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PERANTE O TEU ROSTO 1

De Hong Sang-Soo e da sua trintena de filmes só me calhou ver cinco filmes e


felizmente que um deles é o Perante o Teu Rosto, a muitas milhas dos outros, e
definitivamente uma obra-prima, no seio do “sistema” Hong Sang-Soo, e fora dele.
Podia o cineasta não fazer mais nada, mereceria sempre a nossa gratidão.
Para explicar porquê, vou começar por falar de um conto breve de Dalton Trevisan, A
Sopa, e lembrar uma verdade de La Palice: o crédito dado a uma narrativa não falece
enquanto se mantiver um clima no qual os personagens estão predispostos a aguentar
um máximo de tensão.
O que falta a demasiadas fitas que vemos e esquecemos no dia seguinte. Porque a tensão
não nasce de uma montagem rápida ou de um suspense tecnicamente logrado, mas de
um fluxo onde colidam expectativas emocionais e valores morais traduzíveis em atritos
ou nas expectativas reflectidas numa conduta.
O brevíssimo conto de Dalton Trevisan –do livro Histórias Nada Exemplares –, onde, à
roda de uma mesa de cozinha, se mostra a fugaz discussão entre pai, mãe e filho,
oferece mais conflito, intensidade e aceleração emocionais que muitas perseguições de
carro em filmes medíocres. É assim que começa:
«Subiu lentamente a escada, arrastando os pés. Estacou para respirar apenas uma vez,
no meio dos trinta degraus: ainda era um homem. Entrou na cozinha e, sem olhar para
a mulher, sem lavar as mãos, sentou-se à mesa. Ela encheu o prato de sopa, colocou-o
diante do marido.
Olho vermelho de dorminhoco, o filho saiu do quarto e atravessou a cozinha. O homem
batia as pálpebras, embevecido com os vapores capitosos.
— Aonde é que vai?
O filho abriu a torneira do banheiro:
— Fazer a barba.
— Hora da janta. Vem comer.
Demorava-se o rapaz, torneira fechada. Com a toalha no pescoço, não olhou o pai.
— Não quero jantar. Sem fome.
O homem suspendeu a colher:
— Não quer jantar, mas vem para a mesa.
Todas as noites, esfomeado. Enchia a colher, aspirava o caldo de feijão e, fazendo bico
nos lábios; grossos, tragava-o com delícia. O filho desenhava com o garfo na toalha de
flores estampadas. A mulher, essa, contemplava o fogo, mão no queixo.
— Dar uma volta.
O homem sugava ruidosamente e, a cada chupão, o filho revolvia a ponta do garfo no
coração das margaridas.»
A concisão desta escrita é como uma pirâmide que esconde em sombra outra invertida;
a sua rede de imagens subsume um feixe de interacções emocionais que, de um modo
posicional, motiva cada palavra e contribui para esticar a tensão entre as personagens.
Em dezanove linhas apresentam-se quatro conflitos: a do pai com a sua condição física
e com a sua imagem de poderoso pater familias (“ainda era um homem”; “sem olhar
para a mulher, sem lavar as mãos, sentou-se à mesa”), conflito com o filho, condensado
em acções mudas (“Demorava-se o rapaz, torneira fechada”; “a cada chupão, o filho
revolvia a ponta do garfo no coração das margaridas”), conflito não declarado da mulher
com ele (“A mulher, essa, contemplava o fogo, mão no queixo”), enquanto ela mira a
chama que, inconsumível, crepita no seu íntimo, até à explosão final.
Cada palavra em Dalton Trevisan leva o sangue à guelra do peixe.
Veja-se o oposto disso. Se alguém escreve: “Adalberto viu Rita pela primeira vez na
esplanada” e assim continua, sei-me diante de um burocrata do aparo com hábitos de
voyeurismo. Nada se implica na frase, nem o narrador, nem as personagens entre si;
nada se desencadeia: a descrição é um arabesco na congelada pista dum mundo
reificado.
Se, ao invés, o relato se iniciasse assim:”Os seios dela olharam argutamente para
mim”, o escritor situava-nos face a uma relação, algo se pôs em movimento e envolve
ambas as personagens, sem a intermediação distanciada do narrador. E a frase
imprimiria uma aceleração narrativa: a primeira hipótese exige mais dez linhas antes de
se chegar ao ponto (o telos), nesta hipótese parte-se do ponto.
A primeira frase nada comunica e a sua famigerada mensagem é tão vaga como a
abstenção do narrador, que aí não mete prego ou estopa. Encontraram-se na esplanada e
so what? Que se passa em seguida, quais as motivações das personagens, que as vai unir
ou separar, etc? Foi tudo adiado, a mensagem patina no vazio, ou antes, processa uma
procrastinação.
Já na segunda hipótese presenciamos um acto de economia narrativa: as motivações das
personagens imbricam-se na forma da frase, tornam essa expressão a única possível e,
inclusive, de forma implícita, a frase comunica-nos a temporalidade da acção: se fosse
inverno os escultóricos peitos da rapariga estariam tapados por sobretudos e cachecóis e
não teriam o efeito devastador que aí se adivinham, provocando mudanças na vida das
personagens. Adoptando a sinédoque, tomando a parte (os seios) pelo todo (a Gisela,
para lhe dar um nome), numa frase menos vulgar, comunicamos afinal muitíssimo mais,
em intensidade e de chofre.
Afinal, não estávamos a falar de seios – ainda que seja exaltante a sugestão de
Alexandre O´Neil de que pela manhã nos deveriam servir seios em vez de pãezinhos
quentes – mas de procedimentos narrativos.
E se a narrativa de Trevisan parece jogar-se num tabuleiro realista, num registo refém
da objectividade, é apenas um engano: não há uma única frase no conto que não esteja
prenhe da emocionalidade referente a cada personagem – é esse o génio do narrador.
Como na fita de Moebius, o que é dado a ver como morfologia das acções objectivas,
exteriores, só incarna afinal o não-dito das interacções humana, o seu subtexto, uma
inconfessada intencionalidade vertida num “estilo indirecto livre”.
Este mecanismo engendra uma tensão interna à narrativa e imprime-lhe um ritmo. O
mesmo se passa num filme e este pode até passar-se à mesa que o seu ritmo interno
funciona como um acelerador na percepção do espectador.

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