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Aula de Sapiência

na

Cerimónia Solene de Abertura do Ano Académico 2021 na


Universidade Eduardo Mondlane

Ensino, Investigação, Extensão e Inovação para o


Desenvolvimento na Era da COVID-19:
Poderá a Academia em Moçambique
Encontrar Oportunidades na Crise?

Ilesh Vinodrai Jani

Maputo, 21 de Maio de 2021

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CONTEÚDO

1 Introdução ................................................................................................ 3
2 As Crises e Seus Efeitos na Transformação dos Processos, das
Instituições e da Sociedade ............................................................................ 4
3 A Pandemia da COVID-19: um Contraste entre a Descoberta Científica
Rápida e a Persistência de Questões por Resolver ........................................ 7
4 Progressos Notáveis no Decorrer da Pandemia da COVID-19 ............. 10
5 Lições Aprendidas na Área de Ciência e Tecnologia Durante a
Pandemia da COVID-19.............................................................................. 13
6 O Novo Normal ou Um Novo Paradigma? ........................................... 15
7 Um Novo Paradigma para o Sistema de Ciência e Tecnologia ............. 17
8 Considerações Finais ............................................................................. 23
9 Referências Bibliográficas..................................................................... 25

2
1 Introdução

Em primeiro lugar, gostaria de manifestar o meu agradecimento à


Universidade Eduardo Mondlane pelo convite formulado para participar na
Cerimónia Solene de Abertura do Ano Académico 2021, o qual é motivo de
grande honra para o Instituto Nacional de Saúde e para mim pessoalmente.

A reflexão que apresentarei hoje teve como ponto principal de partida o tema
proposto pela Universidade Eduardo Mondlane “Ensino, Investigação,
Extensão e Inovação para o Desenvolvimento na Era da COVID-19”, ao qual
tomei a liberdade de adicionar a seguinte questão em forma de subtítulo da
aula “Poderá a Academia em Moçambique Encontrar Oportunidades na
Crise?”.

Proferir uma aula de sapiência sobre qualquer tema que seja é sempre um
desafio. No presente caso, o repto é particularmente grande por dois motivos.
Primeiro, não sou um perito em Desenvolvimento nem em COVID-19 –
embora sobre a COVID-19 sejamos todos estudantes muito engajados.
Segundo, não tenho a vivência quotidiana do meio universitário. O meu
conhecimento sobre as principais funções das universidades provém apenas
da minha experiência no sistema de ciência e tecnologia em Moçambique e
fora do país.

Apesar dos desafios, ou talvez em virtude dos desafios, aceitei o convite pois
o tema da aula está intimamente relacionado não só com a necessidade de
compilar e analisar o saber colectivo adquirido nestes vários meses de
período pandémico, mas também com o que queremos perspectivar para a
sociedade e para o sistema de ciência e tecnologia nos próximos anos.

As crises como a pandemia da COVID-19 são fontes de perigo, amplificam


deficiências sócio-económicas e causam grande sofrimento. Mas as crises
também encerram dentro de si oportunidades para transformações e
desenvolvimento. Deste modo, é importante descortinar com objectividade

3
tais oportunidades e lançar as bases para a sua materialização em contextos
de enorme incerteza e adversidade que caracterizam as situações de crise.

Assim, espero que a minha intervenção represente uma modesta contribuição


para um debate mais amplo, que deve ser aprofundado nos planos
conceptual, teórico e prático. Na minha opinião, este tipo de debate é, por
excelência, o exercício das instituições académicas.

Nesta aula irei abordar os efeitos transformadores das crises, os contrastes


científicos que caracterizam a pandemia da COVID-19, os progressos mais
notáveis alcançados no decorrer desta pandemia, as lições aprendidas com a
pandemia da COVID-19, o convencionado Novo Normal, e finalmente, o
novo paradigma para o sistema de ciência e tecnologia.

2 As Crises e Seus Efeitos na Transformação dos Processos, das


Instituições e da Sociedade

De seguida, falarei das crises e seus efeitos na transformação dos processos,


das instituições e da sociedade.

As crises têm efeitos transformadores profundos nos processos sócio-


económicos, nas instituições e na sociedade. Passo a referir alguns exemplos
históricos de crises e dos impactos que estas tiveram na humanidade.

A Peste Negra no Século XIV foi uma doença causada pela bactéria Yersinia
pestis, transmitida por pulgas que infestam roedores e humanos. Estima-se
que pelo menos um terço da população da Europa tenha morrido por esta
doença no século XIV (1). A peste negra chegou provavelmente à Europa
pelas rotas de comércio com a Ásia, e poderá ter se disseminado
principalmente a partir de tripulantes e passageiros de navios. Não sabendo
a causa da doença nem como esta se transmitia, a peste negra foi entendida
de várias formas, entre as quais destacam-se a crença segundo a qual tratava-
se de uma punição divina, uma enfermidade causada por uma conjuntura

4
astrológica, ou ainda derivada de grupos populacionais específicos –
levando, por exemplo, ao genocídio do povo judeu em algumas cidades
europeias. A peste negra teve um impacto importante sobre o comércio, a
religião, a arte, a organização das cidades e a percepção sobre populações
migrantes. Por exemplo, consequente à alta mortalidade, houve uma redução
da força de trabalho que culminou com o maior empoderamento dos
trabalhadores e uma diminuição da servidão ao feudalismo. Outro efeito
positivo foi o entendimento da importância do saneamento público nas zonas
urbanas para a prevenção e controlo de epidemias, e do isolamento de
pessoas infectadas para prevenir a disseminação de doenças. Estas práticas
estabeleceram alguns dos fundamentos da saúde pública contemporânea.

Outra crise de grande importância histórica, a Pandemia da Gripe em


1918-1919 foi causada pelo vírus da influenza A H1N1. A pandemia
ocorreu em três vagas, separadas por alguns meses (2). Mesmo na ausência
de ligações aéreas comerciais, estima-se que aproximadamente um terço
da população mundial tenha sido infectada e que 50 milhões de pessoas
possam ter morrido num período de dois anos. Não está ainda clara a
origem desta pandemia. Mesmo que a pandemia seja até hoje conhecida
como a da Gripe Espanhola, é mais do que evidente que a infecção não se
originou na Espanha – casos da doença já haviam sido identificados nos
Estados Unidos e em outros países europeus e asiáticos antes das primeiras
notificações na Espanha. É possível que a menor censura da imprensa na
Espanha na altura da pandemia, pois foi um país neutro na Primeira Guerra
Mundial que decorria na época, tenha levado à maior visibilidade do
aumento do número de casos da doença naquele país. Esta maior
visibilidade ficou, assim, associada ao nome do país. Embora a existência
dos vírus fosse já conhecida, a pandemia decorreu sem o conhecimento da
sua causa etiológica, e com a percepção que se tratava de uma infecção
bacteriana. Esta pandemia da gripe teve efeitos importantes em várias
esferas, incluindo a científica e a de saúde pública. Em muitos países das
Américas e da Europa, estabeleceu-se uma desilusão com a ciência que
levou, por exemplo, à celebridade da medicina alternativa. De forma

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contrária, os países da Ásia, notoriamente a China, adoptaram com mais
veemência o método científico. Como resultado, estes países investiram na
melhoria da colheita de dados de saúde e na vigilância das doenças como
as bases para a prevenção de futuras epidemias. Na área de saúde pública,
ficou mais uma vez evidente que as zonas urbanas densamente povoadas
contribuíam para a disseminação de doenças e legislação sobre o
urbanismo foi desenvolvida em vários países. Os conceitos de medicina
social e medicina preventiva foram adoptados em várias regiões após o
entendimento que as epidemias deveriam ser tratadas ao nível da
comunidade e não ao nível do indivíduo. A saúde passou a ser um direito
de todos e não de apenas alguns privilegiados. Apesar dos progressos nos
últimos cem anos, estes conceitos continuam a ser metas não atingidas.

O último exemplo de crise que irei descrever é a Epidemia da Doença Viral


por Ébola na África Ocidental nos anos 2013-2016. Esta foi a epidemia de
Ébola de maior dimensão até hoje registada, com 28,646 casos e 11,323
óbitos. Os três países mais afectados foram a Guiné Conacri, a Libéria e a
Serra Leoa (3), com casos também a ocorrer no Senegal, Reino Unido, Itália,
Espanha e Estados Unidos da América. Embora o impacto principal desta
epidemia tenha sido na África Ocidental, houve também um efeito, embora
de menor intensidade, em todo o mundo. Por exemplo, a indústria do turismo
foi afectada até em países distantes da África Ocidental. Os cerca de 17,000
recuperados da Doença Viral por Ébola enfrentam várias dificuldades no que
se refere à vida social e à saúde – neste último caso, o chamado síndrome
pós-Ébola. Recentemente, foi demonstrado que sobreviventes do sexo
masculino albergam o vírus da Ébola em forma dormente, e que a partir
destes se podem originar novos surtos, vários meses ou mesmo anos depois
– com consequências de relevo para os sistemas de prevenção e de vigilância
no nosso continente. Durante a epidemia em 2013-2016, foi realizado o
ensaio clínico que revelou, pela primeira vez, que uma vacina pode travar a
transmissão do Vírus da Ébola. Este foi um progresso assinalável na medida
em que demonstrou uma metodologia eficaz para a testagem de vacinas em
situações de epidemia, e pressionou as autoridades reguladoras

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internacionais a adoptar mecanismos mais flexíveis de aprovação de
produtos médicos para situações de crise. Como resultado dos impactos desta
epidemia do Vírus da Ébola, vários países africanos aceleraram a criação dos
seus Institutos Nacionais de Saúde Pública e a União Africana estabeleceu o
Centro Africano de Controlo de Doenças – arranjos institucionais
importantes para a prevenção e controlo de doenças no continente, através
de abordagens baseadas em evidência científica.

Em sumário, as crises causadas por eventos de saúde pública, assim como as


crises de natureza diferente, geram impactos negativos na sociedade. Mas
estas crises também originam transformações. Algumas, são motivadas pelo
instinto de sobrevivência da espécie. Outras, provêm da necessidade de
melhorar a qualidade de vida das comunidades e fomentar o crescimento
económico, tendo em conta uma realidade modificada pela própria crise.

3 A Pandemia da COVID-19: um Contraste entre a Descoberta


Científica Rápida e a Persistência de Questões por Resolver

Falemos agora mais especificamente da pandemia da COVID-19, e do


contraste que vivemos entre a descoberta científica rápida e a persistência de
questões por resolver.

Os primeiros casos da COVID-19 foram notificados em Dezembro de 2019


na China. Até hoje, foram já notificados mais de 164 milhões de casos e mais
de 3.4 milhões de mortes (4). O número real de casos e óbitos é
provavelmente muito maior devido à ocorrência de infecções assintomáticas
ou com sintomatologia ligeira, e também devido à subnotificação
influenciada pelo comportamento de procura de serviços de saúde pelas
comunidades e pela fragilidade dos sistemas de vigilância epidemiológica.

Para além do impacto na saúde pública, a pandemia da COVID-19 tem


efeitos negativos em todas as esferas da nossa vida, incluindo a social, a
económica, a cultural, a ambiental, a logística, entre outras (5).

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A pandemia da COVID-19 tem acentuado a pobreza das comunidades mais
desfavorecidas em todo o mundo. Tem também contribuído para aumentar
as desigualdades, tanto entre países como dentro dos países. Por outro lado,
a pandemia ocorre num substrato já existente de desigualdades sociais e de
acesso à saúde. Um conjunto de doenças das quais pouco falamos no nosso
contexto, as doenças não transmissíveis, são um factor que aumenta a
vulnerabilidade das pessoas à doença grave e à morte por COVID-19. Assim,
tem sido defendido por muitos que a COVID-19 não é uma pandemia (6). É
uma sindemia. As sindemias são caracterizadas por interacções biológicas e
sociais entre duas ou mais condições – neste caso, a COVID-19, as doenças
não transmissíveis e os problemas sócio-económicos vigentes. Estas
interacções aumentam a susceptibilidade de pessoas ou grupos específicos
de pessoas às doenças.

A COVID-19 e o seu vírus causador, SARS-CoV-2, continuam a ser um


contraste entre descobertas científicas rápidas e a persistência de questões
importantes não resolvidas. Passo a ilustrar este contraste usando como
exemplo a origem do vírus e a sua disseminação na população humana.

• Sobre a Origem do SARS-CoV-2:

➢ O que sabemos? Sabemos que o vírus foi detectado pela primeira


vez na cidade de Wuhan, Província de Hubei, na República
Popular da China, em frequentadores de um mercado
especializado em produtos animais. Sabemos também que o vírus
pertence à família dos Coronavírus, sendo um beta-coronavírus
com semelhanças a outros Coronavírus sazonais causadores de
infecções respiratórias comuns. Há alguma evidência de que este
vírus tenha sido originado num animal e que possivelmente
passou para o Homem através de um hospedeiro intermediário
(7).

8
➢ Que questões ficam ainda por responder? Não sabemos de que
animal o vírus provém originalmente, nem qual o hospedeiro
intermediário entre este e o Homem. Não temos evidências sobre
quando se deu a passagem do animal para o Homem, e nem sobre
quanto tempo este vírus infectava seres humanos antes da
primeira detecção em Dezembro de 2019.

• Sobre a Disseminação do SARS-CoV-2 na População Humana:

➢ O que sabemos? Sabemos que a transmissão do SARS-CoV-2


ocorre frequentemente antes do desenvolvimento da
sintomatologia na pessoa infectada – a chamada transmissão pré-
sintomática. Este tipo de transmissão coloca dificuldades
enormes na prevenção e está na base das medidas comunitárias
de contenção da pandemia. Sabemos também que as cidades e as
zonas densamente povoadas são os locais de maior intensidade de
transmissão deste vírus. Adicionalmente, hoje está mais evidente
que esta pandemia se transformará numa endemia, isto é, o
SARS-CoV-2 passará a ser um vírus que infecta populações de
forma perenal ou sazonal. Caso não hajam alterações na
patogenicidade do vírus, no futuro a exposição ao SARS-CoV-2
passará a ser principalmente na infância, causando
provavelmente uma doença do tipo resfriado comum (8).

➢ Que questões ficam ainda por responder? Algumas das questões


mais pertinentes ainda por decifrar são as relativas à duração da
pandemia e ao eventual período de transição de pandemia para
endemia (8). Adicionalmente, estão ainda por ser esclarecidos os
factores e a dinâmica que conduzem ao início de uma vaga de alta
transmissão.

Em sumário, a pandemia da COVID-19 ocorre num substrato de outras


condições e pode ser classificada como uma sindemia. As questões

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científicas não resolvidas são, de uma forma geral, aquelas que encerram
maior complexidade e que necessitam de abordagens transdisciplinares. A
busca de respostas para estas questões constitui, por isso, uma oportunidade
para a geração de novo conhecimento científico, para a construção de pontes
entre várias disciplinas de conhecimento, e para o desenho de abordagens
inovadoras para edificar sociedades resilientes e progressivas.

4 Progressos Notáveis no Decorrer da Pandemia da COVID-19

Nesta secção da aula, irei discutir progressos notáveis alcançados no decorrer


da pandemia da COVID-19.

A adversidade das crises geralmente obriga a progressos em várias esferas.


De seguida, mencionarei alguns progressos de grande impacto na área
científica, assim como nas áreas social e política.

- Primeiro, o sequenciamento genético completo do vírus causador da


COVID-19 foi realizado de forma acelerada e ficou disponível para a
comunidade científica internacional menos de um mês após a notificação dos
primeiros casos (9). O ritmo desta descoberta é inédito na história da
medicina. Este conhecimento tornou possível a resposta imediata à pandemia
através do desenvolvimento de ferramentas médicas importantes.

- Segundo, uma das tecnologias que mais rápido se beneficiou do


conhecimento sobre o genoma do vírus foi o teste diagnóstico. Os primeiros
testes moleculares ficaram disponíveis menos de um mês após a identificação
dos primeiros casos. Em Moçambique, os primeiros testes moleculares para
o diagnóstico da COVID-19 foram realizados no dia 10 de Março de 2020,
um dia antes da declaração de situação pandémica pela Organização Mundial
da Saúde. O acesso rápido e alargado ao diagnóstico laboratorial permitiu a
implementação de estratégias mais eficazes de controlo da infecção. Quero
lembrar que em outras pandemias este cenário foi bem diferente. Por
exemplo, toda a pandemia da gripe em 1918-1919 decorreu sem acesso ao

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diagnóstico e por isso sem conhecimento da causa da pandemia. Na epidemia
do Síndrome Respiratório Agudo Grave, SARS, uma doença causada por um
outro coronavírus, os testes de diagnóstico só ficaram disponíveis vários
meses após a identificação dos primeiros casos em 2003.

- Terceiro, os primeiros testes para a medição de anticorpos contra SARS-


CoV-2 ficaram disponíveis em Maio de 2020 em formato para uso em
laboratório, e em Junho de 2020 em formato de teste rápido. Estas
tecnologias permitiram o entendimento de aspectos importantes da geração
da imunidade, da patogénese e da transmissão do vírus. Por exemplo, a
realização de inquéritos sero-epidemiológicos em todas as províncias do
nosso país permitiu a identificação dos grupos populacionais e locais
geográficos mais expostos ao vírus, e a consequente implementação de
medidas de controlo ajustadas ao contexto moçambicano.

- Quarto, o desenvolvimento de vacinas e o início de vacinação massiva


também decorreram a um ritmo sem precedentes (10). Actualmente, 284
candidatas a vacina contra a COVID-19 se encontram em várias fases de
desenvolvimento. A primeira demonstração da eficácia de uma vacina contra
a COVID-19 foi publicada menos de um ano após o início da pandemia (11).
Em circunstâncias normais, o processo de desenvolvimento e aprovação de
uma vacina dura vários anos. Até à data, a Organização Mundial da Saúde já
aprovou cinco vacinas contra a COVID-19 para uso programático. Algumas
das vacinas aprovadas fazem, pela primeira vez, o uso de plataformas
inovadoras como o ARN mensageiro e os vectores de adenovírus, abrindo
possibilidades para a aceleração do desenvolvimento de vacinas contra
outros patógenos importantes. Mais de 1.5 bilhões de doses de vacinas contra
a COVID-19 já foram administradas. Este enorme progresso só é diminuído
pelo facto de menos de 2% das doses de vacinas terem sido administradas no
continente africano.

- Quinto, a urgência para o desenvolvimento de novas tecnologias médicas


resultou numa explosão de investigação e desenvolvimento nesta área. Como

11
consequência, os governos e as autoridades reguladoras foram pressionadas
a adoptar procedimentos inovadores na regulação da investigação clínica e
aprovação para uso destas tecnologias (12). Estas práticas inovadoras e mais
céleres foram, em certa medida, baseadas em lições aprendidas em outras
epidemias recentes.

- Sexto, a instituição e afirmação de comités científicos de aconselhamento


aos governos, no que se refere às medidas de prevenção e controlo da
pandemia da COVID-19 (13). Embora esta prática tenha sido frequente em
alguns países e em áreas temáticas específicas no período pré-pandémico, a
pandemia da COVID-19 marcou mais categóricamente a importância das
decisões informadas por evidência científica.

- Sétimo, a Saúde e a Segurança Sanitária são hoje reconhecidas como


elementos críticos para a sociedade e para o desenvolvimento. A partir deste
reconhecimento, passou-se a entender com menos hesitação que a promoção
e a protecção da saúde necessitam da acção multi-sectorial e da participação
de todas as forças vivas da sociedade.

Estes progressos que acabei de listar têm implicações importantes para o


controlo da pandemia da COVID-19, mas também poderão marcar o início
de transformações científicas, tecnológicas, sociais e políticas com
benefícios em outras esferas da nossa vida. É importante notar que a
ocorrência de outra pandemia é mais do que certa, ficando apenas a dúvida
sobre o “quando” e o “como”. Caberá às instituições do sistema de ciência e
tecnologia, e também à sociedade em geral, se posicionar de modo a manter
os ganhos acumulados durante o actual período pandémico e construir a
prontidão para o embate com a próxima pandemia.

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5 Lições Aprendidas na Área de Ciência e Tecnologia Durante a
Pandemia da COVID-19

Nesta próxima secção da intervenção, irei mencionar os vários aprendizados


acumulados pelos sistemas de ciência e tecnologia a nível global em mais de
um ano de período pandémico. De seguida mencionarei algumas lições com
implicações para o nosso contexto.

- Primeira, os países africanos apresentam uma dependência científica e


tecnológica de grande dimensão. As dificuldades logísticas colocadas pelo
encerramento do movimento entre os países, associadas ao quase colapso da
solidariedade internacional, tornaram evidente que os países que mais
investem na ciência e tecnologia gozam de maiores vantagens na superação
da crise. A cobertura da vacinação contra a COVID-19 no continente
africano é um dos exemplos mais expressivos da necessidade de reverter este
cenário da fragilidade dos sistemas de ciência e tecnologia africanos.

- Segunda, a participação da sociedade na resolução das crises é essencial.


No caso da COVID-19, esta participação é dependente do entendimento de
conceitos complexos que necessitaram da educação científica de toda a
sociedade. Em Moçambique, este processo tem tido lugar num ritmo e numa
dimensão sem precedentes, envolvendo meios de comunicação tradicionais,
redes sociais e outros canais de comunicação com as comunidades numa
parceria solidária. A comunidade académica tem também adquirido
experiência importante sobre a tradução da evidência científica em
informação acessível para o público em geral. Esta é uma demonstração de
que a popularização da ciência é possível nos países em desenvolvimento.

- Terceira, a incerteza não impede a tomada de decisões. No decurso desta


pandemia por um agente infeccioso novo, foi exigida da comunidade
científica global a geração de evidência científica que pudesse informar
decisões importantes, incluindo sobre medidas de grande impacto na vida
sócio-económica dos países. Em muitas ocasiões, a evidência científica não

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permitiu a previsão incontestável do futuro, tendo, no entanto, gerado vários
cenários plausíveis. Esta incerteza é uma limitação da ciência em certas
circunstâncias. Tem sido importante que a incerteza seja discutida de forma
transparente com a sociedade e com os decisores políticos. A partir da minha
experiência nos últimos meses, estou convencido que a comunicação sobre a
incerteza, assim como sobre a imperfeição da evidência científica, constitui
um aspecto crítico da educação científica da sociedade.

- Quarta, não existem soluções simples para problemas complexos. A


pandemia da COVID-19 é uma crise de grande complexidade, para a qual
não foi encontrada uma bala mágica que resolva o seu impacto em todas as
esferas da sociedade. Mesmo as vacinas, tidas como a tábua de salvação
colectiva, apresentam limitações no seu efeito protector universal. São
também complexas as situações a partir das quais se originam as crises,
incluindo as pandemias, e a partir das quais elas se propagam. Principalmente
para estas situações, que envolvem múltiplos actores e factores, as soluções
simplistas têm poucas chances de sucesso. As soluções para os problemas
complexos deverão ser trabalhadas a partir de abordagens abrangentes e
transdisciplinares.

- Quinta, a evidência científica local é importante para informar decisões


ajustadas ao contexto nacional. O surgimento de um vírus novo com
potencial pandémico, a complexidade da pandemia e a incerteza da evidência
científica sobre o impacto das medidas preventivas fez sobressair a
relevância das especificidades contextuais. Assim, a geração de evidência
científica local, tal como a realização de inquéritos sero-epidemiológicos
(14), jogou um papel influente no entendimento de contextos nacionais e na
tomada de decisões.

- Sexta, a divulgação rápida da evidência científica usando mecanismos


sem a revisão por pares é uma faca de dois gumes (15). A situação de
emergência global catalisou os processos para a disponibilização rápida das
publicações científicas, tendo a taxa de uso de repositórios pré-publicação

14
nos primeiros três meses da pandemia sido 100 vezes superior quando
comparado a outras epidemias recentes de grande dimensão. Embora os
benefícios da disponibilização rápida das publicações sejam indiscutíveis, a
pré-publicação sem revisão de pares tem limitações. Frequentemente, o
processo de revisão de pares conduz à reavaliação dos métodos, dos
resultados e até das conclusões do trabalho científico. No entanto, o acesso
alargado das pré-publicações, incluindo à media não especializada e à
população em geral, tem alimentado uma outra pandemia concorrente à da
COVID-19 – a infodemia, isto é, a disseminação descontrolada de notícias
falsas sobre a COVID-19. Paralelamente, tem também havido ocasiões em
que resultados de trabalhos de investigação, notavelmente sobre vacinas
contra COVID-19, são apresentados em comunicados de imprensa sem o
detalhe científico requerido para a avaliação científica – outra vez,
alimentando a disseminação de notícias falsas. Assim, enquanto se
continuam os esforços para a promoção da publicação científica de acesso
aberto (open-access), da qual sou adepto há vários anos, haverá também que
estabelecer procedimentos para o escrutínio dos repositórios pré-publicação
e exigir a comunicação responsável entre os investigadores e audiências não
científicas.

Em sumário, os vários aprendizados acumulados nesta crise têm o potencial


para continuar a galvanizar o progresso da ciência e da tecnologia nos países
em desenvolvimento, agora no período pandémico assim como no período
pós-pandémico.

6 O Novo Normal ou Um Novo Paradigma?

Nos minutos que se seguem, irei discutir o conceito de Novo Normal.

O controlo da propagação da COVID-19 e a mitigação dos efeitos da


pandemia exigiram a adopção de medidas de prevenção, assim como de
restrições individuais e colectivas. Estas medidas afectaram toda a sociedade
e obrigaram à mudança de comportamentos e hábitos. Adicionalmente, o

15
funcionamento de vários sectores sócio-económicos precisou de ser ajustado
a uma nova realidade. Muitas destas mudanças que ocorreram no período
pandémico favorecem a correcção de deficiências do funcionamento da
nossa sociedade e economia com as quais, talvez pelo hábito e/ou pela
indiferença, convivíamos como se fossem “normais” e inofensivas. Por
exemplo, é visível hoje a melhoria da higiene e do saneamento em vários
locais públicos, com efeito positivo sobre a saúde das comunidades.

A pandemia da COVID-19 pode contribuir para a adopção de uma nova


configuração socio-económica, a que chamamos o Novo Normal. Este
conceito foi empregue em crises anteriores, como por exemplo na Primeira
Guerra Mundial e na Recessão Global dos anos 2008-2012. O Novo Normal
se refere a um estado de estabilização da sociedade, da economia, ou de outro
plano, num período que se segue a uma crise, especialmente quando esse
estado difere da situação no período pré-crise.

É expectável que algumas das configurações adoptadas durante o período


pandémico persistam no período de transição e no período pós-pandémico.
É até desejável que as medidas de promoção e protecção da saúde, assim
como aquelas promotoras do desenvolvimento sócio-económico, sejam
mantidas após o fim da pandemia. Deste modo, o Novo Normal poderia ser
o nosso veículo rumo às metas dos Objectivos de Desenvolvimento
Sustentável.

Alguns, no entanto, discordam do conceito de Novo Normal. A razão


principal é que o Antigo Normal, chamado também de Antigo Anormal, não
funcionou para uma grande parte da população mundial, que continua a viver
em situação de extrema dificuldade. A disseminação rápida e o efeito
devastador da pandemia da COVID-19 deixam poucas dúvidas sobre a
fragilidade dos sistemas de saúde em todo o mundo e sobre a inadequação
do modelo sócio-económico mercantilista. Os críticos do conceito de Novo
Normal defendem que o Mundo precisa de um novo paradigma, desligado
do Antigo Anormal.

16
Embora hajam elementos comuns que deverão ser trabalhados à escala
global, cada país deverá encontrar o seu próprio novo paradigma, ajustado
ao seu contexto sócio-económico e cultural. Este exercício deverá ser
realizado tendo em conta as lições aprendidas durante a pandemia, mas sem
ideias pré-concebidas a partir do Antigo Anormal. As instituições
académicas, devido à sua natureza desinibida e livre de preconceitos, deverão
jogar um papel preponderante neste processo de busca do novo paradigma
para toda a sociedade.

7 Um Novo Paradigma para o Sistema de Ciência e Tecnologia

Na última parte desta aula, farei colocações relativas ao novo paradigma para
o Sistema de Ciência e Tecnologia.

As duas últimas décadas registaram um desenvolvimento importante do


Sistema de Ciência e Tecnologia no nosso país. Alguns dos factores que para
tal contribuíram incluem:

- A criação e constância de um Ministério que superintende as áreas do


Ensino Superior, Ciência e Tecnologia;

- A adopção de uma Política de Ciência e Tecnologia;

- A adopção de uma Estratégia de Ciência, Tecnologia e Inovação;

- A criação do estatuto do investigador na função pública;

- O estabelecimento do Fundo Nacional de Investigação;

- A criação da Academia de Ciências de Moçambique;

17
- O crescimento substancial do número de instituições nacionais de ensino
superior e de investigação científica;

- O surgimento a nível nacional de vários cursos de Mestrado e


Doutoramento, com um impacto de relevo na criação de uma massa crítica
jovem;

- O aumento do número de empresas e organizações não governamentais que


realizam investigação e inovação.

No entanto, apesar do indiscutível progresso, deve também ser dito que nem
todos os actores do sistema realizam as respectivas funções na sua máxima
capacidade e/ou potência, merecendo, por isso, ser objecto de acções de
fortalecimento.

As universidades constituem um dos principais elementos do sistema de


ciência e tecnologia de qualquer país. A forma como as universidades se
estruturam foi profundamente marcada pelo pensamento de Humboldt, com
o estabelecimento, a partir do século XVIII, das duas funções essenciais de
ensino e investigação. A partir da segunda metade do século XIX, em
resultado de um conjunto de transformações económicas importantes, com
destaque para o sucesso da revolução industrial e a consolidação do
capitalismo, registou-se gradualmente a integração de uma nova função na
universidade, nomeadamente a extensão. Em tempos mais recentes, a
universidade tem sido cada vez mais reconhecida como um actor importante
na geração da inovação baseada no conhecimento científico.

O ensino e a investigação científica são a base fundamental, sem a qual a


extensão e a inovação despem-se de conteúdo. Por outro lado, as duas últimas
dimensões constitutivas da universidade, a extensão e a inovação, jogam
papéis proeminentes para a relevância das universidades na sociedade.

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As restrições impostas pela pandemia da COVID-19 tiveram um impacto de
relevo nas universidades e instituições de ensino superior (16). Um estudo
realizado pela Associação Internacional das Universidades em Março e Abril
de 2020, inquirindo 424 instituições em 109 países, revelou que 59% das
instituições haviam fechado as portas. Embora apenas 41% das instituições
afirmou estar envolvida em investigação sobre COVID-19, dois terços das
instituições declararam que seus líderes e professores eram regularmente
consultados pelo governo no contexto de desenvolvimento de políticas
públicas de controlo da COVID-19.

As instituições de ensino superior têm sofrido um impacto financeiro


substancial, principalmente como resultado da redução do pagamento de
propinas pelos estudantes, das despesas para a implementação de programas
de prevenção da COVID-19, e da necessidade de investimento em
tecnologias de informação e comunicação para o ensino à distância. Estudos
em vários países mostram que as universidades com maior capacidade para
resistir ao choque da pandemia são aquelas cujos orçamentos menos
dependem das propinas dos estudantes, isto é, aquelas mais activas nas áreas
de investigação, extensão e inovação.

Na área do ensino, as instituições do ensino superior têm apostado no ensino


à distância e no ensino híbrido. Embora muitas das instituições já tivessem
realizado algum investimento de base nas tecnologias e metodologias
necessárias, o início brusco do período pandémico obrigou a acções de
conserto rápido e pontual. Tendo em conta que a pandemia e o período de
transição para endemia poderão ter a duração de alguns anos, faz-se agora
necessário que o investimento nas tecnologias de informação e comunicação
seja feito de forma mais estratégica e com metas de longo-prazo.

O ensino à distância e o ensino híbrido são parte integrante do novo


paradigma para o ensino superior. Assim, para além do investimento
tecnológico que já mencionei, será também necessário que docentes e
estudantes sejam dotados de novas competências, e que os curricula dos

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cursos sejam adaptados a uma nova realidade. Em países como Moçambique,
onde o acesso à internet ainda tem fragilidades, é importante que o ensino à
distância e o ensino híbrido sejam concebidos de forma a não resultar na
exclusão de estudantes desfavorecidos ou na perpetuação das desigualdades
sócio-económicas. Na presença de uma infraestrutura digital moderna e
equitativa, a adopção desinibida de modelos de ensino online poderá
incrementar de forma exponencial o acesso ao ensino superior.

Nas áreas de investigação, extensão e inovação, o nosso país, à semelhança


da maior parte dos países africanos, enfrenta grandes desafios estruturais,
nomeadamente na disponibilidade de financiamento, no número e na
qualidade de investigadores, na existência de infraestrutura apropriada, na
adequação da legislação, na capacidade de atrair e reter talentos, entre outros.

Sofremos também da falta de colaboração entre as instituições e grupos de


pesquisa nacionais, e sobretudo da escassez de iniciativas de trabalho
científico transdisciplinar. Estes aspectos de colaboração e da
transdisciplinaridade são criticamente limitantes para a investigação de
questões complexas ligadas ao desenvolvimento, e especialmente para as
áreas de extensão e inovação.

Um outro interveniente que deverá ser mais interventivo no sistema de


ciência e tecnologia é o sector privado. Precisamos que este sector tenha
maior engajamento no ensino pós-graduado, na investigação, na extensão, e
de forma ainda mais importante, na inovação.

As fragilidades dos sistemas de ciência e tecnologia africanos, incluindo o


nosso, foram tornadas mais agudas durante esta crise que vivemos. No
entanto, também surgem oportunidades, principalmente criadas pela
visibilidade sem precedentes da importância da ciência, tecnologia e
inovação, assim como pela necessidade de mitigar o impacto da pandemia
da COVID-19, preparar o continente para a próxima crise e promover o
desenvolvimento sustentável.

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Especificamente para Moçambique, penso ser de grande importância a
definição de uma agenda de prioridades para o sistema de ciência e
tecnologia, com base em três princípios estratégicos:
- Primeiro, focalização nas necessidades mais estruturantes para o país;

- Segundo, identificação de temas em que o país oferece vantagem


competitiva em termos de geração de conhecimento científico original;

- Terceiro, dar preferência a problemas complexos que necessitam de


abordagens transdisciplinares e que influenciam o desenvolvimento
sustentável a longo-prazo.

Atrevo-me, com o intuito de provocar o debate, a oferecer duas sugestões de


temas prioritários e uma proposta de estruturação:

- Organização dos Centros Urbanos: as grandes cidades têm históricamente


sido os epicentros das pandemias, e onde se concentram os seus principais
impactos. Nas próximas décadas a população urbana continuará a crescer.
As projecções do Instituto Nacional de Estatística indicam que em 2040 pelo
menos 40% da população de Moçambique viverá em zonas urbanas. A não
ser que haja uma mudança de paradigma, as cidades continuarão a perpetuar
um ambiente propício a problemas sócio-económicos, desigualdades sociais,
doenças não transmissíveis, trauma, doenças infecciosas endemo-
epidémicas, e todas as consequências destas condições no bem-estar e no
desenvolvimento.

- Gestão das Florestas e Reservas Naturais: uma das consequências do


crescimento populacional e das necessidades económicas é a ocupação de
ecossistemas pouco habitados por humanos para diversos fins, incluindo a
habitação, a exploração de recursos e o agronegócio. Para além dos impactos
no ambiente, na protecção da biodiversidade e na protecção das comunidades
contíguas, são importantes as considerações à luz dos conceitos de Saúde

21
Única (OneHealth). Várias epidemias são originadas a partir de zoonoses,
que são infecções transmitidas a partir de animais para humanos. O SARS-
CoV-2 e o Vírus da Ébola são exemplos de agentes zoonóticos. Prevê-se que
outras pandemias possam ser originadas por infecções zoonóticas no
decorrer das próximas décadas, como resultado da ocupação e exploração de
espaços ainda pouco habitados por humanos. A ocorrência de agentes
infecciosos em animais selvagens vertebrados é relativamente frequente. Por
exemplo, um trabalho recentemente realizado em Moçambique com a
participação de investigadores do Instituto Nacional de Saúde e da
Universidade Eduardo Mondlane, mostrou que 20.5% dos morcegos
estudados no sul e centro do país eram portadores de Coronavirus (17),
ilustrando o potencial, pelo menos teórico, de um reservatório animal
importante deste tipo de microorganismos zoonóticos no país.

- Estruturação de Centros Virtuais: a necessidade de abordar problemas


complexos usando abordagens transdisciplinares, ou ainda o estabelecimento
de programas coordenados de ensino pós-graduado, investigação, extensão e
inovação envolvendo múltiplos actores, exigem matrizes diferentes das
tradicionais. Os Centros Virtuais são uma solução estrutural que pode
agregar competências de várias instituições e grupos de pesquisa, sem a
necessidade da co-habitação de um espaço físico comum, mas focando a
colaboração na resolução de um problema. Em países como Moçambique,
que ainda tem um número relativamente reduzido de investigadores e
inovadores, os Centros Virtuais podem promover a rentabilização dos
recursos e o foco nos assuntos mais estratégicos para o desenvolvimento do
país.

Thomas Kuhn, físico e filósofo do século XX, afirmou que o conhecimento


científico desenvolver-se-ia pela criação e abandono de paradigmas. Penso
que o mesmo se aplica ao sistema de ciência e tecnologia. Nos próximos
anos, teremos de abandonar alguns dos paradigmas do antigo anormal e
edificar um sistema mais adequado às necessidades do nosso país.

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8 Considerações Finais

Passo agora às minhas considerações finais.

As crises causam sofrimento, colocam em perigo a nossa sobrevivência, e


testam os nossos valores sociais e culturais. Pela sua natureza disruptiva, as
crises desafiam a criatividade, e oferecem a oportunidade para romper com
o status quo, transformar a sociedade e acelerar o desenvolvimento. O
rompimento com o estado pré-crise é muitas vezes parcial, mas suficiente
para estabelecer novos paradigmas.

A magnitude da diferença entre a nova realidade e o antigo normal depende


de vários factores incluindo a duração da crise, a extensão da resistência às
mudanças, as vantagens competitivas oferecidas pelos novos paradigmas e o
investimento necessário para manter os novos processos nas instituições. Em
última análise, a criação de uma nova realidade é fruto da concepção de uma
visão de longo-prazo que seja fundamentalmente distinta do status quo e que
seja alavancada por processos iniciados durante a crise.

Embora as crises possam ser recordadas por longos períodos, nem sempre as
lições mais importantes ficam marcadas na história e/ou dão origem a
transformações importantes. Por exemplo, pouco se fala da pandemia da
gripe de 1968, conhecida como a Gripe de Hong Kong, que pode ter causado
até quatro milhões de mortes num período inferior a dois anos.

Pela sua natureza, as instituições académicas devem se constituir na principal


força motriz para as transformações sócio-económicas que o nosso país
necessita nos próximos anos, incluindo para aquelas que dizem respeito a
elas próprias nas vertentes de ensino, investigação, extensão e inovação.
Estas transformações devem ser impulsionadas ainda durante a vigência
desta pandemia.

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O sofrimento causado pelas crises só pode ser consolado pela manutenção
dos progressos alcançados durante a sua resolução, e pelas transformações
que contribuam para estabelecer uma sociedade mais justa, mais
desenvolvida e mais resiliente. As instituições académicas, que são a
vanguarda do pensamento estratégico, têm uma responsabilidade acrescida
neste processo.

Termino com a mensagem principal que gostaria que fosse veiculada por esta
intervenção, a chamada “take-home message”, que está contida na agora
célebre frase do político Rahm Emanuel, que passo a citar: “Nunca deixe
uma crise séria ser desperdiçada. A crise é uma oportunidade para se fazer o
que se pensava não poder ser feito”. Fim de citação.

Agradeço a todos pela atenção dispensada.

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9 Referências Bibliográficas

1) The Black Death. A Chronicle of the Plague. (1961) Nohl J; Clarke CH.
George Allen & Unwin, Ltd. United Kingdom.

2) Pale Rider: The Spanish Flu of 1918 and How it Changed the World.
(2017) Laura Spinney. Penguin Books. United Kingdom.

3) WHO Ebola Response Team. Ebola virus disease in West Africa--the


first 9 months of the epidemic and forward projections. (2014) N Engl J
Med 371:1481-95.

4) http://covid19.who.int, consultado em 20 de Maio de 2021.

5) Bashir M, Benjiang MA, Shahzad L. A brief review of socio-economic


and environmental impact of Covid-19. (2020) Air Quality, Atmosphere &
Health 1: 1-7

6) Horton R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. (2020) Lancet. 396:


874

7) Brierley L, Fowler A. Predicting the animal hosts of coronaviruses from


compositional biases of spike protein and whole genome sequences through
machine learning. (2021) Plos Path. 17:e1009149.

8) Lavine JS, Bjornstad ON, Antia R. Immunological characteristics govern


the transition of COVID-19 to endemicity. (2021) Science. 371:741-745.

9) Zhu N et al. A Novel Coronavirus from Patients with Pneumonia in


China, 2019. (2020) N Engl J Med. 382: 727-733.

10) https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-
2019/covid-19-vaccines, consultado em 18 de Maio de 2021.

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11) Baden LR et al. Efficacy and Safety of the mRNA-1273 SARS-CoV-2
Vaccine. (2021) N Engl J Med. 384: 403-416.

12) https://www.ema.europa.eu/en/human-regulatory/overview/public-
health-threats/coronavirus-disease-covid-19/treatments-vaccines/vaccines-
covid-19/covid-19-vaccines-development-evaluation-approval-monitoring,
consultado em 18 de Maio de 2021.

13) Boletim da República I Série – Número 58. Resolução Nº 20/2020, de


25 de Março.

14) https://covid19.ins.gov.mz/documentos-em-pdf/brochuras-informativas,
consultado em 18 de Maio de 2021.

15) Brierley L. Lessons from the influx of preprints during the early
COVID-19 pandemic. (2020). Lancet Planetary Health. 5: e115-7.

16) Marinoni G., van’t Land H, Jensen T. The Impact of COVID-19 on


Higher Education Around the World (2020). IAU Global Survey Report.

17) Joffrin L et al. Bat coronavirus phylogeography in the Western Indian


Ocean (2021). Sci Rep. 10: 6873.

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