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UNIDADE 1: CONTEXTO HISTÓRICO

Daniela da Cunha Pereira1

1. Origem da violência contra a mulher

A atuação na área de violência doméstica e familiar contra a mulher possui


diversas particularidades e encerra vários desafios, a começar pela dinâmica na qual
os atos em tese criminosos estão inseridos.
O ensino tradicional do direito e a prática das varas criminais comuns partem
da ideia de vítimas e réus que, ou estão em campos opostos, ou não têm nenhum
vínculo entre si, a não ser aquele fato criminoso que os conectou em apenas um
momento. Tome-se como exemplo o roubo de um celular, em que a vítima nunca viu
o autor do fato e cruzou com ele por casualidade, ocasião em que o crime
aconteceu. Ou ainda a situação em que um criminoso adentra um estabelecimento
comercial armado, rende os clientes, subtrai os bens e foge em seguida. Nesses
casos - tão comuns em uma vara criminal -, as vítimas e o autor do crime não têm
nenhum relacionamento prévio e, em regra, aquelas esperam a punição do último.
Os crimes em contexto de violência doméstica e familiar desenvolvem-se em
um cenário completamente diferente, dentro de uma dinâmica social e afetiva
extremamente complexa, que faz com que tais casos, muitas vezes, não sejam
adequadamente resolvidos pela solução tradicional de simplesmente absolver ou
condenar.
As particularidades dos processos que envolvem violência doméstica e
familiar não raro geram nos operadores do direito muitos questionamentos, além de
uma certa dose de angústia e frustração.

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Juíza de Direito titular da 2ª Vara Criminal e de Execuções Penais da Comarca de Ibirité-MG

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Faz-se necessário, portanto, àqueles que atuam em tais casos ampliar sua
visão e traçar uma linha de atuação para além dos limites do direito e do processo,
até mesmo porque o processo não é o único fim da atuação jurisdicional.
O diálogo do direito com outras áreas do conhecimento humano é
fundamental para aqueles que pretendem compreender e vencer os desafios
relacionados à atuação nas varas de violência doméstica, exigindo dos profissionais
da área jurídica o reconhecimento de que processos tratam de vidas humanas e de
relacionamentos complexos. Sendo a atividade jurisdicional um serviço público, para
servir a esse público, é preciso, em alguma medida, compreendê-lo, bem como os
fenômenos sociais e históricos que se encontram na gênese dessas violências.
É nesse contexto que surge e se reforça a necessidade de se adentrar em
áreas frequentemente envoltas em polêmicas e preconceitos para tratar de temas
espinhosos como machismo, misoginia, gênero e masculinidade.
A compreensão de qualquer fenômeno social e cultural passa
necessariamente pela investigação de sua origem, pois para vencer um problema é
preciso conhecê-lo. E a violência doméstica e familiar contra a mulher
lamentavelmente é um enorme problema em nosso país.
O Atlas da violência de 2019, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança
Pública do IPEA, apurou que o Brasil registra cerca de 13 feminicídios por dia, sendo
que, ao todo, 4.936 mulheres foram mortas no ano de 2017, sendo esse o maior
número registrado desde 2007.
Não resta dúvida de que a violência contra a mulher, que atinge o país de
forma grave e brutal, possui causas multifatoriais, mas, diante da constatação de
que mulheres e meninas são particularmente vitimadas por homens (e não por
outras mulheres), não há como se deixar de analisar esse fenômeno à luz de suas
raízes históricas e culturais.
As estatísticas oficiais comprovam que, embora mulheres e meninas sejam
mortas e violentadas por homens em proporções alarmantes, elas, no entanto,
quase não se envolvem em crimes semelhantes praticados contra indivíduos do
sexo masculino. Sendo assim, é possível concluir que elas morrem muito e matam

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pouco. Sofrem violência sexual diariamente e pouco se envolvem em crimes
sexuais.
Estamos, portanto, diante de um cenário que indica uma proporção elevada
de homens violentos e de mulheres violentadas. Partindo-se do pressuposto de que
gênero não define caráter – e de que, por consequência, tanto homens como
mulheres podem ser íntegros, respeitosos, decentes e de bom caráter, assim como
podem ser vis, maldosos e insensíveis – é possível concluir que essas violências
são criadas a partir de uma estrutura que as produz e reforça.
A essa estrutura na qual homens ocupam o poder político, social e familiar,
exercendo domínio e autoridade sobre as mulheres, dá-se o nome de patriarcado.

Mas onde e quando surgiu o patriarcado? Ele é universal? É


natural? É possível ser superado?

A resposta a essas perguntas demanda uma investigação histórica,


sociológica e antropológica.
Contudo, ao se buscar as raízes históricas da discriminação contra as
mulheres, nos deparamos com um curioso obstáculo, pois, como disse Gerda
Lerner, “o registro gravado e interpretado da espécie humana é apenas um registro
parcial, uma vez que omite o passado de metade dos seres humanos, sendo
portanto distorcido”, já que conta “a história apenas do ponto de vista da metade
masculina da humanidade”.
Ao longo dos anos, as mulheres foram completamente destituídas de sua
história, de suas narrativas e de sua própria humanidade. Não obstante, à medida
que os espaços de conhecimento foram sendo gradativamente ocupados por
mulheres, passamos a ter acesso e refletir a respeito de como começou a estrutura
social que nos conduziu ao cenário de desigualdade em que lamentavelmente
vivemos.
Os estudos de História, Ciências Sociais e Antropologia levados a efeito nos
séculos XX e XXI começaram a desconstruir paulatinamente a ideia de que a

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submissão das mulheres seria um fato universal – e portanto imutável – para situá-lo
como um fato histórico que, por ser fruto da história, também pode ser extinto pelo
processo histórico.
Nesse particular, é importante destacar que, segundo Gerda Lerner (2019),
estudos antropológicos mais recentes demonstram que a dominação masculina está
longe de ser universal, havendo registros de sociedades nas quais a assimetria
sexual não tinha conotação de dominação ou submissão, e,

em vez disso, as tarefas realizadas por ambos os sexos eram


indispensáveis para a sobrevivência do grupo, e o status de ambos os
sexos era considerado igual na maioria dos aspectos. Nessas sociedades,
os sexos eram considerados ‘complementares’ (LERNER, 2019, p. 44).

Embora existam diversas teorias e estudos científicos a respeito das origens


históricas da opressão das mulheres pelos homens – que até hoje se expressa nos
índices alarmantes de violência doméstica registrados no Brasil – há um consenso
no sentido de que essa estrutura de dominação relaciona-se ao controle reprodutivo,
uma vez que a sobrevivência de qualquer grupo social – e, em última análise, da
própria humanidade – depende da capacidade de gerar filhos, e, por consequência,
sociedades com mais mulheres produzem mais filhos.
A capacidade da mulher de gerar filhos, portanto, seria o elemento que fez
com que surgisse a ideia de apropriação real e simbólica dos corpos femininos pelos
homens, ocasionando o que Claude Lévi-Strauss denominou de reificação, processo
pelo qual as mulheres passam a ser desumanizadas e vistas mais como coisas que
como seres humanos.
A visão dos corpos femininos como objetos que possuem proprietários que
inclusive podem deles dispor está na origem dos crimes cometidos contra esses
mesmos corpos e sobretudo das construções sociais que produzem índices
alarmantes de feminicídio.
É a partir dessa concepção que retira a subjetividade e a individualidade das
mulheres que se desenvolve todo um sistema de opressão histórica que perdura ao
longo de séculos – o patriarcado – e que causa não apenas sofrimento a mais de

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metade da população mundial, mas também sacrifica e penaliza famílias e filhos,
vítimas ocultas das múltiplas violências praticadas contra as mulheres.
A própria Exposição de Motivos da Lei nº 11.430, de 2006, reconheceu a
centralidade dos processos históricos como causas da violência doméstica e
familiar, ao dispor, em seu item 16, que “as desigualdades de gênero entre homens
e mulheres advêm de uma construção sociocultural” e de “um sistema de
dominação” que “passa a considerar natural uma desigualdade socialmente
construída”. Tal descrição evidencia o componente social – e, portanto, de origem
histórica – da estrutura que comporta, reproduz e estimula a violência contra a
mulher.

2. Construções sociais como causa e elemento de


agravamento da violência doméstica e familiar

Partindo-se da constatação de que os índices assustadores de violência


doméstica e familiar guardam correlação com processos históricos e elementos
culturais, convém analisar como essas construções sociais geram e agravam o atual
cenário de violência para que, identificando-se as raízes desses sistemas e práticas,
possamos atuar na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Existe um consenso no sentido de que os papéis socialmente designados às
mulheres e aos homens atuam de forma relevante na construção de práticas e
simbolismos que estimulam a violência contra a mulher.
A fim de ilustrar o papel que os estereótipos desempenham no fomento da
violência doméstica, podemos pensar na seguinte situação: quando uma mulher
comunica que está grávida, muito provavelmente a primeira pergunta que terá que
responder a respeito do bebê é se é um menino ou uma menina. E por que é tão
importante na nossa cultura saber se o bebê é menino ou menina? Porque é a partir
dessa definição que nós vamos começar a moldar no nosso imaginário a identidade
desse ser.

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Caso o sexo biológico seja feminino, os pais quase imediatamente pensarão
em decorar o quarto com temas como fadas e borboletas, em comprar roupas com
babados, laços e fitas e os parentes idealizarão presentes com elementos que
remetam a uma ideia de delicadeza, doçura e suavidade. Caso o sexo biológico seja
masculino, a decoração do quarto muito provavelmente incluirá elementos como
carros, aviões e esportes, enquanto as roupas terão tons mais fortes e os presentes
estarão relacionados a atividades atléticas (futebol, basquete, automobilismo) ou
relacionadas às mais diversas profissões, desde astronautas até caçadores.
Percebam que, a partir de uma única informação – se os genitais são
masculinos ou femininos –, nós já definimos claramente qual será o papel dessa
criança no mundo. E, a partir dessa única informação, nós, inconscientemente, já
criamos a expectativa de que a menina será doce, delicada e romântica, e o menino
será forte, aventureiro e destemido, de modo que, desde os primeiros anos de vida
da criança, já está posto que o que se espera de um homem é força e
predominância.
Esses papéis socialmente associados a homens e mulheres persistem ao
longo de toda a vida e a eles vão se somando mais e mais camadas, que reforçam,
de forma reiterada e constante, a ideia de que a agressividade masculina e a
submissão feminina são naturais.
Porém, como pontuam Raewyn Connel e Rebecca Pearse, “a vida humana
não se divide em apenas duas esferas, nem o caráter humano se divide em apenas
dois tipos. Nossas imagens de gênero são quase sempre dicotômicas, mas a
realidade não o é” (CONNEL; PEARSE, 2015, p. 46).
Nesse ponto, é importante destacar que, embora, sob o ponto de vista
genético, hormonal, morfológico e fisiológico, homens e mulheres tenham mais
semelhanças que diferenças, há uma tendência de se focar mais nas diferenças que
nas semelhanças para se estabelecer critérios de hierarquia e posicionamento social
e relacional.
A esse respeito, Valeska Zanello destaca que, historicamente, nos séculos 18
e 19, houve, por motivos ideológicos, uma mudança da eleição do foco de interesse

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das semelhanças entre os órgãos genitais masculinos e femininos para suas
diferenças, o que teria ocorrido para, “por meio da afirmação da diferença física
(colocada como foco)”, se pudesse naturalizar diferenças sociais (ZANELLO, 2018,
p. 41). A autora esclarece ainda que “não se trata aqui de negar a diferença corporal,
mas de apontar que certas diferenças foram eleitas em determinado momento
histórico para justificar desigualdades sociais” (ZANELLO, 2018, p. 42).
No mesmo sentido, as conclusões de Gerda Lerner, quando afirma: “parto do
princípio de que homens e mulheres são biologicamente diferentes, mas que os
valores e as implicações baseados nessa diferença resultam da cultura” (LERNER,
2019, p. 30).
Há diversos fatos e contextos histórica e socialmente comprovados que
demonstram como as noções de masculinidade e feminilidade variam de acordo
com o tempo e o lugar. Na Grécia Antiga, por exemplo, fazia parte da construção da
masculinidade que o homem jovem mantivesse relações sexuais com um homem
mais velho, sendo esta uma etapa necessária para se atingir o modelo de
masculinidade vigente àquela época, de modo que, “em outras palavras, as práticas
homoeróticas eram um elemento constitutivo da própria virilidade grega” (ZANELLO,
2018, p. 180).
Por outro lado, há registros de que, em diversas sociedades de povos nativos
brasileiros, a maternagem, que contemporaneamente entendemos como um atributo
intrínseco à feminilidade, era exercida de forma comunitária, por todos os membros
de uma aldeia.
Tais exemplos ilustram como as noções de o que é ser “masculino” e
“feminino” variam de acordo com o local e o tempo histórico.
E não apenas isso. As construções em torno do que é “ser mulher” são
também profundamente marcadas pelo componente racial.
Predomina, no senso comum, por exemplo, um ideal de feminilidade que
associa o “ser mulher” a características como doçura e fragilidade, estabelecendo o
espaço doméstico como o habitat natural das mulheres. No entanto, esses mesmos
atributos, muitas vezes, são negados às mulheres negras, a quem não é sequer

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socialmente permitida a fragilidade, porquanto delas se exige que sejam “guerreiras”
capazes de trabalhar nas mais diversas funções, cuidar da casa e criar filhos
sozinhas. Percebam que, para as brancas, o “ser mulher” corresponde a um ideal de
fragilidade, doçura e domesticidade, enquanto, para as negras, o “ser mulher”
carrega as profundas marcas do racismo.
Angela Davis afirmou a esse respeito que

a julgar pela crescente ideologia da feminilidade do século XIX, que


enfatizava o papel das mulheres como mães protetoras, parceiras e donas
de casa amáveis para seus maridos, as mulheres negras eram praticamente
anomalias”, acrescentando que “a postura dos senhores em relação às
escravas era regida pela conveniência: quando era lucrativo explorá-las
como se fossem homens, eram vistas como desprovidas de gênero; mas,
quando podiam ser exploradas, punidas e reprimidas de modos cabíveis
apenas às mulheres, elas eram reduzidas exclusivamente à sua condição
de fêmeas (DAVIS, 2016, p.17-18).

A partir da constatação, cientificamente embasada, de que existem diversas


configurações históricas e sociais do masculino e do feminino e de seus respectivos
desdobramentos, construíram-se, principalmente, a partir da década de 70, os
estudos de gênero, sobretudo, na área das ciências sociais.
Recentemente, o termo “gênero” vem sendo alvo de controvérsias, polêmicas
e debates, notadamente no Brasil. Por isso, faz-se necessário esclarecer por que
todos aqueles que atuam em processos envolvendo violência doméstica e familiar
devem conhecer esse conceito, sendo essa discussão indissociável da
compreensão do fenômeno da violência contra a mulher e da sua superação.
A necessidade da compreensão do conceito de gênero decorre de um
imperativo legal, já que a Lei nº 11.340, de 2006, utiliza tal conceito para definir a
violência doméstica e familiar contra a mulher em seu art. 5º: “Para os efeitos dessa
Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou
omissão baseada no gênero que lhe cause lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico e dano moral ou patrimonial.” (sem destaque no original).
Mais à frente, a mesma lei prevê, em seu art. 8º, inciso II, que “a política
pública que visa a coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher considerará

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a promoção de estudos e pesquisas com a perspectiva de gênero e de raça ou
etnia” (sem destaque no original).
Diante da clareza do texto legal, há que se reconhecer que o enfrentamento
da violência doméstica e familiar é indissociável do debate sobre gênero.
E, afinal de contas, o que vem a ser gênero?
Em linhas gerais, o gênero está relacionado às construções sociais que
estabelecem qual o papel, função ou comportamento esperado de alguém com base
em seu sexo biológico.
Gerda Lerner conceitua gênero como “a definição cultural de comportamento
definido como apropriado aos sexos em dada sociedade, em determinada época” ou
como “um conjunto de papéis culturais” (LERNER, 2019, p. 289).
Como vimos acima, tais construções sociais não são imutáveis e variam de
acordo com o tempo e o lugar. Essa compreensão é necessária para que possamos
nos conscientizar de que as características que colocam as mulheres em posições
subalternas ou que as relegam a espaços específicos, impedindo que elas ocupem
esferas de poder e tenham autonomia sobre suas vidas e seus corpos, são
construídas socialmente e atendem ao sistema patriarcal, que é fundamentalmente
desigual e injusto, pois se funda na dominação de um gênero sobre outro.
A ideia de gênero, portanto, não guarda qualquer relação com o estímulo de
práticas sexuais precoces, à pedofilia ou à destruição da família, sendo, ao revés,
um ramo consolidado de estudo das ciências sociais e mais recentemente também
da neurociência.
Importa, mais uma vez, salientar que a própria Exposição de Motivos da Lei nº
11.340, de 2006, reconhece, em seu item 16, que

as desigualdades de gênero entre homens e mulheres advêm de uma


construção sociocultural que não encontra respaldo nas diferenças
biológicas dadas pela natureza. Um sistema de dominação passa a
considerar natural uma desigualdade socialmente construída, campo fértil
para atos de discriminação e violência que se ‘naturalizam’ e se incorporam
ao cotidiano de milhares de mulheres.

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3. O papel das práticas cotidianas no fomento das
múltiplas formas de violência contra a mulher

Contemporaneamente, os papéis socialmente atribuídos a homens e


mulheres encontram-se na gênese das opressões e violências praticadas contra as
mulheres. São essas construções sociais – moldadas ao longo de séculos – que
naturalizam conceitos que reduzem mulheres a adornos, objetos sexuais ou pessoas
que somente se realizam no ambiente doméstico, impedindo sua emancipação.
Tais construções são tão arraigadas em nossa cultura que, muitas vezes, não
são percebidas, e essa dificuldade de identificação das opressões termina por
conduzir e manter mulheres em relacionamentos abusivos, em cujo seio a violência
doméstica acontece.
A título ilustrativo, convém mencionar algumas frases do senso comum que
traduzem preconceitos socialmente arraigados, formando um caldo cultural que cria,
autoriza e favorece a violência contra a mulher:
1) “Isso é coisa de mulherzinha”: inferioriza mulheres, designando que o que
se refere ao sexo feminino é menor, subalterno, desprezível.
2) “Para ficar bonita, mulher tem que sofrer”: reduz mulheres a adornos,
expressando que elas têm que obrigatoriamente suportar sofrimento para atender
expectativas e padrões de beleza que agradem aos homens.
3) “Mulher de amigo meu pra mim é homem”: traduz o entendimento de que o
homem respeita o amigo, mas não a mulher.
4) “Se você não se cuidar ele vai te trair”: coloca sobre os ombros da mulher a
obrigação de se adequar ao padrão de beleza imposto pelo homem e ainda a culpa
pela traição dele.
5) “Desse jeito você vai ficar para titia”: coloca o casamento como central e
indispensável na vida de uma mulher, sendo que esse ideal frequentemente empurra
e mantém mulheres em relacionamentos abusivos.

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6) “Se estivesse em casa isso não teria acontecido”: corrobora o
entendimento de que o espaço das mulheres deve se restringir ao espaço doméstico
quando, na verdade, segundo a ONU, a casa é o ambiente mais perigoso para as
mulheres, pois mais de 70% das denúncias de violência sexual contra crianças e
adolescentes envolvem abusos praticados no ambiente doméstico, por parentes das
vítimas.
7) “Homem não gosta de mulher de cabelo curto/unha sem fazer/que fala
palavrão/que bebe, etc.”: coloca os homens como avaliadores da conduta e da
aparência de mulheres, induzindo o entendimento de que é o conceito deles que
deve pautar a estética e as atitudes delas.
Importa destacar que os conceitos, ideias e estereótipos que formam o
referido caldo cultural que legitima a violência contra as mulheres também estão
presentes em produtos culturais (como músicas, filmes e séries de TV) e de forma
acentuada em memes trocados em grupos de WhatsApp (sobretudo grupos de
homens) que reproduzem e reforçam machismo, misoginia e objetificação.
A propósito da violência sexual, deve-se ressaltar que a indústria cultural
fetichiza corpos juvenis e mulheres com características infantilizadas, o que termina
por validar e legitimar socialmente padrões relacionados à pedofilia.
Todos esses fatores, aliados a outras construções sociais que operam, às
vezes de forma evidente e às vezes de forma sutil, desenham uma sociedade que,
ao exigir que mulheres sejam dóceis, belas, recatadas, estabelecendo que seu
espaço de realização é exclusivamente o lar e os relacionamentos amorosos,
constroem um ambiente e uma estrutura que favorecem e estimulam a prática de
múltiplas violências praticadas por homens contra mulheres e meninas.
A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie chama a atenção para o fato
de que o próprio conceito de que mulheres devem ser protegidas e defendidas por
homens revela um preconceito que termina por referendar práticas violentas e
sexistas:

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Uma vez ouvi de um político americano, ao demonstrar seu apoio às
mulheres, que elas deveriam ser ‘reverenciadas’ e ‘defendidas’ - um
sentimento muito comum.
Diga a Chizalum que as mulheres, na verdade, não precisam ser
defendidas ou reverenciadas; só precisam ser tratadas como seres
humanos iguais. Há uma conotação de superioridade na ideia de que
as mulheres precisam ser ‘defendidas e reverenciadas’ por serem
mulheres. Isso me fez pensar em cavalheirismo, e a premissa do
cavalheirismo é a fragilidade feminina (ADICHIE, 2017, p. 39).

4. Por que precisamos da Lei Maria da Penha?

A resposta curta para essa pergunta seria: para garantir o princípio da


igualdade resguardado na Constituição da República e que estrutura o Estado
Democrático de Direito.
É nesse sentido que dispõe a Exposição de Motivos da Lei nº 11.340, de
2006, em seu item 12:

É contra as relações desiguais que se impõem os direitos humanos das


mulheres. O respeito à igualdade está a exigir, portanto, uma lei específica
que dê proteção e dignidade às mulheres vítimas de violência doméstica.
Não haverá democracia efetiva e real enquanto o problema da violência
doméstica não for devidamente considerado. Os direitos à vida, saúde e à
integridade física das mulheres são violados quando um membro da família
tira vantagem de sua força física ou posição de autoridade para infligir
maus-tratos físicos sexuais, morais e psicológicos.

A escritora Patrícia Melo, em seu livro Mulheres empilhadas, traz um texto


duro, forte, assertivo e sem rodeios que ilustra por que infelizmente ainda
precisamos da Lei Maria da Penha:

Nós, mulheres, morremos como moscas. Vocês, homens, tomam porre e


nos matam. […] Estão furiosos e nos matam. Querem diversão e nos
matam. Descobrem nossos amantes e nos matam. São abandonados e nos
matam. Arranjam uma amante e nos matam. São humilhados e nos matam.
Voltam do trabalho cansados e nos matam.
E, no tribunal, todos dizem que a culpa é nossa. Nós, mulheres, sabemos
provocar. Sabemos infernizar. Sabemos destruir a vida de um cara. Somos
infiéis. Vingativas. A culpa é nossa. Nós que provocamos. Afinal, o que
estamos fazendo ali? Naquela festa? Àquela hora? Com aquela roupa? Por
que afinal aceitamos a bebida que nos foi oferecida? Pior ainda: como não
recusamos o convite de subir até aquele quarto de hotel? Com aquele

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brutamontes? […] E bem que fomos avisadas: não saia de casa. Muito
menos à noite. Não fique bêbada. Não seja independente. Não passe daqui.
Nem dali. Não trabalhe. Não vista essa saia. Nem esse decote. Mas quem
disse que seguimos as regras? Vestimos minissaias. Decotes que vão até o
umbigo […]. Abusamos. Entramos em becos escuros […]. Extrapolamos.
Trabalhamos o dia inteiro. Somos independentes. Temos amantes.
Gargalhamos alto. Sustentamos a casa […]. O curioso é que não matamos.
Incrível como matamos pouco (MELO, 2019, p. 71).

Enquanto houver mulheres e meninas morrendo e sendo violentadas


todos os dias, às dezenas, precisaremos não apenas de uma Lei Maria da
Penha, mas de pessoas e instituições aptas e dispostas a emancipá-las e
defendê-las.

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