Você está na página 1de 4

AS VANTAGENS DE APRENDER

Aproveito a insónia para ler o “Peregrino em Paris”, de Italo Calvino, volume póstumo que,
entre outras curiosidades, compila as cartas onde o autor italiano relatou a sua errância
pelos States, durante seis meses, em companhia de Arrabal (de quem faz um retrato
caricato) e de Hugo Claus (cuja consistência admirou).
Só em S. Francisco ele tem um “encontro” que o fascina e lhe provoca o entusiasmo. Foi
com Kenneth Rexroth, sobre quem escreve: «Decerto é a pessoa mais notável que
encontrei na América; não o conheço como poeta (escreveu uns vinte livros de poesia e
diversos livros de crítica, além de muitas traduções de clássicos japoneses e poetas) mas
como homem impressionou-me muito.»
O que me deixou com vontade de reler o poeta. De facto, Kenneth Rexroth (1905-1982) é
uma personalidade que impressiona pelas suas múltiplas e omnívoras facetas, a começar
pelo seu intratável penteado. Não há modo de descrever sucintamente alguém que foi
anglicano e católico, comunista, anarquista, pacifista (objector de consciência na II Guerra
Mundial e ajudou muitos japoneses confinados) e budista; pintor, ensaísta, colunista,
professor, dramaturgo; casamenteiro e mulherengo; conhecedor profundo de jazz e de
literatura clássica grega, chinesa e japonesa; tradutor, agitador cultural e, finalmente,
padrinho generoso de novos poetas. Foi ele o anfitrião na emblemática noite de 7 de
outubro de 1955, tida como a do nascimento oficial do Movimento Beat, na qual Allen
Ginsberg recitou o poema Howl. Mas, aqui para nós, Rexroth, que pugnava por uma poesia
rente à respiração da fala, rapidamente achou que Kerouc não passava de um hipster
momentaneamente na moda e creio que é um astro poético de maior dimensão que
Ginsberg (, aliás, dele escreveria Milosz: «ele gabava-se, mentia, trapaceava, rezava,
praticava a poligamia, traía as suas quatro esposas, embora acreditasse na sacralidade do
casamento; era paranóico com seus amigos. No entanto, para mim ele era, acima de tudo,
um esplêndido poeta e um tradutor maravilhoso de poesia chinesa e japonesa») à altura de
William Carlos Williams ou W. H. Auden. Aqui deixo as versões de poemas seus com que
desanuviei a insónia
Um límpido poema existencial: AS VANTAGENS DE APRENDER Foi
tudo para o ralo, as ambições,/ A maior parte dos amigos; tão inapto/ Para
ganhar a vida como para não deixar que aconteça/ Esta decadência
galopante, este ar abandalhado,/ De quem sempre preferiu fugir a lutar/
Contra a maldição – que importa?/ É meia-noite, sirvo-me de uma taça de
vinho branco/ quente e de sementes de cardamomo./ Depois, num esfiapado
robe cinzento e/ Com a minha puída boina, sento-me ao frio a escrever/
Poemas, a desenhar nus nas margens enrugadas/ E a copular com
imaginárias garotas/ Ninfomaníacas de dezasseis anos.
Dois poemas de amor: SOMENTE ALGUNS ANOS Volto ao chalé no/
Canyon de Santa Mónica onde/ Andrée e eu éramos pobres e/ Felizes. Às
vezes chegava-nos A fome e rapinávamos verduras/ Nos quintais vizinhos,
doutras vezes/ Varríamos o escuro com a lanterna/ No rasto das beatas./ Mas
nadávamos todos os dias,/ O ano inteiro. E tínhamos um cão,/ Um rafeiro
grande e/ amarelo chamado Proclus,/ E um gato branco, o Cyprian. /
Fizemos então a nossa primeira / Mostra de arte juntos, e começavam / A sair
os meus poemas em Paris./ Trabalhávamos sob as baixas ramagens/ Da
acácia, no jardim da frente./ Agora, saio do carro/ E paro defronte da casa
ao lusco-fusco./ A florida acácia polvilha o caminho/ Com pequenas pílulas
de lã dourada./O aroma é denso e pesado/ Neste início da noite. Espantoso,/A
árvore galgou duas vezes a altura/ Do telhado. Dentro, um velho/ E uma
mulher sentam-se à luz do lampião./ Torno ao carro e enfio-me estrada fora
rumo/ À praia de Malibu, onde me espera / Um amigo de infância de cabelos
já grisalhos./ Contemplamos a lua cheia que desponta sobre/ As longas e
enrugadas ondas da baía escura.
O TEU ANIVERSÁRIO NAS MONTANHAS DA CALIFÓRNIA A lua
tremula nos requebros da água fria/ E gansos selvagens gritam no céu./ A
fumaça dos acampamentos eleva-se/ E divaga na geometria do firmamento/—
Pontos de luz num negrume infinito./ Eu observo por entre a nesga das
árvores/
O vai e vem da tua penumbra ao redor do fogo./ Um marreco grasna alto no
lago e amarra-se à noite./ E então o mundo estaca, silente, nesse/ Gotejar do
outono que aguarda/ A chegada do inverno. Junto-me/ Ao halo de luz da
fogueira, levo-te/ O espeto com trutas para o nosso jantar./ Enquanto
comemos, na borda sussurrante do lago,/ Digo-te, “daqui a muitos anos
lembrar-nos-emos/ Desta noite e conversaremos sobre ela.” Muita água/
Passou entretanto debaixo das pontes,/ Muitos lustros se passaram. Lembro-
me/ Daquela noite como se fosse ontem,/ Embora tu estejas morta vai para
trinta anos.
Um poema descritivo: A DELGADA LINHA DO TEU ORGULHO, IX Ao
fim de uma hora/ Aquela amálgama de neve entre as luzes, / Suavizou-se e
amaciou o emaranhado das linhas/ Bicudas dos ramos nus, recortando-o/
Contra o crepúsculo gelado./ Agora, nas minhas costas, na pálida/ Extensão
da avenida vazia,/ A neve reclama uma por uma –/ Desde a mirada fixa e
obscura/ Dos vitrais -, nada mais do que/ Essa linha de pegadas.
Um triste retrato de geração: ENTRE DUAS GUERRAS Lembras-te
certamente daquele pequeno-almoço:/ Das uvas pretas e frescas que
cheiravam vagamente/ À cortiça da embalagem, os pãezinhos quentes/ E
muito brancos, o chocolate espesso/ Com sabor a mel?/ E as festas noturnas;
o gin e os tangos?/
As fitas de cabelo desfeitas, os botões/ De punho desirmanados?/ Em que se
tornaram essas esplêndidas/ Raparigas, as horas sem rumo?/ Diziam-nos
perdidos, inconscientes, imorais,/ Que nós atrapalhávamos os planos do
Poder.
E eis-nos hoje, milhões de emparedados vivos/ Que tamborilam nas lajes de
seus túmulos/ E se escondem nas arruinadas catacumbas, brigando/ Pela sua
própria carne mutilada.

Você também pode gostar