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“ASSIM É A VIDA CHARLIE BROWN!

”: REVELADA A IDENTIDADE DISCURSIVA DO PROFESSOR


NAS TIRINHAS DE SNOOPY DE CHARLES SCHULZ – POR UMA PROBLEMATIZAÇÃO DAS
IMAGENS DISCURSIVAS NO CAMPO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES1

Alex Caldas Simões2

Considerações iniciais

As recentes pesquisas na área da linguagem, em especial no campo de formação de


professores dentro da Lingüística Aplicada, têm indicado que novas identidades sociais tem se
formando (ROJO, 2006, BOHN, 2005; FABRÍCIO, 2006). Nesse contexto moderno/pós-moderno –
conflituoso, fluido, imerso em uma constante ação de desintegração e mudança, e envolto em um
novo dinamismo social (BERMAN, 2007; HALL, 2004; GIDDENS, 2007) – há, como explicita Stuart
Hall, uma crise de identidade do sujeito, uma vez que “uma mudança estrutural está fragmentando
as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade” (2004, p. 9).
Esse novo cenário estrutural tem levado a formação de um sujeito diferente, fragmentado:
“composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não
resolvidas” (HALL, 2004, p. 12). Estas identidades, portanto, não são fixas ou permanentes;
alteram-se de acordo com os diferentes momentos históricos-sociais vividos por cada indivíduo ou
sociedade. Dessa forma, nos cabe perguntar em relação ao campo educacional: que identidades o
professor tem construído nesse novo contexto? Como tais imagens tem se perpetuado? Que
implicações essas identidades formadas e/ou divulgadas pela mídia provocam no ensino e na área
de formação de professores como um todo?
Tendo em mente essas angustiantes questões do cenário moderno/pós-moderno e de
pesquisa, procuraremos em nossa exposição refletir sobre a identidade do professor nas tirinhas
de Snoopy de Charles Schulz (1922-2000). Com este corpus de analise apresentaremos, então, as
imagens discursivas formadas (ethos) – advindas das proposições teóricas de Dominique
Maingueneau (2005, 2008) e de Ruth Amossy (2005a, 2005b). Dessa forma procuraremos discutir
nessa ordem: (a) Os conceitos de Ethos e de Cena enunciativa que nortearão este trabalho; (b) as
analises das tirinhas de Snoopy de Charles Schulz que retratam o professor; e (c) a algumas
considerações e implicações dessas imagens midiáticas formadas para o campo de formação de
professores.

Conceituando ethos discursivo e cena enunciativa

1
Sou grato aqui a professora Ana Maria Ferreira Barcelos pelas considerações realizadas a este trabalho, que
foi objeto de apreciação em sua disciplina de mestrado cursada por mim durante o ano de 2009 na
Universidade Federal de Viçosa (UFV).
2
Mestre em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV – bolsista CAPES/REUNI). Email:
axbr1@yahoo.com.br
A noção teórica de ethos é antiga e, segundo Maingueneau (1988), tal conceito retoma a
Grécia antiga – época em que Aristóteles (1378a) entendia que tal noção era uma imagem
discursiva que colaborava na legitimação argumentativa de um discurso qualquer. O ethos – que
constituía o “caráter do orador ou imagens de si que este apresenta no seu discurso para obter a
adesão do outro” (MENEZES, 2006, p. 90-91) – era considerado juntamente com o pathos – que
correspondia “a adesão do outro, as paixões e os sentimentos que propiciam a felicidade do ato
discursivo” (MENEZES, 2006, p. 90-91) – e o logos – que representava a racionalidade persuasiva
de um discurso (Menezes, 2006) – uma das provas retóricas que compunham qualquer
argumentação possível na língua.
A história do conceito de ethos, portanto, foi reformulada ora pelo campo da
argumentação, ora pelo campo da Análise do Discurso. Cabe destacar aqui, conforme indica
Maingueneau (1988), que esta noção foi reformulada por Oswald Ducrot (1984) 3 em seu quadro
pragmático de linguagem: “[e]m termos mais pragmáticos, dir-se-ia que o ethos se desdobra no
registro do „mostrado‟ e, eventualmente, no do „dito‟. Sua eficácia decorre do fato de que envolve
de alguma forma a enunciação sem ser explicitado no enunciado” (MAINGUENEAU, 2005, p.70).
Maingueneau (2005, 2008), ainda explicita, citando Ducrot (1984) 4, que o ethos está ligado
a figura do “locutor L”5 – ou seja, aquele locutor que é a fonte da enunciação e que possui uma
série de características que tornam essa enunciação aceitável ou recusável. Ao retomar os estudos
pragmáticos de ethos, o autor (2005, 2008) afirma: “[...] o ethos se mostra, ele não é dito.”
Após esta reformulação o próprio Maingueneau, no início dos anos 1980 – 19846 e 19877 –,
propôs a sua análise do ethos inserida em uma teoria de Análise do Discurso. Para Maingueneau
(2005, 2008), portanto, todo discurso (oral ou escrito) pressupõe um ethos.
Cabe aqui, antes de evidenciarmos as proposições teóricas-metodológicas de Maingueneau
que nortearão a nossa análise, apresentarmos as noções de ethos de Ruth Amossy (2005a e
2005b), uma vez que estas são, em parte, recuperadas por Maingueneau em sua teoria. Para
autora (2005a), portanto, relembrando Roland Barthes8, o ethos se define pelos

traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco


importando sua sinceridade) para causar boa impressão: é o seu jeito [...] O
orador enuncia uma informação e ao mesmo tempo diz: sou isto, não sou
aquilo. O autor [Barthes] retoma assim as idéias de Aristóteles, que
afirmava em sua Retórica: „é [...] ao caráter moral que o discurso deve, eu
diria, quase todo seu poder de persuasão (AMOSSY, 2005a, p. 10).

3
DUCROT, Oswald. Le dire et le dit. Paris: Minuit, 1984.
4
DUCROT, Oswald. Le dire et le dit. Paris: Minuit, 1984.
5
Locutor, segundo Ducrot (1984), citado por Eduardo Guimarães, representa o EU. O locutor é responsável
pela enunciação que vai estar no enunciado. Ele se divide em “Locutor L” e “Locutor l”. O primeiro, “é o que se
representa como fonte do dizer” (GUIMARÃES, 1995, p. 60); e o segundo, é o locutor-enquanto-pessoa-no-
mundo” (GUIMARÃES, 1995, p. 60).
6
MAINGUENEAU, Dominique. Genèses du discours. Liège-Bruxelles: Mardaga, 1984.
7
MAINGUENEAU, Dominique. Nouvelles tendances em analyse du discurs. Paris: Hachette, 1987.
8
BARTHES, Roland. L‟ancienne rhétorique. Aide-mémoire. In: Communications, n.16, 1970.
Com isso Amossy (2005b) enuncia que o ethos é uma construção tanto linguageira
(discursiva) quanto institucional (social). Dessa forma, o estudo do ethos deve se pautar em um
estudo da interlocução “que leva em conta os participantes, o cenário e o objetivo da troca verbal”
(AMOSSY, 2005b, p. 124) – como irá desenvolver muito bem em sua teoria Maingueneau.
A autora (2005b, p. 125) ainda postula o conceito de ethos-prévio – chamado por
Maingueneau de ethos pré-discursivo – que corresponde a um ethos que precede a construção da
imagem no discurso:

[n]o momento em que toma a palavra, o orador 9 faz uma idéia de seu
auditório e da maneira pela qual será percebido; avalia o impacto sobre seu
discurso atual e trabalha para confirmar sua imagem, para reelaborá-la ou
transformá-la e produzir uma impressão conforme às exigências de seu
projeto argumentativo (AMOSSY, 2005b, p. 125).

Amossy (2005b) em seu projeto teórico ainda esboça a idéia de estereótipo (ou
estereotipagem), que desempenha um papel fundamental na constituição do ethos discursivo.
Para a autora (2005b), portanto, a construção do ethos-prévio e do ethos dependem que estes
sejam assumidos por uma doxa 10, ou seja, que se “indexem em representações partilhadas.”
Afinal, será esta representação cultural pré-existente que será buscada pelo orador no momento
de sua enunciação para melhor argumentar.
Tendo em mente tais preceitos, podemos analisar agora as proposições teóricas de
Maingueneau com maior clareza. Para o autor (2005) qualquer discurso, como já dito, possui um
ethos discursivo formado por uma vocalidade específica. Essa vocalidade específica do discurso
evidência uma fonte enunciativa, “[...] por meio de um tom que indica quem o disse [...]” (2005, p.
72). Existindo uma vocalidade, portanto, segundo o autor (2005), também existe um corpo do
enunciador – que, cabe ressaltar, não é o corpo real do autor. Com isso queremos dizer que um
orador qualquer ao enunciar constrói um corpo de enunciador que por um tom específico
evidência uma vocalidade também específica. Assim, conforme indica Maingueneau (2005, p. 72),
a noção tradicional de ethos recobre não só a dimensão vocal, mas também “um conjunto de
determinações físicas e psíquicas atribuídas pelas representações coletivas à personagem do
orador.”
O corpo do enunciador, o fiador 11, então, é composto por um “caráter” – que corresponde
“a um feixe de traços psicológicos” (MAINGUENEAU, 2005, p. 72) – e por uma “corporalidade” –
que corresponde ao um estado de compleição corporal, a uma maneira de vestir-se e de mover-se
no espaço social (MAINGUENEAU, 2005) – que se constroem com base em estereótipos sociais.

9
Amossy (2005b) considera orador como o enunciador (ou locutor). O mesmo vale para o termo auditório:
que representa para a autora o alocutário.
10
Para Amossy (2005b, p. 125) doxa corresponde ao “saber prévio que o auditório possui sobre o orador.”
11
O fiador, segundo Maingueneau (2005, p. 72) é uma figura que o leitor “deve construir com base em
indícios textuais de diversas ordens.”
Ao considerarmos que todo discurso provém de uma cena de enunciação 12, temos,
segundo Maingueneau (2005), que a figura do ethos não é somente um meio de persuasão, mas
também é parte da cena enunciativa. Em resumo, então, podemos dizer que

como o enunciador se dá pelo tom de um fiador associado a uma dinâmica


corporal, o leitor não decodifica seu sentido, ele participa „fisicamente‟ do
mesmo mundo do fiador. O co-enunciador captado pelo ethos, envolvente
e invisível, de um discurso, faz mais do que decifrar conteúdos. Ele é
implicado em sua cenografia, participa de uma esfera na qual pode
reencontrar um enunciado que, pela vocalidade de sua fala, é construído
como fiador do mundo representado (MAINGUENEAU, 2005, p. 90).

Com isso, o leitor é incorporado definitivamente na cena enunciativa, e, através de uma


percepção complexa advinda do material lingüístico e do ambiente, este formula o ethos
discursivo efetivo. Esse ethos, portanto, é o resultado de uma interação complexa entre vários
elementos: o ethos pré-discursivo, o ethos discursivo mostrado e o ethos discursivo dito13 (cf.
Diagrama 1).

(Diagrama 1 – Ethos discursivo efetivo. In: MAINGUENEAU, 2008, p. 19 – adaptado)

12
A cena de enunciação é composta por 3 cenas: i) a cena englobante, que corresponde ao tipo de discurso
(ex: político, religioso) (Maingueneau, 2005); a cena genérica, que corresponde a um contrato associado a um
gênero discursivo (Maingueneau, 2005); e iii) a cenografia, que corresponde a uma construção própria
daquele texto (Maingueneau, 2005).
13
A diferença entre o “ethos dito” e o “ethos mostrado”, segundo Maingueneau (2008) é muito tênue e muitas
vezes é impossível distingui-los; o mesmo vale para o “ethos pré-discursivo” e o “ethos discursivo”.
Sobre as tirinhas de Snoopy

A fim de contextualizarmos a tirinha de Charles Schulz (1922-2000) para maior


entendimento da seção posterior, discorrermos aqui, brevemente, sobre a história da tirinha de
Snoopy e seus principais personagens. A tira Snoopy, segundo Charles Schulz (2007), foi a mais
popular do mundo dos quadrinhos. Ela foi publicada pela primeira vez em 1950 e até hoje possui
inúmeras reedições – como a que utilizamos aqui publicada em 2006 pela editora L&PM e
reeditada em 200714.
A história da tira retrata o mundo de Charlie Brown: “um menino adorável que se preocupa
com o sentido da vida e que por vezes é incompreendido por seus amigos” (SCHULZ, 2007, p. 5).
Ele é muito inteligente e sonha em formar seu time de Beisebol. Charlie Brown é dono de Snoopy,
“um beagle-escritor de muita imaginação, um escoteiro que adora biscoitos de chocolate e que é
amigo de Woodstock, um delicado passarinho amarelo que fala uma língua que só Snoopy
entende” (SCHULZ, 2007, p. 5).
Em suas aventuras Charlie Brown é auxiliado por seus amigos (ver figura 1): (a) Lucy, “que
tem um consultório de psiquiatria e sempre sacaneia Charlie Brown puxando a bola de futebol
americano bem na hora em que ele vai chutá-la” (SCHULZ, 2007, p. 5); (b) Linus, que “é o irmão
mais novo de Lucy; ele tem uma relação de dependência com seu cobertor de estimação, do qual
não se separa de jeito nenhum” (SCHULZ, 2007, p. 5); (c) Sally, que é a irmã mais nova de Charlie
Brown e á apaixonada por Linus (Cf. Schulz, 2007); (d) Patty Pimentinha, que sempre vai mal na
escola, mas nunca perde o bom humor e é apaixonada secretamente por Charlie Brown – para ela
“Minduim” – (Cf. Schulz, 2007); e (e) Marcie, que é uma garota míope e tímida e a melhor amiga
de Patty, chamada por ela de “senhor” (Cf. Schulz, 2007).

14
“As tiras de Charles M. Schulz foram publicadas diária e ininterruptamente por quase 50 anos – o que
nunca aconteceu com nenhuma outra HQ – e chegaram a figurar em 2,6 mil jornais, atingindo um público de
355 milhões de leitores em 75 países e 40 línguas” (SCHULZ, 2007, contra-capa).
(Figura 1 – Foto de divulgação – em baixo, da esquerda para direita: Franklin, Lucy, Linus, Patty
Pimentinha e Sally; em cima, da esquerda para direita: Woodstock, Snoopy e Charlie Brown)

Feito as devidas considerações, passaremos na próxima seção a observar a figura do


professor nas tirinhas de Snoopy.

O Ethos discursivo efetivo do professor nas tirinhas de Snoopy

O primeiro aspecto a se analisar quanto ao ethos efetivo do professor corresponde à


análise do ethos prévio – afinal, antes de enunciar, o que a imagem física do professor nas tirinhas
de Snoopy nos sugere?
Ao analisarmos as tirinhas podemos constatar de imediato um apagamento da figura física
da professora (no livro só há professoras) em todas as cenas do livro “Assim é a Vida Charlie
Brown.” Como podemos perceber, em todo o nosso corpus de análise, os alunos percebem a
presença da professora em sala de aula e interagem com ela quando solicitados, entretanto não
visualizamos nenhum balão de fala do professor ou qualquer traço físico de sua figura – forma-se,
então, um ethos pré-discursivo zero15. Esse apagamento pode nos sugerir muitas interpretações
que evidenciariam por sua vez a construção de alguns ethos específicos – de irrelevância, de
poder, entre outros –, mas que aqui não podemos confirmar ou indicar ao certo qual seria. Dessa
forma, esse não-ethos discursivo se ancora, assim como as outras representações discursivas de
professores, diretamente aos estereótipos sociais dessa classe: profissionais mal pagos,
desvalorizados socialmente e que não conseguem adquirir instrumentos pedagógicos e de
informação (Cf. CASTRO, 2003).
Em nossa análise o professor aparece nas tirinhas (como podemos observar nas imagens 1
e 2) como aquele que pune e corrige, o que forma um ethos de alto saber conteudístico e de
moral, afinal só corrige ou pune quem tem poder ou conhecimento para isso. As alunas na
imagens abaixo (1) temem a repreensão e por isso ao perceberem que fizeram algo errado (dormir
em sala de aula) logo tentam se justificar (“Estamos acordadas!” (Imagem 1 – SCHULZ, 2007, p.
124)).

(Imagem 1 – SCHULZ, 2007, p. 124)

15
Com isso queremos dizer que nas tirinhas de Snoopy não se forma um ethos pré-discursivo sobre a figura
do professor. Com isso denominamos esse não-ethos pré-discursivo de “ethos pré-discursivo zero”.
(Imagem 2 – SCHULZ, 2007, p. 74)

Na imagem 1, podemos ainda perceber a formação de um outro ethos. Há um ethos dito


de cansaço (o sono é percebido pelo conteúdo do balão em “Z”) por parte das alunas – o que é
recorrente nas tirinhas de Snoop sobre a sala de aula – uma vez que as alunas retratadas, Patty
Pimentinha e Marcie, estão sempre sonolentas em aula, o que nos sugere um ethos de monotonia
por parte do professor em sua forma de ensinar. A disposição fixa das carteiras de sala de aula –
sempre em fileiras e uma atrás da outra – também nos sugere essa mesma imagem discursiva
(monotonia).
Uma outra imagem discursiva evidenciada nas tirinhas nos remete a formação de um ethos
discursivo mostrado de impaciência, de inabilidade para compreender ou utilizar as tecnologias e
de isolamento, conforme indica a imagem 3:

(Imagem 3 – SCHULZ, 2007, p. 65).

Por essa imagem (3), então, podemos perceber que Charlie Brown tenta explicar a sua
professora o porquê havia chegado atrasado para aula. A repetição da expressão de negação “não,
fessora...” (5 vezes) nos revela um ethos de impaciência e de incompreensão da professora, uma
vez que Charlie Brown explica três vezes um mesmo fato (“[...] agente veio caminhando...”
(Imagem 3 – SCHULZ, 2007, p. 65)) e a professora parece não entender o que ele diz – por fim ela
ainda duvida do seu aluno ( “[...] eu também nunca sei (1) o que está acontecendo... [...]”(Imagem
3 – SCHULZ, 2007, p. 65) – a expressão “nunca sei” (1) nos indica um ethos mostrado de
isolamento da professora em relação as outras atividades do corpo escolar, afinal ela nunca sabe
nada do que acontece fora de sua sala de aula. Além do mais, a imagem acima (3) nos indica que a
professora não conseguiu entender o que o computador da escola disse, o que confirma a nossa
afirmação anterior sobre o ethos de inabilidade tecnológica da professora. Ainda podemos
perceber com esta imagem (3), por fim, que as mãos de Charlie Brown estão cruzadas e apoiadas
sobre a mesa. Ele com isso forma um ethos mostrado/dito de respeito, o que nos sugere que a
professora também possui um ethos de respeito – talvez advindo do medo de punição, como
sugere as personagens nas imagens 1 e 3 que justificam suas condutas para não sofrerem
retaliações.
Já com a imagem 4, abaixo, podemos analisar a formação de um ethos de rigor por parte
da professora em suas avaliações. Ela, em sua aula, enfoca a exposição (o ensinar), mas não o
aprendizado de seus alunos – afinal muitos alunos além de Patty Pimentinha tiram D- (“Tenho a
sensação que ela recebe por D-!” (Imagem 4 – SCHULZ, 2007, p. 75)) – o que acaba por construir
um ethos de despreocupação com o aprendizado de seus alunos por parte da professora (imagem
4 e 6).

(Imagem 4 – SCHULZ, 2007, p. 75)

Ainda podemos evidenciar (imagem 4) a formação de um ethos mostrado de “riqueza/boas


condições financeiras” da professora, como percebe-se pelos trechos: i) “Notei que a nossa
professora acabou de comprar um carro novo...” (Imagem 4 – SCHULZ, 2007, p. 75); e, ii) “Será
que as professoras ganham muito dinheiro?” (Imagem 4 – SCHULZ, 2007, p. 75) – pelo trecho
selecionado (imagem 4) podemos dizer que sim, pois a professora acabou de comprar um carro (e
novo!).
Nas tirinhas de Snoopy, podemos evidenciar ainda a formação de um ethos mostrado de
autoritarismo da professora: ela não aceita sugestões (imagem 5) (“Tudo bem... isso foi só uma
sugestão...” (Imagem 5 – SHULZ, 2007, p. 79)) e seus alunos só interagem com ela quando
solicitados (“Ela está dormindo professora...” (Imagem 5 – SHULZ, 2007, p. 79)), respondendo
perguntas teóricas (imagem 6) ou dando explicações para sua falta de disciplina (imagem: 1,3 e
5).
(Imagem 5 – SHULZ, 2007, p. 79)

(Imagem 6 – SCHULZ, 2007, p. 94)

Com a imagem 7, abaixo, podemos construir um ethos mostrado de velhice da professora


(“Menos a senhora, fessora...” (Imagem 7 – SCHULZ, 2007, p. 96)):

(Imagem 7 – SCHULZ, 2007, p. 96)

Apesar de não evidenciar sua aparência física, a imagem 7 nos remete a construção etária
de um pessoa com mais idade, que deve ser respeitada (“Menos a senhora, [...]”(Imagem 7 –
SCHULZ, 2007, p. 96)).
A partir desses excertos do livro “Assim é Vida Charlie Brown”, esperamos ter colaborado
para identificação da imagem discursiva predominante do professor nas tiras de Snoopy, a saber:
os professores nas tirinhas de Schulz (2007) apresentam um ethos dito/mostrado de elevação
moral e de conteúdo, de monotonia em suas práticas de ensino, de impaciência, incompreensão,
inabilidade tecnológica, isolamento, respeito, rigor, despreocupação com a aprendizagem dos
alunos, velhice e de riqueza/boas condições econômicas.
Na seção seguinte, portanto, discutiremos as implicações da construção dessas imagens
discursivas para o campo de formação de professores.
Algumas implicações sobre as imagens discursivas do professor evidenciadas nas tirinhas
de Snoopy para a área de formação de professores

Segundo Freeman (1996) e Freeman & Johnson (1998), o campo teórico pertencente à área
de formação de professores focalizou por muito tempo as pesquisas em educação que
privilegiavam os estudos Behavioristas, onde o aprendizado se dava como um processo-produto.
Nesse sentido o foco das primeiras pesquisas sobre a educação era o estudante. Somente em
1970, segundo Freeman (1996), que as pesquisas da área mudaram seu paradigma: desde então
elas tentaram descobrir sobre o que os professores pensavam e o que eles sabiam sobre ensinar.
Houve, então, segundo Freeman & Johnson (1998), uma emergência por reconceptualizações, na
medida em que se percebeu que o pensar do professor, suas crenças e concepções de mundo,
juntamente com o contexto escolar, influíam decisivamente em sua prática profissional.
Levando-se em conta tais concepções teóricas, nos perguntamos: em que medida as
imagens discursivas construídas pela mídia (no nosso caso as tirinhas de Snoopy) podem afetar o
campo de formação de professores e as atividades profissionais dos professores (em formação,
em serviço e em formação continuada)?
Antes de esclarecermos essa questão cabe-nos aqui refletir um pouco sobre como é
formada a identidade profissional dos professores. Teles, refletindo sobre a identidade
profissional dos professores de língua inglesa, afirma que a construção da identidade do professor
leva em conta “traços muito particulares da experiência pessoal de cada participante: sua história
de vida, suas memórias e os eventos marcantes de suas vidas” (2004, p. 59). Para Pimenta & Lima
a identidade é construída por um longo caminho que parte de experiências informais a formais de
ensino: “Assim, a identidade vai sendo construída como as experiências e a história pessoal, no
coletivo e na sociedade” (2004, p. 63).
A partir desses pressupostos podemos considerar que a Mídia (onde também se insere as
tiras), agente formador de opinião coletiva, assim como as experiências pessoais e as histórias de
vida dos participantes, também colabora para construção de imagens e concepções de mundo que
favorecem/dificultam a construção da identidade profissional dos professores. Ao divulgar
informações e imagens sobre os professores e o ambiente escolar, a Mídia acaba se tornando um
difusor importante para cristalização/perpetuação de imagens discursivas. Segundo Barros (2007)
em reportagem a revista Educação, a Mídia tende a reforçar certas imagens do professor e do
ambiente escolar como um todo:

“Superficial, que não ultrapassa o fato noticioso, não investiga fenômenos


de maior significação educacional [...]. É desta forma que alguns
professores que se dedicam a analisar a cobertura da imprensa sobre a
educação vêem o resultado da maior parte do material publicado.”
(BARROS, 2007, p. 40).
Com uma cobertura midiática superficial sobre a complexa atividade de ensinar do
professor, a Mídia, por falta de especialização no assunto, constrói representações discursivas que
muitas vezes não correspondem à realidade. Paulo Ghiraldelli Jr. (2007), em artigo publicado na
Revista Educação, corroborando conosco, afirma que a Mídia repete jargões carcomidos, lugares-
comuns e às vezes mais desinforma do que informa.
Diante dessas reflexões, entendemos que explicitar as imagens discursivas do professor
projetadas pela Mídia (sejam elas em tirinhas, livros, seriados, filmes ou outro) para os
professores (em formação, em serviço ou em formação continuada) e analisá-las de forma crítica e
contrastiva com a realidade vivida pelos professores potencializará a construção de uma
identidade profissional real que favorecerá a mobilização de experiências para enfrentar situações
profissionais específicas e conflituosas do campo educacional.
A partir dessa reflexão, partiremos na próxima seção para as nossas considerações finais
sobre as imagens discursivas do professor nas tirinhas de Snoopy e de suas implicações para o
campo de formação de professores.

Considerações finais

A partir das proposições teóricas sobre ethos discursivo de Maingueneau (2005; 2008) e de
Amossy (2005a; 2005b) analisamos em nossa exposição as imagens discursivas do professor
advindas das tirinhas de Snoopy (2007) do cartunista Charles Schulz (1922-2000) contidas no
livro “Assim é a vida Charlie Brown”. De forma geral, em nossa análise descobrimos: (a) que nas
tirinhas de Snoopy o professor não possui uma formação discursiva de ethos pré-discursivo, o que
pode nos gerar muitas imagens discursivas sobre o porquê desse apagamento, mas que
infelizmente em nossa análise não fomos capazes de desvendar essa problemática; (b) que os
professores nas tirinhas de Schulz (2007) apresentam um ethos dito/mostrado de elevação moral
e de conteúdo, de monotonia em suas práticas de ensino, de impaciência, incompreensão,
inabilidade tecnológica, isolamento, respeito, rigor, despreocupação com a aprendizagem dos
alunos, velhice e de riqueza/boas condições econômicas (conforme explicita o diagrama abaixo).
Cabe ressaltar aqui que o estereótipo social que sustenta essas imagens discursivas parece não
corresponder ao perfil de professor da atualidade, mas a um perfil de professor do passado.
Conforme explicita Castro (2007), as imagens discursivas que identificamos em nosso corpus de
estudo pertencem ao professor da metade do século XX: aquele que ensinava era uma mulher de
fino trato advinda de uma nobre rica família que em nada dependia do seu salário para sobreviver;
vivendo nessa condição a professora envelhecia e continuava a lecionar independente da revolução
cultural e tecnologia que pudesse ocorrer em sua época, tanto é que seus métodos de ensino
continuaram pautados na monolocução, no rigor as normas morais e de disciplina, sem grandes
interações em sala de aula16.

(Diagrama – Formações discursivas do ethos efetivo do professor nas tirinhas de Snoopy)

A partir de nossa discussão, portanto, podemos indicar que as tirinhas de Snoopy (2007)
tendem a perpetuar ainda hoje a imagem discursiva do professor da metade do século passado, o
que em nada colabora para construção de identidades profissionais engajadas com a realidade
atual e dispostas a enfrentar os novos desafios do ensino. Surge, então, para o campo de
formação de professores a necessidade de refletir criticamente sobre a divulgação e cristalização
dessas imagens discursivas formadas pela mídia. Com isso espera-se que os professores (em
formação, em serviço ou em formação continuada) possam construir/fortalecer suas identidades
profissionais engajadas com a realidade atual, o que os preparará para mobilização de
experiências profissionais para o enfrentamento de conflitos educacionais específicos.

Referências Bibliográficas

16
Cabe dizer aqui que as tiras estudadas foram publicadas em 1985 e atualmente foram reeditadas em 2007.
AMOSSY, Ruth. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In: AMOSSY, Ruth (org). Imagens
de si no discurso – a constituição do ethos. São Paulo: Contexto, 2005a. p. 9-28.

AMOSSY, Ruth. O ethos na intersecção das disciplinas: retórica, pragmática, sociologia dos
campos. In: AMOSSY, Ruth (org). Imagens de si no discurso – a constituição do ethos. São Paulo:
Contexto, 2005b. p. 119-144.

BARROS, Rubem. Como a mídia fala da escola. In: EDUCAÇÃO, Ano 11, n° 125. Set. 2007. p. 34-
42.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. Tradução Carlos Felipe Moisés; Ana
Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 24-49.

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