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A CONSTRUÇÃO DO POEMA

Porque o poema é menos a bisca que o bridge, fui a uma escola explicar a engenharia do
poema.
Um dia fiquei chocado com uma notícia: por causa do H5N1 (a gripe das aves) os cisnes
dos lagos e jardins europeus apareciam mortos.
Abri o caderno e verti o seguinte poema:

A eufonia dos cisnes infiltrados de H5N1/ invadiu os Museus de Arte da Europa. / Ledos,
os guardas e as lídimas, canoras/ guias turísticas, repetem, “eis-nos no debrum // do
Casal Ventoso”. Pelo ar, lamenta-se Barroso,/ num francês de estufa, todas as
fronteiras, / inclusive as mais abruptas, são porosas. / Quem amnistia a brutal epizootia
(frioleiras // de uma tia que arrasta à Casa dos Répteis, / Horácio, o epiléptico?) que
lança no Averno / os lagos da Suíça, as margens de salgueiros / onde a súcia gozava
estiagem, o pistácio // e o matutino, e ficavam surdos aos ralhos maternos / (e quase
alados) os dedos dos petizes? Quem,/ no desatino de uma paixão suicida (Werther / faz
duzentos e trinta anos), sacudirá a fogueira // da Europa? Poupem-se ao menos as
perdizes!/ Os apoios externos estão garantidos, anuncia-se/ em Maputo – tudo a postos
contra os lampos/ frangos da Nigéria. Entretanto, desatino oportuno, // lambuza-se o
vírus nas bibliotecas da Grécia e bica / a polpa exangue dos sonetos de Yeats e
Mallarmé. / Rien de rien, meu amor (vê-me, please, s’algum bicho / me picou na nuca),
as nossas crias sorvem o seu capilé. // Coisas da Europa caduca - do seu espírito erudito
/ que, canzoada arrepiada, é hoje pasto para o mosquito / - (enquanto a fufa da tia - que
raio designa uma epizootia?- / empurra de mansinho o Horácio da balaustrada).

Comente-se agora:
a) «eufonia». O cisne morre cantando e canta morrendo. Decorre daí a escolha do
vocábulo “eufonia” – antecipando o desejo de fusão que a música autoriza -,
condicionando o poema, pois obrigá-lo-á ora a rimas soantes ora a aliterações.
b) «os Museus de Arte da Europa»: o cisne é um dos animais mais representados no
bestiário da pintura europeia.
c) “ledo”: risonho, contente, alegre, jubiloso. Mas o adjectivo foi escolhido pela
homofonia em relação a Leda, uma rapariga cuja beleza provocou tais convulsões em
Zeus, que este se metamorfoseou em cisne para a possuir e fecundar.
d) “ledo”, por contiguidade, “metamorfoseou-se” em “lídimo” (legítimo, autêntico), pois
as guias-turísticas são quem autenticam as “histórias do lugar”, nas visitas turísticas. Por
outro lado, associando “canoras e lídimas” associo, por extensão, a beleza dos cisnes à
das guias turísticas, geralmente belas ragazzas.
e) “eis-nos no debrum/ do Casal Ventoso”. Introduzi o vocábulo como rima do 1 de
H5N1, mas também como ideia de limite, pois o Casal Ventoso era um bairro de Lisboa
de grande degradação. O Casal Ventoso é, aqui, o inverso da ordem dos Museus.
f) Barroso: Durão Barroso. Uso a frase dele que a notícia cita para falar da impotência da
Europa face à calamidade: «por ar todas as fronteiras são porosas», o que além do mais
me permite a aliteração: oso e osa(s).
g) Uma palavra que aparecia na notícia e que desconhecia: “epizootia”. Como a
desconhecia de todo, uso uma liberdade poética e concedo-lhe um significado meio
absurdo: “frioleiras de uma tia – a fufa!-/ que arrasta à Casa dos Répteis, Horácio, o
epiléptico?”, que por um lado introduz uma segunda trama no poema e por outro é uma
crítica à imprensa sensacionalista que invadiu o quotidiano da Europa.
h) «... que lança no Averno/ os lagos da Suíça»: Averno, um dos nomes que se dava ao
Inferno na antiga Grécia, e a Suíça é o símbolo da estabilidade burguesa europeia.
i) Werther (1774), o primeiro romance burgês original, que cria o tipo de intelectual
burguês jovem desadaptado à sociedade e que entra em conflito por causa da apreciação
elevada de si próprio e do desajuste a que o sistema social o obriga, acabando por
suicidar-se.
j) Um poema circunstancial, que parte de uma simples notícia, pode ser o pretexto para
falar (parodicamente) da perda de aura de uma certa ideia de Europa como força
civilizacional, o que leva ao comentário irónico (e pessoal, por questões de gosto):
«Poupem-se ao menos as perdizes!», pitéu gastronómico, vocábulo que mais uma vez não
está ali só para rimar com petizes.
l) Lampo, parente fonético de frango: “o que vem fora do tempo, temporão”. Uma crítica
ao “deixa-andar” e à permeabilidade com que em África mais facilmente a perspectiva de
um bom negócio para alguns pode fechar os olhos à calamidade pública que a sua
execução acarreta.
m) «nas bibliotecas da Grécia...»: a mitologia grega legou-nos a lenda de Leda e do Cisne
(Zeus), daí que seja nas bibliotecas da Grécia que os cisnes enlouquecidos começaram
por esfacelar os poemas de Yeats e Mallarmé.
n) A quadra final (depois do descanso privado do capilé, pois o mundo não pode ser só
desesperança) reforça a denúncia do estado de absurdo a que as vicissitudes da vida
contemporânea nos impelem.
O poema brotou de uma notícia de circunstância, mas não prescinde, na sua construção,
de um cabedal de referências que fazem parte tanto do sistema cultural em que cresci
como de um estranho jogo entre a necessidade e a liberdade, que é o acto criativo.
Embora essa cultura me esteja imbuída; o poema foi escrito de impulso, sem preparação
prévia: o primeiro rascunho, no café, uma segunda versão quando o passei ao
computador.
É poema de valia? Nem isso importa. Só publico um terço do que escrevo, o resto é para
ginasticar a imaginação. Ramon Gómez de La Serna escreveu uma vez um longuíssimo
texto sobre pregos que lido é um fabuloso exercício, mas que nunca coligiu na sua obra
completa, porque senão todas as cópulas dariam filhos, o que seria um tremendo
disparate.

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