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Gênero e raça: a representação da violência contra mulher negra em “Duzu-Querença”,

de Conceição Evaristo
 

Resumo:  O presente trabalho propõe refletir a respeito da violência contra a mulher negra no
Brasil a partir da análise do conto “Duzu-Querença”. A pesquisa se deu de forma descritiva,
com abordagem bibliográfica a partir de algumas autoras que discorrem a respeito da
temática. O que se realizou no presente trabalho foi a interpretação do conto para estabelecer
as realidades do Brasil, com suas particularidades de organização cultural, no que se refere à
divisão de gênero e raça. Percebeu-se que a obra literária possui o poder de ampliar a
consciência de mundo e auxiliar na luta pela equidade de gênero e raça ao colocar em pauta
temáticas que são ignoradas em outras instâncias de atividade humana.

Palavras-chave: Violência de gênero; Racismo; Literatura negra.


 
Introdução 

Na história do mundo, a violência sempre esteve presente e se manifestou, por


exemplo, através da escravização dos povos africanos e indígenas. O que fica claro, então, é
que a violência sempre foi baseada em relações de poder. Nesse sentido, um grupo se sentia
superior a outro e via nisso a possibilidade de usar de violência contra o grupo inferiorizado.
Um dos grupos considerados inferiores que mais sofrem as diversas formas de violência são
as mulheres. Dentro desse segmento, deve-se destacar a população feminina negra que sofre
pela dupla condição de mulher e de raça.
Observa-se no país uma gama de políticas públicas e leis que propõem coibir e
combater a violência contra a mulher, mas, infelizmente, ela persiste e é um dos principais
entraves para a garantia dos direitos humanos. Nesse sentido, a presente pesquisa justifica-se
pela relevância do tema da violência no contexto atual brasileiro, contribuindo para
conscientizar a respeito do fenômeno da violência, suas implicações e a importância de seu
enfrentamento.
Quanto ao seu desenvolvimento, o presente trabalho estrutura-se em quatro tópicos
que abrangem alguns pontos relevantes. O primeiro faz uma breve explanação a respeito das
relações de gênero e o fenômeno da violência contra a mulher. No segundo, é feito um
apanhado histórico da população negra, culminando com as consequências do racismo para as
mulheres. O terceiro tópico traz a base teórica do papel social da literatura, ressaltando as
características da voz negra nos textos literários. Por fim, o último tópico realiza a análise do
conto “Duzu-Querença”, de Conceição Evaristo.

Objetivos

Geral

Compreender como a representação da mulher negra no conto “Duzu-Querença” revela


o  racismo e a violência de gênero estruturados na sociedade brasileira.

Específicos

 Refletir sobre a construção das desigualdades de gênero e raça na sociedade brasileira;

 Evidenciar o papel da literatura como instrumento de denúncia social;

 Analisar o conto “Duzu-Querença”.

Metodologia

  A respeito da metodologia, o presente trabalho optou pela pesquisa qualitativa, que


permite um olhar mais abrangente sobre o objeto de estudo, de cunho bibliográfico a partir da
leitura de livros e artigos relevantes à temática.
O presente trabalho, então, consistiu no estudo das proposições teóricas de Davis
(2016) e Ribeiro (2018), a respeito do racismo e da violência que acometem as mulheres
negras, assim como das concepções de Saffioti (1987) e Buarque (2011) sobre as relações de
gênero e a violência contra a mulher. Lopes (2007) e Skidmore (2012) trouxeram
contribuições sobre o conceito de racismo que dialogaram diretamente com as ideias
apresentadas por Bernd (1987) a respeito da literatura negra. Foi feita também a análise do
conto “Duzu-Querença” que compõe o corpus do trabalho.
O conto foi escolhido por trazer de maneira bem enfática a questão da violência contra
a mulher negra que se inicia na infância, prossegue para a fase adulta e culmina com a
decadência e fim trágico da protagonista. A análise da obra teve como princípio o destaque de
elementos que indicam a violência contra a mulher com base na desigualdade entre os sexos,
assim como o contexto do abandono e decadência social e econômica que a personagem
principal vive.

 As relações desiguais de gênero e a violência contra a mulher

Nas sociedades, em geral, às mulheres cabem papéis sociais diferentes dos


direcionados aos homens, que são designados mesmo antes do nascimento de acordo com o
sexo biológico. Essa construção social do que é masculino e feminino é chamada de gênero e
permite que os homens tenham mais direitos, espaço e liberdade de atuação, mas o mesmo
não ocorre com as mulheres (CAMURÇA; GOUVEIA, 2004). Pelo gênero ser socialmente
construído, as relações entre os homens e mulheres variam conforme a época e a cultural
local. Além disso, as leis, políticas e religiões também podem interferir na maneira como são
organizadas as relações de gênero nas sociedades (CAMURÇA; GOUVEIA, 2004).
Tratando-se da cultura brasileira, as mulheres são estimuladas desde crianças a serem
submissas, frágeis, recatadas e dependentes. Os homens, por outro lado, são incentivados a
serem fortes, destemidos e independentes. Isso é consequência de uma ideia criada, desde o
início da colonização no Brasil, de que a mulher é inferior ao homem. Segundo Saffioti
(1987), essa ideia não se sustenta em argumentos biológicos ou científicos, mas se trata de
uma criação social que influencia diretamente na igualdade de oportunidades, assim como na
partilha de responsabilidades (SAFFIOTI, 1987). Por exemplo, à mulher atribui-se os
cuidados domésticos e familiares e mesmo que ela venha a trabalhar fora do lar suas
responsabilidades dentro de casa não são diminuídas. Por outro lado, ao homem é destinado
apenas o trabalho que traz o sustento para a família e que tem valor social mais elevado do
que o da mulher (SAFFIOTI, 1987). A sociedade torna esse processo natural para ambos os
sexos, criando, assim, uma relação de poder entre o homem e a mulher, na qual cabe a
submissão do feminino ao masculino.
Uma das consequências das relações desiguais entre os gêneros é a violência contra a
mulher que se manifesta de diversas formas e em distintos grupos sociais. Silva (2015, p. 23),
comenta que a violência contra a mulher:

[...] se revela através do machismo de várias formas como a divisão sexual


do trabalho, a baixa participação das mulheres na esfera política, na dupla
jornada de trabalho e uma das manifestações mais trágica é a violência
doméstica e sexista praticada na maioria das vezes por alguém da relação
afetiva da mulher, ou seja, marido, companheiro entre outros. Esse
comportamento dos homens sobre as mulheres demonstra a afirmação de
posse sexual sobre a mulher e a imposição destes sobre suas vidas e o seu
corpo.

A violência de gênero é uma das principais violações dos direitos humanos das
mulheres e considerada problema de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde desde
1996. As estatísticas a respeito da violência contra a mulher são estarrecedores,
principalmente no Brasil. O Mapa da Violência de 2015, registrou uma taxa de 4,8
assassinatos em 100 mil mulheres (RIBEIRO, 2018). Essas violências podem acontecer em
todos os espaços, mas é alarmante a sua incidência o âmbito doméstico. Para enfrentar essa
chaga que prejudica a convivência na sociedade, as mulheres organizadas em movimentos
sociais e as feministas, lutam por cidadania, pelo reconhecimento dos seus Direitos Humanos
e lutam também contra as violências que lhes afligem. Um dos principais resultados dessa luta
é a Lei n°. 11.340 de 2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, que tipifica a
violência doméstica e familiar da seguinte forma: física, sexual, patrimonial, psicológica e
moral (BUARQUE, 2011).
A violência física se caracteriza por ação ou falta de ação que agrida a saúde e a
integridade física da mulher. A violência sexual é a tentativa de relação sexual ou abuso por
meio da força física ou ameaça. A patrimonial é a apropriação indevida, retenção, subtração e
destruição de bens pessoais e patrimoniais assim como a privação do direito de ir e vir da
mulher. A violência psicológica é aquela que acarreta dano emocional, prejudica a autoestima,
impedindo que a mulher consiga reagir ou tomar decisões; e a violência moral é aquela que
fere a honra, consistindo em injúria, calúnia e difamação (BUARQUE, 2011).
A violência contra as mulheres não se manifesta de forma igual para todas. Dentre as
mulheres atingidas, existem alguns grupos sociais que estão mais propícios a sofrerem algum
tipo de violência por conta de sua condição. No presente trabalho se destacará a violência
contra a mulher com recorte racial, porém, antes de tratar desse tema, é necessário discutir a
respeito do racismo que agrava mais ainda a violação dos direitos humanos das mulheres
negras.
A opressão do racismo

  Por se tratar de um país com um passado escravocrata, é comum que exista, na


sociedade brasileira, diversidades raciais que dão origem ao racismo e à discriminação. O
racismo pressupõe a ideia de que um indivíduo, por pertencer a um grupo diferente, é
considerado inferior. Ele se manifesta através do preconceito, que seria um julgamento
antecipado baseado em características físicas, estereótipos ou por pertencer a algum grupo
social considerado inferior; e da discriminação, forma de tratamento humilhante e desigual. O
racismo é uma construção individual, como aponta Lopes (2007, p. 13): “o indivíduo racista
parte de uma idealização de si mesmo para desvalorizar a pessoa ou o grupo que ele considera
inferior”.
O termo racismo é originário da palavra raça que vem do italiano razza, vocábulo das
ciências naturais que se referia à classificação de espécies animais. Anos depois, o termo
também abarcaria “grupos de pessoas com as mesmas caraterísticas físicas, mesmas origens
geográficas e mesmos hábitos culturais” (LOPES, 2007, p. 20). Essa ideia do racismo baseado
em características biológicas surgiu com o desdobramento das teorias racistas no século XIX,
principalmente as formuladas pelo Conde Gobineau que, em seus estudos, defendia a
superioridade da raça branca (LOPES, 2007).
Os estudos do Conde deram origem ao “racismo científico” que, além de estabelecer a
superioridade de raças, inevitavelmente, justificava a superioridade de culturas, ligando o
desenvolvimento e o progresso à Europa e o primitivismo e inferioriade aos povos não
europeus (LOPES, 2007). Esses argumentos foram amplamente utilizados para justificar a
colonização e escravização de africanos. No Brasil, o racismo científico deu suporte à
escravização de africanos pelos portugueses para a colonização do país. Por serem
considerados pessoas inferiores, mesmo após a abolição, os negros não tiveram seus direitos à
cidadania reconhecidos por muitos anos (SKDIMORE, 2012).
Assim como todas as mulheres na época da colonização, a mulher negra também era
vista como inferior ao homem, mas havia um agravante dela em relação às demais: seu
status de escrava. Tal posição social trazia consigo uma carga vil e degradante. Além da
obrigação jurídica da prestação de trabalho na condição de escrava, tinham seus corpos como
propriedade dos seus senhores. Essa situação levava a casos de abusos dos mais diversos:
estupros, castigos e mutilações (DAVIS, 2016). O que é mais notável nessa questão é que até
as senhoras brancas “usavam” os corpos das mulheres escravizadas: quando tinham filhos,
muitas sinhás possuíam as amas de leite, que tinham como função amamentar os filhos das
senhoras, muitas vezes, em detrimento da amamentação dos seus próprios filhos (DEL
PRIORE, 2004).
Dado o seu extensivo período de existência no Brasil, a escravidão teve várias facetas
e, obviamente, os senhores sabiam como lucrar ao máximo com tal sistema. Assim, muitas
mulheres negras escravizadas trabalhavam, também, como “escravas de ganho”, vendendo
comidas, lavando, costurando para fora. A renda que ganhavam desses serviços era destinada
ao sustento dos senhores de escravos, porém algumas ficavam com alguma parte do dinheiro e
juntavam até comprar a própria alforria; mas não existiam leis ou regras gerais para fiscalizar
esses acordos, tudo era combinado verbalmente (SKDIMORE, 2012). Diferentemente da
mulher branca, a mulher negra, para sobrevivência sua e de sua família, precisou utilizar-se do
próprio sistema. Uma vez hipersexualizada e socialmente aceita como promíscua (fruto do
racismo institucionalizado pela escravidão), elas entravam na prostituição. .
Diante do exposto, é indispensável a necessidade de uma literatura negra para servir à
superação do racismo e da denúncia e violações, já que é inegável a presença deste nas
relações sociais atualmente e também dado o fato de que as teorias racistas deram sustentação
a mais de três séculos de escravidão no Brasil.

A humanização através da literatura: a emergência da voz negra

Ler é um ato que permite a expansão do pensamento e estimula a imaginação. É


através do texto literário que o indivíduo entra em contato com o outro, podendo vivenciar
experiências únicas e construir a sua identidade a partir do outro, mas sem deixar a sua
própria (COSSON, 2006). Além disso, a literatura trata de temas universais que podem
possibilitar a aproximação do leitor com o que se está lendo por mais distante que seja sua
realidade da que está sendo descrita no texto, ressaltando seu papel humanizador (CANDIDO,
1995).
Por conta de seu apelo humano, a literatura é sensível a temas diversos que permeiam
as mais diferentes culturas, recriando as experiências humanas com imaginação e, muitas
vezes, metáforas, o que lhe confere uma beleza única e transmite ao leitor sensibilidade e
prazer estético, motivando-o para a leitura e ampliando o olhar crítico (COSSON, 2006).
A importância da literatura se dá, também, pela possibilidade de ampliar a consciência
de mundo, pois, como afirma Candido, “a obra literária torna-se um fator que nos deixa mais
capazes de ordenar a nossa própria mente e sentimentos; e, em consequência, mais capazes de
organizar a visão que temos do mundo” (CANDIDO, 1995, p. 179). E é essa função
humanizadora da literatura que a torna um bem incompressível para a humanidade, assim
como é a comida, o abrigo, a água. Essa humanização permeia o universo do ser humano e
permite que ele esteja aberto à possibilidade de perceber o outro, de compreendê-lo
(CANDIDO, 1995).  Por guardar em si o passado, o presente e o futuro, a arte literária é plena
de saberes sobre a vida e o ser humano, servindo como instrumento que denuncia e combate
injustiças. 
  Por volta do ano de 1850, não existia uma literatura propriamente brasileira, foi apenas
com o Romantismo que a arte literária passou a exaltar as características nacionais do país e
seus habitantes, incluindo nisso a hospitalidade, a benevolência e o alto padrão da população
brasileira (FACIOLI, 2001).  Entretanto, Facioli (2001) deixa claro que essa imagem não
correspondia à realidade nacional da época. A economia da Nação era à custa do trabalho
escravo e a taxa de alfabetização era apenas de 15 a 20%, entre outros fatores. A literatura da
época, então, restringia-se à Corte, localizada no Rio de Janeiro.
Na primeira geração do Romantismo, predominou o nacionalismo e o patriotismo e
havia a preocupação de definir a literatura como genuinamente brasileira. O índio é abordado,
nessa geração, como “elemento formador do povo brasileiro”, apesar de ser idealizado ao
extremo por alguns autores românticos (FACIOLI, 2001). O negro, mesmo sendo também um
elemento formador do povo brasileiro, foi ignorado nas primeiras obras que tinham como
objetivo utilizar um ponto de vista nacional, ressaltando as diferenças entre a Europa e o
Brasil. Com o fortalecimento do movimento abolicionista e republicano, a terceira geração do
Romantismo teve um cunho mais social, destacando-se Castro Alves com sua poesia mais
liberal com denúncia da escravidão (FACIOLI, 2001). Entretanto, essa literatura ainda não
dava conta da condição da pessoa negra. Surgiu assim, a necessidade de uma voz negra no
meio literário.
O conceito de literatura negra vai além do fato do texto tratar sobre personagens
negros. Segundo Bernd (1988), a chamada literatura negra surge a partir da enunciação de um
eu que se admite negro, que usa sua voz para desconstruir estereótipos e assume certos
posicionamentos perante o mundo. Nesse sentido, entende-se que há, então, uma literatura
sobre o negro e uma do negro. Essa última se preocupa em resgatar a história e a cultura
africana e afro-brasileira por muitos anos negada na história nacional, além de denunciar as
injustiças cometidas contra a população negra. Ianni (1998, p. 91) diz que “a literatura negra é
um imaginário que se forma, articula e transforma no curso do tempo” e que o negro é o tema
principal dessa literatura.  
Podemos sintetizar literatura negra nas palavras da autora Bernd (1988, p. 22):
[...] a presença de uma articulação entre textos, determinada por um certo
modo negro de ver e de sentir o mundo, e a utilização de uma linguagem
marcada, tanto no nível do vocabulário quanto no dos símbolos, pelo
empenho em resgatar uma memória negra esquecida, legitima uma escritura
negra vocacionada a proceder a desconstrução do mundo nomeado pelo
branco e a erigir sua própria cosmogonia.

  Nesse sentido, a literatura negra é aquela que traz o eu enunciador negro disposto a
construir e desconstruir o mundo a sua volta, tendo como principal fonte sua própria vida,
resumida em suas dores e suas alegrias. Essa literatura tem um forte valor histórico pelo fato
de transmitir, através de uma “linguagem marcada”, os reflexos de um passado escravocrata,
evidenciando a desigualdade social e racial presente.

 Duzu-Querença

O conto a ser analisado fazer parte do livro “Olhos d’água”, de Conceição Evaristo,
publicado em 2014. No prefácio da obra pode-se observar de qual a temática a autora trata:

Em “Olhos d’água” Conceição Evaristo ajusta o foco de seu interesse na


população afro-brasileira abordando, sem meias palavras, a pobreza e a
violência urbana que a acometem. Sem sentimentalismos, mas sempre
incorporando a tessitura poética à ficção, seus contos apresentam uma
significativa galeria de mulheres: Ana Davenga, a mendiga Duzu-Querença,
Natalina, Luamanda, Cida, a menina Zaíta. Ou serão todas a mesma mulher,
captada e recriada no caleidoscópio da literatura em variados instantâneos da
vida? 

  Conceição Evaristo, natural de Belo Horizonte, mestre em Literatura Brasileira e


Doutora em Literatura Comparada, é escritora, poetisa, romancista e ensaísta ganhadora de
diversos prêmios. De família humilde, teve que conciliar os estudos com o trabalho de
empregada doméstica e hoje é Professora universitária. Militante do Movimento Negro,
costuma abordar em suas obras o racismo, a violência de gênero e a discriminação de classe.
O conto retrata a história de uma mendiga enlouquecida chamada Duzu, que é
entregue pelos pais, ainda criança, a uma mulher, D. Esmeraldina, que promete estudo e
trabalho para a menina. O conto é narrado em terceira pessoa aproximando, assim, o leitor da
personagem já que a narração onisciente permite que sejam conhecidos os sentimentos mais
íntimos da protagonista, além de que a descrição dos acontecimentos seja feita com
sensibilidade (BRAIT, 1985).
No início da história, Duzu é descrita de forma negativa pelo narrador:

Duzu lambeu os dedos gordurosos de comida, aproveitando os últimos bagos


de arroz que tinham ficados presos debaixo de suas unhas sujas. Um homem
passou e olhou para a mendiga, com uma expressão de asco. Ela lhe
devolveu um olhar de zombaria. O homem apressou o passo, temendo que
ela se levantasse e viesse lhe atrapalhar o caminho.
Duzu olhou no fundo da lata, encontrando apenas o espaço vazio. Insistiu
ainda. Diversas vezes levou a mão lá dentro e retornou com um imaginário
alimento que jogava prazerosamente à boca. Quando se fartou deste sonho,
arrotou satisfeita, abandonando a lata na escadaria da igreja e caminhou até
mais adiante, se afastando dos outros mendigos (EVARISTO, 2016, p. 31).

  A descrição da personagem de forma negativa pode, de certa forma, levar o leitor a se


chocar diante de tal comportamento animalesco da protagonista. Além de ser mendiga e suja,
Duzu também é louca e é ai que os juízos de valores sobre ela já podem ser formados diante
do que se tem narrado. A personagem é construída de forma pessimista logo no início, talvez
com o intuito de preparar o leitor para a sua história sofrida.
A história de Duzu se inicia como muitas vidas de meninas negras. Os pais dela
queriam um bom futuro para a filha, como pode ser visto no trecho “Ela podia trabalhar e
estudar. Duzu era caprichosa e tinha cabeça para leitura. Um dia sua filha seria pessoa de
muito saber.” (EVARISTO, 2016, p. 31). Vale destacar que a narração apenas mostra a
opinião do pai a respeito da filha e que a decisão de deixar a menina na casa de D.
Esmeraldina parte dele. A mãe de Duzu é silenciada na trama e a única menção que se faz a
ela é durante a viagem de trem que a família faz para chegar a cidade, na qual a mulher, já
cansada da vida sofrida, quer interromper a viagem, mas a vontade do marido de continuar até
chegar a cidade prevalece. Esse fato sobre a mãe de Duzu pode apontar para uma relação de
submissão em relação ao marido, fazendo com que ela aceite, assim, a decisão dele sobre o
que é melhor para a filha.
Infelizmente, a trajetória da menina rumo à educação é interrompida pela realidade
cruel destinada a muitas mulheres negras: a opressão combinada do racismo e da violência de
gênero. Os pais da menina não sabiam, mas a casa de D. Esmeraldina era um prostíbulo e lá
Duzu começa a trabalhar cuidando da limpeza da casa. Os anos se passam, mas a promessa de
estudo não é cumprida pela dona da casa. Por conta de seu trabalho de limpeza, a menina
acaba presenciando os atos sexuais que ocorrem na casa:

Era uma casa grande com muitos quartos. Nos quartos moravam mulheres
que Duzu achava muito bonitas. Ela gostava de ficar olhando para os rostos
delas. Elas passavam muitas coisas no rosto e na boca. Ficavam mais bonitas
ainda. (...) A senhora tinha explicado a Duzu que batesse nas portas sempre.
Batesse forte e esperasse um “pode entrar”. Um dia Duzu esqueceu de bater
na porta e foi entrando. A moça do quarto estava dormindo. Em cima dela
dormia um homem (EVARISTO, 2016, p. 31-32).  

Na sua inocência, a menina não compreende o que de fato ocorre, mas a curiosidade
natural é despertada. Em um dos seus entrar sem bater nos quartos, acaba sendo vítima de um
pedófilo: “Ele em cima da mulher, como uma das mãos fazia carinho no rosto e nos seios da
menina” (EVARISTO, 2016, p. 32). Em outro trecho do conto, Duzu é estuprada pelo
pedófilo que a havia tocado antes: “Um dia o homem estava deitado nu e sozinho. Pegou a
menina e jogou na cama. Duzu não sabia ainda o ritmo do corpo mas, rápida e
instintivamente, aprendeu a dançar.” (EVARISTO, 2016, p. 32) A sexualização de Duzu
encerra a sua infância e lhe insere de maneira brusca na vida adulta sem que haja a chance
dela processar o que de fato aconteceu. Esse fato que ocorre com a menina exemplifica bem o
poder que a sociedade confere ao homem sobre a mulher:

O caso extremo do uso do poder nas relações homem-mulher pode ser


caracterizado pelo estupro. Contrariando a vontade da mulher, o homem
mantém com ela relações sexuais, provando, assim, sua capacidade de
submeter a outra parte, ou seja, aquela que, segundo a ideologia dominante,
não tem direito de desejar, não tem direito de escolha (SAFFIOTI, 1987, p.
18).

Vale destacar que, apesar da narração apontar para a possibilidade de ter havido
consentimento por parte da menina a respeito do ato sexual, como no trecho “[...] mas, rápida
e instintivamente, aprendeu a dançar”, essa alegação deve ser questionada, pois, de acordo
com Santos (2011), se tratando de abusos sexuais que envolvam uma criança ou adolescente,
a responsabilidade do ato sempre deverá recair sobre o autor da agressão, no caso do conto, o
homem adulto. Deve-se levar em consideração também que Duzu é apenas uma criança, um
ser humano em condição peculiar de desenvolvimento, logo, sua capacidade e autonomia para
consentir estão em processo de construção (SANTOS, 2011). Diante disso, a inocência da
menina é cruelmente devastada através do abuso sexual à medida que a autora descreve um
mundo onde a condição de ser mulher e ser negra parece ser o passaporte direto para a
prostituição:
Duzu naquele momento entendeu o porquê do homem lhe dar dinheiro.
Entendeu o porquê de tantas mulheres e de tantos quartos ali. Entendeu o
porquê de nunca mais ter conseguido ver a sua mãe e o seu pai, e de nunca
D. Esmeraldina ter cumprido a promessa de deixá-la estudar. E entendeu
também qual seria sua vida. É, ia ficar. Ia entrar-entrando sem saber quando
e onde parar (EVARISTO, 2016, p. 32).

A infância de Duzu foi marcada, além do abandono, pelo silenciamento — nunca


perguntaram sua opinião sobre as coisas que lhe diziam respeito — e pela dominação
masculina, — representada pela cena de abuso sexual — então, a partir disso, a violência de
gênero começa a fazer parte de sua vida diariamente.
O conto traz uma carga histórica tão pesada ao mostrar que em uma sociedade racista e
machista, como é o caso brasileiro, mulheres negras são tratadas como objetos sexuais
remetendo diretamente ao período colonial. Como evidencia Ribeiro (2018, p. 81) “Mulher
negra não é humana, é a quente, a lasciva, a que só serve para sexo e não se apresenta à
família”. Essa construção social sobre o corpo feminino e negro tenta justificar a violência
que se faz contra essas mulheres, tornando esse segmento social o mais violentado
sexualmente no país (RIBEIRO, 2018).
Na mesma linha de pensamento de Ribeiro, Davis (2016) comenta que a
institucionalização da violência sexual contra mulheres negras sobreviveu à abolição da
escravatura, sendo o racismo um dos alimentos principais do estupro. Davis (2016) evidencia,
então, que esses abusos são abertamente públicos nos dias atuais, como se pode ver em
discursos políticos, jornalismo, propagandas e até na própria literatura, retratando a mulher
negra como naturalmente imoral.
No caso do conto, D. Esmeraldina flagra o estupro e Duzu, mas não se choca ou tenta
proteger a menina. Para ela, a menina estava gostando do que fazia e exigiu para si uma parte
do dinheiro que ela passaria a ganhar trabalhando como prostituta. Duzu, sem escolhas e
abandonada à própria sorte, entra na prostituição e, a partir daí, vivencia outras formas de
violência de gênero: “Acostumou-se aos gritos das mulheres apanhando dos homens, ao
sangue das mulheres assassinadas (...) Habituou-se à morte como uma forma de vida”
(EVARISTO, 2016, p. 33).
No conto, além dos estupros, a história coloca em pauta o feminicídio, que é o
assassinato de mulheres apenas pela sua condição de serem mulheres. Na presente análise,
deve-se destacar, porém, que a condição de ser negra é agravante na história de Duzu.
Segundo Ribeiro (2018), uma mulher é agredida a cada cinco minutos e, citando o Mapa da
Violência de 2015, o número de assassinatos de mulheres negras aumentou em 55%, nos
últimos dez anos. A autora explica o porquê desse número expressivo: “por não serem nem
brancas nem homens, as mulheres negras ocupam uma posição muito difícil na sociedade
supremacista branca (KILOMBA apud RIBEIRO, 2018). Ser mulher negra é estar diante não
só do machismo dos homens, sejam eles brancos ou negros, mas também do racismo das
mulheres e dos homens brancos. Nesse sentido, Ribeiro (2018) enfatiza que não pode haver
um silêncio a respeito da realidade das mulheres negras, sendo necessário, então, enxergar as
especificidades para, assim, proceder à luta pela igualdade de gênero e raça.
Voltando ao conto, com o passar do tempo, os filhos de Duzu começaram a nascer, ao
todo nove, e sem condições de serem criados pela mãe, se espalharam pelo mundo, vivendo
nas periferias e alguns até nas zonas de prostituição tal qual Duzu viveu. Do pai dessas
crianças nada é mencionado, o que leva a conclusão de que os filhos nunca conheceram a
figura paterna. Mais uma vez o conto dialoga com a realidade de grande parte da população
negra feminina negra: mãe solteira e sozinha. Dos filhos nascem os netos de Duzu e é ai que
entra a segunda personagem que dá nome ao título do conto: Querença.
Junto com outros dois netos, Angélico e Tácito, Querença era uma das preferidas da
avó. Uma menina que lembrava a própria Duzu quando criança, cheia de esperança. Para
Duzu, Querença “(…) retomava sonhos e desejos de tantos outros que já tinham ido...’
(EVARISTO, 2016, p. 33), como se fosse um sol brilhando entre as nuvens de um dia
chuvoso. Angélico era uma criança assustada pela vida adulta, que não queria crescer, pois
para ele isso era sinônimo de sofrer. Tácito, por outro lado, era um jovem adolescente que já
tinha crescido mais do que seus treze anos permitia e havia se envolvido com o crime.
Após a morte de Tácito por emboscada, Duzu entra em depressão ao juntar mais essa
dor as suas dores; e para adormecer essas dores, a mulher passa a viver nas ruas e é ai que ela
consegue esconder sua dor entrando em um estado de fantasia, misturando lembranças da
infância com a realidade presente: “Duzu estava feliz. Havia se agarrado aos delírios,
entorpecendo a dor” (EVARISTO, 2016, p. 33). Duzu, mais uma vez abandonada à própria
sorte, entra em uma decadência humana, passando a sobreviver de esmolas e convivendo com
a rejeição das pessoas. Humilhada, ela vai metaforizando as suas andanças como se tivesse
ganhado asas para voar. E foi voando que Duzu se distanciou da realidade, do sofrimento
causado pela morte, fome, doença e deslizou “por um misterioso e eterno caminho...”
(EVARISTO, 2016, p. 34).
A morte da avó representou para Querença uma dor que a fez relembrar a história de
sua família, de seu povo, repleta de sofrimento e outras dores. Apesar disso, a menina lembra
da avó Duzu com saudades de seus ensinamentos. Isso fez com que Querença se fortalecesse
nessa dor: “E foi no delírio da avó, na forma alucinada de seus últimos dias, que ela,
Querença, haveria de sempre umedecer seus sonhos para que eles florescessem e se
cumprissem vivos e reais. Era preciso reinventar a vida, encontrar novos caminhos.”
(EVARISTO, 2016, p. 34). O difícil para a menina de apenas treze anos seria descobrir como
reinventar a vida, como levar adiante uma luta tão grande. Ela já estudava e fortalecia outras
pessoas a sua volta com o pouco que sabia, sempre multiplicando o conhecimento, e isso já
era algo importante.
Querença também realizou o que Duzu sempre desejou: estudar e ser uma pessoa de
saber. Além dos estudos, a menina participava de grupos de discussão a respeito de direitos e
deveres dos cidadãos. Seria carregando as dores que passavam pela história de sua família que
Querença levaria a luta adiante e seria protagonista da própria história. Sua avó Duzu nunca
seria esquecida e sempre viveria no desejo de Querença por uma vida melhor para si.

Considerações finais

Após as considerações sobre a mulher negra, a violência contra o gênero feminino, o


racismo e a literatura negra, é possível perceber que a obra analisada retrata uma história que
encontra semelhanças com a realidade brasileira e impacta pela temátia forte que a autora
constróis de maneira crua e nua. Nesse sentido, o presente trabalho possibilitou a ampliação
do papel do texto literário como um instrumento que possibilita uma análise crítica das
construções sociais que dão suporte ao racismo, a discriminação e as desigualdades entre os
gêneros.
O conto analisado demonstra bem o papel da denúncia social que a literatura tem ao
delinear os abusos iniciados na infância que progridem para a vida adulta da protagonista e o
silenciamento ao qual ela é submetida. Duzu não teve escolhas na vida, foi silenciada,
atacada, violentada e abandonada. A história dela é dolorosa, mas é necessário que ela seja
escrita, que ganhe visibilidade para revoltar, indignar e trazer para o debate a pauta das
mulheres negras.
Os objetivos iniciais dessa pesquisa foram atingidos, em sua maioria, visto que em seu
percurso sentiu-se a necessidade de certos desdobramentos que não puderam ser tratados,
dada a extensão e a complexidade do tema. Sendo assim, esse trabalho não buscou esgotar o
debate a respeito da literatura negra, tampouco da violência contra a mulher, mas, pelo menos
espera ter contribuído para ampliar o debate e também suscitar maiores reflexões sobre o
tema.
Como visto, durante muitos anos, a ciência procurou desvalorizar as características
físicas e culturais dos negros, o que culminou numa visão racista e estereotipada. Nesse
sentido, a obra aqui analisada pode contribuir, de forma significativa, para o repensar do
racismo e, no caso específico das mulheres, apresentar um novo olhar para a questão de
gênero.
A história de Duzu-Querença pode ser fictícia, mas os sofrimentos nela retratados,
dado a realidade brasileira, são suscetíveis de acontecer com qualquer mulher, principalmente,
com a parcela da população que, durante séculos, teve seus direitos como seres humanos
negados, convivendo com a violência diariamente. Diante disso, a obra traz a reflexão do
poder destrutivo do racismo e do sexismo que, desde a época colonial, ceifa vidas e atinge de
forma brutal as mulheres negras. A literatura negra, como visto, pode ser uma das formas de
colocar essa pauta em evidência, pois contribui para o debate a respeito do racismo,
incrustado na sociedade brasileira como uma mácula. Cabe, assim, à sociedade, como um
todo, engajar-se na luta pela equidade de gênero e raça, afinal um ambiente onde as mulheres
negras possam se sentir seguras e ter seus direitos garantidos, é um mundo seguro para todos
os seres humanos.

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