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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL - IACS


Departamento de Cinema e Audiovisual
Cinema e Audiovisual

Taís Ribeiro Lobo

Corpo videográfico, paródia e resistência: de Annie Sprinkle a La Fulminante.

Niterói, 6 de janeiro de 2014


RESUMO

Este trabalho se propõe a refletir sobre o processo de criação da artista estadunidense Annie
Sprinkle e da artistia colombiana Nadia Granados, compreendendo que seus trabalhos se
aproximam politicamente ao contestar os aspectos biopolíticos que regulam os corpos, fazendo-se
uso da performance, do corpo, da pornografia, do erotismo e da linguagem audiovisual/midiática
enquanto mobilizadores de reflexões em torno das tecnologias sociais e digitais que operam sobre o
gênero, a sexualidade e os contextos geopolíticos. Para tanto, serão analisados os performances
Public Cervix Announcement, de Annie Sprinkle, e o personagem conceitual La Fulminante, de
Nadia Granados.

Palavras-chave: pornografia feminista, corpo político, performance.

ABSTRACT

This paper aims to reflect on the process of creation of American artist Annie Sprinkle and
Colombian artist Nadia Granados, realizing that their jobs are close politically when challenge the
biopolitical aspects governing bodies, making use of the performance, the body, pornography,
eroticism and audiovisual and media language as mobilizers of reflections on the social and digital
technologies that operate on gender, sexuality and geopolitical contexts. For both, will be analyzed
the Annie Sprinkle's performance, Public Cervix Announcement, and the conceptual Nadia
Granados character, La Fulminante.

Key-words: feminist pornography, politic body, performance.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 4

2 Corpo, paródia e vouyeurismo em Public Cervix Announcement, de Annie Sprinkle: das


câmeras escopofílicas ao espéculo ginecológico ............................................................................. 7

3 La Fulminante, uma puta colombiana virtual: resistência política e enunciações de um corpo


público ............................................................................................................................................. 10

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................................... 13

REFERÊNCIAS BIBLIPGRÁFICAS .......................................................................................... 14


INTRODUÇÃO

Desterritorializando as fronteiras: a transnacionalidade das dissidências sexuais nas práticas


artísticas

A partir dos anos 90 da década passada, uma nova forma de produção artística emerge no
contexto das minorias sexuais e do feminismo, e suas formas manifestas são, sobretudo, o vídeo e a
performance. Annie Sprinkle, reinvindicando o termo lançado pelo fotógrafo holandês Wink van
Kempen, é quem conforma a pós-pornografia1.
Sprinkle começa sua vida profissional vendendo balas em salas de cinema no mesmo ano
em que fora lançado o clássico do pornô, Garganta Profunda. Em seguida, consegue um emprego
de massagista – o que, nos anos 70 da mesma década, conotava mais uma massagem erótica, além
de ser um portal seguro para o exercício da prostituição –, e não muito mais tarde conhece a Gerard
Damiano através de quem inicia sua carreira no mercado de filmes pornográficos. Sprinkle atuou
em mais de mil filmes pornôs e sempre encarou sua profissão como um espaço de gozo e prazer
remunerados, talvez mais bem pagos que a grande maioria de outros empregos disponíveis no
mercado naquele período (EGAÑA, 2009).
Nos anos 1980 Sprinkle decide gravar seu próprio filme pornô, chamado Inside Annie
Sprinkle, onde nem as ações cênicas, nem os orgasmos seriam controlados; as pessoas fariam o que
bem entendessem. A própria Sprinkle atuava no filme quebrando protocolos da linguagem
cinemotográfica: cortava a quarta parede do cinema ao olhar para a câmera enquanto se masturbava,
e ao fazê-lo, representava-se a si mesma como a atriz de filmes pornôs que era. Sprinkle decide por
essa metodologia subversiva pois criticava, desde já, a representação das mulheres e o descaso ante
ao orgasmo feminino na pornografia, o qual, quando representado, não poderia ocupar muito tempo
nas telas (Ibidem, 2009).
Dentro de uma lógica metalingüística e auto-ficcional, como formas de criação de novas
linguagens e estéticas, Sprinkle decide realizar uma série de performances pornográficas, públicas e
diretas, que se apropriassem de códigos referentes aos filmes pornôs, questionando justamente seu
estatuto pedagógico no sentido de consolidar e legitimar práticas sexuais e de gênero hegemônicos.
Desse modo, Sprinkle nomeia o conjunto dessas performances como Post-Porn Mordenist, dentre
as quais o espectador presenciava a transformação de Ellen – nome anterior à sua carreira
pornográfica – em Annie Sprinkle.
Annie Sprinkle, que desde sempre se declarou feminista, passa então a elaborar uma nova
linguagem, a pós-ponografia, que se trata não de condenar a pornografia como um meio de
1 Nos anos 80, Kenpem já havia se referido ao termo relacionando-o a uma serie de fotos suas com imagens de
genitálias que exprimiam não um caráter masturbatório, mas sim imagens paródicas e de crítica política.
dominação patriarcal sobre as mulheres, mas sim de reapropriar-se da ferramenta e do dispositivo
pornográfico, fazendo dele um uso político que irá desnaturalizar seus processos de subjetivação
sexual e de gênero, desestabilizando, por conseguinte, suas estruturas canônicas. Em outras
palavras, trata-se de uma estratégia política que se utiliza de códigos pornográficos.
A despeito do que escreve Linda Williams sobre Annie Sprinkle, discorre a transfeminista
Lucía Egaña:

Linda Williams, analisando a produção de AS (Annie Sprinkle), afirma que em seu


trabalho, ao usar as convenções do pornô ou da “puta”, elabora uma performance
sexual que abandona a retórica tradicional do gênero, demostrando um
agenciamento feminista do próprio feminismo. AS sem romper o contrato da puta,
como provedora de prazer, utiliza tudo o que a cultura misógina considera como
puta para, então, e a partir da repetição dos rótulos, convertê-los em algo
subversivo. A repetição da pornografia permite que, com una variação mínima,
toda a sua lógica seja desajustada. (EGAÑA, 2009)2

Annie Sprinkle inspirou uma série de movimentos feministas, e hoje a pós-pornografia


transita em muitos espaços de ativismo artístico que enxergam as produções culturais hegemônicas
como um dispositivo de construção tecnológica do gênero e da sexualidade. Nesse contexto, a
forma de se construir um movimento de resistência a essas produções é, justamente, apropriando-se
de seus cânones, subvertendo-os, descodificando-os, para que com isso se gerem novos espaços
onde se façam possíveis as enunciações vinculadas a um grupo de minorias sexuais dissidentes.
A pós-pornografia, hoje, é um espaço extremamente vinculado tanto à performance quanto
ao campo do audiovisual, e se trata de um movimento cada vez menos pontual, que foi dos Estados
Unidos à Europa, estabelecendo-se como forte referência para muitos coletivos e artistas espanhóis
– como Post-Op, María Llopis, Diana Pornoterrorista, Lucía Egaña e Quimera Rosa –, e logo se
aproximou conceitualmente de movimentos artísticos e políticos da América Latina, como é o caso
dos artistas mexicanos Felipe Osornio Lechevirgen Trimegistro, Rocío Bolivar, dos coletivos e
artistas colombianos, Nadia Granados com seu projeto La Fulminante, Le Petit Justine, Xno
Graffite e Aily Habibi, do coletivo chileno CUDS (Coordinadora Universitária por la Disidéncia
Sexual), dos argentinos Cuerpo Puerco e Acento Frenético, da espanhola radicada em Buenos Aires,
Ana Utrero e dos “artivistas”3 baianos Pedro Costa e Paulo Belzebitch, que levam, já há alguns
anos, o projeto musical Solange, Tô Aberta.
Cada qual, à sua maneira e singularidade, se utiliza de múltiplas linguagens e práticas –
como o vídeo, a fotografia, a performance, o teatro, a ação direta, o ativismo, a intervenção urbana,
a música, a teoria, a pintura, o graffitte, as orgias, as práticas afetivas, etc. – a fim de intervir na
política do olhar, desestabilizando sua característica de prótese ocular subjetivada biopoliticamente;
2 Traduzido por mim, do original espanhol.
3 Neologismo utilizado para fazer referência à arte política e ativista, aglutinando a palavra “arte” com a palavra
“ativismo”.
e o fazem utilizando os próprios corpo e sexualidade. Para Nadia Granados, por exemplo, La
Fulminante foi uma personagem que ela criou com o intuito de chamar a atenção massiva para
questões de ordem macro e micropolíticas 4:

Depois de muita experiência no campo político, percebi que grande parte dos
canais de difusão de idéias da esquerda, ou das demais dissidência políticas, não
eram assistidos, as pessoas simplesmente não assistiam. Mas os seios, as tetas, as
bundas e as bocas... Qualquer vídeo, por mais besta ou limitado que seja, se
aparece um par de peitos, as pessoas assistem, não? Então, digamos que este
projeto nasce um pouco do desejo de chamar a atenção, por meio de um gancho
que é, no caso, “o erótico” e “o sexual”. Creio que a arte cumpre uma função
social, e que nós artistas somos predicadores, isto é, responsáveis por falar por esta
geração, por este tempo e espaço. (PORNO PORSI, DOC.UERPO).5

O grupo Le Petit Justine, por sua vez, fala sobre a necessidade de ser um terrorista sexual,
com o objetivo de desestabilizar e perturbar a normalidade que reina sobre a maioria das pessoas
docilizadas (In Porno Porsi, Doc.uerpo), Para Ana Utrero, a pornografia e o amor fundam o mundo.
Segundo a artista, “estamos vivos para passar bem, para disfrutar, para sermos alegres” e qualquer
pessoa, sistema político, de crença ou de pensamento que se interponham a essa sensação de bem-
estar e alegria, são sistemas repressivos, pois castram o que há de mais profundo em nós, que é o
prazer despertado pelo amor e pela amizade (In Porno Porsi, Doc.uerpo). Para Pedro Costa e Paulo
Belzebitch, Solânge6 está aqui para incomodar a uns e alegrar a outros: “ou você vai ficar
totalmente contrariado, ou você vai amar e gozar junto! Mas meio termo não tem!” (In Cuceta, A
Cultura Queer de Solânge Tô Aberta)7..
São essas algumas visões de grupos e pessoas que, a partir das micropolíticas, vêm se
movimentando no âmbito das perturbações que ferem e interferem as macropolíticas sul-
americanas; e vale ressaltar que tal movimento, no nosso contexto geográfico e político, não
necessariamente se refere à pós-pornografia 8.
4 Os vídeos de Granados contestam desde a presença do capital norte-americano nas economias e políticas
colombianas – legitimadas por lideranças políticas locais e pelas subjetividades normativas, e que sustentam uma
série de genocídios e chacinas executadas pelo próprio Estado sobre comunidade negras, campesinas, indígenas,
líderes de movimentos políticos da esquerda, anarquistas, dentre outros – à maternidade obrigatória, que também se
dá em virtude do modo de subjetivação feminino, assim pelas políticas relativas à saúde da mulher, como, por
exemplo, a proibição/criminalização do aborto.
5 A entrevista se encontra no filme documentário em questão, que ainda está em processo de finalização e, portanto,
sem suas devidas referências filmográficas.
6 Tanto Costa quanto Belzebitch se referem ao projeto “Solânge” como uma entidade conceitual.
7 Documentário curta-metragem difundido amplamente na Internet. Disponível em <http://www.youtube.com/watch?
v=WTDgw0Ms5Cs>. Acesso em dezembro de 2013.
8 É importante ter em mente que grande parte desses coletivos e artistas não se identificam como artistas/ativistas pós-
pornográficos. Aliás, suas práticas existiam muito antes de conhecerem esse conceito/prática que, paralelamente, se
consumava nos EUA e na Europa. O que se dá é que a circulação de suas ações e trabalhos ocorre, muitas vezes,
através de festivais e mostras articulados com o conceito e a prática pós-pornográficos. Portanto, parece-nos
apropriado que cada qual, artista ou coletivo, trace a própria auto-denominação referente aos seus trabalhos e
2 Corpo, paródia e vouyeurismo em Public Cervix Announcement, de Annie Sprinkle: das
câmeras escopofílicas ao espéculo ginecológico

Figura 1: Perfomance Public Cervix Announcement, por Annie Sprinkle

Fonte: Site <http://fezzyscreativebubble.wordpress.com/page/9/>. Acesso em dezembro de 2013.

Talvez o que haja de mais interessante no trabalho de Sprinkle seja a sua opção por trabalhar
aspectos da linguagem cinematográfica através da performance e da ação direta, e a que nos soa
mais exemplar, nesse caso, é sua performance Public Cervix Announcement, compondo seu projeto
supracitado Post-Porn Mordenist. Em tal contexto, Sprinkle convida o público para ver com uma
lente de aumento o seu colo uterino aberto por um espéculo ginecológico, fazendo uma apologia
paródica e crítica aos planos escopofílicos que visam a penetração vaginal, típicos da pornografia
mainstream. A artista, então, parece transpor para o ato performático alguns aspectos inerentes à
retórica do cinema clássico-narrativo e, em última escala, à pornografia, que nestas expressões
costumam passar desapercebidas pelo espectador: o ocularcentrismo, o prazer visual ou gaze, do
inglês, e o vouyeurismo espectatorial (MULVEY, Laura. 1983). Esses aspectos trabalham
diretamente com a idéia de aparato ou dispositivo cinematográfico, na qual ocorreria uma
identificação espectatorial com o jogo de olhares intra-diegéticos, e necessariamente uma
trasladação do olhar do espectador ao olhar dos personagens centrais das tramas.
Teóricas feministas como Laura Mulvey (1983) vai dizer, em seus termos, que a centralidade

práticas artísticas/políticas, e que aqueles detentores da produção jornalística, teórica e curatorial articulem seus
textos a partir do diálogo com essa auto-denominação supracitada.
dos olhares dos personagens se dá conforme uma lógica de subjetivação patriarcal, na qual os
movimentos e olhares dos personagens e da câmera conformariam uma prótese de formação e
ênfase à subjetivação patriarcal do olhar do espectador masculino, sobretudo. Teresa de Lauretis,
retoma e amplia essa discussão re-pensando-a a partir da noção de tecnologia da sexualidade de
Michel Foucault (apud LAURETIS, Teresa de. p. 47, 2000), e dirá que este aparato cinematográfico
se trata não apenas de uma tecnologia da sexualidade, como também de uma tecnologia de gênero,
isto é, um “conjunto de técnicas para maximizar a vida desenvolvida pela burguesia (…), com o
propósito de assegurar sua sobrevivência enquanto classe social, e a manutenção de sua
hegemonia”. Lauretis (Ibidem, p. 35-36) também complementa o trabalho de Foucault ao afirmar
que não apenas a sexualidade, mas também o gênero são “produtos de várias tecnologias sociais,
como o cinema, os discursos institucionais, as epistemologias e práticas críticas, assim como as
práticas quotidianas, que têm o poder de controlar o campo do significado social” , e inclui nesse
dispositivo tecnológico as artes e as culturas eruditas/ocidentais, às quais atribui o legado da
“história das representações de gênero”.
O entrecruzamento desses aspectos cinematográficos com a performance em Public Cervix
Announcement não é à toa. Primeiramente porque, ao ser atriz pornô e feminista, Sprinkle
reconhece amplamente os códigos da linguagem pornográfica e entende que estes se tratam de
tecnologias de gênero e sexualidade, isto é, tecnologias sociais que visam a subjetivação
heteronormativa dos corpos e das práticas sexuais; por outro lado, o fato de ser feminista e ativista
justifica sua opção pelas práticas performáticas enquanto ações diretas, por muitos motivos.
A arte da performance, segundo Lucía Egaña (2009), trazem consigo o aglutinamento das
noções de tempo, espaço, corpo e relação direta com o outro, e nesse sentido são obras que se
baseiam na presença do corpo do performer em um acontecimento único, que pode se repetir em
outras ocasiões, mas que sempre será absolutamente distinta da anterior. Se as tecnologias de gênero
e sexualidade muito se evidenciam através do aparato cinematográfico, para Egaña (Ibidem), a
performance muito bem serviria, como serve, ao que Judith Butler conceitua como
performatividade do gênero. Para Butler o gênero se trata de uma interpretação repetitiva, uma
representação performática da suposta diferença biológica pré-estabelecida no sistema sexo/gênero.
Desse modo, “doutrinamo-nos” homens e mulheres conforme a repetição de atos ou performances
convencionados socialmente, como, por exemplo, o ato de passar batom, a forma de caminhar ou de
fumar um cigarro e demais gestos e corporalidades manifestas. Nesse sentido, as performances
desencadeadas pelas minorias sexuais, como as travestis e as transformistas, as drag queens e as
drag kings, vêm acompanhada inerentemente por um intuito político de desnaturalizar o gênero, ao
questionar sua origem biológica. Do mesmo modo, muitas artistas feministas dos anos 1970 se
apropriam também da performance para evidenciar os processos repetitivos da construção da
feminilidade. O gênero, a partir de então, passa ser evidenciado como uma “construção dos
discursos da modernidade” (EGAÑA, Lucía. 2009).
É nesse sentido que emerge no trabalho de Sprinkle a necessidade de se levar à performance
um aspecto retórico da linguagem cinematográfica e da pornografia, pois ao fazer com que o
público aja, saindo de suas confortáveis cadeiras e de seus sedimentados espaços políticos, para
pegarem uma lente com suas próprias mãos, exercendo em ato também performatico o olhar
escopofílico ante uma vagina, que se evidencia tanto nos planos genitais da pornografia
mainstream, Sprinkle está criando um espaço coletivo de vivência política, em que a
performatividade do olhar se coloca em jogo, ao ser evidenciado enquanto um código relativo à
construção do gênero, da linguagem cinematográfica e da pornografia. Ao encenar seu próprio gaze
e ocularcentrismo, talvez fique mais claro que os corpos e os olhares são construções altamente
reguladas por aparatos biopolíticos, e o corpo de Sprinkle, saído das telas de filmes pornôs, se
atualiza politicamente numa ação direta, como os hologramas dos filmes de ficção científicas que,
ao sairem de seus contextos holográfico-ficcionais, evidenciam o quão ficcionável é também a
suposta realidade.
3 La Fulminante, uma puta colombiana virtual: resistência política e enunciações de um corpo
público

Figura 2: frames do vídeo Mamada Anti Imperialista, de Nadia Granados (La Fulminante)

Fonte: Site <http://www.macromuseo.org.ar/archivo/2012/03/videodrama.html>. Acesso em dezembro de 2013.

Se por um lado Annie Sprinkle como atriz pornô se apropria dos códigos relativos ao
gênero, à sexualidade e à produção biopolítica do olhar para criar um espaço político, Nadia
Granados apropria-se da estética da prostituição via webcam e de diversas ferramentas de
comunicação para dilacerar instituições políticas, ao incorporar sua personagem/alterego La
Fulminante.
Como dito anteriormente pela própria Granados, La Fulminante foi uma personagem que
aquela criou para chamar a atenção a assuntos políticos através do uso do “sexual” e do “erótico”,
pautando questões de ordem micro e macro-políticas que pairam sobre o mundo, mas
principalmente sobre a Colômbia. Nadia Granados tem vasta militância política na esquerda
colombiana, estudou artes visuais, e seu trabalho artístico sempre foi multimídia, além de
fortemente conectado às macro-políticas, o que se dá através tanto de ferramentas de comunicação
audiovisual, como de seu ativismo artístico-político nas ruas: é graffiteira, painelista, clown,
desenhista, videomaker e performer. Em 2010 começa a gravar os primeiros vídeos de La
Fulminante, que é uma personagem baseada nas prostitutas populares colombianas, dançando
cumbia e reggaeton, e utilizando o vídeo e seu corpo para enunciar desde as ruas e através de sua
própria língua, traduzida para diversos outros idiomas – Granados literalmente criou outra língua
para enunciar através de La Fulminante, e seus vídeos sempre são acompanhados por legendas. La
Fulminante, então, fala sobre a situação da privatização da água, sobre o pavor do sangue menstrual
pelos mesmo homens que promovem chacinas de campesinos e indígenas, sobre a maternidade
compulsória, sobre os genocídios racistas através do apoio governamental a grupos paramilitares,
sobre a injeção de capital estadunidense na Colômbia, e de como isso paira sobre as subjetividades
colombianas. Na figura acima, La Fulminante, por exemplo, manda um recado aos “pequenos
homenzinhos”, subjetividades masculinistas, que acomodados cotidianamente em suas zonas de
privilégio de gênero, corroboram com grandes fatos macro-políticos cuja lógica se pauta numa
retórica masculinista, que, por sua vez, é belicosa também:

No capitalismo selvagem costuma ser difícil ser um homem, e ter que


assumir um comportamento suicida para demonstrá-lo. Se semeia em
alguns meninos o esquema do macho potente, poderoso, indolente,
forte, disposto a tudo por dinheiro. Sonhos de poder penetrando as
mentes juvenis, construindo por dentro a identidade masculina... Essa
coisinha da anatomia masculina... Incha-se e enrijece de sangue
quente... Efêmera sensação nesta forte ereção… Esse pedaço de você
estagnado, e está ali, triste coisinha, prestes a explodir... Com toda a
raiva e a impotência acumuladas... Você está doente de ter o saco
cheio e não saber como ejacular, como explodir. Teu conformismo te
deixou muito doente. Você está doente, muito doente, pequeno
homenzinho. Não é culpa sua, mas é tua responsabilidade se curar.
Desde muito tempo você poderia ter se liberado de suas opressões se
não tivesse tolerado a opressão e não a tivesse apoiado tão
ativamente. Nenhuma força policial neste mundo seria suficiente para
te suprimir. Nenhum militar colocaria a bota sobre você. Mas em vez
de você se organizar para melhorar o mundo, empresta teu peito como
carne de canhão. Pega em armas... Seu impecável uniforme, e sua
lavagem cerebral alugam sua pobre vontade, e daí você ganha licença
para matar por dinheiro… Segue aos opressores e dispara as balas,
disposto a obedecer as ordens de não importa quem, e daí você se
converte em cúmplice de nosso opressor. O ilimitado poder de as
armas sobre nossas pobres vidas... O poderoso pode alugar a vida de
outros, e a miséria acrescenta a oferta dos matões. Perigosas filas do
exercito do terror como no Iraque... Malditos soldados mercenários,
malditos ASSASSINOS DE CRIANÇAS! Armados até os dentes.
Guerra criada para mover grandes finanças. Putas balas! Quantas
bocas furiosas vocês silenciaram?? Ahhh?? (Disponível em
<http://www.frequency.com/video/chupada-
antimperialista/14358151>. Acesso em outubro de 2013.)

La Fulminante parece, então, incorporar as vozes de milhares de populações e grupos


oprimidos pelo imperialismo e pelos projetos financeiros que movem o capital do mundo, bem
como os corpos não capitalizados por esse capital. Nesse sentido, apropria-se estrategicamente do
corpo da prostituta que é o corpo da “mulher pública”, capitalizado pelas tecnologias da sexualidade
e de gênero. Desse modo, a mulher pública que, a princípio está à disposição apenas para ser vista
– o próprio termo prostituta deriva da palavra latina prostituere, composta pelos radicais pro – antes
ou diante – e statuere – estacionado, parado, ou colocado – passa a enunciar, apropriando-se das
suas falas e vivências referentes à sua zona de circulação no espaço público, na rua, nos ambientes
noturnos. Seu corpo, então, deixa de ser visível para ser, também, audível.
O interessante do trabalho de Granados é justamente sua forma de pensar na arte como uma
ferramenta de comunicação, não se encerrando nas mídias instituídas artisticamente. Nesse sentido,
a rua é tão artística quanto o vídeo, que é tão artístico quanto a poesia, que é tão artístico quanto o
corpo, que é tão artístico quanto o sexo, que é tão artístico quanto a performance. E a partir dessas
ferramentas incorporadas, encarnar as multidões oprimidas parece dizer respeito a uma prática
artística coletivista e não tão individualizada, processo que nos remete aos processos de
singularização coletivas que, evidentemente, não são Ocidentais, e que contêm fortemente heranças
ameríndias e africanas, epistemes que, em grande parte, enxergam o corpo não como um corpo
público, mas como um corpo coletivo, multitudinário, que talvez incorpore na íntegra o que Carl
Jung vai chamar de inconsciente coletivo.
Esse corpo multitudinário muito se assemelha a diversas práticas das dissidências políticas
latino-americanas que parecem incorporar intuitivamente em seus ativismos um aspecto do
pensamento ameríndio que Eduardo Viveiros de Castro (2008, p 14) chamará de perspectivismo
ameríndio. Derivado da noção de antropofagia, o perspectivismo se amplia para além de uma
cerimônia ritual que come a carne humana, constituindo-se numa “metafísica que imputa um valor
primordial à alteridade e, mais do que isso, que permite comutações de ponto de vista, entre eu e o
inimigo, entre o humano e o não-humano. Isso não seria um atributo exclusivo dos povos tupi-
guarani, podendo ser reconhecido como um modo ameríndio de pensar e viver.”. Nesse sentido, tal
pensamento permite que os corpos estejam numa relação de subjetivação do outro – humano ou
inumano – em vez de uma relação de objetivação, típica dos saberes científicos ocidentais que
criam interpelações conceituais entre o que se é e o que se vive, ao objetificar àquilo que difere de
si, impossibilitando uma vivência íntegra e incorporada daquele elemento estranho/distinto.
É nesse sentido, por fim, que se move o trabalho de Granados: incorporando multidões; e aí,
ao contrário de lideranças políticas, etnógrafos, cineastas e artistas que se movimentam conforme
uma episteme hegemônica, La Fulminante não fala pelos oprimidos, representando-os; executa,
sim, uma auto-representação, falando por si mesma através de um corpo atravessado por
coletividades, multidões e vivências silenciadas em processos de resistência e re-existência estético-
políticas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

É evidente que os trabalhos de Annie Sprinkle e Nadia Granados muito se relacionam


quando falamos em termos micro-políticos, o que se dá uma vez que os aspectos que atravessam as
tecnologias de gênero e da sexualidade são agentes transversais a qualquer cultura que tenha
passado minimamente pelo violento processo de colonização ocidental. Porém, vale ressaltar que as
dissidências políticas que se conformam nos EUA e na Colômbia – cujo status de colonização deixa
de ser referente à Coroa Espanhola, passando a se relacionar com o capital estadunidense –
carregam, sem dúvidas, as marcas de suas lutas locais, e é certo que os atravessamentos referentes a
essas lutas são também distintos. Portanto, se por uma via parece-nos muito interessante pensar nos
aspectos que aproximam essas manifestações artísticas, por outra, vale ressaltar que é muito grande
o risco de se hegemonizar as temáticas desses fazeres artísticos em uma categoria pré-reconhecida
como pós-pornografia, soando ainda mais importante considerar seriamente os aspectos singulares e
contextos geopolíticos que fundam cada uma dessas práticas, tornando-as, desse modo, parceiras de
uma luta que é minoritária, mas reconhecendo que seus fazeres brotam em solos distintos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Disponível em <http://www.lafuga.cl/la-pornografia-como-tecnologia-de-genero/273>.
Acesso em junho de 2013.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução: Maria Thereza da


Costa Albuquerque; J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1980.

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MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”. In: Xavier, Ismail (org.). A experiência do
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WILLIAMS, Linda. Hard core: power, pleasure and the frenzy of the visible. Berkeley: University
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