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“A história é ciência, professor?

”:
reflexões pandêmicas sobre história e ensino
JONATHAN MARCEL SCHOLZ*

Resumo: A pretendida cientificidade da história é um dos grandes temas da


historiografia, mobilizando diferentes reflexões e análises teórico-metodológicas
pelo menos desde a criação da disciplina no século XIX. Diante da atual
pandemia de COVID-19, que evidenciou um protagonismo das Ciências Naturais
no desenvolvimento de pesquisas microbiológicas, na criação dos procedimentos
de biossegurança e das vacinas, o interesse do presente texto é refletir sobre o
caráter científico da história, problematizando as relações entre a cientificidade
da disciplina e a transposição didática no ensino de história.
Palavras-chave: COVID-19; Ensino de História; Método Científico;
Consciência histórica.
“Is history science, teacher?”: pandemic reflections on history and teaching
Abstract: The intended scientificity of history is one of the great themes of
historiography, mobilizing different theoretical-methodological reflections and
analyzes at least since the creation of the discipline in the 19th century. Faced
with the current COVID-19 pandemic, which evidenced a leading role of Natural
Sciences in the development of microbiological research, in the creation of
biosafety procedures and vaccines, the interest of this text is to reflect on the
scientific character of history, questioning the relationships between the
scientificity of the discipline and the didactic transposition in the teaching of
history.
Key words: COVID-19; History teaching; scientific method; historical
conscience.

*
JONATHAN MARCEL SCHOLZ é Doutor em História pela UFU e docente efetivo da
SEDUC-MT.

243
Introdução Quer dizer, em meio aos graves
desdobramentos do cenário pandêmico,
A emergência da pandemia de COVID-
inclusive de desinformação e de
19 transformou drasticamente as nossas
negacionismo, que agravaram a situação
relações em sociedade. Desde 2020,
sanitária do Brasil, ocorreu
grande parte dos países adotou
paralelamente um movimento de
progressivamente, em maior ou menor
reafirmação da ciência, em que diversos
grau, regras e protocolos de isolamento
grupos políticos e sociais passaram a
social, como os lockdowns, os
defendê-la e enaltecê-la contra tais
distanciamentos sociais, a utilização de
ataques, reafirmando os seus métodos,
máscaras de segurança, a aferição de
temperatura corpórea, que alteraram o suas técnicas e procedimentos.
nosso cotidiano e as percepções da Dada a relevância e a repercussão da
vivência coletiva. questão pandêmica na atualidade, o tema
ciência vem readquirindo uma
As expectativas globais geradas pelo
significativa importância para os
sequenciamento genético do novo
presentes processos pedagógicos no
coronavírus, o estabelecimento de
ensino básico. Ao mobilizar a
protocolos de biossegurança e o
desenvolvimento de testes e de vacinas, curiosidade e o interesse dos estudantes –
instigados especialmente pelas
em meio ao aumento exponencial de
manifestações e produções das redes
contaminações e de mortes pela doença
sociais – a ideia de ciência, vinculada às
no Brasil e no mundo, relembraram às
experiências escolares, gera muitas
sociedades a relevância e a
interpretações, indefinições, dúvidas e
insubstituibilidade da ciência.
controvérsias no público mais jovem.
No país, embora a crise sanitária
disseminasse também efeitos políticos, Ciência: hegemonias, pré-conceitos e
econômicos e sociais1, houve uma desafios humanísticos
crescente ampliação de debates públicos, A ciência apresentada nos procedimentos
desenvolvidos heterogeneamente nas microbiológicos e nas orientações
mídias tradicionais e nas redes sociais, sanitárias em relação à pandemia de
que reconheceram e destacaram o papel COVID-19 possui, desde o século XVI3,
fundamental da ciência na salvaguarda um conjunto de características
da vida e da sociedade2. particulares e bem definidas. Refere-se à

1
Em decorrência dos discursos/atuação empresários, de artistas e da própria comunidade
negacionista dos representantes do governo científica – lançaram e/ou apoiaram, no primeiro
federal e de seus órgãos (sobretudo o Ministério semestre de 2021, campanhas de imunização da
da Saúde), que, com frequência, rejeitaram a população contra a COVID-19. Embora
periculosidade da doença, as recomendações motivados por distintos interesses, pode-se
sanitárias da OMS - Organização Mundial da lembrar, por exemplo, dos movimentos “Unidos
Saúde, negligenciaram as compras de vacinas e pela Vacina”, liderado por Luiza Trajano, e
estimularam o uso de medicamentos “Vacina sim”, encampada principalmente por
comprovadamente ineficazes no tratamento da membros da classe artística, como, também, de
doença, foi instalada em 27 de abril de 2021 no pesquisadores e divulgadores científicos, a saber,
Senado Federal, a CPI da Covid, para apurar tais Atila Iamarino e Natalia Pasternak, que se
denúncias. O relatório final da CPI, aprovado em tornaram muito conhecidos no último ano.
3
26 de outubro de 2021, indiciou 81 pessoas, Os estudos físicos, as invenções e as pesquisas
dentre elas, o presidente da República. astronômicas de Galileu Galilei (1564-1642),
2
Vários governos estaduais e prefeituras, como alcunhado geralmente de o “pai da ciência
alguns grupos da sociedade civil – como de

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Ciência Natural, constituída como a estudos laboratoriais e tecnológicos,
observação sistemática, a coleta de realizando experiências e testes variados,
dados, a realização de testes e inventando máquinas eletrônicas,
experimentos, a formulação de hipóteses aparelhos digitais, vacinas e
e de outros procedimentos aplicados medicamentos, produtos químicos ou
particularmente em laboratórios nos distintos objetos computacionais que
campos da física, da biologia, da química facilitam a vida nos últimos séculos.
e da matemática.
Compreende-se no senso comum, em
Desenvolvida enquanto uma forma de geral, que a realização de experimentos e
compreender a realidade por meio da testes com diversos equipamentos
racionalidade humana, a Ciência Natural tecnologicamente atraentes e
contribuiu decisivamente – sobretudo em extravagantes – como robôs,
meio às dinâmicas da modernidade – maquinários, tubos de ensaio e pipetas
para o definitivo domínio do homem que reservam soluções líquidas coloridas
sobre a natureza. Ou seja, os processos e que expelem fumaça – é desenvolvida
civilizatórios que, desde a antiguidade, por homens brancos de meia idade,
resultaram nos atuais estágios de travestidos com jalecos, óculos de
urbanização, de industrialização e de proteção, luvas, dentre outros acessórios.
contínuo desenvolvimento de
A cultura televisiva influenciou gerações
tecnologias (nas áreas da saúde, do
de crianças e adolescentes no Brasil dos
transporte, da produção de alimentos, da
anos 1990 e 2000. A grade de
segurança, etc.) estão diretamente
programação da TV Cultura, por
relacionados com as aplicações da
exemplo, reconhecida pelos programas
Ciência Natural.
educativos, contribuiu em O Professor,
No entanto, devido às suas características X-Tudo, O mundo de Beakman, Tíbio e
patológicas, a pandemia reforçou em Perônio (O Castelo Rá-tim-Bum), para a
alguma medida determinadas convicções representação do ofício do cientista
da sociedade, e dos estudantes de ensino enquanto o técnico e o operador
médio, em particular, de que ela é o laboratorial. Na última década, o seriado
ofício desenvolvido sine qua non em cômico The Big Bang Theory (“A Teoria
laboratórios e/ou centros de pesquisa, do Big Bang”), exibido no país pelo
geralmente realizada pelos profissionais canal pago Warner, se tornou referência
da área de Ciências da Natureza. na internet e nas redes sociais ao tratar
das divertidas histórias de um jovem
Ao longo do tempo, diversas instituições
grupo de amigos cientistas, físicos e
da sociedade, como os sistemas de
nerds, que enfrentam muitos percalços
educação, a grande imprensa, os meios
nas suas relações sociais.
de comunicação de massa, e o próprio
campo científico, disseminaram, em As preconcepções científicas
maior ou menor grau, ideias de que o historicamente passam, como se vê, pelas
fazer científico era atribuição elementar questões de gênero4, na medida em que
de pesquisadores que desenvolvem se reforçou nos últimos séculos o saber-

moderna”, são simbólicas na definição do campo das Ciências Naturais, possibilitaram um maior
científico. protagonismo desses grupos. O caso da pandemia
4
Nas últimas décadas, os significativos esforços de COVID-19 torna-se emblemático, uma vez
para ampliar os espaços sociais ocupados por que o rastreamento do genoma do referido vírus
mulheres, negros e população LGBTQI+ nas foi realizado no Brasil por duas mulheres, Ester
universidades públicas brasileiras, como na área Cerdeira Sabino e Jaqueline Goes de Jesus,

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poder-fazer da ciência como uma tarefa, humano, o que consolidou uma
um ofício, um status, separação entre natureza e
predominantemente androcêntrico. Basta sociedade, compreendendo-se nela a
pensarmos e evocarmos grandes nomes cultura, a política.
da ciência, ganhadores do prêmio Nobel, A própria BNCC – Base Nacional
por exemplo, e quase a totalidade deles Comum Curricular, aprovada
na nossa memória social será de homens. recentemente (2018), em sua versão do
Chassot (2004, p. 13) destaca: Ensino Médio reforça a percepção de que
a ciência é principalmente termo e
Sobre a quase ausência de mulheres prática pedagógica corrente das
na História da Ciência não deixa de disciplinas de biologia, matemática,
ser significativo que, ainda nas
física e química (as chamadas “Ciências
primeiras décadas do século XX, a
Ciência estava culturalmente Exatas e da Natureza”). Embora associe
definida como uma carreira práticas, teorias e metodologias
imprópria para a mulher, da mesma científicas nas definições das diversas
maneira que, ainda na segunda áreas do conhecimento (como “Ciências
metade do século XX, se dizia quais Humanas” e Linguagens), as propostas
eram as profissões de homens e científicas se evidenciam e se vinculam
quais as de mulheres. definitivamente nas competências
A construção e a reprodução social dos específicas e nas habilidades das
estereótipos acerca do ofício dos disciplinas de Ciências Exatas e da
cientistas, reforçada em tempos Natureza.
pandêmicos, permeiam a consciência Em certo momento, por exemplo, na
histórica5 dos estudantes brasileiros do competência 5 da área de Matemática, a
ensino médio. Há um conjunto de BNCC (2018, p. 532) exalta a
imagens, práticas, modos de agir e cientificidade da área e a sua
trabalhar, valores e missões caros à conformação como campo científico
profissão, que disseminadas e específico, sugerindo que “Para tanto, é
fortalecidas pelos tradicionais e indispensável que os estudantes
inovadores meios de comunicação, experimentem e interiorizem o caráter
contribuem para as associações distintivo da Matemática como ciência,
estudantis da ciência como ou seja, a natureza do raciocínio
exclusivamente - a priori – pesquisa hipotético-dedutivo, em contraposição
laboratorial, técnica e masculina. ao raciocínio hipotético-indutivo,
Ao problematizar o papel das mulheres característica preponderante de outras
na ciência, Arrazola (2002, p. 68 ciências”.
argumenta: Do mesmo modo, a competência
No Ocidente, a ciência considerou específica 3 da área de Ciências da
por longo tempo que sua Natureza relaciona a sua produção
preocupação era tão somente com os pedagógica a ciência, tomada no sentido
fatos naturais (fatos científicos), lato, expondo que “Na mesma direção,
independentemente do mundo explorar como os avanços científicos e

pesquisadoras do IMT - Instituto de Medicina conjunto de estruturas do pensamento humano


Tropical, da Universidade de São Paulo. que atribuem sentido ao tempo (passado, presente
5
A consciência histórica é aqui compreendida e futuro) e engendram noções de memória,
conforme as definições elaboradas pelo identidade pessoal e coletiva e formas de
historiador alemão Jorg Rüsen, representativa do aprendizado histórico.

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tecnológicos estão relacionados às problematizar o conceito de ciência,
aplicações do conhecimento sobre DNA ampliando as perspectivas de definição e
e células pode gerar debates e compreensão do referido termo.
controvérsias – pois, muitas vezes, sua
Quer dizer, as fendas abertas pela noção
repercussão extrapola os limites da
de consciência histórica possibilitam ao
ciência” (BNCC, 2018, p. 544).
docente mapear as diferentes formas
Já nas considerações sobre as Ciências estudantis de percepção da ciência por
Humanas e Sociais Aplicadas o meio das suas experiências individuais
documento explicita mais a ideia de e/ou coletivas de passado, de presente e
consciência do que a de ciência6. A de antecipação de futuro. Assim, se
despeito de apresentar a área utilizando verifica que as compreensões dos jovens
palavras-chaves do campo científico, educandos sobre a ciência não são frutos
como questionar, indagar ou criar do acaso, elas estão amparadas em
hipóteses, não se evidencia ao longo do operações mentais que definem o
texto, da maneira perceptível como nas pensamento histórico – a atribuição de
competências e habilidades das Ciências sentido ao tempo – e a sua função na
Exatas e da Natureza, que as cultura (RÜSEN, 2011, p. 37).
humanidades produzam, de fato, ciência.
Ainda que transcenda a utilização
Observa-se que a ênfase da BNCC para a exclusiva na educação escolar/formal,
área de Ciências Humanas e Sociais pois representa, de acordo com Rüsen
Aplicadas recai, inclusive por se (2011, p. 36) “[...] uma categoria geral
direcionar a adolescentes e jovens no que não apenas tem relação com o
ensino médio, sobre a produção e a aprendizado e o ensino de história, mas
articulação de subjetividades – cobre todas as formas de história; através
destoando da conhecida objetividade das dela se experiencia o passado e o
“ciências duras”. A discussão sobre os interpreta como história”, o conceito de
temas-objetos da área, como a sociedade, consciência histórica se torna profícuo
a política, a cultura e a memória etc., para tal fim, visto que abre horizontes
vinculada aos pressupostos subjetivos, a pedagógicos para refletir sobre
exemplo dos valores morais e das concepções de ciência e problematizar a
percepções do Eu, que o documento visa própria ideia de história enquanto ciência
incentivar no ensino básico, fragiliza as com os estudantes.
noções de que tais temas sejam também
Nesse sentido, embora a nomenclatura
conhecimentos produzidos a partir das
Ciências Humanas faça parte dos
regras e técnicas científicas.
currículos e materiais didático-
Assim, a identificação de fragmentos da pedagógicos, as particularidades
consciência histórica dos referidos metodológicas do fazer, do ensinar e do
estudantes é um passo inicial importante aprender história geralmente não
para abordar o tema em sala de aula. A assumem para os estudantes e, inclusive,
partir de suas próprias ideias e definições para muitos professores, as
do que é e de como funciona a ciência, ou características ditas científicas – os
seja, através dos componentes forjados pressupostos laboratoriais e técnicos –
por meio das realidades sociais das Ciências Naturais. A história seria
estudantis, o docente logra condições de

6
Na parte da BNCC relativa a Ciências Humanas consciência aparece 5 (cinco) vezes e o de
e Sociais Aplicadas verifica-se que o conceito de ciência, tomada no singular, não consta nenhuma.

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outra coisa, mas certamente não uma não tem característica comum a não
ciência.7 ser não terem sidos contemporâneos,
matéria de um conhecimento
Não obstante o trabalho pedagógico de racional? [...]
grande parte dos docentes de história no
ensino básico ainda enfatizar a Quer dizer, ao refletir nas décadas de
linearidade cronológica, o ensino factual, 1930 e 1940 sobre os métodos da história
os conteúdos sequenciais, os grandes e do ofício do historiador, Bloch se
acontecimentos e os famosos defronta com as incompatibilidades da
personagens nacionais, tais abordagens – escrita da história com os procedimentos
mediadas pelos livros didáticos ou pelas característicos das Ciências Naturais,
novas ferramentas, independente de uma vez que a matéria-prima do
utilizarem leitura, debates, vídeos, historiador, o passado ou o presente, por
imagens ou quaisquer linguagens – não si só não poderia ser objeto dos
transparecem ser socialmente resultado pressupostos científicos, experimentais,
de reflexões e de pesquisas científicas8, testáveis, materiais, das referidas
pouco insinuando às mentes juvenis a Ciências, afinal ela não é palpável e não
realização de um ou mais procedimentos pode ser testada em laboratório.
científicos nas aulas de história.9 As contradições epistemológicas entre o
Encontros e desencontros entre fazer da história e o fazer das Ciências
história e ciência Naturais são perenes, por isso Bloch
menciona o absurdo em pensar o passado
A problemática não é recente nos debates por meio das regularidades e de outras
historiográficos. Um dos fundadores da ferramentas das Ciências da Natureza. A
Annales d’histoire économique et história, como ver-se-á na continuidade
sociale, Marc Bloch (2001, p. 52), da obra Apologia da História, apesar de
refletiu a respeito: se apropriar progressivamente de
Diz-se algumas vezes: ‘A História é determinados métodos matemáticos,
a ciência do passado’. É [no meu como a estatística, a quantificação e a
modo de ver] falar errado. [Pois em serialização, deverá ser abordada,
primeiro lugar], a própria ideia de refletida e escrita cientificamente com
que o passado, enquanto tal, possa base em outros procedimentos
ser objeto de ciência é absurda. metodológicos, específicos do trabalho
Como, sem uma decantação prévia,
poderíamos fazer, de fenômenos que

7
Knauss (2005, p. 5) argumenta que o ensino de programas de pós-graduação na área, repensar de
história no Ocidente sempre enfatizou modo teórico e metodológico o ensino,
particularmente os aspectos morais, sagrados e do construindo novas propostas temáticas e
civismo, distanciando-se das bases do ferramentas pedagógicas, como também as
conhecimento científico, o que implica que políticas públicas, representadas nas legislações
grande parte dos professores mantenha noções de que incentivaram o ensino da história e cultura
conhecimentos comuns, a-científicos, na afro-brasileira e indígena, por meio das leis nº
perspectiva dos estudantes. 10.639/2003 e a 11.645/2008, por exemplo.
8 9
Por outro lado, se deve considerar uma série de Isso ocorre, dentre vários motivos, também pelo
transformações ocorridas nas últimas décadas fato da palavra história apresentar muitos
que ressignificaram o ensino de história. significados e diversas utilizações linguísticas no
Destacam-se, dentre elas, a ampliação do campo dia a dia das pessoas, como, por exemplo, a ideia
de estudos em ensino de história nas de disciplinar escolar\universitária ou os eventos
universidades brasileiras e estrangeiras, que narrados por uma pessoa (MORAES E
possibilitaram, além da formação e da FRANCO, 2013, p.12).
especialização de docentes em diversos

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do historiador com o agir dos homens ao adequar ao clássico método científico das
longo do tempo. Ciências Naturais. Daí em diante, a
finalidade da história se tornou – por
Deve-se considerar, entretanto, que a
meio da análise que o historiador,
tradição histórica emergida no século
autônomo e especialista, realiza nos
XIX, da qual Bloch é um herdeiro crítico,
documentos oficiais produzidos pelo
é a da história científica ou ciência
Estado - a busca e a revelação objetiva da
histórica. No alvorecer dos
“verdade” nua e crua dos fatos.
nacionalismos europeus, a história
logrou um influente prestígio político e Na tentativa de reprimir os idealismos
intelectual, visto que, a partir de então, os filosóficos, os historiadores, como, por
historiadores tornaram-se homens de exemplo, o alemão Leopold V. Ranke
Estado, recrutados para narrar e (1795-1886)10 e, depois, os franceses
(re)construir a história das velhas e das Charles-Victor Langlois (1863-1929) e
novas nações europeias. Eles se Charles Seignobos (1854-1942),
consolidam como artífices das passaram a enquadrar as especificidades
pretendidas identidades nacionais. da disciplina, como a temporalidade, os
eventos, a empiria documental, através
Nesse período, o chamado “século da
história” estimulou o desenvolvimento da crítica metódica, inspirada nas
técnicas e nos procedimentos universais
de uma variedade de ideias e elaborações
da Ciência Natural, para distingui-la de
do positivismo, do historicismo e do
precedentes versões literárias da história.
marxismo, por exemplo, que redefiniram
o estatuto epistemológico da história e o No entanto, o processo de cientifização
trabalho do historiador, pois “A partir de da história no século XIX conviveu de
então, só se quis conhecer as relações de perto com o avanço dos nacionalismos
causa e efeito, expressas de forma europeus, responsáveis diretos pelo
matemática” (REIS, 1996, p. 05). processo de concebê-la, a princípio na
França, como uma disciplina escolar.
A preocupação elementar com a
Enquanto os historiadores propunham
objetividade científica, a neutralidade, o
academicamente os novos métodos
método rígido, vislumbrando regras e
históricos/científicos, nas escolas
leis universais, como estabeleciam as
públicas eles deveriam estimular o senso
Ciências da Natureza, impulsionou o
de identidade (passado comum) e os
historiador a encarar os objetos - os fatos
interesses republicanos, o que impedia a
e os eventos históricos – com cautela e
efetividade de alguns processos
distância, rejeitando o envolvimento
metodológicos.
afetivo na análise e na narração deles,
visando as perfeitas condições para vê- Havia um descompasso entre as
los pragmaticamente, “tal como eram” discussões teórico/metodológicas das
(REIS, 1996, p. 13-14). universidades e a aplicação pedagógica
O ofício e o fazer do historiador se nas escolas. A operacionalização da
alterou, portanto, no século XIX, uma disciplina, através de um conjunto de
vez que o seu método de trabalho, o conhecimentos cívicos elementares,
método histórico, teve de se adaptar e se destacando as relações de causa e efeito,
as datas, os eventos e os nomes de
10
Contudo, em suas reflexões Ranke naturais, como os atos de coletar, investigar,
argumentava que a história é uma ciência procurar e verificar, como mantém também
específica. Com características híbridas, ela características do campo da arte, através dos atos
possui tanto aspectos aproximados das ciências de contar, expor, narrar.

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grandes personalidades políticas e às noções das Ciências da Natureza?
militares nacionais –, dignos de serem Como ela operacionaliza cientificamente
conhecidos e rememorados pelos os seus conhecimentos?
estudantes, não se fundamentava
Os conhecimentos prévios dos
cientificamente nos pressupostos da
estudantes que opõem geralmente
Escola Metódica.11
história e ciência – os fragmentos da
Com esse complexo processo de consciência histórica – são fundamentais
estruturação do campo da história para abrir reflexões nas aulas de história
ocorrido no século XIX, que fundiu sobre as significações cristalizadas dos
ciência e nacionalismo, método histórico referidos conceitos. Como a ciência não
e narrativas identitárias, o ensino de se resume a pesquisadores em
história mantém, ainda hoje, laboratórios, a história também não está
ambiguidades no seu fazer pedagógico simplificada nas vivências, nas narrativas
que constrangem estudantes e muitos ou nas memórias das pessoas.
professores. A adequação da história às
Torna-se fundamental dessacralizar o
regras do campo científico, por exemplo,
termo história, demonstrando que ela não
em que se reitera a estrutura científica
é simplesmente um relato, uma
por detrás dos eventos históricos, é pouco
historieta, estória ou anedota,
compreendida nas aulas do ensino
descompromissada e trivial. Se a história
básico.
é disciplina escolar desde o século XIX é
Ferreira e Franco (2013, p. 37) reforçam: porque pressupõe um conjunto de
O estabelecimento de fronteiras conhecimentos estruturados, baseados
entre o que é História em métodos, narrativas e modos de fazer
(conhecimento) e o que é a história próprios.
vivida foi (e continua sendo) um dos Ela deve ser apresentada aos estudantes
grandes desafios para todos os que
como tal, uma forma particular de
trabalham profissionalmente com a
história. Não se trata de definir
produção de conhecimento – logo, com
melhores ou piores histórias, mas de características de ciência –, que
estabelecer os critérios, métodos e investiga, interpreta e narra as relações
condições em que cada uma delas foi entre o presente e o passado. Os fatos e
escrita. as dinâmicas da história não possuem
existência per si, eles se concebem
Por consequência, devido a tais
enquanto tais pelo trabalho do historiador
particularidades do campo da história e
e da aplicação do método histórico.
do fazer do historiador, visto que as
ações humanas são complexas e não Os conteúdos históricos apresentados
seguem estritamente os rigorosos nos materiais pedagógicos da disciplina,
padrões matemáticos, os por exemplo, não possuem existência por
questionamentos estudantis continuam acaso; eles existem, dentre diversos
na pauta: a história é ciência? Se sim, por fatores, pela atuação de pesquisadores
que ela aparenta ser tão distinta e oposta que, em diferentes períodos, trouxeram

11
Conforme FERREIRA E FRANCO (2013, p. engajamento como cidadão republicano nas
50): “[...] é possível perceber duas faces, um tanto grandes lutas políticas do seu tempo. Esta
contraditórias, típicas dessa geração: de um lado, segunda orientação manifestou-se de forma mais
o comprometimento com a definição de um explícita na produção dos manuais didáticos, que
conjunto de regras que traçava as normas de uma demonstravam o comprometimento com os ideais
nova disciplina científica e, ao mesmo tempo, seu da III República.”

250
vestígios (materiais e imateriais) daquele (1989) apontou caminhos para um
passado à tona, os analisaram “paradigma indiciário”, em que o
teoricamente a partir de diferentes historiador segue pistas, sinais e
perspectivas e abordagens, criaram vestígios – muitas vezes tidos como
narrativas coerentes a respeito, os secundários e/ou irrelevantes –, a
validaram socialmente e criaram exemplo de um caçador que fareja carne
convenções entre os seus pares. fresca, que ampliam o seu arcabouço
investigativo e possibilitam uma
Nessa discussão, Bertonha (2021)
coerente análise histórica.
argumenta que o método histórico,
enquanto conjunto de procedimentos Nesse sentido, para contemplar um
técnicos do historiador, deve priorizar a determinado contexto social, o
análise dos registros do passado (as paradigma indiciário se vale de técnicas
fontes, os documentos), investigando que o próprio método científico (das
como foram produzidos, com quais Ciências Naturais) já consagrou, a
objetivos e interesses. Aliado a uma exemplo da observação (atenta e
perspectiva teórica para aprofundar as minuciosa dos objetos estudos), do
suas interpretações técnicas, o diálogo com a teoria e a literatura da área
historiador produz narrativas que, ao pesquisada, da formulação de hipóteses
organizar fatos, dinâmicas e trajetórias (estabelecidas através do diálogo com as
humanas, dão sentido a um passado. Esse fontes investigadas, como a
complexo processo é produtor de documentação) e do aceite dos pares para
conhecimento científico. com tais ideias e teses.
Nas últimas décadas, o conhecimento O ensino de história e a história
histórico avançou muito no sentido de pública: antídotos contra os
incorporar novos sujeitos, objetos, fontes negacionismos
e compreensões teórico-metodológicas, Na contemporaneidade, a questão se
incorporando reflexões sobre o apresenta como elementar dada a
imaginário, a memória, as
expansão dos discursos históricos
subjetividades, dentre outras importantes
negacionistas, amplificados com a
problemáticas, mas determinados
pandemia de COVID-19 e dos
procedimentos do fazer histórico ainda
movimentos antivacina, por exemplo,
continuam elementares desde o século
nas sociedades atuais. O
XIX, como a necessária busca pelas
desconhecimento e a distorção
fontes, o rastreio, a análise e a
intencional de dados, registros e
interpretação de documentos (oficiais ou
documentos históricos possibilitam a
não), para a escrita da história.
disseminação de mentiras (as fakes
Em outras palavras, como os News) e de “interpretações alternativas”
historiadores ainda não possuem da história que desconsideram os
laboratórios e máquinas do tempo, a processos e as etapas do método
escrita da história depende do histórico, com evidentes intenções
desenvolvimento e da estruturação de um políticas e ideológicas12.
método que apreenda e desnude a ação
humana no tempo. Carlo Ginzburg

12
As falsificações na história não são o caso da famosa Doação de Constantino
exclusividade da contemporaneidade. Nos desmistificada no século XV pelo filólogo
estudos históricos é bem conhecido, por exemplo, italiano Lorenzo Valla.

251
Os discursos negacionistas, a partir de relações apresentam um caráter
um fato consolidado na historiografia e especial e marcante – o de serem
na memória social de um grupo de relações fundamentalmente
pessoas, denegam os processos narradoras, dissertadoras.
históricos/científicos traumáticos, como Narração de conteúdos que, por isto
o Holocausto, a escravidão africana no mesmo, tendem-se a petrificar-se ou
Brasil, o autoritarismo da ditadura militar fazer-se algo quase morto, sejam
brasileira13, ou, ainda, o contemporâneo valores ou dimensões concretas da
aquecimento global, por exemplo, que se realidade. Narração ou dissertação
constituíram e se validaram por que implica um sujeito – o narrador,
e objetos pacientes, ouvintes – os
pesquisas empíricas, estudos
educandos.
documentais, discussões entre pares e
revisões de literatura da área, propondo Nesse sentido, o estudante “recebe”
narrativas e leituras conspiratórias da passivamente o saber e os conhecimentos
realidade, explicações frágeis e julgados necessários, enquanto um
superficiais que não se amparam pelos coadjuvante, tomado como objeto,
métodos científicos. estático e fixo, no processo escolar. Em
suma, a narração unilateral (o “narrar,
A história e o ensino de história, em
sempre narrar” (FREIRE, 1970, p. 65)
decorrência das especificidades do seu
como forma “enferma” de transposição
conhecimento – que deve combinar os
didática, implica, para Freire, que o
procedimentos técnicos, como a análise e
professor seja considerado o único
a comparação de fontes documentais,
detentor do saber, aquele que controla e,
com a ação escrita e a produção narrativa
em doses diárias, transfira “o
–, estão no âmago da questão. Além
conhecimento” aos pupilos.
disso, como não se está a tratar de
fenômenos exatos e determinados, Considera-se que a ênfase na
alargam-se as possibilidades para a característica narrativa da história,
distorção interpretativa e da manipulação articulada com a figura do professor-
de conhecimentos humanos. expositor, que paulatinamente “deposita”
e transfere o saber aos alunos, limitou o
A transposição didática de história no desenvolvimento de uma consciência
ensino básico foi historicamente
histórica estudantil que, além de
construída a partir do relato restringir a sua autonomia enquanto
memorialístico, que cronologicamente
estudante produtor de conhecimento e de
descreve fatos, personagens e datas. Tal cidadão, debilitou a compreensão de ver
forma de ensino, prática comum do
a história enquanto ciência, contribuindo
sistema escolar brasileiro nos últimos para esse processo de disseminação de
séculos, foi nomeada por Paulo Freire
“histórias alternativas”.
(1970, p. 65) de “educação bancária”:
Tais abordagens alternativas se
Quanto mais analisamos as relações
educador-educandos, na escola [...]
popularizaram no Brasil
podemos nos convencer de que estas contemporaneamente com o advento das

13
A coleção “Guia Politicamente Incorreto” é, (publicada pela editora Leya) inaugurada e
por certo, um exemplo consolidado da fomentada pelo jornalista Leandro Narloch
disseminação de versões alternativas da história, procura desconstruir as versões consolidadas de
visto que não se respalda em termos teóricos- temas como a escravidão africana, a ditadura
metodológicos pelos estudiosos da área. Sucesso militar, o futebol, a economia, a filosofia, dentre
de vendas no Brasil desde 2009, a série outras discussões políticas e sociais.

252
redes sociais, ocupando os espaços seu Canal Nostalgia14, reconhecido por
digitais e atraindo grande atenção na abordar e enfatizar temas históricos.
sociedade, como a dos estudantes. As Com mais de trezentos e quarenta (340)
plataformas virtuais, mobilizando uma vídeos publicados entre setembro de
gama de recursos de edição, produção, 2008 e fevereiro de 2022, Castanhari
financiamento e compartilhamento de tornou-se um fenômeno das redes sociais
mensagens e vídeos, possibilitaram a e uma referência, ainda que não seja
difusão de muitas versões superficiais, professor ou especialista nos assuntos
frívolas e/ou preconceituosas para os abordados, de história, política e
temas históricos. humanidades, em geral, para um grande
A propagação de canais com conteúdo público adolescente e jovem no país.
histórico, divulgados em vídeos no Com aproximadamente quinze milhões
youtube ou em áudio via podcasts, é de inscritos e mais de um bilhão de
representativa desse processo. Muitos visualizações, o youtuber impactou
profissionais, não-especialistas na área diretamente a forma de estudantes
da história, como youtubers e acessarem informações sobre história na
influenciadores digitais, gozam da última década no Brasil. A expressão
proximidade com o mundo cultural em corporal e a fisionomia jovem, a
que os estudantes estão inseridos e linguagem acessível, didática e atraente
reproduzem “versões alternativas” da para um público adolescente e juvenil
história, desprezando as técnicas e os interessado em novas tecnologias, aliada
métodos de produção do conhecimento à uma atraente produção audiovisual,
histórico. possibilita que Castanhari exerça uma
poderosa influência sobre os estudantes,
Ao analisar as relações entre o
sobressaindo-se em grande medida a
desenvolvimento do neoliberalismo e a
crise do ensino de história nas últimas exercida pelos docentes em sala de aula.
décadas do século XX, Cerri (2011, p. Compreende-se, no entanto, que o Canal
108) destacou que a progressiva perda de Nostalgia possui particularidades e se
persuasão dos docentes/historiadores difere de outros canais de produção de
esteve intimamente ligada a criação dos conteúdo histórico para os meios digitais,
novos canais digitais, que aumentando a preferindo superficializar os métodos de
concorrência na disputa da formação das escrever a história, recortando e
identidades de adolescentes e jovens, selecionando os temas históricos
concedeu voz, imagem e influência considerados atraentes para engajar o seu
social para os não-especialistas. canal, ao invés de produzir e/ou
reproduzir “versões alternativas” da
Nessa seara, pode-se destacar, por
história, como, por exemplo, o grupo
exemplo, o sucesso do youtuber e
designer gráfico Felipe Castanhari e de Brasil Paralelo15 se propõe.

14
O canal de Felipe Castanhari no youtube pode eletrônico, uma “verdade histórica”, os valores
ser acessado em: conservadores, a meritocracia, a liberdade, a
https://www.youtube.com/nostalgia/about. ambição, dentre outros. Nesse intento, registram
15
A Brasil Paralelo Entretenimento e Educação mais de dois milhões de inscritos e duzentas e
S/A é uma empresa fundada em Porto Alegre que, nove milhões de visualizações no youtube, como
desde 2016, produz material audiovisual, como também mais de duzentos e oitenta mil assinantes
documentários, artigos, entrevistas, resenhas, em sua plataforma principal. Mais informações
para diversas plataformas da internet, defendendo podem ser acessadas em:
intelectualmente, como se informa em seu sítio https://www.brasilparalelo.com.br/.

253
A questão-chave é que, de cientistas, em geral, para ocupar os
independentemente dos objetivos novos espaços virtuais e apresentar a
propostos – louváveis ou não – pelo canal ciência e as suas formas de atuação para
e de seu(s) criador(es) de conteúdos, o grande público (inclusive os
ele(s) teriam condições, se assim estudantes) através das novas mídias
quisesse(m), dada as dimensões de digitais.
alcance deles na internet, de inventar Nesse sentido, a atuação dos
narrativas, distorcer fatos e instigar historiadores nos novos espaços digitais,
preconceitos (étnicos, políticos, como as redes sociais, os podcasts, os
religiosos, sexuais, regionais) contra canais de vídeos, as transmissões digitais
diversos grupos sociais para milhões de (streaming), tornam-se fundamentais por
usuários, o que ameaça os postulados vários motivos. Em primeiro lugar,
democráticos e o Estado de Direito. pedagogicamente, a aproximação de
A popularização de canais digitais e a pesquisadores qualificados com um
atração social dos discursos número elevado de pessoas contribui
negacionistas (históricos/anticientíficos) para demonstrar a importância da ciência
reforçam o descrédito social dos na sociedade (em termos de
processos educacionais e da própria desenvolvimento educativo e
disciplina de história – progressivamente tecnológico, por exemplo) e para reforçar
diminuída dos currículos escolares – a luta contra a disseminação de
acentuando a desorientação intelectual pseudoconhecimentos e de notícias
dos estudantes e reforçando os falsas.
estereótipos sobre as ideias de ciência e Conforme Carvalho (2020, p. 4):
de história.
[...] a História Pública é antes de
Consequentemente, há uma ampliação tudo um movimento, uma morada
das lacunas para a atuação dos grupos para muitos profissionais que lidam
que dominam os recentes canais de com a história enquanto
comunicação. Com isso, de acordo com historiografia e ciência. A História
Cerri (2011, p. 112), o ensino de história Pública é um amálgama. Acho que
perde ainda mais o impacto na formação foi a presença marcante da História
da consciência histórica dos estudantes. Pública, entre nós historiadores, nos
Embora as diversas instituições sociais últimos anos, que fez muita gente
ajam diretamente nesse processo começar a pensar a História como
uma das ciências da divulgação
identitário, com os novos meios digitais
científica e em como fazer
o ensino de história deverá negociar, divulgação científica de história.
debater e complexificar ainda mais as
formas de atribuição de sentido ao Em tempos de políticas públicas que
tempo. visam a fragmentação dos
conhecimentos escolares, a exemplo da
Os recentes estudos de história pública reforma do Novo Ensino Médio, a
desenvolvidos no Brasil são história pública e os seus divulgadores
fundamentais nessa “batalha” contra os científicos se apresentam como
veiculadores de fake news fundamentais, uma vez que possibilitam
históricas/científicas. A mobilização de ampliar os debates a respeito das
associações, de departamentos, de conflituosas relações entre o Estado
programas de pós-graduação da área, de brasileiro, a educação e a sociedade.
grupos de estudos e de pesquisadores,
demonstra a urgência dos historiadores e

254
Para o ensino de história, em particular, a p.45), gerando consciência e formação
história pública aumenta as histórica sem banalizar ou descredenciar
possibilidades pedagógicas nos a criticidade da história.
processos de ensino-aprendizagem no
Apontamentos finais
século XXI, uma vez que ela reforça as
ideias sobre a disciplina histórica ser A complexificação das relações entre
resultado de complexos processos de história, ensino e ciência, acentuadas
produção de conhecimento. Área com a pandemia de COVID-19,
combativa na defesa do método dificultando o acesso presencial de
histórico, dos procedimentos e das milhões de estudantes às escolas,
técnicas de pesquisa, a história pública viabilizou uma ressignificação dos meios
fornece instrumental didático- digitais, possibilitando novos usos e
pedagógico para docentes e estudantes apropriações, que impactará na formação
ampliarem as correlações entre a história da consciência histórica de estudantes a
e a ciência. respeito de temas relacionados com a
pandemia, a exemplo da
Nesse sentido, como uma nova prática de
insubstituibilidade da ciência e de seus
se pensar e fazer história, ela utiliza
impactos na humanidade.16
recursos técnicos diversos para que, além
da luta pela preservação de culturas Para além das problemáticas condições
materiais e imateriais e da reflexão a de acessibilidade e de distribuição dos
respeito das distintas experiências sociais recursos digitais no Brasil – que deve ser
ao longo do tempo, a história também denunciada e problematizada –, a crise
faça sentido aos indivíduos ou grupos, sanitária global reforçou que os meios
possibilitando uma melhor compreensão digitais não podem ser denegados
dos seus referidos papéis na sociedade e profissionalmente pelos estudiosos, pelas
no mundo (ROVAI, 2017, p. 50). universidades e pelas escolas. Esses
espaços devem ser, cada vez mais,
Ressignificando as formas de lidar com o ocupados e metamorfoseados em prol
passado e de orientar temporalmente as das aprendizagens históricas e
pessoas, a história pública objetiva a científicas.
coerente divulgação científica dos
conhecimentos históricos aperfeiçoando Nesse sentido, em meio aos traumáticos
uma “educação histórica” a partir dos desdobramentos humanitários da
repertórios sociais e culturais exigidos pandemia de COVID-19, as sociedades
pelas sociedades do século XXI. Desse contemporâneas foram advertidas sobre
modo, leva-se, por exemplo, “[...] a a importância da ciência. Embora a
Academia a dialogar com a escola e com ênfase seja claramente a das Ciências
as mais diferentes comunidades, por Naturais, o impacto histórico da crise
meio da constituição de documentários, sanitária possibilita que os próprios
filmes de caráter histórico, vídeos profissionais da história reflitam sobre a
escolares produzidos com celulares, cientificidade de sua área e desenvolvam
livros romanceados, programas estratégias pedagógicas para pensar a
televisivos e internet” (ROVAI, 2017, respeito com os estudantes.

16
Ao mesmo tempo em que os meios digitais, em durante os períodos de isolamento social eles se
geral, são alvos de permanente desconfiança em consagraram como alternativas ao ensino
decorrência da superficialidade de seus presencial, fornecendo possibilidades de ensino
conteúdos e da ampla disseminação de notícias remoto, estimulando a realização de eventos
falsas (e negacionistas) em seus ambientes, acadêmicos e de formações pedagógicas.

255
O legado incomensurável da doença, já BLOCH, Marc. A Apologia da História, ou, O
que vitimou mais de cinco milhões de Ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001.
pessoas (dados de novembro de 2021),
viabiliza, por consequência, o CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. História do
Tempo Presente, História Pública e a divulgação
desenvolvimento de maiores reflexões
científica da história [Entrevista realizada em
sobre o processo de construção do abril de 2020]. Revista Tempo e Argumento,
conhecimento histórico, uma vez que, Florianópolis, v. 12, n. 29, e0402. jan./abr. 2020.
diante dessa conjuntura pandêmica, o Entrevistadora: Luana Borges Lemes.
professor/pesquisador auxilia os CERRI, Luís Fernando. Ensino de história e
estudantes a interpretarem a sua própria consciência histórica: implicações didáticas de
realidade. A interpretação histórica do uma discussão contemporânea. Rio de Janeiro:
presente auxilia na análise dos eventos e FGV, 2011.
de temas do passado. CHASSOT, Attico. A CIÊNCIA É
MASCULINA? É, sim senhora!... Contexto e
Em relação à pandemia, a aplicação do Educação. Ijuí: Editora UNIJUÍ - Ano 19 - nº
método histórico é um ato que transcende 71/72 - Jan./Dez. 2004 - P. 9 – 28.
os objetivos pedagógicos. A observação, FREIRE, Paulo. “Educação bancária” e educação
por exemplo, da ação humana durante a libertadora. In:_______. Pedagogia do
crise sanitária, a análise dos impactos Oprimido. 2. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
sociopolíticos e econômicos da 1970.
pandemia, a discussão e a revisão de GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais:
literatura com os pares, e a criação de morfologia e história. Tradução de Federico
hipóteses e interpretações sobre a Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
COVID-19, evocam uma defesa da KNAUSS, Paulo. O desafio da ciência: Modelos
coletividade e da vida em sociedade, do científicos no ensino de história. Cad. Cedes,
ideal democrático e da cidadania, que Campinas, vol. 25, n. 67, p. 279-295, set./dez.
2005. Disponível em:
contribuem muito para a identidade https://www.scielo.br/j/ccedes/a/TqSzzqKtJ5bB
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presente e perspectivas do ensino a partir do caso
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2021. Publicado em 2022-05-01

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