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BRANCA

COLA NA GUARDA

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BRANCA ROSTO
FICHA TÉCNICA INDICE

Pensar arquitetura 000

Ser arquiteto 000


Ser arquiteto 000
Reflexões dos 70 anos 30 000
What is architecture in 2014 000

Ser professor 000


Abertura do Ano Letivo 1995-96 000
Saude e espaço 000
Reflexões sobre uma nova didáctica da arquitectura no inicio do terceiro milénio 000
Arquitectura... para quem começa 000
Arquitectura: a essência do projecto 000
Professor emérito 000
Évora. Novembro de 2015 000

Conferencias 000
Landscape practice in Mozambique 000
As cidades como motores do desenvolvimento rural? 000 Recordando António Quadros 000
O que é arquitectura Africana? 000 O pintor das paredes 000
Projeto arquitectónico e gestão urbana sustentáveis em Moçambique 000 Os médicos fotógrafos. 2014 000
Africa global architecture. What does that mean? How can we define global architecture? 000 30 fotos do Filipe Branquinho 000
Construções Sustentáveis: um desafio 000 Malangatana, o crocodilo amigo 000
Reflexões de São Paulo 000 Mestre Fil: Octávio Lixa Filgueiras 000
Maputo 000 Eduardo Souto de Moura 000
Onde está a arquitectura? 000
Primeiro Seminário Nacional de Ciência e Tecnologia 000 Posfácio 000

Uma conversa 000


A paixão do tangível, uma poética do espaço 000

Artigos e ensaios 000


Meditações de Cape Town 000
Uma estratégia para o melhoramento e a reabilitação dos slums em Moçambique 000
Reflections on the space for peace 000
As revistas de arquitectura deveriam ser reservadas a pessoas de sólida formação moral 000
My work 000
Investigação 000
Os materiais da arquitectura 000
O problema do património histórico em Moçambique 000
Notas sobre a criação de uma “agencia” nacional de planeamento urbano (e habitação) 000
Água para as cidades 000
O futuro da arquitetura (... em Moçambique) 000
O “património urbano” 000
O desenho e a invenção da arquitectura 000
Arquitectura, ambiente e sobrevivência 000

Amigos 000
O António e a Ilha 000
António Quadros, Professor 000
Pancho Guedes 000
Raul Hestnes Ferreira 000
Elogio de Malalangatana Valente Ngwenha 000
JOSÉ FORJAZ,
PENSAR ARQUITECTURA
CASA DA MALVEIRA JOSÉ FORJAZ
Agosto, Setembro de 2017

A experiência, ou a inexperiência, política que caracterizou os primeiros dez anos do meu re-
torno a Moçambique, no final de 1974, foi uma aprendizagem de valor incalculável, quer em
13 termos profissionais quer em termos da importância das dimensões ideológicas e politícas da
profissão.
O âmbito das responsabilidades assumidas forçaram uma abertura a um irrecusável interesse pe-
las escalas mais vastas da intervenção do arquitecto, que me obrigou a uma prática que vai do design
gráfico, de móveis e do objecto e do edifício à organização do espaço regional, incluindo o desenho
e planeamento urbano e a que se soma o paisagismo.
A inexperiência em quase todos esses sectores só não foi mais profundamente sofrida por não
haver nessa altura em Moçambique qualquer disponibilidade de especialistas nessas disciplinas.
A escolha, obrigada, foi a de um assumido auto-didatismo enriquecido esporadicamente por contac-
tos com especialistas estrangeiros, a nível profissional e didáctico.
A responsabilidade pela organização de programas de formação em planeamento físico e ar-
quitectura, num meio desprovido de profissionais e de docentes, obrigou-me a um esforço de auto
formação multidisciplinar que me autorizasse a um diálogo intenso e permanente com docentes das
diversas especialidades, recrutados como cooperantes.
Nas condições de Moçambique em 1985, quando se equacionou a criação de uma faculdade de
arquitectura e o número total de profissionais nacionais actuantes era menos de uma dezena para
uma população de mais de 15 milhões de habitantes e onde os graduados seriam inevitavelmente
chamados a actuar através de todo o espectro das tecnologias e das artes da organização do espaço,
em situações de grande isolamento cultural e disciplinar; nessas condições seria essencial que, na sua
formação, lhes tornássemos clara a consciência da continuidade entre as diversas escalas da interven- Esta colecção de reflexões, declarações, contribuições, pensamentos, elegias e outras formas de
ção no espaço, da regional à do edifício, e os dotássemos com as ferramentas disciplinares mínimas expressão, foi amadurecendo ao longo destes anos.
essenciais para, nessas condições de isolamento técnico e profissional, poderem actuar coerentemente A evolução do pensamento e das circunstâncias que os motivaram acompanha a evolução das
sem comprometer as relações entre aquelas escalas. minhas perspectivas e das minhas percepções.
Foi uma batalha para a qual houve pouco apoio mas que valeu a pena por ter sido determinante A hesitação em trazê-las a uma audiência aberta foi, sempre, a mesma: nada me assegura que
na construção de uma faculdade de planeamento físico, e não restritamente de arquitectura, e que, as minhas dúvidas e certezas sejam ou possam vir a ser do interesse daqueles comprometidos com
passados mais de trinta anos, se justifica pelos resultados já produzidos. idênticos problemas.
A filosofia subjacente à minha evolução intelectual e profissional tem sido construída sobre É um risco que assumo para que se justifique uma vida à procura das razões de ser e de fazer.
a noção da continuidade e interdependência entre os vectores culturais e naturais como deter- Algumas destas elaborações são respostas a pretextos e motivações exteriores ao conteúdo imedia-
minantes do exercício criativo. Esta lógica, elementar, necessita interesses múltiplos que vão da to da arquitectura e, aparentemente, em muitos casos, distantes da sua razão de ser mas, para mim,
história à geografia e da sociologia à economia informando uma progressiva formação ideoló- todas fazem parte duma forma integradora de pensar que me é natural e indispensável.
gica sem a qual não se pode exercer uma actividade tão profundamente humanística como é a Os temas nelas considerados são, recorrentemente, os mesmos. Talvez, simplesmente, o mesmo:
do arquitecto. a enorme dúvida e a temerária certeza de que a arquitectura não é um exercício de especulação finan-
E, contudo, a tentação e o encanto da forma foram sempre a emoção estimulante. ceira ou estética mas uma actividade cuja razão de ser é a de contribuir para a melhoria do habitat
A libertação de responsabilidades políticas e na administração pública não foi fácil, ou mesmo humano no seu meio físico e ambiental, cultural e político.
pacífica, mas abriu caminho a um progresso mental acelerado e a novas experiências e contactos en- Desta forma e para o arquitecto, que continuo a tentar ser, a batalha permanente e relevante é
riquecedores: dirigir um curso de desenvolvimento em países do terceiro mundo na universidade de 14 15 a de mediar entre os interesses materiais, a expressão do poder político e económico e a incompe-
La Sapienza em Roma e cursos de mestrado em Filadélfia e em San Diego; participar em exercícios tência administrativa e pela promoção do indivíduo como responsável por uma presença física que
didácticos na África do Sul e noutros países da África, da Europa e da Ásia; preparar conferências em o ultrapassa. Nada me assegura que esta preocupação seja esclarecida e que possa vir a contribuir
todos esses horizontes e, ao mesmo tempo, manter a prática do projecto e a direcção da faculdade – para um debate sobre o problema do que deve ser uma arquitectura válida para o nosso futuro
todas estas actividades complementares sedimentaram uma época de enorme intensidade intelectual ameaçado.
e de constante reflexão. Cada um deve lutar pelo que defende como justo.
Foi, também, o início da necessidade de escrever, quer para dar resposta a convites e à participa- Naturalmente que, aqui, se repetem ideias, imagens, metáforas, argumentos e mesmo formas
ção em conferências e publicações, quer pela necessidade de reflectir e registar elaborações mentais literárias. Podem até encontrar-se contradições mais ou menos explícitas.
sobre problemas da arquitectura em toda a sua extensão cultural. Não há aqui uma intenção de fluidez literária ou a coerência inabalável de uma tese a defender;
A colecção de textos reunidos nesta publicação é, na sua maior parte, o registo dessas reflexões, há, sim, a oferta cândida da evolução de um pensamento sobre um tema vasto e integrador da dedi-
intensificadas ao virar do milénio, no sentido de atingir uma noção cada vez mais esclarecida do que cação de uma vida.
é fazer arquitectura no século XXI, independentemente do lugar e do contexto cultural, económico Nada do que aqui apresento pretende ser original mas, apenas, uma contribuição a um pensar
e social. comum.
Não se incluem, nesta colecção, alguns textos escritos na década de 1980 e primeira metade de Para facilitar a leitura, organizaram-se os escritos nos temas principais que estas reflexões
1990 e editados em 1999 no livro “Entre o Adobe e o Aço Inox”. Apenas se retomam desse período abordam: os dois primeiros incidem sobretudo sobre as inquietações em torno do que é ser
três reflexões que incidem mais diretamente sobre ser arquitecto, sobre arquitectura e sobre o ensino arquitecto e ser professor; o seguinte é uma colecção de reflexões e escritos avulsos; o quarto
da arquitectura em Moçambique. debruça-se sobre problemas urbanos; o quinto é uma colecção de comunicações para diferentes
Identicamente não se incluem muitos outros textos, didácticos ou transcrições de conferências e públicos sobre variegados temas; o sexto são entrevistas concedidas a jornais e revistas; o sétimo
entrevistas, que não acrescentariam aos conteúdos dos aqui seleccionados. são homenagens a pessoas que marcaram e influíram na minha maneira de pensar e a quem
devo um salutar confronto de atitudes e a fraternal companhia na procura de atitudes e posições
corretas.
Sempre que possível os textos estão, em cada Tema, ordenados cronologicamente permitindo
ajuizar da evolução e coerência do pensamento que os informa.
As imagens inseridas ao longo de todo o livro ilustram, paralelamente, um percurso criativo e
expressivo sem uma imediata ou directa relação com os escritos.

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SER ARQUITECTO
CASA FORJAZ, MABBANE, SUAZILANDIA JOSÉ FORJAZ
ESTE TEXTO TIREI
DO INDESIGN
DE MOZ. A minha vida como arquiteto (1954/1987) Naturalmente que assim teria que ser pois a abertura que o sistema colonial-fascista permitia a
Escrito em Filadélfia, enquanto professor visitante (Fall um debate aberto e sério sobre a função social do arquiteto era reduzida.
NÃO VEIO COM Simplisticamente poderia afirmar-se que a prática liberal da profissão era, senão uma forma de
Semestre) na Universidade da Pensilvânia
OS OUTROS cooperação com o sistema pelo menos refletia uma aceitação tácita.
Outubro de 1987. Excluíam-se alguns dos poucos profissionais que nos serviços públicos, como nas Obras Públicas
e nas Câmaras Municipais, continuavam pacientemente um trabalho de infraestruturação do terri-
tório que, embora muitas vezes e inevitavelmente marcada pelo vinculo da descriminação, tinha um
conteúdo social potencialmente válido para o futuro.
O estaleiro da obra cedo me fascinou.
O poder do arquiteto para por e dispor paredes, abrir vãos, escolher materiais e definir cores era
uma capacidade que, aceite com impaciência, eu tinha que esperar para exercer.
Com o Pancho o contacto com as obras era frequente e sempre uma alegre aventura.
Aprendi muito com ele, com os mestres de obra e com os operários.
Aprendi, mesmo antes de entrar para a Escola Superior de Belas Artes do Porto, o oficio de
SER ARQUITETO desenhador, o cuidado com o detalhe, a importância do processo de construção e a necessidade
de racionalizar decisões. Esta precoce aprendizagem foi, talvez mesmo, um pesado lastro na minha
20 21 evolução pois que durante anos e certamente durante todo o período escolar de formação a preocu-
Comecei a vida como aprendiz de arquiteto aos dezassete anos quando, em 1953, concorri e fui pação com a integridade do processo construtivo me preocupava mais que a procura das dimensões
aceite como “desenhador tarefeiro” nos Serviços de Obras Públicas de Moçambique, em Lourenço poético-espaciais dos projetos.
Marques. Só mais tarde percebi que se pode ser poeta sem saber escrever...
Durante quase dois anos aprendi a desenhar edifícios executando laboriosamente os desenhos Em 1955, quando comecei a estudar arquitetura, entrei e participei num meio cultural profun-
que os arquitetos me passavam e assistindo às suas discussões sobre aspectos funcionais, técnicos e damente interessado pelo estudo e revalorização da arquitetura não erudita, popular ou vernácula,
estéticos dos projetos. não só em Portugal mas por toda a Europa, particularmente em Espanha e Itália.
Na mesma altura pedi para trabalhar com o arquiteto local mais interessante e que me parecia o O racionalismo e o internacionalismo, que para mim eram abstrações teóricas, pareciam, ao que
único que situava o exercício de arquitetura num plano de mais criativa expressão artística, Amâncio vim a perceber, exaustos da sua força de orientação do pensamento arquitectónico e passiveis de
d’Alpoim Miranda Guedes, o “Pancho” como era conhecido e que viria a ter uma projeção impor- serem repensados à luz da integração de outros valores que, os arquitetos, no contexto da repressão
tante nos meios internacionais tanto pelas suas reais qualidades como por estar à vontade e ser bem política, poucas oportunidades tinham de manifestar.
conhecido no meio anglo-saxónico da África do Sul. O clima académico e cultural era de intensa paixão. As pontes entre uma posição política válida,
Já naquela altura me dava conta da grande disparidade de posições em relação à arquitetura e da o exercício da profissão e a possibilidade de combate à expressão fascista da arquitetura, pareciam
paixão com que cada posição era defendida entre os arquitetos. poder fazer-se, também, por recurso à recuperação de tradições ricas de significado social, coerência
Discutiam-se os méritos relativos do F.L. Wright vis-a-vis Le Corbusier ou do Aalto versus Mies; técnica e potencial expressivo.
discutiam-se racionalmente os méritos do racionalismo e inflamavam-se irracionalmente as paixões. Ao mesmo tempo procuravam-se alternativas a uma arquitetura “internacional” que soava a falso
O que se passava à nossa volta era discutido, sobretudo, no seu mais restrito e imediato valor num Portugal de industrialização incipiente, onde era mais barato construir em pedra que em tijolo,
estético e as posições profissionais eram, quase sempre, estanques ao contexto geral, isto é, à situação onde cada janela e cada porta eram produzidas uma a uma e onde as grandes obras de engenharia
colonial em que todos vivíamos. eram as mais favorecidas por um pequeno faraó (António de Oliveira Salazar) no limite da senilidade.
Tudo isto não me era ainda claro ou consciente. Vivia-se o tumulto dos debates até ao insulto, do Só agora, curiosamente, me dou conta que aos meus colegas de estudos não se punha
preto ou branco, do católico ou comunista. esta questão. Para eles o futuro era como ganhar a vida, não onde ganha-la. Os que vieram
Neste remoinho de ideias continuava eu a tentar aprender, um pouco abandonado a mim mes- a emigrar fizeram-no já adultos, conscientes das raízes que deixavam ou da necessidade de a
mo. elas retornar.
A Escola de Belas Artes pouco tinha a oferecer, ou era, pelo menos, assim que eu o sentia. Eu era desenraizado antes de formado. Era desenraizado realmente: não considerava como meu
Depois de um primeiro ano a desenhar ordens clássicas, segundo Vignola, de que eu tinha uma qualquer país ou qualquer cultura.
edição setecentista, vieram anos sucessivos de história de arte, de pouca arquitetura além dos exercí- Tal como hoje.
cios de composição a desenvolver com a ajuda dos assistentes que pouco adiantavam em termos de Inevitavelmente fui trabalhar para Paris.
reflexão teórica. Era a oportunidade de ver o mundo, o Corbusier, as supostas dimensões maiores da cultura em
Em 5 anos de curso não me lembro de um momento verdadeiramente didático de teoria de que me estava a formar.
arquitetura. E vi-as realmente, ou julguei que eram essas as dimensões maiores.
Essas questões eram discutidas e debatidas nas horas de convívio nas tascas onde comíamos e no Vi o Corbusier e muitas outras coisas. Vi a Suíça, os suíços e a sua arquitetura de relojoeiro apli-
café, entre nós estudantes e quase sempre com a presença e participação dos assistentes e professores. cado e, às vezes, genial.
Achei-me, só, na gélida Biblioteca Municipal a ler os “Entretiens” do Viollet le Duc, a poupar Vi a Holanda, mais poética, igualmente aplicada.
dinheiro para comprar o Borissavlievich, que nunca consegui acabar e o Choisy, com idêntico re- Vi outras dimensões da liberdade de dizer o que se pensa e da oportunidade de fazer o que se diz;
sultado, mais as meio digeridas teorias dos praticantes a quem interessava teorizar sobretudo como outras dimensões dos monumentos e das cidades e das suas arquiteturas.
autojustificação. 22 23 Vi, sem querer acreditar, a superficialidade no exercício da profissão num país onde o arquiteto
Daí o meu estimulado interesse pelas disciplinas paralelas da geografia humana, da sociologia e era, e talvez seja ainda, o homem da grande composição, do “parti”, mas onde me era afirmado,
da antropologia. todos os dias, que “não há 33 soluções ...” para cada problema e que “os engenheiros e construtores
Sem guia nem orientação essas leituras eram um sofrimento e uma ginástica mental de valor depois resolvem o que não soubermos”.
incalculável para a auto disciplina. Não quis compreender ou acreditar e, para mim, chegou.
As revistas e monografias, os tratados e os ensaios teóricos iam-me confortando a curiosidade e o Afinal tinha razão. Não era, essa, a maneira de exercer esta arte-profissão.
interesse pelos temas da atualidade internacional da arquitetura. Na Suíça passei algum tempo, com a tentação de lá ficar. Voltei a acreditar naquilo que eu con-
Era difícil arrumar esta torrente de informações num corpo coerente, numa filosofia estruturada siderava seriedade profissional.
e inspiradora de uma continuidade cultural que percebia como necessária. Lembro-me da grande impressão que me ficou das obras do Gisel e do Waltenspuhl, do Shadder
Na verdade não me sentia minimamente como um potencial continuador de tradições ou como e do Roth. A qualidade impecável da construção, a sabedoria no uso dos materiais e no tratamento
veiculo plenamente consciente da expressão das dimensões sociais da arquitetura. do terreno e dos espaços urbanos.
Tradição parecia-me equiparável a reacionarismo, via estilo como uma muleta cultural e uma
forma superficial de coerência criativa.
O meu desenraizamento físico, emocional e cultural, quando aos 15 anos fui transplantado para
África, para uma cidade onde só conhecia o meu pai, começava, subconscientemente ... ou talvez
não... a fazer-se sentir.
Que viria eu a decidir ou aceitar como futuro?
Ficar numa terra que já não era a minha depois da experiencia de outros horizontes ou voltar para SÓ MAIS TARDE PERCEBI QUE SE PODE SER POETA
uma terra que ainda não era a minha mas de horizontes mais sentidos como desejáveis? SEM SABER ESCREVER...
Afinal tinha razão: arquitetura é coisa séria. Quase por acaso ( ... é espantoso o que me tem acontecido na vida por acaso !) uma oportunidade
Voltei. Não sem dificuldade. Aquele rigor, aquela qualidade, o potencial de expressão e sobretudo de bolsa de estudos para os Estados Unidos.
de aprendizagem constante eram uma grande tentação para uma nova experiencia. O importante nos Estados Unidos não foi o trabalho que lá fiz, que de projeto teve pouco, de
Havia o curso a acabar e raízes ... como sempre, a procurar. estudo bastante, de reflexão muito. Contou a experiencia doutras pessoas, doutros lugares, doutras
Com o primeiro casamento veio o primeiro projeto: casa grande, sitio magnifico, cliente impos- maneiras de viver. Uma dimensão desconhecida na qualidade e na quantidade.
sível, orçamento indefinido. Ficou-me uma maior e mais calma segurança: parecia agora mais capaz de dizer o que queria e de
Depois de muita asneira no processo começou a obra com falta de pormenores e de caderno de o dizer com sentido assumido e próprio ... de vez em quando.
encargos, administração direta, cliente ambicioso, falta de prática profissional: todos os ingredientes Ficou também a grande lição do Wright de Chicago e de Wisconsin, do Saarinen, do Giorgula e
para a receita do desastre que foi. do Rudolph e de outros tão pequenos ou tão grandes como estes, com a mesma convicção e o mesmo
Acabou a obra, que ainda hoje não me envergonha. Uma saga que durou de 1960 a 63. profissionalismo.
Fim do curso. Trabalho com os professores Octávio Lixa Filgueiras, o João Andersen e com o Lembro-me particularmente bem da Ford Foundation, da sala do Aalto no Institute of Interna-
Arnaldo Araújo no concurso da Gulbenkian. tional Education em Nova York, do Carpenter Centre do Corbusier e do Dormitório do Aalto em
Serviço militar e volta para África como oficial de engenharia militar. Boston. Lembro-me, como ontem, da Falling Water do Wright, da Lever House e do I.I.T do Mies,
Em Moçambique, em paralelo com as obrigações militares, algum trabalho durante os dois anos do Museu de Arte Moderna e do Guggenheim em Nova York.
de guerra. Uma casa , um dormitório para estudantes da escola industrial secundaria, um complexo Uma indigestão de experiencias, de encontros e reencontros. Foi, também, a remoção da última
de lojas e restaurante, o projeto da Feira Agro Pecuária Industrial de Nampula, uma papelaria, um barreira do medo do desconhecido e do mundo com outras dimensões.
pavilhão de exposições, um bar da força aérea. Tudo construído e muito aprendido. 24 25 O reconhecimento da grandeza, da importância e da vitalidade de uma cultura mais voltada para
Grande isolamento a pensar arquitetura como um solitário exercício. a atração do futuro menos do que para a contemplação do passado.
Penso agora como foi útil e como, embora sem debate, me deu a segurança que não teria adqui- 1968. Master of Science in Architecture pela Universidade de Columbia em Nova York.
rido se não estivesse isolado. Uma nova decisão difícil a tomar: ir para onde, agora, se não havia nenhum voltar mais possível
Renovados contactos com o Pancho que ajudou a acompanhar uma obra que, entretanto, proje- ou natural que qualquer outro?
tei para Lourenço Marques: duas casas gémeas para a família e amigos. Ficou bem e ainda existe, um Mais uma vez, como por acaso e por sugestão do Pancho Guedes veio a possibilidade de tomar
pouco sacrificada à maquilhagem da segurança. o escritório de arquitetura do Francis Green, na Swazilandia. O “Flip” Green deixava o país com a
Dois anos sem passado nem futuro, numa vida em suspenso que não tinha ainda outra direção sua chegada à independência. Havia que acabar obras começadas e projetar outras, hipotéticas ainda.
senão a ambição profissional. Tentadora esta oportunidade para reentrar no mundo dos projetos a construir.
Retorno obrigatório a Portugal. O navio transporte militar trouxe-nos de volta a Lisboa. Depo-
sitou-nos no cais da Rocha do Conde de Óbidos e ... vai à vida.
Defesa de tese: 20 valores (Distinto) dariam para entrar como assistente se tivesse aceite o convite
do Mestre Carlos Ramos.
Mas não estava interessado em expor aos estudantes a extensão da minha ignorância e inexpe-
riência.
Não entraria no jogo de ensinar o que não sabia.
Trabalho em Lisboa, com o Conceição Silva, o Bartolomeu Costa Cabral e o Maurício de Vas-
concelos. Bons colegas, bom ambiente e boa arquitetura. Trabalho interessante, algum construído, NÃO ENTRARIA NO JOGO DE ENSINAR
como o conjunto de apartamentos em Sesimbra, depois distorcido pelo Taveira. O QUE NÃO SABIA.
Um risco que valeu a pena. O custo das obras tornou-se cada vez mais uma determinante essencial pois era indispensável
Em perspectiva era claro que outras hipóteses poderiam ter resultado numa maior projeção, conceber estruturas e edifícios com a maior economia para conseguir as melhores prestações dos
numa melhor inserção num ambiente de teorização e debate, numa obra mais conhecida. materiais e dos acabamentos.
Foi, novamente, um grande isolamento quebrado, esporadicamente, pelas visitas de estudantes, A economia dos espaços, dos materiais e da estrutura implicavam e obrigavam a uma maior
professores e com a colaboração em faculdades de arquitetura sul africanas, pelo interesse dos amigos economia formal.
de Moçambique e pelas viagens. A definição estilística era a sua consequência mais direta manifestando-se pela contenção expres-
Um período de quase oito anos sem um real debate vivo e permanente que poderia ter levado siva, pela abolição de retóricas decorativas e levando, naturalmente, ao que mais tarde poderia vir a
a uma reflexão mais profunda e a uma evolução cultural mais rápida sobre problemas que só mais ser um estilo e não uma atitude: um minimalismo expressivo do processo de invenção da arquitetura
tarde amadureci. como depurado contentor de espaço e invólucro adequado de funções.
A intensidade do trabalho prático pouco tempo deixava ao estudo teórico. Os projetos tinham Esta racionalidade, decorrente das lógicas da economia de meios, foi evoluindo para uma posição
que ser concebidos, desenvolvidos e desenhados e as obras dirigidas e tudo quase sem apoio técnico. de ascetismo formal para, através da capacidade de manipulação dos meios mais simples, conseguir
A cooperação efetiva com especialistas começou mais tarde. os valores e as dimensões espaciais mais intensamente poéticas.
Havia que fazer os levantamentos topográficos e adivinhar, com as fracas ferramentas teóricas e Foi, consequentemente, um período de procura de integridade construtiva e de aquisição das
técnicas que tinha, o dimensionamento das estruturas, elaborar os esquemas das redes eléctricas e hi- competências técnicas e culturais necessárias a uma arquitetura e um desenho urbano despojados do
dráulicas, seguir as obras até ao detalhe, tratar com os clientes os aspectos conceptuais e financeiros e supérfluo ou acessório, que um dia espero vir a ser capaz de conseguir.
gerir o escritório, executar muito dos desenhos, fazer as maquetes, tirar as cópias, desenhar móveis ... Foram, certamente, os anos de maior amadurecimento técnico.
cumprir prazos e estabelecer credibilidade num meio onde quem não era de origem anglo-saxónica 26 27 1975 – 1985. Moçambique.
era olhado com suspeita. Dez anos de amadurecimento político.
Tanta coisa que não se aprende nas faculdades! Dez anos a aprender o que está por trás da técnica, a quem ela serve, e para que servem as artes.
Veio também algum trabalho em Moçambique, com o João José Tinoco e sozinho. Dez anos de reflexão sobre como ser útil numa situação extrema e com ferramentas tão débeis.
Quase oito anos de dedicação total e exclusiva à tarefa de fazer arquitetura. Foram anos de ama- Dez anos a perder as batalhas dos outros.
durecimento e aquisição de um profissionalismo indispensável como base segura para uma produção No principio tudo parecia possível: a integridade da luta por uma via, por um caminho justo, por
válida, fruto de um processo de invenção consciente e responsável. soluções coerentes com a dimensão dos problemas, mesmo contra, tantas vezes, os preconceitos dos
Foram anos da maior tensão quanto ao problema da atitude, da falta de raízes ou das razões de dirigentes ou a ignorância dos subordinados.
ser da forma e da intenção poética dos espaços. Dez anos a equilibrar compromissos com integridade, estratégia com princípios, o desejo de
Sem perfeita consciência disso, foi o lançar das primeiras bases conceptuais válidas, seguras e fazer com a necessidade e a obrigação de mandar fazer.
aceitáveis para o exercício do projeto. Dez anos a aprofundar a noção exata de para quê e a quem serve a arquitetura. A tentar perceber
Acentuavam-se dúvidas sobre a validade de propostas desligadas de determinantes culturais que se o arquiteto é um luxo social ou não é. Se a sua função se limita a satisfazer dimensões áulicas da
implicavam, inevitavelmente, uma transposição cultural arriscada e discutível. sociedade ou se ainda é útil ao nível dos problemas gerais e mais difíceis da produção do espaço social
Porque deveriam a Swazilândia, ou Moçambique, aceitar ou receber uma arquitetura de tradições a todos os níveis da sociedade.
exógenas? Dez anos a tentar esclarecer se esta nova ( e possível?...) dimensão não será a determinante de
A cultura arquitectónica seria já verdadeiramente e validamente internacional? uma nova arquitetura?
Não eram estas, naquela altura, questões claramente consciencializadas mas o isolamento cultural Dez anos de luta para defender a inteligência contra pessoas que me julgam defensor de posições
deixava um vácuo onde era difícil estabelecer caminhos formais seguros. rígidas, a construir uma estrutura onde seja possível fornecer as racionais para a organização inteli-
Ajudaram nestes impasses as limitações materiais e técnicas. gente do espaço de acordo com princípios universais.
Finalmente parece, agora, claro que a posição mais coerente é a de realizar o pouco que possa
contribuir para o nascimento de uma nova arquitetura; é a de tentar ensinar a dúvida não apenas
como método mas como ferramenta.
Como ensinar, se o que sei é simplesmente que este percurso pode ajudar a fundamentar alguma
certeza ainda e sempre discutível?
Será que o espaço de reflexão, a que o ensino obriga, poderá conduzir ao aprofundamento das
poucas certezas adquiridas e à descoberta de tantas e mais grávidas dúvidas?

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DESENHOS DO SUAZI NATIONAL CENTER JOSÉ FORJAZ


Maputo, 15 de Fevereiro de 2010 Que problemas afrontam os arquitectos agora?
Falta de trabalho para muitos? Trabalho a mais para uma minoria? Interferência permanente dos
mecanismos de especulação imobiliária? Incultura dos clientes? Dependência de filiações partidárias
e manipulações corporativas? Concorrência por parte de técnicos não qualificados que se vendem
por honorários de miséria, captação de clientes por parte de funcionários municipais, com a garantia
de aprovação dos próprios projectos? A nossa própria incultura?
A verdade é que nunca houve tanto talento neste mundo e que nunca houve tanta necessidade
de arquitectos com talento.
Mas estarão eles disponíveis para trabalhar onde, quando e como necessário?
Não pretendo nem sei dar resposta a tão pertinentes questões, mas não posso deixar de as pro-
por. Parece-me possível entrever uma situação em que o arquitecto possa voltar a assumir a figura
do construtor que resolve a situação desde a concepção à realização, obra a obra, especificamente,
dedicadamente, competentemente.
Naturalmente isto parece ser uma maneira “antinatural” de pensar, nesta época de grandes orga-
REFLEXÕES DOS 70 ANOS nizações que monopolizam o processo do projecto “assegurando” a “eficiência”, a “responsabilidade
civil”, a “qualidade” técnica, a “credibilidade” da corporação e, em última análise, o “valor de marca”.
30 31 E será isso de culpar? Afinal de contas o risco é, para essas instituições, muito grande. Centenas
A quem podem interessar estas reflexões? de empregados devem receber salário todos os meses. As despesas fixas são enormes, a eficiência é
A quem procura, nos outros, uma experiência que o acompanhe nas suas próprias? muitas vezes iludida ou ilusória para clientes sem ferramentas de análise
A mim próprio certamente, pois estas reflexões, de restrito interesse e de futuro incerto, podem O interesse pela arquitectura aumentou exponencialmente nos últimos 50 anos. Com a liberta-
ajudar-me a ver mais claro neste mar de dúvidas que se tem tem quando se trabalha no domínio ção da mulher, uma profissão caracteristicamente masculina abriu-se à outra metade do mundo, o
público. que lhe trouxe novas dimensões na sensibilidade com que se focalizam os problemas e na atenção que
Ao contrário dos dentistas e dos cangalheiros o que nós, arquitectos, fazemos é visto por muita dá a novos aspectos da função social e psicológica do projecto.
gente, usado por muita gente e afecta sempre muita gente. A complexidade do processo construtivo acelera a tendência para uma atitude de distanciamento
Daí que sejamos tão facilmente crucificados ou, com o mesmo espúrio critério, santificados. ao estaleiro de construção que, como consequência também da estrutura legal dos contractos de
Por isso nos distraímos tanto. Gastamos demasiado tempo preocupados com a imagem que construção mais confina o arquitecto ao monitor do computador, à espacialidade literária, à sensação
projectamos. menos sensorial que sintética, à descrição retórica.
Nos tempos, como se diz em Moçambique, a única preocupação do arquitecto era a obra bem- O computador, magnifica ferramenta, não tem capacidade crítica que impeça o arquitecto de
-feita, segura, confortável, económica. imaginar o impossível. O jogo formal pode assumir a forma de exercício “esheriano” passado, depois,
Não se sabia sequer quem era o arquitecto. aos tecnólogos para que o transformem em possível, mesmo que ilógica, tectónica.
Agora, sem propaganda não há trabalho. Sem projecção não há auto respeito. Na fase de novo-riquismo tecnocrático que vivemos confunde-se irresponsabilidade construtiva
Sem a revista, sem a exposição, sem o livro não se é ninguém. com imaginação formal falsamente baseada no abuso dos meios que, agora mais que nunca, nos dão
É tempo de voltarmos a uma arquitectura que não seja uma “performing” arte, de voltarmos a a ilusão de um controle absoluto da previsão formal e espacial.
uma arquitetura que seja uma procura constante e uma descoberta permanente; aquela que tem em Constrói-se, assim, uma realidade fictícia, que se tenta transferir para o mundo real, justifi-
si própria o seu preço e o seu valor. cando-a e envolvendo-a com o manto diáfano de uma suposta cultura arquitectónica, auto re-
ferenciada e cada vez mais distante da materialidade das quatro dimensões tangíveis do mundo Tentar impedi-lo é como tentar parar o vento com as mãos.
construído. Os grandes blocos políticos e económicos estão cada vez mais impermeáveis à mudança neces-
Esta visão narcisista é estimulada por uma constante necessidade de inventar, para gastar, novos sária e indispensável.
”heróis” protagonistas da indústria da literatura arquitectónica que, através de uma divulgação acrí- Os EUA e a UE, os países nórdicos ou os do mediterrâneo, os da Califórnia ou de Brisbane, os de
tica, promove, pois que necessita, a novidade formal à custa da resposta inteligente e racional aos Brindisi ou os de Veneza vão ter que se adaptar à ideia de se tornarem cada dia menos fechados, cada
problemas do habitat sustentável e de qualidade generalizável e acessível a todos. dia mais cosmopolitas, cada dia mais expostos à miséria humana que provocaram e que pretendem
Mas os males mais profundos e difíceis de resolver estão, como sempre, ao nível da cidade. evitar ou que julgaram ter evitado.
É na construção do meio urbano onde a comunidade possa reassumir os valores de vida cívica, onde As cidades vão mudar.
as pessoas sejam de novo os protagonistas da riqueza humana dos espaços, onde o tempo seja recupera- Se não tomarmos a sério essa imparável avalanche vão mudar para muito pior para todos.
do e valorizado, onde a insegurança não seja mais um parâmetro do projecto, onde o espaço natural e Se nos prepararmos para abrir e utilizar as possibilidades que já temos na mão para resolver o
o espaço urbano se completem e equilibrem, onde a escala e a medida humana sejam as que definem as problema global mudarão para melhor para todos.
distâncias e os tempos e onde a arquitectura seja uma lógica consequência daqueles parâmetros e daque- E que têm os arquitectos a ver com isso?
las dimensões, que estamos, em geral e com raras excepções, cada vez mais longe daquelas qualidades. Nada, enquanto se refugiarem no seu esteticismo lírico, no seu cinismo “profissional” ou na sua
Naquelas bases, e só nelas, se pode e se deve construir o bom desenho urbano. tecnocracia mercenária.
Que responsabilidade temos nós arquitectos e urbanistas na construção de uma arquitectura para Tudo, se perceberem a arquitectura como uma actividade cívica, um campo de ação e aplicação
aquela cidade? dos valores éticos, um exercício de constante coerência ideológica.
Uma grande responsabilidade a nossa, embora a maior parte dela caiba dos políticos, pois que o 32 33 Tudo, ainda, se a procura formal e dos valores poéticos de cada decisão resultar da sabedoria
espaço da vida humana é sempre, antes de tudo, uma categoria política. técnica e ambiental, da economia de meios no seu sentido mais amplo, da racionalidade e da inte-
É no espaço que se materializam os vectores do poder que foi sempre e é, neste dia e época, o ligência.
objectivo primário da luta política. Dois factores são inescapáveis no exercício actual da arquitectura:
O espaço define a classe social, as vantagens materiais, o conforto da vida quotidiana, o lucro A coerência ideológica e a condicionante ambiental.
imobiliário, o luxo do tempo, o privilégio e a sede do poder. Não são novas estas dimensões, nem foram, até agora menos conhecidas. Mas é novo o seu valor
A cidade, esse espaço cada vez mais universal evolui, nas regiões mais populosas do mundo, para relativo pois é crítica a sua importância global.
uma realidade cada vez menos democrática. Cada vez mais segregada, mais dividida, mais longínqua, Tão crítica que de pouco nos serve uma história tão longa e tão nova que necessita de uma nova
mais desconfortável. arquitectura.
Argumenta-se que muitos centros históricos são cada vez mais apetecíveis, mais ricos de oportu- Uma arquitectura descomprometida com a história das formas e das maneiras de fazer, que
nidade cultural, mais habitáveis e mais belos mas, por cada um desses casos aumentam, cada dia, a
cidade dos marginais, o dormitório do perigo e do medo, o slum sem serviços nem infra-estruturas,
a distância impossível ao local de trabalho.
Dessa realidade só escapamos por chauvinismo, provincianismo ou alienação.
A aldeia global é, agora a cidade global. A cidade inescapável dos biliões de danados da terra, que
cresce todos os dias.
Paris, Londres ou Lisboa. Barcelona ou Roma. Beijing ou Nova Deli, São Paulo ou a Cidade
FSDFSD
do México, Tijuana ou El passo vão crescendo com uma humanidade que ninguém quer mas que DFDSGFDSFGV
ninguém pode impedir de ali chegar. DSFSDFDS
resulte das novas condições, que aproveite o novo conhecimento e que se exponha à surpresa da des- É portanto uma nova arquitectura que se impõe e se necessita. Uma arquitectura nova “por den-
coberta lógica e inevitável que lhe deve vir de uma visão mais vasta e longínqua que a do momento tro” e não vestida de “novidades” por fora. Nova porque responde a novas situações políticas, sociais,
ou do lugar. económicas e ambientais. Imperativamente nova porque se insere na necessidade, que pela primeira
Cabe, então, a cada um de nós encontrar o nexo entre aquelas dimensões e as decisões de cada vez se equaciona na história da humanidade, de garantir a sobrevivência da humanidade no planeta
momento, de cada dia e de cada projecto. ameaçado.
Em arquitectura ,arquitectura, talvez mais que na maioria das outras actividades criativas, “os so- Uma arquitectura que se integre na história das ideias e não, só na história das formas.
nhos da razão produzem monstros” e, no momento actual, os sectores críticos mais vocais e de maior As raízes dessa arquitectura existem já; irrompem em troncos robustos de novas formas de pen-
audiência querem monstros, que monstros são o que se vende, são o que “está a dar”. sar. Em todo o mundo profissionais conscientes esforçam-se por resolver o problema ambiental dos
O processo mais corrente, e menos nobre de conseguir resultados “diferentes” tem sido o do iso- edifícios por formas cada vez mais eficientes e menos comprometidas com formalismos epidérmicos.
lamento de um aspecto ou factor formal ou sociológico, ambiental ou tecnológico, para o transfor- Um corpo de doutrina científica importante existe e toda uma série de indústrias está a desen-
mar em leitmotiv forçado e magnificado para lá da sua importância relativa no conjunto de todas as volver-se para responder aos imperativos ambientais da construção sustentável. Se os arquitectos qui-
outras determinantes espaciais. Esta atitude de imposição ou alienação temática é de sucesso garanti- serem podem já projectar construções “inteligentes” ... assim as queiram os clientes e as imponham
do e fácil pois, na deformação que cria, torna clara, para leigos e conversos, uma leitura simplificada os regulamentos.
da obra emprestando-lhe, por defeito, uma presença esquemática de alguma força plástica que, na Não estamos, no entanto, nem perto, ainda, de uma atitude generalizadamente inteligente. A
maior parte dos casos, esconde uma indigência real de conteúdo e de contribuição à qualidade do vasta maioria do que se projecta e se constrói é ineficiente, de impacto ambiental negativo, social-
espaço urbano em que se insere. mente impróprio e urbanisticamente destrutivo.
Através desses esquemas e processos de composição tem-se vindo a criar uma tendência patoló- 34 35 O perigo continua a ser o mesmo de sempre: que se equacionem os problemas como tecnológi-
gica de imposição, bem suportada pela literatura oportunista, da arquitectura como objecto, quanto cos e não como eminentemente ideológicos.
maior melhor, da maior mediocridade como espaço habitável, ou realmente inabitável, epidermi- Caricaturando a situação: de que serve um edifício, magnificamente resolvido como máquina
camente tratada sem qualquer relação com o sistema de espaços interiores, sem função de controle espacial e tectónica sustentável, se, para servir as mesmas funções, se poderiam construir metade dos
ambiental e criminosa em termos económicos. seus metros quadrados?
Essa alienação em relação aos factores não visuais empobrece e esvazia a obra arquitectónica De que serve o enriquecimento espacial e funcional dos centros das nossas cidades quando as
do seu conteúdo mais profundo, reduzindo-a a objecto lúdico categorizável ao nível da moda e na periferias se vão empobrecendo e a sua população aumenta para densidades incomportáveis?
mesma escala temporal. De que servem seminários, congressos, reuniões científicas, associações de defesa do ambiente,
De resto, mais não seria de esperar como produto de uma sociedade que deve consumir e, antes publicações e os média em geral, se quem determina a qualidade dos edifícios é a máquina imo-
de mais, consumir imagens. biliária especulativa e não o estado, que deveria propor aos cidadãos as regras mais elementares da
E, contudo, ninguém nega o valor daquelas estruturas centenárias, e mesmo milenares, que nos urbanidade e da sustentabilidade?
servem desde a sua construção, admiráveis na sua tectónica e na sua utilidade, na sua espacialidade, na De que serve a sustentabilidade para alguns se ela não for assegurada a todos?
força da sua imagem. Neste sentido será relevante lembrar que alguns dos espaços, fechados ou abertos, De facto não há sustentabilidade para alguns enquanto houver descriminação, na acessibilidade
com a melhor acústica já construídos e ainda em uso, têm entre dois mil e quinhentos e duzentos anos às condições de habitabilidade mínimas que toda a humanidade deve ter asseguradas à nascença.
e seguiram regras canónicas que lhes não impuseram a necessidade de épater le bourgeois. Estarão estas reflexões muito longe da arquitectura? Muito longe do que fazemos todos os dias?
Por outro lado, entre esculturas fora de escala e tours de force tecnocráticos, vamos colectivamen- Penso que não.
te perdendo a maior oportunidade, desde que saímos da caverna, para fazermos uma arquitectura A evolução da figura profissional do arquitecto, como agente da transformação positiva do habi-
indispensavelmente nova, urgentemente inteligente, intransigentemente comprometida com a sal- tat humano, leva-nos à necessidade de uma cada vez mais profunda capacidade de análise filosófica
vaguarda do ambiente e verdadeiramente democrática. e posicionamento ideológico.
Do mestre construtor gótico ao humanista servidor do príncipe, o actual criador de espaços e Vale a crisálida do estaleiro donde sai o edifício acabado e cristalino.
formas arquitectónicas deve ser, agora, o pensador da razão de ser social alargada desses espaços e Vale o esforço do valor lógico da forma e do processo de a conseguir.
dessas formas. Vale a dúvida e a certeza, a paixão e a desilusão. Vale a luta, irracional, por acreditar que tudo
Para isso existem, agora, instrumentos fabulosos de materialização das suas ideias tectónicas e do isso vale a pena.
espaço urbano. Vale o papel branco e o monitor vazio; vale o potencial de esperança para lá deles.
A arquitectura e a urbanística são agora, mais do que nunca, o campo de acção de especialistas Vale o primeiro risco mental, a primeira intuição penosa ou explosiva, o pormenor coerente com
que lhes resolvem as dimensões técnicas e tecnológicas, que lhes controlam os processos de execução o que deve cumprir no espaço que resolve; vale a descoberta do desdobrar das formas no tempo; vale
e que lhes sabem avaliar as prestações, incluindo as ambientais. O arquitecto e o urbanista podem, o cheiro da arquitectura em construção.
agora, dedicar muito mais do seu tempo aquilo que é a sua exclusiva responsabilidade: pensar e Vale a irmandade dos construtores, a profanidade das palavras que exprimem e constroem;
projectar o espaço social coerentemente com os princípios universais do equilíbrio ambiental e da vale o ruído das máquinas, das coisas e dos homens, o perigo dos andaimes, o pó e a humidade do
justiça social. estaleiro, o suor no capacete.
Serão estas noções abstractas de mais e tão vastas que não têm sentido? Valem os anos que passam e as obras revisitadas.
Penso que não. Penso mesmo que não têm nada de abstracto ou de vazio de sentido. Vale a esperança de fazer melhor, essa esperança que implica que nos deixem fazer melhor e que
Penso, também, que a máquina especulativa é muito poderosa, imparável e demolidora. implica que se queira o melhor que deve ser feito.
A tentação da forma fácil e do ganho fácil corrói desde o início as carreiras profissionais. Arruma Mas a maior esperança de todas é a de que o nosso trabalho seja socialmente relevante, ambien-
inelutavelmente quem não se lhe submeta. Aspectos mais sinistros ainda envenenam a profissão: a talmente correcto, útil a mais gente, enriquecedor da vida urbana e que seja um trabalho necessário,
inscrição e o alistamento em partidos políticos, seitas, clubes, confrarias e sociedades secretas para 36 37 belo e profundamente poético.
conseguir privilégios, as comissões tomadas como legítimas e naturais, o projecto esquemático e in- Resta agora, nestas reflexões ligar a esperança nos valores artísticos à esperança no triunfo dos
completo como prova do “génio” do artista para quem o detalhe é uma mediocridade a resolver pelo valores éticos...
construtor e a pagar pelo cliente, a economia de meios e de espaço tomada como mesquinha, a falta
de senso social como um problema alheio, o corte dos honorários compensado com as comissões e
com o desrespeito pela qualidade do projecto, tudo isto práticas correntes e aceites sem vergonha.
E mais, porventura muito mais, que as organizações corporativas convenientemente esquecem
ou são impotentes para enfrentar.
Que nos fica como esperança?
Esta é uma questão que tristemente nos obriga a uma pausa de profundo significado.
Que nos fica, depois da pausa, como esperança?
Talvez não muito mas, escassamente, o suficiente?
Para alimentar essa esperança na arquitectura e no arquitecto vale a riqueza dos seus meios de
expressão: a densidade dos materiais e a tridimensionalidade e a temporalidade do que ele inventa e
do que ele constrói.
Valem o imediato da forma e dos sons que ela encerra. Vale a luz que revela ou esconde outras
distâncias, outras transparências, outras camadas do sensível e do intangível.
FSDFSD
Valem o refúgio sentido nessas dimensões, a presença desses espaços, a frescura conseguida e a DFDSGFDSFGV
protecção oferecida do abrigo. DSFSDFDS
UNIVERSIDADE DE BOTSWANA, LESOTO E SUAZILANDIA (UBLS) – PLANTA E FOTO JOSÉ FORJAZ
Architect at 26 º Latitude South Man needs shelter.
Man needs a family and a family needs a home.
18 August 2014 Man needs to work, to worship, to study, to be cared for in hospitals, to watch performances and
sports, to buy things, to move from place to place, to rest in peace.
People are born everyday and every day new houses, restaurants, offices, hospitals, churches,
factories, are needed.
It is the architect who designs them and helps to build them.
That is the relationship of people with architecture.
What is architecture, independently of people’s relationship with it?
Shelter: the house and the hospital, the shopping centre and the mosque, the office building and
the factory, are shelters and, as buildings, they must be designed and built.
Buildings are designed by architects, supervised by architects, changed and restored by architects.
Buildings are built from technical choices made by architects, with materials selected by archi-
tects, painted with colours chosen by architects and respond to sounds and smells controlled by
WHAT IS ARCHITECTURE IN 2014 architects.
Buildings use energy in more or less economical ways according to the way architects design
40 41 them.
I am an architect. Buildings let in more or less daylight and fresh air as best as the architect designs them in order
I have been an architect for 50 years, designing buildings, cities and furniture, monuments and to do so.
posters, the national flag and gardens, cemeteries and public squares. That is the technology that we use to make the buildings we design.
I have been teaching future architects to do the same things, hopefully better than what I can do. What is architecture beyond building technology?
I have enjoyed doing my work every day, from morning until night and from Monday to Monday. The dimensions of man, both physical and psychological, the sky and the form of the land and
I feel enormously privileged because I am paid for doing what I like to do. of the sea, the night, the sun and the wind, the shadows and the cold, the Winter and the Spring, the
Why do I like what I do? flight of the bird and the buzz of the insect, the other person and the loved ones are the true materials
I think it is because I can see what I think, and see it built and inhabited by people and enjoyed and motivation of invention, the essence of the architectural universe.
by people. Lived by people. If this is the universe and the essence of architecture what, then, is architecture in this universe?
It is also because, when I go about my city or around the world, I see buildings that are so beau- I have been looking for this answer for the last 50 years.
tiful, so well fitted in the landscape and in the city, so comfortable and so inspiring that it gives me I have not found it yet, but the search has filled my life with profound interest and motivation
a strong desire to achieve the same qualities in the buildings that I design. to keep searching.
Architecture is this door, this path and this way to fulfil the need to express oneself through You should do the same.
tangible realisations.
That is my relationship with architecture.
What is architecture, independently of my relationship with it?
Man, civilised man, need to be protected from the forces of nature, from other men, from
animals.
SER PROFESSOR
MONUMENTO AOS HEROIS MOÇAMBICANOS DAVID GOLDBLAT
Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico, A universidade é um tempo que vos é oferecido para pensar, para criar o vício do pensamento,
Universidade Eduardo Mondlane o dever do pensamento, a alegria do pensamento.
Responsabiliza-vos pela continuação do conhecimento acumulado ao longo dos últimos ses-
22 de Agosto de 1995 senta mil anos de cultura penosamente estratificada.
Quando vocês, que agora começam ou que estão no fim do vosso tempo, saírem daqui tudo o
que se vos pede é que sejam capazes (ou pelo menos tenham essa intenção) de continuar a cons-
truir um mundo mais eficiente, equilibrado, sustentável e belo.
Nós aqui somos construtores: arquitectos, urbanistas ou planificadores.
O edifício, a cidade ou a região são as dimensões da nossa invenção.
A essas escalas o problema vai do indivíduo à sociedade, e do país ao continente.
É nossa responsabilidade ensinar e aprender a construir uma ideia de espaço, de edifício e de
cidade.
A soma total de conhecimentos para o podermos fazer é colossal.
Vai da química à sociologia, da história à jurisprudência, da economia à destreza manual.
ABERTURA DO ANO LECTIVO 1995-96 Devemos conhecer o homem e a sociedade, os materiais e as tecnologias, a geografia e o clima,
a geomorfologia e as religiões.
46 47 Mas, sobretudo e antes de tudo, devemos conhecer-nos a nós próprios pois só dentro de nós
Estamos aqui para dar-vos as boas vindas. próprios é que encontraremos as verdadeiras sementes da invenção.
Que venham bem a um novo mundo de ideias que é pelas ideias que o homem se distingue A universidade, nesta Faculdade, dar-vos-á, se disso for capaz, nada mais que a dimensão da
dos animais. vossa ignorância, da nossa universal ignorância (pois que se trata só de uma questão de grau a
À nossa volta há um mundo natural com seus equilíbrios e os seus cataclismos. diferença entre a ignorância do professor e do aluno).
À nossa volta há o mundo que fizemos, nós homens, para melhor vivermos ao abrigo do frio, Disso se trata nestas questões de ensino e aprendizagem: o professor, se o é, é apenas mais
da chuva, do sol, dos animais e dos homens. consciente do que não sabe, da vastidão da sua ignorância. O professor, se o é, é apenas mais
Nos últimos sessenta mil anos passámos da caverna à cabana e da cabana ao palácio. capaz de estimular no aluno a coragem da descoberta, o vício da curiosidade, a alegria da razão
Nos últimos sessenta mil anos triplicamos a esperança de vida à nascença dos 25 para os 75 e do sentir, a capacidade de exprimir, a ciência de comunicar a dimensão técnica e a poética da
anos. invenção.
Nos últimos sessenta mil anos construímos uma ideia de nós mesmos, homens, mais próxima A isso vos desafio neste início do curso: a exigir sempre de quem vos ensina a honestidade do
da ideia do divino ou do sagrado. entusiasmo, a humildade da experiência, e generosidade do saber.
Passaram já mil anos, ou dois mil, desde que construímos as sete maravilhas do mundo. Talvez isto tudo vos pareça muito abstracto. Tudo isto mesmo se poderia dizer numa faculdade
Nos dois mil anos mais recentes construímos, pelo menos, outras setenta mil maravilhas. de medicina ou de direito.
Somos um animal inteligente, algumas vezes nobre, que aprende e ensina e produz e constrói. É verdade.
Somos também um animal selvagem que faz a guerra e que destrói. O saber, a cultura, a ciência são universais e daí que, na universidade, o que interessa é reflectir
Por isso vivemos ainda na pobreza e na vergonhosa miséria, inexplicável a não ser pela estupi- sobre o que há de comum no saber humano, não no que há de diferente.
dez da maldade, da ambição e ignorância. O que há de comum em todos nós, homens de boa vontade, é querer melhorar o mundo que
A universidade não é um lugar ou uma organização. recebemos.
O que há de comum é que só em comum o poderemos fazer. Sonhada como pesadelo assim existe na realidade da literatura para provar que tudo, se disso
Só quando o médico e o engenheiro, o arquitecto e o jurista repararem que estão a fazer a fizermos nossa vontade, somos capazes de sonhar.
mesma coisa e, para isso se compreendem, só então, quando isso (raramente) acontece, estaremos Aqui, neste nosso país martirizado as nossas cidades, a construir, não são projectadas pelos
a construir e a reconstruir, um novo mundo e um mundo melhor. astrónomos ou pelos astrólogos mas por nós. Não serão pálidos e deformados reflexos do firma-
Nós aqui, nesta Faculdade, aprendemos uns com os outros a trabalhar o espaço e o lugar, que mento constelar mas produtos da nossa compreensão, informada e inteligente, dos fenómenos
é o espaço no tempo. sociais, da forma da terra em cada lugar e do seu clima, da economia dos homens e, sobretudo,
Nos poucos anos que passaremos juntos esperamos poder dar-vos alguma capacidade de ma- dum longo exaustivo e profundo trabalho criativo.
terializar os sonhos que trazem dentro a cabeça. Para terminar quero dar-vos de presente um poema de um amigo já morto que nos ajudou a
Talvez mesmo, e isso é mais difícil, sejamos capazes de vos fazer acreditar que o sonho vale a viver mais fundo.
pena. Que sem o sonho o homem é apenas o tal “cadáver adiado que procria”. Um poema ao único instrumento que de vós exigimos que tragam sempre a postos, sempre
Quero dizer que o que nós vamos é tentar convencer-vos de que é possível e vale a pena sonhar afiado, sempre capaz das maiores audácias, sempre consciente de si próprio: a mente.
acordado.
“A mente mente completamente
“Chamados a estabelecer as regras para a fundação de Perinthia, os astrónomos estabeleceram o não é honesta com a carne limpa
lugar e o dia de acordo com a posição das estrelas; eles desenharam as linhas cruzadas do decumano e do ignora o osso, o nervo finta
cardo, a primeira orientada segundo o curso do sol e a outra com o eixo dos céus. passa a voar pelo sangue quente
Eles dividiram o mapa segundo as doze casas do zodíaco de forma que cada templo e cada bairro 48 49 num correfuge basto indecente
recebesse a influência certa das sua constelações propícias; eles definiram o ponto em que os portões
deviam perfurar as paredes, prevendo exactamente como cada abertura enquadraria um eclipse da lua a mente mente excelentemente
nos próximos mil anos. por gosto, gula, amor, sport
Perinthia – segundo eles garantiram – reflectiria a harmonia do firmamento; a razão natural e a ausente desse vital suporte:
benevolência dos deuses moldariam o destino dos seus habitantes. miolos moles no crânio quente
Perinthia foi construída seguindo exactamente os cálculos dos astrónomos, diversos povos vieram ...independente, independente
povoá-la; a primeira geração nascida em Perinthia começou a crescer dentro dos seus muros; e esses
cidadãos atingiram a idade de casar e ter filhos” A mente mente tão mentalmente
Nas ruas de Perinthia e nas suas praças encontramos hoje aleijados, anões, corcundas obesos e mu- que fica longe de ser ouvida
lheres com barba. Mas o pior não se pode ver: grunhidos roucos podem ouvir-se vindos das caves e dos centro da arena, nesta corrida
sótãos onde as famílias escondem filhos com três cabeças ou seis pernas. esconde-se atrás do burlamente
Oa astrónomos de Perinthia estão perante uma escolha difícil. Ou admitem que todos os seus cálcu- longe do corno do inteligente
los foram errados e que os seus números são incapazes de descrever os céus, ou então devem revelar que a
ordem divina é aquela que se reflecte exactamente nesta cidade de monstros.” a mente mente e mente à mente
que é ela mesma (no eco dela
Esta cidade mítica que Marco Polo teria descrito ao grande Kublai Khan, é na realidade um e ao peitoril desta janela
sonho de Italo Calvino, um grande escritor e sonhador contemporâneo, que a descreve nas suas inteligível, inteligente)
“Cidades invisíveis”. um estar sozinho num frente a frente
A mente mente, meu deus se mente
e no entanto que belo aprumo!...
sabe que a vida é só um fumo
e que osso, carne e sangue quente

lhe dizem: mente ...veementemente”

Poema de João Pedro Grabato Dias aliás António Quadros, uma vez e sempre professor desta
escola.

50

CASA DE HOSPEDES DA PRESIDENCIA DA REPUBLICA – MAPUTO JOSÉ FORJAZ


Oração de sapiência: Faculdade de Medicina, Naquela outra faculdade onde eu aprendo, e tento ensinar, estudam-se as técnicas e a arte da
Universidade Eduardo Mondlane adaptação do meio físico ao homem.
A isso chamamos, no seu sentido mais geral, arquitectura.
Maputo, 1998 Como facilmente se pode compreender as nossas são duas disciplinas complementares.
Por isso, e certamente, este imerecido convite para, perante vós, explorar alguns aspectos desta
tão clara e indispensável complementaridade, que seguramente, não se limita às nossas duas discipli-
nas, mas se estende, indispensavelmente, a todas as humanidades e a todas as ciências, que de todas
e para todas o homem é o centro e o seu objectivo mais nobre.
Recorrendo, então, a outra das disciplinas da nossa Universidade, que é a da história, gostaria de
ler-vos um pequeno trecho do primeiro teórico conhecido da arquitectura, um romano do século
primeiro D.C., de seu nome Marcus Vitruvius Polio, que escreveu um famoso tratado chamado “Os
Dez Livros da Arquitectura”.
Logo no Livro Primeiro, Vitruvius, descrevendo o que deveria ser a educação de um arquitecto e
quais as disciplinas indispensáveis a essa educação, escreve:
SAÚDE E ESPAÇO “O arquitecto deve também ser conhecedor do estudo da medicina tendo em conta as questões
do clima, do ar, da salubridade dos lugares e o uso das diversas águas. Porque sem tais considerações
52 53 a salubridade de uma habitação não poderá ser assegurada”
O homem é, de todos os animais superiores, o único que controla o ambiente em que vive e que, Mais adiante, no Livro Sexto, volta Vitruvius a explorar as relações dos edifícios com os elemen-
por isso mesmo, consegue viver em ambientes com grandes diferenças de temperatura, humidade, tos naturais dando instruções claras sobre a melhor orientação das diferentes partes de um edifício,
altitude, pressão atmosférica e intensidade sonora ou luminosa. para maior benefício da saúde dos seus habitantes e preservação dos seus haveres.
De facto o homem habita igualmente o Árctico ou os trópicos, o fundo do mar ou o cimo da Da história da medicina sei, para vergonha minha, muito pouco mas não me espantaria se
montanha, o deserto ou a floresta, a tundra ou a savana, a cidade sobrepovoada ou, nos nossos tem- Hipócrates se tivesse alongado sobre as virtudes profilácticas e terapêuticas da correta construção
pos, o espaço interestelar; pode deslocar-se à velocidade do caracol ou a milhares de quilómetros à dos edifícios para uso e habitação humana, de acordo com os sãos princípios da correta exposição
hora e tem ainda a capacidade extraordinária de desenvolver sempre, e cada vez mais, os limites da aos ventos mais favoráveis, ao sol esterilizador e à protecção contra os miasmas e contra os insectos
sua performance física. transmissores de doenças.
O homem, portanto, não só tem, e desenvolve, uma capacidade única de adaptação ao meio Através de toda a história da civilização humana o homem tem sabido procurar, e definir, os
como consegue, pelo puro exercício da sua inteligência, adaptar o meio às suas condições e aos seus princípios científicos que o ajudam a estabelecer condições cada vez mais favoráveis ao seu habitat
limites físicos e psicológicos. e que contribuam para o alongamento da vida e para o melhoramento das suas qualidades físicas e
Nisto o homem é único. psicológicas.
Também único é, o homem, na sua forma de agregação social que vai do eremita no cimo da Numa ciência de codificação mais recente, mas não menos importante – a da construção das
montanha ou do navegador solitário no meio do mar, ao habitante das grandes metrópoles com cidades, ou a urbanística – também os princípios da salubridade foram sempre dos primeiros factores
milhões de habitantes. considerados por qualquer teórico embora, infelizmente, quantas vezes esquecidos pelas forças mais
Nesta Faculdade, em que agora alguns entram e de que agora alguns agora saem, aprende-se e brutais da exploração e da especulação que tanto contribuem para a miséria de tantos meios urbanos.
ensina-se a natureza e os mecanismos do funcionamento dessa espantosa máquina de viver, e as suas Hoje, com a recente descoberta dos limites do nosso planeta, com a rápida evolução das novas
formas de relação fisiológica e psicológica com o meio físico. ciências do equilíbrio dos sistemas naturais e com um melhor conhecimento dos perigos da sua
sobreexploração, parece haver uma aprofundada consciência do equilíbrio das relações do homem A sociedade humana continua a habitar uma delgadíssima película à volta da terra limitada por
com o seu meio natural e das consequências nefastas da rotura desse equilíbrio. características e acidentes que lhe restringem, em muito, a superfície adequada à vida.
A literatura profissional do arquitecto reflecte, agora muito mais sistematicamente, essas preo- Durante o brevíssimo período em que o homem se formou e se tornou consciente da sua própria
cupações como posso, por exemplo, ilustrar com a transcrição do índice de um dos capítulos de um história foi, ele próprio, transformando aquela delgadíssima película e nela acumulando e inscre-
livro chamado “ A casa natural” que consta de: vendo os resultados do seu trabalho inteligente mas, também, infelizmente, os resultados da sua
A revolução química estupidez, avidez e ignorância.
A casa doente Os resultados destes poucos milénios de uso e abuso do nosso habitat estão presentes e visíveis
Poluentes e toxinas íntimas à nossa volta e são, simultaneamente, uma fonte do prazer de viver e de muito sofrimento escu-
O “síndroma do edifício doente” sado.
Dando resposta aos poluentes A espantosa dignidade da paisagem inteligentemente transformada para a produção agrícola, a
A casa poluidora majestosa elegância da ponte sobre o grande rio ou sobre o vale profundo, desenhada e construída
Em culturas e tecnologias não ocidentais também os princípios de organização do espaço são, sem um grama a mais de material necessário, a simplicidade protectora do porto de mar abrigado
muitas vezes, definidos a partir de pressupostos que têm a ver com aspectos de salubridade e que são pelo inabalável quebra-mar, a geometria útil da grande linha de energia ou da bem inserida auto-es-
expressos, até com maior clareza, através de tratados e aprendizagens de natureza quase religiosa ou trada, a violência contida da grande parede curva e tensa da barragem, que define novas linhas de
transcendental. horizonte, a estonteante riqueza dessa maior de todas as criações do homem que é a cidade, tudo isto
A sagrada ciência do Feng Shui, praticada durante muitos séculos na China, e em todo o uni- e muito mais só tem infeliz contrapartida na maldade ignorante dos que, sem compreender as forças
verso da sua influência, pelos chamados geomantas e ainda hoje rigorosamente observada por um 54 55 originais e a fragilidade do nosso meio natural, as subestimam e o forçam, as exploram e o abusam
largo sector da população daquela parte do mundo, tem como base a observação das formas e dos em vez de o usar e o destroem em vez de o respeitar.
fenómenos naturais para definir exactamente o local e as orientações mais propícias à inserção das A minha Faculdade foi criada exclusivamente para nos ensinarmos uns aos outros a difícil mas
estruturas da habitação e da vida social, em perfeito equilíbrio com as forças da natureza e, criar indispensável e urgente arte de criar e recriar todos os dias o espaço da vida humana, naquela já refe-
assim, um ambiente de grande equilíbrio com essas mesmas forças. rida e delgadíssima película à volta do nosso planeta.
Do oriente ao ocidente e através da história da humanidade podemos encontrar sempre, como Esta casca tem dimensões que vão do ecossistema à região, desde a paisagem à história, desde a
constante esta preocupação pelo estabelecimento sistemático de uma relação íntima entre os aspectos sociedade ao material, desde a manutenção à estética, desde a estatística à poesia.
da saúde e da construção. Essas dimensões todas, e mais outras cuja descoberta dá a medida de cada um de nós, devem
Com a evolução do racionalismo e das ciências exactas estabeleceram-se métodos e processes de todas ser percebidas, aprofundadas e integradas naquela que é a única e exclusiva responsabilidade
análise dos problemas da arquitectura e da urbanística que nos permitem quantificar os factores que
optimizam aquela relação para benefício do homem.
Neste processo de progresso técnico e tecnológico alguns dados vão evoluindo, outros são mais
estáveis e fixos.
A evolução da fisiologia humana é, provavelmente, tão lenta quanto a evolução das relações da
sua psique com as dimensões espaciais e topológicas, o que nos permite estabelecer com alguma
OS RESULTADOS DESTES POUCOS MILÉNIOS DE USO E ABUSO
segurança os limites da normalidade ou da patologia dessas relações.
Patologias psíquicas como a agorafobia a claustrofobia, o mais corrente medo das alturas ou do
DO NOSSO HABITAT ESTÃO PRESENTES E VISÍVEIS À NOSSA VOLTA
escuro são formas de relação com as dimensões espaciais de que o arquitecto, não menos que o psi- E SÃO, SIMULTANEAMENTE, UMA FONTE DO PRAZER DE VIVER
cólogo, ou o psiquiatra, devem conhecer e considerar no seu quotidiano profissional. E DE MUITO SOFRIMENTO ESCUSADO.
de uma escola superior para com os seus discípulos: a construção de uma atitude iluminada e respon- Peço que recuperem ou mantenham a inocência da curiosidade e da imaginação, sem a qual todo
sável do intelectual e do profissional perante a sociedade e a natureza. o processo de aprender se esvazia de significado;
Nesta responsabilidade são as nossas duas Faculdades iguais. Peço que reconheçam que o desinteresse é sempre culpa do desinteressado e que a ignorância é
Noutros aspectos se aproximam também as responsabilidades e os problemas dos médicos e dos sempre culpa do ignorante;
arquitectos. Peço que descubram que tecnologia sem poesia é tecnocracia, que é um dos piores vícios da nossa
É, por exemplo, uma verdade conhecida que toda a gente, iniciada ou não nestas nossas artes, época;
sabe sempre muito de medicina e, mais ainda, de arquitectura. Peço que descubram, pois, que ser poeta é uma obrigação e que a poesia e a única libertação;
Poderão as pessoas hesitar antes de emitir uma autoesclarecida opinião sobre problemas de en- Peço, mais uma vez, que se esqueçam dos exames e das notas e que aprendam por prazer;
genharia ou de biologia, de física ou de agricultura, de astronomia ou mesmo, e curiosamente, de Peço, finalmente, que se lembrem de que não há doenças mas doentes, tal como não há habita-
veterinária, mas das maleitas do próximo ou da forma da sua habitação sabem, em geral, o suficiente ções sem pessoas que as habitem.
para arriscar uma opinião que tem tanto de fundamentada como de mal informada. Uma palavra mais, apenas, para os que agora saem desta Faculdade.
Esta comparação é de facto exagerada pais, apesar de tudo, as pessoas arriscam muito mais opi- A eles também temos qualquer coisa a pedir:
niões acerca de arquitectura do que acerca de medicina. Pedimos-lhes que percebam que agora é que começa a verdadeira aprendizagem, que agora é que,
No entanto o problema, na sua essência subsiste: o médico e o arquitecto devem afrontar, no do pouco que aprenderam, podem ter a verdadeira medida, na solidão da responsabilidade das vossas
exercício da sua actividade, convicções profundamente enraizadas no subconsciente e no consciente decisões independentes.
dos seus clientes, convicções essas que não devem ser menos respeitadas ou tomadas em conta por Basta, então, pedir-vos que não percam nunca a medida da vossa própria ignorância e que consi-
serem, muitas vezes, não mais do que produtos de formas de divulgação mais ou menos superficial 56 57 derem como vossa obrigação aprofundar, cada vez mais, os limites da consciência do que ainda têm
ou das crendices mais obscuras. para aprender, pois que é essa a grande descoberta do intelectual e do profissional honesto:
Em ambos os casos a nossa obrigação é a de esclarecer, e mesmo educar, os nossos “pacientes” Conhecer cada vez melhor as fronteiras do que está para lá do que já sabe.
para que os seus hábitos e as suas formas de viver e de habitar contribuam para uma maior pleni- Espero que esta Faculdade vos tenha aberto as portas de saber que há ainda tudo para saber.
tude no gozo da sua vida física e de uma mais intensa e rica relação com as dimensões do espaço,
da luz, do som, da presença da natureza e dos valores poéticos da arquitectura, do espaço urbano
e da paisagem.
Talvez, mesmo, seja esta a dimensão mais nobre das nossas profissões: a de educar para a saúde,
no vosso caso, e para uma cultura do uso do espaço, no nosso.
Mas para isso é preciso aprender e para isso nos encontramos aqui e agora, dentro dos muros
desta Universidade.
Aprender é difícil, pelo menos tão difícil como ensinar, e, por isso, devo deixar aqui alguns pe-
didos que são os mesmos que há bem pouco tempo fiz na minha Faculdade, e que vos transcrevo,
quase na íntegra:
Primeiro, quero pedir aos professores uma compreensão profunda pelas dimensões humanas da
vossa actividade didáctica e uma verdadeira paixão pelos valores éticos e poéticos do exercício da arte
de curar;
Aos alunos, e muito especialmente aqueles que agora se juntam a nós nesta aventura do espírito, PEÇO QUE DESCUBRAM QUE TECNOLOGIA SEM POESIA
peço que acreditem que vale a pena aprender; É TECNOCRACIA, QUE É UM DOS PIORES VÍCIOS DA NOSSA ÉPOCA
CAPELA DO INSTITUTO SUPERIOR DE CIENCIAS RELIGIOSAS – MATOLA JOSÉ FORJAZ
Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico • A necessidade de investir uma grande parte do fundo de tempo didáctico na superação das
Universidade Eduardo Mondlane carências culturais sobre problemas ecológicos, dos novos alunos;
• A falta de preparação dos docentes para enfrentar os temas da sustentabilidade ambiental;
14 de Agosto de 2005 • A relativa inoperacionalidade e dificuldade de cumprimento da intenção de integrar os contri-
butos das diversas disciplinas nos exercícios de projeto;
• A falta de modelos e critérios, provados e testados, para um ensino mais próximo dos
objectivos definidos e para o estabelecimento de um processo de avaliação dos trabalhos
dos alunos baseado na qualificação objectiva da prestação ambiental das estruturas pro-
jectadas;
Algumas destas razões não podem ter soluções a curto prazo.
Por exemplo, a deficiente formação dos alunos que ingressam na FAPF só tem solução completa
quando o sistema de ensino secundário for também reformado e quando aos seus professores seja
dada uma formação cultural que integre a problemática ambiental.
As insuficiências dos docentes da FAPF são muito difíceis de superar pois acarretam julgamentos
REFLEXÕES SOBRE UMA NOVA DIDÁCTICA DA sobre a sua competência e sobre a sua atitude.
ARQUITECTURA NO INÍCIO DO TERCEIRO MILÉNIO A falta de experiência, noutros meios culturais, sobre esta matéria, é, também um obstáculo à
60 61 construção de um sistema com resultados comprovadamente positivos.
Contudo, as dificuldades mencionadas não podem justificar uma atitude passiva, menos cons-
Bases para um debate. trutiva e menos corajosa em relação à urgência da revolução a levar a cabo na nossa Faculdade, no
Estas reflexões impõem-se como resultado da maturação de 20 anos de responsabilidade pela di- sentido que atrás afirmámos.
recção do processo de formação de arquitectos em Moçambique, tendo sido sempre intuída a noção Será necessário abrir novos caminhos e definir e testar novos sistemas para esta didáctica.
de que não se lhes conseguiu transmitir efectivamente a urgência da necessidade da produção de Para isso devemos enquadrar conceptualmente o problema de tal forma que daí se construa uma
uma arquitectura ecologicamente responsável, no contexto do terceiro mundo. lógica insofismável que nos conduza a planos práticos e operacionais de actuação.
De facto não nos foi possível até hoje criar uma base filosófica que se resolva num plano de es- Passemos portanto a isolar as questões essenciais para que se tornem cristalinos todos os dados
tudos reflectindo uma ordem de prioridades onde o equilíbrio ambiental seja a condição primária e do problema:
essencial à validação de qualquer proposta de projecto. A primeira questão, e a mais vasta, é a de definir com a máxima clareza quais são os objectivos
As razões que explicam esta situação são de diversa natureza e interessam aqui na medida em que essenciais da actuação do planificador físico e do arquitecto na sociedade;
a sua compreensão ajuda a resolver os impedimentos à formação de uma nova atitude e à elaboração A questão seguinte será a de como estabelecer as pontes necessárias entre a realidade social e
de uma nova proposta do processo do ensino do planeamento e da arquitectura. cultural envolvente e os planos de actuação teóricos, que a preparação científica deve claramente
Podemos considerar as seguintes razões, ou dificuldades a superar, para se poder avançar nessa definir e justificar;
elaboração: Por fim, levanta-se a questão da capacidade da Faculdade para fazer face ao desafio, dentro das
• A falta de uma consciência esclarecida e generalizada, entre os profissionais, sobre a gravidade limitações do sistema universitário vigente, das carências dos seus docentes, pessoal administra-
dos problemas ambientais e sobre a urgência da sua consideração como temas e problemas tivo e do seu orçamento.
centrais no processo do planeamento físico regional e urbano e do projecto de edifícios e de A resposta a estas questões deverá dar-nos indicações mais claras e menos ambíguas sobre como
todas as outras estruturas construídas necessárias ao habitat humano; avançar para uma instituição de ensino, investigação e extensão comprometida com a solução da
nova ordem de problemas globais, em que o habitat humano participa, e sobre as estratégias mais to das transformações do ambiente natural e urbano e concebendo as estruturas para responder às
adequadas para encontrar essas soluções. necessidades sociais, para que seja assegurado o equilíbrio ecológico e a sustentabilidade ambiental.
À primeira questão interessa uma perspectiva histórica que nos dê a dimensão da mudança de Nesta definição é a condição ambiental que aparece com uma nova e primordial importância no
atitude necessária, sobretudo na fase histórico-cultural actual, que se caracteriza por uma grande início do século 21 e que não pode ser mais secundarizada dada a rapidez e a importância das trans-
confusão de valores e, consequentemente, de objectivos. formações ambientais negativas, já há muito anunciadas mas ainda não suficientemente consideradas
Uma série de novos factores vieram alterar os termos da relação do arquitecto com a sociedade e em toda a sua gravidade.
com o meio ambiente. Esta relação, no mais amplo sentido inclui, na nossa Faculdade, o âmbito da A segunda questão, enunciada atrás como determinante, foi a de identificar e estabelecer estra-
organização do espaço regional e do espaço urbano. tégias realísticas para uma didáctica da arquitectura e do planeamento comensuradas com a situação
Esses factores são de ordem social, económica, política e ambiental. cultural e material do país.
A utilidade e necessidade social do arquitecto inclui, agora, o projecto de todas as estruturas que Estas estratégias devem ter em conta não só as dimensões da realidade física mas também as da
servem a sociedade moderna das residenciais às produtivas, das religiosas às culturais, passando pela realidade demográfica, económica, político-administrativa e cultural de Moçambique.
sua participação no projecto das grandes infra-estruturas e obras públicas. Neste sentido têm importância capital, e como tal devem ser considerados, aspectos como a
O urbanista e o planificador físico são, na prática, figuras novas ao serviço da sociedade. carência generalizada de informação científica ao nível da maioria da população, a falta de fóruns
A ideia de que a distribuição das actividades humanas no território pode e deve ser determinada científicos e técnicos onde os problemas do ambiente sejam equacionados e perspectivados, o isola-
por parâmetros de ordem científica, independentes de interesses políticos e, ou, eminentemente ma- mento científico entre as universidades e as faculdades; o baixo nível científico e a falta de maturidade
teriais, só muito recentemente conduziu à necessidade de formar especialistas nessas matérias, cuja dos escalões de direcção da administração pública; a influência, muitas vezes negativa em termos
relação com o ambiente construído os aproximam nas suas atribuições tanto que se podem assimilar 62 63 ambientais, dos investimentos em indústrias extractivas, do turismo, da exploração de recursos flo-
aos arquitectos como extensão das suas funções. restais, e outras em que a participação nacional é cooptada e funciona, muitas vezes, como elemento
Tal é o caso em sociedades com menos capacidade de especialização como a moçambicana. facilitador da degradação ambiental.
A evolução da sociedade humana, no sentido de uma mais justa divisão dos recursos naturais e Como aspecto essencial da nossa situação sociocultural e económica temos ainda que considerar
benefícios materiais e da democratização na escolha dos seus representantes políticos, teve também a natureza dos problemas ambientais que se criam como resultado do baixo estado de desenvolvi-
consequências importantes e determinantes para a função social do arquitecto, que se vê agora res- mento da nossa sociedade. Nesse sentido têm particular relevância os problemas energéticos, de
ponsabilizado, mesmo ao nível ético, pela natureza do trabalho que aceita projectar. saneamento básico, de produção alimentar e, antes de mais, a altíssima taxa de crescimento demo-
Numa sociedade democrática deixa de ser desculpável a participação, mesmo que só ao nível gráfico.
técnico, em realizações com impactos sociais ou ambientais negativos. Finalmente, na preparação dos futuros arquitectos é de fundamental importância a consideração
O arquitecto não é mais o fiel servidor do príncipe ou do ditador mas tem, agora, o direito e o do estágio de desenvolvimento das nossas indústrias em geral e, particularmente, da indústria da
dever de questionar o que a encomenda tem de impacto social positivo ou negativo, de justo ou de
injusto, de ambientalmente aceitável ou condenável.
Ao arquitecto compete, agora, uma atitude activa na procura dos meios técnicos e estéticos para
a criação de um ambiente construído que reflicta e integre os elementos coerentes com os grandes
princípios universalmente aceites dos direitos humanos e do equilíbrio e sustentabilidade ambiental.
Poderíamos propor uma definição, talvez ainda tentativa e incompleta, mas abrangendo os ob-
jectivos essenciais da actuação do arquitecto que nos sirva de guia para a construção de uma filosofia,
NUMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA DEIXA DE SER DESCULPÁVEL
profundamente amadurecida e radicada na realidade, base indispensável do seu sistema de ensino: A PARTICIPAÇÃO, MESMO QUE SÓ AO NÍVEL TÉCNICO, EM
O arquitecto é o organizador do espaço habitável, a todas as escalas, coordenando o ordenamen- REALIZAÇÕES COM IMPACTOS SOCIAIS OU AMBIENTAIS NEGATIVOS.
construção e subsidiárias, bem assim como uma visão realista e ajustada do potencial tecnológico dis-
ponível para projectar, orientar e fiscalizar o processo da construção, em todas as suas especialidades,
e assegurar a correcta manutenção das construções.
A terceira questão estrutural considerada diz respeito à própria natureza e condição da Faculdade
ela própria.
Talvez que seja este o tema mais fácil de objectivar mas não é certamente aquele que soluções
mais simples pode encontrar.
Os limites à eficácia da FAPF como mecanismo de formação de arquitectos mais e melhor prepa-
rados para uma actuação mais competente, no nosso meio e nas nossas condições, foram já indicados
no princípio desta reflexão.
Interessa agora reflectir sobre qual a melhor estratégia para superar aquelas dificuldades que são,
como indicado, de diversas naturezas, e abrir caminho a uma mais efectiva formação dos nossos es-
tudantes, investigadores e professores, para poderem fazer face aos desafios de uma nova arquitectura
determinada pela necessidade de resolver, ou contribuir para a solução dos problemas ambientais.
Esta reflexão deve ser um momento de encontro na nossa Faculdade significando o início da
participação efectiva de todos na construção de um ambiente onde todos se sintam como partici-
pantes no processo de descoberta e aprendizagem colectiva que deve ser o objectivo mais vasto da 64
universidade.
Estas reflexões só têm sentido se forem compreendidas no quadro dos problemas ambientais que
nos afligem neste início do milénio.
Devemos por isso pedir a cada participante, aluno ou professor, que se consciencialize em relação
a essa problemática para que possa obter uma visão pessoal bem informada que lhe autorize uma
contribuição efectiva. Naturalmente que nos comprometemos a facilitar por todos os meios possíveis
esse esforço de cada um e desde já agradecemos toda e qualquer contribuição nesse sentido.
Entendemos estas reflexões como uma base para o debate que se iniciará com a próxima reunião
geral da Faculdade no dia 19 de Agosto às 15 horas, para a qual estão todos os alunos, professores e
funcionários desde já convidados.

CASA ROXO LEÃO – MAPUTO JOSÉ FORJAZ


Abertura do Ano Lectivo de 2006 Primeiro, porque a maioria dos arquitectos estava ao serviço da especulação imobiliária, a qual
da Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico foi desmontada quase imediatamente a seguir à independência;
da Universidade Eduardo Mondlane Porque houve uma continuidade mais ou menos tecnicamente assegurada dos projectos em
curso;
Maputo 20 de Fevereiro de 2006 Porque se não associava a arquitectura ao planeamento das cidades e das regiões;
Porque se pensava que o planeamento era do âmbito da economia e da sociedade;
Porque, finalmente, se não sabia o que é que os arquitectos fazem na realidade.
O nosso começo, como faculdade, não foi fácil.
Durante os primeiros anos não conseguimos sequer preencher a nossa magra quota de 24 alunos
no primeiro ano.
Pouco a pouco, os números foram aumentando.
Agora só temos lugar para menos do que um quarto dos que têm condições para entrar.
Que se passou nestes vinte anos?
Por que é que há menos de vinte anos havia menos do que vinte candidatos ao estudo da arqui-
ARQUITECTURA... PARA QUEM COMEÇA tectura e agora há trezentos?
Esta questão talvez seja melhor respondida pelos que hoje se apresentam para começar a ser
66 67 formados como arquitectos.
Entram hoje novos alunos pela vigésima vez na história desta nossa Faculdade. Possivelmente terão boas razões.
Não sei se isto terá algum significado especial. Possivelmente terão algumas confusões.
Possivelmente não terá. Mas uma coisa é certa: já ouviram falar da profissão do arquitecto como uma actividade nobre,
Mas nós vemos sempre uma certa magia nos números, e vinte anos já é significativo na história útil à sociedade e, certamente esperam que ela pode vir a proporcionar uma vida material confortável.
de um país que só tem trinta de independência. Penso que não se enganam.
Gostava de me referir, e de vos propor uma reflexão, sobre estes dois pontos: Todos esses aspectos são verdadeiros.
Porquê esta desfasamento de dez anos entre o nascer do país independente e a abertura de uma Ou podem ser se vocês saírem desta escola preparados e conscientes das vossas responsabilidades
faculdade de arquitectura; sociais e profissionais, das dimensões éticas da nossa profissão e do código deontológico que devem
E o que quer dizer este novo grupo de alunos a formar. seguir nas vossas relações com os vossos futuros clientes e com os vossos colegas.
No momento da independência ninguém pôs em causa a absoluta necessidade de uma faculdade Aquelas duas dimensões, a ética e a deontológica, são as que distinguem o arquitecto do co-
de engenharia ou de medicina ou de direito ou até de ciências. merciante sem escrúpulos e são, por isso mesmo, tão importantes quanto as dimensões técnicas e
Todos sentiram a grande e imediata necessidade de uma faculdade de educação para formar artísticas que vêm aqui, também, aprender.
professores já que a educação foi sempre vista como a pedra angular do desenvolvimento. Mas há uma outra dimensão na actividade do arquitecto, na sua vida interior, na compensação
E no entanto havia, no país, muito mais engenheiros e médicos e juristas e mesmo professores, espiritual que ele deve e pode esperar do seu trabalho: o prazer, e a enorme realização pessoal que esse
do que arquitectos. trabalho lhe traz quando inventa e cria novos espaços e novas formas onde o individuo, a família e a
Por que razão então essa falta não era sentida como grave e essencial ao desenvolvimento do sociedade podem viver melhor.
país? Essa é uma dimensão especificamente nossa, dos arquitetos, e dos urbanistas, isto é, dos que
Penso que por vários motivos: organizam o espaço físico onde vive o homem.
Essa dimensão criativa não é exclusiva do arquitecto, do artista ou do poeta que ele também deve
ser, ou do médico ou do cientista.
Ela deve ser de todos os intelectuais, de todos os que reflectem sobre o significado do que fazem,
ou que do querem fazer.
Infelizmente não é sempre assim.
Infelizmente, cada vez há mais quem escolha uma profissão exclusivamente pelos supostos bene-
fícios e vantagens materiais que essa profissão lhe pode trazer em relação a qualquer outra.
Essa é a pior receita para uma vida rica e realizada.
Nesta hora do início da vida e da profissão que escolheram só há um conselho a dar-vos: apai-
xonem-se pelo que vão aprender, tentem descobrir toda a riqueza e toda a profundidade do que é
pensar e fazer arquitetura.
Percebam que há mais prazer no trabalho de que aprenderam a gostar, do que nos prazeres con-
vencionais que se esgotam no seu próprio tempo.
Outro conselho ainda: não é necessariamente nas aulas que vão aprender os aspectos mais im-
portantes e mais significativos da arquitetura. É convosco próprios, a partir da vossa curiosidade e
insatisfação, do vosso entusiasmo e da vossa capacidade de se maravilharem com as descobertas e
as realizações do que 40 mil anos de cultura humana produziram neste planeta e de que somos os 68
guardiões e os continuadores.
Aos vossos professores não peçam fórmulas e artifícios.
Peçam-lhes que vos entusiasmem e que vos ensinem a aprender. A vocês próprios peçam paciên-
cia e interesse.
Não se descobrem todas as riquezas e toda a beleza desta grande aventura do espírito, e da emo-
ção, que é fazer arquitectura, num dia ou num ano ou em muitos mais. Talvez nem mesmo em toda
a vida.
A nossa missão como professores é guiar-vos nessa descoberta, fazer-vos descobrir essa paixão.
Para isso é preciso acreditarmos nela.
Espero que todos nesta sala sejamos rivais nessa paixão pela arquitectura.
Só assim seremos uma verdadeira escola.
Sejam pois todos bem-vindos a esta escola que, todos juntos, continuaremos a tentar construir
melhor.

CATEDRAL DE PEMBA JOSÉ FORJAZ


Aula inaugural da Escola de Arquitectura É certo que não se pode fazê-la sem aqueles processos e métodos científicos e técnicos que, se são
da Universidade do Minho indispensáveis, não são suficientes.
Ano lectivo 2010-2011, A análise exaustiva dos elementos e dos factores quantificáveis de um projecto, da sua relevância
social e do seu significado para quem o promove e para quem o experiencia; a aferição da sua escala e
Guimarães, 27 de Outubro 2010 do seu valor de presença na cidade ou na paisagem; o seu impacto ambiental; os limites económicos
da sua realização e operação e a sua durabilidade são dimensões que se devem, obrigatoriamente,
investigar por serem as bases indispensáveis a qualquer criação arquitectónica.
Contudo essa análise não dá, por si só, a essência do projecto, que é a questão que interessa, aqui,
tentar esclarecer
Será possível generalizar, encontrar regras, pontificar sobre a matéria e os processos da invenção?
Será a invenção uma qualidade essencial ao projecto?
Serão a novidade, a diversidade, ou a diferença, os objectivos mais respeitáveis e mais nobres de
um projecto?
Será que um projecto com essas qualidades é, necessariamente, um bom projecto?
ARQUITECTURA: A ESSÊNCIA DO PROJECTO Quando os arquitectos reclamam para si as mesmas liberdades que assistem aos pintores ou aos
poetas, será porque alguém lhas retirou?
70 71 De que liberdades estamos, então, a falar?
Perguntei-me, quando me convidaram para esta conversa, o que dizer, a quem o vou dizer e como A de produzir objectos mais ou menos habitáveis?
vou dizê-lo. A de fazer a sociedade pagar o custo de especulações formais, vazias de sentido económico e social
Tive, várias vezes, que fazer conversas semelhantes quando dava as boas vindas aos estudantes da e irresponsáveis em termos ambientais?
faculdade que dirigi durante muitos anos. A de adoptar a moda das bolhas, dos inclinados ou contorcidos, para não parecer falho de ima-
Ali, falava como director e académico. ginação?
Hoje, aqui, e como profissional, tentarei comunicar algo que contribua para estimular o vosso A de inventar falsas justificações ambientais para justificar especulações e encontrar pretextos
interesse e o vosso sentido de responsabilidade no exercício da vossa futura profissão de arquitectos. para outras irresponsabilidades formais?
Proponho-me expor algumas ideias, e muitas dúvidas, que se têm revelado como importantes A minha perspectiva é diferente.
neste percurso de cinquenta e mais anos de trabalho, pois alguma coisa poderei ter eu aprendido e Lá, no terceiro mundo onde vivemos, ainda se justifica pensarmos que o melhor arquitecto e o
algumas certezas poderei ter eu enraizado. melhor engenheiro são aqueles que conseguem mais espaço com menos gastos.
Não é, porém, exactamente assim. Ainda pensamos, ou deveríamos pensar, que não é o cliente quem manda, mas a nossa consciên-
Certezas cada vez as tenho menos e o que melhor aprendi foi que o que sei não é sequer cia social, os limites éticos da nossa profissão e a coragem de acreditar que só dentro desses limites se
comparável com o que deveria ter aprendido, donde posso concluir que cada novo projecto podem, e se devem, encontrar as potencialidades expressivas da nossa capacidade criativa.
é um novo desafio, uma nova incerteza, um pretexto para novas descobertas e uma prova do Repito, se me permitem: só dentro desses limites procuro encontrar, eu, o combustível e a ma-
pouco que sei. téria da invenção.
Penso que assim é porque fazer arquitectura não decorre, exclusivamente, de processos ou méto- Peço-vos, agora, um pouco mais de paciência para esta apaixonada confissão, que não tem nada
dos lógicos, científicos e técnicos, cujo conhecimento vamos, progressivamente, acumulando. de moralista mas sim, e tudo, de ideológico.
Fazer arquitectura é, essencialmente, um processo emocional. Explico-me: as sociedades de que fazemos parte são, ou parecem ser, cada vez, mais homogé-
neas nos seus valores e ambições pessoais, nas suas formas de viver e de pensar e no progressivo Mencionei o factor económico como um conteúdo condicionante, e um dos mais importantes,
afastamento à realidade natural e às trágicas realidades sociais, cada vez mais longínquas, pois que da concepção arquitectónica.
através da realidade virtual são mais fáceis de assumir como verdade sem um real envolvimento Penso ter ficado implícita, no que referi, a relevância dos aspectos culturais do meio para o qual
pessoal. projectamos e de que essa relevância não é uma dimensão abstracta do nosso trabalho.
Não posso explorar aqui as consequências deste fenómeno global mas julgo importante trazê-lo Mede-se, objectivamente, pelo comportamento dos edifícios que desenhamos, pelo desempe-
a esta conversa. nho das obras que dirigimos e pelos efeitos que elas produzem no meio natural e social em que
É importante na medida em que essa homogeneidade é ilusória. se inserem.
De facto, e mesmo com todas as nobres intenções do Millennium Development Goals o de- Quais são, então, esses efeitos e esses comportamentos e que impactos têm eles nas pessoas, na
sequilíbrio entre ricos e pobres continua a crescer, e a crescer sobretudo nas cidades, que são onde sociedade e no ambiente?
trabalham os arquitectos. Há 40.000 anos que o homem desenha nas paredes.
Que tem isto a ver com arquitectura e que relevância poderá isto ter para esta discussão, uma vez Que se exprime pela arte.
que se trata da ordem política dos problemas, e não será a arquitectura que a irá mudar? São 1.600 gerações de humanos que acrescentaram experiência e sabedoria àquela forma de
Esta é a dimensão ética dos problemas e ela impõe-nos algumas considerações fundamentais. expressão.
Vivemos num mundo onde os recursos naturais são finitos e onde a sustentabilidade da vida no A arqueologia e a antropologia não nos disseram ainda, com segurança, quando se definiu a
planeta se baseia na interdependência de ecossistemas globais. figura do artista como um membro especializado da sociedade.
Vivemos num mundo onde aquisições éticas duramente conquistadas, como a Carta Universal Podemos afirmar, no entanto, que o arquitecto e o construtor foram, desde sempre, entre os
dos Direitos Humanos, obrigam ao reconhecimento do direito a condições de vida aceitáveis, e que 72 73 primeiros responsáveis pela qualidade da vida humana no planeta.
são possíveis, para todos os quase sete biliões de pessoas no planeta. O abrigo dos homens foi, desde sempre, uma condição de sobrevivência e a qualidade desse
Estamos, pela primeira vez na história, na situação privilegiada de conhecermos os nossos limites abrigo um factor de longevidade e de estabilidade psicológica.
e termos a consciência generalizada dos nossos direitos. Há 3 gerações, Frank Lloyd Wright, afirmou que “uma casa é mais um lar se for uma obra de
Temos acesso a todas as riquezas do planeta e sabemos calcular os custos sociais e ambientais da arte”: “a house is more a home by being a work of art”.
sua exploração e do seu uso. Disse-o no princípio do século passado, exprimindo a indissociável relação entre o conteúdo
Aprendemos o cálculo estatístico e conhecemos os impactos, negativos e positivos, das nossas técnico – a casa, o conteúdo familiar – o lar, e a qualidade estética – a obra de arte.
opções tecnológicas e artísticas. Há dois mil anos, e passaram 80 gerações, Vitruvius concentrou na trilogia: utilitas, firmitas,
Não podemos continuar a esconder-nos atrás da ignorância ou da tecnocracia, sejam elas pratica- venustas – a essência dos princípios da arquitectura, relacionando-os com o contexto natural, social,
das pelos nossos clientes ou por nós próprios, para justificar divagações formais vagamente poéticas. técnico e cultural.
Mas não vim aqui para vos falar de forma.
Forma é a satisfação de um conteúdo, e atinge-se através de processos e de métodos, e é desses
que me interessa falar
Exploremos, então, o conteúdo de conteúdo.
Referi já a dimensão do conteúdo social da arquitectura.
Referi, sem aprofundar, o conteúdo ambiental da actividade projectual.
Aludi ao meio urbano e ao meio rural, dimensões que ultrapassam o meramente contextual para ESTAMOS, PELA PRIMEIRA VEZ NA HISTÓRIA, NA SITUAÇÃO
assumirem valores determinantes quer em termos ambientais em termos da inter-relação e do com- PRIVILEGIADA DE CONHECERMOS OS NOSSOS LIMITES E TERMOS
portamento dos edifícios nessas duas situações. A CONSCIÊNCIA GENERALIZADA DOS NOSSOS DIREITOS.
Há mais de 150 gerações, 1780 anos antes da nossa era, na Suméria, Hamurabi redigiu um ratura arquitectónica técnica e teórica, publicada todos os dias e em todo o mundo, dedica 90% da
código que responsabilizava legalmente os construtores pela segurança e qualidade da obra que cons- sua atenção a realizações irrelevantes sob o ponto de vista social, criminosas sob o ponto de vista
truíam. económico e ambiental e vazias de sentido sob o ponto de vista tecnológico.
Não pela sua forma. Vivemos uma fase de profunda perversão de valores, onde atingimos, sistematicamente, os ní-
As razões da forma em arquitectura foram, desde sempre, encontradas fora dela própria e fun- veis mais baixos de ética profissional e onde o cinismo das figuras mediáticas engana e amedronta
damentadas em três grandes vectores fundamentais: a sua necessidade e as condições tecnológicas e estudantes e profissionais que não se dão conta, pois que a própria sociedade que os sustenta assim
económicas da sua produção. os condiciona, da profunda mistificação que se montou à volta de míticos valores estéticos sem con-
A necessidade é a expressão das condições sociais e culturais do cliente, individual ou colectivo, teúdo social, económico, ambiental ou tecnológico.
institucional ou religioso. Mais grave é a crise quando, simultaneamente, nunca foi tão grande o potencial de expressivida-
Essas condições são, muitas vezes, contraditórias e o arquitecto não pode negar-se a tomar posi- de formal e de congruência estética com os factores de sustentabilidade, nem tão grande o domínio
ção quando os interesses privados, que representa, colidem com os interesses da comunidade, ou da tecnológico da ciência da construção.
preservação da qualidade ambiental e da sustentabilidade. Da nossa longínqua perspectiva, o estudo de um desenho de pormenor de muitos dos projectos
A tecnologia é o conjunto das ferramentas de que o arquitecto dispõe para, da maneira mais de edifícios, publicados todos os dias em revistas e manuais do mundo desenvolvido, revela valores
eficiente, utilizar os materiais e projectar, com respeito pelo ambiente. de verdadeira incredulidade tecnocrática.
O arquitecto não deve utilizar as ferramentas tecnológicas aquém, ou para lá desses limites e deve O diferencial de qualidade ambiental, de prestação energética, de sustentabilidade potencial, de
procurar, sempre, melhorar o seu uso e criar novas ferramentas. níveis de conforto e de qualidade espacial desses edifícios comparativamente à produção arquitectó-
A economia é uma dimensão ambígua pois há a considerar a economia social e a economia pes- 74 75 nica de meios menos tecnologicamente sofisticados, é tão ínfimo e subtil que nos perguntamos se,
soal, a economia ambiental, a economia de meios e, mesmo, a economia formal. legitimamente, se justificam os espantosos diferenciais de custo e desperdício que tais manipulações
A economia só pode ser medida em termos relativos, e sempre em função de todas aquelas di- representam.
mensões. Caricaturando: seria interessante uma comparação tecnológica e ambiental entre o Panteão de
A obra, seja de que natureza for, responde a todas estas razões, mas pode responder bem ou Roma, construído há 2.000 anos com três materiais – tijolo, betão e pedra e a mais moderna igreja
responder mal. romana... que não vai certamente durar 2.000 anos ...
A qualidade dessa resposta pode, e deve, ser medida em termos objectivos, mas esses termos são O Panteão continua a servir a sua função religiosa, com um mínimo de manutenção e sem ne-
insuficientes pois a qualidade de obra de arte, que a obra arquitectónica deve ser, é função, também, cessidade de complexos sistemas de conforto ambiental e é usado, todos os dias do ano, por milhares
de factores subjectivos que reflectem a personalidade emotiva e criativa do arquitecto. de pessoas.
Os parâmetros tradicionais de aferição da qualidade arquitectónica estão, agora, em fase de pro- A nova igreja romana, de autor mundialmente conhecido, é um catálogo de tecnologias, tão
funda revisão. sofisticadas que o próprio Vaticano teve de intervir para exigir simplificações tecnológicas e não é
Essa revisão tem sido promovida, artificiosamente, pela comercialização das formas de comuni- sustentável sem uma constante manutenção estrutural e dos seus complexos sistemas de conforto
cação que necessitam criar, e consumir, imagens e heróis, em todos os sectores da vida das sociedades ambiental.
contemporâneas, e à qual se submetem, irresponsavelmente, organizações de produção de projectos, Mas o parâmetro mais desprezado pelos cultores das novas modas formais é o da quantidade
que impõem, pelo mesmo mecanismo sinistro de manipulação da opinião pública, as mais irracionais de espaço coberto atribuído às necessidades funcionais e sociais mais correntes nos edifícios que
respostas que a sociedade de consumo, que os criou e que os sustenta, exige, numa tendência contínua projectam.
de destruição do equilíbrio ambiental e de exclusão social, que lhes são as consequências inevitáveis. Não menciono sequer as realizações supérfluas ou francamente inúteis que se vão acumulando
Entre uma sociedade cada vez mais definida pela sua determinante hedonística e a grande maio- para fins obscuros ou meramente lúdicos em que me chocam os níveis de desperdício de espaço
ria da população mundial que não tem acesso ao mínimo necessário à sobrevivência, 90% da lite- coberto a que se dão ao luxo as sociedades dos chamados países desenvolvidos.
A irracionalidade das realizações espalhafatosas e grotescas das grandes corporações, as fortunas da representação do poder ou de interesses privados, que, cada vez menos, resolvem, nos seus con-
gastas pelos países em eventos de promoção e demonstração da sua capacidade de desperdício e que teúdos e condições, o que lhes cabe de responsabilidade na resolução dos problemas fundamentais
em nada contribuem para a qualidade generalizada de vida das pessoas; a comercialização e elevação da sociedade humana, na sua dimensão mais universal.
a nível quase religioso do “desporto”, que pervertem os verdadeiros valores da prática da actividade Este mercenarismo corporativo, cada vez menos sustentado por razões éticas e técnicas, atinge
física e as infra-estruturas das quais se investe mais que na promoção da actividade desportiva, são expressões de dimensão épica quando se perdem de vista os objectivos essenciais da nossa arte e
manifestações contra as quais parece urgente uma profunda revisão do sistema de valores da socie- profissão.
dade contemporânea. Como exemplo transcrevo a descrição de uma tecnologia recentemente criada para “ilustração”
Quando, numa tribuna de imprensa para comentar jogos de cricket, em Londres, se investe mais das fachadas, a pretexto da reinserção do elemento natural na arquitectura urbana e falsamente apre-
do que na construção de um hospital distrital em Moçambique ou, no edifício sede para o Banco goada como ecologicamente justificada:
Mundial, se investe mais do que o estado moçambicano dispõe para administrar anualmente 21 “A BioWall usa um meio de crescimento hidropónico, fisicamente estável e quimicamente iner-
milhões de pessoas, algo deve estar errado no nosso sistema de valores. te, com uma grande capacidade de armazenamento de água, que é fornecida às plantas através de
De facto, o terceiro mundo não parece ser mais o terceiro mas sim o último, o outro mundo, um sistema de controlo remoto computorizado com a entrega de uma quantidade exacta de água,
aquele para o qual não queremos ir, a não ser como turistas e comerciantes, e dele sair o mais depressa da sua retenção e remoção. Os nutrientes são adicionados automaticamente nas quantidades exac-
possível. tamente necessárias para suprir às necessidades das plantas, enquanto o excesso de água é drenado
Ele é, contudo, cada vez mais, o mundo dos que são mais... e o mundo dos arquitectos que o independentemente, isto é, não atingindo o painel inferior e evitando, assim, um excesso de água (e
queiram assumir. um excesso de sais minerais) nas secções mais baixas da parede, o que, de outra forma, causaria mui-
O mundo que se alastra, inexoravelmente, a todo o mundo, como a subida do nível do mar. 76 77 tos problemas às paredes verdes.”... E, mais adiante:“Um programa de controle biológico completo
O mundo onde os arquitectos podem, se o quiserem, fazer a diferença que se mede em pequenas é estudado para cada parede para se minimizarem os problemas de controle de parasitas, pestes e
decisões e nas grandes opções. doenças, com a eliminação das plantas mais susceptíveis.”...
Essa diferença impõe uma atenção constante ao canto da sereia que nos leva directamente, se a Da revista alemã DETAIL de Setembro/Outubro 2010
ele não resistimos, ao naufrágio da forma nos escolhos da facilidade, do agrado popular, da moda e Plantas que, coitadas, não devem querer dormir em pé. E só lhes falta reproduzir as estações do
da gratificação pecuniária. ano.
São esses escolhos, por menos perigosos que nos possam parecer, que pervertem o percurso ético Para lá da artificial verticalização de um elemento natural normalmente horizontal, o que me
dos profissionais e de muitos dos mais distinguidos “artistas” da nossa profissão. espanta, e me extasia, é o condicionamento inescapável de um ecossistema fechado a processos tec-
Não podemos, portanto, alhearmo-nos da tensão entre razões sociais e soluções formais. nológicos dependentes de uma contínua monitorização informática, ela própria dependente de uma
Não podemos alegar inocência ou poéticas de cordel, para justificar atitudes de falsa candura e de
ignorância criminosa (... e todos somos responsáveis pela própria ignorância...) das condições éticas
e técnicas da nossa actividade.
Não podemos refugiar-nos nas nossas torres de marfim – até porque de marfim não se devem
fazer torres – e na nossa condição de artistas, como justificação do desperdício de recursos naturais e
financeiros para gratificação das nossas auto satisfeitas e auto referenciadas “criações” formais.
NÃO PODEMOS ALEGAR INOCÊNCIA OU POÉTICAS DE CORDEL,
Há portanto que criar um outro mundo.
A compreensão desse novo mundo não é fácil e imediata para uma classe de profissionais demar- PARA JUSTIFICAR ATITUDES DE FALSA CANDURA
cada pela sua estratificação social e servidora dos interesses desse mesmo extrato. E DE IGNORÂNCIA CRIMINOSA DAS CONDIÇÕES ÉTICAS
Talvez mais do que em qualquer outra profissão, a dos arquitectos está ao serviço da especulação, E TÉCNICAS DA NOSSA ACTIVIDADE
contínua fonte de energia, e de rega e fornecimento de fertilizantes e pesticidas artificiais, também, O projecto deve satisfazer novas condições e dimensões da realidade social que dele necessita.
necessariamente, automatizados. Por um lado, deve satisfazer aquilo que não mudou: as dimensões e características físicas e psi-
Num momento histórico em que começamos, finalmente, a pôr em causa os relvados como cológicas da espécie humana e os parâmetros naturais que definem os sistemas ecológicos onde as
cobre-solos obrigatório para as nossas criações arquitectónicas e paisagísticas, a criação de tecnologias nossas construções se integram.
de fabricação e manutenção de ecossistemas artificiais para decoração da obra arquitectónica parece, Por outro lado, deve responder a novas realidades sociais, à evolução das ideias e do contexto
no mínimo, insustentável quando não ridícula, mesmo quando para tal prática se invocam argumen- cultural, à dinâmica da transformação ambiental e à evolução tecnológica.
tos, falaciosos, de sustentabilidade ambiental. Mas o projecto tem que responder, também, a uma terceira dimensão, ainda não mencionada: a
Se, com os mesmos olhos cândidos e críticos, analisarmos um vasto sector do desenvolvimento nossa própria compulsão criativa, por forma a satisfazer a nossa própria capacidade crítica.
tecnológico dos últimos 20 a 30 anos, encontramos inúmeros exemplos de tecnologias criadas, exclu- O projecto insere-se, na grande generalidade dos casos, em contextos que se revelam ou se defi-
sivamente, para resolver problemas que um melhor ordenamento urbano e das realizações estruturais nem por pré-existências culturais, quer em meio urbano quer em meio natural, não colonizado pelo
e arquitectónicas teriam, à partida, resolvido. homem mas que lhe revela a presença e a influência.
Estamos reféns de uma atitude tecnocrática ao serviço de interesses comerciais que se vão im- Essa presença do tecido cultural reflectido no meio físico onde acontece a arquitectura, é um
pondo a todo o mundo como indispensáveis dimensões da qualidade construtiva, quando não são, parâmetro fundamental do contexto material e social do meio para o qual projectamos.
mesmo, propostos como necessários à validação ambiental das construções. Não sou um cego admirador do passado ou da sua indiscutível sabedoria.
A sustentabilidade e a qualidade ambiental das nossas obras está longe, ainda, de ser, sistema- Pelo contrário penso que os nossos antepassados fizeram, como nós fazemos, muita asneira e
ticamente, avaliada e equacionada em termos de custo-benefício e, sobretudo, em termos da sua penso, igualmente que quando fazemos bem, fazemos, muitas vezes, tão bem ou melhor que eles.
expressão estética. 78 79 Devemos reconhecer, no entanto, que, historicamente, na arquitectura e nas artes da construção
A rentabilidade económica de um edifício, por exemplo, é, geralmente, mais dependente da sua os métodos e as práticas profissionais, os tempos de execução e as relações profissionais conduziram
performance espacial, e da qualidade habitável do espaço do que, directamente, da sua performance a realizações mais amadurecidas e mais ajustadas à realidade sócio-económica e cultural, do que se
energética. Por outras palavras: o desempenho dos trabalhadores é mais rentável num ambiente de conseguem em muitas das realizações de hoje.
trabalho com melhores qualidades de conforto e de interacção social do que as poupanças energéti- A aprendizagem prática das artes de construir esteve, até muito recentemente, perfeitamente
cas que se conseguem através do investimento em sofisticados sistemas de controlo ambiental e de integrada com a aprendizagem da arte de projectar.
economia energética. O arquitecto não só sabia o que construir mas também como construi-lo.
Esta constatação é, contudo, perigosa pois nada obsta a que uma óptima performance energética A densidade e a “espessura” dos materiais, as suas qualidades físicas e químicas, a sua origem e
e uma excelente qualidade espacial e estética possam, e devam, ser simultaneamente conseguidas, os problemas do seu transporte e manipulação, a sua durabilidade e o seu envelhecimento, eram
com a qualidade espacial necessária ao equilíbrio psicológico dos seus utilizadores. conhecimentos adquiridos no estaleiro da obra e na oficina do artífice.
Fica-nos, então, a questão sacramental: A distância do arquitecto a essas dimensões é, hoje, muito grande, embora o conhecimento cien-
Como vamos nós produzir arquitectura e, se possível, boa arquitectura? tífico sobre as qualidades mecânicas e físico-químicas dos materiais seja, hoje, muito mais profundo.
Não sendo a arquitectura culinária, não se conhecem receitas infalíveis e passadas de geração em A evolução do estatuto social do arquitecto, a sua formação cada vez mais teórica, e as práticas
geração que nos assegurem repetidos sucessos. construtivas e contractuais actuais afastam-no da realidade tangível e sensorial da construção e da
Pelo contrário, e embora a arquitectura continue a ter de satisfazer as necessidades universais e, arquitectura.
em muitos aspectos, intemporais, as condições da sua prática mudaram muito. A distanciação cada vez maior ao contexto real pelo reificar das elaborações virtuais e pela promoção
Mudou a sociedade que dela necessita e mudou a forma de construir, mudaram os materiais de da imagem sintética como objectivo imediato e primário do trabalho criativo têm, no seu afastamento
construção e mudaram as condições ambientais, mudaram os paradigmas estéticos e mudaram os aos problemas sociais e às dimensões do mundo natural, consequências gravíssimas que nos obrigam a
tempos de execução, mudou o estatuto dos arquitectos. repensar as condições de produção dos nossos projectos e de materialização das nossas obras.
Esta chamada de atenção, que sou o primeiro a aceitar pois lhe sinto a necessidade permanente, todo o mundo, anonimamente espalhadas e dispostas nas situações mais humildes, descobertas pelo
é tanto mais relevante quanto uma quantidade cada vez maior de “produtos” arquitectónicos são, e canto do olho, sem direito a página de revista ou ensaio teórico e académico.
nem pretendem ser de outro modo, nada mais que especulações virtuais, com uma existência e um Vêm-me à emoção a inteligência da grande engenharia, tão criativa, quanto a arquitectura (...
consumo exclusivamente literários. quando esta o é...) e generalizadamente anónima ao nível do grande público.
A máquina da divulgação, entretanto, multiplica essas imagens sintéticas e torna-as objectos de Vem-me à consciência a noção de quanto há para descobrir na vastidão da arquitectura anónima,
desejo e de estatuto social e cultural, pervertendo uma leitura correctamente informada da obra e do desconhecida e esquecida.
projecto que passam, por inversão do processo, a pretender atingir a imitação de si próprias. O segundo passo é o estudo da cada situação, de cada inserção, de cada cliente, de cada contexto.
Como vamos, então, produzir boa arquitectura? O sítio, o lugar, o significado, o valor, o impacto potencial, a escala e a dimensão, são condições,
Como já devem ter percebido essa é a questão a que eu não sei responder. e parâmetros, que determinam a importância e o valor de presença da obra.
Primeiro, porque não sei se a arquitectura que produzo é boa. Essas condições e estes parâmetros são quantificáveis e relacionáveis em termos da sua impor-
Segundo, porque ainda não encontrei resposta que me satisfaça. tância relativa e do significado que a obra deve assumir no panorama urbano ou na paisagem e em
Como para qualquer outra actividade criativa, o erro só se evita pela crítica e pelo método, que termos do seu impacto no meio natural e social.
entendo como o processo a aplicar a cada novo projecto a realizar. Para podermos considerar estas condicionantes devemos aprender a ler a cidade e o meio natural,
Quase que, por reversão do processo, valeria a pena a pergunta oposta; como se pode produzir a conhecer o meio social e a dominar o meio tecnológico.
arquitectura que não seja errada, senão com um encadeamento de processos lógicos com um objecto Essa leitura e esse conhecimento requerem um interesse enciclopédico por todas as ciências e por
válido? todas as artes.
Esse método pode reduzir-se a uma série de passos, não forçosamente sequenciais, mas integra- 80 81 A leitura da paisagem leva-nos à descoberta magnífica das forças naturais e da história do planeta.
dores e incrementais, cujas sinergias alimentam a construção da ideia ou das ideias do projecto. Desvenda para nós as espantosas lógicas dos processos geológicos e biológicos e das forças que cons-
O primeiro passo tem sido, para mim, a convicção de que não há projectos maiores e projectos troem os climas e os continentes.
menores. Os materiais naturais, em bruto ou transformados, contêm o maior potencial expressivo da ar-
Todas as encomendas são respeitáveis e estimulantes. quitectura e de garantia da sua sustentabilidade.
Toda a encomenda é um privilégio. O trabalho do homem sobre o palco natural da vida é, em muitos casos, admirável noutros
Toda a encomenda é uma oportunidade. horrendo e brutal. A compreensão das razões e das formas desse trabalho e a leitura informada dos
Neste sentido valem-me exemplos emblemáticos que, na sua pequena escala provam que não é seus resultados é uma disciplina inescapável na formação do arquitecto e no seu trabalho quotidiano.
a dimensão ou o significado monumental que qualificam ou denotam o potencial de qualidade de A leitura da cidade é uma disciplina diversa e complementar. Ela implica uma atitude crítica,
uma obra. diferente da leitura do meio natural.
Vêm-me à ideia o Tempietto de Bramante, San Carlino alle quatro Fontane, o templo de Afaia
em Hegina, ou a Capela dos Pazzi em Florença, o templo de Ise no Japão ou o pavilhão nórdico no
parque da Bienal de Veneza, a loja da Olivetti na Piazza San Marco, uma jarra de vidro do Aalto ou
uma faca de Tapio Wirkala. Obras de pequena dimensão física e grande valor seminal.
Vêm-me aos sentidos o significativo anonimato dos construtores góticos ou incas, maias ou afri-
canos, os do mzab ou os ndebele, que pela simples inteligência da tradição atingem níveis expressivos
e poéticos muito mais poderosos que os resultados dos esforços mediáticos e das ginásticas técnicas e
OS MATERIAIS NATURAIS, EM BRUTO OU TRANSFORMADOS,
retóricas dos nossos contemporâneos heróis. CONTÊM O MAIOR POTENCIAL EXPRESSIVO DA ARQUITECTURA
Vêm-me ao pensamento milhares de exemplos de arquitecturas espontâneas que encontro em E DE GARANTIA DA SUA SUSTENTABILIDADE.
A cidade é um meio de permanente e acelerada transformação, de deformações e de manipula- Mas a poesia é outra difícil missão e, se os paralelos são válidos, as metáforas arquitectónicas não
ções servindo interesses privados muitas vezes contrários ao interesse comum. são literárias mas espaciais e abstractas.
O território é o meio, por excelência, do exercício do poder e, na cidade, esse poder manifesta-se, Esta desaprendizagem não é um momento, ou uma fase, do processo de maturação, mas uma
mais patentemente, em privilégio topológico. obcecada forma de procura da sintonia entre a aquisição do conhecimento e a educação dos sentidos.
A cidade não é uma crosta, um tapete mágico, uma nave flutuante independente do meio na- A gestação de um conceito arquitectónico não se dá por epifania miraculosa, mas sim pela con-
tural. O mais denso dos tecidos urbanos assenta na geografia das bacias hidrográficas, no substrato centração da energia intelectual na procura, informada, da essência poética do projecto.
geológico, na cobertura biológica e é condicionada por factores climáticos. Essa essência não se cristaliza sem uma longa paciência, que só se consegue com um grande
A inconsciência e a falta de sensibilidade e de compreensão dessa ordem de realidades levam a investimento emotivo de que dispõe, somente, quem tem uma paixão irreprimível pela dimensão
desastres e tragédias que se repetem sistemática e inevitavelmente. artística e expressiva da nossa profissão.
O conhecimento do “cliente” e do “programa”, isto é, da dimensão política do projecto, ou do Como o pianista que estuda 8 horas por dia ou o atleta que treina as todos os dias as mesmas
objectivo social da obra, e o seu “valor de uso”, são razões de estudo obrigatório, sem o aprofun- 8 horas, como a obsessão do pintor ou do escultor, do cientista ou do poeta, essa paixão é também
damento das quais o exercício de projectar não é mais que um jogo intelectual centrado na auto indispensável ao germinar das ideias espaciais e formais, que só acharemos, dentro de nós próprios,
gratificação lúdica da manipulação formal. através de um paciente processo de interiorização das condições objectivas do problema que temos
A análise dos limites económicos do projecto e a investigação sobre as alternativas organizativas, para resolver.
tecnológicas e de custo-benefício das possíveis soluções, é outra dimensão essencial da compreensão A experiência ajuda e facilita a articulação intelectual dessas dimensões, mas traz também perigos
da encomenda e da construção de uma solução arquitectónica. e traições quando ilude, ou se substitui, às forças anímicas que a arquitectura deve despertar em
Mas o projecto tem economias formais a cumprir e a respeitar. 82 83 quem a inventa e em quem a vive.
Não falo aqui de outras modas como a de um “minimalismo” estéril, a posar para a fotografia, Quanto mais ilustramos a memória e a razão com a acumulação de imagens e conhecimentos,
que é outra pobreza formalista, mal importada de outras disciplinas, e confundida com o verdadeiro mais longínquo poderá ficar aquele impulso original que nos levou à escolha desta arte que foi
ascetismo que é uma atitude intelectual e filosófica que resulta na valorização do essencial, sem sa- sempre a de participar na construção, bela, do abrigo do homem e da sua inserção integradora na
crifício do necessário. paisagem.
Falo da procura do que não é arbitrário, do que é conforme e do que serve e tem razões, do que Daí falar eu de inocência e de desaprendizagem, dois processos difíceis e quase inconfessáveis.
dispensa os adjectivos e se explica sem retórica. Sem esse antídoto ficamos limitados à imitação, dos outros ou de nós próprios, e passaremos à
Falo da intrínseca relação entre a economia de meios e a economia estética, da forma resolvida condição de seguidores de modas ou maneiras, organizadores de rotinas ou eruditos cultores de uma
com o menor gasto material e processual para o mais conseguido desempenho ambiental e social. estéril retórica formal.
Cada vez mais, e por mais isolado que me sinta, me parece altamente discutível a superficialidade Gostaria de poder terminar com algum conselho, alguma regra ou fórmula, que pudesse orien-
e a arrogância a que se permitem os cultores da “deseconomia” de espaço e de materiais, de energia tar-vos com segurança na produção da arquitectura criativa e original que todos aspiramos realizar.
e de tempo para conseguirem uma auto referenciada e arbitrária “novidade” formal que nada acres- Não o farei, até porque, se o que atrás afirmei é relevante, o que interessa é como se pensa arqui-
centa à qualidade de vida de quem lhes paga os devaneios. tectura e o processo e a clareza dos valores que enformam o esse pensamento.
O terceiro passo é, para mim, o de resolver a tensão entre o que aprendi e o que devo “desapren- Uma longa experiência não é necessariamente, e sempre, uma maturação de princípios e uma
der”. lenta fermentação de ideias. Pode ser também uma acumulação de vícios.
Explico: a erudição visual e técnica podem ser um fardo pesado demais para nos permitir o retor- O factor discriminante é um permanente, e intransigente exercício de autocrítica, refractária ao
no às origens da inocência necessária à invenção. reconhecimento público, e a permanente elevação das nossas capacidades intelectuais e de exigência
Esse peso, inevitável pois que a cultura se alimenta de conhecimento, obriga a um contrapeso de ética.
emoção que só em pura poesia se pode exprimir. A única vantagem, que uma longa experiencia pode trazer, é o alargamento dos nossos quadros
de referência, o que permite perspectivar, por terem sido vividas, a passagem das diversas modas e
formalismos que, a quem menos amadurecido, podem parecer definitivas.
Desta longa experiência uma conclusão me permito tirar: só resiste à história o que é universal
e intemporal.
Devemos, por isso, procurar na expressão da nossa arquitectura aquelas dimensões que foram,
e serão sempre as únicas e essenciais: o espaço, a luz que o revela e o modela e a materialidade das
substâncias que o conformam.
Esses são os ingredientes da ideia, que é onde nasce a arquitectura.
Nesta divagação a que vos sujeitei tentei apenas a discutir as bases intelectuais da essência do
projecto que é donde nasce a ideia da arquitectura.
Não resisto a ler-vos um pensamento de um dos grandes e verdadeiros mestres do século XX, Elá-
dio Dieste, de pensamento tão grande como a obra e, injustamente tão mal conhecido e apreciado:
“ Uma arquitectura com forte personalidade nunca foi o resultado de se propor a si própria como
um fim. Não é fácil ter uma imagem clara do resultado mas sim dos princípios que o devem enfor-
mar. Por isso é um erro radical o de pensar que “os fins justificam os meios”. Não sabemos qual é o
fim; sabemos aquilo a que ele deve ser fiel. A produtividade e a eficácia não são fins em si mesmos.
A plena realização do homem é. 84
Penso que, entre académicos, pouco ou nada vim acrescentar ao já sabido, mas, se algum valor a
minha pouca experiência tem, ele deve-se à maneira como tenho pensado o pensar da arquitectura,
nem sempre certamente, seguindo à risca a lógica e a disciplina que explorei nesta conversa.
De qualquer maneira tudo o que tentei explorar, em forma mais ou menos lógica e racional, não
é mais que uma maneira de ver e de pensar, com certeza altamente discutíveis, e sobre as quais não
pretendo ter mais do que uma vaga convicção... pois que em arquitectura há um principio sacros-
santo: o que é preciso é fazê-la.
Para terminar... e sem muita maldade... numa possível e hipotética caracterização das mais recen-
tes tendências da arquitectura contemporânea, citarei a célebre definição, oferecida pelo não menos
famoso cozinheiro da grande Catarina da Rússia, onde se afirma que “as belas artes são três: a música,
a dança e a pastelaria, da qual a arquitectura é um ramo menor...”*
Muito obrigado pela vossa atenção

* Com uma vénia ao meu amigo Tato Dierna ESCRITORIOS PARA A CMC– MATOLA JOSÉ FORJAZ
Discurso por ocasião da elevação a professor Emérito Se nesta visão, por vezes inadvertidamente jocosa, alguma alusão mais crítica for aparecendo peço
da Universidade Eduardo Mondlane apenas a vossa benevolência e que acreditem que não é minha intenção aproveitar a ocasião para
passar recados menos saborosos a quem os queira receber.
Maputo, 10 de Outubro de 2013 O arquitecto, com a minha idade é, mesmo que involuntariamente, um transmissor de experiên-
cias mas, e aqui começam as minhas dúvidas: como se distingue a “sabedoria toda de experiências
feita” do vício adquirido por acumulação de erros?
Qual o factor discriminante?
A resposta a esta dúvida tem sido, para mim, uma obsessão permanente e um fio condutor da
minha atitude como professor e como profissional pois que, em ambas as posições, é a procura cons-
tante dessa resposta que me torna a vida mental e emocional interessante e motivadora.
Assim sendo, e se é verdade que pelo menos na nossa disciplina e parcela do saber, a dúvida é tão
grande e tão sistemática, será que devemos, nós, aparecer aos nossos alunos como oráculos infalíveis
e detentores da última verdade?
Não quero, com esta posição, proclamar a falta de convicção nas próprias ideias como uma
PROFESSOR EMÉRITO virtude didáctica.
O que penso que é indispensável é que se saiba transmitir ao aluno e ao colaborador que o mais
86 87 importante não é o que se aprende mas o processo de aprender, pois que o conhecimento vai, cons-
Pensando no que dizer hoje quando, há alguns meses, me propuseram esta homenagem, preparei tantemente, evoluindo.
uma lição, porventura a última, em que equacionava os problemas da arquitectura e do seu ensino Talvez, mais enfaticamente ainda, o que importa transmitir-lhes é a necessidade de aprender.
neste momento e nesta geografia. Aprender todos os dias, aprender em todas as ocasiões, aprender sem razão ou motivo ou opor-
Um documento chato, teórico e sobrecarregado politicamente, mas que, pelo menos, evitava cair tunidade.
em ratoeiras biográficas e sentimentais e acenava, apenas o indispensável, aos planos emocionais tão Aprender tudo, de todos, sem outra razão que não seja, sempre, a da alegria de aprender.
presentes nestas ocasiões. É isso que uma universidade deve ser: uma máquina de ensinar a aprender.
Pensando depois nas razões da presença das pessoas, hoje aqui com certeza e simplesmente pela O conhecimento dos factos, das coisas, das teorias, dos dogmas, das estatísticas ou dos segredos
amizade, a curiosidade e o dever protocolar, pareceu-me que não teria o direito de lhes aumentar o dos outros e da política, ou dos negócios é, sempre, contingente e relativo, temporal e limitado.
fastídio com perorações disciplinares e académicas que, amanhã, já terão perdido a acutilância e o É na compreensão das relações entre os factos e as forças e nos sentidos dessas relações que reside
sentido. a sabedoria.
Gostaria então, sem esvaziar a dignidade da ocasião, de vos interessar durante a próxima meia E sobre isso, subsiste, ainda e sempre, a tal dúvida sistemática e inevitável...
hora oferecendo-vos uma visão pessoal e ligeira, mas nem por isso menos séria, das grandezas e mi- Mas, com tantas dúvidas, como será possível enfrentar o universo académico tão carregado de
sérias da vida intelectual e emocional do arquitecto e professor de arquitectura, neste lugar e neste epistemologias cristalizadas?
momento. Não devo, com certeza, ter descoberto algum segredo que não seja do conhecimento comum
Quando digo neste lugar não estou a referir-me necessariamente ao Maputo, a Moçambique ou mas, para mim, essa razão e essa coragem estão na mais primária das virtudes humanas: a curio-
mesmo a África, mas à geografia e à cultura global em que vivemos e, quando digo momento, não sidade.
me refiro ao dia de hoje mas a este interregno entre colonialismo e identidade nacional ainda em Acontece que as pessoas desenvolvem, ao longo da vida, curiosidades específicas.
definição. Uns querem saber se deus existe, outros como se movem os astros, outros ainda como se curam
as doenças, uns querem saber o que se passou através dos tempos, ou como se pensou através dos Falo das palavras indispensáveis à exactidão disciplinar sem a qual não há precisão científica nem
tempos, ou como vivem outras pessoas noutros lugares; tantos outros gostariam apenas de saber domínio técnico.
como se fica rico. Explicava há pouco, numa aula voluntária ao primeiro ano, a importância das palavras dando
Alguns querem saber tudo de tudo... e também há quem nem de si queira saber. exemplos do perigo que, nas profissões mais diversas, pode resultar do seu uso descuidado como, por
Uma parte considerável da humanidade é asfixiada, já na juventude, em casa, na escola e na vida exemplo, na sala de operações ou na manobra de uma embarcação, onde um erro verbal ou a ordem
social pela pressão de que aprender tem, como objectivo imediato e último, ganhar a vida e vê nas errada podem resultar na morte de pessoas.
universidades os receptáculos terminais da preparação desses mesmos espíritos amputados. Por outro lado o abuso semântico, muito praticado pelos eruditos, pode esconder, por vezes,
Na minha visão a missão essencial da universidade é a de descobrir ou de perceber em cada aluno uma limitação cultural que se revela pela opacidade dos conceitos explorados e na incompreensão
a sua curiosidade mais profunda, talvez mesmo a mais infantil e de estimulá-la e alimentá-la com os das inter-relações disciplinares.
frutos do saber acumulado, transformando cada aluno num espírito apaixonado pelo conhecimento O professor que não é capaz de explicar com simplicidade os conceitos científicos, filosóficos ou
e pela descoberta da já mencionada alegria de aprender. artísticos mais complexos é, porventura, incapaz, ele próprio, de os compreender.
Diz-se que só ensina quem não sabe fazer ou, pior ainda: que quem não sabe... ensina. A arquitectura e o ordenamento espacial são domínios do conhecimento e esferas de acção carre-
Uma perigosa asserção que esconde muita frustração e muito cinismo. gadas de significado e de consequências sociais, políticas, económicas, tecnológicas e estéticas.
Fazer é, ou deve ser sempre, o teste do saber. Desvendar cada uma dessas dimensões, tão insuspeitadas para a grande maioria dos neófitos nes-
Fazer transporta para o meio social, a razão de ser da evolução do conhecimento e da investiga- tas artes e técnicas, é uma responsabilidade e um desafio à capacidade do professor para, sem alienar
ção, essa manifestação erudita da curiosidade e onde a diferença entre investigação teórica e investi- o interesse do estudante, fazê-lo descobrir a natureza e a nobreza da tarefa que o espera.
gação aplicada é apenas uma comodidade semântica. 88 89 Inventar a casa do homem, disciplinar espacialmente a cidade e ordenar o território são tarefas
O aluno quer, sem o saber, ser estimulado, isto é, ter razões emocionais para o conhecimento. sem descontinuidades conceptuais mas cujo âmbito não é evidente para todos.
Esse é o seu direito mais fundamental, a que as universidades, pela sua própria constituição, Essa ausência de descontinuidades é uma descoberta que pode até ser aterradora para quem
deveriam saber responder. escolhe arquitectura porque, em regra, se pensa que arquitectura é, apenas, o exercício de projectar
Ao mais baixo nível dos planos académicos e didácticos, o professor procura, no exercício da aula, edifícios.
para lá da sua compensação material, apenas a projecção da sua ascendência intelectual sobre uma O edifício situa-se no terreno e o terreno na cidade ou na paisagem.
classe que não respeita nem quer conhecer: os alunos. A cidade situa-se no território e o território na geografia.
Pelo contrário, o professor que se respeita e respeita o discípulo desvenda, em cada aula, o mis- Mas o edifício situa-se, também, na história e a história inventa-se e condiciona-se pela política.
tério da descoberta do que não sabia e revela aos seus companheiros de pensamento, os alunos, a A história em que se situam os edifícios e as cidades não é apenas a história das lutas entre os
fascinante epifania do saber.
É precisamente no momento privilegiado da aula que a emoção da descoberta do que está para
lá do já sabido compensa a dúvida sobre como estimular o aluno e a nós próprios.
Nesse sentido, a aula é uma permanente descoberta: de nós próprios e da riqueza da relação com
inteligências a estimular e emoções a compartilhar pois só com a paixão da comunicação se ganha
este oportuno privilégio que a universidade oferece.
INVENTAR A CASA DO HOMEM, DISCIPLINAR ESPACIALMENTE
O acesso à universidade é também o acesso a um mundo novo ou, talvez, a um novo patamar na
escada do conhecimento.
A CIDADE E ORDENAR O TERRITÓRIO SÃO TAREFAS
Nesta cota há uma linguagem nova a descobrir, um léxico e uma semântica a penetrar para que SEM DESCONTINUIDADES CONCEPTUAIS MAS CUJO ÂMBITO
os conceitos mais abstractos sejam, justamente, assimilados. NÃO É EVIDENTE PARA TODOS
países e entre as classes sociais mas, e com igual importância, é a história dos fenómenos naturais, a Esta noção parece ainda longínqua da cultura geral e difusa, na qual o nosso estudante se integra.
história das técnicas, a história das artes e da literatura; a história do homem e de como ela se reflecte Por tal razão é tão importante a sua iniciação cultural.
no mundo construído. Faze-lo descobrir as dimensões mais emocionantes do seu interesse, as razões mais sérias da sua
Este é o âmbito que subitamente se abre, e deve ser desvendado, ao estudante que entra no futura profissionalidade e a utilidade social da sua presença produtiva, é a maneira mais eficaz de o
mundo da arquitectura. tornar num participante operativo na descoberta do conhecimento, que é, finalmente, a missão do
É, como facilmente se percebe, aterrador ou profundamente estimulante, assim o saibamos nós, estudante universitário.
os professores, desvendar-lhe o interesse e o fascínio. A tarefa não é fácil. A aula deve competir com a batalha de vencer a adolescência, com a distrac-
É, como podem perceber, um mundo de relações que o estudante nem sonhava existirem. ção da sensualidade, com o espanto da integração num novo meio social, com o medo do desconhe-
E, por estas razões, o mundo da arquitectura é o mundo da interdisciplinaridade. cido, com o inevitável embate com a personalidade do professor.
E, por estas mesmas razões, a escola da arquitectura, tem de ser a escola da interdisciplinaridade. No nosso caso o estudante chega-nos, em geral, vitimizado por processos brutais de ensino, obri-
Ainda, por estas mesmas razões, o projecto do edifício, da intervenção urbana e do ordenamento gado a sistemas de não pensamento, alheio ao interesse pelo saber e com a memória maltratada pela
do território, são actividades impensáveis sem a participação e o trabalho integrado de uma equipa, acumulação, irrelevante, de factos, fórmulas e números.
cada vez mais completa e complexa, de profissionais de muitas disciplinas. A continuação de tais métodos seria um crime.
Acontece que este lugar onde vivemos, esta nave espacial chamada terra, cada vez mais acanhada, Mas acontece também nas nossas universidades.
impõe-nos, agora, uma dimensão do conhecimento de que a humanidade nunca antes havia tomado O professor, portanto, deve saber motivar e inserir o aluno a participar na aventura do conhe-
consciência: a dos seus limites físicos. cimento.
Para vos dar a noção da novidade desta noção basta lembrar-me que foi já depois de terminar a 90 91 Deve fazê-lo por processos de atracção e não de rejeição dos processos anteriores, o que deixaria
minha formação académica que o conceito e a disciplina da ecologia entraram no quadro cultural o aluno duplamente vitimizado psicologicamente.
comum. Este desafio só o vence o professor que aparecer como um apaixonado do que professa... se tiver
Foi já depois que se equacionaram os limites do crescimento. realmente professado.
Falo, portanto, dos últimos 50 anos! O professor só ensina o que ama pois que, se não ama não ensina... desbobina.
Hoje seria impensável que um estudante de arquitectura ficasse alheio a essa dimensão da realida- O ensino da arquitectura é um caso particular da didáctica: desde o primeiro exercício o aluno
de e não devesse ser ela uma das dimensões disciplinares essenciais da sua formação. enfrenta toda a complexidade do processo de a pensar.
Esta noção dos limites do planeta e da contracção na oferta dos seus recursos directamente O mais simples projecto contem, potencialmente, todos os elementos de todos os projectos: a
proporcional ao aumento da população, implica e obriga a tomadas de posição éticas em todos os sua inserção no meio natural e construído, as condições ambientais que o determinam, um programa
ramos do saber. funcional, as condicionantes técnicas e económicas que o limitam, a necessidade de integração do
Implica uma clareza de atitude manifestada pelo professor em cada aula, não como moralista seu projecto no meio cultural.
mas como cientista. Em nenhuma outra disciplina o aluno enfrenta tão prematuramente esta angustiosa situação.
Implica coerências difíceis e dolorosas no exercício da profissão. Nem o médico aprendiz ou o engenheiro, nem o matemático ou o jurista, nem biólogo ou
Implica exemplo. o agrónomo devem, no seu primeiro exercício académico, responder a uma exigência tão abran-
Importa transmitir aos estudantes das nossas universidades a noção da sua responsabilidade in- gente.
telectual e profissional... se é que há distinção... perante o planeta, isto é, perante a sobrevivência do Poderia metaforicamente repetir-se que se aprende a nadar, nadando.
homem no planeta. Isso teria, talvez, algum interesse como metáfora mas não ajuda a salvar ninguém.
A forma de o habitarmos é uma das dimensões em que o organizador do espaço construído, o O salva-vidas, aqui, é o professor que, sem forçar a sua autoridade, deve saber guiar escolhas e
arquitecto, tem um papel determinante. caminhos através da selva de dúvidas em que cada aluno se vai aventurando.
Se ao aluno de medicina não se entrega o bisturi também o aluno de arquitectura não verá Os condicionalismos territoriais são de natureza diversa: o território é uma categoria política
o seu projecto construído, mas a diferença está no facto de que projectar é, sempre, um acto onde se exprime e se resolve a topologia do poder.
de síntese criativa, resultado de um processo analítico que só aos poucos se vai desvendando e Quem pode domina a posse da terra...quantas vezes para seu benefício exclusivo.
dominando. Ao arquitecto e ao planificador físico escapam as ferramentas para o efectivo controlo do uso da
É esta característica do processo disciplinar que exige tanto do professor de arquitectura. terra que, no nosso caso, escapam, também... e quantas vezes, ao controle do sistema jurídico.
Faço um parêntesis para deixar claro que considero haver a mesma necessidade de criatividade Nem é nova, nem exclusivamente nossa, esta condição.
nas ciências como nas artes. É uma condição corrente em sociedades politicamente emergentes onde a ordem jurídica é ain-
O professor de arquitectura deve ser capaz de criar no aluno a coragem de enfrentar a sua própria da concreta, isto é, condicionada por personalidades e não determinada por códigos ou sistemas
inexperiência com a consciência de que o valor dos seus exercícios é, apenas, a soma dos seus esforços consuetudinários abstractos que se aplicam a situações e não são condicionadas por pessoas ou por
para o acesso progressivo a cada novo patamar de competência. partidos políticos.
Mas o professor de arquitectura tem, ainda, uma outra difícil missão: fazer o aluno descobrir em Nesta condição tudo depende da cultura e da honestidade intelectual e material de quem go-
si próprio a necessidade de inventar, de criar uma nova realidade física. verna.
Esta é a tarefa mais difícil pois que cada aluno é um diverso universo a descobrir. Nesta condição o arquitecto pouco pode e pouco determina, pois que a sua produção, tomada
Cada aluno é um caso a respeitar. apenas como documento técnico, não resiste aos atropelos possibilitados pela máquina dos interesses
Nesta relação não há cátedra: há fraternidade, pois que o professor tem que enfrentar, ele pró- materiais em jogo.
prio, todos os dias, a sua própria angústia criativa... e quantas vezes a frescura imaginativa do aluno Assim se explica, por exemplo, a falha corrente na operatividade dos planos de ordenamento
é superior à sua ingenuidade perdida! 92 93 territorial, cada vez mais superficiais e cada vez mais irrelevantes no momento da tomada de decisões
Esta é, também, a razão por que cultivo, há muito, esta noção da necessidade de desaprender, de que dizem respeito e afectam o uso do espaço nacional.
reencontrar a inocência, consciente de si própria, que nos leva ao espanto pelo simples, à necessidade É evidente que o professor não pode sonegar a consciência desta dimensão quando aborda,
do inexplicável, à reverência pela intuição e ao lampejo fulgurante do revelado, que tantas vezes se com os seus alunos, os problemas do ambiente e da sustentabilidade dos ecossistemas globais e do
confunde com inspiração. território.
Mas voltemos ao nosso professor, ao nosso aluno e à nossa arquitectura. Seria preciso uma mudança radical de direcção na racionalidade dos políticos: do processo de
E recomecemos pelo fim: a nossa arquitectura. desenvolvimento material pessoal para o processo de desenvolvimento da comunidade.
A nossa arquitectura acontece como expressão da cultura construtiva inserida no meio natural Esperança longínqua que, provavelmente, não se materializará tão cedo.
e social. Entretanto, e a níveis supostamente menos carregados de valências politicas, vai o arquitecto
Revela e reflecte as qualidades e os problemas desses meios e o momento exacto da sua evolução trabalhando na esperança de conseguir fazer aceitar, pelos seus clientes, a coerência conceptual nos
politica e técnica, da sua organização social e dos constrangimentos impostos pelos compromissos
internacionais.
O arquitecto trabalha dentro desses constrangimentos e em condições, de que ele próprio é o
reflexo.
A sua posição como técnico e como artista só pode ter duas alternativas: aceitar ou recusar todas
ou algumas daquelas condições, segundo aquilo que ele considere a sua validade.
Naturalmente que não há qualquer base racional ou técnica para recusar os condicionalismos na- OS CONDICIONALISMOS TERRITORIAIS SÃO DE NATUREZA DIVERSA:
turais: o ambiente impõe as suas leis e as suas características: o terreno a sua geofísica e a sua biofísica, O TERRITÓRIO É UMA CATEGORIA POLÍTICA ONDE SE EXPRIME
o clima a sua temperatura, humidade, pluviosidade e insolação. E SE RESOLVE A TOPOLOGIA DO PODER
seus projectos, que pode até parecer esdrúxula, pois que introduz, agora, termos inéditos na equação A razão imediata para trazer estas questões a esta intervenção é a de lembrar que a primeira frente
clássica do habitat sustentável. desta batalha está, precisamente na sala de aula.
O desafio mais delicado que o nosso ambiente cultural propõe é o de distinguir o universal do O aluno tem agora um novo corpo de doutrina a assimilar; a faculdade, uma nova linha discipli-
particular no exercício da nossa contribuição para a cultura material moçambicana. nar a introduzir; a universidade, uma nova integração de saberes a conseguir.
Não apenas distinguir mas integrar os dois âmbitos. Acima, e primeiro que tudo, o professor deve saber ser o mentor das novas gerações para uma
Explico-me: na extrema e brutal transição de uma sociedade rural e colonizada para uma socieda- arquitectura e um planeamento espacial respeitadores do meio ambiente e concebidos dentro dos
de em rápida urbanização e que deve assumir a sua própria libertação, os valores materiais ambicio- conceitos cada vez mais evoluídos e complexos da sustentabilidade.
nados pelo estrato emergente da sociedade são, prioritariamente, os que representam e simbolizam a A outra questão diz respeito à natureza da relação do arquitecto com o seu cliente.
libertação da condição, discriminada, do colonizado. É uma questão delicada e difícil porque menos clara e mesmo, por vezes, ambígua.
Esses valores correspondem a formas de agregação social, hábitos de vida, quadros estéticos e Esta relação abrange planos de decisão e de acção que vão dos éticos aos estéticos.
estruturas de poder e de autoridade ainda exógenos e deficientemente assimilados e integrados na Começando pelo objecto do projecto, que pode nem sempre ser aceitável em termos sociais ou
cultura local. legais, e passando a âmbitos técnicos com implicações ambientais, económicas e temporais essa rela-
Esta situação revela-se mais patentemente nas formas de assimilação dos paradigmas estéticos ção não pode evitar as dimensões estéticas que afectam o panorama urbano e cultural.
importados e pela necessidade de manifestação da riqueza pessoal, como prova do sucesso social do Em última análise o arquitecto pode, e deve, conforme as circunstâncias e em última análise,
indivíduo, da família ou do grupo. recusar a encomenda.
As consequências deste, inevitável, momento de transição cultural têm sido desastrosas para as Em todos os casos a relação com o cliente, privado ou institucional, deve ser sempre clarificadora
emergentes sociedades africanas em geral, levando a desperdícios colossais de recursos e à importação 94 95 e defensora dos objectivos e dos princípios que governam e se aplicam ao projecto e dos seus limites
dos piores aspectos da cultura material da sociedade capitalista neoliberal, com expressões estéticas conceptuais e expressivos.
monstruosas. Há nesta relação duas valências essenciais: a ética que tem a ver com a validade social do projecto
O fenómeno atinge níveis inacreditáveis de sinistro ridículo em países subitamente ricos, onde e dos meios a utilizar e a estética que tem a ver com a validade cultural do projecto.
o contraste dessas manifestações com a crescente indigência dos seus povos vai cavando fossos de Em ambos esses planos de relação e decisão a formação do arquitecto deve revelar-se e con-
imoralidade social cada vez mais intransponíveis pela demagogia política dominante. cretizar-se como um contributo indispensável ao equilíbrio social e ao enriquecimento do meio
A semente deste desastre poderá, porventura, estar já implantada no nosso meio e as suas conse- cultural.
quências não poderão levar senão ao mesmo desastre social e cultural. Estas questões devem ser debatidas e consideradas em profundidade não só na sala de aula mas
O arquitecto, que o queira ou não, faz parte do sistema e deve percorrer, todos os dias, o fio da ao nível da própria estrutura dos cursos.
navalha das difíceis decisões éticas. A primeira questão impõe a necessidade de uma revisão curricular integradora no sentido de
Deixando de lado, por irrelevante nesta discussão, aspectos deontológicos, tantas vezes atrope- criar relações operativas interdisciplinares entre faculdades, pois que os temas da sustentabilidade e
lados, e as correntes práticas corruptas como a de receber ou pagar comissões, interessa-nos analisar da preservação do ambiente são transversais, interessando igualmente as ciências naturais e humanas,
duas questões com maior profundidade e maior impacto na economia e na criação de uma cultura as engenharias, a geografia, o direito, a medicina e, um dia, as ciências politicas, ainda tão clamoro-
arquitectónica sã no país. samente ausentes do âmbito universitário.
A primeira questão é a da necessidade, já referida, de praticar uma arquitectura sustentável, de O arquitecto, urbanista e planificador físico, deve aprender, desde os bancos da escola, a necessi-
real economia energética, passivamente ecológica e formalmente corajosa. dade e as maneiras mais efectivas de trabalhar em equipa com os especialistas das várias disciplinas,
Essa atitude requer uma constante atenção às decisões técnicas e um proselitismo agressivo, sem o contributo das quais o seu trabalho é incompleto e inconsciente dos riscos que as decisões que
junto aos clientes, dos princípios e das razões mais importantes e relevantes dessa estratégia de toma implicam.
projecto. A segunda questão é menos transversal que vertical pois que a construção de uma estruturada
relação profissional assenta em dois pilares fundamentais: uma posição ética esclarecida e uma fun-
damentação técnica e estética informada e assumida.
É aqui que a missão da universidade é capital: evitando dogmas moralizadores, levar o aluno a
perceber que o sentido mais profundo da aquisição científica é a criação das bases objectivas indis-
pensáveis a uma posição ética justa, racional e fundamentada.
A missão do arquitecto é das mais essenciais e mais nobres: inventar o abrigo do homem e das
suas actividades mentais e físicas... mas esta simples afirmação contem universos de significados e de
consequências.
Uma vida é pouco para a cumprir, mas vale a pena tentar.
Acabo, assim, por aqui.
Não posso, assim mesmo, acabar sem agradecer ao Magnífico Reitor e à academia da Universi-
dade Eduardo Mondlane esta homenagem e a oportunidade que deram para tentar contribuir para
uma visão, não paroquial nem estritamente disciplinar, da missão da universidade, focalizada através
dos problemas do ensino da arquitectura e do ordenamento do espaço.
A distinção que me é, hoje, concedida tomo-a como o reconhecimento da coerência, nem sem-
pre fácil ou conseguida, da minha actuação, como professor e como profissional, com os princípios
que tão esquematicamente referi mas que julgo indispensáveis à formação de uma classe de pensado- 96
res instrumentais na construção de um Moçambique cada vez mais justo e próspero, onde a natureza
seja respeitada e a sociedade cada vez mais equilibrada.
Agradeço aos meus alunos e aos meus colegas os momentos de intensa vibração emocional, o
estímulo intelectual que deles recebi e esta noção de que posso ainda ser útil a esta instituição e a
essa juventude.
Agradeço ao corpo técnico e administrativo com quem me irmanei nas suas dificuldades e a
quem sempre reconheci a dedicação.
Agradeço finalmente aos que me estão mais próximos: a minha família e os meus colegas de
trabalho, no projecto e na construção, sem a compreensão e o apoio dos quais teria já, com certeza,
aceite a tentação de me pensar com o direito a descansar.

A todos, muito obrigado.

DESENHOS PARA O CONCURSO DE PROJECTO PARA O CENTRO ISMAELITA DE LISBOA JOSÉ FORJAZ
Faculdade de Arquitectura da Universidade de Évora. objectivas e não quanto ao seu conteúdo poético que, se a arquitectura é conseguida, dispensa
Portugal verbalização.
As três dimensões formais que julgo importante considerar quando falo a estudantes e pratican-
Maputo, Outubro de 2015 tes desta disciplina são, como já referi: a proporção, o ritmo e a escala.
A proporção é, na minha definição, a moral da forma.
O ritmo é, no meu entendimento, a ressonância das leis da forma natural no tempo e na forma
criada pelo homem.
A proporção é uma qualidade estática; o ritmo uma disciplina dinâmica.
A escala tem valores diversos conforme as culturas, mas é sempre a relação entre as dimensões
imaginadas e as dimensões humanas.
Estas regras, tão universais e intemporais quanto a escala cromática na música, atingem o seu
justo valor quando precisamente calibradas à dimensão do homem.
Os trabalhos que apresento foram concebidos e realizados em função dessas escalas de valor e
condicionados pelas condições sociais, técnicas, materiais e económicas de cada projecto.
ÉVORA. NOVEMBRO DE 2015 Na nossa realidade, isto é, nas condições de trabalho num dos países mais pobres e mais tecno-
logicamente atrasados do mundo, não vos farei ver acrobacias técnicas ou formais, tão sedutoras e
98 99 invasivas das revistas e da literatura arquitectónica contemporânea.
Pede-me o professor Pedro Pacheco que vos apresente o trabalho que eu e os meus colaboradores Pelo contrário, penso que é na coerência com as limitações do meio cultural, social e técnico que
temos vindo a fazer nos últimos 50 anos. o nosso trabalho terá algum valor e que poderá ter alguma relevância apresentá-lo.
Penso que alguma coisa devo dizer como introdução, explicando quem somos e o nosso processo Essa coerência atinge-se e manifesta-se por disciplinas de projecto que têm a ver com parâmetros
e maneira de pensar e fazer arquitectura. que parece não serem muitas vezes, actualmente, considerados na arquitectura dos meios culturais e
Os edifícios, imaginados e construídos, têm dimensões e desempenhos objectivos e mensuráveis tecnológicos dos países chamados desenvolvidos.
que se podem e devem explicar e justificar, tais como a sua função social, o seu comportamento Refiro-me, antes de mais, às dimensões da economia: de espaço, dos sistemas construtivos e am-
ambiental e a sua adequação funcional. bientais, da durabilidade das construções e da operação e manutenção dos edifícios.
Têm também dimensões menos quantificáveis, mas não menos decisivas que são, como na músi- O respeito por estas condições de projecto resulta, natural e inevitavelmente, em realizações for-
ca por exemplo, do domínio da intuição e que se regem por regras e valores universais e intemporais malmente económicas, que nada têm a ver com os minimalismos formalistas tão de moda noutros
como o ritmo, a escala e a proporção. meios e tão contaminantes do nosso.
A arquitectura tem âmbitos e conteúdos que vão do abstracto e subjectivo ao concreto e ob- A prestação ambiental dos edifícios no que diz respeito ao conforto térmico, à economia energé-
jectivo, do antropológico ao filosófico e do científico ao tecnológico e que se revelam como justas e tica e de água, ao controlo das emissões de CO2 e dos factores de poluição e erosão do meio é outra
essenciais quando se materializam em espaços e formas com valor metafórico, isto é, quando crista- das condições que consideramos e tentamos resolver nos nossos projectos com a maior simplicidade
lizam poeticamente. tecnológica, isto é, através de sistemas preferencialmente passivos.
Nos limites de uma apresentação como esta não posso, nem devo, explorar mais do que uma As condições socioculturais são, inevitavelmente, um factor da maior importância na nossa ma-
posição pessoal e da minha equipa de trabalho, que se exprime pelas formas e pelo comportamento neira de projectar.
dos edifícios que projectamos. As características culturais do “cliente”, seja ele individual ou institucional, são, igualmente, uma
Falarei, portanto, dos nossos projectos com referência às suas condições e intenções consideração indispensável ao nosso processo de pensar arquitectura.
A natureza, a qualidade e a quantidade da mão-de-obra disponível determinam, de várias manei- É, também, uma categoria política e estética.
ras, a selecção das tecnologias a prescrever para a realização dos nossos projectos. A procura da dimensão humana no espaço que projecta é a primeira obrigação ética do arqui-
tecto.
1. Falando a alunos de arquitectura penso ser importante desmistificar a moda da celebração dos A história não oferece somente lições positivas.
“heróis”, que é um dos aspectos que mais contamina os ambientes de formação e prática dos arqui- Analisada criticamente expõe e demonstra, muitas vezes, os resultados de grandes erros da huma-
tectos e a que todos, voluntariamente ou não, estamos sujeitos. nidade, nos quais os arquitectos participaram... e continuam a participar.
Esta é uma das razões porque dou cada vez mais importância ao conceito de profissão. A humanidade atingiu, agora, o momento mais crítico da sua história.
Para quem vive a projectar edifícios e a acompanhar-lhes o processo de construção, as horas dos O incontrolável crescimento demográfico é um fenómeno que continua sem ser equacionado em
dias, os dias dos meses e os meses dos anos são passados a materializar e transformar segundos de termos da distribuição equitativa dos recursos naturais, do espaço, da economia e da técnica.
emoção criativa em semanas e meses de trabalho profissional, onde intenções de perfeição formal As formas de ocupação e do estabelecimento da comunidade humana no território devem ser
são questionadas sistematicamente, pelas razões mais prosaicas e mais inescapavelmenteinescusavel- repensadas, pois a escala das cidades e conurbações não resolve, agora, satisfatoriamente, as exigências
mente racionais. de uma qualidade de vida digna e justa para a maioria das pessoas do planeta urbanizado.
Este confronto entre a natureza intelectual do processo conceptual e a realidade material do Simultaneamente, a degradação do ecossistema global obriga a rever as relações do homem com
processo construtivo cria tensões emocionais e intelectuais que obrigam o arquitecto a um autoques- o meio ambiente e a pôr a técnica ao serviço de objectivos mais válidos que os da mera gratificação
tionamento permanente e exaustivo. estética ou lúdica das minorias sociais que têm as condições materiais e o tempo para as desfrutar.
Penso que em nenhuma das outras artes há uma tal distância entre a concepção e a materialização A análise dos últimos 40 anos de produção arquitectónica revela um desprezo generalizado e
das ideias. 100 101 profundo por esta condição da nossa actividade.
Por essa razão somos, nós arquitectos, mais fingidores que os poetas: o edifício, mais que o Nada mais adequado à caracterização da nossa época do que o aforismo de que se deitou fora o
poema, quando realiza a sua simplicidade, não revela “as dores que deveras sentimos” na sua longa bebé com a água do banho.
gestação. A pretendida superação de um funcionalismo e de um racionalismo redutores abriu o caminho
Chamo a este processo a perda da inocência. da fuga às responsabilidades sociais do arquitecto e a um cinismo acrítico, por conveniente aceitação
Aquela mesma inocência a que se refere Picasso quando ambicionava ser capaz, no fim da vida, das regras do neoliberalismo a que não escapa uma classe profissional ao serviço da especulação imo-
de desenhar como uma criança ou Hokusai que lamentava a sua morte próxima quando, finalmente, biliária e de estados construtores de novas “pirâmides”, que não servem para nada.
se julgava capaz de desenhar uma folha. Os sucessos colossais das arquitecturas mais irresponsáveis como em Bilbau, o centro de con-
Salva-nos, então, a profissão, esse antídoto eficaz contra o diletantismo, que nos obriga constan- gressos de Santiago de Compostela, a torre da rádio televisão de Beijing ou as folies paramétricas das
temente a mergulhar na realidade da resistência dos materiais, que condiciona as nossas fantasias, múltiplas “hadids” e “liebeskinds”, para citar apenas as mais tragicamente anedóticas, são a prova da
contra autoridades municipais que nos impõem regulamentos estúpidos e mal interpretados e contra alienação generalizada a que se chegou por via de uma incultura, intelectualmente pedante e mate-
clientes que nos esgotam a paciência. rialmente oportunista, propagandeada por uma literatura e uma comunicação social que rebaixou a
arquitectura ao nível da moda, servindo os mesmos transientes e socialmente irrelevantes objectivos.
2. Assim sendo, e com a coragem da dúvida, arrisco passar-vos alguns pensamentos e axiomas, Grave é que nas nossas faculdades, isto é, nas faculdades de todo o mundo, ainda se perca tempo
demonstráveis, que têm guiado a nossa maneira de pensar arquitectura: a especular sobre tais escatológicas manifestações.
Arquitectura não é escultura, nem sequer escultura habitável. Grave porque apenas o considerá-las leva à perda do precioso tempo necessário ao debate e à
A forma não é um ponto de partida mas o resultado de um processo. investigação de temas essenciais e urgentes como são os da economia de meios e de processos, de
Forma não é espaço, embora possa e deva criá-lo. energia e de tempo e que tão cinicamente são, até, frequentemente, invocados como justificação
Espaço é uma categoria social e psicológica. daquelas mesmas manifestações alienadas.
3. Entendo esta introdução como uma declaração, quase diria uma confissão, de princípios sobre
os quais vamos procurando construir os processos e as formas da arquitectura que temos vindo a
projectar, com a participação e o estímulo constante dos nossos companheiros de trabalho em todas
as disciplinas necessárias ao projecto.
São alguns desses projectos que vou apresentar.
Não pretendo que sejam, todos e cada um, cabalmente coerentes com aqueles princípios.
A contaminação cultural e os condicionalismos de cada situação poderão explicar, mas não justi-
ficar, compromissos e erros nossos de enfoque e resolução.
Contudo, desde a Escola de Belas Artes e através de uma longa carreira didáctica, tenho como
indispensável a consideração de que fazer arquitectura é assumir uma responsabilidade social sem,
por isso, deixar de se obrigar a satisfazer imperativos emocionais.
Para os mais novos julgo ser importante deixar algum conselho, embora para tal não me sinta
merecedor de grande credibilidade.
Parece-me importante alertar-vos para a necessidade de se questionarem, sistematicamente, sobre
as vossas soluções espaciais, formais e técnicas em termos da sua validade social, sustentabilidade
ambiental, economia de meios construtivos, operativos e de manutenção e, certamente, como con-
tribuição estética para o espaço urbano ou natural onde elas se inserem.
Não pretendo com esta apresentação demonstrar uma inabalável coerência de atitude através
102
CONFERÊNCIAS
deste longo percurso mas, simplesmente, exemplificar que, como qualquer outro, ele é feito de mo-
destos sucessos, menos ou mais conseguidas realizações e uma permanente aprendizagem.
Termino com uma citação do discurso de Mies van der Rohe quando recebeu a Medalha de
Ouro do Instituto Americano dos Arquitectos em 1960 e que, lida hoje, põe em causa os próprios
termos da relação a que se refere:
“Ao longo de todos estes anos aprendi cada vez mais profundamente que arquitectura não é um jogo
de formas.
Compreendi a íntima relação entre arquitectura e civilização.
Compreendi que a arquitectura deve brotar das forças da civilização que a guiam e sustentam.
E que ela pode ser, no seu melhor, uma expressão da estrutura interna do seu tempo.”
O mais dramático nesta afirmação é que, trazida aos dias de hoje, nos leva a questionar a justeza
e a relevância da civilização e da estrutura interna do nosso tempo...
CASA MALANGATANA – MATALANA JOSÉ FORJAZ E ARQUITECTOS (EM CIMA) / FUNCHO (EM BAIXO)
ESTE TEXTO TIREI
DO INDESIGN
DE MOZ.
Intervenção apresentada ao Congresso Internatcional da IFLA and one in the Department of geography, with subjects relevant to man’s activities relating to the
NÃO VEIO COM (Federação Internacional dos Arquitectos Paisagistas) intervention in the natural landscape, but their responsibility is seen as to maximize the capacity to
OS OUTROS em Capetown, África de Sul. make the land productive or, simply, to analyze the physical reality in it’s diverse dimensions, exclu-
ding naturally the aesthetic or poetical meanings of the landscape. The reality is, as you can see, sadly
1994 ? simple to define. Is it easy to understand?
And is it very different from the reality in a good many countries in our region?
If not, as I suspect it is, what are, then, the reasons, the constants and the characteristic man’s
attitude towards the landscape as a source of physical and psychological well being in our part of
the world?
I think that without an attempt to understand this no meaningful move can be made to introdu-
ce to our societies a need and sensitivity for more than the productive and, maybe, the cosmogonic
dimensions of the vernacular landscape.
And why is this need for a new sensitivity so important now?
The answer seems obvious: the traditional balance between man and the natural environment
LANDSCAPE PRACTICE IN MOZAMBIQUE is broken.
It is broken at many levels sand in many ways. It is broken by the careless insertion of major
106 107 infrastructures: the roads and railways and the dams and power lines; it is broken by the violence of
Mozambique is a country with 800.000 square kilometers and nearly 16.000.000 people where the monoculture of sugar and sisal and tobacco; it is broken by the dams all built, as a rule, without
there is not, to my knowledge, a single Mozambican with a degree in landscape architecture; there is the slightest consideration for their environmental impact.
not, to my knowledge, a single landscape architect present in the country and practicing his art; there But the balance is also broken, in the sense of our considerations, in a very special and parti-
is no specialized course of studies conducting to a degree or a diploma in landscape architecture. cularly destructive way, by the almost inexplicable fast rate of demographic growth leading to the
There has never been. generalized phenomena of deforestation and desertification.
The only specialized discipline on this subject in an academic institution is a course of landscape It is broken by the incredible speed of urban growth and urban sprawl, uncontrollable and
architecture, with a duration of a semester, totalizing 96 hours of lectures and practical exercises, in unplanned.
the third year of studies of the Faculty of Architecture and Physical Planning, of our national and It is broken, finally, by almost three decades of warfare which isolated cast areas of the land,
only university. pushes millions of persons into vast miserable refugee camps, increased the urban problems and pre-
His course, integrated in the curriculae of the “environment” group of disciplines, attempts to vented any form of intelligent planning of population distribution or land and natural resources use.
make the students aware of the meaning of landscape as a specific spatial scale, to give them the Against the violence of these transformation phenomena the ineffable beauty of the jacaranda
intellectual instruments to perceive and understand it’s dimensions including it’s complex ecological lined avenues, the need for the well-trimmed park lawns or gardens seems an almost sinful luxury
relationships; to make them aware of the history of man’s attitudes and realizations in the field of and, for the large majority of our countries peoples, without any real meaning.
landscape transformation, with particular attention to what happens within the tropical zone and, Instead a tree in a street is seen, primarily as a source of fuel, at most a source of shadow, often as
finally, to equip he students with some, even if rudimentary, methodological instruments for the a public latrine, not a few times as an obstacle to the traffic.
analysis and the design of what we call n extra urban “green systems”, through practical exercises. Along the seashore of Maputo, our capital city, there is a scenic road built over e primary dune
This is all, in what regards formal acquisition of knowledge; there are, also, two medium level protected and stabilized with a grove of casuarina trees. For 18 years now the trees have been cut
schools for the preparation of agricultural technicians: one in the Faculty of Agriculture an Forestry down for fuelwood. The dune is taking over the road, the sea gnaws at the defenses and at, the end
of the road, the fishermen village is more and more isolated, not to speak about the beach, the only
available leisure resource for more than a million people, which is slowly becoming less and less
usable.
A project, a landscaping project for the reforestation and treatment of this stretch of road would
not resolve the problem by itself and, unless a solution is found for the immediate fuel needs of the
people living along the shoreline, no landscaping will succeed, short of protecting it with a perma-
nent and incorruptible military force.
This is one of many examples I could give you.
The visual environment of a country or a society is, I believe, defined by the attitude of the ma-
jority, not by the isolated fact or the efforts of an enlightened cultural elite or individual.
The change and evolution of a new attitude of the majority to demand a new level of envi-
ronment quality for our urban areas will take at least as long to materialize as it takes to bring that
majority to minimally acceptable standards of living.
And that will take a long time.
In the meantime our only hope is to be able to preserve some of the indispensible conditions to
reconstitute, in the future, a balanced environment where the productive, the visual and the symbo-
lic elements of the landscape will play their complementary roles for the benefit of man. 108
At another level, in our Faculty, we are striving to give our students the notion that in our sub-
tropical region the landscape is an essential complement to the built environment. We make a rule
of demanding from any project proposal a detailed treatment of the external spaces and a careful
consideration of the landscape elements for the control of light, shade, temperature and sound insu-
lation. We consider indispensible to any architectural solution a careful consideration of the climatic
parameters but all indications are that, in Mozambique, some of the most astonishing and of the
natural elements not only to create a better physical environment but to find again a link with the
more profound dimensions of our vernacular genius loci.
This we have, yet, to understand in depth but indications are that no sense of place can be achie-
ved in our cultures without the carefully balanced relationship between the architectural and the
landscape dimensions of the spaces.
Having said this I would like to invite all of you to come and see, in Mozambique, some of the
most astonishing and superb landscapes of Africa, as yet unspoiled and from which any sensitive
landscape architect will certainly be filled with a profound inspirational force.
The vastness and magnitude of this land of big trees and big animals is difficult to match.
We hope, with difficulty in hoping, that we can, at least, preserve some of that turning it into
man’s benefit by enhancing its beauty, not by destroying it.
The capacity to do that has yet to be built. DESENHOS PARA O CONCURSO DE PROJECTO PARA A SEDE DE MAPUTO DA CAISSE FRANCAISE JOSÉ FORJAZ
Pelo Dia Mundial do Habitat O tema deste “Dia Mundial do Habitat” propõe uma reflexão sobre a possível função da cidade,
ou do meio urbano, como um vector de desenvolvimento do meio rural.
Maputo 4 e 11 de Outubro de 2004 O tema é difícil de equacionar, e de articular, de forma a permitir tirar conclusões, ou mesmo, e
só, reflexões objectivas e de utilidade para o desenho de novas políticas que contribuam para a me-
lhoria do habitat humano na nossa região do mundo, que é a da geografia da pobreza.
Interessa então a esta reflexão uma análise, ainda que esquemática, da natureza dos dois meios
em questão, na nossa região: o rural e o urbano, e uma reflexão sobre a natureza das relações entre
estas duas formas de povoamento.
Começando por caracterizar o nosso meio rural é, de facto e infelizmente, elementar fazer a prova
de que a sua principal forma de produção, que é a agrária, interessa muito pouco para lá das nossas
fronteiras, e que só a exploração de recursos não renováveis, e únicos do nosso eco sistema, interes-
sam preferencialmente aos importadores do mundo industrializado.
Também é, infelizmente, elementar a prova de que, para viabilizar essa exploração, as retribuições
dadas aos trabalhadores rurais não permitem uma melhoria significativa das suas condições de vida, e
AS CIDADES COMO MOTORES a fortiori uma melhoria significativa das condições de vida da nossa população em geral.
DO DESENVOLVIMENTO RURAL? Poderíamos mesmo arriscar a afirmação de que os que menos beneficiam directamente com a
110 111 exploração dos nossos recursos naturais são os habitantes das zonas onde essa mesma exploração se
processa.
Os problemas da qualidade do habitat humano do terceiro mundo têm sido equacionados e pro- Os exemplos dramáticos das reservas naturais e das coutadas de caça, a ludibriação das popula-
movidos a tema de estudo, e especulação política e académica, sobretudo através da sua dimensão ções residentes para justificar a ocupação das melhores posições da costa de Moçambique por com-
urbana, certamente porque é esta a mais visível e politicamente sensível. plexos turísticos que oferecem apenas emprego, não especializado, a uma muito reduzida minoria
A cidade do terceiro mundo, os slums, o problema dos “sem tecto”, os squatters, “as invasões”, dos escorraçados;
a marginalidade social, económica, cultural e política foram, e são, sistematicamente escolhidos e – a tomada da terra a comunidades rurais, que a habitam ancestralmente, sem oferta de condi-
tratados pelos cientistas sociais e pelos urbanistas como temas de especulação e de inúmeras teses ções, minimamente compensatórias, às centenas de famílias que devem procurar novas condições de
para progresso na carreira académica e de especialização dos candidatos a Doutores nas melhores vida e de habitação;
universidades do mundo. – o corte de árvores e abate das florestas sem um plano articulado de repovoamento e controle
Esses temas são, também, uma base segura para mobilização de fundos para projectos de inves- fiável de corte em conformidade com a lei;
tigação, e de cooperação multilateral e bilateral, com a generosa intenção de inverter a tendência – os contratos viciados e legalmente inválidos para exploração de recursos submarinos, e outros,
generalizada de aumento da gravidade do problema naquelas regiões do mundo onde o trabalho hu- cuja riqueza não beneficia, nem directa nem minimamente, a comunidade local, e nem mesmo a
mano não é ainda valorizado proporcionalmente ao esforço físico e retribuído por forma a permitir, comunidade nacional;
a todos, as condições mínimas e aceitáveis de qualidade de vida. – os projectos com profundo impacto ambiental negativo, elaborados e articulados sem suficien-
Por ser mais visível, e politicamente sensível, a cidade é, sistematicamente, o pólo de atenção te coordenação multidisciplinar e regional e sem consideração pelo impacto social e económico que
dos políticos e dos mandantes e filósofos da cooperação internacional, tendo o mundo rural ficado terão na vida de milhares de famílias rurais, na sua região e nas suas zonas de influência;
mais aberto à especulação sobre os problemas de distribuição da terra, da água e dos factores de – a expansão descontrolada das cidades com a tomada das melhores e mais férteis terras de cul-
produção. tivo, etc., etc…
São alguns exemplos exactamente do contrário, isto é, de como a cidade, pelo menos neste nosso de comunicação social e pessoal, faltam os serviços públicos e privados, faltam os meios de defesa e
terceiro mundo, tem sido, sistematicamente, um factor de empobrecimento do mundo rural, pois segurança, faltam as oportunidades de debate e de troca de ideias fora do círculo social restrito da
é exactamente nas cidades que se cozinham, se absorvem e se dividem os lucros desses esquemas de família ou do clã, faltam os organismos económicos e financeiros, falta até a oportunidade de praticar
exploração da credulidade e da impotência da população rural, sem possibilidade de se defender por a religião escolhida.
vias legais ou administrativas pois, não percebendo o alcance das manobras a que é sujeita, não pode, Parece-me então um exercício elucidativo, e estimulante para a imaginação de audiências urbanas
por não saber, recorrer à protecção de uma débil máquina administrativa e jurídica que não conhece como esta, analisar objectivamente alguns dos parâmetros quantitativos das diferenças apontadas.
e à qual, de qualquer forma, não tem acesso. Mais adiante tomaremos, também, o orçamento do estado para os distritos rurais e calculamos
A problemática das relações entre a cidade e o campo depende, portanto, da capacidade dos go- o seu valor anual per capita comparando-o com o mesmo valor calculado a partir da Compensação
vernantes em fiscalizar as condições de realização daqueles “projectos”, e arbitrar entre os interesses, Autárquica para as diferentes cidades do país.
as diferenças e as razões que assistem a cada âmbito social na divisão mais equilibrada dos recursos Antes, contudo, será interessante estudar algumas dimensões correntes da vida quotidiana de
naturais, financeiros, e humanos da nação. todos nós e ver qual a sua expressão no campo e na cidade.
Depende portanto de dimensões éticas e políticas do exercício do poder, que se faz, quase exclu- Um exercício esclarecedor é, por exemplo, o cálculo do número de cópias dos jornais diários que
sivamente, nas cidades. são distribuídos nas cidades e aquelas que são acessíveis ao camponês, em Moçambique.
Mas, se as cidades absorvem a maior parte das capacidades e dos recursos da nação não é me- Se tomarmos o caso mais relevante e único válido para Moçambique, que é o do diário
nos verdade que elas continuam dependentes do mundo rural para uma parte importante da sua “Notícias” com uma tiragem de 14.000 exemplares, verificamos que a distribuição para Maputo é de
sobrevivência, quer em termos de comercialização da sua produção e dos serviços que prestam, quase 12.000 exemplares para todo o resto do país cerca de 2.000 exemplares. Este número, já de si
quer porque necessitam do que o campo lhes fornece, tanto em géneros como em trabalho a baixo 112 113 extraordinário, torna-se ainda mais dramático quando analisado por província pois, se para Maputo
custo. se distribui 1 jornal por cada 100 habitantes, no Niassa todo distribui-se 1 jornal por cada 40.000
Pode e deve, então, perguntar-se se o equilíbrio entre estes dois potenciais não seria realmente habitantes, em Sofala e Manica distribui-se 1 jornal por cada 6.500 habitantes, em Tete 1 para 6.000
desejável e porque tem sido ele, até agora, impossível e, de facto, cada vez mais desequilibrado. pessoas, em Cabo Delgado 1 para 12.000 pessoas, na Zambézia 1 para 12.000 pessoas, em Nampula
Pode e deve, então, perguntar-se quais as diferenças que marcam estas duas realidades, antagóni- 1 para 8.750 pessoas, e assim por diante.
cas por vezes, mas tão indispensavelmente complementares. Também significativo é o consumo de energia por região ou, mais precisamente, por Província.
Por outro lado neste nosso, tão irremediavelmente, terceiro mundo, as diferenças são, talvez, Consideremos, penso que validamente, as províncias “arrumadas” por grau de ruralidade do mais
mais ilusórias que reais. alto, nas províncias do Norte, ao mais baixo, nas províncias do Sul.
De facto as nossas cidades são já um misto de ruralidade e urbanidade, com largos segmentos Encontramos valores de “acesso doméstico à Energia” que vão dos 1,7% na Zambézia e 1,8% no
da população sem qualquer das infra-estruturas, serviços básicos e organização administrativa que Niassa, até aos 5,3% em Sofala e 23,1% no Maputo!
distinguem tradicionalmente a cidade do campo.
Acontece mesmo que, nalguns casos, o campo oferece condições de acesso a serviços de educação
e de saúde, por exemplo, que não são necessariamente inferiores, mais raros ou mais distantes do
que na cidade.
Essa é, no entanto e ainda, a excepção e o caso raro.
Nestas condições como pode, então, esperar-se que a cidade se torne o “motor do desenvolvi-
mento rural”?
FSDFSD
No campo, isto é, na maior parte do território, e para a maior parte da população nacional, falta DFDSGFDSFGV
quase tudo; falta a estrada, falta a água limpa e abundante, falta a energia eléctrica, faltam os meios DSFSDFDS
De facto, a percentagem média de acesso doméstico à energia eléctrica em todo o país é de 3,1% Pelo contrário, é pela compreensão e pelo respeito das dimensões locais da economia, da cultura
da população enquanto esse mesmo valor para Maputo é de 7,5 vezes a média nacional! e da história das relações entre as pessoas e delas com a terra, que se poderá utilizar todo o potencial
É também significativo constatar que o consumo nacional médio anual per capita, em 2003, era humano e natural das zonas rurais.
de 79,9 Kwh (ou 6,65 Kwh por pessoa por mês), incluindo consumos industriais. A própria Constituição da República define como um dos seus objectivos fundamentais “a pro-
Este valor na vizinha África do Sul, por exemplo é de 479 Kwh, ou seja 6 vezes a nossa média moção do desenvolvimento equilibrado, económico, social e regional do País”.
nacional. Por outro lado, enquanto que a lei fundamental defende, e cria, o “Poder Local” este é equacio-
Para dar uma noção do significado destes valores basta indicar que a média do consumo anual nado e investido apenas nas autarquias locais que são, no presente, 33 em todo o país, representando
nos países menos desenvolvidos era, em 1997, de 82 Kwh, nos países da Europa (OCDE) era de cerca de 4.300.000 de pessoas, isto é, menos do que 25% dos moçambicanos.
8.008 Kwh, enquanto a média mundial era de 2.383 Kwh, ou seja 30 vezes a média do consumo Nos termos do Artigo 188 da Constituição, são esses os cidadãos a quem é dado o direito, e os
em Moçambique. que têm o dever, de participar “na solução dos problemas próprios da sua comunidade” e de “pro-
Este valor atinge cifras extraordinárias da ordem dos 13.284 Kwh nos Estados Unidos, mover o desenvolvimento local, o aprofundamento e a consolidação da democracia, no quadro da
20.387 Kwh na Islândia, e 26.327 Kwh na Noruega, isto é, 330 vezes o consumo médio em unidade do Estado moçambicano”.
Moçambique! É também do espírito e da forma da lei fundamental que o poder local se “apoia na iniciativa e
Naturalmente que a mesma análise é relevante para o número de médicos, advogados, arqui- na capacidade das populações e actua em estreita colaboração com as organizações de participação
tectos ou, muito simplesmente, o número de funcionários do estado... dos cidadãos”.
Significativo é também o facto de que mesmo estas simples e reveladoras estatísticas não são Admite-se que a democratização de Moçambique seja um processo longo e difícil, e que a exten-
fáceis, ou são mesmo em certos casos impossíveis, pois que a informação que se pode obter dos 114 115 são daqueles direitos e deveres a todos os cidadãos não seja fácil de realizar a curto prazo, mas parece
recenseamentos e órgãos estatísticos não é sensível a muitos destes termómetros do desequilíbrio indispensável que o sistema de governo e a presença dos órgãos locais do Estado esteja cada vez mais
nacional. atento à participação de todos os cidadãos, mesmo dos camponeses, no mesmo espírito que a lei
Podemos pôr, então, em causa o compromisso que julgamos haver, ou nos é dado acreditar que estabelece para as autarquias.
seja um objectivo político nacional, que é o de eliminar as diferenças de tratamento entre os cida- Só através dessa atitude se poderão evitar erros graves na relação entre o Estado, moderno e abs-
dãos, quaisquer que sejam as suas origens, e arriscar a afirmação de que as cidades são, sistematica- tracto, e a autoridade tradicional como é o caso do que se passa com a falta de correspondência entre
mente, privilegiadas na distribuição dos recursos do estado e da riqueza nacional. o âmbito geográfico da divisão administrativa e o âmbito territorial da autoridade dos chefes tradi-
Teorias simplistas como a de uma melhor “arrumação” das pessoas no território com a criação de cionais, que são, para a grande maioria da população moçambicana, a única e verdadeira autoridade
núcleos concentrados de população onde fosse, teoricamente, mais fácil trazer-lhe as infra-estruturas e aquela que mantém o sistema de controlo social, a justiça e a hierarquia do poder real.
e os serviços foram, da maneira mais brutal, demonstradas nefastas pois que, além de tais serviços e De facto, nas condições actuais de exercício do poder do Estado o país estaria à beira da anarquia
infra-estruturas nunca se terem materializado, toda a relação económica, técnica, cultural, histórica e e do caos social se não fossem as autoridades tradicionais manterem a ordem e o respeito pelas regras
emocional das pessoas entre elas e delas com a terra foi desfeita, com consequências catastróficas para não escritas, mas de todos conhecidas, que regulam as relações entre os cidadãos do campo ou, se
aqueles que, precisamente, se pretendia apoiar com essa teoria. quisermos, do âmbito geográfico rural.
Não é por se juntarem mais pessoas em menos espaço geográfico que se produz, como por ine- Aliás, a falta de segurança, o crime e as outras patologias sociais, que se vão tornando regra nas
vitabilidade quase milagrosa, uma sociedade urbana com as sinergias e a dinâmicas próprias dessa cidades, provam exactamente que nos lugares onde aquela autoridade se dilui, a debilidade das ins-
forma de povoamento. tituições de defesa da ordem e segurança não as torna ainda capazes de se substituírem à ordem e à
Prova disso, por nós infelizmente bem conhecida, foram os aldeamentos coloniais e são, ainda regra tradicionais da nossa sociedade.
hoje, os campos de refugiados que, no entanto, têm mais apoio material, técnico e financeiro do que A experiência de trabalho com as comunidades rurais prova que qualquer acção ou intervenção
o que houve alguma vez disponível, para as nossas malogradas experiências de engenharia social. de qualquer natureza, seja politica, económica, social ou cultural, só tem resultados positivos, nesse
meio, se houver uma total compreensão e adesão, por parte da comunidade e se os seus objectivos ou seja entre 25 cêntimos e $1,07 dólares americanos por pessoa por ano! Isto é, 10 a 80 cêntimos
forem assumidos por todos. do Euro.
Para tal a mediação da autoridade tradicional é indispensável pois só ela pode funcionar como Parece-nos interessante e significativa a sua comparação com os valores atribuídos às autarquias.
garante da boa-fé de quem promove a acção, sendo ela que, chegado o momento, deverá explicar O Fundo de Compensação Autárquica, para o ano de 2004, que representa, em geral, cerca de
e sofrer as consequências negativas que para a comunidade possam advir, enquanto as autoridades 50% dos orçamentos municipais, tem um valor médio de 46.365 Meticais, ou sejam $2,0 USD per
políticas e administrativas são tidas como mais transitórias e, portanto, podem efectivamente escapar capita por ano, variando entre um mínimo de 16.526 Meticais no Gurué e um máximo de 142.214
à responsabilização, pelas consequências dos seus actos ou projectos. Meticais em Mandlakazi, ou seja entre um mínimo de $ 0,71 USD e um máximo de $6,18 USD
Nestas condições as funções do governo e as das autoridades tradicionais devem, necessaria- por pessoa e por ano.
mente, completar-se e complementar-se, funcionando a administração pública como definidora das Numa comparação directa podemos inferir que os habitantes das autarquias têm uma atribuição
políticas gerais, como financiadora ou promotora do financiamento e, sobretudo como facilitadora do orçamento de estado que é, na média nacional, mais do dobro da atribuição aos habitantes dos
dos contactos e relações extra comunitárias. distritos rurais.
A autoridade tradicional assumirá naturalmente o papel de representante dos interesses da comu- Parece-nos importante, para situar a dimensão global do problema, fazer uma rápida comparação
nidade e de promotora da evolução e da renovação dos costumes tradicionais, dentro das instituições com os mesmos indicadores para outras cidades no mundo, começando, naturalmente, pelas da
económicas democráticas modernas. nossa região.
Pode perguntar-se qual o propósito destas considerações quando o que está em discussão é a Tomemos então, para começar, o exemplo da cidade de Windhoek, capital da Namíbia, um país
pretendida função da cidade como estimuladora do desenvolvimento rural. que acedeu à independência num momento histórico muito próximo do nosso e com um percurso
Naturalmente que, enquanto se mantiver a dependência que o meio rural tem em relação ao 116 117 de luta política e armada não muito diverso.
meio urbano, onde as decisões são tomadas e o bolo nacional é repartido, não poderá haver outra Trata-se de uma cidade com uma população da ordem dos 250.000 habitantes e com um or-
visão senão a de que o futuro do campo, onde a parte mais importante da riqueza nacional é çamento anual da ordem dos $75,7 milhões de dólares, ou sejam $303 dólares por pessoa por ano.
produzida, passa exactamente por um equilíbrio de interesses entre estes dois âmbitos territoriais Se tomarmos as cidades mais significativas da nossa vizinha África do Sul os números são ainda
e sociais. mais expressivos. Assim, no caso de Joanesburgo, com uma população metropolitana de 3,2 milhões
É sintomático que o Orçamento do Estado defina, e leve à aprovação da Assembleia da Repú- de habitantes, o valor anual do seu orçamento municipal per capita é de $476 dólares, enquanto
blica, as atribuições do Fundo de Compensação Autárquica às 33 autarquias do país, mas não tenha que em Durban, com 3.100.000 habitantes, esse valor é de $533 USD e na Cidade do Cabo, com
qualquer referência explícita a uma compensação, ou atribuição, aos distritos, que nem mesmo são 2.600.000 habitantes, esse valor é de $453 USD!
explicitadas nas atribuições às Províncias. Estamos portanto a falar de dimensões orçamentais da ordem das 100 na Namíbia, às 215 vezes
Essas atribuições ficam, portanto, remetidas à discrição dos governos provinciais, que não estão as nossas, na África do Sul!!!
equipados com os órgãos de exercício democrático necessários à decisão sobre este tema.
As sondagens que fizemos levaram-nos à conclusão de que não é fácil obter os valores das trans-
ferências dos fundos estatais para as Administrações Distritais.
Contudo, nas duas províncias onde conseguimos, por gentileza dos respectivos Governadores,
obter esses valores, encontrámos uma distribuição média anual per capita da ordem dos 22.430
Meticais, ou sejam cerca de $0,97 cêntimos de dólares por pessoa por ano! Talvez $ 0,75.
Estes valores variam, numa das duas províncias analisadas, entre os 12.790 Meticais, como
FSDFSD
valor mínimo, e 49.290 Meticais, como valormáximo ou seja entre 50 cêntimos e $2,14 USD, per DFDSGFDSFGV
capita por ano e, na outra, entre um mínimo de 7.000 Meticais e um máximo de 24.637 Meticais, DSFSDFDS
Mais interessante se torna este exercício quando aplicado às cidades europeias e norte america- ingenuidade, o cinismo ou a inconsciência com que se propõem estratégias que isolam sectores eco-
nas, onde encontramos casos tão espantosos como o de Aalborg na Dinamarca com um valor per nómicos e sociais e se constroem sobre esses soluções hipotéticas, baseadas em exemplos pontuais que
capita anual de $ 25.700 USD; Murcia, na Espanha, com $ 952 USD, ou Toronto, no Canadá, com não escondem, nem minimamente, a tendência generalizada de empobrecimento real da maioria da
$1.814 usd. população da nossa região e do nosso continente.
Mais longe ainda, mas em latitude semelhante à nossa, podemos comparar-nos com o orçamen- O problema do desenvolvimento urbano ou rural não é um problema isolado ou que se possa
to municipal de Port Phillip, na Austrália, com uma população de 81.000 habitantes, com $ 790 resolver independentemente, como não o é o problema da pobreza ou o problema do desemprego
USD por habitante por ano. ou, se quisermos, o problema do subdesenvolvimento.
A enormidade destes indicadores pode, e deve, chamar-nos de volta à realidade da nossa situa- Os números e as estatísticas indicadas dão uma noção objectiva e quantificada da dimensão do
ção e colocar realisticamente o problema da cidade como promotora do desenvolvimento rural em nosso problema urbano e rural, isto é, do problema nacional.
Moçambique. Um olhar atento aos números e às estatísticas da nossa região e do nosso continente, tornam claro
De facto, mesmo com o desequilíbrio apontado entre os orçamentos das cidades e dos distritos, que não se trata de um problema isolado e que de facto Moçambique nem mesmo é o caso mais
como poderão as nossas cidades vir a funcionar desse modo? desesperado… felizmente para nós.
Mas, e sobretudo, com os valores absolutos mencionados, como pode o coxo ajudar o cego? Os números são ainda mais eloquentes quando objectivados e traduzidos em exemplos que dêem
Voltando ao nosso caso importa reflectir que os números indicados reflectem uma simples ver- a medida comparativa da condição do trabalhador moçambicano e do seu congénere ou homólogo
dade: embora o orçamento que o estado atribui às autarquias seja quase exactamente o dobro do que em países desenvolvidos.
atribui aos distritos esse facto não é, em si, significativa pois que, mesmo esse dobro que as cidades É espantosa a diferença de condições salariais para o mesmo trabalho, sobretudo ao nível mais
recebem, é tão manifestamente insuficiente que seria muito difícil esperar que daí se possa investir 118 119 baixo da escala salarial.
em mais do que o necessário e essencial para assegurar a mais elementar sobrevivência. Tomemos por exemplo o salário mínimo americano de $5,00 por hora, para trabalhadores não
Não nos parece portanto relevante falar aqui de hipóteses abstractas ou veleitárias como as de que especializados.
se devem desenvolver as infra-estruturas e os serviços para apoiar o campo. A este nível um trabalhador americano recebe em dia e meio de trabalho o salário mínimo men-
Isso parece-nos evidente e indiscutível. sal de trabalhador um moçambicano!!!
Todos sabemos que o campo é longe e mudo, mas sabemos também que a nossa cidade é só Mas terá este trabalhador mais necessidades básicas? Não, mas o que têm, com certeza, são mais
marginalmente mais próxima e mais vocal. exigências.
Sabemos todos que o nosso problema não é o de uma cidade privilegiada e um campo esquecido Sabemos perfeitamente que nenhum político do mundo desenvolvido teria jamais a coragem de
mas sim o de um continente a quem não é dada a mais pequena possibilidade de sair da situação de pedir sacrifícios ao seu povo para beneficiar um outro povo. Ninguém, no seu perfeito juízo, saberia
indigência em que se encontra. propor, motivar ou justificar o esforço que seria necessário fazer, mesmo a nível pessoal, para começar
O que deveríamos discutir é a possibilidade de que o círculo vicioso da pobreza não seja possível a equilibrar as condições de vida dos habitantes deste mundo.
de quebrar por qualquer milagre socioeconómico, enquanto persistirem as desigualdades nos termos Seria uma utopia irrealizável e, provavelmente, impossível de administrar com a necessária justiça
de troca entre os mundos em que se arruma tradicionalmente a humanidade. e transparência.
O que deveríamos discutir é a possibilidade de que os níveis e as formas de cooperação internacio- E, no entanto, os níveis irrisoriamente baixos de “cooperação” internacional, sempre, e genera-
nal, com que se mantém a situação de dependência de África em relação aos países doadores, não pode lizadamente, muito inferiores aos estabelecidos e aceites pela comunidade das nações no fórum das
mais esconder a ilusão de que não é com essas migalhas que se poderão jamais produzir as mudanças Nações Unidas, devem fazer-nos gratos e dependentes como que de um favor se trate.
estruturais necessárias à inversão da tendência do progressivo e inexorável empobrecimento do conti- As comunidades rurais e urbanas dos nossos países, a quem não chega directa ou indirectamente
nente e das consequências desastrosas, e inevitáveis, que tal fenómeno vai trazer a toda a Humanidade. senão uma percentagem ínfima desses fundos, não têm já, ou nunca tiveram, qualquer ilusão sobre
Parece-me, portanto, essencial aproveitar esta oportunidade para denunciar, mais uma vez, a o que lhes pode chegar como ajuda exterior significativa.
Contam, como sempre o fizeram, consigo próprias para resolver os seus problemas. As empresas de serviços não lhos podem fornecer sem garantia.
E fazem bem pois que de outro modo mais pobres ainda ficariam na espera do prometido... que, Naturalmente que as estratégias de distribuição equitativa dos benefícios e da renda nacional a
felizmente, não conhecem. todos os cidadãos podem, e devem ser urgentemente, melhoradas, mas o problema anterior é o da
Talvez que o segredo maior para uma ajuda positiva seja o de as deixar, ao menos, fazer o que própria criação de riqueza, da qual os camponeses são, sistematicamente excluídos, como o foram
sabem sem as prejudicar ainda mais interferindo com o seu saber ancestral, com a sua regra social na economia colonial.
e sobretudo com a riqueza natural que lhes pertence, e que é a única fonte de subsistência de que Os exemplos de estratégias com êxito para a melhoria das condições de vida da população
dispõem, pelo menos enquanto um novo saber, mais estruturado na realidade social e ecológica, não rural são, infelizmente, raros e pouco significativos, quando confrontados com a enormidade do
possa vir a substituir-se com vantagem àqueles saberes e àquelas regras que são, apesar de tudo, as problema.
que asseguram ainda o precário e milagroso equilíbrio que mantém viva e em paz essa comunidade. E no entanto estratégias como a da participação dos trabalhadores nas empresas, asseguran-
Falar de desenvolvimento e fazer-lhe a prática são dois exercícios diversos e, muitas vezes, anta- do-lhes a propriedade do seu posto de trabalho; do subsídio básico mínimo a todas as famílias,
gónicos. suficiente para cobrir as despesas de subsistência essenciais; dos programas de investimento através
Mas falar de desenvolvimento sem ter os meios para o materializar e, sobretudo, sem contar das associações de desenvolvimento comunitário, para transformação das aldeias em empresas de
com os limites e os potenciais dos sujeitos desse mesmo desenvolvimento; falar de desenvolvimento propriedade democrática, e outras, foram já testadas com sucesso na região.
como se de um processo técnico se tratasse; falar de desenvolvimento reduzindo-o a uma colecção Não me cabe a mim, nem aqui seria possível, discutir estes tópicos da economia e do desenvol-
de projectos ou de programas; falar de desenvolvimento como se quem se quer desenvolver não sou- vimento, mas julgo ser importante, e da essência do debate sobre os problemas dos assentamentos
besse melhor do que ninguém do que precisa; falar de desenvolvimento como de remédio para uma humanos, identificar essa dimensão como a raiz do problema.
doença é como falar de cooperação como se fosse caridade. 120 121 No princípio desta comunicação afirmei:
De facto o campo, ou se quisermos, a aldeia que é a sua expressão colectiva, vai perdendo a sua “O tema é difícil de equacionar e de articular por forma a levar a conclusões, ou mesmo, e só, a
capacidade de auto-sustento. reflexões objectivas, e de utilidade para o desenho de novas políticas que contribuam à melhoria do
…“para 30% dos que vivem no campo, e para muitos outros que ainda com ele mantêm laços habitat humano na nossa região do mundo, que é a da geografia da pobreza.”
profundos, a aldeia já não oferece a base económica para uma agricultura produtiva e para as acti- A equação, da qual tentei estabelecer alguns termos nesta análise, tem, de facto muitas incógni-
vidades de apoio mútuo e de trabalho comum”… diz o economista Norman Reinholds, falando da tas. Tantas, pelo menos, quantos os casos e quantas as comunidades rurais que representa.
situação na África do Sul. Não posso portanto, pretender, aqui, encontrar-lhe uma solução, mas penso que
A diferença para a nossa situação é apenas quantitativa. é útil, e mesmo indispensável, lembrar, mais uma vez, que o “ motor do desenvolvimento rural”
Melhorar o habitat rural é um conceito simples de definir: quer dizer estradas e vias de comunica- poderá talvez ser também as cidades se estas forem enquadradas numa estratégia global de desenvol-
ção, infra estruturas económicas e sociais, saúde e educação (por essa ordem), crédito agrário às famílias vimento equilibrado.
e às pequenas empresas, acesso aos serviços de administração pública, apoio técnico e rede comercial;
mas isto só se consegue com uma política de apoio à sua produção através de incentivos fiscais, do
agravamento das condições de importação dos géneros que se podem produzir em Moçambique e,
naturalmente, com um mecanismo de crédito acessível às comunidades e às famílias camponesas.
O camponês não tem água limpa porque não pode pagá-la; também, por isso, não tem electrici-
dade ou telefone e não tem escola e hospital e jornal e televisão ou farmácia.
Porque não pode pagá-los.
FSDFSD
O estado não lhos pode dar enquanto não criar uma base contribuinte suficiente, que não pode DFDSGFDSFGV
vir duma agricultura de subsistência. DSFSDFDS
Adenda para as “XI Jornadas da Associação dos Urbanistas Portugueses” na escolha dos seus representantes e dirigentes e, sobretudo, no conhecimento e na aceitação da lei
escrita e despersonalizada.
As cidades são um produto das forças sociais que as governam, que as dominam e dirigem. Na sobreposição das várias cidades que são, hoje, as nossas cidades, podemos distinguir clara-
A forma da cidade é, portanto, o resultado e a materialização daquelas forças, muito mais que mente as diversas camadas que as conformam, e as caracterizam:
uma consequência da sua topografia, do seu clima ou da visão espacial dos seus urbanistas. o núcleo rural da primeira ocupação, presente ainda na toponímia e na sua permanente repro-
A história da cidade africana não seria aqui possível de apresentar nem mesmo em forma de dução periférica, a primeira cidade, sede da ocupação militar e comercial, o centro do domínio e
bosquejo. Mas ela deve ser tomada em consideração quando certas afirmações pareçam reflectir do exercício do poder colonial, a cidade libertada e sede dos sonhos e esperanças da nação indepen-
uma distância maior à realidade europeia, onde a cidade foi sempre “a única expressão da evolução dente, as profundas marcas das aventuras e dos ideais políticos do post independência, as nefastas
da sociedade”. Pelo contrário “uma ligação profunda entre o mundo rural e o mundo urbano teve consequências da inépcia e da corrupção administrativa e política e os preciosos indícios de uma
uma influência marcante sobre as características das cidades africanas antigas, ligação essa que ainda renascença africana.
pode ser identificada nas cidades da África contemporânea”. (Sandro Bruschi in “Campo e cidades Mas a ideia de cidade e de urbanidade, e as suas razões de ser e de acontecer, são, ainda, muito di-
da África antiga”). versas das que produziram as cidades europeias. E, mesmo quando são as mesmas as razões, devemos
Na Europa, nos países ocidentais, nas sociedades com uma longa tradição urbana e nas cidades ter em conta que elas surgem só agora, séculos mais tarde das razões e circunstâncias que assistiram
planificadas e construídas para responder a programas religiosos, políticos ou económicos, a ordem à génese e
urbana é identificável na sua geometria, na sua evolução espacial e topológica, na sua longevidade, à consolidação das cidades do resto do mundo.
na distribuição das responsabilidades cívicas entre os seus habitantes, na toponímia dos espaços Não interessa, como dissemos, neste momento, perspectivar a história da cidade africana e es-
públicos, nas tradições culturais e nos seus monumentos comemorativos, na especialização dos seus 122 123 tabelecer as profundas diferenças entre as civilizações de forte urbanidade da África Ocidental e as
habitantes, no milagre do seu aprovisionamento quotidiano, no anonimato do cidadão perante a lei, civilizações de forte ruralidade do resto da África sub sahariana.
na presença de instrumentos de segurança e protecção social, na oferta de oportunidades de promo- Isso é parte integrante da história de África, que não é o assunto que aqui trazemos.
ção económica, política, científica, técnica e cultural, na difusão da informação, numa palavra: no Interessa sim, nesta ocasião, esclarecer algumas das razões das diferenças apontadas.
seu ethos. Interessa aqui, penso eu, reflectir sobre a natureza dos problemas que enfrentamos, como urba-
Naturalmente todas estas dimensões foram-se construindo ao longo dos anos e dos séculos, atra- nistas, no nosso meio de intervenção.
vés da lenta evolução que nos trouxe da revolução que foi a descoberta da agricultura e das primeiras Na primeira parte desta comunicação reflecti sobre a dimensão específica das relações entre o
autocracias, e teocracias, até às presentes, e ainda tantas vezes inseguras, democracias. “campo” e a “cidade”, no nosso contexto tentando, com isso, estabelecer o contexto geral do habitat
Não há porventura nesta sala uma só pessoa, um só colega, que ponha em causa a validade e a humano em Moçambique.
necessidade do processo democrático como a única forma justa de administrar a cidade em que se Quereria ir agora um pouco mais longe e discutir a natureza da cidade contemporânea africana,
vive e em que se quer viver. como vista e sentida pelos seus habitantes, e por aqueles que aspiram a ser, também, seus potenciais
Imperfeita, talvez, mas ainda insubstituível como mecanismo mais adequado ao equilíbrio e à habitantes.
justiça das decisões sobre a coisa pública, à vida cívica e ao bem comum, a democracia nasce na ci- O objectivo desta “adenda” é, agora, a de alinhar algumas noções sobre a realidade dos problemas
dade, pela inteligente descoberta do valor específico e especial de cada homem num conjunto social urbanos e da posição dos urbanistas perante eles.
que é maior do que o somatório dos indivíduos. Talvez a maneira mais sugestiva de vos dar a medida, e a essência, do problema seja levar-vos,
Na África sub sahariana, onde vivo e trabalho, e onde me obrigo a participar na construção do em espírito, a um qualquer debate sobre um qualquer plano, ou projecto, ou intervenção sobre uma
bem comum e da cultura cívica, a cidade é, igualmente, necessária e necessita das mesmas regras e qualquer cidade ou bairro de qualquer cidade de Moçambique que é, seguramente, um exemplo
das mesmas obrigações. também válido também, para toda a África sub sahariana.
Mas ela é uma necessidade recente para uma nova sociedade que tem, ainda, grandes dificuldades Não interessa por onde se comece, ou para onde se oriente a discussão, o debate vai sendo, inexo-
ravelmente, dirigido para o único problema sobre o qual todos os moçambicanos presentes estão de O que me parece mais significativo nesta situação é o facto da cidade ser vista, por uma grande
acordo: a dimensão dos talhões propostos para as famílias construírem as suas habitações é, sempre, maioria da população, como base de uma economia agrária, sem se dar conta do desenraizamento
muito pequena. inevitável das suas tradições comunitárias e dos problemas ecológicos, como se fosse possível conti-
Os argumentos são (e há trinta anos que os conhecemos…): que o país é grande, que as famílias nuar a dependência da terra como garante da sobrevivência mas, agora, com as vantagens de viver
têm que cultivar a sua “machamba” pois só isso lhes garante um mínimo de segurança alimentar, que na cidade.
os urbanistas não conhecem ou não respeitam “os nossos costumes”, que as famílias africanas são As estatísticas mais grosseiras indicam que a superfície mínima necessária à sobrevivência de
grandes e devem hospedar muitos familiares distantes quando se visitam e comemoram juntos, que uma família camponesa, em Moçambique, é de dois hectares, não contando com mais dois a quatro
os filhos, e os netos, devem viver em casa com os pais …etc, etc. hectares para rotação das culturas, e com a necessária, e nem sempre assegurada, aptidão agrícola do
Os contra argumentos são evidentes: que a cidade não se pode estender indefinidamente, que as terreno.
infra estruturas e os serviços seriam proibitivos, que as distâncias aos centros de serviços e de activi- Chegamos assim à extraordinária densidade urbana de cerca de um habitante por hectare, antes
dade aumentariam insuportavelmente, etc, etc, etc. mesmo de reservar o terreno necessário às infra estruturas e serviços públicos, … se quisermos acei-
Não assisti ainda a nenhum destes debates que terminasse com um só dos presentes convencido tar que as nossas cidades sejam os locais de vida de uma classe de camponeses, condenados a uma
com estes argumentos. agricultura de subsistência.
O problema, contudo, cada dia se me afigura mais pertinente pois que, de facto, os argumentos O que há de extraordinário nesta situação é o facto das pessoas estarem profundamente con-
dos urbanistas soam quase todos a falso, e as pessoas têm o direito de se perguntar porque é que se vencidas de que aquela cidade é possível e de que, na transferência da aldeia para a cidade, se
invocam argumentos irrelevantes. podem conservar as relações ancestrais com os outros e com a natureza, que só a aldeia pode
Vejamos: porquê invocar o custo da estrada que nunca se faz, da água que nunca chega à casa, da 124 125 assegurar.
energia que não é instalada, da escola ou do posto de saúde que não são construídos, do lixo que não Esta é uma das leituras mais significativas que podemos fazer da cidade africana de hoje: na im-
é removido, das linhas telefónicas que não são levadas ao bairro e das distâncias que não têm sentido possibilidade de viabilização do desenvolvimento rural, pois que esse depende de factores externos às
senão para uma pequena fracção da população? nossas economias, o camponês, que percebe que na cidade há, ou parece haver, maiores oportunida-
Na grande maioria das cidades, incluindo a capital, o grosso do aumento da população faz-se des, ruraliza a cidade quando, finalmente, a ela acede pois também ali não encontra outra alternativa.
pela chegada ou pela reprodução de famílias camponesas que se vão instalando e disseminando na E deve fazê-lo, para poder sobreviver.
periferia e encontrando interstícios, no centro da cidade, onde cultivar a sua pequena mas indispen- Por outro lado a ocupação das periferias, por esta população sem esperança, faz-se agora sem
sável machamba. atenção às regras tradicionais e sábias de uma relação inteligente com a terra e com a comunidade.
Por outro lado é também verdade que o crescimento espontâneo das cidades se vai fazendo por Encontra-se o lugar possível, mas não o melhor lugar, o mais correcto para o cultivo e para o
acomodação aos diversos factores e se resolvem pacificamente os conflitos sendo reconhecida por pasto.
todos a justeza com que essa acomodação se realiza.
No reordenamento dos bairros de criação e desenvolvimento espontâneo é interessante o facto
de que a subdivisão da terra é razoavelmente equilibrada e sem grandes diferenças de áreas entre os
“ talhões” ocupados, que acabam por não ser muito maiores e são, por vezes, até menores, do que
os que se discutem com a população nos debates públicos, como os ideais para o equilibro urbano.
E, no entanto, isso não invalida os argumentos das famílias que vêem, de facto, na dimensão do
talhão um factor importante de melhoria potencial e directa da sua vida material e que, portanto,
FSDFSD
esperam das autoridades uma proposta que, realmente, permita e proporcione essa melhoria em DFDSGFDSFGV
melhores condições do que as soluções que elas por si próprias encontraram. DSFSDFDS
Paga-se a terra a quem não tem o direito de a vender, pois se desconhecem os mecanismos de O SIDA é, como sabemos, uma doença social, ou mesmo, diria eu, uma doença cultural, na me-
exploração já instalados. dida em que o seu controle depende, fundamentalmente, da educação da população. Essa educação
Esgota-se a terra e desertifica-se o território, pois a terra não chega e não há é muito difícil de fazer entre pessoas, na maioria analfabetas, e com crenças arreigadas em explicações
alternativa, senão cortar lenha para cozinhar. mágicas para os fenómenos que não compreendem.
Vive-se na contingência da expulsão, pois agora, na cidade, as velhas regras da distribuição da Que fazer então?
terra já não são aplicáveis, e as novas não foram aprendidas. Uma pergunta que tem mais de ético que de tecnológico… e que, para espíritos mais místicos
A terra, aqui, tem dono e tem destino e a sua ocupação exige papéis, documentos inacessíveis e tenha, talvez, até muito de religioso.
o cumprimento de regras incompreensíveis Para nós, que pretendemos intervir no processo de dar forma e equilíbrio à cidade do 3º mundo,
Pouco a pouco vão-se criando as condições para a situação desesperada em que nos encontramos que caminhos nos ficam abertos para uma contribuição significativa e positiva?
em que o crescimento da população nas cidades é muito mais rápido do que o acesso por todos ao Seria de um simplismo imperdoável tentar dar uma resposta simples a pergunta tão complexa.
emprego, ainda que informal. “O que fazer” pode ser uma questão geral e abrangente, de especialidade, ou pessoal.
Cresce de facto a cidade em número de pessoas mas não crescem, proporcionalmente, as infra É-me difícil separar do meu pensamento pessoal o meu pensamento profissional em elaborações
estruturas e os serviços. como esta.
Crescem os problemas, incrementalmente, ano após ano. Dar-vos-ei portanto um princípio de resposta que contenha um pouco das duas dimensões.
De Ouagadougou a CapeTown o problema é idêntico e atinge por vezes dimensões inacreditá- Nas condições de intervenção extraordinariamente limitadas em que trabalhamos como planifi-
veis como por exemplo num bairro de Nairobi, com 700mil pessoas e com uma densidade de 2500 cadores e urbanistas o nosso âmbito e a nossa capacidade de intervenção são muito limitados.
habitantes por hectare, ou sejam 4 metros quadrados por habitante!!! Isto, não o esqueçamos, em 126 127 Essas condições impõem uma grande sabedoria no estabelecimento de prioridades nos níveis de
habitações quase exclusivamente de um piso. problemas a enfrentar.
É evidente que, nestas circunstâncias a sociedade se marginaliza e se organiza para as formas mais Trata-se de estabelecer, desde o início de qualquer intervenção, uma estratégia de urbanismo pro-
desumanas da luta pela sobrevivência. gressivo numa lógica de soluções decorrentes de prévias intervenções, e da criação de condições favo-
É evidente que uma sociedade nessas condições não pode pagar impostos, não pode pagar servi- ráveis ao desenvolvimento da sociedade, que determinam e acompanham a organização do espaço.
ços, não pode pagar benfeitorias de qualquer natureza. Naturalmente o primeiro nível de intervenção, e do qual depende o sucesso de qualquer passo
Aspira a pagar o que come… quando come. sucessivo, é o do estabelecimento dos direitos de uso e aproveitamento da terra por parte de quem
Mas há também a outra cidade. A cidade com ruas e água e electricidade, telefones e… menos lixo. o ocupa.
A cidade assediada e que, a isso, já se habituou. São poucas essas outras cidades. Este, penso eu, é um problema com características únicas no nosso caso, em que uma grande
Normalmente as capitais e alguns centros urbanos de regiões com alguma riqueza em exploração. maioria das famílias que vivem nas zonas urbanas não possuem qualquer prova documental do seu
Nas outras nem mesmo os centros conseguem esconder a condição da maioria. Não vou dar mais direito de ocupação.
números. Os que atrás referi parecem-me suficientemente explícitos para dar uma realidade humana No caso particular de Moçambique o “uso e aproveitamento da terra” não confere um direito da
cuja expressão urbana não pode deixar de ser desequilibrada e dramática. sua posse, que é exclusivamente do estado.
Aquelas condições são ainda agravadas pela fraqueza da capacidade administrativa, da capacidade Mesmo tradicionalmente a terra foi sempre considerada como um recurso (natural) como o são
técnica e do diálogo político. o ar e a água, ou o mar ou os rios.
Este panorama tão extremo, vem agora agudizar-se com o fenómeno do SIDA. A doença é es- A distribuição do direito de “uso e aproveitamento” a indivíduos e entidades privadas implica
pecialmente incidente entre os jovens, que são com quem se conta em primeiro lugar para conduzir a formalização de ocupações “espontâneas” ou “informais” que, se não forem processadas com um
o processo de mudança das condições assinaladas. Não só são já muito poucos mas são exactamente máximo cuidado, podem consolidar sistemas espaciais defeituosos e comprometer a futura instalação
esses poucos que estão a desaparecer a um ritmo assustador. das redes de infra estruturas e serviços indispensáveis.
Naturalmente que toda a nossa acção seria mais fácil se pudéssemos intervir em terreno aberto, O reordenamento urbano e social, viabiliza a abertura de ruas e a construção, futura, das infra
prevendo o assentamento inicial da população. estruturas e serviços, sobretudo porque a população nele envolvida adquire, através do seu processo
Isso porém é raramente o caso, dadas as limitações financeiras das municipalidades e comuni- de participação, a consciência do valor desses elementos da estrutura urbana.
dades. Um outro valor, não menos importante destas operações é a formação, no campo, de quadros
Regra geral toda a franja periférica urbana está já ocupada e com densidades que implicam técnicos da administração pública e municipal, e mesmo de profissionais liberais, para o alastramen-
que muito pouca superfície é deixada ao estabelecimento das infra estruturas e dos serviços to do processo.
públicos. Quase todas as vantagens indicadas são perdidas ou ausentes nos processos de planeamento de
É pois necessário começar por um processo, lento e difícil, nas nossas circunstâncias, de levanta- gabinete, normalmente conducentes a estruturas espaciais pretensamente racionalizadas mas insen-
mento geográfico-cadastral das ocupações, seguido de um processo negocial, com todas as famílias, síveis às condições reais de ocupação do terreno e, por isso, alienantes da dimensão mais essencial de
que permita um reordenamento e racionalização do espaço, a que talvez possamos chamar de urba- qualquer plano que é a da participação esclarecida da população.
nização. Na ordem de prioridades do exercício do planeamento, nas nossas circunstâncias, aparece, si-
Esta negociação tem duas valências principais: por um lado institucionaliza legalmente as ocupa- multaneamente com a do ordenamento para uma urbanização progressiva, a necessidade imperiosa
ções, por outro deve viabilizar o ordenamento físico. e urgente de mobilizar a população para soluções locais, criativas e viáveis, para os problemas mais
Tem no entanto perigos escondidos, se não for conduzida com os cuidados necessários, como urgentes da sustentabilidade ambiental da comunidade.
por exemplo, nos nossos países onde as famílias não são, na sua grande maioria casadas formalmente Trata-se, naturalmente do acesso à água potável e do saneamento básico, ao nível dos dejectos
e com os direitos dos cônjuges legalmente estabelecidos, o registo de um talhão em nome do chefe humanos e dos resíduos sólidos e, com não menos importância, da energia.
da família pode acarretar uma dependência adicional para a mulher. 128 129 Esta problemática, que tem sido alvo de montanhas de estudos e de experimentações, projectos-
Neste processo são agora de grande valor as novas técnicas SIG (ou GIS) que permitem uma lei- -piloto e de extensão, continua a ser um campo aberto à especulação e aos programas de cooperação
tura pormenorizada do território e mesmo do domínio familiar, se acompanhados por um trabalho internacional.
de campo minucioso e adequado. Não queremos minimizar a importância, a grande importância desses esforços, mas, também
Este processo de cerzidura espacial tem, além das outras, uma vantagem especial: a de relacionar aqui a nossa experiência é a de que só será possível a introdução de novas tecnologias e soluções com
todas as famílias dos bairros com os técnicos do planeamento e criar, assim, a indispensável base de a participação interessada e esclarecida da população.
confiança para que o trabalho seguinte seja possível. Por outro lado, para alguns desses problemas, soluções que beneficiem de economias de escala
O processo de titulação é ainda muito controverso e nem sempre aceite pacificamente pelas auto- nacionais são indispensáveis.
ridades administrativas. Por tal razão poderão ser criados “patamares de legalidade” como certificados A nossa experiência directa no desenho e implementação do programa nacional de latrinas me-
de reconhecimento de ocupação, ou outros instrumentos que obriguem tanto a administração como lhoradas que tem, neste momento, mais de vinte anos de existência, prova concludentemente que
os cidadãos a um reconhecimento oficial da ocupação.
Com as primeiras acções de definição das infraestruturas e de registo e numeração dos talhões
inicia-se um processo irreversível de aquisição de “cidadania” que é o primeiro passo na urbanização
cultural das pessoas e das famílias.
O cidadão tem agora um endereço físico no território, uma rua com nome e uma casa com
número.
Para lá das consequências imediatas da valorização da personalidade, passa a haver uma potencia-
FSDFSD
ção do valor da ocupação como um bem comerciável que, embora com os seus perigos, pode trazer DFDSGFDSFGV
uma vantagem enorme, até fiscal, ao município. DSFSDFDS
uma tecnologia realista e acessível é tomada sem esforço pela comunidade como sua e se sustenta a comunidades e com as pequenas autarquias, de formação muito recente e, ainda, muito abertas a
si própria. uma contribuição técnica desinteressada.
Prova disso são os múltiplos estaleiros de construção dessas latrinas que, nos últimos vinte anos Ali tenho encontrado uma extraordinária capacidade de mobilização para o directo envolvi-
produziram algumas centenas de milhares de unidades, servindo milhões de pessoas. mento das pessoas na solução dos próprios problemas, para a aceitação de soluções precárias, menos
A introdução de fogões solares, sistemas de aproveitamento de águas pluviais, sistemas de sanea- perfeitas, mas realisticamente dimensionadas à escala das possibilidades locais.
mento biológico, doméstico ou institucional e de tratamento e rentabilização dos resíduos sólidos Comunidades com dezenas de milhar de habitantes não têm um documento de registo de pro-
não têm já grandes dificuldades técnicas de realização. Na sua popularização e dispersão reside o priedade, uma sala de trabalho para as suas Direcções de Construção e Urbanização, um teodolito,
segredo do sucesso, e essas só com um trabalho directo com a população são possíveis. um GPS, um desenhador, uma planta do seu território, um armário de arquivo, um telefone, uma
Contudo, como dito, não seria possível construir, nesta fase, projectos desta natureza, sem um viatura de trabalho…
forte contributo do estado, a nível central, pois a produção de certos elementos só à escala na- Mas têm, sim, um desejo enorme de pôr alguma ordem na sua cidade, de responder à necessida-
cional será rentável e os nossos empresários não dispõem do capital necessário ao arranque dessas de de melhor “arrumar” as pessoas no seu espaço.
indústrias. Ali devemos saber ser úteis.
Falamos de um urbanismo incremental de soluções locais de problemas locais. Naturalmente Serão tarefas certamente menores que desenhar uma nova Barcelona. Mas pelo menos tão no-
que um método de estruturação espacial do conjunto urbano é indispensável e permite perspectivar bres.
a evolução equilibrada do domínio físico A vida da maioria dos habitantes do mundo, e das nossas cidades, não é feita de sonhos e de
da comunidade urbana, que é o objectivo mais nobre do exercício de planeamento. esperanças.
A realidade da ocupação do espaço e das limitações da acção administrativa, e mesmo política, 130 131 É feita do instinto de sobrevivência, da luta pelo jantar de logo à noite ou pelo almoço de ama-
obrigam-nos, no entanto, a estratégias, como as descritas, de aceitação de formas progressivas e evo- nhã.
lutivas de intervenção com objectivos imediatos de melhoria de condição de vida da população que Essa maioria, em expansão a nível mundial, compra aspirina à unidade, nunca tomou banho de
não são sempre possíveis de perspectivar nas suas consequências a longo prazo. água quente, paga para ver televisão por fora da janela dos outros, partilha a cama com outras pessoas
Isto é, não podemos, sistematicamente, comprometer o presente com o sonho do futuro. e vê os filhos à noite, quando tem petróleo.
Este é um drama conceptual, ético e mesmo moral com que devemos viver se quisermos ser Essa maioria, em expansão, habita cada vez mais as cidades que descrevi, que são as que menos se
operativos e conseguir resultados credíveis que dêem esperança a populações massacradas por gera- conhecem, as menos visíveis, as de que menos se fala, as que mais convém esquecer.
ções sucessivas de exploração económica, idealismo político, oportunismo intelectual e corrupção Estas são as nossas cidades.
administrativa. Não é com prazer que as desvendo para vós.
Talvez que, no fundo, o nosso drama seja mais – como fazer do que – o que fazer.
Mas, a esse nível, a procura e a luta são permanentes e inescapáveis.
Não conheço os problemas existenciais dos urbanistas do mundo desenvolvido. Posso adivinhá-
-los difíceis, mas compensadores.
No nosso caso, posso afirmá-lo, a compensação é ténue e longínqua. Mas, quando acontece,
quando a nossa acção resulta em benefício objectivo e mensurável para dezenas ou milhares de
pessoas.
Todo o esforço, a dúvida, a incerteza e o sacrifício são amplamente compensados.
FSDFSD
Na minha experiência destes últimos trinta anos há uma dimensão da nossa intervenção que DFDSGFDSFGV
tem, quase sempre, dado resultados encorajadores: a de trabalhar directamente no terreno com as DSFSDFDS
CENTRO DE FORMAÇÃO E ARTESANATO – EMPRESA JOVEM – MAPUTO JOSÉ FORJAZ
Contribuição à Conferência sobre Arquitectura Africana com a presença de um mordomo vestido de branco transportando a inevitável bandeja de copos
cristal tinindo com o whisky dos cubos de gelo.
Kumasi, Gana, Junho 2007 Esta é a imagem, adquirida e venerada, do suposto verdadeiro espírito e ambiente da arquitectura
tradicional africana, vendida por centenas de agentes turísticos e assumida por uma nova elite afri-
cana como ponte para os seus valores ancestrais, preferivelmente enriquecida com falso mobiliário
barroco, emprestando um toque de realeza ao nosso direito de sermos tão grandes e, se possível, mais
importantes e poderosos que os nossos patrões o foram no tempo dos regimes coloniais.
Dentro dessas escolhas qual a mais verdadeira imagem da arquitectura africana?
Se esta se expressar pelo número de pessoas, pela sua extensão, expansão e velocidade de repro-
dução, então a primeira imagem é, certamente, a mais verdadeira.
Na perspectiva da classe de especuladores, como aquela que melhor convém a uma nova classe
de homens de negócios e corporações africanas, a segunda escolha será certamente a mais acertada.
Na visão do antropólogo, cientista social ou dos adoradores da imagem do africano reduzido a
objecto de pesquisa, a seleccão incidirá, sem dúvida, sobre a terceira.
O QUE É ARQUITECTURA AFRICANA? Mas, para todos os interessados uma outra, a última, é a sonhada, aquela que ninguém disputa
como verdadeiramente representativa do ethos africano.
134 135 É a imagem construída, através de todo o mundo, em filmes como “África Minha”, “A rainha
Se tentarmos responder a esta, aparentemente simples, questão usando apenas parâmetros quantita- africana” e dúzias de outros, vendida a preços exorbitantes por noite, a milhares de turistas muito
tivos chegaremos, inevitavelmente, à conclusão que ela é um conjunto de construções feitas a partir mais interessados em animais que nas pessoas. Essa é a imagem que adquiriu uma nova e falsa nobre-
de materiais reciclados, coberto com chapas de zinco oxidadas, sobre paredes de blocos de betão por za com a sua suposta resposta à sustentabilidade que aparenta promover.
revestir, quase sempre sem pintura, ou em pau a pique “maticadas”, incrustadas em slums de densida- Vivemos em cidades relutantes, a que poderíamos chamar mega aldeias, e não logramos conven-
des impossíveis, sem água corrente, saneamento, electricidade ou recolha de lixo. cer os nossos políticos e os nossos governantes que a mudança da aldeia para a cidade é tão cultural
Esta descrição adapta-se a mais que 75% da arquitectura Africana em ambientes urbanos, do quanto a mudança na geografia da vida das pessoas.
Sahel à Cidade do Cabo. Outras caracterizações podem, certamente, ser construídas que definam de A arquitectura tradicional africana, como qualquer outra, é o produto de processos que reflectem
forma diversa outros sectores das sociedades africanas e do seu ambiente construído. as maneiras de viver e produzir da comunidade que dela necessita.
Uma delas é a imagem cosmopolita dos centros de negócios de Joanesburgo ou de Nairobi, com Com as mudanças nas maneiras de viver e produzir, com novas aquisições culturais e com o
os seus reluzentes arranha-céus ou os centros comerciais de Durban ou Harare. acesso a um mais vasto mundo de conhecimentos facilitado pelos novos meios de informação; com a
Outra ainda poderá ser o da aldeia tradicional, com as suas palhotas de caniço ou com paredes aquisição de produtos duráveis e com o dissolver da estrutura hierárquica da sociedade rural, a topo-
de adobe e coberturas planas das regiões quentes e áridas, exprimindo o rápido desaparecimento das logia dos espaços tradicionais torna-se cada vez menos adaptável a novas formas de viver e de habitar.
maneiras de viver dos camponeses relutantes de o ser e ansiosos por abandonar o campo e emigrar A cidade subsaariana, onde a nova arquitectura africana está em definição, foi criada como o
para as sonhadas vantagens da cidade. habitat do sistema colonial para responder às formas de viver e à organização social da sociedade
Finalmente, e para completar esta caricatura, poderemos considerar outra imagem, aquela que colonial.
se melhor vende fora de África como a “verdadeira” e desejável expressão do espírito da arquitectura Na cidade colonial a hierarquia social, as necessidades de segurança, a segregação por raça e
africana: o acampamento turístico do safari com as suas coberturas de colmo, frequentemente im- classe; os valores culturais e as capacidades técnicas; a mobilidade e a necessidade de transportes
portado, sobre polidos e nodosos troncos e persianas de palha trançada, preferivelmente fotografadas mecânicos impuseram outras categorias de espaço social, de infra-estrutura urbana e de serviços,
de prestação técnica, de materiais de construção e de limites temporais muito mais limitados para a Este conceito é mais obscuro, ainda, quando todo o mundo, incluindo a África, se vai tornando
construção e maior longevidade dos seus edifícios. mais uniforme não só nas formas da vida quotidiana, como na economia, nos meios tecnológicos e nas
A arquitectura tradicional africana não responde à nova urbanidade e não convém a uma nova diversas filosofias religiosas mas, também quanto aos objectivos comuns a toda a sociedade humana.
sociedade tão diversa, nos seus valores e nas suas necessidades, da sociedade rural tradicional. Dito isto permanece o problema: há alguma razão para se procurar uma definição de arquitectura
A ruptura com as antigas formas e maneiras de construir foi, historicamente, quase instantânea. africana?
As necessidades de defesa e culturais, a complexidade de uma sociedade com uma separação clara E, se há, como deverá ser ela definida.
entre o laico e o religioso, treinado ou analfabeto, rico ou pobre, impuseram uma estrutura urbana A arquitectura é, sempre, específica do lugar, mas poderá ser específica de um continente?
estratificada, sem nada em comum com as maneiras da viver tradicionais africanas, mesmo nos casos Esta distinção é de importância fundamental para esta discussão.
dos assentamentos rurais mais populosos. É de importância fundamental que a África produza arquitectura e que essa arquitectura seja
A ruptura com a tradição foi operada com tal brutalidade e falta de atenção às maneiras de viver reconhecida e respeitada como uma importante contribuição para o património cultural da huma-
da sociedade tradicional que só um auto envolvimento, cego e total, a podem explicar e justificar. nidade.
Contudo, a curiosidade pelo diferente, ou pelo étnico, esteve sempre presente e tornou-se num A importância dessa contribuição repousa, primariamente, na necessidade dos benefícios objec-
tema interessante para os intelectuais, os cientistas sociais e os artistas à procura de raízes novas e mais tivos que a boa arquitectura traz à sociedade e, com não menos importância, à satisfação da
fundas para a sua produção criativa, que pudessem estabelecer laços de ligação com a terra africana necessidade de auto-respeito a que os arquitectos africanos aspiram, e que devem conseguir pelo
e a cultura endógena. reconhecimento da sua qualidade como pensadores, no seu campo de acção.
Sem o substrato cultural, social e técnico da cultura africana a transposição dos elementos sim- Neste sentido, a arquitectura africana tem sido sistematicamente marginalizada como não exis-
bólicos, gráficos e plásticos, para uma gramática meramente decorativa tornou-se nada mais que 136 137 tente ou como de pouco interesse e remota demais para merecer atenção.
uma moda. Há em toda a África uma grande riqueza de trabalho arquitectónico, a todas as escalas de inter-
Essa atitude é mais agravada ainda quando aproveita à chamada “affirmative action” para validar venção, que merece mais atenção como trabalho seminal e como exemplo de contribuições criativas
a aceitabilidade da arquitectura mais comercial junto dos decisores, eles próprios ansiosos por encon- para o enriquecimento e património da nossa profissão.
trar as raízes que a sua maneira desenraizada de viver cortou. A outra perspectiva é: uma arquitectura para África.
Duas ideias nos surgem como consequência deste tema: Que validade pode ter este conceito?
A primeira é: por que é tão importante a ideia de uma arquitectura africana? Este é um conceito indispensável para se compreender e discutir.
A segunda é: por que deveria sê-lo? Como para todos os outros continentes e regiões do mundo, África necessita de uma arquitec-
A primeira é mais complexa pois tem a ver com uma fase do desenvolvimento do continente, em tura própria, adaptada aos seus climas e às condições físicas do lugar, aos parâmetros económicos, às
que a personalidade colectiva do africano é alvo do mais intenso debate filosófico. capacidades técnicas e aos ritmos e formas de vida dos seus povos.
Este é um debate emocionalmente amplificado pelas intangíveis consequências das questões que
se levantam às novas classes politicas e culturais, ainda pouco seguras da sua autoridade intelectual, e
que valorizam, tanto quanto podem, a vantagem comparativa da sua negritude.
De facto, as políticas da “affirmative action”, como estratégia de preferência na oportunidade e pro-
moção, tornam-se mais aceitáveis intelectualmente se forem apoiadas numa teoria estética de validação
das dimensões mais subjectivas do “ubunto” ou de outros elementos intangíveis do ethos africano.
Neste sentido, a necessidade de um catálogo de elementos arquitectónicos de expressão “africana”
FSDFSD
é explicável, especialmente se ligado à ideia de que essas dimensões são melhor manipuladas e com- DFDSGFDSFGV
preendidas pelo intelectual... e pelo arquitecto africano. DSFSDFDS
Deve ser uma arquitectura que celebra, dignifica e facilita as actividades humanas a que fornece cidade em África resolveu já completamente as necessidades de um ambiente urbano equilibrado,
abrigo; deve ser concebida para o uso máximo dos recursos locais, deve ser económica e bela. saudável e seguro, economicamente viável e culturalmente enriquecedor.
Deve ser o que arquitectura é em qualquer outra parte do mundo. Mas com uma diferença: ela Das grandes concentrações urbanas da África ocidental às novas conurbações da África austral
deve servir todos os africanos, como, tradicionalmente, o fez ao longo dos séculos. não há uma só cidade que possa ser tomada com modelo para a futura cidade africana.
É nessa dimensão é que devemos encontrar a chave para a sua diferença da arquitetura das outras Ao contrário de muitas cidades de média e grande dimensão da Europa e da América do Norte,
partes do mundo. Central e do Sul, da Ásia e da bacia do Pacífico, que atingiram um alto grau de sucesso como lugares
Será isto possível? onde a qualidade de vida está minimamente assegurada para todos, a África não apresenta um único
A resposta a esta questão pertence à sociedade em geral, às sociedades africanas e aos seus repre- exemplo de idêntico sucesso.
sentantes em particular. Nenhuma cidade, do Cairo à Cidade do Cabo, pode afirmar que atingiu já uma qualidade de
O arquitecto é um executor. vida e de serviços urbanos aceitável para a maioria da sua população.
Se a arquitectura deve assumir o valor de expressão construída da cultura ela deve, então, expri- O primeiro objectivo da arquitectura africana deveria ser este: o de contribuir decisivamente para
mir as dimensões mais válidas e profundas dessa cultura. a melhoria da vida urbana e da habitabilidade.
Falamos da arquitectura fascista e revolucionária e pensamos na cidade grega como a expressão Isto deveria ser visto, em primeiro lugar, em termos da solução de problemas de atitude e de
do sistema democrático das cidades-estado da bacia do Mediterrâneo; observámos o reprocessa- segregação espacial e pela rejeição de fórmulas importadas.
mento dos mestres soviéticos para servirem a expressão arquitectónica de uma autocracia brutal que A nova cidade africana deve ser desenhada para as dimensões sociais específicas do seu espaço,
duraria mais de meio século; sonhámos o racionalismo não como um estilo mas como meio para se estruturada a partir de uma nova visão que tome em consideração a importância da produção agrária
alcançar um ambiente equilibrado para uma sociedade mais justa. 138 139 dentro do seu território, a integração espacial de todas as funções e a redução do interesse e da impor-
A luta dos nossos políticos e dos nossos profissionais, para uma sociedade mais justa e para a tância do conceito de CBD, ou centro de negócios trazido, como um dos paradigmas irrelevantes,
construção do seu habitat é a única que poderá estruturar e construir a imagem, nova, de uma ver- das cidades europeias ou norte americanas.
dadeira arquitectura africana. Poderá ser argumentado que, aqui, estamos entrando num campo longínquo da arquitectura
Como podemos nós, profissionais, com as ferramentas e dentro dos limites da nossa profissão, e dentro da problemática do planeamento e do desenho urbano, questões essas que dependem, em
contribuir para a construção dessa imagem? última análise, de decisões de ordem política.
Esta é a questão que deve guiar as nossas escolhas, seja quanto à relevância social do nosso traba- Talvez isso possa ser verdade, mas podemos nós conceber a parte sem compreender o todo?
lho como quanto ao desempenho técnico das nossas soluções e qualidade estética da sua expressão.
O problema é que a maioria das escolhas, dentro da nossa profissão, são feitas em função do
sucesso comercial que possam trazer ao negócio da produção de projectos baseados em parti pris es-
téticos ou formais, e não verificadas em função da sua validade quanto às circunstâncias do ambiente
social, cultural e natural africanos.
Essas são as fórmulas erradas pois eticamente irresponsáveis e intelectualmente irrelevantes.
Dentro do limitadíssimo tempo que levou, no nosso continente, o processo de urbanização,
longe de estar completado ou estruturado de forma positiva, muitas oportunidades se têm perdido
para se encontrarem modelos efectivos e operacionais para as nossas cidades, como uma base sólida
para uma arquitectura válida e testada.
A cidade subsaariana em todas as suas expressões, e onde quer que tenha sido formada e desen-
volvida, não é, ainda e em geral, um modelo aceitável para a nova sociedade africana. Nenhuma
CASA DA ALEGRIA – MAPUTO IWAN BAAN
Comunicação ao Seminário sobre o mesmo tema Mas, para que se criem leis, por pressão da sociedade, é necessário que ela seja esclarecida e que
Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico, exija a sua criação e o seu cumprimento.
UEM e Programa Sure África O problema é mais difícil quando se trata da dimensão urbana pois a complexidade das situações
e as oportunidades dos impactos negativos das operações especulativas, normalmente contrárias aos
Maputo, 4 e 5 de Junho de 2009 interesses ambientais, são muito maiores.
Duas situações portanto que se agravam mutuamente: por um lado não há estrutura legal que
defenda suficientemente o ambiente urbano e regule a actividade da construção civil nesse sentido
e, por outro, as poucas leis que o fazem não são cumpridas ou suficientemente controladas quanto
ao seu cumprimento.
A legislação existente sobre o ambiente cobre, de facto, um vasto leque de situações que, na sua
maioria, dizem respeito às dimensões do património natural e especificamente às águas (do mar e
interiores), florestas e fauna bravia, pescas e recursos minerais e, ainda, problemas particulares do
ambiente transformado pelo homem como o património cultural, os resíduos e a saúde pública.
A legislação existente define também os processos de avaliação do impacto e da auditoria am-
PROJECTO ARQUITECTÓNICO E GESTÃO URBANA biental nos âmbitos atrás indicados.
SUSTENTÁVEIS EM MOÇAMBIQUE Também a Lei do Ordenamento do Território estabelece princípios e regras para que se possam
142 143 garantir a sustentabilidade nos âmbitos abrangidos pela legislação ambiental específica mas é omissa
Começo por agradecer esta oportunidade para apresentar algumas reflexões minhas sobre o tema no âmbito da construção civil, e mesmo do arranjo urbano, no que diz respeito a aspectos de eficiên-
desta conferência que tem, para mim, o máximo interesse e relevância. cia e sustentabilidade ambiental.
Devo, desde já, afirmar que me considero não mais do que profundamente interessado pelo tema Na Política Nacional do Ambiente, no que diz respeito à gestão do ambiente urbano, há apenas
mas, de maneira nenhuma, um especialista na matéria. referências à necessidade de se “definir uma política de energia urbana que promova o uso de energias
Apresento portanto ideias cujo único mérito será o de serem o produto das reflexões de um renováveis e reduza o consumo de energia fóssil e biomassa”.
profissional responsabilizado todos os dias por decisões que têm, ou podem ter, consequências na Dos quatro órgãos competentes no domínio do planeamento físico: (Ministério para a Coorde-
qualidade ambiental e na sustentabilidade ecológica do meio urbano. nação da Acção Ambiental, Ministério das Obras Públicas e Habitação, Autarquias Locais e Governos
Proponho apenas pontos de vista que são, certamente, partilhados por profissionais do mesmo Distritais) nenhum assumiu, ou tem atribuições explícitas para estabelecer normas e procedimentos
ofício e que, assim, poderão dar uma visão realista sobre o tema em debate. de controle do comportamento ambiental e da sustentabilidade das construções, quer no que diz
As reflexões que apresento pretendem apenas reflectir o quadro geral do problema em Moçam- respeito aos processos e tecnologias de construção, quer quanto à eficiência energética dos edifícios.
bique. Este vácuo reflecte-se no Regulamento Geral de Edificações Urbanas (actualizado em Janeiro
A primeira é sobre a quem cabe a responsabilidade por uma arquitectura sustentável. de 2000) onde é notória a ausência de qualquer artigo que defina as regras de sustentabilidade e de
A primeira resposta é: a toda a sociedade. economia energética das construções.
De facto o arquitecto é, apenas, um dos actores e nem o mais decisivo para a criação de condições Naturalmente que, como dito, não são as leis, por si só, que definem ou condicionam o estado
óptimas de sustentabilidade dos edifícios que projecta. de um país no que se refere à problemática do seu desenvolvimento sustentável.
Enquanto a sociedade do país onde vivemos não exigir que os edifícios respondam e cumpram exi- Anteriormente ao sistema legal, deve haver a sensibilidade a esta ordem de problemas, quer por
gências ambientais legalmente estabelecidas e fundamentadas em parâmetros técnico-científicos, está parte do público em geral, quer dos clientes, privados e institucionais, quer por parte dos profissio-
o projectista à mercê do cliente, privado ou institucional, que decide quanto quer pagar e para quê. nais e das instituições de formação a todos os níveis.
Há uma correlação directa entre o desenvolvimento social- sobretudo no que diz respeito à segurança São factores, as limitações económicas e técnicas, gravíssimas, da maioria dos “auto construtores”
mas também no que diz respeito à civilidade entendida como a capacidade para viver em meio urbano das suas próprias residências e dos seus locais de trabalho e que são, quantitativamente, quem mais
com entendimento das regras de convivência social -,e as condicionantes que um maior ou menor desen- constrói em Moçambique.
volvimento dessa civilidade determina para o exercício responsável do projecto urbano e arquitectónico. São factores, a atitude consumista de uma novíssima burguesia nacional obcecada pela exibição
A problemática da formação de técnicos com capacidade para a elaboração de projectos que re- de riqueza, muitas vezes dubiamente conseguida, mas que, inevitavelmente, estabelece referências
solvam da melhor maneira possível as dimensões de sustentabilidade e eficiência energética pode ser para um púbico em geral mal preparado para as analisar criticamente.
a que mais interessa como tema de discussão em meio académico, como este onde debatemos esta São factores, a falta de protecção e de estímulo à utilização de sistemas tecnológicos que incre-
ordem de problemas, mas julgo ser indispensável para não resvalarmos imediatamente para enfoques mentem a sustentabilidade e a eficiência energética.
tecnocráticos do problema e para que possamos entendê-lo num quadro mais aberto que abarque Da análise do comportamento daqueles actores e da relevância e importância destes factores pode
todas as suas dimensões sociais, económicas e culturais. deduzir-se todo um programa de acção que enforme uma filosofia política construída para enfrentar
Por tal razão julgo ser indispensável trazer a este debate uma análise das condições socioeconómi- os desafios que nos impõe a necessidade de trabalhar para um desenvolvimento sustentável.
cas e culturais, da produção de projectos urbanos a todos os níveis e, em particular, da produção dos Desta análise facilmente se compreende que o tema em debate nos obriga a uma operativa inter-
edifícios e das infra-estruturas em Moçambique. disciplinaridade e a uma perfeita integração de acções, pois implica propor reformas à própria manei-
Deixemos de lado a problemática dos atropelos ambientais praticados por entidades privadas e ra de viver das pessoas e a criação de novos objectivos sociais e económicos, bem como a revisão de
públicas, em muitos casos, a coberto da proteção de órgãos do poder político, pois julgo ser matéria formas enquistadas de formação de técnicos e a criação de uma nova mentalidade anti tecnocrática
fora do âmbito deste seminário. e universalista.
Interessa-nos mais directamente o que se passa na construção civil e no desenho urbano. 144 145 Em trabalhos anteriores sobre este tema, propus a noção de que o primeiro grau de susten-
Antes de mais, importa identificar os actores e os factores principais que estão em jogo nesse tabilidade em Moçambique diz respeito à sustentabilidade da vida humana para um vasto sector
meio. da população ameaçado pela fome e pela subnutrição, por baixíssimos níveis de salubridade e
Actores são os sectores governamentais que elaboram as normas, ou deviam elaborá-las, e contro- higiene, pela exposição a epidemias e endemias crónicas, pelo analfabetismo e pelo espectro da
lam, ou deviam controlar o seu cumprimento. pobreza absoluta.
Actores são os clientes das obras: públicos ou privados, particulares ou institucionais, religiosos O que está em causa, para nós em Moçambique, é, portanto, a sustentabilidade da vida humana
ou culturais; clientes são, também, os municípios e os distritos. que tem sido e é, correntemente, ameaçada por acções e intervenções privadas e estatais que, inevita-
Actores são os agentes económicos que produzem, importam, distribuem e comercializam os velmente, agridem o equilíbrio ecológico.
materiais e os equipamentos de construção. O problema do combustível doméstico, indispensável à vida diária das famílias, é resolvido pela
Actores são os que formam e ensinam, ou deviam ensinar, os princípios científicos e as tecnolo- maioria da população, rural e urbana, com recurso à lenha e ao carvão vegetal. Numa sociedade em
gias que estabelecem e articulam os processos de projectar para a sustentabilidade.
Actores são os técnicos que projectam, ou deviam projectar, estruturas e edifícios sustentáveis e
de boa performance energética.
Actor é o grande público que exige, ou devia exigir, de todos aqueles, outros, as atitudes, as regras
e um desempenho político, administrativo, intelectual, profissional e ético baseado no respeito pelo
ambiente e em objectivos mensuráveis de eficiência e economia energética.
São factores o baixo nível científico e técnico da nossa população em geral, a dependência domi-
FSDFSD
nante de materiais de importação e a fraca importância da indústria da construção, que impedem, DFDSGFDSFGV
ou não justificam, o estabelecimento de unidades produtivas rentáveis. DSFSDFDS
rápida concentração em núcleos urbanos, a desflorestação e a desertificação nas periferias dos mes- peixe da nossa costa, por agentes nacionais e estrangeiros, com ou sem cobertura tácita da adminis-
mos são já gravíssimas e afectam vastas regiões. tração pública.
O problema da água potável está longe de ser resolvido de forma a satisfazer a grande maioria da Poderia admitir-se, e seria desejável, que projectos e actividades tão polémicos levantassem reac-
população em termos de quantidade, qualidade, custo e esforço físico para a obter. ções do público.
O problema do saneamento básico não tem ainda solução adequada para a maioria da população Contudo, num país com o baixo nível de instrução pública que tem Moçambique, não se pode
urbana e rural, com consequências desastrosas e generalizadas para a saúde pública. esperar uma reacção consciente e articulada por parte de um público mal informado a quem é tão
O problema da drenagem das águas superficiais e dos esgotos e seu tratamento é agravado pelo fácil vender demagogicamente grandes projectos como inevitavelmente desejáveis.
problema não resolvido da recolha e tratamento dos resíduos sólidos, outra das dimensões dramáti- Em face desta situação qual a atitude e a posição da maioria dos nossos mais directos interlocu-
cas da vida quotidiana nas nossas cidades. tores: o professor e o profissional?
O problema da habitação, com todas as suas facetas, é mais um, e dos mais graves contributos Temo que uma análise, mesmo superficial, nos leve a tristes conclusões. Nos leve mesmo a con-
para a insustentabilidade da vida humana, pela sinergia negativa da sobrelotação dos espaços familia- cluir que, tanto os parâmetros e dimensões ambientais do planeamento urbano e do projecto ar-
res, das deficientes qualidades ambientais nas habitações, pela baixíssima qualidade das construções, quitectónico como a integração da temática da sustentabilidade no processo didáctico, sejam ainda
deficiente disposição urbana e pela carência dos serviços urbanos básicos. considerados como preocupações longínquas do seu exercício quotidiano.
Este composto socialmente corrosivo afecta profundamente a qualidade de vida de três quartos Temo que isso se deva a duas razões principais: a ignorância e a inconsciência da gravidade do
da população concentrada em núcleos urbanos, isto é de cerca de 6 milhões de pessoas, causando problema, associadas à necessidade de “simplificar” e “acelerar” os processos de ensino e de ganhar
gravíssimos problemas de saúde física e com um impacto profundo nas relações humanas e no equi- mais dinheiro, e mais depressa, com a profissão.
líbrio psicológico das pessoas e das famílias. 146 147 No caso do ensino técnico e profissional, é claro que os alunos chegam aos graus superiores
A situação não é muito diversa no que diz respeito às condições de vida das famílias rurais que, com uma deficiente preparação sobre as matérias da sustentabilidade e da importância do equilíbrio
em muitos aspectos estão ainda mais desprovidas que as urbanas. ecológico.
Podemos assim afirmar que para a maioria esmagadora dos 21 milhões de moçambicanos, as É também claro que essas matérias não estão ainda correctamente integradas nos curricula nem
condições de vida, no que diz respeito ao equilíbrio ecológico no seu habitat, são, pelo menos, in- são suficientemente exploradas, quer ao nível dos exercícios de projecto, quer ao nível das cadeiras
suficientes. científicas e técnicas.
Com este esquemático resumo das condições de sustentabilidade da vida humana em Moçam- Por outro lado, a didáctica daquelas cadeiras tende a ser tão aridamente teórica que, além de
bique não pretendo afastar-me do tema central desta conferência. Ao contrário, pretendo apenas, provocar um desinteresse generalizado nos estudantes, leva a questionarmo-nos sobre a validade da
hierarquizar os seus níveis de gravidade para, assim, contribuir para uma perspectiva, melhor infor- aplicação dos seus princípios e métodos a casos concretos.
mada, mais esclarecida e relevante, do problema. Falta-lhe, quanto a nós, uma chave de constante relação do projecto com as condições reais do
Em Moçambique, a indústria da construção civil tem ainda, um peso menor no conjunto das meio social e local.
actividades que afectam negativamente, e em mais alto grau, o equilíbrio ambiental. A actividade do profissional reflecte, antes de mais, as deficiências da sua formação. Mas essas não
O mesmo não se poderá dizer das grandes infra-estruturas, particularmente as grandes barragens chegam nem explicam o generalizado desinteresse, ou incapacidade, de projectar edifícios e elaborar
que têm uma pesada história de agressão ambiental que parece não ter servido de lição para que se planos urbanos com a consideração indispensável pelas dimensões da sustentabilidade e economia
evitem novas e talvez mais graves agressões pois que, quando se trata de investimentos da ordem energética.
das muitas centenas de milhões de dólares, o problema é de ordem política e, portanto, escapa às Os erros mais elementares quanto à orientação dos edifícios, à protecção solar, à ventilação e
racionais científica e técnica, passando a servir, prioritariamente, interesses mais imediatos, internos iluminação naturais, ao controle do escorrimento das águas superficiais e das águas usadas, a falta
e externos. de integração de elementos de poupança e produção de energia, quanto à definição de densidades
No mesmo plano pode colocar-se a exploração criminosa das reservas florestais e dos bancos de urbanas mais económicas e mais energeticamente rentáveis, etc., são correntes e generalizados e não
podem, nem devem, ser atribuídos, como desculpa, às exigências ou atitudes menos esclarecidas dos
nossos clientes.
Por outro lado, é também verdade que a maioria dos nossos clientes, por ignorância ou pelo
imperativo de lucros imediatos e fáceis, não só não exigem aos projectistas uma arquitectura e um
planeamento mais correctos no sentido do que estamos a analisar, como, frequentemente, impedem
que eles se realizem pois não é exigida uma prestação ambiental e energética correta dos projectos
que financiam. Dessa maneira passam para o estado e para o público em geral o ónus do impacto
negativo que esses financiamentos representam e, assim, maximizam o seu lucro imediato.
Há portanto um enorme trabalho a realizar em todas as frentes.
Na academia, para a integração da problemática da sustentabilidade em todos os âmbitos cien-
tíficos e técnicos e das humanidades; nos organismos profissionais, para uma constante consciencia-
lização dos seus membros; na legislação, para o progressivo completamento das leis e regulamentos
existentes; na administração pública para um mais estrito controlo de aplicação das leis e uma cons-
tante exigência de correcta prestação ambiental dos edifícios públicos e dos planos urbanos e regio-
nais e no público em geral, para o aprofundamento da consciência das consequências gravíssimas da
desatenção a esta ordem de problemas.
A base mais segura para construir um futuro melhor só pode ser um conhecimento apaixonado e 148
aprofundado da realidade, mesmo que este nos leve a níveis de dificuldade difíceis de encarar.
As reflexões que apresentei são, seguramente discutíveis e mesmo, nalguns aspectos, arriscadas
mas podem ter, pelo menos, o mérito de despoletarem um debate que já vem atrasado e para o qual,
espero, esta conferência poderá, em muito, contribuir.

BAIXA DE MAPUTO – PROPOSTA DE FRENTE MARITIMA JOSÉ FORJAZ E ARQUITECTOS


Comunicação ao Congresso da Africa Union of Architects Vivemos num continente com a maior taxa de crescimento demográfico que o mundo conheceu
desde o começo da história.
Luanda, Agosto de 2015 Vivemos num continente que tem a maior taxa de crescimento da população urbana e onde a
(Tradução da comunicação escrita em inglês) influência da urbanística e do desenho urbano é mínima.
Mas também vivemos num continente onde os arquitectos projectam apenas uma parte infinite-
simal das estruturas que as nossas nações e os nossos povos necessitam.
Estamos, porque aceitamos estar, ao serviço de governos corruptos, políticos espertalhões e espe-
culadores sem escrúpulos.
Estamos, na maior parte das vezes, alienados e alienamo-nos, da obrigação de contribuirmos para
a construção de um habitat humano digno para a nossa sociedade.
As nossas associações profissionais têm tido pouco a dizer e com pouco impacto nas políticas na-
cionais que influenciam e determinam as condições de vida e o ambiente construído dos nossos povos.
Deveríamos ser capazes de inverter esta situação e de apresentar propostas capazes de dar aos
arquitectos e aos planificadores a capacidade de influenciar e participar no esforço de corrigir as
ARQUITECTURA GLOBAL EM ÁFRICA enormes assimetrias que caracterizam as condições de habitação das nossas sociedades.
As únicas linhas gerais estabelecidas para orientar as políticas de desenvolvimento são as dos
150 151 Millennium Development Goals, definidas em Setembro de 2000 no UN Millennium Summit,
Que quer isto dizer? subscrito e assinado por todos os dirigentes do mundo.
Como se pode definir arquitectura global? O Objectivo 7 dos MDG, no seu Artigo 7d, estabelece que até 2020 se deverá atingir uma me-
Estamos a questionar o conceito ou a afirmar que devemos fazer parte dele? lhoria significativa nas vidas de pelo menos 100 milhões de pessoas que vivem em slums.
Estamos a libertar-nos da ideia de que devemos ter uma “arquitectura africana” como se África Todos sabemos que a África tem a maior taxa do mundo de habitantes a viver em slums e que esta
fosse uma entidade cultural homogénea com uma identidade identificável e consistente que caracte- proporção aumenta todos os anos.
riza um bilião de pessoas? A população que vive em slums na África Subsaariana é da ordem dos 180 milhões de pessoas, e
Ou estamos a questionar a nossa participação em temas globais: tecnológicos e estéticos, económicos existe apenas um país, o Ghana, em que a taxa é menor do que 50% da população urbana total. Na
e sociais que enformam e dirigem as atitudes e as realizações dos nossos colegas noutras partes do mundo? maioria dos outros países, esta percentagem é superior a 60% e em pelo menos quatro países está
Será o próprio conceito de arquitectura global, uma imposição ou um ideal? acima de 90% (República Centro Africana, Chade, Serra Leoa a Sudão).
O que é este problema e qual deve ser a nossa posição face ao mesmo? Se a medida da globalização for em termos de slums, podemos afirmar em definitivo que vivemos
Estamos a falar de princípios ou de formas? num slum global.
Estamos a falar de determinantes económicas e limites ou de processos e meios? As nossas cidades estão a ficar cada vez mais diferenciadas em termos económicos e no acesso
Estamos a falar de tecnologia ou de sustentabilidade? privilegiado às infra-estruturas, aos equipamentos sociais e aos serviços.
Estamos a falar de economia ou de relevância social? Será este um problema estritamente económico, social e político?
Tantas questões ... para tão poucas respostas! Penso que estes são problemas globais das nossas cidades e da nossa arquitectura e que não po-
Que relevância tem a questão da “globalidade”? dem ser completamente resolvidos sem a nossa contribuição.
Vivemos num continente com mais de um bilião de pessoas; um continente dividido em 55 Como poderemos, então, nós arquitectos e urbanistas, contribuir para encontrar e participar nas
países, com milhares de cidades, mas onde a maioria das pessoas vive em contexto rural. suas soluções?
Estaremos nós interessados e comprometidos com a participação nessa investigação e em dar a Presumo que esta perspectiva não seja uma isolada preocupação minha mas que uma
nossa contribuição? percentagem significativa de nós, presentes neste Congresso, tenha o mesmo nível de preo-
Poderá este Congresso ajudar e suportar as nossas associações profissionais e cada um de nós, a cupações.
sermos mais presentes e activos no melhoramento urbano e na construção do ambiente construído Se for este o caso sinto-me obrigado e com o direito, de pedir a vossa atenção para um número
das nossas cidades e países? de propostas a adoptar por este congresso e a apresentar às associações profissionais, uniões e ordens,
Penso que este deve ser o verdadeiro significado de “ arquitectura global” em África. para transmissão, com a autoridade deste Congresso, aos respectivos governos.
Arquitectura global deve significar arquitectura para todos. Sem pretender ser exaustivo, ofereço as seguintes sugestões:
Quer dizer arquitectura para o rico e arquitectura para o pobre.
Arquitectura para o urbano e para o rural, para o hospital e para a escola, para o escritório e Proposição Primeira
para o estádio de futebol, para o mercado e para o centro comercial, para a fábrica e para o aero- Os arquitectos e os urbanistas, em cada país e através das suas organizações profissionais devem
porto. ser chamados a participar no estabelecimento de estratégias nacionais no que diz respeito ao ambien-
Arquitectura global deve significar arquitectura sustentável. te construído, particularmente no âmbito das infra-estruturas, da habitação e do equipamento social.
Arquitectura global é uma arquitectura para todos.
Os arquitectos têm sido relegados para um plano de servidores de investidores cuja única mo- Proposição Segunda
tivação é o lucro, votados a dar expressão a expedientes de monumentalidade política, a ser os pro- Os arquitectos e urbanistas, em cada país e através das suas organizações profissionais, devem ser
jectistas dos lugares do hedonismo e a seguir expressões altamente irrelevantes e de padrões impossí- chamados a participar no estabelecimento de políticas respeitantes à preservação e ao melhoramento
veis de generalizar para os equipamentos públicos. 152 153 dos ecossistemas naturais,particularmente no que diz concerne à organização do espaço, ao desenho
Os exageros de desperdício de espaço e de materiais, os paradigmas insustentáveis das actuais urbano e aos métodos e processos de construção, tecnologias e sustentabilidade.
heroicidades arquitectónicas, a adulação de que são objecto uns poucos “star-architects” produzindo
irreproduzíveis exemplos de arquitecturas inaceitáveis, continua a envenenar o ambiente cultural do Proposição Terceira
exercício profissional nos dias de hoje. Equipas seleccionadas de conselheiros, escolhidas dentro das organizações profissionais nacio-
Os resultados podem ser vistos em todo o lado: ao mesmo tempo que esses extremos se tornam nais, independentemente das suas filiações partidárias ou crenças religiosas e baseados exclusivamen-
cada vez mais irrelevantes o ambiente dos nossos slums cresce em inadequação e mostra-se incapaz te na sua reconhecida competência, devem ser nomeadas e ser-lhes atribuída a possibilidade de parti-
de oferecer as condições mínimas de habitabilidade a um contingente em expansão de milhões de cipar nos processos de decisão aos níveis municipais, locais ou regionais em matéria de planeamento
pessoas marginalizadas. territorial e arquitectura.
O paradoxo é evidente: ao mesmo tempo que, depois de um grande evento como um campeo-
nato de futebol ou uma exposição mundial, a procura de arquitectos diminui verticalmente, a massa Proposição Quarta
de potenciais clientes continua a crescer exponencialmente. Os curricula das faculdades de arquitectura e de planeamento físico nos nossos países devem
Os recursos do estado, escassos sempre e em todo o lado são, sistematicamente atribuídos a incorporar as disciplinas de urbanismo verde e arquitectura sustentável.
realizações grandiosas, desfasados das reais necessidades dos países, ao mesmo tempo que a grande
maioria da população continua sem habitação decente, escolas, hospitais, água e saneamento. Proposição Quinta
Será que fomos consultados? A competência para a elaboração de projectos de obras públicas deve ser decidida e seleccionada
Será que estaremos interessados em ser consultados? através de processos baseados em documentos de concursos preparados com a participação de ar-
Estas são as questões que penso ser mais sérias e pertinentes para serem tratadas neste Congresso quitectos e urbanistas e não através de propostas elaboradas exclusivamente por administradores e
pois são de um âmbito global. burocratas.
Proposição Sexta A publicidade agressiva da indústria dos materiais de construção acerca de novos produtos no
Em cada um dos nossos países, e coordenado pelas respectivas organizações profissionais, deve mercado influencia profundamente as atitudes e as escolhas dos nossos clientes e as nossas próprias.
ser criado um movimento de interesse e preocupação relativamente ao contínuo agravamento das Contudo se for analisada com uma maior preocupação pelos aspectos da sustentabilidade na
condições da habitabilidade urbana com o intuito de exercer pressão e estimular o apoio das admi- construção dos edifícios, poderíamos limitar consideravelmente a componente de materiais impor-
nistrações municipais, atender aos problemas da informalidade urbana e debater as opções e visões tados nos nossos projectos ao mesmo tempo que poderíamos maximizar as vantagens de tomar o
alternativas para o futuro das nossas cidades, tendo a requalificação dos slums como um dos objec- clima e as condições ecológicas como as ferramentas de base para se conseguir a sustentabilidade e a
tivos principais. economia da construção.
Não é porque as grandes fábricas de vidro e de elegantes produtos cerâmicos devem vender os
Desta maneira, a voz conjunta da classe profissional dos arquitectos pode produzir o impacto que seus caros e insubstituíveis materiais que devemos copiar cegamente o “mundo global” e cair na
os esforços isolados e pessoais não têm conseguido até ao momento. estupidez das caixas de vidro que nos fritam e nos fazem pagar altíssimos custos de ar condicionado.
As condições e as formas de apresentar estas propostas aos níveis legislativo e executivo de cada Tenho plena consciência de que não somos disto os únicos culpados. Os nossos clientes são em
estado, devem ser definidas e suportadas neste âmbito e como contribuições essenciais deste Con- geral pouco e mal informados e não compreendem que as imagens que nos chegam da Dinamarca
gresso para a solução de problemas globais. ou a França, de Nova Iorque ou Londres, de Lisboa ou de Moscovo são não necessariamente adequa-
Para lá de uma simples chamada à responsabilidade dos governos pela criação e manutenção das ao nosso clima, ao nosso estágio tecnológico ou à nossa cultura material.
de condições de sustentabilidade ambiental nas construções dos nossos países, este Congresso deve Neste sentido, devemos lutar por uma arquitectura nossa, pela nossa própria filosofia arquitec-
recomendar e reforçar a necessidade do estabelecimento de uma série de directivas para os arquitectos tónica e projectar para as nossas condições ambientais e sociais, para as nossas limitações, que não
e urbanistas no que diz respeito à sua posição em relação a uma atitude correcta na elaboração dos 154 155 resultam necessariamente em imagens menos expressivas, confortáveis e belas.
projectos. Sei que isto é uma tarefa difícil. Muitas vezes os nossos políticos e pessoas e posições de decisão
Neste sentido referi já a necessidade de reforçar a importância da questão da sustentabilidade na confundem poder com sabedoria e impõem os seus gostos e idiossincrasias pessoais como se fossem
educação e no processo do projecto. Contudo, enquanto não houver regras de cumprimento obriga- os paradigmas correctos e verdadeiros.
tório, tanto a nível nacional como local, pouca esperança resta de que as forças especulativas do mer- Necessitamos de sabedoria para provar as nossas razões e temos o dever de saber mais e melhor e
cado e dos materiais de construção tomem, por si próprias, a iniciativa e aceitem as consequências de adquirir a competência para o provar.
económicas que lhes impõe um urbanismo e uma arquitectura “eco-sensíveis”. Sei que, contra o pano de fundo das nossas cidades degradadas, os nossos dirigentes pretendem
A julgar pelo ambiente legal dos países onde já exerci a profissão não há, praticamente, qualquer provar que também nós podemos e devemos projectar uma imagem de civilização e que o aço e o
legislação, pelo menos na parte austral do continente, que regulamente o impacto ambiental das vidro parecem a maneira mais fácil para trazer essa imagem à nossa cena urbana.
áreas urbanas e dos edifícios, do processo de construção e da sua operação, manutenção e demolição. Compete-nos a nós arquitectos criar a nova imagem que as nossas cidades necessitam: uma
Métodos de certificação e sistemas de qualificação tais como o LEED nos EUA. BREAM no imagem feita do honesto e correcto uso dos materiais, da economia no uso do espaço, da expressão
Reino Unido ou DGNB na Alemanha, lêem-se como se de ficção científica se tratasse.
Contudo, as crises energéticas, as mudanças climáticas e a subida do nível das águas do mar
irão afectar-nos ainda mais do que a países que, com menos recursos naturais, começaram já pro-
gramas de sustentabilidade e estratégias de poupança de energia para absorver os piores impactos
desta crise.
Dada a nossa dependência das economias desenvolvidas e dos países com tecnologias avançadas,
FSDFSD
somos forçados a importar a maior parte dos produtos que necessitamos e muitos outros de que não DFDSGFDSFGV
necessitamos. DSFSDFDS
de projectar para o clima e no reconhecimento da riqueza dos espaços públicos onde a comunidade É dentro destes temas que os nossos problemas podem e devem ser equacionados e que as suas
dos humanos interage. recíprocas relações devem ser identificadas e consideradas.
Não se trata de uma questão de gosto. É uma questão de dignidade que vem com o orgulho na Os valores desta iniciativa são:
nossa condição histórica; vem da necessidade de procurar e encontrar a expressão dos nossos valores Juntar profissionais de toda a África à volta de temas de interesse global e fortalecer ligações
numa organização democrática da cidade e numa arquitectura de humanidade e não de monumen- pessoais;
talidade vácua mascarando um complexo de inferioridade. Mostrar e tornar melhor compreendidos os nossos problemas comuns, ao mesmo tempo que nos
Esta deve ser a nossa luta global, o nosso objectivo comum, a nossa arquitectura global. tornamos mais conscientes da rica e profunda diversidade da expressão arquitectónica no continente;
Podemos nós, como classe profissional, levá-la a cabo? Assegurar-nos uma maior capacidade para enfrentar os nossos clientes privados, públicos e ins-
Pode uma união de profissionais encontrar a força para a promover? titucionais no sentido em que lhes demonstramos o valor global das nossas posições por terem um
Podemos nós acreditar na força da nossa união? âmbito global nos seus princípios;
Poderemos nós encontrar as palavras e a expressão da nossa mensagem? Relembrar permanentemente o nosso compromisso para com os valores globais de produção
Poderemos nós encontrar a forma de transmitir esta mensagem? sustentável do espaço construído;
Teremos nós a coragem de acreditar nesta mensagem? Empossar a AUA como promotora dos valores mais altos da profissão que representa, para lá dos
Não vim aqui para vos passar um panfleto inflamatório como pregador no deserto numa missão privilégios corporativos que defende;
moralizadora. Manter uma comunidade dinâmica e entusiasta de profissionais interessados em contactos mú-
Vim para encontrar irmandade e suporte, para descobrir que talvez não esteja só no meu propó- tuos produtivos entre os congressos, reforçando o papel da AUA e a sua utilidade.
sito de repensar e reavaliar o estado da nossa profissão. 156 157 Isto é o que eu penso dever ser conquistado neste Congresso em que, infelizmente não posso
Vim aqui para procurar convosco as melhores maneiras de assegurar aos nossos filhos e netos participar pessoalmente por razões superiores à minha vontade.
um futuro possível, reconhecendo o abandono desastroso das nossas cidades e a falta de atenção às Muito obrigado pela vossa atenção e os meus melhores desejos pelo sucesso deste encontro tão
condições de vida da maioria da nossa população. importante.
Poderei eu, então, propor que se forme um grupo de trabalho feito de quaisquer dos nossos cole-
gas que se queiram juntar para elaborar uma carta de princípios para o planeamento e a arquitectura
africana, a ser revista e aprovada no próximo congresso, e que sirva como um sistema de valores e de
objectivos de referência éticos que possam iluminar os nossos governos e sistemas políticos acerca do
âmbito e das nossas competências como especialistas no que diz respeito ao planeamento urbano e
à arquitectura?
Tal documento não deve ser uma lista de referências técnicas, uma Bíblia ou um Alcorão de re-
ceitas formais, mas sim um meio de nos suportar nas nossas escolhas éticas quando somos chamados
a realizar actividades ou a elaborar projectos contra a democratização do espaço público ou contra a
sustentabilidade nas decisões de planeamento ou de arquitectura.
Esta “carta” deve tratar dos problemas mais gerais dos assentamentos humanos e dos limites da
construção sustentável:
A. A cidade africana e a necessidade da inclusão de todos os seus habitantes numa entidade pla-
nificado e dotada de todos os serviços;
B. Arquitectura sustentável que assegure um futuro seguro e possível para todos.
INSTITUTO DOS MISSIONARIOS DA CONSOLATA – MAPUTO JOSE FORJAZ E ARQUITECTOS
DIAS DE EDUCAÇÃO e DO DESENVOLVIMENTO, Para dar a medida da urgência e da necessidade de se encontrarem soluções para os problemas
18 a 22 de Julho de 2011 ambientais que a indústria da construção provoca, vale a pena relembrar alguns indicadores e estatís-
ticas que lhe exprimem a real dimensão:
Ministério da Educação e Embaixada de Portugal • O sector da construção é responsável por 50% de todas as emissões de gases de estufa tornan-
Maputo, 5 de Julho de 2011 do-o, em muitos países, no maior contribuinte global;
• A indústria da construção absorve até 40% de todos os materiais que entram na economia
global e produz 50% dos resíduos sólidos;
• A construção contribui com uma média de 10% do PNB e mais de 50% do investimento de
capital em todos os países;
• A verificar-se o prognóstico de um aumento da população mundial para 9 biliões de pessoas
até ao ano 2050, e para os padrões de vida actuais dos países desenvolvidos, será necessário um
aumento em cerca de 300% no consumo de materiais, o que significa 6 vezes o que o planeta
terra poderia, se completamente explorado, disponibilizar, isto é necessitamos de 6 planetas
terra para satisfazer à generalização dos padrões actuais de consumo de materiais de construção
CONSTRUÇÕES SUSTENTÁVEIS: UM DESAFIO a todos os habitantes do planeta.
Bastariam estes números para justificar quanto é imperativa uma nova atitude em relação às for-
160 161 mas sustentáveis de construir de novo e à sustentabilidade das construções existentes.
O maior desafio que me deram foi o de limitar esta intervenção a quinze minutos, pois o tema é de tal As bases científicas das tecnologias ambientais são suficientemente conhecidas e testadas para
importância, e tão vasto que nem horas chegariam para mais do que esquematizar-lhe os contornos. poderem servir como fundamento seguro ao projecto de construções sustentáveis.
Tentarei no entanto, e no tempo concedido, enquadrar a minha visão do problema no âmbito Em muitos países a sua estrutura legal define padrões e impõe limites à prestação ambiental dos
destes dias de Educação e Desenvolvimento e, por maior proximidade ao encargo que me foi dado edifícios, e adoptam-se formas de certificação como o LEED ou o BREAM que, não sendo obriga-
cumprir, no tema da educação superior. tórios, distinguem, qualificam e valorizam o comportamento ambiental das construções.
Construções sustentáveis são aquelas que se conseguem realizar, utilizar e manter com o menor A produção de energia pelo edifício ele próprio é já recompensada, em muitos países desen-
ou sem quaisquer impactos ambientais negativos. volvidos, com uma valoração económica de venda de potência à grelha pública, superior ao seu
Implícitas nesta definição estão as noções de longevidade, adaptabilidade, reciclagem, auto-sufi- valor de compra. Há, portanto, muitos casos já em que os edifícios não só são autónomos em
ciência energética e equilíbrio ambiental. termos de energia como são mesmo produtores e vendedores de kilowatts às redes de distribui-
Por outro lado, não se pode falar de construções sustentáveis sem se falar do seu enquadramento ção pública.
sustentável, isto é da sua correcta integração numa paisagem, urbana ou natural, sustentável. Começa, também, a ser prática corrente a recolha, reciclagem e tratamento, para consumo pró-
Esses seriam os dois temas indispensavelmente complementares mas para os quais o tempo não prio, das águas pluviais, e mesmo de outras formas de recolha de H2O, como a do orvalho conden-
permite abordar com um mínimo de profundidade. sado e a dessalinização, por exemplo.
O problema que, desde meados do século XX, devem enfrentar com crescente importância e Em países como Moçambique, sem uma armadura industrial minimamente preparada, as for-
urgência, os arquitectos e os construtores é o de mitigar os efeitos ambientais negativos de uma das mas activas de controlo ambiental são ainda extremamente onerosas e, a curto prazo, pouco ou nada
actividades humanas mais agressivas ao ambiente que é a da construção, uso e operação dos edifícios rentáveis.
e que tem sido realizada, sistematicamente, através de práticas e tecnologias poluentes e criadoras de Pelo contrário, as tecnologias de controlo ambiental passivo são não só possíveis e económicas,
desperdícios energéticos e hídricos. como deveriam ser de aplicação obrigatória pois dependem exclusivamente da sua aceitação pelo
dono da obra, da cultura técnica e da integridade ética dos projetistas e, em última análise, dos re- A urgência de uma atitude esclarecida e responsável, em relação à sustentabilidade, em todos os
gulamentos da construção. sectores das actividades humanas é, portanto, indispensável.
A introdução destas práticas depende de alguns vectores, ou condições, essenciais à sua materia- Essa atitude depende tanto de uma formação tecnológica bem estruturada como, e sobretudo,
lização: de uma atitude ética responsável.
• A divulgação e consciencialização do público sobre estes problemas; Considerando agora o sector da construção que, como indicado, não deve ser visto isoladamente
• A formação científica e técnica, a todos os níveis e em todas as especialidades; em relação aos factores de localização, isto é, aos efeitos recíprocos das construções sobre o ambiente
• A criação de incentivos fiscais e financeiros para o estabelecimento de indústrias voltadas à urbano ou natural, torna-se necessário identificar as condições de sustentabilidade essenciais à ma-
produção de equipamentos e materiais eco-sustentáveis e a valorização das economias da pro- nutenção e ao restabelecimento do equilíbrio ecológico.
dução energética, ecológica e economicamente aceitáveis pelos investidores privados; Mas, antes disso, é necessário relacionar os aspectos técnicos com as dimensões éticas da susten-
• A existência de uma estrutura legal, com os respectivos mecanismos de controlo, que vá, pro- tabilidade.
gressivamente, determinando metas e padrões a observar obrigatoriamente na actividade da O perigo da tecnocracia é eminente em todas as técnicas e em todas as ciências mas é mais grave
construção, operação e manutenção de edifícios e infra-estruturas. ainda quando tratamos daquilo a que podemos chamar a saúde do planeta, isto é a manutenção da
No âmbito desta Conferência é de particular interesse discutir o segundo vector, isto é, a for- sua biodiversidade e do seu equilíbrio ecológico, cuja ruptura está na base das mudanças climáticas
mação, das classes mais jovens, para poderem enfrentar os problemas ambientais que se agravam que ameaçam a sobrevivência da espécie humana no planeta.
dia-a-dia e para a qual ainda tão pouco se fez a nível do ensino. É portanto essencial que, sobretudo aos níveis mais elementares do processo educacional, se
Por outro lado, é indispensável considerar a sustentabilidade ambiental como um problema forme a consciência das crianças no conhecimento e no respeito pelas leis universais que regulam o
transversal que todas as ciências devem focalizar e preparar-se para a necessária interação e integração 162 163 equilíbrio ecológico pois só assim poderão compreender o sentido da interdependência de todos os
multidisciplinar. factores ambientais e a urgência e a importância da cada disciplina e de cada tecnologia no conjunto
A clássica distinção entre humanidades e ciências exactas, entre medicina e agronomia ou antropo- integrador das ferramentas necessárias ao restabelecimento do equilíbrio ambiental já perdido.
logia, por exemplo, é, agora, não só irrelevante como prejudicial à compreensão da natureza e da gran- Esta consciência anti-especialistica deverá ser aprofundada, progressivamente a níveis sucessivos
deza do problema e à procura de soluções que só com a integração do conhecimento se podem alcançar. do processo de formação, e acompanhar a divisão disciplinar até à graduação e pós-graduação uni-
O maior problema da sustentabilidade da civilização, e da humanidade como espécie resulta, versitária.
contudo, de um factor de natureza cultural e económico: o crescimento demográfico, insustentável É, por exemplo, irrelevante que o arquitecto e o construtor projectem e realizem edifícios susten-
e incontrolável, enquanto se mantiverem as suas razões e motivações. táveis em ambientes urbanos que ocupem zonas húmidas, que obriguem a desbastes florestais, que
Se, para infortúnio da humanidade, se verificarem os prognósticos dos 9 biliões de seres humanos utilizem terras aráveis ou modifiquem os sistemas orográficos e hidrográficos naturais.
em 2050 e não houver uma inflexão estrutural nas maneiras de viver do homem, em todos os hori- É necessário que o geógrafo aprenda a trabalhar com o urbanista, o arquitecto com o agrónomo
zontes do planeta, nada de seguro, a não ser o desastre, se pode esperar.
Infelizmente, há ainda países onde se pensa que ter muita gente é uma forma de grandeza ou
importância e onde, portanto, se não estabeleceu ainda uma estratégia de controlo do aumento da
população.
Essa condição demográfica, à luz dos conhecimentos actuais, dos mecanismos políticos existentes
e previsíveis e perspectivando a capacidade produtiva global criará problemas insuperáveis e situações
sociais críticas que levarão a confrontos violentos e permanentes e a uma generalizada anarquia como
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resultado da fome e de condições de vida insustentáveis para a esmagadora maioria da população DFDSGFDSFGV
mundial. DSFSDFDS
e o especialista de saúde pública com todos, e que todas as disciplinas do conhecimento colaborem O projecto de construções sustentáveis, em ambientes ecologicamente equilibrados, só é possível
numa visão integrada e integradora do ambiente construído. como resultado do trabalho de uma equipa integrada de técnicos das diversas especialidades baseado
Esta visão, que nos parece indiscutível, científica e eticamente correcta, não é no entanto ainda numa uma visão comum dos problemas da sustentabilidade e do equilíbrio ecológico.
pacífica e conscientemente aceite e propagada, mesmo ao nível académico. Essas equipas, no nosso caso, não são fáceis de formar contando exclusivamente com técnicos
No caso da arquitectura, por exemplo, ainda são mais correntes e populares, na literatura de locais pois que algumas das especialidades que requerem não são, ainda, ministradas nas nossas uni-
divulgação pseudocientífica, os exemplos irrelevantes de projectos energética e ambientalmente versidades e, para outras, os respectivos curricula não são completados com os módulos de ensino
irracionais mas de grande efeito formal, que conquistam facilmente a imaginação popular, pouco relevantes.
ou nada preparada para uma análise articulada e fundamentada que lhes revelaria imediatamente a Há portanto que, a curto prazo, preencher essas lacunas e reestruturar os actuais curricula para
falsidade conceptual. que os alunos sejam melhor preparados para enfrentar os novos desafios que os projectos de constru-
Infelizmente, a força sedutora de tais exemplos, que provêm de todo o mundo, é tal que as pró- ções sustentáveis lhes colocam.
prias instituições de ensino lhes não resistem, uma vez que o sistema universitário tende a promover Não é possível, no contexto e no tempo reservado a esta contribuição, sair das generalidades atrás
académicos cada vez mais distantes da realidade objectiva do mundo real da construção. enunciadas.
A transição para um ambiente técnico e produtivo, que tenha como objectivo primário a salva- Espero, contudo, ter contribuído para estabelecer as condições mais gerais e necessárias à com-
guarda do ambiente em geral e a prática da arquitectura e da construção sustentáveis, não se faz a preensão da natureza do problema e da sua magnitude, indicando algumas das estratégias indispen-
curto prazo. Indicámos acima quatro condições necessárias, embora não suficientes, para que essa sáveis à realização de construções sustentáveis e contribuindo para o debate necessário ao trabalho
transição se possa fazer. de preparação do sistema educativo, aos diversos níveis, para fazer face aos novos desafios que a
Tentámos focalizar a nossa discussão sobre as condições de informação do público em geral e de 164 165 sustentabilidade põe à sociedade moçambicana.
formação dos técnicos em particular: a divulgação a todos os níveis, os incentivos fiscais e a estrutura
legal que estabelece as condições obrigatórias para uma actividade de construção sustentável.
Não nos é possível tratar, no tempo concedido, esses outros temas, mas reiteramos a sua impor-
tância para que seja possível atingir, paulatinamente, um estágio de progressivo equilíbrio ambiental.
Não queremos, no entanto, deixar de salientar que mesmo nas circunstâncias actuais muito se
pode alcançar utilizando apenas as ferramentas técnicas e conceptuais à nossa disposição.
Mas, para lá dos cuidados atrás apontados há princípios universais, que nos parecem cada vez
mais esquecidos e que são essenciais à conceptualização das construções sustentáveis.
Trata-se, por exemplo, da economia de espaço e dos processos construtivos, da selecção de ma-
teriais locais, da especificação de materiais que exijam uma manutenção mínima e tenham a maior
duração possível, da eficiência do projecto estrutural, da utilização de elementos verdes que não
exijam muita água para a sua manutenção, da reutilização de materiais descartados, da flexibilidade
de uso dos edifícios, etc.
Não podemos, portanto, esperar que estejam criadas todas as condições desejáveis para a gene-
ralização da construção sustentável, pois é nossa obrigação fazer a prova, em cada projecto, de que a
sustentabilidade se paga a si própria pela melhor qualidade de vida que promove, pela economia de
meios utilizados, pela contribuição para uma cidade mais saudável e, finalmente, pela nova qualidade
estética que oferece.
MONUMENTO DE MBUZINI. FOTO KOK NAM / PIPAS / FORJAZ | DESENHOS JOSÉ FORJAZ
Conferência preparada para a abertura da exposição Não quero, desta maneira, afirmar que não haja um vasto sector das nossas respectivas realidades
“José Forjaz: ideias e projectos”, no Museu da Casa Brasileira e sociedades em que aquelas condições são, ainda, paralelas e semelhantes.
em São Paulo, Brasil, a 29 de Março de 2011 A pobreza, a difícil sobrevivência do ethos indígena, o atraso tecnológico e cultural de vastos
estratos sociais, as assimetrias regionais económicas e sociais, são realidades comuns aos dois países,
Maputo/São Paulo, 27de Março de 2011 mas a sua extensão e proporções são muito diversas.
Não seria possível, nem desejável tentar definir a exacta dimensão dessas diferenças, mas é in-
dispensável à compreensão das condições do trabalho do arquitecto em Moçambique, que elas se
evidenciem para que se compreenda a natureza das escolhas e das decisões que o enformam e, por
elas, se avalie da sua validade.
Alguns dados estatísticos poderão ilustrar e enformar uma visão mais objectiva do que afirmo
embora comparando, apenas, as mais significativas.

BRASIL MOÇAMBIQUE
Área 8.514.877 km2 800.000 km2
REFLEXÕES DE SÃO PAULO População 195.000.000 22.000.000
Densidade 22 p/km2 27.5 p/km2
168 169 Esperança de vida à nascença 72.9 48.4 anos
Antes de mais os meus mais sinceros agradecimentos pelo convite que me foi endereçado pelo Museu Pobreza 21% 55.2%
da Casa Brasileira para expor o nosso trabalho de mais de cinquenta anos dedicados à obrigação e ao PIB per capita $10.847 USD $929 USD
prazer de tentar construir uma arquitectura possível, válida e coerente com a situação e as condições Alfabetização 90% 46.2%
em que trabalhamos. HIV-AIDS (prevalência) 0,6% 11,5%
O que pode trazer de novo um arquitecto do terceiro mundo africano a uma audiência de pro- Energia per capita 2.340Kw/h 545kw/h
fissionais brasileiros que enfrentam, todos os dias, uma gama de problemas muito mais vasta e que Distribuição de água potável 84% 43%
percorreram um caminho histórico balizado por figuras e realizações tão marcantes e referenciais Telefones por 100 p 37.5 4
como as vossas? Internet por 1000 p 230 1,6
Esta foi a questão que se me pôs quando fui solicitado a completar a exposição do nosso trabalho, População São Paulo (Prefeitura) 11.000.000 Maputo 1.100.000
aqui em São Paulo, com uma comunicação que possa ter algum significado e interessar-vos sobre as Orçamento municipal anual per capita: São Paulo $2.133 USD Maputo $33 USD
condições em que o realizamos.
Talvez que o maior interesse possa ser o facto de que, no caminho que estamos a percorrer o O que os indicadores e as estatísticas não indicam é a dimensão e a natureza dos factores culturais,
paralelo histórico com o Brasil tem um desfasamento cronológico importante mas difícil de definir menos objectivos, das limitações tecnológicas e outras, que iremos explorar ao longo deste ensaio.
com precisão. A história e a evolução de uma tradição arquitectónica urbana em Moçambique são muito re-
Quero dizer que se identicamente nos nossos dois países o percurso da descoberta à colónia, e centes.
da independência à afirmação identitária foi o mesmo, já a sua cronologia e as condições de génese A arquitectura vernacular moçambicana, identicamente à de todos os países da região, é uma
dessa identidade cultural foram tão desfasadas como o são, agora, as duas realidades económicas, arquitectura de implantação rural, utilizando materiais naturais locais, com pouca diferenciação fun-
sociais, políticas e culturais. cional ou simbólica e construída pela família e pela comunidade, obedecendo a regras e tempos
determinados pelos ritmos do trabalho agrário e sazonal, com uma duração limitada e que exige uma habitação se foram progressivamente degradando com o adensamento da sua parte da cidade e com
constante manutenção. o agravamento das carências urbanísticas e de serviços públicos.
Este modelo é, ainda, na generalidade aplicado, com progressivas adaptações técnicas e culturais, É neste quadro que se cria uma tradição arquitectónica baseada em parâmetros estéticos e tec-
à grande maioria das construções do país que é, ainda, predominantemente rural. nológicos da cultura urbana ocidental, veiculada por instrumentos de análise alienados da realidade
Muito importante na forma de construir, para lá das suas características técnicas, estéticas e das dramática da situação humana no território em geral e na dualidade social e económica imposta pela
suas determinantes e relações transcendentais, é o seu processo de execução que depende e envolve a situação colonial materializada na cidade.
comunidade, em maior ou menor grau segundo a relevância social da construção. Com a conquista da independência nacional, em 1975, o país teve que reequacionar o seu siste-
Esta é uma realidade mal compreendida por quem, com a melhor das intenções, pretende reins- ma político e social, e encontrar formas de integração das maiorias étnicas no acesso à oportunidade
tituir os modelos e as tecnologias vernáculas como solução plausível, económica e sustentável para e à distribuição da riqueza, que o novo estado propunha como programa ideológico.
resolver o problema das carências residenciais e de equipamentos sociais na nossa região, não perce- Não é aqui o lugar nem o momento para fazer a história dessa longa batalha, que está longe
bendo as novas dinâmicas demográficas, as limitações dos ecossistemas e as transformações culturais de ser ganha, mas que não se pode analisar sem entender a natureza das transformações físicas que
que acompanham o fenómeno da urbanização acelerada que toda a África atravessa. caracterizam Moçambique no presente e sem que a sua evolução sócio-político- económica seja
A colonização portuguesa foi, sempre, feita através de pólos de irradiação urbanos, com maior compreendida.
ou menor importância, baseados, até ao fim do século XIX, no comércio de escravos, e de bens, É contra este pano de fundo histórico que se caracteriza e se condiciona a evolução do exercício
produzidos pelas comunidades indígenas. da organização do espaço e da arquitectura, nos últimos quatro séculos da história do território.
A actividade agrária e as suas correspondentes formas de assentamento: as fazendas comerciais, Para ordenar cronologicamente a expressão arquitectónica dita “convencional” ou erudita em
que só mais tarde apareceram, pouca ou nenhuma influência tiveram na criação de modelos habita- 170 171 Moçambique, devemos começar nos meados do século XVI com as construções de defesa militar e
cionais e construtivos generalizáveis. dos assentamentos coloniais que, tão fielmente quanto possível, reproduziram modelos e importa-
Neste sentido, os modelos e sistemas de outras formas de colonização como a dos anglo-saxóni- ram as técnicas europeias portuguesas, italianas ou francesas.
cos na Índia, dos boers na África do Sul e talvez mesmo o dos bandeirantes no Brasil, são pouco Ao contrário das colónias espanholas na América Latina nunca, no caso das colónias portugue-
relevantes para o estudo da cultura arquitectónica nas colónias portuguesas, em geral, e em Moçam- sas, houve directivas reais, objectivas e específicas, sobre a forma dos assentamentos urbanos, que se
bique, em particular. foram definindo espacialmente de forma espontânea obedecendo às idiossincrasias de quem, local-
Sendo a cidade uma forma de assentamento importada, que impõe modelos de agregação e mente, exercia o poder.
construtivos diferentes dos da aldeia e da “palhota” indígena é, inevitavelmente nela que se criaram as As condições locais, ambientais, tecnológicas e culturais, influíram também nos aspectos formais
alternativas à arquitectura vernácula e se adoptaram modelos e formas correspondentes aos sistemas das construções sendo, talvez, os casos mais notáveis o da Ilha de Moçambique e o da Ilha do Ibo,
culturais, técnicos, económicos e sociais do colono, maioritariamente urbano, europeu e português. onde a área de influência da cultura suaíli na bacia do Índico marcou, quer em termos urbanísticos,
Essas cidades ou núcleos urbanos primitivos não consideravam como sua a responsabilidade do
alojamento do “indígena” que lhe povoava as periferias com as mesmas limitações e as mesmas ca-
racterísticas das construções rurais e com a mesma ausência de infra-estruturas, equipamentos sociais
e serviços urbanos.
As periferias eram, na prática, franjas “invisíveis” de uma cidade reservada à população branca,
com poder económico para pagar os impostos municipais necessários à sua gestão, desenvolvimento
e manutenção.
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As cidades coloniais “funcionavam” perfeitamente para uma população minoritária que lhes po- DFDSGFDSFGV
dia pagar os custos, à custa da exploração do trabalho de uma maioria cujas condições de vida e de DSFSDFDS
quer em termos arquitectónicos e estilísticos, a expressão da arquitectura ao longo da costa moçam- O número de profissionais cresce exponencialmente e abrem-se-lhes as oportunidades, que lhes
bicana. faltavam em Portugal, para uma expressão de modernidade que um público, mais esclarecido e men-
A colonização do interior só se inicia verdadeiramente a partir dos finais do século XIX. A pró- talmente liberto, aceita e encomenda.
pria capital, transferida da Ilha de Moçambique para Lourenço Marques, agora Maputo, era naquela A encomenda pública define cânones de integridade e economia que servem de referência ao
altura um pequeno aglomerado com menos que 5.000 habitantes e com uma estrutura urbana não trabalho e à atitude dos profissionais liberais.
planificada, sendo as outras cidades de menor importância ainda. Distinguem-se algumas figuras emblemáticas como Amâncio (Pancho) Miranda Guedes, João
A importância geopolítica de Moçambique assume uma nova dimensão com a sua consolidação José Tinoco, Fernando Mesquita, Paulo Melo Sampaio e vários outros, que transpõem para o pano-
territorial depois da conferência de Berlim, em 1889, e, sobretudo, depois da descoberta da riqueza rama moçambicano uma atitude de vanguarda que reconhece e absorve os paradigmas orgânico e
dos minérios do Rand e do resto da África do Sul e da Rodésia, a partir dos anos 70 do século XIX, racionalista e a quem é dada a oportunidade de realizar obras de grande significado urbano com uma
que consolidaram o valor geoestratégico dos portos de Lourenço Marques no Sul e da Beira e em arquitectura expressiva e de alto nível técnico.
posição central da costa moçambicana. A procura de uma expressão local não se põe, porém, nem mesmo como pretexto de especulação
O estabelecimento, nessas duas cidades, de uma população sul-africana e inglesa das Rodésias, e intelectual, a esses profissionais, talvez por não estar ainda radicada a ideia de Moçambique como
o crescimento das actividades económicas ligadas aos seus interesses, resultou num cosmopolitismo nação necessitando de uma identidade própria.
cultural, que se reflectiu nas formas de construir e na expressão da arquitectura, e obrigou aos pri- O interesse pelo vernáculo é, quando existe, apenas um pretexto para especulações formais ou
meiros exercícios de planeamento urbano prospectivo. um inevitável recurso, à falta de outros meios que possam assegurar uma construção mais duradoura.
A importação de modelos, materiais e técnicas diversas dos correntemente praticados e utilizados Entretanto, a actividade de planeamento urbano vai-se estruturando e produzem-se planos di-
em Portugal, introduziu, na colónia, uma atitude de libertação intelectual e cultural que diferencia 172 173 rectores para várias cidades de média e pequena dimensão, que se vão consolidando, paulatinamente,
claramente o que ali se projectava do que se fazia em Portugal. sempre baseadas numa mais ou menos explícita, mas geral e tacitamente assumida, segregação racial
Importaram-se materiais e componentes industriais da Europa, executaram-se obras de grande e económica.
significado urbano e estético, sobretudo nas duas cidades principais; adoptaram-se novas tecnologias As cidades coloniais, à data da independência em 1975, eram lugares de óptimas condições
mais coerentes com as condições locais e acolheram-se profissionais formados noutros horizontes ambientais e de excelente qualidade de vida e mesmo de boa qualidade estética e paisagística, para
culturais. os colonos...
A Segunda Guerra Mundial, com um Portugal neutral, provoca a imigração de um grande número Contrariamente para a grande maioria da população indígena, esses lugares não eram minima-
de técnicos estrangeiros, sobretudo italianos, com grande experiência e um nível elevado de forma- mente aceitáveis.
ção profissional, que depressa se revelaram como de grande iniciativa e capacidade de intervenção. Com a independência e com o êxodo dos colonos abriu-se à população negra a possibilidade de
Chega-se assim aos anos cinquenta do século passado, com uma atitude de grande independên- ocupar a cidade e as habitações abandonadas ou nacionalizadas, criando-se a ilusão de que o proble-
cia em relação a um Portugal amarrado a uma arquitectura oficial condicionada pelo gosto de um ma da habitação urbana de melhor qualidade para todos se poderia começar a resolver.
ditador reaccionário e retrógrado que impõe modelos e referências próximas da arquitectura nazi e Ilusão de curta duração, pois os números são inexoráveis e as habitações vagas e abandonadas
fascista, e a uma cultura formal mais ou menos difusa de natureza romântica tradicionalista, popu- não chegaram nem para uma minoria dos necessitados, nem a maioria dos que a elas tiveram acesso
larmente conhecida como a do “português suave”. tinha os meios para pagar os custos do aluguer, dos serviços e da manutenção, indispensáveis ao seu
Os anos sessenta trazem o nascimento dos movimentos nacionalistas nas colónias e o início das funcionamento.
guerras de libertação, forçando Portugal a um esforço de investimento nas colónias, até aí muito Simultaneamente, e com a nacionalização dos prédios de rendimento, desmantela-se a máquina
reduzido. produtiva da construção civil, já muito enfraquecida pela partida da maioria dos técnicos e operários
Estimula-se a emigração. Criam-se mecanismos de crédito, desenvolvem-se as infra-estruturas e especializados de retorno a Portugal e para os países vizinhos, bem como para o Brasil, a Austrália, etc.
constroem-se inúmeros equipamentos sociais. Nos princípios dos anos 80, o país não dispunha de mais que meia dúzia de arquitectos, menos
que uma centena de engenheiros de todas as especialidades, e um número desproporcionadamente Em 1991 formaram-se os primeiros arquitectos/planificadores físicos de uma classe profissional
baixo de trabalhadores especializados da construção civil. que conta agora mais que 300 graduados.
As indústrias de materiais de construção sofreram de iguais carências, agravadas pelo cansaço Acabada a guerra civil e aceites as imposições do FMI e do Banco Mundial para a liberalização
dos equipamentos e pela falta de capacidade técnica e financeira para a sua operação e manutenção. dos vários sectores da economia, incluindo a possibilidade de especular sobre a terra, surge uma nova
A demanda de novas construções, na ausência total de investimentos especulativos em habitação dinâmica para o sector da construção, quer no sector estatal, quer no sector privado.
e prédios de rendimento, resumia-se exclusivamente a edifícios públicos e, mesmo essa, era de pouca Os investimentos estatais, em infra-estruturas e em equipamentos sociais, aumentaram expo-
importância, dada a situação económica e o isolamento politico, a que o regime socialista africano nencialmente, estimulando o renascer das indústrias de materiais de construção, dos transportes e o
era votado num contexto regional de regimes capitalistas e de segregação racial (África dos Sul e comércio de materiais e meios de produção.
Rodésia). O sector privado da economia, cujos investimentos em construção tinham sido inibidos pela
Entretanto, a chegada de inúmeros intelectuais e profissionais, como voluntários e cooperantes situação política e de segurança, é estimulado e aberto a investimentos de rendimento e não só, como
das mais diversas proveniências e nacionalidades, mas sem relação cultural com o país, trouxe novas até aí, na construção de casas próprias ou pequenas infra-estruturas económicas.
tendências formais e tecnológicas. Chegamos assim aos meados da década de 90.
Cubanos, brasileiros, alemães do Leste, norte coreanos, chilenos, suecos e dinamarqueses, ingle- O influxo de uma ajuda internacional substancial, que suportava até dois terços do orçamento
ses e italianos, alguns portugueses, e muitos outros, vieram apoiar a administração pública e ajudar a nacional, faz-se sentir imediatamente também no sector da construção.
colmatar os vazios de capacidade técnica em todos os sectores da vida nacional. A disponibilidade de meios financeiros para investimento em infra-estruturas e equipamentos
No campo da urbanística e da arquitectura, ao nível operacional e profissional, esta imigração, sociais, conjuntamente com a abertura e o estímulo aos investimentos privados, proporcionaram
temporária, não trouxe mais que um paliativo temporário para as necessidades crescentes de uma 174 175 novas oportunidades aos jovens arquitectos.
cultura que se queria renovada e coerente com os novos valores e atitudes propostos pela ideologia Simultaneamente, emerge uma classe de comerciantes e especuladores, acompanhados por uma
socialista que enformava a direcção política do país. nova classe de funcionários e políticos, que se aproveitam da fraca capacidade de controlo das finan-
Entretanto, toda a vida nacional era cada vez mais afectada negativamente pela guerra civil, que ças estatais e de uma crescente aceitação tácita de práticas corruptas, para enriquecer rapidamente.
durou até aos acordos de paz assinados em Roma em 1992, e que não só impediu a continuidade da Nenhum desses grupos se caracteriza por um nível cultural altamente sofisticado.
actividade normal da construção civil mas destruiu centenas de escolas, hospitais, edifícios comer- As consequências deste fenómeno, e da evolução histórica atrás esboçada, são do maior interesse
ciais, estradas e pontes, etc. para a análise da evolução e do estado da arquitectura contemporânea em Moçambique e em toda
Em 1985 o país, com mais que 15 milhões de habitantes, dispunha apenas de 6 arquitectos a África subsaariana visto que em toda ela estão a acontecer desenvolvimentos históricos e culturais
nacionais. similares e paralelos.
Por todas estas razões, e muitas outras que seria difícil clarificar neste breve resumo, a necessidade Este desenvolvimento caracteriza-se por uma passagem do poder político para um grupo social
da preparação de técnicos qualificados no sector da construção civil, da arquitectura, da urbanística e
do planeamento regional, tornou-se cada vez mais patente e urgente e, em 1984, foi tomada a deci-
são de estabelecer uma faculdade de arquitectura e planeamento físico na, então, única universidade
do país, a Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo.
Para concretizar essa directiva aproveitou-se a oferta de apoio da Itália, que designou a Universi-
dade de Roma La Sapienza como parceira com quem estabelecer os acordos necessários.
Coube-me, com a preciosa ajuda dos colegas italianos, a tarefa de construir um curriculum e es-
FSDFSD
truturar um processo e uma dinâmica de funcionamento da futura faculdade, encontrar-lhe o lugar, DFDSGFDSFGV
recrutar e entrevistar os docentes italianos, participar na docência e assumir-lhe a direcção. DSFSDFDS
de proveniência e matriz cultural rural, historicamente descriminado cultural e economicamente; nentes da construção são importados, bem assim como todos os equipamentos, ferramentas e meios
pela sua inevitável radicação em meio urbano, seguindo práticas, comportamentos e formas de re- de transporte.
lação reguladas por protocolos de comportamento internacionalmente aceitáveis; pela ausência de Os transportes e a distribuição dos materiais e meios de produção são uma limitação grave, dada
modelos alternativos válidos para o enquadramento espacial da vida social e para o estabelecimento a deficiente infra-estrutura e a rarefeita actividade construtiva no interior do país.
da credibilidade interna e externa das hierarquias políticas, governamentais e sociais, que não sejam Mas talvez o maior problema do sector do projecto e da fiscalização das obras de construção civil
os modelos coloniais e, dentro destes os mais monumentais surgindo como escolhas inevitáveis, seja a baixíssima competência em todas as especialidades das engenharias, da estrutural à hidráulica,
qualquer que seja a sua qualidade funcional ou o seu valor estético… da electrotécnica à mecânica, da ambiental à electrónica.
Pelas razões atrás esboçadas, novas linhas de influência cultural decorrem, também e natural- Em campos com menos aplicação como o da arquitectura paisagística não existe, praticamente,
mente da ascendência vertiginosa de uma classe de comerciantes, maioritariamente asiáticos, da um único especialista moçambicano qualificado.
Índia e Paquistão, que importam os modelos diluídos e ecléticos do estilo “Mobutu” e do paradigma Nestas condições os exemplos de referência são raros e não são, necessariamente, tomados
“Dubai”, aceites como a expressão máxima do que consideram “civilização”. com o valor que se lhes deveria dar, uma vez que os critérios de avaliação não fazem parte dos
Com a abertura das universidades a todas as classes sociais e culturais cria-se um novo quadro quadros culturais, quer de quem se toma como autorizado para julgar, quer da cultura difusa, a
de referências estéticas e de valores espaciais urbanos, contraditório nos seus próprios termos, dada nível popular.
a diversidade entre as culturas locais empíricas e autoritárias e o conhecimento científico, humanís- O isolamento técnico, cultural e científico, nas condições atrás descritas, é um factor de tensão
tico e estético, codificado em literatura quase exclusivamente exógena, que os estudantes devem, e permanente que afecta os profissionais mais dedicados e esclarecidos, quer na sua batalha por uma
querem, adoptar. arquitectura mais inteligente e coerente com o contexto natural e social, quer no seu equilíbrio psico-
Por último, e com não menos importância para este debate, vai-se consolidando uma arquitectu- 176 177 lógico quotidiano que é testado, a cada momento e em cada decisão, na sua capacidade de resistência
ra “espontânea”e popular, sem projecto de arquitecto ou engenheiro ou, como se diz: sem “planta”, e na sua fé nos valores universais em que acredita.
constituindo-se em novo vernáculo urbano por oposição ao vernáculo rural ou “precário”, que busca Não posso, nem quero, terminar este ensaio deixando ficar a ideia de que o trabalho do arquitec-
e estabelece paradigmas formais radicados em formalismos e modelos coloniais. to em Moçambique é menos que profundamente exaltante e emocionalmente compensador.
Mais recentemente, o fenómeno da expansão chinesa em Moçambique trouxe um novo factor As próprias dificuldades atrás apresentadas são outros tantos estímulos e desafios a enfrentar
de complexidade a este mosaico de opções estéticas que aparecem, com igual validade, a um público todos os dias.
que não interioriza uma estrutura cultural que lhe enforme as escolhas. De facto o leque de encomendas a que somos chamados a responder, a sua relação direta com
Explorámos os factores socioculturais e políticos que podem ajudar a explicar a situação da arqui- os problemas mais essenciais e básicos da nossa sociedade e a sua relevância social são dimensões
tectura como expressão actual do meio construído, e em construção em Moçambique. amplamente compensadoras das frustrações, tão frequentes e profundas que resultam da fraca com-
Igual importância deverá ser dada aos factores técnicos, tecnológicos e ao complexo das indús- preensão, que muitas vezes sentimos, em relação aos valores que procuramos atingir com os nossos
trias da construção, transportes, etc., cuja influência na produção arquitectónica é determinante. projectos.
Uma breve análise dos factores de produção revela imediatamente fraquezas essenciais que deter- Este é, em linhas muito gerais e esquemáticas, o quadro dentro do qual trabalhamos e onde
minam opções e afectam profundamente, não só a estrutura de custos como, também, a qualidade e lutamos por uma arquitectura válida em termos ambientais e sociais, tecnológicos e urbanísticos,
o comportamento das construções. económicos e estéticos.
Dos materiais de construção estruturais, o país produz apenas cimento, em quantidade insufi- Mas, se é verdade que cada país tem a arquitectura que merece não é menos verdade que nos cabe
ciente e com frequentes quebras de qualidade, inertes e madeira. Todo o aço é importado bem assim a nós, profissionais arquitectos, aumentar esse merecimento através de um trabalho diário, didáctico
como todos os outros metais, sob todas as formas, necessários aos processos estruturais e de acaba- e paciente.
mento, embora Moçambique produza alumínio, que exporta em lingotes. Resta-me salvaguardar que nenhum dos projectos ou obras que apresento foi, alguma vez, to-
Para lá de tintas e vernizes, algumas colas e tubos plásticos, todos os outros materiais e compo- mado como pretexto para uma simples especulação plástica ou concebido como objecto mas sim,
e sempre, como o invólucro espacial de actividades humanas e como expressão simbólica dessas
mesmas actividades, no seu contexto natural e urbano.
Destes projectos e destas obras não falarei aqui pois, se algum mérito possam ter, deverão elas
transmiti-lo sem necessidade de cicerone ou especulação literária e retórica.
Resta-me afirmar que ao fim de todos estes anos de trabalho o meu maior prazer na vida é, ainda,
o de começar um novo projecto, atravessar a agonia da sua invenção e construção e suportar a frus-
tração de não ter sido ainda, mais uma vez, capaz de me satisfazer a mim próprio.

178

CASA ML TORCATO – MAPUTO FILIPE BRANQUINHO


Comunicação à Assembleia da cidade, Cada um desses direitos implica obrigações e deveres da parte de cada um de nós, de cada um
no aniversário da criação das autarquias municipais desse mais que um milhão de pessoas.
em Moçambique O que distingue as cidades, a nossa e qualquer outra, é o facto de que nelas se somam as maiores
capacidades, mas também nelas se escondem os maiores defeitos da sociedade.
Maputo 20 de Agosto de 2002 É nelas que, para se obterem os maiores benefícios pessoais, mais se devem respeitar as liberdades
dos outros.
Esta noção não é pacífica e, da liberdade do espaço rural ilimitado à confinada civilidade do
mundo urbano, vai uma longa aprendizagem que passa obrigatoriamente pela imposição de regras
que não respeitam as tradicionais hierarquias de classe ou de família que regem a vida rural.
As regras das cidades são regras abstractas que exigem uma sociedade educada, informada e
alfabetizada.
Uma cidade rica de oportunidades e de vida social, como a nossa é, e deve ser, uma cidade densa,
com muita gente em pouco espaço.
Quanto mais densa mais rica mas também maior é a sua vulnerabilidade à doença, ao vício e ao
MAPUTO crime.
Todas as grandes cidades do mundo são locais de grande concentração e grande densidade e
180 181 intensidade de uso e ocupação do solo.
O exercício de pensamento que vos trago pretende apenas ser uma reflexão construtiva sobre a natu- Para que tal possa acontecer, sem maior conflito, dois factores são indispensáveis: a civilidade,
reza dos problemas urbanos na nossa cidade. isto é a capacidade de viver na “civitas” e a infra-estruturação física.
Este exercício tem, se o conseguir ter, apenas um valor que é o de estimular a cristalização de uma Será talvez interessante recordar-vos um trecho, de um historiador africano, sobre o grande Zim-
ideia colectiva, imaginada generosamente a partir da causa comum que é a do sonho de uma cidade babué, uma das mais famosas cidades da nossa região, que desapareceu no século XV, por razões
que ofereça, a todos, as melhores condições de vida. ainda pouco esclarecidas, mas para as quais talvez tenham contribuído os aspectos descritos nesta
Não será, certamente nesta sala, nem para esta audiência, necessário ilustrar e demonstrar os hipótese histórica.
problemas da cidade do Maputo. Diz o autor:
Melhor que eu os conhecem, e as sabem contar Vossas Excelências e, com muito maior respon- “Dentro dos muros que envolvem o local principal as casas estavam tão juntas que os seus beirados
sabilidade do que eu, os devem encarar e resolver. se tocavam. A julgar pelas aldeias Shona mais modernas o Zimbabué deveria ter tido um aspecto e uma
Diria mesmo que a minha única vantagem está precisamente no meu distanciamento quanto à atmosfera muito diferente da que tem hoje. Grande parte do vale, agora verde, devia ter sido um descam-
tomada de decisões em relação aos problemas quotidianos desta cidade. pado despido de vegetação pelo passar constante de muita gente. Desde o canto do galo até ao entardecer
Mas esta é uma cidade que conheço e onde vivo há 52 anos, quase metade dos anos que ela tem o ruído devia ser enorme. Em certas condições do tempo o fumo de centenas ou milhares de fogueiras para
como cidade, que são agora 115, e por isso esta é a cidade dos meus sonhos, das minhas obrigações, cozinhar deveria criar condições muito próximas do que chamamos hoje de smog.
das minhas responsabilidades e das minhas preocupações. E, uma vez que não há evidência de arranjos mais elaborados, as pessoas não deveriam andar muito
Vivem, nesta cidade, bem mais de um milhão de pessoas. longe para defecar, com o resultado de que a doença deve ter sido um factor tão importante na sua deca-
A todas deve ser dado o direito natural, e constitucional, da dignidade da fome saciada, do dência como o foi em muitas cidades europeias. O grande Zimbabué é visto muitas vezes com uma aura de
abrigo e protecção da sua pessoa e bens, da educação, do tratamento na doença e do respeito na romance mas talvez que uma nuvem de fumo e de moscas seja uma visão mais realista do ponto de vista
morte. arqueológico. O contraste entre o soberano e os súbditos deve ter sido colossal.” (David Beach).
Se tivermos o interesse e a coragem moral de reflectir sobre a nossa realidade urbana, e muito da vida da cidade a partir dos seus próprios meios e recursos e da vontade de se projectar no futuro e
especialmente sobre a realidade urbana da maioria da população, a que vive na periferia da cidade de resolver os seus problemas presentes e herdados.
do cimento, teremos de reconhecer que muito da descrição do grande Zimbabué se aplica quase De facto, a entrada em funcionamento dos órgãos locais de administração pública urbana é, ou deve
exactamente à nossa cidade, cinco séculos mais tarde. ter sido, o momento da maioridade da cidade, o momento em que ela se começa a gerir por si própria.
Mas as nossas duas cidades: a da periferia e a do “cimento”, a não estruturada e a infra-estrutu- Começou, há quatro anos apenas, a aventura do exercício democrático dos direitos deste grupo
rada, são complementares, necessárias uma à outra, tanto agora como sempre o foram no passado social e do indivíduo, da tomada de consciência da sua cidadania, da constituição de um espírito
histórico mais sinistro e vergonhoso: o do tempo colonial. colectivo feito do orgulho de participar nas grandezas e, inevitavelmente, nas misérias desta grande
O fenómeno mais positivo que o passado recente e o presente nos oferecem, nesta nossa Maputo máquina de viver colectivo que é Maputo.
é, exactamente, o da extraordinária vitalidade dos que vivem naquela enorme periferia onde, de Mas com a criação destes órgãos de gestão local passou a haver também um ponto focal privile-
facto, muita da riqueza desta cidade é produzida. giado para onde dirigir as críticas, a frustração, a acusação fácil ou fundada, quantas vezes também a
Para quem, como eu, tenha já a perspectiva de mais de meio século, a evolução é fenomenal. fuga às responsabilidades cívicas.
A partir de quase nada, das sobras da outra cidade, e sobretudo de uma criatividade e de uma Estas responsabilidades cívicas só podem, no entanto, exercer-se quando profundamente com-
energia enormes, faz-se a passagem do caniço para chapa e da chapa para o betão, do candeeiro e da preendidas e assumidas. Para tal é necessário fazer compreender as suas razões, os seus limites e o seu
vela para a luz eléctrica, para o telefone fixo para o celular e para a televisão. âmbito, ao cidadão urbano.
Da cantina esporádica e exploradora passa-se a um comércio difuso, talvez ambíguo e sem regra, É, pois preciso, antes de tudo o mais, informá-lo.
mas certamente útil e necessário, modesto mas vital para milhares de famílias. Trata-se então, agora, de criar um mecanismo de informação maciça que torne os cidadãos cons-
De uma quase ausência de actividades produtivas surgem por todo o lado as oficinas, os estaleiros 182 183 cientes dos seus direitos e dos seus deveres cívicos, dos custos e dos valores necessários ao funcio-
de materiais de construção, as carpintarias, as serralharias, os latoeiros, os alfaiates e as costureiras, os namento da cidade, das consequências da sua voluntária ou inconsciente alienação do processo de
fabricantes de produtos de betão, os mecânicos e os bate chapas, os electricistas e os canalizadores, administração da cidade.
os sanitários a pagamento, os cangalheiros, para não falar nos grandes ajuntamentos comerciais, É uma campanha que só terá valor se feita em extensão e em profundidade. A civilidade apren-
os “dumba-nengues”, verdadeiros “centros comerciais” onde se abastece, a preços mais ajustados, a de-se em casa, se os pais a souberem transmitir, na escola se os professores a souberem ensinar, no
maioria da população do Maputo. local de trabalho, se o chefe der o exemplo, na rua, no jardim, no cinema, no estádio de desportos,
Não falta certamente iniciativa, criatividade, vontade de melhorar a vida, trabalho. se todos a praticarmos, compreendendo-lhe os valores e os benefícios.
Não faltam também o parasita, o criminoso, o marginal, que se aproveitam da falta de regra e de Trata-se então agora de mobilizar os pais, os educadores, o chefe e o cidadão comum para estas
uma ordem superior de organização colectiva. noções e responsabilidades.
Falta sim, a ordem física, isto é, a presença de infra-estruturas, e a ordem cívica, ou seja, o con- Ninguém pode exigir sem dar.
trolo da ordem pública e dos direitos e dos deveres dos cidadãos.
Falta investimento, falta emprego.
Faltam os milagres que nem o capitalismo nem o socialismo souberam trazer.
Põe-se então a pergunta: de que vale um milhão de dólares, ou seja o que fazer com ele?
Pergunta injusta, impossível, enganadora porque não pode ter uma, ou uma única resposta. Mas
pergunta tentadora e..., inevitável.
Trata-se hoje de comemorar a data de uma das primeiras e mais essenciais respostas aquela uni-
FSDFSD
versal e sacramental pergunta: o aniversário da criação do mecanismo indispensável para qualquer DFDSGFDSFGV
resposta a qualquer aspecto daquela pergunta, a data da criação do processo de gestão democrática DSFSDFDS
O imposto, a contribuição, fiscal ou a taxa sobre qualquer serviço ou actividade são contribuições Maputo tem ainda muito que criar para que dela nos possamos, plenamente, orgulhar. Que me
obrigatórias indispensáveis à saúde económica da cidade. desculpem esta afirmação, esta franqueza, que muito me custa a desvendar.
Numa cidade com a composição socioeconómicaso da nossa essas contribuições são manifesta- Temos, é verdade, uma magnífica posição geográfica e topográfica. Temos um óptimo clima,
mente insuficientes e a sua gestão é, quantas vezes, mais cara do que a receita. temos mais de 300 dias de sol por ano.
Quantos, de facto, pagam para o privilégio de habitar na cidade, de usar as ruas e os espaços Temos uma história ... talvez mesmo duas.
públicos, de ter um acesso mais directo e próximo das facilidades da educação da saúde, da religião, Temos gente de todas as partes do país e do mundo. Temos todas as religiões, ou quase todas...e
da cultura, da administração pública? daqui saíram alguns dos melhores futebolistas do mundo.
Quantos têm a consciência de que esses privilégios só podem materializar-se se todos pagarmos Temos, ainda e parcialmente uma estrutura urbana bem ordenada, clara e de relativamente fácil
a nossa parte, a nossa quota? recuperação, no centro da cidade.
Provavelmente, diria mesmo, certamente, não o sabemos. Mas deveríamos sabê-lo, e sabê-lo cada Temos, e devemos manter e incentivar, uma saudável e correcta mistura de funções onde a resi-
vez com mais exactidão. dência, o comércio, a administração, a religião, o desporto, a cultura e mesmo a produção se com-
O registo exacto dos cidadãos por local de residência e o conhecimento do seu estatuto econó- binam nas mesmas zonas urbanas, vitalizando-as a qualquer hora do dia e da noite, contribuindo
mico, social e cultural, actualizados sistematicamente e no mínimo anualmente, é um instrumento assim para mais altos níveis de riqueza no intercâmbio social, económico e cultural e reduzindo os
indispensável à gestão eficiente da cidade pois, só assim, saberemos quanto distribuir a cada um, só níveis de insegurança e de crime.
assim sabemos quanto devemos cobrar de cada um. Conseguimos, pelo menos nisto, resistir ainda à nefasta influência sul-africana com as suas cida-
A instituição e a materialização dos órgãos locais ao nível do bairro, com um mínimo de com- des segregadas e divididas, feitas de subúrbios sem vida social à volta de centros de negócios segrega-
petência e eficiência, é, também, e não só neste aspecto, uma condição sine qua non para conhecer a 184 185 dos e sem vida comunitária, verdadeiros desertos que é perigoso cruzar depois das 5 da tarde.
cidade, em profundidade para, assim, a podermos administrar. Temos parques e jardins, que poderemos valorizar.
Mas tudo isto são só lembranças e caracterizações dos instrumentos sem os quais se não pode Temos alguns monumentos, embora insuficientes para caracterizar a cidade.
cumprir o destino da nossa cidade, ou de qualquer outra. Temos uma arquitectura de qualidade que, infelizmente, se vai agora perdendo com a importa-
Mas que destino, qual a visão que podemos ter desta nossa cidade? ção do mais medíocre da produção sul-africana, portuguesa e chinesa.
A cidade é um mecanismo de multiplicação das capacidades individuais. É o grande local, o Tínhamos um centro histórico agora a desfazer-se e já quase irrecuperável, basta por exemplo ter
ponto focal onde se completam as capacidades de todos e se compensam as incapacidades de cada em vista o que se passou na semana passada com a antiga mesquita, uma das mais importantes, e
um, onde as experiências se somam e se transmitem. Onde o viver colectivo torna mais necessário o recuperáveis, unidades desse património, demolida mesmo contra o parecer do Conselho Nacional
ideal da democracia e onde melhor se pode praticá-la. do Património Cultural e substituída por um edifício da pior qualidade arquitectónica possível.
Mas é mais do que isso. Deve ser mais do que isso. Temos mesmo um pseudo-plano, que custou muito dinheiro, mas que não planifica nada pois
A cidade deve ser a cristalização, permanente, de um sonho colectivo, que se recebe e se transmi- acaba onde devia começar.
te, permanentemente, como herança enriquecida, entre gerações. Mas será que temos uma visão, uma visão física, objectiva e tangível do futuro desta nossa cidade,
Maputo, como aliás tantas outras cidades do nosso continente, é sonho e é pesadelo e foi assim com este tão grande potencial, para voltar a ser uma das mais bonitas e desejáveis de África?
que nasceu, se conformou e subsiste. Será que é possível acreditar que montanhas de estudos sobre as condições sociais, infra-estrutu-
A profunda divisão, e a as assimetrias, entre grupos sociais ainda é um pesadelo que impede o rais, administrativas, políticas e religiosas, pagos por outros tantos projectos de cooperação, instru-
verdadeiro sonho colectivo. mentalizados por outras tantas ONG’s, vão desembocar, necessariamente, numa imagem mais clara
Mas o sonho é necessário e indispensável à formação do espírito da cidade, que deve ter uma e numa visão mais apaixonante para Maputo?
alma que motive e nos enriqueça a todos, nos empreste a vontade e nos dê o orgulho de a ela per- Até agora não o fizeram.
tencermos. Os sucessivos planos ficam-se pela definição de padrões de áreas e densidades, por um zonamen-
to muitas vezes desintegrador, por um receituário para os sistemas infra-estruturais incluindo, e nem marginalizada e concentrada em vastas áreas segregadas, mas sim integrada em zonas de produção e
sempre, alguns esquemas dos eixos de tráfego principais. completada com as infra-estruturas e serviços necessários.
Uma visão integradora da estrutura física do Maputo, com todos os seus aspectos sociais e es- A sobreposição de todos estes sistemas de ordenamento espacial numa visão integrada do Mapu-
paciais considerados, deveria ser desenvolvida e materializar-se num documento que possa servir de to, levada à escala de pormenor a que chamamos de desenho urbano é, quanto a nós, uma ferramenta
base à tomada de decisões sobre todos os aspectos que digam respeito ao uso do solo urbano. diferente do Plano de Estrutura ou Regulador, que recentemente foi produzido.
Este documento, que só pode resultar dum trabalho participativo do mais largo espectro dos A diferença essencial é a de que esta visão espacial do espaço urbano propõe não só a estrutura,
diversos grupos de interesse social, económico e cultural, deveria, uma vez aprovado, ser difundido mas também a escala e, sempre que necessário e possível, a forma dos elementos espaciais urbanos.
com o maior alcance possível por forma a permitir que todos os cidadãos possam monitorar o seu A construção desta visão não pode nascer de missões de especialistas ou projectos esporádicos
cumprimento e aplicação. ou pontuais.
Esta visão integradora, este plano de desenvolvimento espacial, não existem e a sua ausência é Ela deve ser o produto de uma equipa integrada nas estruturas do “órgão local”, isto é, na muni-
uma das causas das profundas deformações, arbitrariedades e erros irreversíveis cometidos, cujas cipalidade, com autonomia, capacidade científica e técnica e, sobretudo, liberta de pressões políticas.
consequências já provocaram danos colossais ao património público e privado na nossa cidade. Mas, se uma visão só é válida se resultar de uma proposta e de um pensamento colectivo, ela não
Este plano de desenvolvimento espacial deverá, obrigatoriamente, definir os seguintes sistemas pode no entanto deixar de ser também um exercício técnico, e artístico, altamente responsabilizante
estruturantes do espaço urbano: para os que a materializam no plano.
O sistema espacial de protecção ao ecossistema natural do Maputo incluindo as orlas marítima e De facto, a sua complexidade obriga a uma grande maturidade profissional e científica e a perío-
fluvial, as zonas e corredores de interligação do sistema verde e os parques e jardins; dos de incubação e de elaboração suficientemente longos para permitirem a necessária profundidade
Neste sistema espacial deveriam ser definidas as áreas de exploração agrária urbana, as áreas de 186 187 de reflexão.
utilização cultural e recreacional, as áreas de valor monumental e comemorativo e as áreas a recon- Por isso é ela tão urgentemente necessária.
quistar, progressivamente, para a criação de uma malha interligada e contínua dos espaços verdes da Para que se evitem situações como as já vividas, em que, de manhã para a tarde, técnicos, inex-
cidade; perientes e no princípio da sua carreira profissional, sejam chamados a ordenar, sem um mínimo da
Os sistemas de movimento de peões e veículos na área metropolitana e as suas ligações às vias de necessária instrumentação, vastas áreas urbanas onde serão depois condenadas a viver milhares de
penetração no hinterland nacional e internacional; pessoas.
Este sistema, ou sistemas, de movimento pressupõem a definição de sistemas mais eficientes e Planificar sem visão é um exercício de mediocridade, vazio e perigoso.
controlados de transportes públicos e a sua relação com os sub-centros de actividades comerciais e de Criar a visão necessária e generosa, de uma cidade melhor para todos, mais humana, mais gran-
serviços existentes ou a criar e a desenvolver. diosa, mais bela não é um trabalho elementar e acessível a leigos. Mas devem criar-se as formas de os
Um sistema de espaços de concentração de actividades de interesse público, altamente acessíveis, envolver e estimular.
multifuncionais, oferecendo uma gama de interesses que estimule o seu uso diurno em condições de
segurança, à escala correcta e correctamente equipados.
Neste sentido a malha de implantação dos mercados informais actual dá indicações preciosas
sobre as localizações mais adequadas a este sistema de espaços.
Este sistema deve ser coordenado com:
O sistema de espaços e serviços de utilidade social tais como escolas, hospitais, bibliotecas, cam-
pos desportivos, etc.
FSDFSD
O sistema das infra-estruturas económicas e a sua integração nos sistemas já referidos. DFDSGFDSFGV
O sistema residencial, com especial atenção para a habitação de baixo custo que não deve ser DSFSDFDS
Esse estímulo passa pela oferta a todos de alternativas, de visões parcelares e de visões estruturan- A vitória na guerra por uma cidade mais justa, mais organizada, mais saudável, mais bela, não se
tes e compreensíveis nas suas razões, se a todos as soubermos explicar. ganha numa batalha.
Uma vez essas visões alternativas compreendidas, participadas e aceites, serão os próprios cida- Ganha-se pela capacidade de organização e de planificação, pela abertura real à representação de
dãos a defendê-las e exigir-lhes o melhoramento e a controlar-lhe o cumprimento. todos os sectores da população e pela transparência na gestão da coisa pública.
As cidades são todas diferentes. Ganha-se, estrategicamente, por meio de pequenas vitórias, possíveis dentro das limitações dos
Diferentes na sua inserção geográfica, na sua forma física, na sua composição demográfica e recursos e dos meios, mas que provem aos cidadãos a inteligência e a criatividade na solução dos
cultural, nos seus recursos, na sua economia e administração. problemas, o compromisso pelo bem público e, sobretudo, a integridade dos dirigentes eleitos.
As cidades formam-se, crescem, diminuem, desaparecem. O espaço urbano é uma das categorias mais controversas do património municipal. É a dimensão
Da nossa, conhecemos nós as limitações, as limitações do espaço, dos recursos, da administração. mais tangível do exercício do poder, a mais visível, a que mais expõe a todos a qualidade ou o vício
São enormes as nossas limitações, o que torna ainda mais premente a clarificação de uma visão que da administração.
permita trabalhar na mesma com urgência e com propósito. Organizar fisicamente o domínio espacial da cidade é um exercício que implica, sempre, escolhas
Mas, e sobretudo, para nela se trabalhar para a priorização do benefício público, o benefício da políticas.
maioria, acima dos interesses, do benefício e do lucro privado. Para que essas escolhas sejam acertadas, isto é para elas não provoquem situações de degradação
Pediram-me que vos desse uma visão de Maputo. ambiental, social, económica ou cultural é necessário um mecanismo de informação técnica compe-
Visão de visionário, não de fotógrafo, com certeza. tente, equipado e com um mínimo de recursos materiais.
O que vos tento dar não é uma visão, é um processo de visionar, uma forma de inventar uma É minha opinião que esse mecanismo não existe ainda, senão talvez de forma incipiente em
Maputo mais equilibrada, mais feliz, mais atractiva, mais assumida por todos. 188 189 Maputo.
A realidade de todos os dias nesta cidade é de extrema dureza para a grande maioria. O sofri- É minha opinião que essa ausência tem trazido graves e nefastas consequências e de que é urgente
mento é grande: sofrimento físico e sofrimento moral. A segregação das classes sociais, a arrogância remediar essa situação sob pena de vermos agravarem-se os erros e o perigo de graus de degradação
das autoridades administrativas, a prepotência e a inoperacionalidade das autoridades policiais fazem mais acelerados.
da vida do cidadão comum um inferno agravado pelas carências mais primárias dos serviços, das Esse mecanismo terá apenas o valor que lhe conferir a visão política dos destinos da cidade, pois
infra-estruturas elementares ... e das dificuldades materiais. só essa o pode orientar, defender as suas elaborações e apoiar as suas propostas.
Tantas razões para nos desencorajar. Penso que esta é a Assembleia onde este pensamento pode encontrar eco, suporte ou rebati-
Mas será coragem o que nos falta? mento.
Ou será a inteligência da paciente luta quotidiana para vencer as pequenas batalhas que, penosa- Fica portanto aqui a reflexão.
mente, vão construindo uma cidade mais rica, mais justa, mais interessante, mais bela? Com o valor que ela possa ter, é feita com toda a modéstia, simplicidade e sinceridade que o amor
Que me perdoem o tom magoado, mas não desencorajado, desta comunicação é o que, no final, por esta cidade me inspiram.
vos peço. Muito obrigado!
Tenho, para mim, uma grande repugnância por qualquer forma de triunfalismo e pouco respeito
pelo derrotismo.
Penso que o sucesso tem as suas raízes mais fortes no realismo e na coragem de identificar as
dificuldades e resolvê-las com as armas possíveis.
Ainda não há muito tempo dizíamos que a vitória se organiza, que a vitória se constrói.
A profundidade dos slogans, e das palavras de ordem, é proporcional à sua ressonância social, à
credibilidade de quem os lança e à motivação de quem os aceita.
CONDOMINIO RESIDENCIAL CARACOL - MAPUTO FILIPE BRANQUINHO
Introdução a uma conferência sobre o nosso trabalho, No gesto ou na palavra que criam as intangíveis dimensões no tempo teatral?
na Faculdade de Arquitetura e Planeamento Fisico da UEM, Na cápsula condensada do espaço transportado no avião ou no automóvel, no navio ou no
Maputo comboio?
Nas cidades invisíveis e nas bibliotecas imaginárias?
Nas utopias e nos tratados?
Poderá ela, um dia, atingir a coerência entre todas essas manifestações da nossa capacidade de hu-
manizar o espaço natural, isto é, de o tornar mais habitável, mais sustentável, mais á escala humana
e, portanto também, mais à escala das nossas dimensões emocionais?
Passados seis mil anos de vida urbana as qualidades do espaço de socialização e os valores estéticos
e ambientais das nossas cidades vão piorando. A progressiva imposição de ritmos desintegradores
do equilíbrio da vida familiar, a alienação dos contactos com a natureza, o desperdício de tempo de
meditação e pensamento e a degradação da qualidade do ar são, disso, a prova.
A arquitectura pode, e deve ser, pensada a esta escala e não reduzir-se, cada vez mais, ao objecto
tímido, ou agressivo para com os seus vizinhos, sem referências contextuais, ou com as referências
ONDE ESTÁ A ARQUITECTURA? erradas, colhidas de circunstâncias alheias ao lugar e ao contexto.
Mas, se assim é no primeiro mundo, (.e já que não há segundo mundo) no nosso terceiro mundo o
192 193 panorama é bem pior: ele é, como diria um caríssimo amigo, uma caricatura trágica do vosso mundo.
Antes de vos mostrar algum do nosso trabalho destes últimos anos, penso que é importante esclarecer A cidade não chega a ser cidade.
o sentido que tem, para mim, a arquitectura. É uma aglomeração de gente.
Algumas noções devem ser esclarecidas e algumas posições definidas para podermos dar o valor As ruas … são os espaços que sobraram.
certo às palavras usadas. Água é a que fica nos charcos depois da chuva ou a que se paga, à lata, ao vizinho que vive de a
De facto, quando falamos de arquitectura, falamos de quê? vender, e é mais a que entra pelo tecto ou por baixo da porta do que a que se usa e se bebe.
Falamos de uma colecção de objectos avulsos e, muitas vezes, toscamente incrustados no seu A electricidade vê-se ao longe, ou quando possível, rouba-se dos postes da rua.
contexto urbano ou natural? Cozinham-se as florestas que se transformam, inexoravelmente, nos desertos secos e estéreis que
Ou falamos de toda uma realidade construída onde todos os elementos formais e espaciais, me- cercam as nossas cidades em perímetros de expansão.
lhor ou pior, definem o nosso ambiente habitável e habitado? Onde está, ali, a arquitectura? Onde estão as escolas e os hospitais, as igrejas e os museus, as
Esta visão e esta preocupação, parece-me cada vez mais justificada pela degradação generalisada bibliotecas e as oficinas, os armazens, os escritórios e as habitações de que precisamos para sobreviver?
da paisagem e da cidade em todos os horizontes e culturas. Onde está o urbanismo?
De facto: onde começa a arquitectura? Onde estão as estradas e as pontes, os portos e aeroportos que precisamos para sobreviver?
No edifício? Onde está a organização espacial do território?
No espaço urbano? Onde está a ordem que preserva a costa e a montanha das agressões da mais selvagem especulação
Na transformação da paisagem? e da destruição da civilização educada?
Na estrada ou na barragem, que deixam um sinal indelével na paisagem? Onde está o conhecimento científico e a capacidade técnica do arquitecto para participar na
No monumento ? Na ruína ? No muro que define a propriedade? criação dessa ordem e onde está a sua consciência do perigo que é colaborar na sua destruição, por
No móvel, no objecto de uso corrente? ignorância ou por crassos interesses materiais?
Naturalmente, não serão os arquitectos, sozinhos, a responder por estas questões. Mas não é esta a questão aqui em causa.
E será que alguém acredita em soluções corporativas? Em causa está a responsabilidade da universidade pela formação de intelectuais preparados para
Mas, se os arquitectos não as souberem equacionar e quiserem participar na sua solução, poderão actuar em toda a extensão do domínio espacial construído, sabendo integrar, na sua intervenção,
falar de arquitectura? os contributos das disciplinas e das tecnologias necessárias, desde a antropologia da paisagem até
Onde trabalho não nos permitimos ainda o luxo de ter especialistas. Talvez por isso nos seja mais ao conhecimento do impacto ambiental dos seus projectos; desde o contexto legal da iniciativa e
imediata, mas não mais fácil, a percepção da necessidade de considerarmos, sempre, aquela continui- do investimento até ao seu quadro financeiro; desde as suas implicações deontológicas até à sua
dade entre as diversas escalas da nossa intervenção. dimensão ética.
No nosso terceiro mundo, as diferenças entre os indivíduos e a sua qualidade de vida são as mais Em causa está a capacidade dos graduados para entenderem que não há tecnologias neutras e que
brutais e mais patentes. o processo de decisão espacial tem sempre consequências para a sociedade sendo, portanto e sempre,
À distancia de quinhentos metros estamos na idade da pedra lascada. de natureza eminentemente ideológica.
À nossa porta morre-se à fome. Não se conseguiu ainda, porventura, que todos os alunos saibam e queiram asumir esse nível de
Na próxima esquina sobem-se vinte andares de escadas com uma lata de água à cabeça e num consciência e essa capacidade. Mas todos são expostos a essas escolhas e todos devem adquirir a noção
quarto de empregados, no terraço do vigésimo primeiro, vive toda uma família. esclarecida da sua responsabilidade intelectual, profissional e ética.
A grande maioria da população urbana do país vive de agricultura de subsistência. Estarei eu já muito longe dos temas desta reunião e da discussão que me propuz explorar con-
Mas nem sempre subsiste. vosco?
Onde está a cidade? Penso que não.
A nossa faculdade de arquitectura foi inaugurada há dezanove anos, quando éramos menos que 194 195 Onde está então a arquitectura?
meia dúzia de arquitectos moçambicanos em Moçambique. Gostaria de fazer a prova da necessidade de se encontrar uma nova posição para o arquitecto na
Tivemos que fazer de tudo: de ministros a planificadores regionais; de urbanistas a designers de sociedade comtemporânea, menos como um luxo intelectual da sociedade de consumo de imagens
móveis, de poetas a gráficos, de deputados a responsáveis administrativos, de tecnólogos a diplomatas. e mais como o verdadeiro guia da arrumação espacial da sociedade na paisagem, na cidade e no
Tivemos que enfrentar essas tarefas sozinhos e sem recurso ao apoio de colegas mais experientes; edifício.
sem recurso a bancos de dados; sem recurso a bibliografia e a bibliotecas técnicas e científicas. Nas associações de ideias que me suscitam estes temas uma imagem me vem frequentemente à
Das dez províncias do país, só duas tinham profissionais activos. mente, me espanta e me intriga: a noção de que se toma cada vez mais o computador e a tecnologia
Onde estava, para eles, a arquitectura? como a solução para se encontrarem novos caminhos para uma arquitectura do futuro.
Em 20 anos formámos quase trezentos arquitectos, num curso de seis anos, mas que são ainda Intriga-me, ainda, a noção de que o meio seja a mensagem…
poucos anos para poderem adquirir o mínimo de conhecimentos indispensável às competências que Onde está a arquitectura?
devem exercer.
Tem sido difícil manter a estrutura deste curso sem descontinuidades entre o planeamento es-
pacial a todas as escalas, sem departamentos, sem especializações, sem pressa de diplomar pessoas
menos preparadas e menos capazes de perceber a dimensão da sua responsabilidade a essas mesmas
escalas.
Dado que as universidades, pelo menos as estatais, são dirigidas por políticos que devem mostrar
serviço e que essa prova se faz sempre, exclusivamente, pelos números, é provável que também esta
FSDFSD
batalha se perca e que tenhamos que diminuir o tempo e aumentar os ingressos, com funestas con- DFDSGFDSFGV
sequências para o futuro da competência profissional necessária ao país. DSFSDFDS
No computador? Nas esforços da “economia” e da indústria para nos fazer consumir ainda mais texto urbano e social. Não foi, contudo, determinante e sensível aos problemas globais de ordem
produtos que, na sua grande maioria, não apresentam reais vantagens energética ou de prestação económica, social e, sobretudo, ambiental que hoje se devem considerar como estando na base e no
ambiental? centro do debate.
Estará porventura na solução das contradições entre as imagens mitificadas pela literatura mais É verdade que, entretanto, se introduziu na legislação urbanística a exigência da prova do com-
irresponsável e as questões inadiáveis da criação de verdadeiras imagens novas que reflictam uma portamento ambiental dos projectos, sobretudo em situações de risco para os ecossistemas.
actitude responsável em relação ao meio ambiente e ao equilíbrio social? Mas os resultados à nossa volta parecem provar a inoperância dessa legislação que, mesmo que
Estará na procura da coerência entre a forma e a maneira de a conseguir sem atraiçoar os valores ainda insuficiente, não está ainda tão firmemente estabelecida que resista aos ataques duma nova
éticos sobre os quais deve repousar uma arquitectura comprometida? classe politica apostada num neo-liberalismo suicida.
Será que o computador é programável para essas escolhas? A responsabilidade recai, portanto, também e em parte, sobre nós, arquitectos e cidadãos.
É certo que a informática abre um universo formal novo, com novas ferramentas de apoio à A auto imposição de uma disciplina intelectual, eticamente assumida por todos como profissio-
concepção e à execução de formas impossíveis de obter doutra maneira. nais, pensadores e artistas responsáveis, que nos leve a uma permanente atenção aos problemas da
Mas é só de novas formas que estamos à procura? sustentabilidade ambiental e da economia de meios (técnicos e estéticos), é o caminho certo para
É, e será sempre, necessário ao artista e ao criador inventar para lá do inventado. uma arquitectura cuja validade e novidade não sejam meramente o produto da licença artística.
Mas o que está aqui em discussão é a de saber qual a invenção necessária. As condições intelectuais estão já criadas para uma arquitectura nova, racional, justa, humana e
O que está aqui em discussão é entender qual o novo imaginário espacial e formal que assegura sustentável mas, naturalmente, essas condições, por si só, são insuficientes para aquela criação.
um futuro mais promissor e mais justo para todos? As profundas alterações indispensáveis ao surgimento de uma arquitectura responsável não de-
Os problemas que se criaram e se definem agora como os essenciais da nossa era são, pela primei- 196 197 pendem apenas das posições intelectualmente correctas dos profissionais.
ra vez na história da humanidade, os que põem em causa a sua própria sobrevivência. Dependem da adaptação da pesadíssima máquina da indústria transnacional da construção, com
Pela primeira vez, na história da comunidades das nações, o interesse global é equacionado acima a inércia colossal dos interesses estabelecidos que são, muitas vezes, alheios, ou mesmo contrários, aos
do interesse local e os estados aceitam agora, formalmente, não contribuir negativamente para os interesses da sustentabilidade ambiental; dependem dos interesses investidos na especulação imobi-
desiquilíbrios globais. liária e fundiária, que não se compadecem com um planeamento urbano inteligente e democrático;
Todos os dias se assinam tratados, acordos e convenções e se estabelece a responsabilidade das dependem de um público pouco educado ainda para exigir a qualidade do espaço, do ambiente e da
nações em relação à sustentabilidade do ecossistema local, regional e global. estrutura urbana a que tem direito.
O grau de cumprimento desses objectivos, muitas vezes ínfimo, não significa que não são impor- Estamos em face a uma nova exigência de integridade por parte dos arquitectos.
tantes, mas sim que os poderes estabelecidos são relutantes em limitar os seus lucros. Não será possível continuarmos a refugiar-nos atrás do cliente para explicar a nossa incapacidade
Na escala descendente da responsabilização pela sobrevivência da humanidade, a criação de um de projectar cidades e edifícios coerentes com as dimensões de sustentabilidade indispensáveis ao
habitat humano sustentável aparece numa posição muito alta. futuro do habitat humano.
A indústria da construção, a produção e o transporte dos materiais são, conjuntamente, respon- Os arquitectos devem ser os mais informados analistas e os mais intransigentes críticos dos seus
sáveis por alguns dos maiores impactos negativos no equilíbrio ambiental. próprios projectos.
Onde está a arquitectura que assume a sua parte de responsabilidade por aqueles impactos ten- Não será possivel, portanto, manter-se a posição hedonista e de mútua glorificação que caracte-
tando minimizá-los e eliminá-los? rizam o panorama actual da crítica arquitectónica.
Onde está o novo imaginário do arquitecto? A pergunta é pois, e novamente, onde está a arquitectura?
Onde está o significado da arquitectura? Seria gratificante poder dar uma resposta a esta (im)pertinente questão.
A este nível os nossos dois mundos são os mesmos. Útil e necessário.
A discussão dos anos sessenta e setenta teve o mérito de considerar a arquitectura no seu con- Mas possível?
Seria impossível dar uma resposta concludente e completa. Temos também tido, por vezes, a necessidade e a obrigação de nos negarmos à relação, e mesmo
A arquitectura está ainda, e já, por todos os lados. cortá-la e interrompê-la, quando as suas posições se revelam anti-sociais ou agressivas para com o
Está no entusiasmo e na paixão de todos os que vivemos dela e por ela e para quem as questões ambiente urbano ou natural.
que tentei definir são angústia mas também estímulo; está nos mais jovens que, talvez ainda sem a Temos o direito e a obrigação de não colaborar ou pactuar com esses clientes.
perfeita consciência do problema , reencontram esta arrebatadora dedicação a uma das actividades Outra condição da boa arquitectura é a boa construção.
mais antigas e mais necessárias à sobrevivencia do Homem; está em quem a constrói e lhe sente a O construtor é o nosso outro, e mais directo parceiro.
espessa poesia e a alegria de a ver realizada; está nos que a vivem e nela se elevam a novos momentos Mas o terreno é, aqui, muito mais escorregadio, mais perigoso.
de vibração emocional e estética; está na investigação que pacientemente nos oferece novas fronteiras Qual de nós não sofreu já as agressões da ganância e da incompetência do construtor?
e combustível de invenção; está na obra anónima, mas íntegra, perfeitamente inserida e vivida, que Contudo, essa figura negativa não pode ser generalizada.
todos sentem mas que só descobre quem a sabe descobrir; está na exaltação de sabermos que está Muito do interesse da minha vida profissional, e pessoal, vem do ambiente da obra, da fraterni-
tudo ainda por descobrir e que os problemas colossais que enfrentamos para a construção de um dade com quem conhece os segredos dos processos e dos materiais, lhes conhece o peso e o cheiro,
novo habitat humano devem levar-nos a uma linguagem livre das incrustações monumentalistas e os potenciais e as traições, a natureza e os limites.
autocráticas das gerações e das civilizações que nos precederam. Um operário da construção é sempre um voluntário do sacrifício e do entusiasmo pela obra feita,
É ali que está, e que estará, a arquitectura. por si e por todos os camaradas.
Fazê-la é um acto de coragem. Essa fraternidade, onde me reconheço como parte integrante, traz-me a profunda alegria de ser
Fazê-la correctamente é um acto de coragem colectiva. compreendido e respeitado pelos executores das formas e dos espaços inventados.
Fazê-la bem é um acto de génio. 198 199 É maravilhoso o que se pode conseguir de um trabalhador quando se lhe respeita e se lhe com-
Se a arquitectura é uma linguagem, então as imagens são a ilustração do que é o trabalho feito por preende a dureza e a sabedoria do trabalho.
várias pessoas, com várias competências, mas com a mesma finalidade concreta. Não espanta, portanto, a sua resistência à insensibilidade e à ignorancia dos que pensam que o
Nesse trabalho conta, antes de mais, o cliente, dono da ideia do que vai acontecer. que desenham no papel é sempre fácil e exequivel ... por outros.
O cliente, que não tem sempre razão, mas que tem a necessidade, singular ou colectiva de nos No fim destes anos todos de uma vida a construir, a angústia que mais pode afligir é a de pensar
utilizar para obter o que a sociedade precisa. que um dia poderei não ter um estaleiro de obra a viver, não sentir o cheiro da argamassa, não ter,
Na Suécia, todos os anos, o Instituto dos Arquitectos dá um prémio ao melhor cliente quando outra vez, as calças estragadas com a tinta fresca da parede, não poder usar o palavrão amigo que nos
dá prémios aos melhores arquitectos. aproxima na explicação do efeito a conseguir; o fechar do olho para desenfiar arestas, a primeira des-
Este acto tem, para mim um profundo significado pois reconhece o papel fundamental da enco- coberta do espaço quando a lage é descofrada e os sábados passados, sozinho, no estaleiro, a descobrir
menda e coloca o arquitecto, correctamente, na posição de membro duma equipa. os erros do projecto e a tentar corrigi-los...
Na minha experiência profissional tenho tido a sorte de encontrar, muitas vezes, clientes ilumi-
nados e conscientes do que devem exigir e de como devem exigi-lo.
Se algum mérito tem a arquitectura que fazemos, grande parte desse mérito deve ser-lhe atribuida.
Ele tem, muitas vezes, uma visão mais objectiva e, menos comprometida com parti-pris formais
e, muitas vezes, mais aberta à novidade necessária.
Um cliente esclarecido e exigente obriga-nos a uma constante atenção e à convicção das nossas
razões e das nossas certezas e, por isso mesmo, conduz-nos a uma maior inteligência na atitude e a
FSDFSD
uma maior intransigência intelectual nas escolhas. DFDSGFDSFGV
Mas, como dito, o cliente nem sempre tem razão. DSFSDFDS
As obras e os projectos que posso mostrar têm, cada uma, a sua história que não é possível, aqui, Praticamente todos os outros materiais, quer estruturais quer de acabamentos, são importados
relatar para melhor lhes explicar as razões e os defeitos. sendo a nossa dependência muito grande em relação ao mercado sul-africano, que é muito limitado,
Contudo não posso deixar de referir que elas e eles se inserem como parte, apenas, de uma activi- quer na diversidade da oferta e na qualidade dos produtos. Por outro lado o baixo nível de controlo
dade muito mais abrangente, e talvez mais significativa, do meu trabalho em Moçambique. de qualidade na nossa restritíssima indústria de materiais de construção, incluindo a do cimento, faz
Essas actividades obrigam-me a perspectivar o trabalho, como arquitecto e como urbanista, no com que mesmo em relação ao que produzimos, a preferência vá para o importado, cujo custo é,
sentido que esta comunicação pretende dar ao âmbito da nossa profissão: o da necessidade de inte- muitas vezes, inferior ao da produção local, como é o caso, por exemplo, do cimento, da tubagem
grar cada projecto e cada acção numa lógica mais vasta do que a do seu contexto próximo, seja ele plástica e das tintas.
físico, social ou económico. A outra limitação com que devemos contar é a má organização da construção, a baixa capacidade
Naturalmente que isto é um projecto de vida ambicioso e até utópico. financeira das empresas de construção e a baixa qualidade da mão-de-obra local.
Também é natural que os resultados obtidos sejam sempre uma pálida e remota aproximação à Todos estes factores determinam fortemente o projecto, não só na sua concepção como quanto
qualidade da resposta ambicionada e que o único antidoto para a frustração seja a noção de que eles à estratégia de construção mais eficiente, a adoptar.
são sempre medidos por valores mais globais e essenciais do que os das modas, das maneiras ou dos Outros factores de extrema importância, para a definição dos aspectos formais e construtivos da
modelos. nossa arquitectura, são os climáticos e os sociais.
Referem-se a princípios científicos e a dimensões éticas das escolhas tecnológicas a fazer. Assim, e para lá da necessidade de se dar a maior atenção ao controle solar e à pluviosidade, que
Parece-me, então, útil dar-vos algumas chaves de leitura dos projectos que vos mostro, uma vez atinge niveis altíssimos de intensidade, devemos obrigatoriamente considerar que todos os vãos de-
que a diversidade das nossas condições de trabalho deve explicar muito da diversidade das soluções vem ser protegidos contra a entrada de mosquitos, uma vez que todo o território nacional é infestado
encontradas. 200 201 pelo mosquito transmissor da malária.
De facto, a nossa paleta de escolhas tecnológicas é muito limitada. Um factor que é novo, no nosso caso, é a importancia que assumiu a necessidade de projectar
Dos materiais básicos para a construção só são de produção nacional o cimento, os inertes e a contra a efração. De facto a frequência e a violência dos assaltos aos edifícios obriga-nos agora a uma
madeira. nova maneira de projectar, quer para a cidade, quer nas zonas rurais.
Dos cerâmicos só produzimos o tijolo furado e de baixa qualidade, o que nos leva a preferir quase Podemos mesmo afirmar, sem exagero, que a inexpugnabilidade dos nossos edifícios se tornou
sistematicamente os blocos de areia-cimento para toda as alvenarias. num dos principais factores condicionantes da forma arquitectónica e da forma urbana.
Toda a cerâmica de cobertura e acabamentos deve ser importada, o que lhe agrava altamente os Finalmente convém, também aqui, desmistificar a noção de que a utilização de formas tradi-
custos. cionais de construir e o recurso a materiais e a saberes generalizados e populares, pode ser uma
A madeira para estruturas é também importada, uma vez que a nossa é pouco resistente à flexão alternativa para a construção económica e maciça das infra estruturas sociais e habitativas que tão
e preciosa demais para tal uso. urgentemente necessitamos.
A esquadria para portas, janelas, armários e acabamentos pode ser executada com óptima qua- Esse mito, que tem consequências filosóficas, estéticas e económicas inescapáveis, ainda hoje
lidade usando as nossas madeiras, assim como o mobiliário, mas a exploração desregrada das nossas é projectado e defendido como uma possível panaceia para aqueles problemas e como uma forma
florestas fez subir o preço das essências locais e devemos ter o maior cuidado com a economia do de afirmação de uma identidade arquitectónica própria, tão necessária à formação de um ethos
seu uso. nacional.
A madeira local é também uma das soluções mais económicas, e com melhores prestações, para Os defensores dessa estratégia esquecem, contudo, que as formas tradicionais da construção são o
o revestimento de pavimentos onde não haja presença de água. No entanto a manutenção destes resultado de uma situação sócio-cultural e económica, e de uma forma de construir que faz parte dos
pavimentos restringe fortemente o seu uso sobretudo em locais de grande movimento do público. ritmos de vida da sociedade tradicional, da disponibilidade ecologicamente equilibrada dos materiais
As nossas pedreiras têm uma reduzidíssima capacidade de resposta às necessidades de pedra para locais e das relações de dependência e complementaridade entre os membros do grupo.
pavimentos ou revestimentos e a maioria da pedra que podemos usar é, agora, importada. A construção tradicional é, portanto, um processo complexo do qual se não pode isolar o ele-
mento técnico ou estético para o repropor, como resposta alternativa, às novas necessidades de uma
sociedade que, exactamente, se quer libertar das limitações que o viver tradicional lhe impõe.
A necessidade de novas construções indispensáveis ao desenvolvimento humano em Moçambi-
que impõe ritmos e regras que não são compatíveis com a integração imediata de uma mão-de-obra
não especializada e sem a noção de disciplina laboral, indispensável ao cumprimento de prazos e à
obtenção do nível mínimo de qualidade exigido.
A indústria da construção deve responder a especificações e a condições qualitativas e quantitati-
vas de execução, que não se coadunam com a integração de elementos aleatórios que lhe ameacem a
performance e lhe ponham em risco os resultados.
Por outro lado, os investidores, sejam eles o estado, as organizações de cooperação internacional
ou mesmo os privados, não podem aceitar esse elemento aleatório pois devem prestar contas dos
fundos e dos esforços investidos apresentando resultados objectivos, tangíveis e nos prazos previstos.
Bastaria esta lógica para concluir que a uma nova sociedade moçambicana, mais e melhor inte-
grada na sociedade moderna, só pode corresponder uma nova forma urbana e uma nova arquitectu-
ra, mais saudável, mais duradoura, sustentável e, pelo menos, tão bela quanto a que soube construir
para si no seu estágio anterior.
É essa arquitectura, e com essa consciência, que temos tentado fazer ao longo destes quarenta 202
anos, e de que agora vos dou alguns exemplos.
Depois disto é com um certo embaraço que vos mostro algum do trabalho que temos feito nes-
tes últimos anos. Mas é também com um certo orgulho pela nossa procura sistemática de melhores
resultados, mais coerentes com os valores atrás definidos.
Naturalmente, muito trabalho fica para mostrar e muita experiência fica subentendida.
São só alguns exemplos desse trabalho, mas em todas as frentes, desde o planeamento urbano
à gráfica.

TRIBUNAL ADMINISTRATIVO – MAPUTO JOSÉ FORJAZ E ARQUITECTOS


Maputo, 2 de Outubro de 2000 Que importância, oficial e académica, é dada ao conhecimento empírico (mas não menos conhe-
cimento) que caracteriza a cultura científica e técnica tradicional?
Que importância é dada à investigação científica e ao desenvolvimento tecnológico pelas pessoas
e instituições, públicas ou privadas, no nosso país?
Que reconhecimento social se dá, em Moçambique, à figura do cientista, do tecnólogo e do
técnico e como se exprime esse reconhecimento?
Qual o volume das publicações científicas e técnicas, originais, que se publicam no País?
Medidas apenas por estes critérios seria provável que depressa se chegasse à conclusão de que a
ciência e a técnica têm, em Moçambique, mais ou menos a mesma importância que tem a marinha
de guerra na Suíça.
Isto é, muito pouca.
Se quisermos responder com profundidade à segunda questão, isto é, de que conhecimentos
e tecnologias necessita Moçambique, a curto e médio prazos, eu diria que Moçambique necessita
urgentemente de reconhecer a importância do conhecimento científico e da sofisticação técnica se
PRIMEIRO SEMINÁRIO NACIONAL quiser, e tem de querer, acompanhar a civilização humana.
DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA De facto, se ultrapassarmos o jogo, vazio e demagógico do que vem primeiro – o desenvolvi-
204 205 mento material que conduz ao desenvolvimento técnico ou o desenvolvimento técnico que provoca
o desenvolvimento material – e nos concentrarmos no problema central que é o da cultura, talvez
A minha intervenção tenta responder às questões que me foram propostas como sendo as mais rele- possamos ir mais longe e inferir algumas direcções, ou mesmo algumas respostas às questões atrás
vantes para o sentido deste Seminário que são: enunciadas.
Qual a situação nacional no campo da ciência e da tecnologia? Quando refiro o problema central como sendo o da cultura não me refiro particularmente a
De que conhecimentos e tecnologias necessita Moçambique a curto e médio prazos? Moçambique ou à cultura do povo moçambicano mas sim à cultura actual, que é, queiramos ou não,
Que dimensão política têm a ciência e a tecnologia em Moçambique hoje e qual a dimensão que global mas não resolve, nem parece estar interessada em resolver, o problema da divisão dos mundos
deverão assumir? em estratos sociais demarcados pelo acesso à riqueza e, sobretudo e no que mais directamente inte-
Para melhor definir a minha posição devo começar por tentar desdobrar estas questões de base ressa a este Seminário, pelo acesso à educação, que é o único veículo para a solução do problema mais
em outras delas derivadas mas mais facilmente entendidas como objectivas. grave do mundo actual que é o da sobrevivência do Homem no planeta.
A primeira é a do significado de “nacional” neste contexto, que, quanto a mim, só tem um sen- Daí que se deva considerar que o problema de Moçambique no campo da ciência e da técnica
tido histórico-estatístico. não é um problema local, mas um problema global no sentido em que condições materiais e culturais
Por outras palavras, o termómetro do desenvolvimento medirá a nossa “temperatura”, científica idênticas se encontram desde a Ásia à América Latina, passando pela Gronelândia, e são comuns a
e técnica através de quantificações simples e objectivas, que se podem exprimir da seguinte maneira: todos os povos com grandes maiorias descriminadas cultural e materialmente.
Qual a importância que têm as disciplinas científicas e técnicas no nosso sistema educacional, a Vale a pena, pois, um minuto de reflexão sobre a natureza deste magno problema.
cada nível? Ninguém duvida que a terra chega, confortavelmente, para todos. Mas também ninguém duvida
Quantos moçambicanos são abrangidos pela disseminação do conhecimento científico e técnico? que alguns, poucos, estão nela muito mais confortavelmente do que a grande maioria.
Que importância tem a divulgação científica e tecnológica nos nossos meios de comunicação Todos sabemos que uma borboleta que bater as asas na China pode provocar um ciclone nas
social? Caraíbas, isto é, que o sistema em que vivemos é um sistema integrado e de que a divisão do mundo
em entidades sócio-geográficas, tenham elas o valor político que tiverem, não interessa, a não ser macroprojectos de desenvolvimento que tanto atrasaram, comprometendo as pequenas iniciativas de
politicamente, à sobrevivência do actual, imperfeito, sistema. desenvolvimento, hoje, felizmente, começadas a reconhecer como essenciais.
Para estabelecer mais uma base indispensável à construção de uma atitude, importa lembrar que O problema da correcta relação da tecnologia com a política, as mais das vezes negativa mas sem-
Moçambique é, ele próprio, um microcosmos sócio-cultural que reflecte, cada vez mais perfeita- pre indispensável, só terá solução quando a sociedade em geral atingir um desenvolvimento cultural
mente, a realidade global, principalmente na estratificação económica e na cultura material dos seus que lhe permita questionar-se sobre o sentido e as formas de utilização da ciência e das técnicas.
cidadãos. Mas quem decide sobre a função da ciência na sociedade não são os cientistas, nem os cientistas
Não se trata portanto, aqui, de definir qual a ciência e que tecnologias convêm a Moçambique sociais, nem os filósofos.
pois que, pela lógica mais elementar a Moçambique convêm todas e todas nos são necessárias. Quem decide são os políticos que, pelo menos no nosso caso, não têm sido, as mais das vezes,
E será que haverá mais do que uma ciência e tecnologia? aconselhados por cientistas filosoficamente preparados e tecnólogos experimentados.
Parece evidente que não. Fica, assim, o campo aberto aos mais patentes atropelos à racionalidade no uso dos recursos e à
A ciência e a tecnologia são uma só e necessárias a todos os povos da mesma maneira. sustentabilidade dos projectos, uma vez que as decisões tomadas, sobre as quais não há uma opinião
Quando, por breves momentos, a seguir à independência nacional, Moçambique acreditou nas pública informada, passam a ser determinadas pela sua expediência ou pela sua rentabilidade política
suas próprias forças, um grupo de universitários, ingénuos e visionários, liderados por um poeta da e económica a curto prazo, não lhes sendo percebidas as possíveis consequências funestas, a longo
utopia chamado António Quadros, criou um centro de recolha, estudo e desenvolvimento das “tec- prazo.
nologias básicas do aproveitamento racional da natureza”, a que chamou o TBARN. A única forma de combater a arbitrariedade é o conhecimento e a comunicação.
Acreditava-se, e pretendia-se provar, que os slogans políticos de “contar com as próprias forças” A experiência do TBARN falhou por causa da sua ideologização e do seu, imposto, isolamento
e de pensar o país “do Rovuma ao Maputo”, poderiam ser a ponte necessária, e indispensável para 206 207 cultural; mas não falhou completamente porque, ainda hoje, é relembrada e inspira o pensamento
um desenvolvimento (endógeno) para o qual todo o povo contribuísse e, assim, beneficiasse de um dos sectores mais idealistas e, portanto, a longo prazo, mais realistas, do país.
melhor conhecimento dos seus potenciais naturais. Isto seria, então, possível, uma vez que o esforço Que lição podemos tirar daquela experiência?
material e a pressão moral e emocional da guerra de libertação tinham acabado. A mais importante é a do método e, nesse aspecto a sua lição é, porventura, em certos aspectos,
O TBARN não era na realidade só um centro de estudos ou um grupo de pessoas interessadas. negativa.
Era, acima de tudo, uma ideia, uma atitude utópica talvez, mas social e culturalmente, impecável. O fracasso do TBARN foi, quanto a mim, precisamente este: ter começado por cima e foi
Mais que um centro de investigação tecnológica era, sobretudo, um centro de comunicação de exactamente no topo, nos donos da ciência e da técnica, que encontrou toda a incompreensão e a
ideias, e de promocão da ideia e nobre de que pelo pensamento todos nos podemos libertar da con- reacção.
dição de servilismo material de que estávamos, estamos, ou podemos vir a estar, sujeitos. A compreensão errada.
No TBARN não se fazia a apologia das tecnologias “pobres” ou “doces”, ou “intermédias”. Fazia- O julgar-se que se propunha um remédio ou uma técnica, quando do que se tratava era de
-se a promoção das tecnologias “racionais”, tendo-se definido como racional o que não destruísse a
natureza, fosse realizável com as capacidades locais e tivesse objectivos claramente entendidos como
os de melhoramento da qualidade de vida das pessoas. Todas as pessoas.
Dois factores principais minaram e destruíram a credibilidade da ideia, da atitude e da organiza-
ção: por um lado a profunda divisão que já nessa altura existia na direcção política do país, embora
escondida; por outro lado o cinismo dos nossos aliados, naturais ou não, para quem a visão de um
Moçambique a contar com as suas próprias forças, e portanto menos dependente, era repugnante,
FSDFSD
senão mesmo perigosa. DFDSGFDSFGV
Isso reflectiu-se nas posições de alguns grupos nacionais, influentes na definição da filosofia dos DSFSDFDS
procurar uma nova forma de pensar que respeitasse a cultura e o saber do camponês e do artesão e as Se, de facto, quisermos considerar o potencial científico e técnico nacional temos que, inexo-
revelasse ao intelectual para que este, com as ferramentas do pensamento científico e da comunica- ravelmente, começar por considerar os 2,6 milhões de crianças, em idade escolar primária, como o
ção, as pudesse compreender, sistematizar, integrar, desenvolver e comunicar. campo mais sensível às acções de formação das novas gerações, culturalmente preparadas com uma
Era, também, uma chamada de atenção para a relevância dos temas de investigação mais signifi- atitude científica esclarecida e com a compreensão do valor social da técnica e das consequências
cativos para a grande maioria dos moçambicanos: os camponeses e os pescadores, e os artífices, e os ambientais da sua utilização.
operários, os pequenos empresários. Só a partir da escola primária poderemos construir mentalidades que não venham a considerar
Eram os temas da energia e da água, da produção e conservação do alimento, da saúde e da a universidade como um “martírio” a ultrapassar, citando uma frase do último jornal “O Univer-
higiene, da construção, dos transportes e da comunicação; o tema do respeito pela natureza, pelos sitário”, ou como cinco anos “queimados a estudar” como escrevia, há poucas semanas, um ilustre
recursos naturais e pelo seu, necessário, equilíbrio. articulista de fundo no jornal “Notícias”.
Era o tema da integração da universidade na vida e no quotidiano das pessoas, através da partici- Não é, penso eu, ao fim de 12 anos de deseducacão primária e secundária que poderemos recu-
pação directa na solução dos seus problemas. perar, para o exercício e para a alegria do saber, os massacrados, desmotivados para o pensamento, e
E neste processo todos aprenderíamos, em primeiro lugar, a respeitar a cultura tradicional, não metodicamente brutalizados alunos do sistema nacional de educação.
por demagogia ou oportunismo, mas por esclarecida compreensão da sua profundidade empírica e São de facto raros e excepcionais os que, no fim desse processo, ainda nos chegam voltados para
das suas próprias lógicas cognitivas e sociais; depois pelas pessoas e pela sociedade tradicional: não a alegria de pensar e aprender.
por laços familiares, involuntários, mas com um profundo respeito pelos seus valores éticos e sociais Ambiciosos sim. Chegam-nos muitos. Mas ambiciosos para a graduação tão fácil e tão rápida
e pela inteligencia da sua relação com a natureza. quanto possível, e já agora, para pós-graduações que lhes dêem, mais depressa um título, e sobretudo
Mas a universidade não estava preparada para esta atitude, pelo menos no campo das ciências 208 209 a vantagem material ou política, que parecem ser as motivações que mais os interessam.
exactas e da tecnologia. Desses temos já demais.
Os interlocutores mais interessados e participantes vieram, de facto, do campo das ciências so- Mas não será com esta massa que construiremos uma intelectualidade culturalmente segura e
ciais por melhor lhe perceberem a amplitude social e a profundidade cultural. capaz de perceber a tecnologia como um meio, não como uma mercenária ferramenta.
Daí que o erro foi o de se ter começado por cima, pela universidade, como dito. Não será fabricando tão depressa quanto possível, pequenos e limitadíssimos técnicos, sem a
A compreensão do valor da ciência e das tecnologias não se adquire no fim do processo educativo noção do significado e das implicações da tecnologia, ou tecnocratas sem a noção ética do valor da
e formativo. ciência, que faremos de Moçambique um país melhor.
A ciência e a tecnologia devem ser compreendidas a partir do primeiro ciclo da formação esco- Ultrapassada a era do “príncipe” o que distingue as sociedades modernas, no que elas têm de
lar, como essenciais à cultura, única e indispensável ferramenta para a sobrevivência da sociedade melhor, é o nível cultural geral e não o nível excepcional de alguns dos seus membros.
humana. De facto o exercício da democracia só é possivel com a plena consciência, pela maioria dos cida-
A cultura constrói-se, paulatinamente e através da comunicação que se faz, entre contempo- dãos, das consequências das suas decisões económicas e sociais.
râneos ou através das gerações, por sinais, por testemunhos e pela voz, necessitando, portanto, da Essa consciência constrói-se a partir duma atitude de curiosidade e de responsabilização intelec-
escrita, da imagem e da linguagem. tual cujo despertar é a mais importante das tarefas da escola, de todas as escolas, a todos os níveis.
Para construir as bases da cultura nacional temos que criar e saber utilizar veículos de transmissão Ao professor primário e secundário cabem as maiores das responsabilidades neste processo. Mas
de ideias, que sejam efectivos e generalizados. será que eles têm consciência disso?
O sistema mais generalizado de transmissão de ideias e de estimulação cultural é o sistema formal Será que na sua preparação, e na sua remuneração se tem, ou pode ter, isso em conta?
de educação e, muito particularmente, o sistema de educação primária e secundária. Será que as infra-estruturas escolares que temos são as mais adequadas a um ensino criativo e
Mas é, também esse, o sector proporcionalmente mais débil de recursos humanos e de infra-es- estimulante?
truturas à altura da sua gigantesca tarefa. Todos temos a consciência aguda da dificuldade destas respostas mas o avanço de um país mede-se
pela qualidade do seu sistema educativo, e o avanço científico e tecnológico são-lhe directamente Um lugar destes não é feito de salas alinhadas num corredor, com as crianças arregimentadas
proporcionais. em filas militares, abrindo para recreios desérticos e poeirentos onde os intervalos, entre períodos
Ontem mesmo soubemos, do Senhor Ministro da Educação, o panorama sombrio que, corajo- de sofrimento chamados aulas, são passados a expandir a saudável vitalidade juvenil, reprimida e
samente soube traçar do estado da educação primária e secundária no nosso país. desaproveitada durante 50 minutos.
Não dizemos, portanto, aqui, nada de novo, mas não é, por melhor conhecido, que o tema é A escola deve ser a outra casa da criança.
menos angustiante ou menos relevante para este Seminário. Não pode ser uma fábrica de passar ou loja de vender exames.
A minha contribuição é, portanto, muito modesta mas penso que, nem por isso, menos rele- Peço desculpa por ter trazido a este elevado Seminário os problemas da formação científica e
vante. técnica a nível tão elementar mas, se o fiz, foi na convicção de que são, muitas vezes, os aspectos
Resume-se a lembrar aqui que se quisermos desenvolver em profundidade a cultura científica e a mais evidentes dos problemas que são esquecidos, até porque parecem ser, mais naturalmente, do
capacidade tecnológica de Moçambique, para um futuro mais feliz para todos os moçambicanos, de- consenso geral.
veremos começar por uma revisão profunda das condições de ensino aos níveis primário e secundá- Fi-lo também porque, tendo-me sido pedida uma reflexão sobre “o papel da ciência e da tecno-
rio, incluindo a revisão dos curricula, dos métodos de transmissão do conhecimento, da preparação logia no desenvolvimento comunitário”, me senti obrigado a relacionar esse tema com o da análise
dos professores e das suas condições infra-estruturais. crítica da estratégia cultural nacional para lhe propor uma hipótese alternativa.
No que diz respeito aos curricula, com a introdução de temas e problemas relevantes para a vida De facto num país onde, apesar do enorme sacrifício para os nossos limitados recursos humanos
quotidiana dos estudantes e das suas famílias, sem o envolvimento das quais a acção da escola se e financeiros, não conseguimos, ainda, uma eficiência aceitável do sistema educativo, não me parece
limita, e se perde ou se dilui, assim, uma oportunidade única de promoção social. muito lógico propor alternativas que irão, necessáriamente, drenar ainda mais essas mesmas limita-
Nessas temáticas deveriam incluir-se a introducão aos princípios científicos das tecnologias de 210 211 das capacidades.
produção dos alimentos, da captação, tratamento e distribuição da água, das diversas formas de Parece-me mais lógico e racional que seja a escola a realizar o seu papel, essencial, de promoção
energia e da sua utilização e poupança, da construção, da mecânica elementar, da saúde e da higiene, da ciência e da tecnologia no seio da comunidade, pela integração da família, e dos seus saberes, no
do equilíbrio ambiental, da organização social e das suas regras éticas e jurídicas, estas como prelúdio processo de aprendizagem, contribuindo assim, melhor e de maneira única, para a integração da
à introdução de um módulo de filosofia ao nível secundário. criança na cultura tradicional que, na escola, aprenderá a respeitar e, assim motivada, a desenvolver.
Como métodos a aprofundar e a desenvolver deveriam introduzir-se a experimentação sistemá- Penso que a posição atrás manifestada contém, implícita, uma clara posição em relação ao tema
tica, o recurso aos exemplos e problemas da vida corrente e quotidiana dos alunos e das famílias, a de transferência de tecnologia e de ligação entre investigação e extensão, que também me havia sido
participação no ensino dos membros mais experientes da comunidade nos diversos campos tecnoló- proposto, pelo que me dispenso de o explorar mais em detalhe.
gicos, as visitas de estudo aos locais e centros de trabalho e produção e, acima de tudo, o conhecimen-
to e a dignificação do trabalho de cada membro da comunidade e da integração e interdependência
de cada pessoa no sistema produtivo.
Em relação às infra-estruturas também uma nova atitude conceptual se impõe. Será necessário
que a nossa escola reconheça o valor do trabalho manual e participativo como essencial ao conjunto
das experiências da criança.
Assim o espaço da escola deverá ser concebido como muito mais vasto do que o definido pelos
seus muros e vedações e incluir, conceptualmente, os lugares e os espaços de experiênca em que a
comunidade pode e deve saber integrar as crianças.
FSDFSD
A escola deve ser concebida como um local onde a criança aprende, experimenta, se diverte e DFDSGFDSFGV
percebe o seu lugar na sociedade. DSFSDFDS
UMA CONVERSA
CASA A SILVA – PONTA DO OURO JOSÉ FORJAZ
Entrevista de António Cabrita para a colecção da ânsia poética que cada um de nós transporta. Embora isto aqui possa motivar uma grande
histórias que tecem a História, da EPM-CELP, confusão, e por isso nessa conferência também menciono que é indispensável considerar que não
estamos a fazer arquitectura pela primeira vez, temos noventa mil anos atrás de nós a modificar
Maputo, Abril 2012 o espaço, como espécie, e que, ainda por cima, de alguma maneira, aquilo que se foi aprendendo
pode ser esquecido. Pelo que este legado precisa de ser estudado, revisto, projectado no futuro,
compreendido no passado, etc., e tudo isto são dimensões que hoje me parecem fundamentais e
onde a criatividade e a memória vão a par. Ora, é preciso fazer-se homem para compreender como
estes dois movimentos, o da “desaprendizagem” e o do resguardo da memória, são complementa-
res e não antagónicos…

Como lê o panorama actual da arquitectura internacional?


Hoje há uma tendência favorecida pelos media. A que implementa a arquitectura como cópia,
absoluta, seja lá do que for, não criteriosa, que aplica regras previamente estabelecidas por pura
preguiça mental e comercialismo; o que deriva numa tendência social concomitante, que é a de se
A PAIXÃO DO TANGÍVEL, UMA POÉTICA DO ESPAÇO inventar na arquitectura personalidades heróicas…

216 217 Um estrelato, como no cinema?


I Sim, figuras normalmente autopromovidas, e numa tendência perigosa que age exactamente ao
contrário do que diz o Dieste, na medida em que, segundo ele, nós estamos à procura… não sabemos
O arquitecto José Forjaz, ao dirigir-se aos alunos da Faculdade de Arquitectura do Minho, e ao arrepio o que é o fim, os fins, e vamos à procura, e fazemo-lo perseguindo elementos objectivos que sejam as
do que é normal pensar-se para a arquitectura diz, citando o engenheiro chileno Eládio Dieste, «...não bases para a construção de uma ideia… enquanto essa mistificação só lança poeira no ar porquanto
sabemos qual é o fim mas sabemos aquilo a que o arquitecto deve ser fiel, porque a produtividade e a a fixação mediática numa certa heroicidade em relação àqueles que “inventaram” o que já foi inven-
eficácia não são fins em si mesmo, já a plena realização do homem é.» Isto para lhe perguntar se, em tado – e dadas as condições de pressão, de tempo, e de todas as ordens, políticas, culturais, sociais,
seu entender, é preciso fazer-se primeiro homem – no seu significado mais humanista – para se ser um etc. – resulta em muitos casos em perfeitas manifestações de exibicionismo e alienação que secundam
bom arquitecto? sempre o triunfo do estereótipo; para além de os vermos na perseguição de uma coisa como um fim
Acho que sim. Uma boa arquitectura só pode resultar duma atitude amadurecida, e depois em si mesmo, que é a novidade. Ora, eu acho que a novidade não é um fim, a novidade procede da
cultural, o que pressupõe um sedimento que está para lá dos aspectos formais. Nessa conferência capacidade de aprofundar as perguntas e os problemas e não de demandas da moda. O exemplo mais
menciono um aspecto cada vez mais importante, para mim, que é a “desaprendizagem” – uma chapado é a facilidade com que hoje se inclinam ou se torcem elementos de construção e o que era
imagem com que procuro transmitir a necessidade de voltar a uma certa inocência na atitude cria- direito agora faz-se torto porque é mais atraente para a imagem… enfim, caricaturamos, e o mundo
tiva. Nós para nos superarmos temos de estudar muito, de assimilar e compreender certas coisas foi preparado, rapidamente – o que tem a ver com a explosão da comunicação – para esta deforma-
complexas que nos levarão a romper com algumas ideias adquiridas e uma delas é a da especialida- ção das coisas pela indústria da comunicação social, que por sua vez é refém da novidade – o a que
de, pois temos de manejar uma grande panóplia de ferramentas, por um lado, e de realizações e de torna inimiga da própria arquitectura…
invenções, por outro. E esta habilitação técnica, de alguma maneira, conspurca, marca uma forma
de expressão, ao carregá-la de influências que são extremamente importantes e indispensáveis mas Parece-me que isso começou com a arquitectura-espectáculo de alguns pós-modernistas…Olhando para
que, ao mesmo tempo, não podem ser elas a cristalizar uma atitude criativa e genuína, que brote os edifícios do Graves ou do Boffil, o que me inquieta naquela arquitectura-espectáculo é que mais que
variações sadias com as formas e o vernáculo do passado, surpreendo ali uma dimensão paródica, um políticos, como técnico-materiais e estéticos – é a mais espantosa que a humanidade já viveu, por
género que quase sempre degrada… outro lado nunca nós dispusemos de tantas ferramentas para fazer coisas bem-feitas. Ferramentas
Sim, é uma atitude lúdica mas comercial, sem mais nada de interior, digamos, que a justifique… de ordem científica e ferramentas técnicas para o conseguir… Mas que temos hoje? Ficámos de
tal forma contaminados pela atitude perdulária, e injustificável quanto a mim, dos exibicionistas,
E numa escala absolutamente desproporcionada, frívola. Esta dimensão resulta evidentemente dum que a atitude quase tecnocrática dos agentes culturais mais atentos à responsabilidade, à dimensão
estado das coisas social onde impera o niilismo, destituído já de horizontes políticos ou de metas morais. humana, ao significado social da arquitectura, se mostra hoje permeável ao efeito dessa conta-
Parece-me que é uma arquitectura que se diverte cinicamente com as legítimas ilusões das sociedades… minação. E, hoje em dia, temos de estar muito atentos, porque, por um lado os exibicionistas
Pois, esses particulares períodos que se supõem ultrapassados, mas que no fundo não estão, pois oportunamente aproveitam-se dos chavões técnico-oratórios dos tecnocratas e aplicam-nos nas
continuamos a jogar no tabuleiro do mesmo desperdício, de materiais, de energia, e até de talen- Ordens… – pois, na verdade, quem está interessado em medidas que provoquem mudanças é
tos… tornam-se mais dramáticos hoje porque está perpetuada a sua febre de irresponsabilidade, a muito pouca gente… – por outro lado os tecnocratas (e neste momento não estou a usar este
qual, paradoxalmente, é exigida por um público que pensa que só através disso é possível projectar termo de forma pejorativa que normalmente lhe dou), os únicos para quem a técnica pode ainda
imagens-intensas, imagens-choque… que alimentam as identidades falidas, e por isso hoje em dia estar ao serviço da humanidade, estão quase que diria fascinados pelo sucesso dos outros, e caem
não interessa a muita gente construir num mundo mais equilibrado em termos sociais, materiais, e em posições extremamente ambíguas…
estéticos. A estética, contra o que muitas vezes se julga, é uma dimensão a que se chega, não se parte
dela… e o que é que acontece? Esses edifícios são construídos como enormes objectos autárquicos? Para atalhar certos desastres, não faria sentido a criação de uma espécie de Provedor da Paisagem e do
que se vêem e desfrutam de fora, não são um elo na paisagem de que fazem parte… Urbanismo?
218 219 Em Portugal há um Provedor da Arquitectura… Infelizmente os Provedores são figuras ocas, e
Eu não conheço aqueles edifícios por dentro mas penso nas coisas do epígono Taveira, que não passam não há como os capacitar para a intervenção, por uma razão simples: quem manda no espaço são os
de cenografia, por dentro as coisas são confusas, atabalhoadas… políticos e quem manda nestes são os homens da economia. Se quiser, simplificando, são os ricos.
Cenografia, não é um mau termo… E por vezes a escala excessiva, imperial, desses edifícios aten- Portanto, isto é um mundo até interessante de analisar, por um lado há um mundo onde os ricos
ta contra a qualidade urbana. Esses objectos na cidade não criam uma cidade mais habitável, uma pensam que são eles que organizam, ao nível urbano ao nível das grandes opções de desenvolvimen-
cidade mais humana, a cidade da relação que aproxima as pessoas, enfim tudo aquilo que aprende- to, de projectos, etc., por outro lado, na vida quotidiana e na vida real quem manda são os sem-tecto,
mos à custa de seis mil anos a construir as cidades… A arte, a ciência urbana é uma ciência complexa são os sem-casaco, são eles que dizem a esta cidade como é que ela funciona, na realidade é assim…
pois tem que fazer dialogar o espontâneo da construção desregrada por um grande fluxo da produção
com a possibilidade da regra que é imposta por via política. Este encontro das duas coisas tem tido, Como se viram em dois dias de manifestações populares que tornaram a cidade refém…
ao longo da história, um efeito benéfico para a paisagem da cidade e não se compadece com projectos Pois, porque o que é esta cidade? É este cantinho em que nós estamos, ou é as 800 000 pessoas
centrípetos… que depreciam a continuidade da frase urbana, digamos assim, e construídas à custa de
outras disciplinas que a arquitectura também contém…

Voltando à noção de desperdício. A dimensão da hybris (a desmesura para os gregos, que era normal-
mente castigada) nesta arquitectura-espectáculo não vive só da escala mas também da auto-replicação;
é uma arquitectura autista, em perpétua auto-referência… Não havia necessidade de voltarmos a uma
noção de limite, a uma proporção justa, e a uma espécie de economia-bonsai?
FSDFSD
Estou cem por cento de acordo. Estamos numa fase extremamente contraditória. Se por um DFDSGFDSFGV
lado a escala da arbitrariedade e da alienação – no que se refere aos problemas tanto sociais e DSFSDFDS
que estão a viver em condições deploráveis? E essas vão crescer e estão a crescer mais rapidamente em como canalizar toda aquela água… mas também Alcântara tinha água e agora é um caneiro,
do que estas… também a Baixa de Lisboa corre sobre um rio subterrâneo, mas estas coisas pagam-se… Não se
pense que a Natureza não cobra e não remonta ao que era seu, mas se quisermos ir a um exemplo
Estive hoje a ver numa revista uma foto-reportagem sobre a recente batalha campal que tem tido lu- pecaminoso do exagero pense em Veneza. Um dia, Veneza vai desaparecer, para tristeza, de todos
gar nas periferias do Rio de Janeiro entre a polícia e os meliantes e a interrogar-me se seria inevitável nós, mas Veneza é o produto de uma atitude de se erguer uma cidade artificialmente contra as
chegar-se àquilo. Como diz o espaço é uma categoria política mas o que é facto é que os dirigentes po- condições no terreno…
líticos têm conseguido transformar as cidades e as suas envolventes em não-lugares. No Brasil as coisas
chegaram àquele ponto por causa do desleixo dos políticos e do egoísmo dos ricos, que durante décadas Quanto à beleza de Veneza e à possibilidade da arquitectura agir ou não sobre a percepção e a formação
preferiram ir para casa de helicóptero a distribuir um pouco mais. Agora está-lhes a cair em cima. Mas duma sensibilidade, moldando-a e condicionando-a de uma forma benigna, quero lembrar-lhe que
a informação sobre estes desastres está disponível. E agora houve a brutal derrocada daquele morro, no quem bombardeou o Parténon, em Atenas, foi um marinheiro saído directamente de Veneza. Apontou
Rio de Janeiro, que era previsível. e fê-lo explodir sem o menor remorso…
Pergunto-lhe, é inevitável não aprender, que várias gerações de políticos possam não aprender com o O crime começa no facto de um monumento daqueles servir como paiol. Os gregos estavam
passado? O Forjaz não acredita que haja uma possibilidade da classe política, noutros lugares, aqui, distraídos…
aprender com a história e os exemplos da actualidade?
Tenho pena de dizer que me parece que sim, que é inevitável. Temo que tenha que dizer que não Sim, sim, e o veneziano soube apontar ao paiol, sem a menor dúvida ou escrúpulos. O que nos deixa
acredito. Mas paralelamente há fenómenos interessantes, falemos de Curitiba ou de Bogotá, cidades um pouco abalados na pretensão de que se as pessoas nascerem e viverem rodeadas pela beleza, ou numa
que se fizeram a si próprias, e é verdade que se fizeram pelo vector político, com Presidentes de Câ- 220 221 cidade harmoniosa, se tornam naturalmente melhores. Isto no sentido em que se lia num artigo seu onde
mara iluminados, digamos, gente culta, apoiada por uma classe popular sensível e aberta à cultura, associava a arquitectura a uma espécie de medicina…
e foi possível fazer coisas boas, e as soluções adoptadas até foram muito revolucionárias, baseadas no Isto faz-nos voltar a um tema que aflorámos há uns minutos e que se prende com o saber quem
transporte público e numa reestruturação profunda do tecido urbano, e foram intervenções fortes é que é responsável pela qualidade da arquitectura da cidade. É que não é o arquitecto, mas sim
e de grande consequência na melhoria da vida imediata das pessoas e na aparência dos espaços de quem encomenda as obras e quem as paga, desta ou daquela maneira. É óbvio que os arquitectos
vida urbana… São exemplos magníficos, mas por cada Marquês de Pombal há um milhar de polí- podem e devem influenciar as escolhas que as pessoas fazem, mas as escolhas já vêm carregadas
ticos sem chama, qualidade ou escrúpulos… Depois, quanto à derrocada no morro, as pessoas não dum sentido, do objectivo do cliente, que pode ser institucional ou pessoal, mas as coisas já vêm
pensam que as cidades são construídas no terreno, que este por sua vez tem uma dimensão humana, carregadas, quer pela sua função, a sua intenção social, a sua definição económica, etc. – como
topográfica, características geológicas e sobretudo hidrográficas… Esta coisa da hidrografia é funda- também da ideia que as pessoas trazem consigo sobre o que é a arquitectura e que tipo de coisa
mental, e vou dar um exemplo próximo e chocante sobre o que acontece a uma cidade quando é querem… e isso contamina os projectos, e produz inevitavelmente um efeito estético… para
mal pensado: o que aconteceu na Madeira, que era a crónica de um desastre anunciado. Não se pode mais quando existe hoje uma indústria de divulgação da arte e da arquitectura, e se assiste a uma
construir no leito de um rio que é periodicamente sujeito a cheias colossais sem ter respeito pela força multiplicação de imagens no mundo que deixa a cada um a ilusão, como acontece no futebol e no
da água. E a água às tantas dá o seu coice mortal e tornará a dar, não tenhamos dúvidas, a não ser que cinema, de ser um arquitecto de bancada.
se desvie o rio. E isto é universal…
Tem sentido mais essa pressão agora, que as pessoas têm mais acesso à informação e a revistas de espe-
É o caso de todo aquele bairro construído atrás da Costa do Sol… cialidade?
É o caso de toda a Baixa de Maputo. Todo o mangal de Maputo está a ser destruído, o que Sim, sim, vivemos num mundo de imagens, e isso tem influência directa. A popularização das
terá consequências, mas a isto acresça-se outra realidade negativa, o facto de estar a desaparecer o imagens, que nunca são explicadas no seu conteúdo, acaba por exercer uma maior pressão… toda
Vale do Infulene, entre Maputo e Matola, que se está a aterrar para a construção, sem pensar-se a gente com um pouco mais de dinheiro e de informação acha que percebe de arquitectura… ou
talvez não, o que acontece é que os arquitectos faziam mais parte da cultura da cidade, e agora es- aconteceu estar diante de obras arquitectónicas que só conhecia de livro ou revista e ficar chocado com o
tão mais distantes…a arquitectura tornou-se uma actividade mais esotérica, mais pretensiosa – ou que vê, por contraste, pela falta de escala, pelo ambiente em que se enquadram…?
com maiores pretensões, o que não é a mesma coisa – e a distância foi-se cavando… O que aliás Muitas vezes. Embora também a inversa seja verdadeira, também me acontece percorrer a obra
é também verificável noutras expressões artísticas da sociedade contemporânea, desde a literatura e encontrar nelas qualidade, volumes e valores que a fotografia não dava. É frequente, sobretudo no
à pintura, à escultura… antes dos Expressionistas, digamos assim, o público nunca se manifestava que se refere à escala, porque hoje a fotografia permite maravilhas. A fotografia é cada vez mais uma
face a uma expressão artística, diante de um Rubens, um Veermer ou um Goya, não havia discus- deformação da realidade e a fotografia de arquitectura mais do que qualquer outras e essa deformação
são, toda a gente aderia espontaneamente à qualidade daquela pintura… eventualmente, podia por vezes é a única maneira de dar o espírito da obra mas noutras acrescenta-lhe qualidades que ela
haver quem preferisse Bosch a Memling, ou Van der Weyden a Durer, mas eram diferenças de grau por si não tem. A qualidade da fotografia arquitectónica tem mudado muito, dantes trabalhava-se
e não de atitude. Repare-se: em todos os momentos se procedeu a hierarquizações entre os artistas, com grandes formatos e com lentes que tinham o ângulo da visão humana, agora trabalha-se com
havia canonizações e exclusões, ou espaços periféricos, mas nunca se pôs em dúvida que aquilo lentes que dão mais que o ângulo da visão humana e com o dobro da luminosidade que o olho é
era arte. Ora neste momento, 90% do público, que tem muito mais acesso à cultura do que tinha capaz de captar. E isso modifica as coisas… e pode levar-nos ao engano…
o público de há dois séculos, quando vai a um museu de arte moderna na sua grande maioria ou
se ri ou diz que gosta sem perceber ou tem a coragem da frontalidade e comenta, eu não entendo O Corbusier, numa nota, relata o seguinte “…a seguir, mostrei aos alunos o interior dos bancos ame-
isto, eu não gosto disto. Portanto cavou-se mesmo uma barreira, o que consagrou uma grande ricanos, que são de tal pureza, de tal precisão, de tal conveniência, que estamos perto de os achar belos.
mistificação na expressão artística contemporânea ao mesmo tempo que foi criada a ideia de que Foram projectados por um arquitecto certamente muito talentoso, que parece estar animado pela lógica
a arte é só para alguns entendidos, para iniciados, que é preciso ser-se duma elite intelectual para e por uma grande clareza de espírito. Contudo, na Banket’s Magasine, que publica as suas obras, o
apreciar uma obra de pintura de escultura, ou de literatura... a poesia esotérica, inexplicavelmente 222 223 arquitecto endereçou um convite ao leitor para que o visitasse e a revista publicou então uma fotografia
opaca, hoje em dia pode ser vendida com grande à-vontade porque há um público para tudo, e do interior do seu atelier e nesta foto vê-se um ambiente com baús do renascimento e uma armadura
sobretudo porque se forjou paralelamente uma necessidade de estar à la page, ou um novo tipo de medieval, além duma longa mesa Luís XIII, marchetada, e com pés torneados, além de tapeçarias
vergonha burguesa de estar out… e isso gerou um público consumidor de discursos opacos, esoté- barrocas, que estão no oposto de tudo o que produziu no interior dos bancos…” Diante desta história
ricos, e disseminados em centenas de revistas da especialidade… que nunca explicam as imagens pergunto-me se a natureza contratual a que o arquitecto está obrigado, o espírito de pragmatismo que
no seu conteúdo. tem de envergar, se não o levam a uma duplicidade entre o que crê intimamente para a arquitectura e
o que tem de projectar? Em última instância, o arquitecto não devia estar obrigado a uma espécie de
Claro que, com a multiplicação dos mercados, se assiste hoje a uma grande mistificação no campo da carta ética, que lhe permitisse não estar tão exposto a estas contradições?
arte mas julgo que a confusão se associa a outro elemento também importante: dantes a ligação com a Bom, esta é uma pergunta que não é fácil e não tem uma resposta simples, e eu gostaria de ser
arte era mais iniciática. O artesão que trabalhava na rosácea de pedra da catedral, na Idade Media, tolerante… diria que as atitudes são diversas, eu conheço gente que…
não apenas participava em algo que transcendia o seu ofício, como o sangue, o suor daqueles milhares de
operários, fazia parte da construção da catedral. Hoje temos uma proliferação de imagens mas falta-nos
a experiência, a realidade do fazer, e o conhecimento chega-nos por delegação. Também é assim noutros
domínios, hoje, em Letras, ensinam-se instrumentos de análise mas já não se discute a significação hu-
mana (ou inumana) daquelas obras, nem os alunos as dispõem a ler do princípio ao fim. Mas retoman-
do o fio da conversa: quando disse sobre as imagens não serem explicadas no seu conteúdo não sei porquê
lembrei-me da minha desilusão quando vi os quadros do Magritte à minha frente e lhe vi a pincelada
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desajeitada. Só lhe sobrevive a ideia, que passa melhor nas reproduções, porquanto o seu índice oficinal DFDSGFDSFGV
é menor. Portanto, há obras em que há vantagem serem vistas à distância, numa reprodução. Já lhe DSFSDFDS
Não quer ser moralista… magníficas soluções plásticas para a sua arquitectura… e marcou, para bem e para mal a arquitectura
Exactamente, não quero... Olhe, quando eu era jovem li o Mein Kampf. Aquilo é de uma lógica do século passado. Mas o que tem de mau é monstruoso…
imbatível. Eu não estou é de acordo. Há construções lógicas, que são inatacáveis como sistema, mas que
estão construídas sobre fundações de pensamento absolutamente erradas. A edificação, por seu lado, é Isso leva-me a perguntar, se fosse o Dante, que tipo de inferno é que imaginaria para um arquitecto?
muito bem armada… o que está errado é a base, é o ethos. Com a arquitectura e os arquitectos acontece De antemão, devo esclarecer que não acredito nem no céu nem no inferno… Ademais, os arqui-
a mesma coisa, mas a maneira como o Corbusier coloca o problema é simplista… Claro que há objecti- tectos são uma classe extremamente heterogénea em termos da sua atitude, e na minha observação
vos de grande qualidade e até nobres que são falhados pelas tais contaminações de que falámos há pou- não os consigo classificar em termos de preto e branco, nem mesmo quero criar para eles um qual-
co… Agora, quanto a essa dicotomia do arquitecto, eu penso que é um problema secundário, e não nos quer purgatório. Penso que é suficiente cada um deles arder no fogo brando da sua consciência, que
podemos esquecer que o Corbusier era sobretudo um panfletário, um reducionista, que foi responsável com o tempo provocará os seus danos, caso haja alguma coisa a recriminar… mas, entrando no seu
pela destruição do urbanismo moderno… por isso não sei se lhe cabe muito o direito de julgar os pares. jogo, em relação aos arquitectos sem escrúpulos julgo que o inferno seria não ganharem dinheiro…
O Corbusier com a sua ideia de separação das funções… hoje em dia, ao nível dos dirigentes, ao nível para outros, os muito megalómanos, seria precisamente nunca conseguirem os meios para consegui-
popular e ao nível dos técnicos ainda se fala de zonamento, um conceito que as pessoas aprenderam rem pôr em pé os seus projectos, isto pela eternidade, a maldição de Tântalo… e chega.
sem reflectir e lhes foi incutido pela propaganda, e que separa as coisas de uma forma inorgânica, a zona
industrial para um lado, a residencial para outro, a comercial para bolandas… Aqui, em Moçambique, os engenheiros podem assinar os projectos?
Podem, podem…
Bom, constato que considerará um bem que o Corbusier não tenha executado os seus planos urbanísticos
para Paris, que mudariam absolutamente a face da cidade… 224 225 Talvez isso explique tanto kitsch à solta em muitas moradias das novas avenidas que se projectam nos
Ainda bem que não o deixaram, são planos absolutamente criminosos… mas que continuam a ser bairros novos de Maputo…
publicados com uma certa ausência de crítica, apesar de merecerem ser mostrados em qualquer escola O que explicará isso talvez seja o facto de em 1975, depois da independência, terem ficado
de urbanismo como o exemplo do que não se deve fazer. Mesmo as definições do ponto de vista de 8 arquitectos para o país inteiro, e cinco anos depois, sermos 6… houve uma carência de formação
arquitectura são frouxas, quase sempre as reduções com que o seu racionalismo exultava, herdadas do que se reflecte ainda no tecido da cidade… mesmo depois da criação da Faculdade de Arquitectura.
«less is more» e do Alfred Loos, não levam a nada, são apenas falta de alguma coisa… de imaginação, Mas para além disso não podemos esquecer que vivemos mergulhados num país novo, com uma
por exemplo. E a tendência panfletária dele acabou por levá-lo a abraçar algumas coisas perigosas, ele classe dirigente e política com bastantes lacunas culturais e que chega ao poder desprovida de ima-
engraçava com o fascismo por que este tinha conseguido pôr os comboios em ordem, a andar segundo gens de poder… Chega ao poder e tenta consolidar uma imagem própria e elaborar uma imagem
a tabela… Ora, merda para a tabela…Este levantar a saia para mostrar a perna ao duce dá-nos um física da expansão do seu poder… mas não podemos escapar ao facto de que nós somos também os
pouco a medida do homem… Ele era um oportunista, de um ponto de vista material, agora com um reflexos dos nossos modelos, e o exemplo que eles têm em termos de imagem de poder na cidade é
capacidade espantosa, admirável, de persuasão, que acabava por ludibriar todos os incautos que se lhe ainda o que vem de trás, do poder colonial… e então imitam… e é por isso que na maior parte dos
colocavam em redor… e aproveitou-se do facto de Paris ser naquela altura um centro cultural para se países africanos a imagem que se tem preferido é a da arquitectura neoclássica, com marcas greco-ro-
afirmar de maneiras extremamente discutíveis. Mas sempre achei, eu era miúdo, desconfiava daquilo, manas, ou a de um eclectismo chino-asiático – por que não, quanto a mim tão válido como as refe-
estudei mais, li muito, estive em França, trabalhei lá… e sempre quis questionar as opções dele… por- rências à greco-romanidade –, quando tudo afinal desponta da ausência de uma atitude própria…
que para mim é muito fácil alienar dimensões da realidade para a caracterizar com chavões… porque nós importamos tudo, e não ousámos inventar imagens nossas com um vernáculo próprio,
local, e articulado na dimensão duma profunda poesia espacial com o meio ambiente, e que tenha
Estou a ver que nem lhe salvava a Notre Dame du Haut… em conta as condições climatéricas… Portanto esse kitsch vem de quê? Vem dum completo desfasa-
O Corbusier tinha uma dupla personalidade, a do panfletário, mais exuberante mas menor e até mento de referências, a não ser de referências que são irreprodutíveis, a maior parte delas saturadas
um pouco ridículo, e a de um arquitecto que quando esquecia as ortodoxias era capaz de encontrar de estilo, uma palavra que aprendi a rejeitar porque nos tem conduzido a coisas deploráveis e que
agridem o contexto… Depois, neste aspecto e no marasmo actual, acredito que tem mais influência II
uma telenovela brasileira do que um cabaz de livros de arquitectura, nós continuamos a ter uma
educação que é zero do ponto de vista estético… Existem muitos mitos sobre o artista como criador. Há um pintor chinês que se chama Xi-Tao, que escre-
veu o seguinte: «Pintar é resultado da receptividade da tinta. A tinta abre-se ao papel, o papel abre-se à
Podia experimentar-se criar uma telenovela em que o grande protagonista fosse um arquitecto que fosse mão e a mão abre-se ao coração. E todos eles da mesma forma em que o céu engendra e a terra produz:
dando dicas sobre como ler uma cidade arquitectonicamente e alguns parâmetros básicos para uma tudo é o resultado da receptividade». Perguntava-lhe se para si o acto produtivo tem mais a ver com a
educação do olhar… noção romântica de criação ou com este conceito de receptividade?
Pois, e quem é que comprava a ideia? A Mcel? A Mcel quer é vender telefones e giros… e tem Se eu tivesse que escolher entre as suas hipóteses eu iria menos pela criatividade que pela recepti-
tendência a apoiar programas onde se vote por telefone. Portanto, patrocina sobretudo telenovelas vidade. Julgo que essa formulação está mais próxima do pano de fundo da produção. A criatividade
que promovam valores de consumo… nalguns casos até interessantes, porque tenho visto telenovelas gerou outro vocábulo cheio de equívocos, a inspiração, que para mim continua a ser o acto de meter
interessantes do ponto de vista dos conteúdos sociais, mas em termos de estética são na maior parte o ar nos pulmões. Mas o chinês está mais próximo do essencial do acto produtivo, e produzir é sem-
dos casos deploráveis… E é isto que deforma o gosto. pre uma forma de criação, seja produzir sapatos, milho, poemas ou arquitectura é sempre um acto
criativo, isto é um acto de transformação de qualquer coisa num significado social. É evidente que
Retomemos essa sua reserva em relação ao estilo. O que vejo de “censurável” no estilo é a sua extrema a criatividade aqui também se utiliza no sentido de se fazer qualquer coisa que nunca se viu antes, e
ambivalência. O Michael Graves por exemplo diz que não tem estilo… esta é uma dimensão válida, mas no fundo trata-se de nos conformarmos ao grande modelo que é a
O que é verdade… Natureza e aos seus processos de criação…
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… mas tem um repertório e também na sua obra encontramos invariantes, que acabam por constituir Lembrei-me disto porque ontem vi na televisão uma entrevista com o Júlio Pomar, o pintor, que estava
uma pegada que é do seu pé e não encontramos noutros… Portanto, bem ou mal, como fugir a um estilo? acompanhado do Jorge Palma, que é um músico de rock. E este pôs-se a falar dos “processos de criação”
Não vamos confundir. Há determinados elementos que vão surgindo e que foram sendo selec- e o Pomar, que é trinta anos mais velho, às tantas interpelou o músico e disse-lhe: “Ó Jorge, olha que a
cionados e reutilizados pela sua lógica, e não pela sua expressão estética. Pela sua lógica construtiva, gente não cria, a gente recebe…“, O músico ficou meio desconcertado. E eu achei graça. E ocorrem-me
pela sua lógica funcional e pela sua lógica tecnológica, e que reaparecem em elementos estruturais… agora dois versos de um argentino, o Roberto Juarroz, que me parecem próximos do seu conceito de “de-
saprendizagem”. Diz ele: «desbaptizar as coisas para lhes devolver o seu estado de presença».
Mas tornam-se um repertório… Desbaptizar parece-me interessante. Sobre a criação lembro-me sempre da ambiguidade da lín-
Inevitavelmente, senão não tinham justificação. E são usados por quê? Porque são a melhor so- gua em português que nos permite, quando perguntamos “onde é que está a criação?”, estarmos na
lução para certos problemas que se está a tentar resolver, como, no meu caso, o uso daquelas grelhas, verdade a sondar o local onde fica o galinheiro. Acho que se adapta muito bem…
etc. Agora se me perguntasse, elas não podiam triangulares? Pois podiam, e às vezes são… agora, o
mercado também condiciona o naipe de soluções que possamos oferecer, sobretudo em relação ao Esta gargalhada que me fez dar obriga-me a perguntar-lhe isto: há humor na arquitectura? Como é que
custo… daí que depois se tente combinar os limites que temos com os elementos que nos são mais se arma o humor na arquitectura, através da mistura dos materiais, dos ritmos, do jogo com o espaço?
caros, posto estar comprovada a sua eficácia, como as grelhas… Sim, sim, há exemplos de arquitectura com humor, olhe, ocorre-me um célebre jardim em Itália,
Que acabam por funcionar como marcas de reconhecimento da sua arquitectura… o Jardim Bomarzo do século XVIII, que é muito interessante e se organiza como uma espécie dum
Aceito isso perfeitamente. Talvez para aquele problema houvesse outras maneiras de resolver e enorme parque de monstros, onde as casas parecem monstros…
fazer, mas eu escolho aquela…
Mas são antropomórficas?
Não só… o jardim tem casas-monstros monstruosos, tem casas tortas, grutas, outros tipos de
animalização… E lembro-me também de um portal em Roma que é uma imensa boca… exem- que no caso dele foi uma visão fecundíssima... ora, eu penso que todos nós, antes de desapren-
plos destes creio haver às centenas no mundo… casas que parecem elefantes, e vem-me agora o dermos, no ponto de viragem da maturidade, abraçamos um tipo de visão que se impõe como
Undertweisbart, de que falou há bocado, que aliás é mais pintor que arquitecto mas que tem coisas modelo…
jocosas, mais leves…
O Louis Khan chega a falar em «essências» e o Jean-Luc Godard dizia que a cada momento e para cada
E que pensa do caso de um caso que apesar de arquitecto teve em relação à arquitectura uma manifes- situação só havia um lugar para pôr a câmara, que era inútil multiplicar os pontos de vista…O que
tação artística desconstrutora, e de grande denúncia mas ao lado da arquitectura, como o Matta-Clark, talvez seja o mesmo por outras palavras…
e as suas casas perfuradas? Olhe, diria que talvez essas formulações sejam um “exagero necessário” pois estamos a tentar
Ou os seus buracos habitados…. É um exemplo duma auto-liberdade a que se deram os arquitec- delinear em traços grosseiros, coisas que são complexas. Lembro-me do que, quando eu era estu-
tos e que teve um tempo e um grande significado social; o qual tem que ser visto no tempo. Mesmo dante, me dizia o Barata-Feyo, um escultor que para mim foi a personalidade mais rica da minha
um Gaudi, por exemplo, tem que ser visto no tempo, naquela altura, em que o Expressionismo era formação… eu ia muitas vezes para o atelier dele e assistia-o, e uma vez estive presente em todos
rei, aquela arquitectura não era tão estranha como é hoje… mas essas manifestações diferentes têm a os passos da feitura de uma escultura, vi-o conceber uma escultura, desenvolvê-la, modificá-la, e
sua razão de existir, não penso que sejam generalizáveis mas no seu momento são como lufadas que ele dizia uma coisa interessante, que não estará distante da senda dessas formulações do Godard
provocam uma reacção e obrigam a pensar… e do Khan, dizia ele, “olhe José, nós quando estamos a trabalhar a pedra, uma escultura… nós
comandamos até determinado ponto, depois é a peça quem manda… a peça pede e nós vamos só
A mais violenta crítica que li contra o Gaudi foi do poeta João Cabral de Mello Neto, que contava a um fazendo…”. E no fundo é isto, criamos um jogo de lógicas internas àquela construção ou criação
entrevistador, Imagine você, dizia ele, como são as varandas de uma moradia que ele desenhou numa 228 229 e estas reproduzem-se e passam a ser determinantes para as próximas decisões, e isto nem tem que
marginal, junto ao mar? As varandas sugerem que são ondas – que falta de imaginação, queixava-se o ser um processo consciente, é uma mecânica natural… e um bocadinho em oposição àquela ideia
poeta. Já viu que metáfora tão vazia – nem dá o som do mar – repetia indignado? de que se concebe tudo cristalinamente e que depois é só resolver os problemas. Na minha prática
Tem graça, mas não é esse o género de crítica que se pode aplicar ao Gaudi… esta é a maneira de trabalhar, partir de um caroço de ideia consistente, e depois a polpa vai-se
revestindo a si mesma…
Queria falar consigo sobre o Louis Khan, não só porque o arquitecto Forjaz o cita em vários lugares,
ou alguém o cita para se referir a si e ao seu trabalho, como também porque julgo partilharem alguns No desenho do projecto, vai das parcelas para o todo ou só começa um projecto depois de intuir o todo?
princípios. Ele por exemplo fala muito “do que a construção quer ser”. Alguma vez, face a um lugar Há um vai e vem nesse processo, às vezes chegamos ao fim e recomeça tudo do princípio, o que
sentiu que tipo de construção queria ser ali, sentindo-o de imediato (ao lugar) como receptáculo de às tantas implica uma economia do tempo muito grande…
um modelo?
Não lhe sei responder taxativamente. Provavelmente não, à partida, quero dizer no primeiro
embate com a necessidade de forjar uma ideia, e aqui o não significa nunca, nessa primeira fase, mas
numa fase seguinte quando as principais peças do projecto – quer sociais, quer o local, topológico
e topográfico, quer tecnológicas e económicas – se encaixam, então diria que sim que a evocação
de modelos se impõe… Aliás, voltando ao Khan (e todo o Khan é uma evocação de modelos, e da
arquitectura romana, (que ele nem conhecia muito bem; curiosamente), ele às vezes tece sobre a
arquitectura romana verdadeiros disparates, mas era a sua visão… embora em termos históricos e
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tecnológicos cultivasse algumas confusões, também nunca pretendeu ser um histórico da arqui- DFDSGFDSFGV
tectura, embora estivesse banhado, estivesse cripto-influenciado por uma suposta romanidade, DSFSDFDS
O José Forjaz nos seus últimos textos teóricos pretende restituir à «emoção» um lugar fulcral, mas esta portante realçar aqui é que eu não penso numa arquitectura interior e outra de exterior, como duas
parece-me ser em si um lugar de passagem ou a porta para uma recondução a uma certa ordem prévia coisas autónomas, a expressão exterior da arquitectura que faço é sempre resultado de tentar conse-
ao metabolismo da expressão, como os arquéticos em Jung. Acredita numa memória transpessoal? guir uma espacialidade interior rica, em termos da luz, do conforto na sua relação com o meio que
Acredito profundamente e acredito que isso pode ser traduzido para o que mais correntemente a circunda, que às vezes pode parecer muito densa mas que é sempre uma relação voluntariamente
chamamos de cultura. Nós herdamos uma gramática do olhar e os vínculos a determinadas práticas trabalhada… e portanto, não há uma dicotomia, ou eu pretendo que não haja, e que os edifícios se
que estão muito para além das nossas determinações subjectivas. E por isso convém estarmos bastan- insiram nos contextos… há é contextos difíceis do ponto de vista humano e social.
te conscientes sobre o que herdámos… até para darmos o passo decisivo para a “desaprendizagem”.
Mas estamos condenados a certos patterns, quer queiramos quer não, nem acredito que seja possível Isto pode parecer um disparate, mas não há outro meio de perguntar: há uma “arquitectura nua”?
escapar a eles, o que fazemos muitas vezes é evitar a coisa pela negação, adoptando o oposto, mas Penso que pelo menos a arquitectura devia ser tão nua quanto possível, não no sentido do Loos,
mesmo aí, sem querermos estamos sob influência… mas no de uma adequação que nunca tivesse um grama a mais de ornamento, de decoração. Talvez
algumas “roupagens” tivessem começado como formas de simulação e camuflagem de elementos
A propósito de patterns, uma curiosidade, a rejeição da curva do corpo humano, no mobiliário de Lloyd de protecção e não digo que sejam inválidas mas, às vezes há aposições abusivas ao edifício que não
Wright, não o surpreende? sendo imediatamente funcionais e tecnologicamente necessárias distinguem esse edifício de alguma
Talvez… e acho que o mobiliário do Wright, de alguma maneira, é datável. Embora às vezes maneira, quando isso, hoje em dia, se pode fazer até de maneiras mais justificáveis, através da cor, da
resulte de uma estilística interessante é na maior parte dos casos desconfortável… ele tem várias fases, textura, dos cambiantes de iluminação faz-se através da escolha de materiais, faz-se de muitas ma-
o mobiliário que desenhou para os escritórios da Johnson Wax é uma coisa, os que fez para o seu neiras… Não se trata nem de despir a arquitectura nem de vesti-la… Vesti-la como? Vemos dezenas
próprio atelier é outra. Mas eu não lhe atribuiria os dotes de um verdadeiro designer de mobiliário 230 231 de passagens de modelos na televisão sem que ninguém vá a seguir vestir aquelas roupas, dado que
porque ele desenha mobílias arquitectónicas, se assim quisermos chamar, mas a mobília não era a moda em geral não se rege pelo conforto, a utilidade, e a duração… só tem a ver com a podero-
definitivamente aquilo que o preocupava, daí que talvez manifestasse menos sensibilidade para os síssima influência da sociedade de consumo… e do que certos nichos de mercado, sempre na mira de
assentos… acho que ele não ficaria na História como desenhador de móveis… novidades, pedem… Eu gostava que a arquitectura não se encaixasse nestes moldes…

É verificável na sua arquitectura uma relação tensa entre os domínios público-privados, isto é, os ex- Li numa revista italiana um artigo seu em que fala da distância que hoje separa “cultura e manualida-
teriores dos seus edifícios reflectem as tensões públicas, sociais (o problema da violência e concomitante de”, o que pode degenerar num conflito ou impasse, que só se diluem quando a maturidade da invenção
preocupação com a segurança) ou climáticas, ao passo que os interiores reflecte a circunstância indivi- se associa à natureza do gesto. Se bem entendi, então, para si, desenhar não é um exactamente um saber
dual e a sua criatividade… Eu entro em casas que desenhou e não adivinhava cá de fora a beleza, o de antemão que se tenha do mundo e se plasma numa representação, e o processo de fuga duma iden-
equilíbrio, os jogos de luz, e a riqueza arquitectónica das casas por dentro. Como é que lhe surgiu esta tificação para que algo apareça. Ou seja um bom desenho não é o que representa mas o que apresenta?
dicotomia? Estou muito enganado?
Penso que em 90% dos casos é circunstancial. E vou dar-lhe o exemplo do oposto daquilo a que Não, é essa a ideia. Nem preciso de acrescentar nada.
é comum associarem-me: esta casa transparente que desenhei na Ponta do Ouro. Neste caso, o dono
da obra assumiu os riscos da transparência e eu pude trabalhar com esse à-vontade… Um à-vontade Então gostava que me falasse da importância do desenho no trabalho de arquitectura. Que tipo de
que eu gostava que acontecesse muito mais. Mas não vale a pena estar a desenhar casas similares parâmetros ou de sensibilidade tem ainda o desenho manual que o computador não possa dar?
na cidade para depois a encher de grades a toda a volta que lhe tiram a transparência e deturpam o O desenho, apesar de tudo, é ainda uma expressão muito mais rápida. Mas provavelmente o
próprio sentido dos volumes, etc. Portanto, prefiro defender-me e apostar num micro-envolvimento desenho está condenado porque o computador tem de facto virtualidades que num curto prazo
e um ambiente interior tão aberto e rico quanto possível, do que estar a falsificar uma relação que é compensarão o que ainda não pode dar. Já há programas de desenho que conseguem a mesma
impossível, pois não há como iludir que vivemos numa cidade perigosa… Mas o que me parece im- expressividade que a obtida pelo lápis no papel e há processos no desenho automático que nos pro-
porcionam inclusive um sentido da espacialidade, e uma relação de fisicalidade similar, pois tem crianças, por exemplo, antes de serem estragadas, cultural e esteticamente, tem aquela frescura,
de aplicar-se uma certa pressão com a mão, com a caneta, no computador, na placa do desenho, ou porque o miúdo deixa a mão fazer, antes de pensar se aquela representação entra num cânone
até do rato no ecrã… contudo, essas ferramentas não estão ainda a ser usados, pelo menos da mes- que toda a gente reconhece – aquilo que ele vê, que ele sente, é o que a mão faz… Subsiste
ma maneira que era usado o desenho no papel. Havia uma anedota que corria nos corredores da realmente um abismo, uma enorme diferença entre a «habilidade manual» e a «cultura manual»,
Escola de Belas Artes do Porto, sobre um professor estava sempre a resmungar “lá vêm vocês com mas cultivar esta última obriga a exercício, não é inato, não se nasce com isso…mesmo o Mo-
esses desenhos mal-feitos à Corbusier!”, e realmente o Corbusier também desenhava mal se com- zart não nasceu a saber compor, o pai era intérprete e compositor e obrigou-o a uma grande
pararmos com o Rembrandt, desenhava era muito expressivamente. Ele tinha uma enorme capaci- disciplina… martelou-o seriamente. De qualquer maneira, a mão pensa quando já não precisa
dade para fazer desenhos expressivos, sem serem desenhos reprodutivos. Bom, e há certas fases do de controlo muscular, e tudo flui…
trabalho em que é muito mais rápido usar um lápis e um bloco do que recorrer ao computador. E
o computador tem uma coisa que é terrível e contra a qual luto todos os dias no escritório, onde Acha que hoje a arquitectura ainda conserva alguma coisa das guildas, dos ateliers renascentistas,
digo e repito para não usarmos o computador em todas as fases do projecto… porque este nos dá onde os discípulos cresciam como seres humanos ao mesmo tempo que se apoderavam das técnicas da
a ilusão prematura de que o projecto está acabado, quando a arquitectura é um work in progress… disciplina?
hoje em dia a juventude, que tem uma relação muitíssimo maior com o computador, acusa às ve- Acho que sim, bastante até… Não da mesma maneira, está claro, mas algo se mantém… embora
zes essa inflexibilidade; como o computador é uma ferramenta rigorosa e até extremamente fácil de cada vez mais, equivocamente, os arquitectos pensem que podem arrancar por si próprios sem o
manusear, eles ficam convencidos que aquilo que medem com o computador é aquilo que irá ser contacto com a experiência, mas o exercício “projectual” e depois, não esqueçamos, a outra parte
observado até à fase final do projecto … e isto é muito perigoso… porque quanto mais perfeito e igualmente importante que é o exercício construtivo, são das actividades mais complexas que se
exactos queiram ser à partida mais condicionam o fluir de ideias, a liberdade do processo criativo, 232 233 podem ter, em termos humanos, as relações entre as pessoas não são fáceis de gerir, com o cliente, o
o reforço de ideias mais elaboradas nos passos posteriores, pois tudo parece estar já previamente empreiteiro, entre os técnicos, ou tratar a legalidade dos processos…
ordenado. É um perigo muito grande…
Tudo isso é preciso aprender, estando enquadrado num escritório…
Esse é o problema da natureza dos meios, que acabam por influenciar … É preciso aprender e isto não se aprende na faculdade. O aluno, na faculdade, para começar
O meio é muito poderoso. Tradicionalmente tínhamos um rolo de papel vegetal na mão, a aprender alguma coisa séria de arquitectura, da construção, destes aspectos todos, teria de andar
aquele papel manteiga, e íamos desenhando e deitando fora, desenhando e deitando fora, e para aí dez anos na faculdade. Por isso a estupidez do Tratado de Bolonha não tem qualificação. Em
ninguém tinha qualquer hesitação em fazer isto. Agora a um primeiro esquisso segue-se uma Itália as faculdades já rejeitaram a patetice; ou seja, no momento em que Moçambique cegamente
segunda versão, mas guarda-se a primeira, e depois a memória fica cheia de coisas, e entretanto embarca nas imposições de Bolonha, os que inventaram a coisa romperam com ela e reconheceram
perdemos o rumo das coisas e já não se sabe qual é a última versão, e depois tem-se muito medo o erro. E é gravíssimo…
de mudar de versão, e isto acontece sistematicamente. Eu tenho essa “batalha” aqui no escritório
sistematicamente.

O Leonardo falava da “mão pensante”. Sente isso também com o desenho, quando se solta?
Absolutamente. Mas quando falo de “manualidade”, abrem-se duas dimensões e há que dis-
tingui-las. Você pode ser destro manualmente e capaz de consertar um relógio e de meter ordem
no universo daquelas peças mínimas e não ser capaz de desenhar uma árvore que exprima vida
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– não passar de um executor. Por outro lado, existe também o equívoco de julgar-se que uma DFDSGFDSFGV
pessoa que desenha muito é um criativo, ou é um criador, são coisas diferentes. O desenho das DSFSDFDS
ATENÇÃO
OUTRA PARTE II ?

II acompanhar os alugueres das unidades residenciais com sistemas de apoio financeiro, crédito, etc.,
às famílias que não têm condições para pagar os custos de manutenção dos prédios, sendo por isso
Em termos de espaço físico e arquitectónico como descreveria o país na altura da independência. Era um deplorável o seu estado.
urbanismo mais ou menos integrado?
Definitivamente não. O urbanismo colonial revelava a natureza dualista da sociedade colonial. As aldeias comunais foram uma experiência que tinha por grande meta o desenvolvimento mais equi-
Uma cidade organizada, e por vezes bem organizada, para os brancos e outros “assimilados”, e um librado do país. Como pessoa que esteve ligada ao planeamento físico e tendo visto de perto esta expe-
território urbano caótico ocupado pelos negros e outros descriminados. riência, pensa que houve a nível da construção de uma identidade nacional, alguns benefícios nesta
Naturalmente que as fronteiras se confundiam por vezes e que, por vezes, houve arremedos de experiência.
preocupação com os lúmpen, os indígenas e os menos classificáveis como população urbana. Mas Não. Pelo contrário penso até que houve uma erosão dessa identidade em construção, devido
isso foram momentos fugazes e incertos, produto de estratégias demonstrativas de uma preocupação à incapacidade de compreensão, por parte dos dirigentes locais, da estratégia e processos de estabe-
inexistente para com as condições de vida no caniço ou muito simplesmente para melhor garantir lecimento de altos níveis de aceitação, por parte da população rural, dos objectivos e das intenções
um controle policial desses aglomerados de pessoas. da “comunalização” do campo. Mais uma vez se embarcou numa ideia política, que poderia ser
Depois disto haveria muito para dizer e volumes para escrever mas é tudo irrelevante comparado positiva, sem se medirem as exigências logísticas e as necessidades técnicas e financeiras envolvidas
com a marca indelével que a cidade e o espírito colonial deixaram nas nossas cidades. na sua materialização.
Em termos de arquitectura houve uma grande riqueza de propostas e uma espécie de libertação As consequências foram desastrosas e, conjuntamente com a “Operação Produção”, muito con-
dos arquitectos que, em Portugal, estavam muito limitados pelo controle cultural que o regime tribuíram para o agravamento da guerra civil cujas consequências ainda hoje estamos a pagar so-
colonial-fascista impunha. A sociedade cliente aqui era multicultural e mais liberta das amarras tra- 234 235 bretudo pelo reforço que trouxe a atitudes regionalistas e potencialmente separatistas que se podem
dicionalistas da sociedade portuguesa da época. agora identificar no país.
Isso reflecte-se claramente na arquitectura pré-independência de raiz racionalista e modernista
sem preocupações de localismos regionais. A guerra civil veio cavar um fosso grande entre a cidade capital e o resto do país, bem como um cresci-
mento das periferias das grandes cidades com efeitos sociais graves. Acha que o país começa a recuperar
As nacionalizações do parque imobiliário tiveram repercussões importantes no tecido social das cidades. dos seus efeitos, ou os seus efeitos serão porventura irremediáveis?
Hoje, 35 anos volvidos sobre a independência e depois da re-privatização do mesmo que balanço faz A Guerra civil foi realmente a pior forma de resolver o problema da transição para um regime de-
desta política? mocrático. Não discuto aqui se haveria outra forma de estabelecer um diálogo, ou mesmo se haveria
Positiva. Embora a nacionalização do parque imobiliário do país tenha sido desfasada em forças organizadas, no país, com quem discutir. Esse é outro tema.
relação ao aumento da capacidade financeira das famílias que dela se aproveitaram houve, apesar O afluxo à cidade foi realmente estimulado pela guerra e resultou no agravamento de um fenó-
de tudo, cerca de 300.000 pessoas que acederam a melhores condições de habitação. Por outro meno universal irreversível e, quanto a mim desejável, de urbanização que todos os países atravessam.
lado, foi um dos momentos mais concretos e tangíveis da mudança de mentalidade e de quadro O mundo está hoje urbanizado, isto é, vive nas cidades mais do que 50% da população mundial.
político, numa altura em que ninguém sabia ao certo o que significava a revolução moçambicana Os países com mais altos rendimentos per capita são também os países com maior parte da sua po-
ou o socialismo. pulação a viver nas cidades. As cidades contribuem com a maior parte das contribuições fiscais e dão
Houve sim grandes erros logísticos e técnicos, falhanços estratégicos, corrupção generalizada e uma contribuição muito mais alta do que o campo para o produto nacional bruto. Naturalmente
incompetência. Houve grandes injustiças em relação a muitas famílias cujo único investimento teria que, no nosso caso, isto não minimiza a importância do campo, ou da agricultura, para a riqueza da
sido o prédio de rendimento ou a casa que deixaram para trás. Houve situações dramáticas e grandes nação, nem nega o facto de que é no campo que vive a maior parte da população moçambicana e de
“aproveitanços” por parte de quem tinha, e tem, o poder na mão. Naturalmente que hoje, dentro de que há, portanto, que lhe dar maior importância na distribuição do orçamento nacional, o que não
um sistema de capitalismo selvagem, tal medida já não faria sentido e, entretanto, nada se fez para acontece no presente.
Mas o problema que interessa considerar aqui é o da capacidade de administrar as nossas cidades, Façamos agora um flashback que o apanhe em Nova Iorque, onde estava a fazer o mestrado. Como
que é, ainda, muito baixa e muito condicionada à opinião das classes mais vocais. é que de Nova Iorque, de repente, se muda para a Suazilândia. Porquê a Suazi e como apareceu essa
O que está a acontecer é que se condiciona a administração técnica dos diversos sectores da vida oportunidade?
urbana à fidelidade política, ou mesmo pessoal, criando-se uma descontinuidade na formação e na Da maneira mais aleatória possível. Estava em Nova Iorque e recebi uma chamada do Pancho
acumulação de experiência dos quadros que, quando começam a compreender os problemas que Guedes, que me diz, o Flip Green, vai ter um passaporte inglês e vai finalmente poder sair e ver
devem resolver, são afastados para dar lugar a novos elementos da cor política e da confiança da nova outras coisas e passear pelo mundo, ao fim de oito anos de reclusão, e para isso dispõe-se a passar
administração, mas sem experiência nem conhecimento dos problemas. o escritório… Era uma boa ideia para ti, há algum trabalho, fala com ele, ele passa-te o escritório
Esta doença infantil das democracias emergentes sofre ainda, no nosso caso do agravamento que com facilidades de pagamento… E eu pensei 32 segundos, porque realmente eu não queria ficar em
lhe vem da falta de recursos financeiros que caracteriza uma economia subdesenvolvida. Nova Iorque, não queria ir para Portugal não me estava a ver no ambiente sufocante de Lourenço
Marques, e aceitei. Isto foi em Janeiro ou Fevereiro, em Maio, Junho acabei o meu curso, e vim.
A liberalização da economia trouxe uma outra explosão da construção ao nível das cidades, mas os Paguei os cinco mil rands que ele queria por me passar o escritório, na altura era algum dinheiro, e
jovens por exemplo têm muito pouco acesso à habitação. Que papel podia cumprir o estado neste item? aterrei, rigorosamente sem cheta…
O problema da habitação é apenas uma das manifestações do baixo nível económico do país.
Não há soluções miraculosas que o resolvam enquanto outros aspectos, também vitais, da vida do Mas herdou alguns projectos, não?
povo não forem também resolvidos. Um vício de pensamento muito comum é pensar-se que as Herdei três projectos, se não me engano, a supervisão dumas obras que estavam por acabar, o Flip
soluções para o problema da habitação são de ordem técnica. De facto as reduções de custo possíveis Green ficou comigo mais uma semana e deu-me alguns contactos. Felizmente o escritório e a casa
através do projecto são pouco significativas. 236 237 eram no mesmo sítio, pelo que não tinha essa despesa adicional, pagava uma renda baixa e era um
Os factores determinantes da solução do problema da habitação são o planeamento democrático sítio agradável… Portanto, tinha poucas despesas à partida, alguns honorários para receber, e fui-me
e espacialmente correcto das cidades, o controle do valor do terreno e uma política de crédito ade- aguentando. Nós éramos três arquitectos nessa altura na Suazi, eu, um inglês e um sul-africano. Um
quada ao perfil económico das famílias. amigo polaco, muito interessante, arranjou-me um primeiro cliente, quase milagrosamente consegui
Naturalmente que estes factores só podem resolver-se num quadro político onde os interesses um empréstimo do banco para me aguentar, as condições do crédito então eram favoráveis, não eram
especulativos do mercado imobiliário estejam controlados, isto é, num regime distante dos interesses a barbárie que hoje se pratica nesta terra (o gerente do banco, sabendo que eu era arquitecto decidiu
eminentemente capitalistas que são presentemente dominantes no nosso ambiente político. confiar em mim e disse-me, paga quando puder), e eu lá me fui aguentando, e no segundo ano co-
mecei a ter trabalho regular. O primeiro trabalho foi dar um apoio à escola de Waterford, que tinha
Que pede o José Forjaz à arquitectura? E o que lhe traz ela? sido desenhada pelo Pancho, ele era amigo do director, depois fiquei eu também amigo do director,
Eu só peço à arquitectura que continue a ser o centro e o objecto dos meus interesses intelec- era um meio realmente muito pequeno, a Suazi tinha menos de um milhão de habitantes naquela
tuais e emocionais (mas isso é apenas o corolário da exigência que, todos os dias, faço a mim mes-
mo: a de continuar a ter um centro de interesses intelectuais e emocionais). Mas, se a arquitectura
é esse centro, as periferias não são menos importantes, pois o que a arquitectura me obriga é a
isso mesmo: a uma visão periférica e simultaneamente centrípeta do mundo e da minha topologia
emocional.
O que se passa é que a minha actividade é eminentemente criativa ao mesmo tempo que é, indis-
pensavelmente, racional e reflexiva, relacional e organizativa. Nesse sentido ela completa-se no que
FSDFSD
exige e pelas pagas que dá. É isso que nos vicia quando escolhemos o ofício de inventar: este comércio DFDSGFDSFGV
entre razões e emoções… este adiar da vontade de morrer. DSFSDFDS
altura e a pessoa sem muito esforço ficava rapidamente integrada. Depois, ganhei o concurso para a aos ideais, mais que um político era um ideólogo… ele foi o inventor deste país, e tinha um espírito
Câmara Municipal de Mbabane e a seguir surgiu-me aquele que terá sido o trabalho mais significa- independentíssimo em relação aos marxismos-leninismos mais básicos, sabia também ter o pragma-
tivo: projectar o campus universitário da UBLS em Kwaluseni. Enfim… tismo da política mas privilegiava uma sintonia com as características étnicas e culturais do país, isso
não tenho dúvidas nenhumas. Tinha também umas fraquezas um pouco indefensáveis, a amizade
Correu bem. com o Kim Il Sung era uma coisa difícil de perceber. Uma vez deixou-me em embaraços na Coreia
Correu muito bem. Só que entretanto dá-se o 25 de Abril. E dia 26 ou 28 encontro-me na Áfri- do Norte porque o “ditadorzeco” quis-nos mostrar o palácio dele, que era uma merda, uma coisa
ca do Sul com o Luís que, vinha de Dar es Salaam, e me diz, “então como é que é? agora é preciso arquitectonicamente atroz, do mais monhé e dubai que se possa imaginar, com o mármore a imitar
voltar!”, e eu respondo, “diz-me tu, quando é que queres que eu vá!”. E um dos pretextos da minha plástico, que é uma coisa inconcebível, e o cabedal a imitar napa, tudo ao contrário, e o Kim Il Sung
volta foi ajudar a fazer o Orçamento de Estado para o ano seguinte. A partir de Agosto comecei a durante a visita pergunta a opinião ao Samora que me endereça a pergunta, e eu tive de sussurrar,
ser muito solicitado para que voltasse e ainda em 74 peguei em mulher e filho e mudei-me para cá, depois falo consigo. E mais tarde o Samora ria-se muito e comentava, não me digas que era assim tão
ficando então integrado no Gabinete de Estudos no Ministério das Obras Públicas. E a primeira medonho!? Não era fácil nas circunstância encontrar um homem com uma personalidade semelhan-
vez que encontrei o Presidente Samora foi quando fiz o projecto da Embaixada de Moçambique na te e uma tão grande capacidade de agregar e de inventar o país…
Tanzânia… que era um projecto que ele acalentava desde o dia 26 de Abril, pois, disse-me, “nós
vamos voltar e a Tanzânia tem de ser paga, pela dívida de gratidão que a gente tem com eles, preci- Conte-nos um pouco da sua experiência como Secretário de Estado do Planeamento e Território…
samos do projecto duma embaixada…”, elaborei o projecto rapidamente e fui à Tanzânia com uma Quanto tempo exerceu esse cargo?
maquete, apresentar a coisa também ao Presidente Julius Nyerere… Três anos.
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O Presidente Samora é uma figura controversa que provoca fascínios e rejeições. Como foram as suas Depois demitiu-se, disseram-me que com um manifesto.
relações com ele? Não. Há sobre essa história muita confusão, não foi assim… Trabalhava comigo uma das
Foram óptimas. Ele tinha um respeito e uma grande amizade por mim. Volta e meia convidava- pessoas mais inteligentes que conheci e uma das pessoas fundamentais da minha vida, o Patrice
-me para almoçar, ele mandava-me chamar para conversarmos, e gostava que eu o acompanhasse em Rauszer, levaram-no ao meu gabinete, tive com ele uma conversa inicial de meia hora e ficámos
certos actos políticos, o que nem sempre me agradava…Ele chamava-me para os comícios, para isto amigos para a vida toda. Ele era arquitecto, refractário ao exército francês, tinha lutado contra a
e para aquilo, às vezes até era uma coisa embaraçosa, porque havia ministros e outros políticos que guerra colonial, tinha um mestrado em urbanismo, era muito interessante, muito culto, e uma
pensavam que eu queria tirar vantagens e a última coisa que eu queria na vida era poder. Eu sempre pessoa excepcional. Trabalhou comigo desde o princípio na concepção duma filosofia do pla-
ofereci a minha disponibilidade a este país como técnico, não queria ter nada a ver com manobras neamento, pois ele havia trabalhado na Argélia, depois da independência, como conselheiro de
políticas. Mas o Samora era um homem brilhante, duma grande perspicácia psicológica, ele via a Estado Argelino para a mesma área, e era um homem de esquerda, não marxista, nem PCF, duma
pessoa e lia-lhe todas as virtudes e defeitos com uma grande agudeza, com uma fulgurante capacida- esquerda independente e sadia… e ajudou-me muito. E houve um momento em que era inevitável
de de a perceber, às vezes enganava-se… e tratou algumas pessoas um bocado mal mas depois pedia uma reacção à asfixia a que o planeamento económico de linha pró-soviético (aquela gente tinha
desculpa, não tinha pejo em pedir desculpa. E tinha um grande calor humano… metido a cartilha soviética na cabeça e não se apercebia da desadequação dos modelos ao lugar e
às condições humanas) nos conduzia. Era absolutamente extraordinário o que se estava a passar. E
E era um homem que escutava? nós lá na Assembleia Popular tínhamos de intervir e tentávamos introduzir alguma racionalidade
Quando queria sim, sabia escutar. E fazia-se anunciar: agora escuto. Não era um homem para e algumas regras no planeamento que ordenava o país, em termos espaciais, e o Patrice apresentou
ser interpelado, tínhamos que o conhecer para na altura certa sugerirmos, e se isto ou aqueloutro, um documento. O documento tinha sido gizado comigo mas ele fora a cabeça, e o Documento
então ele escutava. E nunca o ouvi recusar razão quando esta era arguta e bem firmada… Em termos chamava-se, se não me engano, Plano e Projecto de Planeamento Físico, e eu como Secretário do
pessoais eu tenho um grande afecto por ele, porque ele na altura parecia-me uma pessoa dedicada Estado imprimi e mandei circular pela Assembleia da Popular. Houve pessoas que me deram os
parabéns e outras que reagiram “você está a brincar!”. E claro que os «apparachiqui», os homens III
mais alinhados com um marxismo tacanhamente ortodoxo, reagiram, porque aquilo era um ata-
que frontal à situação. Nós na altura atravessávamos um período complicado, marcado pelo PPI, Eu não sei como é na Arquitectura, mas nas Ciências Humanas, onde dou aulas, os alunos chegam
Plano Perspectivo Indicativo, que era uma construção teórica e impossível… que os pequenos tec- absolutamente desprovidos…Os meus alunos chegam muitas vezes como se tivessem a quarta classe.
nocratas (a maioria deles está hoje no Banco Mundial) procuravam executar sem discussão, e que Pois digo-lhe, tenho desenhos de acesso à Faculdade de Arquitectura que a minha neta com
se regia não por procurar activar uma dinâmica que tivesse em conta os potenciais existentes mas 5 anos faria melhor. Digo-o com mágoa. Não estão providos de qualquer instrumento…
os objectivos, por exemplo, agora é preciso fazer uma fábrica de têxteis na Zambézia, e não impor-
tava se em tal província havia matéria-prima, mão-de-obra qualificada, técnicos, etc. A experiência E preocupam-se depois em melhorar?
redundou em alguns disparatados elefantes brancos e numa sangria de meios e fundos. Partia-se Quem? Eles, ou os professores… (risos) Esse é que é o problema. Estamos a fazer uma Faculdade
do princípio de que, definidos os objectivos, tudo se conformaria à sua mágica materialização… o de Arquitectura com docentes que acabaram de sair da Faculdade. Quando digo acabaram, pode
que talvez fosse possível onde houvesse dinheiro, recursos e saber, o que não era o caso de Moçam- ser há cinco anos, uma pessoa com cinco anos de não-prática profissional, e estamos a falar de um
bique. O nosso documento atacava este processo e fomos duramente criticados, mas o que é certo país onde há pouquíssimos centros de formação pós-escolar e na maioria dos casos são 100 por
é que ainda hoje, infelizmente, aquele documento mantém a sua actualidade… cento comerciais… Isto é uma condicionante histórica, nem estou a fazer uma crítica, estou apenas
E saí. Mas nunca fui atingido directamente. Pouco depois solicitaram-me para dirigir o processo a constatar: é assim e vai continuar assim durante muitos anos. Repare, na actividade “projectual”,
da construção duma ideia para a Faculdade de Arquitectura e eventualmente tomar conta dela como 50 por cento da sua afinação é feita por erro, por tentativa e erro, e os erros fazem-se no tempo, no
director, ao que aderi com gosto. Paralelamente a isto, desenhava-se no ar, na Assembleia da Repú- espaço e no tempo, e não se podem fazer os erros suficientes para se começar a perceber alguma coisa
blica, a hipótese de se levar a cabo uma segunda Operação Produção, sem sequer corrigir os erros da 240 241 de arquitectura em menos de 10 ou 15 anos. Faz-se o exercício, mas levá-lo todo até ao fim e levá-lo
primeira. E quando no nosso grupo de trabalho quiseram silenciar os meus protestos contra um tal bem é extremamente complexo, é uma das profissões mais ingratas, porque nós somos responsáveis
disparate, e me mandaram calar, então isso foi a machadada final e retirei-me, resignei como depu- por tudo na obra, quer o sejamos ou não, do ponto de vista legal, na prática somos responsáveis
tado, pois não me mandam calar duas vezes se eu tenho razão. Entretanto, o projecto da Faculdade por tudo na obra, sobretudo em Moçambique, onde não há consultoria técnica, ou a que é há é tão
ia germinando e os italianos lançaram-me o convite, “Vem para Itália, a gente quer-te lá a ensinar insignificante e… não quero dizer atrasada, mas ineficaz… pois o arquitecto está sozinho: desde o
Planeamento no Terceiro Mundo”, e acabei por lá passar uns anos, distanciado já da nata política, a projecto à obra.
estudar e a trabalhar no aprimorar o projecto da Faculdade de Arquitectura…
Vou-lhe ler uma frase terrorista do Undertweizer, diz ele: «Só quando o arquitecto, pedreiro e ocupante
A função de Secretário de Estado, tecnicamente, deu-lhe ensinamentos para a sua actividade futura? são uma unidade, uma e a mesma pessoa, é que podemos falar de arquitectura. O resto não é a arqui-
Aquilo que aprendi foi que as decisões sobre o espaço são essencialmente de carácter político. O tectura, mas sim a encarnação física de um acto criminoso…»
controle do espaço, da sua exploração ou da organização, acontece acima duma lógica tecnológica e Bom, a frase vale o que vale… mas no nosso caso o problema estende-se a qualquer universida-
rege-se por interesses – sejam legítimos, como eram naquela altura, sejam ilegítimos como acontece de… mas eu nunca acreditei muito na universidade como local de formação das pessoas, acho mais
amiúde hoje – económico-financeiros, às vezes ao serviço da consolidação de poderes e interesses que as pessoas são formadas umas pelas outras, através de encontros… e é isso que a universidade
pessoais privados. deve ser, e ainda é, e esses encontros devem ser estimulados, não para discutir as pernas da prima mas
para discutir os problemas sociais e as novas emergências intelectivas da sociedade em que vive. Da
minha observação de vinte e tal anos, quase trinta de contacto com a nossa universidade, eu não vi
esse estímulo, até na maneira como os espaços entre as salas de aula são tratados, cheiram a urina, não
têm luz, são abandonados, não têm bebedouros, não têm sanitários para o estudante… Para além
do ambiente que se está a criar, pidesco, de controlo de tudo o que faz, dos passos que se dá, muito
mascarado mas que existe, e que também não autoriza que o estudante desenvolva e teça opiniões tempo para estar à espera deles… isto é muito grave. Embora também pense que é natural, é uma
com desassombro… Mas também não há uma intelectualidade neste momento em Moçambique, fase, a História vai apagar muitas destas coisas…e ficará na essência muito mais rarefeita, e penso
foi rasurada… que intelectualmente se vão acumulando experiências, realidades e realizações que irão depois servir
de referência. Agora, eu lembro-me de que quando saí da Faculdade tinha a noção clara de que
A muito nos levaria esta senda mas é melhor retomarmos a arquitectura. No seu “texto de reflexão tinha muito que aprender, apesar de que inclusive, já antes de ter entrado para a faculdade ter tido
dos 70 anos”, escreve: “temos de voltar a uma arquitectura que não seja uma performing art”, o que a tarimba de participar no desenho de projectos e continuei a fazê-lo, e só um bom bocado depois
implicaria uma atitude que hoje se encontra pouco entre os jovens estudantes que se prende com a hu- é que comecei a assiná-los, cheio de dúvidas e medos de errar e de desiludir os meus mestres e, mais
mildade… Não existe mais, a humildade? tarde, tive de me aventurar…
Não, não existe.
Quer dizer, só se aventurou a ter opinião depois de alguns anos de prática?
Donde lhes chega uma tão desproporcionada confiança nas suas aptidões? De alguns bons anos, e com uma atitude que eu não vejo hoje e que reclamo para mim próprio
É uma consequência directa da falta de cultura. que é a de uma profunda dedicação ao estudo. A estudar técnica, a estudar a filosofia da arquitectura
e os processos da arquitectura…Eu estava muito isolado, eu estive sempre muito isolado. Antes de vir
Quando eu era um jovem jornalista, em Lisboa, entrar no «Expresso» era como ser ejectado para o para Moçambique estava na Suazilândia, que era um isolamento ainda maior. Com uma diferença,
Olimpo. E havia um itinerário quase iniciático para lá chegar que passava por provas de qualidade. por ser um país de língua inglesa estava mais ligado à África do Sul, que era mais central no mundo,
Quando eu já lá estava comecei a dar conta que chegavam muitos jovens estagiários que davam a coisa que por vez estava ligada a outros canais maiores como a Grã-Bretanha e os EUA, de que eu benefi-
como adquirida, como se tivessem nascido para aquilo… A qualidade do trabalho era o menos relevan- 242 243 ciei, mas no trabalho profissional de todos os dias eu estava sozinho…e portanto só através do estudo
te, na questão. O respeito pelo mérito e pelo saber foi-se dissipando… contínuo eu podia tirar as minhas dúvidas.
Completamente. E estamos a falar a duas escalas, à escala universal e à escala local. À escala local
o respeito pelo saber dissipou-se por uma razão simples: não há saber. O que é um problema, para Repegando na tensão que se verifica, em muitas das suas casas, entre o exterior e o interior. Devido a isso,
só falar do caso da arquitectura. Portanto, eles também não têm a quem respeitar. É dramático, mas há também efeitos que funcionam de forma inesperada, a casa do Sol de Carvalho, no Bairro Triunfo,
é verdadeiro… quem a vê de fora parece um bunker e não adivinha de todo o jogo de abertura que se dá nas traseiras
com a fachada airosa e envidraçada sobre a piscina…
Mas no caso da arquitectura Moçambique a dado momento funcionou quase como uma escola, com o É o que fazia sentido para ali, com uma rua daquela largura, enquanto, na altura, não havia
Mesquita, o Pancho, etc. outras casas nas traseiras, o que permitia outras vistas.
Não é o anódino, não é o excepcional, não é o fora de comum que cria uma cultura. O que cria
uma cultura é a consistência e a constância de uma prática ao nível geral que cria referências que os Já na casa da Maria de Lourdes Torcato, que foi considerada uma das mil casa mais bonitas do mundo,
mais jovens podem tomar como padrões e que, os melhores entre eles, devem pretender ultrapassar. eu senti-me dentro duma máquina orgânica benigna, não lhe sei dizer de outra forma.
Isso não existe aqui, há uma falta de modelos. Por isso quando surge alguém de qualidade ficam logo É um caracol. Onde ela se pode recolher lá dentro. Tem uma transparência muito controlada
endeusados de imediato, um Malangatana, um Mia Couto, etc., e estupidamente, quer-se imedia- mas muito franca, da cozinha e da varandinha para o exterior, e quando se entra na salinha vê-se
tamente fazer cópias, porque se procura o sucesso a qualquer custo, e sobretudo sem o trabalho que que tem uma janela a metro e vinte do chão com uma fresta para ela olhar para fora, é tudo muito
este implica… alguém aponta um caminho e vamos copiar, é mais fácil. controlado. Mas é realmente, se eu quisesse ser faccioso nestas coisas, um caracol. E ela de vez em
Não é ser melhor que eles é ser como eles, e como não têm a noção do percurso, o primeiro quando põe os pauzinhos de fora. E acho que funcionou bem, ela sente-se feliz lá dentro e isso é que
boneco que põem no papel é genial, até porque a sociedade os empurra para isso, muitas vezes só é importante. Mas é toda uma máquina de interiores, agora, o difícil é conseguir a congruência entre
pela sua origem étnica já é genial… a mentalidade é: temos de ter gente rapidamente, não temos interior e exterior. Tem piada que há muita gente que diz “você faz uma arquitectura muito feia mas
por dentro as coisas são muito bonitas…”, enquanto para mim na verdade não há dentro nem fora que confessar um limite: uma discoteca, por exemplo, é um espaço que não me interessa, julgo que
mas uma máquina orgânica… não saberia fazê-lo, pois suspeito ser de uma ignorância absoluta quanto aos motivos que podem
levar alguém a escolher uma discoteca como lugar de lazer…Um lugar onde só se pode ter uma
Na sua arquitectura existem às vezes magníficos jogos de transparências. Isto é um gosto que lhe é inato dimensão corporal…
ou foi apurando com a idade?
Se tivesse de escolher entre as duas diria que fui apurando, aliás em tudo… (risos) mas, na De caça…
verdade, neste momento, sou muito melhor arquitecto agora do que era há dez anos atrás. Tenho Se ao menos se caçasse o silêncio. Mas não é possível…
um domínio dos factores que conduzem às escolhas arquitectónicas muito mais seguro e um apuro
maior na conceptualização, ao nível da planta, dos orçamentos… aliás, neste aspecto as novas ferra- A dada altura, nesse momento em que todas as utopias pareciam possíveis, escreve um texto em que fala
mentas são extremamente úteis, a possibilidade de projectar no ecrã do computador transparências e “da ideia de uma arquitectura mais adequada ao meio tropical”. Era um cenário virtual, na altura,
de simular as profundidades dá-nos um maior controlo sobre os projectos. um mote para debate. Hoje, com a sua experiência, voltaria a subscrever esta ideia?
Tem nuances. E o “tropical” quanto a mim assenta num conceito erróneo. Agora, há uma arqui-
Dentre os seus projectos, gosto especialmente dos seus conventos e igrejas. Queria perguntar-lhe se isso lhe tectura tipicamente tropical? Há, mas os trópicos são múltiplos, a faixa entre os dois trópicos não é
exigiu algum tempo/tipo de “meditação” para achar o equilíbrio entre a luz, o espaço e o silêncio… ou uniforme, tem desde climas secos e desérticos até climas húmidos, o que implica condições muito
se isso lhe surgiu tão naturalmente como na construção duma vivenda? diversas e gera respostas arquitectónicas também diversas. Foi uma asneira o que os ingleses fizeram
Bom, essas três qualidades, a luz, o espaço e essa outra fundamental, e raramente referida, que ao criarem Instituto de Arquitectura Tropical. Não é de todo mau porque levantou o debate e isto
é o silêncio – e quando falamos de luz não esqueçamos outra dimensão fundamental, a sombra, 244 245 é sempre útil… a necessidade de criar uma arquitectura tem de ser adaptável às condições locais,
mas estas qualidades, dizia, quando se modulam em variação – a sombra, a luz, um espaço social, mas querer inventar à força uma identidade ligada apenas ao factor climático e ambiental é uma
um espaço de recolhimento – acabam por organizar a sua própria gestação, repare, por exemplo asneira grave. Já o pensava na altura e hoje estou absolutamente convencido de que essa coisa de
o espaço administrativo dum convento tem que ser um espaço solar… o espaço sacro exige um “arquitectura africana”, ou uma “arquitectura tropical” é uma falácia tão grande quanto a de falar-
ambiente mais velado, portanto, naturalmente a construção duma igreja ou convento estimulam mos de uma “arquitectura europeia”, “temperada” ou “mediterrânica”, ou não sei mais o quê. Claro
uma maior sensibilidade a essas dimensões, é como um compositor que ouve a sua própria música, que a arquitectura é sempre marcada pelas referências das diversas dimensões ambientais e sociais
o arquitecto tem que ter ouvido. Repare, o espaço sacro num convento não é só a capela mas é do chão em que se insere, o que dá características vernaculares diferentes, agora dizer que haja uma
também o meio espacial de vida da comunidade, aquilo não é uma casa, ou um escritório, aquilo é “arquitectura africana”, ou uma “arquitectura tropical” por definição”, acho que não. O que não quer
um sítio onde as pessoas consagram 24 horas por dia a uma ideia religiosa, e por isso me interessa dizer que defenda esta ideia, avançada por todo o lado, de uma arquitectura descaracterizada, sem a
muito, por pensar que a vida meditativa tem dimensões extremamente aliciantes e benéficas para menor atenção às diferenças climáticas – falo em geral, a boa arquitectura ainda responde, diria até
todos nós, na medida em que isola e aprofunda a relação do homem consigo mesmo. Portanto,
não me sinto alheio quando desenho uma igreja, é sempre muito motivador um projecto desse
tipo. Para além de pensar que todo o espaço deve ser tratado de modo a elevar a condição mental,
espiritual, intelectual do homem…

Quer dizer, não vê a arquitectura como uma modulação de continuidades mas como um modo de
permear o espaço de intensidades…
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Sim, todo o espaço deve ser intenso. E deve provocar sentimentos de bem-estar, de paz espiri- DFDSGFDSFGV
tual… como também, em certos casos extremos, pelo contrário, de excitação… Embora aqui tenha DSFSDFDS
cientificamente, às condições locais –, mas de momento não está radicada a ideia de que o que se faz se torna claro que há duas ou três cidades que coexistem mas sem que sejam muitos os convívios francos
em Chicago seja necessariamente diferente do que se faz em Singapura… entre pessoas de raças diferentes… ao fim de cinco anos, de quatrocentos alunos, de me ter integrado na
cidade, tenho dois amigos negros. Você desculpe-me, considero isto um escândalo…
Será por isso que a ideia duma harmonização da realidade urbana me parece bastante abandonada Isto é uma coisa que só o tempo curará. É estritamente uma herança cultural, não é por qual-
por estas bandas? quer rejeição ideológica ou biológica, mas vai mudando. O meu filho já foi casado duas vezes com
Nesse aspecto o que é mais grave é que as cidades africanas exacerbam os conflitos de classe, os duas negras – só tenho netos mistos. E realmente as barreiras caíram todas, não há aqui quaisquer
conflitos políticos e continuam a desprezar oitenta por cento da sua população, ou seja, as cidades impedimentos legais para um convívio são, como diz. E esse é meio caminho andado. Claro que
africanas continuam a ser projectadas como se fossem exclusivamente para uma classe média baixa, há 30 anos atrás, pensávamos todos que ia ser mais rápido, mas tenho esperanças. Mas há outro
ou alta – deixando de fora toda a gente que não tem dinheiro para pagar água, luz, telefone… De- aspecto com que temos de lidar sem complexos: ser racista é mais natural que não o ser. Ser
pois, como já aconteceu aqui, encomendam-se planos urbanísticos a quem não está no terreno e que anti-racista é uma atitude voluntária: eu quero ser amigo de toda a gente… em todos os lugares
apresentam depois projectos abstractos sem a menor estrutura ou inserção espacial e sem soluções começam por haver cliques territoriais, que começam a desaparecer conforme as circunstâncias…
que respondam às necessidades de 80% dos habitantes que já vivem no local. E isto passa-se em mas que na origem são contraditórias consigo mesmo e que incluem elementos mais racistas ou
Luanda, em Nairobi, em Maputo, em Joanesburgo… Só se fazem planos para alguns… não… mas as barreiras vão-se diluindo e vejo nas camadas mais jovens na Universidade que entre
eles é muito mais fácil ultrapassarem essas coisas e já respiram de outra maneira. Tudo tem o seu
Em relação ao urbanismo, deixe-me agora referir o meu desconsolo quando o ano passado visitei oito tempo. E ainda há desequilíbrios que só o tempo sanará. Muitos dos alunos mais brilhantes da
províncias do país e as suas cidades. Os portugueses projectavam também sem atender à topografia e às universidade neste momento são negros, no entanto a média geral dos alunos brancos é melhor,
características do local e o urbanismo das cidades é decalcado de uma para as outras, como se fosse em 246 247 porquê? Porque têm mais apoio em casa. Há PCA’s ou mesmo ministros que metem os filhos
série, e usando sempre o mesmo vernáculo nos edifícios institucionais. Dá uma impressão de monotonia nas melhores escolas mas eles não obtém aproveitamento. E não podiam porque em casa não há
brutal, duma falta de imaginação sufocante: estava sempre a ser remetido para o Chaimite e a aldeia um único livro e como tal eles não têm o exemplo em casa. O grande problema do ensino em
portuguesa… Moçambique não começa na escola, mas em casa… e isso não se resolve em dois tempos, não é
Era tudo muito fraquinho. A urbanística ultramarina era muito pobre… já nem ponho o pro- com mais escolas e mais professores mal preparados mas com a subida da cultura média em casa…
blema da marginalização da população indígena, para isso havia o bairro indígena – bom, e por Melhorando este quadro geral as pessoas também tenderão a conviver mais entre todas e a abater
acaso ainda havia, com os portugueses ainda havia… Esse plano urbanístico que eu vi recentemente, as últimas barreiras raciais…
já nem comportava essa hipótese, talvez por ingenuidade política e social… mas eu analisei alguns
planos urbanísticos dos portugueses… e até mesmo as ferramentas de trabalho eram fracas, naquela Ainda há pouco disse-nos que não gostava de discotecas, nem, presumo, da música que lá passam. Isto
altura, os levantamentos topográficos, geológicos, climatológicos, pedológicos, etc., eram insuficien- faz-me perguntar-lhe, que tipo de música é que o José Forjaz ouve em casa.
tes. A urbanística era vista como um exercício geométrico. Hoje, por exemplo, quem faz urbanismo Música de câmara, ou música étnica. São as minhas paixões.
tem obrigação de ter conhecimento dos ecossistemas sobre os quais assenta a cidade e não era o que
se fazia naquela altura… Bom, tinham era uma ordem que não existia quanto a mim nas cidades Se uma casa fosse cenário para um filme, que tipo de diálogos gostaria de ouvir lá dentro: os de Berg-
portuguesas até ao século XVIII, e que foi o contributo dos engenheiros nos séculos XIX e XX, que man, os de Godard, ou os de Woddy Allen?
pontificaram em estradas e grandes avenidas, mas não primavam pela imaginação, isso não. Sem dúvida, os diálogos do Bergman, que acho um tipo assombroso. Mas agora o melhor é
irmos almoçar, não?
Quem vem a Maputo durante pouco tempo não notará mas quem fica durante algum tempo começa
a notar que se mantém uma estrutura social absolutamente estratificada na cidade. Não só se verifica
que coexistem muitos tempos históricos diferentes e estamos a falar das mentalidades das pessoas, como
ARTIGOS E ENSAIOS
CAPELA DO INSTITUTO SUPERIOR MARIA MÃE DE AFRICA – MAPUTO FILIPE BRANQUINHO / IWAN BAAN
Só da revista de arquitectura não consegui, ou não fui capaz, de abstrair ideias ou fundamentar
uma visão com algum sentido que me ajudasse a construir o meu discurso.
Por reconhecer na literatura e na notícia uma profunda coerência e um apelo desesperado à
consciência dos profissionais que trabalham directamente com o ambiente pensei que a minha men-
sagem poderia tomar a forma e o sentido do juramento de Hipócrates ou sugerir uma nova leitura
do código de Hamurabi.
É verdade que desde que o rei Hamurabi da Babilónia escreveu o seu código de leis, há mais
que 4200 anos, ou Hipócrates, o grego, definiu a ética da profissão médica, há mais de 2500 anos,
o mundo assistiu a muitas mudanças e as associações profissionais criaram toda uma rede de defesas
para proteger os seus membros da própria ignorância, da falta de escrúpulos dos seus clientes e da
rapacidade dos advogados.
Mas também é verdade que a nossa profissão e arte são, agora, mais complexas e muito mais
difíceis e, talvez até, mais responsabilizantes do que eram há tantos anos atrás.
São mais complexas e difíceis para nós, hoje, pela acumulação de conhecimentos que devemos
MEDITAÇÕES DE CAPE TOWN adquirir, pela profundidade e alcance da visão que devemos conseguir, pelo peso da história nos nos-
sos ombros e, ainda e também, pela acumulação dos nossos erros, que contribuem para a destruição
252 253 e degeneração do meio ambiente e para a erosão da credibilidade na nossa competência.
Há algumas semanas foi-me pedido, por uma faculdade de arquitectura, da África do Sul, para fazer São mais responsabilizadoras porque, na aldeia global, não podemos escapar ao conhecimento (e
o discurso na cerimónia tradicional de graduação de mais um grupo de jovens arquitectos para o à consciência) do estado do mundo, do drama humano à nossa volta e, acima de tudo, à noção de
exercício da nossa arte e profissão. que não há inversão miraculosa das tendências negativas actuais e de que não há mais ninguém, para
Nesse mesmo dia tinha lido um artigo sobre o aquecimento do globo, na revista Time e, mais além de nós próprios, a culpar pelo desastre global para onde caminhamos.
tarde, acabei de ler uma coleccão extraordinária de ensaios por Ivan Klima, o escritor e filósofo checo, Durante muitos anos, a maior parte de nós, arquitectos, preocupámo-nos e agimos como se os
no qual discute a possibilidade de esperança no nosso mundo. problemas essenciais de projectar um melhor ambiente humano tivessem sido solucionados. Como
Tive ainda tempo para folhear a última edição de uma revista de arquitectura de renome inter- consequência dedicámos a nossa capacidade intelectual à perseguição de modas formais, muitas vezes
nacional. mascaradas com nobres intenções como a da procura de uma identidade regional, glorificámos a
A relação entre estes quatro momentos de uma cadeia normal de acontecimentos diários não é, tecnologia como um fim em si próprio, santificámos uma pseudo economia de meios e justificámos
acredito eu, sem um sentido ou uma lógica. a arbitrariedade como uma forma de criatividade.
A preocupação em como me dirigir aos futuros arquitectos, tornou-me mais consciente da res- Esquecemos, muito depressa, que houve um tempo em que racionalismo não era um estilo.
ponsabilidade que, neste mundo em crise, nós temos e mais preocupado me deixou em como dei- Esquecemo-nos que a grande contribuição do Movimento Moderno não foi, primariamente,
xar-lhes uma mensagem relevante, com significado e expressiva. uma aquisição de ordem estética mas a definição do papel decisivo do arquitecto na sua contribuição
A referência explícita que na revista Time encontrei à necessidade de um planeamento respon- para o melhoramento da qualidade do ambiente construído e em benefício de toda a sociedade.
sável e inteligente, evitando o sobredesenvolvimento e o desordenamento, promovendo meios mais Esquecemo-nos, muito facilmente, que os ideais da nova arquitectura foram forjados no mesmo
racionais de transporte de pessoas e bens, e projectando edifícios que poupem energia e a profunda e momento histórico em que se forjaram os ideais de uma sociedade moderna, democrática, livre e
bem fundada insegurança do filósofo na sua procura de uma razão de esperança deram-me algumas responsável.
pistas para a mensagem que pensei ser adequado transmitir aos estudantes sul-africanos. A profissão de arquitecto, como profissional disponível e necessário a toda a sociedade urbana e
rural e preocupado com o projecto de todas as estruturas físicas de que ela necessita, é recente e ainda ambiental da expansão urbana; a poupança ou o desperdício de água nos nossos edifícios, tudo isto
não reconhecida ou praticada em grande parte do mundo. são aspectos da nossa responsabilidade da qual nos não podemos alhear ou deixar de tomar como
De facto, nós arquitectos, somos, em geral, um luxo que só os ricos podem pagar. preocupações permanentes e, como factores obrigatórios do processo do projecto.
Deveríamos perguntar-nos porquê. Temos, neste sentido, uma grande responsabilidade e o silêncio das nossas escolas nestas matérias
É verdade que, desde que as ideias do movimento moderno foram definidas, o mundo mudou. é ensurdecedor.
Mudou no sentido em que as nossas preocupações mudaram. Uma mudança profunda, como foi A maior parte da literatura especializada em arquitectura e planeamento não mencionam ainda
claramente provado, quando se descobriram “os limites do crescimento” através da visão dos sábios e sistematicamente estes assuntos.
do Clube de Roma há mais de 30 anos atrás. Analisam-se as tecnologias e a economia de produção, quase exclusivamente pela sua perfor-
Nessa altura, em 1972, uma equipa internacional, composta pelos melhores cérebros científicos mance especulativa, pelo seu mérito estrutural ou ainda pela sua aparência estética; excede-se em
do mundo, publicou os resultados das suas investigações sobre o futuro da espécie humana, através teorizações subjectivas e abstractas sobre as intenções do projectista e constrói rapidamente “escolas”
da análise dos cinco factores básicos que determinam e limitam o crescimento da civilização humana de pensamento, para serem consumidas ainda mais aceleradamente e assim se promoverem novos
no planeta: população, produção agrícola, recursos naturais, produção industrial e poluição. “heróis” que tornam a arquitectura numa arte de representação.
O que o relatório do Clube de Roma tornou claro foi que o futuro da humanidade era duvidoso A irresponsabilidade dos críticos é proporcional à irresponsabilidade dos arquitectos, e iguala à
e ameaçador para todos. A previsão foi a de que tanto os países ricos como os pobres e os seus povos, ganância do especulador possibilitada pela inconsciência e ignorância da sociedade em geral.
sofreriam igualmente pela rápida delapidação dos recursos naturais, se a tendência para a sobrexplo- Será dizer isto muito duro, brutal ou exagerado?
ração continuasse. Exagero quando menciono o crescimento exponencial das favelas e bairros da lata como o único
O mundo levou tempo demais a acordar para o perigo da má utilização dos recursos naturais e 254 255 ambiente urbano acessível à maioria da população urbana do mundo?
para a degradação ambiental que se lhe segue. Exagero quando vejo o centro das cidades transformados em selva humana?
Duas importantes conferências internacionais, em Estocolmo e no Rio de Janeiro, trataram des- Exagero quando sei que a lenha e o carvão para cozinhar vêm, agora, para a minha cidade do
ses magnos problemas e conseguiram obter um limitado grau de compromisso, por parte das grandes Maputo de uma distância de mais de 100 km, tendo testemunhado nos últimos anos o corte da
nações, em matéria de políticas de sustentabilidade e de regeneração ambiental. floresta em círculos cada vez mais extensos e quando sabemos que o processo de desertificação vai
Isto foi, como bem sabemos, insuficiente. acelerar mais ainda nos próximos anos?
Os primeiros cataclismos começaram já. Temperaturas anormais em várias partes do mundo, as Exagero quando assisto ao desperdício de água tratada, em autoclismos e na relva dos campos
cheias e os desabamentos, os tremores de terra e a subida do nível médio do mar, a seca dos mares de golf, quando milhões de pessoas não têm um litro de água limpa para beberem ou se lavarem?
interiores e o degelo das calotes polares, o buraco na camada de ozono e o rápido esgotamento da Exagero quando meço os megawats gastos para arrefecer, aquecer, iluminar e ventilar edifícios
diversidade biológica: todos estes fenómenos são agora motivo de preocupação profunda de cada país por nós projectados para alguns dos melhores climas do mundo?
e de cada região do mundo.
Estas deveriam ser também as primeiras e mais tangíveis preocupações de todos os cidadãos de
todas as nações do mundo.
Nós, arquitectos e planificadores trabalhamos e transformamos o ambiente natural a todas as escalas
da nossa actividade, usamos e modificamos, passiva ou activamente, o equilíbrio dos factores naturais.
O modo como organizamos o espaço urbano ou alteramos a paisagem; o uso que damos aos ma-
teriais ou a forma como concebemos o comportamento ambiental e climático dos nossos edifícios; a
FSDFSD
quantidade de energia que usamos para construir e manter os nossos espaços habitáveis iluminados DFDSGFDSFGV
e ventilados; a facilidade de manutenção e a durabilidade das estruturas que desenhamos; o impacto DSFSDFDS
Devo duvidar quando ambos, ricos e pobres, se queixam sobre o gasto diário de tempo, dinheiro, Temos nós sido capazes de assumir o papel que nos cabe na salvaguarda destas dimensões que,
energia e sofrimento para ir e vir de casa para o trabalho, devido ao mau planeamento urbano e à uma vez perdidas, são muito dificilmente recuperáveis?
segregação social? Seremos nós capazes, de conceber o espaço exterior como um elemento de conexão do ambiente
Exagero, finalmente, quando vejo o uso de materiais e tecnologias importados e caros, quando é urbano com o natural, pelo correcto escalonamento e colocação dos nossos edifícios considerando a
possível obter a mesma qualidade e a mesma prestação com a capacidade local? orientação, o clima, a topografia e as suas funções urbanas?
Esta litania podia continuar indefinidamente e focar cada vez mais em detalhe os objectos das Teremos nós sido treinados correcta e suficientemente para isso?
nossas decisões e escolhas diárias. A escala natural e a escala da cidade devem estar em equilíbrio. Um equilíbrio feito de dimensões
Mas somos treinados para considerar outros valores como mais importantes. objectivas que têm a ver com os benefícios físicos e psicológicos do ar puro e do sol, com a produção
Vamos, então, analisar as diferentes escalas do nosso trabalho e da nossa responsabilidade. de oxigénio, com a condução do vento e o seu controle, com os caminhos que a água percorre e com
O que imediatamente vem à mente é uma simples questão: a contenção espacial dentro dos largos horizontes.
• é possível e significativa uma boa arquitectura no contexto do nosso decadente e mal pla- Teremos nós coragem de reconquistar estas dimensões?
neado ambiente urbano? Da paisagem e da cidade ao edifício o escalonamento das nossas preocupações não pode ser uma
• a flor que nasce no pântano será uma imagem adequada e aceitável, ou uma figura de retó- redução da importância ou da responsabilidade das nossas decisões.
rica perigosa apelando a um senso poético escatológico? O habitat humano e as sus estruturas, necessárias à vida económica, social e transcendental, são
Por outras palavras: as nossas preocupações mais primárias e directas.
• não deveríamos nós ser capazes de guiar, intervir e participar no processo de moldar, colocar A ele associamos conceitos de segurança, física e psicológica; nele devemos encontrar conforto
e relacionar a infra-estrutura e as construções, necessárias a uma sociedade saudável e demo- 256 257 e economia emocional; através dele projectamos a nossa importância social e nele encontramos o
crática, no seu ambiente urbano e natural, sem impactos negativos? respeito por nós próprios.
É óbvio que a distribuição do espaço social é um exercício de poder, de prerrogativa política e de São níveis e graus de importância que devemos entender e que devem definir um quadro de
especulação económica; é, também, a demonstração de privilégios sociais, e o arquitecto e o urbanis- referência para o nosso exercício projectual.
ta, não podem, só por meios técnicos, resolver esse problema. Não são, no entanto, todos os parâmetros do projecto.
Podemos, contudo, influenciar o processo político e podemos contribuir para um uso mais in- Há que considerar os constrangimentos económicos, as potencialidades técnicas e o ambiente
teligente do eco-sistema, para uma divisão mais equitativa no usufruto das qualidades espaciais da cultural, uma das dimensões mais criticas nesta equação.
cidade, para uma relação mais criativa entre o homem e a natureza e para um habitat mais saudável, Para nós, deste lado de baixo do mundo, a tarefa de ensinar e de praticar arquitectura e planea-
agora que as nossas sociedades se fundamentam e reconhecem como justa a eliminação da discrimi- mento urbano é, se possível, ainda mais difícil do que os nossos colegas do “Norte”.
nação racial ou cultural. Os nossos estudantes, e os nossos profissionais, são muito dependentes duma literatura profissio-
Mas somos nós capazes de o fazer ou de convencer os nossos líderes políticos a fazê-lo? nal de difícil acesso, quase exclusivamente produzida pelas sociedades tecnologicamente avançadas,
Ou seremos nós os servidores do especulador cujos fins e objectivos são, os do máximo lucro tratando, na maior parte das vezes, de situações de relevância limitada no que diz respeito à dimensão
financeiro dos terrenos adquiridos ao mais baixo preço? real dos nossos problemas sociais.
Será o lucro o único objectivo aceitável e será ele compatível com a boa qualidade do espaço Essas sociedades, do lado de cima do mundo, criaram, ao longo dos séculos, um vasto patrimó-
urbano e da arquitectura? nio construído e estruturas mais que suficientes para as suas necessidades administrativas, produtivas,
A escala da cidade deve formar um contínuo com a escala da paisagem, com a escala do campo, habitacionais e outras.
com a escala do mar, com a escala da pradaria, da floresta e da montanha. São sociedades, com populações estáveis ou em decrescimento e caracterizam-se por uma produ-
Somos nós capazes de fazer a ponte conceptual entre o edifício e essas dimensões? ção excessiva agrícola e industrial.
Somos nós sempre sensíveis à relação ecológica, estética e espiritual entre a natureza e os edifícios? Os seus problemas imediatos não são os de providenciar as estruturas essenciais e básicas para as
suas necessidades sociais e económicas. Os seus problemas sociais e económicos, podem ser resolvidos Estes são valores necessários mas não, necessariamente, suficientes.
por meios políticos e não requerem um ajustamento estrutural de uma realidade física hostil e pobre. Penso, e arrisco dizê-lo, que a maioria dos edifícios projectados hoje não é, em muitos dos parâ-
Para melhor qualificar a diferença entre os nossos dois mundos um dos melhores casos que me metros da sua concepção, pensada nesses termos ou julgados pela sua performance de acordo com
vem à mente é uma nova cabina de imprensa, agora instalada no Lords Cricket Field em Londres e aqueles valores de referência.
que custou “apenas” $ 9.000.000 U.S.!!! A discussão da relação ética entre esses objectivos e a qualidade do nosso projecto é o que eu
Com esse valor poderíamos construir, em Moçambique, todas as escolas primárias, ou todas as tenho tanta dificuldade em encontrar na maioria das revistas de arquitectura.
maternidades rurais de que necessitamos para um distrito de 100.000 pessoas. E no entanto essa Os limites do conforto e os limites económicos no uso dos recursos podem ser medidos e regu-
cabina é apresentada ao mundo dos arquitectos como uma conquista sublime da arquitectura deste lamentados. Foram-no, de facto, nas sociedades mais desenvolvidas, mas foram sistematicamente,
novo século! regulamentados pela definição dos níveis mínimos aceitáveis. O que me parece cada vez mais urgente
Será relevante comparar, tirar conclusões, analisar e criticar este tipo de fenómenos? e necessário é a coragem de os regulamentar, e limitar, pelos níveis máximos aceitáveis, ou pelo que
Estaremos a falar das necessidades da mesma espécie? eu poderia chamar como “os limites morais”, de uso de recursos que, quando excedidos, beneficiam,
Parece-me que temos o direito e a obrigação de julgar e condenar todos os desmandos na utili- exclusivamente, a finíssima camada dos membros mais priviligiados da sociedade.
zacão dos recursos e todos os excessos, desperdício e luxos, não interessa onde, porquê ou por quem. Estou plenamente consciente da enormidade desta proposta, num ambiente histórico onde con-
Desta análise crítica poderemos, se o quisermos, construir e aperfeiçoar um código de valores e sumir e gastar são vistos como um dever moral pelos políticos e pelos mestres e donos da economia
uma racional que nos guie nestes tempos de confusão e arbitrariedade controladora e devastadora deste mundo.
Esse direito vem-nos dado pelas mesmas razões que justificam a eliminação das barreiras comer- É evidente que esta proposta seria a última a ganhar votos em qualquer ambiente político mesmo
ciais entre os países e que provam a continuidade do ambiente natural ou pelas mesmas razões que se 258 259 do lado de baixo do mundo que está a pagar pela riqueza patológica dos irmãos do norte.
devem considerar, como património comum da humanidade, os recursos não-renováveis do planeta. Sei, bem demais, que a ambição do pobre é conseguir o mesmo privilégio discriminatório e a
Não podemos, por um lado, aceitar esses princípios e, por outro, contribuir para o desperdício mesma atitude exibicionista do seu mestre e senhor.
dos recursos insubstituíveis, seja lá por quem e onde se pratique. Vejo crescer, a cada dia que passa, a horda dos destituídos deste mundo para quem mesmo os
Pode isto parecer distante de arquitectura? limites mais baixos das necessidades humanas e de conforto são impensáveis e para lá do sonho.
Eu penso que não é. Sei, perfeitamente, que o monstruoso subdesenvolvimento tem um corolário chamado sobre-
Penso que há, dentro dos limites culturais e níveis de conforto aceitáveis universalmente a pos- -desenvolvimento, e que um não existe sem o outro.
sibilidade de encontrar e de definir o conjunto de parâmetros e de dimensões objectivas, cientifica- Sei que os modelos impostos pela cenoura e pelo pau, pelos media e pela ilusão, pelo sorriso e
mente expressas e tecnologicamente resolvidas, que serva como guia de referência no exercício da pela arma, não podem ser generalizados nem podem ser levados a sério como alcançáveis para e por
arquitectura, do projecto urbano e do planeamento regional. toda a gente, dentro ou fora do sistema que os criou e que, agora, domina o mundo.
Estes parâmetros e estas dimensões têm valores físicos exactos e estão suficientemente estudados
por psicólogos, antropólogos e cientistas do comportamento para poderem ser usados com con-
vicção e para nos dar a autoridade de que necessitamos para qualificar os nossos projectos como
correctos e justos ou julgá-los injustos e errados.
São valores que podem ser expressos em termos físicos de área e de volume, de temperatura ou
de humidade, em candelas ou decibéis, partículas poluentes por milhão de partículas na atmosfera,
radiação electromagnética ou metros cúbicos de ar, litros de água ou kilowats per capita.
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Só a partir deste quadro de referência faremos com que a arquitectura nasça de novo sendo ver- DFDSGFDSFGV
dade que sem estes valores de referência não se materializará uma arquitectura respeitável. DSFSDFDS
A aritmética mais elementar, baseada em estatísticas conhecidas por toda a gente, demonstra a bilidade directa e indirecta da nossa actividade, como arquitectos, na manutenção ou destruição do
falsidade da ilusão. Os pretextos para adiar acções decisivas e parar com o desperdício são transparen- equilíbrio global.
tes na sua falta de bases científicas. São, no entanto, suficientemente fortes para manter no poder ou Estamos a viver um dos momentos mais significativos e ameaçadores da vida humana na terra.
para nele o pôr, o habilidoso manipulador dos votantes, sempre dispostos a escapar à realidade brutal Somos, pela primeira vez na história do homem, conscientes da ameaça que as nossas acções
de um futuro comprometido. podem significar para a nossa sobrevivência no planeta e, ao mesmo tempo, estamos conscientes que
O preço a pagar por todos nós por este cinismo universal parece ser um dos mais bem guardados a interdependência de todos os países e da humanidade é condição indispensável para essa sobrevi-
não-segredos que qualquer pessoa, com um grau mínimo de informação e cultura não consegue vência.
esconder a si próprio. Por outras palavras: a solidariedade entre os homens não é mais imperativo moral, é, essencial-
Preocupa-me que o que disse atrás possa ainda assim parecer muito longe da arquitectura e que mente, uma estratégia indispensável e um mecanismo de sobrevivência.
possam perguntar-me porque trago eu estes assuntos a esta audiência. Ela é, simplesmente, uma questão de inteligência.
Tentarei provar a relevância da discussão. A nossa profissão dá-nos a oportunidade ímpar e a obrigação inescapável de participar directa-
Mencionei, há pouco, a ética como uma estrutura fundamental do pensamento arquitectónico, mente na solução deste drama transcendente.
e exprimi a minha admiração pela ausência generalizada deste valor na literatura especializada mais Poderemos recusar-nos a essa oportunidade e perder-nos em lugares comuns de estilo e modo,
divulgada. de excesso e desperdício, na cópia acrítica do passado ou em jogos de ficção científica desinformados,
Esta ausência revela a falta de profundidade a que chegámos no nosso campo de pensamento. de grotescas teatralidades ou de modas efémeras e comportarmo-nos como membros irresponsáveis
Revela o nosso recuo de uma posição de responsabilidade social para os níveis da tecnocracia, do jogo e infantis da sociedade?
das formas e da facilitação dos lucros. 260 261 Ou deveríamos aproveitar esta oportunidade para criar um mundo novo de espaços e formas,
É tempo de rever esta atitude e trazer para uma posição central no nosso pensamento teórico uma nova cidade e uma nova urbanidade, um novo modo de compreensão da paisagem e da região,
dimensões universais que têm a ver com problemas tão vastos como a energia e os relacionados uma nova relação entre o homem e a natureza e trazer realmente um “espírito novo” à cidade dos
com a condição humana e o habitat, a evolução das cidades e a salvaguarda e regeneração do meio homens?
ambiente. A necessidade de inventar é comum a toda a humanidade e em todas as épocas. Até aos nossos
O que pensamos e projectamos deve ser analisado em relação a todas essas dimensões, positiva dias esta necessidade era apenas uma imposição sentida pelo indivíduo e pela sociedade como uma
ou negativamente. forma de conquistar melhores condições de vida.
A necessidade dessa análise vem de factos cuja ignorância não podemos alegar. Por exemplo: Agora, a invenção é uma condição de sobrevivência.
– a indústria de materiais de construção e a manutenção de edifícios operacionais produz 73% Esta diferença é fundamental.
de todo o dióxido de carbono responsável pelo aquecimento da atmosfera; Como disse Camus, há cinquenta anos: “a era do artista irresponsável acabou”.
– a destruição da camada de ozono é, maioritariamente, devida à libertação, para a atmosfera, de Agora, mais de cinquenta anos passados, há muito menos tempo e espaço para deambulações
cloroflúorcarbono (CFCs), 50% do qual é atribuído à produção de materiais e componentes usados gratuitas do espírito.
na indústria da construção; Vivemos uma era de urgências. Não temos espaço para erros. Não temos tempo para a ignorância.
– as florestas tropicais do mundo estão a ser cortadas a uma média de quase 1% por ano para uso, Mencionei, no início deste manifesto, a necessidade de um código de regras que guie os nossos
em grande parte para as indústrias da construção e de mobiliário; com elas desaparece grande parte recém-graduados, nas suas opções, ao longo da sua vida profissional. Isto parece-me necessário uma
da capacidade do mundo para a absorção de CO2 e para geração de oxigénio; vez que a escola nem sempre define claramente um conjunto claro de opções ou se arrisca a parecer
– o consumo de água potável é duplo da taxa de regeneração dos aquiferos naturais. menos científica ou, de algum modo, dogmática.
Esta listagem das formas de degradação do meio ambiente poderia continuar com a consideração No domínio profissional, no entanto, erros de atitude ou de opção técnica afectam a vida das
de muitos outros factores, mas penso que os números dados são suficientes para provar a responsa- pessoas e podem destruir delicados equilíbrios. Parece-me então, um risco menor propor aos futuros
profissionais, e a todos nós, um “decálogo” provocatório para abrir a discussão dos assuntos aqui
levantados.
Por isso, sem arrogância ou certezas fáceis, reflecti nos seguintes princípios como essenciais para
o exercício responsável da profissão de arquitecto:
1. Não deveremos, sejam quais forem as circunstâncias, projectar, ou participar em qualquer
projecto, de qualquer estrutura física que possa, directa ou indirectamente contribuir para a
quebra do equilíbrio ecológico ou para a destruição das bases naturais de preservação desse
equilíbrio.
2. Não deveremos, sejam quais forem as circunstâncias, considerar o interesse do nosso cliente,
individual ou institucional, acima dos interesses da sociedade em geral, pois que os interesses
colectivos devem estar sempre acima dos interesses pessoais.
3. Os nossos projectos não devem nunca causar, reflectir ou contribuir para qualquer forma de
discriminação ou vilificação do ser humano.
4. Os nossos projectos devem ser concebidos de modo a que se obtenha sempre o máximo rendi-
mento no uso da energia e na poupança dos recursos naturais não renováveis.
5. Os objectivos fundamentais dos nossos projectos são e devem relacionar-se sempre com a
obtenção de condições ambientais ideais para a vida humana tais como a temperatura, a 262
humidade, a luz e o som, a qualidade do ar e, em geral, a eliminação do stress físico e psico-
lógico, da fadiga e da depressão.
6. Os edifícios por nós projectados devem contribuir para o enriquecimento do meio ambiente
natural e humanizado, respeitando ambas essas realidades pela compreensão da sua interde-
pendência e pela consideração das suas diversas escalas.
7. Não podemos usar, ou provocar o uso de meios materiais e de recursos para além do estrita-
mente necessário a que se alcancem qualidades ambientais, espaciais ou estéticas coerentes
com os princípios atrás enunciados.
8. Os edifícios por nós projectados devem ser económicos na sua operação, manutenção e repa-
ração.
9. Os edifícios por nós projectados devem ser concebidos para durar o mais possível e manter ou
aumentar o seu valor original, mesmo que se alter a natureza do seu uso.
10. Os projectos dos nossos edifícios devem reflectir um esforço permanente em acrescentar
à vasta riqueza do património arquitectónico da humanidade; isto só é possível através do
constante aprofundamento da nossa visão e sensibilidade poética e da nossa capacidade de
expressão do drama universal da sobrevivência do homem na natureza e das tensões criadoras
da vida social.
CASA K. ANANN – ACKRA JOSE FORJAZ • ARQUITECTOS
Texto elaborado no quadro de um Projecto de melhoramento tamente de uma situação rural para um bairro urbanizado, melhor organizado espacialmente, com
e reabilitação dos slums em Moçambique, melhores infra-estruturas e mais central.
financiado pelo Habitat – Nações Unidas. • A vontade, a capacidade e a motivação para melhorar a qualidade de vida e de habitação nos
slums são altas e fáceis de mobilizar se houver um programa de acção sólido e que os residentes sintam
Março de 2005 como realístico e plausível.
• A ordem de prioridades de qualquer contributo ou apoio ao slum deve ser sempre estabe-
lecida com os residentes da área considerada e nunca a priori, mesmo que algumas intervenções
pareçam mais básicas e indispensáveis aos planificadores. O próprio processo de envolver os re-
sidentes nessa definição é um passo estratégico que dará aos residentes a noção de “propriedade”
do projecto.
• O desenvolvimento de um programa, com os seus projectos sectoriais, deverá contar sempre
com os residentes como a maior reserva de mão-de-obra e de recursos humanos para a sua imple-
mentação; desta maneira uma das principais condições do sucesso de qualquer intervenção está
garantida: o emprego, mesmo que numa base temporária.
UMA ESTRATÉGIA PARA O MELHORAMENTO • Uma definição clara dos direitos de uso e ocupação da terra é uma condição essencial para
E A REABILITAÇÃO DOS SLUMS EM MOÇAMBIQUE que se obtenha uma participação activa e incondicional dos residentes, em qualquer intervenção de
264 265 reabilitação de slums.
• Os direitos de uso e ocupação devem ser estabelecidos, registados em cadastro, certificados e
Uma estratégia para o melhoramento e a reabilitação dos slums é uma questão difícil de estabelecer assegurados a todos e a cada família residente.
e de resolver. • Todas as áreas ou parcelas de terra devem ficar com um estatuto claro de condição de uso
A condição de slum é a consequência de dimensões regionais, nacionais e globais do subdesen- e aproveitamento no fim de um exercício de reabilitação de slums.
volvimento de certas regiões, de nações e de cidades, com raízes num complexo de causas sociais, • Tal como para a zona planificada da cidade, os projectos de slums devem considerar sempre
económicas, culturais e políticas e em circunstâncias que não se podem compreender e resolver senão todas as famílias residentes ou indivíduos, e os seus domínios e direitos espaciais, qualquer que seja a
juntando e integrando esforços em todas essas frentes. extensão ou a dificuldade do processo. A experiência prova que, onde os residentes estão envolvidos
Algumas dimensões básicas do problema dos slums devem ser compreendidas antes de se estabe- no processo de reabilitação desde a sua concepção, a definição de prioridades e estratégias de im-
lecerem quaisquer estratégias e de as implementar. Consideramos como indispensáveis os seguintes plementação, tarefas que poderiam parecer quase impossíveis sem a sua cooperação revelam-se, não
princípios que devem guiar as acções de qualquer programa de reabilitação ou melhoramento dos apenas possíveis, mas facilmente cumpridas.
slums: Os princípios enunciados foram estabelecidos através de uma prática que considera os beneficiá-
• Slum é, na maioria dos casos, a consequência de um processo longo e complexo de ajustamento rios de qualquer acção de reabilitação, como os primeiros responsáveis pelo seu próprio futuro e pelas
das famílias e dos indivíduos a condições adversas, em que os seus interesses, muitas vezes opostos, consequências das suas próprias atitudes e escolhas. Esta é uma condição sine qua non para o sucesso
encontraram uma forma de coexistência num equilíbrio precário mas, apesar de tudo, reconhecido de qualquer programa ou projecto.
por todos;
• A longa aprendizagem de vida num ambiente urbano é, na maioria dos casos, melhor apreen- Limites correntes e reconhecidos das operações de reabilitação dos slums.
dida por aqueles que se instalam nos chamados slums, com uma mais profunda compreensão dos Dentro dos limites económicos, técnicos, administrativos e do contexto cultural das intervenções
hábitos de civilidade e dos códigos de comportamento, do que por aqueles que se transferem direc- de planeamento e renovação urbana, em qualquer cidade de Moçambique, devemos estabelecer uma
ordem geral de prioridades que possa servir como guia para a construção de um cenário com sucesso e muito difícil de erradicar. A descentralização das decisões e do controlo para estruturas de bairro
para essas intervenções. encontra os mesmos problemas e representa um encargo suplementar para as finanças municipais.
No âmbito técnico a situação não é melhor. De facto, a disponibilidade de capacidade técnica é
Limites e retornos financeiros reduzida, sem muita experiência, mal remunerada e forçada a trabalho extra. Na maioria dos casos,
Os limites financeiros de qualquer projecto devem ser estabelecidos em função dos objectivos a em qualquer dos serviços, não há um só técnico com formação em qualquer dos ramos da enge-
alcançar. Por outras palavras, os limites financeiros são relativos ao âmbito e às dimensões das opera- nharia ou do planeamento urbano. As condições de trabalho, onde existem serviços técnicos, são
ções a desenvolver. Neste sentido temos apenas duas práticas: normalmente inadequadas e insuficientes. Os materiais de arquivo, registos cadastrais, cartografia,
• Pré-definir um limite aos recursos financeiros a serem empregues para um objectivo específico levantamentos topográficos, fotos aéreas e suas restituições, documentação sobre infra-estruturas e
e, depois, estabelecer os limites físicos ou sociais do projecto; mapas, etc., são, em regra, inexistentes, desactualizados ou de muito baixa qualidade. Os registos
• Estabelecer os objectivos e os limites da intervenção e, depois, quantificar os recursos financei- e levantamentos demográficos são também muito gerais para que possam servir de base fiável e não
ros comensuráveis com os resultados pretendidos. há, normalmente, informações de carácter socioeconómico.
No primeiro caso, os agentes financeiros devem esperar pelo desenvolvimento do projecto para
conhecerem o que foi, efectivamente, alcançado com os recursos financeiros atribuídos. No segundo Ordem social
caso, esses agentes devem aceitar a definição dos objectivos e a extensão, para quantificar os recursos Dentro das condições descritas, é admirável o sentido de ordem e de coexistência pacífica que
financeiros a atribuir. a maioria dos cidadãos goza e pratica face a uma inexistência de instrumentos formais de controlo
A reabilitação e o melhoramento de slums é um exercício caro, mas altamente rentável pois pro- social e de informação.
duz poderosos resultados económicos e sociais desde o início do seu desenvolvimento. Esses resulta- 266 267 Este aspecto deve ser compreendido à luz das fortíssimas estruturas sociais tradicionais onde os
dos podem e devem ser medidos pelo seu impacto social e económico, nas comunidades afectadas laços familiares e as relações hierárquicas mantêm a sua relevância social. A autoridade “informal”,
pelo investimento, assim como pelo aumento da capacidade da cidade em adquirir um conhecimen- que essas tradições corporizam, é aceite como uma forma indispensável à integração social do indi-
to mais profundo dos seus próprios problemas e também pelo acréscimo da sua capacidade, técnica e víduo. Este é um aspecto fundamental a considerar na concepção e no desenho de qualquer inter-
administrativa, para os resolver. Não menos importância têm ainda os benefícios ambientais obtidos venção que possa alterar a forma física. É importante ter em mente que as relações de ordem social,
pelo melhoramento das condições de vida nas áreas melhoradas, assim como na cidade em geral. económica, cultural, etc., podem ser negativamente afectadas mesmo que, à primeira vista, possa
A experiência adquirida em operações desta natureza não é directamente reutilizável pois não há parecer que essas intervenções só podem trazer vantagens para os cidadãos.
dois slums com os mesmos limites administrativos e técnicos. As pessoas sujeitas a operações de transferência do seu local de residência têm um sentido muito
Os 33 municípios recentemente criados em Moçambique têm severas limitações na sua capaci- forte das possíveis consequências dessas mudanças na sua vida quotidiana e resistirão a elas até que
dade administrativa e técnica para intervir no âmbito do melhoramento das condições de vida nos estejam positivamente convencidas dos seus benefícios imediatos e a longo prazo.
slums que são parte, em todos os casos, da sua periferia.
No contexto administrativo há, em geral, uma atitude muito passiva, altamente burocrática e
rígida, sem grande capacidade para criar ou aceitar novas atitudes e formas de resolver problemas. As
formas de arquivação de dados e documentação são manifestamente ineficientes, não há capacidade
de transporte ou para detectar e resolver problemas in loco e a motivação é, em geral, baixa.
Adicionalmente, a maioria dos departamentos não tem pessoal formado e suficiente, com boas
condições de trabalho, salários aceitáveis e direcção técnica. Os trabalhadores do município são pa-
FSDFSD
gos como funcionários públicos e não têm quaisquer outras facilidades ou prerrogativas. A tentação DFDSGFDSFGV
para vender favores e prioridade de acesso aos mecanismos de decisão é comum e prática corrente DSFSDFDS
O ambiente do planeamento certeza qualquer interesse em tornar a sua vida ainda mais difícil, obrigando-a a mudar-se à força
Planificar mudanças positivas nas condições de vida de um grupo humano, espontaneamente para conseguir uma qualquer ordem geométrica, de eficiência e justificação muito discutíveis.
organizado nos chamados slums, não pode ser um exercício experimental ou um projecto piloto, A imposição de um sistema de ruas rectilíneas, em grelha ortogonal, com o terreno subdividido
onde os residentes sejam tomados como cobaias a ser usadas para provar uma teoria ou preencher um em talhões rectangulares regulares, como a única solução para um tecido urbano estruturado é, na
objectivo projectado por uma consultoria de natureza mais ou menos tecnocrática. maioria dos casos de slums consolidados, uma violência que não deve sequer ser considerada pois
A reabilitação ou melhoramento de um slum exige a presença permanente da equipa de planea- implica um sofrimento enorme, um custo excessivo e a alienação dos residentes em termos das suas
mento e uma relação cuidadosamente construída com os residentes, o que é a base para a confiança relações pacíficas com as autoridades.
mútua. O ambiente do planeamento acima proposto deve ser um tema central para discussão num
A eliminação dos slums exige, portanto, uma estrutura operativa capaz de desenvolver um conhe- fórum dedicado aos problemas do melhoramento e reabilitação dos slums. Não é possível construir
cimento profundo do campo de operações, incluindo não só as características físicas da área, mas a uma atitude e política nacional para o objectivo das “cidades sem slums” sem a definição de uma
sua composição social, a dinâmica interna do grupo e a estrutura de autoridade real. Os elementos posição geral e comummente aceite em relação a este problema.
perturbadores da estabilidade que possam afectar os residentes e a história da formação da forma As implicações de uma filosofia de operações tal como acima construída, são as de que os mu-
urbana e do sistema de valores com significado especial para o grupo social são outras dimensões nicípios devem adquirir a capacidade técnica para organizar e administrar, e serem providos com os
essenciais a estudar e equacionar. meios e recursos necessários para o planeamento das operações de reabilitação e de melhoramento
Para lá do que ficou dito, exige-se ainda uma compreensão perfeita da importância das relações dos seus slums, pois que tais programas não podem ser cumpridos a partir de projectos no papel.
com os outros bairros, a sua correcta inserção na rede de infra-estruturas urbanas e as suas necessida- Moçambique, contudo, é um país com um muito limitado número de planificadores formados, a
des em termos de serviços e equipamentos sociais. 268 269 maior parte deles estabelecidos em Maputo e com maiores expectativas do que pode assegurar um
Será então fácil reconhecer que a melhoria dos slums não pode ser reduzida a um exercício de salário de funcionário.
projecto onde os diversos parâmetros se combinem numa equação, de uma forma mais ou menos Há, contudo, um número suficiente de jovens dispostos e disponíveis, apenas graduados e em
racional, para ser aplicada como “solução” ou remédio, pois que o tecido doente da cidade é feito processo de graduação, para assegurar capacidade suficiente para todos os possíveis programas de rea-
de pessoas. Não há fórmulas de aplicação geral ao problema geral da erradicação dos slums. A chave bilitação e melhoramento de slums nas cidades principais do país, se lhe forem garantidas condições
essencial do sucesso nestes trabalhos é a participação, e a participação não se obtém pela interpreta- minimamente aceitáveis de trabalho. A nossa experiência neste campo é muito positiva e podemos
ção de documentos técnicos. Tem que ser conseguida e materializada no campo, com os residentes e confiar em que com uma fracção menor do custo de importação desses projectos e especialistas, po-
numa base de contacto e relação permanente. demos atender, internamente, às necessidades técnicas que permitam montar um programa sólido e
Qualquer tentativa de redução dos exercícios de melhoramento dos slums a uma série programá- consistente de melhoramento e reabilitação dos slums.
vel de operações, quantificáveis em termos de custo e tempo, está destinada ao insucesso ou poderá Uma outra condição é essencial para o sucesso desse programa, que depende de técnicos com
resultar numa forma de violência sobre os direitos e as aspirações dos que deveriam ser os beneficiá- experiência muito limitada, é que estes possam contar com um apoio técnico constante que lhes dê
rios dessas operações. confiança e um controlo permanente, pois na maioria dos casos, eles estarão a trabalhar num grande
O melhoramento de uma área urbana, em estudo e consideração, afasta-se do princípio de que isolamento e com muitas dificuldades de acesso a informação técnica. Por outro lado, a troca de
o melhoramento e a reabilitação de um slum implica necessariamente a remoção da maioria das experiências e a aprendizagem com os sucessos e os erros dos outros indica também a necessidade
famílias do seu local de residência, o que seria, para começar, contra a lei moçambicana e contra a de um apoio que funcione como local de concentração e disseminação de experiências e de constru-
ideologia política do governo. ção de uma memória colectiva sobre esta matéria.
A premissa básica é a de que os residentes, provavelmente na sua grande maioria, adquiriram A criação de uma unidade central de apoio formada por técnicos experientes, altamente móvel,
direitos de “ocupação de boa-fé” do talhão em que residem, se nele estão instalados há mais de 10 com acesso a capacidade técnica especializada sempre que necessário, é um complemento indispen-
anos. Contudo, mesmo que uma família resida no seu talhão há menos de 10 anos, não haverá com sável à distribuição de capacidade técnica pelos municípios.
Como utilizar os recursos disponíveis para o melhoramento e reabilitação dos slums Qual a ordem de prioridades dos problemas, a atender primeiro? Onde começar? Em que cida-
Os slums são zonas urbanas que não oferecem aos seus residentes condições de vida minima- de? Em qual slum? Esta é uma série de questões muito difícil de responder e que requer decisões de
mente aceitáveis. Essas condições são de diferente natureza e devem ser estudadas e resolvidas com natureza política que devem ser traduzidas em documentos de orientação.
estratégias diversas. Os aspectos mais evidentes que requerem atenção e medidas correctivas são: Contudo, antes de se poder avançar, e com vista a enformar a decisão política, é necessário definir
• A ocupação de lugares inadequados onde o risco de inundações e enxurradas ou outras formas uma estratégia de base para a quantificação dos meios financeiros, técnicos e logísticos necessários
de erosão podem acarretar até à perda de vidas; à intervenção. Quais são os parâmetros essenciais a considerar para a elaboração dessa estratégia?
• Uma localização inadequada em relação à estrutura urbana da cidade, ao sistema de ruas e Tomando as indicações que nos vêm da situação atrás descrita, os seguintes aspectos deveriam ser
estradas ou à topografia do terreno; considerados como uma base sólida sobre a qual construir uma estratégia:
• A falta dos serviços básicos – água, saneamento, colecta de lixo, energia e comunicações; • A necessidade de um conhecimento íntimo da situação de cada slum no que diz respeito a todos
• Uma densidade humana exagerada; os aspectos acima indicados e a quaisquer outros, específicos de cada caso;
• A muito baixa qualidade de construção, quer nas habitações, quer nas outras construções; • A necessidade de serem considerados os direitos de todos os residentes como a primeira rea-
• A inexistência de uma rede viária adequada; lidade sobre a qual basear a intervenção: isto quer dizer que, mesmo num caso em que haja uma
• A inexistência de iluminação pública; necessidade imperiosa de transferir as famílias, cada família deve ter direito a uma compensação
• A inexistência de um sistema de identificação pessoal, tal como os nomes das ruas e os números proporcional ao valor da sua presente ocupação e situação;
nas casas; • A necessidade de se estabelecer um sistema de dados e de registo de cada caso e de cada ocupa-
• A inexistência de espaços públicos organizados; ção familiar, devidamente reconhecida e testemunhada pelos vizinhos;
• A insuficiente dotação em termos de equipamentos sociais, tais como, escolas, serviços médi- 270 271 • A necessidade de se conhecer o número de moradores, a sua ou as suas fontes de rendimento,
cos, mercados, comércio organizado, administração pública, polícia, equipamentos de lazer, edifícios etc.;
religiosos adequados e dignificados, equipamentos desportivos e culturais, bancos, etc.. • A inserção do slum na estrutura urbana e a sua ligação com o sistema viário, redes de infra-es-
Algumas outras características dos slums, em Moçambique, são menos tangíveis mas, nem por trutura, serviços, etc.;
isso, menos significativas para a vida dos residentes: • A topografia, hidrologia, geologia, ecologia, microclima e todos os parâmetros e dimensões do
• A falta de segurança em relação à ocupação do talhão; local;
• A ignorância relativamente aos direitos legais e aos mecanismos a usar e recorrer para a defesa • O potencial do município para fornecer os dados e as informações necessárias e para assistir ou
dos direitos próprios; levar a cabo o programa de intervenção;
• A falta de acesso ao crédito; • As possíveis alternativas para a transferência de todos, ou parte, dos residentes, caso tal seja
• A distância (psicológica e física) relativamente às autoridades municipais; necessário;
• A ausência de um espírito comunal e de motivação para iniciativas associativas;
• A falta de controlo de actividades criminosas e ilegais.
Naturalmente que nem todas estas condições existem em todos os slums e com o mesmo grau de
importância ou incidência, mas estes são problemas que devem ser considerados ao conceber-se uma
estratégia de intervenção para a reabilitação ou melhoramento dos slums.
Poderemos agora considerar a possibilidade de que, através de uma das agências de cooperação
bi ou multilaterais possa haver fundos disponíveis para intervir decisivamente no melhoramento ou
FSDFSD
reabilitação dos slums das cidades de Moçambique. DFDSGFDSFGV
O que fazer? DSFSDFDS
• A existência de organizações comunitárias ou sociais a envolver em todo o processo e nos con- sua realidade administrativa, ou sem o envolvimento da comunidade local e dos órgãos municipais,
tactos com as famílias; é perder a melhor oportunidade para formar as pessoas e construir a instituição.
• A estrutura da autoridade municipal no bairro. Arriscaríamos, agora, a definição de uma primeira prioridade: a criação e a institucionalização da
É fácil reconhecer que muita da informação e, em certos casos, quase toda a informação ne- competência interna para o planeamento e para conduzir, monitorar e realizar a aplicação dos ins-
cessária, ou não existe ou é impossível de obter com os meios técnicos e logísticos disponíveis nos trumentos de planeamento, em cada município. Para materializar este primeiro passo, ou prioridade,
municípios. Não só falta a informação, mas os próprios municípios não têm a capacidade necessária são necessários três recursos:
para dirigir e controlar as operações de inquérito, registo e criação de bancos de dados e sistematizar • Capacidade técnica e administrativa dentro do município;
o seu arquivo, consulta e actualização e, finalmente, fazer uso dessa informação. • Condições logísticas e materiais para o trabalho dos técnicos e para os serviços encarregados do
Esta situação é verdadeira, em graus diversos de gravidade, para todos os municípios do país, planeamento;
incluindo para a capital e todas as capitais provinciais. As operações referidas acima são uma con- • Apoio técnico e legal.
dição para a viabilidade de qualquer intervenção nos slums ou, pelas mesmas razões, para qualquer É este mecanismo, até agora praticamente ausente em todas as administrações municipais, que
intervenção na cidade. Não poderemos esperar por administrações municipais perfeitamente ope- deve tornar possível a organização e a operação do processo de participação.
rativas e equipadas com corpos técnicos experientes e competentes, para começar ou para manter Já vimos que no país podemos encontrar profissionais formados, em número suficiente, capazes
em funcionamento os programas de melhoramento ou reabilitação dos slums tão urgentemente e disponíveis para assumir as responsabilidades definidas nos termos de referência, aqui esquema-
necessários para as cidades de Moçambique. Mas devemos usar a oportunidade que se abre, para o tizados, para o seu trabalho. Os exemplos existentes provam a sua capacidade para se adaptarem a
lançamento e desenvolvimento de um programa de melhoramento dos slums, para construir a ca- condições muito difíceis de trabalho, produzindo resultados muito relevantes com um mínimo de
pacidade, adquirir a experiência necessária e criar as estruturas municipais administrativas e técni- 272 273 apoio técnico.
cas para o funcionamento correcto das nossas cidades. tornar os municípios capazes de identificar Esta é uma situação nova no país e o resultado de 28 anos de esforço, iniciados em 1977, com a
e quantificar o problema e dotá-los com os meios cartográficos e os dados técnicos indispensáveis formação de “agentes elementares de planeamento físico”, que culminou em 1991, com a graduação
a qualquer exercício de reabilitação ou reassentamento e com os meios necessários e suficientes dos primeiros alunos da Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico da (FAPF) Universidade
para o arquivo e consulta dos Eduardo Mondlane. A FAPF graduou, entretanto, mais de 250 arquitectos-planificadores físicos. A
Isto quer dizer que, assumindo que se materializem os recursos para um programa de “cidades maioria desses graduados manteve-se no país e, com uma produção de 15 a 30 graduados por ano,
sem slums”, o primeiro passo deve ser o de criar os mecanismos necessários para dados recolhidos. não é difícil encontrar elementos disponíveis para assumir estas tarefas.
O primeiro e o mais comum obstáculo ao projecto de uma intervenção viável e realística, em Onde as maiores dificuldades se manifestam e onde as contribuições exteriores podem fazer a
qualquer das nossas cidades, é, de facto, a falta das informações mais básicas e essenciais em forma diferença é na criação de condições de trabalho, tanto logísticas como financeiras, para pagar a esses
utilizável. Embora tenha havido uma série de exercícios de planeamento, desde os “planos de estru- técnicos, adquirir o equipamento e assegurar as condições de trabalho para os seus exercícios de pla-
tura”, aos “planos de desenvolvimento municipal”, aos “planos parciais ou planos de pormenor”, neamento. A presença desses técnicos na administração municipal não garante, por si só, a solução
encomendados e pagos a consultores de todas as partes do mundo, de dentro ou de fora do país, dos problemas de planeamento pois que eles deverão fazer face a um grande número de situações
que ocupam muito espaço em prateleiras e gavetas da administração pública, estes para pouco ser- que necessitam de apoio técnico externo, até agora impossível de fornecer, numa base permanente,
vem pois nem na sua elaboração nem para a sua impossível implementação se criou ou se envolveu a todas as administrações municipais.
qualquer grau de capacidade local. Estas considerações trazem-nos de volta ao primeiro elemento Esta situação requer que se estabeleça, como uma nova prioridade, a criação de um mecanismo
indispensável a qualquer estratégia de planeamento – a participação. de apoio de âmbito nacional para responder às necessidades dos serviços técnicos dos diferentes
A participação é uma forma de trabalho indispensável não só na procura de soluções para os municípios, resolver casos específicos de natureza técnica e funcionar como um mecanismo de cru-
problemas urbanos mas como um elemento indispensável à formação e treino dos órgãos operativos zamento de experiências e informações e, ainda, para contratar a capacidade especializada para a
do município (administrativos e técnicos). Preparar um plano, longe do seu contexto humano e da solução de problemas sui generis.
A natureza deste mecanismo, tal como a sua inserção no sistema municipal nacional, não é O problema de definir e quantificar uma contribuição decisiva para o melhoramento e reabili-
simples de definir e de quantificar. Contudo, é claro que deve ser fazer apelo aos técnicos mais expe- tação dos slums em Moçambique não pode, nos limites deste trabalho, ser resolvido ou mesmo defi-
rientes do país no sentido de trabalharem como consultores, na definição dos programas, estratégias nitivamente estabelecido. É nossa convicção, contudo, que sem os mecanismos propostos aqui nem
técnicas e soluções para cada problema que não possa ser resolvido localmente. Idealmente, deveria mesmo essa definição e essa quantificação serão possíveis ou válidas pois a aplicação de recursos, sem
ser um organismo independente, capaz de construir uma base filosófica para as grandes linhas de a correspondente capacidade para a sua administração, só pode levar ao desperdício e à frustração e
orientação do planeamento a serem propostas a todos e a cada município do país. Deveria, muito atrasar soluções estruturadas para, essa muito urgente, ordem dos nossos problemas urbanos.
provavelmente, ficar dependente de uma Associação de Municípios que lhe forneceria uma visão em Se a participação é a palavra-chave para o sucesso da melhoria dos slums e o planeamento é uma
profundidade e extensão, das dificuldades do planeamento urbano no país, e uma plataforma de dis- condição indispensável para a correcta utilização dos recursos, então o estabelecimento da capaci-
cussão das políticas produzidas como o resultado da experiência comum, que este órgão integraria. dade de planeamento é a condição indispensável para o sucesso da participação orientada para a
É nossa convicção que sem este mecanismo de suporte, a aquisição de experiência, em todas as utilização mais efectiva dos recursos disponíveis.
diversas situações e casos, não poderá ser suficientemente amadurecida nem transformar-se num Finalmente, gostaríamos de isolar um aspecto particular do impacto das operações de reabilitação
conjunto utilizável de regras e orientações para a actividade de planeamento urbano e, em especial, e melhoramento dos slums e que tem um valor fundamental para a sustentabilidade das intervenções.
para os programas de reabilitação e melhoramento dos slums no país. A aplicação de fundos e recursos externos no ambiente do slum pode e deve ser um momento privile-
A criação de um órgão de consultoria desta natureza necessita de recursos suficientes para os giado para providenciar emprego aos residentes, que poderão aprender novos ofícios e capacidades e
honorários, para o estabelecimento de condições mínimas de trabalho e para a sua própria adminis- desenvolver iniciativas económicas, contribuindo para um sentido positivo de mudança, sem o qual,
tração e um staff administrativo e técnico permanente. A logística desta componente, dentro da es- as causas para a situação de degradação subsistirão.
tratégia global, assume alguma importância dado que se deve prever uma grande incidência de trans- 274 275 A reabilitação de um slum deveria levar à criação de empregos permanentes, uma vez que a noção
portes e uma importância substancial de consultoria especializada. Deverão ser-lhe disponibilizados de serviços e benefícios comuns seja inserida nos valores comunitários, que deveriam, esses, ser uma
meios informáticos sofisticados e um sistema avançado de arquivação e distribuição de informação. das principais consequências de qualquer intervenção de melhoria urbana.
Este órgão deveria também assumir como tarefa sua, a preparação para publicação e dissemi-
nação da informação, como um veículo para os contactos entre os municípios e com organizações
internacionais congéneres. Finalmente, deveria ainda assumir a responsabilidade pela organização
periódica de encontros de natureza técnica onde as experiências e os avanços do planeamento no país
fossem discutidos e objecto de reflexão e análise crítica.
A descrição da natureza deste mecanismo de suporte deixa claro que não se propõe a duplicação
de qualquer estrutura governamental existente ou que se assumam quaisquer das suas funções. Essa
descrição pretende também clarificar a noção de que deveria ser um órgão administrativamente
muito “leve”, cuja utilidade dependeria exclusivamente da sua eficiência e capacidade de resposta.

Conclusão
Concentrámos as nossas observações e as nossas propostas nos mecanismos operacionais do pla-
neamento para um melhor ambiente urbano em Moçambique.
Após muitos anos de actividade de planeamento e de construção de instituições, este é o factor
FSDFSD
que consideramos decisivo para o sucesso na aplicação dos recursos, sempre escassos, para a solução DFDSGFDSFGV
do problema. DSFSDFDS
CONVENTO PARA IRMÃS CLARISSAS – NAMAACHA FILIPE BRANQUINHO
Kyoto, Iwami-Ginzan, Sassayama e Tokyo Na história moderna o homem interiorizou que há uma outra dimensão da paz a considerar, se
a sobrevivência da espécie deve ser assegurada: a da paz com a natureza.
6 a 13 de Novembro de 2010 Todos os conceitos de paz têm a sua importância relativa mas há uma hierarquia de valores a
considerar e um nexus entre aqueles aspectos, a estabelecer que pode ajudar ao nosso debate acerca
da paz e dos significados de espaço relacionados com aqueles conceitos.
O progresso da humanidade, desde o pequeno grupo de humanoides à situação actual de
consenso sobre a necessidade de trabalharmos em conjunto como espécie que deve ser con-
servada e reproduzida como colónia animal única neste frágil planeta, não produziu ainda os
mecanismos correctos nem as regras de interacção que levem o homem à paz dentro da espécie
e com a natureza.
Podemos encara este problema de muitas e diversas maneiras mesmo até da supostamente bem
definida perspectiva das dimensões do espaço.
O espaço é um, se não o maior, dos ingredientes do debate, da violência e da guerra.
O espaço é uma categoria política.
O TEMA DA PAZ: A RELAÇÃO DA PAZ Desde o inicio da história lebensraum, ou o espaço vital, exprimiu o território necessário à satis-
COM O ESPAÇO E DO ESPAÇO COM LUGAR fação da necessidades de alimento e abrigo do grupo humano.
278 279 A necessidade de defesa e de expansão foi-se tronando mais premente com o crescimento do
grupo e tornou-se a motivação para a violência e a guerra entre os homens e entre os homens e os
Será a paz dependente da qualidade do espaço? ou , talvez, será a paz dependente da quantidade do animais.
espaço? A invenção da agricultura e a sedentarização da humanidade promoveram a industria e a acu-
Este é um tema que envolve dois conceitos cheios de significado e que podem ser manipulados, mulação da riqueza.
desviados e usados de muitas maneiras, nem sempre da forma mais honesta e construtiva. Sobreviver deixou de ser a razão mais forte para as lutas entre os homens.
Quando consideramos a ideia de paz penso que deveríamos clarificar em que sentido a conside- O poder tornou-se a força abstracta motivadora do impulso original da sobrevivência do mais
ramos. forte.
Podemos ter paz de espírito, que é um derivado da consciência em paz ou de estar em paz con- O estatuto social reflectiu e promoveu o privilégio e definiu e caracterizou o espaço como o lugar.
sigo próprio, podemos estar em paz com a mulher ou com a família, podemos estar em paz com os Espaço e lugar definem status.
vizinhos, podemos estar em paz nação e podemos ter paz entre as nações. As três dimensões físicas caracterizadoras do espaço não têm significado ou valor sem a definição
A falta de paz indica um desequilíbrio entre necessidades e as suas satisfações. Podem ser necessi- do local em termos de latitude e longitude, posição na aldeia ou na cidade, no oásis ou na ilha, no
dades materiais ou emocionais; podem ser necessidades intelectuais ou sociais. vale ou na montanha, no palácio ou na cabana, a pé ou ou a cavalo, na ponte de comando ou no
As necessidades sociais satisfazem-se pela comunicação, protocolo ou hábitos e seguindo regras porão do navio, no átrio ou no sanctum santorum, na cozinha ou na sala.
de comportamento escritas ou assumidas dentro de cada cultura especifica. O planeamento físico à escala regional e urbana é um exercício eminentemente político e ideo-
O âmbito das necessidades materiais é vasto. lógico.
Pode a abranger a frustração do rico que não consegue o ano certo do seu champanhe ou a marca O projecto arquitectónico reflecte a organização social e o grau de integração ou segregação do
correcta do seu beluga caviar ou pode ser a manifestação da carência da mais ínfima quantidade de estrato social que serve.
alimento para sustentar a vida, no caso do pobre. Diferentes culturas e idades sentem o espaço de maneiras diferentes.
O espaço da meditação perturba e até atemoriza um jovem que busca excitação tanto quanto a efeitos que a sábia manipulação da luz, da sombra e dos materiais vivos podem trazer ao equilíbrio
discoteca perturba a paz de espírito de uma pessoa madura em busca de calma. emocional dos que os vivem.
Os espaços religiosos são, quase por definição, espaços de paz. Devemos reflectir sobre estas razões e entender porquê, tantas vezes e em tantas situações, inteiros
Será que esses espaços trazem sempre calma e repouso espiritual ou podem também, muitas ambientes construídos atingiram tal equilíbrio e paz.
vezes, ser o local da tenção emocional da agitação intelectual? Devemos rejeitar a fealdade que parece tão inevitável à nossa volta e nas nossas cidades quando,
Podemos nós acreditar que há lugares ( espaços carregados de significado) que, inevitável e con- com muito menos meios, os nossos antepassados puderam construir ambientes de paz e beleza com
sistentemente nos trazem um estado de paz quer como indivíduos quer como grupo? uma perfeita inserção no seu contexto natural.
Como arquitecto sei que o espaço pode produzir emoção. Sei que as emoções são condicionadas Devemos ser capazes de reencontrar a certeza de que a cidade deve ser um organismo coerente,
pela cultura. feito de estruturas compatíveis e integradas, completando-se mutuamente sem necessidade de cha-
Será que podemos encontrar e criar o espaço intercultural e o local universal da paz? mar a atenção para si próprias como se numa peça de teatro pudessem representar só prima donas.
Será que poderemos encontrar o epicentro da serenidade e tranquilidade definido pelas sua di- Devemos ter a coragem de produzir as nossas mais utilitárias, humildes e funcionais estruturas
mensões físicas? tão belas, tão dignificadas e respeitadoras do ambiente quanto as catedrais ou os monumentos que
As maravilhas naturais têm efeitos bem definidos sobre quem as experienciam. adornam as nossas cidades.
Os grandes momentos da natureza, o nascer do sol e a lua cheia saindo do mar têm o poder de Devemos tratar a cabana como o palácio e dar ao palácio a mesma dignidade que reconhecemos
criar estados de paz de espírito na maioria dos espectadores. na cabana.
As sombras profundas da floresta ou a fúria do mar contra as rochas são momentos e espaços Devemos trazer de volta a escala humana à cidade.
sentidos como forças sobrehumanas que ao homem a verdadeira dimensão da sua pequenez e, como 280 281 O estado actual do habitat humano, cada dia mais homogéneo na sua desumanização, leva a
tal, têm o poder de pôr em perspectiva a mesquinhez dos pequenos problemas e sentimentos de um progresso insustentável de limites alargados de tolerância pelos mecanismos de destruição das
todos os dias. relações naturais entre o homem e a natureza e entre os homens.
As ferramentas dos arquitectos são pequenas demais para emular tais dimensões e tais momentos. O crescimento sem planeamento das cidades acontece a um ritmo imparável empurrando, cada
Contudo devemos tentar. ano, milhões de famílias para condições inaceitáveis de falta de dignidade de vida.
Nós arquitectos que acreditamos que arquitectura é mais que construção, somos constantemente Essas condições vão continuar a promover descontentamento e reacção e a criar óptimas condi-
desafiados a atingir tal grandeza mas as solicitações de todos os dias para dar resposta às necessidades ções para a violência e a falta de paz.
práticas da sociedade multiforme levam-nos, facilmente, a esquecer que o espaço de paz pode e deve O ambiente urbana em que vive a maior parte da humanidade nos dias de hoje não será salvo por
ser o espaço de todos os momentos de cada dia. “boa” arquitectura ou mesmo por “bom” desenho urbano.
Neste sentido temos uma responsabilidade única: devemos produzir esses espaços. Não há soluções técnicas se não houver vontade política.
Tenho a convicção, e é meu credo, que o espaço de paz não deve ser a excepção, especificamente
pensado, raro e dificilmente encontrado.
Deve ser simplesmente o espaço da vida e pode ser, também, o espaço da morte.
Começa pela forma como inserimos as nossas construções na paisagem – e, por isso, devemos
entender a natureza e as forças que lhe dão forma.
Devemos também entender as forças que dirigem, ou deviam dirigir, a sociedade duma forma
justa e equitativa.
FSDFSD
Igualmente temos a considerar os instintos vitais, onpoder emocional e as fraquezas do homem. DFDSGFDSFGV
Devemos entender as dimensões exactas dos cinco sentidos do homem e saber controlar os DSFSDFDS
Ambientes de paz só podem existir onde a dignidade humana for suportada por alimentação
suficiente, educação para todos e relações sociais estimuladas, trabalho e possibilidade de escolha.
Os espaços da paz só acontecem quando e onde houver a vontade de criar um mundo de paz.
Onde essas condições existem boa arquitectura e bom desenho urbano são as melhores ferra-
mentas para a criação de lugares de paz de que todos necessitam e que todos, mesmo sem disso se
aperceberem, querem.
Em conclusão: é minha crença que devemos trabalhar para as mudanças sociais globais que
possam trazer as condições necessárias à criação de um ambiente global de paz onde o desenho do ha-
bitat humano seja tomado pelos profissionais como uma responsabilidade ética, não como um exer-
cício formal, onde não haja exclusão nem segregação e onde a natureza seja respeitada e preservada.
A estética do poder e o paradigma da autoridade devem ser desafiados.
No futuro devem haver mais parques que pirâmides monumentais, mais habitação digna e con-
fortável que slums, mais bibliotecas que quartéis, mais transporte público que helicópteros de guerra.
O espaço da paz pode ser e será o espaço de todo o lado.

282

CONCURSO DE REQUALIFICAÇÃO DA PRAÇA DA INDEPENDENCIA – MAPUTO JOSE FORJAZ • ARQUITECTOS


Maputo 29 de Julho de 2011 As maiores barbaridades como a de um museu em Londres com pouco mais de quatrocentos
metros quadrados que custou 11,5 milhões de libras !!!!! são servidas sem um comentário sobre a
enormidade desta realidade num mundo onde ¾ partes da humanidade não tem as mínimas condi-
ções de habitabilidade asseguradas.
Igualmente se poderia comentar sobre uma tribuna de imprensa para comentadores de cricket,
em Londres, que custou mais que um hospital regional em África.
Refiro estes exemplos não porque sejam excepcionais mas porque, infelizmente, são emblemá-
ticos da pornografia formal em que se refugiam arquitectos que, progressivamente, vão perdendo o
direito ao respeito que se lhes devia prestar.
O maior valor que se entroniza e se admira é a capacidade de se inventarem novas formas.
O endeusamento da suposta “imaginação” formal leva, sistematicamente, a que não se analisem os
custos das “novas” expressões plásticas ou se lhes contraponham os desempenhos essenciais que a
arquitectura deve cumprir como sejam os da sua integração no meio urbano e natural, a economia de
meios e de materiais, de energia e o controle dos factores poluentes, a facilidade da sua manutenção,
AS REVISTAS DE ARQUITECTURA DEVERIAM a sua duração, a sua adequação funcional e a qualidade poética dos espaços que, atendendo a todos
SER RESERVADAS A PESSOAS DE SÓLIDA aqueles factores, ela deve exprimir.
FORMAÇÃO MORAL 284 285

Num mundo de publicações profissionais e de divulgação onde a responsabilidade intelectual não é


sistematicamente posta em causa sob a capa demagógica da liberdade de expressão e da vacuidade da
produção artística, as revistas de arquitectura, do Japão à Espanha, da Holanda à Itália e da África do
Sul ao Equador, conseguem ser as campeãs do vazio crítico e da superficialidade de análise.
Salvo raríssimas excepções e mesmo essas, na maior parte das vezes, iniludivelmente tecnocráti-
cas, o material apresentado, e em geral bem apresentado, é um exercício de sedução visual e de com-
posição cada vez mais competente e sofisticado mas, na maior parte das vezes, focalizado exclusiva-
mente no efeito transiente e particular de um detalhe, um efeito de luz ou o resultado das acrobacias
técnicas que as modernas lentes fotográficas permitem.
Independentemente da qualidade da arquitectura apresentada, cujo valor comparativo nunca é
analisado, o que nos é normalmente servido é um texto acrítico e auto-referenciado, sem uma análise
dos parâmetros quantitativos e objectivos da obra, longe de qualquer consideração sobre o valor
ambiental e de sustentabilidade quantitativamente expresso e analisado, sem vida humana presente
ou aparente, sem as marcas do tempo e sem qualquer reflexão sobre o seu comportamento social ou
sua integração ecológica.
CASA ASTRID – MAPUTO FILIPE BRANQUINHO
Apresentação de uma exposição de fotografias do meu trabalho A nossa é uma batalha solitária que se combate em cada fase e em cada nível mas cada projecto
na Faculdade de Arquitectura da Universidade da Califórnia, que nasce do terreno trás um profundo sentimento de realização.
San Diego Alguns dos meus projectos foram concebidos e desenhados até ao mais ínfimo detalhe; outros
desenhados na terra com a ponta do sapato e marcados com um pau martelado com a pedra oca-
La Jolla, 1991 sional.
Alguns foram descobertos durante o processo da construção, outros na ponta do lápis.
O meu tem sido o amor pelo processo da construção, pela humidade do estaleiro, pela profani-
dade da confraternização do operário, pela reinvenção do edifício através da sua realização.
Depois há um tempo, quando os edifícios são ocupados, tão difícil como uma crise no casa-
mento: de alguma forma os valores emocionais investidos parecem desvanecer, confundidos com
problemas secundários.
Mais tarde (por vezes...) voltamos a perceber e dar valor à simplicidade da ideia original a respei-
tar-nos por isso.

O MEU TRABALHO
288 289
As fotografias nunca mostram as dimensões reais da arquitectura; quando muito transmitem algu-
mas das suas qualidades esculturais mas, raramente, o sentido e os valores do espaço.
As fotografias que apresento aqui mostram algum do trabalho realizado ao longo dos últimos 30
anos, sobretudo em África.
Cada projecto significa a procura da expressão de um conceito poético, como resultado do local e
do programa, do uso mais inteligente dos limitados recursos tecnológicos, pela economia dos mate-
riais e dos meios de expressão estéticos, pela integração das dimensões e dos elementos naturais, pela
simplicidade, pela clareza e por essa moral da forma a que chamo proporção.
Agora, como há 30 anos, sinto-me como se estivesse a começar. Cada projecto é um desafio
único e, como sempre, até que o conceito poético cristalize, toda a experiencia acumulada é
inútil.
Agora, como há 30 anos, estou só, de cada vez e sempre com a necessidade de inventar uma alma
antes de uma estrutura, um espírito de luz e textura, de som e materialidade, de cheiro e de eco à
transmissão da luz do dia e aos modos das estações do ano.
Para cada projecto, agora como há 30 anos, há uma luta por qualidade maior. Mais do que nunca
devo saber como construir e exigir respeito por dimensões e materiais.
Agora, mais do que nunca, vão-se perdendo os velhos saberes e a paixão pela profissão do cons-
trutor vai desaparecendo e isso torna a minha vida mais difícil em cada trabalho.
RESIDENCIA PRESIDENCIAL DA KHATEMBE – MAPUTO IWAN BAAN / FUNCHO ?
08 de Abril de 1998 O homem deve aprender e é por aprender que é homem, não por saber mas por saber que
não sabe.
Assim os homens começam a distinguir-se de si próprios e dos outros.
Há os que julgam saber e os que sabem não saber. Há os que, inocentemente ou não, se remetem
à inconsciência certa do saber suficiente.
Valham-nos os que redimem a espécie: as crianças
Elas perguntam, duvidam, maravilham-se com a descoberta e descobrem maravilhas.
Destas exaustivas categorias interessam-nos, quase por atitude moral, os que sabem da sua igno-
rância, quase porque...“deles será o reino dos céus” ou, melhor dizendo, deles sairá uma espécie mais
perfeita, mais adaptada e mais adaptável, uma raça de homens mais perto do objectivo último da
integração do espírito e da matéria.
Mas, porque o saber não é um acto meramente aquisitivo, mas sim elaboração, o saber não é
substantivo é verbo, valha-nos então a coragem de ser curiosos.
Porque o saber é sempre um acto de coragem, um permanente estar à beira do abismo, da verti-
INVESTIGAÇÃO gem do desconhecido, do risco de não sabermos afrontar o que está para lá do que sabemos.
O homem, para lá das suas funções metabólicas vitais distingue-se por outras dimensões únicas e
292 293 particulares: adquire conhecimentos, regista-os, codifica-os, armazena-os e transmite-os.
Os animais, mesmo os de mais completa organização fisiológica, nascem ensinados ou aprendem Destas três dimensões a primeira é aquela que mais profundamente distingue a dinâmica das
tudo até à maturidade sexual, até à sua largada no mundo adulto. épocas e das sociedades.
O seu aprender não é cumulativo entre gerações ou é-o pelas leis biológicas da especialização A aquisição de novos conhecimentos, a coragem de pensar para lá do já pensado é a dimensão
genética. que caracteriza os grandes momentos da história das sociedades humanas.
O homem não progride por instinto, ou não progride só por instinto. O homem deve aprender Da pedra lascada à idade dos metais, de Amon a Aton, de Aquino a Descartes, do renascimento
tudo. aos enciclopedistas, do analógico ao digital, do explorativo ao eco equilibrado, a sociedade humana
O que os animais herdam por instinto o homem deve aprender sempre por transmissão codifica- tem sempre progredido através da sua capacidade em adquirir novos conhecimentos.
da do conhecimento segundo regras que, não sendo sempre as mesmas, conduzem a níveis idênticos Na topologia deste processo a universidade tem ocupado, e deve ocupar, uma posição central.
de conhecimento. Mais que um lugar de armazenamento e transmissão do conhecimento a universidade é e
O homem, também nisto diferente do animal, duvida do que sabe. Questiona-se sobre a verdade deve ser cada vez mais o lugar da aquisição do conhecimento, da aquisição de novos conheci-
e a universalidade do seu conhecimento. mentos.
O homem compara-se à dimensão divina ou, o que é o mesmo, demoniza a dimensão humana. Isso faz-se investigando e é na investigação que cada universitário deve encontrar o significado
O homem, assim, “insatisfaz-se” ou, insaciavelmente, refaz-se. de ensinar pois só por investigar ele pode servir como modelo de intelectual, até porque a grande
O homem faz-se. alegria da aventura intelectual está, precisamente, na descoberta do que está para lá do sabemos;
Esta é, provavelmente a sua dimensão única, a mais humana e mais demoniacamente divina. está na descoberta do que está para lá do que os outros sabem; está na descoberta do novo, do
O homem cria, insuficientemente, a sua insuficiência e tem disso plena consciência. desconhecido.
Nisso o homem distingue-se do deus que ele próprio criou. Mas a universidade é, também e perigosamente o lugar do armazenamento do saber, o lugar
O deus sabe tudo. Chegou. É suficiente. privilegiado do saber rançoso e auto complacente, do saber acabado e arrumado. Estéril.
A universidade pode, também e ainda, ser o lugar onde se compra e se vende o saber. Se compra musical ou teatral, mas será que lhes deixa ficar gravada a dimensão poética mais profunda do acto
o que se pode comprar, onde se vende o que se tem para vender. criativo?
Este saber empacotado e com guia de entrega (o exame) é um saber perigoso, um saber engana- Em última análise, reduzido aquela dimensão, será ele próprio necessário?
dor, um saber terminal se não mesmo terminado. Não será que existem hoje, mais do que nunca, instrumentos para a aprendizagem autónoma
O que é mais frequente neste empacotamento do saber é confundir-se erudição com cultura. que, naquelas dimensões, substituem, mesmo com vantagem, a maioria dos professores?
Esta confusão é gravíssima e permite-me afirmar que conheço homens cultos que são analfabetos A minha tese é pois simplesmente evidente: ensinar é descobrir.
e doutores em filosofia que são incultos. Para descobrir é necessário procurar. Investigar.
A cultura, que é indispensável ao exercício do ensino, é uma actividade criativa, sintetizadora, Para investigar é preciso identificar o que é mais relevante e necessário ao progresso e à evolução
indutiva, inspiradora e inspirada; a cultura, como todas as culturas, faz nascer algo de novo, ela é do indivíduo e da sociedade em geral e em cada ramo da ciência, da filosofia e da arte em particular.
necessária e indispensável à função última da universidade: a luta pela descoberta do saber universal É evidente que, assim definido, o investigador, o professor-investigador é sempre um pioneiro,
e da verdade. um homem enraizado na sua época e na sua sociedade, um conhecedor profundo do já explorado,
No nosso caso, país marginalizado e na periferia do mundo desenvolvido, a responsabilidade descoberto e conhecido, um generalista que sabe o valor exacto e justo de cada dimensão do conhe-
da universidade e da sua atitude perante os problemas sociais, económicos e culturais é, se possível, cimento especializado no mosaico complexo e coerente do saber.
ainda maior É um homem que compreende profundamente as dimensões necessariamente poéticas da ciên-
A nossa responsabilidade é a de conseguir ultrapassar o atraso e a pobreza dos recursos com a uti- cia e as dimensões científicas da arte e que toma e usa a filosofia como a coluna vertebral estruturante
lização mais intensa e mais dedicada do “maquinismo” mais sofisticado e mais comum, mais único da sua razão e processo de pensar.
e mais acessível, mais resistente, mais económico e mais irreproduzível – o cérebro humano usado 294 295 É um homem cuja visão dos fenómenos é sempre global pois só assim sabe compreender o sig-
criativa e imaginativamente. nificado do particular.
O problema da investigação é que ela é uma actividade expressa por um verbo transitivo: quem Parece-me, e apenas com a dúvida indispensável, que o dito se aplica logicamente a todos os qua-
investiga, investiga alguma coisa. drantes do pensamento criativo: à filosofia, à ciência e às artes, que se complementam, se justificam
É esta a sua grande dimensão: o seu objectivo, o seu sujeito, a sua razão, a sua temática, em última e se realizam.
análise: a sua necessidade. Por que é que então, pelo menos no nosso meio, investigar é, ainda, tão raro?
O problema da universidade é que ela é um meio intelecto-social onde os objectivos didácticos Dizer que não há tradição não explica nada. Não há, por exemplo, tradição de acumulação de
nem sempre se sabem articular com os objectivos científicos ou neste âmbito, com os mais elevados riqueza e, no entanto, ela é hoje, no nosso meio, acumulada com uma rapidez e eficiência impres-
objectivos da investigação. sionantes.
O professor universitário que melhor cumpre a sua missão parece-me indiscutivelmente ser Apenas por falta de escrúpulo? Não me parece, julgo, sim, que por profunda motivação.
aquele que expõe aos seus alunos o processo da descoberta, o processo da elaboração mental que,
tomando o conhecimento já adquirido, abre sempre novas fronteiras lhe define novos limites.
É na exposição do seu processo de pensar, na generosa exposição das suas próprias dúvidas e so-
fridas certezas, na coragem da sua imaginação e na constante aferição da validade humana, científica,
ética e mesmo moral dos resultados que, perante os discípulos ele adquire, e só dessa maneira o pode
adquirir, o estatuto de mestre e o respeito que se deve ao pensador.
O professor que se limita à condição de transmissor de conhecimentos e de métodos, à exibição
FSDFSD
da sua auto complacente erudição, à récita ainda que iluminada do trabalho intelectual alheio pode- DFDSGFDSFGV
rá, no melhor dos casos, comover e mesmo empolgar os seus alunos como o faz um grande intérprete DSFSDFDS
Motivar, já uma vez o escrevi, não é dar o mote, é provocar razão, motivo.
É isso que nos falta mais. É isso que menos transmitimos.
Porquê?
Por um lado. porque os alunos não nos sabem exigi-lo. Toda a sua escolaridade foi feita à base do
exercício da memória, da lógica mecânica e enfadonha dos teoremas demonstrados, da falta de dis-
cussão e sobretudo de uma total ausência do apelo à imaginação, salvo raras e milagrosas excepções.
Por outro lado, e porque numa sociedade tão carenciada como a nossa o aluno é, inevitavelmen-
te, levado à noção de que a universidade é um passaporte para o privilégio social, antes de o ser para
um privilégio cultural; um instrumento para aquisição de habilidades profissionais antes de o ser para
aquisição de recursos intelectuais; um momento necessário, talvez mesmo infelizmente necessário,
para o progresso material e, mais perigosamente, o aluno é levado à noção de que o que aprende na
universidade, nos 3 ou 5 anos de um curso, é tudo quanto necessita de aprender para a prática da
sua actividade profissional.

296

MONUMENTO A CARLOS CARDOSO JOSÉ FORJAZ•ARQUITECTOS


Fevereiro, 2002 A pedra ou a madeira, a relva ou o vidro, o linóleo ou o metal, lisos ou texturados, polidos ou
riscados, amaciados ou bujardados, aplainados ou rústicos, são presenças e experiências marcantes e
definidoras dos ambientes que caracterizam.
Os materiais de construção são os resultados das duas grandes forças que movem a humanidade:
a inteligência e a necessidade.
Os materiais têm vida, são usados, envelhecem.
Os materiais são naturais ou transformados. Descontextualizados tornam-se em dimensões abs-
tractas e formais do universo das formas que nos cerca. 
O céu enquadrado pelas paredes do pátio ou recortado pelas cornijas torna-se em duas dimen-
sões, presença próxima, material.
A água, contida ou conduzida, e o fogo, domesticado no lar, são os exemplos mais elementares
dos materiais primordiais que o arquitecto deve aprender a dimensionar, a aprisionar técnica e poe-
ticamente.
O líquen sobre a pedra ou a prata acetinada da madeira oxidada pelo sol são tratamentos e quali-
OS MATERIAIS DA ARQUITECTURA dades que se devem aprender a respeitar, que enobrecem o material e quem o sabe usar.
Nos materiais da arquitectura o tempo tem ainda outras e mais extensas consequências.
298 299 Quantos sabemos utilizá-lo para enriquecer as presenças que criamos?
Os materiais essenciais da arquitectura são a poesia e a luz. Quantos sabemos contar com a patina da idade, com a cicatriz do uso, com o desvanecer da
A arquitectura, que é a arte da modelação espacial dos materiais para a materialização da constru- cor, com a incrustação do pó e com o raiar da chuva para dar mais valor e densidade aos nossos
ção é, antes de tudo, uma manipulação táctil da realidade. edifícios?
Essa realidade, objectiva e sensorial, advém de que o corpo contacta e sente a construção, o Talvez seja certo que expressão mais válida e mais profunda da essência do material se revela,
edifício. afinal, na ruína, que não é cadáver mas outra dimensão da realidade.
Todos os elementos que definem o espaço arquitectónico têm profundos valores sensoriais que J.B. Jackson escreveu sobre a necessidade das ruínas como um retorno às origens. 
lhes vêm da posição e do material. Da sua topologia e natureza. Da cobertura percebemos o grau de Mas será que a todos interessam as origens ?
protecção do edifício, o seu valor de abrigo essencial. Neste século, de ilusões interestelares e planetárias, o sintético e o plástico são, ainda, pobres
O seu peso, a sua presença mais patente ou mais ausente, mais próxima ou mais longínqua substitutos dos materiais primordiais cuja ciência e sensibilidade nos chega das origens.
dão-nos a noção da qualidade da construção, da sua solidez, da sua natureza e o estatuto social de A sociedade humana evolui porque sabe aprender da experiência acumulada por gerações e trans-
quem o usa. mitida pela ruína das ideias e dos edifícios.
O pavimento, a parede e a coluna, são elementos cujas superfícies de contacto, textura, cor e A ruína cristaliza a memória colectiva e o respeito pelo passado. O material que a conforma
ressonância nos afecta, nos atrai ou nos repele. assume um valor sacro e extrínseco que lhe vem da história e se resolve na forma.
O pavimento, a mais inevitável das experiências, é aquela que define o humano como grave com Na ruína reconhece-se a verdadeira natureza do material ou do que, no material, mais se aproxi-
massa e peso. A sua elasticidade, o som que cria, o fresco ou o calor que sente o pé que o pisa, a luz ma do natural pois , despojado do supérfluo, se revela apenas pelo essencial, ou por uma das formas
que reflecte, a humidade que absorve ou que mantém, a limpeza que exige ou facilita ou o respeito do essencial.
que inspira ou declina, são qualidades de que o arquitecto pode ter ou não consciência, mas a que E é assim, no confronto com a vida histórica dos materiais, que se avalia e se mede a qualidade
não pode escapar. e a nobreza do edifício actual.
Os materiais mais telúricos, mais directamente relacionados com a sua origem, menos transfor-
mados são, por isso mesmo, melhor percebidos e mais profundamente apreciados.
A terra, a pedra, a madeira, a argila crua ou o tijolo cozido, a água e o verde da planta domesti-
cada são o alfabeto básico das nossas sensações tectónicas.
Conhecemos-lhes o tacto e o odor, o calor e a frescura, o vergar e o partir, o reflexo relampejante
e o veludo da luz absorvida pela superfície opaca e densa.
Do gatinhar em criança vem-nos um conhecimento mais profundo destas dimensões do que o
que nos vem dos tratados de construção e da abstracção dos parâmetros físico-químicos. 
Quantos de nós, conseguimos manter, através de toda a vida, essa dinâmica do aprendizado dos
sentidos?
Os sentidos vão-se embotando e esse aprendizado primordial passa, depois, por interposta lite-
ratura.
A fórmula química, a equação matemática e os parâmetros físicos não substituem a sensação do
real ou do imaginado. A intuição da dimensão certa vem da atenção ao facto estrutural e da curiosi-
dade enriquecedora do querer perceber como funciona o mundo das formas naturais ou construídas.
Poesia e luz, dois materiais essenciais pois quando a luz se torna material, nas mãos do arquitecto
sábio, a poesia torna-se luz no espírito do homem sensível. 300
A arquitectura, como a mais mediata de todas as artes, é a que mais exige de atenção ao processo,
a que mais exige da ciência e da tecnologia. Exige tanto que, facilmente, o arquitecto confunde o
processo com o objecto, o projecto com a arquitectura, a construção com o edifício, o material com
a sensação. 
A arquitectura é uma invenção do espírito, nasce da visão, imaginada do espaço aprisionado
pelos materiais e só começa quando o processo de desmaterialização se completa e a ideia, luminosa
e poética, faz dos materiais nada mais do que veículos de sensação.

PAVILHÃO DESPORTIVO DA ESCOLA PORTUGUESA – MAPUTO FILIPE BRANQUINHO


Maputo, 27 de Junho de 2005 dos grupos culturais em eventos nacionais ou no estrangeiro, por exemplo, são a prova de que a
cultura local viva é respeitada, acarinhada e protegida, dentro dos limites do possível, e mobiliza
facilmente as boas vontades do povo e dos políticos.
O mesmo não se dá quando se trata de valores patrimoniais tangíveis e históricos, mesmo que
se trate de valores da cultura local, mas do domínio arqueológico ou sem significado e valor mais
imediato para os vivos.
O património contruído urbano é um caso particular.
Reconhecido oficialmente como valioso, em termos teóricos, na prática é abandonado ao ar-
bítrio de uma administração quase sempre sem a noção dos reais valores históricos e estéticos em
causa. Essa condição torna-o muito mais susceptivel à influência dos investidores e especuladores
imobiliários que se não compadecem com quaisquer dimensões de ordem cultural, histórica ou am-
biental e que, como em qualquer outro país, se aproveitam da vulnerabilidade cultural ou material
da administração pública para imporem esquemas em que a última consideração a ter é pelo valor
histórico, urbanístico ou ambiental do caso ou da situação em causa. Essa condição torna-o muito
O PROBLEMA DO PATRIMÓNIO HISTÓRICO mais susceptível à influência dos investidores e especuladores imobiliários que não se compadecem
EM MOÇAMBIQUE com quaisquer dimensões de ordem cultural, histórica ou ambiental e que, como em qualquer outro
302 303 país, se aproveitam da vulnerabilidade cultural ou material da administração pública para imporem
esquemas em que a última consideração a ter é pelo valor histórico, urbanístico ou ambiental do caso
A história dos povos só tem valor quando os povos a assumem como sua ou quando lhe compreen- ou da situação em causa.
dem o significado. Por outro lado, o problema do património construído tem sido sempre equacionado como um
No caso dos povos colonizados a história do colonizador, e os testemunhos da sua presença e problema cultural ou tecnológico e têm sido esquecido os problemas de ordem económica e de
da sua cultura material, não são necessária e pacificamente assumidos como valores a preservar e a ordem legal o que tem levado sistematicamente a situações sem saída possível pois faltam, ou não
respeitar, mesmo quando se lhes perceba um valor económico e comercial. se conseguem operacionalizar, os instrumentos legais necessários à materialização das intenções de
Naquela situação contam não só os aspectos de ordem política, emocional e psico-social mas restauro e manutenção nem os instrumentos técnico-económicos indispensáveis à definição das in-
também a incapacidade de perceber valores de ordem estética, sobretudo quando se trate de testemu- tervenções necessárias e indispensáveis.
nhos e de monumentos cuja idade torna aparente uma vetustez cuja presença não agrada e é tomada Qualquer intervenção de preservação no património construído levanta, no nosso caso, as se-
como falta de valor. guintes ordens de problemas:
No caso de Moçambique, por exemplo, essas preocupações pertencem à ordem dos problemas • Problemas de ordem legal, pois não existem mecanismos de expropriação para fins de preser-
chamados da “cultura” que, no panorama das carências generalizadas em todos os sectores vitais da vação;
vida nacional, são sistemáticamente relegados para planos de menor importância ou mesmo sistema- • Problemas de ordem económica, pois não existe a capacidade de promover as intervenções
ticamente esquecidos e afastados. necessárias à preservação das estruturas classificadas, mesmo naqueles casos que não implicam ex-
É então perfeitamente natural que se dê prioridade e atenção à preservação e valorização das propriação;
manifestações culturais endógenas, que todos sentem e entendem como suas, de que todos se sentem • Problemas de ordem cultural, pois as comunidades não estão habilitadas para fazer a definição
orgulhosos e com que todos vibram em perfeita sintonia de valores emocionais. do tipo, da extensão e da qualidade da intervenção a operar;
Os esforços investidos na organização dos festivais de canto e dança, na promoção da presença • Problemas de ordem técnica, pois não se mobiliza a capacidade existente para executar as inter-
venções com proficiência técnica quer ao nivel do projecto quer ao nível da execução, quer ao nível Parece portanto ser de esperar uma situação de “disciplina” de conservação, saudável e exemplar.
da fiscalização; Infelizmente, não é, esse, o caso.
• Problemas de ordem social pois a recuperação de elementos classificados do património cons- Julgo que três exemplos poderão dar a prova da inoperância dos mecanismos estabelecidos e
truído implica, na maioria dos casos, operações de realojamento sem garantia de uma justa compen- da incapacidade dos mecanismos de apoio e ajuda externos para conseguir superar essa lamentável
sação; condição.
Em face a este panorama, que não se confina ou se esgota no âmbito do património histórico Podemos, para começar tomar o caso da “Baixa”, ou seja o centro histórico do Maputo, capital
construido, vão-se manifestando os interesses de parceiros internacionais preocupados com uma macrocéfala do país.
situação de perda paulatina e irreparável dum património que é, de facto, de valor universal e in- Mesmo antes da criação do primeiro ministério da cultura, quando o orgão de tutela era ainda
substituível. uma secretaria de estado, nos fins dos anos setenta, uma equipa técnica dirigida por um arquitecto
Interessa agora analisar as razões da manifesta falta de operacionalidade e de resultados tangíveis português apaixonado por esta ordem de problemas, produziu um estudo de classificação da zona
e concretos, como resposta a várias e repetidas ofertas de apoio neste campo e, mesmo naqueles urbana e do estado e estatuto de cada edifício dentro da mesma zona.
casos em que se concretizaram intervenções, a razão do progressivo retorno a situações de renovada Esse estudo foi bem aceite pelo então Secretário de Estado e foi proposto como zona urbana de
degradação. intervenção controlada pelo orgão central do governo, isto é com poderes discriminatórios superiores
Quanto a nós estas razões devem-se sistematicamente às seguintes causas: ao do então Conselho Executivo da cidade, agora Conselho Municipal, necessitando de parecer do
• A priorização do interesse pelos aspectos estéticos e históricos, contra o background cultural já Conselho Nacional do Património Cultural para a aprovação de qualquer projecto de intervenção
referido; sobre qualquer edifício, conjunto urbano ou espaço livre desse conjunto urbano.
• A falta de consideração pelos aspectos socio-culturais do meio; 304 305 Nos últimos vinte anos podem contam-se pelos dedos da mão quantos pareceres foram pedidos,
• A falta de consideração pelo quadro legal da intervenção; e ainda menos quantos pareceres foram seguidos, sobre várias intervenções relativamente aquele
• A falta de consideração pela dimensão do real valor da intervenção e dos encargos de manuten- património classificado.
ção uma vez executada a obra; O conjunto da Baixa do Maputo continua a desagregar-se e a ser brutalizado por intervenções
• A ambiguidade ou mesmo a ausência do estabelecimento de um cenário plausível e estrutura- insensíveis ao contexto e à escala urbana, mesmo contra o parecer do Conselho Nacional do Patrimó-
do, económica e tecnicamente, e em termos de recursos humanos, para o uso, operação e manuten- nio Cultural, quando este, em raras ocasiões, foi pedido pelo ministério de tutela.
ção da estrutura reconstruída ou restaurada; Mais grave ainda, a Baixa do Maputo continua a ser preterida pelo estado como zona de desenvol-
• A inoperacionalidade dos mecanismos institucionais estabelecidos. vimento preferencial, que seria a única forma de a conservar e de a desenvolver, através de uma atenção
O caso de Moçambique poderia ser considerado particularmente significativo. renovada ao estado das suas infra- estruturas e à imposição, possível dentro da legalidade existente, da
O país dispõe de uma estrutura legal desenvolvida e, nas ocasiões apropriadas, afirma professar renovação dos edifícios de propriedade privada e dos edifícios que são património do estado.
um grande interesse oficial pelos problemas do património.
Na Africa subsaariana é um dos poucos paízes que conseguiu classificar um sítio como “patrimó-
nio mundial”: a Ilha de Moçambique.
Criou e mantém, ao nível de ministério, orgãos responsáveis pela cultura e pelo ambiente. Criou
e mantém um orgão consultivo, o Conselho Nacional do Património Cultural, que deve ser ouvido e
se pronuncia sobre questões de classificação, preservação e politica de criação de novos monumentos
e sítios do património.
FSDFSD
Classificou já um grande número de sítios e conjuntos monumentais como património cultural, DFDSGFDSFGV
sujeito a regras de intervenção clara e legalmente definidas. DSFSDFDS
Pelo contrário, permitiu-se a construção de toda uma nova zona, junto à Baixa, sem dispor de motivado e estimulado por pressões externas e pela percepção do valor especulativo do património
infra-estruturas adequadas, relegando o centro histórico para a situação de abandono presente, o que histórico.
afecta todo o panorama e o funcionamento da cidade. Durante estes trinta anos a história da degradação deste património, agora da Humanidade, que
Estamos portanto em frente a duas situações negativamente complementares: a falta de controle é a Ilha de Moçambique, pode tomar-se como uma enciclopédia dos erros táticos e políticos das
e a falta de iniciativa. variadíssimas acções e intenções de intervenção para a sua recuperação, quer em termos fisicos, quer
O segundo caso emblemático é o da Ilha de Moçambique. em termos sociais, quer em termos económicos.
Uma pequena ilha com cerca de 3 quilómetros por trezentos metros, esta ilha, a cerca de 4 qui- A Ilha tem agora mais de 15000 habitantes, mais pobres do que nunca, com maiores dificuldades
lómetros da costa e a ela ligada por uma ponte desde o fim dos anos sessenta, foi colonizada pelos de acesso a serviços básicos essenciais, e sem perspectivas de melhoria da sua condição.
portugueses desde os fins do século XVI tendo-se tornado, até aos fins do século XIX, o centro De há 7 anos a esta parte que o seu estatuto é de autarquia local, isto é, com autonomia politica
administrativo da colónia. e administrativa, elegendo um Presidente do município e uma Assembleia da Cidade e com um
Ao longo destes três séculos, a pequena cidade foi-se consolidando com um rico património certo grau de autonomia financeira, pois depende, ainda, em cerca de 50% do Orçamento Geral do
militar, civil e religioso, desproporcionado com a sua dimensão física. Estado.
A miscegenação de uma forte tradição suaíli com as importações culturais indo portuguesas, Entretanto construiu-se um aparelho legal e técnico-administrativo bastante desenvolvido na
mediterrânicas e atlânticas da cultura construtiva portuguesa produziu uma situação de enorme letra e na forma, mas que se tem revelado ineficiente e incapaz de fazer face à degradação contínua
fascínio que bem merece a classificação, que lhe conferiu a UNESCO, de Património Mundial da e agravada da Ilha.
Humanidade, há cerca de 15 anos. Entretanto sucedem-se as missões de assistência e cooperação multi e bi-laterais, os projectos de
Mas esta pequena cidade, fortemente urbana na sua densidade, função e posição no territó- 306 307 cooperação e mesmo alguns projectos de intervenção realizados com mais ou menos sucesso.
rio, é também um dos exemplos mais perfeitos da dualidade da topologia urbana colonial com A grande maioria desses projectos é uma repetição de projectos anteriores, que não fizeram mais
uma separação total entre os espaços e serviços dos colonos, daqueles onde se alojava a população do que aproveitar as análises e as estratégias já propostas pelos órgãos e consultores nacionais, na
indígena, relegada para o fundo da depressão criada pela extração da pedra coralina para a cidade maioria dos casos sem que sejam mencionadas as fontes ou os autores.
dos colonos. Gastam-se preciosos recursos financeiros para, supostamente, se definirem projectos financiáveis
Nessa outra cidade, a dos servos, já a miscegenação das formas de construir e dos estilos se não por agências de cooperação internacional e mecanismos de financiamento multilateral.
materializa e fica patente apenas a construção tradicional africana, com alguns elementos importados Os “estudos” e “relatórios” começaram logo após a Independência, com a vinda de especialistas
mas sem efeitos definitivos na melhoria das condições da habitação da comunidade indígena. estrangeiros que nos vieram dizer o que já sabíamos: que a Ilha é um património precioso, que as suas
Razões históricas determinaram o quase total abandono da cidade colonial. Primeiro, a perda da realidades físicas, sociais, económicas e culturais são as que tão bem conhecemos e que será necessário
sua importância administrativa com a transposição da capital do território para uma posição geo- construir uma estratégia de restauro da base económica e social da Ilha que viabilize e justifique a
gráfica mais estratégica; depois a perda da sua importância como porto de mar que servia uma larga recuperação do património construído.
faixa do Norte de Moçambique, com a abertura do magnífico porto de Nacala, um pouco mais ao Todos esses relatórios foram elaborados exclusivamente sobre informações recolhidas, trabalha-
Norte; finalmente, a independência nacional foi o momento em que a pequena minoria da popula- das e tratadas por técnicos e cientistas nacionais e nenhum apresenta qualquer estratégia articulada e
ção branca abandonou, quase por completo, a Ilha, por insegurança quanto ao futuro do novo país viável para cumprir os objectivos que se propunha atingir.
independente, e socialista. O mais extraordinário, inútil e caro destes documentos foi elaborado pela UNESCO, sob a
Estava-se em 1975-76. coordenção do Sr. Sylvio Mutal, que implicou a vinda a Moçambique de várias equipas de técnicos
São passados cerca de trinta anos em que se evoluiu de uma atitude oficial de grande sensibi- e cientistas e que, ao fim de quase dois anos de trabalho, apresentou, em 1998, um “Programme for
lidade aos valores a preservar, para uma posição de quase total insensibilidade e mesmo de recusa Sustainable Human Development and Integral Conservation” que deveria servir como um docu-
ao reconhecimento da importância da Ilha para, finalmente, uma situação de demagógico interesse mento guia para cumprimento desses objectivos…
Passados sete anos de inúmeras conferências de doadores, com enormes gastos em viagens, hó- A história da Ilha regista elementos patrimoniais desde os finais do séc. XVI (1580) até à actua-
teis, per diems e honorários, não se materializou, na Ilha, um só dos projectos previstos! lidade.
Mesmo quando os doadores já atribuíram os fundos para um projecto, como é o caso do restau- A ilha, e sobretudo a Vila, tem uma dinâmica histórica paralela à da Ilha de Moçambique com
ro e adaptação da Fortaleza, o projecto encontra-se, ainda, paralizado, passado mais de um ano da a sua progressiva perda de importância administrativa e comercial a partir do início do século XX.
concessão do financiamento, porque os termos de referência elaborados pelo consultor são manifes- A situação actual é semelhante à da Ilha de Moçambique, com a diferença de que não tem sido
tamente incompletos e irrealistas do ponto de vista técnico e financeiro. objecto do mesmo interesse e atenção, por ser mais remota e de mais difícil acesso.
Por outro lado, as poucas intervenções que se levaram a efeito como o restauro da Capela de E, no entanto, o seu interesse e fascínio não são menores e, em muitos aspectos, poderá até ter
Nossa Senhora do Baluarte, a estrutura da cobertura do Hospital e a casa do Bispo, hoje casa de um potencial maior para um desenvolvimento mais rico e variado.
hóspedes do governo, passados poucos anos, apresentam já sinais de degradação evidente devido O Ibo faz parte da Reserva Natural das Quirimbas, que tem uma importante componente con-
à insensibilidade e à incapacidade das autoridades locais para reconhecer a sua importância ou tinental.
possível utilidade. Esta classificação impõe-lhe regras bem precisas mas que, como habitualmente, estão já a ser
A situação actual da Ilha é a da realização de uma série de intervenções de restauro e alterações ao violadas, provavelmente por puro desconhecimento e, ou por incompreensão da administração do
património em mãos de privados, com mais ou menos mérito técnico-histórico-artístico, financiadas Distrito, a quem não é sequer distribuído o Boletim da República.
exclusivamente por capitais privados. O património cultural da ilha e Vila do Ibo é constituído por um núcleo urbano de valor
O projecto governamental de reabilitação da ponte arrasta-se há mais de 10 anos, tendo começa- arquitectónico menor, se considerado edifício a edifício, mas muito especial quando visto como
do, há poucos meses, uma primeira fase de reparações urgentes para se evitar o colapso da estrutura, conjunto.
mas que não resolveu o problema de forma definitiva. 308 309 Alguns elementos histórico-monumentais têm um grande valor iconográfico como casos únicos
Poderiamos indicar outras acções, como a do abastecimento de água à Ilha, com fundos da na geografia das construções militares do século XVIII e XIX. A tipologia arquitectónica é também
cooperação suíça e britânica, que continua a degradar-se nas suas várias componentes, possivelmente de grande interesse para a construção de uma identidade específica das ricas miscigenações expressi-
porque foi projectado e executado sem um estudo realístico de viabilidade técnica e económica, ten- vas que caracterizam a arquitectura erudita da costa leste Africana.
do-se revelado insustentável pois não há sequer consumidores suficientes para cobrir as despesas de O património cultural do Ibo é muito mais vasto e rico que apenas o da sua dimensão urbana,
operação e manutenção, nem capacidade técnica para a sua gestão comercial e operacional. arquitectónica e monumental.
O caso da Ilha é um caso fundamental pois reúne e acumula todas as dimensões do problema Os povos que se fixaram na pequena ilha desenvolveram tradições antigas do artesanato e da culi-
que aqui estamos a tratar. nária, da produção agrícola e do tratamento desses produtos que definem aquela geografia e aquele
O terceiro caso que propomos considerar é o da ilha do Ibo. grupo humano como um caso único e representativo da miscegenação cultural que abrange a costa
Trata-se de uma pequena ilha do arquipélago das Quirimbas, um conjunto linear de 32 ilhas no leste do Índico e junta o melhor do africano, do indiano e do europeu.
Norte de Moçambique, na Província de Cabo Delgado.
A ilha do Ibo tem cerca de 15 quilómetros quadrados, sendo a maior do arquipélago, a cerca de
400 metros da costa.
Rodeada por mangais, inscreve-se num círculo com cerca de 8000 metros de diâmetro. Com um
clima tropical sub-húmido, a ilha está exposta às monções anuais e a ciclones frequentes.
Na ponta nordeste da ilha situa-se a Vila do Ibo, fundada pela coroa portuguesa nos finais do
século XVIII.
FSDFSD
Por meados do séc. XIX, a Vila teria uma população estimada em cerca de 5400 pessoas sendo a DFDSGFDSFGV
população actual da ordem das 3500 pessoas. DSFSDFDS
Conceber qualquer intervenção de salvaguarda do património sem a atenção devida a estas di- A segunda reflexão, identicamente importante, é a de que, na condição de carências básicas dos
mensões, tão ricas e necessárias à economia da ilha, é um erro imperdoável e deixa de fora o que nossos países, e particularmente nos meios urbanos, a importância de alguns edifícios e elementos
tem talvez maior significado emocional e potencialmente económico para a vida das pessoas da ilha. da paisagem urbana ou natural é, para a maioria da população, muito secundária em relação às suas
O trabalho da joalharia da prata e do ouro, a antiga tradição do trabalho do ferro forjado, a car- outras preocupações, mais imediatas e vitais.
pintaria de inspiração suaíli e indo-portuguesa, a cultura do café, a seca e a fumagem do peixe e dos Nestas condições, a importância de acções de valorização do património passa necessariamente
vegetais, as lendas e a história oral, a dança e as receitas de beleza feminina, a farmacopeia que utiliza pala sua inserção em programas de melhoramento da qualidade de vida da população local.
as plantas medicinais da terra, tudo faz parte de um património que não deve ser considerado isola- Este aspecto é particularmente relevante em situações onde o que conta é o valor do conjunto
damente mas apreciado e valorizado como o verdadeiro espírito do lugar e reproposto a uma nova urbano visto que o impacto da intervenção é mais abrangente.
sociedade que se deve sensibilizar para esses valores ancestrais com tantas qualidades insubstituíveis. A terceira reflexão decorre naturalmente das duas primeiras e tem a ver com as seguintes condi-
O que se diz aqui em relação à ilha e à Vila do Ibo pode e deve ser considerado, com as mesmas ções, sine qua non, para o sucesso de qualquer projecto:
valências, para a Ilha de Moçambique e para todos os casos em que a revalorização de um conjunto O projecto deve ser exequível com os recursos locais, ou pelo menos com a máxima incorpo-
urbano histórico e monumental implica uma acção de reconstrução do tecido e da vida social. ração de capacidade local, e deve prever a formação de capacidades para a operação e manutenção
A nossa experiência com uma entidade privada que se propõe investir na reconstrução de toda a das estruturas recuperadas. Isto quer dizer que, sem a garantia da criação institucional dos postos
ilha e da Vila é a de que ainda não conseguimos despertar-lhe esta sensibilidade e a nossa cooperação de trabalho para a futura operação e manutenção das estruturas recuperadas, não se deveria sequer
se resumiu, até agora, à elaboração de um plano director para a ilha que, naturalmente trata exclusi- arrancar com o trabalho de recuperação.
vamente das suas dimensões físicas e infra-estruturais. A administração das operações de recuperação deve ser sempre da responsabilidade local, asses-
Toda a nossa mobilisação para a recuperação da estrutura socio-económica da população, com 310 311 sorada com a capacidade especializada necessária e que deve responder pela boa gestão dos meios
base no seu potencial cultural e produtivo falhou até agora, com inevitáveis consequências quanto a disponibilizados.
uma desejável adesão das pessoas à ideia de uma recuperação dos edifícios, o que as desmobiliza, en- A formulação e a preparação dos projectos técnicos deve ser da responsabilidade de técnicos
quanto os edifícios são marginalmente ocupados por um hipotético sector turistico, necessáriamente locais assessorados, quando necessário, por especialistas das diversas disciplinas, em falta no meio
limitado e exclusivo. técnico local. O seu conhecimento da realidade e das práticas e potenciais locais é essencial para que
Mais grave é a situação quanto seria irrisória a soma a investir inicialmente para motivar uma se garanta o sucesso do projecto atempadamente e dentro do orçamento previsto.
séria de pequenos projectos a desenvolver com a população local, que assim se sentiria envolvida no Uma reflexão final, que se nos oferece fazer, reconsidera as raizes do problema:
projecto, a uma escala mais vasta, e poderia dar um contributo indispensável à necessária e obrigató- Como se pode mobilizar a vontade política e estimular a sensibilidade da população para o
ria auto reconstrução da Vila, única possibilidade para efectivar essa intenção. reconhecimento do valor e da importância do património a preservar e como desenvolver a cons-
Três casos podem ser ilustrativos de dimensões diversas do mesmo problema. ciência das vantagens que o seu restauro e utilização têm sob o ponto de vista cultural, social e
Como compreender essas dimensões e considerá-las para a construção de estratégias seguras para económico?
a salvaguarda e o aproveitamento do património cultural nos nossos países? Não há, em nossa opinião, uma chave mágica que nos abra o segredo destas questões.
Uma primeira reflexão, que nos parece evidente, é a de que não são praticáveis projectos depen- Parece-nos que a atitude correcta deve ser a de considerar cada caso e cada situação pelo seu mé-
dentes, para a sua execução, operação e manutenção, da presença esporádica de técnicos ou coorde- rito próprio e nas suas condições específicas, e não arrancar com qualquer intervenção sem primeiro:
nadores estrangeiros. • Garantir que o projecto faz parte de uma estratégia geral de recuperação do tecido social e da
O corolário desta primeira reflexão é o de que os projectos devem ser sempre identificados e cons- sua base económica;
truidos pelos e com os residents, contando com as suas limitações e com as suas estruturas administra- • Envolver na definição do projecto a população local afectada e beneficiária directa do projecto
tivas e técnicas, que serão aquelas que, em ultima análise, serão responsabilizadas pelos resultados das • Identificar os responsáveis pela manutenção das estruturas a recuperar e assegurar que estão
intervenções. criadas as condições para essa manutenção:
• Assegurar a qualidade técnico-artistica dos projectos e a sua viabilidade económica e envolver
na sua elaboração o máximo de capacidades locais;
• Criar os mecanismos de fiscalização da execução dos projectos sob os aspectos técnicos e finan-
ceiros;
• Assegurar o cumprimento das fases posteriores (operação e manutenção);
Sem que estejam asseguradas todas estas condições não se pode esperar que qualquer projecto
possa resultar com sucesso.
O segredo é o de conseguir que todas essas condições estejam asseguradas à partida.
Para esta questão não há respostas prontas e generalizáveis dentro das nossas condições culturais,
sociais e económicas, como foi afirmado no início deste ensaio.
Parece-nos, no entanto que a prática corrente tem dado resultados negativos e que a alternativa
que se propõe não implica riscos adicionais e garante mecanismos de execução e controlo mais
efectivos.

312

MUSEU DAS PESCAS – MAPUTO FILIPE BRANQUINHO


Maputo 28 de Abril de 2008 A situação transformou-se substancialmente e continuará a agravar-se visto que a autarquização
não pode senão prosseguir e expandir o número de aglomerados humanos com a obrigação legal de
ordenarem o seu território.
Por outro lado, torna-se cada vez mais difícil e mais inaceitável que sejam os organismos centrais
do estado a assumir responsabilidades técnicas para as quais não estão nem vocacionados nem pre-
parados.
O problema tende também a agravar-se exponencialmente com o rápido crescimento das zonas
urbanas do país e a expansão desordenada dos seus territórios, que contam já com cerca de 3/4 da
sua população a habitar áreas sem qualquer estrutura planificada e ordenada.
A solução, que tem sido mais seguida, da “encomenda” de planos de ordenamento a entidades
técnicas contratadas, cuja ligação com as autarquias é esporádica e existe apenas enquanto dura a
elaboração do plano, cessando completamente uma vez o plano elaborado, é contraditória com a
visão implícita na Lei do Ordenamento do Território que define a actividade de ordenamento, não
com um produto, mas sim como um processo.
NOTAS SOBRE A CRIAÇÃO DE UMA “AGÊNCIA” Naturalmente que, para que essa actividade seja efectivamente um processo, será necessário que
NACIONAL DE PLANEAMENTO URBANO as autarquias tenham capacidade para o desenvolver e o gerir.
(E HABITAÇÃO) 314 315 Torna-se portanto evidente que o momento da elaboração dos planos é o momento privilegiado
para a formação da capacidade necessária à sua gestão e à sua permanente revisão e expansão.
Este ensaio tem como razão de ser a proposta de um mecanismo de âmbito nacional de apoio aos
municípios e autarquias com vista à elaboração dos planos e estruturação da capacidade local para a sua
A ausência de um mecanismo técnico de apoio aos municípios para as suas actividades de planea- gestão e revisão acompanhada, tanto quanto se revele necessário em cada caso, uma vez que não parece
mento físico tem encontrado, apenas, soluções muito particulares e dependentes de factores aleató- possível nem adequado que sejam os organismos centrais do estado a elaborar esses instrumentos de
rios para se efectivarem e se tornarem operativas. ordenamento nem a assumir a responsabilidade pelo apoio à estruturação dos serviços de planeamento
Essas soluções têm sido de várias naturezas: e pela formação dos seus técnicos e funcionários, em cada município; uma vez que não seria viável
– Planos executados por organismos nacionais ou por eles encomendados a consultores pri- a construção de dezenas de processos de concurso para essas actividades, sistema esse que em nada
vados, normalmente estrangeiros contribuiria para uma transmissão de experiências e de resultados; uma vez que as deseconomias dessa
– Planos encomendados ou sugeridos por agencias bi ou multilaterais de cooperação interna- solução são evidentes, pois não se pode tirar partido de vantagens geográficas e de economias de escala
cional e dependentes de financiamentos externos da operação, parece inevitável encontrar uma solução alternativa que maximize o potencial existente no
– Planos a muito pequena escala, executados pelos próprios municípios país, que contribua para o seu desenvolvimento, para um apoio constante aos municípios.
Qualquer destas modalidades é aleatória em relação à sua disponibilidade para uma solução con- A nossa hipótese de trabalho é que tal organismo possa ter a forma de uma empresa pública,
sistente que cubra todas as necessidades do país neste sector técnico e estratégico. estruturada em todo o território nacional, dotada com os meios humanos e materiais necessários
Com a recente expansão do número de autarquias, e com a entrada em vigor da Lei do Ordena- para poder assistir , dentro de um prazo curto, a todos os municípios preparados para receber essa
mento do Território, a situação do planeamento urbano no país mudou de natureza e de importância assistência.
pois a existência de planos de ordenamento do território das autarquias é agora um requisito legal e O país tem agora capacidade técnica disponível para constituir e manter operacional uma orga-
inadiável, independente da decisão de cada autarquia. nização dessa natureza.
Este modelo é conhecido e tem dados bons resultados em muitos países e cidades. Por extensão e pelas íntimas relações disciplinares, administrativas e políticas a organização pro-
As vantagens deste modelo são múltiplas: posta poderia perspectivar acções técnicas no âmbito da problemática da habitação.
– É um instrumento essencialmente técnico e portanto capaz de assegurar a continuidade das Na prática o que se propõe é um mecanismo de consulta urbanística e de formação de quadros
seus quadros, conhecimentos, memória institucional e estratégias, através das várias adminis- técnicos dos municípios capaz de assessorar directamente os conselhos municipais, na organização
trações municipais eleitas periodicamente; das suas estruturas de planeamento, na execução de planos a todos os níveis e na formação de qua-
– Constitui um meio de permanente formação de técnicos para a sua progressiva integração dros técnicos, para o cadastro e planeamento urbano.
nas administrações municipais; Este mecanismo poderá tomar a forma de uma empresa pública com âmbito geográfico nacional
– É um instrumento multidisciplinar, sem dependências sectoriais, aberto a um progressivo e presença regional, pelo menos numa primeira fase, e provincial numa fase mais avançada do desen-
e simplificado processo de revisão e melhoramento das suas estratégias de acção e das suas volvimento das suas capacidades.
estruturas técnicas e operativas; Os pólos regionais, cobrindo três a quatro províncias, seriam equipados com os meios necessários
– Não estaria sujeito à escala salarial do estado, podendo competir com outros empregadores a uma acção muito pontual cobrindo progressivamente todos os municípios da respectiva região.
de interesses privados e especulativos; A sua dependência disciplinar e administrativa poderia ser supra ministerial, uma vez que é uma
– Com uma missão claramente definida como nacional, não estará sujeita a pressões de or- organização multidisciplinar e não directamente envolvida em produção regulamentar ou legal, mas
dem politica para privilegiar esta ou aquela região ou município mas, pelo contrário deverá sim em aspectos estritamente metodológicos e técnicos.
cobrir, tão cedo quanto possível, todo o território nacional; As suas fontes orçamentais seriam naturalmente por conta do orçamento do estado mas será
– Permitirá a criação de um escol de técnicos nacionais com profunda experiência de campo, natural pensar-se que uma organização com as atribuições definidas seria certamente um destino
ao mesmo tempo que contribui para a sua fixação, evitando a fuga de cérebros; 316 317 privilegiado para contribuições das organizações mundiais interessadas em desenvolvimento urbano,
– Simplifica enormemente o sistema de fornecimento de serviços ao estado pois situa-se erradicação de slums, habitação e sustentabilidade ambiental.
ao nível do aconselhamento técnico e da formação, não competindo com fornecedores de Eventualmente os seus encargos financeiros deverão ser progressivamente cobertos pelos orça-
serviços de consultoria; mentos municipais.
Uma estrutura com as características acima descritas será relativamente simples de montar e pôr A concentração de contributos financeiros numa tal organização seria sem dúvida uma aplicação
a trabalhar no terreno, logo que os seus parâmetros financeiros sejam definidos. de capital de alta rentabilidade operacional e essencial para a efectivação da política nacional de or-
Esta estrutura teria um carácter nacional, mas dependeria para a sua efectiva acção no terreno da denamento espacial urbano, cuja urgência se torna cada dia mais premente.
instalação de pólos regionais com uma grande capacidade logística no que diz respeito à sua mobili-
dade no terreno e aos seus meios itinerantes de trabalho.
O seu nível central funcionaria como direcção técnica e de definição de estratégias, como unida-
de de controlo e monitoria das acções no terreno, como central de preparação das acções de formação
e como pólo de disseminação de informação.
Uma das suas actividades fundamentais seria a da angariação e distribuição de financiamentos e
do controlo orçamental de toda a organização.
A organização que se propõe pode e deve ser, na nossa visão, o recipiente mais qualificado para
todo e qualquer financiamento multi ou bi lateral, dando à partida a garantia de que todos os meios
financeiros empregues ficam no país e são directamente empregues não só na solução dos problemas
FSDFSD
reais dos aglomerados humanos do país como na construção de um sistema de formação e acompa- DFDSGFDSFGV
nhamento das acções de ordenamento urbano em todo o território nacional. DSFSDFDS
CEMITÉRIO DE MICHAFUTENE – MAPUTO JOSE FORJAZ • ARQUITECTOS
Maputo, 6 de Outubro de 2008-10-06 de proporcionalidade entre a população de Maputo e a de cada cidade e aplicar o respectivo factor
multiplicador e ter-se-á o volume a fornecer para que se garanta a mesma qualidade de vida, no que
diz respeito às necessidades de água mínimas da sua população.
Assim Quelimane, por exemplo, precisa de cerca de 21.000 m3 diários, isto é um volume de 83 x
83 x 3m de água a fornecer diariamente; a Beira um volume da ordem dos 52.000 m3; Nampula um
volume da ordem dos 37.000 m3 e uma pequena cidade como Metangula necessita de um volume
da ordem dos 1.250 m3 diários ou, visualizando-o, um volume de cerca de 20 x 20 x 3 metros de
água a fornecer por dia.
Qual o “estado da arte”em relação ao estabelecimento destas capacidades de captação, etc.?
Há, para todas as cidades, um plano, pelo menos teórico, para o asseguramento destes volumes?
Terão, esses planos, um suporte técnico e económico que permita tomar decisões económicas e
financeiras?
Trazer estes números, e estas questões, a uma audiência de técnicos e especialistas, como os que
estão aqui reunidos, é uma ingenuidade quase imperdoável e só me desculpo porque sei que há entre
ÁGUA PARA AS CIDADES as pessoas aqui presentes algumas que, não sendo técnicos, não têm a noção física e objectiva da
dimensão do problema que aqui nos traz.
320 321 Por outro lado, em discussões muito marcadas pela presença de técnicos especialistas, há uma
Maputo usa, ou deveria usar, 1.800.000 litros de litros de água por dia. tendência geral de se esquecer a essência do problema, dada a complexidade das dimensões técnicas
Isto são 18.000 metros cúbicos por dia, que correspondem a um volume com 30 m de compri- do problema.
mento por 30 m de largura por 20 m de altura. Uma vez dimensionado fisicamente o problema, interessa agora equacioná-lo em termos polí-
Sem que esta seja água fornecida todos os dias à cidade, a população, ou parte dela pelo menos, ticos.
começa a morrer por desidratação... o que parece não ser, ainda e felizmente, o caso. Qual a responsabilidade do estado em relação ao fornecimento de água à população urbana?
Mas beber água não chega para sobreviver. Se partirmos de uma posição mais radical diríamos que a água é um direito de todos os cidadãos
É necessário cozinhar, lavar roupa, lavar o carro, regar as machambas, os quintais e os jardins, e que, como tal, lhe deve estar assegurado pela administração pública.
produzir Coca-Cola (e outra água suja...) e fornecer as indústrias, construir edifícios e ruas, dar de Mas de que água estamos a falar?
beber aos animais, lavar os vivos e os mortos, etc., para o que o valor a considerar deveria ser de uma Certamente de água limpa e suficiente.
ordem de cerca de 70 vezes aquela, isto é, da ordem dos 125.000 m3 se, para todos aqueles usos, nos Mas quanta?
contentássemos com 100 litros de água por pessoa por dia, que é um valor extremamente baixo para Quanta chegue para beber e para todas as outras funções vitais.
a capitação urbana nos países industrializados. Aqui começam já as definições de carácter político.
Essa demanda corresponde a um volume da ordem dos 200 m de comprimento por 200 m de Seria, por exemplo, correcto estabelecer-se que há um mínimo necessário, e garantido, acima do
largura por 3 m de altura a alimentar, todos os dias do ano, para a cidade do Maputo. qual deve haver uma compensação proporcional ao gasto?
Toda esta água deve ser captada, tratada, bombada, transportada, elevada e distribuída, todos os Já se fizeram as contas que permitam estabelecer a viabilidade politico-económica deste sistema
dias e a todas as horas do ano, se pretendermos ter uma qualidade de vida minimamente aceitável, de nivelamento de regalias?
de acordo com parâmetros internacionalmente aceites. Nas investigações que fizemos para avançar com os nossos exercícios de requalificação dos bairros
Para as outras cidades do país as contas são igualmente elementares: basta estabelecer as razões informais do Maputo encontrámos números assustadores, como por exemplo no Bairro do Cha-
manculo C, onde as pessoas pagam a privados o litro de água 30 vezes mais caro do que eu pago na melhoria, como por exemplo as latrinas ecológicas, funcionando por desidratação solar das efluen-
Polana. tes, poderão ter resultados muito positivos se a sua introdução corresponder a campanhas bem
Aliás nesse Bairro, com cerca de 30.000 pessoas, havia 14 fontenários dos quais 9 estavam inope- organizadas de trabalho com as pessoas para que as aceitem e mantenham em correcto funciona-
racionais! mento.
É evidente que as pessoas não dependem dessa forma de abastecimento… Senão morriam à sede.
A pergunta – ingénua certamente – é se não seria possível vender a água, às mesmas pessoas que
agora se abastecem dos privados, a um custo muito mais baixo e assegurando, pelo menos, a cober-
tura das despesas de construção e operação do sistema?
Parece, portanto, haver, essencialmente, dois problemas:
O primeiro é de saber como assegurar os caudais de água que as cidades necessitam...ou deveriam
necessitar para assegurar uma vida saudável à população e responder às necessidades do desenvol-
vimento económico, e o segundo é o de poder assegurar que as pessoas paguem o suficiente para
estabelecer, operar e desenvolver o sistema de abastecimento.
Pensamos que estes são problemas de natureza técnica e político-social que não devem ser ne-
cessariamente resolvidos pela mesma autoridade, pelo menos nesta fase do desenvolvimento das
estruturas administrativas do governo central e dos governos municipais.
Pensamos que enquanto o abastecimento de água às cidades é um problema regional que ultra- 322 323
passa a capacidade e a jurisdição municipal, o problema da distribuição é claramente um problema
local e que só com a organização municipal terá solução.
O problema é, no entanto, de carácter eminentemente político pois que quem faz as leis e quem
estabelece as tarifas não são as pessoas que não podem pagar mas os que já beneficiam dos privilégios,
quer por via politica quer por via administrativa, duas vias aliás cada vez menos distintas.
Antes de nos referirmos ao problema do saneamento, queremos também referir um aspecto
que nos parece não ter tido suficiente atenção por parte das autoridades administrativas e técnicas
responsabilizadas pelo abastecimento de água potável às zonas urbanas: trata-se do papel que deve
ter a educação da população das pessoas em relação ao problema da água em geral – como é obtida,
transportada, consumida e aproveitada ou esgotada.
Sendo a nossa população urbana ainda de origem predominantemente rural – mesmo aquela que
já habita a cidade há gerações – ela não adquiriu, em muitos casos, hábitos e noções “urbanas” no
que diz respeito aqueles aspectos.
Temos experiências, muito válidas e de eficácia comprovada, no campo do saneamento básico
por exemplo que se poderiam reproduzir a custo mínimo e que em muito contribuiriam para um
enorme salto quantitativo na qualidade de vida das pessoas, sem necessidade de enormes investimen-
FSDFSD
tos em infra-estruturas e sua operação e manutenção. DFDSGFDSFGV
Outras experiências, de carácter mais tecnológico e que poderão contribuir muito para essa DSFSDFDS
CAPELA PARA CAMPUS DA UNIVERSIDADE CATOLICA – NACALA (?) JOSE FORJAZ • ARQUITECTOS
22 de Setembro de 2014 Por outro lado, consideramos como altamente relevante e de importância capital a construção
do habitat urbano “espontâneo” pois, não tendo nada de tradicional, é um elemento decisivo na
paisagem das nossas cidades e explicita, talvez da forma mais clara, as tendências da evolução e as
ambições duma sociedade a quem tem sido negada, a todos os níveis, a formação de uma cultura
visual e estética.
Este quadro de referência parece-nos suficientemente simples e sólido para sobre ele construir
uma análise objectiva que permita um prognóstico e que chame a atenção para o que consideramos
o futuro ameaçado do planeamento físico e da arquitectura em Moçambique, caso não sejam con-
siderados e debatidos os temas que, desta maneira, proponho a debate nos centros de ensino, pelos
profissionais e pelo público em geral.
Consideremos, portanto, o passado e as condições em que se está estruturando o presente para,
nessas bases, arriscar a imagem do futuro.
No quadro de referência considerado, a arquitectura em Moçambique, e particularmente a
arquitectura urbana (pois aquela que é praticada noutros contextos, na maioria dos casos, apro-
O FUTURO DA ARQUITECTURA ( EM MOÇAMBIQUE) priou-se dos modelos urbanos) foi, desde o século XVI e mesmo antes, o resultado da importação
de modelos europeus e também da bacia do Índico, aplicados sobretudo na faixa costeira e em
326 327 situações defensivas e de maior concentração dos colonizadores europeus, do médio oriente e da
Esta reflexão, quase em forma de testamento, faço-a sem amargura, desilusão ou má vontade mas Índia.
apenas como resultado da minha participação, a várias escalas e competências, no projecto de espaços O Ibo, a Ilha de Moçambique, Sofala, Tete, Inhambane e, mais tarde Lourenço Marques, hoje
e edifícios, públicos e privados, e na formação de arquitectos e planificadores físicos em Moçambi- Maputo, são alguns dos mais importantes e explícitos testemunhos daquilo a que podemos chamar
que, nos últimos 50 anos. a génese da arquitectura e da estrutura urbana eruditas em Moçambique.
É uma reflexão a que me julgo obrigado, dada aquela experiência e a maturidade profissional e Não seria, aqui, possível nem apropriada uma análise exaustiva daquela arquitectura, baseada
didáctica adquirida, pois não conheço, na literatura científica e técnica, nenhum trabalho que tenha quase exclusivamente, em modelos importados, desadequados em relação ao clima e à maneira de
tratado em profundidade este tema que, a meu ver, é de extrema importância, sobretudo para os mais viver local.
jovens profissionais a quem falta, ainda, a perspectiva e a experiência para se orientarem na selva da Conta, também, o facto de que aqueles testemunhos são extremamente esparsos e de reduzida
incultura arquitectónica em que operam. importância como manifestações da presença urbana e, portanto sem grande impacto cultural para
Donde vimos, onde estamos, para onde vamos? as modernas gerações de clientes e arquitectos.
Começarei por definir o âmbito dos termos que vou usar. Contudo, há que reconhecer-lhe méritos tecnológicos, sobretudo no que diz respeito ao aprovei-
No contexto desta reflexão a arquitectura e o planeamento físico referem-se aos resultados do tamento dos recursos e materiais locais e à introdução de tecnologias de aproveitamento das águas
exercício de projectar espaços, conjuntos de edifícios e edifícios isolados, por profissionais urbanistas, da chuva.
arquitectos, desenhadores e técnicos dos vários ramos da engenharia, sobretudo em contextos urba- Menos adequados nos parecem os modelos de estruturação urbana e mesmo de composição es-
nos mas, também, noutras situações sócio espaciais. pacial arquitectónica onde os problemas de iluminação e ventilação natural, quer na habitação quer
Deixamos de fora a arquitectura tradicional e o vernáculo pois que, no âmbito desta reflexão, nos edifícios públicos não são, em geral, satisfatoriamente resolvidos.
se irá provar a sua importância marginal em todo o processo histórico de evolução da arquitectura Nos séculos seguintes, e por razões que têm a ver com a política de privatização da administração
formal e do planeamento físico em Moçambique. de vastas áreas do território, através das chamadas “companhias majestáticas”, começa a dar-se um
fenómeno que vem a caracterizar fortemente o panorama arquitectónico moçambicano: a presença O contributo ideológico e formal da arquitectura brasileira começava a revelar-se, não só por
das mais diversas expressões e formas projectar e construir, resultando naquilo que é um verdadeiro identidades culturais mas também porque se entendia como uma prática mais adequada ao clima
cosmopolitismo expressivo e estilístico da arquitectura em Moçambique. tropical.
A partir do início do Século XX, começa a haver uma redução do leque de influências com uma Não só na arquitectura mas também no urbanismo há um progresso notável em todas as regiões
maior afluência de arquitectos e tecnólogos portugueses, alguns formados noutros países. Não deixa, do país com a criação e o desenvolvimento de tecidos urbanos densos, escapando ao síndroma das
contudo de haver uma forte influência doutras origens, sobretudo canalizada através da África do periferias dormitório suburbanas para as classes mais privilegiadas que, cada vez mais, caracterizavam
Sul, com exemplos muito importantes como o Prédio Pott e o Hotel Polana, no Maputo, exemplos as cidades nas ex-colónias britânicas e, particularmente, na África do Sul.
que marcaram fortemente a paisagem urbana da época. Evidentemente que este desenvolvimento e esta qualidade urbana não abrangiam a população
Ao período de expressão estilística “Arte Nova”, de que pouco resta, segue-se um período de descriminada que, essa, continuava a habitar as periferias não planificadas, sem serviços nem equi-
grande presença “Art Deco” que vai caracterizar durante muitos anos, mesmo para lá da sua marca pamentos básicos.
na Europa, a imagem da cidade e o gosto de uma clientela que aspira a um modernismo moderado, Com a ameaça de uma possível guerra de libertação do domínio colonial, Portugal compreende,
mas mais progressista do que o da sua origem metropolitana. finalmente, que deve investir fortemente nas colónias e, a partir dos anos 60 criam-se condições para
Naturalmente que, em paralelo, se desenvolvem outras arquitecturas mais adequadas a uma po- o nascimento de indústrias locais e realiza-se a construção de algumas infra-estruturas essenciais, para
pulação de baixa renda e discriminada a quem é negada, legalmente, a construção tradicional em lá daquelas exclusivamente dedicadas ao serviço da África do Sul e dos outros países do hinterland:
materiais locais e que encontra na técnica da “madeira e zinco” uma alternativa administrativamente Rodésia e Zâmbia, Malawi e Suazilândia).
aceitável de construção nas cidades. São estabelecidos mecanismos de crédito e financiamento aos investidores privados, elaborados
É, infelizmente uma técnica desadequada ao clima pois se, por um lado resolve alguns problemas 328 329 “planos de fomento” com bases científicas mas de discutíveis estratégias sociais, estabelecidas as bases
de ensombramento não chega, na maioria dos casos a resolver o problema do isolamento térmico para a imigração de grande número de camponeses e trabalhadores portugueses e ampliada a rede
o que torna essas construções em verdadeiros fornos na época quente e chuvosa e inaceitavelmente de equipamentos sociais.
frias na época seca. À falta de estatísticas fiáveis poderemos arriscar a afirmação de que se construiu mais na década
Deve lembrar-se que esta tecnologia da madeira e zinco tem origens mais “nobres” pois que de 60 do que nos 300 anos anteriores.
foi, durante anos, a solução da construção rápida de edifícios para a administração colonial e A arquitectura ganha uma nova importância. Um público mais esclarecido exige uma mais alta
para as habitações dos funcionários encarregados da administração das aldeias e vilas do inte- qualidade formal e técnica.
rior, onde a construção em materiais mais sólidos e difíceis de transportar era praticamente Começa a formar-se uma cultura em que o espaço urbano, e o edifício que o preenche, são julga-
impossível. dos com uma nova capacidade crítica e avaliados tendo em conta parâmetros de eficiência, economia
Ainda nos anos 50 do século XX havia algumas dezenas de construções de madeira e zinco, no e prestação ambiental, até então ausentes da análise comum e mesmo profissional.
centro das cidades, habitadas por famílias, algumas de alto estatuto social. Uma nova vaga de arquitectos, melhor preparados, tecnicamente competentes e com uma mais
Algumas das características destas construções deveriam ser objecto de estudo mais profundo esclarecida consciência social chega ao país e abre o campo a um debate inédito sobre arquitectura
pois conseguiam, muitas vezes, superar, com grande qualidade estética, os limites impostos por uma e urbanística.
tecnologia pobre e de fraca prestação ambiental. Moçambique torna-se, em poucos anos, um caso de interesse na região mas, ainda assim, con-
A partir dos anos 30/40, Moçambique começa a receber uma onda de arquitectos portugueses siderado como periférico ao mundo mais “vasto” da cultura anglo-saxónica, com excepção de uma
com novas ideias, escapados de um Portugal reaccionário e retrógrado e que, aqui, vinham buscar figura sui generis, o arquitecto Pancho Guedes, cuja personalidade artística, formação e contactos
não só trabalho mas também a oportunidade de praticar uma arquitectura em linha com as ideias naquele mundo o projectaram a níveis mais alargados de reconhecimento.
do modernismo e racionalismo que, na cultura arquitectónica ocidental, se expandiam e afirmavam A guerra de libertação colonial provoca, também, um fenómeno lateral da maior importância:
cada vez mais. a afluência a todas as regiões do país de alguns milhares de militares, enquadrados por centenas de
oficiais com formação superior que, quase instantaneamente, elevam o nível cultural do país, parti- Mas os obstáculos são colossais. As primeiras revelações estatísticas são aterradoras.
cularmente das principais zonas urbanas. Uma população analfabeta em mais de 70%, uma esperança de vida à nascença de menos de 50
As tensões criadas pelos contrastes de atitude e também culturais, entre esta população adventícia anos, uma falta quase absoluta de quadros, uma vizinhança agressiva e impiedosa, um mundo hostil
e os colonos há mais tempo estabelecidos no território, provoca debates que despertam um novo a uma desejada e mal compreendida orientação e apoio por parte do mundo socialista, que se dilui
grau de consciência em relação não só aos problemas da sociedade colonial mas se alargam a um aos poucos sem chegar a resolver nenhum dos problemas estruturais.
novo âmbito cultural que marca a produção artística em todos os campos e levam à exigência, mais O país sofre, mas o povo aceita e tenta compreender.
esclarecida, de uma arquitectura renovada. A direcção política e a da administração pública evitam demonstrações de privilégios e de riqueza
O tema de debate mais importante e significativo sobre o planeamento e a arquitectura nem se- de origens duvidosas.
quer chega, contudo, a amadurecer: o de lidar com o magno problema das periferias informais, com Os casos de corrupção na administração pública são raros e severamente punidos.
as respectivas reservas de mão-de-obra a baixo custo e que constituíam verdadeiros barris de pólvora Chegamos assim a meados da década de 80.
onde despertava o idealismo libertário anticolonial. Entretanto atende-se à formação dos primeiros técnicos de planeamento físico e prepara-se a
Fez-se pouco, mal e tarde. criação da primeira faculdade de arquitectura, que abre em 1986.
Mascarou-se um pseudo interesse pelas condições de habitação das massas discriminadas para co- O país dispõe de menos de 10 arquitectos nacionais para uma população da ordem dos 16 mi-
brir uma real estratégia de controlo policial dessas áreas, propagandeando um paternalismo abjecto, lhões de habitantes.
sem tocar na verdadeira raiz do problema: a discriminação económica e social, racial e cultural que, O pouco que se constrói é projectado por cooperantes estrangeiros e um ou dois arquitectos
de forma mais velada e mascarada, ainda hoje subsistem, assumindo o factor étnico, agora, novas nacionais mais experientes e profissionais, acarinhados talvez mais pelo seu compromisso político do
formas, inversas e, aparentemente, menos agressivas. 330 331 que pelo reconhecimento da qualidade da sua produção.
É neste ambiente político e social que Moçambique acede à independência, a reboque da “revo- No fim da década de 80 o país é forçado a entrar, de chofre, na economia de mercado e subme-
lução dos cravos” em Portugal que, lucidamente, compreende a justeza da guerra de libertação nas te-se às inexoráveis leis do “ajustamento estrutural” impostas pelas instituições de Bretton Woods e à
colónias e abandona o sonho imperial para o qual não tinha sequer a força anímica essencial à sua ditadura da “ajuda” internacional, que leva mais do que deixa.
própria credibilidade. A erosão de uma ética de integridade administrativa foi quase instantânea e afectou todos os
É um momento, de profundo significado histórico, em que Portugal se torna um país europeu e níveis governativos e políticos com a garantia de impunidade absoluta, pois os maus exemplos vêm
Moçambique um território de perspectivas e ambições africanas. dos níveis mais altos.
Estamos em 1975. Entramos, na década de 90, já convertidos à selvajaria do capital desbragadamente corruptor e
Num momento histórico 14 milhões de seres humanos passam, sem disso terem uma cons- abusador da rés pública, tacitamente aceite por quem tem o poder e dele abusa.
ciência perfeitamente esclarecida, a ser administrados por uma classe de camaradas, cuja mais As décadas seguintes apenas refinam e confirmam a tendência para a formação e crescimento
alta qualidade e competência era a de terem criado e participado na “luta armada” de libertação
nacional
A níveis superiores da estrutura política e da administração pública o país conta ainda com um
escol de intelectuais, profundamente comprometidos com os ideais da revolução que, guiados pela
visão esclarecida e estratégica do primeiro presidente, se dedicam totalmente e asseguram, quase mi-
lagrosamente, o funcionamento do aparelho de estado a dar os primeiros passos na reconstrução do
país sobre os desvios ideológicos e morais da administração colonial, profundamente infectada por
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interesses privados e por uma incapacidade manifesta para compreender os interesses e as limitações DFDSGFDSFGV
da grande maioria da população. DSFSDFDS
duma cleptocracia organizada e suportada pelo monopólio da máquina política que se apodera de sistemática e exclusivamente, figuras ao mais alto nível do poder político; as quais deveriam ser, elas
todas as oportunidades para enriquecer à custa do bem público. próprias, responsáveis pela preservação desses recursos.
Naturalmente que este estado de coisas convém também aos investidores, estrangeiros e nacio- O país passa, agora, a admirar, embasbacado, a exposição indecente da riqueza inquestionada de
nais, que, imediatamente, compram sócios bem encastrados a todos os níveis políticos e da governa- negociantes da mais baixa extracção cultural e de governantes e ex-governantes que, ao mesmo nível
ção para, sob tal protecção, operarem desavergonhadamente em negócios dos quais quem sai lesado intelectual, com eles pactuam e competem, numa atitude de desrespeito total por um dos povos mais
é, exclusivamente, o povo. empobrecidos do mundo.
Que interesse poderá ter este condensado histórico para fundamentar a reflexão sobre o futuro Parece haver, portanto, um nexo directo entre o sistema ideológico, ou a falta dele, e as bases em
da arquitectura em Moçambique? que se fundamenta a expressão arquitectónica da incultura nacional.
É a questão que nos parece essencial abordar para podermos refletir se, por arquitectura, entende- A arquitectura, como uma das mais significativas expressões culturais de um país, tem, no caso
mos mais do que uma forma de ganhar a vida e de satisfazer necessidades lúdicas e luxos intelectuais e de Moçambique e da maioria dos países da África subsaariana, dimensões muito particulares que de-
pela procura da fama fácil que resulta do exibicionismo formal à custa duma clientela sem capacidade vem ser compreendidas no quadro da transformação de uma cultura tradicionalmente rural, muito
analítica e crítica. isolada de contactos extra territoriais, para uma cultura urbana aberta, ainda incipiente.
O problema é tanto mais complexo quanto a crise não é característica apenas dos países menos A síntese histórica com que iniciamos este ensaio tenta apontar a evolução da cultura arquitec-
desenvolvidos mas emana, como exemplo nefasto, das sociedades mais avançadas do ponto de vista tónica a que chamamos erudita, apenas no sentido de a distinguir das expressões tradicionais que
técnico e cultural. respondem às necessidades do habitat da grande maioria da população moçambicana.
O caso moçambicano é paradigmático e caricatural. Essa distinção parece-nos essencial para podermos compreender a falta de raízes históricas, quer
Depois de um período, curto mas impressionantemente significativo, em que os valores éticos 332 333 tecnológicas quer humanísticas, sobre a qual teremos que construir uma tradição que venha a ser
que orientavam a sociedade, excluída por vontade própria e por imposição da selvajaria do con- assumida como própria por uma população ainda profundamente estratificada económica, social e
sumismo, se afundaram, revela-se repentinamente a caverna dos quarenta ladrões com o “abre-te culturalmente.
sésamo” da economia de mercado, imposta pelo sistema financeiro internacional e pela protecção às A tendência latente, presente mesmo até já nos anos heróicos, para um exibicionismo provincia-
multinacionais corruptas e corruptoras. no de valores monumentais, refreado apenas pelas limitações materiais desses anos, explode com o
A classe dirigente, beneficiando de uma credibilidade respaldada por um real monopartidarismo acesso à riqueza fácil dos anos sem vergonha.
político, percebe que, afinal, tinha perdido 10 ou 12 anos de oportunidades para roubar o estado em A face de um povo e de um país, que não são a mesma coisa, reflecte, inevitável e inexoravelmen-
benefício próprio e sente-se, para tal, encorajada pelo exemplo mundial generalizado de corrupção te a natureza cultural da sua sociedade.
sem sanção, pois que domina também, a seu proveito, o sistema judicial. A teocracia egípcia só produziu as pirâmides porque os escravos que as construíram acreditavam
O enriquecimento rápido das elites políticas moçambicanas não se faz sem compromissos na natureza divina do faraó; Epidauro e os outros teatros, os ágora e a magnífica arquitectura clássica
profundos com mafias internacionais, dominadas pelo elemento asiático que controla as redes grega são produtos de uma civilização que soube respeitar a literatura, as artes e a filosofia que glori-
criminosas da bacia do Índico, e que esperou longos anos por esta oportunidade para operar livre- ficavam, acima de tudo, o homem, a sua inteligência, a sua coragem e a sua integridade.
mente, assegurando financiamentos políticos e comprando a complacência dos poderes executivo Não se poderiam ter construído as catedrais românicas e góticas se o cristianismo não tivesse
e judicial. conseguido convencer o povo europeu, sujeito à mais abjecta exploração pela nobreza associada ao
A descoberta de grandes potenciais de reservas de gás, carvão, metais preciosos e não precio- clero, de que a salvação estava para lá da morte.
sos e de minerais preciosos, que são objecto de cobiça e de contractos secretos; a sobre exploração O império Inca e a civilização Maia, as espantosas realizações Khmer em Angkor e as indescri-
criminosa de produtos naturais como a madeira e os recursos marinhos; a pilhagem das riquezas tíveis riquezas do património construído chinês só foram realizadas à custa do domínio político,
arqueológicas submarinas, etc., são realidades bem conhecidas por todos e claramente apontadas cultural e administrativo dos imperadores a quem o povo chinês serviu sem contestação até ao
às autoridades, sem quaisquer consequências legais ou administrativas pois que delas beneficiam, século XX.
Já no século XX as abominações patológicas nazi e fascista produziram monumentos a si próprias administrativa para decidir sobre o que lhe é aceitável ou desejável como expressão formal dos edi-
e decidiram sobre a expressão construída das suas sociedades, impondo, a povos cultos e sofisticados, fícios que encomenda.
uma visão primária e doentia de líderes culturalmente deformados. O perfil cultural do país, atrás esboçado é, portanto, proposto como a dimensão essencial sobre
Os exemplos apontados são apenas os mais conhecidos e paradigmáticos, mas não esgotam as a qual tentar um prognóstico, desapaixonado e objectivo, sobre as formas que a arquitectura em
provas da íntima relação entre as ideologias dominantes e as suas expressões construídas. Moçambique vai assumir no futuro.
A situação não é menos grave no presente, muito particularmente para aquelas sociedades sem Resta ainda expor um dado importantíssimo que poderá não ter ficado explícito: o facto de que
defesas culturais face ao ataque frontal a que estão sujeitas por parte de quem as domina e manipula os arquitectos são culturalmente parte integrante do ethos cultural descrito e que, na maioria dos
económica e culturalmente. casos, têm as mesmas limitações culturais, que não aprenderam a superar em cinco anos de estudos
O caso africano é, em sentido negativo, exemplar. universitários.
Sem excepção, todas as sociedades africanas subsaarianas vivem num limbo esquizofrénico entre Do panorama descrito algumas indicações assumem proporções alarmantes pela prova que fa-
a sua inserção na cultura tradicional que cada vez menos sabe e pode resolver problemas diversos zem da completa alienação das autoridades governativas em relação à compreensão da função e das
dos que era chamada a resolver no contexto da tribo ou do clã, e a maneira de viver das sociedades responsabilidades dos arquitectos na sociedade.
tecnicamente avançadas, a que aspira, pois lhe reconhece as vantagens materiais. A incompreensão da diferença entre as funções e as competências do arquitecto e do engenhei-
Esta simbiose, que leva o Mercedes Benz ao curandeiro ou faz acreditar que raspas de corno ro – incompreensão que começa ao nível da docência nas universidades, leva, por exemplo, à pro-
incrementam a prestação sexual, é, portanto, coerente com o acreditar que um arranha-céus em mulgação, pelo ministério de tutela, de um decreto onde se confunde construtor, com consultor
vidro é a mais clara expressão da modernidade institucional e empresarial ou que um palacete pseu- e não se distinguem competências entre especialistas nem se compreende a essência do exercício
do-barroco assegura a mais alta posição na escala da importância social de quem o manda construir. 334 335 do projecto.
O erro evidente do efeito de estufa que uma superfície de vidro provoca, particularmente grave Resta-nos, agora, explorar, analisar e sistematizar os vectores que mais directamente irão condi-
em climas tropicais, e o anacronismo estilístico e construtivo duma arquitectura doutro tempo e cionar os percursos da arquitectura em Moçambique no futuro próximo e a médio prazo.
lugar, pessimamente copiada, não são compreendidos por clientes para quem o “hábito faz o monge” Podemos associá-los em diversas categorias: culturais, tecnológicas, económicas, ambientais e
e que acreditam que a forma gera o conteúdo. legais.
Para povos durante séculos privados do necessário e obrigados a conviver com uma sociedade res- Alguns destes aspectos foram já referidos anteriormente, mas iremos agora tentar correlacioná-los
trita e exclusivista com acesso a tudo, mesmo ao supérfluo, a possibilidade de aceder ao mesmo nível e projectá-los no tempo.
de privilégios materiais é uma tentação irresistível que parece justificar qualquer meio para o alcançar. O vector cultural tem dois contextos fundamentais: o conhecimento transmitido pela educação
A única forma de limitar essa ambição seria através de uma educação política e ideológica que informal, ou directamente pela sociedade, familiar e alargada ao grupo de que faz parte o indivíduo, e
tornaria impopular quem se arriscasse a promover aquelas formas de degeneração cultural. o conhecimento técnico, científico e humanístico que é ou deve ser transmitido através da educação
As razões da luta contra a ocupação colonial eram fáceis de explicar e compreender por povos
escravizados, explorados e descriminados por invasores de outras etnias e outra cultura.
As bases ideológicas dessa luta eram diferentes das que levaram o povo francês a guilhotinar o rei
e a rainha da França.
Os povos da África Subsaariana são, agora, sistematicamente explorados pelos poderosos da sua
própria etnia e cultura, que sabem manipular, a seu proveito, as antigas tradições do poder do chefe.
A personalidade arquitectónica de um país só muito restritamente depende das capacidades téc-
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nicas e artísticas dos arquitectos. DFDSGFDSFGV
Ela é definida em primeiro lugar por quem paga, ou por quem tem a autoridade política e/ou DSFSDFDS
formal nas instituições de ensino primário, secundário e superior e pelos meios de informação públi- O maior perigo será o de uma crescente tecnocracia, pois que não se vê ainda qualquer esforço
ca, quer audiovisuais quer institucionais, como a televisão, as bibliotecas, eventos culturais, festivais, para introduzir nos cursos técnicos cadeiras de integração do conhecimento nem um sistema de
concursos públicos, etc. opções que abra aos estudantes o interesse pela integração das tecnologias num sistema de pensa-
Na sociedade moçambicana, com uma elevada percentagem de analfabetos, uma grande diver- mento humanístico.
sidade linguística e uma língua oficial e de ensino ainda não conhecida e praticada por uma parte Este desvio educacional e pedagógico é tanto mais difícil de combater quanto é cada vez mais
substancial da população, as limitações de transmissão do conhecimento técnico, científico e huma- universal e apelativo ao oportunismo insipiente e inseguro, mas já contaminado, das gerações mais
nístico são muito importantes. jovens.
Basta referir que para mais de 25 milhões de habitantes em todo o país há apenas 7 livrarias! Para tal contribui fortemente o ambiente de auto satisfação e ausência de referências intelec-
Maior importância assume, logicamente, o processo de transmissão de conhecimento através da tuais e de competência técnica que um sistema deformado de formação universitária acelerada
educação informal. e insuficiente, incute nos recém-formados que, só tarde e penosamente se dão conta das suas
Acontece que este processo está, naturalmente, a cargo de famílias e grupos sociais com sérias insuficiências.
limitações no que diz respeito ao conhecimento técnico e científico, dado o seu perfil cultural pre- As consequências desta conjuntura são dramáticas.
dominantemente rural e o seu isolamento em relação aos meios de comunicação social, eles próprios Um outro vector determinante da evolução das formas que virá a assumir a arquitectura em
com grandes limitações culturais. Esta última condição não é exclusiva do meio rural pois mesmo Moçambique é o da absorção e aplicação indiscriminada de novas, mais elaboradas e sofisticadas
em contexto urbano o acesso a literatura e outros media é muito restrito. tecnologias construtivas em construções públicas e privadas, institucionais ou particulares e a todas
Naturalmente que o esforço de alfabetização e o desenvolvimento das instituições de ensino a as escalas.
todos os níveis irão acelerar muito o impacto da educação formal na elevação do nível cultural da po- 336 337 O provincianismo característico de uma sociedade menos desenvolvida em todos os aspectos
pulação. Mais difícil é prever a dinâmica desse processo pois que ainda são muito pesados os aspectos – sociais, económicos e culturais – resultam, inevitavelmente, na escolha, acrítica, dos modelos de
negativos a que está sujeita a educação escolar, dada a fraca preparação dos professores, a todos os ní- comportamento e formais caracterizantes de sociedades mais desenvolvidas.
veis, a falta de incentivos para as carreiras académicas e os baixos salários que se pagam aos docentes. Estes modelos são, não só desejados, mas impostos como indispensáveis à criação da única
O problema é particularmente grave ao nível primário onde poucos são os professores com uma imagem, tomada como “civilizada”, a plasmar na nossa paisagem urbana, por agentes financeiros e
compreensão correta das suas responsabilidades didácticas e cívicas e com a necessária preparação técnicos, recém-chegados, para quem a ideia da adequação às condições ambientais, económicas
científica. e culturais locais não tem qualquer significado.
O mesmo se pode afirmar, sem grandes correcções, para os níveis secundário e mesmo universi- O problema é mais grave em Moçambique, dada a falta de capacidade analítica discriminante
tário que, este, além do mais, deve corrigir as lacunas e os métodos de ensino impróprios dos níveis por parte da classe decisora face à imposição, nefasta, vinda com idêntica virulência de todos os qua-
anteriores que fazem com que os alunos cheguem às universidades desprovidos de ferramentas inte- drantes geográficos e culturais: do Norte, do Sul, do Leste e do Oeste.
lectuais e desconhecedores dos processos de estudo e investigação. A ideia de que a solução tecnológica dos problemas arquitectónicos deve ser encontrada a partir
O contingente de alunos que acedem às universidade provenientes das escolas privadas e que das condições ambientais, materiais e culturais locais não parece ter a necessária ressonância ou mes-
vêm, em geral, melhor preparados, é um factor importante para a elevação do nível cultural das mo merecer a consideração do “cliente” privado ou institucional.
turmas mas não é suficiente para superar as lacunas apontadas contribuindo até para a manutenção As consequências desta situação são desastrosas, antes de mais em termos de desgaste económico
de alguns desequilíbrios sociais. e financeiro mas, também, pela erosão da qualidade ambiental das construções, da sua manutenção
A dificuldade está em determinar em que medida este filtro de competências vai conseguir res- e, finalmente, pela indigência estética dos resultados.
ponder às crescentes necessidades do país em termos de técnicos capacitados para, progressivamente, Naturalmente, como “santos de casa não fazem milagres”, as vozes locais que tentam lutar por
assumirem as responsabilidades cada vez mais complexas que o desenvolvimento social, económico uma atitude mais esclarecida são consideradas como reaccionárias ou atrasadas, até porque põem
e tecnológico impõe. em causa importantes interesses económicos de agentes públicos e privados moçambicanos cujos
objectivos se confundem com os dos investidores estrangeiros para quem os fins justificam os meios Mas fazem-no, apenas, pelo vácuo da intervenção das autoridades públicas que nem tentam,
e que partilham, sistematicamente, as mesmas limitações culturais. nem sabem, ou querem, controlar os aspectos técnicos e de segurança dos edifícios e se alheiam das
Há aqui, obviamente, uma relação íntima entre tecnologia e cultura e entre as escolhas tecnoló- suas responsabilidades, conscientemente ou não, subordinados a decisores a quem devem obedecer,
gicas e as opções éticas. permitindo o abuso das mais elementares regras urbanísticos.
Naturalmente a hipótese de que Moçambique poderá vir a ser um país com amplas reservas ex- Moçambique tornou-se assim, quase do dia para a noite, no paraíso das mafias europeias e asiá-
ploráveis de matérias-primas e recursos minerais e hidrocarbonetos atraiu já um contingente impor- ticas, bem treinadas nos seus próprios países para explorar o cliente anónimo, sempre incauto e
tante de técnicos e vendedores de tecnologia e materiais, equipamentos e mão-de-obra, sem trabalho indefeso perante uma máquina de exploração montada com a participação de agentes nacionais,
nos seus países de origem dada a crise económica na Europa e nos EUA. altamente colocados no ambiente financeiro, governativo e político.
Esta imigração, que tem muito de positivo pois oferece ao país um contingente de espe- A qualidade da arquitectura é, obviamente, o último dos parâmetros que pode interessar ao
cialistas, técnicos e trabalhadores com larga experiência e cuja formação foi suportada por especulador ou, mais simpaticamente, ao investidor.
outras economias, contém também elementos negativos, que nem sempre são imediatamente De facto o que lhe interessa, antes de tudo, é pensar que pode começar por poupar no projecto
aparentes. para, depois, impor ao projectista toda a extensão da sua falta de escrúpulos no que diz respeito à
Para lá dos desvios éticos, imprevisíveis e aleatórios, sempre possíveis em qualquer exercício pro- qualidade da construção, dos equipamentos, da economia na manutenção, na prestação energética e
fissional mas aqui facilitados pela escassez de códigos de práticas profissionais e pela reduzida capa- na qualidade dos materiais de construção empregues.
cidade de fiscalização por parte das instituições públicas, acresce o risco da transposição directa de Num país sem normas de qualidade impostas e controladas é fácil toma-lo como o paraíso dos
tecnologias e de práticas alheias ao contexto físico, económico, tecnológico e cultural do país com as promotores sem escrúpulos.
consequências já apontadas. 338 339 Parece-nos óbvio, portanto, o nexo de dependência entre o vector económico e a qualidade da
O vector económico é, seguramente um dos factores mais decisivos na evolução da expressão arquitectura.
arquitectónica do país nos próximos anos. Também parece óbvio que num país que em trinta anos passou de meia dúzia de arquitectos
A recente expansão da actividade especulativa imobiliária e da construção de equipamentos pú- para algumas centenas a acumulação de experiência é, ainda, muito reduzida e, em muitos casos,
blicos e privados, incluindo o parque residencial a nível médio e alto, produziu nos últimos anos deformada pelo ambiente atrás descrito.
um aumento significativo da oferta de meios tecnológicos e na demanda de mão-de- obra a todos os De facto confunde-se facilmente a acumulação de erros com a aquisição de experiência, com
níveis de qualificação. funestas consequências em todas as vertentes da actividade do projecto, fiscalização, construção e
A influência desta actividade na absorção de mão-de-obra local, na criação de novas indústrias controlo de edifícios e infra-estruturas.
e na expansão de indústrias existentes tem sido considerável e com impactos seguramente positivos O vector ambiental é crucial para uma análise abrangente e conclusiva sobre as condições de
na economia nacional. evolução da nossa arquitectura no futuro imediato e mais longínquo.
Por outro lado a elevação dos padrões e o desequilíbrio entre a oferta e a procura têm contribuí-
do para uma elevação dos custos da construção que afecta um larga faixa de potenciais promotores
incluindo o pequeno construtor e as famílias mais necessitadas de habitação.
O factor económico mais decisivo para a qualidade da arquitectura é, indiscutivelmente, o au-
mento exponencial da construção especulativa.
É por aí e para aí que chegam os operadores para fazer lucros tão rápidos quanto possível, maxi-
mizando o diferencial entre o investido e o recolhido.
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Curiosamente, após um interregno de quase de trinta anos, todas as razões para a nacionalização DFDSGFDSFGV
do parque imobiliário voltam a fazer sentido. DSFSDFDS
Neste âmbito, e para lá das falhas no sistema educativo, existe um vácuo legislativo que regule as O segundo aspecto tem a ver com as limitações e atropelos da regulamentação sobre o sistema
componentes ambientais dos projectos e, consequentemente, da capacidade de controlo dos projec- de fornecimentos ao estado.
tos neste aspecto. Para uma análise abrangente da situação no que diz respeito aos processos de aprovação muni-
A legislação ambiental existente, mesmo a mais recente, está desactualizada e deveria ser ob- cipal, distrital, ou mesmo ministerial, dos projectos de edifícios basta-nos rever o que se passa em
jecto de uma revisão por especialistas dos vários aspectos a considerar nos projectos em termos de Maputo, dado que a situação nas outras autarquias e níveis administrativos só pode ser ainda mais
salvaguarda da sustentabilidade ambiental e de segurança, que é um aspecto particular da correcta difícil pois as limitações de capacidade técnica para apreciação dos projectos são, seguramente, ainda
prestação ambiental. mais sérias.
Naturalmente que não se pode pensar em rever a legislação sem simultaneamente se criarem as O caso do Maputo é, portanto, paradigmático e, por ser a autarquia onde mais se constrói no
condições que assegurem o cumprimento dos regulamentos, tal como é a presente realidade mesmo país, é onde a gravidade da situação é mais patente e de mais graves consequências.
nos centros mais preparados. O que se passa na realidade é que não há ao dispor dos técnicos que devem aprovar ou reprovar os
Este vector é também condicionado pelas carências a nível curricular dos cursos de engenharia, projectos um nível mínimo de clareza quanto à regulamentação a aplicar, dado que nem os técnicos
arquitectura, ciências naturais e física. das diversas especialidades da construção, nem os juristas dispõem de directivas claras sobre quais, de
Não há, por exemplo, em todo o país, um único curso de física das construções nem, especifi- entre diversos regulamentos, alguns ainda da época colonial, devem fundamentar as decisões a tomar.
camente, sobre sustentabilidade ambiental, focalizado cientificamente sobre os impactos ambientais Mais grave ainda é o facto de que os projectistas não são informados sobre quais os regulamentos
dos edifícios e das infra-estruturas. a observar na execução dos projectos ficando sujeitos a critérios arbitrários e sem fundamentação
Para que possa ter algum impacto, esta matéria deveria ser objecto de ensino e educação, desde legal.
a escola primária, onde a sensibilidade aos problemas ambientais do planeta e do país deveria ser 340 341 A esta situação associa-se o facto de que, em muitos casos, à autoridade técnica que tenta obede-
essencial na formação dos alunos. cer às regras urbanísticas aplicáveis, se sobrepõe a autoridade administrativa, tecnicamente ignorante
Com a acelerada urbanização perde-se também, aceleradamente, o conhecimento empírico que mas com o poder de decidir em defesa de interesses de pessoas, entidades ou organizações, mesmo
o camponês possui na sua relação com o meio ambiente, o que vem a revelar-se mais directa e contra o parecer dos melhor informados responsáveis técnicos.
negativamente em formas de ocupação espontânea de zonas urbanas totalmente desadequadas aos Tudo isto resulta num caos administrativo e legal que, até agora tem merecido pouca ou ne-
assentamentos humanos. nhuma atenção por parte do legislador, seja por inconsciência das suas funestas consequências, seja
Não abordaremos aqui, por sair do âmbito directo desta análise, o caso das grandes infra-estrutu- porque este nível de ambiguidade permite a protecção daqueles interesses.
ras como as barragens por exemplo, que são, muitas vezes, objecto de decisões à revelia dos estudos de O sistema, instituído no Maputo, do “pedido de informação prévia” não resolve nenhuma das
impacto ambiental, para protecção de interesses financeiros e geoestratégicos a coberto de exercícios ambiguidades e arbitrariedades da confusão regulamentar apenas ajuda os projectistas a trabalharem
de retórica e demagogia política, mais facilmente credíveis por uma população sem preparação e com mais segurança nos projectos para aprovação municipal, após conseguirem a informação posi-
educação ambiental. tiva aos pedidos.
O vector legal é uma das condicionantes mais significativas na evolução da arquitectura em Este tema parece-nos ser suficientemente importante e grave para merecer uma intervenção ur-
Moçambique. gente do Tribunal Administrativo, provavelmente decorrente de processo a iniciar conjuntamente
Dois aspectos principais devem ser considerados neste âmbito, a regulamentação sobre as edifi- pelas autarquias e Ministério das Obras Públicas e Habitação.
cações urbanas e o processo de selecção de projectistas e de projectos para os equipamentos públicos A outra dimensão que contribui para o abaixamento da qualidade dos projectos, nomeadamente
e privados. dos projectos de equipamentos públicos é a forma como são montados os concursos públicos.
O primeiro aspecto tem a ver com a indisciplina e ambiguidade da regulamentação municipal Essa montagem é deixada às secções responsáveis pelos fornecimentos ao estado que existem
e nacional relativamente, quer às regras urbanísticas a aplicar, quer às formas de análise e aprovação em todas as instituições estatais (ministérios, empresas estatais, municípios, etc., ou seja, as cha-
dos projectos de construção. madas UGEAs).
Na maioria dos casos essas instituições quando necessitam de construir novas instalações para Isto é uma situação gravíssima que tem conduzido a um nítido abaixamento da qualidade dos
si próprias é esta a primeira e, em muitos casos, a última vez que devem construir um processo de projectos de construções importantes e significativas, até porque os projectos são executados no
organização e informação de um concurso de consultoria para o projecto de um edifício. estrangeiro sem um conhecimento minimamente relevante das condições ambientais, sociais e cul-
Várias são as dificuldades que vão encontrar e para as quais, quase todos as essas secções, não estão turais locais e a fiscalização, quando existe é frequentemente desautorizada pelas autoridades admi-
nem minimamente tecnicamente preparadas. nistrativas que se sobrepõem à autoridade técnica por razões de oportunismo político e ignorância
Assim o erro inicial mais corrente acontece quando se deve estabelecer um valor estimado para das consequências nefastas dessa forma de proceder.
o projecto e para a construção, a inserir no orçamento da instituição para o ano em que o concurso Cobrimos uma visão limitada, mas abrangente, dos factores que afectam a produção de projectos
deve ser lançado. de arquitectura e da sua realização no terreno.
Naturalmente que a entidade administrativa (UGEA) a quem é confiado este exercício não faz a Demos atenção prioritária aos factores negativos pois que são aqueles que, mais imediatamente,
mais pequena ideia dos parâmetros a que deve obedecer esse cálculo e daí resultam, em regra, valores condicionam a qualidade do ambiente construído e que portanto devem ser de atenção prioritária.
totalmente irrealistas. Mais difícil se torna, dentro do panorama atrás descrito, encontrar as vias de estruturação de uma
O erro seguinte está na incapacidade generalizada dessas entidades administrativas para definir evolução positiva da arquitectura em Moçambique.
os programas funcionais, espaciais e técnicos que informem os termos de referência para os projectos Naturalmente que a primeira deverá ser encontrada no sistema de formação. Também é aqui
além de que, em quase todos os casos já foi escolhido um terreno muitas vezes impróprio quer em que encontramos as primeiras dificuldades pois que, pelas razões apontadas, ainda é cedo para poder
termos urbanos quer em termos das suas dimensões, situação ambiental, etc. contar com um escol de formadores preparados e experientes embora, em termos formais, haja já
Finalmente, e aqui não se trata só de incapacidade técnica mas também de processos de corrup- um contingente razoável de mestres e doutores mas que é ainda insuficiente, quer em número quer
ção, são constituídos júris que não têm capacidade técnica para julgar as propostas dos concorrentes e 342 343 na sua experiência, para assegurar uma didáctica satisfatória.
decidem por conhecimento e/ou interesses pessoais, por incapacidade de apreciação da competência A abertura de mais faculdades de arquitectura não tem sido baseada numa avaliação realista da
técnica dos concorrentes ou pelo valor mais baixo das propostas que, em geral, são valores impossí- disponibilidade de docentes preparados e não pode, assim, contribuir decisivamente para a elevação
veis de manter sem atropelos graves à qualidade dos projectos. da qualidade dos graduados.
Não se percebe como, em quase todos os casos, o ministério responsável pela manutenção da Por outro lado a limitação dos meios de ensino é ainda muito grande e aumenta em muito as
qualidade da construção, o Ministério das Obras Públicas e Habitação, não é chamado a contribuir dificuldades que os alunos enfrentam para a sua auto-formação.
para a informação dos processos de concurso e para participar nos júris de selecção do concorrente A criação de uma classe profissional, quase inexistente há menos de 25 anos, é um factor positivo
vencedor. e que traz a esperança de que, cada ano que passa, se vá desenvolvendo uma consciência difusa, mas
Os resultados desta situação têm sido desastrosos, quer sob o ponto de vista técnico e estético em aprofundamento, da missão do arquitecto na sociedade moçambicana, quer como profissional
quer sob o ponto de vista económico e de cumprimento dos prazos. quer como difusor dos valores mais básicos e mais válidos da arquitectura.
O caso agrava-se quando se trata de concursos para projectos de “chave na mão” pois, a todas
as dimensões negativas apontadas, se junta também a incapacidade das instituições para julgar a
qualidade dos projectos e da construção que, nestes casos, ficam a cargo da entidade financiadora.
Uma nova dimensão se vem juntar e agravar a situação atrás descrita, só por si já grave: a atribui-
ção de projectos sem concurso a entidades financiadoras e doadoras estrangeiras.
Por razões não esclarecidas, vemos repetidas vezes importantes obras de edifícios e infra-estru-
turas oficiais serem entregues para elaboração dos projectos e construção a empresas estrangeiras e
FSDFSD
nacionais, sem concurso e com fiscalizações condicionadas a favor dos empreiteiros, ou mesmo sem DFDSGFDSFGV
fiscalização. DSFSDFDS
A esperança de que as iniquidades administrativas e políticas se possam ir resolvendo positi- Um ambiente profissional saudável e feito de competências e experiência só pode estruturar-se a
vamente, com o aumento da consciência política do povo, poderá ser uma outra janela sobre um partir de uma sociedade intelectualmente desenvolvida, com instituições competentes e dotadas com
panorama futuro menos medíocre que o actual. os meios humanos e técnicos adequados.
A imigração de técnicos qualificados e bem preparados, quer para o exercício do projecto de Moçambique está a dar agora os primeiros passos na construção dessa sociedade e é nossa respon-
arquitectura, quer para a solução de todos os projectos das especialidades complementares põe à sabilidade analisar, esclarecida e friamente, as condições em que esses primeiros passos são tomados.
disposição de Moçambique uma riqueza de competências e uma experiência que não seria possível Uma análise destas implica considerações que tocam aspectos emocionais e, por isso mesmo, é
acumular em tempos breves e apenas através do nosso sistema de formação e acumulação de expe- desconfortável para muitas pessoas directamente envolvidas no processo.
riência profissional. Não foi nossa intenção abrir o caminho a críticas pessoais ou mesmo, especificamente, a insti-
Esta consideração é válida também no âmbito da construção civil e os seus resultados são já tuições governamentais ou de qualquer outra natureza, mas sim propor as bases de um debate que, a
aparentes. nosso ver é não só urgente mas indispensável a uma estruturação saudável do ambiente da construção
Isto não quer dizer que tudo o que chega na presente onda de imigrantes seja sempre positivo. civil, e implicitamente da arquitectura, no nosso país.
Infelizmente, há exemplos de menos competência e menos integridade mas, quanto a mim, o balan-
ço é marginalmente positivo e benéfico para o país.
Naturalmente que para muitos técnicos locais este fenómeno é perigoso pois põe em causa a sua
competência e representa um novo nível de competição no acesso ao trabalho.
Curiosamente quando estes mesmos técnicos pensam em emigrar para outros países nunca se
lhes põem as mesmas questões... 344 345
Não é por se poderem avaliar as condições objectivas e subjectivas da produção arquitectónica
do país que se podem derivar prognósticos seguros sobre a evolução da qualidade dessa produção.
Os vectores identificados e explorados são uma parte importante dos condicionalismos da ar-
quitectura em Moçambique mas não são, só por si, nem todos nem contêm a chave da garantia da
evolução positiva da qualidade da arquitectura.
O contacto constante com alunos das faculdades de arquitectura do país deixa-me, de alguma
maneira, esperançado pois lhes reconheço um entusiasmo e um interesse que são a base indispensável
a uma arquitectura de qualidade.
Uma certa ingenuidade, provavelmente resultado da distância aos centros de propaganda das
últimas modas e a noção de que Moçambique não tem que, necessariamente, estar na primeira linha
das aventuras formais e tecnológicas traz, inevitavelmente, uma atitude menos arrogante e menos
ofuscada pelas personalidades “heróicas” do submundo da pseudocultura arquitectónica mundial,
que só pode ser positiva.
O maior problema, contudo, continua a ser a pouca oferta de experiência dos escritórios na-
cionais, que se alia a uma grande inconsciência das próprias limitações técnicas e a uma fraca e mal
informada exigência de profissionalismo por parte dos clientes, que não têm a menor noção das
responsabilidades que devem exigir aos arquitectos e consultores ao encomendar um projecto.
Estas dimensões do problema não têm solução a curto prazo.
SEDE PARA O BANCO BCI – MAPUTO JOSE FORJAZ • ARQUITECTOS
Novembro, 2016 rejeita a validade e mesmo o valor do fenómeno isolado: edifício, rua, jardim, monumento ou con-
junto edificado, como necessariamente caracterizantes da cidade, ou indispensáveis a essa caracte-
rização, nas circunstâncias da cidade africana em geral, salvo nos casos da presença de elementos
naturais fortemente caracterizantes, como por exemplo a Montanha da Mesa em Cape Town, o rio
Nilo em Karthoum ou as frentes marítimas em cidades ribeirinhas, que, no entanto, não servem
sempre como símbolos válidos, exclusivos e reconhecidos como essenciais a uma cidade justa e cul-
turalmente estruturada.
Que valor real tem, então, o “património” para a população urbana, por exemplo, de Maputo?
Que valor acrescenta, como contribuição a uma melhor qualidade de vida?
O que aqui se questiona é a dimensão efetiva e real do “património” na vida de quase dois
milhões de pessoas que não reconhecem uma relação direta e positiva entre os valores estéticos ou
simbólicos e a qualidade da sua vida quotidiana.
De facto o que é, para essas pessoas, o património urbano?
Alguns edifícios com algum valor histórico e estético? Um tecido urbano que, no passado, fun-
O “PATRIMÓNIO URBANO” cionou correctamente para um reduzido estrato social, menor que um terço da população urbana
actual? Uma situação geográfica e topográfica privilegiada com condições ambientais favoráveis, so-
348 349 bretudo para as classes privilegiadas? Um sistema paisagístico de grande qualidade, mas em destrui-
Esta reflexão deve entender-se no sentido de avaliar os valores que o conceito de património ur- ção acelerada?
bano: espacial, construído, natural e imaterial tem para a população em geral e para os diversos Será que o “património”, a considerar como significativo e desejável, justifica e implica a recupe-
estratos sociais, económicos e culturais, em particular no presente em Moçambique e, daí, tentar ração desses sistemas e a adaptação do tecido urbano a uma nova urbanidade moldada por
derivar algumas reflexões sobre possíveis estratégias de ação tendentes a preservar esse mesmo ocupações “informais” a quem deve ser reconhecido o direito de uso do espaço com regras
património. diversas das que acomodam a urbanidade das sociedades afluentes, com raízes em vivências
Pretende-se focalizar esta análise na importância que ao património é, ou não, atribuída pela urbanas que devem ser reconhecidas e respeitadas?
administração pública e particularmente, mas não exclusivamente, pelas administrações munici- Ou seria esta uma atitude de rendição a uma condição social indesejável: a da pobreza em geral e
pais. da pobreza urbana em particular, condição essa que, por cobardia ou comodidade política e
Para enquadrar esta questão é indispensável esclarecer o sentido e o valor dos termos e dos con- intelectual, se considera passageira mas que, à luz crua das estatísticas, se vai agravando, ano
ceitos a considerar e, em particular, o sentido do conceito de património urbano. após ano, em todo o mundo?
A definição deste conceito pode parecer imediata e elementar se nos restringirmos ou aceitarmos Não me parece irrelevante esta questão.
o significado que ele tem para a cultura urbana ocidental, historicamente sedimentada, estruturada As contradições entre as necessidades da maior parte da nossa população urbana e as necessidades
e radicada. dos estratos mais privilegiados são a questão mais difícil e mais politicamente explosiva que se põe
Contudo, a compreensão do mesmo conceito para a sociedade urbanizada moçambicana, leva, às administrações municipais em Moçambique e, por idênticas razões, a todo o “terceiro mundo”.
segundo a nossa tese, a um diverso entendimento dos seus valores e significados o que explica, pelo Que têm estas questões a ver com o património?
menos em parte, o fenómeno da erosão contínua do património natural e histórico urbano em Tentaremos esclarecer esse nexo ao longo desta exploração.
Moçambique. Há, ainda, outro nível de interesse e de indispensável reflexão que interessa, aqui, explorar:
Para um aprofundamento desta ideia propõe-se uma visão integradora da realidade urbana que como é que as autoridades municipais interpretam a importância do património urbano, conside-
rado mais restritamente, como o conjunto das presenças urbanas com valor histórico, monumen- te a sua responsabilidade e se dotar com as competências necessárias para zelar pelo cumprimento
tal, cultural ou natural? dos planos aprovados e, por outro, quando a população urbana conhecer os seus direitos e exigir o
A análise e a resposta a estas questões tentam explicar, sem pretender justificar, o “desastre” siste- cumprimento das leis e dos regulamentos em vigor.
mático que as nossas cidades sofrem às mãos de administrações menos sensíveis a valores históricos e São estas condições que, num futuro próximo, se nos afiguram como pouco prováveis.
culturais e, mesmo, como atrás se começou a apontar, a valores de justiça social. Passemos agora a analisar a situação do património histórico edificado.
Em muitos destes aspectos a degradação do património urbano não é apanágio exclusivo das Neste âmbito consideramos todos os elementos que compõem o espaço urbano: ruas, praças, jar-
cidades do terceiro mundo em geral e das cidades moçambicanas em particular mas, também no dins, conjuntos edificados coerentes na sua escala e expressão arquitectónica e componentes notáveis
nosso caso, estão a atingir-se níveis insustentáveis na dinâmica desse fenómeno. da paisagem urbana: monumentos, equipamento público e edifícios de valor histórico e arquitectó-
Se analisarmos, em primeiro lugar, o que acontece com o património natural veremos que há nico notável.
uma generalizada ignorância sobre a importância da manutenção do equilíbrio ecológico, com aten- As nossas cidades em geral, e em Maputo em particular, são um exemplo inescapável da falta de
tados sistemáticos ao equilíbrio dos sistemas biofísico, com consequências negativas irreversíveis, as sensibilidade e de respeito por todos aqueles valores.
mais das vezes por ignorância irresponsável ou propositada, sendo essas consequências cinicamente Começando pelas ruas o espetáculo é confrangedor. O piso degradado é o factor comum, agra-
explicadas ao público como resultado de fenómenos naturais imprevisíveis ou incontroláveis. vado pela péssima qualidade dos poucos exemplos de reabilitação executados sem respeito pelas
Nesta frente estão a erosão generalizada das encostas, o desaparecimento dos mangais e das zonas características técnicas a manter, particularmente no que diz respeito aos sistemas de drenagem, cota
húmidas, a redução implacável das áreas verdes dentro das cidades por abandono ou para beneficio das tampas das caixas de visita dos sistemas subterrâneos e aceitação de péssima qualidade na exe-
privado, a poluição química e biológica do solo e das águas marinhas, lacustres e fluviais, a poluição cução dos trabalhos como resultado de incompetência técnica na execução dos projectos, contratos
do ar e a poluição sonora, a desflorestação sistemática, a extinção das espécies, as alterações à topo- 350 351 defeituosos e conluio da fiscalização com as empreiteiras, tacitamente aceite, senão participado, pelo
grafia natural do terreno e a agressão aos sistemas hidrográficos. “dono da obra”.
O efeito desta condição é devastador em relação a um património natural em equilíbrio, embora O caso das ruas torna-se mais grave quando se assiste a uma total falta de atenção dada aos pas-
precário, até muito recentemente. seios e à forma como se deixa que sejam usados, quer pelos automobilistas, quer por vendedores am-
No caso particular do Maputo a destruição é já irrecuperável e os seus efeitos têm consequências bulantes ou fixos, para os quais não há qualquer respeito ou atenção, sendo inevitável considerar que,
desastrosas para centenas de milhares de pessoas, quer na redução drástica das amenidades que os numa situação em que o comércio e a economia informal são essenciais à sobrevivência da maioria
sistemas naturais poderiam oferecer (praia, parques e jardins, clima e qualidade do ambiente), quer dos citadinos, a sua presença deve ser reconhecida, aceite, regulamentada e expressa no tratamento
no agravamento constante da qualidade de vida urbana em geral. qualificado do espaço público.
O aspecto mais grave desta situação é, colateralmente, o facto de que muitos dos fenómenos de É sintomático da falta de visão e respeito pelo público, por parte das autoridades municipais, que
destruição do equilíbrio ambiental são consequência directa de decisões ilegais pois que são tomadas não tenha ainda sido construído um único sanitário público nem na cidade, nem na frente marítima,
à revelia de instrumentos de ordenamento territorial aprovados e com força de lei, precisamente pelas
autoridades a quem compete assegurar o respeito por esses mesmos instrumentos legais.
A situação descrita deve-se a factores bem identificados, objectivos e conhecidos: abuso do poder
administrativo para favorecer pessoas ou organizações económicas ou politicas; corrupção admi-
nistrativa, o que no fundo é o mesmo fenómeno mas praticado a níveis mais baixos da máquina
administrativa; ignorância dos procedimentos técnicos e legais elementares e sujeição a decisões ex-
temporâneas tomadas a níveis superiores ao da administração municipal, representando um grave
FSDFSD
atentado ao sistema democrático e à hierarquia administrativa. DFDSGFDSFGV
Esta situação só terá solução quando, por um lado a administração municipal assumir plenamen- DSFSDFDS
onde não há qualquer forma de conforto oferecido às dezenas de milhares de pessoas que usam a em que são explorados. O tráfego automóvel privado encontra, assim, a justificação para aumentar
praia e cujo único apoio lhes é dado por vendedores ambulantes de bebidas e comidas, em péssimas exponencialmente e sem qualquer controle. As poucas formas de controlo estabelecidas não têm
condições de higiene. qualquer efeito significativo, dada a cultura de suborno generalizada entre os agentes da autoridade
Aqui importa registar a degradação de um património intangível, mas fundamental, que é o da policial, a todos os níveis e, praticamente, sem excepção.
dignidade humana. Nenhuma das formas, nem mesmo as mais brandas, de limitação do tráfego de viaturas privadas
Evidentemente que nem só o piso ou a qualidade técnica das ruas definem a qualidade destes foi ainda considerada e, muito menos, implementada.
espaços urbanos. Igualmente importante são os elementos que lhe definem o espaço e os atributos: Isto porque não foi ainda criada qualquer alternativa integrada para resolver o caos actual do
a sua cobertura vegetal, o seu tratamento paisagístico, o mobiliário urbano, a sinalética, a escala dos transporte púbico.
edifícios que lhe definem o espaço, ou a falta de respeito por essa dimensão, as formas selváticas de O futuro projecto de um modo de transporte urbano dependente de altíssimos investimentos em
parqueamento dos automóveis e, com maior importância, a desregulação do tráfego motorizado e infra-estrutura e equipamentos só poderá sobreviver com custos dos bilhetes proporcionais e fora do
a sua relação homicida com os peões. Um exemplo caricatural desta falta de sensibilidade ao decoro alcance do público-alvo. Dado que não se contempla um subsídio que resolva o fosso entre o custo
urbano é o anúncio da paragem dos transportes públicos municipais pregado, torto, numa árvore, do seu estabelecimento e exploração e a capacidade de pagamento por parte do público, o que se
bem em frente ao meu escritório!... pode prever é, mais uma vez, um agravamento da presente situação uma vez que a circulação dos veí-
Todas estas dimensões são, sistematicamente ignoradas, desprezadas ou esquecidas em toda a culos privados será ainda mais intensa e mais difícil pois que será mais dificultada pelas modificações
extensão da malha urbana, tanto formal como informal. introduzidas na infra-estrutura. Dada a estrutura de preços prevista e uma agravada incapacidade de
Pelo contrário, o que se tem permitido, com a inaceitável explicação de que isso beneficia enor- controlo é irrealista pensar-se que o sistema “chapa” se vai limitar a ser um alimentador local do sis-
memente as finanças municipais, é a poluição visual das melhores perspectivas urbanas com cartazes 352 353 tema de longa distância proposto, ou que os milhares de pessoas que necessitam transportes a custos
publicitários descomunais e perigosos, por vezes até fazendo propaganda a bebidas alcoólicas e ta- aceitáveis irão tolerar mais essa brutalidade administrativa.
baco. O problema passará rapidamente para níveis de instabilidade social generalizada obrigando, mais
O caso dos edifícios históricos com maior valor arquitectónico não foge à regra. O desprezo pela uma vez, a administração municipal a retratar-se, sem ter resolvido o problema mas tendo, pelo con-
mais elementar manutenção é generalizado e as alterações às características originais dos edifícios são trário, agravado a capacidade futura de investimentos em soluções integradoras das diversas formas
sistemáticas, começando pela instalação de aparelhos de ar condicionado das formas mais agressivas, de transportes públicos.
decididas por qualquer instalador, totalmente insensível ao valor estético e histórico do edifício. Entretanto as intenções do plano de estrutura são sistematicamente esquecidas, ou muito limi-
Neste sentido, o caso do edifício do Conselho Municipal, que deveria assumir o valor de exem- tadamente aplicadas, desintegrando e tornando incoerente toda a estratégia de desenvolvimento
plo, é um dos mais significativamente negativos. urbano proposta e aprovada com força de lei, que poderia moderar a gravidade dos problemas de
Aliás o que se tem permitido é, pura e simplesmente, a demolição sistemática de qualquer edifí- circulação na cidade.
cio que esteja a impedir a especulação imobiliária mais desenfreada ao mesmo tempo que se tolera a Este panorama resulta, antes de mais, na falta de confiança na administração municipal pois que
existência de ruinas, perigosas para a segurança do público, no próprio centro da cidade. o público reconhece facilmente, e justamente, a sua incapacidade e incompetência para governar o
A insensibilidade a esses valores vai mais longe permitindo-se e aprovando-se alterações que uso do espaço público e privado.
anulam por completo os valores que caracterizam os edifícios com valor histórico, quer quanto à sua Tudo isto se passa em toda a extensão do território urbano, onde circulam diariamente os gover-
escala quer quanto à sua expressão arquitectónica. nantes, que parece não terem olhos para ver, ou são insensíveis à acelerada degradação da paisagem
Estamos também já muito próximos da completa paralisação da circulação automóvel, pois con- e da vida urbana.
tinuamos sem compreender que os transportes urbanos, tal como a saúde ou a educação não podem Os riscos desta situação são gravíssimos: a falta de solução para os problemas mais primários que
dar lucro. enfrenta a larga maioria da população urbana: falta de transportes, alto custo de vida, falta de escolas
A privatização destes serviços públicos só é possível porque se aceitam as condições desumanas e de centros de saúde, inexistência de sistemas de saneamento e drenagem, de energia e de recolha
de resíduos sólidos só podem agravar-se e agravar as condições de vida urbana para níveis cada vez
mais inaceitáveis para todos.
No meio de toda esta desgraça tornou-se pública uma lei municipal que proíbe a mendicidade
!!! e estabelece penalizações a quem dê esmola na rua!!! como se fosse possível plantar um polícia ao
lado de cada mendigo!
Falta agora uma lei municipal que proíba morrer...
Estas são as dimensões do “património urbano” que interessa considerar.
Infelizmente, as condições indicadas são, quase todas, negativas e interessa reconhecer que as
nossas cidades são antes de tudo o reflexo e a consequência da degradação das condições sociais,
políticas, económicas e culturais do país.
Não será fácil, portanto, corrigir a condição de habitabilidade da cidade sem corrigir a condição
do país.
O lado positivo da vida nacional está na resiliência e na capacidade de sobrevivência que a po-
pulação, sobretudo a urbana, demonstra e manifesta e que é, aliás, verdadeiro para toda a África e
amplamente provado em todo o Moçambique.
Como exemplos disso basta considerar os “dumbanengues”, verdadeiros centros comerciais po-
pulares, que são uma das respostas mais efectivas e espectaculares que as pessoas e a situação econó- 354
mica e social da cidade encontraram para o comércio, a níveis realistas de acesso por parte da maioria
da população urbana ou a solução, com certeza imperfeita mas pelo menos positiva e possível, que a
auto construção da habitação vai trazendo para a maioria das famílias em Moçambique.

DETALHE DO CAMPIDOGLIO – ROMA JOSÉ FORJAZ


Publicado na revista “Disegnare, idee, immagini” Esse é outro mundo, não o meu, para o qual não me sinto obrigado a contribuir.
do Dipartimento di Rappresentazione e Rilievo da Unversità Subitamente, sem real adaptação psicológica, veio a espantosa ferramenta da manipulação virtual
degli Studi di Roma “La Sapienza”, Número 23/2001 da forma, da sua penetração desvendadora e instantânea, da simulação convincente da escala, da cor,
da textura e da luz.
A mão tem agora outras ginásticas onde os alfabetos motores são quase irrelevantes em face da
aprendizagem dos protocolos específicos de cada software, de cada automatismo.
O resultado?
Perigosamente perfeito no representar. Perigosamente porque a perfeição é a da representação.
Não é necessariamente a da invenção.
Estamos ainda muito, e muitos, a esse nível. O do estar encantados com a ferramenta, com o
meio, com a mágica espantosa da manipulação fácil e sugestiva da invenção mecânica.
Ao meu processo de invenção o computador veio alongar-lhe os tempos.
A omnidireccionalidade quase instantânea e simultânea das visões do objecto inventado cria
responsabilidades novas à nossa, já pesada, tarefa.
O DESENHO E A INVENÇÃO DA ARQUITECTURA Dá menos desculpas. Obriga a mais e muito mais profundamente. O erro não pode mais ser
imprevisto, casual, desculpável.
356 357 Mais do que nunca, agora, só não vê o erro quem não o procura. Ou não o sabe distinguir.
Da mente ao plano da representação vai um dos processos, e apenas um, da invenção da arquitectura. Mas o virtual do monitor passa ao papel e torna-se, noutra forma de expressão gráfica.
O risco, com o pau na areia, à escala de um para um; o gesto indicador da cota e a presença do Agora estática e palpável, ela reentra na materialidade mediata das duas dimensões e ganha, se o
inventor na obra em execução; a descrição qualificadora e quantificadora (Lampedusa ou Calvino); o ganhar, o estatuto da obra com valor em si própria. De meio passa a fim. Perigosamente.
modelo reduzido ou a pura e simples cópia do que já existe são outras tantas maneiras de transmitir, Mas o desenho foi e é, sempre, mais que tudo isso.
a quem a realiza, a ideia de quem quer ou quem inventa arquitectura, que é ela que conta, construída Mais que qualquer outra maneira de dizer é a ferramenta solitária de construir as ideias fugazes
e habitada, para o arquitecto. das formas a inventar e a gozar.
O risco no papel, por qualquer meio é, no fundo, só isso: um meio. A imagem do que queremos Ele esteve sempre por trás como o engenho mais seguro, o dicionário mais completo, a mágica
novo no mundo está por detrás dos olhos e aquém da mão. Reside, impalpável e poética ao nível da mais certa.
impressão que se inventa, não da que se sente. Só depois se sente o que se inventa. E cria o grande sofrimento de não estar todo o dia, toda a vida, a praticá-lo.
Da ideia à mão vai a enorme distância que separa a cultura da manualidade e, se nisso há conflito, Não sei portanto se a invenção da arquitectura me necessitou o desenho ou se foi do desenho que
ele resolve-se, e só, quando a maturidade da invenção se associa à naturalidade do gesto. me veio a necessidade de arquitectar.
Desenhar é, então, para o arquitecto, uma aquisição motora já ao nível do subconsciente. Seja como for não há um sem outro.
Mas o desenho é também um espelho deformador e, felizmente para o arquitecto, deformável.
E, como tal, ferramenta.
Entre dois desenhos o tempo mede-se não em horas mas na agonia do desejo de perfeição.
Esse é o desenho do arquitecto.
Mas há o desenho do analista, do crítico, do intérprete, o desenho do desenhador, do copista, do
estudioso e do amador.
CONDIMIO RESIDENCIAL SIGMA – MAPUTO JOSE FORJAZ • ARQUITECTOS
Abertura de um seminário na FAPF, sobre o tema É uma posição perigosa e que ilude, ou se ilude, atrás de argumentos tecnológicos e moralistas, fu-
gindo sistematicamente de fazer frente ao problema essencial do equilíbrio planetário que só é resolúvel
Maputo, 20 de Outubro de 2003 quando o equilíbrio social e a distribuição dos recursos do planeta for equitativa e justa.
É significativo e inevitável que sejam sistematicamente os países mais desenvolvidos, e que mais
contribuem para os grandes desequilíbrios ecológicos, aqueles que mais teorias produzem para ree-
quilibrar a relação do homem com a natureza e que mais esclarecida consciência exibem das causas
mecânicas desse desequilíbrio.
É, também, significativo que o conjunto das causas identificadas seja, quase sempre, de natureza
técnico-económica e que seja raramente elas sejam analisadas como a consequência lógica, e inevitável,
de deformações ideológicas e perversões políticas.
A noção de que exclusivamente através de uma posição tecnicamente esclarecida, no que diz res-
peito aos meios utilizados para obter construções e ambientes urbanos ecologicamente equilibrados,
se pode chegar paulatinamente, ou contribuir decisivamente para um futuro mais promissor para a
humanidade, é, no mínimo de uma ingenuidade inaceitável.
ARQUITECTURA, AMBIENTE E SOBREVIVÊNCIA É, queiramos ou não, um mito conveniente a uma nova forma de tecnocracia, mais perigosa por-
que fundamentada em motivações correctas e conduzindo a soluções tecnicamente defensáveis.
360 361 Toda a literatura sobre uma urbanística ou uma arquitetura válida, justa e ecologicamente sustentá-
No início do 3º milénio estamos, sem que a maior parte da população do mundo pareça preocupar-se, vel equaciona correctamente, mas não completamente, o problema global como uma sinergia negativa
à beira do abismo. dos seguintes aspectos da crise ambiental:
A nível planetário esse abismo significa, ou pode significar, a extinção da civilização e dos valores • A diminuição das reservas de água potável no planeta, que consome mais água do que a capaci-
culturais acumulados e aperfeiçoados ao longo de quarenta mil anos de expressão e comunicação de dade de renovamento dos aquíferos;
ideias, de criação de testemunhos materiais e espirituais com grande significado científico e cultural, • A erosão dos solos, com a perda anual de milhões de toneladas de solos férteis causada pela
do aperfeiçoamento de um código ético cada vez mais universal na sua aceitação, do aprofundamento expansão das áreas agricultadas, por más práticas agrícolas e pelas consequências da expansão
de um conhecimento cada dia mais profundo da realidade e, finalmente, de uma consciência cada vez industrial;
mais esclarecida da condição humana, das suas grandezas e das suas misérias. • O abate da floresta tropical, essencial ao controle do clima e à sobrevivência da vida animal, com
Mas, como é, de todos que o quiserem saber, sabido, essa magnífica condição do conhecimento e a perda, só na última década, de mais de 8% das florestas do planeta que haviam já sido reduzi-
do saber humanos não é garantia de salvação, a qual, pelo contrário, está ameaçada pela inconsciência, das em cerca de 200 milhões de hectares, só na década de 80-90 (de 1.900 milhões para 1.700
impotência, incompetência ou ignorância, egoísmo ou desonestidade de governantes e de governados. milhões de hectares). Esta dinâmica acelerou na década seguinte e o problema vai-se agravando.
Arquitetos, urbanistas e planificadores físicos, todos somos mandatados, ou pensamos que o somos, • As instalações de energia nuclear que são neste momento cerca de 430 no mundo todo, com
para organizar e dirigir a construção do espaço social e das suas estruturas. um custo de cerca de $900 milhões por unidade e que custarão, só na Grã-Bretanha, cerca de
Alguns de nós alimentam a ilusão, ou a cegueira, de que a solução dos nossos problemas mais 16 biliões de Libras para desativar 54 unidades, até 2060.
essenciais é de natureza tecnológica ou de que eles podem ter soluções técnicas que, a curto, médio As estações nucleares produzem mais de 10.000 toneladas de resíduos contaminados, por ano, para
ou longo prazos, venham a reequilibrar, ou equilibrar pela primeira vez, a sociedade humana com o os quais não há, ainda, qualquer solução definitiva ou adequada.
ambiente natural e, assim, evitar a descida ao abismo da auto-extinção da civilização e dos seus valores Para lá desse, talvez insolúvel, acresce o problema do plutónio que continua a ser produzi-
mais profundos. do ilegalmente, e a constituir um grave risco nas mãos de potenciais forças terroristas. Entretanto,
a armazenagem de materiais nucleares, potencialmente para uso bélico, continua, enquanto alguns A construção do habitat humano é, ou tornou-se, numa das actividades que mais atenta ao equilí-
governos continuam a advogar a construção de novas centrais nucleares. brio ecológico local e global.
Como aspecto, quase de humor negro, vale a pena mencionar que a minúscula produção de resí- O arquiteto e o urbanista são, no sentido em que determinam como construir, solidariamente
duo nuclear que resultou das experiências pioneiras do cientista Enrico Fermi ainda não tem um local responsáveis, com a sociedade que os emprega, pela maneira como contribuem ou como podem evitar
seguro de armazenagem! essas agressões.
O aquecimento global – como resultado do efeito de estufa, produto do aumento exponencial Nesse sentido, a sua formação deve conter os elementos que lhe permitam apurar uma consciên-
das emissões de CO2. Os cientistas prevêem um aumento da temperatura global da ordem do 3,5º cia científica e técnica cada vez mais esclarecida sobre os problemas e soluções que assegurem o mais
Celsius até 2100. As consequências desse fenómeno serão catastróficas no que diz respeito às mu- alto grau de sustentabilidade ambiental a cada edifício em cada contexto urbano.
danças de clima, subida do nível médio das águas do mar, com resultados diretos no abaixamento Cada contexto geográfico e sociocultural tem características próprias. A sua análise, e o conheci-
da capacidade de produção de alimentos, no aumento radical da fome nas zonas desérticas cujas mento da sua evolução, devem ser objecto de uma investigação contínua.
reservas de água desapareceram totalmente, e no aumento da frequência das cheias, secas, ciclones e No nosso contexto cultural quer os sistemas de educação pela família e pela sociedade, quer o
ondas de marés. sistema formal de educação, a nível de qualquer dos seus subsistemas, estão mal preparados, ou são
Finalmente, e com a mesma gravidade, enfrentamos o fenómeno do aumento da população. Com inadequados à formação de mentalidades filosoficamente e tecnicamente preparadas para fazer face,
cerca de 6 biliões de pessoas o planeta cresce a um ritmo anual de cerca de 90 milhões, prevendo-se uma nos seus campos de acção, aos problemas referidos.
expansão para o dobro da população actual, isto é, para cerca de 12 biliões até ao ano 2050, isto é, um Somos, dessa maneira, uma sociedade em geral menos que consciente dos factores e das conse-
aumento populacional correspondente a 3 vezes a população actual da África. quências da crise ambiental e uma classe técnica mal preparada, alienada ou mesmo impedida de tomar
Neste cenário, até agora irreversível, as necessidades em água, comida, terra e recursos naturais são 362 363 aquela crise como o factor determinante da sua actuação.
tão extraordinárias que é previsível e lógico supor-se que darão origem a apocalípticos fenómenos de No caso da nossa actividade – a de projetistas dos espaços habitáveis, a todas as escalas – o problema
extinção maciça da população humana. tem várias origens ou causas:
Esta lista de manifestações objectivas da crise ambiental, instalada e real no planeta, pode ser • A formação esteticista que propõe como valor prioritário, na produção criativa do estudante,
vista como um conjunto de causas, inevitáveis, dos problemas atuais e futuros da sociedade humana a obtenção de resultados estéticos baseados numa pobre interpretação de modelos históricos
cujas consequências podem ser previstas e que devem suscitar tentativas de resolução ou, com mais ou nas modas mais correntes, sem a necessária análise da sua razão de ser económica, tecno-
visão e inteligência, como a consequência direta das formas irracionais e depredadoras do habitat e lógica, ecológica ou social;
da maneira de viver da sociedade humana, sobretudo do estrato que mais demandas faz aos recursos • A proposição de disciplinas técnicas, incompletas no seu âmbito e conteúdo, separadas do exer-
e ao ambiente natural. cício do projecto e ministradas sem uma lógica integradora;
É interessante que, em quase todos os trabalhos de análise científica da crise ambiental global, • O exercício do projecto através de temas irrelevantes, conduzido e avaliado sem que o estudante
raramente se equacionam os aspectos ideológicos e políticos, responsáveis pelas formas mais profundas
dos desequilíbrios sociais, pelas diferenças na oportunidade de sobrevivência, pelo culto do consumo e
do desperdício, pelo domínio económico e imperialista das riquezas e recursos naturais do planeta por
parte das nações mais desenvolvidas, pela falsa noção da globalidade económica ao serviço daquela nova
doutrina imperialista, pela iniquidade da divisão internacional do trabalho, pela obstrução sistemática
da participação política e da democracia que, essa sim, deveria estar já num processo irreversível de
globalização.
FSDFSD
Este é o pano de fundo sobre o qual devemos construir uma atitude profissional, uma didáctica e DFDSGFDSFGV
as razões de ser das temáticas de investigação. DSFSDFDS
seja incentivado a equacionar e resolver os problemas de ordem ambiental e de sustentabilidade
ecológica;
• A ausência, nos curricula, de uma disciplina, de carácter filosófico, que estimule os estudantes
a reflectir sobre a relevância da sua actuação como futuros profissionais e que lhes forneça os
instrumentos culturais que os leve a uma reflexão contínua sobre as dimensões mais transcen-
dentes da sua função social;
• Finalmente, e com relevância muito particular para o nosso caso de país dos mais pobres e
atrasados do mundo, um insuficiente conhecimento, e portanto uma insuficiente inserção, na
realidade física e cultural do país.
A regra universitária impede-nos de funcionar com a liberdade necessária ao constante ajustamento
dos conteúdos e dos métodos de ensino.
A exiguidade dos fundos disponíveis impede-nos a mobilidade e a experimentação indispensáveis
ao melhor conhecimento das situações no terreno e das soluções possíveis.
O isolamento e a inexperiência do nosso corpo docente, muito jovem e limitado no seu âmbito de
conhecimento, torna-o ainda mais inseguro, por vezes mesmo defensivo, por vezes arrogante e pouco
preparado para propor aos estudantes uma visão complexa e completa dos problemas.
A limitadíssima disponibilidade de informação bibliográfica e documental e a falta de experiência
pessoal é um dos factores mais limitantes da formação, escolar e profissional, dos nossos arquitetos.
364
AMIGOS
E no entanto, pouco a pouco, vamos construindo uma cultura do espaço e da forma arquitectónica,
da sua relevância, das suas limitações, dos seus valores, dos seus sucessos e das suas falhas.
O seminário, ou curso compacto que hoje, aqui, abrimos vai ao encontro, ou desejamos que vá, das
preocupações que referimos no início.
Por isso pensamos que será indiscutivelmente relevante.
Dois pedidos ou, se quiserem, recomendações, quero deixar aqui aos colegas que nos vêm dar o
benefício do seu saber e experiência:
que saibam evitar as tendências tecnocráticas que estes temas muitas vezes suscitam e
que percebam e integrem as dimensões físicas, sociais, económicas e culturais da nossa realidade no
dimensionamento das aplicações e dos exemplos a usar na sua didática.
Finalmente agradeço ao CICUPE, à Cooperação Italiana e aos nossos colegas, das diversas partes
do mundo, a sua disponibilidade e interesse e desejo a todos o maior sucesso e satisfação intelectual, ao
longo deste curso.
VISTA DO PALÁCIO SPADA E PALÁCIO FARNESE JOSÉ FORJAZ
ESTE TEXTO NÃO
VEIO COM OS Escrito para um jornal, de que já não me lembro qual, E nisto de quintal e universo ficou-lhe ser inevitavelmente português consciente da sua universal
DO FORJAZ, VEIO em memória da última visita que fizemos juntos, provincialidade, vasto e curioso que sabe que afinal o mar tem sempre outro lado e o mesmo pecado.
DO VÍTOR antes do António morrer Ficou-lhe, na Ilha ainda a justiça à sua verdade de saber que arriscar a mistura vale a pena, Ficou-
-lhe, na Ilha, aprova tangível de que o sonho é uma escolha, um escolho que não deixa de ser sonho
22 de Setembro de 1994 e por isso nos escolhe.
A Ilha é um espelho, uma lente com que nos vemos, com que ele se viu, mais claramente, a si
próprio.
Deu-lhe mais sentido ao acto de escolher: a Ilha ou o mundo?
Isto, ao longe ninguém percebe. Mas para quem conheceu o António e conhece a Ilha é fácil.
Era, para ele, o lugar dos milagres naturais.
A começar pela fitopetrofagia que o fez gastar rolos de fita e de filme.
Cada figueira da Índia, gibóia das pedras, lhes fez perceber melhor o monstruoso que o maravi-
lhava na sua capacidade de ver lógica onde outros viam ruina.
Cada cisterna desventrada uma lição de espaço involuntário, catedral acidental a descobrir.
O ANTÓNIO E A LHA Cada trapo na rocha memória da primeira menstruação.
Cada estátua derrubada uma vingança a evitar, uma lição cristalizada a oferecer.
368 369 O padre Lopes uma alter ego imperfeito, herói de o não ser.
Porque falar desta relação mútua? E se o Camões aqui cagou também eu, que a Ilha merece esse sublime acto de concentração.
Será que se encontraram duas ilhas? A Ilha era-lhe o grande vómito do que lhe ia por dentro de indigestão da linha e traço e cor e
Levei-o eu lá da última vez e do que ele lá fez fiquei com o resultado. Falta-me ser capaz de o senso a mais, que o António andava sempre de barriga cheia dessas coisas.
passar aos outros. Não serei eu só, nem só por aqui, que o passarei mas tentar outra vez faze-lo, depois A Ilha gastava-o. Gastou-o como lixa. Desbastou-o por fora e atafulhou-o por dentro. Deixou-o
de morto, é justiça que tanto lhe foi negada antes. assim fininho entre o inchado e o lixado.
O universo, para o António, podia muito bem estar no fundo do quintal. De qualquer quintal Foi o teste da nossa resistência à grande amante impossível, à grande puta a que não se paga.
pois o que contava eram os olhos. Dele. A Ilha era o Luis e o Che Amur – Allah u Akbar – e o Dimande e o faroleiro ausente da Ilha das
A Ilha era-lhe ainda outro quintal a descobrir. Com os universos todos amontoados, malcheiro- Cobras, as caras brancas do msiro (... gozo adiado que procria).
sos ou perfumados dos suores das dançarinas do tufo, da merda na praia e da flor do frangipani, do A Ilha é para lá das pedras, a Ilha é para lá da carne.
peixe seco ou podre ou cozinhado, da manga e do lenho e do morcego. A Ilha é o António encarnado na praia, ás quatro do dia (sol cor de cueca antiga) e o primeiro
Um quintal donde nasce o sol no mar e os poentes são na terra. afogado do vento de ontem displicentemente carregado, igualzinho ao Othelo do Wells, com a cara
Da ruina que ele respeitou, não pelo que foi mas pelo que seria. para cima e os pés a abanar, numa porta velha aos ombros de quem pesca, ao longo longo da praia
O António foi ver as ruinas, talvez que fossem elas e vê-lo e se animassem noutras formas, vidas, com sol e sal a conserva-lo uma hora mais.
mitos. Reconheceu-lhes vida própria pois que a elas só por prémio pretendia. Sete anos que se ti- Nas afinal isto é a Ilha ou o António?
nham passado, sete anos mais as serviria. Não havia um sem outro e os buracos dela descobriram-lhe outros dentro de si próprio.
A Ilha foi para ele a prova final da mágica da mão e da vontade. E o António no fim tentou. Passa-la a outros, aos outros. Tão plinonásmicamente generoso como
Menos épica que lírica a Ilha foi violada pela ponte. Mais dificilmente solitária. sempre.
Mais à mão de semear, que foi sempre a mão do António. Mas isso não conseguiu lá nas culturas altas e academias sacanas.
Os pequeninos não se despenteiam com o vento das alturas que giram nos grandes sentimentos.
Tudo o que lhes trouxe lhes pareceu um marulhar sem regra e sem sentido. Faltaram-lhes os
sentidos. Alguns.
Não souberam nunca distinguir entre o tomate e a coragem.
Entre a crendice e a fé – essa forma particular da lealdade.
São políticos. Os pequeninos.
O António era um ideólogo e a Ilha era para ele uma ideia.
Ele morreu.
A ideia ficou. Vai despontando, florindo entre as pedras e ruinas, criando outros mundos.
Recomendo-vos que a aprendam, como ele.
Se poderem.
Se quiserem.

370

VISTA DE TRINITA DEI PELLEGRINI JOSÉ FORJAZ


publicado no “Boletim” da Universidade do Porto, No. 25 A sua arte foi sempre didáctica. Desde a ode aos odres. A cabra ou o cabrão não lhe vinham da
Ano V, 1/ Junho 1995 mão – vinham-lhe do coração.
Reler (sempre pela primeira vez) os seus apontamentos para a “Tese de Agregação” traz-nos outra
10 de Fevereiro de 1995 vez um profundo ódio pela morte (dos outros), dele que não acabou de facetar este cristal.
Estes apontamentos são mais uma síntese da lição que todos os dias começou, com a descoberta
da primeira dúvida, da primeira lição a si próprio.
O António não era, e muito menos agora é, redutível a uma tese: ele pensava assado, fazia cozido,
cantava o frito.
O seu pensar era esférico, constelar e translacional.
Avançava alargando sem perder a densidade; argumentava não por antítese mas por osmose, por
tensão superficial das ideias e das associações. Era um pensar em bacia hidrográfica. De cada ideia se-
guia o seu percurso, ou um percurso, pelo afluente mais influente até um ponto de nascença, à fonte,
uma qualquer das fontes primordiais. A lição que deu foi sempre a da escolha, sempre insuspeitada,
de uma nova aventura do espírito.
ANTÓNIO QUADROS, PROFESSOR Ele foi isso: um navegador do pensamento. Com ele o Norte eram todos os horizontes e a Índia
não era um destino – era um pretexto. Pensar era preciso. Foi portanto este salutar aventureirismo do
372 373 pensamento que ele melhor ensinou.
É tarde agora para escrever sobre o António, Professor. Esta alegria da descoberta do milagre da associação das ideias, das imagens, dos ritmos, das lavas
É tarde e quase inútil. eruptivas do vulcão latente da memória. Da dimensão telúrica, subterrânea, ultramarina, astral, cós-
Nunca foi de elogios que ele necessitou. Necessitava de o necessitarem, de o saberem neces- mica da imagem. Disso ele foi o mestre, o Gama das vastas regiões mentais inexploradas.
sário. Pensar era alegria.
É também cedo para sobre ele ter a justa perspectiva, a compreensão da sua dimensão centrífuga, Era paixão.
da profundidade da sua realidade, da sua invenção, da extensão da sua influência sobre os seus discí- Transmitir esta alegria era o seu vício, o seu dever alegre, o seu interesse visceral a cada momento,
pulos, da sua cultura fruto de uma curiosidade profundamente engajada. a cada encontro.
Conheci-o sempre a ensinar. Como dito, ele veio ao ensino por aprendizagem. Por respeito pelo ensinável e pelo ensinado.
A ensinar-se a si, que era aprender, a ensinar à volta, que era ensinar a aprender. Nos alunos respeitava tudo.
Se as pessoas têm uma chave que lhes abre o segredo do ser de uma forma diversa das outras, no Primeiro, a pessoa. Toda a pessoa. Depois todos. O grupo. A relação.
caso do António a que o explicaria melhor seria a da sua prodigiosa imaginação, isto é, a coragem de A inocência ou a pseudo falta dela.
pensar para lá do já pensado. O espanto. A ignorância. A desconfiança, a dificuldade no adolescente ou a agonia do obscuro,
Para este homem ensinar era uma escolha inevitável entre o grande gozo de produzir, que lhe no maduro.
vinha do cerne do osso, e a grande responsabilidade de ensinar, que lhe brotava irreprimível em Em cada um, um indivíduo a descobrir, a levar à descoberta.
comunicação inadiável. Um indivíduo a aprender. Um universo a maravilhar, a impressionar, a levar ao fim de si próprio.
Professou. Nunca o ouvi falar de um aluno que não me fosse dada a perspectiva de mais um grande poten-
O Tempo, como para todos, tinha contudo para ele uma dimensão encolhida que lhe resultava cial a realizar, de um sábio latente. Com todos e com cada um se maravilhava, nele investia muito
em escolha permanente daquela responsabilidade. mais de emoção que de obrigação.
Fazia-o com método. Com métodos exaustivos de análise, de contraposição de cada prestação, de “A aula passa a ser, entre mestres e amestrados, o doce congresso, de outros ou de duplos contentes,
cada resposta, de cada resultado, de cada pessoa. porque, reduzindo o plano da ilusão ao real cínico da sombra que projectam, um e outros, repartem sem
Direi talvez que aquilo que mais o caracterizava (e que para muitos não era claro ou era surpreen- partilha, o árido fazer no fito de ficar feito, a medonha inversão de sentidos do que arte seja, vida seja,
dente) era o seu rigor no exercício do ofício de ensinar. ventura fosse. Do alto da peanha sombria e suja, a luz engessada de vinte séculos vos contempla.
Cada aula (a que nunca faltou) era um exercício exaustivo de introspecção, de preparação fasti- Avultam: a superioridade plástica, da morfologia menor desta vénus em gesso, e a mesquinhez ofensiva
diosamente completa e sempre nova. dos bordejos encarvoados que são o resultado plástico da acção perversa do ser não.
Deu sempre mais do que foi capaz de exigir. Uma aula de crianças excluiria este não brio. Um salão de loucos mostraria a ronha alienada que,
Melhor dito – nunca exigiu – motivou. de facto, é.
Não mote e vou. Sim motivo. Os cursos de arranjos florais têm emoção e comadrio.
Foi esse o rigor que o levou sempre e cada vez mais a alargar o espectro de relação com cada alu- Num leilão de gado há activa contemplação estética, e, uma narina fremente, o fino jarrete, a crina
no por forma a poder completá-lo, perceber-lhe as clivagens emocionais ou culturais, os complexos farta da poldra, o velo enmoitado das borregas, ou a catenária pendente da vaca prenha, soltam o bafo das
consciencializados ou dormentes, as hipersensibilidades e as infantilidades. emoções mais directas por parte do perito em morfo-pecuária.
De rigor se tratava na elaboração das fichas temáticas, das séries das imagens e, sobretudo, dos De onde sairá então a passividade perante o motivo?
métodos disciplinares e disciplinadores da razão. O domínio da emoção comum faz parte de toda a aprendizagem. Mas, domínio de não significa au-
Tudo lhe vinha afinal da capacidade de ver, do respeito por todo o facto e todo o fenómeno, do sência mas, e pelo contrário a compatibilidade, ou seja, um acréscimo postulado pelo aumento de pressão
pequeno e do grande, do rural e do urbano, do povo e do príncipe, da folha e do bosque, da ferrugem interna.
ao ferro, do singular e do plural. 374 375 Só que o duplo, por natureza, é a imagem simulacro, a cria ligada à placenta da ilusão, nó de enjoos.
Atentamente. Permanentemente. Curiosamente. Das suas opacidade ou ocacidade falarão os propósitos em falta.” *
Via responsavelmente. Critica, como vêm.
Via com atenção ao fenómeno de ver. A esse embeber das imagens em camadas sucessivas de À mediocridade de que o António Quadros, sem ser pela lei da morte, já há muito se tinha
reacções, associações, vibrações trans-sensoriais. Atento à sua própria e fenomenal capacidade de libertado.
encaminhar as sensações e fazê-las ricochetear entre os diversos níveis da consciência.
Conviver com ele como aluno, amigo ou parceiro era uma constante exposição a esta quase
tempestade de fulgores, de imagens sempre, e quantas vezes quase instantaneamente, construídas a
partir da matéria densa da sua enciclopédica cultura.
Porque o António era, curiosamente, um homem erudito.
Curiosamente porque no seu caso (raro) o saber não lhe atrasou os caminhos da cultura.
Ele fez sempre essa agronomia do conhecimento que brota no facto cultural.
Dessa cultura lhe veio a intransigência pelos que da cultura se servem para alimento da sua pre-
guiça mental e doentia mistificação dos outros.
Lhe veio uma atitude tão intransigentemente crítica que a muitos pareceu até maldosa. Não era.
Era, sim, uma incapacidade de separar o pensador do seu pensar, a palavra da atitude.
Mas pela crítica se progride, pela crítica se sobrevive. Pela crítica se ensina.
Melhor que eu, ele o dirá.
Transcrevo (a crítica): * António Quadros: extracto de apontamentos para a lição magistral de Agregação, nunca produzida.
MESA JOSÉ FORJAZ
(tradução e adaptação de um artigo escrito para celebrar para ele como desenhador. Nessa altura tinha eu já uns meses de trabalho nas Obras Públicas como
o Doutoramento Honoris Causa de Pancho Guedes desenhador “tarefeiro” sob o controle de um duro mestre, o Fernando Mesquita, arquitecto ele pró-
pela Universidade de WITS em Johannesburg em Dezembro de 2003) prio e admirador crítico do trabalho do Pancho. Foi ele quem me ensinou as virtudes do rigor, da
racionalidade do pensamento, da necessidade da cultura e do valor do trabalho.
Maputo, 15 de Fevereiro de 2010 Era um ambiente seco, mitigado só por um generalizado sentido de humor partilhado por todos
à minha volta.
Com o Pancho a experiência alargou-se ao outro lado do espectro.
A necessidade da invenção vinha primeiro. A falta de imaginação era um pecado mortal e a
manipulação das formas era um exercício obrigatório, avançando para lá das últimas explorações
publicadas e avidamente estudadas numa copiosa literatura arquitectónica a que, pela primeira vez,
eu tinha acesso.
Depois havia as obras onde eu era levado para medir vãos de portas e janelas, fazer o levanta-
mento de velhos edifícios e, na maior parte das vezes, simplesmente para ir, ver e gozar a incrível
atmosfera de um edifício a crescer do nada para se tornar obra de arte.
PANCHO GUEDES A vitalidade daquele lugar nunca era menos que vibrante. O trabalho, os livros, os clientes, os
construtores, mesmo a pausa para o chá e biscoitos da Dory, tudo andava à volta desta obsessão com
378 379 a arquitectura, a pintura, a escultura e as artes. O Malangatana pintor tinha começado, também
Eu tinha 16 anos em 1952 e Moçambique era o meu segundo país, a minha segunda cultura e a nessa altura, a sua extraordinária produção, na garagem do Pancho.
minha primeira descoberta de um horizonte mais vasto. Outros chegavam e partiam. Panos bordados e madeira esculpida saíam daquela garagem, à volta
Em toda a minha, curta, vida anterior eu tinha estado apaixonado e encorajado a manipular for- de ideias às vezes tão infantis que nos poderiam enganar como uma “naiveté” de chegada e não de
mas, desenhar e construir modelos de uma realidade que eu só podia controlar a essa pequena escala. partida. Por essa altura eu partia e voltava da Escola de Belas Artes do Porto, onde tudo me parecia
Os edifícios e o mistério da sua construção penetravam, devagar, uma camada profunda do meu abafado, atrasado e, talvez até, seguro demais de si próprio.
mundo imaginário. Mas era o processo mais que os resultados que me fascinavam. O Pancho e a Dory tinham começado, entretanto, um negócio de importação e venda de
Vivíamos, então, numa sociedade profundamente marcada pelo conformismo, dominada por objectos decorativos e artísticos e, durante algum tempo, eu procurei e comprei para eles, em Por-
um regime autoritário e praticando o oposto dos seus próprios princípios éticos, onde todos éramos tugal, peças muito interessantes de arte popular. Isto deu-me um contacto profundo, e um novo
rebeldes, navegando entre a boémia e o extremismo político. respeito, pela seriedade e qualidade das tradições formais da arte não erudita.
Foi precisamente nessa época que o Pancho veio a ser uma presença na minha necessidade de Através do escritório do Pancho, e da minha vida, bons amigos passaram que lutaram pela glória
encontrar um mundo diferente. da arquitectura e da sua obcecada irmandade. Arquitectos e artistas. E outros, os “cognoscente” e os
Ser diferente era necessário. intelectuais, mesmo os políticos. O ingrediente mais importante destas amizades foi sempre o com-
O Pancho era diferente e, por isso, admirável. promisso de gozar os resultados da criatividade, da expressão e da liberdade de pensamento.
Naquele universo pequeno e provinciano os seus edifícios não deixavam ninguém indiferente. Havia contudo um dogma – ser antidogmático. Viver dessa maneira não é simples nem fácil.
Eram presenças provocadoras, inescapáveis, demarcando-se de uma colecção maçadora, ou assim Aprendemos, todos, o preço de arriscar, de abrir caminho, de desafiar convenções, de inventar. Criá-
a sentíamos, de caixotes modernistas ou exercícios revivalistas vagamente “português suave”, com mos, sem essa intenção, inimigos, lambe- botas, antagonismos intelectuais, invejas e falsos discípulos.
um travo de América Latina, ou simplesmente tentativas pueris de um neoclassicismo ultrapassado. Uma lição que eu aprendi com o Pancho, e que é tão válida agora como sempre foi: é que a
Aos dezassete anos, exactamente há 56 anos, fui ter com o Pancho e pedi-lhe se podia trabalhar aventura da arquitectura, da invenção do espaço onde o homem vive e ama, é tão irresistível que
nos empurra, todos os dias, para mais um passo, mais um trabalho, mais uma descoberta, mais um do Pancho, e celebrá-lo, mas olhar para esse trabalho como o resultado de uma atitude e de uma vida
esforço, mais uma alegria. de dedicação e amor por aquilo de que também gostamos. É por isso que, através desta celebração,
É uma lição de atitude, não de forma. A forma é pessoal como o comprimento do nariz ou as se podem estabelecer novas referências para os estudantes e para os profissionais e artistas. É por isso
riscas da zebra. Mesmo o processo é pessoal e circunstancial, para lá da disciplina. que agradecemos ao Pancho e lhe damos os parabéns por este reconhecimento.
A atitude aprende-se por emulação e compreensão. Não poderia terminar sem relembrar a Dory e lhe fazer justiça pelo apoio que sempre deu ao
No caso do Pancho as raízes do sucesso, ou, como dizem os franceses, da sua grandeza e miséria, Pancho e que foi essencial para o que ele conseguiu.
são uma capacidade enorme de fabricar e manter viva uma inflexível fé em si próprio e o gozo verda- Obrigado Pancho e Dory. É para mim um privilégio poder dizer isto em público.
deiro do que faz e que continua a fazer.
Passaram anos. O mundo deu voltas, os criados passaram a patrões e os velhos patrões desapare-
ceram ou foram substituídos pelos novos.
Os anos 70 foram anos de grandes escolhas e opções.
Ambos, como tantos outros, mudámos de lugar e de regimes. O Pancho tornou-se um universi-
tário. Eu não poderia segui-lo e ficámos separados pela geografia de dois regimes opostos.
Suspeito que ele se tenha divertido imenso. O Pancho foi sempre muito comunicativo, e teve
sempre muito para comunicar. Tanto que a lógica das suas associações e das suas referências culturais
não são sempre fáceis de seguir e, por isso, de aceitar.
Ele fala uma linguagem codificada, de imagens e metáforas que devem ser aprendidas para pode- 380 381
rem ser plenamente apreciadas. O seu riso pode ser gelado quando se lhe percebe a fundura da ironia.
Mas o seu entusiasmo é sempre contagiante. Tudo isso, mais a sua capacidade de identificar instan-
taneamente as virtudes e as fraquezas de um projecto, faz dele um formidável crítico e professor.
Posso adivinhar como o ambiente académico lhe deve ter sido, por vezes, asfixiante, maçador,
enervante e limitador. Eu senti o mesmo depois de mais de vinte anos desses sofrimentos. Mas posso
também adivinhar que o Pancho teve um grande gozo puxando o tapete debaixo dos pés de tantas
certezas e hábitos estabelecidos. Ele, tenho disso a certeza, descobriu e estimulou o potencial univer-
sal da criatividade dos estudantes, a sua paixão, a sua curiosidade e a alegria da descoberta. Nisso ele
é um mestre indiscutível.
Ele propõe, quase obsessivamente, uma atitude de desafio aos formalismos do establishment, a
liberdade de pensamento e a informalidade no comportamento mental. Mas o que nos deu é, para
lá de tudo, um volume enorme de trabalho de qualidade excepcional, com a autoridade que lhe vem
de ter desenhado e construído muitos projectos, pintado muitas telas, manipulado muitos materiais,
reflectido sobre muitos níveis do ofício de ver, olhar, aprender e produzir a forma artística.
O Pancho nunca foi um político, um especulador ou um socialite. O trabalho veio-lhe de uma
sociedade que lhe reconheceu o valor, a eficiência, a novidade do seu impulso poético e a força da
FSDFSD
sua fé no valor redentor da arte. DFDSGFDSFGV
O que quero afirmar nesta eulógia é que nós deveríamos não só reconhecer o valor do trabalho DSFSDFDS
DETALHE DE SANCHY – BOPHAL JOSÉ FORJAZ
Do ISCTE a Fontenay, memórias de viagem projecto e de construção – o campus do ISCTE (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e de
Empresas), do INDEG (Instituto para o Desenvolvimento da Gestão Empresarial) e do ICS (Insti-
Outubro de 2004 tuto de Ciências Sociais).
Com o Patrice voltámos, ainda e sempre, a Fontenay e ao esplendor contido e surdo do românico
cisterciense.
O acaso cada dia me parece mais raro e, nesta sequência de momentos escolhidos, julgo desco-
brir uma lógica exacta, que nasce do interesse e da paixão por essa gastronomia dos sentidos que é
aquele, já referido privilégio, nosso por sabermos medir-lhe as dimensões transcendentes da poesia
cristalizada na arquitectura conseguida.
É dessas dimensões que quero falar.
Não é na fortuita semelhança das formas e das densidades de luz e das sombras que a alimentam,
da presença palpável do material ou mesmo da continuidades e das pulsações das três dimensões mais
conhecidas do espaço, tão bem modeladas nos dois casos, que quero falar.
Quero falar da essência e da atitude pois que os resultados, e o seu mérito, são delas a inevitável
RAUL HESTNES FERREIRA consequência.
Do arquitecto de Fontenay não sabemos nada. Mas seria parecido com o Raul.
384 385 Por outras palavras: conhecendo o Raul podem deduzir-se-lhe as arquitecturas.
A essência das minhas viagens são as arquitecturas que as povoam. Conhecendo Fontenay pode reconstruir-se-lhe o arquitecto.
Casuais ou escolhidas, convidado ou intruso, vou por esse mundo com os olhos a 360 graus, Daí que das essências espaciais, e das mesmas e patentes atitudes, se possa concluir a semelhança
observando e vivendo os espaços e as formas, as arquitecturas onde me sento, me abrigo, trabalho de carácter destes dois arquitectos tão modernos e tão medievais os dois.
ou passeio, sofro ou gozo. Intemporais.
Em muitas é com um vislumbre lateral e fortuito que descubro a presença de uma obra mais Nas duas arquitecturas conta cada espaço e cada forma, conta a alternância e o pulsar das escalas
rara, mais cheia daquela intensidade de valores que me provocam sempre uma profunda emoção e das proporções, conta a lógica de cada elemento estrutural e a simplicidade da sua expressão, conta
emocional. a modéstia do pormenor, tão sábio que só os olhos atentos e educados lhe percebem a ciência e a
Com grande emoção me levo, e me deixo guiar, à contemplação e à e à vivência de um espaço invenção; conta a liberdade de compor segundo a evolução do programa sem perder a integridade
inteligente e humano, de um organismo de formas que glorifique a luz e a sombra e a matéria e a do todo.
sua desmaterialização, que assente no terreno como a sua consequência inevitável e se explique na Nestas duas arquitecturas, também, os dois arquitectos aceitaram e responderam a programas
lógica natural do seu percurso, demonstrando a coerência da sua invenção dos volumes aos detalhes. bem precisos e ordenados para os espaços a encadear e modelar, entre transições e momentos de
Nesta última viagem, entre amigos e deveres, mais uma vez se ofereceram aquelas oportunidades, chegada.
aqueles prazeres, aqueles privilégios. São duas arquitecturas para albergar o pensamento, a reflexão, a meditação e a acção.
E foram dois grandes os momentos de emoção. Em Fontenay uma parte do organismo servia para o trabalho do ferro mas a sua integração no
Em Lisboa com o grande amigo Raul Hestnes Ferreira, na Borgonha com outro grande amigo, complexo monástico é uma lição de dignidade reconhecida ao trabalho manual e à inteligência no
e sábio, o Patrice Rauszer, também arquitecto e professor mas, agora, exclusivamente dedicado ao uso das forças naturais da água e da floresta.
ofício de pensar e de escrever. Em Lisboa o organismo universitário é mais complexo mas menos diverso. Nele, fica de fora o
Com o Raul fomos desvendar uma tarefa sua onde investiu mais de vinte anos de trabalho de residencial e o industrial.
A sua abertura a uma classe variada de usuários e de usos traz-lhe a mesma necessidade de articu- universais desta disciplina que se reconhece e se identifica sempre, na permanente modernidade
lação integrativa e de controlo da escala e da proporção de cada espaço. intemporal das obras emocionantes onde os materiais cantam e o espaço vibra a cada momento do
Ambas estas arquitecturas se desenrolam e se explicam, se ordenam e se justificam em função do percurso.
espaço que envolvem. De Fontenay ao ISCTE, e de muito antes a muito depois, esperemos que a arquitectura seja
Em Fontenay o claustro; os pátios no ISCTE. sempre o reflexo dos valores que estão, nestas duas obras, tão presentes.
Ambas estas entidades espaciais são entendidas como o centro focal da vida que se lhes desenrola
em torno, como os grandes elementos orientadores funcionais e visuais de todo o conjunto dos
espaços e das circulações, como uma redução, à escala humana, do grande espaço exterior agora
humanizado.
Numa dimensão ofereceu o ISCTE mais oportunidades de manipulação espacial: na vertical.
Aqui encontro no arquitecto uma das razões para a sua mais importante contribuição. Falo das
escadas e das rampas, sempre magnificamente manipuladas, quer espacialmente, quer no detalhe
expressivo.
Em Fontenay a única escada da abadia é a de acesso ao dormitório cuja nave, tardia e magnífica,
se apercebe e se descobre a partir dos primeiros degraus que lhe definem o volume denso, apenas
anunciado na cabeceira da nave lateral direita.
No ISCTE as oportunidades são múltiplas e o arquitecto não perdeu nenhuma. 386 387
É nos espaços intersticiais, horizontais e verticais, que se revela com mais segurança a mestria
desta arquitectura que, ao longo de quase trinta anos, se foi fortalecendo, refinando e afirmando
sem necessidade das contorções histéricas e retóricas que são, infelizmente, a regra histriónica mais
seguida hoje.
Naturalmente que uma tão correcta arquitectura não poderia deixar de ser concebida em termos
ambientais e tecnológicos, que são sempre a fundação mais sólida para o sucesso de um organismo de
tão diversas valências. Igual correcção encontramos na sua integração urbana, respeitadora de escalas
e de verdes e criadora de uma imagem de grande dignidade institucional.
Na generalizada mediocridade da produção contemporânea, auto-desculpada pela suposta impo-
sição dos valores especulativos e da incultura do cliente, uma obra exemplar, como esta que reflecte
certamente a cultura iluminada do cliente, só seria possível com a atitude de intransigente busca de
qualidade em todos os níveis da sua concepção, da elaboração do seu profissionalíssimo projecto e da
vivência apaixonada do seu processo de construção.
Merecera esta obra uma outra critica mais objectiva, quantitativa e desapaixonada pois lhe faria
ressaltar, ainda mais, as qualidades de performance e de economia, que na minha visita apenas per-
cebi. Acredito e espero que venha a ser feita, para sua justiça.
FSDFSD
De mim fica aqui esta apreciação, cada vez mais rara e difícil de sentir e de fazer, à produção de DFDSGFDSFGV
um arquitecto exterior `as modas e, por isso mesmo trabalhando os valores mais intemporais e mais DSFSDFDS
VISTA DA JANELA DE GIANNI - ROMA JOSÉ FORJAZ
Elogio de Malalangatana Valente Ngwenha, por ocasião quem as crianças gostam, o que gosta das pessoas e de quem todas as pessoas de boa vontade
do Doutoramento Honoris Causa que lhe é atribuído gostam.
pela Universidade Politécnica Esta oportunidade vou eu aproveitá-la para falar sobre a natureza desta amizade e deste amigo.
Ao longo da vida as amizades vão-se definindo.
Maputo, 12 de Setembro de 2007 As raízes dessas ligações vão-se fortalecendo, vão-se tornando mais exigentes e mais selectivas.
Nos nossos amigos vamos vendo mais claramente o reflexo de nós próprios, das nossas qualida-
des e defeitos, das nossas fraquezas e das nossas forças.
É a amizade que nos dá a coragem, e a obrigação, de criticar os amigos, e isso leva-nos a avaliar
criticamente as nossas próprias posições.
No Malangatana vejo raras qualidades e virtudes.
A primeira é a sua capacidade de pensar o mundo para lá do momento que passa... e de si próprio.
A sua capacidade de perceber o sentido e o valor do passado e da tradição, e o significado do que
devemos transmitir e deixar para depois de nós.
Vejo nele um antropólogo, enxertado de profeta.
ELOGIO DE MALALANGATANA VALENTE NGWENHA A segunda é a sua lealdade, que se traduz na generosidade com que defende e promove discípulos
e colegas a quem sabe, sempre, reconhecer qualidades e virtudes, perdoar defeitos e aceitar limitações.
390 391 Vejo nele um homem justo.
Elogiar alguém é uma difícil e delicada operação, especialmente se esse alguém nos é próximo e A terceira virtude é que ele é socialmente daltónico... mas só ao preto e branco.
irmão de luta e de interesses, de compromissos e de alegrias. Esta é uma virtude, muito rara ainda entre nós, e que lhe vem da naturalidade com que aceita to-
Ao elogio impedem pudores antigos que nos vêm da dificuldade em confessar emoções e do das as pessoas à sua volta, atribuindo-lhes as mesmas atitudes esclarecidas que o definem a si próprio.
receio que nos tomem por bajuladores ou compradores de amizade. Vejo nele um cosmopolita, um homem do mundo.
Mas o Malangatana e eu temos a mesma idade e fomos à mesma escola de interesses, de com- A quarta é a sua cultura.
promissos e de alegrias. Essa vem-lhe, como consequência lógica, de uma outra virtude não menor: a da sua curiosidade.
O nosso mestre foi o mesmo, os nossos interesses despertaram ao mesmo tempo, as nossas ale- Nele. a cultura do espírito é um produto da maneira como sabe aproveitar o que viu, leu e ouviu
grias foram­se definindo na mesma direcção e com a mesma intensidade. do mundo e como o soube ver, ler e ouvir.
Os nossos caminhos foram-se cruzando e afastando e convergiram definitivamente quando am- É também a consequência de um refinamento constante da sua sensibilidade aos fenómenos
bos fomos chamados a colaborar, ainda mais activamente, na construção de um Moçambique me- estéticos, aos valores poéticos e ao drama humano universal.
lhor, lá pelos meados 1974, ano de boa memoria para todos nós. A sua é, portanto, uma cultura orientada, determinada por valores éticos e não por erudições
Daí para cá cresceram e aprofundaram-se a amizade, o respeito mútuo e a tolerância. estéreis e vazias de sentido.
Tudo isto, o digo, para não deixar dúvidas que aqui não há lugar para visões frias, imparciais, É uma cultura útil.
objectivas e independentes. Vejo nele um homem sábio.
Aqui fala-se a linguagem da emoção pela sabedoria, e da tolerância pelos defeitos, que tornam os A quinta virtude deste amigo é aquela que em inglês se chama “compassion”, e para a qual não
amigos mais humanos e admiráveis. achei ainda a tradução mais adequada.
Mais estimáveis. Trata-se da capacidade de sentir como próprio o drama alheio e de se sentir obrigado a contribuir
Falar do Malangatana é fraca alternativa a falar com ele, aquele que gosta das crianças e de para o resolver.
Vejo nele um homem bom. pintura que ia de um hesitante post-impressionismo a um pré-abstraccionismo tentativo e, talvez,
E, finalmente vejo, e invejo-lhe, uma virtude das mais difíceis de manter ao longo de toda ainda provinciano.
uma vida: a ingenuidade do entusiasmo pela beleza da vida e por tudo aquilo que ainda não fez A descoberta deste Malangatana jovem fenómeno, pelo Augusto Cabral e a sua adopção e pro-
e quer fazer. moção pelo Pancho Guedes trazia consigo uma fundamental dimensão: colocava as artes plásticas
Esse é um estado a que chega somente quem cultivou todas aquelas outras virtudes e que agora na vanguarda do movimento de libertação e procedia a uma valorização da intelectualidade artística
lhes colhe o fruto na forma de uma juventude renovada. negra cuja única manifestação até ali respeitada tinha sido a poesia.
Vejo nele um homem jovem. Entrou assim este menino no templo dos doutores que não mais puderam, ou quiseram, fechar-
De todas estas virtudes faz ele o combustível da emoção com que trabalha os temas e a plastici- -lhe as portas.
dade da sua obra de escultor, poeta, cantor, dançarino e... pintor. Não posso, então, deixar passar esta oportunidade para prestar homenagem àquelas outras figuras do
Porque, quase me esquecia de o dizer: ele pinta! nosso panorama artístico que tiveram o mérito de o descobrir e a inteligência de lhe reconhecer o valor.
E é como pintor que lhe chega este honoris causa. Não entrou no entanto, ele naquele templo por paternalismo ou condescendência mas sim por
Mas não só porque pinta, mas o que pinta e como pinta. força da sua original criatividade e imparável necessidade de pintar.
De que é feita, então, a pintura deste pintor? Ao entrar no mundo das artes plásticas trouxe ele consigo e abriu uma nova dimensão, ainda
De expressão, pois que toda a pintura é sempre uma forma de expressão. subliminar naquele tempo e lugar: o problema da identidade artística africana “erudita”, no meio
Cor e forma, risco, textura e superfície são as ferramentas visuais, e técnicas, de quem pinta para artístico colonial.
lá das dimensões lúdicas do gesto infantil ou do movimento descomprometido do adulto que mani- Não que o ethos africano e o genius loci fossem alheios à temática e às preocupações dos artistas
pula as mesmas ferramentas por deleite diletante. 392 393 plásticos locais mas, pela primeira vez, aparecia um negro que se apropriava dos meios de expressão
O artista exprime, transmite, interpreta, cria emoções e, ao fazê-lo, acrescenta ao património não tradicionais africanos para resolver, em linguagem estética universal, a expressão plástica dos seus
visual universal mais um momento poético, mais um capítulo que enriquece quem o aprecia e fantasmas e dos seus deuses, da sua sensualidade e da sua sensibilidade.
compreende. Ficou depois dele mais aberto esse mundo a outros que marcaram a construção do nosso panora-
A pintura do Malangatana é, tentarei prová-lo, uma extensão da sua personalidade. ma, tão rico, no mundo das artes plásticas: Bertina, Chissano, Mankeu, Reinata e tantos outros que
Reflecte as virtudes que lhe reconhecemos e exprime o drama e a comédia na visão que delas tem nos foram e vão enriquecendo o panteão.
o humanista, que é. Daí para cá o Malangatana tem seguido exemplarmente a única e indispensável disciplina que
É uma pintura responsável e, para quem a souber ler, responsabilizante. todo o artista conhece: o trabalho.
Analisar-lhe o percurso estético é tarefa para críticos de arte, que é uma profissão que não Nas condições em que o Malangatana evoluiu, fácil lhe teria sido passar a ser uma imitação de
pratico. si próprio.
Sendo, no entanto, eu próprio, oficial desse mesmo ofício de dar forma plástica às ideias e aos
sonhos, nossos e dos outros, cabe-me, tanto quanto o saiba eu, referir a evolução, as características e
as qualidades mais marcantes na obra deste pintor.
Para tal devo voltar aos meados dos anos 50 quando ambos trabalhámos para o mesmo patrão e
mestre o arquitecto Pancho Miranda Guedes.
Eu como desenhador de arquitectura, ele como pintor por conta ou, se quisermos, resi-
dente.
FSDFSD
Era o tempo do Mestre Frederico Ayres e do filho, João Ayres, do Bronze e do Calçada Bastos, DFDSGFDSFGV
do Antero, do Cabral e da Maluda e mais tarde do Garizo do Carmo e outros, que praticavam uma DSFSDFDS
África, e Moçambique, necessitavam, e necessitam de personalidades que possam contrapor-se É uma pintura que se vai descobrindo a si própria, construídade tela em tela, desenho a desenho,
aos criadores, na fronteira das ideias e das obras, dos outros continentes. sofrimento a sofrimento, alegria a alegria.
O risco da promoção dos menos capazes, dos medíocres e dos mais activos na sua auto pro- Os seus quadros, desenhos, gravuras e esculturas têm, em última análise, uma ambição desmedi-
moção, mas menos conscientes da necessidade de se medirem pelo nível mais alto de competência da: a de neles caberem todos os moçambicanos.
universal, é muito grande nas nossas condições culturais onde se toma fácil acreditar que se é peixe Aos poucos laboriosamente, vai ele acrescentando mais de nós todos.
grande no pequeno lago local, quando não se é senão peixe miúdo no grande lago global. Mais crianças e mulheres, mais homens e mais bichos, mais anjos e mais monstros.
O Malangatana ultrapassou fronteiras nacionais e continentais e está tão à vontade no Japão Todos nós.
como na Islândia ou no Peru como na Austrália. Um dia, um dos críticos a vir, dar-se-á ao trabalho de os contar e de perceber quantos estão por
Está à vontade porque está ao nível e a par dos seus pares nessas latitudes e nessas longínquas trás de cada um, por trás de cada intenção, de cada abstracção, de cada metáfora visual.
longitudes geográficas e culturais. Dar-se-á conta de que nesta pintura cabem, afinal, muito mais do que os vinte milhões de mo-
Está à vontade porque acumulou o lastro de experiência, de esforço e de trabalho que lhe dão çambicanos.
essa segurança. Cabe toda a humanidade, único tema que ao Malangatana interessa: a humanidade em todas as
Está à vontade porque se mantem fiel ao compromisso e ao imperativo de interiorizar e exprimir, suas formas, os seus sofrimentos e as suas alegrias, depravações e exaltações.
com uma linguagem cada vez mais universal, o drama do individuo e a comédia humana que o Eu penso que ele o tem conseguido, não só porque a conhece e a quer desenhar mas porque sabe
comovem e o estimulam. usar a cor como a força anímica que a exprime.
Nas suas mãos a cor não é colorido. Consegue-o porque se mantém fiel à sua mais original ingenuidade: a de acreditar que o que tem
A cor é protagonista e actor no teatro das sensações a despertar, pano de fundo da narrativa visual 394 395 para dizer tem sentido para os outros e que a arte é o filtro indispensável à força do que exprime e à
e iluminação das descobertas que os seus quadros provocam. justeza do que pensa.
Nas suas mãos o desenho é esforço de contenção da retórica que lhe sugere o borbulhar subter- Será, então, certo que só através da arte conseguimos a força da verdade?
râneo das superfícies que explora. Este é, certamente, o mérito mais profundo deste artista, Malangatana, mestre: continuar a acre-
Nas suas mãos as texturas são vestuários agora castos, ali reveladores de estratos acrescentados por ditar na humanidade, em si próprio e no valor da arte.
um qualquer pudor mal escondido. Este doutoramento é a prova de que nós todos acreditamos nele.
Nas suas mãos a composição não é um espartilho formal e apriorístico mas um processo orgâni- Vai um abraço caríssimo Doutor Malangatana Valente Ngwenha!
co, adubo e seiva deste embondeiro-gente.
Nas suas mãos a tela em que pinta despe-lhe o sentir e desnuda-lhe as inconfessáveis solidões que
nos trazem mais próximos a nós próprios
Com estas dimensões vai ele construindo a sua obra.
A dele é uma obra unida, monolítica, densa de motivos, motivações e ... motes.
É uma pintura contínua, como se tivesse pintado apenas, e toda a vida, o mesmo quadro do qual
vamos conhecendo fragmentos e estudos, figuras e figurantes, dias e noites, estações do ano, disposi-
ções de espírito, religiosidades e experiências sensuais, elegâncias e brutalidades.
É uma biografia visual e plástica, quase confissão quase carta ao futuro, sempre comunicação
cromática, sempre pintura.
Esta pintura prolonga-se-lhe na escultura e na gravura, na poesia e mesmo na dança, que pratica
com a elegância de elefante levezinho.
TRANSFORMAÇÃO DA CASA SENHORIAL DE MICAHUNE – ZAMBEZIA JOSÉ FORJAZ
António Quadros: Eu o povo A ideia era dar voz a todos os camaradas (...que ainda os havia...) que na confusão da línguas e do
Nota à segunda edição de “Eu, o Povo” combate se não conseguiam exprimir naquela, única, que todos deviam usar para se compreenderem
uns aos outros.
Maputo, 21 de Agosto de 2008 MUTIMATI Barnabé João seria o máximo divisor comum de todo o sofrimento da guerra e
de toda a esperança da paz. Seria a voz de todos os momentos e de todos os guerrilheiros. De toda
a poesia do sofrimento e de tudo o que há de sofrimento na poesia. Seria a cartilha maternal da
revolução, das ideias e das técnicas ao serviço do povo e pelo povo. Seria a foice e o martelo poéticos
com que se constroem ideias e países nos momentos em que a poesia só é literatura depois de ser
ferramenta ideológica.
Como disse o António: ...“o povo moçambicano é o seu autor”. Mas seria isto uma arrogância ou,
pelo contrário, uma generosa sintonia com o povo, essa entidade sem corpo que se corporiza nessa
sintonia?
Seria talvez, e porventura também, a cristalização dum português reinventado em cada palavra, que
reveste novas e outras dimensões humanas e poéticas?
RECORDANDO ANTÓNIO QUADROS Seria, finalmente, a realização do que, à posteriori, afirmou na Inclusão e dedicatória de “O Povo é
nós”, antecipadamente, mais atual agora do que então: “Como autor, não tenho voz própria. Falo por
398 399 vozes emprestadas”.
Em princípios de 1975, o António mais o Roxo Leão mais o Pedro Alcântara mais o João Salomão “Eu, o Povo” é o que o António aspirava que fosse: a obra sem autor, de que todos o somos e alguns
mais o João Mosca, mais eu, fomos encarregados pelo então ministro das Obras Púbicas do governo de o fomos, naquele ano de “1975 – Ano da independência” e do século que, para esses alguns, ainda
transição Alcântara Santos, de constituirmo-nos em brigada de salvação da cidade de Tete, que estava hoje é o século da Independência. Para outros foi apenas um prelúdio, pré-lúdico, dos que viriam a ser
sem água, sem luz e sem as outras necessidades mais básicas de qualquer cidade. Levávamos credenciais “o povo é nós”, da rapidamente assumida e trans-consciente tomada do poder que caracteriza os que,
que nos davam amplos poderes, e mais poderes obtivemos da Frelimo e Governador da Província, a tomado o poder, o usam para se empoderar.
quem nos apresentámos à chegada. Mas é também um prelúdio a um pecado de ignorância, um dos muitos que o levaram a escrever
“Eu, o Povo” nasceu dessa brigada fazedora de milagres tais como dar água à cidade, projectar um um pequeno inédito, com a mesma visão desantolhada que torna, quem a tem, num sofredor impara-
novo bairro, um novo hospital e outras tantas coisas, em menos de dez dias. O povo era, então ainda, velmente criativo.
uma entidade concreta, a revolução estava no forno e o futuro era ainda possível para todos. Da nossa
visita à aldeia da Chipera saíram os canhões da pocilga e o povo percebeu que a história tinha valores PALAVRA DE ORDEM: MATAR A ÁRVORE
que vale a pena aprender e considerar, e que que não era necessariamente mau tudo o que os colonialis-
tas haviam feito mas sim a forma como dividiam os proventos e benefícios do trabalho do povo. Campo de jogar à bola,
MUTIMATI é o carneiro de água, uma máquina milagrosa que trás água de baixo para cima sem Machamba de fraca espiga
precisar de diesel ou de eletricidade ou de feijão para alimentar os braços que a devem carregar. Eis as palavras de ouro!
BARNABÉ era um canito benfazejo, lá de casa do António, esperto e simpático que a todos con-
quistava. Desde a Machava à Matola
JOÃO o filho, mas também um dos amigos naquele momento raro de pura generosidade e ino- A árvore é inimiga
cente esperança. E aqui tem seu matadouro
Num futuro já de luto
Com sede, fome e sol quente
Buscaremos sombra e fruto
Na estupidez do presente...

Neste poema, que me ofereceu num dia de mais uma emocionada reflexão conjunta, o mesmo
espírito de um sofrimento que se esperançava escusado.
O mesmo génio que leva, apenas sete anos depois, o alter-ego João Pedro Grabato Dias, a
publicar a litania poética desmascarante da já então latente arrogância do poder, tão facilmente
assumida pelos ex-camaradas que depressa souberam teorizar as razões do seu emburguesamento
emergente. É disso que o António Quadros trata nesse outro poema que lhe seguiu em 1982:
“O povo é nós”.
Fica por contar, e ficará, a saga do mistério falhado da autoria pois que o “eu”ganhou já na
história da poesia moçambicana a posição de património intelectual do povo moçambicano. QED.

400

EDIFICIO 24 – MAPUTO FILIPE BRANQUINHO


Talvez 2010 contudo, uma reflexão sobre o sentido e o potencial expressivo dessas peças, feitas sempre com
uma total devoção e paixão pelo trabalho, que testemunhei tantas vezes no amigo e pintor.
Talvez o caso mais extraordinário, dos muitos que acompanhei e em que de diversas formas
participei, foi o do grande painel para o Pavilhão de Moçambique, que projectei para a Expo 98
em Lisboa. A parede exterior, que tínhamos escolhido para a contribuição do Malangatana teria
uns bons 50 metros de comprido por cerca de 2 metros de altura. O apartamento do Malanga-
tana, em Lisboa, tinha uma sala de estar com cerca de 15 metros quadrados e nenhuma parede
teria mais que 5 metros de comprimento. Quando nos juntámos em Lisboa para instalarmos
o pavilhão ele levou-me a casa para me mostrar as ideias que tinha para o mural, mas não me
disse logo que era ali que pensava alinhavar a composição verdadeiramente monumental que
teria que produzir. Só depois se me tornou claro que era esse o caso. Nem coragem tive para me
mostrar incrédulo... E foi assim feito, em painéis com cerca de um metro de largura cada um,
alinhados e acabados no lugar, em pouco menos que uma semana!!!

O PINTOR DAS PAREDES


402 403
Se o Malangatana tivesse nascido em Nova York, Londres ou Paris provavelmente teria come-
çado a sua vida artística a fazer grafittis, às escondidas da polícia.
Acontece que o luxo de ter latas de tinta para gastar e a possibilidade de aceder a paredes
limpas e grandes ou a carruagens de subway, não estavam abertas a jovens negros, pobres e
discriminados, nos anos 50 em Lourenço Marques, e o nosso pintor teve que seguir um outro
percurso mais lento e penoso para satisfazer a sua necessidade de expressão artística.
Mas uma dimensão nunca ele cultivou: a de miniaturista.
Logo desde os primeiros exercícios lhe veio a coragem das grandes superfícies, a falta de
medo das grandes composições, o à vontade do gesto e a quase inconsciência com que se
desencaixava dos limites físicos da peça.
A revolução moçambicana necessitou de se exprimir por todos os meios e, quase instanta-
neamente, apareceram os cartazes, os jornais de parede ilustrados, a caricatura politica e... os
murais. Não era uma revolução envergonhada ou timidamente retraída e, após muitos anos
de pintura de cavalete e temáticas irrelevantes, desabrochou numa explosão de criatividade
e na revelação da paixão pelas artes da expressão plástica, de que o Malangatana foi sempre
um farol.
Não me cabe, nestas poucas linhas, fazer o roteiro ou a cronologia dos murais nem estudar
as tecnologias da pintura parietal do Malangatana. Nem de tal seria eu capaz. Interessa-me,
CASA A MATOS – MAPUTO JOSÉ FORJAZ
Maputo, 21 de Outubro de 2014 livro sobre a Ilha de Moçambique, escrevi que as suas fotos me tinham ensinado a ver como se
vê a Ilha.
Escrevi que, naquelas fotos, eu “vi ver a Ilha”. Curiosamente o editor “corrigiu” a frase e publicou
que eu tinha visto “viver a Ilha”.
Entre desagradado e curioso me veio então aquela sensação de que, afinal, ver e viver talvez não
sejam sensações, assim, distantes; de que ver sem viver é cegueira da emoção e que viver sem saber
ver é analfabetismo dos sentidos.
O que estes doutores da medicina nos trazem nesta exposição é, simplesmente isto: um ensaio,
um enfoque, uma descoberta, um espanto, o deleite e o sofrimento da técnica, uma abstracção a duas
dimensões e a obsessão de saber isolar o momento e dar-lhe o valor universal que, afinal, todos os
momentos da vida têm, para quem os sabe ler, ver... e viver como únicos, transientes e intemporais.
Chega?

OS MÉDICOS FOTÓGRAFOS. 2014


406 407
Diz-se, no mais vernáculo português, que cada doido tem a sua mania…
No caso presente falamos de médicos, não de doidos, e de paixões, não de manias.
Assim, e traduzindo: alguns médicos têm algumas paixões.
Nisso não são diferentes do mais comum dos mortais... mas ter a coragem de expor paixões não
é para os fracos de espírito.
Estes são de espírito forte, isto é, acreditam que o que viram, e como o viram, interessa e enri-
quece quem o vê.
O mistério desta profissão, que sempre me fascinou pela minha dificuldade de a perceber emoti-
vamente, é esta, mais que fortuita apetência pela criatividade artística.
As mais das vezes são escritores e reinventam a vida e a sociedade.
Mas há os que se dedicam às outras expressões, às outras artes, às outras reinvenções.
Porquê?
E, neste caso, porquê a fotografia?
Penso que os médicos, melhor que nós outros, comuns mortais, aprendem a melhor conhecer a
semiótica da vida... ou das vidas.
Será porque, melhor que nós outros, eles conhecem melhor essa espantosa máquina de ver,
chamada olho?
Alguns anos atrás, e a propósito do trabalho de um magnífico fotógrafo que publicou um
INSTITUTO SUPERIOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS – MAPUTO JOSE FORJAZ • ARQUITECTOS
Maputo 26 de Janeiro de 2015 que, permanentemente, lhes desse a capacidade de enquadrar, à sua escolha, uma visão em formato
“landscape” ou “portrait”.
Mas assim não é e cada um destes artistas da congelação da imagem parece capaz de o fazer, isto
é, de enquadrar, a partir de um quase atavismo adquirido (que me seja perdoado o paradoxo...), que
esta é a primeira dimensão qualificante desta colecção de imagens: o enquadramento.
Enquadrar é escolher o que fica dentro e o que fica fora. É celebrar tanto a presença como a
ausência dos elementos emocionalmente provocatórios.
Na realidade toda a arte é uma escolha e toda a escolha é sempre um sacrifício.
Escolher é abstrair. É identificar o essencial, escolher o mais significante.
A arte é uma escolha, difícil... se tomada a sério. Escolha entre aceitar o mundo como ele é ou ter
a necessidade e a coragem de o mudar.
Na fotografia, quanto mais representativa, ou menos subtilmente abstracta, essa escolha, ou essa
recusa, são mais difíceis que nas artes plásticas onde o artista representa (ou apresenta?) apenas o que
escolhe e lhe parece essencial.
30 FOTOS DO FILIPE BRANQUINHO A série de imagens que o Filipe Branquinho nos propõe abre caminhos e pretexto para reflexões
sobre tema e conteúdo, forma e expressão, imobilidade ou dinâmica, vibração sensorial, composição,
410 411 humanidade…
Não sou, nem nunca pretendi ser, um crítico de fotografia. O tema ou temas desta colecção é, ou são, mas nem sempre à primeira vista, o presente do pas-
Sou, como, qualquer cidadão, interessado pela criatividade e pela expressão visual do ambiente, sado.
natural ou humanizado, onde acontece o drama humano. Cada imagem explora a pátina do tempo sobre os espaços e as formas, os ambientes e os mate-
Uma exposição de fotografia pode ser muita coisa: um pretexto para a promoção pessoal do riais, a cor e a luz e a urbanidade do local.
fotógrafo, uma oportunidade para a análise técnica de um trabalho que a mereça, uma descoberta de Branquinho não explora estes temas com qualquer saudosismo romântico ou sentimentalista
dimensões novas da realidade visual do mundo à nossa volta, um quarto de hora de êxtase estético, mas sim com a perspectiva e o olho do repórter.
um momento para encontros sociais mais ou menos fugazes… A ausência, quase geral, da presença humana acresce, em cada imagem, a intensidade de uma
Mas pode ser mais. presença dramática, surda e ambígua, que se revela na ilustração e no uso do sítio, como se visto pelo
Pode ser a descoberta de novos estratos e densidades poéticas duma realidade que julgamos seu dono, utente ou ocupante.
conhecer bem. A maior força destas imagens poderosas vem-lhe exactamente do que deixa para o observador: a
O trabalho deste fotógrafo guia-se por este diapasão que lhe dá um ritmo tão sincopado que responsabilidade de senti-las como parte do seu universo imaginário ou de um mundo que porven-
chega a uma frugalidade, quase cruel, conseguida através da depuração franciscana do seu meio de tura nem imaginava e que vai deixá-lo numa perplexidade sugestionada pelo aleatório e esporádico
expressão. registo de um universo de realidades subtis descobertas e alinhadas com um sentido que cabe ao
Mas, como em toda a arte, a sua leitura deve reconhecer a minuciosa construção de cada ima- fotógrafo fazer-nos descobrir: a intensidade poética dos espaços e dos momentos mais prosaicos e
gem, o seu “projecto”, o seu fingimento que nos faz lê-la como espontânea, quase uma resposta au- mais comuns, pelos quais passamos, cegos e surdos.
tomática à provocação do tema descoberto e qualificado pela visão geométrica do olho do fotógrafo. É nessa lição de sensibilidade à visão do quotidiano e do comum, à força do mau gosto e à no-
Essa dimensão, do perscrutar o mundo rectangularmente, faz-me pensar que os fotógrafos de- vidade do convencional; é nesse permanente estar alerta para os elementos mais secundários do que
viam nascer com pálpebras rectangulares ou, pelo menos, com um “frame” inserido no globo ocular nos envolve que reside a subterrânea mestria e anti-heróica qualidade desta sequência de imagens.
O tema não é portanto funcional ou dedicado. Um mundo frontal, sem a profundidade das vistas de oblíquas onde as perspectivas e as dinâmi-
O tema é, aqui, o processo. cas do movimento podem distrair da leitura brutal e imediata que se consegue com o ponto de fuga
Não o processo técnico ou mesmo estético, que lhe são sempre indispensáveis, mas o processo no centro geométrico do quadro.
de ver o mundo, e como os homens o vivem e transformam de acordo com as suas culturas, idades e Mas não se trata de mais um artifício repetido e fácil.
meios e, porque não, maneiras de o sentir e adaptar, impondo-lhe os seus símbolos, os seus fantasmas Assistimos, aqui, a um exercício de controlo exaustivo dos meios expressivos para obter a densi-
e os ecos apagados dos seus sonhos incumpridos. dade e o mistério que as imagens não explicitam.
Em cada imagem esta reverberação é explícita. Este estatismo, por oposição a um qualquer dinamismo, é um ingrediente poderoso do drama.
Um copo de vinho à espera de cliente; um Presidente colado por cima do calendário; um sofá Não há aqui qualquer concessão ao estratagema do “bonito” que nos distraia do enredo das vidas
de pelúcia numa casa de ferro; uma toalha de plástico às flores num laboratório fotográfico; duas retratadas, por inferência e sugestão, habitando estes ambientes.
sanitas verdes num sanitário público; duas consolas “arte nova” no vestiário de um cinema dos anos Esta imobilidade beneficia e completa-se com o silêncio que estas imagens exalam.
cinquenta; a lepra que comeu as cadeiras do maior cinema da cidade; o rolo de fio eléctrico pendu- Silêncio que lhe vem da ausência da vida presente e de um vazio sem hora.
rado na fachada neoclássica e maçónica da escola industrial; o calhau que mantém aberta a janela da É um silêncio que fala por sugestão, sem ensurdecer.
escola; o espantoso contraste entre a qualificação de “nacional” atribuída a uma instituição alojada A outra dimensão notável desta colecção é a cor.
num edifício inacreditavelmente deteriorado; a inescapável sensação de interior de caixão numa igre- A cor, nestas imagens, é uma irrealidade.
ja wesliana; a surreal presença de uma sanita debaixo da mesa num laboratório de taxidermia coexis- Talvez o mais significativo exemplo é o de uma casa a preto e branco enquadrada a árvores verdes.
tindo com um sofá vermelho mal “taxidermado”; a incrível exposição de um lago de tinta verde onde Lembra-me o título de um filme que falava de pretos e brancos a cores.
deveria estar uma piscina: a alegre mistura de cartazes políticos e de propaganda de “disk jokeys” e 412 413 Percebe-se em todas estas fotografias uma velatura que homogeneiza o ambiente e, subtilmente,
produtores de barulho, como antecâmara de um arquivo sonoro; um balde de plástico vermelho que estabelece continuidades. Faz da cor um protagonista que chega a absorver 100% de atenção.
convive sem complexos com uma mesa técnica antediluviana; um restaurante universitário pintado A paleta resultante traz-nos a noção de uma reinvenção da realidade, teatral e totalmente con-
expressamente para tirar o apetite aos comensais; um torreão que desafia a gravidade no centro de trolada.
uma fachada ... inexplicável. Nalgumas imagens sente-se que a cor resultou, primariamente, na força brutal da composição.
De uma para outra destas imagens a coerência é esmagadora. Veja-se por exemplo o caso da escola industrial: inacreditável demonstração de perspicácia cinegéti-
O fotógrafo é um agente secreto que espia uma pátria feita de intenções inconfessáveis, porque ca do grande exemplo de pura abstracção formal, em que até o céu se envergonha de ser azul; ou o caso
inconscientes da sua própria mistura de culturas e de idades, de memórias e de valores, de realidades da piscina verde, caso único em que o céu se apresenta como parte da composição geométrica e em que
conformes e coerentes com o estado das coisas e das pessoas, num mundo mal parido que ainda mal as nuvens obedecem, espantosamente (!) às linhas de fuga da perspectiva! Como é, também, o caso do
se percebe a si próprio. alguidar vermelho no centro duma composição irreal de verdes no Arquivo Histórico ou as coloridas
As únicas duas figuras humanas que aparecem nesta série impressionante de momentos congela-
dos são parte da mobília e têm o valor de um ensaio de antropologia cultural.
Conseguir esta ausência do autor como protagonista da mensagem não é fácil. Requer uma total
economia de meios, uma desavergonhada aceitação de rigor académico e expressivo, uma tecnologia
assimilada e manipulada à maneira zen.
Na forma e na expressão se manifesta a maturidade do criador capaz de despertar a emoção.
Vejamos.
FSDFSD
É sintomática a falta de diagonais que nos oferece um mundo de ortogonais: verticais e horizontais. DFDSGFDSFGV
Um mundo rigoroso sem medo das simetrias. DSFSDFDS
náiades art nouveau que encaixilham o branco e mais branco da Casa Velha ou, noutra ainda, o valor da
cor da mobília de madeira contra o cinzento integral do Casa de Ferro. Talvez o caso mais notável seja o
dos sanitários do cinema onde inacreditáveis sanitas azuladas equilibram, exactamente na convergência
da perspectiva, carmins e verdes, debruados, num ambiente... propício à função.
A secura dos meios estéticos desta colecção, como a simplicidade dos seus elementos expressivos,
não é pobreza de domínio ou excesso de controlo, mas exactamente o contrário.
Não há acasos nesta produção. Simetrias e geometrias compositivas, economia e frontalidade
quase assassina das perspectivas, absoluto controlo da matéria cromática e a conseguida transmissão
do espírito dos ambientes não estão ao alcance do neófito: requerem uma maturidade visual e téc-
nica que, noutros, menos hábeis e experimentados, conduz inevitavelmente a uma real pobreza da
imagem e do que ela pretende transmitir.
Esta é uma das mais difíceis e enganosas dimensões da prática das artes: a grande peça parece fácil.
Afirmava Picasso que se leva uma vida inteira para se conseguir desenhar como uma criança.
Hokusai nos momentos finais da sua vida lamentou-se que agora, que já conseguia desenhar uma
folha, é que a morte o vinha impedir.
Toda a arte é sempre e só uma procura de perfeição.
Duma perfeição que não se conhece. 414
Descobre-se.
Descobre-se através, e só, quando se torna indispensável a quem a pratica.
Mas nunca é suficiente.
Este drama, ingrediente indispensável à criação, aprendeu o Filipe a vivê-lo desde muito jovem.
Terá muito ainda a suportar, mas vejo-o capaz de não se trair com as facilidades que soube su-
perar nesta exposição e que, infelizmente, são tão comuns noutros, menos comprometidos ou delas
menos conscientes.
O artista não tem remédios nem desculpas: tem de pagar o preço do que escolheu ... talvez mes-
mo sem consciência do preço dessa escolha.
Uma vez parte desta confraria, escapar-lhe é um suicídio mental e emocional.
Beryl Makham, a magnífica aviadora americana desaparecida nas nuvens numa derradeira via-
gem à volta da terra, escreveu no seu livro “West with the night”:
“No human pursuit achieves dignity until it can be called work and when you can experience a
physical loneliness for the tools of your trade, you see that the other things – the experiments, the
irrelevant vocations, the vanities you used to hold – were false to you”
Para o Filipe deixo este meu simples e terrível recado:
Acima do bom é que está a dificuldade; há mais distância entre o bom e o perfeito que entre o
mau e o bom. FAROL DO FORTE DE AGUADA – GOA JOSÉ FORJAZ
4 de Setembro de 2015 Reencontrámo-nos em 1974, depois de mais de 20 anos de distância, desde os anos 50 em que
ambos trabalhávamos para o Pancho, lá na Rua de Nevala, e de breves encontros ainda coloniais.
Tratava-me ele por “senhor arquitecto” e levou tempo a fazê-lo a tratar-me por tu ... porque,
afinal, somos da mesma idade!
Seria porque passei alguns anos relutantemente armado em “estrutura”?
Depois foi meia vida de amizade e de respeito, do prazer de estar juntos e da tolerância para com
as mútuas fraquezas.
Mas já falei demais desta amizade e de menos deste munumuzano Ngwenya grande escabichador
da caneta e do pincel, atrevido escultor sem medo das grandes escalas, poeta quando se lhe apertava
o coração (mas não fingidor ... que não o conseguia ser), dançarino nas horas cheias, amigo das
crianças ... e de botar a sua mão... barítono ou baixo quando se apresentava a ocasião, auto enganador
ingénuo quando de políticas se tratava mas seriíssimo ideólogo de manhã até à noite e desde Tóquio
a Matalana.
Amava a marrabenta e a Nona Sinfonia, Yeronimus Bosch e a Reinata.
MALANGATANA, O CROCODILO AMIGO Conhecia Diderot e a sabedoria enciclopédica dos velhos da Matalana.
Sabia “ver o universo no fundo do quintal” ... com uma vénia ao nosso António Quadros, com-
416 417 panheiro de tantas aventuras do espírito que a ambos ensinou o sentido da cultura.
Sempre preferi falar com o Malangatana a falar dele. Fez sempre, disciplinadamente, a celebração do trabalho, como convicto profissional, que não
Infelizmente isso é, ainda, impossível até que nos reencontremos reencarnados em quaisquer podia deixar de ser, por lealdade à sua primeira devoção.
bichos mais ou menos mitológicos. Pintar a vida, pintar por amor à vida, pintar por amor às pessoas, pintar por pintar, pintar para
Por tal razão aceitei contribuir para esta publicação que lhe agradaria, com certeza. ganhar a vida, pintar porque sim, pintar para esquecer, pintar para lembrar, pintar porque não se
Se as personalidades fossem construídas em estratos, ou layers como se diz agora, este meu amigo sabe fazer outra coisa, pintar porque se é pintor, pintar para escapar, pintar para participar, pintar o
seria uma bebinka, tantas as camadas de interesse lhe poderíamos descobrir. sofrimento e a alegria, pintar o senso e o transcendente, pintar o ego e pintar o outro, pintar Mo-
Por isso não é fácil falar dele. çambique e pintar o mundo.
O que o projectou na sociedade moçambicana e no mundo não foi só a sua pintura mas a sua Pintar-se.
personalidade generosa e o seu compromisso com todas as causas humanitárias e justas. Foi o que ele fez. E bem.
O que nos tornou amigos foi a sua humanidade e uma fraternidade espontânea e incondicional. Escrevi uma vez que este meu crocodilo amigo pintou o retrato de meio mundo, que para a outra
Vivemos muita coisa juntos, fizemos exposições juntos, pensámos arte e muitas outras coisas, juntos. metade lhe faltou o tempo porque veio a parca surpreendê-lo a meio da tarefa.
Puxámos um pelo outro para sair dos maus momentos ou gozar os bons. De Moçambique não faltou ninguém nas suas pinturas.
Éramos um descanso mútuo e abusámos disso. Basta que algum crítico de arte se dê ao trabalho de contar.
Soubemos coisas um do outro que mais ninguém sabia e não era a pintura e a arquitectura o que Pintou muito, à minha frente.
mais nos aproximava mas a maneira como as fazíamos e esse espanto de nos pagarem para fazermos Pintava para as crianças e, às vezes, para os... adúlteros.
aquilo de que mais gostamos. Desenhava na sala de espera do dentista e nos guardanapos do café, nos bilhetes do eléctrico e
Foi o reencontro, a pretexto de uma independência, que nos aproximou (que isto de indepen- nas costas do envelope e, assim, aprendeu a desenhar, porque na escola de belas artes só entrou para
dências deixam uns mais sós e outros melhor acompanhados...) ensinar.
Pintava do meio para os lados e das pontas para o meio. com o velho Ntila, que construiu quase tudo mas não acabou, ainda ... o mudedelene...!
A composição acontecia-lhe por indução e sinergia mais do que por visionária ou calculista Pelo meio havia exposições e viagens e conferências e encomendas e concertos e uma ópera e
inspiração. filmes e amigos a descobrir e entreter e a passar de um para o outro, mármores a trabalhar e a pintar
Ia pintando e compondo, que uma figura pede outra e as duas pedem mais e ... mais e assim por mais uma italiana/Fiat a servir de tela e uma vida subterrânea à nossa volta que era preciso não com-
diante. preender para não desesperar.
A sua pintura tem horror ao vazio. Um monumento no Botsuana e outro em Oeiras pensados juntos, mais as manhãs de Sábado na
Abusou da cor mas “predilectava” o vermelho. E porque não, que essa cor tem as melhores cono- Matalana e a missa de graças naquela igreja restaurada.
tações politicas e futebolísticas, é a do sangue, das acácias e dos olhos sofridos. E a casa, eternamente para acabar, que deu mais prazer à esperança do que esperança no prazer.
Mas todas as cores e todos os tons lhe serviam para criar a emoção com que penetramos o per- E fomos passando os anos.
manente cripto drama que as suas pinturas exsudam, pois nelas enfiou toda a humanidade violada. E um dia acabou-se este meu amigo e fiquei eu ainda mais sozinho.
Um democrata da cor.
Era uma presença que enchia o espaço. E o tempo.
Um natural.
Não natural de Maputo ou Moçambique mas um natural de estar no mundo.
No Japão ou na Noruega, no Brasil ou no Paquistão sentia-se tão em casa como na Matalana.
Era um trabalhador, que disso sou eu boa testemunha.
Não me esquece como resolveu os mais de trinta metros de painéis murais para o Pavilhão de 418 419
Moçambique na Expo em Lisboa, em menos de três meses, num minúsculo apartamento no quinto
andar de um prédio que quase não tinha pé direito para a altura dos painéis.
Mas não era assim de vez em quando. Era sempre assim.
Quantas vezes chegava a minha casa sem ter dormido, distraído pelos pincéis e estimulado pelo
cheiro da tinta, sentava-se para almoçar e vinha-lhe o cansaço que quase o adormecia a meio do
prato.
Vivia obcecado pela Matalana e, ali e na sua cabeça, construiu os seus melhores sonhos.
Um centro de artesanato, um estúdio colectivo para artistas de todo o mundo, um centro cultu-
ral, um teatro de ar livre, uma escola de música, um posto médico, uma igreja reconstruída, a sua casa
e um sonho de megafundação, desenhada por outro grande sonhador, com os pés três quilómetros
acima do chão: o Pancho Miranda Guedes.
Tudo isso e mais vivemos juntos mas não lhe perdoo não termos acabado o “mudedelene”, que
ficou truncado a dois terços da altura almejada, à entrada da Matalana-Malangatana.
Este mudedelene, aquele mesmo que aparecia de noite às mulheres que voltavam a casa sozinhas
para lhes meter medo, ficou agora mais mitológico do que já era, mas não recuso o sonho de o ver
um dia acabado e com uma fogueira interior a flamejar pelo buracos-poros que lhe deixámos no
FSDFSD
lombo, para espanto dos simples... DFDSGFDSFGV
Anos fomos passando anos, assim montados nestas “folies” que tão a sério levávamos juntamente DSFSDFDS
DANÇARINOS JOSÉ FORJAZ
Lisboa, 23 de Junho de 2017 mantivemos depois durante muitos anos mesmo quando, tendo eu já voltado para África, o visitava
nas raras vezes que vinha a Portugal, quer em sua casa quer na York House em Lisboa, onde sempre
se instalava quando tinha de cumprir com as suas responsabilidades como zelador do património
nacional construído.
Como interesses comuns juntava-se, também, a minha paixão pela arquitectura naval e em geral
por barcos com a sua expertise sobre a arqueologia, a história e a construção das embarcações tradi-
cionais da costa e das águas interiores portuguesas.
Mas foi como pensador da função social do arquitecto que a profundidade da sua reflexão mais
clara e fortemente me influenciou e ajudou a formar, numa altura em que as escapadas para um
esteticismo menos socialmente preocupado encontravam justificação na brutalidade provinciana do
regime.
Hoje, mais do que então, essa responsabilidade encontra razões mais vastas e universais pois se
tornou evidente que ao arquitecto se impõem dimensões novas e menos explicitas do que há 50 anos:
a sua parte de responsabilidade pelo equilíbrio ecológico e, em última análise, pelo habitat humano
MESTRE FIL: OCTÁVIO LIXA FILGUEIRAS em toda a sua extensão funcional e geográfica.
E, porque a arte da arquitectura é aquela que, em todas as suas dimensões, mais influencia a
422 423 sociedade e afecta o ambiente, o problema é agora tão vasto que obriga a que cada decisão técnica ou
Naqueles anos 50 e 60 todos nos conhecíamos. Todos conhecíamos todos: arquitectos, pintores e artística seja considerada na sua consequência social e ecológica.
escultores, professores e alunos, o Tino e o maquetista do gesso mesmo ali ao lado da Escola, na É portanto a disciplina artística que mais responsabiliza socialmente, quem a pratica.
Rodrigues de Freitas. Foi isto que aprendi com o Mestre Fil.
Naturalmente que havia afinidades electivas, por razões fortuitas ou ideológicas, politicas, sociais
ou mesmo sentimentais.
O Fil, assim todos o chamávamos, era mais reservado, com mais responsabilidades exteriores ao
nosso círculo mais restrito mas com o mesmo grau de participação nas ferozes e permanentes contro-
vérsias com que se alimentavam os dias e as noites com epicentro no Majestic.
Por razões para mim pouco claras um dia convidou-me, era eu ainda estudante, para o ajudar,
dentro das suas responsabilidades como arquitecto das Caixas de Previdência e foi-me passando
pequenos projectos de residências económicas em zonas periurbanas na região do Norte. Aprendi
muito nas conversas com ele sobre uma arquitectura válida aos níveis mais baixos da economia por-
tuguesa e o problema da habitação foi, talvez com essas raízes, um interesse constante que definiu
muito da minha vida como arquitecto.
Já professor de Arquitectura Analítica convidou-me ele, algumas vezes, para o apoiar nas aulas
sobretudo reconhecendo-me um interesse particular pelas tecnologias construtivas das arquitecturas
grega e romana.
Talvez venha, sobretudo daí, uma proximidade que arriscaria chamar de “camaraderie”, que
CASA DUNGA – MAPUTO JOSE FORJAZ • ARQUITECTOS
Março de 2016 o Lagoa e o Gustavo Bastos, o João Charters e o Raul Hestnes, o Castelo Branco, o Felgueiras, o
Siza... ,etc., etc.
Discutia-se o que tinham feito ou estariam a fazer o Losa e o Godinho, o Rica e o Távora, o Lou-
reiro e o Viana de Lima, o Andresen e mesmo, a nebulosa distância, o que fariam os longínquos Keil
e Cassiano Branco, o Taínha e o Conceição Silva, o Nuno Teotónio e o Bartolomeu Costa Cabral, o
Formosinho e o Frederico Jorge…
Misturavam-se pintores com arquitectos e escultores, um salpico de gente do teatro e do cinema,
poetas e filósofos entronizados ou aspirantes, todos com igual direito de opinião, julgada relevante
para a construção de um nunca alcançado consenso.
Uma saudável e permanente dialéctica!
Saía-se dali para as noitadas de trabalho e ... às vezes para a PIDE.
Comentavam-se Sartre e Beauvoir, Braudel, Worringer e Lukács, Bachelard e Lefebvre, Zevi e
Mumford.
Corbusier e F.L. Wright era, em surdina constante, uma espécie de comichão subjacente a qual-
EDUARDO SOUTO DE MOURA quer discussão e só mais tarde apareceram o Aalto e os holandeses, o Albini e o Scarpa.
(E entretanto eu lia o Viollet Le Duc na Biblioteca Municipal, edição original dos Entretiens de
426 427 1867 que agora, preciosamente, possuo)
Do Eduardo conheço alguma obra e alguma coisa escrita e desenhada. Revistas eram duas: L’Architecture d’Aujourdoui e l’Architettura do Zevi. Vieram outras, depois,
Da pessoa conheço menos mas, das poucas vezes que nos encontrámos, guardo uma memória da Inglaterra e da América, do Japão e da Espanha, menos conhecidas e estudadas.
de afabilidade e companheirismo de profissionais do mesmo oficio, com algum passado comum nos Foram os anos do “inquérito” que, para bem ou para mal, nos marcaram a todos e que, certa-
meios culturais que ambos diacronicamente atravessámos. mente, nos obrigaram a reflectir sobre a profunda diferença entre erudição e cultura.
Eu sou, ainda, da ESBAP, Escola Superior de Belas Artes do Porto na qual assisti ao desaparecer Também, por aquela altura, aparece o Rasmussen com o seu “Experiencing architecture”, bem
da arquitectura... quiçá por qualquer mal situado complexo de não sermos faculdade, com todas mais respeitável que as posteriores “cabotinices” dos Eisenman e Liebeskinds.
aquelas farpelas e graus, “lentências” e “mestrâncias”, “doutorâncias” e “eméritências”. Depois, alguns, saímos…
Éramos, assim, mais modestos e apagados, naquele nosso canto da Rodrigues de Freitas, integra- Saímos para Paris ou para Helsínquia, Nova Iorque ou Filadélfia, para Roma ou para o Brasil.
dos no real duma cidade ainda com “ilhas”, miséria e pobreza envergonhada e não perdíamos tempo Saímos para as colónias, para a guerra e para as câmaras municipais, para o liberal e para o ensino.
com aquelas dimensões do acesso ao catálogo das almejadas hierarquias académicas. Nessa altura sair era ainda uma aventura.
Éramos alunos e mestres, mas mestres eram só os da mestria adquirida no trabalho e na experiên- Penso que o Eduardo começa a estudar arquitectura lá para meados dos anos 70 e inicia a vida
cia profissional e artística, que é a mesmíssima coisa. profissional já depois do 25 de Abril.
Na minha paisagem de referência intelectual, os recortes do nosso horizonte eram também, as Como dizem os italianos: beato lei.
mais das vezes, os companheiros do café Majestic, que tínhamos inventado como o lugar geométrico Chega com um mundo aberto a novas ideias, com um lastro de arquitectura portuguesa já afir-
das nossas convicções e das nossas crípticas associações ideológicas (nesse tempo ainda se discutia mada e reconhecida, um ambiente económico favorável a grandes investimentos e um público mais
mais ideologia que política )... liberto das patologias estéticas do salazarismo.
Presentes eram o “velho” Mestre Ramos, o “velhinho” Arnaldo Araújo e o Filgueiras, o An- Chega também, e penso que isso tem sido menos considerado na historiografia da arquitectura
tónio Quadros, o Soutinho, o Baptistinha e o Rui Pimentel, volta e meia o Mestre Barata Feyo, contemporânea em Portugal, com uma indústria da construção muito mais sofisticada (vale a pena
lembrar que a siderurgia nacional só começa a produzir em 1961), novos regulamentos urbanos e O Pikionis do Philopappos teria apreciado.
da construção civil, um público mais exigente, empreiteiros melhor formados e mais equipados quer Muito recentemente, visitei a Casa das Histórias e o Museu de Bragança.
em capacidade tecnológica quer técnica, uma difusão da cultura arquitectónica que atinge os média Dois casos diferentes mas com muito de comum.
em geral e não apenas uma literatura especializada, uma nova e vastíssima escolha de materiais e No caso de Cascais a oportunidade que o sítio oferecia foi aproveitada para impor, num am-
tecnologias, longínquos ou inacessíveis antes da integração de Portugal na Europa. biente urbano menos que espectacular, uma presença simultaneamente centrípeta e misteriosa que,
Estes elementos parecem-me essenciais à compreensão do ambiente em que começam a trabalhar curiosamente, se encaixa e simultaneamente distancia da presença do residencial burguês que a en-
os arquitectos portugueses a partir da década de setenta. volve. Os estratagemas da solidez e densidade da construção que esmaga o buraco do acesso e o
Não acompanhei a evolução da arquitectura portuguesa na década seguinte ao 25 de Abril e, processo do tratamento cromático do material conseguem admiravelmente uma imagem que, sendo
mesmo depois, só a fui conhecendo através de publicações internacionais que, cada vez mais frequen- única, tem a força das geometrias ancestrais e primitivas.
temente, incluíam projectos portugueses. Em Bragança é mais trabalhada a relação dos espaços interiores com os pátios, quer na horizontal
Os meus contactos com Portugal foram muito reduzidos durante todos esses anos e a primeira quer na vertical, onde o fabricado existente impõe uma disciplina perfeitamente assumida, controla-
vez que ouvi falar do Eduardo foi em Itália, referência feita por um dos meus alunos em Roma. da e enriquecedora da sucessão espacial.
A referência era tão elogiosa que fiquei curioso e procurei informação sobre a arquitectura portu- Nos dois casos repete-se e refina-se a mestria do detalhe, sempre criado como elemento que
guesa que não fosse apenas sobre o Siza. reforça e remata a gramática espacial e formal.
Comecei a encontrar e a encontrar bastante e bom. Depois quando finalmente consegui parar Doutras obras conheço o que se publica e com as limitações que as imagens congeladas impõem.
uns dias no Porto fui ver a Casa das Artes e fiquei emocionado. Em todas transparece a segurança com que o arquitecto progride do conceito espacial ao processo
Era a arquitectura que eu gostava de ter feito. 428 429 construtivo levando por vezes a uma quase obsessiva atenção ao pormenor.
Nela descortinei raízes de espacialidade, formalidade e materialidade que bem conhecia nesse Trata-se de uma arquitectura erudita, mas não literária e muito menos retórica, responsavelmen-
cruzamento do perpianho com o vidro te inventiva (embora com escapadelas histriónicas...), e sempre enraizada numa profunda poética
Anos mais tarde consegui tempo para ficar duas noites em Santa Maria do Bouro. Grande lição espacial.
de contenção e respeito aventuroso e corajoso pela ruína e pela pré existência monumental. Estas dimensões incomuns, sobretudo quando tão sabiamente conjugadas, fazem do Eduardo
Outra vez aquela conseguida coerência entre o detalhe e a intenção espacial, tantas vezes falhada Souto de Moura um exemplo de mestria a conhecer, estudar e compreender.
em arquitecturas menos integradas e límpidas.
Nessa obra ressalta uma nova dimensão da mestria deste arquitecto: a compreensão da paisagem
e do espaço exterior tão subtilmente trabalhado e moldado que poderia ter sido o habitat da ordem
franciscana.
E no entanto uma obra tão erudita pode não ser acessível a qualquer hóspede ou utente. É que
o despojamento e o aparentemente simples não são qualidades e dimensões populares mesmo agora
que o minimalismo se tornou moda.
Do estádio de Braga só conheço o exterior, não sendo o futebol indústria que me interesse. Não
sei se a coragem de desperdiçar tantos lugares das cabeceiras foi do arquitecto ou do cliente. Mas
valeu a pena abrir aquele espaço ao colossal penhasco enquadrado pela exímia geometria do betão
primordial equilibrado pelo sistema piranesiano das escadas. Uma arquitectura telúrica e monolítica
que consegue dignificar o material artificial até ao nível da pedra que o enquadra e o eleva a par das
incomparáveis inserções dos teatros gregos nas suas paisagens naturais.
PÓSFACIO
TUMULO DE RUTH FIRST – MAPUTO JOSÉ FORJAZ TUMULO DE JOE SLOVO – MAPUTO JOSÉ FORJAZ
Agosto/ Setembro/ Outubro de 2017 Tal como para o cirurgião, o engenheiro ou o vinhateiro antes da intervenção cirúrgica, do cál-
culo da viga ou da poda da videira, também para o arquitecto há um aprendizado, escalonado no
tempo, na complexidade e na experiência a adquirir e a transmitir.
Não se usa o bisturi sem saber anatomia e se praticar na sala de autópsia; não se calculam vigas
sem aprender a resistência de materiais e as leis da estática; não se corta na fibra viva da planta sem
se conhecer a fisiologia vegetal.
Não se projectam espaços sem lhes aprender as dimensões que garantem o conforto físico e
psicológico a quem que os vai ocupar; não se projectam edifícios sem considerar os seus impactos
no meio natural ou construído; não se concebem estruturas sem ter em atenção a economia da sua
construção, da sua operação e da sua manutenção; não se inventa arquitectura sem respeitar o ethos
cultural da sociedade que dela necessita.
Cada um destas condições impõe disciplinas e aprendizados progressivamente mais profundos
e abrangentes.
Pretender abreviá-los ou condensá-los em regras expeditas ou slogans ilusórios não é caminho que
Depois de uma penosa selecção de textos a publicar para cumprir as intenções deste livro ficou-me possa resultar em obra meritória.
uma dúvida preocupante: será que consegui dar uma ideia, ainda que apenas esboçada, sobre o que Amputar o processo criativo priorizando a importância de qualquer daquelas determinantes e,
é arquitectura? E de como é que ela se faz? 434 435 excluindo qualquer das outras, é um expediente (infelizmente muito comum) que só pode resultar
Teria isso algum interesse para os mais jovens e para provocar debate entre iniciados? em obra imperfeita ou de qualidade enganadora.
Ao longo destes textos, tentei transmitir a importância dos factores sociais, ambientais e políticos Aquelas são as bases essenciais do processo de projectar os espaços e os edifícios que os definem.
na construção de atitudes e de estratégias para equacionar correctamente o processo conceptual em Conhecê-las é indispensável.
projectos de arquitectura. Aprofundá-las é um programa de vida.
Exagerei, até, ou sobrevalorizei a importância desses factores mas, se o fiz, foi por sentir que a A análise da cada uma das determinantes do processo conceptual e a síntese de todas só pode
literatura corrente não lhes atribui a devida importância. resultar em arquitectura se for filtrada por um processo de inseminação poética que não é susceptível
Como última reflexão, e talvez a mais difícil, arrisco agora ideias que, embora implícitas no que de didáctica codificada mas necessita de estímulo emocional, simultaneamente intelectual e sensorial.
atrás vai proposto, poderão fazer sentido como consequência e remate dos temas tratados. A carga de conceitos disciplinares indispensáveis ao processo de fazer arquitectura é densa e
Abro, assim, este chocalhar de ideias, a essa questão, mais lógica que maliciosa: impõe uma atenção e um interesse que nem todos estão preparados ou dispostos a oferecer e cuja
Como se faz arquitectura? necessidade, infelizmente, poucos compreendem.
Se perguntássemos a um cirurgião como se opera o coração ou se retira um apêndice; a um Arquitectar é difícil, exige concentração e impõe dedicação, mas há caminhos que nos servem de
engenheiro como se calcula uma viga ou uma laje e a um vinhateiro como se poda uma videira, eles guia e que devem conduzir a obras mais perfeitas.
responderiam que há processos técnicos, com bases científicas seguras e testadas, que se podem gene- O primeiro é o de estabelecer as razões e a racionalidade de cada situação, de cada problema e de
ralizar e transmitir, sem negar todo o potencial criativo que qualquer dessas acções contém. cada passo no processo conceptual.
A resposta àquela simples questão, que qualquer interessado ou estudante tem o dever e o direito O lugar, o programa e a envolvente cultural são condições quantificáveis e qualificáveis que têm
de propor, é mais difícil e cada arquitecto praticante ou não elabora, infalivelmente, a sua própria necessariamente de servir de base e ponto de partida a todo o processo conceptual.
proposição. Pretender uma epifania que ilumine a criatividade, tantas vezes chamada de inspiração, é persistir
Não serei eu diferente e, portanto, só saberei dar uma resposta tão pessoal como as outras. numa ilusão que só serve para justificar ou esconder a falta de trabalho dedicado.
Fazer arquitectura é, antes de tudo, um processo de análise racional, sistemática e exaustiva de Não há soluções a curto prazo para evitar a poluição e o inquinamento cultural que não sejam
todas as condições objectivas de cada projecto. as de reforçar as forças da inteligência, ainda débeis demais para provar a justeza e a urgência de uma
O estabelecimento e a listagem completa dessas condições é uma pré-condição necessária, mas arquitectura ajustada a um mundo em agonia ecológica.
não suficiente, para o sucesso da fase seguinte que é a da correlação topológica de todos os elementos Não é por acaso que não se vence a batalha política pela sustentabilidade ambiental e equidade na
espaciais, com uma atitude culta e criativa, dado que o processo analítico não é antagónico ao pro- distribuição da riqueza e não são poucas as vozes que clamam no deserto, mas o deserto vai crescendo
cesso criativo pois que ambos se completam e inseminam mutuamente. e, com ele, as miragens com que se engana um público alheio, ainda (e cada vez mais?) à relação entre
O problema da expressão formal da arquitectura é delicado, complexo, controverso e carregado cultura e ética.
de dimensões subjectivas: que valores assumem conceitos como o de estilo, escola, ornamento, e Não vivemos sós e isolados. Resultamos de companhias e amizades das quais quero aqui deixar
mesmo tipologia, no processo e no momento da invenção da definição formal? uma genealogia ordenada no tempo;
Há centenas de autores e milhares de páginas que tratam deste tema mas nenhum é, nem pode Manuel Resende de Oliveira, José António Ferreira Cardoso, Giovanni Corsini, António Sou-
ser, conclusivo, embora alguns se assumam como prescritivos. za Santos, Fernando Mesquita, Pancho Guedes, Salvador Barata Feyo, António Quadros, Raul
Para lá do valor histórico e taxionómico que tais conceitos contenham nesta fase antropogénica Hestnes Ferreira, João Charters de Almeida, Brian Lee, Arnaldo Araújo, Octávio Lixa Filgueiras,
da história do planeta, parece-me errónea a preocupação com formalismos esvaziados de sentido e Pitum Keil do Amaral, João José Tinoco, Malangatana Valente Ngwenya, Luis Bernardo Honwana,
que correspondem a momentos passados da evolução da sociedade humana. Wisek Rozwadowski, Roy Stacey, Lucien Le Grange, Derek Jaffa, Roelof Uytenbogaardt, António
Sem desqualificar o valor do património de ideias e realizações que nos antecederam, penso que Roxo Leão, Patrice Rauszer, João Paulo Borges Coelho, João Schwalbach, José Lopes, Joe e Ruth
a expressão da arquitectura a projectar hoje se pode e se deve encontrar na materialização de pro- Slovo, Tato Dierna, Giovanni Ferracuti, Matelda Abate, Sandro Bruschi, Maria Spina, Vitor Tomás,
cessos conceptuais coerentes com os princípios éticos da economia de meios e na sustentabilidade 436 437 Daniel Louro, Luis António Jorge ...
ambiental. Esta lista não é completa nem exclusiva, nem terminada. Muitas outras pessoas me foram e são
Para que tal seja correctamente operacionalizado teremos que proceder, sistematicamente, a es- próximas... mas estes são os que ao longo de mais que 65 anos me foram mais próximos como com-
colhas técnicas com valores sempre referidos àqueles princípios. panheiros intelectuais, professores e exemplo.
Não sei exprimir esta posição mais simplesmente ou em generalizações menos abrangentes sem A esperança é a de que possam encontrar neste livro algumas das ideias partilhadas e debatidas.
cair em receituários e prontuários esquemáticos e inaceitáveis. Foi este imperativo que me levou a reunir e publicar esta colecção de manifestos.
A arbitrariedade e a irresponsabilidade formal de muitas das “arquitecturas” que definem hoje Deixo de fora a família, não por menos importante na minha vida mas por entrar num registo
o nosso horizonte construído não é da exclusiva responsabilidade dos arquitectos. Quem promove, emocional de que este livro não trata.
financia ou decide sobre a construção de um edifício, ou qualquer obra pública ou privada, são, na
maioria dos casos, entidades ou indivíduos sem cultura arquitectónica mas que estão mandatados e
se sentem competentes para impor os seus “gostos” à sociedade.
Os exemplos mais flagrantes e degradantes são os das expressões ligadas a ideologias políticas
como o foram os das arquitecturas socialista, nazi, fascista ou do “estado novo” na União Soviética,
na Alemanha, na Itália e em Portugal.
Menos explorado e claro é o fenómeno corrente das modas formais, mascaradas em supostos
movimentos intelectuais como o pós-moderno, o minimalismo, o high tech, o desconstrutivismo e
outras criações oportunistas, produtos de uma literatura profissional mercenária que rebaixa a profis-
são ao nível das modas para satisfazer um comércio consumista de quem são conhecidos os motivos,
os padrões e os patrões.

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