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ELIOT 3

Sucinta, mas lapidarmente, diz-nos Jorge de Sena sobre Eliot: «é um defensor dos
valores clássicos num sentido amplo, isto é, dos valores resultantes de uma disciplina
aceite, de uma “ordem” em que as “aventuras” do espírito encontram a estrutura que
tudo lhes rouba».
E realçamos aqui como ao advento da disciplina se acrescentou algo que Elias Canetti
definiu como ninguém: «a arte é encontrar mais do que foi perdido».
Eis-nos num itinerário semelhante aquele que põe em movimento o novo livro de Dinis
H. Machado e que teve como pretexto a mais preclara homenagem, logo no título:
“Eliot”.
No prefácio ao livro, declaram-se duas coisas fulcrais para a sua leitura. A abrir: “A
vida, acredito, mede-se em séculos”, e, depois, numa cronologia das suas leituras e
admirações, Dinis relata o estupor de que foi tomado quando embateu de frente, ainda
por cima num encontro fortuito, com “The Waste Land” (“conheci o meu primeiro
Mestre”): “Fui confrontado com a perfeição e resignei-me à condição de mero leitor”.
Até aí, na esteira dos «beat», ou acompanhado por Baudelaire e Rimbaud, lograra fundir
o impulso e a imitação, mas a descoberta da arquitectura em T.S.Eliot e da sua tremenda
capacidade para conciliar abstracção e coloquialismo paralisou-o. E durante anos pôs o
projecto da escrita de lado.
Felizmente que o tempo (diria até: a má raça do tempo) o obrigou a reagir. Este livro, o
sétimo da bibliografia activa do seu autor é um longo poema autobiográfico dividido em
duas metades, “Eliot” (em quatro movimentos) e “Terra Condenada” (onde se sucedem
cinco partes), e se por um lado nos reporta à “angústia da influência”, por outro denota
um labor de síntese que faz da intertextualidade chão mas acrescenta novos elementos
calóricos ao húmus que o nutriu, fazendo o autor descolar da sombra majestática do
Mestre.
O Dinis H. Machado, como Grabato Dias antes dele, como o seu coevo Daniel Jonas, é
um poeta que gosta de se ancorar em modelos e não se furta ao desafio da rima, fazendo
uso, com eficácia, de toda a técnica da prosódia. Bastaria lembrar o seu livro anterior
“Heathcliff”: sonetos de factura técnica irrepreensível, que tomam a personagem de “O
Monte dos Ventos Uivantes” como máscara, um exercício mimético de inegáveis
conseguimentos expressivos. Porque Dinis encara a linguagem como jogo da totalidade
e não recua diante de opções lexicais que, a uma vista desatenta, parecerão resíduos
formais de uma tentação arcaizante. É um engano, trata-se de, a) recuperar as
possibilidades e o espectro da linguagem para além dos seus usos epocais (“A vida,
acredito, mede-se em séculos”: lemos acima), e, b) um jogo de adequação dramatúrgica
às vozes a quem lhe interessa emprestar uma dicção. E até ao Hamlet se atreveu, num
livro que ainda não li. Quem por exemplo pegar neste “Eliot”, logo na primeira estrofe
estranhará o tom à Guerra Junqueiro deste verso: «Lisboa, cidade agrilhoada em fervor
ditada», mas depois rapidamente percebe um humor subterrâneo, um jogo de
intercepção de várias camadas estilísticas e textuais, e um trabalho de verosimilhança
das vozes que vão aparecendo nos poemas, que o justifica.
São múltiplas as entradas para um comentário a este belo livro, burilado e exigente com
o seu leitor, que se defrontará com nove poemas em setenta páginas. Como o nosso
espaço é curto, mostremos o modo paródico e dominado como o Dinis trata um dos
“tópoi” centrais em Eliot, a questão do tempo, e a inteligência com que usou o Gato de
Schrödinger e os seus paradoxos, no último poema do livro, como base para meditar
sobre as ambivalências que concernem à própria existência humana, aos seus valores, e
até ao domínio da arte.
No derradeiro da primeira parte, no poema “Stern”, lemos:
«Eu, embora jovem, um velho de apenas 20 anos,/ tinha em mim o tempo passado e o
tempo presente./ Ouvia os pássaros que me indicavam o caminho,/ a direcção que
seguia a música e o toque do tempo ausente. (…) Aguardo a hora primeira, a que
antecede a luz e as constelações,/ e se esconde nas pregas de uma mão aberta e ainda
inocente./ Ouço o lento rufar dos meus passos, olho em frente,/ e reconheço os ecos do
tempo passado e do tempo presente./ Terá valido a pena? Terá valido a pena ter
conhecido a beleza,/ e tropeçar nos frutos caídos sem os saborear?/ Terá valido a pena
ter conhecido a noite e o toque frio da tristeza?/ A resposta encontra-se na queda lenta
do fruto,/ no esvoaçar das flores e folhas que o vento incita./ Pudesse a terra contar os
seus segredos,/ partilhar um pouco dos ossos que ninguém visita,/ e talvez o tempo
presente perdurasse um pouco mais./ Mas que posso eu fazer? Eu que vivo entre os
mortais/ e envelheço com o cair da folha e a mudança da lua. (…) Haverá tempo para
espreitar o tempo indeciso? (…) Corríamos pela pradaria, com a pele nua a roçagar as
papoilas,/ até pararmos junto ao velho sabugueiro. Aí, fazíamos amor,/ o tempo
passado e o tempo presente baixavam o olhar,/ como quem espera por um amigo com
quem brincar./ E ali passávamos o tempo presente, fugindo ao tempo (…) Mas o
tempo futuro aguardava pelo sinal junto ao portão,/ escrevendo na pedra fria e
fustigada pela estação/ os ecos da memória que a manhã vindoura sepulta.» (págs.
42,43, 44, sublinhado meu)
É uma belíssima sequência de versos, com um humor subtil a introduzir um curto-
circuito na cadeia do Tempo imemorial – apesar de o tempo de medir em séculos, será
imemorial mas não estático –, ao mesmo tempo que o desdobra em epifanias,
vizinhanças e reversibilidades: a haver uma transcendência, a perenidade ganha
consciência de si mesmo na simbiose com o efémero, com a matéria e a carne efémera
que nos coube.

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