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GODARD E O DEUS PREGUIÇOSO

18/09/22
Chove copiosamente em Maputo, como se de um modo espasmódico mil florestas
procurassem o seu unicórnio.
Leio num café, espero que a coisa abrande. Um ardina entra em passo de corrida,
refugia-se, metade dos jornais estão uma papa. E então impinge-me um, “para
compensar o prejuízo…”: pede. Cedo, compro o “Savana”, o mais antigo semanário da
terra.
E logo na página dois, no artigo intitulado, “Nyusi acerta posições”, leio, sobre as
eleições dos membros para o Comité Central, ao nível das províncias:
«Em muitas províncias, os documentos de alguns candidatos desapareceram dos
processos submetidos às comissões eleitorais e a maioria deles só foi notificada nas
vésperas da votação, facto que não abriu espaço para a regularização da situação.
Na província de Gaza, por exemplo, os candidatos que foram confrontados com a falta
de documentos nos seus processos, apresentaram provas, através de duplicados, que
não havia nenhuma irregularidade na documentação, mas a comissão eleitoral não
aceitou receber as suas reclamações. Desesperados, estes levaram o caso para o chefe
da brigada central destacada para Gaza, liderada por Tomás Salomão. Este, por sua
vez, ordenou a reverificação dos processos e constatou-se que estava tudo legal e que
os excluídos poderiam concorrer.
No entanto, antes da votação, no intervalo, estes foram coagidos a desistir da corrida,
facto que veio confirmar-se.
Em algumas situações, as manipulações e manobras para o afastamento de candidatos
incómodos e não alinhados foram lideradas pelos próprios secretários dos comités
provinciais.
A compra de votos foi a outra estratégia usada para a conquista do voto».
O problema da liberdade é que são mil florestas a correr afogueadas na perseguição de
um unicórnio. Pode parecer uma ilusão, mesmo antes de cansar. O problema da
democracia é que são mil florestas desgrenhadas à procura de um pente, fora a
dignidade dos carecas, que, em protesto contínuo, incessante, bufam.
Chove lá fora. A rodos. A temperatura baixou uns oito graus, de ontem para hoje. Ao
fim de dezoito anos em Moçambique já nem lamento que não se queira aprender com os
erros, que se delapidem gerações com o embuste, que todos os filhos da burguesia que
vão estudar para fora não queiram voltar. A acção dos “insurrectos”, ao norte, alastrou
para Nampula ao norte, mas não se tiram ilações, a causa-efeito não existe para a
mentalidade da política local. Desde que haja dinheiro para se comprar os votos tudo se
adia, tudo se vai empurrando com a barriga, como aqui se diz!
Não admira que a invasão da Ucrânia nunca tenha conhecido por estes lados qualquer
nota de repúdio. Se eles lá também comprarão os votos dos referendos nas regiões
“conquistadas”!
19/09/22
Revejo o “Week-End”, do Godard, de 1967, o último filme da primeira fase do
cineasta.
Em “Week-End” retratam-se os escroques, são personagens que claramente Godard
detesta, a nata mais perversa e venal da burguesia, cujo consumismo antecipa um
apocalipse sem remissão. Ao casal de protagonistas só move o instinto sórdido de
apressarem a morte da mãe dela, para se apoderarem da herança. E cada um deles tem
um amante, com quem combina ficar depois de se apoderarem do dinheiro. Filme
inclemente, é como um libelo cruel (foi aqui que chegámos: agora aguentem!) que
expõe o triunfo dos porcos; aliás, simultaneamente, assistimos ao massacre programado
e dantesco dos porcos, em nome do progresso, ou com o apelo ao assassinato simbólico
e o canibalismo, que no final do filme se torna literal.
Só os dez minutos a retratar a insanidade do engarrafamento na estrada vale o filme,
onde em cada esquina há mortos e feridos e carros virados ou incendiados sob o olhar
indiferente dos que estão em trânsito. Está-se já para lá do trauma de uma guerra civil,
na sobrevivência agónica de quem vive a distopia e acorda em si o predador. É uma
parábola sobre o Inferno interiorizado e climatizado, «um filme encontrado num ferro-
velho», diz uma legenda ao princípio», e onde o Mozart é agora música para pasto (ou
seja, estrume), para vacas e galinhas.
Do ponto de vista formal é uma “desgarrada” menos dominada do que “Pierrot le Fou”,
de 1965, e repete-lhe muitos dos processos, mas politicamente “Week-End” é de uma
ferocidade inigual. Todo o desnorte moral e ideológico dos movimentos radicais de
guerrilha urbana que hoje conhecemos está escancarado nesta comédia negríssima, com
uma presciência e truculência buñuelianas.
O que é “divertido”, em revendo-se o filme, para além do seu carácter profético, é
imaginar como hoje seria objecto de polémica e de censura: a insídia dos seus temas
“politicamente incorrectos” é superada em muito pelo despudorado “abjeccionismo”
dos comportamentos.
Diz Corinne/Mireille Darc ao amante, sobre o marido: «Eu de vez em quando fodo com
ele e então o coitado julga que o amo!», e a pedido daquele (que também se quer
excitar) conta-lhe durante dez minutos uma cena de orgia em que participou (cena
extraída a um romance de Bataille): «Paul ficou de joelhos para me lamber o cu, não
foi desagradável, o sexo molhado de Monique palpitava contra a minha nuca, os seus
pentelhos misturados ao meu cabelo. E tive que descrever-lhes o que que sentia, para
excitá-los. Ela beijou-me o sexo. Depois masturbamo-nos os três e Paul começou a
gritar: “Para a cozinha, bebês!”. Na cozinha pediu-me para subir para o lavatório, foi
buscar um ovo ao frigorífico, partiu-o e escorreu-o sobre a minha vulva …». E Corinne
descreve como se excita partindo os ovos que contrai entre as nádegas, para depois
sentir a clara fria no seu sexo. E imaginamos nós as vozes puritanas que se levantariam
contra o genocídio dos pintainhos!
Imensamente divertido é também o Anjo Exterminador (assim é designado) que os
sequestra para lhe darem uma boleia (forçada) e que, entre os tiros com que vai
eliminando alguns “escolhos” na paisagem, se apresenta deste modo deliciosamente
herético: “Eu sou Deus, porque sou preguiçoso!”.

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