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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
DISCIPLINA: TEORIA SOCIOLÓGICA

Julyana Ketlen Silva Machado1

BOURDIEU, Pierre. Esboço de auto-análise. Tradução, introdução, cronologia e notas -


Sergio Miceli. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 140 p.

Pierre Bourdieu foi um dos mais célebres e influentes sociólogos franceses dos últimos
tempos. Nascido em Denguin, França e oriundo de família campesina, fez os estudos básicos
num internato em Pau. Em 1951 ingressou na Faculdade de Letras, em Paris, e na Escola
Normal Superior, obtendo a graduação em Filosofia 1954. Após prestar o serviço militar na
Argélia, entre os anos de 1958 e 1960 assumiu o cargo de professor assistente na Faculdade
de Letras em Argel. Ao retornar à França, tornou-se assistente do sociólogo e filósofo
Raymond Aron, na Faculdade de Letras de Paris, filiando-se ao Centro Europeu de
Sociologia, tornando-se secretário geral em 1962. Durante as décadas de 60 e 70, dedicou-se
às pesquisas como etnólogo que contribuiriam para o fortalecimento das suas relações com a
Sociologia. Em 23 de abril de 1982, proferiu sua aula inaugural no Collège de France - da
qual resultou a publicação de sua obra “Lições sobre a Aula” - propondo uma “sociologia da
sociologia”, ou seja, a reflexão crítica sobre o papel e formação do sociólogo enquanto
intelectual e detentor de um discurso “autorizado” de verdade sobre o mundo social. Morreu
em 23 de janeiro de 2002 na França, após finalizar um curso que irá fundamentar seu livro
“Esboço de auto-análise”.
Inspirado em autores clássicos do estudo sociológico para cooperar aos estudos de
processo de distinção, diferenciação e reprodução social, sua vasta produção intelectual
contribuiu significativamente para o pensamento sociológico mundial com abordagens em
diversas áreas possibilitando uma reflexão sobre a reprodução cultural que conecta a posição
econômica, o status social e o capital simbólico com o conhecimento e habilidade culturais.
Logo, a estrutura social segundo Bourdieu é construída em três conceitos, sendo eles o
campo, habitus e o capital.
A investigação sociológica do conhecimento empreendida por ele, analisa o mundo
social a partir de condicionamentos materiais e simbólicos que agem sobre os agentes sociais,
inseridos em uma lógica concorrencial constante em torno das definições, classificações e

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Discente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão.
manutenção de seus interesses. Como crítico dos mecanismos de reprodução das
desigualdades sociais, Bourdieu concebe a estrutura social como um sistema hierarquizado de
poder, determinado por relações materiais e simbólicas desiguais, tendo em vista as posições
ocupadas pelos indivíduos na esfera social e seu acesso aos recursos mobilizados no processo
de produção de diferenças, sejam eles o capital social, econômico, cultural e simbólico. Sendo
as estruturas construídas socialmente, as relações sociais são dialéticas, existindo estruturas
que agem de forma objetiva para legitimar e reproduzir ou transformar a sociedade.
Em “Esboço de auto-análise”, o autor toma como objeto de reflexão sua própria
trajetória intelectual, em uma tentativa de realizar a objetivação de si mesmo através de sua
história social, para compreender-se a partir dos próprios conceitos por ele mobilizados na
construção de seu esquema teórico. Já na epígrafe do livro, o autor salienta que não se trata de
uma biografia e que não tem a pretensão de se sacrificar ao gênero autobiográfico. Em obras
anteriores como “L’illusion biographique” (1986), Bourdieu teceu críticas ao caráter ilusório,
convencional e finalista das biografias, esforçando-se para em sua auto-análise, objetivar-se
sociologicamente de forma sistemática a partir da prática de uma sociologia da sociologia.
Assim, Bourdieu atesta que é necessário “primeiro compreender o campo com o qual e
contra o qual cada um se faz” (p. 40), ou seja, em seu caso, analisar a posição social ocupada
na estrutura do campo cultural e intelectual que ele ocupava enquanto sociólogo. Portanto, a
obra não segue a ordem cronológica e linear como as biografias convencionais costumam
construir as narrativas. Bourdieu inicia seu percurso a partir de seu ingresso na vida
intelectual no campo universitário francês, especificamente o da Filosofia parisiense na
década de 1950.
Nesse período, a Filosofia se apresentava como disciplina dominante, enquanto a
Sociologia ocupava posição subalterna de “disciplina pária” (p. 67). Sartre era um de seus
maiores expoentes, símbolo da expressão do intelectual total, com o qual Bourdieu
estabeleceu uma série de discordâncias. Como ele explicita, para compreender as escolhas de
um indivíduo, ou melhor, – distanciando-se da perspectiva existencialista da escolha racional
do pensamento de Sarte– para compreender suas tomadas de posição, é preciso saber que
posição objetiva o indivíduo ocupa no campo específico em que está inserido. Este aspecto
será determinante no tocante à convivência de Bourdieu com os pensadores ilustres da
filosofia francesa, cujas posições ele contesta, pois percebe seu desencaixe por não
compartilhar do mesmo habitus comum entre os agentes do campo intelectual filosófico
francês e é a partir de então que Bourdieu terá sua aproximação com e na Sociologia.
Além da corrente filosófica hegemônica representada por Sartre, haviam outras
correntes em que se destacaram nomes como Gaston Bachelard e Georges Canguilhem, dos
quais Bourdieu se aproximou como forma de resistência ao existencialismo de Sartre e à
figura do intelectual total, mas também pela identificação de uma condição marginal comum,
tendo em vista que estes autores também eram de origem popular e provinciana e não
pertenciam ao círculo intelectual dominante. Em um segundo momento da obra, Pierre
Bourdieu descreve suas pesquisas e estudos iniciais, dando especial atenção a uma realizada
na Argélia e outra no sudoeste francês, na região do Béarn. Bourdieu foi à Argélia na
condição de soldado para lutar durante a guerra de libertação nacional argelina. A segunda
pesquisa foi realizada em sua comunidade rural de origem. Assim, em um relato emotivo, o
autor descreve os desafios diante do complexo processo de desnaturalização pelo qual foi
obrigado a passar, a fim de conseguir objetivar aquela realidade tão familiar e exercitar o
distanciamento requerido pela pesquisa.
Estas experiências, como revela Bourdieu, demonstram o grande interesse político e
científico, que ele mantinha por essas sociedades, e que viriam a promover sua conversão da
Filosofia para a Etnologia e, posteriormente, para a Sociologia, bem como o conduziram da
fenomenologia da vida afetiva para uma prática científica que possibilitou uma visão do
mundo social mais realista e ampla.
Na abordagem seguinte do texto, Bourdieu finalmente apresenta os elementos mais
biográficos de sua história social, submetendo sua própria trajetória à análise científica, pois
demonstra como suas disposições de origem influenciaram a formação de seu habitus
primário. Afirmando não ter a intenção de se estender acerca das feições de sua família, o
autor fala de seus pais e narra o período em que esteve no internato, relatando que esta
experiência foi determinante na formação de suas disposições como um todo, principalmente
pelo fato de possibilitar que ele tivesse uma visão mais realista e combativa das relações
sociais.
Esta experiência dual reforçou o efeito de uma defasagem entre uma alta consagração
escolar e uma baixa posição no extrato social e contribuiu para estabelecer uma relação
ambivalente em relação à instituição escolar, “feita de rebelião e de submissão, de ruptura e
de esperança, que talvez esteja na raiz de uma relação consigo igualmente ambivalente e
contraditória” (p. 123). Com isso reitera que seu habitus clivado é produto de uma
“conciliação dos conflitos”, ou seja, dessas tensões e contradições que se manifestam no estilo
próprio que sua pesquisa assume, no tipo de objetos que o interessavam e na maneira
particular de abordá-los.
Esse sentimento de ambivalência com o mundo escolar, o acompanha durante todo o
seu percurso intelectual, e culmina em seu discurso proferido no Collège de France, em abril
de 1982. Aqui tento estabelecer uma tentativa de aproximação entre as obras de Pierre
Bourdieu “Esboço de auto-análise” e “Lições sobre a aula”. A aula inaugural se caracterizava
por ser um momento honroso e de maior consagração intelectual dos pensadores. No entanto,
Bourdieu se utilizou da análise da própria aula inaugural como forma de lançar questões sobre
a atuação do sociólogo enquanto pesquisador e sobre o papel da Sociologia como ciência.
Segundo ele, a Sociologia deve ser capaz de expôr os mecanismos que perpetuam uma falsa
normalidade do modo como se organizam as relações no mundo social. Somente uma ciência
da ciência pode fazer com que o sociólogo não tome as estruturas que analisa e das quais ele é
produto, como naturais, orientado pelo determinismo das estratégias de manutenção e
perpetuação de estruturas sociais que estabelecem posições sociais desiguais entre os agentes.
Apenas se o sociólogo estiver disposto a isso, poderá conquistar a independência intelectual
necessária à uma crítica cientificamente construída.
O autor tece uma crítica ao que denomina de visão soberana - momento em que o
sociólogo se afasta do caminho da ciência e tende a ser guiado pela prepotência da
configuração arbitrária – designando-se como legítimo detentor do poder de classificação das
representações do mundo social. Com isso, o sociólogo deve realizar uma sociologia
reflexiva, que se posiciona como uma ciência que pensa os saberes e os sujeitos sociais como
detentores de poderes simbólicos que criam e recriam sentidos no mundo. Bourdieu questiona
os ritos de instituição durante o próprio rito da aula inaugural, investido naquele momento do
papel de intelectual e da posição de “consagrado”, realiza mais uma vez o processo de auto
objetivação. Para ele, os ritos de instituição acabam por instituir uma identidade ligada aos
atributos, fazendo crer aos indivíduos consagrados que eles possuem um caráter de
excepcionalidade com relação aos outros, originando um certo fetichismo da delegação.
Assim, é preciso reconhecer a existência de determinações sociais que pesam sobre o próprio
pesquisador para que se possa compreender os mecanismos institucionais que legitimam sua
posição como aquele “autorizado a falar em nome”.
Nessa obra Bourdieu explicita para quem pode ser direcionado, ressaltando que talvez
tenha sido elaborada para desencorajar os biógrafos, pois na maior das biografias publicadas,
a objetividade não é acentuada, mas também – e acima de tudo – escreveu para seus leitores
mais jovens, esperando que eles pudessem experimentar o ponto de vista do autor,
reconhecendo “suas experiências, suas dificuldades, suas indagações, seus sofrimentos” (p.
35) nos dele, extraindo disso uma identificação realista que apresentasse “meios de fazer e de
viver um pouco melhor aquilo que vivem e fazem” (p. 135). Afinal, nenhum conhecimento se
produz de forma subjetiva.
Levando tudo isso em consideração, é possível concluir que a originalidade da obra de
Pierre Bourdieu se demonstra em diversos aspectos, entre os quais reside a mobilização de
seus conceitos e a formulação de seu sistema teórico aplicados à especificidade de sua
trajetória, o que permite entender suas tomadas de posição políticas convictas, comprometidas
e engajadas ligadas à uma preocupação genuína com as injustiças sociais. Os fundamentos de
sua visão do mundo estruturam um fazer sociológico singular que assume uma forma peculiar
de conduzir a pesquisa em Ciências Sociais, unindo elementos teóricos à pesquisa empírica.
A leitura dessa obra permite a oportunidade de olhar, a partir de suas narrações, para o
mundo em que Pierre Bourdieu estava inserido e a forma como ele percebe o acontecimento
da vida intelectual dentro da vida social, deixando muito claro que, naquele momento em sua
obra, não era de seu principal interesse enfatizar seus principais conceitos.

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