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Viagens de Gulliver, por Paulo José Miranda

Jonathan Swift começa a publicar no início do século XVIII e cedo começa a ser lido
como um escritor político, como alguém que antes de mais e acima de tudo está
interessado em desmascarar a sociedade em que vivemos e a política que a sustenta.
Desde os seus primeiros livros, publicados no ano de 1704, A Fábula de um Barril e A
Batalha dos Livros, que a sua escrita mostrava uma sátira contundente a tudo o que lhe
parecia ridículo, perverso e tirânico; embora a sua escrita não fosse apenas política,
aquilo que ressaltava aos olhos dos leitores do seu tempo era a faceta política e cáustica
dos textos. Swift criticava a corrupção dos homens de estado, criticava os juízes e os
advogados, criticava o pseudo-conhecimento, como no caso da acérrima contenda com
o astrólogo Patridge ou dos romances de viagem que estavam na moda na época. Mas
esta leitura ao tempo em que viveu foi-se alastrando no tempo.

Também George Orwel, que considera As Viagens de Gulliver um dos melhores livros
da história da humanidade e o seu escritor o melhor prosador de língua inglesa, fez
acima de tudo uma leitura política deste livro, não deixando de sublinhar a sua excelsa
ironia.

Que Swift estava em guerra contra o seu próprio tempo, isto é, contra a organização da
sociedade e da política, ao mesmo tempo que nutria um enorme desagrado pelos livros
de viagens, pois sabia que eles eram um poderoso veículo de ignorância, são factos
inolvidáveis. A organização da sociedade, antes como agora, é corrupta, irracional, e
estimula a desenvolvermos o pior de nós, ao invés de procurarmos sermos melhores do
que somos, de um ponto de vista ético e científico. E Swift mostrou-nos isso como
ninguém, pelo menos até Orwel. Também é verdade que os livros que Swift criticava,
tanto ontem como hoje, reproduzem aquilo que as pessoas incultas querem ouvir, isto é,
aquelas que não se preocupam em investigar mais acerca daquilo que se pronunciam ou
acerca daquilo que leem. Ao tempo do escritor irlandês, esses livros especulavam acerca
de seres e terras estranhas sem qualquer relação com a plausibilidade; ao nosso tempo,
especulam formas de auto-conhecimento sem aprofundamento da palavra ou do
número, sem um aprofundamento daquilo que somos, como se pudéssemos chegar a nós
por determinados gestos ou rituais. Ou os novos livros de viagem, que são as teorias da
conspiração. Estes livros não só mantêm as pessoas entretidas com fantasias absurdas
como as afastam do conhecimento. Tanto ao tempo de Swift quanto ao nosso. No fundo,
aquilo que podemos ver nas montras das grandes livrarias. Jonathan Swift atacou tudo
isto de modo implacável. Tudo isto são factos e podemos sem sombra de dúvidas
encontrar nos livros de Swift em geral e neste em particular.

Mas aquilo que me parece mais importante neste livro de Swift é do foro ontológico e
não político ou social. Talvez mais do que em qualquer outro livro de literatura se possa
aplicar literalmente estes versos de Álvaro de Campos:

«O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo. / O que há é pouca gente para
dar por isso.»

No final do livro, no último capítulo da quarta parte, o narrador, Gulliver, escreve:


«Assim, caro leitor, te ofereci a narração fiel da história das minhas viagens durante

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dezasseis anos e mais de sete meses, relato em que me preocupei mais com a verdade do
que com o estilo. Eu poderia, como outros, ter-te causado espanto com histórias
estranhas e improváveis, mas preferi relatar fielmente os factos, na maneira e estilo mais
simples, porque o meu principal propósito era informar-te, e não divertir-te.» (A edição
utilizada em todas as citações é a da Relógio D’Água, na tradução de Luzia Maria
Martins, p. 275).

Reparem na tripla ironia da passagem: poderia contar histórias improváveis, mas


preferiu não o fazer, mas antes contar apenas a verdade. Uma dupla ironia surge porque
na verdade as histórias são completamente improváveis, ao mesmo tempo que mostram
a verdade; por fim, a terceira parte da ironia aparece quando pede desculpa de não
cuidar do estilo, quando a sua prosa é sublime. No fundo, o que Swift nos está a dizer,
que faz ao longo de todo o livro, é que o problema dele não é a imaginação, mas a falta
de verdade. Imaginação não é contrário a verdade. Ver-se-á adiante aonde isto nos vai
levar. Assim, Swift vai traçar em As Viagens de Gulliver uma poderosa ironia acerca
dos romances de viagem, à semelhança do que um século antes Cervantes havia feito
com Dom Quixote de La Mancha acerca dos romances de cavalaria. É bom recordar
aqui que, a meio do tempo em que escrevia As Viagens de Gulliver, é publicado
Robison Crusoé, de Daniel Defoe, que rapidamente se torna um sucesso de vendas,
como que a dar ainda mais razão ao genial Swift.

Mas antes da passagem do último capítulo da quarta parte, que vos li anteriormente,
Swift vai à página 89, no final do primeiro capítulo da segunda parte, já em
Brobdingnag, nos colocar no sentido mais radical deste livro. Veja-se onde podemos ler
as palavras do narrador em que explica a razão de ter escrito o livro que escreveu, sendo
ele adverso aos livros de viagens: «Espero que o amável leitor me desculpe o facto de
mencionar estes incidentes e outros semelhantes, os quais, parecendo insignificantes aos
espíritos baixos e às mentalidades ordinárias, ajudarão, contudo, um filósofo a aumentar
o âmbito dos seus pensamentos e da sua imaginação, podendo aplicá-los em benefício
público ou particular. Aliás, foi este o meu único objectivo ao apresentar ao mundo este
e outros relatos das minhas viagens, nos quais tentei exclusivamente servir a verdade,
sem afectar quaisquer ornatos de erudição ou estilo.» O narrador tem a noção clara de
que o seu relato, num espírito atento, servirá para alargar-se a si mesmo.

No fundo, o que Gulliver / Swift nos está a dizer é que este livro serve para nos vermos
a nós mesmos. É uma viagem ao nosso interior, isto é, ao modo como nos vemos a nós
mesmos. O que está em causa, mais do que uma visão política do seu tempo, que
também há, ou uma visão de crítica literária, que também há, é uma visão filosófica do
humano, isto é, um olhar radical acerca do ser humano. A viagem de Gulliver é uma
viagem ao ser humano. Os países distantes e estranhos somos nós mesmos, os humanos,
não apenas uns para os outros, como no caso dos diferentes povos ou diferentes estratos
sociais ou ainda diferentes interesses culturais, mas nós para nós mesmos.

Nós não fazemos ideia de como nos vemos a nós mesmos, nem de como o nosso olhar
sobre nós é configurado pelo que vemos nos outros. A artista plástica e poeta Leonor
Hipólito escreve estes versos no início do poema 46 do livro A Natureza Que
Esquecemos: «Tanto já se escreveu na primeira pessoa do singular / sabendo tão pouco
sobre a nossa pessoa […]».

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Viagens de Gulliver, por Paulo José Miranda

Não deixa de ser curioso que, para nos mostrar a nós mesmos, Gulliver tenha feito
viagens a países inimagináveis.

Mais do que na primeira viagem, a Lilliput, é na segunda viagem, a Brobdingnag, que a


configuração do nosso ponto de vista começa realmente a fazer efeito. Evidentemente,
já na primeira viagem ficámos confrontados com a conformação extática do nosso ponto
de vista, aquando dos relatos que os lilliputianos fazem dos objectos de Gulliver. Veja-
se como exemplo esta passagem, à página 32: «Pediu-me depois uma das colunas de
ferro ocas, ou seja, as minhas pistolas.» Perante a descrição dos objectos de Gulliver
pelos lilliputianos, nós passamos a ver os nossos objectos pela primeira vez. Porque
vemo-los sem o preconceito daquilo para que servem, da sua utilidade.

Mas é mais do que isso. Nós não vemos as coisas, mas o sentido que damos a elas. Os
liliputianos descrevem o objecto, nós vemos uma pistola. Nós já não vemos as partes de
um objecto, a não ser que sejamos entendidos no assunto. Ver as coisas para lá da sua
utilidade pode ser através da completa ignorância do que sejam ou através de uma
especialização desse mesmo conhecimento, como, por exemplo, aquilo que um
guitarrista vê em relação às guitarras eléctricas, que é completamente diferente do que a
maioria dos humanos vê. Os humanos em geral olham uma guitarra eléctrica e vêem
uma guitarra eléctrica, assim como os humanos em geral vêem uma pistola, mas os
guitarristas vêm as partes: a madeira do corpo, a madeira do braço, a madeira da escala,
os carrilhões, se têm trava ou não, qual o material dos mesmos. Depois vêem a alma da
guitarra: os captadores (pick-ups); primeiro, se são single-coil, humbuckers ou P-90,
depois qual a potência deles. Ou seja, perante uma guitarra eléctrica a maioria de nós
somos humanos e os guitarristas liliputianos. Já se deram conta, evidentemente, que o
meu modo liliputiano em relação à guitarra é diferente do modo dos liliputianos em
relação à nossa realidade, pois eles descrevem as coisas porque as desconhecem, não
dizem pistola, descrevem-na, ao passo que os guitarristas, em relação à guitarra
eléctrica, atentam nas suas partes e não apenas no todo, porque sabem muito bem o que
é uma guitarra eléctrica e que a sua qualidade (ou a sua utilidade) depende da qualidade
das suas diversas partes. Não apenas no sentido de que umas partes são melhores do que
outras, mas no sentido em que umas partes são mais eficazes para um determinado
estilo de música, ou para aquilo que o guitarrista quer tocar, do que outras partes. De
facto, há dois modos de sermos liliputianos: ou o completo desconhecimento das coisas
ou um grande conhecimento das coisas. Entre o completo desconhecimento e o grande
conhecimento está o humano.

Assim, a diferença de tamanho entre nós e os liliputianos, muito menores, ou entre nós e
os brobdingnaguianos, muito maiores, não configura apenas uma diferença de escala,
mas uma diferença de visão do mundo. De outro modo, a diferença de escala faz com
que nos demos conta de que a nossa visão do mundo depende da nossa escala.

Para além deste nosso modo de nos relacionarmos com o mundo circundante, com
aquilo que usamos no dia a dia, há também o modo como nos relacionamos connosco
mesmos e com os outros. E isto espoleta com muito mais força na segunda parte do
livro, em Brobdingnag, porque somos mais sensíveis a perceber as diferenças quando
corremos risco de vida ou somos mais vulneráveis.

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Viagens de Gulliver, por Paulo José Miranda

Por isso mesmo, e não é por acaso, somente na segunda parte do livro Gulliver diz estas
palavras: «Sem dúvida alguma, os filósofos têm razão quando nos afirmam que nada é
grande ou pequeno senão por meio de comparações» (p. 82) Apesar de se ter dado conta
da diferença de escala em Liliput, ele não era vulnerável, ou pelo menos não era
vulnerável como o é em Brodingnag. Mais do que em Liliput, é agora em Brodingnag,
que ele se dá conta de que o ponto de vista em que estamos usualmente é relativo.
Aquela frase, logo no início da segunda parte do livro, aparece quando Gulliver chega a
Brobdingnag e se lembra de si no país dos lilliputeanos. Há uma reconfiguração do
plano, uma reconfiguração do ponto de vista. Antes, em Lilliput, ele era um gigante,
agora a situação inverteu-se, os gigantes são os outros e ele sente aquilo que os
lilliputianos deveriam ter sentido com ele, mas que lhe estava completamente vedado.
No fundo, o que aqui está em causa, é que nós mesmos só conseguimos nos ver se
acontecer uma catástrofe, isto é, um rompimento com o ponto usual em que estamos.
Curiosamente, nas viagens que fazemos usualmente o que acontece é que nós reparamos
nos outros, nas diferenças, e é isso que acontece com Gulliver em Lilliput. Ele enumera
as diferenças, quase comicamente, mas agora, em Brobdingnag, ele apercebe-se dele
mesmo. E apercebe-se dele mesmo através da comparação com a sua vivência em
Lilliput. Literalmente, ele foi virado do avesso. Viu-se por dentro. Leia-se: «Nesta
terrível agitação mental não podia abstrair-me de Lilliput, cujos habitantes me olhavam
como o maior prodígio que o mundo tivera, onde eu podia, com uma só mão, arrastar
uma armada imperial e cometer outros feitos fantásticos que ficarão para sempre
registados nas crónicas daquele império […]. Pensava na mortificação que, para mim,
devia representar o facto de ser tão mesquinho nesta nação quanto um lilliputiano seria
entre nós.» (82) Esta contínua e radical alteração do ponto de vista, ir do tamanho
natural a sentir-se extremamente grande e depois a sentir-se extremamente pequeno
obriga Gulliver a configurar a sua existência e o mundo. Ele percebe claramente que
estamos presos num ponto de vista fixo e não perguntamos por nada. Mas quando aqui
se diz fixo, não quer dizer que ele não mude ao longo da vida, que nós não estejamos
sempre a mudar aquilo que julgamos acerca disto ou daquilo, porque estamos, fixo aqui
quer dizer que o nosso ponto de vista é dependente da nossa escala, que não é apenas de
tamanho, embora seja, mas também do nosso corpus de conhecimento. Ou seja, nós
vemos as coisas, não como elas são, mas com os apetrechos sensíveis e com o
conhecimento que temos. Nós não podemos ver os átomos ou os poros da pele, por
exemplo, nem podemos ver o que quer que seja fora do saber que temos. A este modo
de nos mostrar como somos, através de uma projecção ou criação de outras escalas,
chamo reconfiguração do nosso ponto de vista, porque é disso que se trata: passamos a
ver que temos um ponto de vista fixo e do que é que ele depende.

Nós vivemos fechados num ponto de vista pelo qual nunca perguntamos. Chegamos ao
mundo e ele é assim e agimos em conformidade com o que vemos sem nos
perguntarmos por nada. Repare-se em outra passagem em Brobdingnag: «O gigante
estacou repentinamente e, olhando à sua volta e para o chão certo tempo, com a
precaução de quem tenta apanhar um animal daninho, para que não arranhe nem morda,
como eu próprio fiz, algumas vezes, em Inglaterra, quando tentava agarrar uma doninha.
[…] temia a cada momento me lançasse violentamente no chão, tal como fazemos com
qualquer animalzinho odioso que pretendemos destruir.» (83) Nós nem nos
perguntamos por uma formiga, tomamos por certo que não é importante, que não faz
mal que desapareça, que não faz mal matá-la. E do mesmo modo que acontece de nós
em relação aos seres menores que nós, também acontece connosco em relação às
vivências usuais. Por exemplo, não nos damos conta dos cheiros, porque nos

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habituámos, e o mesmo podemos dizer em relação às formas. Veja-se esta passagem:


«Por fim, a ama […] dar-lhe de mamar. Devo confessar que nunca vi um objecto que
me causasse tanta repugnância como aquele seio monstruoso […]. Aquela visão fez-me
pensar nas peles brancas das damas inglesas, que nos parecem tão belas só porque são
do nosso tamanho e os defeitos não podem ser apreciados por meio de uma lente de
aumentar, ainda que, por experiência, saibamos que até as peles macias e brancas são
ásperas, grosseiras e de cor feia. // Recordo-me de quando estava em Lilliput a cútis
daquele povo diminuto me parecia a mais bela do mundo; e discutindo este assunto com
uma pessoa de estudos daquele país, meu amigo íntimo, ele afirmou que a minha cara
tinha uma aparência muito mais bonita e suave quando ele me olhava do chão do que
quando me olhava de um ponto mais próximo.» (87) Acrescente-se mais este exemplo,
à página 103: «Uma vez aconteceu o seguinte: no verão, o reino fica infestado de
moscas, e estes insectos odiosos – tão grandes como uma cotovia de Dunstable – não
me deixavam tranquilo durante o jantar, zumbindo continuamente à volta dos meus
ouvidos. Pousavam às vezes na comida, onde deixavam o excremento ou ovas, que me
causavam náuseas, o que eu conseguia ver claramente, ainda que os nativos do país –
cuja visão era, para objectos minúsculos, infinitamente mais limitada do que a minha –
não vissem.» Ou seja, isto que acontecia com os habitantes de Brobdingnag é o que
acontece connosco no dia a dia. E tal como com os habitantes desse reino distante
também nós não vemos os excrementos e as ovas das moscas. E a pele de cada um de
nós ou o cheiro não causa repulsa, porque estamos ajustados à escala. Em Brobdingnag,
Gulliver vivia como se tivesse olhos de microscópio. Mas essa realidade microscópica
existe, embora nós não a vejamos no nosso dia a dia. Estamos completamente
condicionados não apenas no comportamento, através dos hábitos que adquirimos, mas
também através do nosso equipamento sensorial. Por isso não nos enoja os cheiros ou a
visão do que fazem as moscas.

Jonathan Swift mostra-nos que estamos sempre num contexto prévio, de uma escala
prévia com a qual medimos o mundo em que somos. Séculos mais tarde, Heidegger dirá
que antes de mais nós estamos lançados no mundo, agimos nele sem pensar. Nós
usamos as coisas do modo que estamos habituados a ver serem usadas. Não
perguntamos, não pensamos. Só o fazemos quando algo corre mal, isto é, quando o
usual é interrompido.

Imaginemos que se trata da fechadura de uma porta ou de uma torneira de água, nós
usamo-las sem nos perguntar pelo seu funcionamento ou questionarmos o seu fabrico
ou eficácia, só quando elas não abrem, isto é, quando deixam de se comportar como
usualmente, é que somos obrigados a pensar nelas, a perguntar por elas e pela relação
que se estabelece entre nós e as fechaduras e as torneiras. Mas isto que acontece em
relação às coisas também acontece em relação a nós, àquilo que pensamos de nós. E é
isso que lemos em as duas primeiras partes de As Viagens de Gulliver. É quando o
ponto de vista usual é interrompido que ele se dá conta do seu ponto de vista usual.

O que acontece em relação às coisas, acontece também em relação ao pensamento,


como podemos ver neste exemplo em Liliput. Leia-se: «Mostrou-se admirado do
barulho contínuo que o relógio fazia. Assim como dos movimentos do ponteiro dos
minutos, que ele conseguia perfeitamente ver – a visão deles é muito mais penetrante do
que a nossa –, e pediu as opiniões dos eruditos, que foram diversas e vagas, como o
leitor pode muito bem imaginar sem que eu as repita […].» (33) Acerca do relógio é

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Viagens de Gulliver, por Paulo José Miranda

também deliciosa a parte em que os lilliputianos se inclinam a pensar tratar-se de um


deus. Reparem que eles interpretam a relação de Gulliver com o relógio como sendo
oracular. Leia-se: «Chamou-lhe o seu oráculo, dizendo que indicava o tempo para todas
as acções da sua vida.» E nós só não vemos assim um relógio porque nos habituamos ao
seu uso, à sua utilidade. Repare-se também como os liliputianos não acreditavam que o
mundo pudesse ser à nossa altura, à altura de Gulliver, pois nada nos seus livros o dizia.
Leia-se: «Ouvimo-lo afirmar que há outros reinos e estados no mundo, habitados por
seres humanos tão corpulentos como o senhor, mas os nossos filósofos mostram-se
duvidosos, e preferem pensar que veio da Lua ou de uma das estrelas […]. Além disso,
as nossas histórias oficiais, que abrangem um período de seis mil luas, não mencionam
quaisquer outras regiões que não sejam as dos dois grandes impérios de Lilliput e de
Blefuscu [o reino rival e inimigo].» (44) Como vêm, tal como nós, os lilliputianos têm
dificuldade de imaginar o que não sabem, de aceitar o que não se sabe. Preferimos não
saber a aceitar uma realidade diferente. Preferimos a ignorância de um texto escrito
quando nada se sabia a aceitar a verdade. A verdade é difícil. Só aceitamos a verdade se
ela já tiver sido escrita, se ela nos assentar bem, como um fato feito à nossa medida. Nós
estamos configurados, não apenas com o aparelho sensitivo que temos, visão, olfacto,
etc., mas também configurados pelo que sabemos. Estas duas primeiras partes de As
Viagens de Gulliver são uma viagem ao humano, ao modo como na realidade estamos
completamente condicionados não apenas pelos nossos sentidos, isto é, pelo nosso
equipamento sensorial de captação da realidade, mas também pelo que sabemos ou
julgamos que sabemos.

Neste sentido, as duas primeiras partes do livro depõem-nos face a face com a nossa
natureza, através de duas viagens a países completamente opostos na escala: um onde
somos gigantes outro onde somos homúnculos. É neste confronto, nesta contraposição
de escalas que Gulliver se dá conta de si mesmo e do humano, de que nós somos
completamente relativos, isto é, que aquilo que sabemos e valorizamos só o fazemos
porque estamos presos, configurados a uma escala precisa.

Acerca da ironia como expressa a nossa condição humana, o risível da nossa condição e
de como começamos grande parte das nossas guerras ou discussões, remeto-vos para a
leitura da passagem do final do capítulo IV da primeira parte, à página 44, acerca da
discussão dos ovos. Não podemos deixar de fazer um riso amarelo ao ler esta passagem.

Quão tristes somos ao começarmos guerras por causa do lado em que se deve ou não
partir um ovo, isto é, como quase todas as guerras começam. Quase no final dessa
passagem, é referido o «Alcorão dos liliputianos» para depois falar da distorção que é
feita do texto, como no fundo acontece tantas vezes no Alcorão e na Bíblia. Mas o que
uma vez mais está em causa é o nosso ponto de vista relativo, e isto acontece pela nossa
natureza intermédia entre a ignorância e o conhecimento.

Se nestas duas primeiras partes Swift nos confronta com o nosso ponto de vista, nas
terceira e quarta partes confronta-nos com a nossa maior ilusão, a de que somos seres
racionais. Swift não apenas nos confronta com o nosso ponto de vista, fazendo-nos ver
que não fazemos a mínima ideia de como funcionamos ou por que razão funcionamos
como funcionamos – que é o que aconteceu nestas primeiras partes do livro – como
ainda nos vai virar do avesso, fazendo confrontar-nos com a nossa maior ilusão: a de

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Viagens de Gulliver, por Paulo José Miranda

que não somos animais racionais, apesar de termos razão, e isto mais de 100 anos antes
de Kierkegaard.

Se nas primeiras duas partes Swift reconfigura o nosso ponto de vista, isto é, coloca-nos
na posição de vermos o nosso ponto de vista, fixo, nas terceira e quarta partes de As
Viagens de Gulliver o autor vai realizar um outro movimento: o de mostrar aquela que é
a nossa ilusão maior, a de pensarmos que somos animais racionais, de pensarmos que
somos seres de razão. Há uma diferença radical entre ter razão e ser um ser de razão.
Ser um ser de razão implicaria nunca ser fora dela, nunca agirmos contra ela. Isto seria
ser um ser de razão, um ser racional ou, se preferirmos, um animal racional. Mas como
isso não se passa, nós não somos animais racionais, mas animais que têm razão, assim
como temos instinto.

De qualquer modo, para que o leitor consiga seguir convenientemente os seus passos até
esse movimento derradeiro levado a cabo na quarta parte, foi preciso existir uma
terceira, que prepara o terreno. Assim, veja-se primeiro o que acontece na terceira parte
do livro. Aqui, e depois da embarcação de Gulliver ter sido capturada por piratas e de o
terem abandonado numa canoa com remos e vela em alto mar e provisões para quatro
dias, o nosso herói consegue navegar até uma ilha completamente rochosa, que fazia
parte de um grupo de ilhas. Gulliver foi viajando de ilha em ilha até que alcança a
última destas ilhas. E é aqui que no dia seguinte a ter aportado, surge a ilha voadora.
Uma ilha igual a todas as outras, com habitantes e terra, mas que voava. Esta ilha
voadora ou flutuante chamava-se Laputa, que é onde a próxima aventura de Gulliver
acontece, e que é toda a terceira parte do livro de As Viagens de Gulliver. Gulliver dá-se
conta de quão estranhos são os seus habitantes. Mas do mesmo modo que eles eram
estranhos a Gulliver, também este era estranho a eles. Para além da questão física, que
nos é descrita pormenorizadamente, aquilo que mais importa é o comportamento. O
mais extraordinário era que os habitantes traziam consigo um criado e todos eles
carregavam consigo, segundo a descrição de Swift, e passo a citar: «bexigas, cheias de
ar, presas, como um mangual, a um bastão curto que empunhavam. Cada bexiga tinha
uma pequena quantidade de ervilhas secas ou seixos (como depois me informaram). De
quando em quando, batiam com essas bexigas na boca e nas orelhas das pessoas que
estavam perto, prática que então não compreendi. Segundo parece, o espírito destas
pessoas está de tal maneira absorvido por especulações intensas que não podem falar
nem ouvem os discursos alheios se não lhes chamarem a atenção por meio de algum
contacto externo nos órgãos da fala e da audição. Por esta razão, as pessoas que podem
têm sempre ao serviço da família um criado, que poderíamos designar por batedor (a
palavra exacta é climenole), e nunca saem de casa nem fazem visitas sem a companhia
deste empregado. O dever deste consiste, quando duas ou mais pessoas estão reunidas,
em bater com a bexiga na boca do que tem de falar e na orelha direita daquele ou
daqueles a quem se dirige o orador.» (pp. 150-1)

De modo a que a nossa apresentação se torne mais fácil, imaginemos que se trata de
uma fina vara. O professor Nuno Ferro, num texto acerca de Kierkegaard, escreve que
«Sócrates é para Kierkegaard aquilo que ele foi, um moscardo incómodo, que funciona
como os flappers, que Gulliver encontrou, que tinham por função bater com varinhas
nos ouvidos dos pensadores absortos no pensamento, para que não esquecessem de
ouvir quando os outros falam, e na boca, quando chegava a altura de falar. […]
Curiosamente, nós precisamos de quem nos recorde que existimos.» (p. 64)

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Viagens de Gulliver, por Paulo José Miranda

Sim, nós vivemos como se não existíssemos. Vivemos como se tivéssemos de seguir
determinadas normas e comportamentos, como se a nossa existência não tivesse nada a
ver connosco. Na verdade, de modo geral, nós não existimos, seguimos os outros. Não
apenas o que vemos e o que ouvimos, mas também o que achamos que deve ser, sem
qualquer investigação acerca do assunto. De modo geral, vivemos naquilo a que
Kierkegaard chama de estádio estético da existência. Mas isto não é análise que caiba
aqui. O que cabe aqui é que estes estranhos seres viviam num mundo à parte, e
precisavam de alguém exterior a eles que os fizesse reparar ou darem-se conta do
mundo e, concomitantemente, dos outros ao seu redor. Esta descrição deste estranho
povo, se pensarmos bem, não nos é assim tão estranha quanto parece. É bem verdade
que não andamos com batedores com varinhas ao nosso lado, a lembrarem-nos de
quando temos de falar e de quando temos de ouvir. Mas bem que podíamos ter. Pois na
verdade, e é isso que Swift percebe bem, de modo geral o humano está fechado em si
mesmo sem prestar real atenção aos outros ou até a si mesmo. Nós na verdade não
prestamos atenção a nada. A nossa atenção está continuamente a ser diluída em outra
atenção à frente e assim por diante sem que nos detenhamos no que quer que seja. E se
isto ao tempo de Swift era completamente claro para ele, nos nossos dias de
smartphones e de computadores é escandalosamente visível para todos nós. Este povo
somos nós, na verdade, povo esse, que só mais tarde entendemos, é o oposto do povo
dos cavalos, na quarta parte do livro.
Nós não somos apenas os yahoos da quarta parte do livro – como se verá nas próximas
semanas –, nós somos também e muito claramente este povo que precisa de um criado a
bater em cada um dos habitantes, para que eles ouçam e falem apropriadamente, isto é,
quando devem fazer uma ou outra coisa. Veja-se como Swift descreve este povo de
Laputa: «[A despeito de se expressarem matemática e musicalmente, através de
números, linhas e sons] São pouco racionais, entregando-se com veemência à
contradição – a não ser quando estão certos das suas opiniões, o que é raro.» (154) Mas
veja-se mais duas passagens. A primeira acerca daquilo que mais tarde irá aparecer em
Kierkegaard como «tagarelice» e «loquacidade» e em Heidegger como «falatório» e
«ambiguidade». Leia-se: «[Este povo analisava] constantemente os negócios públicos,
fazendo críticas a problemas do Estado e discutindo apaixonadamente todos os
pormenores dos programas dos partidos políticos.» (154) Depois de uma aproximação a
alguns matemáticos europeus, a que voltaremos, Swift remata: «Mas inclino-me mais
para a ideia de que esta condição nasce de um mal muito comum na natureza humana,
que nos leva a sentirmo-nos sempre curiosos e vaidosos em assuntos de que nada
percebemos e para os quais estamos menos preparados, quer pelo estudo, quer pela
nossa própria natureza.» (154-5) Esta contraposição entre Gulliver e os habitantes de
Laputa acaba por ter em nós um efeito de espelho, pois aquilo que Switf descreve – e
que agora Gulliver vê fora de si – é aquilo que é descrito como «um mal muito comum
na natureza humana», a saber, a curiosidade, que contrariamente ao que se julga não é
uma estrutura boa, mas má, pois conduz-nos a saltar de uma coisa para outra
continuamente, sem nos determos em nada. Entregues à curiosidade somos levados a
nunca aprofundar nada, a estarmos continuamente na superfície das matérias que nos
despertam a atenção. O que conduz a maioria das vezes a julgarmos que sabemos na
verdade acerca daquilo que falamos, quando não passa de completa superficialidade. É
aqui que reside a ambiguidade, julgamos saber o que não sabemos. Hoje, com as redes
sociais, isto ficou muito mais claro que nunca. E é isto precisamente que Gulliver nos
relata. Ao ver fora de si aquele comportamento pelos habitantes de Laputa, fora do
humano ou do modo como usualmente se é humano, Gulliver vê-se a si mesmo como se
estivesse face a um espelho. Antes do encontro com os habitantes de Laputa, Gulliver

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Viagens de Gulliver, por Paulo José Miranda

não se dera conta de que a natureza humana funciona assim na maioria do tempo, mas
vendo agora fora de nós, em outros, aquilo que somos, isso tornou-se claro. Como ele
mesmo escreve «um mal muito comum na natureza humana». Torna-se cada vez mais
claro que estas viagens de Gulliver mais do que viagens a terras exóticas, são viagens ao
humano, às estruturas do humano. Swift está a dizer-nos claramente que nós somos para
nós mesmos mais desconhecidos do que as terras longínquas que descobríamos com
embarcações.

Na continuação do que acabámos de ver na semana passada, de se tornar


acentuadamente claro que estas viagens de Gulliver mais do que viagens a terras
exóticas são viagens ao humano, às estruturas do humano, que nós somos para nós
mesmos mais desconhecidos do que as terras longínquas que descobríamos com
embarcações, veja-se mais duas passagens que interligamos numa só: «É um povo
sempre inquieto, que nunca goza um só minuto de tranquilidade de espírito, e a sua
inquietação provém de causas que pouco afetam o resto dos mortais. As apreensões que
os preocupam são criadas pelo terror que sentem pelos corpos celestes. […] Estão
continuamente tão alarmados com o temor destas e de outras catástrofes semelhantes
que não conseguem dormir tranquilamente nos seus leitos nem conseguem ter o menor
gosto nos prazeres e diversões comuns da vida.» (155) Este estar deposto em medos
infundados ou, pelo menos, que não podemos ter a certeza de que se deva ter medo,
como o caso da morte, é aquilo que determina o comportamento humano. Nós não
tememos os corpos celestes, mas tememos a morte, ainda que não saibamos o que isso
é, a não ser que deixamos de ser, como antes de virmos à existência também não
éramos. Se nas primeiras duas partes do livro Swift nos conduzia para uma apresentação
da configuração da nossa apreensão, isto é, do modo como nos damos conta das coisas e
de nós do ponto de vista exterior, agora começa a fazer a configuração do modo como
nos vemos a nós mesmos do ponto de vista do comportamento.

Quanto ao sentido comportamental e não ontológico podemos ver o modo como Swift
nos mostra o desprezo com que os habitantes de Laputa olham Gulliver, por este não ter
bom ouvido musical. Leia-se: «Ainda que não me seja possível dizer que me trataram
mal nesta ilha, devo confessar que me sentia muito abandonado e, de certo modo,
olhado com desprezo. Nem o príncipe nem o povo se mostraram curiosos em relação a
qualquer tipo de conhecimento, além da matemática e da música, no que eu me
encontrava muito abaixo deles, e era por isso olhado com muita indiferença.» (163)
Swift mostra-nos assim algo muito comum no comportamento humano através dos
habitantes de Laputa: nós tendemos a desprezar aqueles que não partilham os nossos
conhecimentos ou os nossos interesses, ainda que possam até ser mais sábios do que
nós. Mesmo julgar que a sabedoria é melhor do que a ignorância, pode ser visto como
um modo viciado de nos vermos uns aos outros. Não digo que seja, não estou a afirmar
que a ignorância seja melhor ou tão benéfica para a comunidade quanto o
conhecimento, estou apenas a afirmar que pode ser visto como um modo viciado, um
modo estritamente humano de ver, tal como os habitantes de Laputa em relação a
Gulliver. Veja-se esta passagem maravilhosa: «Havia na corte um grande senhor,
parente próximo do rei, e por essa razão tratado com muito respeito pelos demais. Era
opinião universal que se tratava da pessoa mais ignorante e estúpida que ali vivia. Tinha
prestado à coroa serviços eminentes, tinha grandes dotes naturais e adquiridos,
realçados pela integridade e pela honra, mas tinha tão mau ouvido para a música que os
seus detratores contavam que muitas vezes o haviam visto bater o compasso errado;»
(163-4) A despeito do senhor ter grandes dotes naturais e adquiridos, realçados pela
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Viagens de Gulliver, por Paulo José Miranda

integridade e honra, não deixava de ser criticado e alvo de chacota devido ao seu mau
ouvido para a música, que era fundamental para os habitantes de Laputa. Quantas vezes
não vemos pessoas íntegras e honradas serem alvo de troça devido a não configurarem o
ponto de vista da comunidade? O que está aqui em causa nesta apresentação de Swift é
o modo como os preconceitos, isto é, aquilo que tomamos por certo e necessário, a
despeito de nenhuma prova a favor ou contra, nos impedem de ver o outro com justeza.
Mais: podem ser razão para fazer uso da troça em relação a alguém, como era o caso do
senhor parente próximo do rei de Laputa. Vou contar-vos, de memória, uma passagem
do primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Uma amiga do
senhor Swan, que era um homem muito culto e muito rico, tinha-se apaixonado por uma
senhora muito inferior a ele, devemos ler inferior aqui, em Proust, no sentido de
interessar-se apenas pelas coisas sensuais, sem qualquer interesse pela cultura. Devido a
isto, uma amiga do senhor Swan tenta várias vezes que ele conheça uma amiga sua, que
diz ser pessoa muito inteligente e de muita cultura. Cansado disso, e de modo a acabar
de vez com a questão, o senhor Swan responde, como justificação para não a conhecer:
«Não me pareça que essa senhora tenha aprofundado a Crítica da Razão Pura de Kant.»
E arruma a questão. Para o senhor Swan a filosofia aparecia como não ter ouvido para
os laputianos. E regressando ao livro que aqui nos traz, escreve Swift no início do
capítulo VI da terceira parte, referindo-se às teses loucas que alguns pensadores de
Laputa tentaram instituir, como o caso de ao invés de palavras, as pessoas mostrarem as
coisas: «Resumindo: uma série de quimeras loucas e impossíveis jamais concebidas
pelo cérebro humano, o que veio confirmar no meu espírito a velha observação de que
nada existe de extravagante e irracional que os filósofos não tenham mantido como
expressão de pura verdade.» É o modo de vermos as nossas próprias verdades como
irracionais. Nós tendemos a tornar verdade tudo o que pensamos. Não é na natureza, ou
pelo menos não é só na natureza que nada se perde, tudo se transforma, o pensamento
tende a não desperdiçar nada, tende a transformar o que pensa em verdade. «Pensar faz
com que tudo possa ser verdade», escreve o narrador do romance Vício.

A despeito de haver momentos em que Swift parece afunilar a sua apresentação, isto é,
parece reconduzir os habitantes de Laputa não à imagem de todos os humanos de um
modo de ser de alguns humanos – como quando escreve «É verdade que muitas vezes
notei esta característica nos matemáticos europeus» (154) ou «Ignoram completamente
o que seja imaginação, fantasia e invenção, a ponto de não existirem no seu idioma que
definam aquelas ideias.» (154) –, a verdade é que se trata de um mapeamento do
humano nas suas diversas apresentações, não apenas no sentido ontológico, como na
denúncia da curiosidade, da ambiguidade, do falatório, do esquecermo-nos de nós
mesmos, mas também na fragmentação comportamental do humano, isto é, os humanos
nos seus diversos afazeres e grupos. Nesta terceira parte, além de encetar esta
apresentação do humano por dentro, isto é, do humano enquanto ser humano, quer em
sentido ontológico quer em sentido comportamental, Swift prepara-nos também para a
desmontagem da maior das nossas ilusões: a de que somos animais racionais. E ser esta
a definição que nos distingue de todos os demais seres vivos. Para além de não ser
verdade, Swift ironicamente ainda nos apresenta isto através de uma inversão completa
do nosso ponto de vista, a saber, mostra que existem seres que são realmente racionais,
contrariamente a nós, e que têm a forma de cavalo. Swift traça uma completa inversão
no ponto de vista. Leia-se como termina o capítulo III desta quarta parte: «Disse-lhe [ao
príncipe] ainda que, se a sorte me levasse de volta ao meu país, a fim de relatar as
minhas viagens – como era minha intenção –, todos pensariam que eu dissera uma coisa
que não existia; que eu inventara toda a história; e que, com todo o respeito que lhe

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Viagens de Gulliver, por Paulo José Miranda

devia, assim como à sua família e amigos, e sob a sua promessa de que não se ofenderia,
os meus compatriotas dificilmente acreditariam na existência de um país em que um
houyhnhnm fosse um ser superior e um yahoo uma besta.» (224-5)

Ao conduzir-nos por esta inversão, aquilo que Swift nos diz e mostra com muito rigor é
uma diferença absoluta entre ser racional e ter razão. Nós temos razão como alguém tem
um carro. Mas ter um carro, por um lado não faz dele um ser automóvel e, por outro,
também não faz com que ele use sempre o carro. É assim com a razão. Se fôssemos
realmente seres racionais nunca faríamos ou diríamos algo que contrariasse esse modo
de ser, isto é, nunca sairíamos da razão. Mas não é isso que acontece com o humano.
Nós somos muito mais parecidos com os yahoos, da quarta parte do livro, e com os
habitantes de Laputa, da terceira parte, do que com aqueles cavalos racionais.

Comecemos por ver duas passagens. A primeira é quando Gulliver fala ao príncipe
acerca da natureza das guerras, tão comuns no mundo de onde vem, e das suas
atrocidades, lemos: «Mas quando uma criatura com pretensões a racional era capaz de
tantas enormidades, assaltava-o o terror de que a corrupção desta faculdade [razão]
fosse pior do que a própria brutalidade. Por conseguinte, deu-me a impressão de estar
convencido de que, em vez de raciocínio, nós tínhamos somente qualquer qualidade
apropriada para aumentar os nossos vícios naturais, assim como o reflexo dado por um
rio de corrente agitada nos dá a imagem de um corpo disforme, não só de maiores
dimensões como também profundamente alterado.» (234) A segunda passagem tem a
ver com a incapacidade do príncipe em compreender as inúmeras doenças que causamos
a nós mesmos. Leia-se: «Disse-lhe que nos alimentávamos de mil coisas que operavam
de maneira contraditória, que comíamos quando não estávamos com fome, e bebíamos
sem a menor provocação da sede, que nos sentávamos noites inteiras ingerindo licores
fortes, tendo o estômago vazio, o que nos predispunha para a indolência, inflamava os
nossos corpos e precipitava ou impedia a digestão.» (239)

O que está aqui em causa é a incapacidade de o humano ser coerente com a razão, isto é,
de ser racional. A despeito de alguma coisa nos fazer mal, e nós sabermos disso, ou que
nos possa vir a fazer mal, nós não a deixamos de fazer ou de ingerir. Ora, segundo o
ponto de vista da razão isso é absurdo, uma contradição inaceitável. No fundo, estamos
perante aquilo que era o projecto dos estóicos, em que o humano se propunha a agir em
concordância com o que pensava. O estóico é aquilo que pensa. Ou seja, contrariamente
à maioria das pessoas, o estóico sabe que o tabaco faz mal e não fuma, sabe que não se
deve enganar os outros e não engana, sabe que não deve entregar-se às paixões e não se
entrega. Para o estóico o conhecimento faz sentido, isto é, o conhecimento que tem do
mundo e da mecânica do humano fá-lo agir em concordância com esse conhecimento.
Ou seja, o estóico diz «assim devo agir e assim vou agir». Pensamento e vontade unem-
se. É o que mais se aproxima de uma filosofia ética racional.

Evidentemente, também poderíamos falar dos epicuristas. Tanto epicurismo quanto


estoicismo são filosofias de ascese. Mas estas filosofias ascéticas e racionais advinham,
contudo, do conhecimento da mecânica da alma humana. Mais os epicuristas,
evidentemente. Será com Kant, na sua Crítica da Razão Prática que a razão se torna um
mandamento, isto é, um a priori transcendental, a priori do humano, e não uma
consequência do conhecimento da mecânica da alma humana. Ou seja, do mesmo modo
que para houyhnhnms ir contra a razão é uma auto-contradição, assim aparece em Kant.

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Viagens de Gulliver, por Paulo José Miranda

O filósofo que mais nos mostra o ponto de vista deste povo de cavalos é precisamente o
filósofo alemão de Könisgberg. Aquilo que faz com que não sejamos auto-
contraditórios é o que Kant chama imperativo categórico. O imperativo categórico exige
que cada um de nós aja apenas segundo uma máxima que possa ser uma lei universal.
Exercer uma acção contrária a uma máxima universal, isto é, a uma máxima que seja
boa para todos, que não prejudique ninguém, conduz ao absurdo. O exemplo mais
conhecido de Kant é também aquele que podemos encontrar ao longo de toda a quarta
parte do livro de Swift. Pergunta Kant: «Poderia alguém mentir em seu benefício ou de
um ente querido ou em favor de toda a humanidade sem cair em contradição?» A
resposta é: «Não, pois a mentira não pode ser uma máxima universal.» O imperativo
categórico em Kant é uma forma a priori, pura, independente do útil ou do prejudicial. É
uma escolha voluntária racional, por finalidade e não por causalidade. A razão é a
condição a priori da vontade. O humano enquanto ser racional que é não pode ir contra
o imperativo categórico sem que deixe de ser racional. No fundo, Kant descreve o
mundo dos houyhnhnms e não o nosso mundo, que é muito mais próximo dos
laputaneanos e dos yahoos.

Veja-se esta célebre passagem de Swift: «Como estes nobres houyhnhnms são dotados
pela Natureza de uma tendência geral para as virtudes, e não fazem a menor ideia do
que seja o mal numa criatura racional, a sua máxima principal é o cultivo da razão, que
deve governá-los inteiramente. Não obstante, a razão não constitui, entre eles, uma
questão problemática, como entre nós, onde os homens podem arguir com
plausibilidade ambos os lados de uma questão; entre eles a razão é uma convicção
imediata, como deveria sempre ser quando não é deturpada, obscurecida ou descolorida
pela paixão e pelo interesse. Lembro-me que tive a maior dificuldade de explicar ao
meu amo o significado da palavra “opinião”, ou como é que um determinado ponto
pode ser discutido, uma vez que a razão nos ensina a afirmar ou negar somente as coisas
de que estamos absolutamente certos, e não nos é possível tomar quaisquer atitudes nas
questões que ficam além dos nossos conhecimentos.» (252) Esta passagem mostra
claramente esta distinção entre os seres racionais que são os houyhnhnms, tal como na
filosofia prática de Kant, e nós. Por incrível que pareça, há uma passagem ainda mais
pertinente e mais próxima da filosofia de Kant. Leia-se já no capítulo X: «[…] eles não
concebem que uma criatura racional possa ser obrigada, mas sim aconselhada ou
exortada, porque ninguém pode desobedecer à razão sem renunciar ao direito de ser
considerado uma criatura racional.» (265) Ser racional e ter razão não só não são uma e
a mesma coisa como estão a anos-luz de distância.

Ainda nesta senda, leia-se no início do capítulo VII: «Talvez o leitor se admire do
retrato livre que me decidi a fazer da minha própria espécie junto de uma raça de
mortais já predisposta a conceber a mais baixa opinião do género humano, dada a total
identidade entre mim e os seus yahoos. Mas devo francamente confessar que as
inúmeras virtudes daqueles excelentes quadrúpedes – colocados em posição oposta à
das corrupções humanas – me tinham aberto de tal maneira os olhos e esclarecido o meu
entendimento que principiei a analisar, sob uma luz muito diferente, as ações e paixões
do homem, e a pensar que a honra daqueles que pertenciam à minha própria espécie não
merecia muita defesa.» (243)

Quando parece que Swift não pode aumentar mais a parada, que por um lado não
consegue arrasar mais o nosso ponto ilusório e, por outro, abrir-nos mais os olhos, de

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Viagens de Gulliver, por Paulo José Miranda

modo a vermos as coisas com uma luz muito diferente, como Gulliver escreve, eis que
se dá uma aproximação gritante à Alegoria da Caverna de Platão. Que já vinha sendo
anunciada, aqui e ali. Principalmente quando na quarta parte fica clara a oposição entre
opinião e razão. Mas isto ficará para a próxima e última semana.

Veja-se então como se dá a aproximação deste livro de Swift à Alegoria da Caverna de


Platão. Comece-se pela distinção entre opinião e razão (traduza-se assim o ponto de
vista contrário à opinião). Na última parte do livro de Swift, a opinião aparece como
apanágio dos humanos e a razão como apanágio dos houyhnhnms. E este povo de
cavalos não conseguia compreender sequer como era possível existir a opinião. Não
conseguiam compreender porque eram completamente racionais, e segundo a razão não
há lugar para a opinião, tal como na filosofia de Platão. O oposto de pensar é opinião,
doxa. O mundo da doxa é, na verdade, o mundo das sombras, o mundo dos escravos que
vivem acorrentado na caverna, longe da luz do sol, longe do ponto de vista das ideias.
Mas aonde é que em As Viagens de Gulliver se dá essa passagem decisiva para a
alegoria da caverna de Platão? Aonde a podemos identificar claramente?

Começa no final do capítulo X, quando está anunciado o regresso de Gulliver a casa.


Leia-se: «[…] como podia pensar em acabar os meus dias entre yahoos, caindo de novo
nos meus velhos hábitos de corrupção por falta de exemplos que me conduzissem e
mantivessem no caminho da virtude?» Está aqui identificada precisamente a última
parte da Alegoria da Caverna de Platão, a impossibilidade do regresso à caverna por
parte daquele que viu a luz do sol, isto é, aquele que viu a realidade do mundo, a
realidade das coisas e de si mesmo. Em A República, livro VII, entre 514 a-517 d,
Platão introduz a célebre Alegoria da Caverna. Há três momentos fundamentais nesta
alegoria: 1) a descrição da situação dos prisioneiros; 2) a libertação de um dos
prisioneiros; 3) o regresso do prisioneiro à caverna e ao convívio com os outros
prisioneiros.

Veja-se o primeiro momento, que nos configura a situação dos prisioneiros. Eles estão
presos com correntes de tal modo que não se conseguem mover, nem a cabeça, de frente
para uma parede da caverna; no lado oposto da caverna estão instaladas enormes
fogueiras e perto destas há um caminho que liga a caverna à superfície e por onde
passam os habitantes da mesma que detêm os prisioneiros. Este caminho situa-se numa
posição mais alta do que a dos prisioneiros e os habitantes ao passarem no caminho,
devido à luz das fogueiras, projectam as sombras na parede em frente aos prisioneiros.
Aqueles prisioneiros sempre estiveram ali, acorrentados, não conhecem outra realidade
se não as sombras projectadas na parede e o som que escutam por detrás deles. Assim,
eles discutem entre eles as sombras que vêem, prevendo o que se irá passar, analisando
o que se passou, etc.. E há entre eles alguém que consegue fazer isso muito melhor do
que os outros e é invejado ou admirado pelos outros. É esta a situação dos prisioneiros
que, como se vê, não está distante da situação de Gulliver antes de ter encontrado o
povo de cavalos. Gulliver, ele mesmo reconhece, embora por outras palavras, que
sempre viveu numa espécie de caverna, onde o que via e julgava ser a realidade não
passava de sombras.

No segundo momento da Alegoria da Caverna, um dos prisioneiros é libertado, do


mesmo modo que Gulliver ao encontrar aquele povo de cavalos. Ele sobe à superfície e
percebe que as coisas existem e que as sombras são apenas um reflexo da luz. Mais: ele

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Viagens de Gulliver, por Paulo José Miranda

percebe também que as próprias fogueiras (que antes desconhecia) são uma imitação do
sol. Tal como Gulliver, o prisioneiro começa a perceber que sempre viveu nas sombras,
que nunca viu a realidade na vida. Obviamente, isto causa um enorme transtorno,
inicialmente.

O terceiro e último movimento da Alegoria da Caverna é quando o prisioneiro regressa


ao convívio dos outros prisioneiros. Esta parte, em verdade, é o final de As Viagens de
Gulliver, que é algo muito violento, pois os outros prisioneiros pensam que ele
enlouqueceu. Na impossibilidade de poderem imaginar sequer que seja possível que a
sua vida seja sombras e não a realidade, se pudessem matavam o mensageiro. Não
conseguem ouvir o que ele diz, e passam a considerá-lo louco e a rir-se dele. Mas pior
ainda do que a incompreensão por parte dos outros, para Gulliver, é ele não conseguir
mais conviver com eles. Gulliver tinha feito uma viagem ao sol, uma viagem ao que
seria viver segundo a razão.

No penúltimo capítulo do livro, o XI da quarta parte, lê-se: «[…] a minha memória e a


minha imaginação estavam constantemente repletas das virtudes e ideias dos gloriosos
houyhnhnms. E quando principiei a pensar que copulando com uma Yahoo me tinha
transformado em progenitor de outro yahoo, senti-me profundamente envergonhado,
confuso e horrorizado.» (274) Curiosamente esta passagem também vai ao encontro de
uma passagem de Nietzsche acerca do casamento em Assim Falou Zaratustra. Não cabe
aqui ler essa passagem, mas ela está ligada à ideia de que o casamento só deve
acontecer se for para criar um super-homem, isto é, alguém acima deste mundo de
yahoos. A não ser assim, o melhor é não procriar de todo. Quem queira conferir, a longa
passagem encontra-se na parte do livro que tem o subtítulo de «Os Discursos de
Zaratustra – Das Três Metamorfoses» no capítulo chamado «Dos filhos e do
casamento».

Tenho a noção de que estive muito longe de fazer uma leitura exaustiva acerca de As
Viagens de Gulliver. Mas julgo ter conseguido mostrar algumas das linhas gerais que
considero mais pertinentes, apesar de muito ter ficado por mostrar, evidentemente, e
como não poderia deixar de ser numa obra tão extensa, tão rica e complexa.
Principalmente as inúmeras passagens de ironia e crítica política e social.

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