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DA VIDA COMO BRASA

Serei o único nababo que ao acender o cachimbo, macia e estultamente, se


queima?
Muito mais do que eu, o Pasolini há-de ter esmaltado com o lume algumas
estrias nos dedos imprevidentes porque não há dúvida que a vida lhe esteve
sempre em brasa, que o seu sopro nunca deixou esfriar o escândalo, que o
vento nele era uma liga de fogo «num ventre vivo».
Lê-se este livro póstumo de Pasolini, editado pela Barco Bêbado, e percebe-
se porque, sinaliza-o Claudio Magris num artigo em que os compara, Montale
se irritava com ele.
Pasolini e Montale representam os dois pólos da atitude face à escrita e à
vida. Um apostava numa escrita impessoal e era céptico quanto ao poder que
a poesia lograsse para mudar a vida; aliás à própria vida não atribuía mais do
que uns 5% de presença e convicção. Pasolini, pelo contrário, era da
linhagem de Rimbaud, vivia a 120% do seu potencial e a escrita nele só tinha
sentido como operador da mudança. Mesmo eivada de contradições e do
vestígio das derrocadas que a existência arma, a poesia era-lhe um modo
expedito de fazer respirar a acção que urde uma moral focalizada pelo
dissídio, ou na razão poética e anti-burguesa.
A poesia é, para o autor de “Poesia in Forma di Rosa”, esse pleito onde a
consciência acede à sua própria percepção e restaura a contigência duma voz
(de um rosto) exumada pela sua inscrição política. Ademais, ele tinha uma
vocação plectórica que o fazia tocar vários carrinhos: poeta, contador de
histórias, dramaturgo, cineasta, romancista, cronista político, ensaísta, e,
provocatoriamente, gostava de fazer de “ponto” intrometido e desarvorado
no palco de todas as revoluções. Este “Who is me – Poeta delle Ceneri”
(Poeta das cinzas), bem o demonstra.
Um dia, cinco anos depois do seu assasinato, Enzo Siciliano, o autor de uma
das suas biografias, descobriu o rascunho deste longo “poema
biobibliográfico”, e, apesar de não estar acabado, considerou que à obra
incabada não faltava o ímpeto que merecia a publicação.
Tinha razão, o poema tem nervo e no seu modo digressivo, “reticulado” (um
bom achado da posfaciadora, Rosa Maria Martelo, para falar do mecanismo
desta escrita) faz uma espécie de panorâmica sobre a vida, com flexões
desde a infância, às ilusões revolucionárias e à justificativa de passar da
poesia para o cinema (o filme “Teorema” tem no poema uma boa e alentada
sinopse), numa fluência em que as modulações reflexivas, as concretíssimas
pinceladas campestres, a trama dos amores e das perseguições judiciais que
aí se desencadearam (Pasolini foi alvo de vários processos), a discussão sobre
as formas estéticas e os valores morais, se enredam numa textura verbal
sempre à beira de pegar fogo. Porque este é um homem de um realismo
iracundo que conversa interpelando o leitor, nesse tu cá, tu lá, que fazia dos
poemas de Pasolini um pensamento coral.
Não tinha razão Montale quando acusava Pasolini de um excesso de pathos,
como se erguesse um ego contra o mundo; na verdade, para o poeta rival,
como prevenia Deleuze, «Escrever não é contar as lembranças, as viagens, os
amores, os lutos, sonhos e fantasmas. Ninguém escreve com as suas
neuroses. (...) A literatura só se afirma se descobre sob as aparentes pessoas
a potência de um impessoal.»
É neste sentido que o emocionado Moravia, nas exéquias de Pasolini, falou
da enorme perda de um “poeta civil” – exactamente no mesmo sentido com
que Pound definia o “poeta como antena da raça”. Pasolini usava a sua vida,
narrava-a, como quem encarna o modo coral da sua época e do tecido social
que ele sentia em perda.
Este poema de trinta páginas, que faz o balanço de «um peixe fora da rede»,
chega a ser brutal na análise e na auto-derrisão dos factos narrados, quer na
relação com o pai, sempre ambivalente no ódio e na compaixão, quer na
traição dos camaradas comunistas, aburguesados, que chegaram a matar-lhe
o irmão por fanatismo de facção, quer na própria relação de artista com o
seu público («A burguesia italiana, a verdadeira, a/ que compõe
verdadeiramente a Itália/ experimentou um ódio profundo por aquele mundo
subproletário:/ o ódio pela diversidade/ um ódio indistinto e global por mim e
pelas minhas personagens./ Com o meu primeiro filme, que se intitula
“Accattone”, /aquele ódio transformou-se num verdadeiro e real sintoma de
racismo.», pág. 21).
Nada escapa à lucidez e ao crivo do poeta (que na altura da escrita do poema
viajava pela América e era alvo de processos judiciais contra a iconoclastia de
“La Ricotta”).
E, antecipando-se ao seu tempo, o poema apontava o dedo à biopolítica que
corrompia pela base as alternativas existenciais e políticas e anteviu os
perigos da massificação das massas («Caros cidadãos, não pacifistas, e não
espiritualistas, /ou seja, a enorme maioria bem-pensante,/ o vosso deus é um
idiota/ como qualquer cidadão médio/ que deseja com todas as suas forças e
com todo o seu espírito/ ser como todos os outros (...)», pág. 22).
Expressivamente, Pasolini reclama uma alocução directa que diz preferir às
volutas do estilo: «Também este caso te contei/ num estilo não poético/ para
que não me lesses como se lê um poeta. / Assim decaiu a estima pela poesia,
típica/ das infâncias que acreditam no eterno...» (pág. 29), mas esta é uma
meia-verdade, pois como o poeta lembra na página seguinte: «Apenas o
amor por aquela língua do não-eu, que se exprime/ com igual direito, igual
força do eu/ dá ao poeta/ a capacidade.» (vês, Montale?). Daí que ao fim de
trinta páginas deste aluvião ou ossário afinal polposo o leitor se sinta
agarrado – e também por força do bom ritmo com que a tradutora, Ana
Isabel Soares, soube dotar o texto.
«E hoje, dir-vos-ei, não é só preciso comprometer-se com o escrever, / mas
com o viver:» é isto, nem mais.

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