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SEMÂNTICA E

PRAGMÁTICA

Silvia Adélia Henrique Guimarães


Dêixis e modalização
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Descrever o fenômeno da dêixis.


 Enumerar os elementos dêiticos.
 Explicar o fenômeno da modalização em estruturas simples e
complexas.

Introdução
Neste capítulo, você vai estudar o fenômeno da dêixis e o fenômeno da
modalização. Ambos são muito importantes para os estudos da lingua-
gem e para a produção de sentido.
A dêixis é o fenômeno responsável por ativar certos elementos ex-
tralinguísticos para que se possa efetivar a compreensão de algum ele-
mento linguístico em determinada situação comunicativa. Por sua vez,
a modalização serve para posicionar o enunciador em seu enunciado.

1 O fenômeno da dêixis
“Dêixis” é uma palavra que guarda relação com a noção de apontamento.
É um termo de origem grega traduzido por “apontar”, “mostrar”, “indicar”.
Mesmo ao ser incorporado pelo latim, e também pelos estudos da linguagem,
o termo preservou seu sentido etimológico. O fenômeno da dêixis, estudado do
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ponto de vista da pragmática, ocorre quando algum dado linguístico precisa


se ancorar na própria situação comunicativa, tendo como ponto de origem o
enunciador daquela comunicação, para ter o seu sentido adequadamente cons-
truído (FIORIN, 1996; ILARI, 2001; ILARI; GERALDI, 2008; MELO, 2015).
Na tradição dos estudos da pragmática, Émile Benveniste é considerado o
precursor dos estudos da dêixis, tendo em vista que outros teóricos que estuda-
ram esse fenômeno o fizeram a partir de áreas de conhecimento diversas. Veja:

No que diz respeito aos estudos linguísticos, que é o que nos interessa de
perto, praticamente toda a literatura sobre dêixis menciona Benveniste como
fundamento. E se não o fazem diretamente, fazem-no mencionando autores
como Lahud (1979), Levinson (1983), Fillmore (1971; 1979;1982), Lyons
(1977;1982), que, por sua vez, fundamentam-se em Benveniste. A herança
deixada por esses autores foi a do tratamento da dêixis primordialmente
como fenômeno de ostensão e, além disso, a da classificação, já tradicional,
em dêixis de pessoa, tempo e lugar, com diversos subtipos, como a dêixis
social, a dêixis discursiva e a dêixis de memória (CIULLA, 2018, p. 365).

Benveniste foi o teórico que, ao estudar a linguística geral, de Saussure,


concluiu que a linguagem não existe fora dos sujeitos de sua produção (BEN-
VENISTE, 2005). Isso deságua em outra proposição importante de Benveniste,
que se relaciona à noção de subjetividade. Se os estudos clássicos da dêixis
concentravam-se no aspecto “locacional”, de apontamento, Benveniste postulou
algo mais “contextual”. Para o teórico, considerar o enunciador na produção
da linguagem resulta em saberes sobre a constituição de subjetividade e sobre
como ela interfere, de seu lado, na própria construção da linguagem. Nas
palavras de Benveniste (2005, p. 288), “[...] ‘eu’ se refere ao ato de discurso
individual, no qual é pronunciado e lhe designa o locutor. É um ser que não
pode ser identificado, a não ser dentro do que, noutro passo, chamamos de
instância do discurso, e que só tem referência atual”.
Assim, para Benveniste (2005), a assunção de um “eu” está intimamente
ligada à situação enunciativa. Mas há outro fator que ele salienta: o “eu” se
pronuncia para um “tu”, que também se constrói subjetivamente. Logo, a
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teoria defendida por Benveniste é a da (inter)subjetividade, que ocorre em


um tempo e um espaço que também partem do posicionamento do enunciador.
Inicia-se, assim, a concepção “eu–aqui–agora” de Benveniste.
É nas pistas da linguagem que se reconhece essa tríade “eu–aqui–agora”.
Tais pistas linguísticas necessitam de informações fora do contexto linguístico
para se completarem comunicativamente. Por isso, pronomes pessoais como
“eu” e “tu” são reconhecidos como elementos dêiticos, pois é “fora deles”
que se encontra o referente dêitico. Isso ocorre porque os pronomes citados
podem se referir a uma ou outra pessoa no discurso, a depender de quem
esteja falando (portanto, para fazer uma leitura correta do ato enunciativo,
você precisa saber quem é a pessoa que está falando).

A seguir, veja algumas definições importantes.


 Elemento dêitico: elemento linguístico que materializa o fenômeno da dêixis.
 Referente dêitico: referente com o qual o elemento dêitico cria um elo na enun-
ciação (tradicionalmente, diz-se que é para quem o elemento dêitico aponta).
 Enunciação: situação “do mundo real” que está construindo comunicação.
 Enunciador: aquele a partir de quem ocorre a enunciação.
 Enunciatário: aquele com quem se estabelece a comunicação, para quem se
dirige a enunciação.
 Elemento exofórico: “exo” significa “fora”, enquanto “phora” significa “portar”,
“carregar”. Assim, o elemento exofórico carrega o sentido para fora do enunciado.

Esse tipo de construção centrada no enunciador ocorre, igualmente, no caso


de advérbios como “aqui” e “ali”. Esses termos, a depender da localização de
quem está falando, podem significar um ou outro lugar. Portanto, para referi-los
adequadamente, você precisa saber para onde o enunciador está apontando
— lugar esse que também pode ser simbólico. Benveniste (2005) seguiu esse
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mesmo raciocínio para a construção dêitica do tempo, para completar o eixo


“eu–aqui–agora” da subjetividade.
Essa necessidade mais pragmática de dependência do ato enunciativo para
se construir um sentido leva os elementos dêiticos a serem chamados também
de elementos “exofóricos”, pois é fora do enunciado que eles encontram a
sua referência. Contudo, observou-se que um dêitico poderia encontrar sua
referência não apenas fora do texto: por vezes, a referência dêitica poderia
estar no texto, ou no discurso. Assim, assume-se também o dêitico como um
elemento vazio que tem seu sentido carregado em “elementos fóricos”, de
acordo com a situação.
Fillmore (1971) é tido como o primeiro teórico que acrescentou aos três
tipos clássicos de dêixis a dêixis textual, a dêixis social e a dêixis de memória.
Essas classificações são amplamente seguidas na atualidade. A dêixis textual
faz referência a outro elemento dentro do próprio texto ou discurso (podendo
ser chamada, por alguns teóricos, de dêixis discursiva). A dêixis social faz
referência às relações existentes entre os enunciadores — se são respeitosas,
impositivas, etc. Por sua vez, a dêixis de memória depende de os dois partici-
pantes da enunciação terem um conhecimento partilhado, para que possam
resgatar, na memória, o referente dêitico.
Não se esqueça de que a base teórica que pauta a pragmática defende que
linguagem é ação (AUSTIN, 1990). Assim, qualquer situação linguística a
ser analisada dentro desse escopo precisa ser analisada do ponto de vista de
um fazer(-se) no mundo extralinguístico, de um agir sobre o outro. Logo, o
enunciador é o eixo central nos estudos da dêixis; ou seja, o enunciador é o
centro de todas as coordenadas do evento enunciativo. Essa perspectiva não é
diferente na teoria da modalização, que você vai estudar ainda neste capítulo.
A modalização trata-se de uma teoria que estuda o modo de expressão de um
enunciador em um momento de enunciação. Por isso, modalizar é colocar-se no
mundo, é agir sobre ele, é posicionar-se de uma ou de outra forma, a depender
dos modalizadores escolhidos para enunciar.
Neste capítulo, portanto, você vai estudar os principais elementos dêiticos,
bem como os elementos modalizadores. As classificações servirão como base
para que você possa aplicar esses saberes de modo contextualizado. Lembre-se
de que o contexto de enunciação é que lhe dará as ferramentas necessárias
para explicar o fenômeno da dêixis e o fenômeno da modalização.
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2 Elementos dêiticos
Como você já viu, Benveniste foi responsável por formular as três categorias
clássicas dos componentes dêiticos, a partir da pessoa na enunciação (por isso,
classificou-os em dêixis de pessoa, de tempo e de espaço). Contudo, outros
teóricos sugeriram um desdobramento dessa classificação. Aqui, você vai
conhecer outras três categorias comumente estudadas: dêixis social, textual
e de memória.

Embora muitos estudiosos considerem que os elementos anafóricos e dêiticos podem


se sobrepor e formar um continuum na comunicação, você não deve confundir ele-
mentos dêiticos com elementos anafóricos (CAVALCANTE, 2011). Estão em jogo dois
fenômenos distintos, embora os dois façam referência a determinados elementos.
Enquanto a anáfora refere-se a termos e a expressões linguísticas dentro ou fora do
mesmo texto (oral, escrito ou multimodal), os dêiticos estão diretamente ligados à
situação de enunciação.
Como pontuam Ilari e Geraldi (2008, p. 69), no português “[...] há uma grande
maioria de expressões que se usam ora como anáforas, ora como dêiticas, mas
os dois fenômenos são distintos em princípio; e em certos casos os dêiticos e os
anafóricos distribuem-se em séries paralelas mas não intercambiáveis”. É o caso
destes exemplos: “ontem”, “na véspera”, “hoje”, “naquele dia”, “amanhã”, “no dia
seguinte”.

Dêixis de pessoa
As dêixis pessoais são aquelas que se referem aos interlocutores de determi-
nada enunciação. Um termo técnico bastante utilizado nos estudos da dêixis
é “origo”, que significa “origem” ou “ponto de origem”. Os referentes aos
quais os elementos dêiticos remetem sempre partem de uma origo, ou seja,
partem do enunciador, do “eu” que dá origem ao enunciado (CAVALCANTE;
CUSTÓDIO FILHO; BRITO, 2014).
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Por isso, linguisticamente, a dêixis de pessoa é representada por pronomes


de primeira e segunda pessoas do discurso (sejam eles pronomes pessoais ou
possessivos), por pronomes possessivos e sufixos verbais de número e pessoa
(que servirão como pista, caso o pronome pessoal não apareça no enunciado)
e por vocativos.

Os pronomes pessoais de primeira e de segunda pessoas funcionam como dêiticos,


mas os pronomes de terceira pessoa, não. Isso ocorre porque os pronomes de terceira
pessoa são assumidos como “não pessoas”, já que não participam diretamente do ato
enunciativo: fala-se sobre a terceira pessoa, mas não se fala com ela.

Dêixis espacial
Os dêiticos espaciais são marcadores de ostensão (ato ou efeito de mostrar).
Eles estão relacionados a um lugar situado na enunciação; ou seja, estão
relacionados ao distanciamento e à proximidade entre o locutor e um refe-
rente. A classe de palavras que geralmente cumpre essa função dêitica é a
dos advérbios (Quadro 1).

Quadro 1. Elementos efetivadores da dêixis espacial

Classe de palavras Alguns exemplos

Advérbios (com valor) de lugar Aqui, ali, cá, lá, além

Locuções adverbiais (com valor) de lugar Aqui perto, lá atrás

Pronomes e determinantes Este, esse, aquele, aquilo, o outro, o mesmo


demonstrativos

Certos verbos que indicam movimento Ir, vir, trazer, levar, partir, chegar, aproximar-
-se, afastar-se, subir, entrar, sair, descer

Certas preposições e locuções prepositivas Perante, ao lado de


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O advérbio de lugar realizará uma marcação dêitica apenas se o enunciador


for o ponto de origem do lugar em questão. Assim, possibilidades vagas e
localização, como a demarcada pelo advérbio “onde”, não estão recobertas de
valor dêitico (CAVALCANTE; CUSTÓDIO FILHO; BRITO, 2014).
Agora, observe a Figura 1.

Figura 1. Tirinha da personagem Mafalda.


Fonte: Quino (2011, documento on-line).

O pronome demonstrativo grifado no último quadrinho funciona, nesse


caso, como um elemento dêitico espacial. A dêixis tem como lugar inicial o
enunciador, o “eu” discursivo — Mafalda. Portanto, o demonstrativo tem por
referência o mundo em que a personagem vive — a Terra.
Alguns profissionais poderiam tender a classificar o pronome em análise
pela teoria da anáfora. Considere ainda que essa é uma situação enunciativa
com muitas nuanças, especialmente porque o enunciador está apresentando,
ainda que inferencialmente, um valor negativo sobre o mundo em que vive.
Por fim, existem expressões não dêiticas que podem funcionar, em deter-
minados contextos, como dêiticas. Essa complexidade pode ser observada na
descrição de Ilari e Geraldi (2008, p. 66-67, grifos nossos):

Os demonstrativos, pronomes pessoais e tempos de verbos são os exemplos


sempre lembrados de palavras dêiticas, mas a dêixis é um fenômeno bem mais
comum do que o uso dessas formas; elementos dêiticos podem virtualmente
compor-se com elementos não dêiticos na significação de palavras e expli-
car “antonímias” que de outro modo seriam incompreensíveis. Uma dessas
antonímias é entre ir e vir: as orações
(3) Pedro veio de São Paulo para o Recife.
e
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(4) Pedro foi de São Paulo para o Recife.


não se distinguem pela natureza da ação referida, que consiste em ambos os casos
numa mesma viagem, num mesmo deslocamento geográfico, e, sim, pelo fato de
que o locutor se situa, num caso, no ponto de chegada e, no outro caso, fora dele.
Analogicamente, um mesmo movimento de massas populacionais será descrito,
conforme o ponto de vista, como imigração ou emigração; e se jogarmos como os
limites do que se deva entender por “nós” ou “nosso país”, uma mesma campanha
militar de ocupação poderá ser apresentada como uma invasão ou uma defesa (a
história da guerra do Paraguai é contada de outro modo... do outro lado da fronteira).

Dêixis de tempo
Os dêiticos temporais indicam determinado tempo, cuja demarcação ocorre
no momento da enunciação. Assim como no caso dos dêiticos espaciais,
nem todos os marcadores de tempo equivalem a um dêitico. Mais uma vez,
a observação contextual da enunciação é que promoverá essa compreensão.
Os advérbios de tempo “ontem”, “agora” e “amanhã” são exemplos clássicos
da dêixis temporal. Contudo, você não pode se esquecer de que o contexto
enunciativo é essencial para essa compressão. Uma expressão como “desde
que saí do seu abraço” é um marcador de tempo.

Dêixis social
Essa categoria dêitica, de certa forma, é uma extensão da categoria “dêixis de
pessoa” — ou uma especificidade dela. É de acordo com o contexto situacional
que alguém decide como vai acionar o seu interlocutor. Essa escolha redunda
na construção da relação entre ambos: uma relação de maior proximidade ou
distanciamento, de maior respeito ou petulância, etc.
Essas leituras, contudo, são possíveis apenas de acordo com o con-
texto de interação. O mesmo pronome de tratamento “você” pode acionar
sensação de intimidade entre amigos, o que é positivo, e sensação de
desrespeito em relação a um médico ou uma pessoa idosa. Por outro lado,
a escolha do pronome de tratamento “senhora” pode demonstrar respeito
a uma pessoa mais jovem, mas também ironia. Assim, a dêixis social “[...]
remete diretamente aos interlocutores, mas as formas que a codificam
refletem relacionamentos em sociedade que condicionam a escolha dos
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níveis de maior ou menor formalidade” (CAVALCANTE; CUSTÓDIO


FILHO; BRITO, 2014, p. 88).
O dêitico social, portanto, aponta para a relação entre pessoas ou grupos
na sociedade, marcando hierarquias e papéis sociais de maior ou de menor
prestígio, por exemplo (MELO, 2015). Geralmente, vocativos e pronomes de
tratamento são os termos linguísticos que cumprem essa função dêitica. São
exemplos de dêixis social: “mestre”, “doutor” e “tu”.

Dêixis textual
Diferentemente dos demais elementos dêiticos, a dêixis textual materializa-se
no cotexto. Portanto, o ponto de partida desse tipo de dêixis é o próprio texto.
A partir desse ponto, o “começo–meio–fim”, o “antes–depois” e o “acima–
abaixo” são os tempos e espaços a serem compreendidos. Veja:

O que chamaremos de dêixis textual é sempre um processo híbrido que mis-


tura uma função anafórica (ou de introdução referencial) com uma função
dêitica. É dêitico porque considera o ponto de origem do locutor; é anafórico
(ou introdutório) porque sempre vai estabelecer uma cadeia com outro refe-
rente do texto (CAVALCANTE; CUSTÓDIO FILHO; BRITO, 2014, p. 94).

São representantes de dêixis textuais expressões como “no exemplo acima”, “no
parágrafo anterior”, “aqui”, “no quadro abaixo”, “no texto ao lado” e “a seguir”.

Dêixis de memória
Ocorre quando o coenunciador precisa dispor de um conhecimento prévio e
compartilhado para acionar determinado referente apontado pelo demonstra-
tivo. Em “naquele dia”, “aquele” aponta para um evento presente na memória
dos interlocutores. Presume-se que ambos saibam a que dia se refere o pronome
e o que aconteceu em tal dia.
Veja como um exemplo de dêixis de memória aparece na letra da canção
“Aquele abraço”, de Gilberto Gil (c2003-2020, documento on-line, grifos
nossos).
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O Rio de Janeiro continua lindo


O Rio de Janeiro continua sendo
O Rio de Janeiro, fevereiro e março
Alô, alô, Realengo
Aquele abraço!
Alô torcida do Flamengo
Aquele abraço
Chacrinha continua
Balançando a pança
E buzinando a moça
E comandando a massa
E continua dando
As ordens no terreiro
Alô, alô, seu Chacrinha
Velho guerreiro
Alô, alô, Terezinha
Rio de Janeiro
Alô, alô, seu Chacrinha
Velho palhaço
Alô, alô, Terezinha
Aquele abraço!
Alô, moça da favela
Aquele abraço!
Todo mundo da Portela
Aquele abraço!
Todo mês de fevereiro
Aquele passo!
Alô, Banda de Ipanema
Aquele abraço!
Meu caminho pelo mundo
Eu mesmo traço
A Bahia já me deu
Régua e compasso
Quem sabe de mim sou eu
Aquele abraço!
Pra você que me esqueceu
Rum!
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Aquele abraço!
Alô, Rio de Janeiro
Aquele abraço!
Todo o povo brasileiro
Aquele abraço!

É necessário um conhecimento de mundo para compreender a que abraço


o enunciador da canção se refere. Há uma série de saberes implicados, em
especial a respeito da vida do compositor Gilberto Gil. Por exemplo: conhe-
cimentos sobre a ditadura militar e a forma de atuação desse músico naquele
período; e conhecimentos sobre o time de futebol para o qual ele torce, para
entender a carga de ironia em relação ao time do Flamengo.

3 O fenômeno da modalização
De acordo com Neves (2000, p. 244), “Modalizar é expressar alguma interven-
ção do falante na definição da validade e do valor do seu enunciado: modalizar
quanto ao valor de verdade, modalizar quanto ao dever, restringir o domínio,
definir atitude e, até, avaliar a própria formulação linguística”.
A modalização serve para posicionar o enunciador em seu enunciado.
Por isso, muitas vezes, a modalização é entendida como uma opinião implí-
cita do enunciador. Como você já viu, para Benveniste (2005), a linguagem
é construção de subjetividade. Para construir essa subjetividade, ou para
mostrar uma parte conveniente dela, o enunciador apropria-se de diferentes
recursos linguísticos. Assim, além de dar algum valor de fala ao enunciador,
a modalização pode também isentar o falante de alguma responsabilidade ou
comprometimento no ato enunciativo.
Contudo, essa “isenção” é apenas aparente. Textos como os empresariais
(memorando, por exemplo), os judiciais (como sentenças) e os noticiosos
(como a notícia), que tradicionalmente apelam para a neutralidade, também
têm marca de modalização e, de alguma forma, posicionam o enunciador.
Veja o que afirma Nascimento (2013, p. 10):

Por mais que a sociedade tente sistematizar, normatizar e estabelecer padrões


para as interações no ambiente empresarial e oficial, a natureza dialógica
e argumentativa da linguagem irá prevalecer. Assim, sempre haverá, em
maior ou menor grau, marcas que denunciam as intenções e a presença do
responsável pelo dito.
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Até aqui, você viu a noção funcional dos modalizadores, que pode ser tão
ampla quanto a intencionalidade do enunciador. Agora, você está convidado a
se concentrar no aspecto gramatical da construção dos modalizadores (KOCH,
2011a, 2011b):

 certos advérbios/locuções adverbiais;


 adjetivos, nos casos em que eles revelem opinião ou posicionamento;
 verbos modais (“poder”, “ter”);
 verbos proposicionais (“crer”, “achar”, “ser”);
 construção de auxiliar + infinitivo (“ter de”, “precisar de”);
 estruturas subordinadas, nos casos em que os verbos constitutivos
expressem modalidade (“tenho certeza de que”; “todos sabem que”;
“não há dúvidas de que”);
 verbos performativos explícitos (“ordeno”, “suplico”, “requeiro”);
 modos e tempos verbais;
 operadores argumentativos (“pouco”, “um pouco”, “quase”, “muito”,
“demais”, “mesmo”).

Koch (2011a, 2011b) apontou que um mesmo recurso linguístico pode operar
diversos tipos de modalização. Ademais, a intenção é a base da análise da mo-
dalização. Note, por exemplo, a diferença de posicionamento do enunciador em
frases como: “é preciso que eu vote com consciência”, “é provável que eu vote com
consciência” e “é certo que eu vote com consciência”. Do mesmo modo, ainda
segundo Koch (2011a, 2011b), o verbo “dever” pode exprimir diferentes intenções,
a depender do enunciado: “todos devem ficar em casa” (obrigação), “deve chover
amanhã” (possibilidade), “devo estar ficando gripado” (possibilidade).
Agora que você conheceu um pouco do panorama dos modalizadores, nas
subseções a seguir, você vai estudar os recursos da teoria da modalização e
as suas funções discursivas.

Modalizadores epistêmicos
A palavra “epistêmico” e seus derivados (“epistemologia”, “epistemológico”)
têm sentido relacionado à noção de saber. Por isso, a modalização epistêmica
está diretamente ligada ao saber, a crença e à opinião do enunciador — seja
Dêixis e modalização 13

no âmbito da certeza, da quase certeza ou da probabilidade (em função de


uma habilidade para se fazer algo).
Veja alguns advérbios e expressões adverbiais que podem emergir em cons-
truções desse tipo: “realmente”, “naturalmente”, “exatamente”, “sem dúvida”,
etc. Note que expressões com valor predicativo também podem funcionar como
modalizadoras. É o que ocorre em: “é certo”, “estou seguro”, “ficou evidente”,
“podem contrair”, etc. A seguir, veja como os modalizadores são classificados.

 Modalização epistêmica asseverativa: sugere que o enunciador consi-


dera determinado conteúdo certo/verdadeiro. Essa modalização restringe
a contra-argumentação, pois estabelece que o enunciador é detentor de
determinado saber, com discurso de autoridade. Silva (2009, p. 2.278)
apresenta o seguinte exemplo: “O Brasil não pode aspirar posição de
grande nação sem fazer da educação uma prioridade”. Para ela, “[...]
o uso da expressão ‘não pode’ implica que o locutor ‘tem certeza’ a
respeito da prioridade em educação no Brasil”, o que marca o caráter
asseverativo do modalizador (SILVA, 2009, p. 2.278).
 Modalização epistêmica quase asseverativa: sugere que o enunciador
considera determinado conteúdo quase certo/quase verdadeiro. Veja
estes exemplos: “talvez”, “possivelmente”, “provavelmente”, “quase”,
“uma forma de”, “um tipo de”, “estatisticamente”, etc. Silva (2009, p.
2.278) explica uma ocorrência asseverativa a partir da seguinte frase:
“Pode-se conceber o fenômeno da criminalidade como pirâmide, cujo
vértice é ocupado pelas chefias do crime, com seus staffs de gerentes,
conselheiros e lavadores de dinheiro”. Ao explicá-la, a pesquisadora
diz: “[...] a par do uso de ‘pode-se’, o locutor dá a entender que sua
afirmação é uma opinião pessoal, dessa forma, não evidencia neces-
sariamente uma verdade, mas sim uma crença. Ele crê que ‘pode-se
conceber o fenômeno da criminalidade como uma pirâmide’” (SILVA,
2009, p. 2.278).
 Modalização epistêmica habilitativa: sugere a capacidade de alguém
para fazer algo expresso no enunciado.
14 Dêixis e modalização

Modalizadores deônticos
A palavra “deôntico” está relacionada aos deveres morais, às obrigações. Ela
não pode ser confundida com a palavra “dêixis”, pois ambas têm origem,
significado e aplicação completamente diferentes. A partir do significado de
“deôntico”, você pode concluir que os modalizadores deônticos estão direta-
mente relacionados às noções de obrigação e obrigatoriedade.

 Modalização deôntica de obrigatoriedade: relaciona-se a uma im-


posição. Pode demonstrar um discurso de autoridade. Um exemplo de
locução verbal que opera nessa classificação é o “ter” (“tem de fazer”).
Esse tipo de modalização também pode estar voltado para ações futuras
(SILVA, 2009).
 Modalização deôntica de proibição: como o nome antecipa, trata-se
de uma modalização que proíbe algo. Esses modalizadores estabelecem
uma restrição.
 Modalização deôntica de possibilidade: relaciona-se a uma probabili-
dade que opera em dois eixos: aquilo que tem permissão para acontecer
e aquilo que tem probabilidade de acontecer, mesmo que não tenha
relação com a vontade.
 Modalização deôntica volitiva: está relacionada à vontade, ao querer,
ao desejar no discurso.

Modalizadores avaliativos
Esses modalizadores estão relacionados a uma avaliação. São de base predi-
cativa. São exemplos de advérbios observados nessa categoria: “felizmente”,
“curiosamente”, “surpreendentemente”, “sinceramente”, “lamentavelmente”.

Modalizadores restritivos
Esses modalizadores são assim chamados pelo fato de delimitarem certo espaço
ou campo de entendimento (geograficamente, biologicamente, entre outros).
No Quadro 2, a seguir, veja um resumo dos modalizadores.
Dêixis e modalização 15

Quadro 2. Tipos e subtipos de modalizadores

Tipo de Efeito de sentido no enunciado


modalização Subtipos ou enunciação

Epistêmica Asseverativa Apresenta o conteúdo como algo certo ou


(expressa verdadeiro.
avaliação sobre
Quase assertiva Apresenta o conteúdo como algo quase certo ou
o caráter de
verdadeiro.
verdade ou
conhecimento)
Habilitativa Expressa a capacidade de algo ou alguém realizar o
conteúdo do enunciado.

Deôntica De Apresenta o conteúdo como algo obrigatório e que


(expressa ava- obrigatoriedade precisa acontecer.
liação sobre o
De proibição Expressa o conteúdo como algo proibido, que não
caráter faculta-
pode acontecer.
tivo, proibitivo,
volitivo ou de De Expressa o conteúdo como algo facultativo ou dá
obrigatorie- possibilidade permissão para que algo aconteça.
dade)
Volitiva Expressa um desejo ou vontade de que algo ocorra.

Avaliativa (ex- — Expressa uma avaliação ou ponto de vista sobre o


pressa avalia- conteúdo, excetuando-se qualquer caráter deôn-
ção ou ponto tico ou epistêmico.
de vista)

Delimitadora — Determina os limites sobre os quais se deve consi-


derar o conteúdo do enunciado.

Fonte: adaptado de Nascimento (2013).

Neste capítulo, você viu as noções centrais de dêixis e modalização. Na


primeira seção, você viu que a dêixis ultrapassa a noção de “apontar para fora
do texto”. A dêixis parte de uma origo: ela é sempre construída de um “eu”
para um “tu” — o “ele” não é, portanto, elemento dêitico. Além disso, você
16 Dêixis e modalização

viu que, por meio dos elementos dêiticos, constrói-se a (inter)subjetividade;


ou seja, os elementos dêiticos dão pistas sobre quem é o enunciador e sobre
como ele “constrói” o seu coenunciador.
Na segunda seção, você aprofundou seus conhecimentos sobre a noção
de dêixis e viu, com vários exemplos, a classificação dos elementos dêiticos:
dêixis de pessoa, dêixis de tempo, dêixis de espaço, dêixis social, dêixis
textual e dêixis de memória.
Na terceira e última seção, você estudou a modalização. Como você
viu, um enunciador, ao se posicionar frente ao seu discurso/texto, mesmo
que seja indiretamente, está modalizando — e isso ajuda a construir a
subjetividade do enunciador. Ainda na terceira seção, você conheceu a
classificação da modalização em epistêmica, deôntica, avaliativa e deli-
mitadora, verificando as formas como o enunciador pode se posicionar
em seu discurso.

Observe que os lexemas modais são modais em potencial. O contexto e a estrutura


linguística, somados, sempre direcionarão a sua análise. Veja os exemplos a seguir.

(a) Eu acho que é nos sites que os


produtos são mais baratos.
(b) Ele acha que é nos sites que os
produtos são mais baratos.
(c) Naquela época, eu achava que era nos
sites que os produtos eram mais baratos.

Apenas em (a) você observa um modalizador. Em (b), a estrutura complexa pode


confundir a análise, mas você não está diante de um emprego modal, tendo em vista
que o pronome está em terceira pessoa (não se esqueça da relação entre “eu” e “tu”).
Em (c), também não há modalizador, tendo em vista o verbo no passado (NEVES, 2000).
Dêixis e modalização 17

AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
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Leituras recomendadas
CABRAL, A. L. T.; SANTOS, L. W. Dêixis pessoal e verbos na construção de um objeto
de discurso argumentativamente orientado. Conexão Letras, v. 11, n. 15, p. 25-37, 2016.
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