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ELEMENTOS PARA A REFLEXÃO SOBRE A VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Ana Kelly Almeida da Costa


Maria do Carmo Bezerra de Melo Pontes
Rozeane Leal do Nascimento1

RESUMO: O presente artigo visa oferecer elementos para a reflexão e a aplicação


do conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher, tomando como
referência a questão de gênero.

PALAVRAS CHAVE: Gênero; Violência; Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).

1. Marco Histórico:

A Lei 11.340/2006, amplamente conhecida como “Lei Maria da Penha2”


demonstra um esforço da sociedade brasileira em intervir e realizar justiça nos
crimes recorrentes no cotidiano das famílias, na convivência doméstica e nas
relações de afeto.
Pela primeira vez na história do país, buscou-se tratamento mais rigoroso aos
crimes que antes eram vistos como “excessos” ou “desentendimentos” nas relações
íntimas, nos quais a figura do homem se sobrepõe à mulher e a submete a diversos
tipos de violações: física, psicológica, moral, patrimonial, entre outras.
Para o entendimento deste tipo de violência, precisamos ancorar as reflexões
em nossa herança histórica e cultural, resgatando o lugar social ocupado pela
mulher. Na formação da família tradicional, seu papel esteve primordialmente
associado às funções de mãe e cuidadora, “rainha do lar”, resignada aos ditames do
homem e aos preceitos religiosos da vida cristã.
Na cronologia dos direitos femininos no Brasil, conquistas como escolaridade
superior (ocorrida em 1879) e o voto (Sufrágio em 1932), ocorreram tardiamente.
Nesta esteira, apenas em 1962 o então “Estatuto da Mulher Casada” garantia que

1Analistas judiciárias/assistentes sociais da 2ª Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a


Mulher da Capital.

2 A Lei foi assim chamada em homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes, vítima contumaz de
violência doméstica praticada pelo ex-marido, que culminou em tentativa de assassinato. Depois de
repetidas agressões, sobreviveu, permanecendo paraplégica. Atualmente, Maria da Penha luta pelo
combate à violência contra mulher.

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elas não precisariam mais de autorização do marido para trabalhar, receber herança
ou requerer a guarda dos filhos, em caso de separação.
O avanço dos direitos da mulher foi impulsionado pela massiva participação
dos movimentos sociais, com destaque ao movimento feminista e às influências de
intelectuais diversos3. Direitos reprodutivos, sexuais e econômicos são demandas
que aos poucos ingressaram na pauta de reivindicações, buscando superar as
desigualdades adquiridas sociohistoricamente.

2. Conceitos

2.1 Gênero:

A categoria “gênero” diz respeito a um conjunto de normas, costumes,


atributos e hábitos sociais, construídos pela cultura, para designar os papéis que
devem desempenhar homens e mulheres em cada sociedade, condicionando os
seus comportamentos (SANTOS e BUARQUE, 2006).
É uma construção social, que informa como a mulher e o homem devem se
comportar, moldando, assim, as relações entre as pessoas.
Nascemos machos e fêmeas, porém é a influência cultural que nos
transforma em homens e mulheres, com papéis e comportamentos definidos.
Portanto, é importante destacar que gênero não é sinônimo de mulher, mas aquilo
que diferencia homens e mulheres nas suas relações sociais.
Na nossa sociedade, a matriz de gênero resulta de um processo histórico e
cultural que considera que a humanidade está dividida entre seres superiores e
inferiores, o que acarretou no estabelecimento de uma hierarquia entre homens e
mulheres.
Historicamente foi atribuído ao homem um lugar de autoridade e de posse
sobre as mulheres, que se manifesta através de desigualdades não justificadas
pelas simples diferenças biológicas entre os sexos, o que muitas vezes culmina na
prática da violência (ibidem, 2006).

3 Entre os intelectuais que influenciaram o pensamento feminista, destacamos: John Stuart Mill;

Simone de Beauvoir; Mary Wollstonecraft, Virgínia Woolf. No Brasil, são importantes referências,
Nísia Floresta, Berta Lutz, Heleieth I. B. Saffioti.

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Portanto, nas relações de dominação com enfoque de gênero, estão
imbricadas relações de poder entre masculino/feminino, que se traduzem em
tratamento desigual, destarte, subalterno:

As relações de gênero são marcadas por hierarquias, obediências,


disciplinas e desigualdades. Estão presentes os conflitos, tensões,
negociação, alianças, seja através da manutenção dos poderes
masculinos, seja na luta das mulheres pela ampliação e pelas mudanças
de poder (CORDEIRO, 1995 apud QUEIROZ, 2004, p.90).

2.2 Violência

O Relatório Mundial sobre Violência e Saúde (OMS, 2002), define a violência


como:
Uso intencional da força física ou do poder real ou ameaça, contra si
próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que
resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano
psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.

Minayo (1994) aborda a violência como um problema que afeta a saúde


pública, que se estabelece enquanto um fenômeno humano, histórico, havendo
formas diversas de manifestação, que podem persistir ao longo do tempo. Outra
característica importante destacada pela autora é que a violência atinge todas as
classes e segmentos sociais. Portanto, é engano pensar que a violência só ocorra
nos contextos de maior pobreza. Muitas vezes, é nas classes sociais de maior poder
e detenção de riquezas que a violência é mais silenciada.
Ressaltamos ainda, que a violência atinge mais intensamente segmentos
reconhecidos historicamente como “minorias” destituídas de direitos, sejam por
questões étnicas, culturais, religiosas, de orientação sexual ou mesmo pela condição
de idade e de gênero.
Apesar de ser um fenômeno com vertente cultural, de raiz coletiva e social, é
algo que além de afetar as coletividades é vivenciada pelo indivíduo, trazendo
marcas e repercussões psicológicas.

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2.3 Violência Doméstica e Familiar

Ao tomar como referência a unidade doméstica para a ocorrência da


violência, se pressupõe a existência de convivência entre um grupo de pessoas em
uma mesma unidade domiciliar. A própria Lei 11.360/2006 aplica o conceito de
unidade doméstica enquanto “espaço de convívio permanente de pessoas, com ou
sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas”. (DIAS, 2012, p. 46).
Resta claro, portanto, que o espaço doméstico se caracteriza como lugar de
relações, reciprocidade, trocas e também de conflitos. Para classificar a violência
ocorrida neste âmbito, não se faz necessário que a prática ocorra entre pessoas que
guardem vínculos de parentesco ou de afeto.
No que tange a violência familiar, para efeitos da Lei em pauta, considera-se
família (Art. 5º, II) enquanto comunidade formada por indivíduos que são ou se
consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade
expressa.
Desse modo, já observamos no próprio instrumento legal a evolução do
conceito de família, aplicado em sentido mais amplo do que aquele que considera
apenas os laços de parentesco ou mesmo sua composição tradicional (homem,
mulher, filhos e casamento). Assim, cabe ressaltar que na constituição da família, a
condição de legalidade pouco importa, sendo destacadas, portanto, as relações de
afeto e o interesse de seus membros em se manterem juntos, por vontade própria.
Diante destas inovações, demarcamos como contextos para a ocorrência da
violência o ambiente doméstico, familiar ou qualquer relação íntima de afeto. Assim,
cabe considerar inclusive as hipóteses previstas por DIAS (2012, p. 49) “mesmo que
não vivam sob o mesmo teto, havendo violência, merece a mulher receber o abrigo
da Lei Maria da Penha”, reconhecendo como nexo a relação íntima e de afeto como
a causa que gerou a violência.

2.4 Violência de Gênero contra a mulher

A violência contra a mulher baseada no gênero é produto de um sistema


social de dominação que subordina o sexo feminino. Assim, é aquela violência
praticada por homens e por mulheres, contra mulheres, por sua condição de gênero.

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Cavalcanti (2014) destaca que a violência de gênero não tem como matriz as
características pessoais do agressor, mas a própria estrutura social que ensina que
a mulher pode ser discriminada pelo simples fato de ser mulher.
Saffioti (1999) comenta que a violência de gênero, inclusive em suas
modalidades familiar e doméstica, não ocorre aleatoriamente, mas deriva de uma
organização social que privilegia o masculino.
Para a autora, a violência de gênero passa por um “projeto de dominação-
exploração de uma categoria sobre a outra” (masculino/feminino). Todavia, a
dominação pode ser exercida por pessoa de outro sexo que não seja o masculino.
Nas palavras da própria autora, (1999, p.83):

(...) a violência de gênero poderá ser perpetrada por um homem contra


outro, por uma mulher contra outra e também de uma mulher contra um
homem. O vetor mais usual e amplamente difundido no contexto da
violência de gênero, entretanto, aponta no sentido homem contra mulher.

Isso se dá porque a violência de gênero possui um fundamento cultural, e


pode ser utilizada como recurso para exigir da vítima sua adequação aos papéis
sociais estabelecidos para cada sexo, ou seja, guarda relação com expectativas no
exercício desses papéis sociais.
No exercício da dominação - expressa nas relações de poder - ocorrem
embates para a garantia de sua manutenção. Deste modo, na busca pela
permanência no lugar privilegiado, no campo das relações de gênero, surge a
violência enquanto processo do uso da força e da coerção, desautorizando a
conquista da liberdade e da autonomia do outro.
Em termos mais precisos, a “violência de gênero se insere quando há
relações assimétricas, nas quais a um dos pares está imputado maior poder e
autoridade, atribuições que o patriarcado relaciona à identidade masculina (RÊGO
etti alli, 2012, p.4)”. Destaquem-se, ainda, algumas características peculiares deste
tipo de violência, a exemplo da submissão feminina e da vivência/reprodução do
ciclo da violência, entre outros aspectos de ordem social e cultural que causam dano
à condição específica da identidade feminina.
Em destaque, a violência de gênero contra a mulher ocorre:
(...) quando praticada contra a mulher (e) visa intimidá-la, puni-la, humilhá-
la ou mantê-la nos papéis estereotipados ligados ao seu sexo, ou que lhe
recuse a dignidade humana, a autonomia sexual, a integridade física,
mental ou moral, ou vise abalar a sua segurança pessoal, o seu amor

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próprio ou a sua personalidade, ou ainda, vise diminuir as suas
capacidades físicas ou intelectuais (GOMES e SANCHES apud RÊGO etti
alli, 2012).

3. Considerações Finais:

Diante da discussão apresentada anteriormente, podemos concluir que a


identificação da violência baseada nas questões de gênero é algo complexo, o que
demanda maiores investigações e estudos aprofundados. Muito embora possamos
fazer uso de conceitos importantes para o entendimento das situações, é necessário
refletir sobre os casos em particular, analisando, à luz das referências teóricas, o
padrão de relacionamento sociofamiliar estabelecido entre os sujeitos envolvidos e a
história em comum por eles vivenciada.
Muitas vezes, é possível encontrar situações multicausais, nas quais estão
imbricadas diversas variáveis: uso de álcool/drogas, disputas patrimoniais, história
prévia de violência, fragilidade da idade, entre outras. Essas diversas questões são
vislumbradas pelo Serviço Social no cotidiano da 2ª Vara de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher que em suas rotinas profissionais costuma realizar
pareceres e laudos sociais para subsidiar tecnicamente a decisão dos magistrados.
No que se refere aos atores envolvidos nas situações de violência de gênero,
observamos a predominância nas relações entre homens e mulheres, embora não
possamos deixar de considerar que possa ocorrer em outras formas de relação. A
título de exemplo, quando uma mãe exige que a filha realize certas tarefas no
ambiente doméstico, das quais o filho homem é dispensado, ou até condene
comportamentos na filha que ao filho do sexo masculino é permitido, está sendo
influenciada pela cultura de gênero que define que os afazeres domésticos são de
responsabilidade exclusiva das mulheres e que algumas liberdades são permitidas
apenas aos homens.
Nesse caso, a mãe (que é mulher) poderia hipoteticamente fazer uso da
violência física ou psicológica, baseada na questão de gênero, para fazer com que
sua filha se comporte do modo socialmente esperado. No exemplo, portanto,
teríamos uma agressora mulher, praticando violência de gênero contra outra mulher.
Tal configuração familiar também pode culminar nos conflitos entre irmãos, que
reproduzem a cultura de discriminação apreendida.

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Podemos situar ainda, no conflito entre irmãos, situações em que o homem
avalia ter maior direito sobre o patrimônio familiar em relação às filhas mulheres.
Não sem motivos, a opinião de filhos do sexo masculino tende a ganhar maior peso
nos processos decisórios da família, principalmente nas questões que envolvam a
divisão dos bens ou outras decisões importantes. Nota-se, ainda, que irmãos de
ambos os sexos que convivem no mesmo imóvel apresentam, de modo mais
comum, discussões sobre quem deve assumir as tarefas domésticas e determinar a
rotina do lar, culminando em conflitos visíveis e até agressões.
A família, portanto, para além das relações afetivas e espontâneas, é uma
instituição que reflete tensões e relações de poder, assim como qualquer outra.
Deste modo, importa pensar o lugar ocupado pelas mulheres e sua função ao longo
do tempo, sua resistência e os movimentos em torno da conservação do seu papel
tradicional de cuidadora e de mãe. Assim, o que vier a fugir desta condição, passaria
a ser interpretado como “desvio” ou mesmo “negligência”, como se a condição de
mulher estivesse naturalmente associada a estas funções (Goldani, 2002, apud
Morgado, 2004).
Outra questão a ser destacada diz respeito à condição de gênero e a
sobreposição da velhice. Diversas violências que ocorrem neste contexto são
acentuadas pelo maior grau de fragilidade incorporado pela mulher idosa, que neste
ciclo da vida apresenta restrições de saúde, mobilidade e de autonomia. Além disto,
a velhice carrega consigo muitos estigmas e preconceitos reproduzidos nas relações
sociais e familiares.
De modo mais geral, as mulheres vitimadas podem também traduzir atitudes
de violência com seus pares e filhos, precisando, muitas vezes, de apoio e
acompanhamento da situação sociopsicológica em que se encontram.
Portanto, é fundamental destacar o caráter interdisciplinar da intervenção nas
questões de violência contra a mulher, a qual não se encerra com as determinações
no âmbito da ação judicial. As repercussões e os impactos de tal vivência se
estendem ao longo da convivência familiar e social destas mulheres e podem trazer
danos inclusive aos familiares, como é o caso dos filhos. Daí a importância do
desenvolvimento de um trabalho integrado e em rede, que congregue o
entendimento e a aplicabilidade destes conceitos no cotidiano.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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MORGADO, Rosana. Família(s): permanências e mudanças. Os lugares sociais


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