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COLA NA GUARDA
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BRANCA ROSTO
FICHA TÉCNICA INDICE
Conferencias 000
Landscape practice in Mozambique 000
As cidades como motores do desenvolvimento rural? 000 Recordando António Quadros 000
O que é arquitectura Africana? 000 O pintor das paredes 000
Projeto arquitectónico e gestão urbana sustentáveis em Moçambique 000 Os médicos fotógrafos. 2014 000
Africa global architecture. What does that mean? How can we define global architecture? 000 30 fotos do Filipe Branquinho 000
Construções Sustentáveis: um desafio 000 Malangatana, o crocodilo amigo 000
Reflexões de São Paulo 000 Mestre Fil: Octávio Lixa Filgueiras 000
Maputo 000 Eduardo Souto de Moura 000
Onde está a arquitectura? 000
Primeiro Seminário Nacional de Ciência e Tecnologia 000 Posfácio 000
Amigos 000
O António e a Ilha 000
António Quadros, Professor 000
Pancho Guedes 000
Raul Hestnes Ferreira 000
Elogio de Malalangatana Valente Ngwenha 000
JOSÉ FORJAZ,
PENSAR ARQUITECTURA
CASA DA MALVEIRA JOSÉ FORJAZ
Agosto, Setembro de 2017
A experiência, ou a inexperiência, política que caracterizou os primeiros dez anos do meu re-
torno a Moçambique, no final de 1974, foi uma aprendizagem de valor incalculável, quer em
13 termos profissionais quer em termos da importância das dimensões ideológicas e politícas da
profissão.
O âmbito das responsabilidades assumidas forçaram uma abertura a um irrecusável interesse pe-
las escalas mais vastas da intervenção do arquitecto, que me obrigou a uma prática que vai do design
gráfico, de móveis e do objecto e do edifício à organização do espaço regional, incluindo o desenho
e planeamento urbano e a que se soma o paisagismo.
A inexperiência em quase todos esses sectores só não foi mais profundamente sofrida por não
haver nessa altura em Moçambique qualquer disponibilidade de especialistas nessas disciplinas.
A escolha, obrigada, foi a de um assumido auto-didatismo enriquecido esporadicamente por contac-
tos com especialistas estrangeiros, a nível profissional e didáctico.
A responsabilidade pela organização de programas de formação em planeamento físico e ar-
quitectura, num meio desprovido de profissionais e de docentes, obrigou-me a um esforço de auto
formação multidisciplinar que me autorizasse a um diálogo intenso e permanente com docentes das
diversas especialidades, recrutados como cooperantes.
Nas condições de Moçambique em 1985, quando se equacionou a criação de uma faculdade de
arquitectura e o número total de profissionais nacionais actuantes era menos de uma dezena para
uma população de mais de 15 milhões de habitantes e onde os graduados seriam inevitavelmente
chamados a actuar através de todo o espectro das tecnologias e das artes da organização do espaço,
em situações de grande isolamento cultural e disciplinar; nessas condições seria essencial que, na sua
formação, lhes tornássemos clara a consciência da continuidade entre as diversas escalas da interven- Esta colecção de reflexões, declarações, contribuições, pensamentos, elegias e outras formas de
ção no espaço, da regional à do edifício, e os dotássemos com as ferramentas disciplinares mínimas expressão, foi amadurecendo ao longo destes anos.
essenciais para, nessas condições de isolamento técnico e profissional, poderem actuar coerentemente A evolução do pensamento e das circunstâncias que os motivaram acompanha a evolução das
sem comprometer as relações entre aquelas escalas. minhas perspectivas e das minhas percepções.
Foi uma batalha para a qual houve pouco apoio mas que valeu a pena por ter sido determinante A hesitação em trazê-las a uma audiência aberta foi, sempre, a mesma: nada me assegura que
na construção de uma faculdade de planeamento físico, e não restritamente de arquitectura, e que, as minhas dúvidas e certezas sejam ou possam vir a ser do interesse daqueles comprometidos com
passados mais de trinta anos, se justifica pelos resultados já produzidos. idênticos problemas.
A filosofia subjacente à minha evolução intelectual e profissional tem sido construída sobre É um risco que assumo para que se justifique uma vida à procura das razões de ser e de fazer.
a noção da continuidade e interdependência entre os vectores culturais e naturais como deter- Algumas destas elaborações são respostas a pretextos e motivações exteriores ao conteúdo imedia-
minantes do exercício criativo. Esta lógica, elementar, necessita interesses múltiplos que vão da to da arquitectura e, aparentemente, em muitos casos, distantes da sua razão de ser mas, para mim,
história à geografia e da sociologia à economia informando uma progressiva formação ideoló- todas fazem parte duma forma integradora de pensar que me é natural e indispensável.
gica sem a qual não se pode exercer uma actividade tão profundamente humanística como é a Os temas nelas considerados são, recorrentemente, os mesmos. Talvez, simplesmente, o mesmo:
do arquitecto. a enorme dúvida e a temerária certeza de que a arquitectura não é um exercício de especulação finan-
E, contudo, a tentação e o encanto da forma foram sempre a emoção estimulante. ceira ou estética mas uma actividade cuja razão de ser é a de contribuir para a melhoria do habitat
A libertação de responsabilidades políticas e na administração pública não foi fácil, ou mesmo humano no seu meio físico e ambiental, cultural e político.
pacífica, mas abriu caminho a um progresso mental acelerado e a novas experiências e contactos en- Desta forma e para o arquitecto, que continuo a tentar ser, a batalha permanente e relevante é
riquecedores: dirigir um curso de desenvolvimento em países do terceiro mundo na universidade de 14 15 a de mediar entre os interesses materiais, a expressão do poder político e económico e a incompe-
La Sapienza em Roma e cursos de mestrado em Filadélfia e em San Diego; participar em exercícios tência administrativa e pela promoção do indivíduo como responsável por uma presença física que
didácticos na África do Sul e noutros países da África, da Europa e da Ásia; preparar conferências em o ultrapassa. Nada me assegura que esta preocupação seja esclarecida e que possa vir a contribuir
todos esses horizontes e, ao mesmo tempo, manter a prática do projecto e a direcção da faculdade – para um debate sobre o problema do que deve ser uma arquitectura válida para o nosso futuro
todas estas actividades complementares sedimentaram uma época de enorme intensidade intelectual ameaçado.
e de constante reflexão. Cada um deve lutar pelo que defende como justo.
Foi, também, o início da necessidade de escrever, quer para dar resposta a convites e à participa- Naturalmente que, aqui, se repetem ideias, imagens, metáforas, argumentos e mesmo formas
ção em conferências e publicações, quer pela necessidade de reflectir e registar elaborações mentais literárias. Podem até encontrar-se contradições mais ou menos explícitas.
sobre problemas da arquitectura em toda a sua extensão cultural. Não há aqui uma intenção de fluidez literária ou a coerência inabalável de uma tese a defender;
A colecção de textos reunidos nesta publicação é, na sua maior parte, o registo dessas reflexões, há, sim, a oferta cândida da evolução de um pensamento sobre um tema vasto e integrador da dedi-
intensificadas ao virar do milénio, no sentido de atingir uma noção cada vez mais esclarecida do que cação de uma vida.
é fazer arquitectura no século XXI, independentemente do lugar e do contexto cultural, económico Nada do que aqui apresento pretende ser original mas, apenas, uma contribuição a um pensar
e social. comum.
Não se incluem, nesta colecção, alguns textos escritos na década de 1980 e primeira metade de Para facilitar a leitura, organizaram-se os escritos nos temas principais que estas reflexões
1990 e editados em 1999 no livro “Entre o Adobe e o Aço Inox”. Apenas se retomam desse período abordam: os dois primeiros incidem sobretudo sobre as inquietações em torno do que é ser
três reflexões que incidem mais diretamente sobre ser arquitecto, sobre arquitectura e sobre o ensino arquitecto e ser professor; o seguinte é uma colecção de reflexões e escritos avulsos; o quarto
da arquitectura em Moçambique. debruça-se sobre problemas urbanos; o quinto é uma colecção de comunicações para diferentes
Identicamente não se incluem muitos outros textos, didácticos ou transcrições de conferências e públicos sobre variegados temas; o sexto são entrevistas concedidas a jornais e revistas; o sétimo
entrevistas, que não acrescentariam aos conteúdos dos aqui seleccionados. são homenagens a pessoas que marcaram e influíram na minha maneira de pensar e a quem
devo um salutar confronto de atitudes e a fraternal companhia na procura de atitudes e posições
corretas.
Sempre que possível os textos estão, em cada Tema, ordenados cronologicamente permitindo
ajuizar da evolução e coerência do pensamento que os informa.
As imagens inseridas ao longo de todo o livro ilustram, paralelamente, um percurso criativo e
expressivo sem uma imediata ou directa relação com os escritos.
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SER ARQUITECTO
CASA FORJAZ, MABBANE, SUAZILANDIA JOSÉ FORJAZ
ESTE TEXTO TIREI
DO INDESIGN
DE MOZ. A minha vida como arquiteto (1954/1987) Naturalmente que assim teria que ser pois a abertura que o sistema colonial-fascista permitia a
Escrito em Filadélfia, enquanto professor visitante (Fall um debate aberto e sério sobre a função social do arquiteto era reduzida.
NÃO VEIO COM Simplisticamente poderia afirmar-se que a prática liberal da profissão era, senão uma forma de
Semestre) na Universidade da Pensilvânia
OS OUTROS cooperação com o sistema pelo menos refletia uma aceitação tácita.
Outubro de 1987. Excluíam-se alguns dos poucos profissionais que nos serviços públicos, como nas Obras Públicas
e nas Câmaras Municipais, continuavam pacientemente um trabalho de infraestruturação do terri-
tório que, embora muitas vezes e inevitavelmente marcada pelo vinculo da descriminação, tinha um
conteúdo social potencialmente válido para o futuro.
O estaleiro da obra cedo me fascinou.
O poder do arquiteto para por e dispor paredes, abrir vãos, escolher materiais e definir cores era
uma capacidade que, aceite com impaciência, eu tinha que esperar para exercer.
Com o Pancho o contacto com as obras era frequente e sempre uma alegre aventura.
Aprendi muito com ele, com os mestres de obra e com os operários.
Aprendi, mesmo antes de entrar para a Escola Superior de Belas Artes do Porto, o oficio de
SER ARQUITETO desenhador, o cuidado com o detalhe, a importância do processo de construção e a necessidade
de racionalizar decisões. Esta precoce aprendizagem foi, talvez mesmo, um pesado lastro na minha
20 21 evolução pois que durante anos e certamente durante todo o período escolar de formação a preocu-
Comecei a vida como aprendiz de arquiteto aos dezassete anos quando, em 1953, concorri e fui pação com a integridade do processo construtivo me preocupava mais que a procura das dimensões
aceite como “desenhador tarefeiro” nos Serviços de Obras Públicas de Moçambique, em Lourenço poético-espaciais dos projetos.
Marques. Só mais tarde percebi que se pode ser poeta sem saber escrever...
Durante quase dois anos aprendi a desenhar edifícios executando laboriosamente os desenhos Em 1955, quando comecei a estudar arquitetura, entrei e participei num meio cultural profun-
que os arquitetos me passavam e assistindo às suas discussões sobre aspectos funcionais, técnicos e damente interessado pelo estudo e revalorização da arquitetura não erudita, popular ou vernácula,
estéticos dos projetos. não só em Portugal mas por toda a Europa, particularmente em Espanha e Itália.
Na mesma altura pedi para trabalhar com o arquiteto local mais interessante e que me parecia o O racionalismo e o internacionalismo, que para mim eram abstrações teóricas, pareciam, ao que
único que situava o exercício de arquitetura num plano de mais criativa expressão artística, Amâncio vim a perceber, exaustos da sua força de orientação do pensamento arquitectónico e passiveis de
d’Alpoim Miranda Guedes, o “Pancho” como era conhecido e que viria a ter uma projeção impor- serem repensados à luz da integração de outros valores que, os arquitetos, no contexto da repressão
tante nos meios internacionais tanto pelas suas reais qualidades como por estar à vontade e ser bem política, poucas oportunidades tinham de manifestar.
conhecido no meio anglo-saxónico da África do Sul. O clima académico e cultural era de intensa paixão. As pontes entre uma posição política válida,
Já naquela altura me dava conta da grande disparidade de posições em relação à arquitetura e da o exercício da profissão e a possibilidade de combate à expressão fascista da arquitetura, pareciam
paixão com que cada posição era defendida entre os arquitetos. poder fazer-se, também, por recurso à recuperação de tradições ricas de significado social, coerência
Discutiam-se os méritos relativos do F.L. Wright vis-a-vis Le Corbusier ou do Aalto versus Mies; técnica e potencial expressivo.
discutiam-se racionalmente os méritos do racionalismo e inflamavam-se irracionalmente as paixões. Ao mesmo tempo procuravam-se alternativas a uma arquitetura “internacional” que soava a falso
O que se passava à nossa volta era discutido, sobretudo, no seu mais restrito e imediato valor num Portugal de industrialização incipiente, onde era mais barato construir em pedra que em tijolo,
estético e as posições profissionais eram, quase sempre, estanques ao contexto geral, isto é, à situação onde cada janela e cada porta eram produzidas uma a uma e onde as grandes obras de engenharia
colonial em que todos vivíamos. eram as mais favorecidas por um pequeno faraó (António de Oliveira Salazar) no limite da senilidade.
Tudo isto não me era ainda claro ou consciente. Vivia-se o tumulto dos debates até ao insulto, do Só agora, curiosamente, me dou conta que aos meus colegas de estudos não se punha
preto ou branco, do católico ou comunista. esta questão. Para eles o futuro era como ganhar a vida, não onde ganha-la. Os que vieram
Neste remoinho de ideias continuava eu a tentar aprender, um pouco abandonado a mim mes- a emigrar fizeram-no já adultos, conscientes das raízes que deixavam ou da necessidade de a
mo. elas retornar.
A Escola de Belas Artes pouco tinha a oferecer, ou era, pelo menos, assim que eu o sentia. Eu era desenraizado antes de formado. Era desenraizado realmente: não considerava como meu
Depois de um primeiro ano a desenhar ordens clássicas, segundo Vignola, de que eu tinha uma qualquer país ou qualquer cultura.
edição setecentista, vieram anos sucessivos de história de arte, de pouca arquitetura além dos exercí- Tal como hoje.
cios de composição a desenvolver com a ajuda dos assistentes que pouco adiantavam em termos de Inevitavelmente fui trabalhar para Paris.
reflexão teórica. Era a oportunidade de ver o mundo, o Corbusier, as supostas dimensões maiores da cultura em
Em 5 anos de curso não me lembro de um momento verdadeiramente didático de teoria de que me estava a formar.
arquitetura. E vi-as realmente, ou julguei que eram essas as dimensões maiores.
Essas questões eram discutidas e debatidas nas horas de convívio nas tascas onde comíamos e no Vi o Corbusier e muitas outras coisas. Vi a Suíça, os suíços e a sua arquitetura de relojoeiro apli-
café, entre nós estudantes e quase sempre com a presença e participação dos assistentes e professores. cado e, às vezes, genial.
Achei-me, só, na gélida Biblioteca Municipal a ler os “Entretiens” do Viollet le Duc, a poupar Vi a Holanda, mais poética, igualmente aplicada.
dinheiro para comprar o Borissavlievich, que nunca consegui acabar e o Choisy, com idêntico re- Vi outras dimensões da liberdade de dizer o que se pensa e da oportunidade de fazer o que se diz;
sultado, mais as meio digeridas teorias dos praticantes a quem interessava teorizar sobretudo como outras dimensões dos monumentos e das cidades e das suas arquiteturas.
autojustificação. 22 23 Vi, sem querer acreditar, a superficialidade no exercício da profissão num país onde o arquiteto
Daí o meu estimulado interesse pelas disciplinas paralelas da geografia humana, da sociologia e era, e talvez seja ainda, o homem da grande composição, do “parti”, mas onde me era afirmado,
da antropologia. todos os dias, que “não há 33 soluções ...” para cada problema e que “os engenheiros e construtores
Sem guia nem orientação essas leituras eram um sofrimento e uma ginástica mental de valor depois resolvem o que não soubermos”.
incalculável para a auto disciplina. Não quis compreender ou acreditar e, para mim, chegou.
As revistas e monografias, os tratados e os ensaios teóricos iam-me confortando a curiosidade e o Afinal tinha razão. Não era, essa, a maneira de exercer esta arte-profissão.
interesse pelos temas da atualidade internacional da arquitetura. Na Suíça passei algum tempo, com a tentação de lá ficar. Voltei a acreditar naquilo que eu con-
Era difícil arrumar esta torrente de informações num corpo coerente, numa filosofia estruturada siderava seriedade profissional.
e inspiradora de uma continuidade cultural que percebia como necessária. Lembro-me da grande impressão que me ficou das obras do Gisel e do Waltenspuhl, do Shadder
Na verdade não me sentia minimamente como um potencial continuador de tradições ou como e do Roth. A qualidade impecável da construção, a sabedoria no uso dos materiais e no tratamento
veiculo plenamente consciente da expressão das dimensões sociais da arquitetura. do terreno e dos espaços urbanos.
Tradição parecia-me equiparável a reacionarismo, via estilo como uma muleta cultural e uma
forma superficial de coerência criativa.
O meu desenraizamento físico, emocional e cultural, quando aos 15 anos fui transplantado para
África, para uma cidade onde só conhecia o meu pai, começava, subconscientemente ... ou talvez
não... a fazer-se sentir.
Que viria eu a decidir ou aceitar como futuro?
Ficar numa terra que já não era a minha depois da experiencia de outros horizontes ou voltar para SÓ MAIS TARDE PERCEBI QUE SE PODE SER POETA
uma terra que ainda não era a minha mas de horizontes mais sentidos como desejáveis? SEM SABER ESCREVER...
Afinal tinha razão: arquitetura é coisa séria. Quase por acaso ( ... é espantoso o que me tem acontecido na vida por acaso !) uma oportunidade
Voltei. Não sem dificuldade. Aquele rigor, aquela qualidade, o potencial de expressão e sobretudo de bolsa de estudos para os Estados Unidos.
de aprendizagem constante eram uma grande tentação para uma nova experiencia. O importante nos Estados Unidos não foi o trabalho que lá fiz, que de projeto teve pouco, de
Havia o curso a acabar e raízes ... como sempre, a procurar. estudo bastante, de reflexão muito. Contou a experiencia doutras pessoas, doutros lugares, doutras
Com o primeiro casamento veio o primeiro projeto: casa grande, sitio magnifico, cliente impos- maneiras de viver. Uma dimensão desconhecida na qualidade e na quantidade.
sível, orçamento indefinido. Ficou-me uma maior e mais calma segurança: parecia agora mais capaz de dizer o que queria e de
Depois de muita asneira no processo começou a obra com falta de pormenores e de caderno de o dizer com sentido assumido e próprio ... de vez em quando.
encargos, administração direta, cliente ambicioso, falta de prática profissional: todos os ingredientes Ficou também a grande lição do Wright de Chicago e de Wisconsin, do Saarinen, do Giorgula e
para a receita do desastre que foi. do Rudolph e de outros tão pequenos ou tão grandes como estes, com a mesma convicção e o mesmo
Acabou a obra, que ainda hoje não me envergonha. Uma saga que durou de 1960 a 63. profissionalismo.
Fim do curso. Trabalho com os professores Octávio Lixa Filgueiras, o João Andersen e com o Lembro-me particularmente bem da Ford Foundation, da sala do Aalto no Institute of Interna-
Arnaldo Araújo no concurso da Gulbenkian. tional Education em Nova York, do Carpenter Centre do Corbusier e do Dormitório do Aalto em
Serviço militar e volta para África como oficial de engenharia militar. Boston. Lembro-me, como ontem, da Falling Water do Wright, da Lever House e do I.I.T do Mies,
Em Moçambique, em paralelo com as obrigações militares, algum trabalho durante os dois anos do Museu de Arte Moderna e do Guggenheim em Nova York.
de guerra. Uma casa , um dormitório para estudantes da escola industrial secundaria, um complexo Uma indigestão de experiencias, de encontros e reencontros. Foi, também, a remoção da última
de lojas e restaurante, o projeto da Feira Agro Pecuária Industrial de Nampula, uma papelaria, um barreira do medo do desconhecido e do mundo com outras dimensões.
pavilhão de exposições, um bar da força aérea. Tudo construído e muito aprendido. 24 25 O reconhecimento da grandeza, da importância e da vitalidade de uma cultura mais voltada para
Grande isolamento a pensar arquitetura como um solitário exercício. a atração do futuro menos do que para a contemplação do passado.
Penso agora como foi útil e como, embora sem debate, me deu a segurança que não teria adqui- 1968. Master of Science in Architecture pela Universidade de Columbia em Nova York.
rido se não estivesse isolado. Uma nova decisão difícil a tomar: ir para onde, agora, se não havia nenhum voltar mais possível
Renovados contactos com o Pancho que ajudou a acompanhar uma obra que, entretanto, proje- ou natural que qualquer outro?
tei para Lourenço Marques: duas casas gémeas para a família e amigos. Ficou bem e ainda existe, um Mais uma vez, como por acaso e por sugestão do Pancho Guedes veio a possibilidade de tomar
pouco sacrificada à maquilhagem da segurança. o escritório de arquitetura do Francis Green, na Swazilandia. O “Flip” Green deixava o país com a
Dois anos sem passado nem futuro, numa vida em suspenso que não tinha ainda outra direção sua chegada à independência. Havia que acabar obras começadas e projetar outras, hipotéticas ainda.
senão a ambição profissional. Tentadora esta oportunidade para reentrar no mundo dos projetos a construir.
Retorno obrigatório a Portugal. O navio transporte militar trouxe-nos de volta a Lisboa. Depo-
sitou-nos no cais da Rocha do Conde de Óbidos e ... vai à vida.
Defesa de tese: 20 valores (Distinto) dariam para entrar como assistente se tivesse aceite o convite
do Mestre Carlos Ramos.
Mas não estava interessado em expor aos estudantes a extensão da minha ignorância e inexpe-
riência.
Não entraria no jogo de ensinar o que não sabia.
Trabalho em Lisboa, com o Conceição Silva, o Bartolomeu Costa Cabral e o Maurício de Vas-
concelos. Bons colegas, bom ambiente e boa arquitetura. Trabalho interessante, algum construído, NÃO ENTRARIA NO JOGO DE ENSINAR
como o conjunto de apartamentos em Sesimbra, depois distorcido pelo Taveira. O QUE NÃO SABIA.
Um risco que valeu a pena. O custo das obras tornou-se cada vez mais uma determinante essencial pois era indispensável
Em perspectiva era claro que outras hipóteses poderiam ter resultado numa maior projeção, conceber estruturas e edifícios com a maior economia para conseguir as melhores prestações dos
numa melhor inserção num ambiente de teorização e debate, numa obra mais conhecida. materiais e dos acabamentos.
Foi, novamente, um grande isolamento quebrado, esporadicamente, pelas visitas de estudantes, A economia dos espaços, dos materiais e da estrutura implicavam e obrigavam a uma maior
professores e com a colaboração em faculdades de arquitetura sul africanas, pelo interesse dos amigos economia formal.
de Moçambique e pelas viagens. A definição estilística era a sua consequência mais direta manifestando-se pela contenção expres-
Um período de quase oito anos sem um real debate vivo e permanente que poderia ter levado siva, pela abolição de retóricas decorativas e levando, naturalmente, ao que mais tarde poderia vir a
a uma reflexão mais profunda e a uma evolução cultural mais rápida sobre problemas que só mais ser um estilo e não uma atitude: um minimalismo expressivo do processo de invenção da arquitetura
tarde amadureci. como depurado contentor de espaço e invólucro adequado de funções.
A intensidade do trabalho prático pouco tempo deixava ao estudo teórico. Os projetos tinham Esta racionalidade, decorrente das lógicas da economia de meios, foi evoluindo para uma posição
que ser concebidos, desenvolvidos e desenhados e as obras dirigidas e tudo quase sem apoio técnico. de ascetismo formal para, através da capacidade de manipulação dos meios mais simples, conseguir
A cooperação efetiva com especialistas começou mais tarde. os valores e as dimensões espaciais mais intensamente poéticas.
Havia que fazer os levantamentos topográficos e adivinhar, com as fracas ferramentas teóricas e Foi, consequentemente, um período de procura de integridade construtiva e de aquisição das
técnicas que tinha, o dimensionamento das estruturas, elaborar os esquemas das redes eléctricas e hi- competências técnicas e culturais necessárias a uma arquitetura e um desenho urbano despojados do
dráulicas, seguir as obras até ao detalhe, tratar com os clientes os aspectos conceptuais e financeiros e supérfluo ou acessório, que um dia espero vir a ser capaz de conseguir.
gerir o escritório, executar muito dos desenhos, fazer as maquetes, tirar as cópias, desenhar móveis ... Foram, certamente, os anos de maior amadurecimento técnico.
cumprir prazos e estabelecer credibilidade num meio onde quem não era de origem anglo-saxónica 26 27 1975 – 1985. Moçambique.
era olhado com suspeita. Dez anos de amadurecimento político.
Tanta coisa que não se aprende nas faculdades! Dez anos a aprender o que está por trás da técnica, a quem ela serve, e para que servem as artes.
Veio também algum trabalho em Moçambique, com o João José Tinoco e sozinho. Dez anos de reflexão sobre como ser útil numa situação extrema e com ferramentas tão débeis.
Quase oito anos de dedicação total e exclusiva à tarefa de fazer arquitetura. Foram anos de ama- Dez anos a perder as batalhas dos outros.
durecimento e aquisição de um profissionalismo indispensável como base segura para uma produção No principio tudo parecia possível: a integridade da luta por uma via, por um caminho justo, por
válida, fruto de um processo de invenção consciente e responsável. soluções coerentes com a dimensão dos problemas, mesmo contra, tantas vezes, os preconceitos dos
Foram anos da maior tensão quanto ao problema da atitude, da falta de raízes ou das razões de dirigentes ou a ignorância dos subordinados.
ser da forma e da intenção poética dos espaços. Dez anos a equilibrar compromissos com integridade, estratégia com princípios, o desejo de
Sem perfeita consciência disso, foi o lançar das primeiras bases conceptuais válidas, seguras e fazer com a necessidade e a obrigação de mandar fazer.
aceitáveis para o exercício do projeto. Dez anos a aprofundar a noção exata de para quê e a quem serve a arquitetura. A tentar perceber
Acentuavam-se dúvidas sobre a validade de propostas desligadas de determinantes culturais que se o arquiteto é um luxo social ou não é. Se a sua função se limita a satisfazer dimensões áulicas da
implicavam, inevitavelmente, uma transposição cultural arriscada e discutível. sociedade ou se ainda é útil ao nível dos problemas gerais e mais difíceis da produção do espaço social
Porque deveriam a Swazilândia, ou Moçambique, aceitar ou receber uma arquitetura de tradições a todos os níveis da sociedade.
exógenas? Dez anos a tentar esclarecer se esta nova ( e possível?...) dimensão não será a determinante de
A cultura arquitectónica seria já verdadeiramente e validamente internacional? uma nova arquitetura?
Não eram estas, naquela altura, questões claramente consciencializadas mas o isolamento cultural Dez anos de luta para defender a inteligência contra pessoas que me julgam defensor de posições
deixava um vácuo onde era difícil estabelecer caminhos formais seguros. rígidas, a construir uma estrutura onde seja possível fornecer as racionais para a organização inteli-
Ajudaram nestes impasses as limitações materiais e técnicas. gente do espaço de acordo com princípios universais.
Finalmente parece, agora, claro que a posição mais coerente é a de realizar o pouco que possa
contribuir para o nascimento de uma nova arquitetura; é a de tentar ensinar a dúvida não apenas
como método mas como ferramenta.
Como ensinar, se o que sei é simplesmente que este percurso pode ajudar a fundamentar alguma
certeza ainda e sempre discutível?
Será que o espaço de reflexão, a que o ensino obriga, poderá conduzir ao aprofundamento das
poucas certezas adquiridas e à descoberta de tantas e mais grávidas dúvidas?
28
Poema de João Pedro Grabato Dias aliás António Quadros, uma vez e sempre professor desta
escola.
50
* Com uma vénia ao meu amigo Tato Dierna ESCRITORIOS PARA A CMC– MATOLA JOSÉ FORJAZ
Discurso por ocasião da elevação a professor Emérito Se nesta visão, por vezes inadvertidamente jocosa, alguma alusão mais crítica for aparecendo peço
da Universidade Eduardo Mondlane apenas a vossa benevolência e que acreditem que não é minha intenção aproveitar a ocasião para
passar recados menos saborosos a quem os queira receber.
Maputo, 10 de Outubro de 2013 O arquitecto, com a minha idade é, mesmo que involuntariamente, um transmissor de experiên-
cias mas, e aqui começam as minhas dúvidas: como se distingue a “sabedoria toda de experiências
feita” do vício adquirido por acumulação de erros?
Qual o factor discriminante?
A resposta a esta dúvida tem sido, para mim, uma obsessão permanente e um fio condutor da
minha atitude como professor e como profissional pois que, em ambas as posições, é a procura cons-
tante dessa resposta que me torna a vida mental e emocional interessante e motivadora.
Assim sendo, e se é verdade que pelo menos na nossa disciplina e parcela do saber, a dúvida é tão
grande e tão sistemática, será que devemos, nós, aparecer aos nossos alunos como oráculos infalíveis
e detentores da última verdade?
Não quero, com esta posição, proclamar a falta de convicção nas próprias ideias como uma
PROFESSOR EMÉRITO virtude didáctica.
O que penso que é indispensável é que se saiba transmitir ao aluno e ao colaborador que o mais
86 87 importante não é o que se aprende mas o processo de aprender, pois que o conhecimento vai, cons-
Pensando no que dizer hoje quando, há alguns meses, me propuseram esta homenagem, preparei tantemente, evoluindo.
uma lição, porventura a última, em que equacionava os problemas da arquitectura e do seu ensino Talvez, mais enfaticamente ainda, o que importa transmitir-lhes é a necessidade de aprender.
neste momento e nesta geografia. Aprender todos os dias, aprender em todas as ocasiões, aprender sem razão ou motivo ou opor-
Um documento chato, teórico e sobrecarregado politicamente, mas que, pelo menos, evitava cair tunidade.
em ratoeiras biográficas e sentimentais e acenava, apenas o indispensável, aos planos emocionais tão Aprender tudo, de todos, sem outra razão que não seja, sempre, a da alegria de aprender.
presentes nestas ocasiões. É isso que uma universidade deve ser: uma máquina de ensinar a aprender.
Pensando depois nas razões da presença das pessoas, hoje aqui com certeza e simplesmente pela O conhecimento dos factos, das coisas, das teorias, dos dogmas, das estatísticas ou dos segredos
amizade, a curiosidade e o dever protocolar, pareceu-me que não teria o direito de lhes aumentar o dos outros e da política, ou dos negócios é, sempre, contingente e relativo, temporal e limitado.
fastídio com perorações disciplinares e académicas que, amanhã, já terão perdido a acutilância e o É na compreensão das relações entre os factos e as forças e nos sentidos dessas relações que reside
sentido. a sabedoria.
Gostaria então, sem esvaziar a dignidade da ocasião, de vos interessar durante a próxima meia E sobre isso, subsiste, ainda e sempre, a tal dúvida sistemática e inevitável...
hora oferecendo-vos uma visão pessoal e ligeira, mas nem por isso menos séria, das grandezas e mi- Mas, com tantas dúvidas, como será possível enfrentar o universo académico tão carregado de
sérias da vida intelectual e emocional do arquitecto e professor de arquitectura, neste lugar e neste epistemologias cristalizadas?
momento. Não devo, com certeza, ter descoberto algum segredo que não seja do conhecimento comum
Quando digo neste lugar não estou a referir-me necessariamente ao Maputo, a Moçambique ou mas, para mim, essa razão e essa coragem estão na mais primária das virtudes humanas: a curio-
mesmo a África, mas à geografia e à cultura global em que vivemos e, quando digo momento, não sidade.
me refiro ao dia de hoje mas a este interregno entre colonialismo e identidade nacional ainda em Acontece que as pessoas desenvolvem, ao longo da vida, curiosidades específicas.
definição. Uns querem saber se deus existe, outros como se movem os astros, outros ainda como se curam
as doenças, uns querem saber o que se passou através dos tempos, ou como se pensou através dos Falo das palavras indispensáveis à exactidão disciplinar sem a qual não há precisão científica nem
tempos, ou como vivem outras pessoas noutros lugares; tantos outros gostariam apenas de saber domínio técnico.
como se fica rico. Explicava há pouco, numa aula voluntária ao primeiro ano, a importância das palavras dando
Alguns querem saber tudo de tudo... e também há quem nem de si queira saber. exemplos do perigo que, nas profissões mais diversas, pode resultar do seu uso descuidado como, por
Uma parte considerável da humanidade é asfixiada, já na juventude, em casa, na escola e na vida exemplo, na sala de operações ou na manobra de uma embarcação, onde um erro verbal ou a ordem
social pela pressão de que aprender tem, como objectivo imediato e último, ganhar a vida e vê nas errada podem resultar na morte de pessoas.
universidades os receptáculos terminais da preparação desses mesmos espíritos amputados. Por outro lado o abuso semântico, muito praticado pelos eruditos, pode esconder, por vezes,
Na minha visão a missão essencial da universidade é a de descobrir ou de perceber em cada aluno uma limitação cultural que se revela pela opacidade dos conceitos explorados e na incompreensão
a sua curiosidade mais profunda, talvez mesmo a mais infantil e de estimulá-la e alimentá-la com os das inter-relações disciplinares.
frutos do saber acumulado, transformando cada aluno num espírito apaixonado pelo conhecimento O professor que não é capaz de explicar com simplicidade os conceitos científicos, filosóficos ou
e pela descoberta da já mencionada alegria de aprender. artísticos mais complexos é, porventura, incapaz, ele próprio, de os compreender.
Diz-se que só ensina quem não sabe fazer ou, pior ainda: que quem não sabe... ensina. A arquitectura e o ordenamento espacial são domínios do conhecimento e esferas de acção carre-
Uma perigosa asserção que esconde muita frustração e muito cinismo. gadas de significado e de consequências sociais, políticas, económicas, tecnológicas e estéticas.
Fazer é, ou deve ser sempre, o teste do saber. Desvendar cada uma dessas dimensões, tão insuspeitadas para a grande maioria dos neófitos nes-
Fazer transporta para o meio social, a razão de ser da evolução do conhecimento e da investiga- tas artes e técnicas, é uma responsabilidade e um desafio à capacidade do professor para, sem alienar
ção, essa manifestação erudita da curiosidade e onde a diferença entre investigação teórica e investi- o interesse do estudante, fazê-lo descobrir a natureza e a nobreza da tarefa que o espera.
gação aplicada é apenas uma comodidade semântica. 88 89 Inventar a casa do homem, disciplinar espacialmente a cidade e ordenar o território são tarefas
O aluno quer, sem o saber, ser estimulado, isto é, ter razões emocionais para o conhecimento. sem descontinuidades conceptuais mas cujo âmbito não é evidente para todos.
Esse é o seu direito mais fundamental, a que as universidades, pela sua própria constituição, Essa ausência de descontinuidades é uma descoberta que pode até ser aterradora para quem
deveriam saber responder. escolhe arquitectura porque, em regra, se pensa que arquitectura é, apenas, o exercício de projectar
Ao mais baixo nível dos planos académicos e didácticos, o professor procura, no exercício da aula, edifícios.
para lá da sua compensação material, apenas a projecção da sua ascendência intelectual sobre uma O edifício situa-se no terreno e o terreno na cidade ou na paisagem.
classe que não respeita nem quer conhecer: os alunos. A cidade situa-se no território e o território na geografia.
Pelo contrário, o professor que se respeita e respeita o discípulo desvenda, em cada aula, o mis- Mas o edifício situa-se, também, na história e a história inventa-se e condiciona-se pela política.
tério da descoberta do que não sabia e revela aos seus companheiros de pensamento, os alunos, a A história em que se situam os edifícios e as cidades não é apenas a história das lutas entre os
fascinante epifania do saber.
É precisamente no momento privilegiado da aula que a emoção da descoberta do que está para
lá do já sabido compensa a dúvida sobre como estimular o aluno e a nós próprios.
Nesse sentido, a aula é uma permanente descoberta: de nós próprios e da riqueza da relação com
inteligências a estimular e emoções a compartilhar pois só com a paixão da comunicação se ganha
este oportuno privilégio que a universidade oferece.
INVENTAR A CASA DO HOMEM, DISCIPLINAR ESPACIALMENTE
O acesso à universidade é também o acesso a um mundo novo ou, talvez, a um novo patamar na
escada do conhecimento.
A CIDADE E ORDENAR O TERRITÓRIO SÃO TAREFAS
Nesta cota há uma linguagem nova a descobrir, um léxico e uma semântica a penetrar para que SEM DESCONTINUIDADES CONCEPTUAIS MAS CUJO ÂMBITO
os conceitos mais abstractos sejam, justamente, assimilados. NÃO É EVIDENTE PARA TODOS
países e entre as classes sociais mas, e com igual importância, é a história dos fenómenos naturais, a Esta noção parece ainda longínqua da cultura geral e difusa, na qual o nosso estudante se integra.
história das técnicas, a história das artes e da literatura; a história do homem e de como ela se reflecte Por tal razão é tão importante a sua iniciação cultural.
no mundo construído. Faze-lo descobrir as dimensões mais emocionantes do seu interesse, as razões mais sérias da sua
Este é o âmbito que subitamente se abre, e deve ser desvendado, ao estudante que entra no futura profissionalidade e a utilidade social da sua presença produtiva, é a maneira mais eficaz de o
mundo da arquitectura. tornar num participante operativo na descoberta do conhecimento, que é, finalmente, a missão do
É, como facilmente se percebe, aterrador ou profundamente estimulante, assim o saibamos nós, estudante universitário.
os professores, desvendar-lhe o interesse e o fascínio. A tarefa não é fácil. A aula deve competir com a batalha de vencer a adolescência, com a distrac-
É, como podem perceber, um mundo de relações que o estudante nem sonhava existirem. ção da sensualidade, com o espanto da integração num novo meio social, com o medo do desconhe-
E, por estas razões, o mundo da arquitectura é o mundo da interdisciplinaridade. cido, com o inevitável embate com a personalidade do professor.
E, por estas mesmas razões, a escola da arquitectura, tem de ser a escola da interdisciplinaridade. No nosso caso o estudante chega-nos, em geral, vitimizado por processos brutais de ensino, obri-
Ainda, por estas mesmas razões, o projecto do edifício, da intervenção urbana e do ordenamento gado a sistemas de não pensamento, alheio ao interesse pelo saber e com a memória maltratada pela
do território, são actividades impensáveis sem a participação e o trabalho integrado de uma equipa, acumulação, irrelevante, de factos, fórmulas e números.
cada vez mais completa e complexa, de profissionais de muitas disciplinas. A continuação de tais métodos seria um crime.
Acontece que este lugar onde vivemos, esta nave espacial chamada terra, cada vez mais acanhada, Mas acontece também nas nossas universidades.
impõe-nos, agora, uma dimensão do conhecimento de que a humanidade nunca antes havia tomado O professor, portanto, deve saber motivar e inserir o aluno a participar na aventura do conhe-
consciência: a dos seus limites físicos. cimento.
Para vos dar a noção da novidade desta noção basta lembrar-me que foi já depois de terminar a 90 91 Deve fazê-lo por processos de atracção e não de rejeição dos processos anteriores, o que deixaria
minha formação académica que o conceito e a disciplina da ecologia entraram no quadro cultural o aluno duplamente vitimizado psicologicamente.
comum. Este desafio só o vence o professor que aparecer como um apaixonado do que professa... se tiver
Foi já depois que se equacionaram os limites do crescimento. realmente professado.
Falo, portanto, dos últimos 50 anos! O professor só ensina o que ama pois que, se não ama não ensina... desbobina.
Hoje seria impensável que um estudante de arquitectura ficasse alheio a essa dimensão da realida- O ensino da arquitectura é um caso particular da didáctica: desde o primeiro exercício o aluno
de e não devesse ser ela uma das dimensões disciplinares essenciais da sua formação. enfrenta toda a complexidade do processo de a pensar.
Esta noção dos limites do planeta e da contracção na oferta dos seus recursos directamente O mais simples projecto contem, potencialmente, todos os elementos de todos os projectos: a
proporcional ao aumento da população, implica e obriga a tomadas de posição éticas em todos os sua inserção no meio natural e construído, as condições ambientais que o determinam, um programa
ramos do saber. funcional, as condicionantes técnicas e económicas que o limitam, a necessidade de integração do
Implica uma clareza de atitude manifestada pelo professor em cada aula, não como moralista seu projecto no meio cultural.
mas como cientista. Em nenhuma outra disciplina o aluno enfrenta tão prematuramente esta angustiosa situação.
Implica coerências difíceis e dolorosas no exercício da profissão. Nem o médico aprendiz ou o engenheiro, nem o matemático ou o jurista, nem biólogo ou
Implica exemplo. o agrónomo devem, no seu primeiro exercício académico, responder a uma exigência tão abran-
Importa transmitir aos estudantes das nossas universidades a noção da sua responsabilidade in- gente.
telectual e profissional... se é que há distinção... perante o planeta, isto é, perante a sobrevivência do Poderia metaforicamente repetir-se que se aprende a nadar, nadando.
homem no planeta. Isso teria, talvez, algum interesse como metáfora mas não ajuda a salvar ninguém.
A forma de o habitarmos é uma das dimensões em que o organizador do espaço construído, o O salva-vidas, aqui, é o professor que, sem forçar a sua autoridade, deve saber guiar escolhas e
arquitecto, tem um papel determinante. caminhos através da selva de dúvidas em que cada aluno se vai aventurando.
Se ao aluno de medicina não se entrega o bisturi também o aluno de arquitectura não verá Os condicionalismos territoriais são de natureza diversa: o território é uma categoria política
o seu projecto construído, mas a diferença está no facto de que projectar é, sempre, um acto onde se exprime e se resolve a topologia do poder.
de síntese criativa, resultado de um processo analítico que só aos poucos se vai desvendando e Quem pode domina a posse da terra...quantas vezes para seu benefício exclusivo.
dominando. Ao arquitecto e ao planificador físico escapam as ferramentas para o efectivo controlo do uso da
É esta característica do processo disciplinar que exige tanto do professor de arquitectura. terra que, no nosso caso, escapam, também... e quantas vezes, ao controle do sistema jurídico.
Faço um parêntesis para deixar claro que considero haver a mesma necessidade de criatividade Nem é nova, nem exclusivamente nossa, esta condição.
nas ciências como nas artes. É uma condição corrente em sociedades politicamente emergentes onde a ordem jurídica é ain-
O professor de arquitectura deve ser capaz de criar no aluno a coragem de enfrentar a sua própria da concreta, isto é, condicionada por personalidades e não determinada por códigos ou sistemas
inexperiência com a consciência de que o valor dos seus exercícios é, apenas, a soma dos seus esforços consuetudinários abstractos que se aplicam a situações e não são condicionadas por pessoas ou por
para o acesso progressivo a cada novo patamar de competência. partidos políticos.
Mas o professor de arquitectura tem, ainda, uma outra difícil missão: fazer o aluno descobrir em Nesta condição tudo depende da cultura e da honestidade intelectual e material de quem go-
si próprio a necessidade de inventar, de criar uma nova realidade física. verna.
Esta é a tarefa mais difícil pois que cada aluno é um diverso universo a descobrir. Nesta condição o arquitecto pouco pode e pouco determina, pois que a sua produção, tomada
Cada aluno é um caso a respeitar. apenas como documento técnico, não resiste aos atropelos possibilitados pela máquina dos interesses
Nesta relação não há cátedra: há fraternidade, pois que o professor tem que enfrentar, ele pró- materiais em jogo.
prio, todos os dias, a sua própria angústia criativa... e quantas vezes a frescura imaginativa do aluno Assim se explica, por exemplo, a falha corrente na operatividade dos planos de ordenamento
é superior à sua ingenuidade perdida! 92 93 territorial, cada vez mais superficiais e cada vez mais irrelevantes no momento da tomada de decisões
Esta é, também, a razão por que cultivo, há muito, esta noção da necessidade de desaprender, de que dizem respeito e afectam o uso do espaço nacional.
reencontrar a inocência, consciente de si própria, que nos leva ao espanto pelo simples, à necessidade É evidente que o professor não pode sonegar a consciência desta dimensão quando aborda,
do inexplicável, à reverência pela intuição e ao lampejo fulgurante do revelado, que tantas vezes se com os seus alunos, os problemas do ambiente e da sustentabilidade dos ecossistemas globais e do
confunde com inspiração. território.
Mas voltemos ao nosso professor, ao nosso aluno e à nossa arquitectura. Seria preciso uma mudança radical de direcção na racionalidade dos políticos: do processo de
E recomecemos pelo fim: a nossa arquitectura. desenvolvimento material pessoal para o processo de desenvolvimento da comunidade.
A nossa arquitectura acontece como expressão da cultura construtiva inserida no meio natural Esperança longínqua que, provavelmente, não se materializará tão cedo.
e social. Entretanto, e a níveis supostamente menos carregados de valências politicas, vai o arquitecto
Revela e reflecte as qualidades e os problemas desses meios e o momento exacto da sua evolução trabalhando na esperança de conseguir fazer aceitar, pelos seus clientes, a coerência conceptual nos
politica e técnica, da sua organização social e dos constrangimentos impostos pelos compromissos
internacionais.
O arquitecto trabalha dentro desses constrangimentos e em condições, de que ele próprio é o
reflexo.
A sua posição como técnico e como artista só pode ter duas alternativas: aceitar ou recusar todas
ou algumas daquelas condições, segundo aquilo que ele considere a sua validade.
Naturalmente que não há qualquer base racional ou técnica para recusar os condicionalismos na- OS CONDICIONALISMOS TERRITORIAIS SÃO DE NATUREZA DIVERSA:
turais: o ambiente impõe as suas leis e as suas características: o terreno a sua geofísica e a sua biofísica, O TERRITÓRIO É UMA CATEGORIA POLÍTICA ONDE SE EXPRIME
o clima a sua temperatura, humidade, pluviosidade e insolação. E SE RESOLVE A TOPOLOGIA DO PODER
seus projectos, que pode até parecer esdrúxula, pois que introduz, agora, termos inéditos na equação A razão imediata para trazer estas questões a esta intervenção é a de lembrar que a primeira frente
clássica do habitat sustentável. desta batalha está, precisamente na sala de aula.
O desafio mais delicado que o nosso ambiente cultural propõe é o de distinguir o universal do O aluno tem agora um novo corpo de doutrina a assimilar; a faculdade, uma nova linha discipli-
particular no exercício da nossa contribuição para a cultura material moçambicana. nar a introduzir; a universidade, uma nova integração de saberes a conseguir.
Não apenas distinguir mas integrar os dois âmbitos. Acima, e primeiro que tudo, o professor deve saber ser o mentor das novas gerações para uma
Explico-me: na extrema e brutal transição de uma sociedade rural e colonizada para uma socieda- arquitectura e um planeamento espacial respeitadores do meio ambiente e concebidos dentro dos
de em rápida urbanização e que deve assumir a sua própria libertação, os valores materiais ambicio- conceitos cada vez mais evoluídos e complexos da sustentabilidade.
nados pelo estrato emergente da sociedade são, prioritariamente, os que representam e simbolizam a A outra questão diz respeito à natureza da relação do arquitecto com o seu cliente.
libertação da condição, discriminada, do colonizado. É uma questão delicada e difícil porque menos clara e mesmo, por vezes, ambígua.
Esses valores correspondem a formas de agregação social, hábitos de vida, quadros estéticos e Esta relação abrange planos de decisão e de acção que vão dos éticos aos estéticos.
estruturas de poder e de autoridade ainda exógenos e deficientemente assimilados e integrados na Começando pelo objecto do projecto, que pode nem sempre ser aceitável em termos sociais ou
cultura local. legais, e passando a âmbitos técnicos com implicações ambientais, económicas e temporais essa rela-
Esta situação revela-se mais patentemente nas formas de assimilação dos paradigmas estéticos ção não pode evitar as dimensões estéticas que afectam o panorama urbano e cultural.
importados e pela necessidade de manifestação da riqueza pessoal, como prova do sucesso social do Em última análise o arquitecto pode, e deve, conforme as circunstâncias e em última análise,
indivíduo, da família ou do grupo. recusar a encomenda.
As consequências deste, inevitável, momento de transição cultural têm sido desastrosas para as Em todos os casos a relação com o cliente, privado ou institucional, deve ser sempre clarificadora
emergentes sociedades africanas em geral, levando a desperdícios colossais de recursos e à importação 94 95 e defensora dos objectivos e dos princípios que governam e se aplicam ao projecto e dos seus limites
dos piores aspectos da cultura material da sociedade capitalista neoliberal, com expressões estéticas conceptuais e expressivos.
monstruosas. Há nesta relação duas valências essenciais: a ética que tem a ver com a validade social do projecto
O fenómeno atinge níveis inacreditáveis de sinistro ridículo em países subitamente ricos, onde e dos meios a utilizar e a estética que tem a ver com a validade cultural do projecto.
o contraste dessas manifestações com a crescente indigência dos seus povos vai cavando fossos de Em ambos esses planos de relação e decisão a formação do arquitecto deve revelar-se e con-
imoralidade social cada vez mais intransponíveis pela demagogia política dominante. cretizar-se como um contributo indispensável ao equilíbrio social e ao enriquecimento do meio
A semente deste desastre poderá, porventura, estar já implantada no nosso meio e as suas conse- cultural.
quências não poderão levar senão ao mesmo desastre social e cultural. Estas questões devem ser debatidas e consideradas em profundidade não só na sala de aula mas
O arquitecto, que o queira ou não, faz parte do sistema e deve percorrer, todos os dias, o fio da ao nível da própria estrutura dos cursos.
navalha das difíceis decisões éticas. A primeira questão impõe a necessidade de uma revisão curricular integradora no sentido de
Deixando de lado, por irrelevante nesta discussão, aspectos deontológicos, tantas vezes atrope- criar relações operativas interdisciplinares entre faculdades, pois que os temas da sustentabilidade e
lados, e as correntes práticas corruptas como a de receber ou pagar comissões, interessa-nos analisar da preservação do ambiente são transversais, interessando igualmente as ciências naturais e humanas,
duas questões com maior profundidade e maior impacto na economia e na criação de uma cultura as engenharias, a geografia, o direito, a medicina e, um dia, as ciências politicas, ainda tão clamoro-
arquitectónica sã no país. samente ausentes do âmbito universitário.
A primeira questão é a da necessidade, já referida, de praticar uma arquitectura sustentável, de O arquitecto, urbanista e planificador físico, deve aprender, desde os bancos da escola, a necessi-
real economia energética, passivamente ecológica e formalmente corajosa. dade e as maneiras mais efectivas de trabalhar em equipa com os especialistas das várias disciplinas,
Essa atitude requer uma constante atenção às decisões técnicas e um proselitismo agressivo, sem o contributo das quais o seu trabalho é incompleto e inconsciente dos riscos que as decisões que
junto aos clientes, dos princípios e das razões mais importantes e relevantes dessa estratégia de toma implicam.
projecto. A segunda questão é menos transversal que vertical pois que a construção de uma estruturada
relação profissional assenta em dois pilares fundamentais: uma posição ética esclarecida e uma fun-
damentação técnica e estética informada e assumida.
É aqui que a missão da universidade é capital: evitando dogmas moralizadores, levar o aluno a
perceber que o sentido mais profundo da aquisição científica é a criação das bases objectivas indis-
pensáveis a uma posição ética justa, racional e fundamentada.
A missão do arquitecto é das mais essenciais e mais nobres: inventar o abrigo do homem e das
suas actividades mentais e físicas... mas esta simples afirmação contem universos de significados e de
consequências.
Uma vida é pouco para a cumprir, mas vale a pena tentar.
Acabo, assim, por aqui.
Não posso, assim mesmo, acabar sem agradecer ao Magnífico Reitor e à academia da Universi-
dade Eduardo Mondlane esta homenagem e a oportunidade que deram para tentar contribuir para
uma visão, não paroquial nem estritamente disciplinar, da missão da universidade, focalizada através
dos problemas do ensino da arquitectura e do ordenamento do espaço.
A distinção que me é, hoje, concedida tomo-a como o reconhecimento da coerência, nem sem-
pre fácil ou conseguida, da minha actuação, como professor e como profissional, com os princípios
que tão esquematicamente referi mas que julgo indispensáveis à formação de uma classe de pensado- 96
res instrumentais na construção de um Moçambique cada vez mais justo e próspero, onde a natureza
seja respeitada e a sociedade cada vez mais equilibrada.
Agradeço aos meus alunos e aos meus colegas os momentos de intensa vibração emocional, o
estímulo intelectual que deles recebi e esta noção de que posso ainda ser útil a esta instituição e a
essa juventude.
Agradeço ao corpo técnico e administrativo com quem me irmanei nas suas dificuldades e a
quem sempre reconheci a dedicação.
Agradeço finalmente aos que me estão mais próximos: a minha família e os meus colegas de
trabalho, no projecto e na construção, sem a compreensão e o apoio dos quais teria já, com certeza,
aceite a tentação de me pensar com o direito a descansar.
DESENHOS PARA O CONCURSO DE PROJECTO PARA O CENTRO ISMAELITA DE LISBOA JOSÉ FORJAZ
Faculdade de Arquitectura da Universidade de Évora. objectivas e não quanto ao seu conteúdo poético que, se a arquitectura é conseguida, dispensa
Portugal verbalização.
As três dimensões formais que julgo importante considerar quando falo a estudantes e pratican-
Maputo, Outubro de 2015 tes desta disciplina são, como já referi: a proporção, o ritmo e a escala.
A proporção é, na minha definição, a moral da forma.
O ritmo é, no meu entendimento, a ressonância das leis da forma natural no tempo e na forma
criada pelo homem.
A proporção é uma qualidade estática; o ritmo uma disciplina dinâmica.
A escala tem valores diversos conforme as culturas, mas é sempre a relação entre as dimensões
imaginadas e as dimensões humanas.
Estas regras, tão universais e intemporais quanto a escala cromática na música, atingem o seu
justo valor quando precisamente calibradas à dimensão do homem.
Os trabalhos que apresento foram concebidos e realizados em função dessas escalas de valor e
condicionados pelas condições sociais, técnicas, materiais e económicas de cada projecto.
ÉVORA. NOVEMBRO DE 2015 Na nossa realidade, isto é, nas condições de trabalho num dos países mais pobres e mais tecno-
logicamente atrasados do mundo, não vos farei ver acrobacias técnicas ou formais, tão sedutoras e
98 99 invasivas das revistas e da literatura arquitectónica contemporânea.
Pede-me o professor Pedro Pacheco que vos apresente o trabalho que eu e os meus colaboradores Pelo contrário, penso que é na coerência com as limitações do meio cultural, social e técnico que
temos vindo a fazer nos últimos 50 anos. o nosso trabalho terá algum valor e que poderá ter alguma relevância apresentá-lo.
Penso que alguma coisa devo dizer como introdução, explicando quem somos e o nosso processo Essa coerência atinge-se e manifesta-se por disciplinas de projecto que têm a ver com parâmetros
e maneira de pensar e fazer arquitectura. que parece não serem muitas vezes, actualmente, considerados na arquitectura dos meios culturais e
Os edifícios, imaginados e construídos, têm dimensões e desempenhos objectivos e mensuráveis tecnológicos dos países chamados desenvolvidos.
que se podem e devem explicar e justificar, tais como a sua função social, o seu comportamento Refiro-me, antes de mais, às dimensões da economia: de espaço, dos sistemas construtivos e am-
ambiental e a sua adequação funcional. bientais, da durabilidade das construções e da operação e manutenção dos edifícios.
Têm também dimensões menos quantificáveis, mas não menos decisivas que são, como na músi- O respeito por estas condições de projecto resulta, natural e inevitavelmente, em realizações for-
ca por exemplo, do domínio da intuição e que se regem por regras e valores universais e intemporais malmente económicas, que nada têm a ver com os minimalismos formalistas tão de moda noutros
como o ritmo, a escala e a proporção. meios e tão contaminantes do nosso.
A arquitectura tem âmbitos e conteúdos que vão do abstracto e subjectivo ao concreto e ob- A prestação ambiental dos edifícios no que diz respeito ao conforto térmico, à economia energé-
jectivo, do antropológico ao filosófico e do científico ao tecnológico e que se revelam como justas e tica e de água, ao controlo das emissões de CO2 e dos factores de poluição e erosão do meio é outra
essenciais quando se materializam em espaços e formas com valor metafórico, isto é, quando crista- das condições que consideramos e tentamos resolver nos nossos projectos com a maior simplicidade
lizam poeticamente. tecnológica, isto é, através de sistemas preferencialmente passivos.
Nos limites de uma apresentação como esta não posso, nem devo, explorar mais do que uma As condições socioculturais são, inevitavelmente, um factor da maior importância na nossa ma-
posição pessoal e da minha equipa de trabalho, que se exprime pelas formas e pelo comportamento neira de projectar.
dos edifícios que projectamos. As características culturais do “cliente”, seja ele individual ou institucional, são, igualmente, uma
Falarei, portanto, dos nossos projectos com referência às suas condições e intenções consideração indispensável ao nosso processo de pensar arquitectura.
A natureza, a qualidade e a quantidade da mão-de-obra disponível determinam, de várias manei- É, também, uma categoria política e estética.
ras, a selecção das tecnologias a prescrever para a realização dos nossos projectos. A procura da dimensão humana no espaço que projecta é a primeira obrigação ética do arqui-
tecto.
1. Falando a alunos de arquitectura penso ser importante desmistificar a moda da celebração dos A história não oferece somente lições positivas.
“heróis”, que é um dos aspectos que mais contamina os ambientes de formação e prática dos arqui- Analisada criticamente expõe e demonstra, muitas vezes, os resultados de grandes erros da huma-
tectos e a que todos, voluntariamente ou não, estamos sujeitos. nidade, nos quais os arquitectos participaram... e continuam a participar.
Esta é uma das razões porque dou cada vez mais importância ao conceito de profissão. A humanidade atingiu, agora, o momento mais crítico da sua história.
Para quem vive a projectar edifícios e a acompanhar-lhes o processo de construção, as horas dos O incontrolável crescimento demográfico é um fenómeno que continua sem ser equacionado em
dias, os dias dos meses e os meses dos anos são passados a materializar e transformar segundos de termos da distribuição equitativa dos recursos naturais, do espaço, da economia e da técnica.
emoção criativa em semanas e meses de trabalho profissional, onde intenções de perfeição formal As formas de ocupação e do estabelecimento da comunidade humana no território devem ser
são questionadas sistematicamente, pelas razões mais prosaicas e mais inescapavelmenteinescusavel- repensadas, pois a escala das cidades e conurbações não resolve, agora, satisfatoriamente, as exigências
mente racionais. de uma qualidade de vida digna e justa para a maioria das pessoas do planeta urbanizado.
Este confronto entre a natureza intelectual do processo conceptual e a realidade material do Simultaneamente, a degradação do ecossistema global obriga a rever as relações do homem com
processo construtivo cria tensões emocionais e intelectuais que obrigam o arquitecto a um autoques- o meio ambiente e a pôr a técnica ao serviço de objectivos mais válidos que os da mera gratificação
tionamento permanente e exaustivo. estética ou lúdica das minorias sociais que têm as condições materiais e o tempo para as desfrutar.
Penso que em nenhuma das outras artes há uma tal distância entre a concepção e a materialização A análise dos últimos 40 anos de produção arquitectónica revela um desprezo generalizado e
das ideias. 100 101 profundo por esta condição da nossa actividade.
Por essa razão somos, nós arquitectos, mais fingidores que os poetas: o edifício, mais que o Nada mais adequado à caracterização da nossa época do que o aforismo de que se deitou fora o
poema, quando realiza a sua simplicidade, não revela “as dores que deveras sentimos” na sua longa bebé com a água do banho.
gestação. A pretendida superação de um funcionalismo e de um racionalismo redutores abriu o caminho
Chamo a este processo a perda da inocência. da fuga às responsabilidades sociais do arquitecto e a um cinismo acrítico, por conveniente aceitação
Aquela mesma inocência a que se refere Picasso quando ambicionava ser capaz, no fim da vida, das regras do neoliberalismo a que não escapa uma classe profissional ao serviço da especulação imo-
de desenhar como uma criança ou Hokusai que lamentava a sua morte próxima quando, finalmente, biliária e de estados construtores de novas “pirâmides”, que não servem para nada.
se julgava capaz de desenhar uma folha. Os sucessos colossais das arquitecturas mais irresponsáveis como em Bilbau, o centro de con-
Salva-nos, então, a profissão, esse antídoto eficaz contra o diletantismo, que nos obriga constan- gressos de Santiago de Compostela, a torre da rádio televisão de Beijing ou as folies paramétricas das
temente a mergulhar na realidade da resistência dos materiais, que condiciona as nossas fantasias, múltiplas “hadids” e “liebeskinds”, para citar apenas as mais tragicamente anedóticas, são a prova da
contra autoridades municipais que nos impõem regulamentos estúpidos e mal interpretados e contra alienação generalizada a que se chegou por via de uma incultura, intelectualmente pedante e mate-
clientes que nos esgotam a paciência. rialmente oportunista, propagandeada por uma literatura e uma comunicação social que rebaixou a
arquitectura ao nível da moda, servindo os mesmos transientes e socialmente irrelevantes objectivos.
2. Assim sendo, e com a coragem da dúvida, arrisco passar-vos alguns pensamentos e axiomas, Grave é que nas nossas faculdades, isto é, nas faculdades de todo o mundo, ainda se perca tempo
demonstráveis, que têm guiado a nossa maneira de pensar arquitectura: a especular sobre tais escatológicas manifestações.
Arquitectura não é escultura, nem sequer escultura habitável. Grave porque apenas o considerá-las leva à perda do precioso tempo necessário ao debate e à
A forma não é um ponto de partida mas o resultado de um processo. investigação de temas essenciais e urgentes como são os da economia de meios e de processos, de
Forma não é espaço, embora possa e deva criá-lo. energia e de tempo e que tão cinicamente são, até, frequentemente, invocados como justificação
Espaço é uma categoria social e psicológica. daquelas mesmas manifestações alienadas.
3. Entendo esta introdução como uma declaração, quase diria uma confissão, de princípios sobre
os quais vamos procurando construir os processos e as formas da arquitectura que temos vindo a
projectar, com a participação e o estímulo constante dos nossos companheiros de trabalho em todas
as disciplinas necessárias ao projecto.
São alguns desses projectos que vou apresentar.
Não pretendo que sejam, todos e cada um, cabalmente coerentes com aqueles princípios.
A contaminação cultural e os condicionalismos de cada situação poderão explicar, mas não justi-
ficar, compromissos e erros nossos de enfoque e resolução.
Contudo, desde a Escola de Belas Artes e através de uma longa carreira didáctica, tenho como
indispensável a consideração de que fazer arquitectura é assumir uma responsabilidade social sem,
por isso, deixar de se obrigar a satisfazer imperativos emocionais.
Para os mais novos julgo ser importante deixar algum conselho, embora para tal não me sinta
merecedor de grande credibilidade.
Parece-me importante alertar-vos para a necessidade de se questionarem, sistematicamente, sobre
as vossas soluções espaciais, formais e técnicas em termos da sua validade social, sustentabilidade
ambiental, economia de meios construtivos, operativos e de manutenção e, certamente, como con-
tribuição estética para o espaço urbano ou natural onde elas se inserem.
Não pretendo com esta apresentação demonstrar uma inabalável coerência de atitude através
102
CONFERÊNCIAS
deste longo percurso mas, simplesmente, exemplificar que, como qualquer outro, ele é feito de mo-
destos sucessos, menos ou mais conseguidas realizações e uma permanente aprendizagem.
Termino com uma citação do discurso de Mies van der Rohe quando recebeu a Medalha de
Ouro do Instituto Americano dos Arquitectos em 1960 e que, lida hoje, põe em causa os próprios
termos da relação a que se refere:
“Ao longo de todos estes anos aprendi cada vez mais profundamente que arquitectura não é um jogo
de formas.
Compreendi a íntima relação entre arquitectura e civilização.
Compreendi que a arquitectura deve brotar das forças da civilização que a guiam e sustentam.
E que ela pode ser, no seu melhor, uma expressão da estrutura interna do seu tempo.”
O mais dramático nesta afirmação é que, trazida aos dias de hoje, nos leva a questionar a justeza
e a relevância da civilização e da estrutura interna do nosso tempo...
CASA MALANGATANA – MATALANA JOSÉ FORJAZ E ARQUITECTOS (EM CIMA) / FUNCHO (EM BAIXO)
ESTE TEXTO TIREI
DO INDESIGN
DE MOZ.
Intervenção apresentada ao Congresso Internatcional da IFLA and one in the Department of geography, with subjects relevant to man’s activities relating to the
NÃO VEIO COM (Federação Internacional dos Arquitectos Paisagistas) intervention in the natural landscape, but their responsibility is seen as to maximize the capacity to
OS OUTROS em Capetown, África de Sul. make the land productive or, simply, to analyze the physical reality in it’s diverse dimensions, exclu-
ding naturally the aesthetic or poetical meanings of the landscape. The reality is, as you can see, sadly
1994 ? simple to define. Is it easy to understand?
And is it very different from the reality in a good many countries in our region?
If not, as I suspect it is, what are, then, the reasons, the constants and the characteristic man’s
attitude towards the landscape as a source of physical and psychological well being in our part of
the world?
I think that without an attempt to understand this no meaningful move can be made to introdu-
ce to our societies a need and sensitivity for more than the productive and, maybe, the cosmogonic
dimensions of the vernacular landscape.
And why is this need for a new sensitivity so important now?
The answer seems obvious: the traditional balance between man and the natural environment
LANDSCAPE PRACTICE IN MOZAMBIQUE is broken.
It is broken at many levels sand in many ways. It is broken by the careless insertion of major
106 107 infrastructures: the roads and railways and the dams and power lines; it is broken by the violence of
Mozambique is a country with 800.000 square kilometers and nearly 16.000.000 people where the monoculture of sugar and sisal and tobacco; it is broken by the dams all built, as a rule, without
there is not, to my knowledge, a single Mozambican with a degree in landscape architecture; there is the slightest consideration for their environmental impact.
not, to my knowledge, a single landscape architect present in the country and practicing his art; there But the balance is also broken, in the sense of our considerations, in a very special and parti-
is no specialized course of studies conducting to a degree or a diploma in landscape architecture. cularly destructive way, by the almost inexplicable fast rate of demographic growth leading to the
There has never been. generalized phenomena of deforestation and desertification.
The only specialized discipline on this subject in an academic institution is a course of landscape It is broken by the incredible speed of urban growth and urban sprawl, uncontrollable and
architecture, with a duration of a semester, totalizing 96 hours of lectures and practical exercises, in unplanned.
the third year of studies of the Faculty of Architecture and Physical Planning, of our national and It is broken, finally, by almost three decades of warfare which isolated cast areas of the land,
only university. pushes millions of persons into vast miserable refugee camps, increased the urban problems and pre-
His course, integrated in the curriculae of the “environment” group of disciplines, attempts to vented any form of intelligent planning of population distribution or land and natural resources use.
make the students aware of the meaning of landscape as a specific spatial scale, to give them the Against the violence of these transformation phenomena the ineffable beauty of the jacaranda
intellectual instruments to perceive and understand it’s dimensions including it’s complex ecological lined avenues, the need for the well-trimmed park lawns or gardens seems an almost sinful luxury
relationships; to make them aware of the history of man’s attitudes and realizations in the field of and, for the large majority of our countries peoples, without any real meaning.
landscape transformation, with particular attention to what happens within the tropical zone and, Instead a tree in a street is seen, primarily as a source of fuel, at most a source of shadow, often as
finally, to equip he students with some, even if rudimentary, methodological instruments for the a public latrine, not a few times as an obstacle to the traffic.
analysis and the design of what we call n extra urban “green systems”, through practical exercises. Along the seashore of Maputo, our capital city, there is a scenic road built over e primary dune
This is all, in what regards formal acquisition of knowledge; there are, also, two medium level protected and stabilized with a grove of casuarina trees. For 18 years now the trees have been cut
schools for the preparation of agricultural technicians: one in the Faculty of Agriculture an Forestry down for fuelwood. The dune is taking over the road, the sea gnaws at the defenses and at, the end
of the road, the fishermen village is more and more isolated, not to speak about the beach, the only
available leisure resource for more than a million people, which is slowly becoming less and less
usable.
A project, a landscaping project for the reforestation and treatment of this stretch of road would
not resolve the problem by itself and, unless a solution is found for the immediate fuel needs of the
people living along the shoreline, no landscaping will succeed, short of protecting it with a perma-
nent and incorruptible military force.
This is one of many examples I could give you.
The visual environment of a country or a society is, I believe, defined by the attitude of the ma-
jority, not by the isolated fact or the efforts of an enlightened cultural elite or individual.
The change and evolution of a new attitude of the majority to demand a new level of envi-
ronment quality for our urban areas will take at least as long to materialize as it takes to bring that
majority to minimally acceptable standards of living.
And that will take a long time.
In the meantime our only hope is to be able to preserve some of the indispensible conditions to
reconstitute, in the future, a balanced environment where the productive, the visual and the symbo-
lic elements of the landscape will play their complementary roles for the benefit of man. 108
At another level, in our Faculty, we are striving to give our students the notion that in our sub-
tropical region the landscape is an essential complement to the built environment. We make a rule
of demanding from any project proposal a detailed treatment of the external spaces and a careful
consideration of the landscape elements for the control of light, shade, temperature and sound insu-
lation. We consider indispensible to any architectural solution a careful consideration of the climatic
parameters but all indications are that, in Mozambique, some of the most astonishing and of the
natural elements not only to create a better physical environment but to find again a link with the
more profound dimensions of our vernacular genius loci.
This we have, yet, to understand in depth but indications are that no sense of place can be achie-
ved in our cultures without the carefully balanced relationship between the architectural and the
landscape dimensions of the spaces.
Having said this I would like to invite all of you to come and see, in Mozambique, some of the
most astonishing and superb landscapes of Africa, as yet unspoiled and from which any sensitive
landscape architect will certainly be filled with a profound inspirational force.
The vastness and magnitude of this land of big trees and big animals is difficult to match.
We hope, with difficulty in hoping, that we can, at least, preserve some of that turning it into
man’s benefit by enhancing its beauty, not by destroying it.
The capacity to do that has yet to be built. DESENHOS PARA O CONCURSO DE PROJECTO PARA A SEDE DE MAPUTO DA CAISSE FRANCAISE JOSÉ FORJAZ
Pelo Dia Mundial do Habitat O tema deste “Dia Mundial do Habitat” propõe uma reflexão sobre a possível função da cidade,
ou do meio urbano, como um vector de desenvolvimento do meio rural.
Maputo 4 e 11 de Outubro de 2004 O tema é difícil de equacionar, e de articular, de forma a permitir tirar conclusões, ou mesmo, e
só, reflexões objectivas e de utilidade para o desenho de novas políticas que contribuam para a me-
lhoria do habitat humano na nossa região do mundo, que é a da geografia da pobreza.
Interessa então a esta reflexão uma análise, ainda que esquemática, da natureza dos dois meios
em questão, na nossa região: o rural e o urbano, e uma reflexão sobre a natureza das relações entre
estas duas formas de povoamento.
Começando por caracterizar o nosso meio rural é, de facto e infelizmente, elementar fazer a prova
de que a sua principal forma de produção, que é a agrária, interessa muito pouco para lá das nossas
fronteiras, e que só a exploração de recursos não renováveis, e únicos do nosso eco sistema, interes-
sam preferencialmente aos importadores do mundo industrializado.
Também é, infelizmente, elementar a prova de que, para viabilizar essa exploração, as retribuições
dadas aos trabalhadores rurais não permitem uma melhoria significativa das suas condições de vida, e
AS CIDADES COMO MOTORES a fortiori uma melhoria significativa das condições de vida da nossa população em geral.
DO DESENVOLVIMENTO RURAL? Poderíamos mesmo arriscar a afirmação de que os que menos beneficiam directamente com a
110 111 exploração dos nossos recursos naturais são os habitantes das zonas onde essa mesma exploração se
processa.
Os problemas da qualidade do habitat humano do terceiro mundo têm sido equacionados e pro- Os exemplos dramáticos das reservas naturais e das coutadas de caça, a ludibriação das popula-
movidos a tema de estudo, e especulação política e académica, sobretudo através da sua dimensão ções residentes para justificar a ocupação das melhores posições da costa de Moçambique por com-
urbana, certamente porque é esta a mais visível e politicamente sensível. plexos turísticos que oferecem apenas emprego, não especializado, a uma muito reduzida minoria
A cidade do terceiro mundo, os slums, o problema dos “sem tecto”, os squatters, “as invasões”, dos escorraçados;
a marginalidade social, económica, cultural e política foram, e são, sistematicamente escolhidos e – a tomada da terra a comunidades rurais, que a habitam ancestralmente, sem oferta de condi-
tratados pelos cientistas sociais e pelos urbanistas como temas de especulação e de inúmeras teses ções, minimamente compensatórias, às centenas de famílias que devem procurar novas condições de
para progresso na carreira académica e de especialização dos candidatos a Doutores nas melhores vida e de habitação;
universidades do mundo. – o corte de árvores e abate das florestas sem um plano articulado de repovoamento e controle
Esses temas são, também, uma base segura para mobilização de fundos para projectos de inves- fiável de corte em conformidade com a lei;
tigação, e de cooperação multilateral e bilateral, com a generosa intenção de inverter a tendência – os contratos viciados e legalmente inválidos para exploração de recursos submarinos, e outros,
generalizada de aumento da gravidade do problema naquelas regiões do mundo onde o trabalho hu- cuja riqueza não beneficia, nem directa nem minimamente, a comunidade local, e nem mesmo a
mano não é ainda valorizado proporcionalmente ao esforço físico e retribuído por forma a permitir, comunidade nacional;
a todos, as condições mínimas e aceitáveis de qualidade de vida. – os projectos com profundo impacto ambiental negativo, elaborados e articulados sem suficien-
Por ser mais visível, e politicamente sensível, a cidade é, sistematicamente, o pólo de atenção te coordenação multidisciplinar e regional e sem consideração pelo impacto social e económico que
dos políticos e dos mandantes e filósofos da cooperação internacional, tendo o mundo rural ficado terão na vida de milhares de famílias rurais, na sua região e nas suas zonas de influência;
mais aberto à especulação sobre os problemas de distribuição da terra, da água e dos factores de – a expansão descontrolada das cidades com a tomada das melhores e mais férteis terras de cul-
produção. tivo, etc., etc…
São alguns exemplos exactamente do contrário, isto é, de como a cidade, pelo menos neste nosso de comunicação social e pessoal, faltam os serviços públicos e privados, faltam os meios de defesa e
terceiro mundo, tem sido, sistematicamente, um factor de empobrecimento do mundo rural, pois segurança, faltam as oportunidades de debate e de troca de ideias fora do círculo social restrito da
é exactamente nas cidades que se cozinham, se absorvem e se dividem os lucros desses esquemas de família ou do clã, faltam os organismos económicos e financeiros, falta até a oportunidade de praticar
exploração da credulidade e da impotência da população rural, sem possibilidade de se defender por a religião escolhida.
vias legais ou administrativas pois, não percebendo o alcance das manobras a que é sujeita, não pode, Parece-me então um exercício elucidativo, e estimulante para a imaginação de audiências urbanas
por não saber, recorrer à protecção de uma débil máquina administrativa e jurídica que não conhece como esta, analisar objectivamente alguns dos parâmetros quantitativos das diferenças apontadas.
e à qual, de qualquer forma, não tem acesso. Mais adiante tomaremos, também, o orçamento do estado para os distritos rurais e calculamos
A problemática das relações entre a cidade e o campo depende, portanto, da capacidade dos go- o seu valor anual per capita comparando-o com o mesmo valor calculado a partir da Compensação
vernantes em fiscalizar as condições de realização daqueles “projectos”, e arbitrar entre os interesses, Autárquica para as diferentes cidades do país.
as diferenças e as razões que assistem a cada âmbito social na divisão mais equilibrada dos recursos Antes, contudo, será interessante estudar algumas dimensões correntes da vida quotidiana de
naturais, financeiros, e humanos da nação. todos nós e ver qual a sua expressão no campo e na cidade.
Depende portanto de dimensões éticas e políticas do exercício do poder, que se faz, quase exclu- Um exercício esclarecedor é, por exemplo, o cálculo do número de cópias dos jornais diários que
sivamente, nas cidades. são distribuídos nas cidades e aquelas que são acessíveis ao camponês, em Moçambique.
Mas, se as cidades absorvem a maior parte das capacidades e dos recursos da nação não é me- Se tomarmos o caso mais relevante e único válido para Moçambique, que é o do diário
nos verdade que elas continuam dependentes do mundo rural para uma parte importante da sua “Notícias” com uma tiragem de 14.000 exemplares, verificamos que a distribuição para Maputo é de
sobrevivência, quer em termos de comercialização da sua produção e dos serviços que prestam, quase 12.000 exemplares para todo o resto do país cerca de 2.000 exemplares. Este número, já de si
quer porque necessitam do que o campo lhes fornece, tanto em géneros como em trabalho a baixo 112 113 extraordinário, torna-se ainda mais dramático quando analisado por província pois, se para Maputo
custo. se distribui 1 jornal por cada 100 habitantes, no Niassa todo distribui-se 1 jornal por cada 40.000
Pode e deve, então, perguntar-se se o equilíbrio entre estes dois potenciais não seria realmente habitantes, em Sofala e Manica distribui-se 1 jornal por cada 6.500 habitantes, em Tete 1 para 6.000
desejável e porque tem sido ele, até agora, impossível e, de facto, cada vez mais desequilibrado. pessoas, em Cabo Delgado 1 para 12.000 pessoas, na Zambézia 1 para 12.000 pessoas, em Nampula
Pode e deve, então, perguntar-se quais as diferenças que marcam estas duas realidades, antagóni- 1 para 8.750 pessoas, e assim por diante.
cas por vezes, mas tão indispensavelmente complementares. Também significativo é o consumo de energia por região ou, mais precisamente, por Província.
Por outro lado neste nosso, tão irremediavelmente, terceiro mundo, as diferenças são, talvez, Consideremos, penso que validamente, as províncias “arrumadas” por grau de ruralidade do mais
mais ilusórias que reais. alto, nas províncias do Norte, ao mais baixo, nas províncias do Sul.
De facto as nossas cidades são já um misto de ruralidade e urbanidade, com largos segmentos Encontramos valores de “acesso doméstico à Energia” que vão dos 1,7% na Zambézia e 1,8% no
da população sem qualquer das infra-estruturas, serviços básicos e organização administrativa que Niassa, até aos 5,3% em Sofala e 23,1% no Maputo!
distinguem tradicionalmente a cidade do campo.
Acontece mesmo que, nalguns casos, o campo oferece condições de acesso a serviços de educação
e de saúde, por exemplo, que não são necessariamente inferiores, mais raros ou mais distantes do
que na cidade.
Essa é, no entanto e ainda, a excepção e o caso raro.
Nestas condições como pode, então, esperar-se que a cidade se torne o “motor do desenvolvi-
mento rural”?
FSDFSD
No campo, isto é, na maior parte do território, e para a maior parte da população nacional, falta DFDSGFDSFGV
quase tudo; falta a estrada, falta a água limpa e abundante, falta a energia eléctrica, faltam os meios DSFSDFDS
De facto, a percentagem média de acesso doméstico à energia eléctrica em todo o país é de 3,1% Pelo contrário, é pela compreensão e pelo respeito das dimensões locais da economia, da cultura
da população enquanto esse mesmo valor para Maputo é de 7,5 vezes a média nacional! e da história das relações entre as pessoas e delas com a terra, que se poderá utilizar todo o potencial
É também significativo constatar que o consumo nacional médio anual per capita, em 2003, era humano e natural das zonas rurais.
de 79,9 Kwh (ou 6,65 Kwh por pessoa por mês), incluindo consumos industriais. A própria Constituição da República define como um dos seus objectivos fundamentais “a pro-
Este valor na vizinha África do Sul, por exemplo é de 479 Kwh, ou seja 6 vezes a nossa média moção do desenvolvimento equilibrado, económico, social e regional do País”.
nacional. Por outro lado, enquanto que a lei fundamental defende, e cria, o “Poder Local” este é equacio-
Para dar uma noção do significado destes valores basta indicar que a média do consumo anual nado e investido apenas nas autarquias locais que são, no presente, 33 em todo o país, representando
nos países menos desenvolvidos era, em 1997, de 82 Kwh, nos países da Europa (OCDE) era de cerca de 4.300.000 de pessoas, isto é, menos do que 25% dos moçambicanos.
8.008 Kwh, enquanto a média mundial era de 2.383 Kwh, ou seja 30 vezes a média do consumo Nos termos do Artigo 188 da Constituição, são esses os cidadãos a quem é dado o direito, e os
em Moçambique. que têm o dever, de participar “na solução dos problemas próprios da sua comunidade” e de “pro-
Este valor atinge cifras extraordinárias da ordem dos 13.284 Kwh nos Estados Unidos, mover o desenvolvimento local, o aprofundamento e a consolidação da democracia, no quadro da
20.387 Kwh na Islândia, e 26.327 Kwh na Noruega, isto é, 330 vezes o consumo médio em unidade do Estado moçambicano”.
Moçambique! É também do espírito e da forma da lei fundamental que o poder local se “apoia na iniciativa e
Naturalmente que a mesma análise é relevante para o número de médicos, advogados, arqui- na capacidade das populações e actua em estreita colaboração com as organizações de participação
tectos ou, muito simplesmente, o número de funcionários do estado... dos cidadãos”.
Significativo é também o facto de que mesmo estas simples e reveladoras estatísticas não são Admite-se que a democratização de Moçambique seja um processo longo e difícil, e que a exten-
fáceis, ou são mesmo em certos casos impossíveis, pois que a informação que se pode obter dos 114 115 são daqueles direitos e deveres a todos os cidadãos não seja fácil de realizar a curto prazo, mas parece
recenseamentos e órgãos estatísticos não é sensível a muitos destes termómetros do desequilíbrio indispensável que o sistema de governo e a presença dos órgãos locais do Estado esteja cada vez mais
nacional. atento à participação de todos os cidadãos, mesmo dos camponeses, no mesmo espírito que a lei
Podemos pôr, então, em causa o compromisso que julgamos haver, ou nos é dado acreditar que estabelece para as autarquias.
seja um objectivo político nacional, que é o de eliminar as diferenças de tratamento entre os cida- Só através dessa atitude se poderão evitar erros graves na relação entre o Estado, moderno e abs-
dãos, quaisquer que sejam as suas origens, e arriscar a afirmação de que as cidades são, sistematica- tracto, e a autoridade tradicional como é o caso do que se passa com a falta de correspondência entre
mente, privilegiadas na distribuição dos recursos do estado e da riqueza nacional. o âmbito geográfico da divisão administrativa e o âmbito territorial da autoridade dos chefes tradi-
Teorias simplistas como a de uma melhor “arrumação” das pessoas no território com a criação de cionais, que são, para a grande maioria da população moçambicana, a única e verdadeira autoridade
núcleos concentrados de população onde fosse, teoricamente, mais fácil trazer-lhe as infra-estruturas e aquela que mantém o sistema de controlo social, a justiça e a hierarquia do poder real.
e os serviços foram, da maneira mais brutal, demonstradas nefastas pois que, além de tais serviços e De facto, nas condições actuais de exercício do poder do Estado o país estaria à beira da anarquia
infra-estruturas nunca se terem materializado, toda a relação económica, técnica, cultural, histórica e e do caos social se não fossem as autoridades tradicionais manterem a ordem e o respeito pelas regras
emocional das pessoas entre elas e delas com a terra foi desfeita, com consequências catastróficas para não escritas, mas de todos conhecidas, que regulam as relações entre os cidadãos do campo ou, se
aqueles que, precisamente, se pretendia apoiar com essa teoria. quisermos, do âmbito geográfico rural.
Não é por se juntarem mais pessoas em menos espaço geográfico que se produz, como por ine- Aliás, a falta de segurança, o crime e as outras patologias sociais, que se vão tornando regra nas
vitabilidade quase milagrosa, uma sociedade urbana com as sinergias e a dinâmicas próprias dessa cidades, provam exactamente que nos lugares onde aquela autoridade se dilui, a debilidade das ins-
forma de povoamento. tituições de defesa da ordem e segurança não as torna ainda capazes de se substituírem à ordem e à
Prova disso, por nós infelizmente bem conhecida, foram os aldeamentos coloniais e são, ainda regra tradicionais da nossa sociedade.
hoje, os campos de refugiados que, no entanto, têm mais apoio material, técnico e financeiro do que A experiência de trabalho com as comunidades rurais prova que qualquer acção ou intervenção
o que houve alguma vez disponível, para as nossas malogradas experiências de engenharia social. de qualquer natureza, seja politica, económica, social ou cultural, só tem resultados positivos, nesse
meio, se houver uma total compreensão e adesão, por parte da comunidade e se os seus objectivos ou seja entre 25 cêntimos e $1,07 dólares americanos por pessoa por ano! Isto é, 10 a 80 cêntimos
forem assumidos por todos. do Euro.
Para tal a mediação da autoridade tradicional é indispensável pois só ela pode funcionar como Parece-nos interessante e significativa a sua comparação com os valores atribuídos às autarquias.
garante da boa-fé de quem promove a acção, sendo ela que, chegado o momento, deverá explicar O Fundo de Compensação Autárquica, para o ano de 2004, que representa, em geral, cerca de
e sofrer as consequências negativas que para a comunidade possam advir, enquanto as autoridades 50% dos orçamentos municipais, tem um valor médio de 46.365 Meticais, ou sejam $2,0 USD per
políticas e administrativas são tidas como mais transitórias e, portanto, podem efectivamente escapar capita por ano, variando entre um mínimo de 16.526 Meticais no Gurué e um máximo de 142.214
à responsabilização, pelas consequências dos seus actos ou projectos. Meticais em Mandlakazi, ou seja entre um mínimo de $ 0,71 USD e um máximo de $6,18 USD
Nestas condições as funções do governo e as das autoridades tradicionais devem, necessaria- por pessoa e por ano.
mente, completar-se e complementar-se, funcionando a administração pública como definidora das Numa comparação directa podemos inferir que os habitantes das autarquias têm uma atribuição
políticas gerais, como financiadora ou promotora do financiamento e, sobretudo como facilitadora do orçamento de estado que é, na média nacional, mais do dobro da atribuição aos habitantes dos
dos contactos e relações extra comunitárias. distritos rurais.
A autoridade tradicional assumirá naturalmente o papel de representante dos interesses da comu- Parece-nos importante, para situar a dimensão global do problema, fazer uma rápida comparação
nidade e de promotora da evolução e da renovação dos costumes tradicionais, dentro das instituições com os mesmos indicadores para outras cidades no mundo, começando, naturalmente, pelas da
económicas democráticas modernas. nossa região.
Pode perguntar-se qual o propósito destas considerações quando o que está em discussão é a Tomemos então, para começar, o exemplo da cidade de Windhoek, capital da Namíbia, um país
pretendida função da cidade como estimuladora do desenvolvimento rural. que acedeu à independência num momento histórico muito próximo do nosso e com um percurso
Naturalmente que, enquanto se mantiver a dependência que o meio rural tem em relação ao 116 117 de luta política e armada não muito diverso.
meio urbano, onde as decisões são tomadas e o bolo nacional é repartido, não poderá haver outra Trata-se de uma cidade com uma população da ordem dos 250.000 habitantes e com um or-
visão senão a de que o futuro do campo, onde a parte mais importante da riqueza nacional é çamento anual da ordem dos $75,7 milhões de dólares, ou sejam $303 dólares por pessoa por ano.
produzida, passa exactamente por um equilíbrio de interesses entre estes dois âmbitos territoriais Se tomarmos as cidades mais significativas da nossa vizinha África do Sul os números são ainda
e sociais. mais expressivos. Assim, no caso de Joanesburgo, com uma população metropolitana de 3,2 milhões
É sintomático que o Orçamento do Estado defina, e leve à aprovação da Assembleia da Repú- de habitantes, o valor anual do seu orçamento municipal per capita é de $476 dólares, enquanto
blica, as atribuições do Fundo de Compensação Autárquica às 33 autarquias do país, mas não tenha que em Durban, com 3.100.000 habitantes, esse valor é de $533 USD e na Cidade do Cabo, com
qualquer referência explícita a uma compensação, ou atribuição, aos distritos, que nem mesmo são 2.600.000 habitantes, esse valor é de $453 USD!
explicitadas nas atribuições às Províncias. Estamos portanto a falar de dimensões orçamentais da ordem das 100 na Namíbia, às 215 vezes
Essas atribuições ficam, portanto, remetidas à discrição dos governos provinciais, que não estão as nossas, na África do Sul!!!
equipados com os órgãos de exercício democrático necessários à decisão sobre este tema.
As sondagens que fizemos levaram-nos à conclusão de que não é fácil obter os valores das trans-
ferências dos fundos estatais para as Administrações Distritais.
Contudo, nas duas províncias onde conseguimos, por gentileza dos respectivos Governadores,
obter esses valores, encontrámos uma distribuição média anual per capita da ordem dos 22.430
Meticais, ou sejam cerca de $0,97 cêntimos de dólares por pessoa por ano! Talvez $ 0,75.
Estes valores variam, numa das duas províncias analisadas, entre os 12.790 Meticais, como
FSDFSD
valor mínimo, e 49.290 Meticais, como valormáximo ou seja entre 50 cêntimos e $2,14 USD, per DFDSGFDSFGV
capita por ano e, na outra, entre um mínimo de 7.000 Meticais e um máximo de 24.637 Meticais, DSFSDFDS
Mais interessante se torna este exercício quando aplicado às cidades europeias e norte america- ingenuidade, o cinismo ou a inconsciência com que se propõem estratégias que isolam sectores eco-
nas, onde encontramos casos tão espantosos como o de Aalborg na Dinamarca com um valor per nómicos e sociais e se constroem sobre esses soluções hipotéticas, baseadas em exemplos pontuais que
capita anual de $ 25.700 USD; Murcia, na Espanha, com $ 952 USD, ou Toronto, no Canadá, com não escondem, nem minimamente, a tendência generalizada de empobrecimento real da maioria da
$1.814 usd. população da nossa região e do nosso continente.
Mais longe ainda, mas em latitude semelhante à nossa, podemos comparar-nos com o orçamen- O problema do desenvolvimento urbano ou rural não é um problema isolado ou que se possa
to municipal de Port Phillip, na Austrália, com uma população de 81.000 habitantes, com $ 790 resolver independentemente, como não o é o problema da pobreza ou o problema do desemprego
USD por habitante por ano. ou, se quisermos, o problema do subdesenvolvimento.
A enormidade destes indicadores pode, e deve, chamar-nos de volta à realidade da nossa situa- Os números e as estatísticas indicadas dão uma noção objectiva e quantificada da dimensão do
ção e colocar realisticamente o problema da cidade como promotora do desenvolvimento rural em nosso problema urbano e rural, isto é, do problema nacional.
Moçambique. Um olhar atento aos números e às estatísticas da nossa região e do nosso continente, tornam claro
De facto, mesmo com o desequilíbrio apontado entre os orçamentos das cidades e dos distritos, que não se trata de um problema isolado e que de facto Moçambique nem mesmo é o caso mais
como poderão as nossas cidades vir a funcionar desse modo? desesperado… felizmente para nós.
Mas, e sobretudo, com os valores absolutos mencionados, como pode o coxo ajudar o cego? Os números são ainda mais eloquentes quando objectivados e traduzidos em exemplos que dêem
Voltando ao nosso caso importa reflectir que os números indicados reflectem uma simples ver- a medida comparativa da condição do trabalhador moçambicano e do seu congénere ou homólogo
dade: embora o orçamento que o estado atribui às autarquias seja quase exactamente o dobro do que em países desenvolvidos.
atribui aos distritos esse facto não é, em si, significativa pois que, mesmo esse dobro que as cidades É espantosa a diferença de condições salariais para o mesmo trabalho, sobretudo ao nível mais
recebem, é tão manifestamente insuficiente que seria muito difícil esperar que daí se possa investir 118 119 baixo da escala salarial.
em mais do que o necessário e essencial para assegurar a mais elementar sobrevivência. Tomemos por exemplo o salário mínimo americano de $5,00 por hora, para trabalhadores não
Não nos parece portanto relevante falar aqui de hipóteses abstractas ou veleitárias como as de que especializados.
se devem desenvolver as infra-estruturas e os serviços para apoiar o campo. A este nível um trabalhador americano recebe em dia e meio de trabalho o salário mínimo men-
Isso parece-nos evidente e indiscutível. sal de trabalhador um moçambicano!!!
Todos sabemos que o campo é longe e mudo, mas sabemos também que a nossa cidade é só Mas terá este trabalhador mais necessidades básicas? Não, mas o que têm, com certeza, são mais
marginalmente mais próxima e mais vocal. exigências.
Sabemos todos que o nosso problema não é o de uma cidade privilegiada e um campo esquecido Sabemos perfeitamente que nenhum político do mundo desenvolvido teria jamais a coragem de
mas sim o de um continente a quem não é dada a mais pequena possibilidade de sair da situação de pedir sacrifícios ao seu povo para beneficiar um outro povo. Ninguém, no seu perfeito juízo, saberia
indigência em que se encontra. propor, motivar ou justificar o esforço que seria necessário fazer, mesmo a nível pessoal, para começar
O que deveríamos discutir é a possibilidade de que o círculo vicioso da pobreza não seja possível a equilibrar as condições de vida dos habitantes deste mundo.
de quebrar por qualquer milagre socioeconómico, enquanto persistirem as desigualdades nos termos Seria uma utopia irrealizável e, provavelmente, impossível de administrar com a necessária justiça
de troca entre os mundos em que se arruma tradicionalmente a humanidade. e transparência.
O que deveríamos discutir é a possibilidade de que os níveis e as formas de cooperação internacio- E, no entanto, os níveis irrisoriamente baixos de “cooperação” internacional, sempre, e genera-
nal, com que se mantém a situação de dependência de África em relação aos países doadores, não pode lizadamente, muito inferiores aos estabelecidos e aceites pela comunidade das nações no fórum das
mais esconder a ilusão de que não é com essas migalhas que se poderão jamais produzir as mudanças Nações Unidas, devem fazer-nos gratos e dependentes como que de um favor se trate.
estruturais necessárias à inversão da tendência do progressivo e inexorável empobrecimento do conti- As comunidades rurais e urbanas dos nossos países, a quem não chega directa ou indirectamente
nente e das consequências desastrosas, e inevitáveis, que tal fenómeno vai trazer a toda a Humanidade. senão uma percentagem ínfima desses fundos, não têm já, ou nunca tiveram, qualquer ilusão sobre
Parece-me, portanto, essencial aproveitar esta oportunidade para denunciar, mais uma vez, a o que lhes pode chegar como ajuda exterior significativa.
Contam, como sempre o fizeram, consigo próprias para resolver os seus problemas. As empresas de serviços não lhos podem fornecer sem garantia.
E fazem bem pois que de outro modo mais pobres ainda ficariam na espera do prometido... que, Naturalmente que as estratégias de distribuição equitativa dos benefícios e da renda nacional a
felizmente, não conhecem. todos os cidadãos podem, e devem ser urgentemente, melhoradas, mas o problema anterior é o da
Talvez que o segredo maior para uma ajuda positiva seja o de as deixar, ao menos, fazer o que própria criação de riqueza, da qual os camponeses são, sistematicamente excluídos, como o foram
sabem sem as prejudicar ainda mais interferindo com o seu saber ancestral, com a sua regra social na economia colonial.
e sobretudo com a riqueza natural que lhes pertence, e que é a única fonte de subsistência de que Os exemplos de estratégias com êxito para a melhoria das condições de vida da população
dispõem, pelo menos enquanto um novo saber, mais estruturado na realidade social e ecológica, não rural são, infelizmente, raros e pouco significativos, quando confrontados com a enormidade do
possa vir a substituir-se com vantagem àqueles saberes e àquelas regras que são, apesar de tudo, as problema.
que asseguram ainda o precário e milagroso equilíbrio que mantém viva e em paz essa comunidade. E no entanto estratégias como a da participação dos trabalhadores nas empresas, asseguran-
Falar de desenvolvimento e fazer-lhe a prática são dois exercícios diversos e, muitas vezes, anta- do-lhes a propriedade do seu posto de trabalho; do subsídio básico mínimo a todas as famílias,
gónicos. suficiente para cobrir as despesas de subsistência essenciais; dos programas de investimento através
Mas falar de desenvolvimento sem ter os meios para o materializar e, sobretudo, sem contar das associações de desenvolvimento comunitário, para transformação das aldeias em empresas de
com os limites e os potenciais dos sujeitos desse mesmo desenvolvimento; falar de desenvolvimento propriedade democrática, e outras, foram já testadas com sucesso na região.
como se de um processo técnico se tratasse; falar de desenvolvimento reduzindo-o a uma colecção Não me cabe a mim, nem aqui seria possível, discutir estes tópicos da economia e do desenvol-
de projectos ou de programas; falar de desenvolvimento como se quem se quer desenvolver não sou- vimento, mas julgo ser importante, e da essência do debate sobre os problemas dos assentamentos
besse melhor do que ninguém do que precisa; falar de desenvolvimento como de remédio para uma humanos, identificar essa dimensão como a raiz do problema.
doença é como falar de cooperação como se fosse caridade. 120 121 No princípio desta comunicação afirmei:
De facto o campo, ou se quisermos, a aldeia que é a sua expressão colectiva, vai perdendo a sua “O tema é difícil de equacionar e de articular por forma a levar a conclusões, ou mesmo, e só, a
capacidade de auto-sustento. reflexões objectivas, e de utilidade para o desenho de novas políticas que contribuam à melhoria do
…“para 30% dos que vivem no campo, e para muitos outros que ainda com ele mantêm laços habitat humano na nossa região do mundo, que é a da geografia da pobreza.”
profundos, a aldeia já não oferece a base económica para uma agricultura produtiva e para as acti- A equação, da qual tentei estabelecer alguns termos nesta análise, tem, de facto muitas incógni-
vidades de apoio mútuo e de trabalho comum”… diz o economista Norman Reinholds, falando da tas. Tantas, pelo menos, quantos os casos e quantas as comunidades rurais que representa.
situação na África do Sul. Não posso portanto, pretender, aqui, encontrar-lhe uma solução, mas penso que
A diferença para a nossa situação é apenas quantitativa. é útil, e mesmo indispensável, lembrar, mais uma vez, que o “ motor do desenvolvimento rural”
Melhorar o habitat rural é um conceito simples de definir: quer dizer estradas e vias de comunica- poderá talvez ser também as cidades se estas forem enquadradas numa estratégia global de desenvol-
ção, infra estruturas económicas e sociais, saúde e educação (por essa ordem), crédito agrário às famílias vimento equilibrado.
e às pequenas empresas, acesso aos serviços de administração pública, apoio técnico e rede comercial;
mas isto só se consegue com uma política de apoio à sua produção através de incentivos fiscais, do
agravamento das condições de importação dos géneros que se podem produzir em Moçambique e,
naturalmente, com um mecanismo de crédito acessível às comunidades e às famílias camponesas.
O camponês não tem água limpa porque não pode pagá-la; também, por isso, não tem electrici-
dade ou telefone e não tem escola e hospital e jornal e televisão ou farmácia.
Porque não pode pagá-los.
FSDFSD
O estado não lhos pode dar enquanto não criar uma base contribuinte suficiente, que não pode DFDSGFDSFGV
vir duma agricultura de subsistência. DSFSDFDS
Adenda para as “XI Jornadas da Associação dos Urbanistas Portugueses” na escolha dos seus representantes e dirigentes e, sobretudo, no conhecimento e na aceitação da lei
escrita e despersonalizada.
As cidades são um produto das forças sociais que as governam, que as dominam e dirigem. Na sobreposição das várias cidades que são, hoje, as nossas cidades, podemos distinguir clara-
A forma da cidade é, portanto, o resultado e a materialização daquelas forças, muito mais que mente as diversas camadas que as conformam, e as caracterizam:
uma consequência da sua topografia, do seu clima ou da visão espacial dos seus urbanistas. o núcleo rural da primeira ocupação, presente ainda na toponímia e na sua permanente repro-
A história da cidade africana não seria aqui possível de apresentar nem mesmo em forma de dução periférica, a primeira cidade, sede da ocupação militar e comercial, o centro do domínio e
bosquejo. Mas ela deve ser tomada em consideração quando certas afirmações pareçam reflectir do exercício do poder colonial, a cidade libertada e sede dos sonhos e esperanças da nação indepen-
uma distância maior à realidade europeia, onde a cidade foi sempre “a única expressão da evolução dente, as profundas marcas das aventuras e dos ideais políticos do post independência, as nefastas
da sociedade”. Pelo contrário “uma ligação profunda entre o mundo rural e o mundo urbano teve consequências da inépcia e da corrupção administrativa e política e os preciosos indícios de uma
uma influência marcante sobre as características das cidades africanas antigas, ligação essa que ainda renascença africana.
pode ser identificada nas cidades da África contemporânea”. (Sandro Bruschi in “Campo e cidades Mas a ideia de cidade e de urbanidade, e as suas razões de ser e de acontecer, são, ainda, muito di-
da África antiga”). versas das que produziram as cidades europeias. E, mesmo quando são as mesmas as razões, devemos
Na Europa, nos países ocidentais, nas sociedades com uma longa tradição urbana e nas cidades ter em conta que elas surgem só agora, séculos mais tarde das razões e circunstâncias que assistiram
planificadas e construídas para responder a programas religiosos, políticos ou económicos, a ordem à génese e
urbana é identificável na sua geometria, na sua evolução espacial e topológica, na sua longevidade, à consolidação das cidades do resto do mundo.
na distribuição das responsabilidades cívicas entre os seus habitantes, na toponímia dos espaços Não interessa, como dissemos, neste momento, perspectivar a história da cidade africana e es-
públicos, nas tradições culturais e nos seus monumentos comemorativos, na especialização dos seus 122 123 tabelecer as profundas diferenças entre as civilizações de forte urbanidade da África Ocidental e as
habitantes, no milagre do seu aprovisionamento quotidiano, no anonimato do cidadão perante a lei, civilizações de forte ruralidade do resto da África sub sahariana.
na presença de instrumentos de segurança e protecção social, na oferta de oportunidades de promo- Isso é parte integrante da história de África, que não é o assunto que aqui trazemos.
ção económica, política, científica, técnica e cultural, na difusão da informação, numa palavra: no Interessa sim, nesta ocasião, esclarecer algumas das razões das diferenças apontadas.
seu ethos. Interessa aqui, penso eu, reflectir sobre a natureza dos problemas que enfrentamos, como urba-
Naturalmente todas estas dimensões foram-se construindo ao longo dos anos e dos séculos, atra- nistas, no nosso meio de intervenção.
vés da lenta evolução que nos trouxe da revolução que foi a descoberta da agricultura e das primeiras Na primeira parte desta comunicação reflecti sobre a dimensão específica das relações entre o
autocracias, e teocracias, até às presentes, e ainda tantas vezes inseguras, democracias. “campo” e a “cidade”, no nosso contexto tentando, com isso, estabelecer o contexto geral do habitat
Não há porventura nesta sala uma só pessoa, um só colega, que ponha em causa a validade e a humano em Moçambique.
necessidade do processo democrático como a única forma justa de administrar a cidade em que se Quereria ir agora um pouco mais longe e discutir a natureza da cidade contemporânea africana,
vive e em que se quer viver. como vista e sentida pelos seus habitantes, e por aqueles que aspiram a ser, também, seus potenciais
Imperfeita, talvez, mas ainda insubstituível como mecanismo mais adequado ao equilíbrio e à habitantes.
justiça das decisões sobre a coisa pública, à vida cívica e ao bem comum, a democracia nasce na ci- O objectivo desta “adenda” é, agora, a de alinhar algumas noções sobre a realidade dos problemas
dade, pela inteligente descoberta do valor específico e especial de cada homem num conjunto social urbanos e da posição dos urbanistas perante eles.
que é maior do que o somatório dos indivíduos. Talvez a maneira mais sugestiva de vos dar a medida, e a essência, do problema seja levar-vos,
Na África sub sahariana, onde vivo e trabalho, e onde me obrigo a participar na construção do em espírito, a um qualquer debate sobre um qualquer plano, ou projecto, ou intervenção sobre uma
bem comum e da cultura cívica, a cidade é, igualmente, necessária e necessita das mesmas regras e qualquer cidade ou bairro de qualquer cidade de Moçambique que é, seguramente, um exemplo
das mesmas obrigações. também válido também, para toda a África sub sahariana.
Mas ela é uma necessidade recente para uma nova sociedade que tem, ainda, grandes dificuldades Não interessa por onde se comece, ou para onde se oriente a discussão, o debate vai sendo, inexo-
ravelmente, dirigido para o único problema sobre o qual todos os moçambicanos presentes estão de O que me parece mais significativo nesta situação é o facto da cidade ser vista, por uma grande
acordo: a dimensão dos talhões propostos para as famílias construírem as suas habitações é, sempre, maioria da população, como base de uma economia agrária, sem se dar conta do desenraizamento
muito pequena. inevitável das suas tradições comunitárias e dos problemas ecológicos, como se fosse possível conti-
Os argumentos são (e há trinta anos que os conhecemos…): que o país é grande, que as famílias nuar a dependência da terra como garante da sobrevivência mas, agora, com as vantagens de viver
têm que cultivar a sua “machamba” pois só isso lhes garante um mínimo de segurança alimentar, que na cidade.
os urbanistas não conhecem ou não respeitam “os nossos costumes”, que as famílias africanas são As estatísticas mais grosseiras indicam que a superfície mínima necessária à sobrevivência de
grandes e devem hospedar muitos familiares distantes quando se visitam e comemoram juntos, que uma família camponesa, em Moçambique, é de dois hectares, não contando com mais dois a quatro
os filhos, e os netos, devem viver em casa com os pais …etc, etc. hectares para rotação das culturas, e com a necessária, e nem sempre assegurada, aptidão agrícola do
Os contra argumentos são evidentes: que a cidade não se pode estender indefinidamente, que as terreno.
infra estruturas e os serviços seriam proibitivos, que as distâncias aos centros de serviços e de activi- Chegamos assim à extraordinária densidade urbana de cerca de um habitante por hectare, antes
dade aumentariam insuportavelmente, etc, etc, etc. mesmo de reservar o terreno necessário às infra estruturas e serviços públicos, … se quisermos acei-
Não assisti ainda a nenhum destes debates que terminasse com um só dos presentes convencido tar que as nossas cidades sejam os locais de vida de uma classe de camponeses, condenados a uma
com estes argumentos. agricultura de subsistência.
O problema, contudo, cada dia se me afigura mais pertinente pois que, de facto, os argumentos O que há de extraordinário nesta situação é o facto das pessoas estarem profundamente con-
dos urbanistas soam quase todos a falso, e as pessoas têm o direito de se perguntar porque é que se vencidas de que aquela cidade é possível e de que, na transferência da aldeia para a cidade, se
invocam argumentos irrelevantes. podem conservar as relações ancestrais com os outros e com a natureza, que só a aldeia pode
Vejamos: porquê invocar o custo da estrada que nunca se faz, da água que nunca chega à casa, da 124 125 assegurar.
energia que não é instalada, da escola ou do posto de saúde que não são construídos, do lixo que não Esta é uma das leituras mais significativas que podemos fazer da cidade africana de hoje: na im-
é removido, das linhas telefónicas que não são levadas ao bairro e das distâncias que não têm sentido possibilidade de viabilização do desenvolvimento rural, pois que esse depende de factores externos às
senão para uma pequena fracção da população? nossas economias, o camponês, que percebe que na cidade há, ou parece haver, maiores oportunida-
Na grande maioria das cidades, incluindo a capital, o grosso do aumento da população faz-se des, ruraliza a cidade quando, finalmente, a ela acede pois também ali não encontra outra alternativa.
pela chegada ou pela reprodução de famílias camponesas que se vão instalando e disseminando na E deve fazê-lo, para poder sobreviver.
periferia e encontrando interstícios, no centro da cidade, onde cultivar a sua pequena mas indispen- Por outro lado a ocupação das periferias, por esta população sem esperança, faz-se agora sem
sável machamba. atenção às regras tradicionais e sábias de uma relação inteligente com a terra e com a comunidade.
Por outro lado é também verdade que o crescimento espontâneo das cidades se vai fazendo por Encontra-se o lugar possível, mas não o melhor lugar, o mais correcto para o cultivo e para o
acomodação aos diversos factores e se resolvem pacificamente os conflitos sendo reconhecida por pasto.
todos a justeza com que essa acomodação se realiza.
No reordenamento dos bairros de criação e desenvolvimento espontâneo é interessante o facto
de que a subdivisão da terra é razoavelmente equilibrada e sem grandes diferenças de áreas entre os
“ talhões” ocupados, que acabam por não ser muito maiores e são, por vezes, até menores, do que
os que se discutem com a população nos debates públicos, como os ideais para o equilibro urbano.
E, no entanto, isso não invalida os argumentos das famílias que vêem, de facto, na dimensão do
talhão um factor importante de melhoria potencial e directa da sua vida material e que, portanto,
FSDFSD
esperam das autoridades uma proposta que, realmente, permita e proporcione essa melhoria em DFDSGFDSFGV
melhores condições do que as soluções que elas por si próprias encontraram. DSFSDFDS
Paga-se a terra a quem não tem o direito de a vender, pois se desconhecem os mecanismos de O SIDA é, como sabemos, uma doença social, ou mesmo, diria eu, uma doença cultural, na me-
exploração já instalados. dida em que o seu controle depende, fundamentalmente, da educação da população. Essa educação
Esgota-se a terra e desertifica-se o território, pois a terra não chega e não há é muito difícil de fazer entre pessoas, na maioria analfabetas, e com crenças arreigadas em explicações
alternativa, senão cortar lenha para cozinhar. mágicas para os fenómenos que não compreendem.
Vive-se na contingência da expulsão, pois agora, na cidade, as velhas regras da distribuição da Que fazer então?
terra já não são aplicáveis, e as novas não foram aprendidas. Uma pergunta que tem mais de ético que de tecnológico… e que, para espíritos mais místicos
A terra, aqui, tem dono e tem destino e a sua ocupação exige papéis, documentos inacessíveis e tenha, talvez, até muito de religioso.
o cumprimento de regras incompreensíveis Para nós, que pretendemos intervir no processo de dar forma e equilíbrio à cidade do 3º mundo,
Pouco a pouco vão-se criando as condições para a situação desesperada em que nos encontramos que caminhos nos ficam abertos para uma contribuição significativa e positiva?
em que o crescimento da população nas cidades é muito mais rápido do que o acesso por todos ao Seria de um simplismo imperdoável tentar dar uma resposta simples a pergunta tão complexa.
emprego, ainda que informal. “O que fazer” pode ser uma questão geral e abrangente, de especialidade, ou pessoal.
Cresce de facto a cidade em número de pessoas mas não crescem, proporcionalmente, as infra É-me difícil separar do meu pensamento pessoal o meu pensamento profissional em elaborações
estruturas e os serviços. como esta.
Crescem os problemas, incrementalmente, ano após ano. Dar-vos-ei portanto um princípio de resposta que contenha um pouco das duas dimensões.
De Ouagadougou a CapeTown o problema é idêntico e atinge por vezes dimensões inacreditá- Nas condições de intervenção extraordinariamente limitadas em que trabalhamos como planifi-
veis como por exemplo num bairro de Nairobi, com 700mil pessoas e com uma densidade de 2500 cadores e urbanistas o nosso âmbito e a nossa capacidade de intervenção são muito limitados.
habitantes por hectare, ou sejam 4 metros quadrados por habitante!!! Isto, não o esqueçamos, em 126 127 Essas condições impõem uma grande sabedoria no estabelecimento de prioridades nos níveis de
habitações quase exclusivamente de um piso. problemas a enfrentar.
É evidente que, nestas circunstâncias a sociedade se marginaliza e se organiza para as formas mais Trata-se de estabelecer, desde o início de qualquer intervenção, uma estratégia de urbanismo pro-
desumanas da luta pela sobrevivência. gressivo numa lógica de soluções decorrentes de prévias intervenções, e da criação de condições favo-
É evidente que uma sociedade nessas condições não pode pagar impostos, não pode pagar servi- ráveis ao desenvolvimento da sociedade, que determinam e acompanham a organização do espaço.
ços, não pode pagar benfeitorias de qualquer natureza. Naturalmente o primeiro nível de intervenção, e do qual depende o sucesso de qualquer passo
Aspira a pagar o que come… quando come. sucessivo, é o do estabelecimento dos direitos de uso e aproveitamento da terra por parte de quem
Mas há também a outra cidade. A cidade com ruas e água e electricidade, telefones e… menos lixo. o ocupa.
A cidade assediada e que, a isso, já se habituou. São poucas essas outras cidades. Este, penso eu, é um problema com características únicas no nosso caso, em que uma grande
Normalmente as capitais e alguns centros urbanos de regiões com alguma riqueza em exploração. maioria das famílias que vivem nas zonas urbanas não possuem qualquer prova documental do seu
Nas outras nem mesmo os centros conseguem esconder a condição da maioria. Não vou dar mais direito de ocupação.
números. Os que atrás referi parecem-me suficientemente explícitos para dar uma realidade humana No caso particular de Moçambique o “uso e aproveitamento da terra” não confere um direito da
cuja expressão urbana não pode deixar de ser desequilibrada e dramática. sua posse, que é exclusivamente do estado.
Aquelas condições são ainda agravadas pela fraqueza da capacidade administrativa, da capacidade Mesmo tradicionalmente a terra foi sempre considerada como um recurso (natural) como o são
técnica e do diálogo político. o ar e a água, ou o mar ou os rios.
Este panorama tão extremo, vem agora agudizar-se com o fenómeno do SIDA. A doença é es- A distribuição do direito de “uso e aproveitamento” a indivíduos e entidades privadas implica
pecialmente incidente entre os jovens, que são com quem se conta em primeiro lugar para conduzir a formalização de ocupações “espontâneas” ou “informais” que, se não forem processadas com um
o processo de mudança das condições assinaladas. Não só são já muito poucos mas são exactamente máximo cuidado, podem consolidar sistemas espaciais defeituosos e comprometer a futura instalação
esses poucos que estão a desaparecer a um ritmo assustador. das redes de infra estruturas e serviços indispensáveis.
Naturalmente que toda a nossa acção seria mais fácil se pudéssemos intervir em terreno aberto, O reordenamento urbano e social, viabiliza a abertura de ruas e a construção, futura, das infra
prevendo o assentamento inicial da população. estruturas e serviços, sobretudo porque a população nele envolvida adquire, através do seu processo
Isso porém é raramente o caso, dadas as limitações financeiras das municipalidades e comuni- de participação, a consciência do valor desses elementos da estrutura urbana.
dades. Um outro valor, não menos importante destas operações é a formação, no campo, de quadros
Regra geral toda a franja periférica urbana está já ocupada e com densidades que implicam técnicos da administração pública e municipal, e mesmo de profissionais liberais, para o alastramen-
que muito pouca superfície é deixada ao estabelecimento das infra estruturas e dos serviços to do processo.
públicos. Quase todas as vantagens indicadas são perdidas ou ausentes nos processos de planeamento de
É pois necessário começar por um processo, lento e difícil, nas nossas circunstâncias, de levanta- gabinete, normalmente conducentes a estruturas espaciais pretensamente racionalizadas mas insen-
mento geográfico-cadastral das ocupações, seguido de um processo negocial, com todas as famílias, síveis às condições reais de ocupação do terreno e, por isso, alienantes da dimensão mais essencial de
que permita um reordenamento e racionalização do espaço, a que talvez possamos chamar de urba- qualquer plano que é a da participação esclarecida da população.
nização. Na ordem de prioridades do exercício do planeamento, nas nossas circunstâncias, aparece, si-
Esta negociação tem duas valências principais: por um lado institucionaliza legalmente as ocupa- multaneamente com a do ordenamento para uma urbanização progressiva, a necessidade imperiosa
ções, por outro deve viabilizar o ordenamento físico. e urgente de mobilizar a população para soluções locais, criativas e viáveis, para os problemas mais
Tem no entanto perigos escondidos, se não for conduzida com os cuidados necessários, como urgentes da sustentabilidade ambiental da comunidade.
por exemplo, nos nossos países onde as famílias não são, na sua grande maioria casadas formalmente Trata-se, naturalmente do acesso à água potável e do saneamento básico, ao nível dos dejectos
e com os direitos dos cônjuges legalmente estabelecidos, o registo de um talhão em nome do chefe humanos e dos resíduos sólidos e, com não menos importância, da energia.
da família pode acarretar uma dependência adicional para a mulher. 128 129 Esta problemática, que tem sido alvo de montanhas de estudos e de experimentações, projectos-
Neste processo são agora de grande valor as novas técnicas SIG (ou GIS) que permitem uma lei- -piloto e de extensão, continua a ser um campo aberto à especulação e aos programas de cooperação
tura pormenorizada do território e mesmo do domínio familiar, se acompanhados por um trabalho internacional.
de campo minucioso e adequado. Não queremos minimizar a importância, a grande importância desses esforços, mas, também
Este processo de cerzidura espacial tem, além das outras, uma vantagem especial: a de relacionar aqui a nossa experiência é a de que só será possível a introdução de novas tecnologias e soluções com
todas as famílias dos bairros com os técnicos do planeamento e criar, assim, a indispensável base de a participação interessada e esclarecida da população.
confiança para que o trabalho seguinte seja possível. Por outro lado, para alguns desses problemas, soluções que beneficiem de economias de escala
O processo de titulação é ainda muito controverso e nem sempre aceite pacificamente pelas auto- nacionais são indispensáveis.
ridades administrativas. Por tal razão poderão ser criados “patamares de legalidade” como certificados A nossa experiência directa no desenho e implementação do programa nacional de latrinas me-
de reconhecimento de ocupação, ou outros instrumentos que obriguem tanto a administração como lhoradas que tem, neste momento, mais de vinte anos de existência, prova concludentemente que
os cidadãos a um reconhecimento oficial da ocupação.
Com as primeiras acções de definição das infraestruturas e de registo e numeração dos talhões
inicia-se um processo irreversível de aquisição de “cidadania” que é o primeiro passo na urbanização
cultural das pessoas e das famílias.
O cidadão tem agora um endereço físico no território, uma rua com nome e uma casa com
número.
Para lá das consequências imediatas da valorização da personalidade, passa a haver uma potencia-
FSDFSD
ção do valor da ocupação como um bem comerciável que, embora com os seus perigos, pode trazer DFDSGFDSFGV
uma vantagem enorme, até fiscal, ao município. DSFSDFDS
uma tecnologia realista e acessível é tomada sem esforço pela comunidade como sua e se sustenta a comunidades e com as pequenas autarquias, de formação muito recente e, ainda, muito abertas a
si própria. uma contribuição técnica desinteressada.
Prova disso são os múltiplos estaleiros de construção dessas latrinas que, nos últimos vinte anos Ali tenho encontrado uma extraordinária capacidade de mobilização para o directo envolvi-
produziram algumas centenas de milhares de unidades, servindo milhões de pessoas. mento das pessoas na solução dos próprios problemas, para a aceitação de soluções precárias, menos
A introdução de fogões solares, sistemas de aproveitamento de águas pluviais, sistemas de sanea- perfeitas, mas realisticamente dimensionadas à escala das possibilidades locais.
mento biológico, doméstico ou institucional e de tratamento e rentabilização dos resíduos sólidos Comunidades com dezenas de milhar de habitantes não têm um documento de registo de pro-
não têm já grandes dificuldades técnicas de realização. Na sua popularização e dispersão reside o priedade, uma sala de trabalho para as suas Direcções de Construção e Urbanização, um teodolito,
segredo do sucesso, e essas só com um trabalho directo com a população são possíveis. um GPS, um desenhador, uma planta do seu território, um armário de arquivo, um telefone, uma
Contudo, como dito, não seria possível construir, nesta fase, projectos desta natureza, sem um viatura de trabalho…
forte contributo do estado, a nível central, pois a produção de certos elementos só à escala na- Mas têm, sim, um desejo enorme de pôr alguma ordem na sua cidade, de responder à necessida-
cional será rentável e os nossos empresários não dispõem do capital necessário ao arranque dessas de de melhor “arrumar” as pessoas no seu espaço.
indústrias. Ali devemos saber ser úteis.
Falamos de um urbanismo incremental de soluções locais de problemas locais. Naturalmente Serão tarefas certamente menores que desenhar uma nova Barcelona. Mas pelo menos tão no-
que um método de estruturação espacial do conjunto urbano é indispensável e permite perspectivar bres.
a evolução equilibrada do domínio físico A vida da maioria dos habitantes do mundo, e das nossas cidades, não é feita de sonhos e de
da comunidade urbana, que é o objectivo mais nobre do exercício de planeamento. esperanças.
A realidade da ocupação do espaço e das limitações da acção administrativa, e mesmo política, 130 131 É feita do instinto de sobrevivência, da luta pelo jantar de logo à noite ou pelo almoço de ama-
obrigam-nos, no entanto, a estratégias, como as descritas, de aceitação de formas progressivas e evo- nhã.
lutivas de intervenção com objectivos imediatos de melhoria de condição de vida da população que Essa maioria, em expansão a nível mundial, compra aspirina à unidade, nunca tomou banho de
não são sempre possíveis de perspectivar nas suas consequências a longo prazo. água quente, paga para ver televisão por fora da janela dos outros, partilha a cama com outras pessoas
Isto é, não podemos, sistematicamente, comprometer o presente com o sonho do futuro. e vê os filhos à noite, quando tem petróleo.
Este é um drama conceptual, ético e mesmo moral com que devemos viver se quisermos ser Essa maioria, em expansão, habita cada vez mais as cidades que descrevi, que são as que menos se
operativos e conseguir resultados credíveis que dêem esperança a populações massacradas por gera- conhecem, as menos visíveis, as de que menos se fala, as que mais convém esquecer.
ções sucessivas de exploração económica, idealismo político, oportunismo intelectual e corrupção Estas são as nossas cidades.
administrativa. Não é com prazer que as desvendo para vós.
Talvez que, no fundo, o nosso drama seja mais – como fazer do que – o que fazer.
Mas, a esse nível, a procura e a luta são permanentes e inescapáveis.
Não conheço os problemas existenciais dos urbanistas do mundo desenvolvido. Posso adivinhá-
-los difíceis, mas compensadores.
No nosso caso, posso afirmá-lo, a compensação é ténue e longínqua. Mas, quando acontece,
quando a nossa acção resulta em benefício objectivo e mensurável para dezenas ou milhares de
pessoas.
Todo o esforço, a dúvida, a incerteza e o sacrifício são amplamente compensados.
FSDFSD
Na minha experiência destes últimos trinta anos há uma dimensão da nossa intervenção que DFDSGFDSFGV
tem, quase sempre, dado resultados encorajadores: a de trabalhar directamente no terreno com as DSFSDFDS
CENTRO DE FORMAÇÃO E ARTESANATO – EMPRESA JOVEM – MAPUTO JOSÉ FORJAZ
Contribuição à Conferência sobre Arquitectura Africana com a presença de um mordomo vestido de branco transportando a inevitável bandeja de copos
cristal tinindo com o whisky dos cubos de gelo.
Kumasi, Gana, Junho 2007 Esta é a imagem, adquirida e venerada, do suposto verdadeiro espírito e ambiente da arquitectura
tradicional africana, vendida por centenas de agentes turísticos e assumida por uma nova elite afri-
cana como ponte para os seus valores ancestrais, preferivelmente enriquecida com falso mobiliário
barroco, emprestando um toque de realeza ao nosso direito de sermos tão grandes e, se possível, mais
importantes e poderosos que os nossos patrões o foram no tempo dos regimes coloniais.
Dentro dessas escolhas qual a mais verdadeira imagem da arquitectura africana?
Se esta se expressar pelo número de pessoas, pela sua extensão, expansão e velocidade de repro-
dução, então a primeira imagem é, certamente, a mais verdadeira.
Na perspectiva da classe de especuladores, como aquela que melhor convém a uma nova classe
de homens de negócios e corporações africanas, a segunda escolha será certamente a mais acertada.
Na visão do antropólogo, cientista social ou dos adoradores da imagem do africano reduzido a
objecto de pesquisa, a seleccão incidirá, sem dúvida, sobre a terceira.
O QUE É ARQUITECTURA AFRICANA? Mas, para todos os interessados uma outra, a última, é a sonhada, aquela que ninguém disputa
como verdadeiramente representativa do ethos africano.
134 135 É a imagem construída, através de todo o mundo, em filmes como “África Minha”, “A rainha
Se tentarmos responder a esta, aparentemente simples, questão usando apenas parâmetros quantita- africana” e dúzias de outros, vendida a preços exorbitantes por noite, a milhares de turistas muito
tivos chegaremos, inevitavelmente, à conclusão que ela é um conjunto de construções feitas a partir mais interessados em animais que nas pessoas. Essa é a imagem que adquiriu uma nova e falsa nobre-
de materiais reciclados, coberto com chapas de zinco oxidadas, sobre paredes de blocos de betão por za com a sua suposta resposta à sustentabilidade que aparenta promover.
revestir, quase sempre sem pintura, ou em pau a pique “maticadas”, incrustadas em slums de densida- Vivemos em cidades relutantes, a que poderíamos chamar mega aldeias, e não logramos conven-
des impossíveis, sem água corrente, saneamento, electricidade ou recolha de lixo. cer os nossos políticos e os nossos governantes que a mudança da aldeia para a cidade é tão cultural
Esta descrição adapta-se a mais que 75% da arquitectura Africana em ambientes urbanos, do quanto a mudança na geografia da vida das pessoas.
Sahel à Cidade do Cabo. Outras caracterizações podem, certamente, ser construídas que definam de A arquitectura tradicional africana, como qualquer outra, é o produto de processos que reflectem
forma diversa outros sectores das sociedades africanas e do seu ambiente construído. as maneiras de viver e produzir da comunidade que dela necessita.
Uma delas é a imagem cosmopolita dos centros de negócios de Joanesburgo ou de Nairobi, com Com as mudanças nas maneiras de viver e produzir, com novas aquisições culturais e com o
os seus reluzentes arranha-céus ou os centros comerciais de Durban ou Harare. acesso a um mais vasto mundo de conhecimentos facilitado pelos novos meios de informação; com a
Outra ainda poderá ser o da aldeia tradicional, com as suas palhotas de caniço ou com paredes aquisição de produtos duráveis e com o dissolver da estrutura hierárquica da sociedade rural, a topo-
de adobe e coberturas planas das regiões quentes e áridas, exprimindo o rápido desaparecimento das logia dos espaços tradicionais torna-se cada vez menos adaptável a novas formas de viver e de habitar.
maneiras de viver dos camponeses relutantes de o ser e ansiosos por abandonar o campo e emigrar A cidade subsaariana, onde a nova arquitectura africana está em definição, foi criada como o
para as sonhadas vantagens da cidade. habitat do sistema colonial para responder às formas de viver e à organização social da sociedade
Finalmente, e para completar esta caricatura, poderemos considerar outra imagem, aquela que colonial.
se melhor vende fora de África como a “verdadeira” e desejável expressão do espírito da arquitectura Na cidade colonial a hierarquia social, as necessidades de segurança, a segregação por raça e
africana: o acampamento turístico do safari com as suas coberturas de colmo, frequentemente im- classe; os valores culturais e as capacidades técnicas; a mobilidade e a necessidade de transportes
portado, sobre polidos e nodosos troncos e persianas de palha trançada, preferivelmente fotografadas mecânicos impuseram outras categorias de espaço social, de infra-estrutura urbana e de serviços,
de prestação técnica, de materiais de construção e de limites temporais muito mais limitados para a Este conceito é mais obscuro, ainda, quando todo o mundo, incluindo a África, se vai tornando
construção e maior longevidade dos seus edifícios. mais uniforme não só nas formas da vida quotidiana, como na economia, nos meios tecnológicos e nas
A arquitectura tradicional africana não responde à nova urbanidade e não convém a uma nova diversas filosofias religiosas mas, também quanto aos objectivos comuns a toda a sociedade humana.
sociedade tão diversa, nos seus valores e nas suas necessidades, da sociedade rural tradicional. Dito isto permanece o problema: há alguma razão para se procurar uma definição de arquitectura
A ruptura com as antigas formas e maneiras de construir foi, historicamente, quase instantânea. africana?
As necessidades de defesa e culturais, a complexidade de uma sociedade com uma separação clara E, se há, como deverá ser ela definida.
entre o laico e o religioso, treinado ou analfabeto, rico ou pobre, impuseram uma estrutura urbana A arquitectura é, sempre, específica do lugar, mas poderá ser específica de um continente?
estratificada, sem nada em comum com as maneiras da viver tradicionais africanas, mesmo nos casos Esta distinção é de importância fundamental para esta discussão.
dos assentamentos rurais mais populosos. É de importância fundamental que a África produza arquitectura e que essa arquitectura seja
A ruptura com a tradição foi operada com tal brutalidade e falta de atenção às maneiras de viver reconhecida e respeitada como uma importante contribuição para o património cultural da huma-
da sociedade tradicional que só um auto envolvimento, cego e total, a podem explicar e justificar. nidade.
Contudo, a curiosidade pelo diferente, ou pelo étnico, esteve sempre presente e tornou-se num A importância dessa contribuição repousa, primariamente, na necessidade dos benefícios objec-
tema interessante para os intelectuais, os cientistas sociais e os artistas à procura de raízes novas e mais tivos que a boa arquitectura traz à sociedade e, com não menos importância, à satisfação da
fundas para a sua produção criativa, que pudessem estabelecer laços de ligação com a terra africana necessidade de auto-respeito a que os arquitectos africanos aspiram, e que devem conseguir pelo
e a cultura endógena. reconhecimento da sua qualidade como pensadores, no seu campo de acção.
Sem o substrato cultural, social e técnico da cultura africana a transposição dos elementos sim- Neste sentido, a arquitectura africana tem sido sistematicamente marginalizada como não exis-
bólicos, gráficos e plásticos, para uma gramática meramente decorativa tornou-se nada mais que 136 137 tente ou como de pouco interesse e remota demais para merecer atenção.
uma moda. Há em toda a África uma grande riqueza de trabalho arquitectónico, a todas as escalas de inter-
Essa atitude é mais agravada ainda quando aproveita à chamada “affirmative action” para validar venção, que merece mais atenção como trabalho seminal e como exemplo de contribuições criativas
a aceitabilidade da arquitectura mais comercial junto dos decisores, eles próprios ansiosos por encon- para o enriquecimento e património da nossa profissão.
trar as raízes que a sua maneira desenraizada de viver cortou. A outra perspectiva é: uma arquitectura para África.
Duas ideias nos surgem como consequência deste tema: Que validade pode ter este conceito?
A primeira é: por que é tão importante a ideia de uma arquitectura africana? Este é um conceito indispensável para se compreender e discutir.
A segunda é: por que deveria sê-lo? Como para todos os outros continentes e regiões do mundo, África necessita de uma arquitec-
A primeira é mais complexa pois tem a ver com uma fase do desenvolvimento do continente, em tura própria, adaptada aos seus climas e às condições físicas do lugar, aos parâmetros económicos, às
que a personalidade colectiva do africano é alvo do mais intenso debate filosófico. capacidades técnicas e aos ritmos e formas de vida dos seus povos.
Este é um debate emocionalmente amplificado pelas intangíveis consequências das questões que
se levantam às novas classes politicas e culturais, ainda pouco seguras da sua autoridade intelectual, e
que valorizam, tanto quanto podem, a vantagem comparativa da sua negritude.
De facto, as políticas da “affirmative action”, como estratégia de preferência na oportunidade e pro-
moção, tornam-se mais aceitáveis intelectualmente se forem apoiadas numa teoria estética de validação
das dimensões mais subjectivas do “ubunto” ou de outros elementos intangíveis do ethos africano.
Neste sentido, a necessidade de um catálogo de elementos arquitectónicos de expressão “africana”
FSDFSD
é explicável, especialmente se ligado à ideia de que essas dimensões são melhor manipuladas e com- DFDSGFDSFGV
preendidas pelo intelectual... e pelo arquitecto africano. DSFSDFDS
Deve ser uma arquitectura que celebra, dignifica e facilita as actividades humanas a que fornece cidade em África resolveu já completamente as necessidades de um ambiente urbano equilibrado,
abrigo; deve ser concebida para o uso máximo dos recursos locais, deve ser económica e bela. saudável e seguro, economicamente viável e culturalmente enriquecedor.
Deve ser o que arquitectura é em qualquer outra parte do mundo. Mas com uma diferença: ela Das grandes concentrações urbanas da África ocidental às novas conurbações da África austral
deve servir todos os africanos, como, tradicionalmente, o fez ao longo dos séculos. não há uma só cidade que possa ser tomada com modelo para a futura cidade africana.
É nessa dimensão é que devemos encontrar a chave para a sua diferença da arquitetura das outras Ao contrário de muitas cidades de média e grande dimensão da Europa e da América do Norte,
partes do mundo. Central e do Sul, da Ásia e da bacia do Pacífico, que atingiram um alto grau de sucesso como lugares
Será isto possível? onde a qualidade de vida está minimamente assegurada para todos, a África não apresenta um único
A resposta a esta questão pertence à sociedade em geral, às sociedades africanas e aos seus repre- exemplo de idêntico sucesso.
sentantes em particular. Nenhuma cidade, do Cairo à Cidade do Cabo, pode afirmar que atingiu já uma qualidade de
O arquitecto é um executor. vida e de serviços urbanos aceitável para a maioria da sua população.
Se a arquitectura deve assumir o valor de expressão construída da cultura ela deve, então, expri- O primeiro objectivo da arquitectura africana deveria ser este: o de contribuir decisivamente para
mir as dimensões mais válidas e profundas dessa cultura. a melhoria da vida urbana e da habitabilidade.
Falamos da arquitectura fascista e revolucionária e pensamos na cidade grega como a expressão Isto deveria ser visto, em primeiro lugar, em termos da solução de problemas de atitude e de
do sistema democrático das cidades-estado da bacia do Mediterrâneo; observámos o reprocessa- segregação espacial e pela rejeição de fórmulas importadas.
mento dos mestres soviéticos para servirem a expressão arquitectónica de uma autocracia brutal que A nova cidade africana deve ser desenhada para as dimensões sociais específicas do seu espaço,
duraria mais de meio século; sonhámos o racionalismo não como um estilo mas como meio para se estruturada a partir de uma nova visão que tome em consideração a importância da produção agrária
alcançar um ambiente equilibrado para uma sociedade mais justa. 138 139 dentro do seu território, a integração espacial de todas as funções e a redução do interesse e da impor-
A luta dos nossos políticos e dos nossos profissionais, para uma sociedade mais justa e para a tância do conceito de CBD, ou centro de negócios trazido, como um dos paradigmas irrelevantes,
construção do seu habitat é a única que poderá estruturar e construir a imagem, nova, de uma ver- das cidades europeias ou norte americanas.
dadeira arquitectura africana. Poderá ser argumentado que, aqui, estamos entrando num campo longínquo da arquitectura
Como podemos nós, profissionais, com as ferramentas e dentro dos limites da nossa profissão, e dentro da problemática do planeamento e do desenho urbano, questões essas que dependem, em
contribuir para a construção dessa imagem? última análise, de decisões de ordem política.
Esta é a questão que deve guiar as nossas escolhas, seja quanto à relevância social do nosso traba- Talvez isso possa ser verdade, mas podemos nós conceber a parte sem compreender o todo?
lho como quanto ao desempenho técnico das nossas soluções e qualidade estética da sua expressão.
O problema é que a maioria das escolhas, dentro da nossa profissão, são feitas em função do
sucesso comercial que possam trazer ao negócio da produção de projectos baseados em parti pris es-
téticos ou formais, e não verificadas em função da sua validade quanto às circunstâncias do ambiente
social, cultural e natural africanos.
Essas são as fórmulas erradas pois eticamente irresponsáveis e intelectualmente irrelevantes.
Dentro do limitadíssimo tempo que levou, no nosso continente, o processo de urbanização,
longe de estar completado ou estruturado de forma positiva, muitas oportunidades se têm perdido
para se encontrarem modelos efectivos e operacionais para as nossas cidades, como uma base sólida
para uma arquitectura válida e testada.
A cidade subsaariana em todas as suas expressões, e onde quer que tenha sido formada e desen-
volvida, não é, ainda e em geral, um modelo aceitável para a nova sociedade africana. Nenhuma
CASA DA ALEGRIA – MAPUTO IWAN BAAN
Comunicação ao Seminário sobre o mesmo tema Mas, para que se criem leis, por pressão da sociedade, é necessário que ela seja esclarecida e que
Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico, exija a sua criação e o seu cumprimento.
UEM e Programa Sure África O problema é mais difícil quando se trata da dimensão urbana pois a complexidade das situações
e as oportunidades dos impactos negativos das operações especulativas, normalmente contrárias aos
Maputo, 4 e 5 de Junho de 2009 interesses ambientais, são muito maiores.
Duas situações portanto que se agravam mutuamente: por um lado não há estrutura legal que
defenda suficientemente o ambiente urbano e regule a actividade da construção civil nesse sentido
e, por outro, as poucas leis que o fazem não são cumpridas ou suficientemente controladas quanto
ao seu cumprimento.
A legislação existente sobre o ambiente cobre, de facto, um vasto leque de situações que, na sua
maioria, dizem respeito às dimensões do património natural e especificamente às águas (do mar e
interiores), florestas e fauna bravia, pescas e recursos minerais e, ainda, problemas particulares do
ambiente transformado pelo homem como o património cultural, os resíduos e a saúde pública.
A legislação existente define também os processos de avaliação do impacto e da auditoria am-
PROJECTO ARQUITECTÓNICO E GESTÃO URBANA biental nos âmbitos atrás indicados.
SUSTENTÁVEIS EM MOÇAMBIQUE Também a Lei do Ordenamento do Território estabelece princípios e regras para que se possam
142 143 garantir a sustentabilidade nos âmbitos abrangidos pela legislação ambiental específica mas é omissa
Começo por agradecer esta oportunidade para apresentar algumas reflexões minhas sobre o tema no âmbito da construção civil, e mesmo do arranjo urbano, no que diz respeito a aspectos de eficiên-
desta conferência que tem, para mim, o máximo interesse e relevância. cia e sustentabilidade ambiental.
Devo, desde já, afirmar que me considero não mais do que profundamente interessado pelo tema Na Política Nacional do Ambiente, no que diz respeito à gestão do ambiente urbano, há apenas
mas, de maneira nenhuma, um especialista na matéria. referências à necessidade de se “definir uma política de energia urbana que promova o uso de energias
Apresento portanto ideias cujo único mérito será o de serem o produto das reflexões de um renováveis e reduza o consumo de energia fóssil e biomassa”.
profissional responsabilizado todos os dias por decisões que têm, ou podem ter, consequências na Dos quatro órgãos competentes no domínio do planeamento físico: (Ministério para a Coorde-
qualidade ambiental e na sustentabilidade ecológica do meio urbano. nação da Acção Ambiental, Ministério das Obras Públicas e Habitação, Autarquias Locais e Governos
Proponho apenas pontos de vista que são, certamente, partilhados por profissionais do mesmo Distritais) nenhum assumiu, ou tem atribuições explícitas para estabelecer normas e procedimentos
ofício e que, assim, poderão dar uma visão realista sobre o tema em debate. de controle do comportamento ambiental e da sustentabilidade das construções, quer no que diz
As reflexões que apresento pretendem apenas reflectir o quadro geral do problema em Moçam- respeito aos processos e tecnologias de construção, quer quanto à eficiência energética dos edifícios.
bique. Este vácuo reflecte-se no Regulamento Geral de Edificações Urbanas (actualizado em Janeiro
A primeira é sobre a quem cabe a responsabilidade por uma arquitectura sustentável. de 2000) onde é notória a ausência de qualquer artigo que defina as regras de sustentabilidade e de
A primeira resposta é: a toda a sociedade. economia energética das construções.
De facto o arquitecto é, apenas, um dos actores e nem o mais decisivo para a criação de condições Naturalmente que, como dito, não são as leis, por si só, que definem ou condicionam o estado
óptimas de sustentabilidade dos edifícios que projecta. de um país no que se refere à problemática do seu desenvolvimento sustentável.
Enquanto a sociedade do país onde vivemos não exigir que os edifícios respondam e cumpram exi- Anteriormente ao sistema legal, deve haver a sensibilidade a esta ordem de problemas, quer por
gências ambientais legalmente estabelecidas e fundamentadas em parâmetros técnico-científicos, está parte do público em geral, quer dos clientes, privados e institucionais, quer por parte dos profissio-
o projectista à mercê do cliente, privado ou institucional, que decide quanto quer pagar e para quê. nais e das instituições de formação a todos os níveis.
Há uma correlação directa entre o desenvolvimento social- sobretudo no que diz respeito à segurança São factores, as limitações económicas e técnicas, gravíssimas, da maioria dos “auto construtores”
mas também no que diz respeito à civilidade entendida como a capacidade para viver em meio urbano das suas próprias residências e dos seus locais de trabalho e que são, quantitativamente, quem mais
com entendimento das regras de convivência social -,e as condicionantes que um maior ou menor desen- constrói em Moçambique.
volvimento dessa civilidade determina para o exercício responsável do projecto urbano e arquitectónico. São factores, a atitude consumista de uma novíssima burguesia nacional obcecada pela exibição
A problemática da formação de técnicos com capacidade para a elaboração de projectos que re- de riqueza, muitas vezes dubiamente conseguida, mas que, inevitavelmente, estabelece referências
solvam da melhor maneira possível as dimensões de sustentabilidade e eficiência energética pode ser para um púbico em geral mal preparado para as analisar criticamente.
a que mais interessa como tema de discussão em meio académico, como este onde debatemos esta São factores, a falta de protecção e de estímulo à utilização de sistemas tecnológicos que incre-
ordem de problemas, mas julgo ser indispensável para não resvalarmos imediatamente para enfoques mentem a sustentabilidade e a eficiência energética.
tecnocráticos do problema e para que possamos entendê-lo num quadro mais aberto que abarque Da análise do comportamento daqueles actores e da relevância e importância destes factores pode
todas as suas dimensões sociais, económicas e culturais. deduzir-se todo um programa de acção que enforme uma filosofia política construída para enfrentar
Por tal razão julgo ser indispensável trazer a este debate uma análise das condições socioeconómi- os desafios que nos impõe a necessidade de trabalhar para um desenvolvimento sustentável.
cas e culturais, da produção de projectos urbanos a todos os níveis e, em particular, da produção dos Desta análise facilmente se compreende que o tema em debate nos obriga a uma operativa inter-
edifícios e das infra-estruturas em Moçambique. disciplinaridade e a uma perfeita integração de acções, pois implica propor reformas à própria manei-
Deixemos de lado a problemática dos atropelos ambientais praticados por entidades privadas e ra de viver das pessoas e a criação de novos objectivos sociais e económicos, bem como a revisão de
públicas, em muitos casos, a coberto da proteção de órgãos do poder político, pois julgo ser matéria formas enquistadas de formação de técnicos e a criação de uma nova mentalidade anti tecnocrática
fora do âmbito deste seminário. e universalista.
Interessa-nos mais directamente o que se passa na construção civil e no desenho urbano. 144 145 Em trabalhos anteriores sobre este tema, propus a noção de que o primeiro grau de susten-
Antes de mais, importa identificar os actores e os factores principais que estão em jogo nesse tabilidade em Moçambique diz respeito à sustentabilidade da vida humana para um vasto sector
meio. da população ameaçado pela fome e pela subnutrição, por baixíssimos níveis de salubridade e
Actores são os sectores governamentais que elaboram as normas, ou deviam elaborá-las, e contro- higiene, pela exposição a epidemias e endemias crónicas, pelo analfabetismo e pelo espectro da
lam, ou deviam controlar o seu cumprimento. pobreza absoluta.
Actores são os clientes das obras: públicos ou privados, particulares ou institucionais, religiosos O que está em causa, para nós em Moçambique, é, portanto, a sustentabilidade da vida humana
ou culturais; clientes são, também, os municípios e os distritos. que tem sido e é, correntemente, ameaçada por acções e intervenções privadas e estatais que, inevita-
Actores são os agentes económicos que produzem, importam, distribuem e comercializam os velmente, agridem o equilíbrio ecológico.
materiais e os equipamentos de construção. O problema do combustível doméstico, indispensável à vida diária das famílias, é resolvido pela
Actores são os que formam e ensinam, ou deviam ensinar, os princípios científicos e as tecnolo- maioria da população, rural e urbana, com recurso à lenha e ao carvão vegetal. Numa sociedade em
gias que estabelecem e articulam os processos de projectar para a sustentabilidade.
Actores são os técnicos que projectam, ou deviam projectar, estruturas e edifícios sustentáveis e
de boa performance energética.
Actor é o grande público que exige, ou devia exigir, de todos aqueles, outros, as atitudes, as regras
e um desempenho político, administrativo, intelectual, profissional e ético baseado no respeito pelo
ambiente e em objectivos mensuráveis de eficiência e economia energética.
São factores o baixo nível científico e técnico da nossa população em geral, a dependência domi-
FSDFSD
nante de materiais de importação e a fraca importância da indústria da construção, que impedem, DFDSGFDSFGV
ou não justificam, o estabelecimento de unidades produtivas rentáveis. DSFSDFDS
rápida concentração em núcleos urbanos, a desflorestação e a desertificação nas periferias dos mes- peixe da nossa costa, por agentes nacionais e estrangeiros, com ou sem cobertura tácita da adminis-
mos são já gravíssimas e afectam vastas regiões. tração pública.
O problema da água potável está longe de ser resolvido de forma a satisfazer a grande maioria da Poderia admitir-se, e seria desejável, que projectos e actividades tão polémicos levantassem reac-
população em termos de quantidade, qualidade, custo e esforço físico para a obter. ções do público.
O problema do saneamento básico não tem ainda solução adequada para a maioria da população Contudo, num país com o baixo nível de instrução pública que tem Moçambique, não se pode
urbana e rural, com consequências desastrosas e generalizadas para a saúde pública. esperar uma reacção consciente e articulada por parte de um público mal informado a quem é tão
O problema da drenagem das águas superficiais e dos esgotos e seu tratamento é agravado pelo fácil vender demagogicamente grandes projectos como inevitavelmente desejáveis.
problema não resolvido da recolha e tratamento dos resíduos sólidos, outra das dimensões dramáti- Em face desta situação qual a atitude e a posição da maioria dos nossos mais directos interlocu-
cas da vida quotidiana nas nossas cidades. tores: o professor e o profissional?
O problema da habitação, com todas as suas facetas, é mais um, e dos mais graves contributos Temo que uma análise, mesmo superficial, nos leve a tristes conclusões. Nos leve mesmo a con-
para a insustentabilidade da vida humana, pela sinergia negativa da sobrelotação dos espaços familia- cluir que, tanto os parâmetros e dimensões ambientais do planeamento urbano e do projecto ar-
res, das deficientes qualidades ambientais nas habitações, pela baixíssima qualidade das construções, quitectónico como a integração da temática da sustentabilidade no processo didáctico, sejam ainda
deficiente disposição urbana e pela carência dos serviços urbanos básicos. considerados como preocupações longínquas do seu exercício quotidiano.
Este composto socialmente corrosivo afecta profundamente a qualidade de vida de três quartos Temo que isso se deva a duas razões principais: a ignorância e a inconsciência da gravidade do
da população concentrada em núcleos urbanos, isto é de cerca de 6 milhões de pessoas, causando problema, associadas à necessidade de “simplificar” e “acelerar” os processos de ensino e de ganhar
gravíssimos problemas de saúde física e com um impacto profundo nas relações humanas e no equi- mais dinheiro, e mais depressa, com a profissão.
líbrio psicológico das pessoas e das famílias. 146 147 No caso do ensino técnico e profissional, é claro que os alunos chegam aos graus superiores
A situação não é muito diversa no que diz respeito às condições de vida das famílias rurais que, com uma deficiente preparação sobre as matérias da sustentabilidade e da importância do equilíbrio
em muitos aspectos estão ainda mais desprovidas que as urbanas. ecológico.
Podemos assim afirmar que para a maioria esmagadora dos 21 milhões de moçambicanos, as É também claro que essas matérias não estão ainda correctamente integradas nos curricula nem
condições de vida, no que diz respeito ao equilíbrio ecológico no seu habitat, são, pelo menos, in- são suficientemente exploradas, quer ao nível dos exercícios de projecto, quer ao nível das cadeiras
suficientes. científicas e técnicas.
Com este esquemático resumo das condições de sustentabilidade da vida humana em Moçam- Por outro lado, a didáctica daquelas cadeiras tende a ser tão aridamente teórica que, além de
bique não pretendo afastar-me do tema central desta conferência. Ao contrário, pretendo apenas, provocar um desinteresse generalizado nos estudantes, leva a questionarmo-nos sobre a validade da
hierarquizar os seus níveis de gravidade para, assim, contribuir para uma perspectiva, melhor infor- aplicação dos seus princípios e métodos a casos concretos.
mada, mais esclarecida e relevante, do problema. Falta-lhe, quanto a nós, uma chave de constante relação do projecto com as condições reais do
Em Moçambique, a indústria da construção civil tem ainda, um peso menor no conjunto das meio social e local.
actividades que afectam negativamente, e em mais alto grau, o equilíbrio ambiental. A actividade do profissional reflecte, antes de mais, as deficiências da sua formação. Mas essas não
O mesmo não se poderá dizer das grandes infra-estruturas, particularmente as grandes barragens chegam nem explicam o generalizado desinteresse, ou incapacidade, de projectar edifícios e elaborar
que têm uma pesada história de agressão ambiental que parece não ter servido de lição para que se planos urbanos com a consideração indispensável pelas dimensões da sustentabilidade e economia
evitem novas e talvez mais graves agressões pois que, quando se trata de investimentos da ordem energética.
das muitas centenas de milhões de dólares, o problema é de ordem política e, portanto, escapa às Os erros mais elementares quanto à orientação dos edifícios, à protecção solar, à ventilação e
racionais científica e técnica, passando a servir, prioritariamente, interesses mais imediatos, internos iluminação naturais, ao controle do escorrimento das águas superficiais e das águas usadas, a falta
e externos. de integração de elementos de poupança e produção de energia, quanto à definição de densidades
No mesmo plano pode colocar-se a exploração criminosa das reservas florestais e dos bancos de urbanas mais económicas e mais energeticamente rentáveis, etc., são correntes e generalizados e não
podem, nem devem, ser atribuídos, como desculpa, às exigências ou atitudes menos esclarecidas dos
nossos clientes.
Por outro lado, é também verdade que a maioria dos nossos clientes, por ignorância ou pelo
imperativo de lucros imediatos e fáceis, não só não exigem aos projectistas uma arquitectura e um
planeamento mais correctos no sentido do que estamos a analisar, como, frequentemente, impedem
que eles se realizem pois não é exigida uma prestação ambiental e energética correta dos projectos
que financiam. Dessa maneira passam para o estado e para o público em geral o ónus do impacto
negativo que esses financiamentos representam e, assim, maximizam o seu lucro imediato.
Há portanto um enorme trabalho a realizar em todas as frentes.
Na academia, para a integração da problemática da sustentabilidade em todos os âmbitos cien-
tíficos e técnicos e das humanidades; nos organismos profissionais, para uma constante consciencia-
lização dos seus membros; na legislação, para o progressivo completamento das leis e regulamentos
existentes; na administração pública para um mais estrito controlo de aplicação das leis e uma cons-
tante exigência de correcta prestação ambiental dos edifícios públicos e dos planos urbanos e regio-
nais e no público em geral, para o aprofundamento da consciência das consequências gravíssimas da
desatenção a esta ordem de problemas.
A base mais segura para construir um futuro melhor só pode ser um conhecimento apaixonado e 148
aprofundado da realidade, mesmo que este nos leve a níveis de dificuldade difíceis de encarar.
As reflexões que apresentei são, seguramente discutíveis e mesmo, nalguns aspectos, arriscadas
mas podem ter, pelo menos, o mérito de despoletarem um debate que já vem atrasado e para o qual,
espero, esta conferência poderá, em muito, contribuir.
178
Voltando à noção de desperdício. A dimensão da hybris (a desmesura para os gregos, que era normal-
mente castigada) nesta arquitectura-espectáculo não vive só da escala mas também da auto-replicação;
é uma arquitectura autista, em perpétua auto-referência… Não havia necessidade de voltarmos a uma
noção de limite, a uma proporção justa, e a uma espécie de economia-bonsai?
FSDFSD
Estou cem por cento de acordo. Estamos numa fase extremamente contraditória. Se por um DFDSGFDSFGV
lado a escala da arbitrariedade e da alienação – no que se refere aos problemas tanto sociais e DSFSDFDS
que estão a viver em condições deploráveis? E essas vão crescer e estão a crescer mais rapidamente em como canalizar toda aquela água… mas também Alcântara tinha água e agora é um caneiro,
do que estas… também a Baixa de Lisboa corre sobre um rio subterrâneo, mas estas coisas pagam-se… Não se
pense que a Natureza não cobra e não remonta ao que era seu, mas se quisermos ir a um exemplo
Estive hoje a ver numa revista uma foto-reportagem sobre a recente batalha campal que tem tido lu- pecaminoso do exagero pense em Veneza. Um dia, Veneza vai desaparecer, para tristeza, de todos
gar nas periferias do Rio de Janeiro entre a polícia e os meliantes e a interrogar-me se seria inevitável nós, mas Veneza é o produto de uma atitude de se erguer uma cidade artificialmente contra as
chegar-se àquilo. Como diz o espaço é uma categoria política mas o que é facto é que os dirigentes po- condições no terreno…
líticos têm conseguido transformar as cidades e as suas envolventes em não-lugares. No Brasil as coisas
chegaram àquele ponto por causa do desleixo dos políticos e do egoísmo dos ricos, que durante décadas Quanto à beleza de Veneza e à possibilidade da arquitectura agir ou não sobre a percepção e a formação
preferiram ir para casa de helicóptero a distribuir um pouco mais. Agora está-lhes a cair em cima. Mas duma sensibilidade, moldando-a e condicionando-a de uma forma benigna, quero lembrar-lhe que
a informação sobre estes desastres está disponível. E agora houve a brutal derrocada daquele morro, no quem bombardeou o Parténon, em Atenas, foi um marinheiro saído directamente de Veneza. Apontou
Rio de Janeiro, que era previsível. e fê-lo explodir sem o menor remorso…
Pergunto-lhe, é inevitável não aprender, que várias gerações de políticos possam não aprender com o O crime começa no facto de um monumento daqueles servir como paiol. Os gregos estavam
passado? O Forjaz não acredita que haja uma possibilidade da classe política, noutros lugares, aqui, distraídos…
aprender com a história e os exemplos da actualidade?
Tenho pena de dizer que me parece que sim, que é inevitável. Temo que tenha que dizer que não Sim, sim, e o veneziano soube apontar ao paiol, sem a menor dúvida ou escrúpulos. O que nos deixa
acredito. Mas paralelamente há fenómenos interessantes, falemos de Curitiba ou de Bogotá, cidades um pouco abalados na pretensão de que se as pessoas nascerem e viverem rodeadas pela beleza, ou numa
que se fizeram a si próprias, e é verdade que se fizeram pelo vector político, com Presidentes de Câ- 220 221 cidade harmoniosa, se tornam naturalmente melhores. Isto no sentido em que se lia num artigo seu onde
mara iluminados, digamos, gente culta, apoiada por uma classe popular sensível e aberta à cultura, associava a arquitectura a uma espécie de medicina…
e foi possível fazer coisas boas, e as soluções adoptadas até foram muito revolucionárias, baseadas no Isto faz-nos voltar a um tema que aflorámos há uns minutos e que se prende com o saber quem
transporte público e numa reestruturação profunda do tecido urbano, e foram intervenções fortes é que é responsável pela qualidade da arquitectura da cidade. É que não é o arquitecto, mas sim
e de grande consequência na melhoria da vida imediata das pessoas e na aparência dos espaços de quem encomenda as obras e quem as paga, desta ou daquela maneira. É óbvio que os arquitectos
vida urbana… São exemplos magníficos, mas por cada Marquês de Pombal há um milhar de polí- podem e devem influenciar as escolhas que as pessoas fazem, mas as escolhas já vêm carregadas
ticos sem chama, qualidade ou escrúpulos… Depois, quanto à derrocada no morro, as pessoas não dum sentido, do objectivo do cliente, que pode ser institucional ou pessoal, mas as coisas já vêm
pensam que as cidades são construídas no terreno, que este por sua vez tem uma dimensão humana, carregadas, quer pela sua função, a sua intenção social, a sua definição económica, etc. – como
topográfica, características geológicas e sobretudo hidrográficas… Esta coisa da hidrografia é funda- também da ideia que as pessoas trazem consigo sobre o que é a arquitectura e que tipo de coisa
mental, e vou dar um exemplo próximo e chocante sobre o que acontece a uma cidade quando é querem… e isso contamina os projectos, e produz inevitavelmente um efeito estético… para
mal pensado: o que aconteceu na Madeira, que era a crónica de um desastre anunciado. Não se pode mais quando existe hoje uma indústria de divulgação da arte e da arquitectura, e se assiste a uma
construir no leito de um rio que é periodicamente sujeito a cheias colossais sem ter respeito pela força multiplicação de imagens no mundo que deixa a cada um a ilusão, como acontece no futebol e no
da água. E a água às tantas dá o seu coice mortal e tornará a dar, não tenhamos dúvidas, a não ser que cinema, de ser um arquitecto de bancada.
se desvie o rio. E isto é universal…
Tem sentido mais essa pressão agora, que as pessoas têm mais acesso à informação e a revistas de espe-
É o caso de todo aquele bairro construído atrás da Costa do Sol… cialidade?
É o caso de toda a Baixa de Maputo. Todo o mangal de Maputo está a ser destruído, o que Sim, sim, vivemos num mundo de imagens, e isso tem influência directa. A popularização das
terá consequências, mas a isto acresça-se outra realidade negativa, o facto de estar a desaparecer o imagens, que nunca são explicadas no seu conteúdo, acaba por exercer uma maior pressão… toda
Vale do Infulene, entre Maputo e Matola, que se está a aterrar para a construção, sem pensar-se a gente com um pouco mais de dinheiro e de informação acha que percebe de arquitectura… ou
talvez não, o que acontece é que os arquitectos faziam mais parte da cultura da cidade, e agora es- aconteceu estar diante de obras arquitectónicas que só conhecia de livro ou revista e ficar chocado com o
tão mais distantes…a arquitectura tornou-se uma actividade mais esotérica, mais pretensiosa – ou que vê, por contraste, pela falta de escala, pelo ambiente em que se enquadram…?
com maiores pretensões, o que não é a mesma coisa – e a distância foi-se cavando… O que aliás Muitas vezes. Embora também a inversa seja verdadeira, também me acontece percorrer a obra
é também verificável noutras expressões artísticas da sociedade contemporânea, desde a literatura e encontrar nelas qualidade, volumes e valores que a fotografia não dava. É frequente, sobretudo no
à pintura, à escultura… antes dos Expressionistas, digamos assim, o público nunca se manifestava que se refere à escala, porque hoje a fotografia permite maravilhas. A fotografia é cada vez mais uma
face a uma expressão artística, diante de um Rubens, um Veermer ou um Goya, não havia discus- deformação da realidade e a fotografia de arquitectura mais do que qualquer outras e essa deformação
são, toda a gente aderia espontaneamente à qualidade daquela pintura… eventualmente, podia por vezes é a única maneira de dar o espírito da obra mas noutras acrescenta-lhe qualidades que ela
haver quem preferisse Bosch a Memling, ou Van der Weyden a Durer, mas eram diferenças de grau por si não tem. A qualidade da fotografia arquitectónica tem mudado muito, dantes trabalhava-se
e não de atitude. Repare-se: em todos os momentos se procedeu a hierarquizações entre os artistas, com grandes formatos e com lentes que tinham o ângulo da visão humana, agora trabalha-se com
havia canonizações e exclusões, ou espaços periféricos, mas nunca se pôs em dúvida que aquilo lentes que dão mais que o ângulo da visão humana e com o dobro da luminosidade que o olho é
era arte. Ora neste momento, 90% do público, que tem muito mais acesso à cultura do que tinha capaz de captar. E isso modifica as coisas… e pode levar-nos ao engano…
o público de há dois séculos, quando vai a um museu de arte moderna na sua grande maioria ou
se ri ou diz que gosta sem perceber ou tem a coragem da frontalidade e comenta, eu não entendo O Corbusier, numa nota, relata o seguinte “…a seguir, mostrei aos alunos o interior dos bancos ame-
isto, eu não gosto disto. Portanto cavou-se mesmo uma barreira, o que consagrou uma grande ricanos, que são de tal pureza, de tal precisão, de tal conveniência, que estamos perto de os achar belos.
mistificação na expressão artística contemporânea ao mesmo tempo que foi criada a ideia de que Foram projectados por um arquitecto certamente muito talentoso, que parece estar animado pela lógica
a arte é só para alguns entendidos, para iniciados, que é preciso ser-se duma elite intelectual para e por uma grande clareza de espírito. Contudo, na Banket’s Magasine, que publica as suas obras, o
apreciar uma obra de pintura de escultura, ou de literatura... a poesia esotérica, inexplicavelmente 222 223 arquitecto endereçou um convite ao leitor para que o visitasse e a revista publicou então uma fotografia
opaca, hoje em dia pode ser vendida com grande à-vontade porque há um público para tudo, e do interior do seu atelier e nesta foto vê-se um ambiente com baús do renascimento e uma armadura
sobretudo porque se forjou paralelamente uma necessidade de estar à la page, ou um novo tipo de medieval, além duma longa mesa Luís XIII, marchetada, e com pés torneados, além de tapeçarias
vergonha burguesa de estar out… e isso gerou um público consumidor de discursos opacos, esoté- barrocas, que estão no oposto de tudo o que produziu no interior dos bancos…” Diante desta história
ricos, e disseminados em centenas de revistas da especialidade… que nunca explicam as imagens pergunto-me se a natureza contratual a que o arquitecto está obrigado, o espírito de pragmatismo que
no seu conteúdo. tem de envergar, se não o levam a uma duplicidade entre o que crê intimamente para a arquitectura e
o que tem de projectar? Em última instância, o arquitecto não devia estar obrigado a uma espécie de
Claro que, com a multiplicação dos mercados, se assiste hoje a uma grande mistificação no campo da carta ética, que lhe permitisse não estar tão exposto a estas contradições?
arte mas julgo que a confusão se associa a outro elemento também importante: dantes a ligação com a Bom, esta é uma pergunta que não é fácil e não tem uma resposta simples, e eu gostaria de ser
arte era mais iniciática. O artesão que trabalhava na rosácea de pedra da catedral, na Idade Media, tolerante… diria que as atitudes são diversas, eu conheço gente que…
não apenas participava em algo que transcendia o seu ofício, como o sangue, o suor daqueles milhares de
operários, fazia parte da construção da catedral. Hoje temos uma proliferação de imagens mas falta-nos
a experiência, a realidade do fazer, e o conhecimento chega-nos por delegação. Também é assim noutros
domínios, hoje, em Letras, ensinam-se instrumentos de análise mas já não se discute a significação hu-
mana (ou inumana) daquelas obras, nem os alunos as dispõem a ler do princípio ao fim. Mas retoman-
do o fio da conversa: quando disse sobre as imagens não serem explicadas no seu conteúdo não sei porquê
lembrei-me da minha desilusão quando vi os quadros do Magritte à minha frente e lhe vi a pincelada
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desajeitada. Só lhe sobrevive a ideia, que passa melhor nas reproduções, porquanto o seu índice oficinal DFDSGFDSFGV
é menor. Portanto, há obras em que há vantagem serem vistas à distância, numa reprodução. Já lhe DSFSDFDS
Não quer ser moralista… magníficas soluções plásticas para a sua arquitectura… e marcou, para bem e para mal a arquitectura
Exactamente, não quero... Olhe, quando eu era jovem li o Mein Kampf. Aquilo é de uma lógica do século passado. Mas o que tem de mau é monstruoso…
imbatível. Eu não estou é de acordo. Há construções lógicas, que são inatacáveis como sistema, mas que
estão construídas sobre fundações de pensamento absolutamente erradas. A edificação, por seu lado, é Isso leva-me a perguntar, se fosse o Dante, que tipo de inferno é que imaginaria para um arquitecto?
muito bem armada… o que está errado é a base, é o ethos. Com a arquitectura e os arquitectos acontece De antemão, devo esclarecer que não acredito nem no céu nem no inferno… Ademais, os arqui-
a mesma coisa, mas a maneira como o Corbusier coloca o problema é simplista… Claro que há objecti- tectos são uma classe extremamente heterogénea em termos da sua atitude, e na minha observação
vos de grande qualidade e até nobres que são falhados pelas tais contaminações de que falámos há pou- não os consigo classificar em termos de preto e branco, nem mesmo quero criar para eles um qual-
co… Agora, quanto a essa dicotomia do arquitecto, eu penso que é um problema secundário, e não nos quer purgatório. Penso que é suficiente cada um deles arder no fogo brando da sua consciência, que
podemos esquecer que o Corbusier era sobretudo um panfletário, um reducionista, que foi responsável com o tempo provocará os seus danos, caso haja alguma coisa a recriminar… mas, entrando no seu
pela destruição do urbanismo moderno… por isso não sei se lhe cabe muito o direito de julgar os pares. jogo, em relação aos arquitectos sem escrúpulos julgo que o inferno seria não ganharem dinheiro…
O Corbusier com a sua ideia de separação das funções… hoje em dia, ao nível dos dirigentes, ao nível para outros, os muito megalómanos, seria precisamente nunca conseguirem os meios para consegui-
popular e ao nível dos técnicos ainda se fala de zonamento, um conceito que as pessoas aprenderam rem pôr em pé os seus projectos, isto pela eternidade, a maldição de Tântalo… e chega.
sem reflectir e lhes foi incutido pela propaganda, e que separa as coisas de uma forma inorgânica, a zona
industrial para um lado, a residencial para outro, a comercial para bolandas… Aqui, em Moçambique, os engenheiros podem assinar os projectos?
Podem, podem…
Bom, constato que considerará um bem que o Corbusier não tenha executado os seus planos urbanísticos
para Paris, que mudariam absolutamente a face da cidade… 224 225 Talvez isso explique tanto kitsch à solta em muitas moradias das novas avenidas que se projectam nos
Ainda bem que não o deixaram, são planos absolutamente criminosos… mas que continuam a ser bairros novos de Maputo…
publicados com uma certa ausência de crítica, apesar de merecerem ser mostrados em qualquer escola O que explicará isso talvez seja o facto de em 1975, depois da independência, terem ficado
de urbanismo como o exemplo do que não se deve fazer. Mesmo as definições do ponto de vista de 8 arquitectos para o país inteiro, e cinco anos depois, sermos 6… houve uma carência de formação
arquitectura são frouxas, quase sempre as reduções com que o seu racionalismo exultava, herdadas do que se reflecte ainda no tecido da cidade… mesmo depois da criação da Faculdade de Arquitectura.
«less is more» e do Alfred Loos, não levam a nada, são apenas falta de alguma coisa… de imaginação, Mas para além disso não podemos esquecer que vivemos mergulhados num país novo, com uma
por exemplo. E a tendência panfletária dele acabou por levá-lo a abraçar algumas coisas perigosas, ele classe dirigente e política com bastantes lacunas culturais e que chega ao poder desprovida de ima-
engraçava com o fascismo por que este tinha conseguido pôr os comboios em ordem, a andar segundo gens de poder… Chega ao poder e tenta consolidar uma imagem própria e elaborar uma imagem
a tabela… Ora, merda para a tabela…Este levantar a saia para mostrar a perna ao duce dá-nos um física da expansão do seu poder… mas não podemos escapar ao facto de que nós somos também os
pouco a medida do homem… Ele era um oportunista, de um ponto de vista material, agora com um reflexos dos nossos modelos, e o exemplo que eles têm em termos de imagem de poder na cidade é
capacidade espantosa, admirável, de persuasão, que acabava por ludibriar todos os incautos que se lhe ainda o que vem de trás, do poder colonial… e então imitam… e é por isso que na maior parte dos
colocavam em redor… e aproveitou-se do facto de Paris ser naquela altura um centro cultural para se países africanos a imagem que se tem preferido é a da arquitectura neoclássica, com marcas greco-ro-
afirmar de maneiras extremamente discutíveis. Mas sempre achei, eu era miúdo, desconfiava daquilo, manas, ou a de um eclectismo chino-asiático – por que não, quanto a mim tão válido como as refe-
estudei mais, li muito, estive em França, trabalhei lá… e sempre quis questionar as opções dele… por- rências à greco-romanidade –, quando tudo afinal desponta da ausência de uma atitude própria…
que para mim é muito fácil alienar dimensões da realidade para a caracterizar com chavões… porque nós importamos tudo, e não ousámos inventar imagens nossas com um vernáculo próprio,
local, e articulado na dimensão duma profunda poesia espacial com o meio ambiente, e que tenha
Estou a ver que nem lhe salvava a Notre Dame du Haut… em conta as condições climatéricas… Portanto esse kitsch vem de quê? Vem dum completo desfasa-
O Corbusier tinha uma dupla personalidade, a do panfletário, mais exuberante mas menor e até mento de referências, a não ser de referências que são irreprodutíveis, a maior parte delas saturadas
um pouco ridículo, e a de um arquitecto que quando esquecia as ortodoxias era capaz de encontrar de estilo, uma palavra que aprendi a rejeitar porque nos tem conduzido a coisas deploráveis e que
agridem o contexto… Depois, neste aspecto e no marasmo actual, acredito que tem mais influência II
uma telenovela brasileira do que um cabaz de livros de arquitectura, nós continuamos a ter uma
educação que é zero do ponto de vista estético… Existem muitos mitos sobre o artista como criador. Há um pintor chinês que se chama Xi-Tao, que escre-
veu o seguinte: «Pintar é resultado da receptividade da tinta. A tinta abre-se ao papel, o papel abre-se à
Podia experimentar-se criar uma telenovela em que o grande protagonista fosse um arquitecto que fosse mão e a mão abre-se ao coração. E todos eles da mesma forma em que o céu engendra e a terra produz:
dando dicas sobre como ler uma cidade arquitectonicamente e alguns parâmetros básicos para uma tudo é o resultado da receptividade». Perguntava-lhe se para si o acto produtivo tem mais a ver com a
educação do olhar… noção romântica de criação ou com este conceito de receptividade?
Pois, e quem é que comprava a ideia? A Mcel? A Mcel quer é vender telefones e giros… e tem Se eu tivesse que escolher entre as suas hipóteses eu iria menos pela criatividade que pela recepti-
tendência a apoiar programas onde se vote por telefone. Portanto, patrocina sobretudo telenovelas vidade. Julgo que essa formulação está mais próxima do pano de fundo da produção. A criatividade
que promovam valores de consumo… nalguns casos até interessantes, porque tenho visto telenovelas gerou outro vocábulo cheio de equívocos, a inspiração, que para mim continua a ser o acto de meter
interessantes do ponto de vista dos conteúdos sociais, mas em termos de estética são na maior parte o ar nos pulmões. Mas o chinês está mais próximo do essencial do acto produtivo, e produzir é sem-
dos casos deploráveis… E é isto que deforma o gosto. pre uma forma de criação, seja produzir sapatos, milho, poemas ou arquitectura é sempre um acto
criativo, isto é um acto de transformação de qualquer coisa num significado social. É evidente que
Retomemos essa sua reserva em relação ao estilo. O que vejo de “censurável” no estilo é a sua extrema a criatividade aqui também se utiliza no sentido de se fazer qualquer coisa que nunca se viu antes, e
ambivalência. O Michael Graves por exemplo diz que não tem estilo… esta é uma dimensão válida, mas no fundo trata-se de nos conformarmos ao grande modelo que é a
O que é verdade… Natureza e aos seus processos de criação…
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… mas tem um repertório e também na sua obra encontramos invariantes, que acabam por constituir Lembrei-me disto porque ontem vi na televisão uma entrevista com o Júlio Pomar, o pintor, que estava
uma pegada que é do seu pé e não encontramos noutros… Portanto, bem ou mal, como fugir a um estilo? acompanhado do Jorge Palma, que é um músico de rock. E este pôs-se a falar dos “processos de criação”
Não vamos confundir. Há determinados elementos que vão surgindo e que foram sendo selec- e o Pomar, que é trinta anos mais velho, às tantas interpelou o músico e disse-lhe: “Ó Jorge, olha que a
cionados e reutilizados pela sua lógica, e não pela sua expressão estética. Pela sua lógica construtiva, gente não cria, a gente recebe…“, O músico ficou meio desconcertado. E eu achei graça. E ocorrem-me
pela sua lógica funcional e pela sua lógica tecnológica, e que reaparecem em elementos estruturais… agora dois versos de um argentino, o Roberto Juarroz, que me parecem próximos do seu conceito de “de-
saprendizagem”. Diz ele: «desbaptizar as coisas para lhes devolver o seu estado de presença».
Mas tornam-se um repertório… Desbaptizar parece-me interessante. Sobre a criação lembro-me sempre da ambiguidade da lín-
Inevitavelmente, senão não tinham justificação. E são usados por quê? Porque são a melhor so- gua em português que nos permite, quando perguntamos “onde é que está a criação?”, estarmos na
lução para certos problemas que se está a tentar resolver, como, no meu caso, o uso daquelas grelhas, verdade a sondar o local onde fica o galinheiro. Acho que se adapta muito bem…
etc. Agora se me perguntasse, elas não podiam triangulares? Pois podiam, e às vezes são… agora, o
mercado também condiciona o naipe de soluções que possamos oferecer, sobretudo em relação ao Esta gargalhada que me fez dar obriga-me a perguntar-lhe isto: há humor na arquitectura? Como é que
custo… daí que depois se tente combinar os limites que temos com os elementos que nos são mais se arma o humor na arquitectura, através da mistura dos materiais, dos ritmos, do jogo com o espaço?
caros, posto estar comprovada a sua eficácia, como as grelhas… Sim, sim, há exemplos de arquitectura com humor, olhe, ocorre-me um célebre jardim em Itália,
Que acabam por funcionar como marcas de reconhecimento da sua arquitectura… o Jardim Bomarzo do século XVIII, que é muito interessante e se organiza como uma espécie dum
Aceito isso perfeitamente. Talvez para aquele problema houvesse outras maneiras de resolver e enorme parque de monstros, onde as casas parecem monstros…
fazer, mas eu escolho aquela…
Mas são antropomórficas?
Não só… o jardim tem casas-monstros monstruosos, tem casas tortas, grutas, outros tipos de
animalização… E lembro-me também de um portal em Roma que é uma imensa boca… exem- que no caso dele foi uma visão fecundíssima... ora, eu penso que todos nós, antes de desapren-
plos destes creio haver às centenas no mundo… casas que parecem elefantes, e vem-me agora o dermos, no ponto de viragem da maturidade, abraçamos um tipo de visão que se impõe como
Undertweisbart, de que falou há bocado, que aliás é mais pintor que arquitecto mas que tem coisas modelo…
jocosas, mais leves…
O Louis Khan chega a falar em «essências» e o Jean-Luc Godard dizia que a cada momento e para cada
E que pensa do caso de um caso que apesar de arquitecto teve em relação à arquitectura uma manifes- situação só havia um lugar para pôr a câmara, que era inútil multiplicar os pontos de vista…O que
tação artística desconstrutora, e de grande denúncia mas ao lado da arquitectura, como o Matta-Clark, talvez seja o mesmo por outras palavras…
e as suas casas perfuradas? Olhe, diria que talvez essas formulações sejam um “exagero necessário” pois estamos a tentar
Ou os seus buracos habitados…. É um exemplo duma auto-liberdade a que se deram os arquitec- delinear em traços grosseiros, coisas que são complexas. Lembro-me do que, quando eu era estu-
tos e que teve um tempo e um grande significado social; o qual tem que ser visto no tempo. Mesmo dante, me dizia o Barata-Feyo, um escultor que para mim foi a personalidade mais rica da minha
um Gaudi, por exemplo, tem que ser visto no tempo, naquela altura, em que o Expressionismo era formação… eu ia muitas vezes para o atelier dele e assistia-o, e uma vez estive presente em todos
rei, aquela arquitectura não era tão estranha como é hoje… mas essas manifestações diferentes têm a os passos da feitura de uma escultura, vi-o conceber uma escultura, desenvolvê-la, modificá-la, e
sua razão de existir, não penso que sejam generalizáveis mas no seu momento são como lufadas que ele dizia uma coisa interessante, que não estará distante da senda dessas formulações do Godard
provocam uma reacção e obrigam a pensar… e do Khan, dizia ele, “olhe José, nós quando estamos a trabalhar a pedra, uma escultura… nós
comandamos até determinado ponto, depois é a peça quem manda… a peça pede e nós vamos só
A mais violenta crítica que li contra o Gaudi foi do poeta João Cabral de Mello Neto, que contava a um fazendo…”. E no fundo é isto, criamos um jogo de lógicas internas àquela construção ou criação
entrevistador, Imagine você, dizia ele, como são as varandas de uma moradia que ele desenhou numa 228 229 e estas reproduzem-se e passam a ser determinantes para as próximas decisões, e isto nem tem que
marginal, junto ao mar? As varandas sugerem que são ondas – que falta de imaginação, queixava-se o ser um processo consciente, é uma mecânica natural… e um bocadinho em oposição àquela ideia
poeta. Já viu que metáfora tão vazia – nem dá o som do mar – repetia indignado? de que se concebe tudo cristalinamente e que depois é só resolver os problemas. Na minha prática
Tem graça, mas não é esse o género de crítica que se pode aplicar ao Gaudi… esta é a maneira de trabalhar, partir de um caroço de ideia consistente, e depois a polpa vai-se
revestindo a si mesma…
Queria falar consigo sobre o Louis Khan, não só porque o arquitecto Forjaz o cita em vários lugares,
ou alguém o cita para se referir a si e ao seu trabalho, como também porque julgo partilharem alguns No desenho do projecto, vai das parcelas para o todo ou só começa um projecto depois de intuir o todo?
princípios. Ele por exemplo fala muito “do que a construção quer ser”. Alguma vez, face a um lugar Há um vai e vem nesse processo, às vezes chegamos ao fim e recomeça tudo do princípio, o que
sentiu que tipo de construção queria ser ali, sentindo-o de imediato (ao lugar) como receptáculo de às tantas implica uma economia do tempo muito grande…
um modelo?
Não lhe sei responder taxativamente. Provavelmente não, à partida, quero dizer no primeiro
embate com a necessidade de forjar uma ideia, e aqui o não significa nunca, nessa primeira fase, mas
numa fase seguinte quando as principais peças do projecto – quer sociais, quer o local, topológico
e topográfico, quer tecnológicas e económicas – se encaixam, então diria que sim que a evocação
de modelos se impõe… Aliás, voltando ao Khan (e todo o Khan é uma evocação de modelos, e da
arquitectura romana, (que ele nem conhecia muito bem; curiosamente), ele às vezes tece sobre a
arquitectura romana verdadeiros disparates, mas era a sua visão… embora em termos históricos e
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tecnológicos cultivasse algumas confusões, também nunca pretendeu ser um histórico da arqui- DFDSGFDSFGV
tectura, embora estivesse banhado, estivesse cripto-influenciado por uma suposta romanidade, DSFSDFDS
O José Forjaz nos seus últimos textos teóricos pretende restituir à «emoção» um lugar fulcral, mas esta portante realçar aqui é que eu não penso numa arquitectura interior e outra de exterior, como duas
parece-me ser em si um lugar de passagem ou a porta para uma recondução a uma certa ordem prévia coisas autónomas, a expressão exterior da arquitectura que faço é sempre resultado de tentar conse-
ao metabolismo da expressão, como os arquéticos em Jung. Acredita numa memória transpessoal? guir uma espacialidade interior rica, em termos da luz, do conforto na sua relação com o meio que
Acredito profundamente e acredito que isso pode ser traduzido para o que mais correntemente a circunda, que às vezes pode parecer muito densa mas que é sempre uma relação voluntariamente
chamamos de cultura. Nós herdamos uma gramática do olhar e os vínculos a determinadas práticas trabalhada… e portanto, não há uma dicotomia, ou eu pretendo que não haja, e que os edifícios se
que estão muito para além das nossas determinações subjectivas. E por isso convém estarmos bastan- insiram nos contextos… há é contextos difíceis do ponto de vista humano e social.
te conscientes sobre o que herdámos… até para darmos o passo decisivo para a “desaprendizagem”.
Mas estamos condenados a certos patterns, quer queiramos quer não, nem acredito que seja possível Isto pode parecer um disparate, mas não há outro meio de perguntar: há uma “arquitectura nua”?
escapar a eles, o que fazemos muitas vezes é evitar a coisa pela negação, adoptando o oposto, mas Penso que pelo menos a arquitectura devia ser tão nua quanto possível, não no sentido do Loos,
mesmo aí, sem querermos estamos sob influência… mas no de uma adequação que nunca tivesse um grama a mais de ornamento, de decoração. Talvez
algumas “roupagens” tivessem começado como formas de simulação e camuflagem de elementos
A propósito de patterns, uma curiosidade, a rejeição da curva do corpo humano, no mobiliário de Lloyd de protecção e não digo que sejam inválidas mas, às vezes há aposições abusivas ao edifício que não
Wright, não o surpreende? sendo imediatamente funcionais e tecnologicamente necessárias distinguem esse edifício de alguma
Talvez… e acho que o mobiliário do Wright, de alguma maneira, é datável. Embora às vezes maneira, quando isso, hoje em dia, se pode fazer até de maneiras mais justificáveis, através da cor, da
resulte de uma estilística interessante é na maior parte dos casos desconfortável… ele tem várias fases, textura, dos cambiantes de iluminação faz-se através da escolha de materiais, faz-se de muitas ma-
o mobiliário que desenhou para os escritórios da Johnson Wax é uma coisa, os que fez para o seu neiras… Não se trata nem de despir a arquitectura nem de vesti-la… Vesti-la como? Vemos dezenas
próprio atelier é outra. Mas eu não lhe atribuiria os dotes de um verdadeiro designer de mobiliário 230 231 de passagens de modelos na televisão sem que ninguém vá a seguir vestir aquelas roupas, dado que
porque ele desenha mobílias arquitectónicas, se assim quisermos chamar, mas a mobília não era a moda em geral não se rege pelo conforto, a utilidade, e a duração… só tem a ver com a podero-
definitivamente aquilo que o preocupava, daí que talvez manifestasse menos sensibilidade para os síssima influência da sociedade de consumo… e do que certos nichos de mercado, sempre na mira de
assentos… acho que ele não ficaria na História como desenhador de móveis… novidades, pedem… Eu gostava que a arquitectura não se encaixasse nestes moldes…
É verificável na sua arquitectura uma relação tensa entre os domínios público-privados, isto é, os ex- Li numa revista italiana um artigo seu em que fala da distância que hoje separa “cultura e manualida-
teriores dos seus edifícios reflectem as tensões públicas, sociais (o problema da violência e concomitante de”, o que pode degenerar num conflito ou impasse, que só se diluem quando a maturidade da invenção
preocupação com a segurança) ou climáticas, ao passo que os interiores reflecte a circunstância indivi- se associa à natureza do gesto. Se bem entendi, então, para si, desenhar não é um exactamente um saber
dual e a sua criatividade… Eu entro em casas que desenhou e não adivinhava cá de fora a beleza, o de antemão que se tenha do mundo e se plasma numa representação, e o processo de fuga duma iden-
equilíbrio, os jogos de luz, e a riqueza arquitectónica das casas por dentro. Como é que lhe surgiu esta tificação para que algo apareça. Ou seja um bom desenho não é o que representa mas o que apresenta?
dicotomia? Estou muito enganado?
Penso que em 90% dos casos é circunstancial. E vou dar-lhe o exemplo do oposto daquilo a que Não, é essa a ideia. Nem preciso de acrescentar nada.
é comum associarem-me: esta casa transparente que desenhei na Ponta do Ouro. Neste caso, o dono
da obra assumiu os riscos da transparência e eu pude trabalhar com esse à-vontade… Um à-vontade Então gostava que me falasse da importância do desenho no trabalho de arquitectura. Que tipo de
que eu gostava que acontecesse muito mais. Mas não vale a pena estar a desenhar casas similares parâmetros ou de sensibilidade tem ainda o desenho manual que o computador não possa dar?
na cidade para depois a encher de grades a toda a volta que lhe tiram a transparência e deturpam o O desenho, apesar de tudo, é ainda uma expressão muito mais rápida. Mas provavelmente o
próprio sentido dos volumes, etc. Portanto, prefiro defender-me e apostar num micro-envolvimento desenho está condenado porque o computador tem de facto virtualidades que num curto prazo
e um ambiente interior tão aberto e rico quanto possível, do que estar a falsificar uma relação que é compensarão o que ainda não pode dar. Já há programas de desenho que conseguem a mesma
impossível, pois não há como iludir que vivemos numa cidade perigosa… Mas o que me parece im- expressividade que a obtida pelo lápis no papel e há processos no desenho automático que nos pro-
porcionam inclusive um sentido da espacialidade, e uma relação de fisicalidade similar, pois tem crianças, por exemplo, antes de serem estragadas, cultural e esteticamente, tem aquela frescura,
de aplicar-se uma certa pressão com a mão, com a caneta, no computador, na placa do desenho, ou porque o miúdo deixa a mão fazer, antes de pensar se aquela representação entra num cânone
até do rato no ecrã… contudo, essas ferramentas não estão ainda a ser usados, pelo menos da mes- que toda a gente reconhece – aquilo que ele vê, que ele sente, é o que a mão faz… Subsiste
ma maneira que era usado o desenho no papel. Havia uma anedota que corria nos corredores da realmente um abismo, uma enorme diferença entre a «habilidade manual» e a «cultura manual»,
Escola de Belas Artes do Porto, sobre um professor estava sempre a resmungar “lá vêm vocês com mas cultivar esta última obriga a exercício, não é inato, não se nasce com isso…mesmo o Mo-
esses desenhos mal-feitos à Corbusier!”, e realmente o Corbusier também desenhava mal se com- zart não nasceu a saber compor, o pai era intérprete e compositor e obrigou-o a uma grande
pararmos com o Rembrandt, desenhava era muito expressivamente. Ele tinha uma enorme capaci- disciplina… martelou-o seriamente. De qualquer maneira, a mão pensa quando já não precisa
dade para fazer desenhos expressivos, sem serem desenhos reprodutivos. Bom, e há certas fases do de controlo muscular, e tudo flui…
trabalho em que é muito mais rápido usar um lápis e um bloco do que recorrer ao computador. E
o computador tem uma coisa que é terrível e contra a qual luto todos os dias no escritório, onde Acha que hoje a arquitectura ainda conserva alguma coisa das guildas, dos ateliers renascentistas,
digo e repito para não usarmos o computador em todas as fases do projecto… porque este nos dá onde os discípulos cresciam como seres humanos ao mesmo tempo que se apoderavam das técnicas da
a ilusão prematura de que o projecto está acabado, quando a arquitectura é um work in progress… disciplina?
hoje em dia a juventude, que tem uma relação muitíssimo maior com o computador, acusa às ve- Acho que sim, bastante até… Não da mesma maneira, está claro, mas algo se mantém… embora
zes essa inflexibilidade; como o computador é uma ferramenta rigorosa e até extremamente fácil de cada vez mais, equivocamente, os arquitectos pensem que podem arrancar por si próprios sem o
manusear, eles ficam convencidos que aquilo que medem com o computador é aquilo que irá ser contacto com a experiência, mas o exercício “projectual” e depois, não esqueçamos, a outra parte
observado até à fase final do projecto … e isto é muito perigoso… porque quanto mais perfeito e igualmente importante que é o exercício construtivo, são das actividades mais complexas que se
exactos queiram ser à partida mais condicionam o fluir de ideias, a liberdade do processo criativo, 232 233 podem ter, em termos humanos, as relações entre as pessoas não são fáceis de gerir, com o cliente, o
o reforço de ideias mais elaboradas nos passos posteriores, pois tudo parece estar já previamente empreiteiro, entre os técnicos, ou tratar a legalidade dos processos…
ordenado. É um perigo muito grande…
Tudo isso é preciso aprender, estando enquadrado num escritório…
Esse é o problema da natureza dos meios, que acabam por influenciar … É preciso aprender e isto não se aprende na faculdade. O aluno, na faculdade, para começar
O meio é muito poderoso. Tradicionalmente tínhamos um rolo de papel vegetal na mão, a aprender alguma coisa séria de arquitectura, da construção, destes aspectos todos, teria de andar
aquele papel manteiga, e íamos desenhando e deitando fora, desenhando e deitando fora, e para aí dez anos na faculdade. Por isso a estupidez do Tratado de Bolonha não tem qualificação. Em
ninguém tinha qualquer hesitação em fazer isto. Agora a um primeiro esquisso segue-se uma Itália as faculdades já rejeitaram a patetice; ou seja, no momento em que Moçambique cegamente
segunda versão, mas guarda-se a primeira, e depois a memória fica cheia de coisas, e entretanto embarca nas imposições de Bolonha, os que inventaram a coisa romperam com ela e reconheceram
perdemos o rumo das coisas e já não se sabe qual é a última versão, e depois tem-se muito medo o erro. E é gravíssimo…
de mudar de versão, e isto acontece sistematicamente. Eu tenho essa “batalha” aqui no escritório
sistematicamente.
O Leonardo falava da “mão pensante”. Sente isso também com o desenho, quando se solta?
Absolutamente. Mas quando falo de “manualidade”, abrem-se duas dimensões e há que dis-
tingui-las. Você pode ser destro manualmente e capaz de consertar um relógio e de meter ordem
no universo daquelas peças mínimas e não ser capaz de desenhar uma árvore que exprima vida
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– não passar de um executor. Por outro lado, existe também o equívoco de julgar-se que uma DFDSGFDSFGV
pessoa que desenha muito é um criativo, ou é um criador, são coisas diferentes. O desenho das DSFSDFDS
ATENÇÃO
OUTRA PARTE II ?
II acompanhar os alugueres das unidades residenciais com sistemas de apoio financeiro, crédito, etc.,
às famílias que não têm condições para pagar os custos de manutenção dos prédios, sendo por isso
Em termos de espaço físico e arquitectónico como descreveria o país na altura da independência. Era um deplorável o seu estado.
urbanismo mais ou menos integrado?
Definitivamente não. O urbanismo colonial revelava a natureza dualista da sociedade colonial. As aldeias comunais foram uma experiência que tinha por grande meta o desenvolvimento mais equi-
Uma cidade organizada, e por vezes bem organizada, para os brancos e outros “assimilados”, e um librado do país. Como pessoa que esteve ligada ao planeamento físico e tendo visto de perto esta expe-
território urbano caótico ocupado pelos negros e outros descriminados. riência, pensa que houve a nível da construção de uma identidade nacional, alguns benefícios nesta
Naturalmente que as fronteiras se confundiam por vezes e que, por vezes, houve arremedos de experiência.
preocupação com os lúmpen, os indígenas e os menos classificáveis como população urbana. Mas Não. Pelo contrário penso até que houve uma erosão dessa identidade em construção, devido
isso foram momentos fugazes e incertos, produto de estratégias demonstrativas de uma preocupação à incapacidade de compreensão, por parte dos dirigentes locais, da estratégia e processos de estabe-
inexistente para com as condições de vida no caniço ou muito simplesmente para melhor garantir lecimento de altos níveis de aceitação, por parte da população rural, dos objectivos e das intenções
um controle policial desses aglomerados de pessoas. da “comunalização” do campo. Mais uma vez se embarcou numa ideia política, que poderia ser
Depois disto haveria muito para dizer e volumes para escrever mas é tudo irrelevante comparado positiva, sem se medirem as exigências logísticas e as necessidades técnicas e financeiras envolvidas
com a marca indelével que a cidade e o espírito colonial deixaram nas nossas cidades. na sua materialização.
Em termos de arquitectura houve uma grande riqueza de propostas e uma espécie de libertação As consequências foram desastrosas e, conjuntamente com a “Operação Produção”, muito con-
dos arquitectos que, em Portugal, estavam muito limitados pelo controle cultural que o regime tribuíram para o agravamento da guerra civil cujas consequências ainda hoje estamos a pagar so-
colonial-fascista impunha. A sociedade cliente aqui era multicultural e mais liberta das amarras tra- 234 235 bretudo pelo reforço que trouxe a atitudes regionalistas e potencialmente separatistas que se podem
dicionalistas da sociedade portuguesa da época. agora identificar no país.
Isso reflecte-se claramente na arquitectura pré-independência de raiz racionalista e modernista
sem preocupações de localismos regionais. A guerra civil veio cavar um fosso grande entre a cidade capital e o resto do país, bem como um cresci-
mento das periferias das grandes cidades com efeitos sociais graves. Acha que o país começa a recuperar
As nacionalizações do parque imobiliário tiveram repercussões importantes no tecido social das cidades. dos seus efeitos, ou os seus efeitos serão porventura irremediáveis?
Hoje, 35 anos volvidos sobre a independência e depois da re-privatização do mesmo que balanço faz A Guerra civil foi realmente a pior forma de resolver o problema da transição para um regime de-
desta política? mocrático. Não discuto aqui se haveria outra forma de estabelecer um diálogo, ou mesmo se haveria
Positiva. Embora a nacionalização do parque imobiliário do país tenha sido desfasada em forças organizadas, no país, com quem discutir. Esse é outro tema.
relação ao aumento da capacidade financeira das famílias que dela se aproveitaram houve, apesar O afluxo à cidade foi realmente estimulado pela guerra e resultou no agravamento de um fenó-
de tudo, cerca de 300.000 pessoas que acederam a melhores condições de habitação. Por outro meno universal irreversível e, quanto a mim desejável, de urbanização que todos os países atravessam.
lado, foi um dos momentos mais concretos e tangíveis da mudança de mentalidade e de quadro O mundo está hoje urbanizado, isto é, vive nas cidades mais do que 50% da população mundial.
político, numa altura em que ninguém sabia ao certo o que significava a revolução moçambicana Os países com mais altos rendimentos per capita são também os países com maior parte da sua po-
ou o socialismo. pulação a viver nas cidades. As cidades contribuem com a maior parte das contribuições fiscais e dão
Houve sim grandes erros logísticos e técnicos, falhanços estratégicos, corrupção generalizada e uma contribuição muito mais alta do que o campo para o produto nacional bruto. Naturalmente
incompetência. Houve grandes injustiças em relação a muitas famílias cujo único investimento teria que, no nosso caso, isto não minimiza a importância do campo, ou da agricultura, para a riqueza da
sido o prédio de rendimento ou a casa que deixaram para trás. Houve situações dramáticas e grandes nação, nem nega o facto de que é no campo que vive a maior parte da população moçambicana e de
“aproveitanços” por parte de quem tinha, e tem, o poder na mão. Naturalmente que hoje, dentro de que há, portanto, que lhe dar maior importância na distribuição do orçamento nacional, o que não
um sistema de capitalismo selvagem, tal medida já não faria sentido e, entretanto, nada se fez para acontece no presente.
Mas o problema que interessa considerar aqui é o da capacidade de administrar as nossas cidades, Façamos agora um flashback que o apanhe em Nova Iorque, onde estava a fazer o mestrado. Como
que é, ainda, muito baixa e muito condicionada à opinião das classes mais vocais. é que de Nova Iorque, de repente, se muda para a Suazilândia. Porquê a Suazi e como apareceu essa
O que está a acontecer é que se condiciona a administração técnica dos diversos sectores da vida oportunidade?
urbana à fidelidade política, ou mesmo pessoal, criando-se uma descontinuidade na formação e na Da maneira mais aleatória possível. Estava em Nova Iorque e recebi uma chamada do Pancho
acumulação de experiência dos quadros que, quando começam a compreender os problemas que Guedes, que me diz, o Flip Green, vai ter um passaporte inglês e vai finalmente poder sair e ver
devem resolver, são afastados para dar lugar a novos elementos da cor política e da confiança da nova outras coisas e passear pelo mundo, ao fim de oito anos de reclusão, e para isso dispõe-se a passar
administração, mas sem experiência nem conhecimento dos problemas. o escritório… Era uma boa ideia para ti, há algum trabalho, fala com ele, ele passa-te o escritório
Esta doença infantil das democracias emergentes sofre ainda, no nosso caso do agravamento que com facilidades de pagamento… E eu pensei 32 segundos, porque realmente eu não queria ficar em
lhe vem da falta de recursos financeiros que caracteriza uma economia subdesenvolvida. Nova Iorque, não queria ir para Portugal não me estava a ver no ambiente sufocante de Lourenço
Marques, e aceitei. Isto foi em Janeiro ou Fevereiro, em Maio, Junho acabei o meu curso, e vim.
A liberalização da economia trouxe uma outra explosão da construção ao nível das cidades, mas os Paguei os cinco mil rands que ele queria por me passar o escritório, na altura era algum dinheiro, e
jovens por exemplo têm muito pouco acesso à habitação. Que papel podia cumprir o estado neste item? aterrei, rigorosamente sem cheta…
O problema da habitação é apenas uma das manifestações do baixo nível económico do país.
Não há soluções miraculosas que o resolvam enquanto outros aspectos, também vitais, da vida do Mas herdou alguns projectos, não?
povo não forem também resolvidos. Um vício de pensamento muito comum é pensar-se que as Herdei três projectos, se não me engano, a supervisão dumas obras que estavam por acabar, o Flip
soluções para o problema da habitação são de ordem técnica. De facto as reduções de custo possíveis Green ficou comigo mais uma semana e deu-me alguns contactos. Felizmente o escritório e a casa
através do projecto são pouco significativas. 236 237 eram no mesmo sítio, pelo que não tinha essa despesa adicional, pagava uma renda baixa e era um
Os factores determinantes da solução do problema da habitação são o planeamento democrático sítio agradável… Portanto, tinha poucas despesas à partida, alguns honorários para receber, e fui-me
e espacialmente correcto das cidades, o controle do valor do terreno e uma política de crédito ade- aguentando. Nós éramos três arquitectos nessa altura na Suazi, eu, um inglês e um sul-africano. Um
quada ao perfil económico das famílias. amigo polaco, muito interessante, arranjou-me um primeiro cliente, quase milagrosamente consegui
Naturalmente que estes factores só podem resolver-se num quadro político onde os interesses um empréstimo do banco para me aguentar, as condições do crédito então eram favoráveis, não eram
especulativos do mercado imobiliário estejam controlados, isto é, num regime distante dos interesses a barbárie que hoje se pratica nesta terra (o gerente do banco, sabendo que eu era arquitecto decidiu
eminentemente capitalistas que são presentemente dominantes no nosso ambiente político. confiar em mim e disse-me, paga quando puder), e eu lá me fui aguentando, e no segundo ano co-
mecei a ter trabalho regular. O primeiro trabalho foi dar um apoio à escola de Waterford, que tinha
Que pede o José Forjaz à arquitectura? E o que lhe traz ela? sido desenhada pelo Pancho, ele era amigo do director, depois fiquei eu também amigo do director,
Eu só peço à arquitectura que continue a ser o centro e o objecto dos meus interesses intelec- era um meio realmente muito pequeno, a Suazi tinha menos de um milhão de habitantes naquela
tuais e emocionais (mas isso é apenas o corolário da exigência que, todos os dias, faço a mim mes-
mo: a de continuar a ter um centro de interesses intelectuais e emocionais). Mas, se a arquitectura
é esse centro, as periferias não são menos importantes, pois o que a arquitectura me obriga é a
isso mesmo: a uma visão periférica e simultaneamente centrípeta do mundo e da minha topologia
emocional.
O que se passa é que a minha actividade é eminentemente criativa ao mesmo tempo que é, indis-
pensavelmente, racional e reflexiva, relacional e organizativa. Nesse sentido ela completa-se no que
FSDFSD
exige e pelas pagas que dá. É isso que nos vicia quando escolhemos o ofício de inventar: este comércio DFDSGFDSFGV
entre razões e emoções… este adiar da vontade de morrer. DSFSDFDS
altura e a pessoa sem muito esforço ficava rapidamente integrada. Depois, ganhei o concurso para a aos ideais, mais que um político era um ideólogo… ele foi o inventor deste país, e tinha um espírito
Câmara Municipal de Mbabane e a seguir surgiu-me aquele que terá sido o trabalho mais significa- independentíssimo em relação aos marxismos-leninismos mais básicos, sabia também ter o pragma-
tivo: projectar o campus universitário da UBLS em Kwaluseni. Enfim… tismo da política mas privilegiava uma sintonia com as características étnicas e culturais do país, isso
não tenho dúvidas nenhumas. Tinha também umas fraquezas um pouco indefensáveis, a amizade
Correu bem. com o Kim Il Sung era uma coisa difícil de perceber. Uma vez deixou-me em embaraços na Coreia
Correu muito bem. Só que entretanto dá-se o 25 de Abril. E dia 26 ou 28 encontro-me na Áfri- do Norte porque o “ditadorzeco” quis-nos mostrar o palácio dele, que era uma merda, uma coisa
ca do Sul com o Luís que, vinha de Dar es Salaam, e me diz, “então como é que é? agora é preciso arquitectonicamente atroz, do mais monhé e dubai que se possa imaginar, com o mármore a imitar
voltar!”, e eu respondo, “diz-me tu, quando é que queres que eu vá!”. E um dos pretextos da minha plástico, que é uma coisa inconcebível, e o cabedal a imitar napa, tudo ao contrário, e o Kim Il Sung
volta foi ajudar a fazer o Orçamento de Estado para o ano seguinte. A partir de Agosto comecei a durante a visita pergunta a opinião ao Samora que me endereça a pergunta, e eu tive de sussurrar,
ser muito solicitado para que voltasse e ainda em 74 peguei em mulher e filho e mudei-me para cá, depois falo consigo. E mais tarde o Samora ria-se muito e comentava, não me digas que era assim tão
ficando então integrado no Gabinete de Estudos no Ministério das Obras Públicas. E a primeira medonho!? Não era fácil nas circunstância encontrar um homem com uma personalidade semelhan-
vez que encontrei o Presidente Samora foi quando fiz o projecto da Embaixada de Moçambique na te e uma tão grande capacidade de agregar e de inventar o país…
Tanzânia… que era um projecto que ele acalentava desde o dia 26 de Abril, pois, disse-me, “nós
vamos voltar e a Tanzânia tem de ser paga, pela dívida de gratidão que a gente tem com eles, preci- Conte-nos um pouco da sua experiência como Secretário de Estado do Planeamento e Território…
samos do projecto duma embaixada…”, elaborei o projecto rapidamente e fui à Tanzânia com uma Quanto tempo exerceu esse cargo?
maquete, apresentar a coisa também ao Presidente Julius Nyerere… Três anos.
238 239
O Presidente Samora é uma figura controversa que provoca fascínios e rejeições. Como foram as suas Depois demitiu-se, disseram-me que com um manifesto.
relações com ele? Não. Há sobre essa história muita confusão, não foi assim… Trabalhava comigo uma das
Foram óptimas. Ele tinha um respeito e uma grande amizade por mim. Volta e meia convidava- pessoas mais inteligentes que conheci e uma das pessoas fundamentais da minha vida, o Patrice
-me para almoçar, ele mandava-me chamar para conversarmos, e gostava que eu o acompanhasse em Rauszer, levaram-no ao meu gabinete, tive com ele uma conversa inicial de meia hora e ficámos
certos actos políticos, o que nem sempre me agradava…Ele chamava-me para os comícios, para isto amigos para a vida toda. Ele era arquitecto, refractário ao exército francês, tinha lutado contra a
e para aquilo, às vezes até era uma coisa embaraçosa, porque havia ministros e outros políticos que guerra colonial, tinha um mestrado em urbanismo, era muito interessante, muito culto, e uma
pensavam que eu queria tirar vantagens e a última coisa que eu queria na vida era poder. Eu sempre pessoa excepcional. Trabalhou comigo desde o princípio na concepção duma filosofia do pla-
ofereci a minha disponibilidade a este país como técnico, não queria ter nada a ver com manobras neamento, pois ele havia trabalhado na Argélia, depois da independência, como conselheiro de
políticas. Mas o Samora era um homem brilhante, duma grande perspicácia psicológica, ele via a Estado Argelino para a mesma área, e era um homem de esquerda, não marxista, nem PCF, duma
pessoa e lia-lhe todas as virtudes e defeitos com uma grande agudeza, com uma fulgurante capacida- esquerda independente e sadia… e ajudou-me muito. E houve um momento em que era inevitável
de de a perceber, às vezes enganava-se… e tratou algumas pessoas um bocado mal mas depois pedia uma reacção à asfixia a que o planeamento económico de linha pró-soviético (aquela gente tinha
desculpa, não tinha pejo em pedir desculpa. E tinha um grande calor humano… metido a cartilha soviética na cabeça e não se apercebia da desadequação dos modelos ao lugar e
às condições humanas) nos conduzia. Era absolutamente extraordinário o que se estava a passar. E
E era um homem que escutava? nós lá na Assembleia Popular tínhamos de intervir e tentávamos introduzir alguma racionalidade
Quando queria sim, sabia escutar. E fazia-se anunciar: agora escuto. Não era um homem para e algumas regras no planeamento que ordenava o país, em termos espaciais, e o Patrice apresentou
ser interpelado, tínhamos que o conhecer para na altura certa sugerirmos, e se isto ou aqueloutro, um documento. O documento tinha sido gizado comigo mas ele fora a cabeça, e o Documento
então ele escutava. E nunca o ouvi recusar razão quando esta era arguta e bem firmada… Em termos chamava-se, se não me engano, Plano e Projecto de Planeamento Físico, e eu como Secretário do
pessoais eu tenho um grande afecto por ele, porque ele na altura parecia-me uma pessoa dedicada Estado imprimi e mandei circular pela Assembleia da Popular. Houve pessoas que me deram os
parabéns e outras que reagiram “você está a brincar!”. E claro que os «apparachiqui», os homens III
mais alinhados com um marxismo tacanhamente ortodoxo, reagiram, porque aquilo era um ata-
que frontal à situação. Nós na altura atravessávamos um período complicado, marcado pelo PPI, Eu não sei como é na Arquitectura, mas nas Ciências Humanas, onde dou aulas, os alunos chegam
Plano Perspectivo Indicativo, que era uma construção teórica e impossível… que os pequenos tec- absolutamente desprovidos…Os meus alunos chegam muitas vezes como se tivessem a quarta classe.
nocratas (a maioria deles está hoje no Banco Mundial) procuravam executar sem discussão, e que Pois digo-lhe, tenho desenhos de acesso à Faculdade de Arquitectura que a minha neta com
se regia não por procurar activar uma dinâmica que tivesse em conta os potenciais existentes mas 5 anos faria melhor. Digo-o com mágoa. Não estão providos de qualquer instrumento…
os objectivos, por exemplo, agora é preciso fazer uma fábrica de têxteis na Zambézia, e não impor-
tava se em tal província havia matéria-prima, mão-de-obra qualificada, técnicos, etc. A experiência E preocupam-se depois em melhorar?
redundou em alguns disparatados elefantes brancos e numa sangria de meios e fundos. Partia-se Quem? Eles, ou os professores… (risos) Esse é que é o problema. Estamos a fazer uma Faculdade
do princípio de que, definidos os objectivos, tudo se conformaria à sua mágica materialização… o de Arquitectura com docentes que acabaram de sair da Faculdade. Quando digo acabaram, pode
que talvez fosse possível onde houvesse dinheiro, recursos e saber, o que não era o caso de Moçam- ser há cinco anos, uma pessoa com cinco anos de não-prática profissional, e estamos a falar de um
bique. O nosso documento atacava este processo e fomos duramente criticados, mas o que é certo país onde há pouquíssimos centros de formação pós-escolar e na maioria dos casos são 100 por
é que ainda hoje, infelizmente, aquele documento mantém a sua actualidade… cento comerciais… Isto é uma condicionante histórica, nem estou a fazer uma crítica, estou apenas
E saí. Mas nunca fui atingido directamente. Pouco depois solicitaram-me para dirigir o processo a constatar: é assim e vai continuar assim durante muitos anos. Repare, na actividade “projectual”,
da construção duma ideia para a Faculdade de Arquitectura e eventualmente tomar conta dela como 50 por cento da sua afinação é feita por erro, por tentativa e erro, e os erros fazem-se no tempo, no
director, ao que aderi com gosto. Paralelamente a isto, desenhava-se no ar, na Assembleia da Repú- espaço e no tempo, e não se podem fazer os erros suficientes para se começar a perceber alguma coisa
blica, a hipótese de se levar a cabo uma segunda Operação Produção, sem sequer corrigir os erros da 240 241 de arquitectura em menos de 10 ou 15 anos. Faz-se o exercício, mas levá-lo todo até ao fim e levá-lo
primeira. E quando no nosso grupo de trabalho quiseram silenciar os meus protestos contra um tal bem é extremamente complexo, é uma das profissões mais ingratas, porque nós somos responsáveis
disparate, e me mandaram calar, então isso foi a machadada final e retirei-me, resignei como depu- por tudo na obra, quer o sejamos ou não, do ponto de vista legal, na prática somos responsáveis
tado, pois não me mandam calar duas vezes se eu tenho razão. Entretanto, o projecto da Faculdade por tudo na obra, sobretudo em Moçambique, onde não há consultoria técnica, ou a que é há é tão
ia germinando e os italianos lançaram-me o convite, “Vem para Itália, a gente quer-te lá a ensinar insignificante e… não quero dizer atrasada, mas ineficaz… pois o arquitecto está sozinho: desde o
Planeamento no Terceiro Mundo”, e acabei por lá passar uns anos, distanciado já da nata política, a projecto à obra.
estudar e a trabalhar no aprimorar o projecto da Faculdade de Arquitectura…
Vou-lhe ler uma frase terrorista do Undertweizer, diz ele: «Só quando o arquitecto, pedreiro e ocupante
A função de Secretário de Estado, tecnicamente, deu-lhe ensinamentos para a sua actividade futura? são uma unidade, uma e a mesma pessoa, é que podemos falar de arquitectura. O resto não é a arqui-
Aquilo que aprendi foi que as decisões sobre o espaço são essencialmente de carácter político. O tectura, mas sim a encarnação física de um acto criminoso…»
controle do espaço, da sua exploração ou da organização, acontece acima duma lógica tecnológica e Bom, a frase vale o que vale… mas no nosso caso o problema estende-se a qualquer universida-
rege-se por interesses – sejam legítimos, como eram naquela altura, sejam ilegítimos como acontece de… mas eu nunca acreditei muito na universidade como local de formação das pessoas, acho mais
amiúde hoje – económico-financeiros, às vezes ao serviço da consolidação de poderes e interesses que as pessoas são formadas umas pelas outras, através de encontros… e é isso que a universidade
pessoais privados. deve ser, e ainda é, e esses encontros devem ser estimulados, não para discutir as pernas da prima mas
para discutir os problemas sociais e as novas emergências intelectivas da sociedade em que vive. Da
minha observação de vinte e tal anos, quase trinta de contacto com a nossa universidade, eu não vi
esse estímulo, até na maneira como os espaços entre as salas de aula são tratados, cheiram a urina, não
têm luz, são abandonados, não têm bebedouros, não têm sanitários para o estudante… Para além
do ambiente que se está a criar, pidesco, de controlo de tudo o que faz, dos passos que se dá, muito
mascarado mas que existe, e que também não autoriza que o estudante desenvolva e teça opiniões tempo para estar à espera deles… isto é muito grave. Embora também pense que é natural, é uma
com desassombro… Mas também não há uma intelectualidade neste momento em Moçambique, fase, a História vai apagar muitas destas coisas…e ficará na essência muito mais rarefeita, e penso
foi rasurada… que intelectualmente se vão acumulando experiências, realidades e realizações que irão depois servir
de referência. Agora, eu lembro-me de que quando saí da Faculdade tinha a noção clara de que
A muito nos levaria esta senda mas é melhor retomarmos a arquitectura. No seu “texto de reflexão tinha muito que aprender, apesar de que inclusive, já antes de ter entrado para a faculdade ter tido
dos 70 anos”, escreve: “temos de voltar a uma arquitectura que não seja uma performing art”, o que a tarimba de participar no desenho de projectos e continuei a fazê-lo, e só um bom bocado depois
implicaria uma atitude que hoje se encontra pouco entre os jovens estudantes que se prende com a hu- é que comecei a assiná-los, cheio de dúvidas e medos de errar e de desiludir os meus mestres e, mais
mildade… Não existe mais, a humildade? tarde, tive de me aventurar…
Não, não existe.
Quer dizer, só se aventurou a ter opinião depois de alguns anos de prática?
Donde lhes chega uma tão desproporcionada confiança nas suas aptidões? De alguns bons anos, e com uma atitude que eu não vejo hoje e que reclamo para mim próprio
É uma consequência directa da falta de cultura. que é a de uma profunda dedicação ao estudo. A estudar técnica, a estudar a filosofia da arquitectura
e os processos da arquitectura…Eu estava muito isolado, eu estive sempre muito isolado. Antes de vir
Quando eu era um jovem jornalista, em Lisboa, entrar no «Expresso» era como ser ejectado para o para Moçambique estava na Suazilândia, que era um isolamento ainda maior. Com uma diferença,
Olimpo. E havia um itinerário quase iniciático para lá chegar que passava por provas de qualidade. por ser um país de língua inglesa estava mais ligado à África do Sul, que era mais central no mundo,
Quando eu já lá estava comecei a dar conta que chegavam muitos jovens estagiários que davam a coisa que por vez estava ligada a outros canais maiores como a Grã-Bretanha e os EUA, de que eu benefi-
como adquirida, como se tivessem nascido para aquilo… A qualidade do trabalho era o menos relevan- 242 243 ciei, mas no trabalho profissional de todos os dias eu estava sozinho…e portanto só através do estudo
te, na questão. O respeito pelo mérito e pelo saber foi-se dissipando… contínuo eu podia tirar as minhas dúvidas.
Completamente. E estamos a falar a duas escalas, à escala universal e à escala local. À escala local
o respeito pelo saber dissipou-se por uma razão simples: não há saber. O que é um problema, para Repegando na tensão que se verifica, em muitas das suas casas, entre o exterior e o interior. Devido a isso,
só falar do caso da arquitectura. Portanto, eles também não têm a quem respeitar. É dramático, mas há também efeitos que funcionam de forma inesperada, a casa do Sol de Carvalho, no Bairro Triunfo,
é verdadeiro… quem a vê de fora parece um bunker e não adivinha de todo o jogo de abertura que se dá nas traseiras
com a fachada airosa e envidraçada sobre a piscina…
Mas no caso da arquitectura Moçambique a dado momento funcionou quase como uma escola, com o É o que fazia sentido para ali, com uma rua daquela largura, enquanto, na altura, não havia
Mesquita, o Pancho, etc. outras casas nas traseiras, o que permitia outras vistas.
Não é o anódino, não é o excepcional, não é o fora de comum que cria uma cultura. O que cria
uma cultura é a consistência e a constância de uma prática ao nível geral que cria referências que os Já na casa da Maria de Lourdes Torcato, que foi considerada uma das mil casa mais bonitas do mundo,
mais jovens podem tomar como padrões e que, os melhores entre eles, devem pretender ultrapassar. eu senti-me dentro duma máquina orgânica benigna, não lhe sei dizer de outra forma.
Isso não existe aqui, há uma falta de modelos. Por isso quando surge alguém de qualidade ficam logo É um caracol. Onde ela se pode recolher lá dentro. Tem uma transparência muito controlada
endeusados de imediato, um Malangatana, um Mia Couto, etc., e estupidamente, quer-se imedia- mas muito franca, da cozinha e da varandinha para o exterior, e quando se entra na salinha vê-se
tamente fazer cópias, porque se procura o sucesso a qualquer custo, e sobretudo sem o trabalho que que tem uma janela a metro e vinte do chão com uma fresta para ela olhar para fora, é tudo muito
este implica… alguém aponta um caminho e vamos copiar, é mais fácil. controlado. Mas é realmente, se eu quisesse ser faccioso nestas coisas, um caracol. E ela de vez em
Não é ser melhor que eles é ser como eles, e como não têm a noção do percurso, o primeiro quando põe os pauzinhos de fora. E acho que funcionou bem, ela sente-se feliz lá dentro e isso é que
boneco que põem no papel é genial, até porque a sociedade os empurra para isso, muitas vezes só é importante. Mas é toda uma máquina de interiores, agora, o difícil é conseguir a congruência entre
pela sua origem étnica já é genial… a mentalidade é: temos de ter gente rapidamente, não temos interior e exterior. Tem piada que há muita gente que diz “você faz uma arquitectura muito feia mas
por dentro as coisas são muito bonitas…”, enquanto para mim na verdade não há dentro nem fora que confessar um limite: uma discoteca, por exemplo, é um espaço que não me interessa, julgo que
mas uma máquina orgânica… não saberia fazê-lo, pois suspeito ser de uma ignorância absoluta quanto aos motivos que podem
levar alguém a escolher uma discoteca como lugar de lazer…Um lugar onde só se pode ter uma
Na sua arquitectura existem às vezes magníficos jogos de transparências. Isto é um gosto que lhe é inato dimensão corporal…
ou foi apurando com a idade?
Se tivesse de escolher entre as duas diria que fui apurando, aliás em tudo… (risos) mas, na De caça…
verdade, neste momento, sou muito melhor arquitecto agora do que era há dez anos atrás. Tenho Se ao menos se caçasse o silêncio. Mas não é possível…
um domínio dos factores que conduzem às escolhas arquitectónicas muito mais seguro e um apuro
maior na conceptualização, ao nível da planta, dos orçamentos… aliás, neste aspecto as novas ferra- A dada altura, nesse momento em que todas as utopias pareciam possíveis, escreve um texto em que fala
mentas são extremamente úteis, a possibilidade de projectar no ecrã do computador transparências e “da ideia de uma arquitectura mais adequada ao meio tropical”. Era um cenário virtual, na altura,
de simular as profundidades dá-nos um maior controlo sobre os projectos. um mote para debate. Hoje, com a sua experiência, voltaria a subscrever esta ideia?
Tem nuances. E o “tropical” quanto a mim assenta num conceito erróneo. Agora, há uma arqui-
Dentre os seus projectos, gosto especialmente dos seus conventos e igrejas. Queria perguntar-lhe se isso lhe tectura tipicamente tropical? Há, mas os trópicos são múltiplos, a faixa entre os dois trópicos não é
exigiu algum tempo/tipo de “meditação” para achar o equilíbrio entre a luz, o espaço e o silêncio… ou uniforme, tem desde climas secos e desérticos até climas húmidos, o que implica condições muito
se isso lhe surgiu tão naturalmente como na construção duma vivenda? diversas e gera respostas arquitectónicas também diversas. Foi uma asneira o que os ingleses fizeram
Bom, essas três qualidades, a luz, o espaço e essa outra fundamental, e raramente referida, que ao criarem Instituto de Arquitectura Tropical. Não é de todo mau porque levantou o debate e isto
é o silêncio – e quando falamos de luz não esqueçamos outra dimensão fundamental, a sombra, 244 245 é sempre útil… a necessidade de criar uma arquitectura tem de ser adaptável às condições locais,
mas estas qualidades, dizia, quando se modulam em variação – a sombra, a luz, um espaço social, mas querer inventar à força uma identidade ligada apenas ao factor climático e ambiental é uma
um espaço de recolhimento – acabam por organizar a sua própria gestação, repare, por exemplo asneira grave. Já o pensava na altura e hoje estou absolutamente convencido de que essa coisa de
o espaço administrativo dum convento tem que ser um espaço solar… o espaço sacro exige um “arquitectura africana”, ou uma “arquitectura tropical” é uma falácia tão grande quanto a de falar-
ambiente mais velado, portanto, naturalmente a construção duma igreja ou convento estimulam mos de uma “arquitectura europeia”, “temperada” ou “mediterrânica”, ou não sei mais o quê. Claro
uma maior sensibilidade a essas dimensões, é como um compositor que ouve a sua própria música, que a arquitectura é sempre marcada pelas referências das diversas dimensões ambientais e sociais
o arquitecto tem que ter ouvido. Repare, o espaço sacro num convento não é só a capela mas é do chão em que se insere, o que dá características vernaculares diferentes, agora dizer que haja uma
também o meio espacial de vida da comunidade, aquilo não é uma casa, ou um escritório, aquilo é “arquitectura africana”, ou uma “arquitectura tropical” por definição”, acho que não. O que não quer
um sítio onde as pessoas consagram 24 horas por dia a uma ideia religiosa, e por isso me interessa dizer que defenda esta ideia, avançada por todo o lado, de uma arquitectura descaracterizada, sem a
muito, por pensar que a vida meditativa tem dimensões extremamente aliciantes e benéficas para menor atenção às diferenças climáticas – falo em geral, a boa arquitectura ainda responde, diria até
todos nós, na medida em que isola e aprofunda a relação do homem consigo mesmo. Portanto,
não me sinto alheio quando desenho uma igreja, é sempre muito motivador um projecto desse
tipo. Para além de pensar que todo o espaço deve ser tratado de modo a elevar a condição mental,
espiritual, intelectual do homem…
Quer dizer, não vê a arquitectura como uma modulação de continuidades mas como um modo de
permear o espaço de intensidades…
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Sim, todo o espaço deve ser intenso. E deve provocar sentimentos de bem-estar, de paz espiri- DFDSGFDSFGV
tual… como também, em certos casos extremos, pelo contrário, de excitação… Embora aqui tenha DSFSDFDS
cientificamente, às condições locais –, mas de momento não está radicada a ideia de que o que se faz se torna claro que há duas ou três cidades que coexistem mas sem que sejam muitos os convívios francos
em Chicago seja necessariamente diferente do que se faz em Singapura… entre pessoas de raças diferentes… ao fim de cinco anos, de quatrocentos alunos, de me ter integrado na
cidade, tenho dois amigos negros. Você desculpe-me, considero isto um escândalo…
Será por isso que a ideia duma harmonização da realidade urbana me parece bastante abandonada Isto é uma coisa que só o tempo curará. É estritamente uma herança cultural, não é por qual-
por estas bandas? quer rejeição ideológica ou biológica, mas vai mudando. O meu filho já foi casado duas vezes com
Nesse aspecto o que é mais grave é que as cidades africanas exacerbam os conflitos de classe, os duas negras – só tenho netos mistos. E realmente as barreiras caíram todas, não há aqui quaisquer
conflitos políticos e continuam a desprezar oitenta por cento da sua população, ou seja, as cidades impedimentos legais para um convívio são, como diz. E esse é meio caminho andado. Claro que
africanas continuam a ser projectadas como se fossem exclusivamente para uma classe média baixa, há 30 anos atrás, pensávamos todos que ia ser mais rápido, mas tenho esperanças. Mas há outro
ou alta – deixando de fora toda a gente que não tem dinheiro para pagar água, luz, telefone… De- aspecto com que temos de lidar sem complexos: ser racista é mais natural que não o ser. Ser
pois, como já aconteceu aqui, encomendam-se planos urbanísticos a quem não está no terreno e que anti-racista é uma atitude voluntária: eu quero ser amigo de toda a gente… em todos os lugares
apresentam depois projectos abstractos sem a menor estrutura ou inserção espacial e sem soluções começam por haver cliques territoriais, que começam a desaparecer conforme as circunstâncias…
que respondam às necessidades de 80% dos habitantes que já vivem no local. E isto passa-se em mas que na origem são contraditórias consigo mesmo e que incluem elementos mais racistas ou
Luanda, em Nairobi, em Maputo, em Joanesburgo… Só se fazem planos para alguns… não… mas as barreiras vão-se diluindo e vejo nas camadas mais jovens na Universidade que entre
eles é muito mais fácil ultrapassarem essas coisas e já respiram de outra maneira. Tudo tem o seu
Em relação ao urbanismo, deixe-me agora referir o meu desconsolo quando o ano passado visitei oito tempo. E ainda há desequilíbrios que só o tempo sanará. Muitos dos alunos mais brilhantes da
províncias do país e as suas cidades. Os portugueses projectavam também sem atender à topografia e às universidade neste momento são negros, no entanto a média geral dos alunos brancos é melhor,
características do local e o urbanismo das cidades é decalcado de uma para as outras, como se fosse em 246 247 porquê? Porque têm mais apoio em casa. Há PCA’s ou mesmo ministros que metem os filhos
série, e usando sempre o mesmo vernáculo nos edifícios institucionais. Dá uma impressão de monotonia nas melhores escolas mas eles não obtém aproveitamento. E não podiam porque em casa não há
brutal, duma falta de imaginação sufocante: estava sempre a ser remetido para o Chaimite e a aldeia um único livro e como tal eles não têm o exemplo em casa. O grande problema do ensino em
portuguesa… Moçambique não começa na escola, mas em casa… e isso não se resolve em dois tempos, não é
Era tudo muito fraquinho. A urbanística ultramarina era muito pobre… já nem ponho o pro- com mais escolas e mais professores mal preparados mas com a subida da cultura média em casa…
blema da marginalização da população indígena, para isso havia o bairro indígena – bom, e por Melhorando este quadro geral as pessoas também tenderão a conviver mais entre todas e a abater
acaso ainda havia, com os portugueses ainda havia… Esse plano urbanístico que eu vi recentemente, as últimas barreiras raciais…
já nem comportava essa hipótese, talvez por ingenuidade política e social… mas eu analisei alguns
planos urbanísticos dos portugueses… e até mesmo as ferramentas de trabalho eram fracas, naquela Ainda há pouco disse-nos que não gostava de discotecas, nem, presumo, da música que lá passam. Isto
altura, os levantamentos topográficos, geológicos, climatológicos, pedológicos, etc., eram insuficien- faz-me perguntar-lhe, que tipo de música é que o José Forjaz ouve em casa.
tes. A urbanística era vista como um exercício geométrico. Hoje, por exemplo, quem faz urbanismo Música de câmara, ou música étnica. São as minhas paixões.
tem obrigação de ter conhecimento dos ecossistemas sobre os quais assenta a cidade e não era o que
se fazia naquela altura… Bom, tinham era uma ordem que não existia quanto a mim nas cidades Se uma casa fosse cenário para um filme, que tipo de diálogos gostaria de ouvir lá dentro: os de Berg-
portuguesas até ao século XVIII, e que foi o contributo dos engenheiros nos séculos XIX e XX, que man, os de Godard, ou os de Woddy Allen?
pontificaram em estradas e grandes avenidas, mas não primavam pela imaginação, isso não. Sem dúvida, os diálogos do Bergman, que acho um tipo assombroso. Mas agora o melhor é
irmos almoçar, não?
Quem vem a Maputo durante pouco tempo não notará mas quem fica durante algum tempo começa
a notar que se mantém uma estrutura social absolutamente estratificada na cidade. Não só se verifica
que coexistem muitos tempos históricos diferentes e estamos a falar das mentalidades das pessoas, como
ARTIGOS E ENSAIOS
CAPELA DO INSTITUTO SUPERIOR MARIA MÃE DE AFRICA – MAPUTO FILIPE BRANQUINHO / IWAN BAAN
Só da revista de arquitectura não consegui, ou não fui capaz, de abstrair ideias ou fundamentar
uma visão com algum sentido que me ajudasse a construir o meu discurso.
Por reconhecer na literatura e na notícia uma profunda coerência e um apelo desesperado à
consciência dos profissionais que trabalham directamente com o ambiente pensei que a minha men-
sagem poderia tomar a forma e o sentido do juramento de Hipócrates ou sugerir uma nova leitura
do código de Hamurabi.
É verdade que desde que o rei Hamurabi da Babilónia escreveu o seu código de leis, há mais
que 4200 anos, ou Hipócrates, o grego, definiu a ética da profissão médica, há mais de 2500 anos,
o mundo assistiu a muitas mudanças e as associações profissionais criaram toda uma rede de defesas
para proteger os seus membros da própria ignorância, da falta de escrúpulos dos seus clientes e da
rapacidade dos advogados.
Mas também é verdade que a nossa profissão e arte são, agora, mais complexas e muito mais
difíceis e, talvez até, mais responsabilizantes do que eram há tantos anos atrás.
São mais complexas e difíceis para nós, hoje, pela acumulação de conhecimentos que devemos
MEDITAÇÕES DE CAPE TOWN adquirir, pela profundidade e alcance da visão que devemos conseguir, pelo peso da história nos nos-
sos ombros e, ainda e também, pela acumulação dos nossos erros, que contribuem para a destruição
252 253 e degeneração do meio ambiente e para a erosão da credibilidade na nossa competência.
Há algumas semanas foi-me pedido, por uma faculdade de arquitectura, da África do Sul, para fazer São mais responsabilizadoras porque, na aldeia global, não podemos escapar ao conhecimento (e
o discurso na cerimónia tradicional de graduação de mais um grupo de jovens arquitectos para o à consciência) do estado do mundo, do drama humano à nossa volta e, acima de tudo, à noção de
exercício da nossa arte e profissão. que não há inversão miraculosa das tendências negativas actuais e de que não há mais ninguém, para
Nesse mesmo dia tinha lido um artigo sobre o aquecimento do globo, na revista Time e, mais além de nós próprios, a culpar pelo desastre global para onde caminhamos.
tarde, acabei de ler uma coleccão extraordinária de ensaios por Ivan Klima, o escritor e filósofo checo, Durante muitos anos, a maior parte de nós, arquitectos, preocupámo-nos e agimos como se os
no qual discute a possibilidade de esperança no nosso mundo. problemas essenciais de projectar um melhor ambiente humano tivessem sido solucionados. Como
Tive ainda tempo para folhear a última edição de uma revista de arquitectura de renome inter- consequência dedicámos a nossa capacidade intelectual à perseguição de modas formais, muitas vezes
nacional. mascaradas com nobres intenções como a da procura de uma identidade regional, glorificámos a
A relação entre estes quatro momentos de uma cadeia normal de acontecimentos diários não é, tecnologia como um fim em si próprio, santificámos uma pseudo economia de meios e justificámos
acredito eu, sem um sentido ou uma lógica. a arbitrariedade como uma forma de criatividade.
A preocupação em como me dirigir aos futuros arquitectos, tornou-me mais consciente da res- Esquecemos, muito depressa, que houve um tempo em que racionalismo não era um estilo.
ponsabilidade que, neste mundo em crise, nós temos e mais preocupado me deixou em como dei- Esquecemo-nos que a grande contribuição do Movimento Moderno não foi, primariamente,
xar-lhes uma mensagem relevante, com significado e expressiva. uma aquisição de ordem estética mas a definição do papel decisivo do arquitecto na sua contribuição
A referência explícita que na revista Time encontrei à necessidade de um planeamento respon- para o melhoramento da qualidade do ambiente construído e em benefício de toda a sociedade.
sável e inteligente, evitando o sobredesenvolvimento e o desordenamento, promovendo meios mais Esquecemo-nos, muito facilmente, que os ideais da nova arquitectura foram forjados no mesmo
racionais de transporte de pessoas e bens, e projectando edifícios que poupem energia e a profunda e momento histórico em que se forjaram os ideais de uma sociedade moderna, democrática, livre e
bem fundada insegurança do filósofo na sua procura de uma razão de esperança deram-me algumas responsável.
pistas para a mensagem que pensei ser adequado transmitir aos estudantes sul-africanos. A profissão de arquitecto, como profissional disponível e necessário a toda a sociedade urbana e
rural e preocupado com o projecto de todas as estruturas físicas de que ela necessita, é recente e ainda ambiental da expansão urbana; a poupança ou o desperdício de água nos nossos edifícios, tudo isto
não reconhecida ou praticada em grande parte do mundo. são aspectos da nossa responsabilidade da qual nos não podemos alhear ou deixar de tomar como
De facto, nós arquitectos, somos, em geral, um luxo que só os ricos podem pagar. preocupações permanentes e, como factores obrigatórios do processo do projecto.
Deveríamos perguntar-nos porquê. Temos, neste sentido, uma grande responsabilidade e o silêncio das nossas escolas nestas matérias
É verdade que, desde que as ideias do movimento moderno foram definidas, o mundo mudou. é ensurdecedor.
Mudou no sentido em que as nossas preocupações mudaram. Uma mudança profunda, como foi A maior parte da literatura especializada em arquitectura e planeamento não mencionam ainda
claramente provado, quando se descobriram “os limites do crescimento” através da visão dos sábios e sistematicamente estes assuntos.
do Clube de Roma há mais de 30 anos atrás. Analisam-se as tecnologias e a economia de produção, quase exclusivamente pela sua perfor-
Nessa altura, em 1972, uma equipa internacional, composta pelos melhores cérebros científicos mance especulativa, pelo seu mérito estrutural ou ainda pela sua aparência estética; excede-se em
do mundo, publicou os resultados das suas investigações sobre o futuro da espécie humana, através teorizações subjectivas e abstractas sobre as intenções do projectista e constrói rapidamente “escolas”
da análise dos cinco factores básicos que determinam e limitam o crescimento da civilização humana de pensamento, para serem consumidas ainda mais aceleradamente e assim se promoverem novos
no planeta: população, produção agrícola, recursos naturais, produção industrial e poluição. “heróis” que tornam a arquitectura numa arte de representação.
O que o relatório do Clube de Roma tornou claro foi que o futuro da humanidade era duvidoso A irresponsabilidade dos críticos é proporcional à irresponsabilidade dos arquitectos, e iguala à
e ameaçador para todos. A previsão foi a de que tanto os países ricos como os pobres e os seus povos, ganância do especulador possibilitada pela inconsciência e ignorância da sociedade em geral.
sofreriam igualmente pela rápida delapidação dos recursos naturais, se a tendência para a sobrexplo- Será dizer isto muito duro, brutal ou exagerado?
ração continuasse. Exagero quando menciono o crescimento exponencial das favelas e bairros da lata como o único
O mundo levou tempo demais a acordar para o perigo da má utilização dos recursos naturais e 254 255 ambiente urbano acessível à maioria da população urbana do mundo?
para a degradação ambiental que se lhe segue. Exagero quando vejo o centro das cidades transformados em selva humana?
Duas importantes conferências internacionais, em Estocolmo e no Rio de Janeiro, trataram des- Exagero quando sei que a lenha e o carvão para cozinhar vêm, agora, para a minha cidade do
ses magnos problemas e conseguiram obter um limitado grau de compromisso, por parte das grandes Maputo de uma distância de mais de 100 km, tendo testemunhado nos últimos anos o corte da
nações, em matéria de políticas de sustentabilidade e de regeneração ambiental. floresta em círculos cada vez mais extensos e quando sabemos que o processo de desertificação vai
Isto foi, como bem sabemos, insuficiente. acelerar mais ainda nos próximos anos?
Os primeiros cataclismos começaram já. Temperaturas anormais em várias partes do mundo, as Exagero quando assisto ao desperdício de água tratada, em autoclismos e na relva dos campos
cheias e os desabamentos, os tremores de terra e a subida do nível médio do mar, a seca dos mares de golf, quando milhões de pessoas não têm um litro de água limpa para beberem ou se lavarem?
interiores e o degelo das calotes polares, o buraco na camada de ozono e o rápido esgotamento da Exagero quando meço os megawats gastos para arrefecer, aquecer, iluminar e ventilar edifícios
diversidade biológica: todos estes fenómenos são agora motivo de preocupação profunda de cada país por nós projectados para alguns dos melhores climas do mundo?
e de cada região do mundo.
Estas deveriam ser também as primeiras e mais tangíveis preocupações de todos os cidadãos de
todas as nações do mundo.
Nós, arquitectos e planificadores trabalhamos e transformamos o ambiente natural a todas as escalas
da nossa actividade, usamos e modificamos, passiva ou activamente, o equilíbrio dos factores naturais.
O modo como organizamos o espaço urbano ou alteramos a paisagem; o uso que damos aos ma-
teriais ou a forma como concebemos o comportamento ambiental e climático dos nossos edifícios; a
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quantidade de energia que usamos para construir e manter os nossos espaços habitáveis iluminados DFDSGFDSFGV
e ventilados; a facilidade de manutenção e a durabilidade das estruturas que desenhamos; o impacto DSFSDFDS
Devo duvidar quando ambos, ricos e pobres, se queixam sobre o gasto diário de tempo, dinheiro, Temos nós sido capazes de assumir o papel que nos cabe na salvaguarda destas dimensões que,
energia e sofrimento para ir e vir de casa para o trabalho, devido ao mau planeamento urbano e à uma vez perdidas, são muito dificilmente recuperáveis?
segregação social? Seremos nós capazes, de conceber o espaço exterior como um elemento de conexão do ambiente
Exagero, finalmente, quando vejo o uso de materiais e tecnologias importados e caros, quando é urbano com o natural, pelo correcto escalonamento e colocação dos nossos edifícios considerando a
possível obter a mesma qualidade e a mesma prestação com a capacidade local? orientação, o clima, a topografia e as suas funções urbanas?
Esta litania podia continuar indefinidamente e focar cada vez mais em detalhe os objectos das Teremos nós sido treinados correcta e suficientemente para isso?
nossas decisões e escolhas diárias. A escala natural e a escala da cidade devem estar em equilíbrio. Um equilíbrio feito de dimensões
Mas somos treinados para considerar outros valores como mais importantes. objectivas que têm a ver com os benefícios físicos e psicológicos do ar puro e do sol, com a produção
Vamos, então, analisar as diferentes escalas do nosso trabalho e da nossa responsabilidade. de oxigénio, com a condução do vento e o seu controle, com os caminhos que a água percorre e com
O que imediatamente vem à mente é uma simples questão: a contenção espacial dentro dos largos horizontes.
• é possível e significativa uma boa arquitectura no contexto do nosso decadente e mal pla- Teremos nós coragem de reconquistar estas dimensões?
neado ambiente urbano? Da paisagem e da cidade ao edifício o escalonamento das nossas preocupações não pode ser uma
• a flor que nasce no pântano será uma imagem adequada e aceitável, ou uma figura de retó- redução da importância ou da responsabilidade das nossas decisões.
rica perigosa apelando a um senso poético escatológico? O habitat humano e as sus estruturas, necessárias à vida económica, social e transcendental, são
Por outras palavras: as nossas preocupações mais primárias e directas.
• não deveríamos nós ser capazes de guiar, intervir e participar no processo de moldar, colocar A ele associamos conceitos de segurança, física e psicológica; nele devemos encontrar conforto
e relacionar a infra-estrutura e as construções, necessárias a uma sociedade saudável e demo- 256 257 e economia emocional; através dele projectamos a nossa importância social e nele encontramos o
crática, no seu ambiente urbano e natural, sem impactos negativos? respeito por nós próprios.
É óbvio que a distribuição do espaço social é um exercício de poder, de prerrogativa política e de São níveis e graus de importância que devemos entender e que devem definir um quadro de
especulação económica; é, também, a demonstração de privilégios sociais, e o arquitecto e o urbanis- referência para o nosso exercício projectual.
ta, não podem, só por meios técnicos, resolver esse problema. Não são, no entanto, todos os parâmetros do projecto.
Podemos, contudo, influenciar o processo político e podemos contribuir para um uso mais in- Há que considerar os constrangimentos económicos, as potencialidades técnicas e o ambiente
teligente do eco-sistema, para uma divisão mais equitativa no usufruto das qualidades espaciais da cultural, uma das dimensões mais criticas nesta equação.
cidade, para uma relação mais criativa entre o homem e a natureza e para um habitat mais saudável, Para nós, deste lado de baixo do mundo, a tarefa de ensinar e de praticar arquitectura e planea-
agora que as nossas sociedades se fundamentam e reconhecem como justa a eliminação da discrimi- mento urbano é, se possível, ainda mais difícil do que os nossos colegas do “Norte”.
nação racial ou cultural. Os nossos estudantes, e os nossos profissionais, são muito dependentes duma literatura profissio-
Mas somos nós capazes de o fazer ou de convencer os nossos líderes políticos a fazê-lo? nal de difícil acesso, quase exclusivamente produzida pelas sociedades tecnologicamente avançadas,
Ou seremos nós os servidores do especulador cujos fins e objectivos são, os do máximo lucro tratando, na maior parte das vezes, de situações de relevância limitada no que diz respeito à dimensão
financeiro dos terrenos adquiridos ao mais baixo preço? real dos nossos problemas sociais.
Será o lucro o único objectivo aceitável e será ele compatível com a boa qualidade do espaço Essas sociedades, do lado de cima do mundo, criaram, ao longo dos séculos, um vasto patrimó-
urbano e da arquitectura? nio construído e estruturas mais que suficientes para as suas necessidades administrativas, produtivas,
A escala da cidade deve formar um contínuo com a escala da paisagem, com a escala do campo, habitacionais e outras.
com a escala do mar, com a escala da pradaria, da floresta e da montanha. São sociedades, com populações estáveis ou em decrescimento e caracterizam-se por uma produ-
Somos nós capazes de fazer a ponte conceptual entre o edifício e essas dimensões? ção excessiva agrícola e industrial.
Somos nós sempre sensíveis à relação ecológica, estética e espiritual entre a natureza e os edifícios? Os seus problemas imediatos não são os de providenciar as estruturas essenciais e básicas para as
suas necessidades sociais e económicas. Os seus problemas sociais e económicos, podem ser resolvidos Estes são valores necessários mas não, necessariamente, suficientes.
por meios políticos e não requerem um ajustamento estrutural de uma realidade física hostil e pobre. Penso, e arrisco dizê-lo, que a maioria dos edifícios projectados hoje não é, em muitos dos parâ-
Para melhor qualificar a diferença entre os nossos dois mundos um dos melhores casos que me metros da sua concepção, pensada nesses termos ou julgados pela sua performance de acordo com
vem à mente é uma nova cabina de imprensa, agora instalada no Lords Cricket Field em Londres e aqueles valores de referência.
que custou “apenas” $ 9.000.000 U.S.!!! A discussão da relação ética entre esses objectivos e a qualidade do nosso projecto é o que eu
Com esse valor poderíamos construir, em Moçambique, todas as escolas primárias, ou todas as tenho tanta dificuldade em encontrar na maioria das revistas de arquitectura.
maternidades rurais de que necessitamos para um distrito de 100.000 pessoas. E no entanto essa Os limites do conforto e os limites económicos no uso dos recursos podem ser medidos e regu-
cabina é apresentada ao mundo dos arquitectos como uma conquista sublime da arquitectura deste lamentados. Foram-no, de facto, nas sociedades mais desenvolvidas, mas foram sistematicamente,
novo século! regulamentados pela definição dos níveis mínimos aceitáveis. O que me parece cada vez mais urgente
Será relevante comparar, tirar conclusões, analisar e criticar este tipo de fenómenos? e necessário é a coragem de os regulamentar, e limitar, pelos níveis máximos aceitáveis, ou pelo que
Estaremos a falar das necessidades da mesma espécie? eu poderia chamar como “os limites morais”, de uso de recursos que, quando excedidos, beneficiam,
Parece-me que temos o direito e a obrigação de julgar e condenar todos os desmandos na utili- exclusivamente, a finíssima camada dos membros mais priviligiados da sociedade.
zacão dos recursos e todos os excessos, desperdício e luxos, não interessa onde, porquê ou por quem. Estou plenamente consciente da enormidade desta proposta, num ambiente histórico onde con-
Desta análise crítica poderemos, se o quisermos, construir e aperfeiçoar um código de valores e sumir e gastar são vistos como um dever moral pelos políticos e pelos mestres e donos da economia
uma racional que nos guie nestes tempos de confusão e arbitrariedade controladora e devastadora deste mundo.
Esse direito vem-nos dado pelas mesmas razões que justificam a eliminação das barreiras comer- É evidente que esta proposta seria a última a ganhar votos em qualquer ambiente político mesmo
ciais entre os países e que provam a continuidade do ambiente natural ou pelas mesmas razões que se 258 259 do lado de baixo do mundo que está a pagar pela riqueza patológica dos irmãos do norte.
devem considerar, como património comum da humanidade, os recursos não-renováveis do planeta. Sei, bem demais, que a ambição do pobre é conseguir o mesmo privilégio discriminatório e a
Não podemos, por um lado, aceitar esses princípios e, por outro, contribuir para o desperdício mesma atitude exibicionista do seu mestre e senhor.
dos recursos insubstituíveis, seja lá por quem e onde se pratique. Vejo crescer, a cada dia que passa, a horda dos destituídos deste mundo para quem mesmo os
Pode isto parecer distante de arquitectura? limites mais baixos das necessidades humanas e de conforto são impensáveis e para lá do sonho.
Eu penso que não é. Sei, perfeitamente, que o monstruoso subdesenvolvimento tem um corolário chamado sobre-
Penso que há, dentro dos limites culturais e níveis de conforto aceitáveis universalmente a pos- -desenvolvimento, e que um não existe sem o outro.
sibilidade de encontrar e de definir o conjunto de parâmetros e de dimensões objectivas, cientifica- Sei que os modelos impostos pela cenoura e pelo pau, pelos media e pela ilusão, pelo sorriso e
mente expressas e tecnologicamente resolvidas, que serva como guia de referência no exercício da pela arma, não podem ser generalizados nem podem ser levados a sério como alcançáveis para e por
arquitectura, do projecto urbano e do planeamento regional. toda a gente, dentro ou fora do sistema que os criou e que, agora, domina o mundo.
Estes parâmetros e estas dimensões têm valores físicos exactos e estão suficientemente estudados
por psicólogos, antropólogos e cientistas do comportamento para poderem ser usados com con-
vicção e para nos dar a autoridade de que necessitamos para qualificar os nossos projectos como
correctos e justos ou julgá-los injustos e errados.
São valores que podem ser expressos em termos físicos de área e de volume, de temperatura ou
de humidade, em candelas ou decibéis, partículas poluentes por milhão de partículas na atmosfera,
radiação electromagnética ou metros cúbicos de ar, litros de água ou kilowats per capita.
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Só a partir deste quadro de referência faremos com que a arquitectura nasça de novo sendo ver- DFDSGFDSFGV
dade que sem estes valores de referência não se materializará uma arquitectura respeitável. DSFSDFDS
A aritmética mais elementar, baseada em estatísticas conhecidas por toda a gente, demonstra a bilidade directa e indirecta da nossa actividade, como arquitectos, na manutenção ou destruição do
falsidade da ilusão. Os pretextos para adiar acções decisivas e parar com o desperdício são transparen- equilíbrio global.
tes na sua falta de bases científicas. São, no entanto, suficientemente fortes para manter no poder ou Estamos a viver um dos momentos mais significativos e ameaçadores da vida humana na terra.
para nele o pôr, o habilidoso manipulador dos votantes, sempre dispostos a escapar à realidade brutal Somos, pela primeira vez na história do homem, conscientes da ameaça que as nossas acções
de um futuro comprometido. podem significar para a nossa sobrevivência no planeta e, ao mesmo tempo, estamos conscientes que
O preço a pagar por todos nós por este cinismo universal parece ser um dos mais bem guardados a interdependência de todos os países e da humanidade é condição indispensável para essa sobrevi-
não-segredos que qualquer pessoa, com um grau mínimo de informação e cultura não consegue vência.
esconder a si próprio. Por outras palavras: a solidariedade entre os homens não é mais imperativo moral, é, essencial-
Preocupa-me que o que disse atrás possa ainda assim parecer muito longe da arquitectura e que mente, uma estratégia indispensável e um mecanismo de sobrevivência.
possam perguntar-me porque trago eu estes assuntos a esta audiência. Ela é, simplesmente, uma questão de inteligência.
Tentarei provar a relevância da discussão. A nossa profissão dá-nos a oportunidade ímpar e a obrigação inescapável de participar directa-
Mencionei, há pouco, a ética como uma estrutura fundamental do pensamento arquitectónico, mente na solução deste drama transcendente.
e exprimi a minha admiração pela ausência generalizada deste valor na literatura especializada mais Poderemos recusar-nos a essa oportunidade e perder-nos em lugares comuns de estilo e modo,
divulgada. de excesso e desperdício, na cópia acrítica do passado ou em jogos de ficção científica desinformados,
Esta ausência revela a falta de profundidade a que chegámos no nosso campo de pensamento. de grotescas teatralidades ou de modas efémeras e comportarmo-nos como membros irresponsáveis
Revela o nosso recuo de uma posição de responsabilidade social para os níveis da tecnocracia, do jogo e infantis da sociedade?
das formas e da facilitação dos lucros. 260 261 Ou deveríamos aproveitar esta oportunidade para criar um mundo novo de espaços e formas,
É tempo de rever esta atitude e trazer para uma posição central no nosso pensamento teórico uma nova cidade e uma nova urbanidade, um novo modo de compreensão da paisagem e da região,
dimensões universais que têm a ver com problemas tão vastos como a energia e os relacionados uma nova relação entre o homem e a natureza e trazer realmente um “espírito novo” à cidade dos
com a condição humana e o habitat, a evolução das cidades e a salvaguarda e regeneração do meio homens?
ambiente. A necessidade de inventar é comum a toda a humanidade e em todas as épocas. Até aos nossos
O que pensamos e projectamos deve ser analisado em relação a todas essas dimensões, positiva dias esta necessidade era apenas uma imposição sentida pelo indivíduo e pela sociedade como uma
ou negativamente. forma de conquistar melhores condições de vida.
A necessidade dessa análise vem de factos cuja ignorância não podemos alegar. Por exemplo: Agora, a invenção é uma condição de sobrevivência.
– a indústria de materiais de construção e a manutenção de edifícios operacionais produz 73% Esta diferença é fundamental.
de todo o dióxido de carbono responsável pelo aquecimento da atmosfera; Como disse Camus, há cinquenta anos: “a era do artista irresponsável acabou”.
– a destruição da camada de ozono é, maioritariamente, devida à libertação, para a atmosfera, de Agora, mais de cinquenta anos passados, há muito menos tempo e espaço para deambulações
cloroflúorcarbono (CFCs), 50% do qual é atribuído à produção de materiais e componentes usados gratuitas do espírito.
na indústria da construção; Vivemos uma era de urgências. Não temos espaço para erros. Não temos tempo para a ignorância.
– as florestas tropicais do mundo estão a ser cortadas a uma média de quase 1% por ano para uso, Mencionei, no início deste manifesto, a necessidade de um código de regras que guie os nossos
em grande parte para as indústrias da construção e de mobiliário; com elas desaparece grande parte recém-graduados, nas suas opções, ao longo da sua vida profissional. Isto parece-me necessário uma
da capacidade do mundo para a absorção de CO2 e para geração de oxigénio; vez que a escola nem sempre define claramente um conjunto claro de opções ou se arrisca a parecer
– o consumo de água potável é duplo da taxa de regeneração dos aquiferos naturais. menos científica ou, de algum modo, dogmática.
Esta listagem das formas de degradação do meio ambiente poderia continuar com a consideração No domínio profissional, no entanto, erros de atitude ou de opção técnica afectam a vida das
de muitos outros factores, mas penso que os números dados são suficientes para provar a responsa- pessoas e podem destruir delicados equilíbrios. Parece-me então, um risco menor propor aos futuros
profissionais, e a todos nós, um “decálogo” provocatório para abrir a discussão dos assuntos aqui
levantados.
Por isso, sem arrogância ou certezas fáceis, reflecti nos seguintes princípios como essenciais para
o exercício responsável da profissão de arquitecto:
1. Não deveremos, sejam quais forem as circunstâncias, projectar, ou participar em qualquer
projecto, de qualquer estrutura física que possa, directa ou indirectamente contribuir para a
quebra do equilíbrio ecológico ou para a destruição das bases naturais de preservação desse
equilíbrio.
2. Não deveremos, sejam quais forem as circunstâncias, considerar o interesse do nosso cliente,
individual ou institucional, acima dos interesses da sociedade em geral, pois que os interesses
colectivos devem estar sempre acima dos interesses pessoais.
3. Os nossos projectos não devem nunca causar, reflectir ou contribuir para qualquer forma de
discriminação ou vilificação do ser humano.
4. Os nossos projectos devem ser concebidos de modo a que se obtenha sempre o máximo rendi-
mento no uso da energia e na poupança dos recursos naturais não renováveis.
5. Os objectivos fundamentais dos nossos projectos são e devem relacionar-se sempre com a
obtenção de condições ambientais ideais para a vida humana tais como a temperatura, a 262
humidade, a luz e o som, a qualidade do ar e, em geral, a eliminação do stress físico e psico-
lógico, da fadiga e da depressão.
6. Os edifícios por nós projectados devem contribuir para o enriquecimento do meio ambiente
natural e humanizado, respeitando ambas essas realidades pela compreensão da sua interde-
pendência e pela consideração das suas diversas escalas.
7. Não podemos usar, ou provocar o uso de meios materiais e de recursos para além do estrita-
mente necessário a que se alcancem qualidades ambientais, espaciais ou estéticas coerentes
com os princípios atrás enunciados.
8. Os edifícios por nós projectados devem ser económicos na sua operação, manutenção e repa-
ração.
9. Os edifícios por nós projectados devem ser concebidos para durar o mais possível e manter ou
aumentar o seu valor original, mesmo que se alter a natureza do seu uso.
10. Os projectos dos nossos edifícios devem reflectir um esforço permanente em acrescentar
à vasta riqueza do património arquitectónico da humanidade; isto só é possível através do
constante aprofundamento da nossa visão e sensibilidade poética e da nossa capacidade de
expressão do drama universal da sobrevivência do homem na natureza e das tensões criadoras
da vida social.
CASA K. ANANN – ACKRA JOSE FORJAZ • ARQUITECTOS
Texto elaborado no quadro de um Projecto de melhoramento tamente de uma situação rural para um bairro urbanizado, melhor organizado espacialmente, com
e reabilitação dos slums em Moçambique, melhores infra-estruturas e mais central.
financiado pelo Habitat – Nações Unidas. • A vontade, a capacidade e a motivação para melhorar a qualidade de vida e de habitação nos
slums são altas e fáceis de mobilizar se houver um programa de acção sólido e que os residentes sintam
Março de 2005 como realístico e plausível.
• A ordem de prioridades de qualquer contributo ou apoio ao slum deve ser sempre estabe-
lecida com os residentes da área considerada e nunca a priori, mesmo que algumas intervenções
pareçam mais básicas e indispensáveis aos planificadores. O próprio processo de envolver os re-
sidentes nessa definição é um passo estratégico que dará aos residentes a noção de “propriedade”
do projecto.
• O desenvolvimento de um programa, com os seus projectos sectoriais, deverá contar sempre
com os residentes como a maior reserva de mão-de-obra e de recursos humanos para a sua imple-
mentação; desta maneira uma das principais condições do sucesso de qualquer intervenção está
garantida: o emprego, mesmo que numa base temporária.
UMA ESTRATÉGIA PARA O MELHORAMENTO • Uma definição clara dos direitos de uso e ocupação da terra é uma condição essencial para
E A REABILITAÇÃO DOS SLUMS EM MOÇAMBIQUE que se obtenha uma participação activa e incondicional dos residentes, em qualquer intervenção de
264 265 reabilitação de slums.
• Os direitos de uso e ocupação devem ser estabelecidos, registados em cadastro, certificados e
Uma estratégia para o melhoramento e a reabilitação dos slums é uma questão difícil de estabelecer assegurados a todos e a cada família residente.
e de resolver. • Todas as áreas ou parcelas de terra devem ficar com um estatuto claro de condição de uso
A condição de slum é a consequência de dimensões regionais, nacionais e globais do subdesen- e aproveitamento no fim de um exercício de reabilitação de slums.
volvimento de certas regiões, de nações e de cidades, com raízes num complexo de causas sociais, • Tal como para a zona planificada da cidade, os projectos de slums devem considerar sempre
económicas, culturais e políticas e em circunstâncias que não se podem compreender e resolver senão todas as famílias residentes ou indivíduos, e os seus domínios e direitos espaciais, qualquer que seja a
juntando e integrando esforços em todas essas frentes. extensão ou a dificuldade do processo. A experiência prova que, onde os residentes estão envolvidos
Algumas dimensões básicas do problema dos slums devem ser compreendidas antes de se estabe- no processo de reabilitação desde a sua concepção, a definição de prioridades e estratégias de im-
lecerem quaisquer estratégias e de as implementar. Consideramos como indispensáveis os seguintes plementação, tarefas que poderiam parecer quase impossíveis sem a sua cooperação revelam-se, não
princípios que devem guiar as acções de qualquer programa de reabilitação ou melhoramento dos apenas possíveis, mas facilmente cumpridas.
slums: Os princípios enunciados foram estabelecidos através de uma prática que considera os beneficiá-
• Slum é, na maioria dos casos, a consequência de um processo longo e complexo de ajustamento rios de qualquer acção de reabilitação, como os primeiros responsáveis pelo seu próprio futuro e pelas
das famílias e dos indivíduos a condições adversas, em que os seus interesses, muitas vezes opostos, consequências das suas próprias atitudes e escolhas. Esta é uma condição sine qua non para o sucesso
encontraram uma forma de coexistência num equilíbrio precário mas, apesar de tudo, reconhecido de qualquer programa ou projecto.
por todos;
• A longa aprendizagem de vida num ambiente urbano é, na maioria dos casos, melhor apreen- Limites correntes e reconhecidos das operações de reabilitação dos slums.
dida por aqueles que se instalam nos chamados slums, com uma mais profunda compreensão dos Dentro dos limites económicos, técnicos, administrativos e do contexto cultural das intervenções
hábitos de civilidade e dos códigos de comportamento, do que por aqueles que se transferem direc- de planeamento e renovação urbana, em qualquer cidade de Moçambique, devemos estabelecer uma
ordem geral de prioridades que possa servir como guia para a construção de um cenário com sucesso e muito difícil de erradicar. A descentralização das decisões e do controlo para estruturas de bairro
para essas intervenções. encontra os mesmos problemas e representa um encargo suplementar para as finanças municipais.
No âmbito técnico a situação não é melhor. De facto, a disponibilidade de capacidade técnica é
Limites e retornos financeiros reduzida, sem muita experiência, mal remunerada e forçada a trabalho extra. Na maioria dos casos,
Os limites financeiros de qualquer projecto devem ser estabelecidos em função dos objectivos a em qualquer dos serviços, não há um só técnico com formação em qualquer dos ramos da enge-
alcançar. Por outras palavras, os limites financeiros são relativos ao âmbito e às dimensões das opera- nharia ou do planeamento urbano. As condições de trabalho, onde existem serviços técnicos, são
ções a desenvolver. Neste sentido temos apenas duas práticas: normalmente inadequadas e insuficientes. Os materiais de arquivo, registos cadastrais, cartografia,
• Pré-definir um limite aos recursos financeiros a serem empregues para um objectivo específico levantamentos topográficos, fotos aéreas e suas restituições, documentação sobre infra-estruturas e
e, depois, estabelecer os limites físicos ou sociais do projecto; mapas, etc., são, em regra, inexistentes, desactualizados ou de muito baixa qualidade. Os registos
• Estabelecer os objectivos e os limites da intervenção e, depois, quantificar os recursos financei- e levantamentos demográficos são também muito gerais para que possam servir de base fiável e não
ros comensuráveis com os resultados pretendidos. há, normalmente, informações de carácter socioeconómico.
No primeiro caso, os agentes financeiros devem esperar pelo desenvolvimento do projecto para
conhecerem o que foi, efectivamente, alcançado com os recursos financeiros atribuídos. No segundo Ordem social
caso, esses agentes devem aceitar a definição dos objectivos e a extensão, para quantificar os recursos Dentro das condições descritas, é admirável o sentido de ordem e de coexistência pacífica que
financeiros a atribuir. a maioria dos cidadãos goza e pratica face a uma inexistência de instrumentos formais de controlo
A reabilitação e o melhoramento de slums é um exercício caro, mas altamente rentável pois pro- social e de informação.
duz poderosos resultados económicos e sociais desde o início do seu desenvolvimento. Esses resulta- 266 267 Este aspecto deve ser compreendido à luz das fortíssimas estruturas sociais tradicionais onde os
dos podem e devem ser medidos pelo seu impacto social e económico, nas comunidades afectadas laços familiares e as relações hierárquicas mantêm a sua relevância social. A autoridade “informal”,
pelo investimento, assim como pelo aumento da capacidade da cidade em adquirir um conhecimen- que essas tradições corporizam, é aceite como uma forma indispensável à integração social do indi-
to mais profundo dos seus próprios problemas e também pelo acréscimo da sua capacidade, técnica e víduo. Este é um aspecto fundamental a considerar na concepção e no desenho de qualquer inter-
administrativa, para os resolver. Não menos importância têm ainda os benefícios ambientais obtidos venção que possa alterar a forma física. É importante ter em mente que as relações de ordem social,
pelo melhoramento das condições de vida nas áreas melhoradas, assim como na cidade em geral. económica, cultural, etc., podem ser negativamente afectadas mesmo que, à primeira vista, possa
A experiência adquirida em operações desta natureza não é directamente reutilizável pois não há parecer que essas intervenções só podem trazer vantagens para os cidadãos.
dois slums com os mesmos limites administrativos e técnicos. As pessoas sujeitas a operações de transferência do seu local de residência têm um sentido muito
Os 33 municípios recentemente criados em Moçambique têm severas limitações na sua capaci- forte das possíveis consequências dessas mudanças na sua vida quotidiana e resistirão a elas até que
dade administrativa e técnica para intervir no âmbito do melhoramento das condições de vida nos estejam positivamente convencidas dos seus benefícios imediatos e a longo prazo.
slums que são parte, em todos os casos, da sua periferia.
No contexto administrativo há, em geral, uma atitude muito passiva, altamente burocrática e
rígida, sem grande capacidade para criar ou aceitar novas atitudes e formas de resolver problemas. As
formas de arquivação de dados e documentação são manifestamente ineficientes, não há capacidade
de transporte ou para detectar e resolver problemas in loco e a motivação é, em geral, baixa.
Adicionalmente, a maioria dos departamentos não tem pessoal formado e suficiente, com boas
condições de trabalho, salários aceitáveis e direcção técnica. Os trabalhadores do município são pa-
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gos como funcionários públicos e não têm quaisquer outras facilidades ou prerrogativas. A tentação DFDSGFDSFGV
para vender favores e prioridade de acesso aos mecanismos de decisão é comum e prática corrente DSFSDFDS
O ambiente do planeamento certeza qualquer interesse em tornar a sua vida ainda mais difícil, obrigando-a a mudar-se à força
Planificar mudanças positivas nas condições de vida de um grupo humano, espontaneamente para conseguir uma qualquer ordem geométrica, de eficiência e justificação muito discutíveis.
organizado nos chamados slums, não pode ser um exercício experimental ou um projecto piloto, A imposição de um sistema de ruas rectilíneas, em grelha ortogonal, com o terreno subdividido
onde os residentes sejam tomados como cobaias a ser usadas para provar uma teoria ou preencher um em talhões rectangulares regulares, como a única solução para um tecido urbano estruturado é, na
objectivo projectado por uma consultoria de natureza mais ou menos tecnocrática. maioria dos casos de slums consolidados, uma violência que não deve sequer ser considerada pois
A reabilitação ou melhoramento de um slum exige a presença permanente da equipa de planea- implica um sofrimento enorme, um custo excessivo e a alienação dos residentes em termos das suas
mento e uma relação cuidadosamente construída com os residentes, o que é a base para a confiança relações pacíficas com as autoridades.
mútua. O ambiente do planeamento acima proposto deve ser um tema central para discussão num
A eliminação dos slums exige, portanto, uma estrutura operativa capaz de desenvolver um conhe- fórum dedicado aos problemas do melhoramento e reabilitação dos slums. Não é possível construir
cimento profundo do campo de operações, incluindo não só as características físicas da área, mas a uma atitude e política nacional para o objectivo das “cidades sem slums” sem a definição de uma
sua composição social, a dinâmica interna do grupo e a estrutura de autoridade real. Os elementos posição geral e comummente aceite em relação a este problema.
perturbadores da estabilidade que possam afectar os residentes e a história da formação da forma As implicações de uma filosofia de operações tal como acima construída, são as de que os mu-
urbana e do sistema de valores com significado especial para o grupo social são outras dimensões nicípios devem adquirir a capacidade técnica para organizar e administrar, e serem providos com os
essenciais a estudar e equacionar. meios e recursos necessários para o planeamento das operações de reabilitação e de melhoramento
Para lá do que ficou dito, exige-se ainda uma compreensão perfeita da importância das relações dos seus slums, pois que tais programas não podem ser cumpridos a partir de projectos no papel.
com os outros bairros, a sua correcta inserção na rede de infra-estruturas urbanas e as suas necessida- Moçambique, contudo, é um país com um muito limitado número de planificadores formados, a
des em termos de serviços e equipamentos sociais. 268 269 maior parte deles estabelecidos em Maputo e com maiores expectativas do que pode assegurar um
Será então fácil reconhecer que a melhoria dos slums não pode ser reduzida a um exercício de salário de funcionário.
projecto onde os diversos parâmetros se combinem numa equação, de uma forma mais ou menos Há, contudo, um número suficiente de jovens dispostos e disponíveis, apenas graduados e em
racional, para ser aplicada como “solução” ou remédio, pois que o tecido doente da cidade é feito processo de graduação, para assegurar capacidade suficiente para todos os possíveis programas de rea-
de pessoas. Não há fórmulas de aplicação geral ao problema geral da erradicação dos slums. A chave bilitação e melhoramento de slums nas cidades principais do país, se lhe forem garantidas condições
essencial do sucesso nestes trabalhos é a participação, e a participação não se obtém pela interpreta- minimamente aceitáveis de trabalho. A nossa experiência neste campo é muito positiva e podemos
ção de documentos técnicos. Tem que ser conseguida e materializada no campo, com os residentes e confiar em que com uma fracção menor do custo de importação desses projectos e especialistas, po-
numa base de contacto e relação permanente. demos atender, internamente, às necessidades técnicas que permitam montar um programa sólido e
Qualquer tentativa de redução dos exercícios de melhoramento dos slums a uma série programá- consistente de melhoramento e reabilitação dos slums.
vel de operações, quantificáveis em termos de custo e tempo, está destinada ao insucesso ou poderá Uma outra condição é essencial para o sucesso desse programa, que depende de técnicos com
resultar numa forma de violência sobre os direitos e as aspirações dos que deveriam ser os beneficiá- experiência muito limitada, é que estes possam contar com um apoio técnico constante que lhes dê
rios dessas operações. confiança e um controlo permanente, pois na maioria dos casos, eles estarão a trabalhar num grande
O melhoramento de uma área urbana, em estudo e consideração, afasta-se do princípio de que isolamento e com muitas dificuldades de acesso a informação técnica. Por outro lado, a troca de
o melhoramento e a reabilitação de um slum implica necessariamente a remoção da maioria das experiências e a aprendizagem com os sucessos e os erros dos outros indica também a necessidade
famílias do seu local de residência, o que seria, para começar, contra a lei moçambicana e contra a de um apoio que funcione como local de concentração e disseminação de experiências e de constru-
ideologia política do governo. ção de uma memória colectiva sobre esta matéria.
A premissa básica é a de que os residentes, provavelmente na sua grande maioria, adquiriram A criação de uma unidade central de apoio formada por técnicos experientes, altamente móvel,
direitos de “ocupação de boa-fé” do talhão em que residem, se nele estão instalados há mais de 10 com acesso a capacidade técnica especializada sempre que necessário, é um complemento indispen-
anos. Contudo, mesmo que uma família resida no seu talhão há menos de 10 anos, não haverá com sável à distribuição de capacidade técnica pelos municípios.
Como utilizar os recursos disponíveis para o melhoramento e reabilitação dos slums Qual a ordem de prioridades dos problemas, a atender primeiro? Onde começar? Em que cida-
Os slums são zonas urbanas que não oferecem aos seus residentes condições de vida minima- de? Em qual slum? Esta é uma série de questões muito difícil de responder e que requer decisões de
mente aceitáveis. Essas condições são de diferente natureza e devem ser estudadas e resolvidas com natureza política que devem ser traduzidas em documentos de orientação.
estratégias diversas. Os aspectos mais evidentes que requerem atenção e medidas correctivas são: Contudo, antes de se poder avançar, e com vista a enformar a decisão política, é necessário definir
• A ocupação de lugares inadequados onde o risco de inundações e enxurradas ou outras formas uma estratégia de base para a quantificação dos meios financeiros, técnicos e logísticos necessários
de erosão podem acarretar até à perda de vidas; à intervenção. Quais são os parâmetros essenciais a considerar para a elaboração dessa estratégia?
• Uma localização inadequada em relação à estrutura urbana da cidade, ao sistema de ruas e Tomando as indicações que nos vêm da situação atrás descrita, os seguintes aspectos deveriam ser
estradas ou à topografia do terreno; considerados como uma base sólida sobre a qual construir uma estratégia:
• A falta dos serviços básicos – água, saneamento, colecta de lixo, energia e comunicações; • A necessidade de um conhecimento íntimo da situação de cada slum no que diz respeito a todos
• Uma densidade humana exagerada; os aspectos acima indicados e a quaisquer outros, específicos de cada caso;
• A muito baixa qualidade de construção, quer nas habitações, quer nas outras construções; • A necessidade de serem considerados os direitos de todos os residentes como a primeira rea-
• A inexistência de uma rede viária adequada; lidade sobre a qual basear a intervenção: isto quer dizer que, mesmo num caso em que haja uma
• A inexistência de iluminação pública; necessidade imperiosa de transferir as famílias, cada família deve ter direito a uma compensação
• A inexistência de um sistema de identificação pessoal, tal como os nomes das ruas e os números proporcional ao valor da sua presente ocupação e situação;
nas casas; • A necessidade de se estabelecer um sistema de dados e de registo de cada caso e de cada ocupa-
• A inexistência de espaços públicos organizados; ção familiar, devidamente reconhecida e testemunhada pelos vizinhos;
• A insuficiente dotação em termos de equipamentos sociais, tais como, escolas, serviços médi- 270 271 • A necessidade de se conhecer o número de moradores, a sua ou as suas fontes de rendimento,
cos, mercados, comércio organizado, administração pública, polícia, equipamentos de lazer, edifícios etc.;
religiosos adequados e dignificados, equipamentos desportivos e culturais, bancos, etc.. • A inserção do slum na estrutura urbana e a sua ligação com o sistema viário, redes de infra-es-
Algumas outras características dos slums, em Moçambique, são menos tangíveis mas, nem por trutura, serviços, etc.;
isso, menos significativas para a vida dos residentes: • A topografia, hidrologia, geologia, ecologia, microclima e todos os parâmetros e dimensões do
• A falta de segurança em relação à ocupação do talhão; local;
• A ignorância relativamente aos direitos legais e aos mecanismos a usar e recorrer para a defesa • O potencial do município para fornecer os dados e as informações necessárias e para assistir ou
dos direitos próprios; levar a cabo o programa de intervenção;
• A falta de acesso ao crédito; • As possíveis alternativas para a transferência de todos, ou parte, dos residentes, caso tal seja
• A distância (psicológica e física) relativamente às autoridades municipais; necessário;
• A ausência de um espírito comunal e de motivação para iniciativas associativas;
• A falta de controlo de actividades criminosas e ilegais.
Naturalmente que nem todas estas condições existem em todos os slums e com o mesmo grau de
importância ou incidência, mas estes são problemas que devem ser considerados ao conceber-se uma
estratégia de intervenção para a reabilitação ou melhoramento dos slums.
Poderemos agora considerar a possibilidade de que, através de uma das agências de cooperação
bi ou multilaterais possa haver fundos disponíveis para intervir decisivamente no melhoramento ou
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reabilitação dos slums das cidades de Moçambique. DFDSGFDSFGV
O que fazer? DSFSDFDS
• A existência de organizações comunitárias ou sociais a envolver em todo o processo e nos con- sua realidade administrativa, ou sem o envolvimento da comunidade local e dos órgãos municipais,
tactos com as famílias; é perder a melhor oportunidade para formar as pessoas e construir a instituição.
• A estrutura da autoridade municipal no bairro. Arriscaríamos, agora, a definição de uma primeira prioridade: a criação e a institucionalização da
É fácil reconhecer que muita da informação e, em certos casos, quase toda a informação ne- competência interna para o planeamento e para conduzir, monitorar e realizar a aplicação dos ins-
cessária, ou não existe ou é impossível de obter com os meios técnicos e logísticos disponíveis nos trumentos de planeamento, em cada município. Para materializar este primeiro passo, ou prioridade,
municípios. Não só falta a informação, mas os próprios municípios não têm a capacidade necessária são necessários três recursos:
para dirigir e controlar as operações de inquérito, registo e criação de bancos de dados e sistematizar • Capacidade técnica e administrativa dentro do município;
o seu arquivo, consulta e actualização e, finalmente, fazer uso dessa informação. • Condições logísticas e materiais para o trabalho dos técnicos e para os serviços encarregados do
Esta situação é verdadeira, em graus diversos de gravidade, para todos os municípios do país, planeamento;
incluindo para a capital e todas as capitais provinciais. As operações referidas acima são uma con- • Apoio técnico e legal.
dição para a viabilidade de qualquer intervenção nos slums ou, pelas mesmas razões, para qualquer É este mecanismo, até agora praticamente ausente em todas as administrações municipais, que
intervenção na cidade. Não poderemos esperar por administrações municipais perfeitamente ope- deve tornar possível a organização e a operação do processo de participação.
rativas e equipadas com corpos técnicos experientes e competentes, para começar ou para manter Já vimos que no país podemos encontrar profissionais formados, em número suficiente, capazes
em funcionamento os programas de melhoramento ou reabilitação dos slums tão urgentemente e disponíveis para assumir as responsabilidades definidas nos termos de referência, aqui esquema-
necessários para as cidades de Moçambique. Mas devemos usar a oportunidade que se abre, para o tizados, para o seu trabalho. Os exemplos existentes provam a sua capacidade para se adaptarem a
lançamento e desenvolvimento de um programa de melhoramento dos slums, para construir a ca- condições muito difíceis de trabalho, produzindo resultados muito relevantes com um mínimo de
pacidade, adquirir a experiência necessária e criar as estruturas municipais administrativas e técni- 272 273 apoio técnico.
cas para o funcionamento correcto das nossas cidades. tornar os municípios capazes de identificar Esta é uma situação nova no país e o resultado de 28 anos de esforço, iniciados em 1977, com a
e quantificar o problema e dotá-los com os meios cartográficos e os dados técnicos indispensáveis formação de “agentes elementares de planeamento físico”, que culminou em 1991, com a graduação
a qualquer exercício de reabilitação ou reassentamento e com os meios necessários e suficientes dos primeiros alunos da Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico da (FAPF) Universidade
para o arquivo e consulta dos Eduardo Mondlane. A FAPF graduou, entretanto, mais de 250 arquitectos-planificadores físicos. A
Isto quer dizer que, assumindo que se materializem os recursos para um programa de “cidades maioria desses graduados manteve-se no país e, com uma produção de 15 a 30 graduados por ano,
sem slums”, o primeiro passo deve ser o de criar os mecanismos necessários para dados recolhidos. não é difícil encontrar elementos disponíveis para assumir estas tarefas.
O primeiro e o mais comum obstáculo ao projecto de uma intervenção viável e realística, em Onde as maiores dificuldades se manifestam e onde as contribuições exteriores podem fazer a
qualquer das nossas cidades, é, de facto, a falta das informações mais básicas e essenciais em forma diferença é na criação de condições de trabalho, tanto logísticas como financeiras, para pagar a esses
utilizável. Embora tenha havido uma série de exercícios de planeamento, desde os “planos de estru- técnicos, adquirir o equipamento e assegurar as condições de trabalho para os seus exercícios de pla-
tura”, aos “planos de desenvolvimento municipal”, aos “planos parciais ou planos de pormenor”, neamento. A presença desses técnicos na administração municipal não garante, por si só, a solução
encomendados e pagos a consultores de todas as partes do mundo, de dentro ou de fora do país, dos problemas de planeamento pois que eles deverão fazer face a um grande número de situações
que ocupam muito espaço em prateleiras e gavetas da administração pública, estes para pouco ser- que necessitam de apoio técnico externo, até agora impossível de fornecer, numa base permanente,
vem pois nem na sua elaboração nem para a sua impossível implementação se criou ou se envolveu a todas as administrações municipais.
qualquer grau de capacidade local. Estas considerações trazem-nos de volta ao primeiro elemento Esta situação requer que se estabeleça, como uma nova prioridade, a criação de um mecanismo
indispensável a qualquer estratégia de planeamento – a participação. de apoio de âmbito nacional para responder às necessidades dos serviços técnicos dos diferentes
A participação é uma forma de trabalho indispensável não só na procura de soluções para os municípios, resolver casos específicos de natureza técnica e funcionar como um mecanismo de cru-
problemas urbanos mas como um elemento indispensável à formação e treino dos órgãos operativos zamento de experiências e informações e, ainda, para contratar a capacidade especializada para a
do município (administrativos e técnicos). Preparar um plano, longe do seu contexto humano e da solução de problemas sui generis.
A natureza deste mecanismo, tal como a sua inserção no sistema municipal nacional, não é O problema de definir e quantificar uma contribuição decisiva para o melhoramento e reabili-
simples de definir e de quantificar. Contudo, é claro que deve ser fazer apelo aos técnicos mais expe- tação dos slums em Moçambique não pode, nos limites deste trabalho, ser resolvido ou mesmo defi-
rientes do país no sentido de trabalharem como consultores, na definição dos programas, estratégias nitivamente estabelecido. É nossa convicção, contudo, que sem os mecanismos propostos aqui nem
técnicas e soluções para cada problema que não possa ser resolvido localmente. Idealmente, deveria mesmo essa definição e essa quantificação serão possíveis ou válidas pois a aplicação de recursos, sem
ser um organismo independente, capaz de construir uma base filosófica para as grandes linhas de a correspondente capacidade para a sua administração, só pode levar ao desperdício e à frustração e
orientação do planeamento a serem propostas a todos e a cada município do país. Deveria, muito atrasar soluções estruturadas para, essa muito urgente, ordem dos nossos problemas urbanos.
provavelmente, ficar dependente de uma Associação de Municípios que lhe forneceria uma visão em Se a participação é a palavra-chave para o sucesso da melhoria dos slums e o planeamento é uma
profundidade e extensão, das dificuldades do planeamento urbano no país, e uma plataforma de dis- condição indispensável para a correcta utilização dos recursos, então o estabelecimento da capaci-
cussão das políticas produzidas como o resultado da experiência comum, que este órgão integraria. dade de planeamento é a condição indispensável para o sucesso da participação orientada para a
É nossa convicção que sem este mecanismo de suporte, a aquisição de experiência, em todas as utilização mais efectiva dos recursos disponíveis.
diversas situações e casos, não poderá ser suficientemente amadurecida nem transformar-se num Finalmente, gostaríamos de isolar um aspecto particular do impacto das operações de reabilitação
conjunto utilizável de regras e orientações para a actividade de planeamento urbano e, em especial, e melhoramento dos slums e que tem um valor fundamental para a sustentabilidade das intervenções.
para os programas de reabilitação e melhoramento dos slums no país. A aplicação de fundos e recursos externos no ambiente do slum pode e deve ser um momento privile-
A criação de um órgão de consultoria desta natureza necessita de recursos suficientes para os giado para providenciar emprego aos residentes, que poderão aprender novos ofícios e capacidades e
honorários, para o estabelecimento de condições mínimas de trabalho e para a sua própria adminis- desenvolver iniciativas económicas, contribuindo para um sentido positivo de mudança, sem o qual,
tração e um staff administrativo e técnico permanente. A logística desta componente, dentro da es- as causas para a situação de degradação subsistirão.
tratégia global, assume alguma importância dado que se deve prever uma grande incidência de trans- 274 275 A reabilitação de um slum deveria levar à criação de empregos permanentes, uma vez que a noção
portes e uma importância substancial de consultoria especializada. Deverão ser-lhe disponibilizados de serviços e benefícios comuns seja inserida nos valores comunitários, que deveriam, esses, ser uma
meios informáticos sofisticados e um sistema avançado de arquivação e distribuição de informação. das principais consequências de qualquer intervenção de melhoria urbana.
Este órgão deveria também assumir como tarefa sua, a preparação para publicação e dissemi-
nação da informação, como um veículo para os contactos entre os municípios e com organizações
internacionais congéneres. Finalmente, deveria ainda assumir a responsabilidade pela organização
periódica de encontros de natureza técnica onde as experiências e os avanços do planeamento no país
fossem discutidos e objecto de reflexão e análise crítica.
A descrição da natureza deste mecanismo de suporte deixa claro que não se propõe a duplicação
de qualquer estrutura governamental existente ou que se assumam quaisquer das suas funções. Essa
descrição pretende também clarificar a noção de que deveria ser um órgão administrativamente
muito “leve”, cuja utilidade dependeria exclusivamente da sua eficiência e capacidade de resposta.
Conclusão
Concentrámos as nossas observações e as nossas propostas nos mecanismos operacionais do pla-
neamento para um melhor ambiente urbano em Moçambique.
Após muitos anos de actividade de planeamento e de construção de instituições, este é o factor
FSDFSD
que consideramos decisivo para o sucesso na aplicação dos recursos, sempre escassos, para a solução DFDSGFDSFGV
do problema. DSFSDFDS
CONVENTO PARA IRMÃS CLARISSAS – NAMAACHA FILIPE BRANQUINHO
Kyoto, Iwami-Ginzan, Sassayama e Tokyo Na história moderna o homem interiorizou que há uma outra dimensão da paz a considerar, se
a sobrevivência da espécie deve ser assegurada: a da paz com a natureza.
6 a 13 de Novembro de 2010 Todos os conceitos de paz têm a sua importância relativa mas há uma hierarquia de valores a
considerar e um nexus entre aqueles aspectos, a estabelecer que pode ajudar ao nosso debate acerca
da paz e dos significados de espaço relacionados com aqueles conceitos.
O progresso da humanidade, desde o pequeno grupo de humanoides à situação actual de
consenso sobre a necessidade de trabalharmos em conjunto como espécie que deve ser con-
servada e reproduzida como colónia animal única neste frágil planeta, não produziu ainda os
mecanismos correctos nem as regras de interacção que levem o homem à paz dentro da espécie
e com a natureza.
Podemos encara este problema de muitas e diversas maneiras mesmo até da supostamente bem
definida perspectiva das dimensões do espaço.
O espaço é um, se não o maior, dos ingredientes do debate, da violência e da guerra.
O espaço é uma categoria política.
O TEMA DA PAZ: A RELAÇÃO DA PAZ Desde o inicio da história lebensraum, ou o espaço vital, exprimiu o território necessário à satis-
COM O ESPAÇO E DO ESPAÇO COM LUGAR fação da necessidades de alimento e abrigo do grupo humano.
278 279 A necessidade de defesa e de expansão foi-se tronando mais premente com o crescimento do
grupo e tornou-se a motivação para a violência e a guerra entre os homens e entre os homens e os
Será a paz dependente da qualidade do espaço? ou , talvez, será a paz dependente da quantidade do animais.
espaço? A invenção da agricultura e a sedentarização da humanidade promoveram a industria e a acu-
Este é um tema que envolve dois conceitos cheios de significado e que podem ser manipulados, mulação da riqueza.
desviados e usados de muitas maneiras, nem sempre da forma mais honesta e construtiva. Sobreviver deixou de ser a razão mais forte para as lutas entre os homens.
Quando consideramos a ideia de paz penso que deveríamos clarificar em que sentido a conside- O poder tornou-se a força abstracta motivadora do impulso original da sobrevivência do mais
ramos. forte.
Podemos ter paz de espírito, que é um derivado da consciência em paz ou de estar em paz con- O estatuto social reflectiu e promoveu o privilégio e definiu e caracterizou o espaço como o lugar.
sigo próprio, podemos estar em paz com a mulher ou com a família, podemos estar em paz com os Espaço e lugar definem status.
vizinhos, podemos estar em paz nação e podemos ter paz entre as nações. As três dimensões físicas caracterizadoras do espaço não têm significado ou valor sem a definição
A falta de paz indica um desequilíbrio entre necessidades e as suas satisfações. Podem ser necessi- do local em termos de latitude e longitude, posição na aldeia ou na cidade, no oásis ou na ilha, no
dades materiais ou emocionais; podem ser necessidades intelectuais ou sociais. vale ou na montanha, no palácio ou na cabana, a pé ou ou a cavalo, na ponte de comando ou no
As necessidades sociais satisfazem-se pela comunicação, protocolo ou hábitos e seguindo regras porão do navio, no átrio ou no sanctum santorum, na cozinha ou na sala.
de comportamento escritas ou assumidas dentro de cada cultura especifica. O planeamento físico à escala regional e urbana é um exercício eminentemente político e ideo-
O âmbito das necessidades materiais é vasto. lógico.
Pode a abranger a frustração do rico que não consegue o ano certo do seu champanhe ou a marca O projecto arquitectónico reflecte a organização social e o grau de integração ou segregação do
correcta do seu beluga caviar ou pode ser a manifestação da carência da mais ínfima quantidade de estrato social que serve.
alimento para sustentar a vida, no caso do pobre. Diferentes culturas e idades sentem o espaço de maneiras diferentes.
O espaço da meditação perturba e até atemoriza um jovem que busca excitação tanto quanto a efeitos que a sábia manipulação da luz, da sombra e dos materiais vivos podem trazer ao equilíbrio
discoteca perturba a paz de espírito de uma pessoa madura em busca de calma. emocional dos que os vivem.
Os espaços religiosos são, quase por definição, espaços de paz. Devemos reflectir sobre estas razões e entender porquê, tantas vezes e em tantas situações, inteiros
Será que esses espaços trazem sempre calma e repouso espiritual ou podem também, muitas ambientes construídos atingiram tal equilíbrio e paz.
vezes, ser o local da tenção emocional da agitação intelectual? Devemos rejeitar a fealdade que parece tão inevitável à nossa volta e nas nossas cidades quando,
Podemos nós acreditar que há lugares ( espaços carregados de significado) que, inevitável e con- com muito menos meios, os nossos antepassados puderam construir ambientes de paz e beleza com
sistentemente nos trazem um estado de paz quer como indivíduos quer como grupo? uma perfeita inserção no seu contexto natural.
Como arquitecto sei que o espaço pode produzir emoção. Sei que as emoções são condicionadas Devemos ser capazes de reencontrar a certeza de que a cidade deve ser um organismo coerente,
pela cultura. feito de estruturas compatíveis e integradas, completando-se mutuamente sem necessidade de cha-
Será que podemos encontrar e criar o espaço intercultural e o local universal da paz? mar a atenção para si próprias como se numa peça de teatro pudessem representar só prima donas.
Será que poderemos encontrar o epicentro da serenidade e tranquilidade definido pelas sua di- Devemos ter a coragem de produzir as nossas mais utilitárias, humildes e funcionais estruturas
mensões físicas? tão belas, tão dignificadas e respeitadoras do ambiente quanto as catedrais ou os monumentos que
As maravilhas naturais têm efeitos bem definidos sobre quem as experienciam. adornam as nossas cidades.
Os grandes momentos da natureza, o nascer do sol e a lua cheia saindo do mar têm o poder de Devemos tratar a cabana como o palácio e dar ao palácio a mesma dignidade que reconhecemos
criar estados de paz de espírito na maioria dos espectadores. na cabana.
As sombras profundas da floresta ou a fúria do mar contra as rochas são momentos e espaços Devemos trazer de volta a escala humana à cidade.
sentidos como forças sobrehumanas que ao homem a verdadeira dimensão da sua pequenez e, como 280 281 O estado actual do habitat humano, cada dia mais homogéneo na sua desumanização, leva a
tal, têm o poder de pôr em perspectiva a mesquinhez dos pequenos problemas e sentimentos de um progresso insustentável de limites alargados de tolerância pelos mecanismos de destruição das
todos os dias. relações naturais entre o homem e a natureza e entre os homens.
As ferramentas dos arquitectos são pequenas demais para emular tais dimensões e tais momentos. O crescimento sem planeamento das cidades acontece a um ritmo imparável empurrando, cada
Contudo devemos tentar. ano, milhões de famílias para condições inaceitáveis de falta de dignidade de vida.
Nós arquitectos que acreditamos que arquitectura é mais que construção, somos constantemente Essas condições vão continuar a promover descontentamento e reacção e a criar óptimas condi-
desafiados a atingir tal grandeza mas as solicitações de todos os dias para dar resposta às necessidades ções para a violência e a falta de paz.
práticas da sociedade multiforme levam-nos, facilmente, a esquecer que o espaço de paz pode e deve O ambiente urbana em que vive a maior parte da humanidade nos dias de hoje não será salvo por
ser o espaço de todos os momentos de cada dia. “boa” arquitectura ou mesmo por “bom” desenho urbano.
Neste sentido temos uma responsabilidade única: devemos produzir esses espaços. Não há soluções técnicas se não houver vontade política.
Tenho a convicção, e é meu credo, que o espaço de paz não deve ser a excepção, especificamente
pensado, raro e dificilmente encontrado.
Deve ser simplesmente o espaço da vida e pode ser, também, o espaço da morte.
Começa pela forma como inserimos as nossas construções na paisagem – e, por isso, devemos
entender a natureza e as forças que lhe dão forma.
Devemos também entender as forças que dirigem, ou deviam dirigir, a sociedade duma forma
justa e equitativa.
FSDFSD
Igualmente temos a considerar os instintos vitais, onpoder emocional e as fraquezas do homem. DFDSGFDSFGV
Devemos entender as dimensões exactas dos cinco sentidos do homem e saber controlar os DSFSDFDS
Ambientes de paz só podem existir onde a dignidade humana for suportada por alimentação
suficiente, educação para todos e relações sociais estimuladas, trabalho e possibilidade de escolha.
Os espaços da paz só acontecem quando e onde houver a vontade de criar um mundo de paz.
Onde essas condições existem boa arquitectura e bom desenho urbano são as melhores ferra-
mentas para a criação de lugares de paz de que todos necessitam e que todos, mesmo sem disso se
aperceberem, querem.
Em conclusão: é minha crença que devemos trabalhar para as mudanças sociais globais que
possam trazer as condições necessárias à criação de um ambiente global de paz onde o desenho do ha-
bitat humano seja tomado pelos profissionais como uma responsabilidade ética, não como um exer-
cício formal, onde não haja exclusão nem segregação e onde a natureza seja respeitada e preservada.
A estética do poder e o paradigma da autoridade devem ser desafiados.
No futuro devem haver mais parques que pirâmides monumentais, mais habitação digna e con-
fortável que slums, mais bibliotecas que quartéis, mais transporte público que helicópteros de guerra.
O espaço da paz pode ser e será o espaço de todo o lado.
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O MEU TRABALHO
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As fotografias nunca mostram as dimensões reais da arquitectura; quando muito transmitem algu-
mas das suas qualidades esculturais mas, raramente, o sentido e os valores do espaço.
As fotografias que apresento aqui mostram algum do trabalho realizado ao longo dos últimos 30
anos, sobretudo em África.
Cada projecto significa a procura da expressão de um conceito poético, como resultado do local e
do programa, do uso mais inteligente dos limitados recursos tecnológicos, pela economia dos mate-
riais e dos meios de expressão estéticos, pela integração das dimensões e dos elementos naturais, pela
simplicidade, pela clareza e por essa moral da forma a que chamo proporção.
Agora, como há 30 anos, sinto-me como se estivesse a começar. Cada projecto é um desafio
único e, como sempre, até que o conceito poético cristalize, toda a experiencia acumulada é
inútil.
Agora, como há 30 anos, estou só, de cada vez e sempre com a necessidade de inventar uma alma
antes de uma estrutura, um espírito de luz e textura, de som e materialidade, de cheiro e de eco à
transmissão da luz do dia e aos modos das estações do ano.
Para cada projecto, agora como há 30 anos, há uma luta por qualidade maior. Mais do que nunca
devo saber como construir e exigir respeito por dimensões e materiais.
Agora, mais do que nunca, vão-se perdendo os velhos saberes e a paixão pela profissão do cons-
trutor vai desaparecendo e isso torna a minha vida mais difícil em cada trabalho.
RESIDENCIA PRESIDENCIAL DA KHATEMBE – MAPUTO IWAN BAAN / FUNCHO ?
08 de Abril de 1998 O homem deve aprender e é por aprender que é homem, não por saber mas por saber que
não sabe.
Assim os homens começam a distinguir-se de si próprios e dos outros.
Há os que julgam saber e os que sabem não saber. Há os que, inocentemente ou não, se remetem
à inconsciência certa do saber suficiente.
Valham-nos os que redimem a espécie: as crianças
Elas perguntam, duvidam, maravilham-se com a descoberta e descobrem maravilhas.
Destas exaustivas categorias interessam-nos, quase por atitude moral, os que sabem da sua igno-
rância, quase porque...“deles será o reino dos céus” ou, melhor dizendo, deles sairá uma espécie mais
perfeita, mais adaptada e mais adaptável, uma raça de homens mais perto do objectivo último da
integração do espírito e da matéria.
Mas, porque o saber não é um acto meramente aquisitivo, mas sim elaboração, o saber não é
substantivo é verbo, valha-nos então a coragem de ser curiosos.
Porque o saber é sempre um acto de coragem, um permanente estar à beira do abismo, da verti-
INVESTIGAÇÃO gem do desconhecido, do risco de não sabermos afrontar o que está para lá do que sabemos.
O homem, para lá das suas funções metabólicas vitais distingue-se por outras dimensões únicas e
292 293 particulares: adquire conhecimentos, regista-os, codifica-os, armazena-os e transmite-os.
Os animais, mesmo os de mais completa organização fisiológica, nascem ensinados ou aprendem Destas três dimensões a primeira é aquela que mais profundamente distingue a dinâmica das
tudo até à maturidade sexual, até à sua largada no mundo adulto. épocas e das sociedades.
O seu aprender não é cumulativo entre gerações ou é-o pelas leis biológicas da especialização A aquisição de novos conhecimentos, a coragem de pensar para lá do já pensado é a dimensão
genética. que caracteriza os grandes momentos da história das sociedades humanas.
O homem não progride por instinto, ou não progride só por instinto. O homem deve aprender Da pedra lascada à idade dos metais, de Amon a Aton, de Aquino a Descartes, do renascimento
tudo. aos enciclopedistas, do analógico ao digital, do explorativo ao eco equilibrado, a sociedade humana
O que os animais herdam por instinto o homem deve aprender sempre por transmissão codifica- tem sempre progredido através da sua capacidade em adquirir novos conhecimentos.
da do conhecimento segundo regras que, não sendo sempre as mesmas, conduzem a níveis idênticos Na topologia deste processo a universidade tem ocupado, e deve ocupar, uma posição central.
de conhecimento. Mais que um lugar de armazenamento e transmissão do conhecimento a universidade é e
O homem, também nisto diferente do animal, duvida do que sabe. Questiona-se sobre a verdade deve ser cada vez mais o lugar da aquisição do conhecimento, da aquisição de novos conheci-
e a universalidade do seu conhecimento. mentos.
O homem compara-se à dimensão divina ou, o que é o mesmo, demoniza a dimensão humana. Isso faz-se investigando e é na investigação que cada universitário deve encontrar o significado
O homem, assim, “insatisfaz-se” ou, insaciavelmente, refaz-se. de ensinar pois só por investigar ele pode servir como modelo de intelectual, até porque a grande
O homem faz-se. alegria da aventura intelectual está, precisamente, na descoberta do que está para lá do sabemos;
Esta é, provavelmente a sua dimensão única, a mais humana e mais demoniacamente divina. está na descoberta do que está para lá do que os outros sabem; está na descoberta do novo, do
O homem cria, insuficientemente, a sua insuficiência e tem disso plena consciência. desconhecido.
Nisso o homem distingue-se do deus que ele próprio criou. Mas a universidade é, também e perigosamente o lugar do armazenamento do saber, o lugar
O deus sabe tudo. Chegou. É suficiente. privilegiado do saber rançoso e auto complacente, do saber acabado e arrumado. Estéril.
A universidade pode, também e ainda, ser o lugar onde se compra e se vende o saber. Se compra musical ou teatral, mas será que lhes deixa ficar gravada a dimensão poética mais profunda do acto
o que se pode comprar, onde se vende o que se tem para vender. criativo?
Este saber empacotado e com guia de entrega (o exame) é um saber perigoso, um saber engana- Em última análise, reduzido aquela dimensão, será ele próprio necessário?
dor, um saber terminal se não mesmo terminado. Não será que existem hoje, mais do que nunca, instrumentos para a aprendizagem autónoma
O que é mais frequente neste empacotamento do saber é confundir-se erudição com cultura. que, naquelas dimensões, substituem, mesmo com vantagem, a maioria dos professores?
Esta confusão é gravíssima e permite-me afirmar que conheço homens cultos que são analfabetos A minha tese é pois simplesmente evidente: ensinar é descobrir.
e doutores em filosofia que são incultos. Para descobrir é necessário procurar. Investigar.
A cultura, que é indispensável ao exercício do ensino, é uma actividade criativa, sintetizadora, Para investigar é preciso identificar o que é mais relevante e necessário ao progresso e à evolução
indutiva, inspiradora e inspirada; a cultura, como todas as culturas, faz nascer algo de novo, ela é do indivíduo e da sociedade em geral e em cada ramo da ciência, da filosofia e da arte em particular.
necessária e indispensável à função última da universidade: a luta pela descoberta do saber universal É evidente que, assim definido, o investigador, o professor-investigador é sempre um pioneiro,
e da verdade. um homem enraizado na sua época e na sua sociedade, um conhecedor profundo do já explorado,
No nosso caso, país marginalizado e na periferia do mundo desenvolvido, a responsabilidade descoberto e conhecido, um generalista que sabe o valor exacto e justo de cada dimensão do conhe-
da universidade e da sua atitude perante os problemas sociais, económicos e culturais é, se possível, cimento especializado no mosaico complexo e coerente do saber.
ainda maior É um homem que compreende profundamente as dimensões necessariamente poéticas da ciên-
A nossa responsabilidade é a de conseguir ultrapassar o atraso e a pobreza dos recursos com a uti- cia e as dimensões científicas da arte e que toma e usa a filosofia como a coluna vertebral estruturante
lização mais intensa e mais dedicada do “maquinismo” mais sofisticado e mais comum, mais único da sua razão e processo de pensar.
e mais acessível, mais resistente, mais económico e mais irreproduzível – o cérebro humano usado 294 295 É um homem cuja visão dos fenómenos é sempre global pois só assim sabe compreender o sig-
criativa e imaginativamente. nificado do particular.
O problema da investigação é que ela é uma actividade expressa por um verbo transitivo: quem Parece-me, e apenas com a dúvida indispensável, que o dito se aplica logicamente a todos os qua-
investiga, investiga alguma coisa. drantes do pensamento criativo: à filosofia, à ciência e às artes, que se complementam, se justificam
É esta a sua grande dimensão: o seu objectivo, o seu sujeito, a sua razão, a sua temática, em última e se realizam.
análise: a sua necessidade. Por que é que então, pelo menos no nosso meio, investigar é, ainda, tão raro?
O problema da universidade é que ela é um meio intelecto-social onde os objectivos didácticos Dizer que não há tradição não explica nada. Não há, por exemplo, tradição de acumulação de
nem sempre se sabem articular com os objectivos científicos ou neste âmbito, com os mais elevados riqueza e, no entanto, ela é hoje, no nosso meio, acumulada com uma rapidez e eficiência impres-
objectivos da investigação. sionantes.
O professor universitário que melhor cumpre a sua missão parece-me indiscutivelmente ser Apenas por falta de escrúpulo? Não me parece, julgo, sim, que por profunda motivação.
aquele que expõe aos seus alunos o processo da descoberta, o processo da elaboração mental que,
tomando o conhecimento já adquirido, abre sempre novas fronteiras lhe define novos limites.
É na exposição do seu processo de pensar, na generosa exposição das suas próprias dúvidas e so-
fridas certezas, na coragem da sua imaginação e na constante aferição da validade humana, científica,
ética e mesmo moral dos resultados que, perante os discípulos ele adquire, e só dessa maneira o pode
adquirir, o estatuto de mestre e o respeito que se deve ao pensador.
O professor que se limita à condição de transmissor de conhecimentos e de métodos, à exibição
FSDFSD
da sua auto complacente erudição, à récita ainda que iluminada do trabalho intelectual alheio pode- DFDSGFDSFGV
rá, no melhor dos casos, comover e mesmo empolgar os seus alunos como o faz um grande intérprete DSFSDFDS
Motivar, já uma vez o escrevi, não é dar o mote, é provocar razão, motivo.
É isso que nos falta mais. É isso que menos transmitimos.
Porquê?
Por um lado. porque os alunos não nos sabem exigi-lo. Toda a sua escolaridade foi feita à base do
exercício da memória, da lógica mecânica e enfadonha dos teoremas demonstrados, da falta de dis-
cussão e sobretudo de uma total ausência do apelo à imaginação, salvo raras e milagrosas excepções.
Por outro lado, e porque numa sociedade tão carenciada como a nossa o aluno é, inevitavelmen-
te, levado à noção de que a universidade é um passaporte para o privilégio social, antes de o ser para
um privilégio cultural; um instrumento para aquisição de habilidades profissionais antes de o ser para
aquisição de recursos intelectuais; um momento necessário, talvez mesmo infelizmente necessário,
para o progresso material e, mais perigosamente, o aluno é levado à noção de que o que aprende na
universidade, nos 3 ou 5 anos de um curso, é tudo quanto necessita de aprender para a prática da
sua actividade profissional.
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Neste poema, que me ofereceu num dia de mais uma emocionada reflexão conjunta, o mesmo
espírito de um sofrimento que se esperançava escusado.
O mesmo génio que leva, apenas sete anos depois, o alter-ego João Pedro Grabato Dias, a
publicar a litania poética desmascarante da já então latente arrogância do poder, tão facilmente
assumida pelos ex-camaradas que depressa souberam teorizar as razões do seu emburguesamento
emergente. É disso que o António Quadros trata nesse outro poema que lhe seguiu em 1982:
“O povo é nós”.
Fica por contar, e ficará, a saga do mistério falhado da autoria pois que o “eu”ganhou já na
história da poesia moçambicana a posição de património intelectual do povo moçambicano. QED.
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