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A prova da natureza de Putin

pelos seus efeitos
Atentem aos nossos “putinistas” caseiros de esquerda e de direita e
verificarão que, com toda a probabilidade, são os mesmos que militam, com
graus de radicalidade variável, pela extinção de
Israel.

24 mar 2022, 07:1855 , Paulo Tunhas


 

A 11 de Março, Charles Moore publicou um artigo no Daily


Telegraph onde se referia ao facto de a simpatia por Putin não ser o
exclusivo, em Inglaterra, da gente que, na linhagem de Jeremy Corbyn,
representa a esquerda radical. Com efeito, explicava ele, muita gente
de direita diz aqui e ali coisas como “Pelo menos Putin defende o seu
próprio povo”, “Putin é um cristão a sério” ou ainda “A culpa é nossa
por humilharmos a Rússia”. Opiniões destas, aos olhos de Charles
Moore, testemunham uma incompreensão não só de Putin como,
talvez com mais gravidade, dos sucessos e dos méritos das
democracias ocidentais. Como tantas vezes, apanhei-me a concordar
em pleno com o que ele diz.

É que em Portugal observo exactamente a mesma coisa. O que não


falta por aí é gente, desarticulada dos partidos, mas aparentemente de
“direita”, que não cala admirações surtidas por Putin ou ostenta, mais
geralmente, uma indiferença soberana pela invasão da Ucrânia. Esse
tipo de atitude é sem dúvida ditada por vários factores: a pura e
simples fascinação pela “virilidade” do poder bruto, a persistência de
um anti-americanismo primário que está longe de ser património
exclusivo da esquerda, a reacção contra a wokeness generalizada que
permeia as nossas sociedades, a insensibilidade ao idealismo que é
estruturante das causas democráticas e, mais genericamente, a
tendência para pensar que devemos é preocupar-nos connosco e com
o preço das botijas de gás e não nos metermos em aventuras que não
nos dizem em nada respeito.

Este tipo de admiração, por mais que exiba uma colossal abdicação do
juízo político, tem, à sua maneira, uma razão de ser, e uma razão de
ser que tem origem no próprio Putin. Como muita gente, pus-me em
tempos recentes a ler livros sobre o homem. Li o “Dentro da cabeça de
Putin” (2015), de Michel Eltchaninoff, e o “Precisamos de falar sobre
Putin” (2019), de Mark Galeotti, e tentei ler também “A gente de Putin”,
de Catherine Belton (2020), mas abandonei-o depressa porque não
tenho miolos para seguir a complexidade das teias de influência que
habitam o poder do Kremlin. Em todo o caso, se há coisa que
Eltchaninoff e Galeotti nos mostram indisputavelmente é que as mais
de duas décadas de poder de Putin reproduzem em poucos anos todos
os movimentos seculares da história russa, oscilando entre a
aproximação ao Ocidente e o afastamento deste, uma oscilação na
qual uma única coisa subsiste como comum fio condutor: a ideia da
grandeza imperial da Rússia, seja ela a Rússia czarista, a soviética ou a
contemporânea. Isso permite a Putin tanto celebrar Kant – e o Tratado
da paz perpétua! – como património comum da Alemanha e da Rússia
(por Königsberg ser hoje Kaliningrado), como defender a
irredutibilidade da maneira de pensar russa à maneira de pensar
ocidental.

Hannah Arendt escreveu celebremente uma vez que personagens


como Hitler ou Estaline não tinham biografia. Num sentido banal, a
proposição é inteiramente falsa, e a prova empírica disso é que há
muitas e boas biografias deles. Mas suponho que o que ela
verdadeiramente queria dizer é que eles não tinham, de facto,
biografias intelectuais. A relações de ambos com as suas ideias eram
de tipo puramente alucinatório ou de natureza completamente
instrumental. Não havia neles aquele comprometimento com as ideias
que convive com uma distância para com elas que impede a sua
confusão com a realidade que caracteriza uma cabeça humana
normal, seja a do homem comum, do político ou do filósofo. É nesse
sentido que Arendt podia dizer que eles não tinham biografia.
O mesmo vale para Putin. E inútil procurar dentro daquela cabeça
uma forma mental mais ou menos claramente definida, quanto mais
uma “filosofia”. Há ali de tudo, num magma informe apenas unificado
pelo desejo do poder. Ora, será que isso o torna verdadeiramente
incompreensível, uma mente insondável, um mistério irresolúvel?
Não, de forma alguma. Há uma maneira de, na medida do possível, o
conseguirmos entender: através dos efeitos que ele produz na cabeça
dos seus admiradores, tanto de esquerda como de direita. Os efeitos
são confusos, é verdade, mas essa mesma confusão é elucidativa. O
seu denominador comum é o desprezo e o ódio pela democracia, que
se manifesta de formas diferentes e distinta retórica consoante os
indivíduos. Perceber essa gente toda, nos acordos dos seus pontos de
vista – eles entre-exprimem-se, como diria um filósofo, espelham-se
uns aos outros -, é perceber o universo de Putin.

Há, de resto, um outro caso, muito conhecido, em que os mesmos


espíritos estão de acordo: Israel. Atentem aos nossos “putinistas”
caseiros de esquerda e de direita e verificarão que, com toda a
probabilidade, são os mesmos que militam, com graus de radicalidade
variável, pela extinção de Israel. E o motivo é exactamente o mesmo: o
desprezo e o ódio pela democracia. Com efeito, se há coisa de que
estou convencido desde há muito, muito tempo, é que Israel precipita
o ódio à democracia que habita muitas franjas da nossa sociedade. É,
por assim dizer, um laboratório onde esse ódio se exercita. Os actuais
enlevos por Putin são uma outra manifestação da mesma paixão

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