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INTRODUÇÃO

Este texto visa cumprir dois objetivos. O primeiro é produzir um trabalho para finalizar
a disciplina obrigatória do segundo semestre de 2023: Da língua ao discurso: teorias e práticas
analíticas realizada no PPGLetras PUC Minas. E para cumprir o primeiro objetivo,
apresentamos o segundo: estabelecer um paralelo entre os conceitos de enunciado e enunciação
para Benveniste e para Volóchinov. Autores de escolas de estudos do campo da linguística que
fundamentam seus trabalhos com princípios diferentes quanto a teoria e ao método de pesquisa.

ENUNCIAÇÃO E ENUNCIADO PARA BENVENISTE

Em seu estudo O aparelho formal da enunciação, Benveniste tece algumas


considerações conceituais e metodológicas a respeito do que seja a enunciação. Para o autor, a
primeira distinção observável é de que o emprego da forma é diferente do emprego da língua
(BENVENISTE, 1989, p. 81). É a partir dessa diferença que a enunciação e o enunciado
tomarão contornos conceituais próprios.
Para Benveniste (1989, p. 82) “A enunciação é este colocar em funcionamento a língua
por um ato individual de utilização.” Ou seja, em um primeiro momento estão postas duas
condições necessárias para este processo: a existência de uma língua e o seu uso individual1.
Mesmo que a definição do fenômeno esteja dada, Benveniste (1989, p. 82) salienta que
a condição específica da enunciação é: “[...] o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o
texto do enunciado, que é o nosso objeto. Este ato é o fato do locutor que mobiliza a língua por
sua conta.” Sendo que este uso individual da língua pelo locutor determina “os caracteres
linguísticos da enunciação” (BENVENISTE, 1989, p. 82).
Aqui temos três observações a fazer. A primeira é que a produção de um enunciado é a
enunciação e que o seu produto é o texto do enunciado. A segunda é que os caracteres
linguísticos da enunciação são determinados pelo uso que o locutor faz da língua e dessa forma
a marca em alguma instância com seus rastros. A terceira é de que, de acordo com Benveniste
(1989, p.83), a enunciação converte o uso individual da língua em discurso e o locutor marca a
enunciação com determinados caracteres linguísticos, logo, é possível fazer o percurso inverso,

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Mais adiante veremos a crítica que Valentin Volóchinov faz ao termo individual.
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ou seja, compreender quais são as marcas desse locutor para entendê-lo pelo estudo e análise
da linguagem.
Visto isso, as abordagens de investigação da enunciação pelo autor se dão por três vias.
A saber: 1) como realização vocal da língua, 2) como semântica e 3) como a definição do quadro
formal da enunciação. Dado o objetivo da disciplina cursada, e também a partir de uma
observação do autor no texto, não nos ateremos a primeira abordagem pois se trata de um outro
campo de estudos.
Sendo assim, a respeito da segunda abordagem de investigação da enunciação
Benveniste afirma que “É a semantização da língua que está no centro deste aspecto da
enunciação, e ela conduz à teoria do signo e da análise da significância.” (BENVENISTE, 1989,
p. 83). O que indicou, a época, um caminho a ser percorrido pelos estudos de semiologia e
semiótica que se destinarão a compreender não o signo, mas a semântica imbuída ao signo,
ideia que vai ao encontro das proposições saussurianas a respeito de signo e significação
(FARACO, FLORES e GOMES, 2021). E, também por afinidade de campo de estudos, da
Análise do Discurso que, além das marcas, observa e analisa os modos e meios de produção do
discurso.
Mas é na terceira abordagem que chegamos ao esboço do quadro formal da enunciação.
E a qual queremos nos ater para poder traçar um paralelo com a mesma ideia sendo
desenvolvida por Volóchinov (2017).
No desenho do quadro formal da enunciação, Benveniste (1989, p. 83) indica que “Na
enunciação consideraremos, sucessivamente, o próprio ato, as situações em que ele se realiza,
os instrumentos de sua realização”. Ou seja, no quadro da enunciação são considerados para o
desenvolvimento do método de pesquisa: o próprio ato, as condições sócio-discursivas nas
quais é realizada e quais são os operadores textuais envolvidos. Para Flores (2013, p.166) os
linguistas devem proceder assim: “[...] partir do ato, examinar a situação em que se dá esse ato
e, finalmente, descrever os recursos linguísticos (os instrumentos) que tornaram possível o ato”.
Assim percebemos que o contorno metodológico benvenistiano parte do princípio de que o ato
da enunciação é um fenômeno individual e, portanto, pode ser estudado como um ato isolado
de um indivíduo desde que sejam consideradas as condições sócio-discursivas de
realização. Neste ponto sempre nos levanta a dúvida se Benveniste se referiu às condições
exclusivas da integridade psicofisiológica do sujeito ou da história desse sujeito individual no
tecido social haja vista a presença notável do componente individual em seus escritos.
Para Benveniste (1989, p.83) o ato de usar a língua individualmente “[...] introduz em
primeiro lugar o locutor como parâmetro nas condições necessárias da enunciação”. Logo, é
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pelo locutor que emana, de acordo com o autor, a instância do discurso que é a “[...] forma
sonora que atinge um ouvinte e que suscita uma outra enunciação de retorno.” (BENVENISTE,
1989, p. 84) já que “Toda enunciação é, explícita ou implicitamente, uma alocução, ela postula
um alocutário.” (BENVENISTE, 1989, p. 84). Isso posto podemos inferir que se trata de um
processo no qual o outro esteja implicado e seja, por consequência, um processo dialógico.
Se o outro está presente no discurso, logo, há uma referência a si mesmo co-referida do
próprio locutor. E por isso “A referência é parte integrante da enunciação.” (BENVENISTE,
1989, p. 84). Este outro presente não é mencionado como um outro do tecido social ou um outro
ideológico. Percebe-se que a esfera de que trata Benveniste é social sem se aprofundar nos
encadeamentos conflituosos e políticos. É um outro sujeito que possui condições tão individuais
quanto o seu princípio norteador do ato da enunciação tido como ato individual. Nessas
condições “O ato individual de apropriação da língua introduz aquele que fala em sua fala. Este
é um dado constitutivo da enunciação.” (BENVENISTE, 1989, p. 84).
A partir disso temos a noção de um sujeito que se inscreve no papel, ou seja, uma
instância na qual está projetada, como uma representação cartográfica de algo real em um papel,
o locutor (CALAME, 1986, p.10). E Benveniste chama essa classe de projeções de “indivíduos
linguísticos”.
Os indivíduos linguísticos são esses loci textuais que “[...] são engendrados de novo
cada vez que uma enunciação é proferida, e cada vez eles designam algo novo.”
(BENVENISTE, 1989, p. 85) já que a enunciação por mais que se repita, dada a sua constituição
única e individual, não será a mesma.
A partir dos indivíduos linguísticos, que são os elementos dêiticos, depreende-se da
enunciação, também, a noção de tempo verbal. Sendo que o tempo do presente é coincidente
com o tempo do momento da enunciação (BENVENISTE, 1989, p. 85.). Desse modo, marcado
o tempo presente como uma referência interna da enunciação, demarca-se o que está antes e o
que está depois. E assim são configurados os tempos do passado e do futuro. E estes delimitam
os elementos espaço-temporais da enunciação e do enunciado.
Para Benveniste (1989, p.90) “Cada enunciação é um ato que serve de propósito direto
de unir o ouvinte ao locutor por algum laço de sentimento, social ou de outro tipo. Uma vez
mais, a linguagem, nesta função, manifesta-se-nos, não como um instrumento de reflexão mas
como um modo de ação”. Sendo assim, podemos entender que a enunciação configura uma
ação que visa a transformação de estados. Sejam os estados verbais, sejam os estados sociais.
Se um sujeito age pela palavra, seja a palavra falada ou escrita, então há uma busca pela
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transformação de estados sendo esses estados individuais ou sociais em maior ou menor


amplitude de reverberação2.
Por fim, Benveniste indica que “Seria preciso também distinguir a enunciação falada da
enunciação escrita. Esta se situa em dois planos: o que escreve se enuncia ao escrever e, no
interior, de sua escrita, ele faz os indivíduos se enunciarem.” (BENVENISTE, 1989, p. 90). O
que implica um pormenor metodológico em torno dos elementos apresentados para seu estudo
como salienta Flores (2013, p. 175) “O ato da escrita supõe locutor e alocutário, mas de estatuto
diferenciado ao dessas figuras da enunciação falada. Na escrita, locutor e alocutário são autor
e leitor”. Dentro do texto os elementos são os da projeção e não os das pessoas reais por mais
que a noção de individual esteja presente desde a primeira página das explicações nosográficas
do conceito.
Por fim, Benveniste (1989, p.90) afirma que a partir de seu quadro formal esboçado
muitas possibilidades de estudo a partir da enunciação e do discurso estão abertas.
Sobre as possibilidades não temos dúvidas, mas notemos que Benveniste pouco diz
sobre o enunciado enquanto explica como funciona o aparelho formal da enunciação. O autor
demarca que o produto da enunciação, o enunciado, o texto, não é o objeto primário de trabalho
dos linguistas, mas não o define com tanta clareza quanto aos seus princípios conceituais.

ENUNCIADO E ENUNCIAÇÃO PARA VOLÓCHINOV

Volóchinov em seu texto Marxismo e filosofia da linguagem depara-se com duas


tendências teóricas para pensar o objeto linguístico: subjetivismo individualista e objetivismo
abstrato. E para chegar ao desenvolvimento do pensamento marxista, Volóchinov precisa
submeter ambas as tendências a uma investigação crítica.
De acordo com Volóchinov (2017, p. 173) a realidade da língua está no seu
funcionamento no tecido social levando em consideração que não existe um sistema material
objetivo e material que o delimite no mundo real. O que está intimamente ligado a suas
condições mutáveis por seu “processo ininterrupto de formação de normas linguísticas”

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Sei que não tem a ver diretamente com o assunto estudado, mas tal afirmação sempre me lembra a pergunta
cretina “se um processo de análise é um bem individual ou social”. E em se tratando de um apanhado de
modificações pela palavra haverá sempre uma transformação. Lembrando que a transformação pode não cumprir
as expectativas esperadas no caso da análise.
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(VOLÓCHINOV, 2017, p. 174). Logo, se o processo é ininterrupto, entende-se que o “o sistema


sincrônico da língua existe somente do ponto de vista da consciência subjetiva de um indivíduo
falante pertencente a um grupo linguístico em um determinado momento do tempo histórico”
(VOLÓCHINOV, 2017, p.174).
Isso posto, a noção de sistema sincrônico da língua é um recorte feito em um
determinado período de tempo, por indivíduos pertencentes àquele sistema em uso. As normas
continuam sendo feitas e refeitas, ou emendadas, quer um pesquisador queira ou não. Mesmo
que fosse um pesquisador onisciente, ainda assim, teríamos um pesquisador a modos
babelísticos: muitas línguas, muitas normas, muitas transformações constantes e uma clara
condição de impossibilidade de apreender todo o sistema.
Ainda que seja um objeto de extensa mutabilidade, as normas existem como em “relação
às consciências subjetivas dos membros de uma coletividade” (VOLÓCHINOV, 2017, p.175).
Ou seja, as normas existem porque existem indivíduos que as usam! É por isso que o autor
discute que “[...] se dissermos que a língua na concepção da consciência individual é um sistema
de normas indiscutíveis e imutáveis, que esse é o modus de existência da língua para cada um
dos membros dessa coletividade linguística, expressaremos uma concepção totalmente
objetiva.” (VOLÓCHINOV, 2017, p.175, grifo do autor). O que pode ser entendido assim: é
porque a língua é usada por indivíduos que temos a noção que ela é uma instância maior que os
próprios indivíduos e não funciona somente por eles, mas está presente através deles.
Nesse ponto entendemos que há um movimento duplo e ambos transitórios. O
movimento da consciência individual que precisa de estabilidades, mesmo que fantasiosas, para
operar no mundo pragmático, para evitar o termo mundo “real”, e também, o movimento da
língua como sistema que é mutável em condição sine qua non e depende do falante e suas
práticas sociais para ser modificada. Por esse motivo temos a língua funcionando ad infinitum
enquanto sistema e temporariamente em suspensão enquanto registrada pelo falante em
condições de recorte temporal.
No texto de nossa averiguação Volóchinov (2017, p.173) se pergunta se: “[...] a língua
realmente existe para a consciência subjetiva do falante como um sistema objetivo de formas
normativas idênticas e indiscutíveis?” Ao que o autor responde que não. E indica que o sistema
é [...]” apenas uma abstração, obtida mediante um enorme trabalho realizado com uma certa
orientação cognitiva e prática.” (VOLÓCHINOV, 2017, p.176). Isto é, é um trâmite com
propósitos de estudos só e somente.
Para Volóchinov (2017, p. 177) o objetivo do falante é direcionado para a produção de
um enunciado concreto realizado por ele. E que o que importa para o falante é que a “forma
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linguística é importante não como um sinal constante e invariável, mas como um signo sempre
mutável e flexível. Esse é o ponto de vista do falante.” E percebamos que enquanto Benveniste
usa o termo ação individual para definir a enunciação, Volóchinov usa o termo falante em
condições, à priori, supostamente individuais, para produzir um enunciado. A enunciação é
pouco discutida enquanto conceito como no quadro formal esboçado por Benveniste.
Sobre essa concepção do signo ter um aspecto sempre mutável e flexível podemos
perceber a ressonância no pensamento em torno do estudo da língua que Benveniste também
assume. Ambos vindos de um princípio sausseriano de acontecimento da significação já que o
cerne dos estudos dos linguistas não é o signo em si, ou seja, a exclusividade da palavra pura,
mas a significação. A significação, ou melhor, o modo com o qual ocorre a significação; uma
apreensão do fenômeno não visível e quase etéreo no qual a significação se liga ao grafema.
Mas há uma mudança de tom metodológico em relação a Benveniste quando se entende
o falante e suas relações exteriores a língua pela língua:

Na realidade, nunca pronunciamos ou ouvimos palavras, mas ouvimos uma verdade


ou mentira, algo bom ou mal, relevante ou irrelevante, agradável ou desagradável e
assim por diante. A palavra está sempre repleta de conteúdo e de significação
ideológica ou cotidiana. É apenas essa palavra que compreendemos e respondemos,
que nos atinge por meio da ideologia ou do cotidiano. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 181,
grifos do autor).

Dessa maneira, há uma implicação metodológica clara que não é compartilhada por
Benveniste. De acordo com o russo, “A língua no processo de sua realização prática não pode
ser separada do seu conteúdo ideológico ou cotidiano.” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 181). Para
ele a ruptura da língua e seu conteúdo ideológico é um erro grave (VOLÓCHINOV, 2017, p.
182). Nessas condições o erro fatal dá-se porque “Todo enunciado, mesmo que seja escrito e
finalizado, responde a algo e orienta-se para uma resposta. Ele é apenas um elo na cadeia
ininterrupta de discursos verbais.” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 184). E observemos que ainda
não foi posta a noção dialógica do processo, mas ela está contida na explicação dada a
orientação não só da continuidade do processo como também da necessidade que de esteja
presente um par de agentes.
Na razão de ser da eterna continuidade do sistema da língua, os métodos de estudá-la
pressupõem na mesma proporção sua compreensão continuada. É por isso que:

Em suma, a língua morta, escrita e alheia é a definição real da linguagem do


pensamento linguístico. O enunciado isolado, finalizado e monológico, abstraído do
seu contexto discursivo e real, que não se opõe a uma possível resposta ativa, mas a
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uma possível compreensão de um filólogo, é a realidade última e o ponto de partida


do pensamento linguístico. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 186, grifos do autor)

Em função disso, o pensamento linguístico de Volóchinov vai se delineando mais pelas


suas familiaridades com o objetivismo abstrato do que com o subjetivismo individualista. Que
se torna cada vez mais distante na formulação de um pensamento marxista.
Nessas condições “[...] a palavra alheia, nas profundezas da consciência histórica dos
povos, fundiu-se com a ideia de poder, de força, de santidade e de verdade, fazendo com que a
noção de palavra se orientasse na maioria das vezes justamente para a palavra alheia.”
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 189). É pela palavra alheia que as ideologias tomam corpo material
e se tornam objetos sistematizados, mas somente de modo teórico e prático.
Por essa razão, a palavra alheia possui uma importância impar para o pensamento
linguístico moderno dada a sua sedimentação de particularidades que fundamentam o
objetivismo abstrato e seu método de premissa racionalista e mecanicista (VOLÓCHINOV,
2017, p. 199). O autor relata e comenta as particularidades a seguir:

QUADRO 1 – COMENTÁRIOS DE VOLÓCHINOV SOBRE A PALAVRA ALHEIA


PARTICULARIDADES DA PALAVRA COMENTÁRIOS E CRÍTICAS
ALHEIA
1. “O aspecto estável da identidade das “A língua é direcionada para a compreensão
formas linguísticas prevalece sobre a sua da sua nova significação contextual.”
mutabilidade.” (VOLÓCHINOV, 2017, p. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 192).
192).
2. “O abstrato predomina sobre o concreto.” “Um enunciado finalizado é uma abstração.
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 192). A concretização da palavra só é possível por
meio da sua inclusão no contexto histórico
real da sua realização inicial.”
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 193).
3. “A sistematicidade abstrata prevalece “O pensamento sistemático sobre a língua é
sobre a historicidade.” (VOLÓCHINOV, incompatível com a sua compreensão viva e
2017, p. 192). histórica. “(VOLÓCHINOV, 2017, p. 193).
4. “As formas dos elementos preponderam “É óbvio que o próprio todo do enunciado,
sobre as formas do todo.” (VOLÓCHINOV, bem como suas formas, fica à margem do
2017, p. 192). pensamento linguístico.
De fato, este não vai além dos elementos do
enunciado monológico.” (VOLÓCHINOV,
2017, p. 194).
5. “Ocorre a substancialização do elemento “O enunciado como um todo não existe para
linguístico isolado, ao invés da dinâmica da a linguística. Consequentemente, restam
fala.” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 192). apenas os elementos do sistema, isto é, as
formas linguísticas isoladas.”
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 195).
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6. “Uma palavra com um único sentido e “O sentido da palavra é inteiramente


acento, ao invés da pluralidade viva de seus determinado pelo seu contexto. Na verdade,
sentidos e acentos.” (VOLÓCHINOV, 2017, existem tantas significações para uma
p. 192) . palavra quantos contextos de seu uso.”
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 196-197).
7. “A compreensão da língua como um objeto “Os indivíduos não recebem em absoluto
pronto, transferido de uma geração para uma língua pronta; eles entram nesse fluxo da
outra.” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 192). comunicação discursiva, ou mais
precisamente, é nesse fluxo que a sua
consciência se realiza pela primeira vez.”
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 198).
8. “A incapacidade de compreender a “Para a consciência do falante, a língua existe
formação da língua a partir de dentro.” como um sistema de formas normativas
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 192). idênticas; já para o historiador, ela existe
apenas como um processo de formação.”
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 198)
Fonte: VOLÓCHINOV (2017)

Postas as explicações, definições conceituais e os comentários, conclui-se que nem o


subjetivismo individual nem o objetivismo abstrato são suficientes para delimitar as bases do
fundamento filosófico da linguística.
De acordo com Volóchinov (2017, p. 200, grifo nosso) “O subjetivismo individualista
considera justamente o ato discursivo — o enunciado — como único e essencial. No entanto,
ele também define esse ato como individual e por isso tenta explica-lo a partir das condições
da vida psicoindividual do indivíduo falante.”. Essa vertente busca no ser a fundamentação
teórica para compreender o enunciado. Considero, como psicóloga, que há recursos teóricos
suficientes para metodizar sobre as motivações não só subjetivas, mas também para buscar um
modo sistemático e estrutural do fenômeno pelo funcionamento individual. A investigação que
parte da constatação observacional não implica um modelo científico pronto, é uma tradução
do que pode ser apreendido do objeto antes que conceitos possam ser postulados. Vide o caso
do pudim de passas como modelo atômico de Thomson. Se o que se depreende primeiro é o
sujeito falante é lógico que saia dessa condição os estudos a respeito de como, para quê e em
quais circunstâncias ocorre a enunciação. Não é um erro grave como Volóchinov afirma. É parte
do processo científico e, portanto, sempre inacabado e sempre substituível por modelos mais
aprimorados.
Quanto a segunda vertente, “O objetivismo abstrato, ao considerar o sistema da língua
como único e essencial para os fenômenos linguísticos, negava o ato discursivo — o enunciado
— como individual”. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 200, grifo nosso). Nessa passagem podemos
perceber que enunciação e enunciado podem ser a mesma instância para Volóchinov em algum
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grau. O ato da enunciação para Benveniste (1989, p. 90) é uma ação com o propósito de reunir
o ouvinte ao locutor, mas seu produto é o enunciado. Volóchinov nessa passagem dá a entender
que ato discursivo e enunciado estão no mesmo patamar e não possuem diferenciação
conceitual neste excerto do texto.
Mas logo adiante o autor explica com maior precisão que “De fato, o ato discursivo, ou
mais precisamente o seu produto — o enunciado — de modo algum pode ser reconhecido como
um fenômeno individual no sentido exato dessa palavra, e tampouco pode ser explicado a partir
das condições psicoindividuais e psíquicas ou psicofisiológicas do indivíduo falante. O
enunciado é de natureza social. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 200, grifos do autor).
Sobre esse extrato, o debate entre instâncias sociais e subjetivas retoma em forte conflito
para o pesquisador mais atento. Um não existe sem o outro. E dizer que se trata de dialética é
um modo bem simples de dar uma solução para a questão. Sem seres humanos e suas condições
psicofisiólogicas em pleno funcionamento não há tecido social algum. E sem a tecitura do
enlaçamento social pelo contrato entre os indivíduos não há como dizer da história humana. É
mero acontecimento sucessivo da vida animal e sem registro, como ocorreu durante alguns
milhões de anos enquanto estivemos nos aprimorando e adquirindo habilidades cerebrais,
funcionais e relacionais. O enunciado é de natureza social, também. Mas para o fim de chegar
em um pensamento da filosofia da linguagem marxista basta-se que seja de natureza social.
Assim entre o subjetivismo individualista e o objetivismo abstrato, o autor faz uma
diferenciação entre o enunciado para ambas as correntes. E diz que: “Efetivamente, o enunciado
se forma entre dois indivíduos socialmente organizados, e, na ausência, de um interlocutor real,
ele é ocupado, por assim dizer, pela imagem do representante médio daquele grupo social ao
qual o falante pertente.” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 204). Desse jeito, os sujeitos participantes
dessa interação discursiva são sujeitos ideológicos que perguntam e respondem continuamente
com verdades ou mentiras baseados em uma imagem, a cópia criada pelas projeções dos
pertencimentos e paixões, dos grupos aos quais o falante pertence. Logo, a organização social
ainda assim depende de condições subjetivas de participação na natureza social.
Diferente do sujeito de papel, para o indivíduo falante há a esfera do auditório social,
que é o grau médio para quem se fala como interlocutor edificado pelas suas vivências interiores
a partir das práticas sócio culturais. Para isso Volóchinov (2017, p. 206) define que “A situação
social mais próxima e o ambiente social mais amplo determinam completamente e, por assim
dizer, de dentro, a estrutura do enunciado.”. Como pesquisadora entendo como um problema
determinístico a afirmação de que a situação social mais próxima e o ambiente social mais
amplo determinam completamente. Entendemos que possa vir a determinar. Determinar
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completamente é depositar boa coragem em um pensamento que se limita pelos próprios


vórtices de vazios teóricos3.
É por isso que o conceito de enunciado, para o russo, é “[...] determinado de modo mais
próximo pelos participantes do evento do enunciado, tanto os imediatos, quanto os distantes, e
em relação a uma situação determinada; isto é, a situação forma o enunciado, obrigando a soar
de um modo e não de outro [...]” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 206), à vista disso, depreende-se
que “As camadas mais profundas da sua estrutura são determinadas por ligações sociais mais
duradouras e essenciais, das quais o falante participa.” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 207). O
enunciado além de produto da enunciação é também produto de seu meio e depende do
envolvimento do falante com suas relações de pertencimento aos grupos dos quais participa
para que o enunciado esteja melhor formatado pela ideologia do grupo.
Deste modo, podemos entender que, os marcadores dêiticos de que escreve Benveniste,
são, portanto, também marcadores ideológicos do enunciado volochinoviano. É por isso que a
vivência do eu e a vivência do nós de um indivíduo implica uma condicional na estética de seu
discurso. Os discursos possuem éticas e estéticas próprias para além do desejo do falante e do
tecido social propriamente dito. É por isso que Volóchinov (2017, p. 213) diz que “A todo
conjunto de vivências da vida e expressões externas ligadas diretamente a elas chamaremos,
diferentemente dos sistemas ideológicos formados — a arte, a moral, o direito — , de ideologia
do cotidiano.”.
Para Volóchinov, diferente de Benveniste, “O centro organizador de qualquer
enunciado, de qualquer expressão não está no interior, mas no exterior: no meio social que
circunda o indivíduo.” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 216) e, portanto, se a enunciação possui uma
condição de ação é de ação social e não de ação individual. Por isso que “Toda palavra é
ideológica, assim como cada uso da língua implica mudanças ideológicas.” (VOLÓCHINOV,
2017, p. 217). As mudanças são da ordem da ideologia e como os indivíduos operam e são
operados por elas na vida social, seus modos de existir e produzir.
O que converge para o pensamento marxista da linguagem pois:

A realidade efetiva da linguagem não é o sistema abstrato de formas linguísticas nem


o enunciado monológico isolado, tampouco o ato psicofisiológico de sua realização,
mas o acontecimento social da interação discursiva que ocorre por meio de um ou de
vários enunciados. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 219, grifos do autor).

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O que ocorre semelhantemente às criticas que são feitas a epistemologia da psicanálise. Como exemplo podemos
citar o retorno ao Complexo de Édipo como aparato de razão suficiente para responder quase todas às questões
sem respostas convincentes dentro da teoria.
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Para o autor “Todo enunciado, por mais significativo e acabado que seja, é apenas um
momento da comunicação discursiva ininterrupta (cotidiana, literária, científica, política.)
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 219) e não deve ser considerado como a palavra final. É parte de
um processo contínuo que se tece continuamente e está sendo atravessado por outros discursos
a todo instante.
Dito isso, é mais do que necessário argumentar sobre a condição interacional do
processo já que “A língua vive e se forma historicamente justo aqui, na comunicação discursiva
concreta, e não no sistema abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos
falantes.” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 220, grifos do autor). Há uma parte do processo que está
intrinsecamente ligado ao psiquismo individual. E como só uma andorinha não faz verão, é pela
interação, a interação discursiva, que o sistema da língua é colocado para girar na engrenagem
da vida social e ideológica. É um sistema que se retroalimenta continuamente. Há um ponto de
partida, mas o de chegada pode não existir e se existe é arbitrário por conveniência
metodológica.
Por fim, sobre o enunciado, Volóchinov (2017, p. 221) nos diz que “O enunciado em
sua totalidade se realiza apenas no fluxo da comunicação discursiva.” Isso implica que o
enunciado é dependente da interação para ocorrer. Nós diríamos que, grosso modo, o enunciado
precisa de interações subjetivas regidas pelas ideologias para estar situado no jogo de poder.
E encerra assim suas observações sobre o enunciado: “A totalidade é determinada pelas
fronteiras que se encontram na linha de contato desse enunciado com o meio extraverbal e
verbal (isto é, com outros enunciados).” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 221). O que quer dizer que
na inexistência de um todo, suas fronteiras nos indicam até onde conseguem chegar pela sua
imersão no meio extraverbal e verbal. Não que as fronteiras os finalizem, mas indicam onde
possam estar os outros enunciados da cadeia.
Para sintetizar suas reflexões, Volóchinov nos deixa um quadro de formulações a
respeito do enunciado e suas interações discursivas a seguir:

QUADRO 2 – FORMULAÇÕES DE VOLÓCHINOV SOBRE A LÍNGUA


FORMULAÇÕES DA PERSPECTIVA VOLOCHINOVIANA
1. “A língua como um sistema estável de formas normativas idênticas é somente uma
abstração científica.” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 224)
2. “A língua é um processo ininterrupto de formação, realizado por meio da interação
sociodiscursiva dos falantes.” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 224)
3. “As leis de formação da língua não são de modo algum individuais e psicológicas,
tampouco podem ser isoladas das atividades dos indivíduos falantes. As leis da formação da
língua são leis sociológicas em sua essência.” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 224)
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4. “A criação da língua não coincide com a criação artística ou com qualquer outra criação
especificamente ideológica. No entanto, ao mesmo tempo, a criação linguística não pode ser
compreendida sem considerar os sentidos e os valores ideológicos que a constituem.”
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 224 e 225)
5. “A estrutura do enunciado é uma estrutura puramente social. O enunciado existe, como tal,
entre os falantes. O ato discursivo individual é um contradictio in adjecto.” (VOLÓCHINOV,
2017, p. 225)
Fonte: VOLÓCHINOV (2017)

Assim como Benveniste nos esboça um quadro sobre o conceito da enunciação,


Volóchinov nos apresenta um quadro síntese sobre o enunciado. Claramente em Volóchinov
percebemos o caráter social da conceituação do enunciado e como ele trabalha com o produto
da enunciação e não com o ato individual da enunciação como para Benveniste.

IMPLICAÇÕES DAS DEFINIÇÕES DOS AUTORES PARA O PESQUISADOR

Os autores escrevem sobre as mesmas duas instâncias fenomenológicas: a enunciação e


o enunciado. Para Benveniste a enunciação acaba por ganhar um destaque maior, pois seu
propósito é o de elocubrar sobre a realização da enunciação. Para Volóchinov o enunciado
detém mais propriedades teóricas que a enunciação, dado o seu caráter ideológico não se atém
ao falante individual. E por isso o enunciado recebe destaque como produto de ações
ideológicas dos falantes.
Benveniste em dado momento afirma que “A relação do locutor com a língua determina
os caracteres linguísticos da enunciação” (Benveniste, p. 82). Nesse ponto temos uma
convergência com Volóchinov e o princípio ideológico da linguagem. Os caracteres linguísticos
podem ser um indicativo de quem e qual lugar se falou.
Além das marcas enunciativas, temos também as marcas ideológicas, discutidas por
Volóchinov, que acompanham os marcadores linguísticos. Como a enunciação pressupõe um
outro o processo implica um sujeito, não mais o falante, que diz algo para um outro, como um
auditório social, num processo dialógico ideológico.
O diálogo é uma organização presente em ambos os autores. Porém, as modificações
causadas pelo diálogo possuem diferenças quanto ao modo de funcionamento do enunciado e
o grau de alcance no grupo. Para Benveniste se a enunciação é um ato individual na qual
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prevalece o aspecto subjetivo do ato, para Volóchinov o enunciado possui um alcance maior
por carregar ideologias e as representar dentro do grupo social.
No que tange aos efeitos dos conceitos para o pesquisador podemos dizer de três pontos.
O primeiro: a escolha teórica de um ou outro autor será determinante para a perspectiva de
estudo do objeto dado que a expansão do objeto para outros campos talvez não seja possível
porque pode vir a constituir inconsistência metodológica. O segundo: o recorte do objeto se
torna circunscrito aos operadores conceituais e estará limitado a ser investigado por aquele
ângulo e, talvez, em um estudo comparativo, mas entendemos que dependendo do que será
examinado ocorre uma restrição da pesquisa dada a premissa do conceito. E o terceiro e último
é que: ao se considerar o objeto, o pesquisador deve ter em seu horizonte se o modo como ele
quer pesquisa-lo comporta os conceitos disponíveis já existentes. Não que o ineditismo seja um
problema, mas descobrir que a sua pesquisa será inédita no meio de um caminho com prazo
pode não ser uma surpresa agradável.

CONCLUSÕES

Benveniste e Volóchinov possuem mais semelhanças que diferenças quanto ao percurso


de desenvolvimento conceitual. O que demarca um conceito de outro são as abordagens das
referências epistemológicas pelas quais os autores escolhem compreender o fenômeno da
enunciação e do enunciado. Sendo o fenômeno o mesmo, é até esperado que ocorram mais
semelhanças dada as convergências da constatação observável do próprio fenômeno. Desse
modo percebemos que os conceitos acionados, nesse caso, dependem, além do propósito do
pesquisador que as utilizará, também dos limites metodológicos disponíveis como recurso para
a investigação.
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REFERÊNCIAS

CALAME, Claude. O sujeito da enunciação: breve introdução. In: Lé recit em Grèece ancienne. Énonciations et
représentations de poètes. Paris: Méridiens Klincksieck, 1986.

BENVENISTE, Émile. Da subjetividade da linguagem. In: Problemas de linguística geral I. São Paulo: Editora
Pontes, 1991. p. 284-293.

BENVENISTE, Émile. O aparelho formal da enunciação. In: Problemas de linguística geral II. São Paulo:
Editora Pontes, 1989. p. 81-90.

FLORES, Valdir do Nascimento. Introdução à teoria enunciativa de Benveniste. São Paulo: Parábola, 2013. p.
161-177.

FLORES, V. do N., FARACO, C. A., & GOMES, F. A. (2021). As particularidades da palavra, o privilégio da
língua: especificidades e primazia do linguístico, em Volóchinov e Benveniste. In: Bakhtiniana. Revista De
Estudos Do Discurso, 17(1), Port. 16–38 / Eng. 15.
https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/53484. Acesso em 02 de feveireiro de 2024.

VOLÓCHINOV, Valentin. N. A interação discursiva. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas


fundamentais do método sociológico. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 201-225.

VOLÓCHINOV, Valentin. N. Língua linguagem e enunciado. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas


fundamentais do método sociológico. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 173-200.

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