Você está na página 1de 11

POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMBATE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA –

TRABALHANDO DOIS POLOS


Jacqueline Mary Soares de Oliveira1
Márcia Santana Tavares2

Resumo: Este artigo reflete sobre relatos de homens autores de violência doméstica, obtidos através
da realização de grupo focal, em uma escola próxima da Vara de Violência Doméstica em
Salvador/BA, cuja leitura discursiva de suas falas, ora expressa o machismo ora recorre à
vitimização. As reflexões coletivas lhes oferecem a oportunidade de repensarem atitudes, pois
tomam como mediadora a mulher, cujos argumentos são contrários, o que fomenta o debate e uma
reflexão de cunho transformador. Faz-se necessário, porém, analisar como as políticas públicas têm
dialogado e se articulado para o enfrentamento da violência doméstica, se é um processo relacional,
precisam ser trabalhadas com os dois polos conflitantes, mulheres e homens. É urgente a
necessidade de trazer o homem para o debate sobre as relações de gênero, a condição da mulher na
sociedade e sobre a violência doméstica. O número de mulheres mortas por homens continua
crescendo, pois estes reproduzem o modelo relacional normativo da sociedade, cujas bases
igualitárias tantas vezes ocultam a assimetria que produz e (re) produz a violência contra as
mulheres.
Palavras-chaves: Violência. Agressores. Políticas Públicas.

Estamos vivenciando nos últimos tempos momentos que, ouso dizer, de flagelos sociais, de
mazelas sociais e muitas vezes nos pegamos pensando se realmente pertencemos a este mundo, ou
nos colocamos em dúvida diante da existência de tantos fatos incapazes de ser tomados como reais.
A dúvida na pertença desta realidade não por considerarmos fora do contexto social a que realmente
pertencemos, mas porque somos forçados a nos colocar, nos situar. No entanto nesta conjuntura que
se apresenta, tentamos nos ver de fora, não pertencentes a esta realidade, isto de certa forma nos
conforta, nos acalenta.

A atenção especial do contexto de preocupação está na condição da mulher na sociedade,


apesar das lutas e conquistas, continuamos enfrentando, em pleno século XXI, mulheres sendo
violentadas e mortas por homens no “aconchego do lar”. Quando não, por homens que negam e não
aceitam a separação, como se violentando e matando fosse uma força de lidar melhor com o

1
Graduada em Serviço Social pela Universidade Católica de Salvador – UCSaL (1992), aluna do Programa de Pós
graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo – PPGNEIM (UFBA) 2012.1.
Salvador/Ba – Brasil.
2
Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal de Sergipe (1982), mestrado em Sociologia pela
Universidade Federal de Sergipe (2004) e Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (2008).
Atualmente é professora adjunto I do Curso de Serviço Social da Universidade Federal da Bahia; professora do
Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares Mulheres, Gênero e Feminismo -PPGNEIM/UFBA;
membro do Grupo Observatório pela Aplicação da Lei Maria da Penha -OBSERVE/NEIM/UFBA. Salvador/Ba -
Brasil.

1
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
fracasso, com a não capacidade de manter uma relação. A sensação é de que a mulher é qualquer
objeto desprezível, passível de ser jogada ao lixo, salientando que a própria percepção de lixo na
contemporaneidade modificou seu estatuto, lixo agora pode ser considerado luxo. Tal comparação é
desprezível, mas falamos da experiência de dentro, do contexto de trabalho com homens autores de
violência. A sensação é esta – a mulher como mero objeto para usufruto.

O texto em comento tem o objetivo de trazer à luz algumas reflexões acerca do olhar deste
homem, produto e reprodutor de representações simbólicas e, sobre como o Estado brasileiro
trabalha a questão da violência doméstica contra a mulher, a partir das políticas públicas. De fato,
trata-se de um desabafo teórico em torno da nossa experiência profissional como assistentes sociais,
frente a uma das expressões da questão social contemporânea, a violência contra a mulher, mais
precisamente, nossa atuação junto a homens agressores, tendo pano de fundo a política de combate
à violência doméstica e familiar contra a mulher.

São notórias as conquistas dos movimentos feministas no combate à violência doméstica nas
últimas décadas, contribuindo inclusive para a publicização de um fenômeno arraigado na
sociedade, o denominado machismo que, apesar das conquistas, insiste em permear as relações
entre os sexos, passando de uma geração para outra, perpetuando-se sob diferentes justificativas,
seja em nome do amor, em defesa da honra ou instigada por fortes emoções, o fato é que a violência
perpetrada pelo homem contra a mulher sugere que as mudanças na legislação não vêm
acompanhadas por mudanças culturais.

De fato, no ano de 2006, com o advento da Lei Maria da Penha (11.340/2006), uma nova
modalidade de proteção foi dada às vidas das mulheres que sofriam a violência doméstica e
familiar. O tripé da intervenção da Lei consiste na punição ao agressor, prevenção à violência e
assistência à vítima, articulando, desta forma, serviços que possam coadunar a garantia de direitos e
a valorização do indivíduo como pessoa humana. Nesta perspectiva, os serviços de atenção às
mulheres foram se fortalecendo, a exemplo dos Centros de Referência, das DEAMs e das Casas de
Acolhimento – que já despertavam em meados dos anos 1980, com o surgimento do SOS Mulher e
das próprias Delegacias das Mulheres.

A implementação da Lei Maria da Penha possibilitou alavancar um debate político e social


que há muito se encontrava tolhido nas vozes de mulheres que, ou não resistiam à morte, ou

2
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
morriam cotidianamente em decorrência das agressões sofridas no casamento, em relacionamentos
estáveis ou episódicos, impregnados de violência e abusos.

A Lei é fruto de anos de luta e também consequência de milhares de mortes de mulheres


conhecidas e desconhecidas, que possibilitaram que suas histórias de dores fossem utilizadas para
demonstrar a necessidade de uma ação contundente contra a violência e, em especial, na garantia de
direitos para as mulheres. A urgência em punir era evidente, agregar o peso do crime àqueles que
fomentassem a violência doméstica como algo “normal”, agregar o peso do crime àqueles que se
utilizavam do seu corpo de “homem”, da força física como instrumento para a domesticação de suas
companheiras, pela agressão que as subjugava pela via do medo e intimidação ou ainda, de modo
mais extremo, inscrevia sua posse ceifando-lhe a vida.

O contexto social em que vivemos, atualmente, marcado pelo processo de globalização, de


desenvolvimento, de novas tecnologias que possibilitam o diálogo universal, contrasta com a
realidade cotidiana das vidas particulares, os conflitos diários da pessoa humana, independente da
classe social, grupo étnico-racial e faixa etária a que pertença. Algo muito mais importante e
perigoso ronda os espaços de socialização e convivência na dimensão privada, a violência
doméstica, que inscreve no corpo o poder de sobre outros, ou melhor, do homem sobre a mulher.

Quando se fala de violência doméstica

Acompanhando o florescer de algumas alunas acerca da pesquisa, dos objetos de estudo,


ouvimos repetidas vezes que a violência doméstica já é um tema bastante “batido”, como se não
houvesse mais necessidade de discuti-lo à exaustão. Na verdade, suas observações indicam
exatamente o contrário, o quanto tal tema ainda não foi suficientemente discutido, pois,
continuamos reproduzindo uma normalização dos fatos e, a violência doméstica e familiar parece
ameaçada por um processo de banalização. Partimos então para compreender porque debates tão
importantes são generalizados, outras vezes colocados de lado, não visibilizados e, assim por diante.
As falas destas alunas, mulheres jovens e adultas fomentaram um processo de angustia com relação
ao contexto atual do debate acerca da violência doméstica e, principalmente, como esta discussão
tem sido fomentada nos espaços de decisão e de poder público.

Sabemos que a demanda que surge da sociedade encontra no aparelho do Estado um de seus
principais aliados e contra aliados, ou seja, o Estado e a sociedade mantêm uma relação de

3
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
complementariedade e de dissonância constante, como esclarece Potyara Pereira, ao apontar para a
influência mútua que um exerce sobre o outro.

Por ser um processo histórico que contempla passado, presente e futuro, além da
coexistência de antigos e novos fatores e determinações, a relação exercitada pelo
Estado tem caráter dialético – no sentido de que propicia um incessante jogo de
oposições e influências recíprocas entre sujeitos com interesses e objetivos opostos.
Ou, em outros termos, a relação dialética realizada pelo Estado comporta
simultaneamente antagonismos e reciprocidades e, por isso, permite que forças
desiguais e contraditórias se confrontem e interajam de tal forma que uma deixa
sua marca na outra e ambas contribuem para um resultado final. (PEREIRA, 2001,
pg.146).

É necessário pensar e analisar que contributo buscamos na aliança Estado/Sociedade: aquilo


que já conquistamos - em parte, ou a resolutividade de um problema instalado, produzido e
reproduzido? Neste sentido, continua Potyara Pereira, é “relacionando-se com todas as classes que
o Estado assume caráter de poder público e exerce o controle político e ideológico sobre elas”. Com
isto, percebe-se a intenção de controle sobre a sociedade, pois “é esta que o engendra e o mantém, e
não o contrário” (Pereira, 2011, pg 147).

A importância de tal análise perpassa pela sensação que as políticas estão sendo forjadas no
afã da possibilidade de manutenção do controle, não perdendo de vista os seus objetivos precípuos,
a manutenção do status quo, isto é, a manutenção do estado das coisas.

Cabendo ressaltar que, nesta relação, o intento é atender às suas particularidades e interesses.
Cada um a seu ponto. O Estado é um conjunto modelável às demandas advindas da pressão da
sociedade civil, até onde as barreiras de seu interesse a impeçam de prosseguir. Daí a natureza
relacional do Estado e, portanto, configura-se este com parcialidade.

Neste sentido, cabe retomar alguns avanços e retrocessos no combate à violência doméstica.
Como avanço incontestável vê-se a Lei Maria da Penha que, mesmo no conflito inicial, apontada
como inconstitucional, é implementada e se torna aparato legal e estratégia de segurança para as
mulheres em situação de violência, elevando-as da condição de vítima para protagonistas de suas
vidas. Cabe apontar também para o fortalecimento de outros serviços, tais como as Casas de
Acolhimento, os Centros de Referências e a criação das Varas especiais de atendimento à mulher
vítima de violência doméstica e familiar.

4
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Neste âmbito, cabe também apontar alguns retrocessos que são constantemente pontuados
nos encontros de mulheres e do movimento feminista, tais como o desmantelamento destes
serviços, a falta de mão de obra capacitada no trato da violência, em especial para o atendimento à
mulher. A falta de estrutura física e resolutividade por conta do mecanismo burocrático do Estado.
E em especial a falta de celeridade aos processos criminais. O que permeia a sensação de constante
impunidade que insiste em fazer parte do dia a dia desta sociedade. Basta verificar o Relatório Final
da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (2013, p. 250), ao que se refere ao Estado da Bahia:

O Estado da Bahia enviou, em geral, apenas dados parciais, que não cobrem a
totalidade de nenhum dos períodos indicados pela CPMIVCM nem traduzem o
detalhamento exigido. De ato, o mapeamento da rede de atendimento está
incompleto, as informações sobre o Orçamento de 2013 são muito breves e não há
detalhamento das dotações orçamentárias destinadas aos serviços da rede de
atendimento à mulher em situação de violência em 2012, exceto em relação aos
Cras. Os dados estatísticos apresentados são, na melhor das hipóteses, parciais e
com forte ênfase na Região Metropolitana, havendo alguma informação somente
sobre para 23 dos 417 municípios baianos. Note-se, de modo geral, que o conjunto
de informações não permite um diagnóstico seguro sobre a situação de violência
contra a mulher na Bahia, dado seu caráter fragmentário, parcial e, principalmente,
não uniforme, o que torna a comparação, entre períodos, regiões ou situações uma
empresa temerária.3

Esta reflexão nos leva a indagar: A quem interessa a manutenção do estado das coisas?
Talvez a uma parcela dominante que busca manter a hegemonia? E como se dá este processo de
dominação? Daí a importância de entender porque as falas sobre a violência doméstica reproduzem
um discurso de que o tema já está muito “batido”. Retoma a violência à invisibilidade de outrora.
São os dominantes ganhando espaços e aliados em seus projetos hegemônicos.

Tal concepção assume importante reforço do processo de representação e dominação


simbólica quando os indivíduos se tornam reféns. O contexto de dominação se desenrola na
sistemática das relações de poder. Aqui referendando o Estado como espaço produtor e reprodutor
de poder. E as constantes faltas e/ou interrupções, até mesmo descontinuidades de políticas que
atendem as demandas da sociedade. Não são erros ou falta de interesse de quem está do outro lado,
“na realidade, a impressão de que o poder vacila é falsa, porque ele pode recuar, se deslocar,

3
Ver COMISSÃO PARLAMENTAR MISTA DE INQUÉRITO – Relatório Final. Com a finalidade de investigar a situação da
violência contra a mulher no Brasil e apurar denúncias de omissão por parte do poder público com relação à aplicação
de instrumentos instituídos em lei para proteger as mulheres em situação de violência”. Brasília. Junho/2013

5
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
investir em outros lugares... e a batalha continua.” (Foucault, 1979, p. 146). Estrategicamente
pensado, articulado e astucioso é o caminhar do aparelho do Estado, de quem gesta e de quem o
alimenta, “a cada movimento de um dos adversários, corresponde o movimento do outro.”
(Foucault, 1979, p. 147).

Fazendo esta abordagem inicial acerca das estratégias de dominação do Estado, as demandas
oriundas da sociedade e de como o primeiro responde a estas, cabe no próximo ponto, trazer a fala
de alguns homens autores de violência, que ratificam a necessidade da contínua luta pelo combate à
violência doméstica e familiar contra a mulher. Afinal de contas, o que se percebe é a reprodução de
sistemas simbólicos e de condutas e papéis tradicionais masculinos e femininos.

A proposta que fomentamos para reflexão é o entendimento da violência doméstica como


um processo relacional, tendo em vista que se trata de uma conjuntura em que perpassam relações
de poder e, no entanto, para existir um dominado é necessário haver um dominador. Com a
publicização da violência doméstica, o Estado brasileiro têm empreendido esforços para o
empoderamento das mulheres e para o aprimoramento de serviços que atendam às diversas
demandas das vítimas de violência entre outras ações (mesmo que precariamente), tais como: a
inserção da perspectiva de gênero nos programas e projetos nacionais, estaduais e municipais,
capacitação de pessoal técnico responsável pelo atendimento às vítimas, aumento do número de
serviços especializados, a proposta de revisão dos livros didáticos quanto às questões de gênero e de
raça/etnia, estabelecimento de cotas para mulheres em partidos, entre outras ações direcionadas para
o ressignificar das mulheres na sociedade.

É notório todo um movimento do Estado, em consonância ao da sociedade, para abrandar os


efeitos do ideário machista que ainda se reproduz nas estruturas da sociedade brasileira, porém, é
necessário compreender que não são as mulheres as responsáveis por tal contexto, não podemos
pensar modelos e formas de tornar as mulheres mais empoderadas e independentes se não
trabalharmos e fomentarmos a transformação dos principais responsáveis pela reprodução do
machismo em nossa sociedade, os responsáveis por milhares de mortes de mulheres, por conta de
suas percepções machistas, os homens. A sensação que passa quando vemos que os homens não
estão sendo responsabilizados de igual forma é de frustação.

A lógica correta para a transformação desta situação implica em aparar todas as arestas, e o
que se vê na atual conjuntura é um trabalho (necessário) com as mulheres e aos homens apenas a

6
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
punição (quando ocorre), tendo em vista, como já dito anteriormente, a falta de celeridade dos
processos e a não resolutividade da punição, tomando como referência casos de reincidência de
homens que cometem violência com duas ou mais mulheres.

Neste contexto, corroboro com a proposta oriunda da própria Lei Maria da Penha quando
nas disposições finais, refere no

Art. 35. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar


e promover, no limite das respectivas competências:

I - centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e


respectivos dependentes em situação de violência doméstica e familiar;

II - casas-abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em


situação de violência doméstica e familiar;

III - delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros


de perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher em situação de
violência doméstica e familiar;

IV - programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e


familiar;

V - centros de educação e de reabilitação para os agressores.

É necessário citar como se apresenta a mobilidade dos instrumentos estatais, jurídicos e


políticos na construção do ordenamento da sociedade: “A União, o Distrito Federal, os Estados e os
Municípios poderão criar...” (grifos meus). Fica a possibilidade condicionada à vontade política ou
à necessidade, quando esta apontar pelo movimento de adequação da sociedade. Portanto, levar ao
homem a refletir sobre as ditas “coisas de mulheres” não é prioridade na agenda dos governos
estaduais e municipais. Já se passaram seis anos da implementação da Lei Maria da Penha e, apenas
alguns Estados iniciaram uma proposta com centros de educação e reabilitação para agressores.

De acordo com o relatório final da Comissão Mista Parlamentar de Inquérito (2013), são
poucos os Estados que contemplam o serviço de reeducação para homens autores de violência, e a
própria comissão não expõe a necessidade deste serviço, atribuindo o peso das suas recomendações
aos Estados brasileiros.

No debate sobre a concretização dos serviços de reeducação voltados aos homens autores de
violência, é imprescindível pontuar Foucault na sua reflexão sobre as prisões.

7
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Desde 1820 se constata que a prisão, longe de transformar os criminosos em gente
honesta, serve apenas para fabricar novos criminosos ou para afundá-los ainda mais
na criminalidade. [...] a prisão fabrica delinquentes, mas os delinquentes são úteis
tanto no domínio econômico como no político. (FOUCAULT, 1979, p. 131)

É importante salientar a necessidade da experiência do aprisionamento destes homens,


porém, a prisão por si só não resolve a dimensão da problemática. A prisão por muito tempo
profissionaliza a criminalidade. “Não se pune portanto para apagar um crime, mas para transformar
um culpado...” (Foucault, 2010, p.123). A intenção de incluir o homem em atividades sócio
educativas é a fim de afastá-los do contexto de violência, é fazê-lo repensar as atitudes violentas
como formas de resolução de problemas advindos das relações familiares e, principalmente,
modificar o padrão sócio cultural destes homens e de outros que serão educados por estes.

Temos escutado em alguns encontros de mulheres e de feministas o questionamento: “...mas


porque ouvir os homens? Eles sempre foram ouvidos, precisamos dar voz às mulheres...” Falar isto
ou pensar desta forma, é para meu parco entendimento político uma limitação lógica no
entendimento de uma sociedade igualitária, sem preconceitos e por direitos iguais. E, realmente,
não queremos mais ouvir o que eles têm a dizer, mesmo porque o que eles dizem, nós já sabemos. O
que queremos descobrir para modificar é como eles falam, porque falam, com quais intenções e,
principalmente, descobrir estratégias de ação para modificar os seus discursos machistas e
impregnados de violência. Entender como o processo da violência se ressignifica, mesmo com o
aprisionamento e com o processo criminal sendo respondido.
Não queremos ouvir as suas vozes, queremos que eles ouçam as nossas vozes, o que temos a
dizer. A necessidade de mostrar que a sociedade caminha a passos largos e, suas vidas,
“atacanhadas” no passado, presas a modelos de poder ilusórios, que continuam a reger suas atitudes.
Queremos que ouçam as nossas vozes, no direcionamento de reflexões, provocando
questionamentos, incitando debates e provocações.

Um dos primeiros desafios para o homem é o reconhecimento da prática da violência no


cotidiano, especialmente nos processos relacionais com suas companheiras, passadas e futuras. A
punição injusta é comum nas falas dos homens agressores. A culpabilização da mulher pela
violência, decorrente de suas provocações e, a própria violência é vista como normal e natural na
relação a dois. Um mundo de “coisas” que necessitam ser discutidas com estes agentes.

8
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Cabe apontar também como a notícia sobre violência doméstica chega aos indivíduos, numa
perspectiva de invisibilizar o agressor, colocando toda a narrativa na história de vida da mulher.
Nestes casos, a vítima passa a ser a principal figura de discussão, quando seria necessário atribuir ao
homem o peso da indignação e das representações negativas de suas atitudes.

Trabalhar o homem autor de violência permitirá a abordagem sobre modelos de


masculinidades (violentas), tomando como referências as diversas representações apresentadas nos
relatos pessoais dos homens, apresentando para cada modelo a perspectiva inata da violência
associada ao papel universal do homem na sociedade. Frequentemente, o que se observa nos
homens é a minimização da violência, justificando-a com uma série de argumentos tais como as
provocações e ciúmes das mulheres. A partir daí, a violência cometida pelo homem toma uma
proporção mínima, tendo em vista que ela se inicia pela mulher.

Façamos uma breve análise dos fatos de violência doméstica apresentados na mídia
nacional: fala-se de suas mortes, fruto de uma política não eficaz ou apresenta-se as mulheres
vítimas, suas histórias e famílias, ao mesmo tempo em que se oculta a história do homem, o que faz,
de onde vem, para onde vão, quais as ações implementadas para este homem, se foram presos, se
foram julgados ou condenados. Os serviços de atenção à mulher, o trabalho necessário de
empoderamento, mas, onde estão os trabalhos para ressignificar nos homens o “ranço” dos valores
patriarcais que alimentam o machismo? A sociedade se reproduz a partir de dois polos, são
mulheres – se ressignificando e também são homens – se reproduzindo. E estes dois polos em
determinado momento se encontram, em permanente conflito.

Para exemplificar os argumentos aqui apresentados, reproduzimos algumas falas retiradas de


grupos focais realizados com homens, que comprovam uma pretensa perpetuação deste contexto de
poder que permeia as relações conjugais.

Para o participante Terra4, a representação de seu pai é do “pegador”, tal qual o filho se
tornou, “o homem pode fazer isto, está na carne, no sangue. O que eu posso fazer?” e mais, “... A
agressividade é um comportamento natural do homem”

O contexto de vida posto por Brisa5 remete à uma mãe invisibilizada pela austeridade e
autoridade do pai: “nunca vi meus pais brigando, mas sabia que estavam brigados porque eles não

4
Nome fictício dado aos participantes dos grupos
5
Idem

9
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
se falavam”. E a voz da mãe de Brisa não apareceu no contexto do grupo, “eu ficava mais com meu
pai, porque ele ficava na rua, não deixava faltar nada em casa”. Por conta deste contexto
sóciohistórico, Brisa se apresenta como um homem ainda com percepções conservadoras e
machistas, a mulher precisa cuidar da casa, não aceita que esta divida conta com ele, precisa estar
“cheirosa” quando ele chegar do trabalho, e se possível não precisa trabalhar. E também: “Minha
mãe era muito pirracenta”, ao se referir às divergências dos pais. (Brisa)

Lua6 inicia sua fala: “Então as mulheres agora serão soberanas? Demonstrando indignação
com esta possibilidade. “As mulheres hoje, estão salientes e soltas”: sobre a divulgação de fotos de
uma mulher na internet fazendo sexo, retrunca: “Se ela tivesse educação do pai e da mãe não fazia
isto. Se ela fosse santa não passaria por isso.”

Quando o tema é traição, um dos participantes é categórico em afirmar que o homem pode
bater na mulher que trai: “o cara chega em casa e encontra a mulher atracada com outro homem e
vai fazer o que?”, chegando a conclusão de que a traição legitima a agressão, a violência. Outros
membros do grupo concordam com este posicionamento.

Os depoimentos acima revelam a necessidade de um trabalho que contemple um debate


sistemático com abordagens sobre as relações de gênero, violência, preconceitos, novo modelo
societário, sexualidade e outros temas recorrentes. Cabe salientar que o grupo focal foi realizado
com homens que ficaram detidos em flagrante pelo crime de violência doméstica.

Cabe também refletir sobre outro ponto crucial para o enfrentamento à violência doméstica e
familiar contra a mulher, como por exemplo, a precarização dos serviços voltados para o
atendimento às vítimas. O quadro nacional parece ser de retrocesso, no que tange aos serviços, à
capacitação dos profissionais, às estruturas físicas e financeiras e o entendimento da violência pelo
próprio corpo jurídico que decide sobre as ações. Caso contrário, os serviços de proteção social
permanecem distantes do que preconiza a legislação e, corre-se o risco de, ao invés de criar e/ou
fortalecer mecanismos de prevenção e combate à violência infligida às mulheres, contribuir para
alimentar e perpetuar essa violência, por meio da banalização, que engendra uma nova forma de
invisibilização, desta feita, sob o artifício da superexposição.

6
Idem

10
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Referências

BRASIL, Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006, (Lei Maria da Penha).

BRASIL. Relatório Final: Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Brasília: 2013.

FOUCAULT, MICHEL. Microfísica do Poder. 23.ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

FOUCAULT, MICHEL. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. 38 ed. Petropólis, RJ: Vozes, 2010.

PEREIRA, POTYARA A. P. Política social: temas & questões. 3ª. Ed. São Paulo: Cortez, 2011.

Public policies to combat domestic violence – Working two poles

Abstract: This article reflects on reports of men who commit domestic violence, obtained through
the realization of the focus group, a school in the next rod domestic violence in Salvador / BA,
whose discursive reading of his lines, sometimes expressed machismo sometimes uses
victimization. The collective reflections offer them the opportunity to rethink attitudes, because they
take a woman as a mediator, whose arguments are contraries, which promotes debate and reflection
imprint transformer. It is necessary, however, to analyze how public policies have dialogued and
pleading for coping with domestic violence, and is a relational process, have to be worked with two
conflicting poles, women and men. And the urgent need to bring the man to the debate on gender
relations, the condition of women in society and the domestic violence. The number of women
killed by men continues to grow, as they reproduce the relational model normative society whose
egalitarian bases so often obscure the asymmetry that produces and (re) produces the violence
against women.
Keywords: Violence. Aggressors. Public Politic.

11
Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X

Você também pode gostar