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45º ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E

PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS (ANPOCS)

GT 35- Retomadas e Re-existências Indígenas e Quilombolas

“Queremos zelar a vida que ainda existe, a vida que ainda não mataram”: (r)existir
ao/no Antropoceno

Autor(a): Julyana Ketlen Silva Machado


Mestranda em Ciências Sociais pelo Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais
(PPGCSoc) na Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
“Queremos zelar a vida que ainda existe, a vida que ainda não mataram”: (r)existir
ao/no Antropoceno1
Julyana Ketlen Silva Machado2

RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar, com reflexões teóricas e relatos etnográficos, a forma
que quilombolas e quebradeiras de coco, conscientes de suas margens e dos meios de
descrevê-las, reafirmam seus múltiplos modos de viver, (r)existir e agir, vivendo no
Antropoceno a partir de uma “cosmopolítica”. O presente trabalho é fruto de uma pesquisa
de um projeto pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC)
finalizada em 2014 durante minha graduação em Ciências Sociais na Universidade
Estadual do Maranhão (UEMA) e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa e
Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA). O projeto
objetivava identificar estratégias empresariais e do Estado, e seus efeitos sobre o modo de
vida de povos e comunidades tradicionais na região de Imperatriz, Maranhão. Neste artigo,
compreendo a urgência de trazer a reflexão dos agentes sociais sobre (e para além) da
chegada desses empreendimentos na região, para (re)conhecer a (r)existência de outras
cosmologias.
Palavras-chave: comunidades e povos tradicionais; agentes sociais; Antropoceno;
cosmopolítica.

CONTEXTUALIZANDO

Este artigo3 pretende elucidar os modos de viver e pensar de quilombolas e


quebradeiras de coco reconhecidos enquanto povos e comunidades tradicionais de acordo
com a Constituição Federal de 1988, a partir do contexto de ameaças constantes em que
vivem, tomando como ponto de partida a chegada de grandes projetos de monocultura de
eucalipto na região de Imperatriz, no Maranhão. Longe de reduzir a existência e
heterogeneidade dos grupos que foram agrupados na categoria “povos e comunidades
tradicionais”, peço permissão para utilizar esse conceito durante esta escrita.

1
Trabalho submetido no 45º Encontro Anual da ANPOCS no GT 35- Retomadas e Re-existências Indígenas
e Quilombolas, coordenado pelos professores doutores Cauê Fraga Machado (PPGAS/UFRGS) e Sandro
José da Silva (UFES).
2
Mestranda em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal do Maranhão. Apoio financeiro: Bolsa CAPES- Processo 88887.505535/2020-00.
3
Os dados utilizados neste texto são resultados do projeto de Iniciação Científica financiado pela Fundação
de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e tecnológico do Maranhão-FAPEMA e orientado
pela professora doutora Jurandir Novaes no período de 01.08.2013 à 30.07.2014. Também devo muito à
inserção no Grupo de Estudos Socioeconômicos da Amazônia- GESEA da Universidade Estadual do
Maranhão, ao qual também registro meu agradecimento.

2
Considerando o processo de escrever como um amplo movimento aberto de idas e
vindas que nos possibilita (re)criar a partir daquilo que foi registrado durante a pesquisa de
campo, retorno aos cadernos de campo e material acumulado durante os encontros e
reuniões que permitiram a interação com povos e comunidades tradicionais realizados pelo
Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA)4, enquanto integrava o Grupo de
Estudos Socioeconômicos da Amazônia (GESEA) nos anos de 2013 e 2014, para trazer
reflexões de agentes sociais que versam sobre experiências, formas de ver e manter a vida.
Em 2014 concluí uma pesquisa de Iniciação Científica na graduação em Ciências
Sociais na Universidade Estadual do Maranhão articulado ao PNCSA. Ele tinha como
plano de trabalho a identificação de estratégias empresariais e do Estado, e seus efeitos
sobre o modo de vida de povos e comunidades tradicionais na região de Imperatriz, tendo
como foco a análise dos processos de implantação dos projetos e da ação empresarial da
Suzano Papel e Celulose S.A. As observações e conclusões neste artigo são frutos do
contato direto com quilombolas e quebradeiras de coco, em que pude observar, discutir e
registrar seus modos de vida através da Oficina de Mapas ocorrida em 2013 na região de
Imperatriz. Em um movimento contrário da composição dos mapas oficiais, a Oficina de
Mapas é organizada com o objetivo de produzir um documento que permite a construção
de uma cartografia social das comunidades em que é realizado um mapeamento social feito
pelos próprios agente que participam diretamente da elaboração de mapas.
As formas de (r)existências vivenciadas e utilizadas para enfrentar as adversidades
dentro dos territórios, passaram a ter nos mapas uma forma de enfrentamento às
adversidades. É através do registro dos discursos proferidos nessa Oficina que pretendo
identificar questões elencadas pelos quilombolas e quebradeiras de coco que estavam
presentes, especialmente as que fazem referência às suas formas de habitar, relacionar e
enxergar o mundo.
Percebendo que o resultado da chegada dos grandes projetos na cidade não se
restringe aos aspectos físicos e biológicos, evidenciando a posição dos sujeitos sociais nos
processos de coletividade (ALMEIDA, 2008) e reconhecendo a “potência política dos
conflitos ambientais” (ACSELRAD, 2014), dialogo com a abordagem da cosmopolítica

4
O “Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia” (PNCSA) é um grupo de pesquisa que reúne
pesquisadores vinculados à diversas universidades no Brasil. Tem como um dos objetivos principais
consolidar uma rede de povos e comunidades tradicionais através das relações de pesquisa empreendidas.
Desenvolve técnicas de mapeamento que levam em conta as modalidades de autodefinição de agentes sociais
referidos à diferentes povos e comunidades tradicionais.

3
(FLEURY, 2013, 2014; VIEIRA, 2015; STENGERS, 2018) e cosmografia (LITTLE,
2002).
Diante das narrativas escolhidas, considero importante pensar o “Antropoceno”
(CRUTZEN, STOERNER, 2000; HARAWAY, 2015; TSING, 2019) a partir dos relatos
sobre os efeitos dos grandes projetos na vida de humanos e não-humanos que vivem em
momentos de rupturas e precarização que apontam para uma grande alteração ecológica
que impactam seus modos de produzir e existir, resultando em uma crise no “fluxo da
criação” (VIEIRA, 2015) por conta de uma valorização ocidental na distinção entre vida e
não-vida (POVINELLI, 2013). Recorro também a análise dos conflitos socioambientais
pela abordagem da ecologia política que os trata como um “conjunto complexo de embates
entre grupos sociais em função de seus distintos modos de inter-relacionamento ecológico”
(LITTLE, 2006, p. 91).
A fábrica da empresa Suzano Papel e Celulose, instalada em 20115 estava situada
nas áreas das Fazendas Santa Cecília e Saramambaia, localizadas entre a Estrada do Arroz
e o rio Tocantins, nas proximidades do povoado Bacaba, município de Imperatriz. Na
época, a justificativa da empresa para a implantação na cidade mencionava a localização,
as áreas de atuação, a qualidade da água e volume do rio local (POYRY, 2010).
Imperatriz está situada na região oeste do Maranhão e é considerada a segunda
cidade mais populosa do estado. Localizada na divisa com o Tocantins, a cidade é
atravessada pela rodovia Belém-Brasília, encontrando-se num cruzamento estratégico
entre o sul do Maranhão com destaque para a região de Balsas, grande produtora de soja,
além da fronteira com o estado do Pará, onde se concentra grande fluxo de extração de
madeira e ainda encontra-se próxima à região de Açailândia, que conta com um
significativo polo siderúrgico. Este cenário despertou interesses e atraiu investimentos para
a região nos últimos anos, como é o caso da instalação da fábrica Suzano Papel e Celulose
S/A. Uma década após a instalação da empresa e de outros empreendimentos, Imperatriz
tornou-se o maior entroncamento comercial, energético e econômico do estado.
Após uma década da justificativa de sua implantação voltada para um discurso
desenvolvimentista (POYRY, 2010), a região ainda é caracterizada pelos impactos da
implantação de grandes projetos de infraestrutura e pelas mobilizações, em sua maioria

5
Em 2011 a empresa já dispunha de aproximadamente 154 mil hectares de eucalipto para abastecer a fábrica
instalada na região de Imperatriz. Segundo a Companhia, desse total, 70% correspondiam a terras próprias.

4
conduzida por lideranças das comunidades, sindicatos, movimentos sociais, pequenas
associações que, como entidades de organização política, defendem os direitos territoriais
daqueles que sofrem desde a chegada da empresa na região (GOMES, 2019).
A sensação que tive ao retornar aos cadernos de campo após o contato com uma
bibliografia ancorada na antropologia política, foi a de que as narrativas deveriam ser
apresentadas enquanto possibilidade de se enxergar outras ecologias, reconhecendo
diferentes atos de viver, sentir, perceber e se deslocar no mundo (INGOLD, 2012;
STENGERS, 2009) tendo a “defesa do conhecimento local como estratégia política e
epistemológica” (FLEURY et tal, 2014, p. 54).
Pensando que um dos triunfos antropológicos é a possibilidade de um
alargamento/ampliação do e no pensamento a partir do contato com sujeitos, neste artigo,
volto minha atenção para a compreensão que os agentes sociais têm de si e daqueles com
quem estabelecem relações, na tentativa de “levar a sério o ponto de vista nativo, uma
exigência metodológica e teórica da antropologia, o que implica em descentrar nossa
análise e seus pressupostos e evitar, os consensos estabelecidos em torno das palavras”
(VIEIRA, 2015, p. 23).
Compreendo a importância do ponto de vista dos agentes sociais impactados pela
presença dos grandes projetos e considerados à margem do cenário político ou mesmo
invisibilizados ao olhar do Estado. Recupero essas narrativas para observar a forma como
esses agentes, revelando uma consciência de suas margens e dos meios de descrevê-las,
atribuem significados às suas relações e articulam práticas políticas através de uma
combinação de conhecimentos tradicionais, geográficos e ambientais.
Em 2014, os resultados da pesquisa refletiam sobre uma concepção de
desenvolvimento da Amazônia a partir das práticas empresariais e do Estado. Agora, após
revisitar o que fora construído no campo, considero que é necessário, mais ainda, “aprender
com a Terra, com aqueles que aprendem desta Terra, nesta Terra, para esta Terra”
(DANOWSKI, 2019, p. 85) em tempos “do” Antropoceno, a fim de zelar com a vida que
ainda (r)existe.
Os registros de mobilizações, levantamento e análise bibliográfica, transcrições de
vídeos que são compostos, em sua maioria, por narrativas das lideranças das comunidades
afetadas, elaboração de relatórios à Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento
Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA), mapeamento cartográfico constituem
também a base de reflexões que serão trazidas para a composição deste trabalho.
5
O PRIMEIRO (IM)PACTO: a(s) chegada(s)

Era setembro de 2013 quando ocorreu a oficina de mapas em que participei pela
primeira vez e tive meu primeiro contato com os agentes. Antes desse encontro, o meu
conhecimento com o tema do projeto de pesquisa fora construído por meio de transcrições
de vídeos de outros encontros e oficinas, e estudo de uma bibliografia voltada para temas
como devastação e meio ambiente (ALMEIDA, 1993), estratégias de reprodução,
violência simbólica (BOURDIEU, 2006) e conflitos derivados de relações simbólicas e de
poder-dominação (ACSELRAD, 2004), cartografias (ASCELRAD, 2008); uma nova
cartografia social (ALMEIDA, 2013).
A oficina aconteceu no Centro de Educação e Cultura do Trabalho Rural, para a
realização de uma oficina de construção de mapas. O encontro reunia um grupo diverso de
pessoas: professores doutores da Universidade Estadual do Maranhão, mestrandos do
Programa de Pós-Graduação em Cartografia Social e Política da Amazônia (UEMA),
bolsistas de iniciação científica, representantes de sindicatos, moradores e lideranças das
comunidades locais. Durante o primeiro dia de oficina, 06 de setembro, o espaço ficou
aberto para que pessoas pudessem falar sobre - e para além - a chegada da empresa na
região a partir de suas próprias questões e problemas. As narrativas registradas se referiam
às perdas que tiveram desde a chegada da Suzano Papel e Celulose e as transformações
ocorridas, principalmente na desestruturação das vidas dos povos e comunidades
tradicionais na região que abrange boa parte da Amazônia Oriental.
Ouvir a angústia, o medo, o desespero e o desapontamento daquelas pessoas, logo
de início me causou um grande impacto. Com a mesma eloquência, o modo como esses
agentes mostravam suas (r)existências também me impactou. As primeiras narrativas logo
nos esclareceram como ocorreu a instalação da empresa na região6, expressando como os
povoados de Bacaba, São José da Matança, Açaizal e Esperantina (comunidades
localizadas na Estrada do Arroz) foram atingidos de forma expressiva. As formulações
nesta seção referem-se ao período de instalação da empresa Suzano ainda na etapa de
terraplanagem, causando a remoção de algumas comunidades e de vidas não humanas. A
primeira narrativa a ser apresentada é de Pedro, representante da comunidade de Matança,
e mostra como se deu a abordagem da empresa para ocupar o território das comunidades.

6
Essa região é formada por comunidades rurais compostas por quilombolas, ribeirinhos, camponeses e povos
indígenas.

6
Foi nos dito que a empresa foi à Matança (antes localizada a 4km da indústria) para
“perguntar” se a comunidade “não queria ir” para Bacaba ou Esperantina, estabelecendo
uma limitação territorial para esse "deslocamento forçado" (ALMEIDA, 1996). Sem saída,
já que não tiveram seus direitos respeitados e garantidos por lei e amedrontados pelo
pensamento “de que o que botar pra gente, a gente tem que pegar”, de maneira impositiva
aceitaram a condição da Suzano. De início, 22 famílias foram removidas de seus territórios.

A Suzano fez lá um estudo, montou até uma apostila desse estudo social
lá deles, lá da Bacaba, fizeram todo esse levantamento com eles, aí eles
vieram aqui em Imperatriz onde um promotor, e o promotor disse:
“Vocês têm que pegar o que a Suzano botar pra vocês porque vocês
estão na beira da estrada. Se a Suzano quiser, ela deixa vocês de mão e
joga vocês pro Estado. E o Estado vocês sabem como é que é o governo”
(Pedro7, morador da comunidade Matança, 2013).

Hoje essa cidadã vai ter que sair dessa comunidade pra ir pra outro
local que eles vão montar. Outro impacto que nós não acredita como vai
ficar é quem é que vai implantar essa, esse povoado. É a empresa ou é
poder público? A gente pergunta pro prefeito:- É você que vai construir
as casa, que vai morar esse povoado..., esse povo que vai sair da
Bacaba? Aí ele:- Não, aí é questão empresa. A gente vai pra empresa,
pergunta quem é que vai construir as casa que vai ficar aquele pessoal,
que vão sair dali, daquele local. Eles respondem que não, é o poder
público. (Rita, moradora da comunidade Bacaba, 2013).

O que Pedro e Rita contam é aqueles que são “responsáveis” pelo sistema
burocrático e pelas leis, e que teoricamente deveriam protegê-los, atuam de modo
estrategicamente flexibilizado ou corrompido para que o crescimento econômico na região
não tenha nenhum impasse. Retomo essas narrativas para refletir sobre as expectativas
múltiplas em torno da atuação estatal, bem como de suas alianças. Vale lembrar que as
comunidades presentes possuem de acordo com o Decreto Nº 6.040/2007, o
reconhecimento da população brasileira como multicultural e pluriétnica que garante aos
povos indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais um regime jurídico-
constitucional específico, promovendo a segurança necessária para que esses grupos8

7
Por questões éticas optei pela preservação de todos os nomes verdadeiros dos agentes que tiveram suas
falas expostas neste trabalho.
8
Em termos de políticas públicas, o Decreto nº 6.040/2007, da Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais - PNPCT incluiu no conceito de populações tradicionais,

7
possam continuar existindo de forma autodeterminada e tendo contempladas as suas
demandas coletivas, territoriais e culturais. Entretanto, durante a Oficina de Mapas e outros
registos do GESEA, pude notar que esses direitos são tratados como entrave para aqueles
que visam o avanço da mineração e de outras atividades produtivas de larga escala, como
as grandes obras de infraestrutura que são viabilizadas por interesses de uma agenda
econômica neoliberal, que atribui às presenças dos empreendimentos uma forma de
beneficiar a região de Imperatriz. Cada situação que era apresentada com a chegada da
empresa, mostrava como “povos e comunidades tradicionais” eram considerados como
obstáculos e como eles deviam reconhecer a lógica desenvolvimentista enquanto parte de
um projeto de crescimento econômico.
Essa lógica do Estado9 imbrincado ao capitalismo apoia-se na implementação de
políticas voltadas para a reestruturação dos mercados através de incentivos fiscais que
acabam flexibilizando normas jurídicas que deviam assegurar os direitos de povos e
comunidades tradicionais, por conta de uma demanda progressiva que visa um crescimento
econômico. Tânia Pacheco (2007), discutindo com o conceito de “racismo ambiental” e
(in)justiça ambiental para falar sobre como essas abordagens permitem questionar e
denunciar as múltiplas faces do preconceito, afirma que esse modelo de desenvolvimento
que exclui “populações tradicionais- ribeirinhos, quebradeiras de coco, geraizeiros,
marisqueiros, extrativistas, caiçaras e, em alguns casos, até mesmo pequenos agricultores
familiares (p. 8) acaba fazendo com que as autoridades sejam coniventes ou omissas,
realizando o que pode ser chamado de “verdadeiros leilões de recursos humanos e naturais”
(p. 6). A exemplo disso é que, desde 2010, a empresa junto ao Estado utiliza de estratégias
como a geração de empregos, investimento na educação, projetos de desenvolvimento
social e desenvolvimento econômico local para legitimar a implantação e expansão de
empreendimentos10. Essas estratégias junto ao Estado privilegiam as ações embasadas nos
interesses do capital financeiro (BOURDIEU, 1996; PACHECO, 2007).

antes restrito a indígenas e quilombolas, grupos como pantaneiros, caiçaras, ribeirinhos, seringueiros,
castanheiros, quebradeiras de coco de babaçu, geraizeiros e ciganos, entre outros.
9
Também utilizo o termo Estado para referenciar os poderes púbicos- Executivo, Legislativo e Judiciário,
nas diversas instâncias administrativas.
10
Publicações nos últimos anos que fazem menção a esse tipo de estratégia: <Secretaria de Estado de
Indústria, Comércio e Energia do Maranhão – SEINC>; <Com incentivos do Estado, empresas investem no
Maranhão e geram milhares de postos de trabalho – Maranhão de Todos Nós (www.ma.gov.br)>; <Suzano
e Ecofuturo iniciam implantação de Bibliotecas Comunitárias no Maranhão – Portal do Guigui>

8
Durante a oficina, os agentes relataram diversas situações que mostravam como
essas estratégias não estavam sendo efetivadas, gerando questionamentos sobre as ações
do Estado e da sua atuação. Quando as narrativas voltavam-se para a relação do Estado e
empresa, muitas vezes se referindo à questão fundiária, pude notar que as situações sociais,
como a demarcação do território indígena e regularização dos territórios quilombolas têm
se apresentado nos tribunais na medida em que o sistema político “não quer ou não pode
resolver” (diário de campo: 07.09.2013). Um dos órgãos mencionados, o INCRA, aparece
numa coalizão de interesses com políticos e grandes empresários. Em um primeiro
momento de conversa com a comunidade, o órgão já havia garantido que uma área na
Estrada do Arroz estava desapropriada para assentar as famílias “sem terra” e que com a
chegada da empresa “o INCRA deu pra trás” (diário de campo: 07.09.2013).
Pode-se afirmar, segundo meus interlocutores, que o Estado pouco executa os
procedimentos que ele próprio elaborou, e quando o faz sustenta justificativas que visam
impedir a efetivação dos direitos territoriais das comunidades tradicionais. Para tanto, essas
narrativas corroboram para pensar que existem lugares nos quais, aparentemente, estão à
margem do Estado. Não há como afirmar que o Estado se encontra ausente (DAS E
POOLE, 2008), já que ele opera na abstração mesmo que visível (BORGES, 2012). As
relações entre Estado e setor privado aparecem de modo recorrente ocasionando uma
derradeira alteração da/na vida de seres que ocupam o território em que a empresa está
sendo implementada.
Nesta seção trouxe narrativas para mostrar como esses agentes não confrontam a
legitimidade do Estado como tal, mas sim o nacionalismo homogeneizador e
desenvolvimentista promovido por ele. Elas são apresentadas como essenciais para, tal
como concebe Little (2002), enxergar o território como um “produto histórico de processos
sociais e políticos” (p. 252). Trouxe essas narrativas para que as diferentes relações
existentes Estado-Empresa; Estado- povos e comunidades tradicionais; Empresa-povos e
comunidades tradicionais; Povos e comunidades tradicionais-povos e comunidades
tradicionais sejam vistas como essenciais para reflexões futuras.

(R)EXISTÊNCIAS: “Se quiserem sobreviver a gente tem que se juntar. É índio, é


quilombola, é quebradeira, é pescador, é a gente que tem que se juntar.”

As mudanças no contexto econômico, político e social, desencadearam uma série


de alterações também na forma de organização social dentro das comunidades. A

9
construção dos grandes empreendimentos na região e consequentemente os seus impactos,
acarretaram em uma nova organização que buscava formas de resistência para afirmar e
garantir seus modos de viver. “Se juntar” carrega uma força cosmopolítica de povos e
comunidades que ao enxergarem a morte como limite da vida, se juntam para tentarem
reconstruir a vida depois de momentos de violência e rupturas que rompem com o percurso
da vida.
Determinados a manter seu modo de vida, as comunidades se articulam para
garantir sua autonomia resistindo através de ações que são organizadas coletivamente e
que são pensadas, também, por meio de relações de afetividade. A oficina de mapas é um
desses momentos onde a precisão de uma luta coletiva é acionada. A fala “se quiserem
sobreviver a gente tem que se juntar” que intitula esta seção, reflete a importância dessa
união e da necessidade de se apoiar reciprocamente. A possibilidade da morte ou a ausência
da vida é o ponto central de muitas reflexões trazidas pelos agentes.

A gente deixa aqui o nosso apelo pra que possa nos ajudar. Como a
companheira de antes disse, a gente tem que se juntar! Tem que juntar
forças pra vê se a gente consegue pelo menos que nos ouçam. (André,
morador da comunidade de Bacaba, 2013)

Se nós não se juntar vai ser difícil de nós continuar sobrevivendo.


Porque a tempestade é muito grande, a oferta de dinheiro é muito
grande. É um milhão contra dez centavos. Porque nós somos dez
centavos. E nós precisamos se juntar. Diz os ditados mais velhos: se tu
junta esses papel bem aqui, só um tu parte ele no meio, parte ou não
parte? Mas se a gente juntar esse feixo aqui, não parte esse diabo aqui
não. (Tania, moradora da comunidade de Matança, 2013)

Na fala do André, o “apelo” aparece para que nós- pesquisadores- pudéssemos de


alguma forma ajudá-los, me fazendo refletir que nós também trabalhamos com relações de
afeto. Naquele momento da oficina, o “juntar forças” para que os problemas deles fossem
escutados, me fez pensar que ali, eu era uma testemunha oral daqueles que estavam
vivendo violentamente e lutando para garantirem suas e outras existências.
Nos dois dias de oficina, ouvi vários relatos que, a partir do contexto de ameaças e
com a necessidade de se mostrarem fortes para “zelar a vida que ainda existe”
demonstravam a necessidade de alianças políticas entre e com os diferentes territórios.
Percebe-se que o encontro na oficina de mapas foi um dos momentos que propiciou a o
estabelecimento de relações entre distintas “lideranças” locais, buscando a definição e
estratégias de ações comuns na relação com o Estado.

10
E agora eu disse pros quilombola o que que nos faz pra se juntar, ta?
Porque o que eles sofre lá, nós sofre aqui. Lá é de um jeito, aqui é de
outro. Mas é a mesma coisa. Não tem diferença. Lá a briga por uma base
pra botar foguete e aqui briga por um terra pra montar empresa. Qual
é a diferença? Então o que falta é articulação pra que a gente grite.
(Gláucia, moradora da comunidade Esperantina, 2013)

Na fala da Gláucia, percebe-se que, ainda que haja diferenças em relação ao


segmento industrial dos empreendimentos implantados em suas regiões, é maior o esforço
de se reconhecer que é através da articulação que poderá se traçar ações comuns.
Ponderando sobre as articulações, as narrativas também reforçaram a importância das
oficinas como espaços de reflexão conjunta que orienta a elaboração de ações coletivas. O
processo de articular propicia uma aproximação nas relações entre agentes sociais de
diferentes regiões e possibilita uma interlocução conjunta e organizada perante e contra o
Estado.
“Se juntar” ao mesmo tempo que se respeita o modo de vida de cada comunidade
e que se organiza para outras estratégias de resistência e de sobrevivência, significa o de
realizar atividades que provoquem o Estado a interceder para garantir os seus modos de
vida. Uma dessas provocações faz alusão à concepção do modelo de desenvolvimento
propagado pelo Estado.

Não importa pra eles, por cima de quem tem que passar em nome do
desenvolvimento! Mas qual desenvolvimento? Pra quem? A gente
precisa dessas respostas. Pra quem? E a que preço esse
desenvolvimento? Então são muitas coisas que acabam envolvendo
todos nós que estamos lá na comunidade. E as pessoas, em troca duma
história dum desenvolvimento ... que desenvolvimento é esse que acaba
com a vida das pessoas? É... eu não sei aonde é que isso vai parar. É
uma tristeza muito quando a gente vê os governo botar quinhentos
milhões de reais pra uma empresa enquanto a gente faz uma promar de
três mil reais. Isso é uma vergonha minha gente. Pra um Brasil em
desenvolvimento, pra um país em desenvolvimento, pra um estado que o
governo diz que veio trabalhar pro povo, pelo povo. (Rita, moradora da
comunidade Açaizal, 2013)

Quando os agentes contestam esse modelo de desenvolvimento, eles afirmam a sua


forma de existir através de uma outra perspectiva que se diferencia da adotada pelo Estado,
o fazem a partir do momento em que negam a lógica da relação de poder que o Estado
exerce sobre quem domina. Segundo Zhouri e Laschefski (2010) isso revela a existência
de uma luta de grupos que resistem o modelo de sociedade moderna, declarando modos de

11
existência diferenciados. Esse modo diferenciado se confirma com a fala de Benedita,
quebradeira de coco da comunidade de Matança.

Nós não somos contra o desenvolvimento, muito pelo contrário. Nós


quer telefone até dentro do banheiro, nós quer, nós quer posto de saúde
em toda comunidade, nós quer, mas também nós não queremos deixar
as nossas antigas tradição. (Benedita, moradora da comunidade
Matança)

Nos dois dias em que a oficina foi realizada, percebi maneiras pelas quais as
pessoas criam e enxergam seu modo de (r)existir. É através da sua relação com a terra,
com a cultura, com a família e associações feitas no decorrer da vida que suas existências
são alimentadas.
Então é uma cultura que chama a atenção da gente, aonde tem cultura
você ver que cresce mesmo. Cresce a comunidade e a comunidade
amada todo mundo é desenvolvido. A gente fica mesmo mais inteligente,
sabe cantar, sabe contar verso. Chega uma pessoa de fora, a gente bota
o verso, é lido lentamente. Através do verso, através da cantiga, então
nós somos mesmo fã é da cultura nossa, porque é principal para o nosso
desenvolvimento. Essa é a minha fala. (Raimundo, morador da
comunidade de Bacaba, 2013).

O esforço de se juntar que os agentes possuem para se articularem contra o Estado,


me remete a noção de “cosmopolítica” (STENGER, 2018; VIEIRA, 2015), pois as suas
interpretações do mundo não se restringem à lógica capitalista estatal ocidentalizada. Para
eles, a política é composta por diversos elementos que não são consideradas à lógica
ocidental, já que ela é vivenciada por meio de “uma multiplicidade de outros não
considerados pela maneira atual de fazer política e de fazer ciência” (VIEIRA, 2015, p.
24).
A gente vive em uma sociedade deste jeito mas que a gente não aceita
ela é do jeito que ela é né? Por isso que ta se propondo a resgatar as
culturas. Por isso é os quilombolas estão lutando para a legalização de
suas terras e assim sucessivamente. Os índios também. Já está sendo dito
que nós não estamos aceitando essa sociedade do jeito que ela está.
(Benedita, moradora da comunidade Matança, 2013)

Ainda dentro do modo de vivenciar a política, a questão identitária também se fez


muito presente no espaço de conversa durante o segundo dia de oficina, destinado à
elaboração dos mapas de seus territórios. A oficina que é realizada por conta de e para lutar
contra uma falta de coesão na sociedade, possibilita o encontro de distintos agentes sociais
caracterizando-se enquanto um ritual político (LEACH, 1996; TURNER, 1966) de coesão
social afirmativa de uma identidade coletiva de “povos e comunidades tradicionais” e de

12
valores agenciados nas práticas das relações sociais (HERZFELD, 2016), pois a
autoconsciência da identidade se fortalece também nos rituais de intenso contato com
outros grupos.

Deixa eu só contribuir aqui na questão da autodefinição. O companheiro


deu assim uma revelação e uma reflexão né? Quando eu cheguei falando
de quilombo há uns anos antes dessas reuniões eles procuravam se eu
tava louco, “que diabos é isso”. Eles diziam desse jeito. E eu já cheguei
me dizendo que sou quilombola, fui pro enfrentamento e já contando
minha história. E eu acho que a identidade ela não tem um perfil, de
dizer assim, como que uma comunidade, como que uma pessoa se
autodefine. É desse jeito, desse jeito ou desse. A autodefinição não é
aquele documento que a gente usa que é o RG, a identidade. Eu não
acredito que o documento que é identidade é a autodefinição. Não é
aquele RG, ele é apenas um documento, o registro geral. A identidade é
aquilo que a gente se sente orgulho de ser, NE? aquilo que a gente sabe
o que é e o que quer. Então com todos esses traços, com toda essa
história, com toda essa resistência. (José, morador da comunidade
Esperantina)

Na fala do José pude perceber como, até então, uma categoria essencializadora
criada pelo Estado (HERZFELD, 2016) – quilombola- é acionada e transformada pelo
próprio agente a partir de sua consciência política, fazendo com que o Estado seja por ele
recolonizado (DAS E POOLE, 2008). A categoria é ressignificada pelo agente, indicando
um processo de construção de reivindicação perante o Estado. Nessa fala subjaz uma
reflexão sobre as condições que os agentes fazem, permitindo que repensemos sobre
monopólio de classificações produzidas historicamente pela sociedade ocidental. Uma
dessas formas de classificações são os documentos e processos de padronização (SCOTT
apud SCHUCH, 2015) e de controle social (FOUCAULT, 1978), como por exemplo, os
mapas elaborados pelo Estado, já que relações de poder perpassam povos, comunidades e
grupos nas decisões de como construir o mapa ou de como delimitar seu território.
As narrativas são apresentadas para pensar que se a formulação das categorias
oficiais é utilizada para a dominação política pelo Estado como forma de controle social,
em um outro sentido é também utilizada para a reafirmação social e territorial desses
grupos classificados enquanto povos e comunidade tradicionais (LITTLE, 2002).
Quando José fala do papel que serve como identidade, que para ele é “apenas um
documento”, demonstra como o Estado cria formas de produzir sujeitos a partir de práticas
de legibilidade (SCHUCH, 2015), fazendo com que ele possua a tutela sobre grupos sociais

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que é legitimada através de documentos que contribuem para as classificações identitárias
e territoriais.
Ainda que historicamente povos e comunidades tradicionais tenham sido
marginalizadas e negligenciadas, os agentes sociais que as compõem, têm se constituído
em grupos expressivamente resistentes a uma integração à ordem econômica dominante.
A organização e articulação desses indivíduos em redes políticas de lutas sociais “não são
apenas simples respostas a problemas localizados, mas as práticas das unidades de
mobilização contribuem, em certas situações, à emergência de sujeitos coletivos”
(ALMEIDA, 1994, p. 524) e às formas de (r)existir. O “se juntar” por si só é uma forma
simbólica que só faz sentido se inserido em um processo de mobilização permanente,
afinal, fazer dez centavos virar um milhão só será possível através dessas articulações.
Aqui, a sobrevivência e (r)existência virá do coletivo.

PELA VIDA QUE AINDA NÃO MATARAM: (r)existir contra e dentro da lógica do
Antropoceno

Após revisitar as narrativas, pude notar que o ambiente se constrói, tal qual
Acserald (2004) definiu por meio da perspectiva das ciências sociais, como um mundo
material socializado e dotado de significados, sendo “os objetos que constituem o
‘ambiente’ [...] culturais e históricos” (p. 7). As narrativas que são apresentadas nesta seção
nos possibilitam enxergar o conflito para além de questões políticas e/ou econômicas.
O segundo dia da Oficina que tinha como programação fixa a construção dos
mapas, teve nas falas dos agentes alguns assuntos em comum: as suas (r)existências; a
relação com a terra; a sobrevivência a partir da relação com outros seres; a mudança no
habitar e os impactos na saúde com a chegada dos empreendimentos.
Durante a manhã, o momento de discussão teve como início, por meio de uma
canção, uma quebradeira de coco falando sobre as modificações em seus territórios.

Aqui não falta sol, não falta chuva. A terra faz brotar qualquer semente,
se a mão de Deus protege e molha nosso chão, mas porque que está
faltando o pão? A natureza nunca se queixou da gente, do corte do
machado, a foice o fogo ardente, nesta terra tudo que se planta dá, que
que há meu país, que que há? Tem alguém colhendo o fruto, tem alguém
levando lucro, sem saber o que é plantar. Ta faltando consciência, tá
sobrando paciência, tá faltando alguém gritar. Feito um trem
desgovernado, quem trabalha tá ferrado, nas mãos de quem só engana,
feito mal que não tem cura, estão levando à loucura o Maranhão que a

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gente ama. (Música cantada por uma quebradeira de coco no segundo dia
da Oficina de Mapas, 2013)

A canção nos atenta em diversos trechos para a necessidade de mudanças,


principalmente a de uma consciência política. Naquele momento, aquela canção não
parecia ser uma fala direcionada aos agentes sociais das comunidades, mas sim a todos que
ali estavam presentes, como uma “canção aberta” que servia também para nós: “os da
universidade”.
As narrativas registradas nos permitem enxergar outras cosmologias (VIEIRA,
2015) e “demandas que alargam as noções convencionais de ambiente e política”
(FLEURY et al, p. 74), que embora sempre tenham existido, também sempre foram
desconsideradas e desqualificadas perante a pensamentos e modos de viver
ocidentalizados. Viver e (r)existir no Antropoceno significa habitar em uma nova era
geológica em que a Terra se caracteriza como um lugar potencialmente destrutivo para as
espécies em que os seres humanos e de modo irreversível perturbam em um processo de
destruição o seu habitat. Dialogar com essa categoria, ainda que não seja mencionada pelos
agentes exatamente com essa palavra, é enxergar como uma lógica predatória moderna
gera impactos.

A minha preocupação não era o hoje, é daqui 5, 10, 15, 20 anos, que
poderá ser transformado num deserto do Saara! Porque há 30 anos
atrás, nossa mata ela era... nossa mata ciliar ela era fechada! E com o
mau uso de agrotóxicos, a gente hoje não tem mais mata ciliar! A gente
só tem muito calor! Muito calor! A gente não tem mais aquele vento
gostoso que dava depois do almoço, a gente não tem mais frio à noite.
Que no interior fazia muito frio à noite! A gente precisava de lençol
grosso pra se embrulhar! E hoje não! Cê embrulha com um bem fininho
e o calor tá lá! Você precisa usar ventilador! E há 30 anos atrás a gente
nem energia tinha, era lamparina! O que era muito bom, porque a gente
tinha pelo menos saúde! Agora a gente tem energia, tem toda a
mordomia que se tem na cidade, mas em compensação a gente morre
igual quem morre lá na cidade! Toda hora! (João, morador da
comunidade Bacaba, 2013)

As consequências negativas desse processo de desenvolvimento trazidas pelo João


em seu território, mostra como a conservação da mata, para além de um processo de
(r)existência, ela também aparece como de sobrevivência. Com a mesma importância de
reconhecer esses impactos é a de que também as formas de concebê-los podem variar
consideravelmente se for levado em consideração as posições ocupadas dentro da

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sociedade. O Antropoceno não é somente uma era geológica pautada e centralizada nas
ações humanas. É também a “época do fim dos refúgios (TSING, 2019).

É bem aí que eu queria chegar. Porque olha, a palmeira é uma vida! E


ela sustenta a nossa família, grande parte dela. Então, se nós deixar
derrubarem tudo, como é que vai ser nossa vida daqui pra frente? Não
tem palmeira, não tem a gente, não tem viado, não tem cutia, não tem
coisa nenhuma! Porque nós temo ... a gente devemos se aprofundar na
vida que tá lá! A vida que vive nessa floresta! Nós queremos zelar a vida
que anda existe. Que ainda não mataram. E se nós deixarmos eles
matarem todo tempo sem fazer nada, vai ficar assim mesmo do jeito que
eles querem. Vão matar tudo ... até nós vamos morrer. (Benedita,
moradora da comunidade Matança, 2013)

A fala de dona Benedita expõe a relação e concepções sobre a existência de outras


vidas. Querer zelar pela vida que ainda existe é uma forma de garantir a sua sobrevivência.
É conceber a manutenção do território como “produção e reprodução que garante a
sobrevivência da comunidade como um todo” (ZHOURI e LASCHEFSKI, 2010, p. 9).
Lutar pela que sua existência é lutar pela existência de outros. As relações de
interdependência que esses agentes possuem com outros seres para permanecerem
(r)existindo, ficaram também registradas em outras narrativas.

Um outro impacto muito sério é que onde vai ficar aquele povo não tem
mais babaçu. Porque eles já devastaram tudo. Não tem mais terra pra
agricultura familiar aonde vai ficar aquele povo. Vocês sabem que do
coco babaçu a gente tem um desenvolvimento, uma variação de
produtos. Da palmeira do babaçu nós tem a palha que ajuda a cobrir a
casa. Nós tem o óleo do babaçu, nós tem o sabão, nós tem o sabonete,
nós tem o mesocarpo de babaçu que hoje é uma mercadoria vendável,
nós tem a própria amêndoa do babaçu que é vendável, nós tem o carvão
sustentável que é da casca do coco tirada a amêndoa. Então é um
produto que dá vários sobprodutos e eu acredito e chamo de, de uma
produção sustentável. As pequena roça que ainda a gente faz, ainda que
sustenta as família dos produtores. Tem amendoim, tem a batata, tem a
macaxeira que tem a farinha, tem a tapioca tirada da mandioca. A casca
da mandioca alimenta os animais. A própria madeira da mandioca
alimenta os animais. Tem o milho que é uma grande alimentação pra
gente e pra animal. (Cassia, moradora da comunidade de Matança, 2013)

Escutando Cássia é possível estabelecer uma relação entre a existência do babaçu


e outros e a dos humanos, mostrando como é necessário que se olhe para uma rede de
(co)dependência entre espécies. É o reconhecimento diferencial de enxergar onde há vida
e onde pode haver a sustentação dela também. Por meio dessas falas que expressam o medo
e insatisfação com “a crise ecológica”, os agentes sociais nos mostram como a crise “afeta

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a capacidade criativa da terra, das plantas, dos bichos e das pessoas (VIEIRA, 2015, p.
368)”.
Assim, humanos e não-humanos criam conjuntamente um lar para seus ocupantes,
pois é a vinculação entre eles que mantém o conjunto existindo sob uma determinada
forma. Indivíduo e outras espécies da natureza não aparecem dissociados em categorias
que classificam vidas distintas. Para eles, a vida é constitutiva de suas relações, na mesma
proporção em que as relações são partes constituintes da vida. As (r)existências são
construídas e reajustadas com base em um processo interativo entre humanos e não-
humanos. Cuidar de outros seres que não-humanos, além de garantir suas existências é
também a forma de reconhecer que não há vida humana sem a vida de outros seres.

CONSIDERAÇÕES PARA SE PENSAR SOBRE A VIDA

Durante a escrita do artigo em que relembrava a reunião dos agentes sociais e o


diálogo entre eles, me fez perceber que cada um ao reconhecer na luta do outro uma parte
de sua própria luta, também reconstruía sua trajetória. Como consequência dessas lutas, é
preciso considerar as múltiplas e variadas maneiras por meio das quais os seres que
habitam o mundo o vivenciam. Os agentes sociais não referenciavam apenas as estratégias
acionadas em relação à implantação dos grandes empreendimentos, mas, também, se
referiam a múltiplos modos de viver que estavam sendo afetados sempre que
impossibilitados de vivenciá-los a seu modo.
Conforme viver no Antropoceno se revela mais assustador, surgem também novos
apelos para permitir aos humanos a construção de uma coletividade que seja capaz de
enfrentar os problemas sociopolíticos e agora, mais que nunca, ecológicos. Este artigo teve
por um dos seus objetivos através das reflexões presentes nas narrativas, criar questões que
nos permitem constantemente (re)ver sentidos de onde é possível enxergar e sentir a vida,
bem como pensar em como a política afeta vidas. Vidas essas que permitem proliferar
modos de existir e de sentidos diferenciados.
Retomo a pesquisa para que o processo de escuta, debate e aprendizado seja
coletivo. Pensar a vida nas ciências sociais é pensar a vida e os viventes. Voltar aos
cadernos de campo e relembrar o sofrimento a partir da violência que lhes é atravessada
de diferenças maneiras e sobre como as experiências apareciam afetando suas vidas, foi o
impulso para trazer narrativas que, embora sejam de 2013, não se perderam no tempo.

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Trazer essas narrativas me faz pensar na necessidade de intensificar trocas com
aqueles que um dia, também já me enxergaram como uma aliada em potencial, quando
pensaram que por mim, poderiam ter seus apelos divulgados diante das catástrofes
anunciadas.
Em suma, o que testemunhei no cerne dos encontros entre diferentes povos e
comunidades tradicionais é a ampliação de uma (r)existência pela vida. “Zelar a vida que
ainda existe” e “se juntar” são narrativas essenciais neste trabalho para se pensar em como
que se reconstrói a vida depois acontecimentos violentos de atravessamentos destrutivos
no percurso da vida. Para tal, busquei ao longo do texto amplificar as vozes daqueles que
vivem nas margens – dos sistemas, das estradas e das relações de poder- e que ao mesmo
tempo se mostram potentes para continuarem (r)existindo.
Por fim, quando ouvi: “Queremos zelar a vida que ainda existe, a vida que ainda
não mataram”, tive a certeza de que garantir a existência de uma série de outros
organismos que ainda não foram mortos é garantir também as nossas condições de
habitação nesta terra.

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