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CONTEÚDO
1 Introdução ................................................................................................ 3
2 As Crises e Seus Efeitos na Transformação dos Processos, das
Instituições e da Sociedade ............................................................................ 4
3 A Pandemia da COVID-19: um Contraste entre a Descoberta Científica
Rápida e a Persistência de Questões por Resolver ........................................ 7
4 Progressos Notáveis no Decorrer da Pandemia da COVID-19 ............. 10
5 Lições Aprendidas na Área de Ciência e Tecnologia Durante a
Pandemia da COVID-19.............................................................................. 13
6 O Novo Normal ou Um Novo Paradigma? ........................................... 15
7 Um Novo Paradigma para o Sistema de Ciência e Tecnologia ............. 17
8 Considerações Finais ............................................................................. 23
9 Referências Bibliográficas..................................................................... 25
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1 Introdução
A reflexão que apresentarei hoje teve como ponto principal de partida o tema
proposto pela Universidade Eduardo Mondlane “Ensino, Investigação,
Extensão e Inovação para o Desenvolvimento na Era da COVID-19”, ao qual
tomei a liberdade de adicionar a seguinte questão em forma de subtítulo da
aula “Poderá a Academia em Moçambique Encontrar Oportunidades na
Crise?”.
Proferir uma aula de sapiência sobre qualquer tema que seja é sempre um
desafio. No presente caso, o repto é particularmente grande por dois motivos.
Primeiro, não sou um perito em Desenvolvimento nem em COVID-19 –
embora sobre a COVID-19 sejamos todos estudantes muito engajados.
Segundo, não tenho a vivência quotidiana do meio universitário. O meu
conhecimento sobre as principais funções das universidades provém apenas
da minha experiência no sistema de ciência e tecnologia em Moçambique e
fora do país.
Apesar dos desafios, ou talvez em virtude dos desafios, aceitei o convite pois
o tema da aula está intimamente relacionado não só com a necessidade de
compilar e analisar o saber colectivo adquirido nestes vários meses de
período pandémico, mas também com o que queremos perspectivar para a
sociedade e para o sistema de ciência e tecnologia nos próximos anos.
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tais oportunidades e lançar as bases para a sua materialização em contextos
de enorme incerteza e adversidade que caracterizam as situações de crise.
A Peste Negra no Século XIV foi uma doença causada pela bactéria Yersinia
pestis, transmitida por pulgas que infestam roedores e humanos. Estima-se
que pelo menos um terço da população da Europa tenha morrido por esta
doença no século XIV (1). A peste negra chegou provavelmente à Europa
pelas rotas de comércio com a Ásia, e poderá ter se disseminado
principalmente a partir de tripulantes e passageiros de navios. Não sabendo
a causa da doença nem como esta se transmitia, a peste negra foi entendida
de várias formas, entre as quais destacam-se a crença segundo a qual tratava-
se de uma punição divina, uma enfermidade causada por uma conjuntura
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astrológica, ou ainda derivada de grupos populacionais específicos –
levando, por exemplo, ao genocídio do povo judeu em algumas cidades
europeias. A peste negra teve um impacto importante sobre o comércio, a
religião, a arte, a organização das cidades e a percepção sobre populações
migrantes. Por exemplo, consequente à alta mortalidade, houve uma redução
da força de trabalho que culminou com o maior empoderamento dos
trabalhadores e uma diminuição da servidão ao feudalismo. Outro efeito
positivo foi o entendimento da importância do saneamento público nas zonas
urbanas para a prevenção e controlo de epidemias, e do isolamento de
pessoas infectadas para prevenir a disseminação de doenças. Estas práticas
estabeleceram alguns dos fundamentos da saúde pública contemporânea.
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contrária, os países da Ásia, notoriamente a China, adoptaram com mais
veemência o método científico. Como resultado, estes países investiram na
melhoria da colheita de dados de saúde e na vigilância das doenças como
as bases para a prevenção de futuras epidemias. Na área de saúde pública,
ficou mais uma vez evidente que as zonas urbanas densamente povoadas
contribuíam para a disseminação de doenças e legislação sobre o
urbanismo foi desenvolvida em vários países. Os conceitos de medicina
social e medicina preventiva foram adoptados em várias regiões após o
entendimento que as epidemias deveriam ser tratadas ao nível da
comunidade e não ao nível do indivíduo. A saúde passou a ser um direito
de todos e não de apenas alguns privilegiados. Apesar dos progressos nos
últimos cem anos, estes conceitos continuam a ser metas não atingidas.
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internacionais a adoptar mecanismos mais flexíveis de aprovação de
produtos médicos para situações de crise. Como resultado dos impactos desta
epidemia do Vírus da Ébola, vários países africanos aceleraram a criação dos
seus Institutos Nacionais de Saúde Pública e a União Africana estabeleceu o
Centro Africano de Controlo de Doenças – arranjos institucionais
importantes para a prevenção e controlo de doenças no continente, através
de abordagens baseadas em evidência científica.
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A pandemia da COVID-19 tem acentuado a pobreza das comunidades mais
desfavorecidas em todo o mundo. Tem também contribuído para aumentar
as desigualdades, tanto entre países como dentro dos países. Por outro lado,
a pandemia ocorre num substrato já existente de desigualdades sociais e de
acesso à saúde. Um conjunto de doenças das quais pouco falamos no nosso
contexto, as doenças não transmissíveis, são um factor que aumenta a
vulnerabilidade das pessoas à doença grave e à morte por COVID-19. Assim,
tem sido defendido por muitos que a COVID-19 não é uma pandemia (6). É
uma sindemia. As sindemias são caracterizadas por interacções biológicas e
sociais entre duas ou mais condições – neste caso, a COVID-19, as doenças
não transmissíveis e os problemas sócio-económicos vigentes. Estas
interacções aumentam a susceptibilidade de pessoas ou grupos específicos
de pessoas às doenças.
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➢ Que questões ficam ainda por responder? Não sabemos de que
animal o vírus provém originalmente, nem qual o hospedeiro
intermediário entre este e o Homem. Não temos evidências sobre
quando se deu a passagem do animal para o Homem, e nem sobre
quanto tempo este vírus infectava seres humanos antes da
primeira detecção em Dezembro de 2019.
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científicas não resolvidas são, de uma forma geral, aquelas que encerram
maior complexidade e que necessitam de abordagens transdisciplinares. A
busca de respostas para estas questões constitui, por isso, uma oportunidade
para a geração de novo conhecimento científico, para a construção de pontes
entre várias disciplinas de conhecimento, e para o desenho de abordagens
inovadoras para edificar sociedades resilientes e progressivas.
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diagnóstico e por isso sem conhecimento da causa da pandemia. Na epidemia
do Síndrome Respiratório Agudo Grave, SARS, uma doença causada por um
outro coronavírus, os testes de diagnóstico só ficaram disponíveis vários
meses após a identificação dos primeiros casos em 2003.
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consequência, os governos e as autoridades reguladoras foram pressionadas
a adoptar procedimentos inovadores na regulação da investigação clínica e
aprovação para uso destas tecnologias (12). Estas práticas inovadoras e mais
céleres foram, em certa medida, baseadas em lições aprendidas em outras
epidemias recentes.
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5 Lições Aprendidas na Área de Ciência e Tecnologia Durante a
Pandemia da COVID-19
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permitiu a previsão incontestável do futuro, tendo, no entanto, gerado vários
cenários plausíveis. Esta incerteza é uma limitação da ciência em certas
circunstâncias. Tem sido importante que a incerteza seja discutida de forma
transparente com a sociedade e com os decisores políticos. A partir da minha
experiência nos últimos meses, estou convencido que a comunicação sobre a
incerteza, assim como sobre a imperfeição da evidência científica, constitui
um aspecto crítico da educação científica da sociedade.
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nos primeiros três meses da pandemia sido 100 vezes superior quando
comparado a outras epidemias recentes de grande dimensão. Embora os
benefícios da disponibilização rápida das publicações sejam indiscutíveis, a
pré-publicação sem revisão de pares tem limitações. Frequentemente, o
processo de revisão de pares conduz à reavaliação dos métodos, dos
resultados e até das conclusões do trabalho científico. No entanto, o acesso
alargado das pré-publicações, incluindo à media não especializada e à
população em geral, tem alimentado uma outra pandemia concorrente à da
COVID-19 – a infodemia, isto é, a disseminação descontrolada de notícias
falsas sobre a COVID-19. Paralelamente, tem também havido ocasiões em
que resultados de trabalhos de investigação, notavelmente sobre vacinas
contra COVID-19, são apresentados em comunicados de imprensa sem o
detalhe científico requerido para a avaliação científica – outra vez,
alimentando a disseminação de notícias falsas. Assim, enquanto se
continuam os esforços para a promoção da publicação científica de acesso
aberto (open-access), da qual sou adepto há vários anos, haverá também que
estabelecer procedimentos para o escrutínio dos repositórios pré-publicação
e exigir a comunicação responsável entre os investigadores e audiências não
científicas.
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funcionamento de vários sectores sócio-económicos precisou de ser ajustado
a uma nova realidade. Muitas destas mudanças que ocorreram no período
pandémico favorecem a correcção de deficiências do funcionamento da
nossa sociedade e economia com as quais, talvez pelo hábito e/ou pela
indiferença, convivíamos como se fossem “normais” e inofensivas. Por
exemplo, é visível hoje a melhoria da higiene e do saneamento em vários
locais públicos, com efeito positivo sobre a saúde das comunidades.
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Embora hajam elementos comuns que deverão ser trabalhados à escala
global, cada país deverá encontrar o seu próprio novo paradigma, ajustado
ao seu contexto sócio-económico e cultural. Este exercício deverá ser
realizado tendo em conta as lições aprendidas durante a pandemia, mas sem
ideias pré-concebidas a partir do Antigo Anormal. As instituições
académicas, devido à sua natureza desinibida e livre de preconceitos, deverão
jogar um papel preponderante neste processo de busca do novo paradigma
para toda a sociedade.
Na última parte desta aula, farei colocações relativas ao novo paradigma para
o Sistema de Ciência e Tecnologia.
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- O crescimento substancial do número de instituições nacionais de ensino
superior e de investigação científica;
No entanto, apesar do indiscutível progresso, deve também ser dito que nem
todos os actores do sistema realizam as respectivas funções na sua máxima
capacidade e/ou potência, merecendo, por isso, ser objecto de acções de
fortalecimento.
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As restrições impostas pela pandemia da COVID-19 tiveram um impacto de
relevo nas universidades e instituições de ensino superior (16). Um estudo
realizado pela Associação Internacional das Universidades em Março e Abril
de 2020, inquirindo 424 instituições em 109 países, revelou que 59% das
instituições haviam fechado as portas. Embora apenas 41% das instituições
afirmou estar envolvida em investigação sobre COVID-19, dois terços das
instituições declararam que seus líderes e professores eram regularmente
consultados pelo governo no contexto de desenvolvimento de políticas
públicas de controlo da COVID-19.
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cursos sejam adaptados a uma nova realidade. Em países como Moçambique,
onde o acesso à internet ainda tem fragilidades, é importante que o ensino à
distância e o ensino híbrido sejam concebidos de forma a não resultar na
exclusão de estudantes desfavorecidos ou na perpetuação das desigualdades
sócio-económicas. Na presença de uma infraestrutura digital moderna e
equitativa, a adopção desinibida de modelos de ensino online poderá
incrementar de forma exponencial o acesso ao ensino superior.
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Especificamente para Moçambique, penso ser de grande importância a
definição de uma agenda de prioridades para o sistema de ciência e
tecnologia, com base em três princípios estratégicos:
- Primeiro, focalização nas necessidades mais estruturantes para o país;
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Única (OneHealth). Várias epidemias são originadas a partir de zoonoses,
que são infecções transmitidas a partir de animais para humanos. O SARS-
CoV-2 e o Vírus da Ébola são exemplos de agentes zoonóticos. Prevê-se que
outras pandemias possam ser originadas por infecções zoonóticas no
decorrer das próximas décadas, como resultado da ocupação e exploração de
espaços ainda pouco habitados por humanos. A ocorrência de agentes
infecciosos em animais selvagens vertebrados é relativamente frequente. Por
exemplo, um trabalho recentemente realizado em Moçambique com a
participação de investigadores do Instituto Nacional de Saúde e da
Universidade Eduardo Mondlane, mostrou que 20.5% dos morcegos
estudados no sul e centro do país eram portadores de Coronavirus (17),
ilustrando o potencial, pelo menos teórico, de um reservatório animal
importante deste tipo de microorganismos zoonóticos no país.
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8 Considerações Finais
Embora as crises possam ser recordadas por longos períodos, nem sempre as
lições mais importantes ficam marcadas na história e/ou dão origem a
transformações importantes. Por exemplo, pouco se fala da pandemia da
gripe de 1968, conhecida como a Gripe de Hong Kong, que pode ter causado
até quatro milhões de mortes num período inferior a dois anos.
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O sofrimento causado pelas crises só pode ser consolado pela manutenção
dos progressos alcançados durante a sua resolução, e pelas transformações
que contribuam para estabelecer uma sociedade mais justa, mais
desenvolvida e mais resiliente. As instituições académicas, que são a
vanguarda do pensamento estratégico, têm uma responsabilidade acrescida
neste processo.
Termino com a mensagem principal que gostaria que fosse veiculada por esta
intervenção, a chamada “take-home message”, que está contida na agora
célebre frase do político Rahm Emanuel, que passo a citar: “Nunca deixe
uma crise séria ser desperdiçada. A crise é uma oportunidade para se fazer o
que se pensava não poder ser feito”. Fim de citação.
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9 Referências Bibliográficas
1) The Black Death. A Chronicle of the Plague. (1961) Nohl J; Clarke CH.
George Allen & Unwin, Ltd. United Kingdom.
2) Pale Rider: The Spanish Flu of 1918 and How it Changed the World.
(2017) Laura Spinney. Penguin Books. United Kingdom.
10) https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-
2019/covid-19-vaccines, consultado em 18 de Maio de 2021.
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11) Baden LR et al. Efficacy and Safety of the mRNA-1273 SARS-CoV-2
Vaccine. (2021) N Engl J Med. 384: 403-416.
12) https://www.ema.europa.eu/en/human-regulatory/overview/public-
health-threats/coronavirus-disease-covid-19/treatments-vaccines/vaccines-
covid-19/covid-19-vaccines-development-evaluation-approval-monitoring,
consultado em 18 de Maio de 2021.
14) https://covid19.ins.gov.mz/documentos-em-pdf/brochuras-informativas,
consultado em 18 de Maio de 2021.
15) Brierley L. Lessons from the influx of preprints during the early
COVID-19 pandemic. (2020). Lancet Planetary Health. 5: e115-7.
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