em outros países. nessa área. Esse grupo que se originou

PESQUISA FAPESP 303 | 39


com veículos de operação remota conti- ta de começar a área interdisciplinar. A deu? “Pela primeira vez alguém me disse a
nuou trabalhando em manipuladores e primeira área que se destacou foi a de verdade, porque só ouvia US$ 60 milhões,
em veículos autônomos. Eles desenvol- ciências ambientais. Quando eu fui para depois saía US$ 500 mil”. Ele propôs que,
veram um veículo, em 2014, para ajudar o IAI, ficou muito evidente que certos em vez de darmos dinheiro, fabricássemos
no desmonte de equipamentos perigosos problemas emergentes na preservação certos equipamentos e partes da estação
ou de explosivos. Isso porque, na Copa de do nosso mundo, da nossa sociedade, da no Brasil e fornecêssemos para eles. Foi
2014, a Fifa exigiu que o país tivesse essa vida na Terra exigiam soluções que não bom, porque estimulou a nossa indústria.
capacidade de evitar atos terroristas. Isso são possíveis de alcançar por só uma área
foi desenvolvido com uma empresa que do conhecimento. Você não pode tratar da Na sua gestão houve a explosão do lan-
se instalou no Nordeste, financiado pela parte biológica da Amazônia, por exem- çador de satélites na base de Alcântara,
Finep [Financiadora de Estudos e Pro- plo, sem saber como é o clima, porque em 2004, que matou 21 pessoas. Como
jetos]. Sabe o que aconteceu? Veio uma isso afeta diretamente todas as questões foi lidar com a tragédia?
empresa estrangeira, comprou a empresa ambientais. Por outro lado, há a presença Foi um choque tremendo. A Agência Es-
brasileira e fechou aqui no Brasil. Isso me dos indígenas na Amazônia. Como extrair pacial Brasileira não tem um corpo tec-
traz um desgosto profundo. daquele conhecimento, que é milenar, nocientífico, mas tem a responsabilidade
mas muito intuitivo, algo com maior ri- de coordenar. Ela delega. O Centro Tec-
Em 1991, o senhor, quase 20 anos depois, gor científico? Essa convergência é muito nológico da Aeronáutica [CTA] era o res-
tornou-se diretor da Coppe? importante. Eu mesmo fui trabalhar em ponsável pela execução desses lançadores.
O então diretor da Coppe, professor Nel- outra vertente, a de dinâmica populacio- Eles trabalhavam com toda a dedicação.
son Maculan, foi escolhido reitor, eu era o nal, com a expansão da malária. A minha proposta, após o acidente, foi
vice e assumi. Mas não fiquei muito tem- transferir a execução do projeto para uma
po. Em 1992, o senhor Fernando Collor Como foi sua experiência como diretor empresa especializada. Conversei com o
era o presidente e o ministro da Ciência da Agência Espacial Brasileira? pessoal do CTA e propus: “Vocês conti-
e Tecnologia era um grande professor da O Brasil participava do projeto da Estação nuam fazendo o desenvolvimento cientí-
área de humanas, Hélio Jaguaribe. Alguns Espacial Internacional e tinha se compro- fico e tecnológico de propulsores, de tipos
amigos dele, que eram da PUC-RJ, me metido a colocar US$ 60 milhões nesse de combustíveis, mas a execução de um
disseram: “Você tem que ser o secretá- projeto. Não tínhamos esse dinheiro. Logo projeto de grande porte é uma atividade
rio-executivo. Ele é um grande cientista na minha primeira semana lá, telefonou industrial, vamos passar para uma empre-
político, mas precisa de alguém que en- um dos diretores da Nasa me dando os sa que tem experiência nisso”. Isso estava
tenda de tecnologia”. Me dei muito bem parabéns e perguntando quanto nós íamos em discussão, mas houve problemas inter-
com ele, uma pessoa fantástica. Em abril investir no projeto da estação. Eu disse: nos na agência, com o ministro da época,
de 1992 eu fui para o ministério. O Brasil “US$ 2 milhões”. Sabe o que ele respon- e eu saí. Não sei se a Aeronáutica aceitaria
trabalhava para fazer a Rio-92, a grande isso, mas ainda acho a melhor solução. Se
conferência ambiental. Ao mesmo tem- bem que agora está muito difícil, porque
po, o governo americano tinha proposto a nem temos mais a Base de Alcântara.
criação do IAI [Inter-American Institute
for Global Change Research] e queria que Como foi concebida a UFABC?
o Itamaraty promovesse um encontro no Em 1998, houve um evento em Angra dos
Rio. Não dava para fazer as duas coisas Reis para discutir um projeto da univer-
juntas. O Uruguai assumiu esse encargo
e programaram a primeira reunião para Faltam no setor sidade nos tempos modernos e ali se fa-
lou da necessidade de ampliar o diálogo
Montevidéu. Fui escalado para participar interdisciplinar. Outro momento foi uma
da reunião. Eles formaram um comitê, empresarial tentativa que fizemos na UFRJ com ou-
do qual fiz parte de 1992 a 2002. Ali foi tros professores, com o Leopoldo de Meis
uma das possibilidades de aprendizagem
de convergência disciplinar, porque as
ousadia [1938-2014], Antônio Paes de Carvalho,
Moysés Nussenzveig, entre outros, de
questões ambientais só se resolvem com
pessoas de várias áreas do conhecimento
e vontade de criar um bacharelado com duas etapas.
Levamos isso ao reitor, mas o conselho
e técnicas de observação da Terra. universitário não estava disposto a discutir
desempenhar e eu desisti. O reitor na época era o Nelson
Essa experiência foi útil quando o se- Maculan. Ele gostava da ideia. Em 2014,
nhor implementou a área interdiscipli- um papel de o Maculan era o secretário de Educação
nar na Capes? Superior do MEC e me telefonou dizendo
O professor Abílio Baeta Neves, quando
comandava a Capes, tinha recebido três
protagonista no que o projeto de uma universidade fede-
ral no ABC deveria sair e era a hora de
ou quatro propostas que não se encaixa-
vam em programa nenhum e me convidou desenvolvimento implementar aquelas ideias. Aceitei. Fi-
zemos um comitê, que preparou o projeto
para fazer a análise. Eu criei o comitê que de uma universidade sem departamentos,
analisou aqueles projetos e fiz a propos- tecnológico com três centros e um núcleo de cogni-

40 | MAIO DE 2021
sejam dadas por professores em dedica-
ção exclusiva, mas por profissionais da
indústria. Eu não posso dar uma discipli-
na de pontes estudando no livro. Para dar
essa disciplina, é preciso ter projetado e
construído pontes. Outro ponto é acabar
com o Conselho Regional de Engenharia
e Arquitetura [Crea] como ele é hoje. O
Crea interfere nas disciplinas oferecidas.
Tem que deixar a universidade fazer o
que achar melhor. Mas, para ser enge-
nheiro credenciado, tem que passar por
um exame de ordem do Crea. Isso é legíti-
mo. Você dá liberdade para a universidade
funcionar como ela acha melhor para a
formação do cidadão e do engenheiro, e
Bevilacqua (à dir.) com o então reitor da UFABC Helio Waldman, em uma cerimônia na universidade em 2013 dá liberdade aos conselhos profissionais
para autorizar o exercício da profissão.
ção, porque me parecia que os processos que aquilo era a UniLula, que era uma
cognitivos teriam cada vez mais influência farsa. Nós demos um curso de atualiza- Os empresários também se preocupam
nessas áreas científicas. ção para professores de ensino médio e com a formação dos engenheiros.
eles ficaram encantados com a UFABC. É verdade, mas falta ousadia no setor
Como a formação dos alunos foi estru- Aí mudou a visão dos cursinhos. E quan- empresarial. Falta em nossas empresas
turada? do o jornal Folha de S.Paulo começou a a vontade de desempenhar um papel de
Primeiro, três anos de bacharelado mais implementar o modelo para avaliação de protagonista no desenvolvimento tecno-
um ou dois para a formação profissional, universidades em internacionalização, lógico. O que se publica de patente hoje
dependendo da área. Segundo: os fios con- quem tirava sempre em primeiro lugar? no Brasil é absolutamente ridículo.
dutores não seriam mais física 1, 2, 3 e 4, A UFABC. Todos reconheceram que não
mas sim matéria e energia, processos de era o que estavam pensando. Mas isso não Qual é o seu vínculo com a Coppe nesse
informação e comunicação, humanidades, resolveu todo o problema. Os estudantes momento? Orienta alunos?
matemática e modelagem computacional. que procuram a universidade não são Eu tenho um pouco de escrúpulo, porque
Eram essas as grandes linhas, sem depar- aqueles com o melhor desempenho no há tantos jovens professores que precisam
tamentos. Começamos a contratar um ensino médio. Mas tem gente muito boa. de estudantes. Procuro auxiliar aqueles
considerável número de professores de ex- A resposta das empresas que os contra- que estão orientando os estudantes. Me
celente qualidade. Aliás, a UFABC é USP tam é a seguinte: “Conhecem bem o que agrego a eles, colaboro. E com a China,
e Unicamp, porque 70% dos professores fazem e, quando damos a eles problemas porque eu tenho um ex-aluno chinês,
da UFABC vieram das duas instituições. que não aprenderam, sabem onde procu- Maosheng Jiang, que terminou em 2017
Eu conversava com todos os candidatos: rar”. Essa vantagem de ter independência o seu doutorado e voltou para a China.
“Vocês vão encontrar uma universidade intelectual é muito boa. Acabamos de ter dois trabalhos aceitos
diferente”. Todos no início estavam de neste ano, mais duas contribuições que
acordo, alguns se ressentiam depois. As E a formação do engenheiro, como de- vão sair neste primeiro semestre.
maiores reações vieram de engenheiros. veria ser?
Eles são mais reacionários, mas depois Acabei de participar de um novo proje- E quais são seus interesses atuais?
foram absorvendo. Em uma avaliação to curricular que será apresentado pe- Tenho me dedicado mais à pesquisa, coi-
da Clarivate Analytics, a UFABC apare- la Academia Nacional de Engenharia. sa que sempre me encantou, mas que foi
ce em primeiro lugar no país em termos O caminho é: uma formação básica for- muito interrompida por outras ativida-
de publicação e impacto científico. Uma te, envolvendo os temas fundamentais des. Trabalho em dois temas com apli-
avaliação da revista Nature classificou a para exercer a profissão e estar a par da cações interessantes. Um é difusão com
UFABC em quinto. Não tem importância, evolução de vários setores do conheci- fluxos múltiplos, que serve para modelos
as primeiras são USP, Unicamp, UFRN, mento, e depois uma formação específica. de movimentos de populações, epidemias
UFRJ e depois a UFABC, fantástico. A Na Universidade Harvard é assim: áreas e de fluxo de capitais. Permite também
contribuição para a ciência da UFABC é fundamentais, três outras complementa- avaliar como o seu salário se transforma
inegável, porque tem como demonstrar. res e mais uma, que é matemática. Mui- em gastos e se você está ganhando ou
ta gente considera que essa formação é perdendo. Outro tema está relacionado
Mas houve dificuldades de implantação? inadequada, para generalistas. Não vejo com a geometria de curvas, que podem
Os professores de cursinho diziam aos assim. Devemos pensar ao mesmo tem- representar por exemplo árvores ou vasos
alunos: “Não vão para essa universidade, po na nossa formação como cidadãos e sanguíneos ou membranas biológicas. A
ACI / UFABC

não vai funcionar”. E eles não se candi- como profissionais. Também propomos vida acadêmica, a curiosidade, não ter-
datavam para a UFABC. A imprensa dizia que certas disciplinas de aplicação não mina nunca. Nunca envelhece. n

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BIOTECNOLOGIA

LUPA
TRANSGÊNICOS NA

Em 25 anos, a CTNBio aprovou o uso de mais de 150


produtos geneticamente modificados no país

Fabrício Marques

42 | MAIO DE 2021
T
odos os meses, um colegiado de Estados Unidos, com 75 milhões de hectares. Eles
54 especialistas de diferentes dis- ocupam aqui no país quase 95% da área plantada
ciplinas se reúne em Brasília para de soja, 88% da de milho e 85% da de algodão e
avaliar informações técnicas que avançam em culturas como cana e eucalipto. “É
frequentemente estão na fronteira praticamente impossível para um brasileiro não
do conhecimento da genética e da consumir ao menos algum derivado de planta ge-
biotecnologia. Nesses encontros, eles tomam de- neticamente modificada todos os dias”, destaca o
cisões que, ao longo dos últimos 25 anos, tiveram atual presidente da CTNBio, o engenheiro-agrô-
influência na economia do país e na alimentação nomo Paulo Barroso, pesquisador da Empresa
e na saúde dos brasileiros. Os especialistas, com Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
formação em áreas como biossegurança, biolo- “O consumo desses alimentos, avaliados pela co-
gia, medicina, veterinária e ambiente, integram missão, não causou nenhum malefício à saúde, o
a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança que comprova o cuidado com que as deliberações
(CTNBio), responsável por regular o uso de pro- da CTNBio foram tomadas nesses 25 anos.”
dutos geneticamente modificados, estabelecer O impacto também é abrangente na pecuária.
normas para pesquisa e deliberar sobre a comer- Cabe à CTNBio avaliar a segurança de vacinas
cialização de transgênicos no país. geneticamente modificadas utilizadas para imu-
Entre 1998 e 2019, foram aprovados 152 pro- nizar todos os anos centenas de milhões de ani-
dutos geneticamente modificados no país, entre mais cuja carne é destinada ao consumo humano,
plantas, vacinas, medicamentos, microrganismos como frango, gado e suínos. Nos últimos tempos,
e até insetos, como um mosquito transgênico para o escopo do trabalho da comissão se ampliou. Foi
PAULO FRIDMAN / CORBIS VIA GETTY IMAGES

ajudar a combater a disseminação dos vetores da aprovado em março de 2020 o primeiro produto
Campo de soja na
dengue (ver quadro na página 44). A agricultura foi para terapia gênica no país. Desenvolvido pela
fazenda Bom Retiro, um dos segmentos da economia mais beneficiados. empresa Novartis, o medicamento corrige uma
em Rondonópolis, Um levantamento feito em 2019 pela organização mutação genética que leva à cegueira.
Mato Grosso: quase 95% Serviço Internacional para Aquisição de Aplica- Durante a pandemia, a comissão convocou
da área plantada do
grão no país utiliza
ções de Agrobiotecnologia (Isaaa) mostrou que nove reuniões extraordinárias para analisar a se-
sementes geneticamente 53 milhões de hectares são cultivados no Brasil gurança de vacinas contra Covid-19 baseadas em
modificadas com transgênicos, extensão inferior apenas à dos transgenia. Dois imunizantes foram aprovados,

PESQUISA FAPESP 303 | 43


os produzidos pela AstraZeneca e pela Janssen, vegetal, animal e de saúde humana e encaminhá-
e a Sputnik V, da Rússia, está em avaliação. -los para a deliberação das reuniões ordinárias.
O papel da CTNBio não se limita a avaliar se As tarefas são voluntárias – os membros não são
produtos geneticamente modificados são seguros. remunerados. “É um trabalho extremamente inte-
O regulamento da comissão cita 22 atribuições ressante. Os processos envolvem o estado da arte
diferentes, como autorizar importações, realizar da biotecnologia”, explica Soares Felipe.

V
avaliações de risco ou conceder certificados de
qualidade em biossegurança para qualquer insti- inculada ao Ministério da Ciência,
tuição que pesquise ou produza transgênicos. Os Tecnologia e Inovações, a CTNBio
locais onde podem ser executadas as pesquisas de começou a funcionar em julho de
campo necessitam do aval da comissão, de modo 1996. Na época, a inserção em um
a prevenir contaminações no entorno e impactos organismo de genes provenientes
ambientais indesejáveis. “O vegetal não tem pernas, de outro criava perspectivas novas
mas tem pólen e sementes, que podem ser disper- para o melhoramento de plantas e ao mesmo tempo
sos por insetos, vento e chuva”, explica Barroso. despertava temores sobre efeitos de longo prazo
A pauta da última reunião plenária, realiza- relacionados à saúde e ao ambiente. Atentos ao po-
da em 8 de abril, foi extensa, com destaque para tencial da inovação tecnológica, vários países logo
discussões envolvendo processos de liberação regularam o tema, enquanto outros, notadamente
de um tipo de trigo resistente à seca e de uma na Europa, optaram por legislações restritivas.
vacina contra dengue. Na pandemia, as reuniões Em 1998, liminar concedida à organização
passaram a ser virtuais. Foi preciso adaptar uma Greenpeace e ao Instituto de Defesa do Consu-
plataforma tecnológica para reproduzir o funcio- midor (Idec) reduziu as competências da CTNBio.
namento da comissão segundo as regras exigidas O pomo da discórdia foi a liberação para plantio
nos encontros presenciais: os debates devem ser da soja transgênica Roundup Ready, da Monsanto,
abertos, todos os 54 membros têm direito a voz, resistente ao agroquímico glifosato. Em 2005, com
mas os 27 suplentes só podem votar se o titular o advento da nova Lei de Biossegurança, a CTNBio
respectivo estiver ausente. foi recriada com a configuração que tem hoje. En-
“A participação dos suplentes é essencial para tre seus 54 membros, há representantes de vários
o desempenho da comissão. Eles analisam e re- ministérios, pesquisadores das áreas de saúde hu-
latam processos, e ficam a postos para votar se o mana e animal, agronomia e meio ambiente, além
titular respectivo não estiver disponível”, explica de especialistas em saúde do trabalhador, direitos
Flavio Finardi, pesquisador do Departamento de do consumidor e agricultura familiar.
Alimentos e Nutrição Experimental da Faculdade O trabalho do colegiado seguiu sendo alvo de
de Ciências Farmacêuticas da Universidade de contestação promovida por entidades ambien-
São Paulo (USP), que presidiu a CTNBio entre talistas e, internamente, por membros indicados
2012 e 2014 e hoje é vice-presidente. pelos ministérios do Meio Ambiente e do Desen-
A rotina vai além das reuniões mensais. “As de- volvimento Agrário. Para eles, na presença de qual-
mandas da comissão me tomavam pelo menos uns quer incerteza sobre seus efeitos a longo prazo, o
10 dias de cada mês”, diz a bioquímica Maria Sueli produto transgênico deveria ser vetado. A ideia se
Soares Felipe, professora aposentada da Universi- baseia no chamado princípio da precaução, men-
dade de Brasília, que participou da comissão entre cionado na Lei de Biossegurança.
2014 e 2020 e a presidiu por dois anos. Os membros Já os membros da comissão vinculados à aca-
se subdividem em quatro subcomissões, incum- demia e os indicados pelos ministérios da Ciên-
bidas de analisar processos nas áreas ambiental, cia e da Agricultura alertavam ser impossível em

Um balanço dos
57,8% 25%
Plantas Vacinas Plantas
Vacinas

transgênicos no país
15,8%
152 Microrganismos
Microrganismos
aprovações Remédios
no total 0,7% Insetos
Produtos geneticamente
Remédios
modificados aprovados no Brasil 0,7%
entre 1998 e 2019 Insetos

FONTE “BRAZILIAN BIOSAFETY LAW AND


THE NEW BREEDING TECHNOLOGIES”, 2019.
COM BASE EM DADOS DO CONSELHO
DE INFORMAÇÕES SOBRE BIOTECNOLOGIA 1998 2004 2005 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019

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No Brasil, 88% do milho qualquer empreendimento científico eliminar os transgênicos e essa coalizão se fortaleceu na
plantado é transgênico. todas as incertezas. Mas sustentavam que uma Europa. Reunia organizações ambientalistas e
Agora, começam a surgir
variedades modificadas
rigorosa avaliação de risco poderia prevenir pro- grupos que defendem o direito dos consumidores
por ferramentas blemas, garantindo os benefícios da tecnologia. ou pregam uma alimentação saudável, em torno do
de edição gênica “A segurança que eles exigiam tornaria inviável fortalecimento da agricultura orgânica”, afirma.
qualquer pesquisa com transgênicos e era desne- A tecnologia dos transgênicos não teve sucesso
cessária, como se demonstrou posteriormente”, em superar barreiras levantadas por setores da
afirma o bioquímico Walter Colli, presidente da sociedade. “Não basta que as tecnologias sejam
comissão entre 2006 e 2009 e professor emérito boas. Elas precisam passar por um crivo social e
da USP. “A transgenia consiste simplesmente em na Europa o crivo se tornou rigoroso”, diz.
pegar um gene de um ser vivo e pôr no outro. Cabe Para o economista agrícola Decio Zylberszta-
à comissão verificar se haverá problemas. Só isso.” jn, da Faculdade de Economia, Administração e
Na avaliação do economista Antonio Marcio Contabilidade da USP, a forma como a soja trans-
Buainain, do Núcleo de Economia Agrícola e Am- gênica foi lançada quebrou práticas do mercado
biental da Universidade Estadual de Campinas e produziu ruídos. “Tratava-se de uma venda ca-
(Unicamp), o princípio da precaução foi evocado sada de um pesticida e de uma semente transgê-
de forma abusiva. “É um princípio sábio, mas pre- nica tolerante a ele”, afirma. Os agricultores fo-
FOTO PAULO FRIDMAN / CORBIS VIA GETTY IMAGES INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO

cisa ser usado com sabedoria. Qualquer inovação ram premidos a pagar uma taxa adicional. “Em
radical traz riscos. Se for possível controlá-los, vale vez de cobrar royalties na venda de sementes, a
a pena ir em frente. Se esse conceito fosse levado Monsanto identificava o uso da soja transgênica
até o limite extremo, a sociedade não teria hoje na colheita e cobrava uma taxa adicional pelo uso
inovações que salvaram milhões de vidas e foram da tecnologia. Os produtores não gostaram da no-
importantes para a marcha civilizatória.” vidade.” Na sua avaliação, a forma imperial como
Os embates na CTNBio ecoavam uma controvér- a Monsanto introduziu sua tecnologia atrapalhou
sia internacional. De acordo com Buainain, quan- o desenvolvimento equilibrado da discussão sobre
do os primeiros produtos agrícolas transgênicos a transgenia. Um dos resultados, afirma, foi uma
despontaram nos anos 1990, houve uma reação à reação de consumidores, sobretudo na Europa.
multinacional de sementes Monsanto, que estava “Os consumidores no Brasil e nos Estados Uni-
à frente na corrida tecnológica. “Na leitura que eu dos não manifestam a mesma preocupação que os
fazia na época, a reação, principalmente na Euro- europeus com respeito à transgenia. Mas os con-
pa, tinha a ver com o temor de suas grandes em- sumidores sempre têm de ser respeitados. Não se
presas de ficar para trás”, afirma. Hoje, Buainain pode obrigá-los a adquirir aquilo que não querem.”
tem outra visão. “O que houve foi a formação de A visão de que é possível utilizar transgênicos
uma coalizão de interesses da sociedade contra com segurança é compartilhada pela maioria dos

PESQUISA FAPESP 303 | 45


Marcos na 1995 1996 1998 2005
trajetória A Lei nº 8.974, sancionada em Formada a princípio A comissão aprova o cultivo Uma nova Lei de

da CTNBio janeiro, estabelece normas


para a liberação no meio
por 36 membros –
18 titulares e 18
comercial da primeira planta
transgênica, a soja resistente
Biossegurança é
aprovada. A CTNBio
ambiente de organismos suplentes –, a CTNBio ao herbicida glifosato. Liminar é recriada com
geneticamente modificados realiza a sua primeira concedida ao Greenpeace outra configuração –
e define as competências reunião em julho e ao Instituto de Defesa do 27 membros titulares
reguladoras da Comissão Consumidor (Idec) suspende e 27 suplentes – e
Técnica Nacional de a competência da CTNBio de começa a funcionar
Biossegurança (CTNBio) emitir pareceres conclusivos em fevereiro

membros da CTNBio, mas a questão não está pa- inimigos naturais. Em um segundo momento, as
cificada. Para o engenheiro-agrônomo Leonardo lagartas podem adquirir resistência ao veneno e
Melgarejo, do Programa de Pós-graduação em encontram um ambiente com poucos inimigos.
Agroecossistemas da Universidade Federal de Como os insetos não morrem, recorre-se a um
Santa Catarina (UFSC), que representou o Mi- novo nível de inseticida”, diz. Ele também chama
nistério do Desenvolvimento Agrário na CTN- a atenção para impactos sociais. “Para pequenos
Bio entre 2008 e 2014, seguem válidas as premis- produtores, comprar sementes transgênicas impõe
sas sobre impactos dos transgênicos. “Quando se um custo adicional que não é compensado por um
transfere um gene, isso pode afetar outras expres- aumento de rendimento. O destino deles acaba
sões além das características pretendidas e ter sendo vender a terra para grandes produtores.”
consequências de longo prazo, que precisam ser Melgarejo critica o caráter deliberativo da
monitoradas”, diz. Segundo ele, ao contrário do CTNBio e afirma que a comissão deveria ter uma
que se prometia, os transgênicos não reduziram o atribuição consultiva. “Temos ali cientistas, com
uso de agroquímicos na agricultura. “Temos hoje formação em áreas muito específicas, fazendo
plantas transgênicas resistentes a vários herbici- recomendações que não levam em conta o seu
das e o lançamento no solo de misturas tóxicas impacto político e social”, afirma. “É difícil sus-
sobre as quais temos pouca informação”, afirma. tentar uma posição divergente na comissão. Há
Na avaliação de Melgarejo, o uso de transgênicos concordância ampla de que se trabalha lá com
pode produzir impactos que ainda estão por ser ciência de ponta, mas acho alarmante se pensar
Em 2004, foi aprovada
mensurados. “Imagine uma planta com um gene em uma ciência que não admite dúvidas.” a comercialização
inseticida que mata lagartas. Quando você planta Barroso, presidente da CTNBio, ressalta que a da primeira variedade
milhões de hectares, morrem as lagartas e seus comissão não tem como papel lidar com questões de algodão transgênico

46 | MAIO DE 2021
2011 2014 2018 2020 ​2021
Um feijão transgênico Um mosquito A CTNBio aprova a Resolução A comissão aprova o uso É avaliada de modo
resistente à doença modificado Normativa nº 16, que regula comercial do primeiro expresso a segurança de
mosaico dourado geneticamente com o uso de tecnologias inovadoras de produto para terapia vacinas contra Covid-19
tem a produção potencial para melhoramento. Modificações em genética no Brasil, um baseadas em transgenia.
aprovada pela CTNBio. reduzir a população organismos feitas com ferramentas medicamento para pessoas Dois imunizantes foram
Desenvolvido pela de vetores e a de edição gênica, como a técnica que perderam a visão aprovados, os produzidos
Embrapa, ainda não foi disseminação da Crispr-Cas9, não precisam por uma doença genética pela AstraZeneca e pela
lançado comercialmente dengue é aprovado de aprovação da comissão para chamada distrofia Janssen. A Sputnik V está
pela comissão serem comercializadas hereditária da retina em avaliação

econômicas e sociais, mas com a análise da segu- comercializá-lo – na eventualidade de surgirem


rança para a saúde e o meio ambiente. Acima do problemas, a responsabilidade é do criador da
órgão, há o conselho nacional de biossegurança, tecnologia. “O Canadá segue o mesmo padrão,
composto por ministros de Estado. O conselho foi com aprovação final pelo órgão de saúde”, diz.
convocado poucas vezes para avaliar recomenda- Na Argentina, há uma comissão para avaliar so-
ções da CTNBio e as referendou. licitações, com participação de representantes

E
de empresas entre seus membros.
m geral, os debates na comissão Uma das atribuições da CTNBio é acompa-
buscam esclarecer se o risco de um nhar a evolução das tecnologias e propor nor-
transgênico é maior do que o de um mas adequadas para novas realidades. Em 2016,
produto convencional. Recentemen- a comissão baixou a Resolução Normativa nº 16,
te, discutiu-se a liberação de um trigo estabelecendo que modificações em organismos
resistente ao estresse hídrico desen- feitas com ferramentas de edição gênica, como a
volvido na Argentina. Há incerteza envolvendo a técnica Crispr-Cas9, não constituem transgenia e
chance de o trigo transgênico ser mais alergênico não precisam de aprovação da CTNBio para serem
que o comum. “Concluímos que não há meto- comercializadas. Ainda assim, a comissão precisa
dologia capaz de tirar essa dúvida”, diz Finardi. fazer uma análise prévia dos produtos e atestar
Praticamente não há casos de pedidos de co- que não são mesmo transgênicos. Em 2018, pela
mercialização rejeitados. Quando os estudos re- primeira vez houve esse aval a uma planta modi-
queridos pela comissão dão resultados desfavo- ficada por edição gênica: uma variedade de milho
ráveis, os proponentes retiram os processos antes que produz só um tipo de amido, a amilopectina.
de sua conclusão. Foi o caso do sorgo resistente ao O milho normal produz dois tipos, a amilopectina
glifosato. Como é capaz de cruzar com vários ti- e a amilose. Chamado de milho ceroso, é absor-
pos de gramíneas, poderia disseminar a tolerância vido mais rapidamente pelo organismo e usado
ao herbicida a elas. “Isso também aconteceu com em suplementos alimentares.
projetos de citros, arroz, alface, cana-de-açúcar, O agrônomo Alexandre Nepomuceno, atual
mamão, batata, milho, feijão e muitas outras es- chefe-geral da Embrapa Soja que até o ano passa-
pécies”, diz Paulo Barroso. Segundo ele, só che- do era representante do Ministério da Agricultura
gam ao final projetos cujas provas de conceito na CTNBio, explica que as modificações obtidas
garantem segurança e têm possibilidade de se pela edição gênica são tão pontuais que poderiam
tornar um produto. “Enquanto não há informação ser alcançadas por uma mutação natural. “Mas
suficiente, um produto não é aprovado. Quando a ferramenta faz isso com rapidez e eficiência”,
faltam dados, a empresa precisa fornecê-los ou explica. Na sua avaliação, a Resolução nº 16 de-
repetir seus experimentos”, complementa Maria verá ajudar a disseminar tecnologias efetivas e
Sueli Soares Felipe. mais baratas para os produtores. “O objetivo é
A regulação de transgênicos no Brasil é dife- democratizar o acesso a inovações na agricultura,
rente da de países com extensões territoriais e algo que não foi alcançado pelos transgênicos. O
agricultura comparáveis ao Brasil. Nos Estados custo para obter a regulamentação de uma planta
Unidos, não há uma comissão para avaliar a bios- é altíssimo”, diz. Não é por coincidência, ele ob-
PAULO FRIDMAN / CORBIS VIA GETTY IMAGES

segurança de transgênicos. A avaliação é feita em serva, que as autorizações de comercialização de


separado por agências do meio ambiente, agri- transgênicos se concentram em quatro grandes
cultura e saúde. “No sistema norte-americano companhias de sementes com fôlego financeiro
é institucionalizada a consulta preliminar das para bancá-las, e em grandes commodities como
empresas interessadas em liberar um novo pro- milho, soja e algodão. “Os produtores se tornaram
duto”, explica Flavio Finardi. Elas devem mostrar dependentes dessas empresas e precisam rever-
que o produto tem ‘equivalência substancial’ ao ter parte razoável do que ganham no pagamento
de origem natural e isso é o bastante para poder de royalties.” n

PESQUISA FAPESP 303 | 47


A
INVESTIMENTO

ORIGEM
DO
DINHEIRO
U
Estudo analisa dados de m levantamento feito por pesquisadores da
Universidade de Brasília (UnB) e da Ponti-
financiamento em artigos para fícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUC-RS) mapeou as principais
mapear as principais agências e instituições nacionais respon-
fontes nacionais de apoio sáveis pelo financiamento da ciência, tec-
nologia e inovação (CT&I) no Brasil. Com
à ciência brasileira e seu base em dados do InCites, plataforma de
análise da produção científica da Clarivate, integrada à
grau de internacionalização base Web of Science (WoS), eles escrutinaram 963.467
artigos científicos publicados por autores brasileiros
Rodrigo de Oliveira Andrade entre 1999 e 2019, dos quais 660.308 declararam a
fonte de financiamento em notas de agradecimento.
Verificaram que metade deles contou com recursos
de 10 instituições nacionais, com destaque para o
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), com 192.871 trabalhos apoiados,
a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes), com 109.352, e a FAPESP,
com 88.814. Juntas, essas instituições subsidiaram
59,1% dos papers publicados no período. “O dispêndio
nacional em CT&I segue concentrado em poucas
agências”, afirma Concepta Margaret McManus,
pesquisadora da UnB e uma das autoras do estudo,
publicado na revista Scientometrics.
A FAPESP se distingue como um dos principais
órgãos de fomento à pesquisa de cientistas de São
Paulo. De forma indireta, a Fundação também cola- de bioquímica e biologia molecular, ciência dos
borou com o desenvolvimento científico em outros materiais e farmacologia. Estados Unidos e Ale-
estados (ver tabela na página 51). “Isso se deve às manha se destacaram nesse sentido; as agências
colaborações que pesquisadores por ela financiados desses países apoiaram, respectivamente, 6,8%
mantêm com parceiros dessas localidades no âmbito e 2,3% dos artigos em coautoria com pelo menos
de acordos de cooperação mantidos pela Fundação”, um brasileiro no período. Os recursos, no caso dos
considera McManus. Outro destaque foi a Fundação Estados Unidos, vieram especialmente da Natio-
de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, nal Science Foundation (NSF), principal agência
a Faperj. Os artigos dos pesquisadores financiados de fomento à ciência básica daquele país, e dos
pela instituição tiveram o melhor desempenho em Institutos Nacionais de Saúde (NIH), que apoiam
um dos indicadores analisados no estudo, o CNCI, estudos na área de saúde. Já no caso da Alemanha,
sigla para Category Normalized Citation Impact, os valores vieram majoritariamente da Deutsche
que permite comparar o impacto de artigos de ida- Forschungsgemeinschaft (DFG), o mais destacado
de e áreas diferentes. O desempenho é atribuído à órgão de apoio à pesquisa alemão.
frequência de pesquisas realizadas em colaboração O trabalho também buscou medir o impacto dos
com empresas, notadamente a Petrobras. artigos com autores brasileiros à luz de seus agentes
No estudo, os pesquisadores também usaram os financiadores, contabilizando aqueles publicados
dados sobre financiamento para estimar o grau de in- em periódicos que integram o índice Q1 de revistas
ternacionalização da ciência brasileira no período – mais influentes. Constataram que 37,8% dos 455.766
abordagem ainda pouco utilizada em trabalhos no artigos financiados por agências brasileiras foram
campo da cientometria. Para tanto, analisaram os publicados em revistas Q1 entre 1999 e 2019. Ape-
MAILSON PIGNATA / GETTY IMAGES

artigos subsidiados parcial ou exclusivamente com sar de terem financiado quase metade da produção
recursos externos. Verificaram que instituições de nacional, menos de 40% dos artigos subsidiados
pelo menos 68 países, além da União Europeia, pela Capes e pelo CNPq apareceram em revistas
contribuíram para o financiamento de mais de de alto impacto. Esse percentual foi significativa-
145 mil trabalhos com pelo menos um pesquisador mente maior no caso de publicações que tiveram
brasileiro entre os autores, sobretudo nas áreas recursos internacionais (ver tabela na página 50).

PESQUISA FAPESP 303 | 49


Na avaliação do cientista social Abílio Baeta do pelo físico Carlos Henrique de Brito Cruz, da
Neves, da Assessoria para Assuntos Acadêmicos Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e
da PUC-RS e um dos autores do estudo, o desem- diretor científico da FAPESP entre 2005 e 2020,
penho das pesquisas financiadas pelas agências envolvendo artigos com até 10 autores publicados
internacionais deve ser analisado com cautela, em periódicos indexados na WoS entre 2015 e 2017,
para que não se assuma que o alto impacto dos verificou que o número de citações dos artigos bra-
660.308 trabalhos subsidiados com recursos externos sileiros tende a aumentar quando produzidos em
artigos publicados resulte de um processo de seleção mais crite- colaboração com pesquisadores de outros países.
entre 1999 e 2019 rioso – “como se as instituições nacionais”, ele O impacto desses trabalhos também pode variar
diz, “não fossem rigorosas o suficiente para sele- de acordo com o país com o qual se está colaboran-
cionar projetos com potencial de alto impacto”. do (ver Pesquisa FAPESP nº 289). “Isso indica que
Ele esclarece que os artigos que contam com não apenas o tipo de financiamento, mas a área na
recursos externos quase sempre envolvem cola- qual o paper se insere, o número de autores e seus
borações com pesquisadores de outros países, “as países de origem ou da instituição à qual estão vin-
quais tendem a aumentar a visibilidade dos artigos culados precisam ser levados em conta em análises
e a potencializar suas citações”, destaca o pesqui- dessa natureza”, diz a bióloga Jacqueline Leta, do
sador, que foi presidente da Fundação de Amparo Instituto de Bioquímica Médica da Universidade
à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fa- Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
pergs) e da Capes. “A participação brasileira nesses Outras limitações dos dados precisam ser con-
casos tende a ser diluída em grupos de cientistas sideradas. O trabalho baseou-se em informações
de vários países, de modo que não é possível dizer sobre fontes de financiamento recuperadas de tex-
que as agências internacionais estão financiando a tos de rodapé dos artigos científicos. “Isso é um
ciência nacional, mas, sim, que os pesquisadores problema porque nem todas as agências no Brasil
brasileiros estão conseguindo se inserir em cola- exigem que os pesquisadores façam referência ao
borações internacionais, as quais, naturalmente, apoio que receberam em seus trabalhos, de modo
contam com recursos de agências do exterior.” que as informações disponíveis podem produzir
O índice de colaboração internacional no Bra- resultados imprecisos”, explica McManus. É o caso
sil quase dobrou na última década, saltando de da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da
24,18% em 2009 para 40,55% em 2019, segundo Bahia (Fapesb), que ainda não faz essa exigência
estudo publicado na Scientometrics em 2020. Ao em suas orientações aos pesquisadores financiados
mesmo tempo, a relação entre colaborações in- e sequer aparece no levantamento. Algumas agên-
ternacionais e alto impacto científico encontra cias brasileiras só recentemente impuseram essa
respaldo em estudos recentes. Um deles, realiza- condição. Desde 2013 a FAPESP determina que os
pesquisadores apontem o apoio que receberam da
Fundação em suas publicações, ao passo que a Ca-
ORÇAMENTO VARIADO pes adotou essa política em 2018. “Vários artigos
financiados pelo órgão federal podem ter ficado de
As principais fontes financiadoras citadas fora da nossa amostra”, comenta a pesquisadora da
nas notas de agradecimento de UnB. “Há casos ainda de instituições que fazem essa
artigos com pelo menos um autor brasileiro exigência no contrato que assinam com os pesqui-
sadores quando da concessão dos recursos, mas que
Número Agências % em revista Média depois não verificam se eles realmente a cumpri-
de artigos financiadoras de alto de citação ram”, complementa Samile Andréa Vanz, professora
impacto por artigo da Faculdade de Biblioteconomia da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
192.871 CNPQ 39,35 11,78
O físico Antonio Gomes de Souza Filho, do De-
109.352 CAPES 38,39 10,97
partamento de Física da Universidade Federal do
88.814 FAPESP 43,19 13,05
Ceará (UFC), vê outro tipo de dificuldade para de-
23.246 FAPEMIG 34,75 10,10 terminar o impacto real de cada agência nos resul-
20.809 FAPERJ 44,71 14,04 tados nacionais de CT&I. Ele lembra que os pesqui-
9.812 NSF 73,02 34,86 sadores são financiados por diversas instituições ao
8.879 FINEP 45,76 17,14 longo da carreira e seus trabalhos podem resultar de
8.810 NIH 67,32 37,06 investimentos cruzados e acumulados. “Os cientis-
7.532 FAPERGS 35,44 12,73 tas no Brasil amiúde utilizam recursos da agência A
5.902 FCT 66,90 27,54
para abordar questões oriundas de projetos patro-
cinados pela agência B, os quais avançaram graças à
5.594 EU 71,40 32,50
infraestrutura adquirida com recursos da agência C
4.906 DFG 79,66 33,72
Outras e ao trabalho de estudantes de mestrado e doutora-
agências
FONTE MCMANUS, C. E BAETA NEVES, A. SCIENTOMETRICS. 2020 do, e estagiários de pós-doutorado financiados pela

50 | MAIO DE 2021
FONTES NACIONAIS CNPQ CAPES
40% 40%
Percentual de artigos 34,65 34,00
30,52
que citam as cinco 30% 26,72 30%

principais agências
19,35 19,91 19,18
de fomento brasileiras 20% 20% 17,44 17,27
por região do país* 10,34
10% 10%

0 0
NE CO S SE N NE CO S SE N

FAPESP FINEP FAPEMIG


20% 20% 20%

12,87
9,30
10% 7,58 10% 10%
6,00
4,16 2,63 3,38 2,64
2,10 1,64 1,44 0,81 1,33 1,74 0,79
0 0 0
NE CO S SE N NE CO S SE N NE CO S SE N
*REGIÃO DA INSTITUIÇÃO-SEDE À QUAL OS AUTORES DOS ARTIGOS ESTÃO VINCULADOS FONTE MCMANUS, C. E BAETA NEVES, A. SCIENTOMETRICS. 2020

agência D”, afirma. “Há uma complementariedade Apesar das limitações, o estudo da Scientome-
entre o financiamento das agências brasileiras na trics permite refletir sobre as atuais estratégias de
formação dos pesquisadores e na visibilidade e no financiamento de CT&I no Brasil. Na avaliação de
impacto dos trabalhos que publicam mais tarde Baeta Neves, “os dados de impacto dos trabalhos
com apoio de órgãos internacionais, por exemplo.” financiados com recursos nacionais sugerem que

N
as agências brasileiras ainda parecem mais com-
a avaliação de Leta, a falta de distinção prometidas com a ampliação do sistema nacional
entre as categorias de fomento também de CT&I do que com o financiamento de projetos
dificulta a interpretação dos dados do es- com potencial de impacto internacional. Finan-
tudo. “Arriscaria dizer que grande parte cia-se muito, mas o resultado dessa produção é
das referências imputadas às agências mediano”, afirma. Segundo ele, a consolidação do
nacionais está associada a bolsas de sistema de CT&I foi importante no passado, e, em
mestrado, doutorado e estágio de pós- certa medida, ainda o é em algumas regiões do
-doutorado, enquanto as atribuídas às país. “Mas em algum momento teremos de avaliar
agências internacionais dizem respeito majorita- se está na hora de o Brasil dar o próximo passo e
riamente ao custeio de projetos de pesquisa. São priorizar aspectos qualitativos que nos permitam
formas distintas de financiamento, de modo que ter um melhor desempenho internacional.”
não é possível compará-las diretamente”, destaca Para Souza Filho, o país precisa investir em um
a pesquisadora, especialista em cientometria. Para ecossistema equilibrado de financiamento de CT&I
se poder obter taxas de atribuições mais precisas e capaz de atender a investigações com diferentes
realizar comparações mais adequadas seria preciso características e objetivos. A formação desse am-
refinar os dados, excluir as referências às bolsas biente, porém, requer definição de áreas prioritá-
de formação, contabilizando apenas os auxílios a rias e estabilidade de recursos. “Quando muitos
projetos. “O desempenho das agências nacionais em setores são escolhidos como prioritários, a capaci-
número de artigos financiados, sobretudo no caso dade de reação das agências tende a ser diluída, de
de Capes e CNPq, seria bem menor se contabilizás- modo que muitas prioridades se tornam o mesmo
semos só projetos de pesquisa, da mesma forma que que nenhuma”, pontua. Samile Vanz, da UFRGS,
observaríamos variações em suas taxas de citações sugere que as agências estimulem mais as colabo-
se excluíssemos as bolsas de pós-graduação.” rações internacionais, que são um caminho natu-
O neurocientista Luiz Eugênio Mello, diretor cien- ral em busca de uma ciência de mais impacto. Ela
tífico da FAPESP, vai na mesma linha. “O quadro observa, porém, que muitos grupos trabalham em
destacado no trabalho é interessante, mas deve ser temas que têm relevância regional e nem sempre
INFOGRÁFICOS ALEXANDRE AFFONSO

interpretado com cautela, pois a comparação se dá despertam interesse de revistas de alto impacto ou
entre formas distintas de fomento”, diz. “Do contrá- parceiros de outros países. “É importante financiar
rio”, acrescenta, “a comparação torna-se enviesada, esses trabalhos que buscam resolver problemas
uma vez que, no conjunto, Capes e CNPq concedem próprios da realidade brasileira.” n
muito mais bolsas de iniciação científica e pós-gra-
duação do que qualquer agência de fomento estadual, Os artigos científicos citados nesta reportagem estão listados na
ou mesmo todas as agências estaduais somadas”. versão on-line.

PESQUISA FAPESP 303 | 51


BOAS PRÁTICAS

TRANSPARÊNCIA
PARA GARANTIR
CONFIANÇA

52 | MAIO DE 2021
Estudos se debruçam
sobre conflitos de interesse
na ciência médica

U
m artigo publicado em abril na revista Britânica de Saúde Sexual e HIV, seguia todos os sete
científica PLOS ONE colocou em xeque padrões de transparência propostos pela Academia
algumas das políticas vigentes para pre- de Medicina dos Estados Unidos, entre os quais se
venir conflitos de interesse na formulação destacam a necessidade de que cada especialista en-
de diretrizes de práticas clínicas. Tais volvido na formulação de diretrizes informe antes
diretrizes são atualizadas frequentemente do início do trabalho qualquer atividade que possa
por sociedades e organizações médicas pôr em dúvida a sua imparcialidade e a proibição
dos Estados Unidos e da Europa, mas de que aqueles com choques declarados ocupem
essas entidades parecem não dispor de ferramentas funções executivas nos painéis.
para afastar a influência de empresas ou de grupos, A sombra do conflito de interesses nas diretrizes,
de acordo com o estudo realizado por pesquisadores observa Brems, tem força para minar a confiança
da Universidade de Vanderbilt, situada no estado pública na ciência. Ele observa que recomenda-
norte-americano do Tennessee. “Essas diretrizes ções de diferentes instituições frequentemente di-
têm um grande impacto na forma como se pratica vergem. No caso do câncer de mama, por exemplo,
a medicina em todo o mundo”, disse ao site The há orientações para que a mamografia seja feita a
Academic Times o médico John Henry Brems, um cada dois anos a partir dos 40 anos ou a partir dos
dos autores do trabalho. Além das práticas médicas, 50 anos. “É absolutamente essencial saber se há
ele explica, até mesmo as companhias de seguro se choque de interesse envolvendo os formuladores
baseiam nas diretrizes para decidir quais despesas desses documentos”, afirma.
devem ser reembolsadas. De acordo com a definição do Comitê Interna-
Os pesquisadores escrutinaram na internet as po- cional de Editores de Periódicos Médicos, existe
PRINT COLLECTOR / GETTY IMAGES

líticas de conflito de interesse de 46 organizações conflito quando o juízo de um profissional sobre


médicas responsáveis pelas diretrizes. Descobriram um interesse primário, como a interpretação fide-
que 10 delas nem sequer divulgam suas orientações digna de dados de um experimento, pode vir a sofrer
sobre o assunto, como o Colégio Americano de Gine- influência de um interesse secundário, a exemplo
cologistas e Obstetras e a Sociedade Americana de dos anseios do patrocinador privado do estudo. Na
Cirurgiões de Cólon e de Reto. Só uma, a Associação literatura científica, há vários exemplos de patro-

PESQUISA FAPESP 303 | 53


cinadores de pesquisas que enviesaram o desenho Cornell em 2019 quando se constatou que fraudava
e a análise de estudos e a forma como foram divul- estatísticas em suas pesquisas. Wansink havia sido
gados. Um artigo publicado em 2018 por médicos diretor do Centro para Promoção e Políticas de Nu-
australianos no American Journal of Public Health trição do governo norte-americano e coordenou as
debruçou-se sobre os resultados de 36 estudos que U.S. Dietary Guidelines no período de 2007 a 2009.
tratavam de pesquisas financiadas pelas indústrias O estudo dos pesquisadores da Universidade de
do tabaco, do álcool, do açúcar e do petróleo – e Vanderbilt é revelador de um esforço recente em
concluiu que esses segmentos ajudaram a traçar a estudar e combater conflitos de interesse nos am-
agenda científica em várias áreas do conhecimento. bientes médico e acadêmico. Em 2019, a ProPublica,
A existência de um conflito não significa, contudo, organização jornalística sem fins lucrativos, criou
que os resultados de um estudo estejam errados ou um banco de informações com declarações de con-
que seus autores tenham cometido má conduta – se flitos de interesse de cientistas e médicos coletados
for esse o caso, o trabalho nem sequer deveria ser de agências de fomento e instituições de pesquisa
publicado, embora isso eventualmente aconteça. De dos Estados Unidos. A iniciativa mostrou que, entre
todo modo, é essencial declarar o choque de interes- 2012 e 2019, US$ 188 milhões foram concedidos a
ses para que o avaliador de um projeto de pesquisa, pesquisadores que, em seus projetos, declararam
o revisor de um paper ou os leitores de um trabalho ter algum vínculo com organizações com interesse
estejam informados sobre a possibilidade de vieses. econômico na área do estudo. O banco de dados da
O debate sobre a fidedignidade das diretrizes ProPublica foi útil não só para ampliar a transpa-
não é novo. Em 2004, um editorial do New England rência das informações, mas também para rastrear
Journal of Medicine criticou o patrocínio privado às pesquisadores que não declararam interesses con-
diretrizes sobre sepse, que levou a uma reconfigura- correntes. Em parceria com o jornal The New York
ção das orientações sobre o tratamento de infecção Times, a organização conseguiu identificar casos
generalizada. Em um caso recente que não configu- como o do oncologista José Baselga, que há dois
rou conflito de interesses, o especialista em nutri- anos foi demitido do cargo de diretor médico do
ção Brian Wansink foi demitido da Universidade de hospital Memorial Sloan Kettering Cancer Center,

USO POLÍTICO NA DISTRIBUIÇÃO DE VACINAS


Países que saíram na frente no combate Sputnik V. O imunizante já foi aprovado em Virologia e o Conselho Indiano de Pesquisa
à Covid-19, seja porque produziram suas 60 países, todos de baixa ou média renda, Médica. A disponibilidade de imunizantes
próprias vacinas ou as adquiriram em grandes sobretudo do Leste Europeu. “Pode-se dizer permitiu ao país exportar milhões de doses
quantidades, estão usando os imunizantes que o interesse russo é o mesmo da China, para nações vizinhas, como Nepal, Sri Lanka
como ferramenta política. Enquanto os isto é, tentar ocupar espaços vazios deixados e Bangladesh, fazendo frente à influência
Estados Unidos acumulam doses de diferentes pelos Estados Unidos em regiões como chinesa na região.
fabricantes para uso interno, visando América Latina e África”, diz Oliveira. “É possível, contudo, que o aumento
a imunização de seus cidadãos e a retomada Também Cuba enxerga nas vacinas um recorde de casos da doença no país coloque
da economia, nações emergentes usam caminho para obter ganhos políticos e em xeque a estratégia indiana”, comenta
as vacinas para ampliar sua influência diplomáticos. A ilha de apenas 11 milhões de a cientista política Maria Hermínia Tavares
geopolítica, “pautando uma saída multilateral habitantes trabalha hoje no desenvolvimento de Almeida, do Centro Brasileiro de Pesquisa
alternativa à oferecida pelos países ricos”, de cinco candidatas a imunizante. A mais e Planejamento (Cebrap). “A Índia será
comenta Amâncio Jorge Silva Nunes de avançada é a Soberana-2, da BioCubaFarma, o país que talvez terá mais dificuldade para
Oliveira, do Centro de Estudos das empresa estatal de biotecnologia, em fase 3 conciliar a necessidade de imunização de sua
Negociações Internacionais do Instituto de de testes clínicos. Do ponto de vista interno, população com seus interesses geopolíticos.”
Relações Internacionais da Universidade o governo cubano espera poder imunizar Com 1,4 bilhão de habitantes, apenas 7,9%
de São Paulo (IRI-USP). sua população. Do ponto de vista geopolítico, de sua população recebeu vacinas contra
A China foi a primeira a fazer uso político espera ganhar protagonismo internacional – Covid-19 até 14 de abril. Os temores de
dos imunizantes, prometendo ajudar as sendo o primeiro país latino-americano escassez de doses levaram o governo
nações em desenvolvimento antes mesmo a criar uma vacina contra Covid-19. a suspender temporariamente as exportações
de iniciar a produção em massa de uma vacina A Índia produz hoje cerca de 2,5 milhões da Covishield em fins de março.
comprovadamente segura e eficaz contra de doses diárias da Covishield, desenvolvida Nos Estados Unidos, diz Almeida, a
a doença. O objetivo do governo chinês nesse pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, imunização avança rapidamente e o presidente
caso é melhorar sua imagem e mostrar ao em parceria com a farmacêutica sueco-britânica Joe Biden busca estabelecer um contraste claro
mundo que é uma potência capaz de fazer AstraZeneca. Em janeiro, o país também em relação à maneira como o governo anterior
frente aos Estados Unidos em termos aprovou o uso emergencial da Covaxin, lidava com a pandemia. “A estratégia do
científicos. A Rússia também busca dividendos produzida pela empresa Bharat Biotech, em presidente Joe Biden está focada na política
geopolíticos com sua contestada vacina colaboração com o Instituto Nacional de interna”, afirma. n Rodrigo de Oliveira Andrade

54 | MAIO DE 2021
A DECLARAÇÃO pósios, congressos e conferências e assemelhados
deve constar de todos os documentos resultantes
DE CONFLITOS DE dos eventos. Determina, ainda, que o apoio a pro-
fissionais de saúde para participar de encontros,
INTERESSE nacionais ou estrangeiros, não pode ser condicio-

É ESSENCIAL PARA nado à promoção de medicamentos.

A
INFORMAR SOBRE concepção de conflitos de interesse vem
se tornando mais ampla. Há tempos, as
O RISCO DE revistas científicas exigem que os auto-
res de papers assinem uma declaração
PARCIALIDADE informando se tem vínculo com insti-
OÃÇARALCED A tuições potencialmente interessadas
nos resultados de seu estudo. Desde
ED SOTILFNOC ED depois de reconhecer que não informou o apoio
de empresas farmacêuticas e de biotecnologia em
2018, os periódicos do grupo Nature
passaram a requerer também a divulgação de
ESSERETNI dezenas de artigos científicos de sua autoria (ver vínculos não financeiros, tais como a afiliação

ARAP LAICNESSE É Pesquisa FAPESP nº 272). O comportamento não


tinha nenhuma relação com diretrizes de práticas
a organizações não governamentais e a grupos
de pressão, se os autores são conselheiros em
ERBOS RAMROFNI clínicas, bem ao contrário. As regras estabelecendo
a divulgação de conflitos de interesse em papers fo-
entidades com fins lucrativos ou trabalham co-
mo consultores, por exemplo, para organizações
ED OCSIR O ram criadas pela Associação Americana de Pesquisa
sobre o Câncer quando o próprio Baselga era seu
educacionais. A justificativa é de que o processo
científico está sob um escrutínio cada vez mais
EDADILAICRAP presidente – ele optou por não segui-las. intenso e de que a transparência é a melhor forma
O receio gerado por conflitos de interesse em de manter a confiança do público. É uma preo-
geral se vincula à influência de patrocinadores so- cupação que vem crescendo. Antes de 2001, as
bre resultados de pesquisa. “Mas há interferências declarações não eram obrigatórias e só nos úl-
menos explícitas que nem sempre são devidamente timos anos passaram a ser exigidas para autores
informadas”, diz o reumatologista e especialista em de resenhas ou de artigos de opinião.
bioética José Marques Filho, autor de um artigo de Há outros flancos na comunicação científica,
revisão publicado na Revista Brasileira de Clínica como vínculos entre os autores e os revisores de
Médica sobre o problema na relação de médicos e periódicos incumbidos de avaliar o conteúdo de
indústria farmacêutica. Marques, que até recente- artigos. A editora suíça Frontiers, que publica mais
mente foi o coordenador da Comissão de Ética da de 90 periódicos científicos em acesso aberto, de-
Sociedade Brasileira de Reumatologia, refere-se, por senvolveu um software que utiliza inteligência
exemplo, ao patrocínio de fabricantes de medica- artificial para examinar artigos e identificar pro-
mentos à organização de congressos de sociedades blemas relacionados à sua integridade. O progra-
médicas e científicas, que vê como uma ameaça à ma avisa quando os autores de um manuscrito e
liberdade acadêmica. “Os patrocinadores natural- os editores e revisores que estão apreciando o seu
mente exercem um poder de intervenção sobre a conteúdo já assinaram juntos outros artigos, pro-
pauta de congressos”, sustenta. “Também não é ximidade que pode tornar a avaliação subjetiva
incomum que ofereçam facilidades para que um e configurar conflitos de interesse (ver Pesquisa
médico ou pesquisador participe de conferências FAPESP nº 299). Já a editora Elsevier, que publi-
internacionais a convite de organizadores, o que ca mais de 3 mil periódicos científicos, criou um
não configura uma influência econômica direta. guia com regras que procuram evitar o problema.
Isso gera um vínculo entre empresa e pesquisador Vários tipos de vínculos entre revisores e autores
que raramente é informado.” são proibidos – eles não podem ter publicado um
No Brasil, há legislação que coíbe esse tipo de má artigo juntos nos três anos anteriores, pertencer ao
conduta. “Mas ela não é nova e deveria ser atualiza- mesmo departamento ou manter relações pessoais
da à luz do conhecimento que vem se acumulando ou familiares. Atuar em projetos colaborativos ou
sobre o tema”, observa Marques Filho. Desde 1996, organizar juntos conferências científicas não são
vigoram resoluções do Conselho Nacional de Saúde impedimento. n Fabrício Marques
sobre pesquisas envolvendo seres humanos segun-
do as quais é necessário assegurar a inexistência
de conflitos de interesse entre o pesquisador e os Artigos científicos
sujeitos da pesquisa e o patrocinador do projeto. Já BREMS, J. H. et al. Analysis of conflict of interest policies among orga-
uma resolução da Agência Nacional de Vigilância nizations producing clinical practice guidelines. PLOS ONE. abr. 2021.
MARQUES Fº, J. A dimensão bioética dos conflitos de interesses na
Sanitária (Anvisa), de 2000, determina que o pa- relação entre médico e indústria farmacêutica. Revista Brasileira de
trocínio por um fabricante de medicamentos a sim- Clínica Médica. v.8, nº 2, p.148-53. 2010.

PESQUISA FAPESP 303 | 55


GENÉTICA

LAÇOS
DE
FAMÍLIA

Diferentes ângulos de dente molar


inferior de Homo sapiens com
antepassado neandertal encontrado
na caverna Bacho Kiro, na Bulgária

56 | MAIO DE 2021
Há cerca de 46 mil anos seres humanos
modernos já habitavam o coração da Europa
e tiveram filhos com neandertais

Ricardo Zorzetto

U
ma caverna ao pé dos Bálcãs na em seu genoma trechos de DNA neandertal – não
região de Dryanovo, município de há evidências de que neandertais tenham vivido na
8 mil habitantes na parte central da África. Os especialistas defendem que essa pequena
Bulgária, abriga um dos registros contribuição tenha influenciado certas caracterís-
mais antigos da presença de seres ticas dos seres humanos modernos. Vários estudos
humanos de feições modernas na já associaram genes neandertais a traços mais van-
Europa. Os quatro fragmentos de osso e o dente tajosos, como um sistema imune mais robusto, o
molar inferior escavados entre 2015 e 2018 na ca- que teria permitido ao H. sapiens sobreviver aos
verna Bacho Kiro pertencem a três Homo sapiens patógenos de novos ambientes e se espalhar pelo
que viveram entre 45,9 mil e 42,5 mil anos atrás. A planeta, ou desvantajosos, como maior risco de
análise do genoma desses fósseis, realizada pelo desenvolver doenças como diabetes ou depressão.
grupo do paleogeneticista sueco Svante Pääbo, do No caso de Bacho Kiro, os três Homo sapiens
Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, mais antigos da caverna tiveram entre seus an-
em Leipzig, Alemanha, mostra que esses humanos cestrais um antepassado não muito distante – um
modernos eram híbridos. Eles resultaram do cru- pentavô ou hexavô – neandertal, segundo artigo
zamento de Homo sapiens com os seus parentes publicado em 7 de abril na revista Nature pela
evolutivamente mais próximos, hoje extintos: equipe de Pääbo, autoridade mundial no estudo
os neandertais (Homo neanderthalensis), seres de DNA antigo. Como consequência, de 3,4% a
humanos arcaicos que surgiram entre 700 mil e 3,8% do genoma desses indivíduos era neander-
500 mil anos atrás em algum lugar da Europa ou tal, proporção maior do que a encontrada hoje (de
da Ásia e tinham o corpo mais atarracado, a face 1,8% a 2,6%) nos seres humanos sem ascendên-
mais protuberante e o crânio mais baixo e alongado cia africana. “Temos agora alguns dos genomas
do que o das populações humanas atuais. humanos mais antigos que existem”, afirmou a
De 400 mil a 40 mil anos atrás, pequenos grupos paleogeneticista Mateja Hajdinjak, primeira au-
de neandertais se distribuíram por uma região que tora do trabalho e hoje pesquisadora no Instituto
hoje abrange a Europa, o oeste da Ásia e o Orien- Francis Crick, no Reino Unido, à revista Nature.
te Médio. Desde o sequenciamento do genoma Também em 7 de abril, outro grupo do Max
ROSEN SPASOV, MPI-EVA LEIPZIG

neandertal em 2010, os dados genéticos sugerem Planck, coordenado pelo paleogeneticista alemão
com frequência que, em algumas das ocasiões em Johannes Krause, apresentou na revista Nature
que se encontraram, H. sapiens e neandertais se Ecology & Evolution um recálculo da idade de outro
reproduziram e deixaram descendentes férteis. fóssil de H. sapiens com ascendência neandertal.
Por essa razão, populações humanas atuais sem É um crânio quase completo de uma mulher, co-
ancestralidade exclusivamente africana abrigam nhecido como Zlatý kůň (cavalo dourado, em che-

PESQUISA FAPESP 303 | 57


sobre os dois trabalhos, publicado na Nature Ecology
& Evolution. Curiosamente, lembra o pesquisador
espanhol, até o momento só foi registrado o fluxo
de genes de neandertais para H. sapiens. “É possí-
vel que os humanos modernos pudessem tolerar
híbridos, mas os neandertais não. Ou que indiví-
duos mestiços tenham sido socialmente rejeitados
pelos grupos de neandertais”, supõe Lalueza-Fox.

A
ideia de que H. sapiens tenham
convivido com neandertais não é
nova. Antes dos estudos de DNA
antigo, já existiam evidências ar-
queológicas dessa coexistência
no Oriente Médio e na Europa.
Cavernas em Israel e na Jordânia guardam resquícios
de ocupação em sequência das duas espécies. Além
disso, alguns fósseis, como o de uma criança encon-
trado no Abrigo de Lagar Velho, em Portugal, apre-
sentavam traços mistos de H. sapiens e neandertal.
1
Zlatý kůň, crânio encontrado nos anos 1950 na “Os dados genéticos atuais permitem vislumbrar um
República Checa, pertenceu a ser humano moderno cenário complexo de migrações de H. sapiens para
do sexo feminino com ascendência neandertal.
Sua idade agora foi estimada em mais de 45 mil anos
a Europa, aonde chegaram por volta de 45 mil anos
atrás”, conta a bioantropóloga Mercedes Okumura,
coordenadora do Laboratório de Estudos Evolutivos
co), encontrado no início dos anos 1950 em uma Humanos da Universidade de São Paulo (USP).
caverna próxima a Praga, na República Checa, a Traçar a árvore genealógica dos hominídeos e
quase 1.500 quilômetros a noroeste de Bacho Kiro. conhecer como cada espécie se relacionou com as
Krause e seus colaboradores não conseguiram da- outras do mesmo gênero não é tarefa simples. Os
tar diretamente o crânio pelo método do carbono fósseis antigos são escassos e, quando achados, é di-
14, mas extraíram DNA. A análise dos trechos de fícil extrair material genético deles. As descobertas
origem neandertal permitiu estimar em ao menos dos últimos anos sugerem que o H. sapiens surgiu
45 mil anos a idade de Zlatý kůň, que teria tido no norte da África cerca de 300 mil anos atrás, mas
um antepassado neandertal 80 gerações (quase só mais tarde se aventurou por outros continentes.
2 mil anos) antes. Os fósseis indicam ao menos três principais saídas
Fósseis tão antigos de seres humanos modernos desse continente: a primeira há pouco mais de 100
raramente são encontrados fora da África, onde a mil anos para o Oriente Médio (onde teriam encon-
espécie surgiu. Com a publicação desses resultados, trado neandertais), a segunda entre 70 mil e 50 mil
no entanto, em um só dia saltou de dois para seis o anos atrás para o sul da Ásia e a terceira, há uns 60
total de fósseis de H. sapiens com mais de 40 mil
anos de idade e ancestralidade neandertal. Aos de Na caverna Bacho Kiro, na Bulgária, arqueólogos
Bacho Kiro e ao crânio Zlatý kůň, somam-se outros escavam camada em que foram encontrados
quatro ossos fossilizados de Homo sapiens com
dois: um fêmur de 45 mil anos encontrado em 2008 idade entre 45,9 mil e 42,5 mil anos
no vilarejo de Ust’-Ishim, na porção ocidental da 2

Sibéria, e uma mandíbula denominada Oase 1, com


37 mil a 42 mil anos de idade, achada em 2003 em
uma caverna no sudoeste da Romênia. O chamado
homem de Ust’-Ishim teve um ancestral neandertal
entre 8 mil e 13 mil anos antes (ou seja, entre 53
mil e 58 mil anos atrás), enquanto Oase 1, com 9%
de DNA neandertal, descende de um cruzamento
ocorrido havia menos de seis gerações.
“A descoberta de que os humanos modernos do
Pleistoceno Superior sistematicamente apresentam
evidências de ancestralidade neandertal recente
sugere que esse padrão de cruzamento não era uma
exceção, mas a regra”, escreveu o paleogeneticista
Carles Lalueza-Fox, do Instituto de Biologia Evo-
lutiva, em Barcelona, Espanha, em um comentário

58 | MAIO DE 2021
mil anos, para o centro-norte da Ásia e a Europa,
onde novamente se depararam com grupos de H.
neanderthalensis. “É possível que nessas migrações
algumas das populações humanas tenham tido mais O crânio de H. neanderthalensis (à esq.)
é maior e mais alongado do que o de
contato com neandertais, enquanto outras não os H. sapiens (à dir.)
tenham encontrado. Isso justificaria por que só
alguns esqueletos apresentam evidência de cru-
zamento”, explica Okumura.
A existência de várias ondas migratórias tam-
bém ajuda a entender por que apenas alguns dos
H. sapiens mais antigos que viveram fora da Áfri-
ca guardam certo parentesco com os seres huma-
nos atuais. Os dados indicam que os indivíduos de
Bacho Kiro, assim como o homem de Ust’-Ishim
e Oase 1, têm semelhanças genéticas com popu-
lações do leste asiático e das Américas, mas não
com as da Europa. Isso sugere que eles seriam re-
presentantes de uma população que inicialmente
se espalhou pelo continente europeu e asiático e
depois desapareceu da Europa. Já o fóssil Zlatý
3
kůň não compartilha características genéticas com
populações atuais. Pertenceria a um grupo de H. dedos polegar e indicador, fundamental para mo-
sapiens que interagiu com neandertais e foi extinto. vimentos de precisão. Segundo os resultados pu-

E
blicados em 2010 no American Journal of Physical
studos arqueológicos e genéticos dos Anthropology, essa região é idêntica tanto em seres
últimos anos têm contribuído para des- humanos modernos como arcaicos, sinal de que
fazer a ideia, por muito tempo preva- teriam potencial de alcançar nível semelhante de
lente, de que os neandertais teriam sido destreza. “A versão presente nesses dois grupos
mais primitivos e menos habilidosos deve ter sido selecionada antes do surgimento dos
do que os H. sapiens. Ligeiramente representantes do gênero Homo”, conta Hünemeier.
mais altos, fortes e com cérebro um pouco maior, Hoje pesquisadora na Universidade Federal da
eles caçavam animais de grande porte, produziam Bahia (UFBA), Vanessa Paixão-Cortes, à época
ferramentas sofisticadas (lanças, machados, lâmi- também aluna de doutorado no grupo da UFRGS,
nas, anzóis) e trançavam cordões a partir de fibras decidiu testar a hipótese, comum no meio científico,
FOTOS 1 MAREK JANTAČ 2 TSENKA TSANOVA, MPI-EVA LEIPZIG 3 PACAL GOETGHELUCK / SCIENCE PHOTO LIBRARAY / FOTOARENA

vegetais (possivelmente faziam roupas). Vestígios de que os neandertais seriam menos inteligentes
achados em cavernas indicam que saberiam usar do que H. sapiens. Ela analisou 162 genes que, nos
plantas medicinais, produziam representação sim- primatas, estão associados à formação do cérebro –
bólica (pinturas em paredes e estruturas usando e, de certo modo, à inteligência. Cinquenta e um
estalagmites) e sepultavam os mortos. Tudo antes genes eram exclusivos do gênero Homo e apresen-
de os humanos modernos deixarem a África. tavam 93 mutações. Nos neandertais, não havia da-
Embora a maior parte do conhecimento sobre dos disponíveis para apenas 25 dessas mutações. As
os neandertais seja produzida por estrangeiros, demais eram idênticas à dos humanos modernos,
pesquisadores brasileiros também contribuíram segundo o resultado publicado em 2013 no Ameri-
para conhecer como teriam sido esses parentes can Journal of Human Biology. “Levando em conta
próximos. Assim que saiu o genoma neandertal, o background genético, não encontramos diferença
em 2010, o grupo coordenado pelos geneticistas que permitisse dizer que uma das espécies poderia
Francisco Salzano (1928-2018) e Maria Cátira Bor- ser mais inteligente”, afirma Paixão-Cortes.
tolini na Universidade Federal do Rio Grande do Em um estudo publicado em fevereiro deste
Sul (UFRGS) realizou trabalhos sugerindo que, do ano na Science, o neurocientista brasileiro Alys-
ponto de vista genético, neandertais não seriam tão son Muotri e sua equipe na Universidade da Cali-
diferentes de H. sapiens. fórnia em San Diego, Estados Unidos, chegaram a
A geneticista Tábita Hünemeier, então aluna de um resultado diferente. Eles usaram uma técnica
doutorado na UFRGS e hoje pesquisadora da USP, de edição gênica para criar minicérebros (órgãos
comparou as características em humanos modernos em miniatura que simulam o cérebro) contendo
e neandertais da região gênica HACNS1, associada um gene neandertal no lugar de seu equivalente
à capacidade de andar em duas pernas e à destreza humano. Os minicérebros com o gene arcaico se
manual. Atribui-se a esse trecho do genoma, mais desenvolveram mais rapidamente do que os com
expresso nos pés e nas mãos, a habilidade dos H. o gene dos seres humanos modernos, mas ficaram
sapiens de realizar o movimento de pinça com os menores, possivelmente porque apresentavam

PESQUISA FAPESP 303 | 59


Região em que teriam
coexistido populações
Europa neandertais e denisovanas

Ásia

Convivência África

entre parentes Território em que


provavelmente teriam
Região aproximada em que se estima existido os denisovanos
que tenham vivido os neandertais e onde haveriam
e os denisovanos, outro grupo de Área possivelmente ocupada ocorrido cruzamentos
seres humanos arcaicos que também por H. neanderthalensis, com H. sapiens,
interagiram com H. sapiens onde houve encontros com deixando descendentes
seres humanos modernos no Sudeste Asiático
FONTE BASEADO EM MAFESSONI, F. NATURE ECOLOGY & EVOLUTION. 2019

uma proliferação mais lenta dos neurônios e taxa mais vantajosos ou a maior risco de desenvolver
maior de morte celular. Também tinham menos doenças. Genes neandertais já foram ligados à ca-
proteínas associadas às conexões (sinapses) entre pacidade de os seres humanos atuais viverem em
neurônios, indicando uma rede mais simplificada grandes altitudes, à maior fertilidade e ao menor
e menos eficaz de transmissão de informações. risco de sangramento em mulheres. Mas também
“Nossa hipótese é de que as redes neurais do cé- à maior probabilidade de desenvolver diabetes, es-
rebro humano se tornaram muito mais comple- quizofrenia, depressão e lúpus ou mesmo à de sentir
xas ao longo da evolução”, explicou Muotri na mais dor. Recentemente, Pääbo e Hugo Zeberg, um
reportagem “Cérebro neandertal em laboratório”, colaborador do Instituto Karolinska, na Suécia, apre-
publicada no site de Pesquisa FAPESP. sentaram resultados mostrando que pessoas com
Outro trabalho do grupo do Rio Grande do Sul uma região do cromossomo 3 herdada dos nean-
contribuiu para desfazer a ideia de que os nean- dertais correm maior risco de morrer de Covid-19,
dertais fossem sempre ruivos e de olhos claros. enquanto as que têm um trecho de origem nean-
Três mulheres neandertais cujos fósseis foram dertal no cromossomo 12 estariam um pouco mais
encontrados na Croácia integravam a amostra protegidas de adoecer se forem infectadas pelo vírus.
do estudo, que analisou em seres humanos mo- A maior contribuição, no entanto, parece ter sido
dernos e arcaicos variações de 67 genes ligados à para a robustez do sistema imune. Em 2018, tam-
pigmentação de pele, olhos e cabelos. Segundo o bém na Cell, os biólogos David Enard, da Universi-
resultado, publicado em 2012 no American Jour- dade do Arizona, e Dmitri Petrov, da Universidade
nal of Human Biology, uma das neandertais era Stanford, ambas nos Estados Unidos, mostraram
ruiva com pele clara e as outras eram morenas, que diversos genes herdados dos neandertais con-
com pele e cabelos mais escuros. Todas tinham ferem proteção contra vírus, o que pode ter sido
olhos castanhos (ver Pesquisa FAPESP nº 193). fundamental para a sobrevivência dos seres hu-
À parte questões sobre semelhanças e inteli- manos modernos, após a saída da África. Como
gência, é cada vez mais evidente que a pequena lembraram Akey e seus colaboradores em 2017, os
contribuição neandertal – em média, 2% – para neandertais foram extintos há cerca de 40 mil anos,
o genoma dos H. sapiens influenciou algumas ca- mas muito do seu DNA continua vivo nos seres hu-
racterísticas dos seres humanos modernos. Em manos modernos, moldando a biologia humana. n
2017, o grupo coordenado pelo geneticista Joshua
Akey, à época na Universidade de Washington,
em Seattle, Estados Unidos, constatou que essa
herança neandertal não é silenciosa. De acordo Artigos científicos
com o trabalho, publicado na revista Cell, ao me- HAJDINJAK, M. et al. Initial Upper Palaeolithic humans in Europe had
recent Neanderthal ancestry. Nature. 7 abr. 2021.
nos 25% dos genes neandertais introduzidos no PRÜFER, K. et al. A genome sequence from a modern human skull
genoma humano estão ativos em diferentes graus over 45,000 years old from Zlatý kůň in Czechia. Nature Ecology
nos diversos tecidos do corpo. & Evolution. 7 abr. 2021.

Nos últimos anos, dezenas de estudos já asso- Os demais artigos citados nesta reportagem estão listados na versão
ciaram genes neandertais à manifestação de traços on-line.

60 | MAIO DE 2021
BIOLOGIA

Macho de caboclinho-de-barriga-vermelha, que


divide o mesmo hábitat com o caboclinho-do-iberá
(ver imagens da próxima página), ataca réplica
de madeira de sua espécie

CORES
E CANTOS
E
speciação é o termo usado em biologia
evolutiva para designar o processo
que leva ao aparecimento de uma

DA
nova espécie a partir de um grupo
que se destaca dos demais membros
de uma população ancestral e acaba

EVOLUÇÃO
desenvolvendo características únicas. Na maioria
dos casos, esse mecanismo é bem lento, ocorre ao
longo de várias gerações e pode se prolongar por
milhares ou até milhões de anos. A consolidação
de uma nova espécie geralmente ocorre depois
que seus representantes se isolam geografica-
Tons da plumagem e vocalização mente da população original, e esses dois grupos
de indivíduos perdem a capacidade de trocar
favorecem a formação de novas espécies material genético e gerar descendentes viáveis.
Mas, em certas circunstâncias, novas espécies
em um grupo de aves podem se formar antes de haver separação física
ou incompatibilidade genética entre a população
Eduardo Geraque* ancestral e o grupo que dela se separou.
Um estudo publicado em 25 de março na revis-
ta Science sugere que a emergência de uns poucos
traços físicos e comportamentais, como a cor da
plumagem dos machos e seu padrão de canto, é
fator suficientemente forte para estimular o sur-
gimento de novas espécies de caboclinhos, pe-
quenas aves do gênero Sporophila que englobam
mais de 40 espécies e que vivem principalmente
FOTOS SHEELA TURBEK

em áreas abertas da América do Sul. Com cerca


de 10 centímetros de comprimento e pesando
menos de 10 gramas, os caboclinhos chamam a
atenção por seu canto melodioso.

PESQUISA FAPESP 303 | 61


Segundo o trabalho, feito por uma equipe inter-
nacional de biólogos e ornitólogos, duas espécies
desse grupo de aves – o caboclinho-do-iberá (Spo-
rophila iberaensis) e o caboclinho-de-barriga-ver-
melha (Sporophila hypoxantha) – dividem o mesmo
hábitat (a porção norte dos Esteros del Iberá, uma
área pantanosa no centro da Argentina), têm geno- Atualmente, três critérios fundamentais são usa-
mas quase idênticos e são capazes de gerar descen- dos para propor a existência de novas espécies de
dentes híbridos férteis, como demonstram experi- aves: a análise de sua morfologia, de seu material
mentos em cativeiro. Ambos os caboclinhos fazem genético e de suas vocalizações. Para alguns au-
ninhos em áreas muito próximas, reproduzem-se tores, basta haver diferenças em um desses parâ-
na mesma época e dividem os locais de alimenta- metros para se pleitear a existência de uma nova
ção. Ainda assim, de acordo com experimentos de espécie. Outros consideram mais prudente fazer
campo e análises genéticas, as fêmeas quase sem- tal proposta quando pelo menos dois critérios se
pre se reproduzem com os machos de sua espécie mostram distintos.
e evitam os pretendentes da espécie vizinha. No A aparência dos machos e das fêmeas de cabo-
estudo, foi analisado o DNA de 37 exemplares de clinhos exibe algumas particularidades. Em todas
machos e fêmeas das duas espécies. as espécies, e não apenas nas duas estudadas no
Para os autores do artigo, as fêmeas determinam a parque argentino, a coloração das fêmeas é mui-
espécie de seus parceiros de acasalamento pela cor to semelhante. Seu dorso é mais escuro e a parte
das penas e seu padrão de canto. Ao longo do tem- ventral mais clara, em tons oliva. No entanto, os
po, essa preferência sexual teria levado à separação machos de cada espécie tendem a exibir uma plu-
das duas espécies. “O estudo mostra que as espécies magem bem específica. O caboclinho-do-iberá, por
podem surgir e divergir rapidamente com base em exemplo, tem o ventre forrado por penas claras,
caracteres como a plumagem e o canto; também bastante diverso da cor alaranjada que reveste essa
indica que a separação genética completa pode de- parte do corpo do caboclinho-de-barriga-vermelha.
morar muito mais tempo para aparecer”, afirma o Ao lado do biólogo evolutivo argentino Leonar-
ornitólogo Luís Fábio Silveira, curador das coleções do Campagna, do Laboratório de Ornitologia da
de aves do Museu de Zoologia da Universidade de Universidade Cornell, dos Estados Unidos, Silveira
São Paulo (MZ-USP), um dos autores do artigo, que tem estudado a origem e o processo de especia-
desenvolve projeto financiado pela FAPESP volta- ção em aves do gênero Sporophila, os caboclinhos
do ao estudo de espécies endêmicas de trechos da (ver Pesquisa FAPESP nºs 236 e 256). “Esse é um
Mata Atlântica do Nordeste, onde também ocorrem grupo muito especial de aves por causa da grande
FOTOS SHEELA TURBEK

algumas formas de caboclinhos. “O isolamento mor- semelhança genética entre suas espécies. Ele es-
fológico e comportamental ocorre muito antes do tá no início do processo de especiação e isso nos
genético, e isso pode ser um fator preponderante permite focar nas poucas áreas do genoma que
para o surgimento de novas espécies.” são diferentes e provavelmente responsáveis pelo

62 | MAIO DE 2021
Sequência de imagens mostra as reações
agressivas de um macho de caboclinho-do-iberá
à presença em seu território de réplica
de madeira de outro macho de sua espécie

aparecimento e evolução de espécies distintas”,


comenta Campagna, coordenador dos trabalhos da
equipe que produziu o estudo sobre o caboclinho-
-do-iberá e o caboclinho-de-barriga-vermelha. O
DNA dessas duas espécies é igual em 99,9%. Apenas
12 genes apresentam sequências distintas, sendo
três deles envolvidos com a coloração da pluma-
gem. “A maioria das espécies conhecidas de aves relação à cópia de madeira do coleiro-do-brejo,
está evoluindo separadamente há muito tempo e que tinha cores intermediárias e fazia o papel de
apresentam tantas diferenças que é muito difícil um híbrido das outras duas espécies, as reações
saber quais eram realmente importantes no co- foram menos marcantes, oscilando entre algum
meço da especiação”, afirma o biólogo evolutivo. grau de agressão e de desprezo. Os machos de

C
Sporophila hypoxantha apresentaram o mesmo
onduzido por uma aluna de doutora- padrão de comportamento em relação às cópias
do da Universidade do Colorado, em de madeira das três espécies de caboclinhos.
Boulder, Estados Unidos, a bióloga Para o biólogo norte-americano Erich D. Jarvis,
norte-americana Sheela Turbek, do Laboratório de Neurogenética da Linguagem
que é a primeira autora do estudo da Universidade Rockefeller, de Nova York, não é
recém-publicado, um experimento possível dizer se a preferência sexual das fêmeas
de campo feito ao longo de três anos em Esteros del por machos que entoam um certo padrão de canto
Iberá forneceu os indícios mais fortes do compor- é uma opção determinada por uma escolha mera-
tamento sexual das duas espécies de caboclinhos mente cultural ou cultural e genética. “Aves cano-
na natureza. No território dos machos, ela instalou ras são um dos raros grupos de espécies que têm
réplicas de madeira da versão masculina do cabocli- aprendizagem vocal, capacidade de imitar sons e
nho-do-iberá, do caboclinho-de-barriga-vermelha transmiti-los culturalmente de uma geração para
e de Sporophila collaris, o coleiro-do-brejo, ave que outra”, afirma Jarvis em artigo publicado na mes-
tem uma plumagem com um padrão de cor interme- ma edição da Science comentando o estudo sobre
diário entre a de Sporophila iberaensis e Sporophila os caboclinhos. “Os achados de Turbek e seus co-
hypoxantha. Ao lado das réplicas, Turbek tocou, de legas levantam a questão de quão difundido pode
forma alternada, gravações com o canto dos ma- ser esse mecanismo de pré-acasalamento na espe-
chos do caboclinho-do-iberá e do caboclinho-de- ciação. Talvez ele possa dar origem a diferenças
-barriga-vermelha e observou, ao longo de três anos populacionais locais numa espécie.” n
de trabalho de campo, como 76 machos de verdade *Colaborou Marcos Pivetta
dessas duas espécies (36 de Sporophila iberaensis
e 40 de Sporophila hypoxantha) se comportavam
diante de falsa concorrência das aves de madeira. Projeto
Os caboclinhos-do-iberá se mostraram mais Avaliação, recuperação e conservação da fauna ameaçada de extin-
ção do Centro de Endemismo Pernambuco (CEP) (nº 17/23548-2);
agressivos quando reconheciam seu próprio canto Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Luís Fábio
e encontravam um falso macho de madeira de sua Silveira (USP); Investimento R$ 3.421.045,40.
espécie – um competidor em potencial pela corte
Artigos científicos
da fêmea – e ignoraram em grande medida a répli-
TURBEK, S. et al. Rapid speciation via the evolution of pre-mating
ca de pau dos caboclinhos-de-barriga-vermelha, isolation in the Iberá Seedeater. Science. 26 mar. 2021.
provavelmente vista como um não concorrente. Em JARVIS, E. D. At the beginning of speciation. Science. 26 mar. 2021.

PESQUISA FAPESP 303 | 63


MUDANÇAS CLIMÁTICAS

RISCO DE
MAIS
DESASTRES
NATURAIS
Aquecimento global deve favorecer aumento de inundações bruscas e deslizamentos de
terra causados por chuvas extremas no Sul, Sudeste e leste do Nordeste Marcos Pivetta

O
aumento gradual do zado no interior paulista, e do Met Office ço de temporais decorrentes do aque-
aquecimento global Hadley Centre for Climate Science and cimento global ao longo deste século,
ao longo deste sécu- Services, do Reino Unido. segundo o estudo. Mas, por essas áreas
lo deve intensificar O aumento de 10% a 15% no risco de terem baixa densidade demográfica, os
progressivamente a haver desastres, como o previsto para a deslizamentos de terra e enchentes ra-
incidência de chuvas Grande São Paulo, pode parecer pouco, ramente afetam a vida dos moradores
extremas e elevar o risco de deslizamen- mas sua relação com os impactos das locais e tendem a não provocar desastres
tos de terras e inundações bruscas nas calamidades não é linear. “Vimos que o com vítimas humanas ou patrimoniais.
regiões Sul e Sudeste e na faixa leste do potencial de ocorrer mais inundações e A vulnerabilidade da Região Metro-
Nordeste, onde ficam os maiores cen- deslizamentos de terra aumenta sobre- politana de São Paulo não é um caso ex-
tros urbanos e se concentram mais de tudo nas regiões onde hoje esse risco tremo e isolado. Em quase todas as áreas
dois terços da população do Brasil. Se a já é alto”, comenta um dos autores do em torno das capitais do país há elevação
temperatura média do planeta subir 4 artigo, o climatologista José Antonio da probabilidade de haver deslizamentos
graus Celsius (°C) em relação ao valor Marengo, coordenador de pesquisa e de terra e inundações, de acordo com
apresentado no final do século XIX, logo desenvolvimento do Cemaden. “Se a as simulações. Em Curitiba, se a tem-
após a Revolução Industrial, a probabi- temperatura global subir 1,5 ou 2 ºC, o peratura subir 4º C, o risco de ocorrer
lidade de, por exemplo, ocorrer enxur- custo de se adaptar a essa situação será deslizamentos sobe cerca de 10%. Em
radas na Região Metropolitana de São muito elevado. Caso o aumento seja de Porto Alegre e no Vale do Itajaí, em San-
Paulo, que atualmente já é considerável, 4 ºC, o processo de adaptação em si fi- ta Catarina, duas áreas que atualmente
cresce quase 15%. A elevação do risco de ca quase inviável.” Marengo estuda os apresentam os maiores níveis de risco
deslizamentos de terra na maior mega- impactos das mudanças climáticas no para deslizamentos de terra no país, o
lópole brasileira é um pouco menor, mas Brasil por meio de projetos financiados aumento da temperatura planetária faz o
ainda assim significativa, da ordem de pela FAPESP e pelo Conselho Nacional risco desse tipo de desastre crescer entre
10%. Essas são algumas das conclusões de Desenvolvimento Científico e Tecno- 2% e 7%. A situação é semelhante quan-
de um artigo de modelagem climática lógico (CNPq). do o foco são as inundações. Como São
publicado em 3 de março no periódico Na porção ocidental da região Norte Paulo, Florianópolis é outra capital em
Frontiers in Climate por pesquisadores e em setores do Centro-Oeste, desliza- que o estudo aponta um aumento acima
do Centro Nacional de Monitoramento mentos e inundações também tendem a de 10% no risco de incidência de inunda-
de Desastres Naturais (Cemaden), locali- se tornar mais frequentes com o avan- ções por causa do aquecimento global.

64 | MAIO DE 2021
Estudo prevê que o risco
de enchentes na Região
Metropolitana de
São Paulo pode aumentar
até 15% em razão
do aquecimento global

Das grandes capitais, Recife parece ser razão do aumento do chamado efeito Desde a Revolução Industrial, em ra-
uma exceção. As simulações não aponta- estufa, vai alcançar um certo nível, os zão do acúmulo dos chamados gases de
ram risco aumentado de ocorrer inunda- pesquisadores direcionaram o foco de efeito estufa, como o dióxido de carbono
ções e deslizamentos. No caso da capital seu estudo para outra questão: qual será e o metano, o planeta se tornou, em mé-
pernambucana e de outros pontos do o impacto no risco de haver inundações dia, 1,1 °C mais quente. As previsões mais
Nordeste, não se trata apenas de a região e deslizamentos de terra quando, inde- recentes feitas no âmbito de trabalhos
apresentar uma menor propensão natu- pendentemente do ano, o aquecimento que vão embasar o próximo relatório do
ral a ser alvo de desastres decorrentes de global atingir três cenários possíveis, au- Painel Intergovernamental sobre Mu-
chuvas extremas. Há também uma falta mentos de 1,5°, 2° e 4 ºC na temperatura danças Climáticas (IPCC), que deve ser
de consenso dos modelos climáticos so- média planetária em relação ao valor lançado no segundo semestre de 2021,
bre como o aquecimento global vai afe- registrado em 1880, de 13,7 °C? apontam que o marco de 1,5 °C deve ser
tar o regime de chuvas na região e, por Para responder a essa pergunta, a atingido em no máximo duas décadas.
conseguinte, impactar a probabilidade de equipe do Cemaden e do Hadley Centre “Mesmo que agora reduzíssemos a ze-
haver enchentes e deslizamentos. “Nosso usou os parâmetros atuais de ocupação e ro todas as emissões de gases de efeito,
grau de confiança para fazer previsões demografia do território nacional e cal- provavelmente iríamos ultrapassar esse
em boa parte do Nordeste é menor do culou o risco atual de haver enchentes e limite nos próximos anos”, diz Marengo.
que no Sul e Sudeste”, diz o pesquisador deslizamentos de terra em todo o país. “Precisamos adaptar nossas cidades a
Pedro Camarinha, especialista em mu- Em seguida, sem alterar o tamanho da essa nova realidade.” n
danças climáticas e desastres do Cema- população brasileira e sua distribuição
FABIO VIEIRA / FOTORUA / NURPHOTO VIA GETTY IMAGES

den, outro autor do estudo. “Para essas geográfica, inseriu os três cenários de Projeto
duas regiões, geralmente cinco dos seis aquecimento global em seis modelos cli- INCT 2014: INCT para Mudanças Climáticas (INCT-MC) (nº
modelos climáticos que usamos no es- máticos globais, desenvolvidos por dife- 14/50848-9); Modalidade Projeto Temático; Programa
tudo apontam resultados semelhantes.” rentes centros de estudo, entre os quais o Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais; Acordo
CNPq-INCTs; Pesquisador responsável José Antonio Ma-
As projeções do artigo se baseiam em Hadley Centre. No fim do processo, cada rengo (Cemaden); Investimento R$ 4.212.831,77.
uma abordagem ligeiramente diferente modelo forneceu para diferentes pontos
da que usualmente tem sido adotada em do país e, para os três distintos graus de Artigo científico
trabalhos similares. Em vez de se preocu- aumento de temperatura, novos índices MARENGO, J. A. et al. Extreme rainfall and hydro-geo-
-meteorological disaster risk in 1.5, 2.0, and 4.0 ºC global
par em determinar em que década deste referentes ao risco de haver enchentes e warming scenarios: An analysis for Brazil. Frontiers in
século a temperatura média global, em grandes deslizamentos de terra. Climate. 3 mar. 2021.

PESQUISA FAPESP 303 | 65


AMBIENTE

CONTRA
O AQUECIMENTO
GLOBAL
Academias de ciências dos Estados Unidos defendem
criação de programa de pesquisas para estudar viabilidade
de medidas com potencial para resfriar a Terra

Imagem de satélite
da erupção do vulcão
La Sofrière em abril
deste ano na ilha
caribenha de São Vicente
e Granadinas: cinzas
atuam como aerossóis
e reduzem a temperatura
A
chamada geoengenharia solar presidente do comitê que escreveu o relatório. “À
é uma expressão guarda-chuva medida que continuamos a progredir lentamente
usada para designar intervenções no enfrentamento das mudanças climáticas, pre-
climáticas polêmicas, com efeitos cisamos urgentemente entender toda a gama de
intencionais e colaterais ainda opções disponíveis para aliviar seus danos. Com
não totalmente compreendidos base em evidências das ciências sociais, ciências
pela ciência, mas que poderiam ser promovidas naturais e tecnologia, esse programa de pesquisa
deliberadamente pelo homem para tentar res- pode indicar que a geoengenharia solar não deve
friar o planeta. Esse conceito abarca diferentes mais ser cogitada ou, ao contrário, concluir que
técnicas que, em tese, poderiam atuar como for- ela justifica um esforço adicional.” O relatório não
ças contrárias ao aquecimento global. No final de aborda outra vertente da geoengenharia climática,
março, as academias nacionais de ciência, medicina que estuda a retirada de gases de efeito estufa da
e engenharia dos Estados Unidos divulgaram um atmosfera, sobretudo o dióxido de carbono, e seu
relatório conjunto em que se posicionam a favor armazenamento em diferentes pontos do planeta
da criação de um programa nacional de pesquisa (no solo, nos oceanos ou nas plantas).
em geoengenharia solar para estudar os impactos Os dois primeiros tipos de intervenção de que
de três tipos de intervenções: injetar aerossóis trata o documento são inspirados em fenômenos
(partículas sólidas ou líquidas) na estratosfera, observados pelo homem na natureza. As cinzas
acima de 11 quilômetros (km) de altitude; estimular de grandes erupções vulcânicas, como a do mon-
a formação de nuvens marinhas, até 3 km acima te Pinatubo, nas Filipinas, em 1991, atuam como
dos oceanos; e tornar mais finas as nuvens do tipo aerossóis na alta atmosfera e refletem a luz solar.
cirrus, situadas entre 6 e 13 km de altitude. Dessa forma, uma parte da radiação não chega à
A injeção de aerossóis na estratosfera e o estí- Terra, que fica mais fria temporariamente. A ati-
mulo à formação de nuvens sobre o mar poderiam vidade do Pinatubo foi capaz de tornar o clima
aumentar a capacidade da Terra de refletir os raios global 0,5 ºC menos quente por um ano. O se-
solares, modificação que poderia causar um res- gundo procedimento, o de estimular a formação
friamento temporário, em nível local ou até global. de nuvens marinhas de baixa altitude, também
A terceira modalidade de intervenção atuaria por se espelha em um fenômeno real. As partículas
um mecanismo diferente. Formadas por cristais de poluição atmosférica produzidas por grandes
de gelo, as nuvens do tipo cirrus funcionam como embarcações que cruzam os oceanos funcionam
um cobertor sobre a Terra. Dificultam o escape de como núcleos de condensação de nuvens. Ao longo
calor de sua superfície e regulam a temperatura. do trajeto dos navios, formam-se nuvens brancas
Torná-las menos densas faria com que mais ra- que tornam a atmosfera imediatamente acima da
diação térmica escapasse do planeta, tornando-o superfície dos mares mais alva em vez de azulada.
mais frio. Segundo o documento, essas linhas de Esse efeito aumenta a capacidade local de refletir
pesquisa deveriam receber investimentos entre a luz solar e esfria o planeta.
US$ 100 e 200 milhões nos próximos cinco anos. “Nosso nível de conhecimento científico sobre
Uma política a favor de mais pesquisa em geoen- as três técnicas de geoengenharia solar é bas-
genharia solar não significa apoio à implementação tante limitado e distinto”, explica, em entrevista
de procedimentos para mudar intencionalmente a Pesquisa FAPESP, a física Sarah Doherty, do
o clima, enfatizam os autores do texto. Tampou- Departamento de Ciências Atmosféricas da Uni-
co deve servir como pretexto para abandonar ou versidade de Washington, nos Estados Unidos.
afrouxar metas de redução da emissão de gases de “Conhecemos razoavelmente bem os efeitos da
LAUREN DAUPHIN / U.S. GEOLOGICAL SURVEY / NASA EOSDIS LANCE / GIBS/WORLDVIEW

efeito estufa, cujo acúmulo gradativo na atmosfera injeção de aerossóis e não tão bem o da criação
é a causa primária do aquecimento global. Desde de nuvens marinhas, mas entendemos muito
o final do século XIX, a temperatura média global pouco sobre como tornar as nuvens do tipo cir-
subiu 1,1 grau Celsius (°C), o que está alterando o rus mais finas.” Doherty comanda uma iniciativa
clima em todo o planeta. Se as emissões de gases internacional, The Marine Cloud Brightening
de efeito estufa não caírem rapidamente, a Terra Project, que pretende realizar um experimen-
poderá aquecer até 4 ºC ao longo deste século, to com o intuito de aumentar a quantidade de
com possíveis consequências catastróficas para aerossóis sobre um trecho de oceano e estimu-
a humanidade (ver reportagem na página 64), de lar a formação de nuvens marinhas. Em vez da
acordo com projeções do Painel Intergovernamen- poluição dos navios, os aerossóis a serem usa-
tal sobre Mudanças Climáticas (IPCC). dos serão partículas de sal marinho. Ainda não
“O programa de pesquisa deve se concentrar em há data para o experimento ser feito. “Estamos
ajudar a sociedade a tomar decisões mais cons- trabalhando na fase de modelagem climática”,
cientes”, diz, em comunicado para a imprensa, diz. Alguns experimentos similares já foram
o biólogo ambiental Chris Field, diretor do Ins- conduzidos na Austrália e na Califórnia, com
tituto Stanford Woods para o Meio Ambiente e resultados inconclusivos.

PESQUISA FAPESP 303 | 67


Além do risco de provocar uma série de efeitos
Três propostas

FOTOS 1 NASA’S GODDARD SPACE FLIGHT CENTER 2 PICCOLONAMEK / WIKIMEDIA COMMONS INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO
colaterais climáticos indesejados, eventuais inter-
venções humanas no funcionamento da atmos-
fera hoje não são disciplinadas por organismos de geoengenharia
internacionais e multilaterais. “Não há nenhuma
governança global instituída nessa área. Nada im- solar
pede que o governo de um país ou um bilionário
resolva financiar uma iniciativa sem nenhuma Ações teriam objetivo de alterar
base científica. Se uma intervenção der errado, parâmetros da atmosfera
quem arca com as consequências?”, lembra Pau- para tentar reduzir a temperatura
lo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade
de São Paulo (IF-USP), especialista no estudo de Aumentar na
aerossóis e membro da coordenação do Programa estratosfera
a quantidade de
FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas
aerossóis, pequenas
Globais (PFPMCG). “Precisamos de estudos sérios partículas que podem
e abrangentes, que envolvam pesquisadores de todo refletir a luz solar
o globo, não apenas dos países ricos.” O relatório
das academias norte-americanas estima que 90%
dos papers sobre geoengenharia solar foram pro-
duzidos nos Estados Unidos e na Europa. Em abril
de 2018, Artaxo e mais 11 pesquisadores de países
em desenvolvimento publicaram um comentário
na revista Nature em que alertavam para os riscos
de que as nações mais pobres poderiam ser as mais
afetadas pelas mudanças climáticas e por eventuais
intervenções no âmbito da geoengenharia solar.
Os estudos de modelagem climática que simulam
a injeção de aerossóis na alta atmosfera indicam
que esse tipo de intervenção talvez possa gerar Tornar mais finas
as nuvens de alta
temporariamente algum nível de resfriamento glo-
altitude do tipo cirrus
bal, mas há grande incerteza sobre eventuais efeitos para deixar escapar
colaterais. Um dos temores é que uma quantida- mais calor da Terra
de extra de aerossóis possa danificar a camada de
ozônio, que se encontra na estratosfera e protege
a vida terrestre da radiação ultravioleta vinda do
Sol. “A geoengenharia solar é muito controversa
e pode ser usada como desculpa para manter em
níveis altos as emissões de gases de efeito estufa”,
pondera o climatologista Carlos Nobre, do Instituto
de Estudos Avançados da USP. “Ela pode não só

Adicionar partículas na baixa


atmosfera para estimular
a formação de nuvens marinhas
mais brancas, que refletem
mais a luz solar

Nuvens marinhas
FONTE "REFLECTING SUNLIGHT: RECOMMENDATIONS FOR SOLAR
GEOENGINEERING RESEARCH AND RESEARCH GOVERNANCE", 2021

68 | MAIO DE 2021
Nuvens do tipo cirrus
Aerossol estratosférico
16-25 km

modificar o clima da estratosfera, mas alterar as apenas um minuto de voo”, compara Keutsch, em
circulações atmosféricas em escala global. Mesmo entrevista a Pesquisa FAPESP. O voo inaugural
que reduzam um pouquinho a radiação solar que do SCoPEx estava programado para ocorrer em
chega à superfície, essas mudanças de circulação meados deste ano no norte da Suécia, mas foi can-
podem, por exemplo, afetar o regime de chuvas, celado devido a protestos de grupos ambientais e
de forma semipermanente.” de indígenas do país nórdico. Nesse primeiro voo,
Nuvens cirrus

Algumas instituições de pesquisa e universi- não haveria liberação de partículas. Seria feito
6-13 km

dades dos Estados Unidos e da Europa criaram apenas um teste para ver se os instrumentos es-
recentemente iniciativas para pesquisar a geoen- tariam funcionando a contento. “O episódio nos
genharia solar. Esses esforços envolvem uma série ensina que temos de informar melhor as pessoas
de estudos com características distintas. Há tra- sobre os objetivos da nossa pesquisa”, comenta
balhos que averiguam fenômenos da natureza que o pesquisador alemão, que terá de encontrar um
alteram o clima. Existem estudos de modelagem novo lugar para realizar o experimento.
que tentam reproduzir virtualmente intervenções Para Keutsch, o uso da geoengenharia climática
sobre o clima. E há os experimentos de campo, só pode ser cogitado se houver mais pesquisas que
mais controversos por definição. Afinal, são alte- mostrem sua eficácia e segurança e, ainda assim, de
rações de pequena escala, de caráter temporário, forma complementar a outras ações. Ele gosta de
em uma região localizada do planeta para estudar usar uma analogia médica para destacar os limites e
possíveis efeitos locais e globais dessa intervenção. os perigos de a humanidade depender apenas des-
O experimento de campo que mais desperta in- se tipo de intervenção para combater as mudanças
teresse é o Stratospheric Controlled Perturbation climáticas. Diz que há o risco moral de o homem
Experiment (SCoPEx), coordenado pelo físico- relaxar de seus tênues esforços para mitigar os
-químico alemão Frank Keutsch, da Universidade efeitos das mudanças climáticas e apostar apenas
Harvard, dos Estados Unidos. O projeto foi con- na ação temporária de medidas paliativas. Como
Nuvens marinhas

cebido para ser o primeiro ensaio com injeção de analgésicos que tiram a dor, mas não combatem
aerossóis na estratosfera, camada da atmosfera sua causa, essas ações amenizam o problema sem,
0-3 km

entre 7 e 50 km de altitude. Com a ajuda de um no entanto, atacar a sua origem. “O mundo precisa
balão de alta altitude, um equipamento de inje- de uma cirurgia invasiva, de uma drástica redução
ção de aerossóis vai ser levado a uma altura de nas emissões de gases de efeito estufa, não somen-
20 km e soltar 2 quilos de partículas de carbona- te de morfina”, compara Keutsch. No melhor dos
to de cálcio ao longo de 1 km de extensão. “Essa cenários, as intervenções de geoengenharia climá-
quantidade de partículas é ínfima. Equivale à tica podem ser úteis para diminuir a dor enquanto
poluição expelida por um jato comercial durante a operação é feita. n Marcos Pivetta

PESQUISA FAPESP 303 | 69


AVIAÇÃO

TURBULÊNCIA
NO AR
Para superar um dos momentos
mais difíceis de sua história, Embraer
investe em novos projetos de inovação
e utiliza seu portfólio de aeronaves

Yuri Vasconcelos
O
ano de 2020 não vai deixar saudade para
a Embraer. A fabricante de aviões de São
José dos Campos (SP), pode-se dizer,
enfrentou uma tempestade perfeita. De
um lado, a pandemia do novo corona-
vírus, que atingiu duramente a aviação
comercial global, fez com que as vendas
de novos aviões despencassem. De ou-
tro, a decisão da Boeing, em abril do ano
passado, de romper o acordo firmado em 2018 pelo
qual planejava adquirir a divisão de jatos comerciais
da Embraer, responsável pela bem-sucedida família
de E-Jets. A companhia receberia US$ 4,2 bilhões
pelo negócio e ficaria com 20% das ações da joint
venture a ser criada – os 80% restantes seriam da
gigante norte-americana (ver Pesquisa FAPESP nos
268 e 291). O cancelamento do negócio foi parar em
uma corte de arbitragem e segue inconcluso, com
as ex-parceiras responsabilizando uma à outra pelo
desfecho negativo do empreendimento.
Os reflexos de um ano tão turbulento torna-
ram-se visíveis no balanço de 2020. As entregas
de aeronaves da empresa sofreram uma queda
de 34% em relação ao ano anterior (130 unidades
ante 198) e o backlog, a carteira de encomendas de
novos aviões, encolheu 15%, atingindo US$ 14,4 bi-
lhões. A receita total, que computa os resultados
das divisões de aviões comerciais, jatos executivos,
projetos de defesa e serviços, caiu 10%, para R$
19,6 bilhões, impactada principalmente pelo bai-
xo desempenho da aviação comercial, enquanto
o prejuízo líquido quase triplicou, saltando de R$
1,32 bilhão para R$ 3,62 bilhões. “A pandemia afe-
tou fortemente os nossos negócios”, reconheceu
o presidente da Embraer, Francisco Gomes Neto,
durante a apresentação dos números de 2020. “A
crise ainda não acabou, e este ano será desafiador.
O cenário continua incerto e volátil.”
A fim de retomar a rota do crescimento, a Em-
braer elaborou um plano de negócios, batizado de
2021-2025. Um de seus pilares são os investimentos
em inovação. “Apesar desses tempos difíceis, con-
tinuamos investindo em inovação porque sabemos
que o desenvolvimento tecnológico é a base para
E-Jets E2:
família de jatos
competir no mercado global”, declarou a Pesquisa
comerciais FAPESP o engenheiro Luís Carlos Affonso, vice-
bem-sucedida -presidente de Engenharia, Tecnologia e Estratégia
Corporativa da Embraer. “Por isso, criamos eixos
de inovação, áreas nas quais queremos inovar e que
são fundamentais para garantir competitividade e
longevidade. Estamos falando de sustentabilidade,
propulsão elétrica, voo autônomo, eficiência aero-
dinâmica e inteligência artificial.”
Segundo o executivo, foram concebidos planos
para cada uma dessas áreas a fim de que a em-
presa continue projetando e construindo aviões
competitivos. “Buscamos investir em projetos de
inovação aberta, firmando parcerias com institui-
EMBRAER

ções de ciência e tecnologia e outras empresas e

PESQUISA FAPESP 303 | 71


buscando apoio de agências de fomento”, diz Af- desenvolvimento de uma aeronave leve de trans-
fonso. As pesquisas são coordenadas pela equipe porte militar. Dimensionado para pistas curtas,
de engenharia da companhia, um de seus maio- estreitas e não pavimentadas, como as existentes
res ativos. “A engenharia é uma joia da Embraer. na região amazônica, o avião vem sendo chamado
Temos cerca de 3,5 mil engenheiros na área de de Stout, sigla em inglês para aeronave utilitária
desenvolvimento, que formam um corpo único de transporte com decolagem curta. Com asa al-
dedicado a todas as unidades de negócio”, explica. ta, capacidade para 30 soldados e porta traseira

U
para entrada de cargas grandes, deverá substituir
m dos trabalhos mais recentes, que os antigos aviões Bandeirante e Brasília.
contou com a participação de pes- Uma das novidades do Stout, ainda em fase
quisadores da Escola de Engenha- de conceito, é o possível emprego da propulsão
ria de São Carlos (Eesc) da USP, em híbrida, com motores turboelétricos, movidos a
São Carlos, revelou que modifica- querosene de aviação e eletricidade. “O estudo
ções simples na geometria das asas [dessa aeronave] buscará também explorar al-
podem resultar em uma diminuição ternativas na aplicação de novas tecnologias que
em cerca de 20% do ruído gerado trarão respostas ainda mais eficientes às demandas
pelos aviões. Essa descoberta, fruto extremas da FAB, como diferentes arquiteturas
de um projeto iniciado há mais de 10 anos, rece- de sistemas, soluções inovadoras de plataforma,
beu financiamento de R$ 3,7 milhões da FAPESP propulsão híbrida elétrica, entre outras”, infor-
por meio do Programa de Apoio à Pesquisa em mou a empresa em comunicado.
Parceria para Inovação Tecnológica (Pite). “A existência desse estudo é uma boa notícia.
A área de engenharia também é responsável Trata-se de um projeto de fronteira, o futuro da
pelos estudos que podem dar origem a duas novas aviação”, afirma Ferreira. Assim como o turboé-
aeronaves. Uma delas, um turboélice comercial lice para voos regionais, é um estudo em estágio
projetado para voos regionais, poderá ter versões inicial. O avião levará pelo menos quatro anos
para 70 e 90 lugares e deverá brigar por um mer- para ficar pronto, após a aprovação do conselho
cado hoje dominado pela franco-italiana ATR. A de administração da empresa.
proposta é desenvolver um avião avançado com O novo plano estratégico da Embraer prevê que
25% mais assentos do que a concorrência, 20% a companhia só voltará a crescer no ano que vem.
mais rápido e com custo operacional por passa- “O ano de 2020 foi de ‘sobrevivência’, de apertar
geiro 15% menor. o cinto e tomar medidas difíceis; 2021 ainda será
“Os turboélices estão voltando à moda porque um ano de estabilização. Devemos crescer a partir
são mais econômicos e produzem menos CO2 de 2022”, destaca Affonso. A expectativa da em-
[dióxido de carbono]”, conta Affonso. “Os mode- presa é retomar o nível de receita pré-pandemia
los atuais, contudo, são apertados e sem conforto. em 2023 e superar esse patamar em 2024 ou 2025.
Nossa proposta conjuga as vantagens dos turboé- Para que esse cenário se concretize, a Embraer
lices [sustentabilidade e economia de combustí- aposta em seu portfólio, composto por modernas
Linha de montagem
vel] com mais espaço, menos ruído e vibração.” aeronaves. Na aviação comercial, que sempre foi da Airbus: companhia
“Há definitivamente um mercado a ser ex- seu carro-chefe, o objetivo é voltar a vender. Ne- europeia é a principal
plorado, já que o turboélice regional Dash 8 [da gociações nesse sentido são travadas com várias rival da Embraer
canadense De Havilland] está morrendo [sain- 1
do de linha] e o ATR é um projeto de mais de 30
anos. A Embraer deve ter uma chance com esse
projeto”, opina Richard Aboulafia, analista da
indústria aeronáutica e vice-presidente do Teal
Group, consultoria norte-americana especializada
nos setores aeroespacial e de defesa.
O economista e especialista aeronáutico Mar-
cos José Barbieri Ferreira, da Faculdade de Ciên-
cias Aplicadas da Universidade Estadual de Cam-
pinas (FCA-Unicamp), argumenta que, com o
turboélice, a Embraer poderá defender um seg-
mento que é só dela, o de aeronaves comerciais
de 70 a 100 assentos. “A empresa europeia Airbus
só fabrica aviões para mais de 100 passageiros.
Além disso, sobra competência técnica na Em-
braer para projetar e desenvolver turboélices.”
O outro estudo, resultado de um memorando de
entendimento assinado com a FAB, pode levar ao

72 | MAIO DE 2021
operadoras aéreas, entre elas a alemã Lufthansa.
Quando a pandemia abrandar, a retomada do se-
tor aéreo deverá favorecer aeronaves menores.
“A pandemia alterou a demanda por aviões. A
nova realidade pode contemplar mais voos diretos,
sem escala, entre cidades médias. É uma forma de
as pessoas passarem menos tempo em aeroportos.
Aviões com menor capacidade atendem melhor a
essa perspectiva”, explica o engenheiro aeronáutico
Jorge Eduardo Leal Medeiros, do Departamento
de Engenharia de Transporte da Escola Politécnica
da Universidade de São Paulo (Poli-USP).
Na área de defesa, a Embraer espera conseguir
novas encomendas para o cargueiro multimissão
C-390 Millenium, que recebeu em novembro um
pedido do governo da Hungria para duas aerona-
2
ves. O país será o segundo da Europa a operar o
avião, que também já foi vendido para Portugal não há mais a intenção de vender suas unidades Novo modelo turboélice
(cinco unidades) e para a Força Aérea Brasileira, a de negócios ou fazer parcerias que as envolvam. está no horizonte
da Embraer para
FAB (28 aviões), parceira no desenvolvimento do A menção do analista à Airbus se explica por- disputar um mercado
projeto. O modelo é a maior aeronave já construída que a companhia é a concorrente direta da Em- dominado pela
no país (ver Pesquisa FAPESP n° 225). braer pelo mercado de jatos de até 150 lugares,

A
franco-italiana ATR
um segmento liderado pela brasileira. Em 2017,
empresa conta também com o bom a Airbus adquiriu o programa de aviões comer-
desempenho de sua linha de jatos ciais CSeries da canadense Bombardier, então
executivos, que teve a melhor per- maior rival da Embraer. São dois modelos, re-
formance da história no ano passado batizados de A220. O menor deles (A220-100)
e foi responsável por 29% da receita comporta até 135 passageiros e disputa com os
líquida. A receita obtida com vendas maiores jatos da Embraer, o E190-E2 e o E195-E2,
foi similar à da aviação comercial que têm capacidade para até 114 e 146 assentos,
(30%), que antes da crise respondia respectivamente. Em 2020, a Airbus entregou
por cerca de 50% do faturamento. 38 unidades e recebeu 64 novas encomendas da
O portfólio da Embraer é composto por quatro família A220, composta também pelo A220-300,
modelos executivos, sendo que o Phenom 300 foi para 160 ocupantes.
pela nona vez consecutiva o jato leve mais vendido “A Embraer perdeu uma boa oportunidade com
no mundo em 2020, segundo a General Aviation o fim da parceria com a Boeing. A competição
Manufacturers Association (Gama). agora vai ficar mais complicada”, comenta Leal
Analistas do setor aeronáutico ouvidos por Pes- Medeiros. “A Airbus oferece uma gama maior de
quisa FAPESP concordam que a Embraer atraves- produtos, tem mais poder de negociação e vai
sa um dos momentos mais delicados de sua histó- ser uma rival mais dura do que a Bombardier foi
ria pós-privatização, ocorrida em 1994, mas sus- no passado.”
tentam que a companhia tem fôlego para superar O engenheiro aeronáutico Graham Warwick,
as dificuldades e retomar a rota do crescimento. editor-executivo da Aviation Week, uma das mais
“Os resultados da Embraer não foram nem me- conceituadas publicações do setor, também acha
lhores nem piores do que os de qualquer outro que o cenário para a Embraer é desafiador, mas
fabricante de aviões. Foi um ano ruim para todos”, contemporiza. “A Embraer não precisa ter uma
aponta Aboulafia. A Airbus, atual líder do setor, carteira de pedidos na escala da Airbus ou Boeing
registrou prejuízo equivalente a R$ 7,4 bilhões no para sobreviver. O que ela precisa é de novas en-
ano passado, e a Boeing, castigada por problemas comendas”, sustenta. “Uma vez que o mercado
de projeto no avião 737 MAX, sofreu perda ainda do transporte aéreo se recupere, novas encomen-
maior, de R$ 65 bilhões. das serão feitas e a Embraer receberá algumas, o
Para Aboulafia, além do desafio de se reorga- que será suficiente para seguir em frente ou até
nizar para continuar a ser uma companhia au- mesmo crescer.” n
tônoma, a Embraer precisa trabalhar de forma
FOTOS 1 AIRBUS 2 EMBRAER

agressiva para alinhar os custos de sua cadeia


de suprimentos com os de seus concorrentes, Projeto
especialmente a Airbus. “Mas a Embraer sem- Aeronave silenciosa: Uma investigação em aeronáutica (nº
06/52568-7); Modalidade Parceria para Inovação Tecnológica
pre esteve bem por conta própria e continuará (Pite); Convênio Embraer; Pesquisador responsável Júlio Romano
a estar.” Executivos da empresa asseguram que Meneghini (USP); Investimento R$ 3.740.785,57.

PESQUISA FAPESP 303 | 73


ENTREVISTA IVAIR GONTIJO

NO FUSO
DE MARTE
Engenheiro é um dos responsáveis por monitorar
o jipe-robô Perseverance, que está em busca de
vestígios de vida no planeta mais próximo da Terra

Yuri Vasconcelos

H
á pouco mais de dois meses, pela primeira vez a humanidade
pôde ouvir sons do vento da superfície de Marte, o vizinho mais
próximo da Terra no Sistema Solar. Os áudios foram captados
dentro da cratera Jezero pelo rover Perseverance (perseverança).
Esse veículo exploratório é o quinto e mais sofisticado jipe-robô construído
pela Nasa, a agência espacial norte-americana, e sua missão é encontrar
vestígios de vida microbiana que possa ter existido no planeta. Para isso,
conta com instrumentos de última geração, entre eles um aparelho que faz
imagens em alta resolução, captura áudios e identifica os elementos quími-
cos e os minerais presentes nas rochas e no solo marciano (ver infográfico).
O desenvolvimento do instrumento, batizado de SuperCam, teve par-
ticipação decisiva do físico e engenheiro brasileiro Ivair Gontijo. “Fui o
responsável por todas as interfaces entre o aparelho e o veículo, protago-
nista da missão Marte 2020. Fiz a ponte entre um grupo internacional de
pesquisadores encarregado de desenvolver o aparelho e meus colegas na
Nasa que projetaram e construíram o Perseverance”, diz Gontijo. Desde
que o rover pousou, ele trabalha no fuso marciano, monitorando as ima-
gens e os dados enviados pelo instrumento.
Essa é a segunda participação do cientista em missões da Nasa a Marte.
Apaixonado desde criança por astronomia, Gontijo nasceu há 60 anos em
Moema, cidade de 4 mil habitantes em Minas Gerais, e iniciou a vida pro-
fissional em uma fazenda de criação de gado e cavalos. Nesta entrevista
concedida por WhatsApp a Pesquisa FAPESP, ele conta como mudou o
foco de sua carreira para ser um dos líderes de uma das missões espaciais
mais avançadas em curso.

74 | MAIO DE 2021
Formado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Gontijo trabalha há quase 15 anos na Nasa

Como você entrou na Nasa? Jabuti em 2019] toda a minha história, Qual é o seu papel na missão do Per-
Comecei a trabalhar lá há quase 15 anos, desde que saí de Moema, uma remota severance?
em 2006. A história da minha contrata- cidade do interior de Minas Gerais, e A partir de 2015, coordenei um grupo
ção é tão longa, complicada e cheia de fui parar na Nasa. Também falo sobre internacional encarregado de construir
obstáculos que virou um livro, chamado os 25 séculos de conhecimento acumu- um dos instrumentos embarcados no veí-
A caminho de Marte [Editora Sextan- lado em astronomia em geral e sobre culo, a SuperCam ou Supercâmera, que
te, 2018]. Posso dizer que não foi nem Marte em particular e explico como se examina o solo e as rochas de Marte em
na primeira, nem na segunda, nem na projeta, constrói, lança e opera um veí- busca de compostos associados à exis-
terceira vez que eu bati à porta da Nasa culo em Marte. Trabalho no Laborató- tência de vida no planeta. Fui o responsá-
que deu certo. Depois de muitas tenta- rio de Propulsão a Jato [JPL], que fica vel pelas interfaces entre o aparelho e o
tivas, fui recrutado quando encontra- na região de Los Angeles, Califórnia. veículo. Os pesquisadores que desenvol-
ram meu currículo no website de uma Dedico-me integralmente ao projeto veram o instrumento pertencem a insti-
conferência da área de lasers e fibra da sonda Perseverance. Começamos a tuições de três países: sete instituições
óptica. O engenheiro que me contratou trabalhar quando é o período da tarde francesas, entre elas o Museu Nacional
disse que procurava alguém exatamente em Marte, pois é nesse horário que o de História Natural, em Paris, uma uni-
com minha experiência e background veículo manda os dados para nós. Mi- versidade espanhola, a de Valladolid, e o
em lasers e fabricação de dispositivos nha rotina, portanto, segue o fuso mar- Laboratório Nacional de Los Alamos, no
optoeletrônicos. ciano. Como o dia lá tem cerca de 40 Novo México, nos Estados Unidos. Fiz
BARBARA LOPES / AGÊNCIA O GLOBO

minutos a mais do que o nosso, Marte a ponte entre os cientistas desses três
Foi preciso muita persistência e pa- não tem um fuso horário fixo em rela- grupos e meus colegas na Nasa respon-
ciência. ção a nós. A cada três dias a diferen- sáveis por projetar e construir o veículo.
Sim. Quando temos planos ambiciosos, ça de horário marciano e o nosso aqui Garanti que o instrumento teria volume e
precisamos insistir para transformar os na Terra cresce duas horas. Em alguns massa adequados para caber no veículo,
muitos “nãos” que recebemos em “sim”. momentos, meu turno de trabalho se que seu software seria compatível com
Conto no livro [vencedor do Prêmio estende pela madrugada. o do rover, que a demanda de energia

PESQUISA FAPESP 303 | 75


elétrica seria suficiente para funcionar do para ser lançado entre julho e agosto bem. No dia 19 de abril, liberamos um
em Marte, e mais um milhão de outros de 2020 [o lançamento ocorreu em 30 helicóptero, Ingenuity [engenhosidade],
detalhes. Trabalhei por cinco anos até de julho]. Se falhássemos, teríamos que que foi enviado dobrado e embutido na
que finalizamos o instrumento, testa- aguardar 26 meses por uma nova janela sonda. Ele foi solto no chão, por baixo do
mos todas as suas funcionalidades e o em que os dois planetas estariam nas po- Perseverance. O rover se afastou dele e,
integramos com o veículo Perseverance. sições corretas de suas órbitas que per- em seguida, o Ingenuity ficou livre para
mitiriam o lançamento. fazer o primeiro voo em Marte.
Quais foram os principais desafios en-
frentados para construir a sonda e seus Como avalia os resultados do projeto De que outras missões a Marte você já
sistemas? até agora? participou?
Construir um veículo com as característi- Recebemos os resultados do pouso em Trabalhei na missão do rover Curiosity
cas do Perseverance é algo muito comple- Marte no começo da tarde, horário da [curiosidade], que foi lançado em 2011
xo e que envolve um grande número de Califórnia, de 18 de fevereiro. Ali pelas e chegou em Marte em agosto de 2012.
pessoas. Tudo é difícil e o que pode dar 15h fui dormir e descansei umas três ou Atuei na equipe encarregada do radar
errado acaba dando. Por isso, testamos quatro horas porque depois iria trabalhar que controlou o pouso do veículo. Fui o
uma quantidade enorme de coisas para à noite. Participei do grupo que recebeu engenheiro responsável pelos transmis-
garantir que tudo vai funcionar bem em os dados enviados pela sonda na primeira sores e receptores do radar. O legal dessa
Marte. Os testes são feitos em condições manhã lá em Marte. Começamos a rece- história é que o radar do Perseverance é
muito mais rigorosas do que aquelas que ber as primeiras imagens do paraquedas uma cópia do radar do Curiosity. De certa
a sonda e seus equipamentos vão encon- abrindo e do pouso em Marte, algo ab- forma, eu estou indiretamente envolvido
trar em solo marciano. Talvez a maior solutamente espetacular. Por isso, traba- nesse outro sistema do Perseverance.
dificuldade tenha sido trabalhar com um lhamos das 21h às 6h do dia seguinte. Foi
deadline rígido, um limite de tempo que uma jornada longa, mas muito emocio- Você é o único engenheiro brasileiro na
não podia ser removido. Brincamos que nante. Os resultados até agora são muito missão?
a mecânica celeste não espera por nin- bons. Ainda estamos na fase de testes pa- Não, tem também o engenheiro cario-
guém. O veículo tinha que estar monta- ra garantir que tudo esteja funcionando ca Daniel Nunes, um dos cientistas do

Como é o
Perseverance MASTCAM-Z
Além de fazer vídeos e fotos
SUPERCAM
O aparelho tem câmera de alta
Mais sofisticado rover panorâmicas, a câmera resolução, microfone para captar

construído pela Nasa, ele pode flagrar objetos sons do ambiente e sensores
do tamanho de uma mosca para identificar a composição
carrega sete instrumentos
a mais de 100 metros química de rochas e solo
estado da arte para
explorar a geologia,
a atmosfera e as condições MEDA
ambientais em Marte A estação de coleta de dados
ambientais registra velocidade
e direção do vento, temperatura,
umidade e quantidade
RIMFAX de partículas de areia no ar
Projetado para explorar
o subsolo, esse radar é capaz
de detectar a presença de gelo,
água doce e salmoura a até
10 metros de profundidade

MOXIE
Minilaboratório dedicado
a testar a produção
de oxigênio a partir do
dióxido de carbono da
atmosfera, o que é vital
para futuras missões
tripuladas ao planeta FONTE NASA
instrumento Rimfax, um radar que faz
medidas abaixo da superfície do solo
marciano, a até 10 metros de profun-
didade. Além do Daniel, vários outros
brasileiros trabalham no JPL. Temos
um grupo de e-mail dos lusófonos, for-
mado principalmente por brasileiros,
mas também com alguns portugueses
e americanos que falam nosso idioma.
Antes da pandemia, a gente se encon-
trava de vez em quando para falar em
português. Gontijo e o rover
Curiosity no chamado
Jardim de Marte,
O que falta para enviarmos naves tri-
FOTO ARQUIVO PESSOAL INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO

no Laboratório de
puladas a Marte? Propulsão a Jato
Os desafios são gigantescos e ainda falta da Nasa, na Califórnia
muita coisa. Por exemplo, a produção
de oxigênio para ser consumido duran-
te a viagem e em Marte é um problema isso vai acontecer e acho que ninguém Minas Gerais. Não tinha energia elétri-
para o qual ainda não temos solução. O consegue responder a essa pergunta no ca e a cidade mais próxima ficava a 100
mesmo vale para a comida. Uma viagem momento. Mas espero estar vivo para quilômetros. Depois disso é que fui para
tripulada para lá vai levar 26 meses, que ver os primeiros humanos pisando o so- Belo Horizonte, onde cursei a gradua-
é o intervalo de tempo em que as órbitas lo de Marte. ção em física na UFMG [Universidade
dos dois planetas estão alinhadas, permi- Federal de Minas Gerais] e o mestrado
tindo o lançamento da nave em direção Como é sua vida em Los Angeles? em óptica. Fiz doutorado em engenha-
a Marte e o voo de volta. Não sei quando Acordo sempre às 5h e tenho uma rotina ria elétrica na Universidade de Glasgow,
corrida, com muito trabalho. Antes da na Escócia. Desde criança fui fascinado
pandemia ia diariamente ao JPL, que por ciência e tecnologia, especialmente
fica a mais de 50 quilômetros da minha por astronomia. A primeira vez que vi
casa. Se tem uma coisa boa nessa pan- televisão foi em 1969, na transmissão
SHERLOC
demia é que não estou mais dirigindo da chegada do homem à Lua. Sempre
Câmeras,
106 quilômetros todos os dias. Em geral, pensei em trabalhar na área espacial.
espectrômetros
caminho todas as noites no bairro por Por isso tentei com tanta obstinação um
e laser procuram
uma hora e, nos finais de semana, gosto emprego na Nasa.
partículas orgânicas
de andar na praia. De vez em quando,
e minerais que
vou passear nas montanhas aqui perto O que você diria para jovens brasileiros
possam revelar traços
de Los Angeles, um lugar muito bonito. que sonham em trabalhar lá?
de vida microbiana
Se até eu consegui um emprego na Nasa,
passada
Onde trabalhou antes de ser contrata- creio que isso está ao alcance da maioria
do pela Nasa? das pessoas. Quando somos jovens, quase
A Nasa é o meu quinto emprego nos Es- tudo é possível. Devemos, claro, insistir e
tados Unidos. Além do Brasil, morei na ter sonhos grandes e planos de longo pra-
Escócia, onde fiz meu doutorado. Nos zo. É preciso também ser paciente, pois
Estados Unidos, inicialmente, fiz um essas oportunidades não acontecem de
pós-doutorado na Ucla, a Universidade uma hora para outra. Planos ambiciosos
da Califórnia em Los Angeles. Depois, não se concretizam em seis meses, um ou
trabalhei em empresas de telecomunica- cinco anos. Às vezes levam 10 ou mais.
ções por fibras ópticas e em uma compa- Meu livro tem um caderno de fotos colo-
nhia de biotecnologia, projetando lentes ridas com uma montagem interessante no
para cirurgia de catarata. Só depois fui final do álbum. A parte de cima da página
contratado pela Nasa. mostra uma foto minha na frente do jipe
na fazenda onde trabalhava em Minas e
PIXL Como foi sua formação acadêmica? a de baixo é uma imagem minha no JPL,
Um espectrômetro de Estudei somente em escolas públicas num lugar conhecido como Jardim de
raio X identifica elementos no Brasil. O segundo grau foi um curso Marte, ao lado do jipe-robô Curiosity.
químicos e uma câmera técnico em agropecuária e eu exerci essa Entre as duas fotos, passaram-se 30 anos.
faz imagens de rochas carreira por três anos. Administrei uma É uma prova de que se mantivermos o
e solo em busca de sinais de fazenda de criação de gado e cavalos foco e perseverarmos podemos atingir
vida microbiana ancestral e plantio de arroz e feijão no norte de nossos objetivos. n

PESQUISA FAPESP 303 | 77


U
ENGENHARIA DE ÓLEO E GÁS ma metodologia computacio-
nal híbrida que reúne mecâ-
nica de fluidos e inteligência
artificial desenvolvida pela
Escola de Engenharia de São Carlos
da Universidade de São Paulo (Eesc-
-USP) pode facilitar uma das tarefas
mais complexas na extração de petróleo

PRODUÇÃO
em águas profundas e ultraprofundas –
o gerenciamento do escoamento de óleo
e gás natural do poço até as plataformas

MAIS EFICAZ
marítimas. Uma mudança brusca no flu-
xo pode acarretar acidentes com graves
implicações ambientais e econômicas.

NO PRÉ-SAL
O óleo e o gás natural são escoados
conjuntamente com diferentes combi-
nações de gás carbônico (CO₂) e água,
comumente presentes nos reservató-
Nova técnica poderá facilitar rios, por longos dutos – denominados
risers – até as plataformas, onde são
o escoamento de óleo e gás natural dos separados. É o chamado escoamento
multifásico, quando um ou mais flui-
poços de petróleo para as plataformas dos e um ou mais gases são transpor-
tados simultaneamente. O trajeto, que
Domingos Zaparolli no pré-sal pode superar 7 mil metros, é

Navio-plataforma
Cidade de São Paulo,
operado pela Petrobras
em área do pré-sal
da bacia de Santos

78 | MAIO DE 2021
monitorado por meio de sensores con- escoamento de um poço de petróleo, opera no pré-sal, as válvulas demandam
trolados a partir da plataforma por siste- analisa Antonio Carlos Bannwart, da gastos anuais de mais de duas centenas
mas computacionais capazes de fazer a Faculdade de Engenharia Mecânica de milhão de dólares em manutenção,
correlação de dados e o reconhecimento da Universidade de Campinas (FEM- sem contar as perdas decorrentes da
de padrões, geralmente usando redes -Unicamp) e coordenador do Centro de necessária interrupção da produção. Os
neurais artificiais. Pesquisa em Engenharia e Produção de prejuízos, avalia o engenheiro, poderão
Quando são detectados desvios nos Energia e Inovação (CPE-Epic), finan- ser amenizados em parte com um di-
padrões estabelecidos, o sistema emite ciado pela FAPESP. O primeiro é que mensionamento mais preciso do padrão
alertas para que os operadores da plata- não existe apenas um tipo de petróleo, de escoamento dos fluidos. “Achamos
forma tomem as providencias necessárias mas vários, com diferentes densidades que será possível antecipar problemas,
a fim de evitar uma situação crítica, como e teores de enxofre. Além disso, cada saber quais válvulas estão sob um regime
o rompimento de um riser. “Quanto mais poço é composto por combinações dis- de operação mais desgastante e exigem
precisos forem os dados que alimentam o tintas de óleo, gás natural, CO₂ e água, uma intervenção”, afirma.
sistema, mais rapidamente serão detec- o que dificulta a tarefa de estabelecer a Outra aplicação da técnica desenvol-
tadas anomalias e tomadas as providên- composição do reservatório. vida na USP capaz de gerar ganhos eco-
cias”, diz o engenheiro Oscar Maurício Outro fator é que cada um desses flui- nômicos é a de subsidiar com informa-
Hernandez Rodriguez, do Departamento dos tem um comportamento termodi- ções mais precisas o desenvolvimento de
de Engenharia Mecânica (DEM) da Eesc- nâmico que varia conforme as condi- projetos de exploração de novos poços.
-USP e coordenador da pesquisa. ções de pressão e temperatura. Em um Hoje, usam-se como referência modelos-
Segundo Rodriguez, hoje as previ- mesmo poço em águas ultraprofundas, -padrão matemáticos da indústria que
sões e o monitoramento da produção a pressão pode variar de 500 a 600 bar – simulam o potencial de extração por pe-
são feitos por meio de códigos computa- 500 a 600 vezes superior à pressão at- ríodos superiores a 25 anos. A técnica hí-
cionais que usam modelos matemáticos mosférica a nível do mar – e a tempera- brida da Eesc faz simulações com dados
baseados nas leis da física que regem a tura supera 40 graus Celsius. Sob essas coletados em cada campo, permitindo
mecânica dos fluidos. “São expressões condições, o óleo pode se solidificar ou um dimensionamento mais adequado
matemáticas que não conseguem prever formar cristais, e o gás passa ao estado dos equipamentos e sua vida útil.
com precisão as diferentes composições supercrítico, no qual não há distinção O Laboratório de Escoamentos Mul-
de fluidos e gases em cada poço e o com- entre o líquido e o gasoso. “Esses fluidos tifásicos Industriais (Lemi) da Eesc já
portamento deles durante o escoamento serão transportados para as plataformas trabalha nos primeiros modelos híbri-
sob diferentes regimes de pressão e tem- enfrentando mudanças constantes de dos que serão aplicados em sistemas
peratura”, explica o engenheiro. pressão e temperatura. Tais alterações computacionais que monitoram o es-
A técnica desenvolvida na USP para levam os fluidos a apresentar configu- coamento de óleo e gás em plataformas
aprimorar os códigos computacionais rações geométricas distintas em cada da Petrobras no pré-sal. Ensaios com o
já existentes baseia-se no aprendizado etapa do fluxo”, explica Bannwart. sistema estão previstos para o segundo
de máquina, um ramo da inteligência semestre. Procurada por Pesquisa FA-

A
artificial. Para isso são utilizados dados pesar de serem incomuns PESP, a estatal não se manifestou sobre
coletados em campo, como informações acidentes com risers, a Agên- os testes e a nova tecnologia.
específicas sobre o escoamento de de- cia Nacional do Petróleo, Gás A Petrobras é a principal financiado-
terminado poço, e em laboratório. Essas Natural e Biocombustíveis ra da pesquisa, orçada em R$ 3,95 mi-
informações são complementadas por (ANP) já registrou pelo menos duas ocor- lhões. A estatal custeia R$ 3,77 milhões e
previsões de modelos físicos baseados rências desde o início da exploração do o restante vem da USP (R$ 62,4 mil), do
nas leis da mecânica dos fluidos. O re- pré-sal, em 2017 e em 2020. Segundo a Conselho Nacional de Desenvolvimento
sultado é um repositório capaz de trei- agência, não houve danos ambientais, Científico e Tecnológico (R$ 79,2 mil)
nar a rede neural artificial com dados uma vez que os poços foram fechados e da FAPESP, que financiou quatro bol-
específicos de cada poço. a tempo pelo sistema de segurança das sas de iniciação cientifica, totalizando
Rodriguez informa que a inteligência respectivas plataformas. O controle de R$ 37 mil. “Os bolsistas fizeram contri-
artificial sozinha precisaria de um banco fluxo da saída de produção em um poço buições importantes ao aplicar técnicas
de dados gigantesco com informações de de petróleo se dá pela operação de um inovadoras de coleta de informações
anos de produção para poder estabele- conjunto de válvulas que formam um para alimentar o banco de dados”, diz
cer um padrão reconhecível. “Soluções equipamento conhecido como árvore Rodriguez. Nos próximos meses, USP
ANDRÉ MOTTA DE SOUZA / AGÊNCIA PETROBRAS

híbridas que unem mecânica de fluidos de Natal, responsável por estabelecer a e Petrobras planejam entrar com um
e aprendizado de máquina serão a ten- vazão para os risers. São essas válvulas pedido compartilhado de patente in-
dência na indústria do petróleo nos pró- que devem ser fechadas imediatamente ternacional da nova técnica. n
ximos anos”, afirma. Artigo detalhando em caso de acidentes.
a pesquisa foi publicado no Journal of Segundo Rodriguez, as válvulas insta-
Fluids Engineering da Sociedade Ameri- ladas nos campos do pré-sal foram pro-
Artigo científico
cana de Engenheiros Mecânicos (Asme). jetadas para durar 15 anos, mas na prá-
QUINTINO, A. M. et al. Flow pattern transition in pipes
São vários os fatores que tornam com- tica a vida útil média é bem menor. De using data-driven and physics-informed machine learning.
plexa a tarefa de definir os padrões de acordo com uma grande companhia que Journal of Fluids Engineering. mar. 2021.

PESQUISA FAPESP 303 | 79


DEMOGRAFIA

L O N G E V
LATINO­‑AMERICANA

Ihillandit ut ariaspel
moluptatet am seque
conecatia sincita
dolore volenda estore
videm quis dolupta ea
quodici tiorum a

80 | MAIO DE 2021
Brasil e México apresentam menores médias
de vida, revela estudo realizado em nove países

Christina Queiroz

I D A D E
P
esquisa comparativa desenvolvida em 363 Universidade Drexel, na Pensilvânia, Estados Uni-
cidades de nove países latino-americanos dos, ao destacar que cidades latino-americanas com
constatou que a expectativa de vida nesses maior longevidade apresentam expectativas de vida
locais pode apresentar variações de até 14 semelhantes às observadas na população de países
anos. No Brasil, onde a diferença na longe- de alta renda, como Suécia ou Suíça.
vidade conforme o município pode chegar As maiores esperanças de vida foram identifi-
a 10 anos e a esperança de vida aumenta do Norte cadas no Panamá, Chile e Costa Rica, onde as mu-
para o Sul, o estudo identificou que as disparidades lheres vivem entre 81 e 82 anos e os homens entre
entre as localidades estão entre as mais altas do 75 e 77 anos, em média, conforme a cidade. Entre
continente, ao lado de países como Peru e México. a população feminina, a cidade com maior tempo
Em linhas gerais, a pesquisa mostrou que, nos médio de vida é David (82,7 anos), no Panamá. Ju-
países analisados, a expectativa de vida diminui liaca (74,4 anos), no Peru, registrou a menor. Entre
para os homens conforme o tamanho das cida- os homens, o município com a maior expectativa de
des aumenta, o que não ocorre entre as mulheres. vida é Lima, no Peru (77,4 anos). A cidade mexicana
Quanto maior o município, maior a incidência de de Acapulco de Juarez apresentou a menor (63,6
mortes decorrentes de causas violentas, com ho- anos). Estão no Brasil, México e Peru as cidades
mens jovens sendo as principais vítimas. Além das com menores expectativas médias de vida para
mortes violentas, também foram computadas aque- mulheres (77 a 78 anos). Além de Brasil e Méxi-
las decorrentes de condições maternas, neonatais co, estão em El Salvador as menores expectativas
e nutricionais, câncer, doenças cardiovasculares e de vida para homens (71 anos). De acordo com a
crônicas não transmissíveis e acidentes. pesquisa, a maior variação no tempo de vida das
A expectativa de vida média de mulheres resi- mulheres ocorre no Brasil, com 6,4 anos de dife-
dentes em cidades latino-americanas pode variar rença conforme a cidade, e no Peru (6,6 anos). No
em mais de oito anos, de 74,4 a 82,7 anos, e em qua- tempo de vida dos homens os anos relativos são 8,6,
se 14 anos entre os homens, de 63,5 a 77,4 anos. A no Brasil, e 10,4, no México. Em relação às cidades
proporção de mortes violentas também apresenta brasileiras, Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul,
flutuações significativas, partindo de 1% e podendo apresenta a maior expectativa de vida para homens
MAURO PIMENTEL / AFP VIA GETTY IMAGES

chegar a 20% do total, conforme o município ana- (75 anos) e mulheres (82 anos). Por outro lado, a
lisado. “Normalmente, estudos sobre longevidade paranaense Guarapuava tem a menor esperança de
populacional estão centrados na média dos países vida para mulheres (75 anos), enquanto Itabuna, na
ou em regiões específicas dentro de cada nação. No Bahia, a menor para homens (66,3 anos).
caso do Brasil, essa média era de 75,7 anos, em 2018, Artigo publicado na revista Nature com resul-
mas o valor esconde diferenças entre os municípios”, tados do estudo também comparou as causas de
afirma o coordenador do estudo, o epidemiologista morte nos municípios, mostrando algo já conhe-
Usama Bilal, da Escola de Saúde Pública Dornsife da cido: cidades com níveis mais altos de educação,

PESQUISA FAPESP 303 | 81


COM A PANDEMIA, Covid-19, que pode causar crescimento na incidên-
cia de doenças crônicas”, estima a pesquisadora.
A EXPECTATIVA DE VIDA Para Caiaffa, que também coordena na UFMG o
Grupo de Pesquisa em Epidemiologia/Observató-
DO BRASILEIRO FOI rio de Saúde Urbana de Belo Horizonte, os dados
identificados no estudo permitem compreender
REDUZIDA EM 1,94 ANO melhor a importância do desenvolvimento de po-
líticas públicas em áreas como educação e saúde.
“Identificamos, por exemplo, que em São José do
melhor acesso à água potável e moradias com in- Rio Preto, no interior de São Paulo, uma das cidades
fraestrutura e saneamento básico tendem a regis- com maior renda per capita do país, cerca de 20%
trar expectativas de vida mais altas e menos mortes das causas de óbito envolvem condições maternas
por doenças infecciosas. No caso brasileiro, a inci- e neonatais inadequadas, evidenciando a necessi-
dência de mortes varia de acordo com a região do dade de serem criadas políticas públicas de saúde
país. Segundo a pesquisa, o Brasil apresenta maior para parturientes e recém-nascidos, enquanto em
incidência de mortes por doenças transmissíveis Porto Seguro, na Bahia, 20,2% dos óbitos resultam
na região Norte, por violência no Nordeste, em de causas violentas, o que sugere que o estado de-
decorrência de doenças não infecciosas e cardio- veria investir em iniciativas para melhorar a se-
vasculares na região Sudeste e por câncer no Sul. gurança pública”, pontua, afirmando que, além de
“As causas de óbito seguem, de certo modo, os orientar o desenvolvimento de políticas públicas,
padrões de nível socioeconômico das regiões”, o estudo oferece subsídios para o planejamento de
explica Bilal, em entrevista realizada por e-mail. intervenções e alteração dessa realidade.
A médica Waleska Teixeira Caiaffa, da Faculda- Na pesquisa, desenvolvida entre 2017 e 2020, fo-
de de Medicina da Universidade Federal de Minas ram analisados dados de 2012 a 2016 referentes a
Gerais (UFMG) e coordenadora do projeto no Bra- cidades com mais de 100 mil habitantes do Brasil,
sil, diz que, em geral, maior frequência de doenças Argentina, Colômbia, Chile, El Salvador, Peru, Pana-
transmissíveis está associada a piores níveis so- má, México e Costa Rica, englobando 283,3 milhões
cioeconômicos, enquanto maiores incidências de de pessoas. Os nove países foram escolhidos consi-
infecções crônicas, como câncer, estão relacionadas derando a disponibilidade e qualidade dos dados.
a patamares mais altos de longevidade. De acordo No Brasil, foram utilizados dados de registro civil
com ela, historicamente, o Brasil tem registrado e do Sistema de Informação sobre Mortalidade do
redução de mortes por doenças infecciosas e au- Departamento de Informática do Sistema Único de
mento por problemas crônicos, resultante da am- Saúde (SIM-Datasus) para levantar informações
pliação do tempo de vida de sua população. “Esse sobre mortalidade, além de censos demográficos
panorama, no entanto, deverá sofrer o impacto da envolvendo contagens populacionais e indicado-

EXPECTATIVA DE VIDA
Mapas mostram longevidade de mulheres e homens em cidades latino-americanas

MULHERES HOMENS
Expectativa de Expectativa de
vida (em anos) vida (em anos)

74,4 – 76,8 63,6 – 69,3

76,8 – 78,1 69,3 – 71,1

78,1 – 79,3 71,1 – 72,8

79,3 – 80,7 72,8 – 74,6

80,7 – 82,7 74,6 – 77,4


3.000 km

FONTE BILAL, U. ET AL. LIFE EXPECTANCY AND MORTALITY IN 363 CITIES OF LATIN AMERICA. NATURE MEDICINE. V. 27, P. 465. MAR. 2021

82 | MAIO DE 2021
CAUSAS DA MORTALIDADE
As cores indicam a proporção de mortes em suas distintas causas;
as colunas representam as cidades, agrupadas por países

100% Condições maternas,


neonatais e nutricionais

80% Câncer
Mortalidade proporcional

60% Doenças cardiovasculares


e crônicas não
transmissíveis
40%

Acidentes
20%
não intencionais

Mortes violentas
0
Peru Argentina Chile Costa México Panamá Brasil Colômbia
Rica El Salvador
FONTE BILAL, U. ET AL. LIFE EXPECTANCY AND MORTALITY IN 363 CITIES OF LATIN AMERICA. NATURE MEDICINE. V. 27, P. 466. MAR. 2021

MORTES EM CIDADES BRASILEIRAS


Municípios com maiores e menores proporções por grupos de causas
Condições maternas, Doenças cardio-
neonatais vasculares e crônicas Acidentes Mortes
e nutricionais Câncer não transmissíveis não intencionais violentas

MAIOR S. José do Bento Garanhuns Parauapebas Porto Seguro


proporção Rio Preto (SP)
19,7% Gonçalves (RS)
25,8% (PE)
63,2% (PA)
14,1% (BA)
20,2%
MENOR Santa Cruz Parauapebas Parauapebas Araras Jaú
proporção do Sul (RS)
6,5% (PA)
9,3% (PA)
41,4% (SP)
3,5% (SP)
1,5%
FONTE BILAL, U. ET AL. LIFE EXPECTANCY AND MORTALITY IN 363 CITIES OF LATIN AMERICA. NATURE MEDICINE. V. 27. MAR. 2021

res socioeconômicos. “Também nos baseamos em da população, com quedas nos óbitos por doenças
imagens de satélite para analisar características das cardiovasculares e na mortalidade infantil, que
cidades”, informa Bilal, lembrando que um dos de- foi de 12,4 para cada mil nascidos vivos, em 2018,
safios foi padronizar as informações de nove países, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-
de forma a torná-las comparáveis. tística (IBGE), em comparação com a média anual
A pesquisa integra as atividades do projeto de 146,6 óbitos a cada mil nascidos vivos registrada
Saúde Urbana na América Latina (Salurbal), na década de 1940. “A atual pesquisa poderá servir
criado em 2017 com financiamento da Fundação de base para novas análises, também comparativas,
Wellcome Trust, sediada no Reino Unido. Seu sobre o impacto da Covid-19 nesse cenário”, afirma
objetivo é investigar como políticas e ambientes Aidar. Estudo desenvolvido pelo Departamento de
urbanos afetam a saúde de cidadãos da região. Saúde Global e População da Universidade Har-
Envolvendo cerca de 200 pesquisadores de países vard, nos Estados Unidos, com a participação de
como Colômbia, México, Estados Unidos, Peru, pesquisadores do Departamento de Demografia
Chile e Argentina, o esforço conta com a parti- da UFMG, identificou que a expectativa de vida
cipação de 35 cientistas brasileiros, vinculados do brasileiro, ao nascer, foi reduzida em 1,94 ano,
a instituições como UFMG, Fundação Oswaldo com a pandemia. Para chegar aos resultados, a pes-
Cruz (Fiocruz), unidades do Rio de Janeiro e da quisa, divulgada como preprint no início de abril,
Bahia, e Universidade de São Paulo (USP). baseou-se em modelos matemáticos e no número
INFOGRÁFICOS ALEXANDRE AFFONSO

Na avaliação da demógrafa Tirza Aidar, do Nú- total de mortes por Covid-19 no país, em 2020. n
cleo de Estudos da População Elza Berquó da Uni-
versidade Estadual de Campinas (Nepo-Unicamp),
a grande contribuição do estudo do Salurbal é pro- Artigos científicos
piciar um panorama comparativo entre municípios BILAL, U. et al. Life expectancy and mortality in 363 cities of Latin
America. Nature Medicine. v. 27, p. 463-70. mar. 2021.
de toda a América Latina. Ela lembra que o Brasil CASTRO. M. C. et al. Reduction in the 2020 life expectancy in Brazil after
caminhava para obter ganhos na expectativa de vida Covid-19. MedRxiv – The preprint server for health sciences.abr. 2021.

PESQUISA FAPESP 303 | 83


ICONOGRAFIA

OLHANDO PARA O

OUTRO
Registro de 1893,
intitulado Canibais
carregando
Ihillandit seu
ut ariaspel
mestre, de
moluptatet amautoria
seque
desconhecida,
conecatia sincita
localizado
dolore volendana Biblioteca
estore
do Congresso,
videm quis dolupta ea
em Washington
quodici tiorum a

84 | MAIO DE 2021
A partir de fotografias, pesquisadora
analisa fenômeno dos zoológicos humanos

Diego Viana

A
exibição de seres humanos como pode reconstruir muito do contexto e do subtexto
atração é reconhecida como um em que o registro visual surgiu.
episódio histórico que expressa o “Uma fotografia, por si só, não conta uma histó-
peso do racismo nos impérios colo- ria, mas ela dá ao pesquisador a oportunidade de
niais, ao longo do século XIX e até persegui-la”, afirma Koutsoukos. “É preciso olhar
meados do século XX. O estudo do o que está no retrato, notar a expressão e a pose do
fenômeno, que vem sendo tratado modelo, sua indumentária, os objetos e o arranjo
por meio do conceito de “zooló- de cena, mas também perceber o que não foi regis-
gicos humanos”, ganhou impulso trado, pensar no extracampo”, explica. À análise
em todo o mundo nas últimas duas formal de escolhas, como composição, cenário e
décadas e traz à tona um campo de pose, soma-se o estudo do contexto histórico, dos
práticas de dominação, classificação e estigmati- princípios científicos e das ideias sociais do perío-
zação do outro. Ao mesmo tempo, revela que os do. “Trabalhar com imagens é sempre um caminho
mecanismos dessas práticas mobilizavam o discur- multidisciplinar, englobando história, antropologia
so científico, o gosto pelo espetáculo e a aplicação e, claro, história da fotografia, já que essa mídia ser-
de novas tecnologias, em particular a fotografia. viu de instrumento para registrar diversos estudos
A partir de imagens produzidas no auge do perío- considerados científicos na época, para o registro
do dos zoos humanos, a historiadora da fotografia do mundo colonial e das exibições de pessoas, e pa-
Sandra Koutsoukos sistematiza no recém-lançado ra a produção de fotos-souvenir”, diz Koutsoukos.
Zoológicos humanos: Gente em exibição no tempo Para o livro, o ponto de partida foi um conjun-
do imperialismo (Unicamp) as vidas e as relações to de fotos encontrado na biblioteca pública de
de indivíduos exibidos como curiosidade e vistos Chicago, nos Estados Unidos, em 2007, durante
como objeto de estudo. Sua pesquisa, resultado de pesquisas sobre a Exposição Universal de 1893.
estágio pós-doutoral financiado pela FAPESP, trata “Foi quando notei os grupos colocados em exi-
não só dos fenômenos mais claramente inspirados bição, em particular os 67 daomeanos [oriundos
em jardins zoológicos, mas também dos “espetá- do atual Benin] instalados em uma vila ‘nativa’ e
culos de variedades” e dos pacientes de hospitais exibidos como o povo mais ‘primitivo’ da mostra”,
CORTESIA DA LIBRARY OF CONGRESS, WASHINGTON

apresentados à indiscrição do público. recorda. No acervo da Biblioteca do Congresso,


Na segunda metade do século XIX, a fotogra- em Washington, havia uma que retratava quatro
fia tornou-se uma ferramenta comum a vários daomeanos carregando uma rede e, sentado nela,
profissionais para registrar o próprio trabalho: o um organizador da exposição. “O homem branco
cientista que media pessoas e seus crânios para estava sendo carregado da mesma forma que vemos
classificá-las segundo aquilo que considerava raças; em nossa iconografia dos tempos da escravidão,
o empresário de espetáculos que buscava atrair o quando os escravizados carregavam os senhores.
público por meio de cartões-postais; o médico que O título dado foi: Canibais carregando seu mestre”.
catalogava casos incomuns. Com esse material de O zoológico humano e práticas semelhantes fre-
documentação ou publicidade, a pesquisa histórica quentemente tratadas sob a mesma designação

PESQUISA FAPESP 303 | 85


Imagem de grupo
de indígenas que
integrou a Exposição
Antropológica
Brasileira, no Rio
de Janeiro, em 1882

compõem uma extensa tradição de “fazer da al- O Brasil não passou ao largo do fenômeno. Em
teridade humana um troféu”, segundo o historia- 1882, a Exposição Antropológica Brasileira, no Rio
dor italiano Guido Abbattista, da Universidade de de Janeiro, contou com a exibição de um grupo de
Trieste, na Itália. Exploradores europeus que che- indígenas conhecidos à época como Botocudos.
garam às Américas a partir do fim do século XV ha- Os sete indivíduos foram levados do aldeamento
bitualmente levavam indivíduos e famílias inteiras Mutum, na região do rio Doce, à então capital do
do continente para exibi-los em seus países natais. Império e colocados à mostra, com grande afluên-
Um dos casos mais conhecidos é o de Sa- cia de público. Foram submetidos a testes antro-
rah Baartman (1789-1815). Integrante da etnia pométricos e, segundo relatos da época, emagre-
Khoikhoi, da África do Sul, Baartman foi toma- ceram a olhos vistos.
da como objeto tanto pelo mundo do espetáculo Diferentemente das exposições da Europa, no
quanto pela ciência: exibida em Londres e Paris, caso brasileiro não se tratou da representação do
suscitou o interesse de naturalistas na França e império colonial erguida em continentes distan-

O
foi submetida à dissecação após sua morte. tes. O Brasil, independente havia meros 60 anos,
expunha residentes de seu próprio território. “Aí
“zoológico humano” em seu sentido surgem as contradições da exibição de um ‘outro’
mais literal, ou seja, com a exibi- interno”, diz a cientista social e antropóloga Marina
ção de indivíduos, famílias e grupos Cavalcante Vieira, da Universidade do Estado do
maiores em espaços elaborados para Rio de Janeiro (Uerj). Na Europa, os espetáculos
simular seus ambientes originais de trabalhavam com a oposição entre “civilizados”
vida remete sobretudo ao alemão e “primitivos”. Já no Brasil, a Exposição Antro-
Carl Hagenbeck (1844-1913). For- pológica “buscou construir a imagem de um país
necedor de animais selvagens para moderno, opondo-se aos Botocudos, tidos como
jardins zoológicos e circos, Hagen- bravios, atávicos, avessos à civilização”.
beck é conhecido como o criador A antropóloga assinala que a mesma exposição Cartão-postal de 1899
desses espaços “modernos”, em que foi apresentada em Londres, no ano seguinte, com registra exibição
as exibições se dão em ambientes simulados, em impacto sobre a opinião pública brasileira, que se em feira de diversões
vez de jaulas. Em 1874, no entanto, Hagenbeck foi 2

um passo além: exibiu em Hamburgo populações


da Lapônia (Samis) e de Samoa.
Dois anos mais tarde, o naturalista Étienne Geof-
froy de Saint-Hilaire (1772-1844) organizou “espe-
táculos etnológicos” no Jardim da Aclimatação, em
Paris, com esquimós e nubianos levados do Sudão.
O sucesso de público incentivou a realização de
30 eventos desse tipo na cidade até 1912. Segundo
Abbattista, essa modalidade de exibição introduziu
novas formas estéticas e um aspecto de racismo
típico da época, mas “todos os elementos princi-
pais têm origem no início do período colonial: a
reificação dos seres humanos, seu uso para satis-
fazer a curiosidade, mas também como evidência
de discursos ideológicos, religiosos ou seculares,
e como troféus a serem exibidos em procissões”,
disse, em entrevista a Pesquisa FAPESP.

86 | MAIO DE 2021
incomodou com o fato uma arte nascente no final do século XIX, centra-
de o país ser represen- da nas tecnologias da imagem: o cinema. “Os zoos
tado por meio dos in- humanos eram espetáculos de massa consolidados.
dígenas. “A imagem é O que os pioneiros do cinema fazem é apontar suas
cindida. Se a exposição, câmeras para temas que já chamavam a atenção
quando acontece no do público”, observa.
Rio de Janeiro, cria um “Desde a origem, há uma simbiose com os zoo-
espelho a partir do qual lógicos humanos, que antecipam narrativas, rotei-
o Brasil passa a se ver ros e cenografias posteriormente explorados pelo
em oposição aos Boto- cinema. As turnês de exibição de trupes estrangei-
cudos, a exibição lon- ras permitiam ao público viajar sem sair de casa. A
drina apresenta um se- invenção do cinema radicaliza essa possibilidade”,
gundo espelho que per- afirma, acrescentando que a crise econômica após a
turba a autoimagem: ‘O Primeira Guerra Mundial, na Alemanha, reduziu o
que pensarão de nós lá público das exposições e levou empresários e trupes
fora?’”, observa. a migrarem para a produção cinematográfica, “in-
A justificativa apre- corporando os conhecimentos de seu antigo métier”.
sentada para exibir se- O fenômeno dos zoológicos humanos é asso-
res humanos como atra- ciado ao período anterior à Primeira Guerra, o
ção era, em geral, a difu- auge do colonialismo e época de vastas exposições
são do saber. As plateias universais. No entanto, ainda em 1958 uma capital
europeias eram convi- europeia testemunhou um episódio: Bruxelas, na
dadas a ver como aque- Bélgica. Com o protesto de estudantes congoleses,
les povos e indivíduos a exposição foi rapidamente desmontada.
exóticos viviam e com A rigor, esse não foi o último caso. Nas últimas
que se pareciam. “Os décadas, uma série de episódios que guardam se-
zoológicos humanos melhança com as antigas exibições foi registrada.
Souvenir de Abomah: eram ambientados em teatros, circos, museus, exi- Em 2005, em Augsburg, na Alemanha, diferentes
a mulher mais bições universais e jardins zoológicos, mas anuncia- grupos étnicos foram apresentados em uma “vila
alta do mundo
dos não só como forma de entretenimento. Também africana”. Em 2007, em Seattle, nos Estados Uni-
diziam ser fontes de conhecimento”, observa Vieira. dos, a seção do jardim zoológico que tratava da
Segundo a antropóloga, a indistinção entre ciên- savana também apresentou uma aldeia artificial
cia e espetáculo não é uma avaliação feita poste- com membros da etnia Massai. Casos semelhantes
riormente ou uma abstração, mas um elemento ex- ocorreram no Congo e na Tailândia.
plorado pelos próprios organizadores dos eventos: Para Koutsoukos, esses episódios mostram que
nos registros de exposições em arquivos alemães, “a história contada em Zoológicos humanos não
encontram-se relatórios de visitas escolares às ex- faz parte de um passado longínquo”. A pesquisa-
posições de pessoas de Hagenbeck. dora considera que sua investigação é um convite
FOTOS 1 JOAQUIM AYRES / MUSEU ETNOGRÁFICO DE BERLIM 2 E 3 AUTOR DESCONHECIDO / WIKIMEDIA COMMONS

Apesar de não terem o mesmo componente colo- à reflexão sobre “a relação entre o racismo de ho-
nial e racial, os casos de “espetáculos de aberrações” je e o daquela época”. Essa reflexão é também um
e de patologias apresentam um funcionamento se- elemento de fundo no interesse que as ciências
melhante. Koutsoukos cita a história de Joseph Mer- humanas têm demonstrado pelo tema nos últimos
rick (1862-1890), acometido de neurofibromatose, 20 anos, segundo Abbattista. O foco principal tem
que viria a ser retratado no filme Homem elefante sido o debate sobre o legado colonial. Dois marcos
(1980), de David Lynch. Merrick era exposto em importantes são franceses. Em 2004, foi publicado
freak shows da Inglaterra, mas suas apresentações pela La Découverte o livro Zoos humains: Au temps
foram consideradas de excessivo mau gosto e a des exhibitions humaines (Zoos humanos: No tempo
polícia os interrompeu. Instalado em um hospital das exposições humanas), editado por um grupo de
de Londres, passou a ser exibido para médicos e historiadores de diversas universidades do país. Em
visitado por integrantes da alta sociedade, curiosos 2011, ocorreu a exposição A invenção do selvagem:
com suas deformações. “Na saída, assim como nos Exposições, no museu do Quai Branly, em Paris. n
shows de aberrações, o visitante podia adquirir uma
foto-souvenir”, comenta Koutsoukos. Projeto
Em sua tese de doutoramento, “Figurações pri- Exibindo gente: Espetáculo e ciência em fotografias das exposições
mitivistas, trânsitos do exótico entre museus, ci- do século XIX e início do XX (nº 08/56372-5); Modalidade Bolsa de
Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Iara Lis Franco Schiavinatto
nema e zoológicos humanos”, defendida em 2019 (Unicamp); Beneficiária Sandra Sofia Machado Koutsoukos; Investi-
na Uerj, Vieira também aborda os zoos humanos mento R$ 190.829,78.
a partir da imagem. A antropóloga demonstra a O livro e os artigos mencionados nesta reportagem estão listados
existência de fortes vínculos entre as exposições e na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 303 | 87


OBITUÁRIO

Alfredo Bosi na
Academia Brasileira
de Letras, no Rio de
Janeiro, em 2011

UM A
lfredo Bosi, professor emérito da Uni-
versidade de São Paulo (USP), morreu no
dia 7 de abril, aos 84 anos, vítima da Co-
vid-19, em São Paulo. Bosi, que começou

CRÍTICO
a carreira lecionando literatura italiana, elaborou
análises literárias pioneiras a partir de seu conhe-
cimento em filosofia e história e formou gerações
de profissionais desde a década de 1970. Viúvo de
Ecléa Bosi (1936-2017), deixou dois filhos, Viviana,

PLURAL
docente de literatura na mesma instituição, e o mé-
dico e economista José Alfredo, além de dois netos.
Descendente de italianos, Bosi (ver Pesquisa
FAPESP n° 87) nasceu em São Paulo, em 26 de
agosto de 1936. Filho de uma costureira e de um
GUILHERME GONÇALVES / ARQUIVO ABL

Partindo de sólido referencial filosófico, ferroviário, viveu a infância no bairro da Barra


Funda. Depois de graduar-se em 1960 em letras
Alfredo Bosi propôs a revisão da pela USP, estudou durante um ano em Florença, na
Itália. De volta ao Brasil, passou a lecionar língua
história literária e cultural do Brasil e literatura italianas na própria USP, no Departa-
mento de Letras Neolatinas, hoje Departamento
Christina Queiroz de Letras Modernas. Em 1971, transferiu-se para
o Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, tação resultaram em ações importantes durante o
assumindo a disciplina de literatura brasileira. processo de redemocratização do país”, recorda.
Tornou-se professor titular em 1985. “É reducionista considerá-lo apenas um crítico.
Autodidata em filosofia, Bosi foi um estudioso da Sua formação envolvia conhecimentos em história e
obra de intelectuais italianos como Giambattista filosofia, além de estética literária”, afirma Fernando
Vico (1668-1744), Benedetto Croce (1866-1952) e Paixão, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-
Antonio Gramsci (1891-1937). A partir desse arca- -USP). Ele destaca os estudos de poesia realizados
bouço conceitual, elaborou análises consideradas por Bosi, em especial aqueles envolvendo Machado
fundadoras sobre a produção de autores brasileiros de Assis. “No caso de Dom Casmurro, por exemplo,
como o poeta Cruz e Sousa (1861-1898), os escri- Bosi insere a obra em uma tradição universalista,
tores Lima Barreto (1881-1922), Graciliano Ramos destacando o movimento do narrador de revelar ma-
(1892-1953), Machado de Assis (1839-1908) e João zelas comuns à humanidade”, compara Paixão, que
Antônio (1937-1996). editou diversos livros do pesquisador no período em
“Bosi propôs uma revisão de toda história lite- que trabalhou na Editora Ática. Um deles, Machado
rária e cultural do país. Atento aos grandes pen- de Assis: O enigma do olhar (Ática, 1999), venceu o
samentos, mas também aos pequenos detalhes, Prêmio Jabuti na categoria Ensaio e Biografia.
nessa dialética entre o grande e o pequeno des- “Nas análises sobre Machado, Bosi propõe visões
cortinou formas diferentes e caminhos novos para ancoradas na história e na sociedade brasileira,
compreensão da poesia e do romance brasileiro”, mas também busca lançar um olhar compassivo
analisa Marco Americo Lucchesi, professor da aos personagens, revelando sua dimensão humana
Faculdade de Letras da Universidade Federal do e mostrando como neles podem conviver aspectos
Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente da Academia cruéis e sublimes ao mesmo tempo”, comenta Hélio
Brasileira de Letras (ABL). “Era um ‘homem do de Seixas Guimarães, da FFLCH-USP.
Renascimento’, estudou com os grandes mestres

E
e historiadores de Florença, realizando um traço m depoimento concedido por e-mail, Alci-
de união entre Brasil e Itália.” des Vilaça, da FFLCH-USP, rememorou os
Aluno de Bosi na graduação, Paulo Martins, hoje primeiros contatos que teve com Bosi em
diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências um curso sobre Modernismo ministrado
Humanas (FFLCH-USP), destaca que, apesar da em 1971. “Todas as informações, atribuições e re-
profundidade das reflexões, Bosi se preocupava em lações nodais entre as matérias tratadas – com a
elaborar textos que pudessem ser compreendidos literatura no centro, mas sempre em perspectiva
por todos os públicos, e não apenas por especia- de articulação – eram acionadas num compromisso
listas. Nesse sentido, menciona História conci- tácito com a construção da vida”, diz.
sa da literatura brasileira (Editora Cultrix, 1970), Para Alcir Pécora, do Instituto de Estudos da Lin-
considerado o mais longevo manual de literatura guagem (IEL) da Unicamp, Bosi foi um intelectual
brasileira, escrito por Bosi aos 34 anos de idade. capaz de lidar com qualquer assunto da história li-
Referência para alunos de graduação e pesquisa- terária brasileira e era dono de uma “inteligência
dores de literatura, o livro está em sua 52ª edição. equilibrada, conciliatória e nunca sectária”. “Essa
“A obra resume de forma clara e acessível a traje- visão ecumênica permitiu-lhe um tipo de ativida-
tória da literatura brasileira, colaborando com a de institucional muito eficaz para sedimentação de
popularização da disciplina”, avalia. vários projetos relevantes em toda a USP”, observa,
Sergio Alcides Pereira do Amaral, da Faculdade ao apontar seu envolvimento na criação do Insti-
de Letras da Universidade Federal de Minas Ge- tuto de Estudos Avançados (IEA), onde foi diretor
rais (UFMG), atribui à formação na área do italia- (1998 a 2001) e vice-diretor (1987 a 1997) e editou,
nismo sua solidez filosófica e a capacidade teóri- durante 30 anos, a publicação da revista Estudos
ca notável. “Mesmo assim, jamais subordinava o Avançados. Pécora chama a atenção também para
objeto literário a questões teóricas”, afirma. Para as pesquisas realizadas por Bosi no âmbito das le-
Amaral, Bosi preservou o frescor e a curiosidade tras coloniais e, em particular, das letras jesuíticas.
do leitor de poesia, transmitindo essa atitude para Em 1996, o pesquisador foi condecorado com
gerações de alunos. a Ordem do Rio Branco e, em 2003, tornou-se o
Para além do campo literário, Martins, da sétimo ocupante da Cadeira nº 12 da ABL. Casado
FFLCH-USP, destaca a atuação política de Bosi, durante 57 anos com a psicóloga Ecléa Bosi (ver
incluindo seu percurso como militante em movi- Pesquisa FAPESP n° 218), professora do Instituto
mentos operários em Osasco, na Grande São Paulo, de Psicologia (IP) da USP, Bosi sofreu profunda-
durante a ditadura militar (1964-1985) e a atuação mente o impacto de sua morte, em 2017, segundo
no Centro de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paixão. “Ele adoeceu e foi se desligando dos afaze-
Paulo Evaristo Arns, presidido por ele entre 1982 res literários. Mesmo assim, talvez por causa da sua
e 1984. “Bosi era católico e sua relação com alas relação com o catolicismo, mostrava uma atitude
progressistas da igreja e com a teologia da liber- esperançosa e não se entregava ao imobilismo.” n

PESQUISA FAPESP 303 | 89


genética e cardiologia vascular. “Trouxe
OBITUÁRIO tudo para debaixo do mesmo teto”, diz
Krieger, vice-presidente do Conselho
Superior da FAPESP entre 2010 e 2019
Em sua clínica particular, os médicos
assistentes que contratava também eram
convocados para atender pacientes do

RUMO À Sistema Único de Saúde (SUS). “Na época


tínhamos um bipe e íamos até o orelhão
pegar recados”, lembra o médico Roberto

EXCELÊNCIA Kalil, diretor da Divisão de Cardiologia e


hoje presidente do Conselho Diretor do
InCor. “Quem não respondesse, estava
fora da equipe.”
Fulvio Pileggi transformou o InCor Paulista de São Carlos, Pileggi formou­
-se em 1952 na FM-USP e estagiou de
em uma importante instituição 1955 a 1957, com bolsa da Fundação Roc­
kefeller, no Instituto Nacional de Cardio­
de pesquisa e atendimento médico logia do México, um dos centros mais
importantes da área naquele período. Lá,
Gilberto Stam trabalhou com dois especialistas da en­
tão nascente área de eletrocardiografia,
Demetrio Sodi Pallarés (1913-2003) e En­
rique Cabrera (1918-1964).
“A eletrocardiografia era difícil, mas eu
gostava de física e matemática, o que me
ajudava nesse campo”, contou Pileggi a
Pesquisa FAPESP quando ganhou o prê­
mio da Fundação Conrado Wessel (FCW),
em 2009, na categoria Medicina. “Quando
Cabrera viajava, quem tomava conta do
serviço de cardiologia era Pileggi, e não
os assistentes do mexicano”, comentou
na mesma época o oncologista Ricardo
Renzo Brentani (1937-2011), amigo do
Pileggi:
cardiologista brasileiro. “Foi ele quem
o instituto em estabeleceu as bases da eletrocardiogra­
primeiro lugar fia no Brasil.”
Na volta a São Paulo, entrou na equi­
pe de Luiz Venere Décourt (1911-2007),

O
cardiologista Fulvio Pileggi depois, cobrar com a mesma insistência. chefe do Serviço de Cirurgia Cardíaca
acompanhou toda a trajetória Pileggi morreu no dia 4 de abril, aos 93 do Hospital das Clínicas (HC) da FM­
de formação do Instituto do anos, e deixou quatro filhos – Fulvio, Re­ -USP, e conviveu com outro cardiologista
Coração (InCor) da Facul­ nata, Roberta e José Carlos – e oito netos. consagrado, Euryclides de Jesus Zerbini
dade de Medicina da Universidade de “Ele trouxe a ciência para o InCor. Co­ (1912-1993). Décourt e Zerbini foram os
São Paulo (FM-USP). Assistiu às gestões meçamos a produzir mais pesquisa car­ responsáveis por unificar as áreas clíni­
para a criação da instituição, no início dos diológica do que toda a América Latina”, ca e cirúrgica de cardiologia no HC. “Os
anos 1960, participou da inauguração do conta o cardiologista Protásio Lemos da fundamentos do instituto foram estabe­
prédio para atendimento de pacientes, Luz, pesquisador sênior do InCor que tra­ lecidos por Décour e Zerbini, mas quem
em 1977, e tornou-se seu diretor-geral, balhou com Pileggi por mais de 20 anos. implementou e deu todo o suporte cien­
de 1982 a 1997. Para alguns dos médicos e “Pileggi buscava padrões internacionais tífico para que o InCor se desenvolvesse
pesquisadores que trabalharam com ele, de excelência. É o maior responsável pela foi Pileggi”, afirma Krieger.
foi o maior responsável pela transforma­ notável instituição que é hoje o InCor.” O cardiologista Charles Mady, diretor
ção do InCor em um dos mais importan­ Eduardo Moacyr Krieger, diretor-exe­ da Unidade Clínica de Miocardiopatias
tes centros de pesquisa e assistência mé­ cutivo da Comissão de Relações Interna­ e Doenças da Aorta do instituto, conta
dica do mundo. Sua estratégia principal cionais da FM-USP, conta que Pileggi im­ que Pileggi fugia dos holofotes da mídia
EDUARDO CESAR

consistia em atrair os profissionais mais plementou as divisões de bioengenharia, e não ia atrás de pessoas poderosas – elas
talentosos, oferecer boas condições de experimentação, bioinformática, imuno­ é que o procuravam. “Quem aparecia era
trabalho e incentivá-los constantemente; logia de transplante, biologia molecular e sempre o instituto, nunca ele”, conclui. n

90 | MAIO DE 2021
Teixeira:
produção
intelectual
motivada pelo
desejo de
transformação
social

MEMÓRIA

Educação para a democracia


Pensamento de Anísio Teixeira está na base da defesa
do ensino público, gratuito e laico no Brasil

Bruno de Pierro

C
ausou espanto aos irmãos dos principais intelectuais da educação produção intelectual é motivada pelo
José Maurício Teixeira e brasileira. desejo de transformação social. Ele foi,
Carlos Antônio Teixeira ou- “Ao contrário do que se pode pensar, acima de tudo, um educador voltado para
vir a proposta do pai em uma ele não era rígido nem se preocupava a prática da educação e da administra-
tarde de agosto de 1962. “Vou comprar com nossos boletins. Para buscar solu- ção”, declarou o filólogo e dicionarista
uma lambreta para cada um de vocês e ções para os problemas do Brasil, achava Antônio Houaiss (1915-1999) em depoi-
gostaria que passassem uns seis meses que era preciso conhecê-lo a fundo”, diz mento à Biblioteca Virtual Anísio Teixei-
rodando o país”, sugeriu entusiasma- Carlos Antônio. Cinquenta anos após ra, da UFBA. Esse traço acompanha Tei-
do aos filhos, que cursavam medicina sua morte, o legado e a atualidade de xeira desde 1924, já como inspetor-geral
na então Universidade do Brasil, atual Teixeira transparecem não só em ins- de Ensino da Bahia – função equivalente
Universidade Federal do Rio de Janeiro tituições que ajudou a construir, como à de secretário estadual de Educação. Ba-
(UFRJ). “Recusamos a oferta, porque a Coordenação de Aperfeiçoamento de seado no pensamento do filósofo norte-
não queríamos trancar a faculdade”, Pessoal de Nível Superior (Capes) e a -americano John Dewey (1859-1952),
conta Carlos Antônio, hoje psiquiatra e Universidade de Brasília (UnB), mas Teixeira propunha uma “educação para
FUNDAÇÃO ANÍSIO TEIXEIRA

professor aposentado da Universidade também em ideias que se mantêm vivas a vida”. O educador baiano foi artífice de
Federal da Bahia (UFBA). O episódio no ensino público do país. um programa que reorganizou o ensino
seria apenas anedótico não fosse por A trajetória do educador deixou mar- fundamental na Bahia, estabelecendo um
um detalhe: a figura paterna em ques- cas tanto na administração pública quan- modelo de escola de tempo integral que
tão era Anísio Teixeira (1900-1971), um to na pesquisa em educação. “Toda sua inspira iniciativas até hoje.

PESQUISA FAPESP 303 | 91


é ampliar os horizontes dos alunos, es-
tabelecendo diálogo com o repertório
cultural deles, e não impondo conteúdo.”
Em 1932, Teixeira integrou o Movi-
mento de Renovação Educacional do
Brasil e assinou, com outros 26 inte-
lectuais, o Manifesto dos Pioneiros da
Educação Nova, redigido pelo educa-
dor Fernando de Azevedo (1894-1947).
O documento defendia a bandeira da
escola pública, obrigatória, gratuita e
laica, preceitos que deram sustentação
para instrumentos legais que norteiam
a educação brasileira, como a Lei de Di-
retrizes e Bases (LDB). Mencionada pela
primeira vez na Constituição de 1934,
por influência de Teixeira, a LDB virou
lei em 1961.
A versão mais atual, de 1996, man-
tém traços do pensamento do educa-
1 dor baiano, observa a pedagoga Agueda
Em visita à exposição dos alunos na Escola Parque de Salvador, em 1952 (segundo da esq. para a dir.) Bernardete Bittencourt, da Faculdade de
Educação da Universidade Estadual de
Antes de assumir o cargo no governo, Campinas (Unicamp). “A LDB determina
Teixeira foi obrigado a desistir do sonho igualdade de condições de acesso à esco-
de ser padre. “Ele pertencia a uma famí- la, diversidade de concepções pedagó-
lia tradicional e influente de Caetité, no gicas, respeito à liberdade e gratuidade
interior baiano. O pai, Deocleciano Pires Ele vinculou do ensino público – princípios já defini-
Teixeira [1844-1930], era médico e polí- dos por Teixeira”, diz Bittencourt. Ele
tico da região. Ter um filho padre esta-
o Inep à Capes, também não aceitava o ensino religioso
va fora de cogitação”, diz o engenheiro arquitetando na educação pública. “A defesa da laici-
João Augusto de Lima Rocha, professor dade ocasionou fortes embates entre o
aposentado da UFBA e estudioso da vida
o sistema educador e uma ala da Igreja Católica,
do educador. educacional do que detinha a maior fatia da oferta de
Teixeira estudou em colégios católicos ensino secundário no país até meados
dirigidos por jesuítas e graduou-se na
ensino básico da década de 1960.”
Faculdade de Direito da Universidade à pós-graduação,

Q
do Rio de Janeiro. O pai tratou logo de uando Teixeira assumiu o
providenciar um emprego “mundano”
conta Muraro cargo de diretor de Instru-
para o filho. “Deocleciano era próximo ção Pública do Distrito Fe-
do governador da Bahia Góis Calmon deral, no Rio de Janeiro, em
[1874-1932], que escalou Teixeira para 1935, criou a Universidade do Distrito

FOTOS 1 E 3 FUNDAÇÃO ANÍSIO TEIXEIRA 2 UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA / ACERVO CENTRAL


comandar a educação no estado”, explica pouco”, relatou numa carta enviada ao Federal (UDF), com propostas inova-
Rocha. O recém-formado advogado che- pai. “Pretendo não me afastar mais do doras de ensino, reunindo professores
gou a argumentar que nada entendia do campo da educação.” franceses e italianos. A UDF durou pou-
assunto. Como resposta, Calmon sugeriu Nesse período, teve aulas com Dewey. co – em 1937, foi fechada pelo Estado
a leitura do livro Métodos americanos da “Isso impactou profundamente toda tra- Novo de Getúlio Vargas (1882-1954) e
educação, do pedagogo belga Omer Buy- jetória de Teixeira”, afirma Darcísio Na- Teixeira sofreu perseguição do regime.
se (1865-1945), e o enviou à Europa, para tal Muraro, do Departamento de Educa- “Ele incomodava membros da Igreja e
que conhecesse o sistema educacional ção da Universidade Estadual de Lon- do governo por defender a democracia
de países como Espanha, Itália e França. drina (UEL). “Dewey era o nome mais como modo de vida e evocar a função
Foi nos Estados Unidos, porém, que importante por trás do movimento Es- social da educação”, pontua a pedagoga
Teixeira deu uma guinada completa. cola Nova, que surgiu com a proposta de Patrícia Melo Magoga, que estudou os
Com o aval de Calmon, ficou entre 1927 e romper com modelos pedagógicos tradi- conceitos de democracia e educação na
1929 naquele país, onde concluiu o curso cionais”, ressalta Muraro, especialista na obra de Teixeira para sua dissertação de
de mestrado em educação na Universi- obra do norte-americano. O movimento mestrado, defendida na UEL em 2020.
dade Columbia, em Nova York. “Durante propunha um formato de escola baseado Entre 1937 e 1945, Teixeira distan-
esse tempo, estudei, visitei escolas, fiz na construção do conhecimento a partir ciou-se da vida pública. “Ele importou
boas relações e acredito que aprendi um da experiência da criança. “O objetivo e vendeu automóveis norte-americanos,

92 | MAIO DE 2021
“Teixeira vinculou o Inep à Capes, ar-
quitetando assim o sistema educacional
brasileiro do ensino básico à pós-gra-
duação, sem desconsiderar as particu-
laridades do federalismo brasileiro”, diz
Muraro. “Dessa forma, pretendia levar
a cabo seu entendimento de que a edu-
cação é um direito de todos e não pode
ser tratada como privilégio de poucos.”
Entre 1955 e 1959 o educador presidiu
a Sociedade Brasileira para o Progresso
da Ciência (SBPC) e aproveitou para mo-
bilizar a comunidade científica em torno
da fundação de uma nova instituição de
ensino e pesquisa. Em 1962, a UnB foi
criada, já na nova capital federal. O antro-
pólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) definiu
as bases da instituição, Teixeira planejou
o modelo pedagógico e Oscar Niemeyer
(1907-2012) projetou os prédios.

O
2

Teixeira (segundo da dir. para a esq.) em uma das reuniões na UnB com Darcy Ribeiro (primeiro à dir.) golpe de estado de 1964 trou-
xe novo revés para Teixeira,
explorou reservas de calcário, exportou de tarefas que envolviam pesquisa e tra- que havia substituído Ribei-
manganês e fundou a Cimento Aratu”, balho colaborativo”, explica Magoga. Os ro na reitoria da UnB. Demi-
conta Carlos Antônio. A carreira empre- estudantes cuidavam do ambiente esco- tido pelos militares, foi para os Estados
sarial foi interrompida quando recebeu lar e participavam de atividades espor- Unidos, onde lecionou nas universidades
convite para representar o Brasil na Or- tivas, culturais e artísticas. Columbia e da Califórnia. Também pas-
ganização das Nações Unidas para a Edu- Em 1951, Getúlio Vargas tornou-se sou uma temporada no Chile, colaboran-
cação, a Ciência e a Cultura (Unesco), presidente novamente, dessa vez elei- do na reestruturação de universidades
criada em 1946. Um articulador da ida to. Com os novos tempos democráticos, públicas. Escreveu pelo menos uma dú-
de Teixeira para a Unesco foi o escritor Teixeira foi convidado a integrar o gover- zia de livros sobre educação. Um deles,
paulista e amigo Monteiro Lobato (1882- no, indicado por Ernesto Simões Filho Educação para a democracia (1936), dá
1948), que havia sido adido comercial (1886-1957), então ministro da Educa- título a esta reportagem.
em Nova York. ção. Sua primeira tarefa foi estruturar Teixeira retornou ao Brasil em 1970,
O período como conselheiro da Unes- e assumir o comando da Capes, criada para trabalhar como consultor da Fun-
co foi curto. “A Unesco perdeu força po- naquele ano, com a finalidade de aper- dação Getulio Vargas do Rio. Em 11 de
lítica no início da Guerra Fria e isso o feiçoar o ensino superior e impulsionar a março de 1971, marcou um almoço com
decepcionou”, diz Rocha. Em 1947, acei- formação de recursos humanos no país. o filólogo Aurélio Buarque de Holanda
tou comandar a Secretaria de Educação Conceder bolsas de pesquisa a brasilei- (1910-1989), no apartamento deste, no
e Saúde da Bahia e criou a Escola Parque, ros interessados em fazer pós-graduação bairro de Botafogo. “Antes disso, foi en-
em Salvador, que contemplava o apren- no exterior estava na ordem do dia. Em contrado morto no fosso do elevador do
dizado baseado em projetos. “Crianças e 1952, além da Capes, Teixeira passou a prédio. Oficialmente, o episódio foi con-
adolescentes eram estimulados a pensar dirigir o Instituto Nacional de Estudos siderado acidente. Para mim, foi vítima
soluções para problemas locais, a partir e Pesquisas Educacionais (Inep). de emboscada da ditadura militar”, diz
Rocha, que defende a hipótese no livro
Na Secretaria de Educação e Saúde da Bahia, onde ficou de 1947 a 1950 (primeiro à dir.) Breve história da vida e morte de Anísio
3 Teixeira (Edufba, 2019).
Carlos Antônio não concorda: “Ainda
acho que a morte foi acidental”. O filho,
um dos quatro que Teixeira teve, prefere
guardar a imagem do pai como homem
simples. “Gostava de tomar uma cachaça
antes do almoço de domingo e assistir a
jogos de futebol na TV”, recorda. “Cos-
tumava dizer que as coisas só vão andar
para frente nesse país quando começar-
mos a debater educação com a mesma
seriedade com que se discute futebol.” n

PESQUISA FAPESP 303 | 93


RESENHA

O negociador do mapa do Brasil


Iris Kantor

N
o mais recente livro do embaixador Syne- defendidas no ambiente universitário brasileiro.
sio Sampaio Goes Filho, reconstituição e Daí o tom de conversa bem informada encadea-
interpretação histórica se imbricam de da por uma narrativa fluente ao longo de seus 12
maneira concatenada, permitindo que tanto o capítulos, nos quais hipóteses, conjecturas e dú-
leitor comum quanto o especializado compreen- vidas são expostas com clareza.
dam o teor das controvérsias historiográficas re- Como destaca o prefaciador, o diplomata e his-
lacionadas a Alexandre de Gusmão (1695-1753), toriador Rubens Ricupero, um dos méritos do livro
secretário de Estado do rei português João V é procurar transcender a perspectiva dominada
(1689-1750) e ator decisivo na preparação das pela obsessão dos litígios fronteiriços, muito co-
negociações entre as Coroas ibéricas na assina- mum entre os historiadores do Itamaraty. No li-
tura do Tratado de Madri em 1750. vro, Sampaio Goes Filho supera esse vezo profis-
Retratado como um dos patronos do Itama- sional na medida em que situa historicamente as
raty, esse súdito da Coroa portuguesa tornou-se ideologias geográficas elaboradas desde o período
Alexandre de exemplo de trajetória bem-sucedida nas esferas colonial até a contemporaneidade.
Gusmão de decisão política em Lisboa. A bem da verda- Entretanto, o autor não desconsidera o papel
(1695-1753):
O estadista
de historiográfica, o autor nos adverte de que se das metageografias, recorrendo às obras de an-
que desenhou trata de uma reputação construída a posteriori. tropólogos, cineastas e literatos para reiterar a
o mapa do Brasil Em vida, Gusmão nunca obteve notoriedade ou importância da dimensão ficcional na construção
Synesio Sampaio as recompensas financeiras que lhe caberiam. dos vínculos humanos, civilizacionais e nacionais.
Goes Filho
Editora Record
Sucessivos requerimentos da viúva ao Conselho Assim, coube a Gusmão a configuração mental
224 páginas Ultramarino demonstram as dificuldades que a daquilo que na época era incomensurável ou im-
R$ 59,90 família enfrentou depois da sua morte. preciso. O capítulo dedicado à análise do “Mapa
Todavia, a repercussão das suas ideias pode ser das Cortes” é especialmente atraente, pelo debate
atribuída à farta circulação de correspondências, em torno do protagonismo de Gusmão na elabo-
memoriais, arbítrios e pareceres manuscritos, ração das noções jurídicas de uti possidetis. Aqui,
transmitidos de geração a geração, guardados em o autor reafirma a hipótese de Cortesão sobre a
bibliotecas da nobreza e gabinetes da administra- manipulação intencional dos meridianos de lon-
ção régia, em versões autografadas ou em cópias gitude no mapa do Tratado de Madri.
inautênticas, que só vieram a ser publicadas in- De toda forma, não resta dúvida de que o mapa
tegralmente no século XX. supervisionado por Alexandre de Gusmão projetou
Dotado de uma admirável imaginação geopo- uma linha de demarcação provisória. De fato, os
lítica, forjada no calor dos acontecimentos, Gus- plenipotenciários fixaram alguns pontos de dire-
mão integrou as embaixadas extraordinárias em ção e linhas, porém estava prevista a necessidade
Roma, Madri, Paris e Turim, atuando em prol do de alterações, na medida em que observações as-
reconhecimento diplomático de Portugal nos con- tronômicas com instrumentos científicos fossem
gressos internacionais e, particularmente, na Santa realizadas in loco e, sobretudo, após a atribuição
Sé, onde negociou a prerrogativa do rei português de uma nova toponímia aos rios e acidentes geo-
de escolher os bispos das dioceses ultramarinas. gráficos percorridos. A nova toponímia deveria
Um servidor que propôs novas formas de gestão ser acordada entre os chefes das expedições mili-
territorial e fiscal que vieram a ser aplicadas nas tares portuguesas e espanholas e confirmada nos
capitanias sul-americanas. gabinetes de Madri e Lisboa. O livro demonstra
A biografia coloca em causa algumas assertivas que os mitos têm sua razão de ser, e as boas con-
presentes nos estudos canônicos sobre o processo trovérsias retiram o pó acumulado nas estátuas.
de formação territorial no período colonial, revi-
sita as obras clássicas de Jaime Cortesão (1884- Iris Kantor é professora no Departamento de História da Faculdade
1960) e de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo (FFLCH-USP) e autora de Esquecidos & renascidos:
trazendo elementos novos para nossa reflexão. A Historiografia acadêmica luso-americana (1724-1759). (Hucitec/Centro
empreitada também abarca artigos, livros e teses Estudos Baianos, 2004).

94 | MAIO DE 2021
CARREIRAS

Assessoria científica
Participação de pesquisadores na formulação de leis e na implementação
de políticas públicas constitui oportunidade profissional

A
utilização de conhecimentos científicos prazo”, afirma Amâncio Jorge de Oliveira,
na tomada de decisões na esfera coordenador-executivo da Escola
pública é apontada por especialistas de Diplomacia Científica e da Inovação
como fundamental para o desenvolvimento (InnScid-SP) e professor do Instituto
social e econômico de um país. Além de de Relações Internacionais da Universidade
entidades setoriais que desenvolvem pesquisas de São Paulo (IRI-USP). Além de destacar
para formular pareceres em diversas áreas, a relevância que a diplomacia científica
cientistas também podem integrar equipes tem alcançado nos últimos anos, Oliveira
de trabalho nos poderes Executivo, identifica dois modelos possíveis de
ILUSTRAÇÕES ELISA CARARETO

Legislativo e Judiciário, participando da participação de pesquisadores no campo da


formulação, revisão e implementação de leis política: um mais institucionalizado, em
e políticas públicas. que governos mantêm cientistas como parte
“Decisões tomadas com base em evidências de suas estruturas de governança e tomada
científicas tendem a ser mais eficientes de decisão, e outro mais informal, como
e assertivas, trazendo benefícios a longo a constituição de comissões temporárias

PESQUISA FAPESP 303 | 95


de cientistas para um evento específico ou Buckeridge integrou o comitê de
a assessoria voltada para determinada situação organizadores de um workshop de assessoria
emergencial. “O Brasil e os demais países científica a governos realizado em 2018
da América Latina têm essa tradição de pelo Instituto de Estudos Avançados
formar comitês temporários, que, apesar de (IEA-USP). O evento reuniu formuladores de
serem importantes, causam impacto menor políticas públicas, tomadores de decisão,
do que aqueles que estão inseridos na instituições de pesquisa, sociedades científicas
estrutura da administração”, avalia Oliveira. e pesquisadores de diversas áreas do
O modelo de participação científica mais conhecimento e serviu como plataforma
responsiva a eventos ganhou evidência com para a discussão de modelos de assessoria
a pandemia da Covid-19. “Os países da científica, bem como das habilidades
Europa e os Estados Unidos já têm esse necessárias para trabalhar na interface
staff científico dentro de seus governos há entre ciência e política. “Verificou-se ali
bastante tempo, o que lhes confere rapidez a relevância de se estabelecer um olhar mais
para criar e harmonizar protocolos de voltado para o processo de profissionalização
conduta”, completa. de cientistas que atuam em governos”, resume.
A participação de cientistas na elaboração “Desde 2016, no USP Cidades Globais somos
e revisão de políticas públicas pode ser decisiva bastante consultados por governos sobre
para a resolução de questões complexas, sob questões ambientais e urbanas, tidas como
a responsabilidade de governantes das distintas urgentes para o desenvolvimento das cidades.”
esferas de poder. “Podemos representar a
sociedade com o desenho de um triângulo, em ASSESSORIA PARLAMENTAR
que um dos vértices é formado pela população Contratado em 2013 pela Câmara Municipal
apontando problemas a serem resolvidos, um de Campinas para atuar como assessor
segundo pelos cientistas, que buscam soluções legislativo, o geógrafo Rogério Bezerra da
para esses problemas, e o terceiro pelos Silva pôde utilizar o conhecimento adquirido
políticos, que contribuem com a produção de em seu mestrado e doutorado na Universidade
políticas públicas”, explica Marcos Buckeridge, Estadual de Campinas (Unicamp) em temas
do Instituto de Biociências da Universidade como inclusão digital, direito à cidade
de São Paulo (IB-USP) e coordenador do e questões ambientais. “Na pós-graduação,
Programa USP Cidades Globais. analisei o processo de elaboração da política

O que faz um
assessor parlamentar

1 Orienta, revisa e produz documentos,


inclusive ofícios e correspondências

2 Redige pronunciamentos públicos


3 Desenvolve pesquisa de temas
associados ao mandato parlamentar

4 Acompanha a produção de outras


casas legislativas e publicações
relacionadas aos debates do mandato

5 Participa da elaboração de leis


96 | MAIO DE 2021
(Inep) e o Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (ICMBio),
o cientista político reforça o papel de
A articulação entre organizações como a Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC) que
ciência e política lança luz contribuem para indicar caminhos.
ao debate em torno “A participação de pesquisadores na esfera
governamental é importante inclusive
do papel desempenhado para as definições da política científica do
pelo conhecimento país”, afirma.
Doutor em filosofia política pela
em momentos cruciais Universidade Federal do Paraná (UFPR),
Rodrigo Ponce nunca havia considerado
a possibilidade de atuar como assessor
parlamentar até ser convidado, em 2018,
para fazer parte da equipe de um vereador,
em Curitiba. “Para mim foi uma decisão
difícil, pois estava há anos me preparando
para trabalhar com docência e pesquisa na
pública do Polo e Parque de Alta Tecnologia universidade e a atuação política era um
de Campinas e a relação da comunidade de caminho completamente novo”, conta
pesquisa com o governo na tomada de decisão Ponce, que segue assessorando o mesmo
sobre a política de ciência e tecnologia”, parlamentar, agora na Assembleia Legislativa
explica o pesquisador, que desde 2006 do estado. Apesar de não utilizar diretamente
integra o Grupo de Análise de Políticas de os temas de sua pesquisa acadêmica,
Inovação (Gapi) do Departamento de Política Ponce não tem dúvida a respeito da
Científica e Tecnológica da Unicamp. contribuição do conhecimento científico
Se por um lado a experiência de trabalhar no desempenho da função.
como assessor parlamentar contribuiu Atuando principalmente na interlocução
para aprimorar os conhecimentos obtidos com os demais parlamentares e suas
na academia, a vivência como cientista assessorias, além da revisão e análise
assegurou o repertório para que pudesse de projetos de lei, Ponce coordena a equipe de
agir na elaboração das ações discutidas no advogados do gabinete. “Mesmo não sendo
mandato. “Durante esses oito anos tive da área do direito, minha formação permite que
a oportunidade de atuar não apenas como eu colabore com a interpretação das leis a partir
observador, mas de contribuir para a tomada de contextos históricos, sociais e econômicos”,
de decisões. A experiência evidenciou, afirma. Isso inclui a definição dos caminhos
para mim, a relevância da colaboração de jurídicos a serem adotados em temas essenciais
cientistas para a construção de propostas na da plataforma do mandato, como meio
esfera política”, avalia. O envolvimento ambiente, mobilidade urbana, moradia
o levou a criar, em 2015, o Movimento pela e direitos humanos. “É um trabalho intenso,
Ciência e Tecnologia Pública, com o objetivo que requer disposição para acompanhar
de discutir as articulações relacionadas os assuntos relacionados à política.”
à inovação e ao desenvolvimento científico Ainda que considere positiva a vivência
e tecnológico do país. como assessor parlamentar, Ponce reforça
A articulação entre ciência e política lança que nem sempre é possível conseguir
luz ao debate em torno do papel desempenhado a aprovação, na política, de decisões baseadas
pelo conhecimento em momentos cruciais, no conhecimento científico. Como assessor,
como o atual, de combate à pandemia. ele também costuma consultar universidades,
“Situações de crise dessa magnitude pesquisadores e comissões de especialistas
constituem-se como prova concreta de que em busca de notas e pareceres técnicos sobre
a ciência deve ter posição mais central nas diferentes assuntos. Apesar da solidez que
decisões políticas”, afirma Fernando Luiz grande parte desses dados oferece à tomada
Abrucio, coordenador da área de educação do de decisões, não é incomum que eles sejam
Centro de Estudos de Administração Pública desconsiderados em momentos decisivos.
e Governo da Fundação Getulio Vargas “É preciso lembrar que a política é um
(FGVceapg). Ao ressaltar a importância de espaço de disputa e conflito no qual nem
órgãos governamentais como o Instituto sempre os argumentos são construídos
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais pela lógica”, finaliza. n Sidnei Santos de Oliveira

PESQUISA FAPESP 303 | 97


PERFIL

A poesia da ciência
Especialista em fatores de risco
para doenças cerebrais e cardíacas,
pesquisadora gaúcha integra
lista de cientistas do ano do Iarc
Angela Wyse: homenageada pelo conjunto de sua produção científica

Para investigar a complexidade de Universidade Federal do Rio Grande Já como professora da UFRGS,
mecanismos presentes no (Furg) nos anos 1980, que ela Wyse passou a pesquisar a
desenvolvimento de doenças descobriu a bioquímica, área que se homocistinúria clássica, doença
neurodegenerativas, há 20 anos tornaria objeto de seu interesse genética hereditária que se configura
a neurocientista Angela Wyse tem se científico. “Eu andava sempre com por falha inata do metabolismo, que
dedicado aos estudos da homocisteína, o livro ‘Lehninger’ nas mãos e logo no surge a partir da deficiência da enzima
substância tóxica que pode causar início da faculdade já havia decidido cistationina beta-sintetase. “Se não
danos ao cérebro e ao coração quando que seria professora de bioquímica. for tratada precocemente, ela pode
se apresenta em níveis elevados no Estudei muito”, recorda. resultar em déficit mental, infarto
organismo. “Costumo dizer que No mestrado, feito na UFRGS, do miocárdio ou isquemia cerebral”,
trabalho com a complexidade do desenvolveu modelos experimentais explica. No laboratório, a pesquisadora
cérebro e como ele lida com algumas com ratos para estudo da também desenvolve estudos sobre
substâncias que chegam até o órgão”, fenilcetonúria, doença congênita que se as implicações cerebrais causadas pela
explica a coordenadora do Laboratório caracteriza por deficiência intelectual redução de hormônios e alterações
de Neuroproteção e Doenças grave, convulsões e hiperatividade. celulares que ocorrem na menopausa
Neurometabólicas da Universidade “Para mimetizar a doença e entender e investigações sobre os efeitos do
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). melhor o seu funcionamento, usamos uso indevido do metilfenidato,
Wyse, que é professora titular de o inibidor de uma enzima chamada medicamento estimulante do sistema
bioquímica na mesma instituição, fenilalanina hidroxila, deficiente nervoso central indicado para
acaba de ser escolhida umas das nos pacientes que desenvolvem tratamento de déficit de atenção.
cientistas do ano de 2020 pelo a enfermidade”, explica. No doutorado, Além disso, há cerca de uma
International Achievements Research finalizado em 1995 na mesma década Wyse mantém um projeto de
Center (Iarc), sediado em Chicago, instituição, Wyse deu continuidade difusão científica para crianças de
Estados Unidos. “É um prêmio que aos estudos da fenilcetonúria, dessa vez escolas públicas de Porto Alegre, com
reconhece o conjunto da produção mimetizando a doença por meio de o desenvolvimento de atividades
de cientistas em 23 diferentes áreas inibição da enzima Na, K-ATPase. interdisciplinares envolvendo
do conhecimento”, conta a única “Essa é uma enzima muito importante a neurociência. Nas horas vagas,
brasileira a integrar a lista dessa edição. para todas as células. No cérebro, ela gosta de escrever poesias. Em 2016,
Nascida no interior de São José ajuda a manter o potencial de repouso publicou Neuropoesia (Editora Tomo).
do Norte, no Rio Grande do Sul, das células neuronais, afeta o “Costumo dizer que para ser cientista
Wyse mudou-se para Rio Grande transporte e regula o volume celular. é preciso ter a determinação e a garra
ainda criança. “Por isso me considero A Na+, K+-ATPase também atua na de um atleta e a alma de um poeta”,
ACERVO PESSOAL

rio-grandina”, brinca. Foi no neurotransmissão, sinalização celular completa, indicando a sensibilidade


primeiro semestre da graduação e tem um papel importante nos necessária para o exercício
em enfermagem e obstetrícia, na processos de memória.” da profissão.n S.S.O.

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