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A RETÓRICA CLÁSSICA: O ETHOS, IMAGEM DISCURSIVA OU DADO

EXTRATEXTUAL?

A tradição aristotélica: o ethos como imagem discursiva

O ethos, o caráter, a imagem de si projetada pelo orador no e pelo discurso,


definido por Aristóteles em sua Retórica, é uma categoria constitutiva das provas
técnicas que tornam o discurso persuasivo1, pois “persuade-se pelo carácter quando o
discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de fé.
[...] É, porém, necessário que esta confiança seja resultado do discurso” (Aristóteles,
Livro I: 1356a). Assim, é no discurso que se persuade, e constrói-se uma imagem de si
digna de fé e que inspire confiança. Importante ressaltear que a persuasão, segundo
Aristóteles (Livro II: 1378), deriva de três aspectos fundamentais, quais sejam, “a
prudência (phronesis), a virtude (arete), e a benevolência (eunoia).”
Resta claro que a visão aristotélica do ethos diz respeito ao caráter moral do
orador. No entanto, Wisse (1989) aponta que, para além da virtude, também a qualidade
intelectual permite tornar o orador digno de confiança, visto que o ethos, “[...] ‘caráter’,
inclui qualidades morais e intelectuais2” (p. 30).
Mainguenau (2013), ao definir o ethos como um critério “[...] ligado à
enunciação, não a um saber extradiscursivo sobre o enunciador” (p. 70), afirma que o
orador assume o papel de um fiador, investido de uma corporalidade, cuja imagem o co-
enunciador deve construir com base em indícios textuais de diversas ordens, isto é,
incorpora um ethos no discurso. O autor distancia-se, assim, da retórica aristotélica e se
insere no quadro da Análise do discurso, propondo que “qualquer discurso [...] possui
uma vocalidade específica, que permite relacioná-lo a uma fonte enunciativa, por meio
de um tom que indica quem o disse” (2013, p. 72).
De acordo com Maingueneau (2013), a “incorporação” atua em três registros
indissociáveis, quais sejam: a enunciação confere corporalidade ao fiador; o
coenunciador incorpora um conjunto de esquemas que corresponde a maneira de
relacionar-se com o mundo; essas duas permitem a constituição de um corpo.
O autor afirma que o ethos é parte constitutiva da cena de enunciação, que
engloba três cenas: a cena englobante corresponde ao tipo de discurso, conferindo-lhe

1
“[...] umas residem no carácter moral do orador; outras, no modo como se dispõe ao ouvinte; e outras,
no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece demonstrar” (ARISTÓTELES, Livro I: 1356a).

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“[...] 'character', he re comprises both moral and intelectual qualities”.
estatuto pragmático: literário, religioso, filosófico etc.; a cena genérica é um tipo de
contrato associado a um gênero, como o sermão, o editorial etc.; e a cenografia é
construída pelo próprio texto (MAINGUENAU, 2013).
Para Barthes (1985), o ethos é um atributo do orador que consiste nos “traços de
caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importa sua sinceridade) para
causar boa impressão: são seus ares. [...] o orador enuncia uma informação e, ao mesmo
tempo, ele diz: eu sou isso, eu não sou aquilo3” (p. 119).

A retórica clássica e os modos oratórios


Retomando a retórica clássica, na qual, de modo geral, o ethos se confunde com
os modos e com a questão da moralidade do orador como ser no mundo, isto é, está
relacionada com à maneira do orador se comportar na vida real, Amossy (2018, p. 83)
afirma que “o ser transparece no discurso, permitindo, assim, operar uma ligação
harmoniosa entre a pessoa do locutor, as suas qualidades, o seu modo de vida e a
imagem que sua fala projeta de si”. Para a autora, portanto, as qualidades morais do
locutor somente são projetadas no discurso, como a modéstia, por exemplo, se essa
virtude é efetivamente praticada por ele, pois “as qualidades interiores e os hábitos de
vida de uma pessoa, de alguma forma, se traduziriam espontaneamente em sua fala”
(ibidem).

CIÊNCIAS DA LINGUAGEM E CIÊNCIAS SOCIAIS CONTEMPORÂNEAS


O dispositivo enunciativo, de Benveniste a Ducrot
De acordo com Amossy (2018), as ciências contemporâneas da linguagem têm
estudado a construção do ethos dentro dos limites do discurso, da própria língua,
levando em consideração os modos oratórios verbais. Nessa visão, o ethos está ligado à
noção de enunciação porque inscreve o locutor em seu dizer. Benveniste (1989, p. 87)
define enunciação como o ato pelo qual um locutor mobiliza a língua, a faz funcionar
por um ato de utilização, dentro de um “quadro figurativo”, e ainda “como forma de
discurso, [...] coloca duas “figuras” igualmente necessárias, uma, a origem, outra, a
finalidade da enunciação”. Por isso, a enunciação, por instaurar um alocutário, explícita
ou implicitamente, implica, por definição, uma alocução e uma relação discursiva com o
outro (ibidem, p. 84).
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“[...] ce sont les traits de caractère que l’orateur doit montrer à l’auditoire (peu importe sa sincérité) pour
faire bonne impression: ce sont ses airs. [...] l’orateur énonce une information et en même temps il dit: je
suis ceci, je ne suis pas cela”.
O ethos é uma categoria integrada à enunciação, mas Benveniste não retoma
esse termo em sua teoria da enunciação. A imagem de si é, assim, apreendida por meio
das marcas verbais que a constroem e a propõem ao parceiro da interlocução, e é a
linguística da enunciação que fornece uma primeira ancoragem linguística à análise do
ethos (AMOSSY, 2018).
Ducrot (1987) adota, em sua teoria polifônica da enunciação (ou pragmática
semântica), o termo ethos, distinguindo, inicialmente, as instâncias intradiscursivas, o
locutor (L), do enunciador (E), sujeito falante real. Dessa forma, para o autor, o “ethos
está ligado a L, o locutor enquanto tal: é enquanto fonte da enunciação que ele se vê
dotado de certos caracteres que, por contraponto, torna esta enunciação aceitável ou
desagradável” (1987, p. 189).
Para a pragmática semântica, a constituição do ethos não é resultante de
autoelogios que o orador pode fazer de si mesmo no conteúdo de seu discurso,
afirmações que podem, ao contrário, chocar o ouvinte, “mas da aparência que lhe
confere a fluência, a entonação, calorosa ou severa, a escolha das palavras, os
argumentos” (DUCROT, 1987, p. 189).

O ethos na análise do discurso de Dominique Mainguenau


Na perspectiva da análise do discurso, em que uma cena de enunciação subjaz e,
ao mesmo tempo, valida o discurso, o ethos “é parte constitutiva da cena de enunciação”
(MAINGUENAU, 2013, p. 75). Sob esse ponto de vista, o enunciador deve se inscrever
em uma cena de enunciação para conferir a si uma legitimação de seu dizer. “A imagem
de si do locutor se constrói, assim, em função das exigências de diversos quadros, que o
discurso deve integrar harmoniosamente” (AMOSSY, 2018, p. 86).
De acordo com Amossy (2018), a inscrição do sujeito no discurso não se efetua
somente por meios verbais (modalizadores, verbos e adjetivos etc.), mas se faz também
pela ativação de um tipo de gênero de discurso nos quais o locutor ocupa uma posição
definida aprioristicamente. Por isso, a noção de ethos relaciona-se com a de tom, que
indica quem disse. “O termo “tom” apresenta vantagem de valer tanto para o escrito
quanto para o oral” (MAINGUENEAU, 2013, p. 72).

O ETHOS NA ANÁLISE ARGUMENTATIVA


Ethos discursivo e ethos prévio
O ethos, na perspectiva de uma análise argumentativa, pode ser estudado a partir
da coalescência teórica da retórica aristotélica e da análise do discurso. Amossy (2018),
ao tratar dessa relação, observa como o discurso constrói um ethos que se funda em
dados pré-discursivos. “É, afinal, a imagem que o locutor constrói, deliberadamente ou
não, em seu discurso, que constitui um componente de força ilocutória” (AMOSSY,
2018, p. 89).
Ressalte-se que a imagem do orador também é projetada por dados
preexistentes, como a ideia que o público faz do locutor antes que ele tome a palavra,
isto é, o ethos prévio ou pré-discursivo (AMOSSY, 2013).
O ethos prévio é “a imagem que o auditório pode fazer do locutor antes que ele
tome a palavra. [...] é elaborado com base no papel que o orador exerce no espaço
social, [...] mas também com base na representação coletiva ou no estereótipo que
circula sobre sua pessoa” (ASMOSSY, 2013, p. 90). O orador antecipa os eu dizer e a
condiciona parcialmente, e, ao mesmo tempo, deixa traços tangíveis que podem ser
identificados, ora nas marcas linguísticas, ora na situação de enunciação na qual está
inserido.
No que tange à imagem de si do orador, Adam (2013) ressalta que é importante
examinar, no nível pré-discursivo, o status institucional do locutor, as funções ou a
posição no campo que conferem uma legitimação ao seu dizer; e a imagem prévia que o
auditório faz de sua pessoa antes de sua tomada de palavra. No nível discursivo, analisa-
se a imagem que deriva da distribuição de papéis inerentes à cena genérica e à escolha
de uma cenografia; e a imagem que o locutor projeta de si mesmo em seu discurso, tal
como ele se inscreve na enunciação.

Ethos e imaginário social


O ethos também é tributário de um imaginário social e se alimenta de
estereótipos de sua época, pois a imagem do orador está necessariamente dominada
pelos modelos culturais. O estereótipo está sempre inscrito no próprio texto e pode nele
ser reconhecido. Assim, uma imagem de si, com base em um ethos prévio, pode se
construir na materialidade do discurso a partir de todos os meios verbais ligados à
enunciação, à interação e ao gênero (AMOSSY, 2018).
REFERÊNCIAS

AMOSSY, Ruth. O ethos discursivo ou a encenação do orador. In:______ A


argumentação no discurso. Tradução de Ângela M. S. Corrêa [et al.]. São Paulo:
Contexto, 2018. p. 79-104.

ARISTÓTELES. Retórica. Trad. Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e


Abel do Nascimento Pena. 2.ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005.
(Col. Biblioteca de autores clássicos).

BARTHES, Roland. L’aventure sémiologique. Paris: Editions du Seuil, 1985.

BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo


Guimarães [et al.]. Campinas, SP: Pontes, 1989.

DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Tradução Eduardo Guimarães [et al.]. Campinas,
SP: Pontes, 1987.

MAINGUENEAU, Dominique. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, Ruth.


(Org). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2013.
p. 69-91.

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