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X Congresso de Pesquisa e Extensão da FSG

& VIII Salão de Extensão

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ISSN 2318-8014

VIOLÊNCIA DE GÊNERO, DOMÉSTICA E FAMILIAR TRANSGERACIONAL:


UMA VISÃO SISTÊMICA
Fabiana Verzaa*, Clarissa Lisana Toresan Moreira Buenob e Lisana Maria Toresan Buenob

a) Doutorado em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.
b) Curso de Psicologia, Centro Universitário da Serra Gaúcha, Caxias do Sul, RS.

Informações de Submissão Resumo


*Orientador (autor correspondente): O primeiro grupo social do indivíduo é o sistema familiar, no
Fabiana Verza, endereço: Rua Os Dezoito do qual também se inscrevem as primeiras impressões de
Forte, 2366. Caxias do Sul – RS. gênero. Estudos desenvolvidos a partir do contexto da
CEP: 95020-472. pandemia de covid-19 apontam que o cônjuge é o principal
E-mail: Fabiana.verza@fsg.br agressor nas relações familiares. No entanto, a violência
intrafamiliar passou a ser objeto de estudo apenas nos anos
Palavras-chave:
1990, sendo que, nos anos 2000 surgiram estudos
Sistema familiar. Transgeracionalidade. relacionados à transgeracionalidade e, posteriormente, se
Violência intrafamiliar. passou a relacionar o ciclo da violência intrafamiliar com as
heranças familiares.

1 INTRODUÇÃO

Estudos recentes que analisaram a violência doméstica no contexto da pandemia de covid-19


concluíram que o principal agressor nas relações familiares foi o cônjuge, seguido pelo
companheiro da vítima, ex-cônjuge e, por último, um suspeito desconhecido (Souza e Farias, 2022).
O presente trabalho tem o objetivo de analisar a violência de gênero, doméstica e familiar
como transmissão geracional considerando os aspectos da teoria sistêmica. Nesse sentido, é
importante destacar que o primeiro grupo social do indivíduo é o sistema familiar, no qual é
desenvolvido o primeiro aprendizado dos papéis sociais e sexuais e no qual se inscrevem as
primeiras noções de gênero.
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Além disso, o sistema familiar é um complexo sistema de crenças, valores e modelos de


funcionamento ligados às gerações anteriores (Goulart et al. 2020). É desse grupo familiar que o
indivíduo depois transita para outros grupos nos quais passa a fazer parte na sua vida, considerando
os subsistemas, a cultura e a sociedade na qual está inserido (Narvaz e Koller, 2002). Para Minayo
(2006, p. 80 apud Campos e Zacharias, 2017), a violência intrafamiliar é uma forma de
comunicação entre os sujeitos daquele núcleo familiar e, quando ali é detectado algum tipo de
abuso, com frequência, também existe uma interrelação que expressa várias formas de violência.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

A violência intrafamiliar é uma violência de gênero e ocorre entre parceiros íntimos e entre
os membros da família e ocorre principalmente no ambiente em que os envolvidos convivem e
residem, não sendo necessariamente o ambiente o caracterizador da violência doméstica e sim a
relação entre o agressor e a vítima (Minayo, 2006, p. 80 apud Campos e Zacharias, 2017).
À luz da legislação, a Lei Maria da Penha considera que a violência doméstica e familiar
ocorre tanto no ambiente doméstico, que é o espaço de convívio permanente de pessoas que tenham
ou não vínculo familiar e até mesmo as agregadas; quanto no âmbito familiar, que é considerado a
comunidade formada por pessoas que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais,
por afinidade ou vontade expressa; e também em qualquer relação íntima de afeto, na qual o
agressor conviva ou tenha convivido com a vítima, independente de coabitação (Lei n.º
11.340/2006).
Contudo, nem sempre a violência intrafamiliar foi questionada e abordada em estudos
científicos, isso porque somente no início dos anos 1990 surgiram livros e artigos relacionados à
violência sofrida por mulheres e perpetrada por agressores do sexo masculino da própria família
(Nichols e Schwartz, 2007, p. 188).
Por sua vez, a transgeracionalidade consiste nos processos transmitidos de uma geração a
outra e que se mantêm presentes ao longo da história familiar, ou seja, são padrões relacionais que
se repetem, ainda que as pessoas envolvidas não percebam (Camicia et al. 2016), bem como essas
referências interferem e moldam a identidade dos indivíduos das gerações seguintes. O estudo da
transgeracionalidade no contexto da violência familiar é importante para a compreensão dos
aspectos históricos do sistema familiar que estão se perpetuando pelas gerações e que reproduzem
diversos tipos de violência.

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3 METODOLOGIA

O presente trabalho foi elaborado por meio de uma metodologia exploratória. Essa
metodologia de pesquisa objetiva a coleta de dados e informações, a fim de realizar uma
investigação sobre o assunto específico, objeto do trabalho. Para tanto, foram utilizados como base
livros e artigos científicos relacionados à violência de gênero, doméstica e familiar e
transgeracionalidade no contexto da Terapia Sistêmica, pesquisados nas plataformas Google
Acadêmico, Scielo (Scientific Eletronic Library Online), Lilacs (Literatura Latino-Americana e do
Caribe em Ciências da Saúde) e Pepsic (Periódicos Eletrônicos em Psicologia).

4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

A partir dos anos 2000, começaram a surgir estudos que demonstraram a importância de se
ter um olhar para o indivíduo a partir daquilo ele recebeu das gerações anteriores e compreender a
interação das questões relacionadas à transgeracionalidade e à intergeracionalidade (Razera et al.
2014). Nesse sentido, as heranças familiares contribuem para a formação da identidade do indivíduo
e, segundo Maluschke-Bucher (2008 apud Razera et al. 2014), além das heranças familiares, o
indivíduo também possui heranças das esferas social, econômica e cultural, próprias do contexto no
qual está inserido o seu sistema familiar.
Desse modo, pode-se dizer que o indivíduo está sempre em interdependência com o meio
em que está envolvido, não sendo possível analisar o sujeito e aquilo que o afeta sem considerar o
seu sistema. Considerando essa transgeracionalidade, o indivíduo tende a ser influenciado pelos
modelos transmitidos pela família de origem na busca por similaridade ou complementaridade
quando escolhem um(a) parceiro(a) para se relacionar e isso ocorre porque o relacionamento dos
pais pode ser um modelo que o sujeito deseja seguir ou evitar, sendo que tanto o desejo quanto a
evitação influenciarão de forma significativa na escolha desse(a) parceiro(a), assim como a
educação recebida, compreendida principalmente pelas suas regras, valores, expectativas e
concepções de moralidade e ética (Menezes e Lopes, 2010 apud Razera et al. 2014).
A violência, por sua vez, deve ser compreendida em seu nascimento e desenvolvimento
histórico, considerando que também é aprendida por meio da transgeracionalidade, ou seja, é uma

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perpetuação transgeracional do ciclo da violência e que resulta, em muitos casos, com a utilização
de violência para resolver situações conflituosas no sistema familiar, como possivelmente ocorreu
também com os pais, avós e demais ascendentes do indivíduo (Barreto et al. 2009 apud Razera et al.
2014).
Dessa forma, o sujeito carrega consigo e transfere para as suas relações afetivas que
estabelecem uma bagagem emocional positiva ou negativa, constituída por relações anteriores, no
sentido de que as expectativas ou exigências dessem novos relacionamentos venham a compensar
algo que o sujeito vivenciou nas relações anteriores (Carter & McGoldrick, 1995 apud Camicia et al
2016).
O indivíduo que é socializado em uma família na qual a mulher é percebida como um objeto
de sua propriedade, se sente mais à vontade para tratar todas as mulheres como sendo objetos seus e
assim, podando a individualidade, a singularidade, a autonomia e independência dessas mulheres.
Por isso, é importante trabalhar com os subsistemas para compreender que esse sistema familiar no
qual o ciclo da violência é transgeracional também tem outras dificuldades, como: hostilidade entre
os membros, ausência de limites e de diálogos, divisão hierárquica frágil no que tange às decisões,
falta de parceria entre os pais e, em muitos casos, até mesmo a alienação parental (Bakman 2008,
p.483 apud Campos e Zacharias, 2017).
Para Koller (1999 apud Narvaz e Koller, 2002), nas famílias violentas há uma forte adesão
aos modelos dominantes de gênero na forma de estereótipos e de estruturas hierárquicas desiguais
opressoras e machistas. Quando as crianças são expostas a situações como vítimas e/ou como
testemunhas de atos de violência, se naturalizam os papéis designados às mulheres e faz com que
torne invisível a produção e a reprodução da subordinação feminina (Cardoso et al. 2000 apud
Narvaz e Koller, 2002), ou seja, conviver com a violência desde a primeira infância faz com que a
criança a perceba como algo natural e que faz parte das relações e assim a violência é banalizada
como algo que constitui a relação familiar e que não pode ser evitado. Sendo assim, compreender
essas heranças familiares transmitidas de geração à geração e que perpetuam um ciclo de violência
não é justificá-la ou minimizá-la, mas entender que ela é construída e aprendida naquele contexto
familiar, ainda que sem perceber, e para interromper esse ciclo é necessário desconstruí-lo e
ressignificá-lo.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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A partir desse breve estudo, se percebe mais ainda a complexidade do ser humano e o
quanto é necessário que os profissionais da psicologia, sobretudo na terapia sistêmica familiar,
possuam um olhar amplo para poder compreender a origem do ciclo da violência de gênero no
ambiente familiar, como um primeiro passo para propor a sua desconstrução.
O processo terapêutico para vítimas de violência de gênero é um desafio, através do qual a
experiência pode ser recontextualizada e re-historicizada, para que se restabeleça nas vítimas a sua
dignidade, autoestima e cidadania (Narvaz e Koller, 2002). Da perspectiva feminista, o homem
violento não perde o controle, ele o assume, e só irá parar quando for responsabilizado por isso
(Nichols e Schwartz, 2007), embora já se tenha a percepção de que, mesmo com o advento da
legislação especial de proteção à vítima da violência de gênero, as suas consequentes
responsabilizações nas esferas penal e civil não têm intimidado ou conscientizado o agressor de
forma a interromper esse ciclo porque esse é um processo complexo e que envolve as heranças
familiares transgeracionais.
Desse modo, a responsabilização criminal é, sim, extremamente necessária, mas isso por si
só não resolverá o problema a longo prazo, porque há questões subjetivas daquele sujeito agressor
que estão envolvidas em seu sistema familiar e de referência que devem ser conhecidas,
desconstruídas e ressignificadas em um processo terapêutico complexo e que demandará esforço do
sujeito e do terapeuta.
Michele Bograd (1992, p. 248, 249 apud Nichols e Schwartz, 2007) trouxe alguns
questionamentos em relação à terapia familiar nesses casos, indagando que: “Ao trabalhar com
violência familiar, como o terapeuta pode equilibrar uma visão de mundo relativista com valores
referentes à segurança humana e aos direitos de homens e mulheres de autodeterminação e
proteção? Quando a utilidade clínica da neutralidade se torna limitada ou contraprodutiva? Quando
a condenação é essencial ao processo de mudança?” Nesse ponto, Judith Myers Avis (1992, p.231
apud Nichols e Schwartz, 2007) assinala que, enquanto forem treinados os terapeutas na teoria
sistêmica sem equilibrar esse treinamento com um entendimento da não-neutralidade da dinâmica
do poder, continuarão sendo produzidos terapeutas familiares que são coniventes com a manutenção
do poder masculino e são perigosos para as mulheres e crianças com os quais trabalham.
Existem diversos modos de empoderamento das mulheres, conforme o projeto feminista de
terapia familiar, sendo que promover a força cria um vínculo positivo entre a história pessoal, no
nível social e familiar, de forma a contestar os pressupostos femininos e masculinos estereotipados
durante o seu processo de socialização. Devem ser construídas novas reflexões e alternativas, como

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chamar as mulheres pelos seus nomes e não pelos seus papéis, garantindo-lhes a sua singularidade,
assim como tirando de suas costas a responsabilidade total e única pelo funcionamento doméstico e
familiar. Isso significa deixar de ser “a mãe” e “a esposa” para ser a “Maria” (nome fictício)
(Ravazzola, 1999; Urry, 1994 apud Narvaz e Koller, 2002). No entanto, a sociedade e a cultura são
coniventes para com a violência de gênero, vez que os recursos são escassos, as políticas de
proteção são ineficazes e todo esse contexto encobre o preconceito da sociedade que acredita na
culpabilidade da mulher quando é vítima de violência e não considera os aspectos subjetivos do
micro (sujeito) para o macro (sociedade).

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