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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

LESLYE BOMBONATTO URSINI

SOBREPOSIÇÃO E SUAS IMPLICAÇÕES

A complexidade fundiária de Paraty, Rio de Janeiro, Brasil

CAMPINAS

2019
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Ficha catalográfica:

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado,


composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em
[data], considerou a candidata Leslye Bombonatto Ursini [resultado].

Professor Doutor José Maurício Paiva Andion Arruti – presidente

Professora Doutora Mariana Balen Fernandes

Professora Doutora Luciana Quillet Heymann

Professor Doutor Christiano Key Tambascia

Doutora Patrícia Nunes Mariuzzo

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no


SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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Dedico esta Tese à minha filha, Maria, aos meus pais Anna Nelly e

Domingos Miguel e à minha irmã

Aline.

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Agradecimentos

Há o risco de se agradecer a algumas pessoas e instituições e de outras não


serem lembradas a tempo. Mesmo assim, vale mencionar que esta pesquisa e trabalho
contou com o apoio de outros.

Agradeço ao apoio do PROGRAMA DE EXCELÊNCIA ACADÊMICA –


PROEX que custeou parte das despesas para uma das estadas em campo, em Paraty, por
11 dias, entre junho e julho de 2017. Ao meu orientador, José Maurício Arruti, agradeço
à orientação que sempre trouxe questionamentos que me possibilitaram o exercício de
destrinchar em diversas faces alguma questão ou algo aparentemente estatuído. À banca
de qualificação — composta por Patrícia Nunes Mariuzzo, Mauro Almeida e José
Maurício Arruti — o agradecimento é imenso, especialmente pela disposição em
retirarem imbricações dos meus temas (territórios, caminhos, espaços, tempos e
sobreposições) da latência do texto e me indicarem outros enfoques possíveis.

Aos senhores Domingos, do Território Quilombola de Cabral e Apuhinã, da


Terra Indígena Kaña Pataxi Witanara, ambos em Paraty, pelas entrevistas. De uma forma
mais distante, mas não menos importante porque o diálogo entre territórios tem essas
experiências em outros territórios que não só em Paraty, agradeço aos Xavante da Terra
Indígena Pimentel Barbosa, no Mato Grosso, pela chance de ter estado com eles em um
território reivindicado, Tsorepré, em uma rápida e intensa expedição de dois dias.
Agradeço à Comunidade Extrativista da RESEX Marinha Pirajubaé, em Florianópolis,
no Estado de Santa Catarina, em um território marinho, com os trabalhos em campo em
2018 para um processo de licenciamento ambiental, cuja imagem foi paradigmática para
ajudar a pensar o tema de território.

Agradeço aos servidores da Secretaria de Pós-Graduação do Instituto de


Filosofia e Ciências Humanas ― PPGAS/IFCH/Unicamp, pela atenção a auxílio com a
urdidura institucional, sempre dispostos e bem-humorados. Agradeço aos colegas do
Incra, Roberto Alves de Almeida e Januaria Mello, pelas informações e carinho.

À minha família, à Marie e ao Carmelo gratidão sem tamanho.

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Resumo

SOBREPOSIÇÃO E SUAS IMPLICAÇÕES

A complexidade fundiária de Paraty, Rio de Janeiro, Brasil

Territórios de povos indígenas, comunidades tracionais e quilombolas se


encontram em situação de sobreposição com áreas protegidas, dentre elas as unidades de
conservação e, por vezes estas últimas se sobrepõem.

A paisagem é Paraty, no Estado do Rio de Janeiro, com apreensões diversas


acerca do espaço como territórios que fornecem um “laboratório” de observação para as
ações políticas, do Estado e da administração pública. Da experiência do trabalho no
serviço público com o tema da regularização fundiária de terras indígenas e territórios
quilombolas, no licenciamento ambiental de empreendimentos de infraestrutura e
políticas públicas para povos e comunidades tradicionais surgiu o interesse na forma
como o Estado e a administração pública vêm e tratam as comunidades nas obrigações
que o próprio Estado assumiu para si com relação a elas; em especial as situações de
sobreposição que têm implicações ao próprio Estado deflagrando alguma sua contradição
que ele não consegue perfazer no encadeamento dos discursos que profere, de forma
polifônica por meio de instituições suas distintas. Os materiais utilizados são aqueles
disponíveis onde o Estado fala: leis, relatórios, processos elaboração de leis a meio
caminho e decisões. O objetivo é o de analisar e mostrar como as comunidades são vistas
e tratadas pelo Estado com a finalidade de contribuir para a reflexão de como as coisas
do Estado podem se constituir em um objeto de análise, limitado tanto o quanto qualquer
outro, especialmente quando elas versam, decidem, interferem e ajustam destinos para as
comunidades tradicionais, outros povos; objeto historicamente privilegiado da
antropologia.

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Abstract

OVERLAPPING AND ITS IMPLICATIONS

The land complexity of Paraty, Rio de Janeiro, Brazil

Territories of indigenous peoples, traditional communities and quilombolas


are overlapping with protected areas.

The landscape is Paraty, in the state of Rio de Janeiro, with multiple notions
about space as territories that provide an observational “laboratory” for political, state and
public administration actions. The experience of working in the public service with the
theme of land regularization of indigenous lands and quilombola territories, and in the
environmental licensing of infrastructure enterprises and public policies for traditional
peoples and communities, has arisen an interest in the way the state and public
administration view and treat communities and the obligations that the state itself has
assumed for itself in relation to them; in particular the situations of overlapping that have
implications for the state itself, triggering some of its contradictions in the chain of
discourses it utters, in a polyphonic way through its distinct institutions. The materials
used are those available where the state speaks: laws, reports, midway law making
processes and decisions. The aim is to analyze and show how communities are viewed
and treated by the state with the purpose of contributing to the speculation on how things
of the state can constitute a legitimate object of analysis, limited as much as any other,
especially when they address, decide, interfere and adjust destinies for traditional
communities, the “other”, historically the privileged object of anthropology.

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Índice de gráficos

Gráfico 1 ― Processos de regularização fundiária de territórios quilombolas em várias fases


abertos no Incra .................................................................................................................... 186
Gráfico 2 ― Número de Terras Indígenas e fases do processo de regularização fundiária (Funai,
2019) .................................................................................................................................... 192

Índice de figuras

Figura 1 ― Nove etapas básicas da regularização fundiária de Terras Indígenas e de Territórios


Quilombolas ........................................................................................................................... 56
Figura 2 ― Funções de reprodução física, cultural, econômica, cultural e social observáveis em
campo e projetadas na delimitação de territórios tradicionais ................................................ 94
Figura 3 - detalhe do Mapa de concessão de Sesmarias entre Mambucaba e Paraty (data
estimada: por volta de 1630), Província do Rio de Janeiro (croqui de L.B. Ursini sobre mapa); foi
transcrito ipsis litteris, em vermelho, o que está escrito no interior de cada sesmaria. .......... 162
Figura 4 ― Capitanias de São Vicente (Condessa de Vimieiro) e Santo Amaro (Conde de
Monsanto) a partir do limite da divisão do Tratado de Tordesilhas........................................ 164
Figura 5 ― croqui elaborado por Leslye Ursini sobre mapa de Jorge P. Cintra (2012) ............ 167
Figura 6 ― Mapa das Cortes (1749), possibilidades para a linha do Tratado de Tordesilhas ... 170
Figura 7 ― Caminho Marítimo-Terrestre, como era conhecido o Caminho do Ouro (velho) de
Paraty e, Caminho de Santos e o Caminho dos Paulistas (RIBAS, 2003, p. 30) ........................ 175
Figura 8 – Estrada de automóveis (RJ-165 ou BR-549) ao lado do Caminho Velho do Ouro,
Caminho de Cunha-Paraty, com destaque para o Registro do Ouro ....................................... 179
Figura 9 ― Localização das Terras Indígenas em Paraty ......................................................... 195
Figura 10 ― Área de Proteção Ambiental de Cairuçu em sobreposição com a Área Estadual de
Lazer de Paraty-Mirim e Reserva Ecológica da Juatinga ― situação em 2019 (INEA, 2013) .... 198
Figura 11 ― Proposta de recategorizações decorrente do estudo de 2011 (Igara; INEA, 2013)
............................................................................................................................................. 200
Figura 12 ― Proposta de recategorizações do INEA (2013).................................................... 200
Figura 13 ― Mapa das três áreas da RPPN Laranjeiras (sem data no SIMRPPN/ICMBio) ........ 202
Figura 14 ― Trajeto marítimo do Condomínio Laranjeiras à Praia do Sono, Paraty, RJ. .......... 207
Figura 15 ― Trajetos marítimos a comunidades tradicionais a partir do Condomínio Laranjeiras
............................................................................................................................................. 209
Figura 16 ― Mapa da Área Estadual de Lazer de Paraty-Mirim ― AELPM, Terra Indígena
Araponga, Território Quilombola Campinho da Independência e Terra Indígena Parati Mirim
............................................................................................................................................. 216
Figura 17 ― APA de Cairuçu com suas 63 ilhas e indicação das Terras Indígenas Araponga e
Parati Mirim e os Territórios Quilombolas Campinho da Independência e Cabral (Plano de
Manejo, 2018) ...................................................................................................................... 217
Figura 18 ― Zonas do Plano de Manejo da APA de Cairuçu (Tabela 13, “tamanho das zonas de
manejo e porcentagem em relação ao tamanho da unidade; Plano de Manejo, 2018, p 56) .. 225
Figura 19 – Zoneamento da Área de Proteção Ambiental de Cairuçu, Plano de Manejo de 2018
(APA de Cairuçu/ICMBio) ...................................................................................................... 229
Figura 20 ― APA Municipal da Baía de Paraty, Paraty-Mirim e Saco do Mamanguá; Área
Estadual de Lazer de Paraty-Mirim ........................................................................................ 235

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Figura 21 ― Sobreposição entre a APA de Cairuçu e o PARNA da Bocaina, com detalhe da
porção marítima da Fazenda Guebetiba (mapa-base em “Cidade-Brasil” online) ................... 242
Figura 22 -- Reserva da Biosfera e respectivas zonas da Mata Atlântica ................................. 243
Figura 23 ― Indicação Geográfica da Cachaça de Paraty ....................................................... 245
Figura 24 – Parque Nacional da Serra da Bocaina ― PNSB, Paraty, RJ .................................... 248
Figura 25 - Mapa das Zonas de Preservação do Conjunto Paisagístico de Paraty, Port.
402/2012/Iphan .................................................................................................................... 250
Figura 27 ― Quadro cronológico da criação de Mosaicos no Brasil: 2005-2013 ..................... 262
Figura 28 ― Abrangência do Mosaico da Bocaina ................................................................. 264

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Sumário
INTRODUÇÃO....................................................................................................................................... 13
1. TERRITÓRIO: ENTRE ANTROPOLOGIA E GEOGRAFIA .................................................................... 20
1.1. TERRITÓRIOS E CONJUNTOS DE TERRITÓRIOS TRADICIONAIS ................................................................. 20
1.2. ESPAÇO E TERRITÓRIO: UMA VISADA NA GEOGRAFIA CULTURAL ............................................................. 24
1.3. IMAGENS DO ESTADO ................................................................................................................ 41
1.4. ALGUMAS NOÇÕES NA BAGAGEM ................................................................................................. 44
2. UM PERCURSO POR TERRITÓRIOS E INSTITUIÇÕES ...................................................................... 47
2.1. INSCREVER NO MAPA E IDENTIFICAR TERRITÓRIOS .............................................................................. 49
2.2. OUTRAS POLÍTICAS ENVOLVENDO OS TERRITÓRIOS E AS COMUNIDADES TRADICIONAIS ................................ 62
2.3. A INSTITUIÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DE POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS ...................................................................................................................................... 74
2.4. ANOTAÇÕES SOBRE AS CÂMARAS DE CONCILIAÇÃO E ARBITRAGEM FEDERAL ― CCAF/CGU/AGU .............. 81
2.5. TERRITÓRIOS TRADICIONAIS, TERRITÓRIOS INSTITUCIONAIS .................................................................. 91
3. COMUNIDADES TRADICIONAIS E A CRIAÇÃO DO SISTEMA NACIONAL DE UNIDADES DE
CONSERVAÇÃO DA NATUREZA―SNUC ................................................................................................ 97
3.1. ÁREAS PROTEGIDAS NO BRASIL..................................................................................................... 98
3.2. PROJETO DE LEI N° 2.892/1992: A ELABORAÇÃO DO SNUC ............................................................ 126
3.2.1. “População tradicional” discutida e vetada ................................................................ 131
3.2.2. Reserva de Recursos Naturais ― proposta para o grupo de Manejo Provisório ........... 134
3.2.3. Reserva Ecológico-Cultural ― proposta para o grupo Uso Sustentável ........................ 137
3.2.4. Reserva de Desenvolvimento Sustentável ― grupo de uso sustentável ....................... 141
3.2.5. Reserva da Biosfera ................................................................................................... 142
3.2.6. Reserva Ecológica Integrada ― proposta para o grupo de uso sustentável ................. 144
3.2.7. Corredores Ecológicos e Mosaicos .............................................................................. 145
3.2.8. Terras Indígenas ........................................................................................................ 148
3.3. GOVERNANÇA ....................................................................................................................... 155
4. PARATY ..................................................................................................................................... 161
4.1. LUGARES DE ANTES ................................................................................................................. 161
4.2. CAMINHOS ........................................................................................................................... 171
4.3. OPORTUNIDADE ..................................................................................................................... 181
5. SOBREPOSIÇÕES EM PARATY..................................................................................................... 185
5.1. TERRITÓRIOS DE COMUNIDADES ................................................................................................. 185
5.1.1. Territórios Quilombolas ............................................................................................. 185
5.1.2. Comunidades Caiçaras............................................................................................... 188
5.1.3. Terras Indígenas ........................................................................................................ 191
5.2. ÁREAS PROTEGIDAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO EM PARATY ........................................................ 195
5.2.1. Reserva Ecológica da Juatinga (em recategorização) ― estadual ............................... 197
5.2.2. Área Estadual de Lazer de Paraty-Mirim (parte em recategorização) ― estadual ....... 213
5.2.3. Área de Proteção Ambiental de Cairuçu ― federal ..................................................... 215
5.2.4. Área de Proteção Ambiental da Baía de Paraty, Paraty-Mirim e Saco do Mamanguá.. 233
5.2.5. Estação Ecológica Tamoios – federal.......................................................................... 237
5.2.6. Parque Nacional Serra da Bocaina ― federal ............................................................. 240
5.2.7. Reserva da Biosfera da Mata Atlântica ...................................................................... 243
5.3. OUTRAS SOBREPOSIÇÕES EM PARATY .......................................................................................... 244
5.3.1. Indicação Geográfica da cachaça de Paraty ............................................................... 244

11
5.3.2. Paraty: Sítio Tombado ............................................................................................... 249
5.4. TIPOS DE TERRITÓRIOS ............................................................................................................. 253
6. MOSAICO DA BOCAINA: SOBREPOSIÇÕES ENTRE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO....................... 259
6.1. RECONHECIMENTO DO MOSAICO DA BOCAINA .............................................................................. 260
6.2. COMPOSIÇÃO DO CONSELHO CONSULTIVO DO MOSAICO DA BOCAINA ................................................. 265
6.3. SOBREPOSIÇÕES ENTRE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO ....................................................................... 269
6.3.1. Recategorização da Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ― REEJ .......................... 273
6.3.2. O Mosaico da Bocaina e outros projetos envolvendo as unidades de conservação
abrangidas por ele ..................................................................................................................... 277
6.4. LICENCIAMENTO AMBIENTAL ..................................................................................................... 279
6.4.1. Cana e cachaça.......................................................................................................... 282
6.4.2. Outros empreendimentos .......................................................................................... 283
6.4.3. Câmara Temática de Unidades de Conservação e Populações Tradicionais do Mosaico da
Bocaina 284
6.5. FÓRUM DE COMUNIDADES TRADICIONAIS DE ANGRA DOS REIS, PARATY E UBATUBA—FCT ...................... 290
6.6. COMUNIDADE E TERRITÓRIO ...................................................................................................... 296
CONCLUSÃO: IMPLICAÇÕES DAS SOBREPOSIÇÕES ............................................................................. 299
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................................... 303
ANEXO 1 ― POLÍTICAS PÚBLICAS E AÇÕES DO ANTIGO MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E
COMBATE À FOME ― MDS, NA SECRETARIA DE ARTICULAÇÃO INSTITUCIONAL E PARCERIAS ― SAIP
PARA POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS (2006) ....................................................................... 312
ANEXO 2 — QUANTITATIVO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO NO BRASIL NAS INSTÂNCIAS FEDERAL,
ESTADUAL E MUNICIPAL (JAN/2019) ................................................................................................. 315
ANEXO 3 ― CATEGORIAS DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO (LEI Nº 9.985, DE 18 DE JULHO DE 2000)316
ANEXO 4 ― COMPOSIÇÃO DO MOSAICO DA BOCAINA, 2015 ............................................................ 318

12
Introdução

O tema das sobreposições entre áreas protegidas e territórios tradicionais,


indígenas e quilombolas passou a me chamar a atenção pelo aspecto discursivo, de parte
do Estado, quanto à conservação da biodiversidade: não haveria compatibilidade. Antes
de ter tomado contato com as discussões acerca desse tipo de sobreposição, havia
trabalhado para o Estado na triagem de solicitações de pesquisa científicas que envolviam,
ou não, acesso aos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético, e ali,
o discurso sobre aquelas mesmas comunidades era o de que inovam, mantêm, reproduzem
recriam a vivem aquela biodiversidade. O discurso da incompatibilidade era proferido
pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis ― Ibama
e aquele da compatibilidade era o discurso do Departamento de Patrimônio Genético ―
DPG, da Secretaria de Biodiversidade e Florestas ― SBF, ambos do Ministério do Meio
Ambiente—MMA. Na verdade, não apenas do DPG, mas dos órgãos e entidades públicos
que tinham os chamados povos e comunidades tradicionais como público beneficiário de
suas políticas e ações. O ICMBio seguia isolado, nesse discurso. Em meu percurso
profissional por instituições públicas procurei onde esses dois discursos pudessem se
encontrar e se confrontar e que colocasse o governo exposto à sua contradição. Embora o
assunto da sobreposição, e os casos concreto, fossem discutidos em reuniões para a
conciliação entre os órgãos, as discussões recaíam sobre a permanência, ou não, das
comunidades em seus territórios em face da existência de unidades de conservação e
nunca sobre a contradição interna do Estado em manter políticas conflitantes. A primeira
intenção em desenvolver este tema nesta Tese foi a de promover este “encontro”.

O objetivo da Tese é o de analisar e mostrar como as comunidades são vistas


e tratadas pelo Estado com a finalidade de contribuir para a reflexão de como as coisas
do Estado podem se constituir em um objeto de análise, limitado tanto o quanto qualquer
outro, especialmente quando elas versam, decidem, interferem e ajustam destinos para as
comunidades tradicionais, outros povos; objeto historicamente privilegiado da
antropologia.

Para abordar as sobreposições é necessário ter em conta noções de território.


Nesta pesquisa não adotei uma ou outra definição integralmente, senão imagens que
fazem do território o que são de conteúdo e de porção política ― portanto de alguém, de
algum grupo ― de uma área necessariamente delimitada por critérios próprios: se uma

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comunidade, serão os seus critérios, se uma instituição, os critérios serão os dela, ainda
que se baseie naqueles primeiros. Essa opção em estipular um mínimo para se ter em
conta o que é um território ― território implica limites ― me proporcionou, quero crer,
abordar território tanto institucional quanto tradicional; os que as definições mais pesadas
e consubstanciadas não permitiram, ou por carregarem um lugar histórico que não era
necessariamente na regularização fundiária, também localizadas historicamente, de terras
indígenas e territórios quilombolas e na ausência de regularização fundiária para outros
territórios tradicionais; ou por serem em análises que quiseram privilegiaram a
regularização fundiária como tema circunscrevendo, assim, suas observações, não raro
com equívocos quanto a etapas e repousando a atenção no que, no assunto da
regularização fundiária, me parecia ser irrelevante e não o lugar do problema. Ademais,
o meu tema leva em conta a regularização fundiária, mas não tem o propósito de cuidar
dela.

A opção por usar material disponível da administração pública e de órgãos e


percorrer neles alguns debates se deve ao interesse em “ouvir” os Estado discutir e decidir.
Os documentos me permitiram caminhar no tempo sem ter uma sistematização em séries
de elementos, mas percorrendo temas, lugares e problemas relacionando comunidades e
sua permanência nos seus territórios ou o seu acesso a eles.

Com a diversidade e possibilidades de o Estado se relacionar com a


sociedade, tenho interesse especial em Mitchell (MITCHELL, 2015) e em Abrams
(ABRAMS, [1977] 1988) e quanto à identificação entre o Estado e o político, e estes
separados no segundo; na arquitetura das ilusões como Estado se apresenta como ideia,
como prática como um conjunto de mecanismos legais e administrativos encobrindo
mecanismos de controle para além dos que já o são as leis e a administração e,
principalmente, na distinção entre Estado, governo e administração em que possam, em
maior ou menor grau, serem entre os dois autores uma decomposição do Estado. Eles
preocupados com a identificação de objetos de análise e, nesta Tese, como formas de
aproximação da sociedade, no caso, no tema das sobreposições entre territórios
tradicionais e unidades de conservação. Abrams recomenda que o estudo do Estado deve
se concentrar nos sentidos onde o Estado não existe em lugar de onde existam como forma
de desmascarar o Estado do Bem-Estar (ABRAMS, [1977] 1988, p. 98; ABRAMS, et al.,
2015, p. 63). Em acordo com Abrams, no entanto, para a análise que esta Tese se propõe
― implicações possíveis das situações de sobreposição e o que elas dizem das

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comunidades e, também, do Estado em sua atuação ― é imprescindível que vejamos onde
o Estado “fala”, onde decide e onde é reticente por conveniência ou inércia. Não se está
buscando, em contrário dos esforços dos autores, uma materialidade do Estado, senão os
seus efeitos de presença, pois o material privilegiado nesta pesquisa é a atuação do Estado
e o comportamento do Estado com o objetivo de ver como as comunidades são vistas e
tratadas por ele. As falas do Estado estão nas leis, nos documentos técnicos e em
expressões e nomes particulares. O Estado, ao falar, profere discursos que se conectam a
outros discursos (FOUCAULT, 2012, pp. 7-9). Os sentido se vão dando nas conexões
entre discursos acerca de temas sem, no entanto, que se formem “frases”. Uma
consequência é a dificuldade em se ter ou cobrar coerência entre discursos do Estado.

A organização desta Tese está em sete capítulos, sendo o último deles


conclusivo.

O capítulo 1 aborda as noções de território e espaço que têm nos chegado


pelas mãos dos fundadores da geografia humana. Diria que “devolvido”, talvez, pois ao
lê-los nos deparamos com a profusão dos seus exemplos concretos retirados de fontes
secundárias: as etnografias e os estudos etnológicos. Os territórios implicam limites e
estes podem ser estabelecidos pelas comunidades, pelas instituições públicas ou por
ambos, é a posição colocada neste capítulo quanto aos territórios. A separação entre
Estado e sociedade está internalizada ao próprio Estado, segundo Mitchell (MITCHELL,
2015), a vejo como o lugar de contato entre a administração pública, onde as leis são
aplicadas, e a sociedade, no caso, as comunidades. Esse contato ― reuniões, oficinas,
audiências, Consultas, etc. ― gera aprendizado mútuo ou amplia a percepção do estado
por onde as comunidades se movem e a percepção das comunidade em ver o Estado
“funcionando”. Se eu estiver certa quanto ao que se refere, e pode ser interpretado como
a linha divisória internalizada de Mitchell, é se constitui em uma via de mão dupla, é tanto
uma dominação quanto um caminho para entrar no centro do Estado.

O capítulo 2 aborda a noção de território implicada à ideia de limites e traz


exemplos de como o Estado institucionaliza os territórios em seus próprios termos. Para
fornecer exemplos para pensar junto com o leitor, repasso algumas políticas públicas e
instituições nas quais trabalhei e procuro extrais dessas experiências correlações com
decisões e visões institucionais e minhas observações sobre elas. Destaque é dado às
Câmaras de Conciliação e Arbitragem Federal ― CCAF da Advocacia Geral da União
― AGU, onde tive a chance de acompanhar, como servidora do Instituto Nacional de

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Colonização e Reforma Agrária ― Incra, alguns casos de sobreposições entre territórios
quilombolas, unidades de conservação, áreas de mineração e áreas militares colocados
para a decisão ou arbitragem federal. Gostaria de remarcar que não são comuns casos de
sobreposição entre territórios tradicionais, ao passo que as unidades de conservação quase
que se amontoam, razão pela escolha de Paraty como um laboratório para tratar do tema.
Outro destaque dado é para a história da constituição da Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, instituída pelo
Decreto nº 6.040, de 2007, um instrumento importante principalmente para comunidades
tradicionais não indígenas ou quilombolas. Processo que tive a chance de acompanhar e
de participar e que, no atual momento da gestão política brasileira. A finalidade do
capítulo 2, depois de ter indicado no capítulo anterior que território implica limites, é a
de diferenciar territórios tradicionais de institucionais. Os primeiros aqueles das próprias
comunidades, sejam terrestres ou aquáticos, e os segundos referindo-se às terras
indígenas, aos territórios quilombolas, às unidades de conservação e a outras formas de
“territorialização de políticas públicas”. Essa distinção se faz necessária para
compreender o que estará em sobreposição nessa circunstância.

Uma breve retrospectiva das ideias em torno do que vieram a ser, depois, as
áreas protegidas e a forte influência das organizações ambientais internacionais “de
centro” ― como mobilizadora dos debates e com eles dos entendimentos ― tem lugar no
capítulo 3 como um preâmbulo à elaboração da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, ou
a “Lei do SNUC”. Na sequência analiso o Projeto de Lei n° 2.892/1992 em seus oito anos
de tramitação no Congresso Nacional antes de se tornar a Lei nº 9.985, de 18 de julho de
2000 que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC.
Do processo físico, acessado por meio digital disponibilizado pela Câmara do Deputados,
listo e comento as possíveis unidades de conservação que tinham em conta a presença de
comunidades tradicionais e que não permaneceram ou nas discussões ou na versão final
daquela Lei. Sem muita melancolia quanto ao que poderia ter sido e não se deu, pois esta
Tese, em diversas passagens quer pelas minhas observações quer, principalmente, pelas
observações das próprias comunidades que se relacionam com o órgão gestor das
unidades de conservação, denunciam a visão ambientalista restritiva que lhes recobre os
territórios, a autodeterminação e autonomia. Este capítulo encera com observações acerca
da governança como, talvez, uma forma do envolvimento da sociedade civil, o que é
inerente à governança e, talvez, mais um espaço do contato entre comunidade e

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administração pública onde se possa ter a dominação carismática weberiana, por um lado
e, por outro, uma crescente organização das comunidades em processos internos de
legitimação, no que se fortalecem para dialogar com o Estado.

No capítulo 4, intitulado “Paraty” tomo fragmentos nas histórias de Paraty,


para percorrer um espaço de tempo grande, o que não confere uma linearidade ou
encadeamento, senão uma ordem cronológica de eventos nem sempre conectados, com a
finalidade de falar um pouco das histórias acerca de Paraty. O fio condutor são as imagens
de territórios pontual e vetorial, desde a concessão de sesmarias aos caminhos e rotas em
Paraty, desde as trilhas dos indígenas até à instalação da rodovia BR-101 naquele trecho
em que é conhecida como Rio-Santos. O objetivo do capítulo 4 é o de introduzir, por
analogia, a ideia de oportunidade. Trata-se de uma ação empreendida pela administração
pública em nome do Estado, e que, uma vez praticada resolve tantas outras ações ou
pautas irresolutas; ou que, por causa dessas outras ações e pautas, possui mais chances de
acontecer. A relação “entre” ações e a sinergia entre elas é o que marca diferença no que
pudesse ser interpretado como uma versão da “fortuna” em Maquiavel.

Intitulado “Sobreposições em Paraty”, o capítulo 5 analisa cada um dos


territórios em Paraty para abordar as sobreposições. São territórios tradicionais, territórios
institucionais e territórios englobantes constituídos em períodos históricos e em
circunstâncias administrativas distintas. Para abordá-los tomei neles uma questão, um
problema para os descrever e percorrer o território de Paraty tanto o quanto as questões
conflitivas em que o Estado se faz presente para dirimir conflitos ou por meio de agentes
administrativos na implementação de políticas públicas. A dispersão de informações
diversas, sobre processos de licenciamento tramitados em instâncias incompatíveis, sobre
direitos de se ter acesso ao caminho por mar para o território, informações sobre vendas,
por terceiros, escusas de áreas territoriais; e outras informações de que o estado dispõe,
“retém” e surge as recompondo e as disponibilizando são interprestadas á luz de Abrams,
bem como as situações de reivindicações de parte das comunidades e as informações de
impossibilidade prestadas pelos agentes administrativos nas recategorizações de unidades
de conservação em que a ação de um lado parece não ser endereçada ao outro, e vice-
versa, sendo que ambos endereçam-na ao Estado, no que Abrams chamou de “ilusão” e
onde está contida a mensagem de dominação do Estado (ABRAMS, et al., 2015, p. 63;
ABRAMS, [1977] 1988, p. 83 e 98). Este capítulo 5 se serviu de planos de manejos, de
documentos de Consulta a recategorizações, de processos de Ação Civil Pública, e

17
documentos de licenciamento ambiental e de notícias em jornal, principalmente, onde há,
também, a manifestação escrita das comunidades envolvidas nos temas e reclamantes.

As comunidade participam do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina


porque há sobreposição com os seus territórios. O Conselho está desativado na atualidade
e foram analisadas as atas de reuniões realizadas, bem como as manifestações do
Conselho sobre o processo de licenciamento ambiental, e de sua condução, da Usina
Termonuclear de Angra 3, o Pré-sal e outros empreendimentos. Também, atas de reuniões
promovidas pelas comunidades e documentos de instituições parceiras das comunidades
compõem o material de análise no capítulo 6 no intuito de alargar o olhar para a
participação das comunidades para outras agendas com o tema dos territórios, que
carregam a sobreposição como uma marca que, por um lado, pode ser vista como
ampliando a sua circulação, pois podem discutir o licenciamento ambiental de
empreendimentos, por exemplo, por duas vias: a de que afetam os seus territórios e a das
mitigações e compensações ambientais para as unidades de conservação que venham a
afetar ou a beneficiar as comunidades. O Estado possui um vocabulário socioambiental
nas expressões “usos de recursos naturais”, “usos sustentáveis” e outras que são vazios
em termos identitários e não remetem necessariamente à ideia de território. O objetivo do
capítulo é o de mostrar as relação entre identidade e território para propor que não sejam
separados, que território seja entendido como elemento de identidade e não algo com o
que as comunidades se relacionam e externo a elas, a fim de não se deixar espaço para a
discursividade do Estado se intersticiar nessa separação e afastar direitos, posto que a
identidade é a garantia do direito ao acesso ao território (ARRUTI, 2006, p. 52; ARRUTI,
1996, p. 129).

Na conclusão busco recolher imagens de territórios geradas ao longo dos


capítulos anteriores sob o aspecto da sobreposição para reunir o que considero serem
algumas das implicações da situação de sobreposição, dentre a principal delas a
construção discursiva da desterritorialização das comunidades por parte do Estado, como
incompatíveis na ocupação dos seus territórios em situação de sobreposição e, também,
uma desterritorialização na prática das regulamentações e restrições na forma como
vivem as comunidades nesses mesmos territórios. Outras implicações das sobreposições
são: o desarranjo no contexto da manutenção da biodiversidade ao serem colocadas regras
nos usos dos territórios; a sobreposição se tornando o assunto prioritário em detrimento
do território em si, quando o conflito é entre órgãos de governo nas suas atribuições

18
precípuas e a prioridade no tratamento do tema será, portanto, o conflito e não os usos; as
situações de sobreposição possibilita às comunidades verem como o Estado se comporta
em de outras ocasiões. além dos temas da regularização fundiária, da saúde, da educação,
etc.

Ao final, há quatro anexos com informações suplementares, caso o leitor as


queira consultar. Peço desculpas, de antemão, pela não uniformidade dos mapas e figuras
constantes neste texto, pois em sua maioria forma tomados das fontes disponíveis e
contaram com intervenções minhas, informadas quando isso ocorrer.

19
1. Território: entre antropologia e geografia

Este capítulo traz uma ideia simples: território implica limites. O que obriga
a me alongar um pouco para indicar de quais limites se está falando ao mesmo tempo em
que são apresentadas algumas concepções de território. O interesse na geografia se deve
à perspectiva daquela disciplina em ter como objeto privilegiado o espaço e a sua
distinção em território. A escolha em trazer autores como Raffestin e Yi-Fu Tuan, tem
razão no esforço conspícuo desses autores em enxergar a presença humana nos espaços,
o que fizeram em período de constituição da geografia cultural, cuja leitura pode-nos
balizar por onde queremos, ou não, seguir com a noção de território.

1.1. Territórios e conjuntos de territórios tradicionais

Na antropologia a noção de território não é nova, diz João Pacheco de


Oliveira, lembrando o que em 1877 Morgan a utilizava como critério para distinguir
formas de governos ― “societas” baseada em grupo de parentesco e “civitas” com base
no território e na propriedade ―, retomada aí a noção de território com a mesma função
por Evans-Pritchard em 1940, ao classificar os sistemas políticos africanos; também, os
estudos de Bohanan (1967), aponta Oliveira, trazem os sistemas de linhagem, as classes
de idades, os sistemas rituais, entre outros princípios organizadores de uma sociedade e
que, de acordo com João Pacheco de Oliveira, “estão localizados em um ponto específico
da estrutura social [...], sem que as ações sociais possuam qualquer conexão mais
significativa com alguma base territorial fixa”; e há outras sociedades que “podem tomar
o território como um fator regulador das relações entre os seus membros” (OLIVEIRA,
1999, p. 19).

São sistemas, portanto, que se projetam em dada área e não em outra; sistemas
que envolvem classificações diversas quando classificar implica hierarquizar coisas no
mundo (DURKHEIM & MAUSS, [1903] 1990) e junto a elas pessoas e grupos de pessoas
são classificados. Grupos que se relacionam sob diversas formas, as quais assumem
expressões políticas derivadas da hierarquização, cujas tensões e distensões podem ser
lidas tanto internas a uma mesma comunidade quanto as diferenciando de seus vizinhos.
Refiro-me à política “entre” os homens, como a entende Hannah Arendt (ARENDT,
1998), que pode ser interpretada como uma negociação entre pessoas movendo interesses

20
além da sua individualidade, nos inter-espaços dos indivíduos. Essa perspectiva de Arendt
é interessante porque parte do aspecto relacional, ao contrário da ideia de sujeitos
políticos, e o são, que na perspectiva de Arendt podemos vê-los ampliados na sua
interrelação. A ênfase nesta Tese nas formas de constituição dos territórios institucionais
por parte do Estado faz o caminho inverso ao do geógrafo Claude Raffestin
(RAFFESTIN, [1980] 1993) na forma mais recorrente como aquele autor apreende o
território, sendo um plano em que as relações tecidas são permeadas por poder e passíveis
de serem, assim, analisadas.

As diferenças entre comunidades, em aspecto de projeção territorial de


comunidades distintas ou que guardavam alguma semelhança, foi estudada por Franz
Boas. Boas, de formação em física e em geografia, defendeu uma tese acerca da cor da
água ampliando o método para o ponto de vista do observador. Preocupado com a
dinâmica cultural e tomando a cultura como um conjunto de costumes sociais por um
grupo ou comunidade, cujos produtos das suas atividades seriam determinados por esses
mesmos costumes, Boas viajou pelo Nordeste do Canadá em 1883 e, em 1885,
demonstrou proposições deterministas na publicação resultante da pesquisa nas
considerações acerca das relações entre terra e povo, embora tenha sido uma viagem que
o desanimou desse seu posicionamento, na leitura que faz o geógrafo Jörn Seemann
(SEEMANN, 2005, pp. 12-14), pois observou que nos solos mais férteis não se dava a
agricultura, em águas navegáveis não se tinha a navegação; para concluir que as
condições ambientais poderiam estimular as atividades culturais, mas não são a sua força
criativa. Uma “fórmula”, portanto, não poderia se aplicar de maneira geral a todos os
casos e as formas antecedentes das comunidades, sua história, deveriam ser conhecidas.
Boas elaborou o conceito de área cultural como meio para descrever as características
típicas de tribos culturalmente relacionadas, por vezes em áreas contíguas, indicadas em
particularismos históricos como forma de não se generalizarem as culturas.

O que era um dispositivo classificatório ou pedagógico, cunhado em paralelo


à geografia, serviu a esta como ferramenta de ensino e de pesquisa (SEEMANN, 2005, p.
14). Pelas mãos de Alfred Kroeber, discípulo de Boas, e do psicólogo Clark Wissler, a
noção de áreas culturais, como agrupamento geográfico de unidades sociais culturalmente
similares, ganhou projeção e ampla utilização ao passo que Boas aprovava sua aplicação,
segundo Seemann, “apenas no sentido de analisar as áreas culturais de vários pontos de
vista (cultura material, organização social e crenças)” a fim de fornecer uma visão ampla

21
das condições em que se formaram cada cultura individualmente (SEEMANN, 2005, pp.
15-16). Clifford Geertz trata de forma diferente essa apropriação ou consecução das ideias
de Boas tomando a distinção que faz Michel Foucault entre autores e escritores 1; assim,
Raymond Firth seria o melhor malinowskiano de que dispomos, segundo Geertz, e
“Kroeber fez o que Boas apenas prometeu” (GEERTZ, 2002, p. 34), diz Geertz ao falar
do fenômeno da formação de um gênero, e não propriamente de uma “escola, que explora
possibilidades recém-reveladas, conforme analisa Geertz (ibidem).

Trazer Boas não significa qualquer espécie de ponte, nesta Tese, entre a
antropologia e a geografia, senão a finalidade de apontar desdobramentos das áreas
culturais no Brasil e, junto a isso, pudemos ter uma entrevista da leitura cuidadosa do
antropólogo Boas feita pelo geógrafo Seemann quem, aliás, se indaga como seria a
geografia cultural se Boas, e não os seus discípulos, a tivesse influenciado com mais força
(SEEMANN, 2005, p. 17) e de forma mais aprofundada, sendo indicados por Seemann,
a partir da análise da obra de Boas que fez Roger Trindell (1969)2, três tópicos em
contribuição à geografia, especialmente à geografia cultural: a relação do homem com o
meio ambiente na perspectiva antideterminista e contra o “ambientalismo grosseiro”; as
áreas culturais; e a difusão cultural (SEEMANN, 2005, p. 14).

Como desdobramentos do conceito de áreas culturais de Boas apontados por


Seemann, os estudos dedicados à aculturação e às relações raciais, no Brasil, e o mapa de
áreas culturais indígenas de Eduardo Galvão, de 19603, tiveram amparo no conceito de
áreas culturais de Wissler, elaborado a partir de Boas. Também, com base na noção de
áreas culturais, foram propostas doze regiões a dividirem o Brasil, de autoria de Manuel
Diégues Júnior em 1980 (SEEMANN, 2005, p. 16)4.

Ainda, quanto às regionalizações, acrescento a publicação institucional


organizada por Antonio Carlos Diegues e editada pelo Ministério do Meio Ambiente ―
MMA, em 2000, com o título Os Saberes Tradicionais e a Biodiversidade no Brasil,
localiza em macrorregiões as populações praieiras, caiçaras, açorianas, jangadeiras,

1 Geertz se refere a Michel Foucault em “What is an author?, In J. V. Harris (org.), Textual


strategies, Ithaca, New York.
2 A obra que Seemann cita é Roger T. Trindell, “Franz Boas and American Geography”. The
Professional Geographer, v.21, n.5, 1969, pp. 328-332.
3 Seemann se refere a Eduardo Galvão, “Áreas Culturais Indígenas do Brasil – 1900-1959”,
Boletim Museu Paraense Emílio Goeldi, Antropologia n. 8, Belém, 1960.
4 Obra citada por Seemann: Manuel Diégues Júnior, Etnias e Culturas no Brasil, Rio de Janeiro,
Biblioteca do Exército Editora, 1980.

22
caboclas e outras populações não indígenas as Áreas Etnográficas da América do Sul
(DIEGUES, 2000), de Julio Cezar Melatti5, na publicação, Um outro mapeamento que,
embora não traga regiões, mas agrupa povos indígenas por famílias linguísticas, é Mapa
etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes, de Curt Nimuendajú (1883-1945),
publicado de forma acessível ao público em 19816, fruto de trabalhos em campo entre
1905 e 1944 e de informações em fontes secundárias diversas que reúnem alguns grupos
de forma regionalizada quanto às famílias linguísticas (NIMUENDAJÚ, 2017, p. 29;
passim). Frutos de pesquisas, tais mapeamentos constituem material, por sua vez, a tantas
outras pesquisas e aos trabalhos técnico-científicos para a regularização fundiária por
localizarem grupos étnico-sociais de forma relacional e, ou, regionalizada de forma a
indicar, ao menos, a presença histórica de determinado grupo em uma região.

Com base nas áreas etnográficas de Melatti, em dado momento por volta de
2002, o Departamento de Identificação e Delimitação de Terras Indígenas da Fundação
Nacional do Índio ― Funai7, esteve às voltas com a organização da demanda por
regularização fundiária de terras indígenas, tanto as novas quanto os passivos irresolutos,
e tinha nas Áreas Etnográficas sua estratégia de atuação. A proposta, segundo Marco
Paulo Fróes Schettino ― quem esteve à frente daquele departamento à época ―, era a de
sistematização dos dados preliminares à constituição de grupos de trabalhos para os
levantamentos em campo, nas terras indígenas, segundo Schettino (SCHETTINO, 2005,
p. 150). Foram identificadas dezessete áreas etnográficas e observo que tomaram dentre
os critérios, a logística do deslocamento dos grupos de trabalhos, tanto que os rios dão
nome à maior parte das áreas.

As regionalizações não constituem o único ponto de diálogo, passado ou


presente, entre a antropologia e a geografia. Mais recentemente, pela superveniência do
tema dos territórios tradicionais, quer como lugar de reflexão, em si e quanto à aplicação
de políticas públicas, quer como atuação de antropólogos e a reflexão sobre a mesma e
outros temas, como os próprios estudos de identificação e os de licenciamento ambiental,
que levam necessariamente em conta os territórios, dois autores têm sido amplamente
citados: Raffestin e Yi-Fu Tuan, não raro sem ser levado muito em conta que ambos os

5 Mantida em site chamado “Página do Melatti”, em: http://www.juliomelatti.pro.br/index.html.


6 Antes disso, fizera três cópias para o Smithsonian Institution, para o Museu Paraense Emílio
Goeldi e para a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro entre 1943 e 1944.
7 O nome mudou para Coordenação-Geral de Identificação e Delimitação ― CGID, com a mesma
função.

23
autores estavam abrindo campo na sua própria disciplina de modo a reconfigurar
entendimentos acerca do espaço destituído da presença humana, que procuraram
fortemente restituir. Abordar tais autores não significa um diálogo entre disciplinas mas,
antes, no caso da antropologia, a profusão com a que tais autores são indicados, lidos e
citados é sintomática, a meu ver, de uma lacuna quanto ao tema “território”, que não deve
ser cobrada da antropologia, pois trabalhou e trabalha com elementos territoriais ou que
se convertam em territorializações sistemática e recorrentemente sem, no entanto, partir
necessariamente do território como um objeto. Meu interesse em Raffestin e em Yi-Fu
Tuan é quanto ao território e ao espaço, lendo neles como podem, também, serem essas
categorias ou conceitos apreendidos, em que as minhas discordâncias me serviram de
motor e balizas para este trabalho.

1.2. Espaço e território: uma visada na geografia cultural

O espaço e sua organização é o objeto principal de estudo da geografia e


território, em linhas gerais, será o espaço onde o poder incide. Jean Gottmann (1973)
aborda o território como unidade na organização política e que envolve os recursos
naturais e população; Yi Fu Tuan (1977) traz a distinção caudalosa entre espaço e lugar,
em uma escrita interconectada em que as páginas seguintes iluminam e ampliam sentidos,
ou os condensam, nele nos demoraremos um pouco mais não pela leitura feita entre idas
e vindas, mas porque abre campo na geografia humanista e pretendeu uma aproximação
com as Ciências Sociais. Por fim, Claude Raffestin, com Espaço e Poder, abordando
território sob esta perspectiva mais situada na globalização. Do conjunto desses três
pensadores pretendo não travar uma discussão entre eles ou mesmo com eles, mas
introduzir, com eles, aspectos sobre a noção de território, que nos acompanhará daqui
para diante nesta Tese.

Advertindo que sua abordagem de território lida apenas com os conceitos e


com a história ocidentais, o geógrafo francês Jean Gottmann apresenta The significance
of territory, publicado em 1973, nos Estados Unidos. Gottmann indica apreensões
distintas de um território por conhecimentos e interesses diferentes. Assim, o político tem
no território a população e os recursos nele contidos ou, ainda um ponto de honra em
disputas; as características topográficas, as distâncias e as táticas que jogam com o
território e os recursos como suprimentos locais são, para Gottmann, o território dos

24
militares; para o jurista, a delimitação de jurisdição é o que conta; o especialista em direito
internacional, vê o território como o espaço do exercício da soberania e mede a sua
extensão; e para os especialistas interessados em geografia política ― em que Gottmann
informa ser um deles, e campo que quer delinear ― o território aparece como uma noção
espacial material que estabelece vínculos essenciais entre política, pessoas e o cenário
natural. (GOTTMANN, 1973, p. ix). O território do geógrafo é informado por Gottmann
como “a parte do espaço delimitada por linhas de contorno, cuja localização e
características internas devem ser descritas e explicadas” (ibidem). O território como
unidade na organização política do espaço define, diz Gottmann, “ao menos por um
tempo” as relações da comunidade com o seu habitat e, ainda, as relações entre a
comunidade e os seus vizinhos (GOTTMANN, 1973, p. 1), este um aspecto pouco
explorado até aquele momento segundo o autor. Também, em uma “abordagem
puramente analítica, a noção de território se dividiria e se dissolveria em uma infinidade
de conceitos diferentes”, tais como: “localização, recursos naturais, densidade
populacional, padrões de assentamento, modos de vida e assim por diante”
(GOTTMANN, 1973, p. ix).

Em Topofilia, publicado em 1974, Yi Fu Tuan fala que a terra é o corpo


humano em grande escala, termos “fronte” (testa), “costa” e nas medidas se tem:
polegadas, braças, pés, jarda (TUAN, [1974] 1980, p. 50). A jarda é um múltiplo de
palmos; uma jarda é a medida desde a ponta do nariz até o polegar (0,915 m,
aproximadamente), uma braça é o dobro da jarda. Com uma abordagem para além de uma
simples analogia entre a terra e humanos que será construída como experiência por meio
de sentimentos e sensações, em Espaço e lugar, Yi-Fu Tuan busca o humano e, ao mesmo
tempo, humanizar espaço e lugar, lhe sendo necessária a propriedade física do tempo.

O espaço é onde se vive, conforme define Yi-Fu Tuan, e é indicativo de


largueza e de liberdade, o lugar é a segurança, como o lar; e o território aponta para a
ideia de aprisionamento (TUAN, [1977] 1983, pp. 3-5;73). É o espaço “um recurso que
produz riqueza e poder quando adequadamente explorado” e “é mundialmente um
símbolo de prestígio o ‘homem importante’”, ocupar, ter acesso e mais espaço distingue
o distingue, segundo Tuan, do homem menos importante (TUAN, [1977] 1983, p. 66)
(TUAN, [1977] 1983). Os homens compartilham espaços com animais humanos, estes
também têm um sentido de território e de lugar como demonstrados, à época, em estudos
em etologia, indica Yi-Fu Tuan, em que os espaços são demarcados na defesa contra

25
invasores naqueles estudos. Aos espaços, segundo Yi-Fu Tuan, os humanos atribuem
valores e é onde as necessidade biológicas como água, comida, descanso e procriação são
satisfeitas e as pessoas respondem ao espaço e ao lugar de maneiras mais complicadas;
ao passo que, quanto ao lugar, as respostas não são bem conhecidas no reino animal.

Os “dotes humanos” diferenciam homens de animais, dado que ambos


possuem órgãos sensoriais análogos (TUAN, [1977] 1983). O humano, portanto, está
simultaneamente em dois planos: no plano animal e no plano da fantasia e do cálculo para
experienciar e entender o mundo ― que Tuan aponta ser o tema central da obra que
apresenta ― na forma de como as pessoas atribuem significado e organizam o espaço e
o lugar. Os cientistas sociais se sentirão tentados, diz Tuan, “a ver a cultura como fator
explicativo”. A cultura é somente desenvolvida por seres humanos, diz o autor, e ela
“influencia intensamente o comportamento e os valores humanos” (TUAN, [1977] 1983,
pp. 5-6). Observo que, àquela altura da década de 1970, a Antropologia já entendia que
tanto os valores quanto o comportamento são talhados pela cultura; ou, em uma forma
diferente de se expressar, Tuan entendeu uma estrutura mental e viu na cultura variantes;
o que seria pouco provável uma contradição, pois o autor para conseguir delinear “lugar”
é-lhe imprescindível o tempo. O autor leu os trabalhos dos antropólogos Claude Lévi-
Strauss, Evans-Pritchard e Raymond Firth e do linguista Theodor George Strehlow, neste
caso, Aranda Traditions (1947), em uma abordagem afetiva dos povos descritos por eles
ou da sua relação com o tempo. Também, segundo Yi-Fu Tuan, o espaço que se estende
sobre um reticulado de pontos cardeais torna nítida ideia de lugar, porém não transforma
uma determinada localidade geográfica em lugar (TUAN, [1977] 1983, p. 166).

Yi-Fu Tuan delineia a sua forma de lidar com lugares, para o que é necessário
tratar do tempo para entrar e sair da imobilidade das paisagens e nelas inserir o humano
por meio da experiência. Em Espaço e Lugar, de 1977, Yi-Fu Tuan explica que tomou os
conceitos de espaço e de lugar para trabalhar o seu material heterogêneo sob a perspectiva
da experiência humana enquanto “elementos do meio ambiente intimamente
relacionados” (TUAN, [1977] 1983, p. v). O espaço é uma noção na experiência humana
mais abstrata que lugar, segundo o autor. A experiência humana, um aprendizado,
carregaria instintos e o aprendizado se reporta às percepções de espaço pelos seres
humanos desde criança, onde o primeiro espaço experienciado são os pais. Os objetos,
naturais ou feitos pelo Homem, que persistem no tempo como “lugares através do tempo”,
cuja percepção humana destes é afetada pela cultura conferindo-lhes importância geral

26
ou específica; a importância específica mudaria com o tempo e a geral permaneceria
(TUAN, [1977] 1983, p. 181). Os limites das nações-estados nos mapas podem emplacar
no leitor a noção de autossuficiência na soberania dos países como entidades distintas e a
representação de cadeias de montanhas, rios reforçam, segundo Tuan, a “sensação da
nação como lugar” (TUAN, [1977] 1983, p. 197). “Lugar”, um conceito estático ― como
o aponta Yi-Fu Tuan ― é colocado em movimento com o tempo e se fazendo visível
através de inúmeras formas: os lugares como rivalidades e conflitos com outros lugares;
“o poder evocativo da arte, da arquitetura, cerimônias e ritos”. Lugares humanos,
portanto, se tornam muito reais através da dramatização e se tem a identidade de um lugar
na “dramatização das aspirações, necessidades funcionais e vida pessoal dos grupos”
(TUAN, [1977] 1983, p. 197). Para descer ao cotidiano, como em uma escala, e falar de
experiência, na leitura que faço no movimento que faz Yi-Fu Tuan para poder incorporar
o humano na geografia, Tuan traz a rotina entre “pontos”, cadeiras, móveis, etc.; como
exemplos de lugares e estes são o centro para organizar o mundo; “lugar é um mundo de
significado organizado” e “essencialmente um conceito estático” (TUAN, [1977] 1983,
pp. 198-200). O autor relaciona tempo e lugar sob três perspectivas: (a) lugar como tempo
tornado visível ou lugar como lembrança de tempos passados; (b) a afeição por um lugar
como uma função do tempo, pois “leva tempo para se conhecer um lugar” e (c) tempo
como fluxo/movimento, em que “lugar” é uma pausa na corrente temporal (TUAN,
[1977] 1983, p. 198).

Yi-Fu Tuan cita uma passagem dá “triste ocasião quando os norte-americanos


nativos tiveram que ceder terras ao governo de Stevens no território de Washington” e
que um chefe “índio” teria dito:

Houve um tempo em que nossa gente cobria a terra inteira como as


ondas de um mar encapelado cobre a praia coberta de conchas, Mas
há muito esse tempo acabou, como agora as quase esquecidas
grandezas das tribos não me alongarei nem chorarei sobre nossa
prematura decadência nem repreenderei meus irmãos cara pálidas por
terem na apressado. Somos duas raças diferentes. Há muito pouco em
comum entre nós. [...] Cada parte desse território é sagrada para meu
povo. Cada encosta, cada vale, cada planície bosque foi santificado por
alguma lembrança afetuosa ou alguma experiência triste de minha
tribo. Mesmo as pedras que aparecem emudecidas quando
requentadas pelo sol longo da praia silenciosa com grandeza solene
emocionou-se com as lembranças dos acontecimentos passados
ligados à vida do meu povo. O próprio posso sob seus pés responde

27
mais afetuosamente as nossas pegadas do que as suas porque as cinzas
de nossos ancestrais, nossos pés descalços estão conscientes de que o
solo está cheio de vida de nossos parentes. (TUAN, [1977] 1983, p. 172)

O comentário de Yi-Fu Tuan para a passagem acima é que “o sentimento


profundo pela terra não desapareceu; persiste em lugares isolados do convívio da
civilização”; cuja “retórica do sentimento pouco altera ao passar dos anos e pouco difere
de uma cultura para outra” (TUAN, [1977] 1983, p. 172). Cita Raymond Firth sobre os
Maori da Nova Zelândia com profundo respeito pela terra em si mesma, é esta uma
afeição pelo solo ancestral porque não podia estar relacionado apenas com a fertilidade
que o valor imediato ou como fonte de alimento, era a terra onde os antepassados viveram,
lutaram e foram enterrados e, por isso, objeto de sentimento. Ali, um condenado à morte
poderia pedir para ir até a fronteira do território para que pudesse vê-lo uma vez mais
antes que morresse; ou, ainda, pedir para ir até o rio que estivesse nos limites da sua casa
para beber água em vez derradeira. (TUAN, [1977] 1983, p. 171).

Para corroborar com a abertura do campo da Geografia Humanista, na


Geografia Cultural, é providencial para Tuan a distinção ― separando planos ― entre o
ambiente físico, natural, da geografia, para a cultura atuar nele como elaborações, junções
e disjunções humanas com a natureza e com a cultura. A sensação de espaço dos esquimós
e dos americanos, o que “é uma abordagem válida, mas não leva em conta o problema
dos traços comuns, que transcendem as particularidades culturais e, portanto, refletem a
condição humana” (TUAN, [1977] 1983, p. 6). Igualmente o autor pretende se afastar de
outra disciplina ocupada, segundo ele, que ao observar os “universais, o cientista
comportamental provavelmente se volta para o comportamento análogo ao primata”;
informa o autor que não se desconhece a herança animal dos seres humanos, tampouco
que “a cultura é inevitável” e informa que ela percorrerá em sua obra todos os capítulos
no propósito de ressaltar “questões gerais das aptidões humanas, capacidades e
necessidades, e como a cultura as acentua ou as distorce” (TUAN, [1977] 1983, p. 6).
Para introduzir o tempo de forma integral na construção de lugar ― este como pausa, e
com os objetos que “seguram o tempo”, retêm o tempo, como uma visita a um velho
bairro onde nascemos, na reconstrução do passado, e que não são os objetos pessoais
(TUAN, [1977] 1983, p. 207) ― busca o tempo nas sociedade “pré-letradas” e cita a partir
exemplos em Lévi-Strauss, nas sociedades “frias” no aspecto da abolição do tempo
marcado por acontecimentos históricos a fim da manutenção do equilíbrio da sociedade;

28
os pigmeus no Congo, habitando a floresta úmida e com um sentido primário de tempo
lhes faltando “uma estória da criação do mundo” e em algo no seu ambiente para lembrá-
los do passado imersos em um ambiente, pois “a floresta úmida é imutável”; os aborígenes
australianos teriam registrados na paisagem, em um desfiladeiro, em uma caverna ou
pico façanhas ancestrais e “os acontecimentos que precedem o seu mundo presente” ―
há de se perguntar se não seria estes exemplos de “lugares” a segurar o tempo? ―;
completa Tuan indicando que “apesar disso, sem um registro escrito e um sofisticado
sistema de contagem, o sentido de tempo mão pode ser profundo” (TUAN, [1977] 1983,
p. 209). Toma os Nuer, a partir de Evans-Pritchard, para falar da pouca profundidade do
tempo nas linhagens na passagem em que, remontadas, não recuaria à árvore sob a qual
surgira a humanidade (ibidem). Se, em parte, Tuan dispensa a estrutura, com ela abre mão
da possibilidade de percorrer um espaço vivido junto aos clãs e linhagens Nuer, talvez
porque os sentimentos-experiências, necessários à sua construção de lugares, não
estivessem descritos enquanto tais e não quis imaginá-los ali. Aos povos pré-letrados
faltariam, segundo Tuan, os meios e, também, “a vontade de pensar historicamente”, diz
Tuan e recorre à criança e aos rituais de iniciação, tomados na dupla instituições e mitos,
estes sancionando as primeiras, apontando que os mitos são eternos e o cosmo uma
constante; recorta as sociedades que repousam o tempo nos objetos e nos lugares como
sagrados e os veneram porque associados a figuras de poder e não pela sua antiguidade.

Podemos ler, se quisermos, as jóias da realeza britânica e os braceletes


trobriandeses abordados no seu valor de permanência histórica para a primeira e na
permanência da circulação para a segunda, no sistema de trocas do Kula, com o “au”8, na
análise dessa contraposição dos valores atribuídos que faz Marsahll Sahlins; e antes, nas
análises de Henri Hubert, segundo Marcel Mauss (MAUSS, [1950] 2003), a partir do
desenvolvimento da noção de mana como um fundamento arcaico da magia, que Hubert
procede à descrição das características da noção de tempo na “retalhação da extensão” e,
portanto “de alguns aspectos da noção de espaço” e a partir de onde, indica Mauss, Émile
Durkheim concebeu a ideia de todo (MAUSS, [1950] 2003, pp. 369-370). Uma outra
forma, portanto, de se lidar com o tempo em correlação ao espaço, promovida nesses
autores pela suspeita de terem encontrado uma “provavelmente muito primitiva noção de
causa” (MAUSS, [1950] 2003, p. 370).

8 O Ensaio sobre a Dádiva, de Marcel Mauss, é publicado em 1924.

29
Se eu puder identificar semelhança como que se poder ter de consenso acerca
de “territórios”, indicaria o aspecto da afeição ao lugar, em Tuan no sentido de “lugar”,
por vezes a meio caminho da noção de casa, de uma forma mais pessoal que coletiva,
explicitada em Yi-Fu Tuan como “lar”, o que seria um indício de território na forma como
me parece que as comunidades tradicionais e povos indígenas têm seus próprios
territórios; mas forçoso considerar, assim, aqui, a partir de Tuan que está abrindo espaço
para uma geografia, em conjunto com outros de seu métier, em um espectro largo de
diálogos para ampliar a geografia em temas que levam à disicplina um tanto da psicologia,
das ciências sociais, da filosofia e que tem o ambiente em uma perspectiva que
“contribuiria para a preservação e valorização do ambiente terrestre” e “tendo como
objeto a apreciação da paisagem enquanto ambiente natural e humanizado”, cujo
empreendimento se baseava na “aproximação humanística”, seu objeto não é o território,
mas o sentimento por espaços dentre os quais estão a pátria, o lar, a casa, o espaço e o
lugar, ou autor resvala em territórios (TUAN, [1977] 1983). Quando Yi-Fu Tuan
menciona território, tem principalmente em mente o estado-nação. Ao falar dos
aborígenes australianos, conta que estes consideram território a parte da casa, a
destacando de outra parte coletiva. Menciona que os aborígenes, mesmo sem terem sido
influenciados pelos valores de agricultores que cultivam a terra ― no caso, os agricultores
sedentários, para o autor ― constituem um exemplo de caçadores e coletores com
profundo apego ao “lugar”; e que, mesmo não possuindo regulamentos para a posse da
terra ou, “idéias rígidas sobre limites territoriais”, têm dois tipos de territórios: a
“propriedade” e o “campo”; diz Yi-Fu Tuan.

A propriedade corresponde à “casa tradicionalmente reconhecida” ou, ainda,


“o lugar sonhado de um grupo descendente da linhagem paterna e seus adeptos”; o campo
traz a noção da porção de terra. Segundo Yi-Fu Tuan, a propriedade, ou a casa, é mais
importante para a vida social e cerimonial, na propriedade/casa é onde se pode sentar; já
no campo é onde o grupo pode correr e andar. Yi-Fu Tuan trata desses temas no capítulo
intitulado “Afeição pela Pátria”, e tem no “arragaimento ao solo” um sentimento
crescente e piedoso para com ele que “parece natural aos agricultores sedentários”;
contrapondo-os aos caçadores e coletores nômades com “o seu sentido de posse da terra
mal definido”, de quem se fosse de esperar uma menor afeição pela terra quando, ao
contrário, pode existir nesses povos “um forte sentimento pela mãe-terra” (TUAN, [1977]
1983, p. 173). Acerca dos Lacota das pradarias norte americana têm “o sentimento mais

30
carinhoso pelo seu país”; “imploram à mãe-terra” que faças as coisas crescerem, a água
correr e “que mantenha a terra firme para que possam andar sobre ela”; descrevem as
Black Hills como uma mulher reclinada, dela os seios geradores da vida, e ‘para elas os
Lacota vão como crianças para os braços de sua mãe”. No solo os velhos, mais que os
jovens, se sentam e reclinam “para estarem mais perto de um poder fortalecedor”. Tuan
diz que, talvez, o carinho dos Lacota pela sua terra, ou “país”, possa “estar influenciado
pelo seu próprio passado agrícola ou pelo contato com agricultores” (TUAN, [1977]
1983, p. 173).

Mais do que um ponto de vista, senão “um sentimento complexo e fugaz”, o


território é a condição para a sobrevivência biológica; já na sua face como “recurso” é
assim auferido culturalmente. Yi-Fu Tuan traz como exemplo a China, onde havia apenas
pequenos proprietários contentes em viverem de renda e na ociosidade em lugar de
trabalhar visando o lucro, os investimentos no aumento das suas propriedades; o contrário
se passa nas sociedades ocidentais capitalistas de espírito empresarial muito forte, diz
Tuan, que fazem os espaços parecerem ser sempre insuficientes e fizeram com que “os
apetites biológicos logo atingisse o limite natural” e onde o “anseio ultrabiológico ― que
rapidamente assume a forma deturpada da cobiça ― é potencialmente ilimitado” diz Tuan
(TUAN, [1977] 1983, pp. 65-66). Para um ego agressivo, são necessários espaço e poder
insaciáveis sobre o dinheiro sobre o território.

O espaço, uma necessidade biológica de todos os animais, é também para os


seres humanos uma necessidade psicológica, um requisito social e mesmo um atributo
espiritual (TUAN, [1977] 1983, p. 66). “Espaciosidade” tem significados no Velho
Testamento, no Êxodo (3, 8, 24 e 34) ligados à terra “boa e grande onde corre leite e mel”,
em referência ao povo hebreu preocupado com o tamanho da terra prometida e sem
condições fazê-la maior por meio de armas, haveria providência divina para expulsar
nações invasoras e aumentar fronteiras. Esta é uma propriedade física da palavra
“espaciosidade”; sua propriedade espiritual está relacionada à elevação e à grandiosidade
espiritual do homem conhecedor da Torá (Salmo 119), conotando salvação e liberação;
ainda, significando “escapar do perigo” (Salmo 18 e 19), com conotação psicológica
(TUAN, [1977] 1983, pp. 66-67). Espaciosidade está associada à liberdade, implica
espaço, é estar livre em significados amplos para atuar. O espaço fechado humanizado é
lugar, é o centro calmo com valores estabelecidos; e os seres humanos necessitam de
espaço e lugar. Espaço e espaciosidade têm diferentes significados nas várias culturas, e

31
adverte Tuan: “do lado negativo, espaço e liberdade são uma ameaça” (TUAN, [1977]
1983, pp. 59, 61).

O ego coletivo de uma nação tem reivindicado mais espaço vital às


expensas dos vizinhos mais fracos; uma vez que uma nação tem êxito
na conquista de territórios, pode ser que não veja nenhum
impedimento importante para não chegar quase a dominar o mundo.
Tanto para a nação agressiva como para o indivíduo agressivo, o
contentamento que acompanha a sensação de espaciosidade é uma
miragem que desaparece à medida que se adquire mais espaço. (TUAN,
[1977] 1983, p. 66)

Yi-Fu Tuan é nascido na China, em 1930, e lecionou nos Estados Unidos. O


marco em que lemos Yi-Fu Tuan é o de um geógrafo buscando repensar e alargar o campo
da Geografia. Nas primeiras páginas, Yi-Fu Tuan evoca “a seriedade em nossa
preocupação com a natureza e qualidade do meio ambiente humano” e exorta os
geógrafos a não continuarem apenas estudando ratos e lobos para inferir o comportamento
humano, para, em lugar disso, medir e mapear espaço e lugar, adquirir leis especiais e
inventários de recursos, que são, segundo o autor, abordagens importantes, “porém
precisam ser complementadas por dados experimentais que precisamos coletar e
interpretar com fidedignidade, porque nós mesmos somos humanos” (TUAN, [1977]
1983, p. 5). Podemos discordar de passagens, certamente, mas é necessário que o leiamos
nesse seu espetáculo de possibilidades de aproximação com as Ciências Sociais em plena
época em que estavam sendo gestadas as ideias e as políticas no cenário internacional
para o meio ambiente, como se verá no capítulo 3 desta Tese, com relação à áreas
protegida no Brasil, e que não foram as disciplinas da Geografia ou das Ciências Sociais
a capitanear esse processo.

O ambiente em que Yi-Fu Tuan publicou Topofilia: um estudo da percepção,


atitudes e valores do meio ambiente, em 1974 e, depois Espaço e lugar, em 1977, é
assinalado pelo geógrafo econômico James Parsons como o clima de mudança em que se
encontrava a geografia, em 19699, conforme conta Werther Holzer (HOLZER, 2008), em
que “os jovens, naquele momento, não estavam interessados em uma geografia
operacional e não acreditavam em leis mecanicistas ou em modelos de mundo”, estavam
interessados “pelos valores humanos, a estética e um novo estilo de vida”; muito em

9 Werther Holzer (HOLZER, 2008) cita James Parsons em: Toward a more humane geography.
Economic Geography; nº 45 (3): Guest Editorial, 1969.

32
função do contexto do movimento hippie, do questionamento estudantil aos padrões
culturais e políticos vigentes. Era preciso que a geografia fosse ao encontro de “valores
morais” e da “subjetividade humana” eliminados da Geografia pelo cientificismo e o
economicismo que a dominavam (HOLZER, 2008, p. 146). O estudo das paisagens,
segundo Holzer, conceito síntese da geografia e que deveria, na sugestão de Carl Sauer10,
desde 1925, “iniciar-se com o estabelecimento de um sistema crítico delimitado pela
fenomenologia da paisagem como método de estudo da relação entre o homem e o
ambiente por ele formatado e transformado em habitat, em paisagem cultural” (HOLZER,
2008, p. 137) Tais ideias se difundiram pelos Estados Unidos, onde Sauer teve longo
período de docência, e também, pelo exterior, resultando na criação de diversos cursos de
geografia cultural, estes, por meio “trabalho de campo e de relatos de não-geógrafos
procuravam fazer uma geografia que captasse ‘os significados e cores do variado cenário
terrestre’” (HOLZER, 2008, p. 137).

Claude Raffestin, geógrafo francês, em Por uma Geografia do poder,


publicado em 1980, aponta que o espaço é a matéria do território, este permeado por
relações de poder exercido por pessoas ou por grupos.

Raffestin, ao apontar o espaço como um “dado que antecede à intervenção


humana, e seria excessivo dizer que ele é dominado por esta ou aquela noção”; sendo este
um “espaço real” (RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 48), é um dado “como, se fosse uma
matéria-prima” e “preexiste a qualquer ação (RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 144).
Promovida epistemologicamente pelo autor, assim, uma assepsia do espaço em sua
concepção para acrescentar a ele dois planos, que diz Raffestin serem “duas faces do
espaço”: o “plano da expressão”, esta “constituída por superfícies, distâncias e
propriedades”, como as leio, um instrumental da geografia na apreensão do espaço pelas
características da área; e outro é o “plano do conteúdo, constituído pelas superfícies, pelas
distâncias e propriedades reorganizadas, que têm seu significado dado pelos atores
sociais” (RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 48). Desse esses dois planos, segundo Raffestin,
emergem, “em estreita relação com o espaço real” e no entremeio dos planos “um ’espaço
abstrato’ simbólico, ligado à ação das organizações” e “o espaço relacional ‘inventado’

10 Carl Ortwin Sauer, The Morphology of landscape; In: LEIGHLY, J. (ed.). Land and Life – a
selection from the writtings of Carl Ortwin Sauer. Berkeley, University of California Press, 1983, pp. 315-
350, citado por Werther Holzer (HOLZER, 2008).

33
pelos homens e cuja permanência se inscreve em escalas de tempo diferentes do espaço
real ´dado´” (RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 48).

A partir daí, o autor seguirá com o mesmo método para outra propriedade da
física além do espaço, que é o tempo: tempo real, dos astrônomos que conseguiram tempo
absoluto, que é um tempo “dado” do movimento da Terra em torno do Sol; e o tempo
“inventado”, é o tempo “dos atores sociais que, embora contido no primeiro, não deixa
de ser distinto” (RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 49). O território, em Raffestin, é posterior
ao espaço nos desenhos de curvas que relacionam poder e comunicação, poder e religião,
poder e língua e outros eixos em área dada delimitada, um território; antes um espaço
sobre o qual, cita Lefebrve no De l’État; Les contradictions de l’ Êtat moderne (1978),
se constroem rodovias, canais na “produção de um espaço nacional” (RAFFESTIN,
[1980] 1993, pp. 143-144).

Em uma apreensão do território onde se projetam relações de trabalho, e com


elas, relações de poder e de capital ― controles ― o “o espaço é abstratamente decifrado
como um suporte”. Em multinacionais norte-americanas, aponta Raffestin, instala-se em
uma região para depois trocá-la por outra na instabilidade do assento econômico e, com
isso, na instabilidade de empregos. Assim, aborda o que chama de economia nômade, em
que não há a territorialização da unidade de produção ao ser localizada na exploração das
vantagens que são temporárias; mas a população empregada por esse tipo de economia é
“em contrapartida, territorializada, o que tanto mais se afirma quanto menos assume
funções importantes”, cujas estratégias são difusas no propósito da população empregada
obter “como compensação para o seu trabalho, salários elevados em postos estáveis”. O
conflito estará entre a economia nômade e uma população territorializante e no seu
aspecto desfavorável à mobilidade, com expressões em níveis máximos, diz o autor, nas
greves e ocupações das fábricas norte-americanas migradas para Bruxelas, Amsterdã,
Luxemburgo e outros locais ao norte de Genebra onde primeiro se instalaram entre 1955
e 1975. O poder de uma empresa está na combinação de códigos como pares de opostos
e na sua manipulação: territorialização/desterritorialização, estabilidade/instabilidade,
espaço concreto/espaço abstrato; uma territorialidade abstrata e instável das empresas
multinacionais e a uma territorialidade concreta e estável da população. Diz Raffestin que
o conflito é “inevitável e sobretudo desigual, uma vez que a empresa, manipulando a
repartição de fluxos de energia simbólica e de informação, não se expõe muito à
resistência da população ativa”. Podemos ver que Raffestin não traz os meios de produção

34
como a assimetria do poder e podemos, ainda, farejar o Leviatã na distribuição desigual
de poderes tanto para satisfazer a sede humana de poder quanto para que permaneçam
onde estão, naquela obra os súditos diante do Estado a quem outorgaram a representação;
em Raffestin, a promotora da assimetria, na manipulação de códigos conflitantes é a
empresa, cujo resultado é a confrontação mais forte ao Estado que à empresa
(RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 95) O poder não é englobante, mas vem de toda parte
segundo Raffestin (RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 52).

Rogério Haesbaert, geógrafo na geografia humana, tem em conta o processo


migratório de gaúchos para o Sul da Bahia, cena em que elabora as noções de
territorialização e desterritorialização no seu doutorado em 1997, para abordar processos
de desterritorialização em O mito da desterritorialização, junto às noções da compressão
do espaço-tempo em que vemos na noção de “desencaixe” não apenas Antony Giddens
e, com relação a Giddens, podemos ler em Haesbaert uma analogia entre os setores de
estilos de vida com a multiterritorialidade em Haesbaert. É necessário, segundo o autor,
que se tenha abordagens multidimensionais que levam a ver o território como produto de
um espaço híbrido “entre sociedade e natureza, entre política, economia é cultura entre
materialidade ‘idealidade’” (HAESBAERT, 2006, p. 79). Assim define o espaço
geográfico: um híbrido, onde...

...o território pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas


relações de poder, do poder mais material das relações econômico-
políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais
estritamente cultural (HAESBAERT, 2006, p. 79).

Esse seria o território- rede, ao passo que as delimitações territoriais ― tanto


unidades de conservação quanto territórios tradicionais ―, das quais me ocupo nesta
Tese, estariam, se vistas por Haesbaert, estariam associadas ao território-zona, fixos ou
idealmente fixados; e, no que toca às áreas protegidas, Haesbaert diz que algumas áreas
do planeta foram relegadas à reclusão justamente por sua condição de áreas protegidas,
cuja reclusão provoca, segundo ele, “a reprodução de territórios que são uma espécie de
clausura ao contrário”, pois muitas vezes são vedadas “a intervenção e a mobilidade
humana no seu interior” (HAESBAERT, 2006, p. 55). Os territórios-zona admitem menos
as sobreposições que os territórios-redes, estes descontínuos e articulados entre si
segundo Haesbaert (HAESBAERT, 2006, p. 79). O que se verá, nessa pesquisa, é que são
exatamente os territórios-zona que estão em relação de sobreposição, se os entendermos
35
como os territórios das unidades de conservação e os territórios das comunidades. Há a
ideia de que territórios-redes ― principalmente pela sua sucessão na percepção histórica
dos territórios fixos nos estados-nação e, depois, na sociedade globalizada ― destruiriam
e pulverizariam os territórios-zonas, ou ao menos a sua noção, ideia de que Haesbaert não
partilha e que, como vemos e presenciamos, existe a concomitância das apropriações
reticulares de territórios com aquela de áreas contínuas e fixas. Os territórios são, também,
agenciados, segundo Haesbaert. Os agenciamentos do território, que têm como
característica central a territorialidade humana― esta relacionada à identidade
(HAESBAERT, 2006, p. 50) ― se dão nos movimentos concomitantes de
desterritorialização e a territorialização (HAESBAERT, 2006, pp. 122-123).

O meu interesse em trazer as acepções sobre território e um pouco do universo


das discussões e intentos em que foram é o de apontar as poucas possibilidade pra uma
definição estrita para “território” porque ele é produto, como colocou Raffestin, tanto a
ser consumido quanto produzido, a partir do espaço, por técnicas, por paradigmas
históricos; possui tecidos diversos em que se identificam várias relações de poder
(RAFFESTIN, [1980] 1993, pp. 7-8, 143, 146, 151) e, no caso, é do poder projetado nas
relações de trabalho que vão ter sua imagem em um plano que, por sua vez, terá de ser
delimitado para se ter em conta seus elementos de análise ― históricos, espaciais, coisas
pessoas, relações ―; ou, o contrário, de dado plano delimitado se identifica tais
elementos. Yi-Fu Tuan mostra que ignora territórios, talvez, porque mais relacionado à
fixidez de poder do Estado no seio da Geografia e em momento que o autor buscava
ampliá-la ao humanizá-la, partiu do espaço para o lugar na apreensão humana
experienciada por meio sensorial e sentimental, junto a um apelo à humanidade na sua
conduta. Gottmann ressalta que para cada intenção em capacidades técnicas se terá um
território em vista, assim são os diferentes territórios do jurista, do geógrafo, do
economista e de outros. O autor ressalta a importância da confrontação com os vizinhos
na constituição e cognição de um território (GOTTMANN, 1973, p. 1). Haesbaert
(HAESBAERT, 2006) quer destrinchar territorialização e desterritorialização, não apenas
pelos prefixos ao radical “território”, mas ao próprio sentido do movimento que o autor
identifica inerente aos territórios na globalização da sociedade. Há de se levar em conta,
então, para onde se olha ao se ocupar de lidar com “território” ou quando mais esta
modalidade espacial sempre está presente quando se lidar com o espaço.

36
Os autores geógrafos abordados, da geografia humanista ou política, olharam
para vários lugares no espaço e no tempo, há neles uma profusão de exemplos retirados
das etnografias ou das pesquisas em antropologia e em linguística, que aqui me reportei
a algumas daquelas passagens. O que nos leva a indagar o fato de não existir ― aos
moldes de Gottmann: um para cada capacidade técnica investigativa ― um “território”
para os antropólogos; o que é perfeito, pois significa a consideração da percepção das
comunidades que vivem nos territórios ou os têm em vista. Na curta passagem que trouxe
de João Pacheco de Oliveira, está ali explicado – não que fosse a intenção dele, mas vi
resposta a essa questão ali. Há estruturas que podem não se expressar em um território,
mesmo que apenas para essa mesma estrutura; em outros casos, a estrutura está no
território. Os territórios serão tantos os quantos que se queira, se se parte do parentesco,
e se este se projeta em um território, ou ainda se é o aspecto de suporte ou de
intervenção/efeito das relações de parentesco; se se parte dos círculos concêntricos do Ró
Xavante, a partir da meia ferradura que é o formato das suas aldeias e se vão classificando
os ambientes e ainda, depois, há mais Ró, o Cerrado em uma imensidão dali para diante
em que os espíritos contam segredos da mata do Cerrado. Os territórios fundem-se com
a territorialização, abrange as partes de que foram esbulhados, desterritorializados, as
porções interditas e aquelas de usos esporádicos. Em todos os casos, vejo que para se ter
a noção e a imagem de um território é necessário que se faça perguntas para o espaço
dado que território é uma porção destacada deste por dimensão, ou qualidades, ou ambos,
podendo, portanto, serem coincidentes um espaço e o território, eventualmente.

Minha intenção com os territórios é mais tímida quanto ao acervo de


exemplos para se olhar território, aliás, me ocupo da sobreposição entre certos tipos de
territórios, e por isso, tenho que ter “território” em alguma conta para prosseguir. Até
aqui, tenho que território é necessariamente delimitado. E isso é feito de diversas formas
tanto pelas comunidades quanto pelo Estado.

O território pode estar inscrito na atividade e nos caminhos diários de quem


ali vive ou na evitação de um lugar sagrado ou de períodos religiosos reservado a alguns.
Pensando em lugares urbanos, ruas no centro do Rio de Janeiro, eram proibidas às pessoas
pobres, por lei, na intenção da municipalidade em separar uma população cujo critério de
cor não era eficaz e, das praias, lugares escusos no século XIX e começo do XX, serem
retirados os “capoeiras” (NEEDELL, 1993). Na favela do João, no Rio de Janeiro, as
facções do narcotráfico redefiniram uma outra rua como limite entre si, esvaziando a

37
clientela de um projeto de geração de renda para mulheres que eu fiscalizava quando
trabalhava no governo federal, pois as mulheres classificadas em uma facção não
poderiam atravessar para o outro lado. Há, portanto, os territórios dos grupos de pessoas.
E há os territórios que o Poder Executivo indica para a sua atuação. Estes são exemplos
breves que busco trazer em colaboração aos tantos outros para retirar do conjunto duas
característica irredutíveis do território, que são os seus limites e o reconhecimento destes.

Território implica limites, sejam nítidos ou borrados; tais limites são


reconhecidos por aqueles que vivem no território, por aqueles que foram expulsos do
território e por aqueles que o reivindicam, reconhecidos pelos seus vizinhos, ainda que
não concordem. Os limites e o seu reconhecimento vão se dando nas dinâmicas ao longo
do tempo, localmente. A diferença quando é o Estado quem trata do território, é a de que
limite e reconhecimento se dão em um ato, ao mesmo tempo. Mesmo sendo inerente ao
ato administrativo os processos locais e demandas dos grupos e da sociedade e o processo
administrativo, que levam tempo, em um ato administrativo temos limite e
reconhecimento. A necessidade de expressar um território em um mapa que decorre de
um memorial descritivo é a do Estado, para demonstrar o cumprimento da política pública
que desenhou para si assumindo a responsabilidade por ela. Uma vez dada público a
delimitação final de um território, outras políticas poderão lidar com aquele espaço
diferenciado e planejar suas demandas e metas. E o que reconhece? O conteúdo. Os
territórios são para o Estado espaços que indicam onde se deve dar a sua intervenção, e
como é diferenciada nas políticas diversas sob a responsabilidade da isonomia, no
desenvolvimento nacional e redução das desigualdades regionais, na equidade social e na
manutenção do ambiente saudável, que são objetivos e obrigações, qualifica
diferentemente os territórios para distribuir os tipos de intervenções. Portanto,
“território”, sozinho, nos dá uma ideia dos limites reconhecidos de algo, o seu conteúdo
vem por descrições ou binômios.

Terras Indígenas, Territórios Quilombolas, outros territórios de outras


comunidades tradicionais e Áreas Protegidas são os territórios nessa Tese. Escolhi o
enfoque dos territórios principalmente na vertente do Estado, no reconhecimento dos
territórios tradicionais pré-existentes à ação do Estado e na criação de áreas protegidas,
para evidenciar algumas das implicações das sobreposições entre territórios. Terras
Indígenas e Territórios Quilombolas têm previsão legal, na Constituição Federal com
estes nomes, territórios de outras comunidades tradicionais não, embora sejam

38
enxergadas nos artigos acerca de cultura, do meio ambiente, nos direitos sociais de que
decorrem leis e norma infralegais para elas. O reconhecimento, não apenas dos territórios,
como das próprias identidades, por parte do Estado é decorrência das lutas históricas dos
próprios grupos étnicos sociais; Estado não presenteia. As lutas continuam pelo
reconhecimento de comunidades e povos e de seus territórios que ainda não acessaram o
direito disponibilizado. Nos últimos dez anos, pelo menos, as lutas e mobilizações se têm
concentrado, ainda, na manutenção desses direitos tanto em face aos grupos econômicos
privados interessados na disponibilidade de terras quanto ao próprio governo na sua
demora em reconhecer os territórios.

O dispositivo constitucional criou um canal de comunicação, de junção, entre


o direito disponibilizado e os sujeitos de direito, em que o nome dos sujeitos carregam
junto o seu direito. Os nomes são “povos indígenas” e “remanescentes das comunidades
dos quilombos” na Constituição Federal, respectivamente no artigo nº 231 e no Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias ― ADCT nº 68. Os dois grupos diferentes são
nominados pelo Estado e deverão manifestar sua autoidentificação por meio desses
nomes para acessarem os seus direitos. Há, nisso, um mecanismo único de junção do
nome-dirteito correlato, que é o processo de nominação. Este processo foi definido pelo
antropólogo e historiador José Maurício Arruti, a partir das suas experiências concretas
na identificação e delimitação de territórios quilombolas, em Mocambo: Antropologia e
História do processo de formação quilombola (ARRUTI, 2006). Segundo o autor, o
processo de nominação relacionado aos remanescentes das comunidades de quilombos é
observável nos anos que se seguem a 1988 ― quando aquelas comunidades são
nominadas pela Constituição Federal promulgada naquele ano ―, junto aos sujeitos
concretos e às instituições, pois se trata de um processo mais recente que o processo de
nominação dos Povos Indígenas — estes portadores de uma “identidade garantida”,
firmada pelo Estado, no sentido que aponta Arruti (ARRUTI, 2006, p. 52). À operação
do mecanismo de nominação, José Maurício Arruti—indica quatro processos, ou quatro
dimensões do processo mais amplo que passa pela “revalorização da memória” dos
sujeitos (ARRUTI, 2016, p. 225): nominação, identificação, reconhecimento e
territorialização. Como processo amplo, o conjunto das quatro dimensões imbricadas,
segundo Arruti, possibilita “interpretar aquilo que era chamado de etnogênese em termos
de um processo de formação” (ibidem). Esse processo de formação se refere à formação
de um grupo étnico (ARRUTI, 2016, p. 250) – e não simples “criação” ou “geração”, mas

39
uma tomada de consciência — em que os contornos das histórias, da memória e da
identidade são transformados em valor:

(...) transformando-se em um lugar social digno, em uma referência


histórica para a região, de forma que o próprio grupo ganha
importância política local, gerando um orgulho sobre si que seus
ancestrais não puderam experimentar. (ARRUTI, 2016, p. 250)

Uma expressão do processo de formação, nos termos de revalorização e


motivo de orgulho é justamente a valorização da memória, como indica Arruti, em lugar
do que o historiador e antropólogo chamou de “ethos do silêncio” (ARRUTI, 2016, p.
225).

Os “povos e comunidades tradicionais” são reconhecidos como público


beneficiários de diversas políticas e para eles não foi feita uma previsão expressa no
Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, para o reconhecimento dos seus territórios
naquele instrumento. São comunidades de geraizeiros, de faxinalenses, de caiçaras, de
pomeranos e outros segmentos com percursos históricos, identidades e modos próprios
de viverem e de estarem. O nome identificador dos direitos são os “povos e comunidades
tradicionais”, dentre os quais estão os povos indígenas e quilombolas. Há de ser
perguntado, sempre, porque não se foi erigida até o momento uma legislação de
reconhecimento territorial para as comunidades tradicionais. O Ministério Público
Federal ― MPF atua, por meio da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério
Público Federal ― populações indígenas e comunidades tradicionais na permanência das
comunidades tradicionais, que não possuem dispositivos constitucionais como os
indígenas e os quilombolas, em seus territórios. Com regimento Interno disposto na
Resolução nº 136, de 10 de dezembro de 2012, a 6ª Câmara do MPF, em seu artigo 2º
define sua atuação:

A sexta Câmara de Coordenação e Revisão é o órgão do Ministério


Público Federal encarregado da coordenação, integração de revisão do
exercício funcional no que se refere à atuação judicial ou extrajudicial,
na matéria Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais. (art. 2º,
Res/MPF n° 136/2012) (sublinhei)

Há uma sutileza no trecho sublinhado acima em destacar os povos dos das


demais comunidades tradicionais em uma outra grade de classificação diferente, e

40
simultânea, àquela em que se pode classificar povos indígenas e remanescentes das
comunidades dos quilombos nominados pelos dispositivos constitucionais ao passo que
povos e comunidades tradicionais não. A passagem sublinhada acima destaca os “povos
indígenas”, que têm direitos originários e, também, são considerados tradicionais;
“comunidades tradicionais” inclui os remanescentes das comunidades dos quilombos.
Interessante observar que o texto de documentos públicos performa antes entendimentos
antes mesmo do que estão para dispor como norma ou informar. No assunto sobreposição
entre territórios tradicionais, terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de
conservação, nos documentos que manuseei enquanto estive lidando com o tema no
serviço público federal, eram recorrentemente frequentes as descrições das situações
indicando, por exemplo, uma terra indígena “x” sobreposta à unidade de conservação “y”
ou a sobreposição de território quilombola “k” com a unidade de conservação “z”, quando
se poderia usar o conectivo “entre” ou o critério de anterioridade dos povos e
comunidades.

As sobreposições se dão entre territórios, sejam territórios tradicionais


delimitados nas formas das próprias comunidades ou territórios tradicionais convertidos
em territórios institucionais, esses em relação de sobreposição com áreas protegidas, que
por sua vez são, também, territórios constituídos pelo Estado. A antropologia identifica
relações de poder em diversos elementos da vida das comunidades, já a geografia cultural
tem no território, e a partir dele, as relações de poder, não raro centradas no Estado.
Passamos a breves descrições do Estado e sua relação com a sociedade nas apreensões de
a apreensões Timothy Mitchell e Philip Abrams.

1.3. Imagens do Estado

Um poderoso conjunto de métodos, diz Timothy Mitchell, é o Estado.


Métodos que ordenam e representam a realidade social produzidos a partir de estratégias
discursivas (MITCHELL, 2015, p. 13). O Estado, para o autor, se apresenta como o efeito
das práticas, das técnicas burocráticas, de representação e de regulação, estas são a
substância material do Estado (MITCHELL, 2015, p. 145). O Estado é um aparato ―
aparece apartado da sociedade como efeito de ilusão ― baseado em um sistema abstrato
de leis que fazem parecer existir uma estrutura. No entanto, a linha divisória entre
sociedade e Estado não está entre atores (MITCHELL, 2015, p. 160), ela e é interna aos

41
mecanismos institucionais por meio dos quais, diz Mitchell, se mantêm alguma ordem
social, não havendo efetivamente uma exterioridade. O “efeito de Estado”, um todo
imaterial, uma entidade, existe resguardado de uma exterioridade que é o mundo material
da sociedade (MITCHELL, 2015, pp. 163, 175, 178 e 183). A noção “efeito de Estado”
com registro ilusório é elaborada por Mitchell a partir do que define Philip Abrams (2015)
como Estado-ideia, uma ideia projetada, divulgada e adotada por sociedades diferentes
em momentos distintos em que o Estado possui uma identidade simbólica separada da
prática política.

Abrams faz observações aos estudos em sociologia política para atravessá-las


e propor Estado como poder ideológico, como uma ideia e não como um conceito ou
coisa (ABRAMS, et al., 2015, p. 58). Nesse percurso, Abrams se reporta aos estudos que,
sob diversas formas, recobram: (a) ou as funções e estrutura do Estado, esta encontrada
dentre os temas da sociologia política; (b) ou a separação entre Estado e sociedade, na
vertente marxista. Nesse movimento dos estudos em sociologia política, entre um
referencial teórico-metodológico e outro, apontados por Abrams, os estudiosos do Estado
por vezes deslocam o foco do Estado para os seus próprios temas, deixando ao largo a
dominação do Estado e, assim, reificando o Estado como estrutura além de alguma
condescendência para com o Estado ou para com a dominação; ou repousam suas análises
no ingresso de populações antes inativas na cena política, tendo ao fundo o referencial da
separação entre estado e sociedade (ABRAMS, [1977] 1988, pp. 85-87); ou trocam
Estado por “centro”, “núcleos” de poder, igualmente preservando a ideia de função do
Estado tanto o quanto os estudos que se ocupam da execução de objetivos do Estado e da
aplicação de suas regras. Dentre os problemas que se apresentam ao estudo do Estado por
parte sociologia política, segundo Abrams, está a predisposição daqueles que o estudam
(ABRAMS, [1977] 1988, p. 83); no caso, balizados por aquelas duas vertentes teóricas
(indicadas por “a” e “b”, atrás) ou com métodos que vão ao particular das relações de
subjugação dos empregados e que, ao ascenderem a níveis mais altos nas análises das
instituições, se deparam com as lacunas de informações retidas em “el mundo del secreto
oficial” (ABRAMS, [1977] 1988, p. 82). Tal segredo seria algo ocultado, uma
informação, e não um fetiche, coloquemos assim, senão a retenção e o manejo de
informação por parte do Estado, tema para o qual muitos estudiosos se voltaram a
desencobrir, segundo Abrams e, outros estudiosos se dedicaram à tarefa de desvendar
uma realidade oculta por trás do poder político (ABRAMS, [1977] 1988, p. 83).

42
Este é, em linhas gerais, o contrafundo de um Estado do poder ideológico que
Abrams delineia (ABRAMS, [1977] 1988, p. 98; ABRAMS, et al., 2015, p. 58), mesmo
sem se afastar muito de Marx, Engels ou Lênin, que apresentam o Estado, conforme
Abrams, com algo ilusório em si e, simultaneamente, na materialidade de um órgão
“sobreimpuesto” à sociedade (ABRAMS, [1977] 1988, pp. 88, 90 e 98).

Em Abrams, o Estado não é coisa, tampouco há para o Estado uma estrutura


fundamental oculta; o Estado não está por trás de uma máscara, mas é ele a máscara que
impede que se veja a prática política (ABRAMS, et al., 2015, p. 98). Primeiro, o Estado
começa como um constructo implícito dentro da prática política, é reificado como “coisa
pública” (res publica), se coisificando; o Estado adquire, então, uma identidade simbólica
que se vai “divorciando” da prática política como um recurso ilusório, dela se afasta e se
desvencilha; uma vez divorciado da prática e adquirida a identidade simbólica ― todos
têm uma ideia de Estado ― se torna o responsável ilusório da prática. A ilusão, explica
Abrams, é a de que se há conservadores e há radicais, exemplifica, cada qual acreditará
que as suas ações não se destinam ao outro, mas para o Estado. É esta a mensagem de
dominação que afirma a realidade do Estado e por meio da qual se legitima a
institucionalização do poder político de que fala Abrams (ABRAMS, [1977] 1988, p. 98;
ABRAMS, et al., 2015, p. 63).

Para explicar o Estado como uma estruturação dentro da prática política,


Abrams recorre ao Estado-Sistema e ao Estado-Ideia como objetos de análise e, da
maneira como o leio, como duas formas de poder. No Estado-Sistema estão a prática
política e a estrutura institucional localizadas no governo, na administração ― como algo
palpável ― e que pode ser examinado empiricamente de maneira bastante simples
(ABRAMS, et al., 2015, p. 63). O Estado-Ideia, como crença, ideia projetada e difundida,
é adotado em maior ou menor medida ou parcimônia por diferentes sociedades em
diferentes momentos; gerando variações, também, passíveis de serem estudadas. Estado-
Sistema e Estado-Ideia se relacionam com outras formas de poder.

O esquema de Abrams é sofisticado, separa o político do Estado por processos


e não por instituições, o Estado surge como uma reestruturação dentro da prática política
― que é a das relações de classes e outras (ABRAMS, et al., 2015, p. 62) ― e não como
um aparato. Como dito pelo o autor: o Estado, portanto, é uma entidade, um agente e uma
função ou relação “em cima” do Estado-Ideia e do Estado-Sistema (ABRAMS, [1977]
1988, p. 83; ABRAMS, et al., 2015, p. 63).

43
1.4. Algumas noções na bagagem

Para abordar como o Estado constitui seus territórios e como trata as


comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas levaremos em conta, também,
como o Estado “internaliza” a participação das comunidades sempre criativas em criar
percalços aos modelos que a administração pública disponibiliza para as suas
manifestações e participação, quer em reuniões, quer em documentos previstos, ou não,
em normas. Para ler Abrams e Mitchell, é necessário ter em conta que as forças sociais a
que se referem na sociedade e o Estado apartado desta, na mais da vez, se refere à classe
trabalhadora. No Brasil, tanto como contingente quanto volume de demandas ao Estado,
e de cobranças de passivos diversos por sua inércia, advêm das comunidades tradicionais,
povos indígenas e quilombolas. Um lugar não assentado dessas populações, com os
rótulos de povos indígenas, quilombolas e tradicionais, enquanto tais, no modo de
produção capitalista pode ser uma chave para entender a constante e crônica reticência do
Estado em providenciar-lhes o direito ao território. Tendo o Estado ficado, retido, o
território a meio caminho antes de deixar de ser uma mercadoria em seu valor de troca,
se demorando para transpô-lo de vez para o valor de uso. Para as comunidades a
discursividade da diversidade social, cultural e étnica não logra ações efetivas, que não
vou arriscar aqui o que poderiam sê-las porque dependem das comunidades, mas posso
dizer que não o são efetivas em medidas paliativas a impactos causados pela própria
atuação do Estado ― que no seu modelo de desenvolvimento que, com obras, abalam os
territórios e o seu entorno, quer na atuação morosa com relação aos territórios ― e em
medidas de socorro, o Estado sempre recobrindo onde deixara de estar antes em políticas
de saúde, de educação, de segurança alimentar.

Os conflitos advindos dessa atuação descompassada do Estado são diversos.


Nesta Tese menciono conflitos ― as sobreposições é o tema central ― sem entrar no
mérito do conteúdo de conflito que, de tantas ordens que possa ser revestido, se esvazia.
Mas, mesmo assim, quero remarcar que percebo o lugar do conflito como um campo de
atuação do Estado para que faça algo ― reuniões, termos de ajustes de conduta, revisões
de suas decisões ― sem efetivamente erradicar as razões do conflito. Dou um exemplo:
o Estado se atribui a tarefa da regularização fundiária dos territórios tradicionais e não as
leva a cabo, nisso abre um espaço para conflitos e para gestores de conflitos, o que se
torna um “lugar” de atuação do Estado e ele “viverá” ali sem que tenha se abalado muito.

44
O Estado, nas questões fundiárias, tem a função e a capacidade ― e a obrigação ― de
dizer o que é de quem; enquanto não faz isso, há o conflito. Refiro-me a reportagens dos
setores da agricultura em grandes empresas e o agronegócio que indicam o estado
promovendo conflito no campo ao regularizar terras indígenas e territórios quilombolas.
Portanto, minha posição é a de que o conflito está enquanto o Estado não procede à
regularização fundiária.

Quanto à “internalização” nos procedimentos administrativos das relações


com as comunidades, o Estado acaba por instituir uma linguagem para se relacionar com
as comunidades, procurar institucionalizá-las tendo como meios as infinidades de
reuniões; ao mesmo tempo, nisso, as comunidades vêm o Estado em seu funcionamento,
na sua casa de máquinas, e podem caminhar também por essa via. Também, as numerosas
reuniões que o Estado organiza por sua demanda ou em atendimento às comunidades são
ocasiões em que trocam experiências e podem estabelecer em conjunto, nessas ocasiões,
estratégias em lidar com algum assunto ou limitação que Estado lhes coloca. Aqui, aquela
linha que separa Estado e sociedade indicada por Mitchell e que, segundo ele, o Estado,
internaliza (MITCHELL, 2015, p. 160), é uma forma de controle e pode ser vista como
uma via de mão dupla: representa tanto um Estado que toma tudo em seu corpo e nada
lhe escapa quase na forma de um Leviatã em Thomas Hobbes, quanto a senda para se
chegar ao seu centro que pode ser usada pela sociedade, no caso, as comunidades.

Há limitações nas aplicações dos autores expressos neste capítulo: Gottmann


lida como crescimento como um desejo ou mesmo um tendência, em que os recursos de
um território poderão ser fatores limitantes; Raffestin indica relações diversas tecidas em
um território dado, não restringe que os elementos, dentre os quais a tessitura, se
conjuguem para formar um território, mas são pesado por ele para analisar dado território;
o território em Haesbaert pode ser permeável aos entrecortes da modernidade e a sua
noção de desterritorialização acompanha essa fluidez.

Quando a desterritorialização, para comunidades tradicionais, povos


indígenas e quilombolas, no enfoque desta Tese, está nas formas de esbulho; na
morosidade em se reconhecer um território e deixar a área “aberta” ao uso de terceiros
que vão consolidando seus usos e tornam cada vez mais dificultosa a regularização
fundiária; na mudança do status fundiário do território, do chão, sob uma comunidade por
meio de mudanças na Lei, titulação de terceiros e sobreposição, pois constituem a
inserção de terceiros com direitos sobre os usos dos recursos naturais, e no caso das

45
sobreposições de unidades de conservação, além desta fazerem seus próprios usos dos
recursos buscam com força indicar qual tipo de uso as comunidades podem ou não fazer,
como nos Planos de Manejo, que têm força de Lei.

Quanto à Yi-Fu Tuan, a apropriação de um lugar, pela experiência, do lugar


físico identificando sua topografia e seus topônimos e se reconhecendo nessa paisagem,
são elementos interessantes, embora em experiências individuais e não coletivas. Os
elementos que Yi-Fu Tuan traz para a experiência humana com o meio ambiente são os
utilizados na identificação e delimitação principalmente como método ao se andar em
campo junto com pessoas da comunidade em uma etapa dos levantamentos dos trabalhos
de identificação e delimitação e que poderão indicar limites.

Dos autores abordados em geografia o único que não possui o Estado na


centralidade do poder é Yi-Fu Tuan, mas nitidamente escreve no avesso desse poder,
como se pode notar nas noções de especiosidade e de apinhamento. E é, também, o autor,
dentre os demais, que não possui o território como objeto, mas podemos ler em larga
medida as experiências que descreve como formas de territorialização.

Ressalvado que não se trata de incompletudes nos autores, porque as questões


acerca dos territórios tradicionais em situação de sobreposição estão colocadas nesta
Tese, e se examinarmos sob este ponto de vista, os territórios e as experiências que os
autores delineiam e definem não comportam sobreposições, não é o seu tema. Nesse
sentido me eximo de arriscar uma definição de território, aqui, tomando o que indiquei
por limitações na aplicação direta nos autores a todas as questões como um alerta: de
certo, agora, eu tenderia a delinear uma definição a partir das situações de sobreposição
para comportá-la. Proponho que sigamos adiante com o entendimento de que território
tem limites e estes podem ser estabelecidos administrativamente ou pelas comunidades,
nas formas e critérios que cada comunidade, povo indígena ou quilombola os entende na
sua própria noção de território, ou ainda, ambos.

46
2. Um percurso por territórios e instituições

A palavra “território” implica em delimitação. Delimitar, diz Raffestin, é


“isolar ou subtrair momentaneamente ou, ainda, manifestar um poder numa área precisa”
(RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 153). Raffestin apresenta a noção de limite resvalada em
uma natureza que os humanos carregam nas noções de propriedade, classe e pátria; sendo
a fronteira uma interface biossocial, segundo o autor, que, dada historicamente, pode ser
modificada ou ultrapassada e que, no entanto, as noções de limite e de fronteiras variaram
ao longo do tempo sem terem desaparecido (RAFFESTIN, [1980] 1993, pp. 164-165).
Em que a historicidade é providencial porque, se subtraída das noções de limite e de
fronteira, seria no intuito de naturalizá-las (RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 166). Um limite
traduziria um consenso coletivo, se bem leio Raffestin, cuja definição ― coisas com que
são marcados os limites ― podem variar, Raffestin diz que podem ser marcados por
sinais, podem ser utilizados para “manifestar modos de produção [...] para torna-los
espetaculares”, das revoluções, menciona a russa e a francesa, resultaram reviravoltas nos
limites; no sistema sêmico do Estado Moderno a fronteira se tornou um sinal em que
fronteira seria igual a limite sagrado, aderido ao controle territorial absoluto; porém, com
fronteira mal delimitadas em uma “fronteira zonal” em que as coletividades medievais,
segundo Raffestin, nelas mais buscavam abrigo que a linha demarcatória e precisa.

O mapa aparece como o instrumento ideal para “definir, delimitar e demarcar


a fronteira” (RAFFESTIN, [1980] 1993, pp. 166-167). Vai se passando de uma etapa à
outra com acréscimo de informações de uma vaga representação de território a outra que
o inscreve; na etapa da demarcação, que é quando, e somente quando, a linha fronteiriça
“é de fato estabelecida”. Raffestin acrescenta, ainda, que mesmo a demarcação é uma
representação e significa que a linha definida não está mais sujeita a contestações pelos
Estados em disputas (RAFFESTIN, [1980] 1993). Um fascínio repleto de símbolos em
uma linha que pode ter o poder de separar ― ou não conciliar ― ideologias.

Com os limites demarcados, vêm a fiscalização e as outras formas de controle


para as quais foram criadas estruturas em uma matriz departamental, na França, para
cuidar de relações político-administrativas operantes à época e que permaneciam na
atualidade do autor, quando o Estado estava mais ocupado, segundo Raffestin, com
relações socioeconômicas e não propriamente político administrativas como há duzentos
anos atrás. As estruturas departamentais para as funções de controle do território,

47
portanto, surgiram em outro modo de produção que não mais existe, conclui Raffestin
(RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 175).

Neste capítulo traço um percurso, que é profissional pessoal, por instituições


diferentes e procuro delas ressaltar as conexões com o tema dos territórios tradicionais
em cada uma dessas instituições. As experiências narradas, a seguir, podem causar a
impressão de que as instituições têm verdadeira fixação por territórios. No entanto, o viés
das experiências escolhido foi exatamente este: os territórios no marco das instituições.
Em diversas ações de instituições diferentes, que não se ocupam da identificação de
territórios para fins de regularização fundiária, a questão do território é presente e as ações
do governo em políticas públicas e decisões têm de levar o território em conta.
Primeiramente, pela localização de determinada comunidade para a identificação de
demanda, para a elaboração da política pública e a sua execução. Em um momento
seguinte, pela necessidade de se considerar o grupo étnico social como um todo para que
a política a ser implementada não tenha impacto negativo no grupo criando fissões em
seu interior; nesse aspecto, quando a ação não contempla o grupo por inteiro, não raro, a
própria comunidade exige que se a considere como um todo. Os grupos são constituídos
por comunidades menores, núcleos de povoamento, aldeias o grupo como um todo.

Um exemplo de exigência de que o grupo seja considerado inteiramente, mais


nítido, está nos processos de licenciamento ambiental: se um empreendimento como uma
rodovia, por exemplo, atingirá fisicamente uma aldeia pela sua proximidade, os impactos
serão diferenciados nessa aldeia e terão outros impactos para as demais aldeias em um
grupo que se define por relações de parentesco, sociais pelo percurso histórico e da sua
territorialização, relações econômicas e outras; restando identificar quais estruturas e
instituições da comunidade serão impactadas e de quais maneiras. O que não significa
uma gradação necessária de impactos maiores ou menores a partir da aldeia mais próxima
ao empreendimento. Note-se que abranger o grupo permanece sob o mesmo critério de
proximidade física, no entanto, muda-se a escala de um ponto, no caso a aldeia, para uma
área, que é o território. Nos estudos de impacto são consideradas, também, comunidades
que não tenham tido os limites de seus territórios identificados, no entanto, poderá haver
questionamentos quanto à incidência dos impactos em dados locais e a maior dificuldade

48
dos órgãos fiscalizador e intervenientes no processo de licenciamento ambiental 11 em
exigir do empreendedor providências. Embora esta Tese não trate de licenciamento
ambiental, o exemplo da parte e do todo de um território me parece ser mais gráfico para
dizer da necessidade que o próprio Estado tem na identificação dos territórios tradicionais
na execução de outras políticas, no caso desse exemplo, a ampliação da malha logística,
quer para a mobilidade, quer para o escoamento de produção, quer para interligação de
regiões e a diminuição de diferenças entre elas. Todas políticas do Estado. Outro exemplo,
como se verá abordado abaixo, da necessidade de serem conhecidos os limites de um
território tradicional pelo Estado para a sua própria atuação, é a aplicação de políticas
públicas que envolvam edificações nos territórios e, neste caso, não bastam serem
conhecidos os limites, é necessário que a regularização fundiária tenha alcançado a
mudança de domínio da terra para que o investimento em edificações não seja feito em
área de terceiros que não a da comunidade. Portanto, a indicação de territórios é tanto
uma política de reconhecimento dos direitos das comunidades, por meio da identificação
institucional dos territórios, quanto necessidade do Estado para a sua atuação na
implementação das políticas, inclusive aquelas que não tenham como público prioritário
as comunidades que vivem nesses territórios ou têm-nos em vista. A finalidade deste
capítulo é a de indicar duas formas de apreensão dos territórios: a das instituições e a das
comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas.

2.1. Inscrever no mapa e identificar territórios

Antes mesmo antes de ter concluído o mestrado, era professora substituta de


Antropologia Social na Universidade Federal de Alagoas ― UFAL e, nessa condição,
tive a chance de conhecer as comunidades quilombolas na região de Penedo, no Estado
de Alagoas. A finalidade era compor um quadro de demandas por regularização fundiária
e reconhecimento nacional, que existiam quilombolas por todo o Brasil, em 1998, projeto
que tinha como instituição organizadora, no Estado de Alagoas, o Núcleo de Estudos
Afro-Brasileiros ― NEAB da Universidade Estadual de Alagoas ― UFAL. O trabalho
consistia em procurar comunidades naquela região indicada pelo NEAB. Encontrei as

11 O Ibama é o órgão fiscalizador e, no caso de povos indígenas e de comunidades quilombolas,


a Funai e a Fundação Cultural Palmares são as respectivas instituições intervenientes nos processos de
licenciamento ambiental

49
comunidades do Barro Vermelho, Tabuleiro dos Negros e Oiteiro, em Penedo no Estado
de Alagoas. A finalidade do projeto era a de assinalar em cada Unidade da Federação
alguma demanda para fazer valer — na urgência daquele projeto — o disposto da
Constituição Federal de 1988 acerca do reconhecimento dos territórios das comunidades
quilombolas e, também, o reconhecimento e a visibilidade das próprias comunidades.
Tratava-se da pesquisa “Mapeamento e Identificação das Áreas Remanescentes de
Quilombos”, entre 1997 e 2000, realizada com financiamento da Fundação Cultural
Palmares ― FCP e cooperação com a Universidade Federal de Alagoas ― UFAL em
parceria com outras universidades12. O assunto da regularização fundiária, à época, era
atribuição da Fundação Cultural Palmares, ligada ao do Ministério da Cultura que, sem a
capilaridade no território nacional e sem os instrumentos de regularização fundiária ―
tais como normas para a atribuição de desapropriação, de indenização, corpo técnico e
norma para a avaliação de benfeitorias, etc. —, a atribuição passou para o antigo
Ministério do Desenvolvimento Agrário—MDA, por meio do Decreto Federal nº 4.883,
de 20 de novembro de 2003 (mesma data da edição do Decreto nº 4.887 sobre a
regularização fundiária de territórios quilombolas), cujas atividades são, desde então,
executadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária—Incra ligado, em
2019, ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

Do trabalho em Penedo resultaram a participação na XXI Reunião Brasileira


de Antropologia ― ABA entre 5 a 9 de abril de 1998 em Vitória no Estado do Espírito
Santo, e o artigo “´Pretos´ são os outros: representações escravas em Alagoas”13, que
aborda o silêncio, que chamei, lá, de “memória nublada” (URSINI, 2001) de duas
comunidades a respeito de um passado de escravidão e de desmerecimentos revelados e
(re)narrados de outras maneiras: em um folguedo chamado Quilombo, uma encenação,
dança e uma batalha indígenas e negros e em uma articulada história de honradez povoada
por sobrados, moedas de ouro e documento de uma terra. No meu propósito de buscar
comunidades quilombolas, ou negras ou que tivessem descendentes de ex-escravos, a
comunidade de onde eu estava me levava para outra, ou seja, sempre mais adiante,
dizendo uns aos outros que o que eu estava procurando era “preto mesmo” ― daí o título

12 A pesquisa era coordenada pela professora Eliane Cantarino O’Dwyer, da Universidade Federal
Fluminense ― UFF e, dentre outros integrantes, estavam: Neusa Gusmão, Osvaldo Martins de Oliveira,
Maristela de Paula Andrade, José Augusto Sampaio, Vânia Rocha Fialho de Paiva e Souza, Maria de
Lourdes Bandeira e Alfredo Wagner Berno de Almeida.
13 Publicado na revista Grifos, da Universidade do Oeste de Santa Catarina, Chapecó, pela Editora
Universitária Argos, em 2001.

50
do artigo. Aquela indicação de uma outra comunidade mais adiante era uma representação
de refutação exemplar das comunidades às categorias que aqueles grupos não haviam tido
contato, como “remanescentes das comunidades dos quilombos”, ou aquela que haviam
“nublado” nas histórias repassadas às gerações seguintes, com a de um passado ligado à
escravidão e lutas, tanto relacionada à curta, mas histórica Revolta dos Malês, em 1835
― e que a história oficial conta ter chegado até a outra margem do rio São Francisco, e
não ter atravessado para Alagoas ―, quanto às guerras contra os negros de Palmares e as
investidas destes nas vilas na região na segunda metade do Século XVII.

Além do rio São Francisco como rota de fuga, conforme se depreendeu dos
jornais que pesquisei nos arquivos na Casa de Penedo, com anúncios e reclamações de
negros fugidos de fazendas em estados, ou províncias à época, mais distantes atravessados
pelo rio São Francisco e, também, de fazendas no Rio de Janeiro. O que inseria Penedo
em conexões várias, tanto pelo rio, quanto pelo mar estando a aproximados trinta
quilômetros do estuário daquele rio. Naquela época era imprescindível que se
evidenciasse um passado escravo para indicar uma comunidade quilombola; o que sempre
me pareceu ambíguo imputar às comunidades carregar isso, não deixa-las parar de
lembrar para o Estado reparar danos e recobrar isso em campo, quando em muitas
comunidades foi justamente a parte de sua história que foi de certa forma apagada, como
foi o que encontrei em Penedo.

A primeira comunidade a ser reconhecida pelo Estado em Alagoas foi a do


Povoado de Tabacaria, localizada no Município de Palmeira dos Índios. O Relatório de
Técnico de Identificação e Delimitação havia sido feito por Mônica Lepri, antropóloga
no Incra lotada em Alagoas, à época. A mim coube, em 2008, responder a contestações
de particulares apresentadas à delimitação proposta. O chamado quilombo de Palmares
compreendia uma complexa territorialização com perto de cinquenta mocambos
espalhados e intercomunicados, o que foi fator quase que intransponível para as
constantes investidas do governo para exterminá-lo. No polígono que abrange os
mocambos, o Povoado de Tabacaria é o mocambo, conhecido e relacionado a Palmares,
mais extremo ao sul.

Dando continuidade ao meu percurso institucional, tendo defendido o


mestrado com imagens de modernidades e tradições expressas no diálogo entre duas
mulheres inventadas pelos editores nas páginas da recém-criada revista O Cruzeiro, em
1928 ― com um discurso sobre a nação e a modernidade na virada da década de 1930

51
que fazia nelas desaparecerem indígenas e negros ―, e já vivendo em Brasília, fui
trabalhar como consultora na Fundação Nacional do Índio—Funai, pelo Projeto Integrado
de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal ― PPTAL, com a
finalidade de regularizar Terras Indígenas e que era executado pela Presidência da Funai;
o PPTAL integrava o Projeto Piloto de Proteção das Florestas Tropicais do Brasil ―
PPG7, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente ― MMA.

Na Funai, trabalhei tanto internamente quanto prestando serviços como


consultora de agência da Organização das Nações Unidas para aquela instituição em
identificações e delimitações que resultaram nas regularizações da Terra Indígena
Cajuhiri-Atravessado (grupos indígenas Miranha, Mura e Cambeba), no Amazonas, e na
Terra Indígena Bacurizinho (indígenas Tenetehara-Guajajara) no Maranhão.

Para a Terra Indígena Cajuhiri-Atravessado, no ano de 2000, foram quarenta


dias, dos quais cinco na Administração Regional da Funai, em Manaus, e quase quatro
para subir o rio Solimões em “motor de linha”, como são chamados os barcos em que se
compra passagem para a viagem e nele, a depender do tempo, se dorme e se come,
serviços incluídos na passagem. A volta foi por avião. Ao chegar em Coari, fui recebida
no porto pela comunidade ― o cacique Germano e o seu irmão Edgar, já à noite, dormi
na casa da família em um bairro em Coari, à época da cheia do rio e do lago, com os
caminhos para as casas em um emaranhado de trilhas em palafitas. No dia seguinte, trinta
e cinco quilômetros até o Cajuhiri-Atravessado, território que eu estava indicada pela
Funai par fazer a identificação e delimitação. A floresta vai crescendo diante dos olhos
pela sua proximidade com as margens do rio, mesmo na largura de dois quilômetros, na
chegada, uma “samaumeira” ainda maior marcava um dos dois portos da comunidade
destacada do castanhal ao fundo com copas a cinquenta metros de altura. A medida do
tamanho daquela árvore era dada pelos indígenas pela colmeia instalada bem alto no seu
tronco: da altura de um homem. Cheguei na terra indígena um dia depois da Funai
aconselhar veementemente os indígenas a retornarem ao território, depois de terem sido
intimidados pelo posseiro que usufruía economicamente dos castanhais tendo colocado
um pasto em meio às casas dos indígenas e despejado cabeças de gado de uma barcaça
que encostou na beira do rio tarde da noite, segundo os indígenas, para lhes turbar a
permanência no território; além do atentado a bala ao Tuxaua Germano Marins, na cidade
de Coari, no Estado do Amazonas, pela esposa do posseiro.

52
No seu histórico, a comunidade passou por um processo de assimilação
posterior e no rastro da escravização de indígenas por conta da borracha ― entre fins do
século XIX e 1903, com o fim da Casa Arana. Esse percurso está nos livros e nas teses, o
deles está marcado por sucessivas expulsões que mapeei em rios e afluentes em longa
extensão do rio Solimões, até se tornarem moradores do Cacau Pirera, ou Cacau
“Pereira”, do outro lado do rio à frente de Manaus. Uma filha teve um acidente
cardiovascular e a sua mãe, dona Eunice, resolveu dar a notícia aos quatro filhos de que
eram indígenas. Contou das duas expulsões do território, de ter sido presa com os quatro
filhos na cadeia em Coari e da benevolência de carcereiros que a deixavam cozinhar, ali
dentro para os três filhos, grávida de Germano, que mais tarde se tornou Tuxaua do grupo.

No caso dos indígenas do Cajuhiri-Atravessado, eles saíram do território


expulsos há muitas gerações, restaram vivos a mãe e outros desconhecidos que se
dispersaram. Um grupo dentre os expulsos voltou a viver no Cajuhiri e, novamente foram
expulsos, que era o grupo que passou a reivindicar o território. Dona Eunice, a mãe, se
considerava casada com “índio”, mãe de indígena; mas se calara até aquele momento.
Portando, foi um silêncio no qual escolheu imergir e que o rompeu. Repetiu todas as
histórias ouvidas do pai do marido, do que conseguia entender da língua que ele falava e
traduzido pelo filho. Esse é um processo de autoidentificação que começa com a
revelação de uma identidade ocultada propositalmente em que as histórias se
recompuseram e os filhos foram buscar seus direitos junto à Funai com indicações do
processo da época do Serviço de Proteção ao Índio ― SPI fornecidas pela mãe, dona
Eunice Marins.

A Funai tinha a indicação, por meio de documentos em processos antigos, da


indicação da localização aproximada de um território, mas não tinha notícias mais
recentes do paradeiro das comunidades que haviam sido esbulhadas. Quando os filhos da
dona Eunice e ela foram à Funai, recontaram a história. Três dos filhos eram pequenos e
não se lembravam muito e a dona Eunice esteve presa, grávida do Germano, que era o
Tuxaua na época em que fui fazer os estudos de identificação e delimitação da Terra
Indígena Cajuhiri-Atravessado. Um efeito da identificação e delimitação do Cajuhiri-
Atravessado para uma abordagem mais ampla para os estudos antropológicos e históricos
sobre a dispersão dos povos indígenas pelo rio Solimões ― a partir das cercanias dos
Witoto, passando pelo rio Japurá, por Tefé e seguindo rio abaixo e que se ocupam desses
“descimentos” ― é o de que temos nos Miranha, Mura e Cambeba do Cajuhiri-

53
Atravessado um caminho de volta, rio acima. Um contrafluxo nas ações do próprio
Estado: primeiro, a desterritorialização, especialmente por políticas de assimilação e,
depois, a retorialização, no caso dos indígenas de Cajuhiri-Atravessado no Estado do
Amazonas.

Revelar a história e romper com o “ethos do silêncio” (ARRUTI, 2006, p.


225), como fez a dona Eunice, e com ela a identidade indígena, é a etapa da tomada de
consciência no que se chama processo de nominação, delineado por Arruti (ARRUTI,
2006, p. 52). Há a identificação com “uma categoria jurídica ou administrativa” (idem, p.
45), no caso “povo indígena”, seguida da busca pelo reconhecimento dos direitos
atrelados ao nome “povo indígena”; momento este em que um grupo se apresenta como
tal publicamente para a sociedade abrangente e para o Estado como grupo diferenciado e
que reivindica direitos a partir de uma identidade política que opera nas políticas do
Estado. A quarta fase o processo de nominação é o processo de territorialização que
significa...

(...) o movimento de reorganização social, política, ecológica e cultural


de uma coletividade que está em processo de fixação e delimitação
espacial por meio da sua objetificação jurídico-administrativa. (ARRUTI,
2006, p. 46)

Embora as categorias para a regularização fundiária e as suas etapas


administrativas inerentes, bem como o nome, ou o rótulo (ARRUTI, 2006; ARRUTI,
2003, p. 26) de que o governo dispõe para as comunidades estejam na esfera
administrativa e, portanto, do Estado, Arruti faz a ressalva que para a pesquisa
antropológica é interessante considerar que o processo de territorialização possui
antecedentes à territorialização propriamente dita expressos em “um conjunto de
transformações relativas à identidade, representação, unificação política e adaptação
cultural próprias do processo de territorialização”. Compreender o processo de
territorialização, dentro de processo de nominação, antecedente à territorialização
efetiva, como propõe Arruti, possibilita deslocar o Estado do centro das análises, portanto
(ARRUTI, 2006, pp. 41-42).

Os trabalhos de identificação e delimitação que fui empreender naquele


território se inscrevem na etapa da territorialização. Antonio Carlos de Souza Lima
(LIMA, 2005) aponta a “identificação” como uma categoria histórica estreitamente ligada

54
ao quê, propriamente, estava sendo identificado, junto a isso há o ideário nos termos
“silvícolas” para se referir aos indígenas e a outras categorias que congregam sentidos
temporais que o autor mapeia o autor retoma as normas e os despachos nos primórdios
do Serviço de Proteção ao Índio ― SPI e depois na Funai, que sucedeu ao SPI em
dezembro de 1967. O autor tece severas críticas ao processo de identificação,
questionando a qualidade dos relatórios produzidos e indicando os seus autores como
antropólogos entre aspas, abrangendo também indigenistas em períodos anteriores, como
executores da política da forma que o Estado a estabelecia e, em certa medida, ainda
estabelece na identificação destacando “que a identificação, tal como esboçada
anteriormente, é categoria parcialmente passada” e abrange as formas de identificação,
quer fundiária, quer identitária tanto dos grupos quanto dos indivíduos indígenas, pessoas,
no papel que o Estado se atribui em avalizar as identidades (LIMA, 2005, pp. 60-63 e 65).

Um efeito nos recortes nos formulários dos levantamentos fundiários que


Lima (2005) também analisou, no conjunto da identificação territorial, segundo o autor,
é o da “redução do território a ser estabelecido para um grupo indígena” e indica que
“estamos longe da Fixação de grandes áreas ― como parecem ter sido as diretrizes desde
o Parque Indígena do Xingu” e que, em 2005, estaríamos mais próximos do que teriam
sido as demarcações até a década de 1950 (LIMA, 2005, p. 66), especialmente quanto ao
mercado de terras (LIMA, 2005, p. 63), cuja prática era a de concentrar indígenas para as
terras dos territórios serem liberadas ao usos de terceiros; da forma como interpreto, é
uma desterritorialização procedida pelo próprio Estado e que, na atualidade, as
reivindicações por territórios “novos” lindeiros ao territórios identificados, especialmente
no caso dos povos indígenas é, na verdade, a recomposição do território e da
territorialidade para a equiparação do status de um território institucional tanto o quanto
a área já delimitada e demarcada.

As etapas gerais dos processos de regularização fundiária, para que um


território tradicional passe a ser um território reconhecido institucionalmente pelo Estado,
são as seguintes:

55
Figura 1 ― Nove etapas básicas da regularização fundiária de
Terras Indígenas e de Territórios Quilombolas

A autoidentificação é a autodeclaração ― com base na “auto-atribuição” e no


“auto-reconhecimento”, conforme a Convenção nº 169 da Organização Internacional do
Trabalho, em vigor no Brasil desde 2003 e no âmbito internacional desde 1991― de um
grupo, quer indígena ou quilombola, perante o Estado. Se já não se praticava, desde pelo
menos 1991, a identificação étnica nos trabalhos de identificação e delimitação de
territórios, a partir de 2003 se tornou proibida. O destaque na Figura 1, atrás, para a etapa
da publicação no Diário Oficial da União se deve ao fato de ser nesse momento da
regularização fundiária de um território tradicional que os limites são dados a público, se
fazem conhecidos para a sociedade abrangente, os eventuais ocupantes incidentes não
indígenas são citados pela primeira vez e a delimitação está posta para a contestação. No
que se refere aos mapas dos territórios com os respectivos polígonos, temos que nas etapas
da regularização fundiária eles aparecem como uma proposta do Estado que é dada a
público e submetida ao contestatório, cujos limites podem ser alterados nessa etapa, no
caso, reduzidos. Barreto Trindade (BARRETO FILHO, 2005, p. 120) chama a atenção
que as contestações no período analisado, entre 1997 e 2002, para as Terras Indígenas,
eram invariavelmente rejeitadas. No entanto, isso não significava que os territórios

56
propostos não mudassem: há as diligências compostas para dirimir dúvidas acerca da
justificativa de limites e, no caso do Cajuhiri-Atravessado, uma diligência com outra
equipe foi composta e a parte suprimida da proposta inicial de limites foi justamente a do
“empréstimo” de um topônimo vizinho à área, como se verá a seguir. Nas contestações,
aquelas que tive a chance de colaborar em resposta na Funai ou respondê-las, no Incra, as
dificuldades dos contestantes estavam, quase que invariavelmente, em assimilar a
autodeclaração, em percorrer a narrativa e a análise antropológicas e, não raro, em
comprovar o seu domínio legítimo.

Examinando os documentos das cadeias dominiais de inteiro teor dos


registros de matrículas naquele território, as propriedades não tinham destaque de origem
no Estado, como se deve, pela Lei de Terras de 1850. Suas dimensões somadas excediam
a área total em que estavam inseridas, o que indicava títulos, mesmo que ruins, ou título
que se referiam a áreas que, uma vez plotadas, resultavam sobrepostas, o que no jargão
administrativo se costuma chamar de “terrenos beliches”; além do que, as confrontações
eram em maior parte de cada imóvel constituídas por terras devolutas, das quais o Estado
até hoje não tem conta e um lugar facilitado à grilagem de terras, pois não permite o
cotejamento com outro imóvel de outrem que seja lindeiro ao que consta no documento.
O cartório local pegara fogo apenas na parte em que estavam os documentos daquela
região ocupada pelos indígenas. Embora não se indenize a terra nua na regularização de
terras indígenas e acho que até se façam vista grossa à má fé das benfeitorias instaladas
por terceiros incidentes nos territórios ― pois apenas as benfeitorias de boa-fé são
indenizadas ―, examinar tais documentos ajuda a entender os processos de
territorialização e de desterritorialização, sendo o esbulho parte desta última. Outro tipo
de desterritorialização é o empréstimo de topônimos. No caso do Cajuhiri-Atravessado,
havia uma gleba antiga e um local, que reconhecidamente na região não era reivindicado
pelos indígenas, chamado Ponta do Marajó, na margem esquerda do lago Coari e separada
do território indígena por um rio curto. Nos documentos cartoriais de registros da cadeia
dominial analisadas, o nome “Ponta do Marajó” foi aparecendo se espraiando além do rio
curto e se adentrando nas terras incidentes no território indígena sendo citado em
desmembramentos, heranças, aquisições e outros mecanismos em documentos de imóveis
em nome de terceiros no território reivindicado, em nítido “empréstimo de topônimo”
com a finalidade de indicar que aquela porção não seria, então, de ocupação dos
indígenas.

57
A Terra Indígena Bacurizinho, no Maranhão, onde vivem os Tenetehara
Guajajara14, foi identificada em consultoria prestada ao PPTAL em parceria com a
FUNAI. Antes do trabalho da identificação e delimitação, realizado em 2001, uma linha
seca, curta e solta, foi colocada por um juiz separando três aguadas onde o gado de não
indígenas e de indígenas bebiam água, para que uma porção ficasse com uns e outra para
o acesso do gado de outros. No passado, como me contaram os indígenas depois, quando
estive no Bacurizinho, no Maranhão, havia um acordo entre vizinhos, disseram eles, com
cercas instaladas que garantiam a necessidade do gado do não indígena nas aguadas
indígenas, cuja cerca não marcava o território, mas protegia as roças de mandioca do
outro lado dos ataques do gado, uma gentileza que, na geração seguinte, não perdurou: os
indígenas foram conversar para ser retirada a cerca, pois precisavam de todas as aguadas
e me parece que queriam ter em conta o seu território. Receberam como justificativa da
impossibilidade um documento que registrava a área das aguadas como propriedade
particular. O que se deu foi que, com o trato feito em uma geração, a geração seguinte
usou dos meios legais para se apropriar daquela fronteira. A linha do juiz servia para pôr
termo às lutas locais por conta do acesso à água para dessedentação animal. Uma fronteira
é um subconjunto de um limite, segundo Raffestin (RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 166)
e, portanto, no caso dos Tenetehara, aquela pequena fronteira poderia ser metonímica,
para os indígenas, do todo do seu território, na sua cognição.

Vemos três momentos da atuação do Estado e o que possa ter surtido como
efeitos para os indígenas em imaginar algum respeito, por parte do Estado, à sua presença
e, e com ela, todo o seu território simbolizado naqueles atos: primeiro, buscando pôr
termo às brigas, uma linha seca, solta, curta e provisória, mas indicativa de uma
delimitação porvir; depois, a concessão do título de propriedade desconsiderando aquele
acordo provisórios; mais tarde, a identificação e delimitação que eu havia feito,
encampando aquela área indicada e justificada como território, reconhecida, inclusive, já
no ato do juiz. Um quarto momento pode ser acrescido: a regularização fundiária como
um todo estacionou por um período em uma Câmara de Conciliação e Arbitragem Federal
― CCAF por conta da incidência de um Projeto de Assentamento do Incra. A Terra
Indígena conta com 134 mil hectares e está declarada, sem consecução do processo para
a sua homologação até o momento.

14 Um dentre outros territórios dos Tenetehara Gujajara, Tupi, no Maranhão.

58
O tema das sobreposições me atraiu por evidenciar aspecto relevantes e falhos
do próprio ofício na confrontação e debates com outros órgãos, porque o território e sua
constituição eram questionados, ao mesmo tempo que questionavam as próprias
comunidades. Algo como se fossem iluminados praxes e entendimentos tomados como
normais e recorrentes, e a reflexão sobre eles teve o acréscimo de ser coletiva. A
experiência com leitura e interpretação de normas e mesmo com processos de minutá-las
me possibilitou ver tais normas na forma como como assentam entendimentos e, ao
mesmo tempo, dispõem sobre eles e que, tudo o que parece estar estabilizado, poderá ser
aprimorado, piorado ou mudado em um momento seguinte, em outra norma.

Ainda no Incra-Sede coordenei equipes para a identificação e delimitação do


Território Quilombola de Alto Alegre, no Ceará, com interferência do Canal do
Trabalhador (posteriormente se tornou um ramal no estado da chamada transposição do
Rio São Francisco), e o Território Quilombola de Machadinho, em Paracatu, Mina Gerais,
com interferência da barragem de rejeitos, pilhas de estéreis, cava da mina de mais
estruturas da mineração de ouro.

Em Machadinho, havia as histórias na memória coletiva contadas em reuniões


conjuntas que por vezes eu pedia, de outras vezes os próprios quilombolas combinavam
para que alguém da comunidade iluminasse uma área da sua história que entendiam que
eu deveria conhecer. E em cada entrevista em separado, também, uma pessoa entrevistada
indicava a experiência dos demais ao percorrer a sua própria, como abordou Mintz, em
uma expansão localizada de uma memória coletiva (MINTZ, 1984); além de acrescentar
uma visão particular a respeito de fatos acontecidos na história da comunidade como um
todo e, vez ou outra, uma qualidade aos relatos dos outros membros. Como praticamente
todos os interlocutores ― perto de vinte pessoas em um círculo mais restrito de
informantes agentes ― pude ter um mapa geral das cisões familiares e dos contornos do
grupo também por essa via. O trabalho era para identificação territorial, além do conteúdo
do território, há a exigência de serem indicados os limites para dialogar com as normas
as histórias e os usos são inscritos “de volta” em um mapa.

Em um dos procedimentos de checagem foi necessário levar a senhora


América, dona Merca, ao local onde viveu com a família, descrito para mim nas suas
memórias, no riacho que fazia curva ao fundo da casa onde lavava roupas, a presença da
mãe na casa e o morro da Ventura, de frente para a casa, em que subia com outros para
olhar lá de cima. Se eu estava certa em ter localizado a casa branca, nas inúmeras vezes

59
percorrendo aquela área entre um lugar e outro, com cerca de mourões, um pequeno curral
e uma espécie de depósito contíguo à casa e pelo mapa, a curvinha do rio atrás dela, seria
aquela a casa em que América tinha vivido com os pais, o seu lugar no Machadinho e,
também, a localização das histórias que me contava. Levá-la até lá, idosa e muito calor,
já constituíam um cuidado. Outro era o caminho que levava à casa, desviado por conta da
cava da mina de ouro que já estava em mais de 30 metros de profundidade. As notícias
das alterações em estradas, da ampliação da cava da mina em raio e em profundidade
eram sempre anunciadas e descritas; outra coisa era percorrer aquelas alterações e, ainda,
com grandes chances de despistar a minha interlocutora de um caminho que tinha um
ponta no passado que que, naquela ocasião, devia encontra-lo na outra ponta, para que
levasse inscritas no chão as histórias da comunidade para um relatório de identificação e
delimitação de território. Animada, dona América aceitou procurar a casa. Combinei com
ela que iria de olhos fechados, até descermos pela estrada de terra tendo deixado a cava
da mina atrás e darmos de frente com o morro da Ventura, ou do Ventura. Demos meia
volta em torno do morro para que ela calculasse a distância com que o via da sua casa,
encontrou e olhou para trás dizendo que tinham mudado a casa, pois construíram um
quartinho ao lado dela.

Essa operação me pareceu ser mais eficaz ― porque trazia uma ligação com
as histórias que me contava no quarto de sua casa, longe dali ― que percorrer estradas e
ir parando diante de casa em casa e perguntado se seria aquela ou aquela outra, em dado
momento, para se livrar de mim e dos protestos do motorista do Incra nas operações
sempre trabalhosas, poderia ser qualquer uma.

Temos, portanto, que fazem parte de um lugar, no sentido do lugar de alguém


que o tenha como seu ao que Yi-Fu Tuan se refere (TUAN, [1977] 1983), também, os
caminhos que levam ao lugar e não apenas aqueles que o entremeiam o compõem e que,
em alguns casos, podem delimitá-los. Faz parte, ainda, a visão ampla que se tem da
paisagem na aproximação do lugar. Em outra ocasião, na identificação do quilombo de
Alto Alegre, no Ceará, acompanhada com o senhor Vicente, com 81 anos naquele ano de
2008, fomos procurar o lugar de passagem de um córrego, cuja passagem dividia o que
seria o território dos negros de Alto Alegre de uma outra porção ocupada por indígenas
com quem, por vezes, travavam disputas. O córrego tinha cedido lugar ao Canal do
Trabalhador e, nisso, invertido o curso das águas, estava tudo diferente se olhássemos
para o chão, em que o recurso foi ir andando e olhando para o horizonte ao redor. Nesse

60
caso, a impaciência do agrimensor do Incra foi desconcertante diante do senhor Vicente
na sua demora e porque a indicação daquela localização não indicava limites, que era a
principal tarefa do agrimensor, mas para mim, marcava, junto com as histórias contadas
e a bibliografia, dois tempos nas relações entre indígenas e quilombolas que eram
importantes para entender a dinâmica de permanência dos quilombolas quando os
indígenas, em área lindeira, havia sido expulsos pelo poder local em uma luta violenta.
Eram episódios confusos nos livros, na oralidade trazia sutilezas das relações entre
indígenas e quilombolas que não podiam ser lidas com as histórias das secas no Ceará e
o êxodo, em um processo que, muitas vezes, escravos evadidos podem se ter misturado e
que só entendemos ter havido essa possibilidade quando confrontamos as informações de
comunidades ou famílias que foram acolhidas temporariamente em aldeias indígenas,
cujo processo, de uma ponta a outra, só é percebido quando, na atualidade, aquela
comunidade ou família se autoidentifica, dessa forma dando a público a sua identidade;
daí para diante estão, a um só tempo, sujeitos de direito e a demanda ao Estado.

Volto, agora, ao lugar no córrego, com o senhor Vicente e o agrimensor. Se


os documentos e a bibliografia disponíveis apresentavam lacunas identificáveis diante da
realidade e se a oralidade trazia algo em si, e que não era o caso de preencher aquelas
lacunas, mas talvez de revisar alguns processos mal assentados na história oficial do
Estado do Ceará, ou acertados na história oficial, o problema com a escrita do relatório
era outro e tinha que resolvê-lo em campo, onde estava a informação. Da oralidade nem
sempre temos as datas ao trazer contextos que são precisos nas histórias e fatos narrados
por membros da comunidade, os documentos e a bibliografia traziam nomes gloriosos de
ex-prefeitos, moradores e lugares vagos para contar inscrever aqueles nomes em uma
cadeia de fatos esparsos, como ambos traziam lugares, era o caso de checar e ver o que
mais havia. No relatório estará a história da comunidade e a história arredor a partir dela,
tomando a comunidade como centro e trazendo, também, o seu ponto de vista. Deve-se
ter em mente que quem poderá ler o relatório e decidir sobre ele e sobre destinos, em
última instância, poderá ser um juiz ou outro distanciado daquelas experiências projetadas
― a da comunidade, a do senhor Vicente, a minha, a do agrimensor; cada qual com suas
técnicas e locais de endereçamento das suas falas ― e que este precisará de datas,
compartimentação de processos resultados em fatos, limites e outras indicações para
apoiar alguma decisão, se chegasse a ter de examinar o relatório para proferi-la. No sumo,
um relatório traz um território justificado,

61
Tanto na passagem sobre a casa da América e o da pontezinha do senhor
Vicente estão alguns dos objetos que seguram o tempo, conforme diz Yi-Fu Tuan, e que
não são não são objetos pessoais e a sensação de tempo afetaria, em ambos, América ou
Vicente, a sua sensação do lugar (TUAN, [1977] 1983, pp. 206-207) para onde eu
precisava leva-los para encontrar as indicações de que precisava para cada uns dos
trabalhos. Na forma como os identifiquei aqui, esses lugares e a sensação a partir deles
podem contar, ainda, com uma paisagem por moldura na aproximação dos caminhos, na
serra na largura de um riacho.

Nesse percurso tive a chance de estar ativamente atuando em diversas


acepções de territórios, entrecortados por projetos de infraestrutura que, pela via dos
impactos, se espraiam além dos limites de delimitação institucional e mesmo de
delimitação tradicional (que é a cognição e entendimento das próprias comunidades nem
sempre contempladas porque as regras nas normas não são necessariamente dos mesmos
critérios que as comunidades e povos têm para se territorializar). Também, o
envolvimento na análise e gestão para apoio financeiro dos projetos de sustentabilidade,
geração de renda e desenvolvimento econômico tiveram o efeito de voltar minha atenção
para fluxos contínuos e descontínuos para territórios sistematizados internamente e suas
ligações e dependência do ambiente em que se dá tanto pelos recursos naturais
(conservação, usos) quanto, por exemplo, pelas cadeias produtivas que não se encerram
na linha demarcatória.

Temos que os mapas podem ser muitos: um mapeamento, um mapa da


memória, o de uma identificação e delimitação, as relações econômicas que “vazam” as
fronteiras da delimitação, os mapas dos impactos ambientais com as áreas afetadas.
Muitos destes o Estado produz ou informa a sua produção, considerando que os mapas
possam representar territórios e territorializações e, em certa medida, o Estado tenderá a
dialogar e considerar territórios institucionalizados, em que os mapas produzidos são o
corolário da conversão de áreas, de espaços e territórios em domínios institucionais.

2.2. Outras políticas envolvendo os territórios e as comunidades


tradicionais

No Ministério da Integração Nacional, o trabalho de assessora em meio


ambiente tinha a finalidade de recuperar o registro da ocupação humana ao longo do eixo
62
Norte da transposição do Rio São Francisco que havia sido apagado em épocas que a
finalidade era a de levar água de uma ponta a outra e, depois das inúmeras críticas da
sociedade civil ao projeto, entenderam que a “vocação” do rio era umedecer o semiárido
naquele entremeio, cujo projeto hoje leva o nome de Integração das Bacias do Rio São
Francisco. Dito de outra maneira, trabalhava recompondo um mapa que partia em eixos
da margem esquerda do Rio São Francisco, à altura de Cabrobó e com a captação de água
pouco acima da Ilha de Assunção, no Pernambuco, e seguia até o Ceará, nas proximidades
do Pecém. Esse “Eixo Norte da Transposição” foi desenhado com as técnicas de
bombeamento de água, reservatórios para o transporte da água por declividade. Um
projeto considerado avançado em engenharia na economia da utilização de energia
elétrica, ou outra fonte de suporte, para o transporte da água. Como o projeto inicial ligava
dois pontos extremos, o rio São Francisco ao Norte do Estado do Ceará, sem a previsão
inicial do uso da água ao longo do eixo, a ocupação no entorno do Eixo Norte não foi
anotada, exceto a topografia, a hidrografia, as vazões média, subterrânea e garantida dos
cursos de água e os limites políticos estaduais e municipais ― o projeto possuía estudos
mais detalhados no processo de licenciamento ambiental junto ao Ibama, mas o que
descrevi era o material corrente base para explanação expedita do projeto.

No ano de 2002, durante a campanha do Partido dos Trabalhadores, a


pergunta endereçada a esse projeto de governo era “água para quem?”, dado que tudo
indicava que seria uma adução de água de um ponto ao outro, como era o projeto inicial.
Como durante a elaboração do projeto não se deteve na ocupação ao longo do Eixo Norte,
os dados não foram levados para o projeto, criando-se um deserto no mapa da
transposição e o trabalho era recompô-lo, o que não foi feito com muito sucesso, mesmo
com minhas estadas em campo percorrendo localidades e um eixo imaginário com mapas
em mãos e outras fontes de informações. Seria necessária uma equipe mais ampla para
sistematizar dados de economia, tipos de ocupação, quem demandaria uso e qual uso da
água, atividades produtivas existentes e potenciais, disponibilidade de energia elétrica,
projetos assessórios e indicação para o governo da necessidade de aporte financeiro e
político junto aos estados que a transposição atravessava.

A participação das universidades federais de Sergipe e de Alagoas, cujo


entrosamento coordenei, se referiam aos levantamentos para os estudos relacionados à
calha do rio São Francisco em temas como o peixamento artificial do rio, cheias artificiais
nas várzeas, o avanço da cunha salina a partir da foz. Havia soluções propostas por

63
pesquisadores, para o baixo São Francisco, que eram, por sua vez, polêmicas em termos
ambientais. Era um projeto detestado por ambientalistas, acadêmicos em Pernambuco e
no Rio Grande do Norte. Desse grupo formado por pesquisadores da Universidade
Federal de Alagoas ― UFAL, da Universidade de Sergipe ― UFSE e do Instituto de
Pesquisa Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul ― UFRGS, resultou
um “CD”, em 2003, com um aplicativo simples de indexação e busca de tudo o que se
conseguiu de documentação sobre o rio São Francisco, desde documentos institucionais
a produção acadêmica. O projeto acabou com pouco apoio financeiro nos primeiros anos
do governo petista e os contratos e parcerias foram encerrados, o meu, inclusive, que
trabalhava para o governo contratada pela instituição parceira, a Fundação de Ciência,
Aplicações e Tecnologias Espaciais ― FUNCATE. O traçado da chamada “vocação”
para o Rio São Francisco remonta a Arthur Ramos, carregado de simbologia e com as
intervenções das barragens no rio, foi assumindo outros sentidos e o rio se convertendo
em bandeiras. Surpreendente foi ver, depois, a despeito das críticas, que o projeto foi
executado, “saiu do papel”, depois de mais de 80 anos no governo de Luís Inácio Lula da
Silva.

O tema do acesso aos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio


genético, no marco da regulamentação da Convenção sobre a Diversidade Biológica —
CDB, estava sendo debatido, entre 2003 e 2004, para precisar “detentores” e “provedores”
de tais conhecimentos para a finalidade de repartição de benefícios. Dos debates
participavam as associações representativas de comunidades “locais” — conforme a
Medida Provisória nº 2.186-16/2001 denominou as comunidades tradicionais, repetindo
o texto da CDB —, fórum de ONGs, acadêmicos e empresas como Natura, Beraca,
Embrapa e outras. Até 2015, fiz parte do Comitê de Avaliação de Processos-CAP para
acesso aos conhecimentos tradicionais como profissional independente, já no marco da
Lei nº 13.123, de 2015, que substituiu aquela Medida Provisória. Tais discussões eram
assessórias ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético—CGen, com funções
normativas e deliberativas. Em dado momento, foi discutida uma espécie de
territorialização dos conhecimentos em regiões, ao moldes das áreas etnográficas de Julio
Cezar Mellati; as aproveitando e se diferenciando delas pela ênfase nas vias de acesso aos
locais — em geral rios — e pela abordagem que se prenunciava em considerar “centros
difusores de conhecimento”, para o que o caso exemplar era o Kampo, ou “vacina do

64
sapo”15, conhecimento katukina, kaxinawá e yawanawá, ao menos. A territorialização
não foi levada adiante, felizmente, pois não se tratava, naquelas circunstâncias, de uma
reedição do aspecto do difusionismo cultural, cujas características se perderiam ao se
distanciar, no espaço, dos centros difusores; nisso, uma consequência imediata seria a de
quanto mais distante dos centros, de certo, teriam menores chances de reivindicarem a
repartição de benefícios advinda de conhecimentos acessados por terceiros. Aqui, os
aspecto do “limite” territorial se expressa no limite do alcance de um conhecimento, como
se possível fosse, por demanda empresarial para mensurar e planejar, o quanto deveria
repartir de benefícios; cuja expectativa era a de que o governo estipulasse um universo
fixo de beneficiários, a fim de que não fossem surgindo beneficiários de tempos em
tempos, o que não foi feito pelo governo à época. Mais tarde, em 2015, a lei de acesso ao
patrimônio genético foi substituída e a repartição de benefícios permaneceu em outros
termos mais acessíveis às empresas.

No Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais


Renováveis – Ibama/Sede, trabalhei na análise de processos de licenciamento ambiental
de obras de infraestrutura de médio e grande portes que afetassem o chamado meio
antrópico, atividade desempenhada por geógrafos antes daquele instituto decidir que um
antropólogo deveria integrar a equipe multidisciplinar. No parecer final, assinado por
biólogos de várias especialidades, geógrafos, químicos, agrônomos e por mim, o meu
parecer seguia, também, em anexo e acho que isso se devia à novidade da nova
especialidade, embora eu tivesse buscado um modelo de parecer em que as observações,
indicações e manifestação viessem primeiro, como em um cabeçalho, antes da análise
propriamente dita.

O espaço no licenciamento ambiental é o da investigação de impactos


possíveis balizados entre o empreendimento ― o tipo de intervenção, grandeza,
magnitude, perduração no tempo, etc. ― e onde ele intervém, o que vai consumir, o que
vai acontecer quando estiver sendo planejado, instalado e quando passar a operar. Em

15 Resina raspada da pele de uma rã (Phyllomedusa bicolor) e aplicada sobre pontos previamente
queimados na pele humana. Segundo Edilene Coffaci de Lima (LIMA, 2005), a finalidade do uso do kampo
pelos Katukina (e outros indígenas, especialmente da língua pano, e também por seringueiros locais) é a de
aguçar os sentidos (visão, principalmente) e, assim, aumentar a capacidade do caçador ao mesmo tempo
em que retira deste o azar na caçada. No contexto local, a pessoa aplicadora do kampo empresta atributos
morais àquele em quem ela aplica a “vacina”. Com a difusão do uso em outros contextos (em clínicas de
terapias alternativas, com a finalidade de favorecer a intuição, a terceira visão, os sonhos e o fluxo da
energia vital), os indígenas mais jovens passaram a viajar para grandes centros urbanos para aplicarem o
kampo, sem, no entanto, “transportar” o significado dos atributos morais e sem serem os jovens,
necessariamente, caçadores.

65
linhas gerais, é isso dentro de um espaço maior e em relação de sinergia com outros
empreendimentos, que podem ou não serem impulsionados ou ainda criados a depender
das políticas de planejamento para dada região ou como reflexo de uma política nacional.
Os povos e comunidades envolvidos têm sua vida sem projeto, com projeto, no dia a dia
no território e também quando se deslocam e a vida inserida na aldeia; na cidade que se
movimenta; na região que pode mudar ter mudado o seu perfil de ocupação (e aí se deve
fazer o exercício de imaginar, desde a escala inicial, possíveis mudanças); e em políticas
que de tão macro procuram não vê-las. Não raro o tratamento na mídia aos processos de
licenciamento ambiental que necessitam que consultas e de estudos desses territórios e
das comunidades (alimentação, parentesco, saúde, histórico de ocupação, status fundiário,
educação, perspectivas, atividades econômicas, percepção do empreendimento e
manifestação) apontam a sua presença como um empecilho no eixo discursivo de que não
seriam afeitos ao desenvolvimento e que, por isso, o estorvariam.

Os trabalhos de avaliação de estudos, não apenas envolvendo comunidades


tradicionais, mas população em geral, foram feitos no Ibama, entre 2005 e 2006. Mais
tarde e recentemente tenho elaborado e coordenado estudos nesse sentido, como
consultora contrata por empresas intermediárias, quando o empreendedor é o próprio
governo, ou diretamente para empresas quando o empreendimento é privado. Há, dentre
as etapas dos trabalho, ao menos duas consultas, a primeira para apresentar um plano de
trabalho e a equipe, e saber das comunidades o que acrescentam, se corrigem a
metodologia se aprovam a equipe e o plano de trabalho ou se negam. Se aprovados, o
estudo é feito em campo com a participação da comunidade; escrito em gabinete e
apresentada, à comunidade, uma versão preliminar do relatório para a sua apreciação.
Nessa ocasião a reunião é conduzida pela Funai, quando se trata de Terras Indígenas, e
há quase em regra, passivos com relação à finalização do processo de regularização
fundiária dos territórios em questão ou terras reivindicadas. Na mais da vez a comunidade
não querendo se manifestar sobre projeto algo até que o estado lhes resolva o território.
Como a Funai é dividia em diretorias, a de regularização fundiária é uma, e a que está
representada na reunião é outra. Os assuntos são, portanto, separados no entremeio desses
dois pontos: o órgão, que é o mesmo para o licenciamento ambiental e a regularização
fundiária, e a comunidade, a mesma no estudo do licenciamento ambiental cujo território
é o objeto de regularização fundiária.

66
A separação de coisas juntas leva dias, por vezes reuniões intermediárias,
prévias ou posteriores. Mesmo que um empreendimento não incida em um território, há
distâncias mínimas em relação aos territórios, para que o empreendedor seja obrigado a
efetuar ou não os estudos, e que variam se são Terras Indígenas ou Territórios
Quilombolas, o próprio Ibama pode recomendar a consideração de outras comunidades
tradicionais, ou o Ministério Público Federal. E é importante se dar relevo ao aspecto de
comunidade para não serem tratadas no bojo da população. As distâncias que implicam a
realização dos estudos de impacto e programas respectivos varia, também, com a região
dividida entre a Amazônia, onde são maiores as distâncias, e o resto. Se quisermos retirar
uma informação rápida, aí implícita, comunidades tradicionais, povos indígenas e
quilombolas não estariam nas cidades.

Os estudos de impactos envolvendo povos e comunidades tradicionais são


feitos em separado do Estudo de Impactos Ambientais ― EIA, o que é interessante por
se dar grande atenção em específico às comunidades e, pouco interessante porque,
separados, a maior importância é conferida ao EIA, com inúmeras autorizações parciais
(outorga de água, supressão de vegetação, etc.) para o atendimento de uma série de
resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente ― CONAMA, normas inexistentes,
como um corpo, um conjunto, para populações tradicionais nesse aspecto. Há, entre esses
dois estudos, uma dificuldade, ao menos, que é o ponto de vista: no EIA, o ponto de vista
é o empreendimento e as áreas em mapa em níveis de afetação, por exemplo, se se trata
de uma rodovia, serão mapeados, coligidos e estudados todos os dados de fauna, flora
fitofisionomia, ocupação humana, jazidas, etc. a um quilômetro de cada lado do eixo da
rodovia. Nos estudos das populações envolvidas, esse mapeamento não é suficiente, o
ponto de vista é a partir da comunidade em relação à obra, o que gera um outro mapa dos
impactos e de áreas de influência e que os esforço, exaustivo, para os dados no EIA pouco
ou em reduzida porção podem ser aproveitados para os estudos específicos com as
comunidades tradicionais e não há normas que obriguem o empreendedor a fazer um
estudo de mesma monta.

No Núcleo de Povos e Comunidades Tradicionais do Ministério do


Desenvolvimento Social — MDS, os trabalhos seguiram com os temas de geração de
renda e sustentabilidade intermediando o apoio financeiro às associações das
comunidades feito por diversas instituições, dentre as quais a Petrobras. O MDS
capitaneia a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e

67
Comunidades Tradicionais, exercendo a presidência da Comissão, a qual é secretariada
pelo Ministério do Meio Ambiente e, no segundo semestre de 2006, integrando a equipe
do MDS, participei da organização e das consultas aos povos e às comunidades
tradicionais em cinco localidades no País para a minuta do texto do Decreto n° 6.040, de
7 de fevereiro de 2007, que instituiu Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável
de Povos e Comunidades Tradicionais; além de diversas reuniões daquela Comissão
ocorridas em Brasília para detalhamento do conteúdo da norma, cujo processo de
formulação merece um trabalho à parte, em outra ocasião, tanto pelas notas tomadas
acerca da instalação de empreendimentos de infraestrutura afetando povos e comunidades
tradicionais e os respectivos processos de licenciamento ambiental quanto pela
interrelação peculiar entre segmentos étnicos que pelas suas pautas ou mesmo
regionalização não se encontrariam e conviveriam com tanta assiduidade em torno de
temas por eles escolhidos em conjunto: Geraizeiros, Pomeranos, Comunidades de Fundo-
de-Pasto, Povos Indígenas, Ciganos, Quebradeiras de Coco de Babaçu, Faxinalenses,
Quilombolas, Povos de Terreiro, entre outros, paritariamente a instituições
governamentais como Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional—Iphan,
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade-ICMBio, Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama, Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária—Incra, Fundação Nacional do Índio - Funai entre outras.
Quero anotar, daquele processo, aqui, as indicações feitas para a não criação de Unidades
de Conservação de Proteção Integral, o que foi discutido explicitando-se que a minuta em
elaboração era pretendida para um decreto, uma norma menor, portanto, que a Lei do
SNUC, que prevê a instituição de tais Unidades de Conservação e que não se estaria
minutando uma nova lei porque esta seguiria uma tramitação difícil no Congresso
Nacional em contexto político nada favorável à visibilização de povos e comunidades
tradicionais para além dos quilombolas e indígenas. Da Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais trago um breve
histórico mais adiante neste capítulo.

Entre 2007 e 2012, já como servidora no Incra-Sede, estive cedida à


Assessoria Especial em Gênero, Raça e Etnia, do Ministério do Desenvolvimento
Agrário—MDA, onde coordenei a análise e seleção de projetos apresentados por
associações indígenas para apoio financeiro em ações de inclusão social e
desenvolvimento econômico a serem conveniados com o Governo Federal. Depois,

68
integrei a equipe do Departamento de Regularização Fundiária de Territórios
Quilombolas, recepcionando e analisando Relatórios Técnicos de Identificação e
Delimitação, realizando identificações e delimitações de Territórios Quilombolas;
analisando processos de licenciamento ambiental que envolvessem comunidades
quilombolas — antes dessa atribuição ser repassada à Fundação Cultural Palmares —,
dentre os quais o Centro de Lançamento de Alcântara ― CLA, para sítios de lançamentos
de foguetes em Alcântara, no Maranhão; e, como técnica em atendimento à solicitação da
Procuradoria Federal Especializada do Incra, acompanhando as discussões sobre as
sobreposições de Territórios Quilombolas e Unidades de Conservação de Proteção
Integral na Advocacia-Geral da União, antes de que se optassem pela chamada dupla
afetação em 2014.

Teço, a seguir, breves comentários a cada uma das experiências.

A Assessoria Especial em Gênero, Raça e Etnia, do Ministério do


Desenvolvimento Agrário — MDA, ligada diretamente ao gabinete do Ministro, era
responsável pelo Programa de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia ―
PPIGRE16, onde atuei por poucos meses entre ter ingressado por concurso público no
Incra e integrar a equipe da Coordenação de Regularização Fundiária de Territórios
Quilombolas. No PPIGRE era “Coordenadora de Etnia”, com o público indígena e a
antropóloga Paula Balduíno, também ingressante no mesmo concurso em 2006, era a
“Coordenadora em Raça”, com quilombolas. As políticas em gênero eram cuidadas pelas
duas coordenadoras gerais, Andrea Buto e Renata Leite, dentre os programas havia o
programa de documentação de mulheres rurais, de extrema importância para garantir
direitos às mulheres, como aposentadoria e outros, além de empoderá-las, termo este
amplamente utilizado à época tanto pelos movimentos quanto pelo governo.

O meu trabalho consistia em elaborar minutas de chamadas públicas de


projetos de associações indígenas, selecionar em comissão, reunir as peças e documentos
necessários à formalização de convênio entre o governo federal e as associações
vencedoras para projetos diversos. Os recursos financeiros eram poucos, em torno de 150
mil reais, porém, era um recurso com maior flexibilidade; explico: os recurso de governo
têm “carimbos”, como se usa dizer, portanto, há recursos de capacitação ― com os quais
é possível serem realizados cursos, palestras, oficinas e “capacitações ―; há os recursos

16 Depois, no flanco “raça”, passou a integrar o Programa Brasil Quilombola da Secretaria de


Políticas de Promoção da Igualdade Racial ― SEPPIR.

69
de investimento ― que possibilitam edificações, por exemplo, e se consideram
edificações um banheiro externo ou uma cerca que tenha duas fileiras de tijolos e, outro
exemplo, a aquisição de equipamentos, maquinários, embarcações, motores, etc. ―; e os
recursos de crédito, considerados, como por exemplo, aquisição de gado, mesmo que uma
cabeça de uma matriz, pois entende-se que se reproduz e se avoluma, ou, noutro exemplo,
aquisição sementes e miçangas junto a equipamentos de artesanato. Aqui é uma
exemplificação rápida, todas as aquisições devem ser extremamente justificadas e onde
se inserem no projeto para classificar quanto aos tais “carimbos”.

O recurso de que a “Coordenação em Etnia” dispunha, permitia ser utilizado,


ao menos em parte, como investimento. Devo ressaltar que para povos e comunidades
tradicionais os recursos são, quase que invariavelmente, os de capacitação, as fatias de
outros recursos seguem para outros públicos ou outros projetos com comunidades mas de
aplicação mais generalizada, o que depende da força política e do peso dos projetos dentro
de cada gestão de governo, quanto ao tipo de ação, já na destinação dos recursos antes,
nos planos plurianuais de governo. Uma observação acerca da “capacitação”: eram
comuns as queixas das comunidades, em fóruns e em reuniões, de forma mais ampla nas
instituições governamentais que tinhas ações com povos tradicionais, por receberem
capacitações o que indicaria alguma “incapacidade”, pois, nos objetos dos convênio e nas
ações e atividades previstas essa palavra era exaustivamente repetida nos formulários e
demais documentos e usada sem parcimônia na identificação do tipo de recurso alçado.
Tais projetos são avaliados por diversas instâncias, qualquer dúvida ou informação vaga,
especialmente quanto á compatibilidade das atividades previstas com o tipo de recurso
que se pleiteia pode fazer com que o projeto volte para se dirimir dúvidas, o que pode
custar não se ter o projeto proposto a tempo das datas finais para os empenhos dos
recursos. Os projetos com recursos de investimento que prevejam edificações devem ser
feitos em territórios com regularização fundiária em etapa que já se tenha pago a
indenização aos eventuais proprietários ou posseiros incidentes, pois o governo entende
que não fará investimento em favor de terceiro externos à comunidade, devendo ser
comprovado o domínio da área do local de determinada instalação. Portanto, no caso de
terras indígenas e territórios quilombolas, não basta o processo de regularização fundiária
ter declarado o limites após o período do contestatório, é necessário que tenham sido
pagas as indenizações.

70
Também, os projetos com edificações necessitam de engenheiros ou, a
depender do tipo de obra, cartógrafos e engenheiros agrônomos com capacidade para
assinar a planta, também, esses profissionais para avaliar a proposição de tais projetos e,
ainda, em outra instância quem confira e tenha capacidade técnica para dar o acordo para
a efetivação do convênio. A administração pública federal era extremamente carente de
engenheiros, profissionais disputados à época, depois foram feitos concursos para suprir
tal deficiência, mas ainda era necessário quem subscrevesse as plantas para as associações
na elaboração dos seus projetos que envolvessem edificações. Dito de outra forma, se os
recursos de investimentos, que já eram poucos para povos e comunidades tradicionais, os
recursos para edificações eram mais difíceis. Naquela época foram contemplados projetos
com povos indígenas com recursos de investimento na aquisição de bascos, motores e, no
caso de terra indígena regularizada, foi financiado um projeto de irrigação na Bahia, entre
outros e também envolveu recursos de capacitação.

Outra observação na lida dos projetos destinados aos povos indígenas é


quanto aos assessores das comunidades e das associações. Quando as associações se estão
constituindo, e mesmo quando algumas comunidades estão se compondo com
representação política “para fora” da comunidade, em geral há sujeitos que as auxiliam
nesse processo e se misturam a ele, são indivíduos de diversas instituições da
administração pública ou acadêmicas, são agentes locais ou organizações, não raro com
relação estreita com a comunidade e que, conforme a comunidade se fortalece e ajusta o
discurso sobre si, vão elas colocando tais assessores em uma margem do ponto central da
comunidade. No aspecto de seleção dos projetos, isso era algo a ser observado com rigor
para garantir tanto que a comunidade fosse protagonista do projeto, e não somente
beneficiária e, também, a consecução do projeto e a aplicação e execução do recurso,
sendo buscado se evitarem futuras cisões na coordenação de um projeto. Nisso, eu
efetuava contatos reiterados com as comunidades e, junto com elas, o repasse dos itens e
da lógica da proposta, checagem comum prévia à formalização do convênio, o que tinha,
ainda, a intenção de indicar para a comunidade que o governo manteria a interlocução
estritamente com a comunidade e que ela pudesse estar segura disso.

Dando sequência às breves descrições de algumas das experiências naquele


período, a análise do projeto Centro de Lançamentos de Foguetes de Alcântara ― CLA,
no Estado do Maranhão, antes de que a Fundação Cultural Palmares ― FCP fosse a
instituição interveniente exclusiva nos processos de licenciamento ambiental, foi feita no

71
Incra e também, com vistas àquela Fundação. Analisei as estruturas ― os quatro sítios de
lançamento, a vila de funcionários, a estrada entre os sítios e a vila e o atracadouro. No
entanto, o atracadouro mantinha comunicação com um porto em São Luís, e interferiria
na área marítima (circulação, caminhos marítimos, etc.) e este porto não estava dentre as
estruturas naquele licenciamento ambiental. Era o porto de Itaqui, antes de se converter
em um dos principais portos do escoamento de milho e de soja da Região Centro-Oeste à
margem direita do vale do rio Araguaia. No projeto analisado, apresentado ao Incra, os
quatro sítios barravam o acesso das comunidades ao mar e era dito que existiriam
corredores por entre os sítios sem, no entanto, os indicar objetivamente no projeto. Já
havia analisado o Estudo de Impactos Ambientais ― EIA do CLA, cujo empreendedor
era a Agência Espacial Brasileira ― AEB, quando trabalhava como consultora do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento ― PNUD/ONU na Coordenação
Geral de Licenciamento Ambiental no Ibama e, naquele projeto, os comunitários
poderiam ultrapassar os sítios, sem corredores entre eles, identificados com crachás; em
que a interposição ao acesso ao mar e definindo paulatinamente, ao menos, a relação da
comunidade com o mar ― mulheres, crianças, idosos, homens adultos. A produção do
Laudo Antropológico para a Base de Lançamento de Alcântara foi uma exigência da
Procuradoria Geral da República, por meio da Portaria nº 7 de 7 de julho de 1999, do
Ministério Público Federal ― MPF no Estado do Maranhão 17. O MPF entrou em contato
com a Associação Brasileira de Antropologia ― ABA, que indicou o professor
antropólogo Alfredo Wagner de Almeida para a elaboração do Laudo Antropológico
(ALMEIDA, 2006, p. 21).

A comunidade quilombola de Alcântara se formou a partir de fazenda de


algodão que foram abandonadas e a escravatura lá deixada. Para a instalação da Base, a
área de noventa povoados foi desapropriada e quarenta e sete povoados se encontravam
fora da área desapropriada (ALMEIDA, 2006, pp. 159-162). Além disso, a indicação de
“prédios”, edificações, para identificar povoados no cadastro da Fundação Nacional de
Saúde ― Funasa acabou por invisibilizar em grande parte outras treze comunidades
identificadas por Almeida, pois o que seria elegível, ou não, para ser considerada uma
edificação? Temos aqui o que pode ser um exemplo da retenção de informações por parte
do Estado, de que fala Abrams (ABRAMS, [1977] 1988, p. 83), que não seria algo secreto

17 Pois fora instaurado o Inquérito Civil nº 08.109.000324/99-28 com o fito de apurar e verificar
possíveis irregularidades na implantação da Base de Lançamento de Foguetes (ALMEIDA, 2006, p. 21),
anteriormente ao projeto Cyclone 4.

72
segundo o autor e que, neste caso, é um efeito de forma encadeada: o critério de
edificações porque indicam as indenizações a serem pagas e, a partir daí, se tem uma lista
que aproxima o que é ou não considerada uma edificação, daí para diante tal lista é a que
poderá dar visibilidade à comunidade de Alcântara em demais ações de governo, cujas
informações preliminares básicas necessárias para a indicação políticas públicas são, em
geral, quem, onde e quantos.

Da intervenção de um empreendimento de infraestrutura, e outros, em área


parcial de um território tradicional decorrerão impactos físicos, ambientais e outros na
área de incidência direta da instalação ― nem sempre um impacto pontual, se em cursos
de rios, bacias hidrográficas ou outros elementos que expandam tal área ― e decorrerão
outros impactos no comunidade como um todo e no arranjo da sua territorialização
naquele território; e esses impactos, mesmo não sendo na área diretamente afetada pelo
empreendimento, poderão ser tanto diretos quanto indiretos quanto ao grupo e quanto ao
próprio território, distinto aí de terra, área ou local. O estudo específico para a comunidade
dirá quais são e sua classificação. Dessa maneira, pode-se ver a intervenção do Ministério
Público Federal ― MPF, no caso de Alcântara, seguindo nesse sentido: uma intervenção
em parte de uma comunidade sem considerá-la como um todo porque não havia, à época,
a identificação de seu território, além da cisões internas à comunidade que uma ação de
governo que a considere em parte, como foi o processo de licenciamento ambiental
naquele momento.

Quanto ao tema das sobreposições tratadas na Câmara de Conciliação e


Arbitragem Federal—CCAF da Advocacia Geral da União ― AGU, havia as reuniões,
na AGU, entre os procuradores federais do Incra, da Palmares e do ICMBio, presididas
por um membro da AGU que tinha a função conciliatória; havia as reuniões das equipes
técnicas do Incra e do ICMBio e havia as reuniões junto às comunidades, estas eram feitas
para explicar a situação, consultar as e formular minuta de termo de compromisso. Das
que participei, foram feitas em Rondônia, no Quilombo Santo Antônio do Guaporé, em
sobreposição com a Reserva Biológica do Guaporé; em Minas Gerais, no Quilombo de
Mumbuca em sobreposição com a Reserva Biológica da Mata Escura; no Estado do
Amazonas, no Quilombo de Tambor e o Parque Nacional do Jaú; e Comunidade de São
Roque, no Estado de Santa Catarina, em interferência com o Parque Nacional da Serra
Geral e o Parque Nacional Aparados da Serra. Também, pude participar e acompanhar as
discussões da formulação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos

73
e Comunidades Tradicionais, que resultou no Decreto nº 6.040/2007. Passo a comentar
os processos da CCAF e o período de formulação da Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais em separado, como
seguem.

2.3. A instituição da Política Nacional de Desenvolvimento


Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais

Instituída pelo Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, a Política


Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais foi
elaborada pela Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades
Tradicionais, criada pelo Decreto de 27 de dezembro de 2004, alterada pelo Decreto de
13 de julho de 2006 e que depois passou a ter no título a expressão “Povos e Comunidades
Tradicionais”, especialmente por conta dos povos indígenas, que não se sentiam à vontade
com a denominação “comunidades”, se entendendo como “povos” e, também, pelo povo
de terreiro. Mais tarde, a Comissão foi configurada como Conselho Nacional dos Povos
e Comunidades Tradicionais, por meio do Decreto nº 8.750, de 9 de maio de 2016 e, em
agosto de 2018, passou a integrar o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos. A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades
Tradicionais é resultado da demanda das comunidades tradicionais, principalmente por
territórios. Da parte do governo, faltava um instrumento normativo que referisse esse
público. Também, era imaginada como uma forma de se ter status mais aproximado ao
dos povos indígenas e dos remanescentes das comunidades dos quilombos, ambos
previstos e nominados na Constituição Federal, na elaboração de políticas públicas, que
não se restringiam à demanda pela regularização fundiária dos territórios, embora fosse a
principal demanda.

Antes, em 2005, aconteceu o “I Encontro Nacional de Comunidades


Tradicionais: pautas para Políticas Públicas”, acontecida na cidade de Luziânia, no Estado
de Goiás, entre os dias 17 e 19 de agosto de 2005.

Tal evento [o I Encontro Nacional de Comunidades Tradicionais, em


2005] teve como principal objetivo não só estabelecer uma discussão
conceitual a respeito do termo “comunidades tradicionais” no Brasil,
mas também identificar, junto aos representantes das diversas

74
comunidades por ele subentendidas, quais as principais demandas do
setor em políticas públicas, e os principais entraves para que tais
políticas possam ser efetivadas. (MDS ― Ministério de
Desenvolvimento Social e Combate à Fome e MMA ― Ministério do
Meio Ambiente, 2006, p. 6).

Foram, portanto, eleitas naquela reunião as associações representantes na dos


povos e comunidades tradicionais na Comissão Nacional de Desenvolvimento
Sustentável das Comunidades Tradicionais, ainda sem a troca de nome para incluir
“Povos”, como segue:

Luziânia é bastante próxima de Brasília, a escolha do local se deveu à


possibilidade de hospedar os representantes participantes e, no mesmo local, contar com
infraestrutura para reuniões e alimentação. A organização foi feita pelo Ministério do
Meio Ambiente e pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
Daquele primeiro encontro, em 2005 em Luziânia, no Estado de Goiás, os representantes

75
das comunidades tradicionais indicaram um rol de trinta e cinco demandas e delas
priorizaram doze demandas, como segue abaixo.

As doze diretrizes indicadas pelas comunidades tradicionais representadas na


Comissão, naquele Encontro de Luziânia em 2005, são o começo da elaboração da
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais
instituída em 2007, pelo Decreto nº 6.040.

A Comissão, como instância colegiada, reuniu associações na sua


composição e não indicou quem eram povos e comunidades tradicionais nominalmente,
pois, pretendendo discutir e influenciar políticas públicas, ao se indicar um grupo étnico-
social acaba-se por excluir outros. A Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável
dos Povos e Comunidades Tradicionais foi instalada em solenidade no Ministério da
Cultura no dia 02 de agosto de 2006, com base no Decreto de 13 de julho de 2006, quando
os ministros de Estado do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e do Meio
Ambiente eram, respectivamente, Patrus Ananias e Marina Silva. A Comissão era

76
presidida pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome ― MDS e
secretariada pelo Ministério do Meio Ambiente—MMA.

A organização interna aos ministérios do Meio Ambiente ― MMA e o


Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome ― MDS, para o assunto da
Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades
Tradicionais era a seguinte: no MMA o assunto da Comissão estava ligado à Diretoria de
Agroextrativismo e Desenvolvimento Sustentável do MMA, cujo diretor era Jorg
Zimmermann; no MDS era ligada ao Núcleo de Povos e Comunidades Tradicionais,
coordenado pelo antropólogo Aderval Costa Filho; o Núcleo era ligado à Secretaria de
Articulação Institucional e Parcerias ― SAIP18. Trabalhei, em 2006, naquele Núcleo de
Povos e Comunidades Tradicionais como consultora da Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura ― UNESCO/ONU. O Núcleo tinha a função, no
MDS, tanto de acompanhar ações no ministério para povos indígenas, quilombolas e
comunidades tradicionais quanto a de ser o responsável por algumas das ações do
ministério. Um lista das ações restritas à SAIP se encontra no Anexo 1, para se ter uma
ideia no universo de projetos naquela secretaria à época em que a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais estava sendo
formulada.

A partir das doze diretrizes que foram retiradas no “I Encontro Nacional de


Comunidades Tradicionais: pautas para Políticas Públicas”, em Luziânia em 2005, foi
elaborado por Teresa Cristina Moreira, no MMA, que secretariava a Comissão Nacional
de Desenvolvimento Sustentável de Comunidades Tradicionais; e por mim, no MDS, que
presidia a Comissão, o documento intitulado “Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais ― Subsídios para a elaboração do
texto base para a Oficina de Trabalho (25 e 26 de maio de 2006), versão de 09 de maio
de 2006, Brasília” (MDS ― Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome e
MMA ― Ministério do Meio Ambiente, 2006). Nesse documento constam os
“Antecedentes”, nas movimentações e ações anteriores à Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, as justificativas
para a instituição da Política em forma de “considerandos” e para cada uma das doze

18
Depois passou a ser chamada Secretaria de Articulação e Inclusão Produtiva ― SAIP e em 2011
foi reorganizada, tendo algumas das suas funções distribuídas para outras Secretarias no MDS para poder
abrigar o Programa Brasil Sem Miséria.

77
diretrizes retiradas no Encontro de Luziânia, em 2005, foram colocados os subtítulos de
“Objetivo Específico” e “Diretrizes Gerais de Ação”; e uma minuta da Exposição de
Motivos do que veio a ser o Decreto nº 6.040/2007 também foi feita.

A minuta do decreto foi submetida à Comissão e no segundo semestre de


2006 e os “objetivos” e as “diretrizes” foram escritos nas reuniões da Comissão. Tais
reuniões aconteciam em Brasília, em geral, em estrutura da Companhia Nacional de
Abastecimento ― CONAB, ligada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento – MAPA, que possuía um auditório e salas, para reuniões setorizadas dos
grupos étnico sociais representados na Comissão. Para escrever a minuta do decreto, o
texto era projetado para que todos tivesse acesso juntos aos mesmos pontos de discussão
e ia-se discutindo e redigindo o conteúdo, retirando destaques para discussões
pormenorizadas. Meu papel era o de redigir e outras atividades como a da organização
das reuniões e elaboração de documentos acessórios, tais como relatórios, muitas das
atividades divididas com Júlia Otero no MDS e com Teresa Cristina no MMA. O texto
da minuta foi submetido a reuniões regionais, para abranger representantes de outros
povos e comunidades tradicionais que não participavam diretamente da Comissão e
lideranças locais. Foram as reuniões:

Tabela 1 ― Reuniões regionais da Política Nacional de


Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais:
o início em 2006

Local Data
2006
Rio Branco/AC 14 a16 de setembro
Belém/PA 14 a 16 de setembro
Curitiba/SC 18 a 20 de setembro
Cuiabá/MT 21 a 23 de setembro
Paulo Afonso/BA 21 a 23 de setembro
OBS: as datas foram as previsões, e podem ter pequenas divergências com as datas de fato ocorridas.

O documento resultante era bastante interessante porque tinha impresso em


cada um deles dos itens, que sofreram algumas poucas modificações no durante as
discussões, a percepção dos povos e comunidades participantes. Quanto ao termo
“povos”, nas reuniões que trazia representantes de governo e das comunidades, era
sempre necessário enfatizar para alguns dos órgãos de governo que “povos” se referia a
“povos tribais”, como na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho e

78
era, também, uma autodenominação e que não disputava ou pretendia um outro povo para
o País em desacordo com a Constituição Federal e a Segurança Nacional. Quando o
decreto foi publicado, trouxe apenas os headlines, sem as suas descrições na forma de
“Objetivo Específico” e “Diretrizes Gerais de Ação”, que cada um deles continha. São,
portanto, os itens que constam no Artigo nº 3, no Anexo do Decreto nº 6.040/2007, em
quatorze incisos, que foram os desdobramentos daquelas doze demandas iniciais do
encontro em Luziânia em 2005,

Em larga medida o Decreto nº 6.040/2007 reforça e reitera normas existentes,


no entanto, faz adendos importantes: a definição de território incorpora a ocupação de
“forma permanente ou temporária”, pois já havia mobilização contra a regularização
fundiária de terras indígenas e de territórios quilombolas apegadas a uma leitura temporal
da “ocupação”; incluiu atividades “econômicas” dentre os usos dos territórios necessários
à reprodução física e temporal; e definiu “povos e comunidades tradicionais”, que era um
objetivo já colocado pelo governo às comunidades, naquele encontro em Luziânia em
2005:

Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e


que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização
social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para
sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
(art. 3º . Inciso I, do Decreto nº 6.040/2007)

O interessante, com relação aos territórios, é que há diferentes formas de


territorialização e de reivindicações como, por exemplo, as quebradeira de coco-do-
babaçu têm em vista o acesso livre aos recurso e não ao território onde ele se encontra.

Quanto às sobreposições e à indicação de não serem mais criadas unidades de


conservação de proteção integral, dentre aquelas doze diretrizes do Encontro de Luziânia
em 2005, não surtiram efeitos contundentes nos anos ulteriores. E aqui podemos
identificar a bifurcação nos discursos do Estado acerca da conservação da biodiversidade
que endereça o tema para a Repartição de Benefícios, prevista na Convenção sobre a
Diversidade Biológica―CDB, como na publicação “Áreas Prioritárias para a
Conservação, Uso Sustentável e Repartição de Benefícios da Biodiversidade Brasileira:
atualização da Portaria MMA nº 9, de 23 de janeiro de 2007”. O mapa gerado para a
conservação é atualizado de tempos em tempos e a finalidade da indicação de áreas
prioritárias no Ministério do Meio Ambiente—MMA é a de apoias a implementação de

79
ações (criação de unidades de conservação, fiscalização, licenciamento ambiental e
fomento ao uso sustentável) e subsidiar a tomada de decisão daquele ministério. As terras
indígenas são indicadas no mapa e participam, são recobertas, por indicações para a
conservação em vários níveis. Os outros territórios não possuem um mapeamento dado a
público, no caso dos quilombolas, e no caso das comunidades tradicionais, não previstas
na Constituição Federal, não têm visibilidade. As sobreposições decorrem já da falta de
planejamento transversal entre os órgãos.

Quanto à Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e


Comunidades Tradicionais, a ideia era a de que o Decreto nº 6.040/2007 tivesse ampla
aplicação nas ações de órgãos governamentais, a fim de se ter uma base legal para elas e,
também, nos municípios e unidades da federação e, como colocado acima, havia a
representação de associações das comunidades prevista na composição da Comissão
Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, com
mandato bienal; o Decreto nº 6.040/2007 não traz indicação de quais são ou não povos e
comunidades tradicionais, como dito atrás, para não excluir e nem supor que se conheçam
todas. A Câmara Municipal de Paraty promulgou a Lei nº 1.835, de 10 de janeiro de 2012,
para estabelecer diretrizes para políticas públicas para povos e comunidades tradicionais.
É um bom resultado que aquele decreto tenha surtido reproduções até às municipalidades;
no entanto, no mesmo texto da Lei, o Município de Paraty restringe quais são os povos e
comunidades tradicionais que o município reconhece, conforme o Artigo nº 4 daquela
Lei: “São reconhecidos pelo Município de Paraty, os seguintes povos tradicionais,
conforme sua etnia, histórico e característica diferenciada...” listando, na sequência,
indígenas, quilombolas e caiçaras. Observo que a administração pública pode, e deve,
circunscrever suas ações a um público beneficiário e pode tratá-los de forma isonômica,
o que pode comportar algumas ações para uns grupos e para outros grupos outras ações
ou nenhuma em dada ação específica. Mas inscrever na Lei reconhecer determinados
grupos me parece que aponta para ferir a autodeterminação e o autorreconhecimento. É
ambíguo, porque a Lei, também é um documento que coloca, ao menos ali, indígenas,
quilombolas e caiçaras em pé de igualdade para as políticas públicas.

80
2.4. Anotações sobre as Câmaras de Conciliação e Arbitragem
Federal ― CCAF/CGU/AGU

Nas questões de sobreposições, a questão colocada era a de que os usos seriam


divergentes, tanto os das comunidades quanto os previstos para a categoria das Unidades
de Conservação. Além disso, como se trata de regularização fundiária tanto para um
territórios quilombolas, que eram os casos que eu acompanhava enquanto trabalhava no
Incra, havendo o “conflito de interesses” entre o Incra e o ICMBio; e sendo o Advogado-
Geral da União a mesma instância para defender os interesses do Incra de do ICMBio em
uma eventual judicialização de disputas, seria impraticável que atuasse. Daí a busca do
Governo em dirimir conflitos por meio da Câmara de Conciliação e Arbitragem Federal—
CCAF. Os impasses nas reuniões, que eram comuns às situações de sobreposição, não
foram poucos. O Incra entendia que não haveria priori usos divergentes quando o estilo
de vida das comunidades quilombolas seriam compatíveis com a conservação,
manutenção e incremento da biodiversidade, conforme a política de biodiversidade
empreendida pelo Ministério do Meio Ambiente, ao qual o ICMBio, portanto, não havia
porque o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade ― ICMBio
reivindicar as áreas que estavam em regularização fundiária para os territórios
quilombolas. O ICMBio não se mostrava afável a abrir mão das áreas e as poucas vitórias
em favor dos quilombos resultaram em desafetação de uma parcela do território
quilombola, a ser submetida, ainda ao Congresso nacional para a desafetação, conforme
prevê a Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, a Lei do SNUC, nos casos de desafetação e
alteração de unidades de conservação. o termo de compromisso era elaborado em
conjunto com as comunidades, no entanto, era este documento previsto no capítulo
relativo ao reassentamento de populações tradicionais do Decreto nº 4.340, de 22 de
agosto de 2002, que regulamenta o artigo nº 42 da Lei do SNUC.

Havia o documento “termo de compromisso”, que surgia como um


cadastramento e serviria certamente, em última instância, para isso: quantificar e
mensurar qualquer indenização e retirar a comunidade do território com prazo definido.
Remarque-se que eram termos de compromisso a serem assinados por famílias, onde se
perdia a noção de grupo. O artigo n° 39 do Decreto nº 4.340/2002 prevê que:

Enquanto não forem reassentadas, as condições de permanência das


populações tradicionais em Unidade de Conservação de Proteção

81
Integral serão reguladas por termo de compromisso, negociado entre
o órgão executor e as populações, ouvido o conselho da unidade de
conservação. (art. 39, Decreto nº 4.340/2002)

Nas reuniões dos técnicos do ICMBio e do Incra, as dificuldades estavam nas


perspectivas diferentes — de um lado era esperado que as comunidades saíssem das
Unidades de Conservação e, de outro, que permanecessem —, cuja finalidade era retirar
caminhos para uma situação em subsídio à manifestação da CCAF/AGU que, ao meu ver,
esperava o consenso; eis aqui o ponto referido no item “2” acima: o da deslegitimação de
um processo e da próprias comunidades como sujeitos históricos e de direitos, em que em
uma mesa de técnicos se pudessem, até, realinhar limites. Enquanto participei das
discussões, a postura dos técnicos do Incra tinha o propósito consciente de estar nas
discussões e reiteradamente buscar imprimir, que fosse, alguma internalização àquelas
tratativas em proveito da diversidade cultural e mesmo da defesa da missão institucional
do Incra, que era a de regularizar os territórios e defender os interesses das comunidades
quilombolas. De outra parte, os termos de compromissos ao serem discutidos, debatidos,
discordados, refeitos, acabavam instruindo os processos administrativos de regularização
das Unidades de Conservação, o que me pareceu ser providencial em colocar a
perspectiva do ICMBio sempre um passo à frente.

O termo de compromisso era indicado como um documento provisório pelo


ICMBio, como um ajuste de condutas até o deslinde da situação na CCAF, porém, o nome
do documento era o mesmo previsto no artigo n° 39 do Decreto nº 4.340/2002 como
instrumento de retirada das comunidades. Nessa atuação conjunta entre Incra e ICMBio,
indicada pela CCAF/CGU/AGU, foram feitas reuniões junto às comunidades para
explicar a situação, as consultar e formular minuta de termo de compromisso, das que
participei, foram feitas em Rondônia, no Quilombo Santo Antônio do Guaporé, em
sobreposição com a Reserva Biológica do Guaporé; em Minas Gerais, no Quilombo de
Mumbuca em sobreposição com a Reserva Biológica da Mata Escura; e no Amazonas no
Quilombo de Tambor e o Parque Nacional do Jaú. Para a comunidade de Santo Antônio
do Guaporé, em Rondônia, que as negociações estavam mais avançadas, foi proposto um
outro nome para o documento “termo de convivência etnoambiental” para se buscar sair
do escopo das previsões de retirada da comunidade que o “termo de compromisso”
carregava consigo.

82
Em de abril de 2009, a comunidade quilombola de Santo Antônio do Guaporé,
no Estado de Rondônia, enviou uma correspondência a Câmara de Conciliação e
Arbitragem Federal ― CCAF dizendo ter tomado conhecimento de que haveria uma
reunião naquela CCAF prevista para maio de 2009. A correspondência foi enviada via
Departamento de Regularização Fundiária de Quilombos ― DFQ/Incra. Na
correspondência se manifestaram acerca do documento “Quadro de Diagnósticos e
Proposições”, que era o documento feito a partir das reuniões de consulta em campo no
escopo da Câmara de Conciliação e subsidiário ao termo de compromisso. Nessa
correspondência, a comunidade solicitou estar presencialmente nas reuniões da CCAF e
que não queria um documento que falasse por ela. Na manifestação, a comunidade
reiterou que eram vinte e sete anos de conflitos com as autoridades do ICMBio e, antes,
do Ibama por conta da instalação da Reserva Biológica do Guaporé em terras onde as
famílias viviam desde há muito tempo.

A postura da CCAF foi a de que a consulta já teria o seu lugar nas idas a
campo de técnicos do Incra e do ICMBio e a participação nas reuniões de conciliação são
restritas a entes da federação nos termos da Portaria/AGU nº 1.281, de 27 de setembro de
2007. Essa Portaria em conjunto com a Portaria/AGU nº 1.099, de 28 de julho de 2008,
tratam da instauração da conciliação e quem pode solicitar (Ministros de Estado;
Governadores; dirigentes de entidades da Administração Federal Indireta; Prefeitos, em
casos específicos19; Procuradores20 o Advogado-Geral da União), a finalidade da
conciliação é o “deslinde, em sede administrativa, de controvérsia de natureza jurídica”
(art. 1º da Portaria nº 1.281/2007), ou seja, se busca a conciliação na esfera administrativa
para que não seja tratada na esfera judicial, onde o “advogado” dos órgãos federais em
conflitos de interesse seria o mesmo para as partes, a AGU. Outras comunidades que
apontaram a pertinência de participarem das reuniões da CCAF e solicitaram sua
participação à época foram: a Comunidade Quilombola de São Roque, no Estado de Santa
Catarina, já manifestada na própria reunião de Consulta realizada no quilombo, em 21 de
maio de 2009; e a Comunidade Quilombola de Mumbuca, no Município de Jequitinhonha
no Estado de Minas Gerais.

19 “Municípios que sejam Capital de Estado ou que possuam mais de duzentos mil habitantes”
(art. 1º da Portaria nº 1.099/2008).
20 “Consultor-Geral da União, Procurador-Geral da União, Procurador-Geral da Fazenda
Nacional, Procurador-Geral Federal e Secretários-Gerais de Contencioso e de Consultoria” (inciso III, art.
2º da Portaria nº 1.099/2008).

83
O Parque Nacional de Aparados da Serra e o Parque Nacional Serra Geral
estão em sobreposição com o Território Quilombola de São Roque, localizado nos
municípios de Praia Grande, no Estado de Santa Catarina, e de Mampituba, no Estado do
Rio Grande do Sul. A comunidade solicitou que o Incra apresentasse o termo de
compromisso na comunidade, reunião realizada com a presença dos gestores das unidades
de conservação e dirigentes do ICMBio. A comunidade contou com assessores do
Movimento Negro Unido ― MNU e se manifestou, na reunião e registrado em ata, contra
o termo de compromisso, com a proposta de participar da Câmara de Conciliação uma
vez que não tinha sido ouvida na elaboração do Termo de Compromisso.

Acerca das reuniões da CCAF quanto à sobreposição entre o Quilombo de


Mumbuca e a Reserva Biológica da Mata Escura, em Jequitinhonha, no Estado de Minas
Gerais, a Associação Quilombola Mumbuca e a Federação dos Trabalhadores na
Agricultura do Estado de Minas Gerais―FETAEMG se manifestaram por escrito para
participarem das reuniões da CCAF, com base no Artigo 9º da Lei nº 9.784, de 29 de
janeiro de 1999, cuja ementa indica o seu objetivo de regulamentar o processo
administrativo no âmbito da Administração Pública Federal e o referido artigo dispõe
sobre os legitimados como interessados no processo administrativo, como transcrevo da
Lei:

Lei nº 9.784/1999:

Art. 9º São legitimados como interessados no processo administrativo:

I - pessoas físicas ou jurídicas que o iniciem como titulares de direitos


ou interesses individuais ou no exercício do direito de representação;

II - aqueles que, sem terem iniciado o processo, têm direitos ou


interesses que possam ser afetados pela decisão a ser adotada;

III - as organizações e associações representativas, no tocante a direitos


e interesses coletivos;

IV - as pessoas ou as associações legalmente constituídas quanto a


direitos ou interesses difusos.

84
Art. 10. São capazes, para fins de processo administrativo, os maiores
de dezoito anos, ressalvada previsão especial em ato normativo
próprio.

Reconstituo, aqui, os pleitos das comunidades porque participei das reuniões,


em campo e em algumas delas na CCAF, sobre essas comunidades e outras, sendo que
elaborei informações técnicas ao Incra, onde trabalhava, com o apanhado das situações.
Minha participação nas reuniões da CCAF se devia à solicitação de acompanhamento
técnico e antropológico para a Procuradoria Federal Especializada do Incra Sede, em
Brasília ― PFE feita para o Departamento de Regularização Fundiária do Incra ― DFQ.
Para o acompanhamento nas Superintendências regionais do Incra foram indicados
Samuel Cruz, em Rondônia; Marcelo Spaolonse, em Santa Catarina; Vanessa Cançado,
em Minas Gerais e Cindia Brustolin, que, graduada em direito, acompanhava as reuniões
em campo e entre os técnicos realizadas em Brasília, tendo à época como Coordenadora-
Geral do Departamento a Givânia maria da Silva.

Naquele período, as solicitações das comunidades em participarem das


reuniões nas Câmaras de Conciliação não foram acolhidas pela CCAF. No caso específico
da solicitação da Comunidade Quilombola de Mumbuca, assessorada pela FETAEMG,
me recordo que a alegação da coordenação da CCAF havia sido a de que a condição de
“interessado” em processo administrativo não abrangia a participação nas reuniões da
Administração Pública, com base na mesma Lei que a comunidade se baseara para
solicitar sua participação. Transcrevo o artigo:

Lei nº 9.784/1999:

Art. 3º O administrado tem os seguintes direitos perante a


Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados:

I - ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão


facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas
obrigações;

II - ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que


tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de
documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas;

85
III - formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os
quais serão objeto de consideração pelo órgão competente;

IV - fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando


obrigatória a representação, por força de lei.

Portanto, no dispositivo que aborda a participação dos interessados nos


processos administrativos não está contemplada a participação dos interessados em
reuniões de governo; mas devemos observar que, também, não a impede.

É necessário entender que “interessado” é o administrado comum e que para


os povos e comunidades tradicionais, além de administrado, há a Convenção nº 169 da
Organização Internacional do Trabalho, a OIT 169, que trata tanto da participação dos
povos em todas as etapas de processos governamentais, em que as comunidades possam
ser afetadas por decisões, quanto aborda o “consentimento” das comunidades a esses
processos e decisões.

OIT 169 ― Artigo 6o

1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos


deverão:

a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos


apropriados e, particularmente, através de suas instituições
representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou
administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;

................................

2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser


efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com
o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento
acerca das medidas propostas.

Em uma das informações feita ao Incra, o meu argumento era o de que a


consulta “mediante procedimentos apropriados” não deveria ter outra medida senão a da
própria comunidade para a sua livre manifestação e que formas contrárias a isso
impossibilitaria, inclusive, o “consentimento” por parte das comunidades para uma

86
decisão conciliada nos processos tramitando na Câmara de Conciliação na
CCAF/CGU/AGU. Ainda, com relação à participação das comunidades quilombolas, a
Portaria/AGU n° 910, de 04 de julho de 2008, poderia ser interpretada para o atendimento
das comunidades. A Portaria/AGU nº 910/2008 “estabelece procedimentos para a
concessão de audiências a particulares no âmbito da Advocacia-Geral da União e dos
órgãos a ela vinculados” e especifica o “particular” como “todo aquele que, mesmo
ocupante de cargo ou função pública, solicita audiência para tratar de interesse privado
seu ou de terceiros” (Inciso II°, § Único, art. 1° da Portaria/AGU nº 910/2008). Como se
tratava de grupos étnicos, no caso os remanescentes das comunidades dos quilombos,
“privado” deveria ser entendido como o próprio interesse do grupo, o que faria dele
elegível para as audiências e, por meio desse dispositivo, haveria base legal para receber
as comunidades O papel do Incra era a garantia da defesa dos interesses das comunidades
quilombolas, conforme o Artigo nº 15 do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003,
“nas questões surgidas em decorrência da titulação das suas terras” e representar os
interesses da comunidade para defendê-los possui uma diferença com relação à
representação da própria comunidade, como entenderam as comunidades de Mumbuca,
de São Roque e de Santo Antônio do Guaporé, ao menos, nos processos de elaboração do
Termo de Compromisso nos exemplos de manifestação quanto a esse tema, que expus
mais atrás neste capítulo. As informações eram apresentadas ao Incra para que as usasse
em subsídio a outros documentos de sua manifestação.

Além das sobreposições de territórios tradicionais e de unidades de


conservação, havia sobreposições com área de mineração e área militar, cujos casos entre
2008 e 2011 eram os seguintes:

87
Tabela 2 ― Sobreposições entre territórios quilombolas, unidades
de conservação, áreas militares e área de mineração
RTID
Território Quilombola Unidade de Nº do Processo no
publicado
Município/UF Conservação Incra
(fev/2010)
Território Quilombola Tambor;
sim PARNA Jaú 54270.001270/2007-61
em Novo Airão/AM
Território Quilombola Cunani;
não PARNA Cabo Orange 54350.000346/2004-07
em Calçoene/AP

PARNA Aparados da
Território Quilombola de São
sim Serra 54210.000262/05-41
Roque, em Praia Grande/SC
PARNA Serra Geral
Território Quilombola do Alto
não 54100.002186/2004-16
Trombetas; em Orximiná/PA
Território Quilombola do
Jamari, Juquirizinho, Juquiri e
Palhal (há outras comunidades REBIO do Rio
não que são nucleações de Trombetas e FLONA 54100.002185/04-20
habitação permanente das Saracá-Taquera
mesmas comunidades),
Oriximiná/PA
Território Quilombola do Moura,
não 54100.002186/04-24
Oriximiná/PA
Território Quilombola do
sim Guaporé; em São Francisco do REBIO Guaporé 54300.000746/2005-81
Guaporé/RO
Território Quilombola
sim Mumbuca; em Jequitinhonha e REBIO Mata Escura 54179.003745/2005-11
Almenara/MG
Elaboração: Leslye Ursini, 2019

RTID
Território Quilombola Projeto de Nº do Processo no
publicado
Município/UF Mineração Incra
(fev/2010)
Território Quilombola de
sim 54170.003688/05-70
Machadinho, Paracatu/MG
RPM – Rio Paracatu
Território Quilombola de São Mineração (empresa
sim
privada do grupo 54170.000059/04-15
Domingos, Paracatu/MG
canadense Kinross)
Território Quilombola dos
sim 54170.008897/03-48
Amaros, Paracatu/MG
Elaboração: Leslye Ursini, 2019

RTID
Território Quilombola Nº do Processo no
publicado Área Militar
Município/UF Incra
(fev/2010)
Território Quilombola de
sim a partir de 1971 54180.000945/2006-83
Marambaia
Território Quilombola de desde a década de
sim 54230.002401/2006-13
Alcântara 1980
Elaboração: Leslye Ursini, 2019

Além da tramitação da CCAF, na fase do contestatório nos ritos processuais


da regularização fundiária dos territórios quilombolas no Incra (vide Figura 1, na página
56), o ICMBio apresentou sua própria contestação aos processos de regularização

88
fundiária de dois territórios quilombolas: ao de São Roque, no Estado de Santa Catarina,
e ao processo de regularização fundiária de Santo Antônio do Guaporé. Em 2009, o
Supremo Tribunal Federal entendeu que:

Há perfeita compatibilidade entre meio ambiente e terras indígenas,


ainda que estas envolvam áreas de "conservação" e "preservação"
ambiental. Essa compatibilidade é que autoriza a dupla afetação, sob a
administração do competente órgão de defesa ambiental. [Pet 3.388,
rel. Ministro Ayres Britto, j. 19-3-2009, DJE de 1º-7-2010.]

Em que pese para a não retirada da comunidade, o entendimento acima não


fez cessar a conciliação e, em 2017, a situação era a seguinte:

Hoje tramitam processos na CCAF de sobreposição entre territórios


quilombolas e Unidades de Conservação (TQ Tambor e Parna Jaú no
AM; TQ Cunani e Parna Cabo Orange no AP; TQ São Roque e Parna Serra
Geral em SC; TQ Guaporé e Parna Guaporé em RO; TQ Mumbuca e
Rebio Mata Escura em MG; TQ Alto Trombetas, Jamari e Moura e Rebio
do Rio Trombetas e Flona Saracá-Taquera no PA e TQ Cambury e Parna
Serra da Bocaina em SP), mineração (TQs Machadinho, São Domingos
e Amaros e Kinros Mineradora em MG) e área de interesse militar e
científico (TQ Alcântara e área de expansão da Base da AEB no
Maranhão).

Recentemente foram conciliados os interesses entre os territórios


quilombolas de Rio dos Macacos-BA e Marambaia-RJ e bases da
Marinha do Brasil. A partir de tal acerto, a primeira comunidade já teve
seu território reconhecido e a segunda já teve seu território titulado
em definitivo.

De acordo com a Instrução Normativa do INCRA nº 57/2009 (art. 16), a


Casa Civil da Presidência da República coordenará as negociações
quando houver controvérsias em se tratando do mérito. (INCRA ―
INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA, 2017,
p. 14)

Da experiência com as Câmaras de Conciliação tem-se que tudo se passa


como se uma visão ambiental, estrita, se sobrepuja à do reconhecimento dos territórios
quilombolas, mesmo os quilombos tendo previsão constitucional e as unidades de
conservação estabelecidas em Lei. Talvez, seja esta a via de entender por que o
ambientalismo preservacionista das unidades de conservação de proteção integral

89
repetem que não há compatibilidade nos usos das comunidades tradicionais quanto à
conservação, pois a conservação da natureza possui previsão constitucional, no Artigo nº
225. E ali se vão buscar alguma incompatibilidade. Por outro lado, os conhecimentos
tradicionais associados ao patrimônio genético, a inovação na biodiversidade e a
implementação da Convenção sobre a Diversidade Biológica―CDB, que levam em conta
as comunidades tradicionais e os seus saberes, tem como foco na Constituição federal
aquele mesmo Artigo nº 225.

A contradição que aponto é interna ao mesmo Ministério do Meio Ambiente


― MMA em políticas de conservação da biodiversidade que, quando abordadas pela
Secretaria de Biodiversidade e Florestas ― SBF, tem nas populações e na diversidade
cultural um valor, um painel para a implementação da Convenção sobre a Diversidade
Biológica―CDB; quando a conservação é abordada sob o ponto de vista das áreas
protegidas e unidades de conservação, as comunidades seriam uma ameaça. Essa é uma
contradição no discurso, no entanto, o discurso geral acerca da conservação é o mesmo:
a conservação se dá pela valorização dos estilos de vida das populações tradicionais e por
meio da criação de unidades de conservação, para falar de dois modos que são os tratados
nesta Tese. No nível da “aplicação” das políticas respectivas o discurso sobre a
conservação vai-se tornando “rarefeito”, para usar uma expressão de Foucault, como uma
forma de “exclusão” (FOUCAULT, 2012, p. 9 e 26) de parte do discurso. Porém, de
forma bifurcada, vamos colocar assim: quando as ações são executadas em relação às
comunidades tradicionais, o discurso segue para envolvê-las; quando se trata da
conservação da biodiversidade, os temas são os macrotemas das mudanças climáticas,
das áreas prioritárias para a conservação, espécies em extinção, invasoras, e etc. Ainda
que no detalhes dos macrotemas as populações tradicionais possam aparecer, estão
excluídas, portando, dos temas nos níveis maiores de abrangência. As normas têm
signatários e não autores, de acordo com Foucault (FOUCAULT, 2012, p. 26), e há os
discursos tecidos, ditos e enunciados pelo Estado ― que partem das normas para um
público de administrados, instituições parceiras e internacionais ― para os temas da
conservação biodiversidade sob o ponto de vista das unidades de conservação e das
comunidades como agentes e promotoras da conservação. São discursos que seguem
adiante, envolvendo instituições e seus pesquisadores em narrativas mais localizadas, que
seguiriam bem não fossem as sobreposições na forma como são vistas, portanto, pelo
próprio Estado, sob a incompatibilidade inexplicada e suficiente para seguir com a

90
remoção das comunidades. A situação de sobreposição deflagra essa contradição
discursiva do Estado quanto à conservação da biodiversidade.

De maneira alguma o discurso do Estado e sua bifurcação são espontâneos,


há o controle desses discursos em que a rarefação é uma espécie interna a um princípio
de exclusão discursiva, segundo Foucault (FOUCAULT, 2012, p. 26). Tanto há que a
previsão da instituição de um “plano de ação para solucionar os conflitos devidos à
sobreposição de unidades de conservação, terras indígenas e de quilombolas”, indicada
na Política Nacional da Biodiversidade, instituída pelo Decreto nº 4.339, em 2002,
anterior à constituição das Câmaras de Conciliação e Arbitragem Federal para os casos
acima mencionados, foi ignorada. Essa previsão é indicada com relevo pelo Ministério
Público Federal ― MPF para a orientação dos membros daquele Ministério no
acompanhamento e tratamento dos casos de sobreposição em subsídio ao posicionamento
dos seus membros (MPF ― MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2014, p. 20). Para
tanto, o MPF compôs o documento “Territórios de Povos e Comunidades Tradicionais e
as Unidades de Conservação de Proteção Integral - Alternativas para o Asseguramento
de Direitos Socioambientais”, publicado em 2014, na série Manual de Atuação. Acerca
dos casos em conciliação na Advocacia Geral da União, apurou dificuldades como:
morosidade na manifestação das instituições envolvidas, conflitantes; a participação das
comunidades que não foi contemplada “nos debates perante as Câmaras de Conciliação”;
e “a ausência de dados seguros sobre o possível risco de comprometimento da
biodiversidade a longo prazo” (MPF ― MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2014, p.
21). O MPF apontou no documento, também, “grave omissão” da União nos impasses
que persistiram por tempo além do que fosse razoável e pelos casos sem conciliação ou
arbitragem, para o que o MPF expediu uma recomendação ao Consultor-Geral da União
do prazo de cento e oitenta dias para a promoção da conciliação ou arbitragem (idem, p.
22).

2.5. Territórios tradicionais, territórios institucionais

O mapeamento das comunidades quilombolas fornecido ao Estado, em 1998,


conforme abordado no início deste capítulo, teve a Fundação Cultural Palmares ― FCP,
um órgão de governo, como apoiadora. Cabe dizer que é possível se enviar documentos
espontâneos aos órgãos de governo, há experiências nesse sentido, inclusive, com

91
identificações e delimitações, porém, como observa Mary Douglas (DOUGLAS, 2007),
as instituições decidem e a recepção estará ao critério das instituições. Feitas as medidas
para o tipo de contribuição que não exima o estado em suas responsabilidades. Neste
capítulo foi abordada que o Estado, portanto, se move na perspectiva dos territórios
institucionais; é necessário que se converta o território tradicional aos termos do Estado.
Os empenhos de comunidades, de estudiosos e de técnicos é o de ampliar o “vocabulário”
e a “cognição” do Estado.

As experiências relatadas neste capítulo trazem diversas apreensões de


territórios e de espaços, que são minhas trabalhando em instituições. As comunidades
com as quais trabalhei têm suas próprias apreensões dos seus territórios, cujas formas são
levadas para os relatórios de identificação e delimitação, para o que é preciso conhecê-
las para traduzi-las para as normas que acabam por indicar modelos de documentos. Sem
maiores problemas com tais modelos, até aqui, porque com eles se garante um mínimo
de informações acerca da comunidade, da sua localização, sua história, parentesco,
número de membros, demais características do território a serem identificadas e eventuais
esbulhos e outras desterritorializações. É uma identificação e não um planejamento de
uma dada área e se deverão levantar as atividades produtivas que incluem tanto as formas
de subsistência quanto de obtenção de renda (roças, venda de farinha, confecção de
produtos, trabalhos, empregos, etc.), os locais de habitação temporária e permanente, o
material utilizado na edificações e o local de obtenção do material; as tecnologias, as
formas de acesso ao território, a mobilidade, etc. e outros aspectos que podem ser
acrescentados em campo sendo mapeada a interação de determinada comunidade
tradicional com o território.

As tessituras, os nós e as redes de Claude Raffestin (RAFFESTIN, [1980]


1993), são tramas que se articulam e se desenham sobre o território ao mesmo tempo em
que o produzem, a partir de planos ou superfícies, que são áreas dadas ou analisadas; de
pontos, onde estão indivíduos ou grupos; e de linhas, que podem ser as distâncias entre
os pontos apreendidas espacial, econômica e psicologicamente, se traduzindo nas
interações políticas, culturais e sociais. O conjunto forma o “sistema territorial”, proposto
por Raffestin (RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 152), que resulta do cruzamento daqueles
elementos de espaço ― superfícies, pontos e linhas ― com um “sistemas de objetivos e
de ações, conhecimentos e práticas”, que são econômicos, políticos, sociais e culturais.

92
Várias malhas, ou níveis de malhas podem ser tecidos e projetados em um
território, ou observados a partir da análise dos mesmo; portanto, tal “tessitura territorial”
poderá comportar “vários níveis que são determinados pelas funções que devem se
realizar em cada uma dessas malhas”. (RAFFESTIN, [1980] 1993, pp. 150, 152 e 153).
Essa ideia de função de porções/níveis territoriais está presente no dispositivo
constitucional que regulamenta a obrigação do Estado em reconhecer e demarcar os
territórios quilombolas e as terras indígenas, como segue:

São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos


quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social,
econômica e cultural. (§ 2º, art. 2º do decreto nº 4.887/2003)

São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles


habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades
produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e
cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. (§ 1º, art. 231 da
Constituição)

Tais porções/níveis devem ser vistas como layers, acamamentos qualitativos


que não se justapõem na Terra Indígena, ao contrário, são lidos a partir dela. A diferença
entre a justaposição dos quatro requisitos legais em cada uma das normas e, portanto,
quatro níveis prescritos para a análise de uma realidade sob a forma de funções, resulta
que os mesmos espaços físicos não congregam simultaneamente as quatro funções, ou os
quatro níveis. Como resultado da tradução da realidade para os requisitos legais, temos
o arranjo daqueles níveis-funções-requisitos, como quatro layers, “abertos” na imagem
do território, como segue na “Figura 2” para dar conta da “tradução” da realidade
observável a partir das normas e para responder às normas em um processo de
identificação de delimitação de territórios tradicionais.

Temos na figura a seguir: (A) se fossem justapostas as quatro funções (das


Terras Indígenas previstas no Artigo nº 231 da Constituição e as funções previstas no
Decreto º 4887/2003, acerca dos Territórios Quilombolas), a justaposição não faria
sentido tanto pelo conflito de funções quanto pelo observável na realidade: não se
desempenham funções distintas nos mesmos lugares; (B) exemplo de observação da
realidade dos arranjos sociais e características dos atributos ambientais para a tradução
da territorialidade indígena ou quilombola para as normas respectivas.

93
Figura 2 ― Funções de reprodução física, cultural, econômica,
cultural e social observáveis em campo e projetadas na delimitação
de territórios tradicionais

Em uma perspectiva, para olhar as proposituras de Raffestin (RAFFESTIN,


[1980] 1993) para compreender um território, poderíamos dizer que um território
tradicional decorre dos seus elementos internos, enquanto em Claude Raffestin o território
é, proeminentemente, uma área dada sobre a qual se planeja ações e que pode ser lido a
partir dessas ações. Porém, é possível entender como um planejamento anterior, ainda,
por parte do Estado, se levarmos em conta que as indicações normativas para se identificar
um território já são talhadas tecnicamente para comportá-los nas normas que informam
os roteiros dos relatórios de identificação e delimitação, como abordam Lima e Barreto
Filho (BARRETO FILHO, 2005; LIMA, 2005) ao se referirem às indicações dessas
porções territoriais decorrem da Portaria nº 14, de 9 de janeiro de1996/Funai ― e que
podemos estender os comentários às instruções normativas do Incra com o roteiro para a
elaboração dos relatórios de identificação e delimitação. Tenho a posição de que os
termos das próprias comunidades não são conhecidos de todo quanto à sua própria
percepção do território e embora nos esforcemos ― para que já teve experiências em
identificações e delimitações ― em incluir ao máximo tais percepções nos trabalhos de
identificação, há já o (pré)conhecimento de parte da comunidade das formas dos estudos
de dos seus termos e tramitação, mesmo que uma ideia superficial, esta já “atalha” o que

94
poderia ser um aprofundamento e uma ampliação das próprias categorias das
comunidades.

O sistema territorial de Raffestin é a forma do Estado chegar ao indivíduo, a


grupos de indivíduos e de se produzir territórios, e se quisermos, é de se relacionar com
a sociedade e outros recortes, segundo Raffestin, que não são apenas econômicos, sociais,
políticos e culturais (RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 152). Tais recortes, ou aspectos, estão
dentre as institucionalizações de práticas de que fala Foucault (FOUCAULT, 2012, pp.
14-18) que dão suporte ao discurso. Um discurso que procurou uma “verdade” à custa de
exclusões de outros tipos de discursos que estariam ligados ao poder para se constituir,
por fim, como um discurso que é o próprio poder.

Para a identificação e reconhecimento dos territórios tradicionais, é esse o


apanágio. As próprias instituições ou o nome que fosse a engendrar a cognição dos
territórios por aquelas mesmas comunidades não são exatamente os critérios, os níveis,
das normas e nosso instrumental se esforça para enxergá-las e traduzi-las de outros
sistemas culturais e intelectuais, que são os das comunidades com as quais nos
relacionamos quando identificamos o seu território para efeitos de reconhecimento pelo
Estado. O que se tem são, portanto, territórios tradicionais ― indígenas, quilombolas e
de outras comunidades étnico-sociais ―, com um universo mais amplo no registro das
próprias comunidades, e os territórios delimitados administrativamente, que são uma
parte daqueles. Dos dois “mapas”, um tradicional e outro administrativo, nos esforçamos
para conhecer e alcançar o mapa tradicional. Dito de outra forma, todo território
identificado, delimitado e demarcado administrativamente será, sempre, menos extenso
que um território tradicional que fosse delimitado na justa cognição da comunidade que
nele viveu ou vive e que o produz.

O que se pode apontar em comum entre territórios tradicionais e territórios


institucionais é que ambos têm em conta os limites; cujos critérios são distintos, e as
formas de delimitação, também. A noção de território implica a ideia de limites. Para o
Estado, no entanto, a ideia de limites guarda um certo ranço da propriedade privada
(LIMA, 2005) como forma de apossamento, como limites bem definidos e como forma o
Estado se relacionar com indivíduos e pessoas. As coletividades das comunidades
tradicionais parecem guardar, na perspectiva do Estado, a noção de habitat para os seus
territórios (LIMA, 2005, p. 48), talvez essa perspectiva ajude a entender o acolhimento

95
de prerrogativas do órgão ambiental no tratamento dos casos de sobreposições entre
unidades de conservação e territórios tradicionais.

Os territórios são constituídos por limites, seja por critérios e marcas das
próprias comunidades, povos indígenas e quilombolas ou por critérios administrativos ―
expressos na atualidade pela Portaria nº 14 da Funai ou pela Instrução Normativa do Incra
nº 57, de 20 de outubro de 2009 ― que buscam traduzir aqueles primeiros critérios. O
resultado é o território institucional produzido a partir do território tradicional e que será
quase que invariavelmente menor que o tradicional por não dispor ou alcançar todos os
critérios de uma e de outras comunidades para conceberem seu território além da
necessidade da familiarização com os novos critérios novos e externos. O que significa
que uma situação de sobreposição com unidades de conservação, por exemplo, não se dá,
apenas, no território institucional de uma comunidade como, também, em seu território
tradicional supondo que ambos nem sempre combinam limites ajustados um com o outro.
Nessa perspectiva, o território institucional de uma comunidade ou povo, como por
exemplo uma “Terra Indígena”, é tanto o reconhecimento do território tradicional, parcial
ou da sua totalidade, como dito acerca dos critérios, quanto uma primeira sobreposição
institucional em um território tradicional, se entendermos que haverá interferência
administrativa do Estado mesmo em programas de proteção dos limites, dos recursos
naturais.

No capítulo que segue será abordada a elaboração da Lei nº 9.985, de 18 de


julho de 2000, que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da
Natureza―SNUC e veremos que, em dado momento, as comunidades poderiam contar
com a previsão de sua permanência nos seus territórios já em Lei, sem ter que lutar por
ela posteriori. O que não se concretizou.

96
3. Comunidades tradicionais e a criação do Sistema Nacional de
Unidades de Conservação da Natureza―SNUC

A noção de ambientes “intocados”, explicam Gómez-Pompa e Kaus


(GÓMEZ-POMPA & KAUS, 2000, p. 129), foi tomada por empréstimo da história
ocidental e das experiências em zonas temperadas, o que permeou as políticas ambientais
globais e os planos de manejos de recursos naturais, inadequados, portanto, às zonas
tropicais (ibidem). Já a ideia de “indomado” guarda em si, paradoxalmente, o aspecto da
subjugação da natureza pelo homem, cujas raízes são bíblicas (ibidem) e engendram a
crença de que o destino da humanidade seria o da domesticação dos lugares
naturais/selvagens, incluídas aí as religiões animistas em oposição à religião da
“civilização ocidental” (COLCHESTER, 2000, p. 227).

Na linha de que não existiriam ambientes nunca antropizados (POSEY,


1987), a ideia de “habitat não modificado” se esmaece, segundo Darrell Posey, à medida
que se adensa o conhecimento acerca da influência antropogênica na constituição da
vegetação madura (GÓMEZ-POMPA & KAUS, 2000, p. 133). Também, as próprias
noções, denominações e classificações desses ambientes “naturais” ou “não naturais” são
produtos sociais de ordem moral, ideológica, estética, econômica, religiosa, política.
Henyo Barreto Filho chama a atenção para a instituição de áreas de proteção ambiental
como sendo estas construções humanas; áreas protegidas como “artefatos” de
planejamento e controle no período desenvolvimentista, no Brasil, a partir da década de
1970 (BARRETTO FILHO, 2001). São as florestas tropicais tanto artefatos quanto
habitats — advertem Gómez-Pompa e Kaus que é necessário que entendamos isso para
que políticas ambientais não sejam produtos da imaginação para um meio ambiente
original (GÓMEZ-POMPA & KAUS, 2000, p. 133), que inexiste.

O objetivo deste capítulo é o de mostrar como o Estado brasileiro se comporta


ao constituir suas áreas protegidas ambientalmente e como lida com as populações,
principalmente as comunidades tradicionais e povos indígenas, na categorização das áreas
protegidas. Para isso, dois lugares de análise são privilegiados neste capítulo:

Um lugar de análise é a discussão do Projeto de Lei de criação do Sistema


Nacional de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC, instituído pela Lei n º
9.985/2000, vigente, que tramitou durante oito anos na Câmara dos Deputados. O tempo
de tramitação nos oferece um período razoável para observarmos as sucessivas alterações

97
e propostas ao texto da lei relacionando ou incompatibilizando populações humanas e
unidades de conservação.

As formas como as comunidades tradicionais, os povos indígenas e


quilombolas são vistos pelo Estado e como a categorização das unidades de conservação
planejadas no SNUC, no aspecto da relação com as comunidades, se projetam no campo
de observação em Paraty são a finalidade deste capítulo. Antes, passamos a um breve
histórico da constituição de áreas protegidas.

3.1. Áreas protegidas no Brasil

A lógica econômica definiu e, de certa maneira, impulsionou a prática de


serem reservadas áreas com recursos naturais, em especial a madeira. A Coroa evidencia
o seu monopólio sobre o uso comercial de madeiras: a proibição, em 1698, de serem
doadas sesmarias em áreas recobertas por árvores de valor comercial — para a indústria
naval — e demais proibições legais que regravam e restringiam a exploração de recursos
florestais madeireiros que impunham ao sesmeiro a necessidade de autorização régia para
explorá-los, vem daí a expressão “madeira de lei”, de acordo com Daniel Castro
(CASTRO, 2013). O corte de madeira em propriedades particulares foi proibido, em
1800, a uma distância de 10 léguas, cerca de 2,7 km, a partir da costa e havia, em 1698,
a indicação de que engenhos centrais fossem instalados a uma distância mínima de 3,3
léguas, perto de 1 km, em proveito da reserva de lenha entre eles para serem neles usadas
na geração de energia21 (CASTRO, 2013, p. 140). Segundo o autor, é possível observar
regramentos de reservas florestais nessas práticas, voltadas para a economia das
distâncias dos recursos naturais e na utilização dos mesmos.

Antes chamado de “Real Horto” e de uso privativo da família real com as


finalidades de aclimatação de espécies exóticas como espaço restrito para passeio, o
Jardim Botânico do Rio de Janeiro foi inaugurado em 13 de junho de 1808 e em 1811 sua
área foi ampliada para a plantação de chá. Depois, passou a ser público (CARVALHO,
2015, p. 11 e 12). O Jardim Botânico abrigava plantas e para os estudos de aproveitamento
econômico da flora brasileira e com influência de modelo europeu de embelezamento das

21 Não encontrei disposição em contrário após a data de 1698; no entanto, não é seguro afirmar
que à época do desejo de se construir um engenho central em Paraty — o que não aconteceu — a norma
seria vigente; de qualquer maneira

98
cidades, a criação de jardins botânicos no Brasil é apontada por Ivan Mota22 como o
embrião da administração florestal brasileira (MOTA, 2007, p. 59).

Na Alemanha, Inglaterra e nos Estados Unidos, a crítica à “destruição do


mundo natural” tiveram o fito da contemplação e da elevação do espírito que o contato com
áreas naturais proporcionava, segundo José Augusto Franco, com influência do
romantismo europeu (FRANCO, et al., 2015, p. 239). Uma diferença quanto aos Estados
Unidos deve ser remarcada: sem tradição de patrimônio cultural e histórico tanto o quanto
a Inglaterra, enfatizou a beleza cênica e os atributos naturais amplamente registrados em
pinturas e na criação de parques.

No Brasil, a crítica à destruição da natureza foi-se estruturar no propósito de


superação do modo de produção colonial escravagista, menos apoiada na valorização
estética ou da natureza em si, relacionada ao racionalismo herdado do iluminismo,
segundo Franco (2015). A conservação da natureza estava voltada para uma
instrumentalização para o progresso ― se afastando da monocultura e do latifúndio.
Intelectuais estiveram envolvidos a defender o “uso racional dos recursos naturais”, como
José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), para uma sociedade rural composta em
outros moldes com campos agrícolas utilizando tecnologias e insumos (FRANCO, et al.,
2015, p. 240). Bonifácio, com formação acadêmica em Portugal, na França e Alemanha,
naturalista que incorporou a partir da sua trajetória acadêmica princípios de uma
“economia da natureza” ― o que, depois, segundo José Augusto Franco (FRANCO, et
al., 2015, p. 239) se tornou a disciplina mais tarde chamada de ecologia; já o termo
“ecológico” aparecerá em 1969, no artigo 172 da Emenda Constitucional nº 1, de 17 de
outubro, que reescreveu a Constituição Federal de 1967 no período militar, prevendo
prévio levantamento ecológico para o aproveitamento agrícola de áreas sujeitas a
calamidade e dispondo sobre a suspensão de benefícios a proprietários pelo mau uso da
terra. Ainda com relação a José Bonifácio de Andrada e Silva, homem público na Coroa
e com formação acadêmica diversa pela físico-química e filosofia, e homem público;
viveu na Europa por aproximados 30 anos, ele volta ao Brasil depois de aproximados 30
anos vividos na Europa, pretendeu ocupar cargos públicos e reformular a capacidade dos
funcionários do governos na sua atuação (VARELA, et al., 2005). Seguiram-se a ele no
envolvimento com as propostas ambientais, André Rebouças (1838-1898) na proposição

22 Em sua dissertação na Engenharia Civil sobre o Parque Estadual Serra do Mar, defendida em
2007.

99
da criação de parques para neles se desenvolverem atividades de turismo e das belas
paisagens, aos olhos do imigrante e os meios de transporte que, também, poderiam ser
desenvolvidos. Alberto Torres (1865-1917), na defesa da proteção da natureza como
responsabilidade da sociedade, a fim de manter reservas futuras. Um parque em Sete
Quedas, no Paraná, e outro na Ilha do Bananal, ao norte de Goiás, hoje Estado do
Tocantins; o primeiro, a Hidrelétrica de Itaipu cobriu, e o Parque Nacional do Araguaia
tem outras histórias contadas mais adiante neste capítulo.

No ideário das providências para a conservação e utilização racional da


natureza estão, entre outras medidas como a proteção de encostas e de mananciais para o
abastecimento urbano que se assemelham ao que hoje são as Áreas de Proteção
Permanente23, o Parque Nacional do Itatiaia, apontado como o primeiro parque nacional
do Brasil, e a Reserva Florestal do Acre, que pode ter sido a primeira a ser criada, em
1911.

A criação de uma cidade que fosse modelo de “higiene e saúde”24 e a criação


de um parque nacional na cidade de Itatiaia, no Estado do Rio de Janeiro, era uma ideia
defendida por André Rebouças em 1878 (LEITE, 2007, p. 20)25. Embora criado mais
tarde, em 1937, o Parque Nacional de Itatiaia começou a ser planejado em 1913 (LEITE,
2007, p. 20), pelo botânico Alberto Löfgren, e sua instituição é apontada como inspirada
pela criação do Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos, em 1872,
reconhecido como o primeiro parque nacional do mundo (TOZZO & MARCHI, 2014, p.
509). A área do parque em Itatiaia, uma antiga fazenda do Visconde de Mauá, abrigou
um projeto agrícola que não teve sucesso e, por isso, vendida por ele, em 1908, ao
governo. A fazenda foi adquirida pelo Ministério da Fazenda e repassada ao Jardim
Botânico do Rio de Janeiro. Em 1914, foi criada uma reserva florestal nessa área; depois,
em 1927, uma estação biológica, em uma sucessão de destinações de usos para a áreas
(LEITE, 2007, p. 21); e, em 1937, a área é decretada como o Parque Nacional de Itatiaia.
A administração do parque está instalada no que era a sede da antiga fazenda Mont Serrat.

23 São veredas, margens de lagos artificiais ou naturais, bordas de chapada, nascentes, matas
ciliares, angulação de inclinação de morros e outras pequenas porções, se comparadas às unidades de
conservação, em que os usos e a recomposição são regulados em normas, dentre elas diversas resoluções
do Conselho Nacional do Meio Ambiente ― CONAMA.
24 No rastro da teoria dos miasmas.
25 Empresário, Engenheiro Civil, abolicionista e reformador social, André Pinto Rebouças
defendia programas de agricultura para a integração de escravos libertos (CARVALHO, 1998, p. 211 e ss);
sugeriu, também, a criação do Parque de Sete Quedas e do Parque da Ilha do Bananal.

100
Com a imagem de um território descontínuo, é criada a Reserva Florestal do
Acre para proteger as cabeceiras dos tributários dos rios formadores das bacias dos rios
Juruá, Japurá e Acre, as três grandes bacias no Estado do Acre, com a finalidade da
conservação da navegabilidade fluvial, como segue no trecho do Decreto nº 8.843/1911,
preservada a ortografia da época:

O Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brazil, attendendo a


que a devastação desordenada das mattas está produzindo em todo o
paiz effeitos sensiveis e desastrosos, salientando-se entre elles
alterações na constituição climaterica de varias zonas e no regimen das
aguas pluviaes e das correntes que dellas dependem; e reconhecendo
que é da maior e mais urgente necessidade impedir que tal estado de
cousa se estenda ao Territorio do Acre, mesmo por tratar-se de região
onde como igualmente em toda a Amazonia, ha necessidade de
proteger e assegurar a navegação fluvial e, consequentemente, de
obstar que soffra modificação o regimen hydrographico respectivo.
(Decreto nº 8.843/1911)

A presença humana – seringueiros e “aborígenes” ― era vedada, com


previsão da “mudança” dos povos indígenas com o auxílio do Serviço de Proteção ao
Índio ― SPI, recém-criado em 1910. Somadas as quatro poligonais resultam em 2,8
milhões de hectares26 para a Reserva Florestal do Acre, cujo Decreto nº 8.843, de 26 de
julho de 1911, é vigente.

A delimitação de quatro polígonos disjuntos para o território da reserva se


deve às características da hidrografia do Território do Acre e pela finalidade de proteção
das nascentes. São três bacias hidrográfica que atravessam o antigo Território do Acre na
direção oeste-leste, entre a divisa com a o Peru e a Bolívia de um lado e com o Estado do
Amazonas no outro, até a “linha Cunha Gomes”, uma linha seca27. Observando-se a Carta
Geographica do Territorio do Acre (CASTRO, 1907), se vê que cada um dos três
departamentos em que o governo federal dividiu aquele território federal correspondia às
bacias e sub-bacias dos rios Jururá, Purus e Acre, separados pelos divisores de águas entre
aquelas bacias hidrográficas. A delimitação da Reserva Florestal do Acre trazia quatro
poligonais descontínuas e distantes entre si; três delas acompanhando as cumeeiras das

26 O decreto, embora traga o memorial descritivo da delimitação, não traz a área da reserva, que
encontrei calculada e plotada na pesquisa de André Vital (VITAL, 2018, p. 43) sobre saúde pública no
Território Federal do Acre.
27 Uma “linha seca” em delimitação e demarcação é a reta que liga pontos de referência, diferente
daquelas que usa os cursos dos rios.

101
divisas entre bacias, em linhas secas paralelas com larguras de 40 ou 20 quilômetros cada,
de modo a abranger, de fora a fora, as nascentes dos tributários das bacias; e uma quarta
poligonal delimitando a região centro-leste do Alto Juruá localizada em porção elevada e
da qual partiam tributários de oito rios à sua volta28. No decreto de criação da reserva, há
a vedação de acesso à área da reserva florestal, exceto o trânsito necessário, no caso de
caminhos de intercomunicação de povoados; vedação à extração de madeiras e de
quaisquer outros produtos florestais; proibidas a caça e a pesca. Há a previsão de
desapropriação de moradores que apresentem documentos comprobatórios, ou um acordo
amigável para a aquisição de outras terras.

A defesa da conservação das florestas, por seus valores estéticos e


econômicos, tinha em técnicos cientistas, em sua maior parte estrangeiros, que o governo
do Estado de São Paulo contratou entre o final do século XIX e o começo do XX, e com
eles o governo paulista criou reservas florestais no estado. A criação da reserva florestal
no território do Acre se deu em meio a preocupações, entre 1910 e 1913, com os usos do
solo e das florestas e da proteção de águas mananciais e de animais. O que era debatido
em termos de proteção contra a devastação que pudesse alterar permanentemente o clima
e o solo, além da extinção de animais em perspectiva que alinhava cientistas ligados ao
Museu Nacional e ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC), com
Pedro Manuel de Toledo, envolvido com propostas de conservação de “usos racional de
recursos naturais” (VITAL, 2016, pp. 194-195). A preocupação com a manutenção da
navegabilidade dos rios ― em regime de grande variação do volume de água e dos níveis
dos cursos de água naquela região acreana ― se apoiava na teoria do dessecamento,
formulada na Europa e que relacionava a devastação da cobertura vegetal a mudanças no
clima e à desestruturação de um “equilíbrio ambiental”. O dessecamento, também, foi
relido para providenciar medidas de saúde pública no Brasil quanto a águas acumuladas
em regiões urbanas e adjacências quanto à drenagem dos solos por meio da construção
de valas, depois tubulações, e o plantio de eucaliptos, no primeiro decênio do século XX,
na cidade do Rio de Janeiro, para se retirar a humidade dos solos e “purificar o ar”, que
eram antigas e permanentes preocupações na proliferação de mosquitos e de doenças
como a febre amarela. Na cidade de Sena Madureira, no Acre, a floresta foi afastada do
núcleo urbano e nele drenado o solo. Muitas das providências movidas pelos miasmas,

28 Conforme indicação em croqui de André Vital (VITAL, 2016, p. 199) sobre o mapa de Placido
de Castro de 1907 (CASTRO, 1907).

102
do cheiro pútrido da decomposição de matéria orgânica, que se acreditavam também
transmitir a malária, em época no começo do século XX no Brasil em disputas entre
“contagionistas” e “miasmáticos” (VITAL, 2016, pp. 155-157; CZERESNIA, 1997, p.
86)29.

O que parece se esboçar no que seria um campo de aplicações científicas de


diversas ordens e correntes apontadas para o Território Federal do Acre, de racionalidade
nos recursos naturais, nos meios para a organização com a construção de uma ferrovia ―
que não foi construída ― e cenário que a criação da reserva florestal corrobora, teve na
queda do preço da borracha e um ciclo seu terminado ali um esmorecimento aliado ao
corte de investimentos por parte do governo federal e criação da reserva ficou envolvida
em questões de outra escala que a permearam. A escolha do Acre para a implantação da
reserva se deu por que seria, do ponto de vista político, o único local para se criar uma
reserva, baseada no que se julgava ser o sucesso da Floresta da Tijuca (VITAL, 2018, p.
61), apontada como podendo ser considerada, hoje, a primeira experiência de manejo no
Brasil (FRANCO, et al., 2015, p. 240). Da parte dos pesquisadores e dos políticos
envolvidos na formulação do decreto, os arranjos políticos e a realidade do Acre estavam
em um universo distante (VITAL, 2018, p. 101) tanto o quanto o que se desenrolou a
partir da publicação do decreto. O território do Acre se encontrava sob judice ― o estado
do Amazonas pretendia anexá-lo ―; havia o movimento dos seringalistas para a
constituição de um estado à parte, com relações com o governo do Ceará por conta da
emigração massiva daquele estado com destino aos seringais no Acre; as arrecadações do
governo federal com a borracha eram vultosas e o investimento nos departamentos
administrativos, não raro em conflitos entre si, e no território do Acre ínfimos; os
seringalistas buscavam controlar os departamentos e aliavam-se às oligarquias do Ceará,
do Amazonas e do Pará representadas no Congresso Nacional com rebatimento em outros
assuntos do governo federal; nas desavenças entre os três departamentos administrativos
no Território do Acre, o decreto foi utilizado politicamente por seringalistas para se tentar
um levante com os seringueiros, em Xapuri, em uma revolta armada contra o governo
federal; não queriam o governo federal na proximidade que a decretação da reserva
florestal indicava, com retrucadas de que o governo federal não se devia meter no que
não conhece e com um mapa tão mal feito (VITAL, 2016, p. 200; VITAL, 2018). Quanto

29 O Decreto 17.042/1925, que regulamentou o Serviço Florestal em 1921, traz em seu artigo 18,
alínea “d”, acerca das funções ― podemos considerar serviços ambientais ― da categoria Floresta
Protetora: “concorrer para a salubridade publica, pelo saneamento e purificação da atmosfera”.

103
a este ponto, não apenas pela novidade e antipatia que o decreto causou aos seringalistas,
senão porque as delimitações do conjunto de áreas da reserva se dão por longas retas em
linhas secas, típicas de mapas desenhados “em gabinete” ligando pontos identificáveis
por qualquer um à distância, como confluência de rios, núcleos urbanos estabelecidos,
que denotam a urgência e a emergência de se produzir tal delimitação junto com o
profundo desconhecimento de quem o faz, aí deflagrado. Muitas das Terras Indígenas
criadas durante o governo do Presidente João Figueiredo assim o são, por imposições do
não amotinamento e da precaução de batalhas civis como condição de empréstimos
internacionais tomados ao Fundo Monetário Internacional ― FMI, naquele caso; e nelas
não se mexem, porque no contexto posterior, seria um precedente lhes alterar os limites
por alguma razão de adequação e, com isso, dar espaços a interesses adversos aos dos
povos indígenas.

A questão do mapa com a delimitação da Reserva Florestal do Acre era,


também, simbólica: era a presença do governo federal, “territorializada” em um mapa ―
imediatamente conhecido por administradores, por seringalistas, por aliados e pelos
controversos ― intervindo nos arranjos e nas vias de comércio já instituídos, tanto pela
geografia local quanto pelo domínio de elites seringalistas; também, a desapropriação
prevista, anunciada, no decreto a serem procedidas naquelas poligonais impressas no
mapa poderia trazer um desarranjo na politização local para a configuração de um estado
autônomo. De outra parte, o governo federal criou para si problemas políticos e para os
cofres públicos com a previsão de desapropriações, cujo prazo era estipulado, no decreto,
para a apresentação de documentos dentro de um ano. A proposta de código florestal ―
que era prevista no decreto como forma de normatização ― foi elaborada pela mesma
comissão que elaborou o decreto 30. A aprovação do código florestal, apresentado ao
Congresso pelo MAIC, era condição para o decreto que criou a reserva Florestal passar a
vigorar. Por uma gestão do MAIC junto aos governos, para que se manifestasse, apenas
o Amazonas, o Ceará e o Pará declararam apoio à proposta do código florestal, os demais
governos estaduais a ignoraram e o Rio Grande do Norte respondeu dizendo que não tinha
terras para entregar ao governo federal. O decreto, com as celeumas e impasses criados

30 A mesma comissão elaborou os dois documentos e era composta por deputados; representante
do MAIC; pelo representante do Serviço Mineralógico e Geológico do Brasil, o geólogo Felipe de Campos
e pelo naturalista do Jardim Botânico geólogo, Manuel Pio Corrêa (VITAL, 2018, p. 60).

104
foi esquecido (VITAL, 2016, pp. 197-199) e a existência da Reserva Florestal do Acre é
pouco conhecida e explorada na história ambiental brasileira.

As intenções do decreto, no que o transbordassem a criação da Reserva


Florestal do Acre, são difíceis de serem exatamente conhecidas a afirmadas. O decreto
publicado, tendo causado surpresa aos administradores dos departamentos naquele
território, indica que não participaram do planejamento da reserva e, com isso, não
levariam notícias às oligarquias a que se aliavam; havia a oportunidade de se experimentar
criar uma reserva em local que não fosse dentro de espaços urbanos e colocar em prática
saberes e, com isso, dar relevo a determinadas políticas em saneamento para a
erradicação/controle de epidemias e derruir outras políticas; havia o efeito da contenção
do poder dos seringalistas diretamente de parte do governo federal sem que este tivesse
que se alinhar com outros estados em um arranjo ou com qualquer um deles em
detrimento de outros; pois, a proposta em criar a reserva tinha por finalidade atender a
uma necessidade ambiental identificada tecnicamente no que viam ser um problema a
variação do nível dos rios e cientificamente apoiada no dessecamento. São todas, e pelo
menos essas, as possiblidades para a decretação da reserva ― e podemos imaginar, ainda,
que a intenção fosse a publicação do decreto como efeito e não propriamente a
implantação da reserva. Restando certo que o governo federal, com o decreto, se
implantou como um outro ator em arranjos dados e conflitantes. Depois disso, as verbas
federais para aquele território foram em grande parte cortadas por causa da queda do
preço da borracha e as questões já seriam de outra ordem.

Getúlio Vargas, nos primeiros anos de seu governo como Presidente na


década de 1930, se interessa pela movimentação em torno preservação da natureza. Com
perfil de governar firme, centralizador, o governo federal edita uma série de códigos sobre
o uso das águas, de minérios, de proteção aos animais e regulamentação sobre as
atividades de caça de pesca; são medidas que, junto à reestruturação de órgãos, em 1938,
têm o tom tanto do ordenamento territorial como da “estrita regulamentação do uso e da
apropriação dos recursos naturais colocado sobre a propriedade do estado”, analisa Henyo
Barreto Filho (BARRETTO FILHO, 2001, p. 127).

O tema do turismo em áreas naturais e históricas, que acompanha a questão


da preservação ambiental na instituição de territórios e de categorias, será tratado no
âmbito do Departamento de Imprensa e Propaganda ― DIP, criado por Vargas em 1939.
O departamento possuía a capacidade de criar estações hidrominerais, climáticas e outras

105
ligadas a ambientes e locais históricos e naturais; prevendo incentivos financeiros e o
estabelecimento de diretrizes para a administração pública municipal na manutenção das
estâncias com o pré-requisito de serem necessariamente ligadas a um bem natural. Brasil
Novo e Travel in Brazil eram duas revistas do DIP que se serviram amplamente do recurso
da fotografia para divulgar o Brasil no exterior com suas regiões naturais, típicas e sobre
o floclore, tema este de que Mário de Andrade era colaborador, para fazer propaganda
das ações do governo em outras áreas que não apenas aquelas relacionadas com o meio
ambiente e turismo a partir daquele Departamento que era um instrumento de censura no
governo de Vargas (GOULART, 1990; LUCA, 2011). A Seção de Turismo dividia com
as seções de Imprensa, de Teatro, de Cinema e de Rádio a organização em franca censura
aos meios de comunicação e expressão, excetuados aqueles pertencentes aos empresários
de imprensa com manifestações expressas, e impressas, de apoio ao governo. Em 1939,
Cecília Meireles se torna editora da revista Travel in Brazil. A poetisa, defensora do que
seria a educação nova e da liberdade de imprensa tem, nessa contradição, a análise de
Mariana Batista da Silva (2019) que ressalta duas faces que não se juntam, como as vejo
e comento: Cecília Meireles já havia colaborado como jornalista no Diário de Notícias e
no Observador Econômico e Financeiro e, segundo o autor, sempre havia conseguido
trazer para as páginas alguma crítica ao governo; ao que parece não ter tido muitas
possibilidades como editora é à frente da revista do DIP, que era o próprio instrumento
do governo na repressão à imprensa 31; também, o autor aponta que o segundo marido de
Cecília Meireles, Heitor Grillo, fazia parte dos quadros do governo (SILVA, 2019). Em
que pese a possibilidade dessas duas vias para o DIP ter Cecília Meireles à frente da
revista Travel in Brazil, quero acrescentar o aspecto de que o governo, à época, tinha em
Cecília Meireles alguém que circulava no meio intelectual e artístico, escrevia seções em
jornais e revistas para um público variados e dela poderia ser tomado, por empréstimo,
uma rede e a legitimidade na veiculação da revista e do seu conteúdo.

Até aqui, temos medidas de proteção à natureza, categorias de reservas de


áreas e instituições diversas responsáveis por elas outras que se vão criando integrando
funções de outras. O diálogo com a proteção da natureza no âmbito internacional se dá
por meio dos intelectuais e cientistas ― em viagens para apresentações em congressos

31 O autor se reporta a cartas escritas a Manuel Bandeira em que Cecília Meireles ora se
entusiasma e ora demonstra decepção quanto estar à frente da revista.

106
internacionais e no acesso a publicações científicas de outros países ―, os quais
participam de formas variadas no tratamento e no peso do tema no Estado, ou fora dele.

A Sociedade dos Amigos das Árvores, criada em 1931 no Rio de Janeiro,


presidida por Leôncio Corrêa, idealizada por Alberto José de Sampaio, botânico do
Museu Nacional e organizada pelo naturalista Frederico Carlos Hoehne. Alberto Sampaio
vê no governo possibilidades e meios de se terem aplicadas medidas de proteção da
natureza, tendo ele escrito desde meados de 1912 em favor do reflorestamento, das
reservas naturais e da preservação da floresta primária remanescente por meio de uma
reforma na agricultura em favor de uma lei florestal (HAMMERL, 2013, p. 4; DEAN,
1996, p. 275), no que era ele prosélito junto às elites (DEAN, ibidem). Apontada como a
primeira entidade brasileira de movimento social ambiental, a Sociedade dos Amigos das
Árvores não era a única com o fito do tema da proteção à natureza. A Federação Brasileira
para o Progresso Feminino, com Berta Lutz, tomou posturas conservacionistas, segundo
Warren Dean; foram criados o Clube dos Amigos da Natureza Sociedade Geográfica do
Rio de Janeiro; a Sociedade dos Amigos da Flora Brasílica, com 113 sócios fundadores
entre horticultores de fazendeiros inovadores; uma reserva biológica foi adquirida pela
Sociedade de Amigos do Museu, formada por servidores do Museu Nacional do Rio de
Janeiro em uma organização fechada de atuação política em favor do Museu, informa
Dean; e a Sociedade de Amigos de Alberto Torres, na forma de células, com mais de mil
delas ao final da década de 1930 atuando com palestras em escolas e no fornecimento de
ferramentas e de sementes, com posturas ativas na conservação relacionadas às questões
locais (DEAN, 1996, p. 275).

Em 1934, entre os dias entre 8 e 15 de abril, acontece a Primeira Conferência


Brasileira de Proteção à Natureza, ― uma realização conjunta da Sociedade dos Amigos
das Árvores e da Sociedade de Amigos de Alberto Torres. Com apoio de infraestrutura
do Museu Nacional e patrocínio do governo federal, cujo chefe era Getúlio Vargas. Henyo
Barreto Filho (2001) interpreta o acontecimento como uma forma de pressão ao governo
para a promulgação do Código Florestal. Barreto Filho mapeia a relação entre o governo
e a sociedade civil indicando a perspectiva de Warren Dean quanto à grande produção
legislativa que pudesse ter provocado um “refluxo da sociedade civil” (BARRETTO
FILHO, 2001, pp. 127-128); sentido esse reiterado na passagem em que diz Dean:
“Diversas organizações, diretamente envolvidas com a conservação parecem ter
influenciado a legislação inicial do período Vargas”, passando a enumerá-las daí em

107
diante (DEAN, 1996, p. 275). Portanto, se tratava tanto de alguma mobilização quanto de
influência e participação na elaboração das normas na década de 1930. Barreto Filho fala
da perspectiva de Antônio Augusto Drummond, quem observou certa desmobilização no
exercício da cidadania relativa à gestão dos recursos naturais por conta de o governo ter
se antecipado à capacidade de reivindicação da sociedade civil. E Barreto filho pontua
que a ciência “estava institucionalizada no aparelho do estado”, limitando a força de
pressão do lobby científico por questões, assim, estruturais (BARRETTO FILHO, 2001,
p. 128).

A pressão para a edição do Código Florestal tem expressão logo no discurso


de abertura de Leôncio Correia, na abertura da Conferência acerca do “problema
florestal” que “é neste instante, a preocupação suprema dos países civilizados do mundo”,
e a disponibilidade da Sociedade dos Amigos das Árvores em colaborar com o poder
público e a importância daquele Governo Provisório no futuro do Brasil do “problema
econômico sintetizado na fórmula já expressa, de Proteção à Natureza” e nela Correia
inclui o subsolo. Com coisa alguma escapando ao mundo natural em sua fala, Correia
segue na Proteção à Natureza justificando-a por duas vias: o uso racional dos recursos do
ambiente Natural na forma de recurso econômico e o “culto” Ao ambiente natural para o
usufruto estético. 2 abordagens tanto da natureza quanto da justificativa de sua proteção
que tinha naquele momento um caráter unificado alinhado ao nacionalismo eu
cientificismo na apreensão da natureza tanto pelas suas descrições e quanto pelos projetos
pensados para ela, no caso, a sua proteção. O debate entre preservacionistas e
conservacionistas travado nos Estados Unidos desde fins do século XIX, era um debate
naquele país; no Brasil, as discussões estavam-se pautando por angariar esforços e arranjo
entre a comunidade científica, funcionários públicos, sociedade civil para a preservação
da natureza eu uso racional dos recursos naturais. Quando falo em arranjo, me refiro a
pessoas/instituições chaves em lugares chaves conhecedoras de uma questão e de seus
obstáculos e que formam uma cadeia envolvida na resolução para a questão da proteção
da natureza, no caso e no geral, o objetivo era comum, sem maiores dissensos nos
movimentos ambientais e com chances de mobilizar leis e governo. De qualquer maneira,
as duas vias de apreensão da natureza, no discurso de Leôncio Correia, a mostram
convertida ao humano, à sua perspectiva em dada época.

O Código Florestal é promulgado em 1934 ― em um novo contexto diferente


daquela tentativa do Presidente Hermes da Fonseca em aprovar um código florestal, no

108
episódio da criação da Reserva Florestal do Acre, em 1911. A promulgação tanto da
Constituição Federal quanto do Código Florestal, em 1934, traz noções e expressões que
vão sendo revistas ao longo do tempo, tanto quanto são resultados de compreensões
anteriormente revistas. Barreto Filho (BARRETTO FILHO, 2001, p. 127) chama a
atenção para a categoria de “monumento público natural”, que aparece no texto na
Constituição Federal e que comporta os sentido de valores estéticos, culturais e,
acrescentaria, estáticos; e para a noção de “áreas reservadas”, no Código Florestal de
1934, na abordagem de Parques Nacionais, Parques Estaduais e Parques Nacionais
(classificados naquele Código como Florestas Remanescentes) e Florestas Protetoras.
Também, se pode notar dentre as finalidades da Florestas Protetoras (art. 4º do Código
Florestal, 1934) ― conservar o regime das águas, fixar dunas, evitar erosão da terra por
agentes naturais ― que se esboça ali o que hoje são as Áreas de Preservação Permanente,
chamadas APPs. Naquele primeiro Código Florestal ― depois vieram o de 1965 e o de
2012 ―, as Florestas Nacionais estavam divididas em quatro categorias: Florestas
Protetoras, Florestas Remanescentes, Florestas Modelo e Florestas de Rendimento e um
impacto que a bibliografia aponta é a limitação do direito de propriedade e tratado
privilegiadamente com garantias pela Constituição e pelo Código Civil. Boa parte das
contestações oferecidas a delimitações de Territórios Quilombolas e para quais elaborei
respostas técnicas entre 2007 e 2010, no Incra, evocavam o “direito sagrado à
propriedade” não como integrante de um conjunto de refutadas, senão como o bastante
para o processo todo.

O Serviço Florestal, criado em 1921 na estrutura do MAIC, é reestruturado


por meio do Decreto-Lei nº 982, em 23 de dezembro de 1938, no o conjunto de órgãos e
de atribuições administrativos que já existiam, como observa Barreto Filho (BARRETTO
FILHO, 2001, p. 127), no Departamento Nacional da Produção Vegetal, que eram o
Jardim Botânico do Instituto de Biologia Vegetal e a Segunda Seção do Serviço de
Irrigação, Reflorestamento e Colonização, sendo criada, em 1939, a Seção de Parques
Nacionais, do Serviço Florestal (ibidem). O Serviço Florestal foi criado e/ou
reestruturado ao mesmo tempo que outros, nos quais podemos reconhecer algumas das
instituições e órgãos hoje existentes, dentre os quais: o Centro Nacional de Ensino e
Pesquisas Agronômicas; o Serviço de Meteorologia; e a Divisão de Terras e Colonização,
no Departamento Nacional da Produção Vegetal constituída pela Terceira Secção -

109
Colonização, do Serviço de Irrigação, Reflorestamento e Colonização, que já existia;
todos sob o Ministério da Agricultura.

No ano anterior ao da Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza,


havia sido realizada a Convenção Internacional sobre Proteção de Fauna e Flora em seu
Estado Natural na África32, em 8 de novembro de 1933, em Londres, para a proteção de
animais selvagens. A razão eram o extermínio de animais selvagens para o controle, pelas
autoridades, da mosca tsé-tsé e o desmatamento crescente e áreas sendo abertas para a
agricultura sem planejamento na política colonial. A Convenção foi assinada por Estados
europeus apenas, guardando a perspectiva e preocupações daqueles países e a antipatia
dos africanos colonizados, segundo Franco e outros, pela conservação (FRANCO, et al.,
2015, p. 244) Nessa Conferência teve lugar o estabelecimento de uma conceituação
mundialmente homogênea para a categoria parque nacional, a apontando como modelo
de preservação em que o uso, mesmo racional, dos recursos naturais não se aplicariam
aos parques.

O parque proposto por André Rebouças só foi criado em 1959, por


Juscelino Kubitschek, e guardou a inspiração no Parque de Yellowstone tanto o quanto o
“exotismo” da vida selvagem pela presença de indígenas na ilha, o que não consistiu em
maiores problemas, à época, para um Parque Nacional como depois, em 2000, o Sistema
Nacional de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC previu que não seria
permitido e que resultou em sobreposições entre duas Terras Indígenas e o Parque
Nacional do Araguaia. A Ilha do Bananal se localiza entre a margem direita do rio
Araguaia e a esquerda do rio Javaés, antes Goias e hoje Tocantins; sendo que o registro
da presença de indígenas Karajá e inclusive a indicação da presença Xavante na ilha33 o
registro de Xavante e outros já era conhecido à época da proposição do parque:

A província ou distrito da Nova Beira fica ao norte da de Goiás, e


estende-se para o setentrião por entre os Rios Araguaia e Tocantins a
terminar no ângulo da sua confluência, com 130 léguas de
comprimento norte-sul, e 40 de largura. A Ilha de Sant’Ana [antigo
nome da Ilha do Bananal] pertence-lhe. Quase toda está ainda no
domínio de várias nações selvagens. A do gentio Chavante, que parece
ser a mais numerosa possui a maior parte para o norte. Os seus

32 Em Washington, em 12 de outubro de 1940, aconteceu outra conferência com os mesmos


objetivos daquela de Londres em 1933, porém, voltada para a América.
33 Os registros de etnólogos e etnógrafos os mapeiam por vezes citados em documentos antigos
em meio aos Xerente, de quem se diferenciam. Depois que estiveram juntos no Aldeamento Carretão, em
Goiás, na margem

110
convizinhos são os Pochetis, os Noroguages, os Apinagés, os Carajás, os
Cortis, e os Xerentes. (Casal, 1817: 154).

Juscelino Kubitscheck encampou o Projeto Bananal34, o qual previa a criação


de um centro turístico na ilha: construiu o hotel internacional JK, uma escola, a pista de
pouso para aviões, um hospital e a casa da presidência. Quando estiveram no Brasil, em
1960, Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir estiveram na ilha em 1960, ainda sem as
estruturas planejadas. Conta Luís Antônio Romano (ROMANO, 2000, p. 209) que as
conversas com Alejo Carpentier e com Claude Lévi-Strauss fizeram Sartre e Beauvoir
curiosos pela Amazônia; por fim, a viagem para uma aldeia indígena na Ilha do Bananal
foi conseguida por Jorge Amado junto ao governo estadual. Buscavam aventura, uma
armadilha épica, segundo Romano, que Beauvoir narrou descrevendo a chegada do avião
à ilha ― e não percorrido o Araguaia como um Mississipi, como planejado por Rebouças
― em um trecho de La force des choses:

Fomos a eles. Saudaram-nos, com gritos desprovidos de convicção. As


mulheres conservavam-se atrás deles, vestidas com farrapos
quotidianos, os filhos nos braços. Sentíamo-nos terrivelmente
constrangidos, por essa mascarada e por nosso papel idiota. Troca de
sorrisos, apertos de mão; eles nos deram - de acordo com o que lhes
fora prescrito - armas, flechas, diademas feitos de plumas, que fomos
obrigados a colocar em nossas cabeças. (...) Ficamos sentados em uma
varanda, olhando o perigoso Mato Grosso do outro lado do vasto rio,
que corria em nível mais baixo. (Simone de Beauvoir)35

O hotel, a casa do presidente e a pista de pouso foram construídos com o


material vindo de caminhão até a Barreira da Bem-Vinda na margem esquerda do Rio
Araguaia altura de são Félix do Araguaia ia atravessando por três balsas para a ilha,
conforme lembra Dunkmar Guntlher, responsável pela Operação da Barreira da Bem-
Vinda em entrevista à rede de televisão local36, em 22 de janeiro de 2013. Talheres em
prata, copos de cristal, geladeiras em cada um dos 18 quartos aclimatados por isolamento
térmico sob o telhado em metal, visita de dirigentes russos, festas, pescarias e caçadas. A

34 Com recursos financeiros da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da


Amazônia SPVEA, criada em 1953, sucedida pela Superintendência da Amazônia ― SUDAM, em 1966,
vide Portifólio de Instituições Governamentais, Presidência da República.
35 La force des choses, publicado na França em 1963, no Brasil recebeu o título de Sob o Signo
da História. O trecho é do volume 2 daquela obra, transcrito a partir de ROMANO, 2000, p. 209.
36 Rede Record TV Confresa; arquivo de vídeos “Memórias do Araguaia 2º episódio – Hotel JK,
disponível em www.rnatv.com.br.

111
ideia do presidente, lembra Guntlher, era a de trazer pessoas do mundo todo para ajudar
a preservar as belezas da ilha; com o Golpe de 64, continua ele, buscaram apagar obras
de JK e o hotel mudou o nome para o do Presidente Kennedy. Hoje, o hotel está em ruínas
em meio à aldeia Santa Isabel, dos indígenas Iny-Karajá, a mais populosa na Ilha do
Bananal.

As iniciativas internacionais no tema da preservação da natureza estavam


desarticuladas no cenário internacional após 1948, terminada a Segunda Guerra Mundial
(BARRETTO FILHO, 2001, pp. 34, 143). As nações estavam às voltas em se
reestabelecerem e os usos dos recursos naturais foram maximizados, nesse contexto foi
criada a União Internacional para a Proteção da Natureza ― IUPN, em 1948 (FRANCO,
et al., 2015, p. 245), na estrutura da Organização das Nações Unidas para a ciência,
educação e cultura ― Unesco, fundada em 1946. Dentre algumas das instituições do
chamado “sistema ONU” estão o Fundo Monetário Internacional ― FMI, fundado em
1945; o Banco Internacional para Reconstrução e o Desenvolvimento ― BIRD, 1945,
ligado ao Banco Mundial; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento ―
PNUD, 1968, com o objetivo de promover o desenvolvimento e de erradicar a pobreza; a
Organização internacional do trabalho ― OIT, fundada em 1919, cuja Convenção nº 169
Sobre povos Indígenas e Tribais é alçada nos documentos produzidos pelo Poder Público
nos direitos ao território; à consulta livre, prévia e informada em quaisquer assuntos que
os envolva ou venha a afetar; à autonomia; à autodeterminação nas decisões e nos seus
destinos e planos de vida; à autodeclaração, pois não se procede à identificação étnica.
Interpresta-se, na Convenção 169 da OIT, “povos tribais” os grupos étnica e socialmente
diferenciados da sociedade homogeneizante, abrangendo comunidades quilombolas e
comunidades tradicionais. Outra estrutura integrante do sistema ONU foi o Projeto
Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal ― PPTAL,
que teve início no final da década de 1990 e foi encerrado em 2008, financiando os
estudos de identificação e delimitação de Terras Indígenas, que são peças processuais na
regularização fundiária de Terras Indígenas, em parceria com a Fundação Nacional do
Índio ― Funai, órgão detentor da atribuição precípua na regularização fundiária daqueles
territórios.

A IUPN, uma rede de proteção à natureza das mais antigas e maior, segundo
Franco (FRANCO, et al., 2015, p. 246), que havia sido criada em 1948, em 1965 muda o
nome para União Internacional para a Conservação da Natureza ― IUCN. A IUCN e

112
outras organizações não governamentais internacionais, vão estar envolvidas nas
discussões de áreas naturais protegidas como instrumentos de conservação dos recursos
naturais mais tarde, como aponta Barreto Filho; anteriormente estiveram às voltas com
ações pautadas na ideologia do progresso, ao longo de duas décadas no cenário de
reconstrução pós-guerra (BARRETTO FILHO, 2001, pp. 4, 34; FRANCO, et al., 2015,
p. 245) por meio das organizações do sistema ONU. A IUCN se apresenta com a missão
de garantir que qualquer uso de recurso natural se dê de forma sustentável e de “encorajar
e assistir as sociedades de todo o mundo na conservação e na integridade da diversidade
da natureza”. O Primeiro Congresso Mundial de Parques Nacionais ocorrido em Seatle,
nos Estados Unidos, em 1962, foi convocado pela IUCN e um entendimento retirado no
evento foi a necessidade de proteção legal sobre parques nacionais, o respeito ao direitos
adquiridos anteriormente à criação dos parques, como habitação e exploração dos
recursos ― desde que em pequenas porções de áreas e em caráter temporário.

Quando acontece a conferência em Estocolmo, em 1972, no cenário


internacional já havia corrido a Conferência Intergovernamental sobre o Uso e a
Conservação da Biosfera, em 1968, que apresenta uma discussão inicial sobre o conceito
de sustentabilidade; nos Estados Unidos são criados, em 1969, a organização não
governamental Friends of the Earth, com foco na conservação da diversidade biológica,
cultural e étnica e com o objetivo de envolver o cidadão, com voz, para a proteção do
meio ambiente e o planeta contra a degradação ambiental; e o National Environment
Policy Act, que estabelece uma política nacional de ambiente. No ano seguinte, 20
milhões de pessoas participam do Primeiro Dia da Terra, nos Estados Unidos, em defesa
do ambiente. Em 1971, no Canadá, é criada a organização não governamental
Greenpeace, de atuação por ações não violentas praticadas pela sociedade civil com base
em uma agenda própria para a proteção do ambiente; e, nesse mesmo ano, o Conselho da
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico ― OCDE introduz no
cenário mundial o princípio poluidor-pagador a partir da ideia de que as necessidades
humanas são ilimitadas ao passo que os recursos naturais são limitados e infinitos,
devendo o empreendedor (indústria, produção de bens de consumo) incorporar no custo
dos seus produtos as indenizações pela contaminação e pela escassez dos recursos
naturais. A finalidade era a de homogeneizar os preços de produtos no cenário
internacional e se evitarem distorções nos casos de produtos a preços baixos no mercado
à custa da degradação ambiental. De âmbito internacional e com sede na França, o OCDE

113
surgiu com outro nome, Organização para a Cooperação Económica Europeia -OCEE,
restrito aos países europeu e como gestor do Plano Marshall na reconstrução da Europa
no pós-guerra. Na legislação sobre o licenciamento ambiental de empreendimentos de
infraestrutura e atividades econômicas e industriais, no Brasil, vamos encontrar o
princípio poluidor-pagador especialmente na mitigação e compensação de impactos
ambientais identificados em estudos prévios à instalação e operação de atividades listadas
na Resolução nº 237, 19 de dezembro de 1997, do Conselho Nacional do Meio Ambiente
― CONAMA, instância ligada ao Ministério do Meio Ambiente ― MMA. O princípio
poluidor-pagador está, também, referido na Declaração de Princípios, que foi estabelecida
na conferência mundial Rio 92.

O ambiente é discutido em termos globais no encontro de países tem na


Conferência Mundial Sobre o Meio Ambiente Humano, entre 5 e 16 de junho de 1972,
em Estocolmo, na Suécia, um marco com desdobramentos para a um novo encontro e
pactos na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento ―
CNUMAD, em 1992 no Rio de Janeiro, ou Rio 9237, ocorrida na cidade do Rio de Janeiro
entre os dias 3 e 14 de junho de 1992. As preocupações, em 1972, estiveram pousadas em
relacionar desenvolvimento econômico e preservação ambiental; vinte anos mais tarde a
fórmula seria o “desenvolvimento sustentável”, na busca do equilíbrio entre o
desenvolvimento econômico e o meio ambiente.

A Declaração de Estocolmo (1972), resultante daquela conferência realizada


pela Organização das Nações Unidas ― ONU, trouxe para o cenário mundial as
preocupações acerca do esgotamento dos recursos não renováveis, da contaminação do
meio ambiente, da necessidade de proteção do meio ambiente e, também, a condenação
do apartheid e a necessidade de planejamento racional entre o desenvolvimento e o
ambiente de forma integrada. Os recursos não renováveis deveriam ser cuidados para o
futuro, se evitando o seu esgotamento e a sua extinção, assegurado “que toda a
humanidade compartilhe dos benefícios de sua utilização” 38. Se previram providências:
preços razoáveis para as exportações dos países em desenvolvimento; financiamento dos
países em desenvolvimento para a implementação da proteção do ambiente;
implementação de políticas ambientais que não afetem o desenvolvimento, eliminação de
armas de destruição maciça. São 26 princípios com a recomendação de que cada país

37 Há outras denominações: Cúpula da Terra, Eco 92 e Cimeira do Verão.


38 Princípio nº 5 da Declaração de Estocolmo sobre o ambiente humano - 1972

114
estabelecesse suas normas. Com esse programa que remarca a diferença entre países do
Sul e do Norte, a conexão entre ambiente e desenvolvimento, ou as formas de fazer, vão
sendo alinhadas no intervalo desses 20 anos. O cunho terceiro-mundista

O Relatório Brundtland (1987), documento conhecido como Nosso Futuro


Comum, foi um resultado da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento; comissão essa criada na ocasião da Conferência de Estocolmo. É a
partir do Relatório Brundtland que a expressão “desenvolvimento sustentável” desponta
para perpassar os setores da vida humana, como: saúde, educação, lixo, espaço aéreo, paz,
mineração, energia nuclear, crescimento populacional (UNITED NATIONS, 1987) e que
estarão presentes na Agenda 21, na Cimeira Mundial, ou Rio 92. A implementação da
Agenda 21 Nacional amplia a apropriação da expressão no delineamento das políticas
públicas no Brasil.

No Brasil, a criação de estruturas governamentais específicas para a discussão


dos assuntos do meio ambiente se dá depois da Conferência de Estocolmo, em 1972,
como a criação da Secretaria Especial do Meio Ambiente ― SEMA39 na estrutura do
Ministério do Interior-MINTER, em outubro de 197340, com o Professor Paulo Nogueira
Neto, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo ― USP e fundador da
organização não governamental Associação de Defesa do Meio Ambiente ― Adema e
que havia participado da Conferência de Estocolmo (MERCADANTE, 2001;
BARRETTO FILHO, 2001, p. 185). Alguns apontam que a criação da SEMA respondeu
à demonstração de retratação do Brasil na declaração de outro integrante da delegação
brasileira, durante aquela conferência, de que seria bem-vinda a poluição ao país contanto
que acompanhada de crescimento e de desenvolvimento (MEDEIROS, 2006, p. 53;
GOMES, 2002, p. 16). Uma leitura de Henyo Barreto Filho da posição brasileira na
Conferência de Estocolmo, se faço jus a ela aqui arriscando uma redução porque a trago
resumida, é a de que se entrincheirou na defesa da soberania nacional, frente às acusações
frequentes de destruição da Amazônia e aos episódios entre Brasil e Argentina na
construção da hidrelétrica binacional de Itaipu; soberania que não se deveria concertar
sob “interesses ambientais mal definidos e imprecisos”, tampouco os assuntos nacionais

39 Depois, integrou o conjunto de instituições na criação do IBAMA, são as outras instituições: o


próprio Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal―IBDF, a Superintendência da Borracha
―SUDHEVEA e a Superintendência da Pesca ― SUDEPE.
40 Criada por meio do Decreto nº 7.3030, de 30/10/1973.

115
deveriam ser submetidos aos interesses externos tendo a cooperação internacional como
um instrumento.

A criação da Secretaria Especial do Meio Ambiente ― SEMA seguiu a onda


de criação de agências ambientais em diversos países, a Exposição de Motivos do decreto
que criou a SEMA, em 1973, faz referência explícita à Conferência de Estocolmo, como
destaca Barreto Filho (BARRETTO FILHO, 2001, p. 150). A não centralização das
discussões sobre o meio ambiente em alguma instituição no Brasil transparece nas
recomendações aos ministérios para suas manifestações para se construir a posição
brasileira ao indicar “evitar iniciativas isoladas e fracionárias por parte de órgãos da
administração pública do país” nas suas contribuições, na forma que consta na Exposição
de Motivos nº 001/197141, 22 de dezembro de 1971, do Conselho de Segurança Nacional
e assinada por pelo do Secretário-Geral daquele conselho João Batista Figueiredo
(BRASIL, 1972).

Um outro efeito da Conferência de Estocolmo, no cenário internacional e nas


disputas entre das agências da Organização das Nações Unidas ― ONU, foi o a criação
de outro órgão sistema ONU, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente ―
PNUMA, específico para questões ambientais (BARRETTO FILHO, 2001, p. 150); no
entanto, o PNUNA não conseguiu se constituir como casa para a governança nas relações
políticas e econômicas e a sua aplicação aos limites ambientais por causa do seu desenho
institucional limitado (IVANOVA, 2012).

O Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal―IBDF, instituído em


1967, e a Secretaria Especial do Meio Ambiente ― SEMA, criada em 1973, integraram
o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis ― IBAMA,
em conjunto com a Superintendência da Borracha ―SUDHEVEA e a Superintendência
da Pesca ― SUDEPE. Criado o IBAMA por meio da Lei nº 7.735 de 22 de fevereiro de
1989, ele foi reestruturado em 2007 e as atribuições de execução do Sistema Nacional de
Unidades de Conservação da Natureza―SNUC ficaram na responsabilidade Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade ― ICMBio, criado por meio da lei nº
11.516, de 28 de agosto de 2007. Antes disso, com atribuições parecidas e em
sobreposição com IBDF, a SEMA, segundo Rodrigo Medeiros (2006), possuía um

41 Exposição de Motivos nº 001/1971 é dirigida à Presidência da República em resposta ao


Ministério das Relações Exteriores - Exposição de Motivos AEsp/AOI/DNU/266/602.60(04), de 23 de
agosto de 1971-MRE ― que trata da posição a ser adotada pelo governo brasileiro “no que diz respeito aos
problemas ligados ao meio ambiente” na Conferência de Estocolmo em 1972.

116
sistema próprio de criação e de tipologias de áreas protegidas entre 1981 e 1996, que
eram: a Área de Proteção Ambiental ― APA; a Área de Relevante Interesse Ecológico
― ARIE; a Reserva Particular do Patrimônio Natural ― RPPN; e a Estação Ecológica
― ESEC, esta criada em 198142, com objetivos parecidos aos da Reserva Biológica ―
REBIO criada pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal―IBDF em 196743
(MEDEIROS, 2006, p. 54). ESEC e REBIO são as duas tipologias de áreas protegidas
mais restritivas à presença humana, sendo permitidas a pesquisa científica em ambas e
contam no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC, criado
em 2000.

A ideia de se colocarem as áreas protegidas em rede tinha por objetivo


organizá-las em torno de uma política de conservação que não contasse com áreas criadas
por vários órgãos e, nesse sentido “isoladas”, prevendo o alinhamento dessas áreas a uma
lei (GUGELMIN, et al., 2003), que viria a ser a “Lei do SNUC”, como é conhecida. Nesse
sentido, o IBDF encomendou um estudo à Fundação Pró-Natureza ― Funatura, em 1988,
com a finalidade de se terem as unidades de conservação em um sistema que as
interligasse em uma política de conservação, diz Maurício Mercadante
(MERCADANTE, 2001, pp. 3-4). O estudo buscou apontar as lacunas na legislação
existente, a tipologia de unidades de conservação em excesso para serem extintas e as
categorias de unidades de conservação em sobreposição de objetivos similares, que
deveriam ser fundidas. A visão geral da proposta da Funatura, para Rodrigo Medeiros
(MEDEIROS, 2006, p. 17), possuía um perfil mais voltado ao preservacionismo em
aspectos restritivos à participação da sociedade civil na criação, na organização e na
gestão das unidades de conservação, bem como na permanência de população humana
em áreas de conservação. Concluído o estudo, a Funatura o apresentou ao IBAMA, que
havia sucedido o IBDF e que se tornou o Anteprojeto de Lei para o SNUC.

O processo de discussão do Projeto de Lei do Sistema Nacional de Unidades


de Conservação da Natureza―SNUC já acumulava discussões em torno da proteção
ambiental que foram acrescidas e revistas a partir das discussões com foco conservação
da biodiversidade, ponto chave, ao lado do desenvolvimento sustentável, na Conferência
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento ― CNUMAD no Brasil,

42 Lei nº 6.902, de 27 de abril de 1981, criou, também, as Áreas de Proteção Ambiental - APPs.
43 A categoria Reserva Biológica foi criada por meio da Lei nº 5.197, de 3 de janeiro de 1967, que
dispunha sobre a proteção da fauna e que criou, também, o Parque de Caça.

117
Rio 92. Os documentos produzidos naquela Conferência rebateram na organização das
estruturas governamentais e elaboração de normas no País para o cumprimento do
compromisso assumido pelo Estado naquela ocasião. São cinco os documentos
produzidos na ocasião: a Convenção sobre a Diversidade Biológica ― CDB; a
Convenção sobre Mudanças Climáticas; a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente E
desenvolvimento, a Carta de Princípios das Florestas e a Agenda 21 (GUGELMIN, et al.,
2003).

Dentre os documentos Produzidos na Rio 92 e os mais de 170 países


convidados subscrevê-los, a Agenda 21 trazia para o assunto do desenvolvimento
sustentável os setores temáticos para a sua implementação: Aspectos sociais econômicos
(pobreza, consumo, saúde, população, dívida externa); Conservação é administração de
recursos (gerenciamento de recursos como terra, mar, energia, lixo); fortalecimento dos
grupos sociais (formas de apoio a grupos sociais ― organizados ou minoritários ― que
colaborassem com a sustentabilidade); e meios de implementação (financiamento de
organizações governamentais e não governamentais) (GUGELMIN, et al., 2003, pp. 89-
93).― todos esses temas em face do ½ ambiente e da sua conservação

Os temas podem parecer amplos, e o são, como acontece em instrumentos


internacionais para que os países se enxerguem nas disposições e se sintam confortáveis
na subscrição do compromisso. A precisão se dá na etapa da aplicação das diretrizes dos
acordos internacionais na elaboração de planos e programas que os governos dos países
elaboram, em resposta de implementação do compromissado, marcando a especificidade
daquele país e a da sua contribuição ao tratado internacionalmente. Em linhas gerais, a
Agenda 21 Local, a partir da identificação de experiências, atores, parceiros, é um
instrumento para a internalização das diretrizes de sustentabilidade por meios de
mecanismos institucionais. Com a Convenção Rio+544, em Nova Iorque, nos Estados
Unidos, se aproximando, o Brasil deveria apresentar seus avanços. A elaboração da
Agenda 21 Brasileira era uma decorrência dos compromissos firmados na Rio 92 e o
Brasil não tinha uma. Contam-nos Eunice Gugelmin e outros:

Naquela época, era necessário gerar resultados que pudessem ser


apresentados na Conferência Rio+5. Teria sido desastroso para o gover
no brasileiro, hospedeiro da Eco 92 (...) e signatário de primeira hora

44 O evento foi Rio+5 se referiu à Special Session of the General Assembly to Review and
Appraise the Implementation of Agenda 21, ocorrido entre os dias 23 e 27 de junho de 1997.

118
de protocolo da Agenda 21, não ter nada a apresentar 5 anos depois.
(GUGELMIN, et al., 2003, p. 93)

Foram realizados workshops e preparatórios entre governo, acadêmicos e


sociedade civil organizada, sendo o primeiro em abril de 1996, organizado pelo governo,
em Brasília (GUGELMIN, et al., 2003, p. 93). Um workshop aconteceu em janeiro de
1997, em Embu, no Estado de São Paulo45, poucos meses antes da Conferência, por
iniciativa da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável46 convidando a
Academia Brasileira de Ciências e o Instituto de Estudos Avançados da Universidade de
São Paulo.

A institucionalização, necessária para o cumprimento dos objetivos de


implementação da agenda local, veio com a criação da Comissão de Políticas de
Desenvolvimento Sustentável e da Agenda XXI Nacional47 ― por “pressão da Rio+5”
(GUGELMIN, et al., 2003, p. 93) que estava próxima de acontecer. O decreto presidencial
que criou essa comissão substituiu uma outra praticamente igual, a Comissão
Interministerial para o Desenvolvimento Sustentável ― CIDES, criada em 199448 na
esteira da Rio 92. O novo decreto trouxe além do nome, que passou a ter expresso na
ementa do decreto “Agenda XXI Nacional”, a indicação da composição da Comissão; e
as disposições de coordenadorias e arranjos institucionais ficaram sem lugar na pressa.
No decreto seguinte, de 2003, serão previstas expressamente a composição da nova
comissão com comunidades indígenas, comunidades tradicionais, organizações dos
direitos humanos, entidades representativas da juventude, entidades empresariais, de
movimentos sociais para o meio ambiente, de centrais sindicais. Em 2004, é editado novo
decreto revogando esse, com ajustes na composição de entidades organizadas, sendo
mantida a paridade entre instituições do governo e representações da sociedade civil.
Concomitantemente, foi realizada uma pesquisa nacional e sistematizados os dados na
publicação “O que o brasileiro pensa sobre Meio Ambiente, Desenvolvimento e da
Sustentabilidade”49, na época, sob a coordenação do Instituto de Estudo da Religião ―
Iser.

45 Responsável pela elaboração de nove documentos (CORDANI, et al., 1997)


46 Na atualidade a Fundação tem parceria e apoio do MCTI/CNPq, do Projeto Biota/Fapesp; foi
fundada por empresas.
47 Decreto de 26 de fevereiro de 1997.
48 Criada pelo Decreto nº 1.160, de 21 de junho de 1994.
49 Tanto as pesquisas quanto as suas publicações continuaram em edições posteriores.

119
Com esses breves exemplos ― de correrias, mas de esforços, também,
representativos de tantos outros ― quero chamar a atenção para os diversos setores às
voltas com o desenvolvimento sustentável e com o objetivo de engajamento no diálogo
internacional. Neste momento, não nos ateremos à polêmica acerca da contradição entre
termos, aparente ou não, da expressão “desenvolvimento sustentável”, apenas indico que
a expressão ganhou as letras da Lei do SNUC, junto com previsões normativas acerca dos
recursos genéticos e conservação da biodiversidade dispostas na Convenção sobre a
Diversidade Biológica―CDB assinada na Rio 92.

É a partir do Relatório Brundtland que a expressão desponta para perpassar


os setores da vida humana, como: saúde, educação, lixo, espaço aéreo, paz, mineração,
energia nuclear, crescimento populacional (UNITED NATIONS, 1987) e que estarão
presentes na Agenda 21, na Cimeira Mundial, ou Rio 92. A implementação da Agenda
21 Nacional amplia a apropriação da expressão no delineamento das políticas públicas.
A noção de “conservação da biodiversidade” (e a promoção dessa conservação), segundo
Boaventura Sousa Santos e outros, surgiu no meio científico mundial entre as décadas de
1980 e 1990 e foi acolhida pelo discurso acerca do meio ambiente no mundo nos debates
em fóruns, notadamente na Rio 92. A ideia de “biodiversidade” é a de que os países do
Sul seriam o reservatório mundial de diversidade biológica (SANTOS, et al., 2005, p. 60)
e acrescento que traz, também, a ideia de os países do Norte são repletos de tecnologias
para essa biodiversidade. Em outra escala, essa visão se repete no acesso aos
Conhecimentos Tradicionais Associados ao Patrimônio Genético, porém, com o sentido
de que um lado ― os conhecedores (chamados “detentores” de conhecimento na futura
norma que será editada em 2001, por meio de Medida Provisória) e formuladores desses
conhecimentos ― oferecem o conhecimento que é “aperfeiçoado” em outro lugar ―
empresas e pesquisadores que trabalham com bioprospecção.

Portanto, quando são iniciadas as discussões do Projeto de Lei nº 2.892/1992


na Câmara dos Deputados, que se tronou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação
da Natureza―SNUC, as expressões “desenvolvimento sustentável” e “biodiversidade” já
existiam. O longo tempo de discussão da lei nos permitirá observar, nos tópicos seguintes
a este, como as expressões e os sentidos vão sendo incorporados ao texto da lei.

Nos oito anos de discussão do Projeto de Lei nº 2.892/1992, a partir do seu


encaminhamento pelo Presidente Fernando Collor de Mello, em maio de 1992, foi criado
o Ministério do Meio Ambiente, em novembro de 1992, e trocou de ministros diversas

120
vezes; entre setembro de dezembro de 1992 tramitou o impeachment de Collor, resultando
no seu afastamento; o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal―IBDF passou a
ser o IBAMA. A demora nas discussões do Projeto de Lei para que ele seguisse seu curso
no processo legislativo, em que pese a instabilidade política, ao meu ver apenas encimou
a oportunidade no desinteresse, por parte do governo, em decidir e se posicionar com
relação à desapropriação, à participação da sociedade civil, aos indígenas às e
comunidades tradicionais e quanto à criação de unidades de conservação. Em uma única
oportunidade, o governo perderia apoio, mais que ganharia, com qualquer
posicionamento expressivo que assumisse entre “preservacionistas”, “conservacionistas”;
movimentos sociais ligados ao meio ambiente, bancada ruralista.

A superveniência do tema da conservação da biodiversidade, dos recursos


genéticos, da importância da preservação do patrimônio genético na estabilidade dos
ecossistemas pode ter desarranjado os termos dessa polarização ― entre grupos pró ou
contra a criação de unidades de conservação e de uma mediação por meio do
desenvolvimento sustentável ― reorganizando-a nos termos do compromisso nacional,
assumido na Rio 92, de implementar a Convenção sobre a Diversidade Biológica―CDB.

No processo de aprovação da Convenção, chama a atenção as justificativas


na Exposição de Motivos, que é a ocasião do proponente expressar o quanto pode ser
oportuno acolher o que se apresenta.

Trata-se, assim, de moderno instrumento jurídico consoante os


princípios consagrados na conferência do Rio. Ao ratificá-lo, o Brasil
demonstrará empenho em desenvolver, de maneira sustentável, seu
enorme potencial natural, contando para tanto com os dispositivos de
cooperação internacional estabelecidos de maneira clara e justa na
presente convenção. Ao Tornar-se parte da convenção, requerer-se-á
a adoção de legislação adequada para sua eficaz implementação.

Caberá ao Congresso Nacional a importante tarefa de regulamentação


de seus dispositivos. Dessa forma, estaremos protegendo os interesses
nacionais em área de enorme importância econômica e estratégica.
(Fernando Henrique Cardoso, Ministro de Estado das Relações
Exteriores; Exposição de Motivos, 27/03/1993)50

50 Mensagem nº 132/1993, de 19 de março de 1993, do Poder Executivo, acompanhada: da


Exposição de Motivos Exposição de Motivos, assinada pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores,

121
O objetivo do governo é o de incorporar a Convenção sobre a Diversidade
Biológica―CDB no ordenamento jurídico brasileiro; o que está previsto na própria
Convenção. Talvez isso justifique a Exposição de Motivos trazer um texto polissêmico,
em seus dois últimos parágrafos, para se comunicar com os vários setores representados
pelos parlamentares. Desse trecho, destaco os seguintes pontos em que identifico tal
comunicação: a modernidade, ou novidade, do que se apresenta, para as discussões, ou
mesmo as disputas, serem travadas em outro campo, sob um outro marco legal; a
participação dos parlamentares na elaboração dos dispositivos que decorreriam da
regulamentação da CDB; a “ambientação” do novo marco legal, aliado ao enfoque
econômico e estratégico da biodiversidade nos interesses nacionais; e, finalmente, o
aposto “de forma sustentável”, abrangendo partidários da “sustentabilidade” e do
“desenvolvimento sustentável”. Uma multiplicidade de endereçamentos que pudesse
fazer com que diversos setores ali se enxergassem em maior ou menor amplitude.

O texto da Convenção é aprovado em fevereiro de 1994 e, como lei, passa a


vigorar a partir de maio daquele ano51. Era necessário implementar a Convenção sobre a
Diversidade Biológica―CDB.

A noção de “conservação da biodiversidade” (e a promoção dessa


conservação), segundo Boaventura Sousa Santos e outros, surgiu no meio científico
mundial entre as décadas de 1980 e 1990 e foi acolhida pelo discurso acerca do meio
ambiente no mundo nos debates em fóruns, notadamente na Rio 92. A ideia de
“biodiversidade” é a de que os países do Sul seriam o reservatório mundial de diversidade
biológica (SANTOS, et al., 2005, p. 60) e acrescento que traz, também, a ideia de os
países do Norte são repletos de tecnologias para essa biodiversidade. Em outra escala,
essa visão se repete no acesso aos Conhecimentos Tradicionais Associados ao Patrimônio
Genético, porém, com o sentido de que um lado ― os conhecedores (chamados
“detentores” de conhecimento na futura norma que será editada em 2001, por meio de
Medida Provisória) e formuladores desses conhecimentos ― oferecem o conhecimento

Fernando Henrique Cardoso, publicada no Diário do Congresso Nacional, seção 1, em 27 de março de 1993
- sábado, pp. 6.224-6.225.
51 O Decreto nº 2.519, de 16 de março de 1998, promulga a Convenção sobre Diversidade
Biológica, cujo texto foi aprovado por meio do Decreto Legislativo n° 02, de 3 de fevereiro de 1994. No
cenário internacional, a CDB começou a vigorar em 29 de dezembro de 1993 e, no Brasil, passa a vigorar
a partir de 29 de maio de 1994, 90 dias após o governo brasileiro ter depositado o instrumento de ratificação
da Convenção em 28 de fevereiro de 1994, conforme prevê o Artigo 36 da CDB.

122
que é “aperfeiçoado” em outro lugar ― empresas e pesquisadores que trabalham com
bioprospecção.

Portanto, quando são iniciadas as discussões do Projeto de Lei nº 2.892/1992


na Câmara dos Deputados, que se tronou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação
da Natureza―SNUC, as expressões “desenvolvimento sustentável” e “biodiversidade” já
existiam disseminadas e com polêmicas. Leandro Dias de Oliveira entende que a
centralidade do desenvolvimento sustentável nas discussões na Rio 92 “permitiu aparar
arestas entre organizações não-governamentais e Estados, multinacionais e movimentos”
(OLIVEIRA, 2015). Ao mesmo tempo, a “conservação da biodiversidade” abre campo
de atuação e de entrecruzamento, e não de confluência, de propósitos diversos de
movimentos sociais, de acadêmicos e do governo. A perspectiva da Convenção sobre a
Diversidade Biológica―CDB para as comunidades tradicionais é o seu importante
serviço de conservação da biodiversidade; as populações locais residentes “nas
adjacências” devem contribuir para a conservação; e ambas, as tradicionais e as
adjacentes ― sem que esteja explicito que as tradicionais estão “dentro” ― são regradas
no sentido da manutenção da diversidade biológica sendo destacados os seus usos
sustentáveis.

As discussões do Projeto de Lei do SNUC seguirão em alinho às diretrizes da


Convenção sobre a Diversidade Biológica―CDB, tratado internacional subscrito pelo
Estado, e a própria lei em formulação se tornará um instrumento da implementação da
CDB no Brasil.

O Artigo 8º da Convenção sobre a Diversidade Biológica―CDB, dedicado à


conservação in situ, abre seus onze itens indicando que o país parte deverá “estabelecer
um sistema de áreas protegidas ou áreas onde medidas especiais precisem ser tomadas
para conservar a diversidade biológica”. Nos demais itens do Artigo 8º estão disposições
sobre as formas de conservação de áreas protegidas, do seu entorno, previsão quanto à
manutenção e monitoramento das espécies e, no rol de situações em proveito da
conservação, estão indicadas no “8j” da Convenção sobre a Diversidade
Biológica―CDB: as “comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida
tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica”,
com a obrigação de cada país parte da Convenção “respeitar, preservar e manter o
conhecimento, inovações e práticas” dessas comunidades e populações.

123
Mais tarde, é editada a Medida Provisória nº 2.186, de 23 de agosto de 2001,
para tratar do acesso ao patrimônio genético, aos conhecimentos tradicionais a ele
associado, do depósito de amostras e instituições fiéis depositárias, do contratos de
repartição de benefícios advindos de tais acessos, da criação do Conselho de Gestão do
Patrimônio Genético―CGen e o seu assessoramento pelo Departamento de Patrimônio
Genético, da Secretaria de Biodiversidade e Florestas, do Ministério do Meio Ambiente;
onde trabalhei, conforme dito no capítulo 1, na tramitação e análise dos pedidos de
autorização de acesso àqueles conhecimentos tradicionais e na regulamentação técnica da
tramitação e das definições dos procedimentos. Aspectos da regulamentação, portanto,
dos usos desses conhecimentos por parte de terceiros em sistemas de referência sócio
cultural, objetivos e aplicação diferentes do contexto em que são formulados, inovados
formulados e são utilizados. Sempre muito trabalhoso emplacar a perspectiva de que são
conhecimentos ombreados ao científico, porém, formulados em outro sistema e
indicando, com a própria existência, que não são apenas os conhecimentos produzidos
pela ciência a existirem, com os seus campos e o seu meio de legitimação e de reprodução.

Outro aspecto, precedente à Convenção sobre a Diversidade


Biológica―CDB e à sua vigência no Brasil, é a existência e permanência de comunidades
locais e povos indígenas a partir da criação de áreas protegidas de uso indireto (as
Unidades de Conservação de Proteção Integral) em situação de sobreposição.

O dispositivo 8j da CDB dá relevo aos estilos de vida relevantes à


conservação da biodiversidade das comunidades locais e povos indígenas, em nítida
referência de que há formas de viver e de organização são benéficas e diferentes do
consumo de bens e dos recursos naturais da forma como a sociedade abrangente, e
mundial, o faz, cujo limite é o tema central da Cúpula Mundial do Meio Ambiente, a Rio
92, desde a indicação, no Relatório Brundtland (1987): há a capacidade dos ecossistemas
em se regenerarem, há o bem-estar e as necessidades básicas humanos e para ambos há
limites que deveriam ser negociados. Foi aquele relatório que indicou a necessidade da
pactuação global desses termos (UNITED NATIONS, 1987). Nos impasses acerca das
sobreposições ― discutidos no âmbito do governo, nos fóruns com comunidades e
publicações de ONGs não há uma discordância contundente aos estilos de vida
diferenciados, mas quanto à permanência ou não das comunidades locais e dos povos
indígenas; em que a lei não permite e não raro, as unidades de conservação de uso indireto
foram criadas depois e sobre áreas já conservadas e mantidas geográfica e politicamente

124
por aquelas comunidades e povos. Os exemplos de casos em que não há essa consonância
com o meio ambiente são sempre oferecidos, sem que seja cotejado com o geral, cujos
dados não existem em âmbito nacional formulados em um corpo metodológico, teórico e
ideológico que não tome as comunidades e os povos como coadjuvantes e mesmo
necessários à conservação sem ter em conta as próprias comunidades e povos em si. O
que não areja o debate acerca da sobreposição porque muda-se o polo apenas.
Deflagrando as noções e as medidas decididas para o ambiente do outro, em que a própria
terminologia já interfere, tanto o quanto remarca essa apropriação: o que seria “recursos
naturais” para povos e comunidades na sua própria constituição? É uma terminologia
externa aos grupos que deles destaca os setores dos seu estilo de vidas, tanto o quanto a
utilização dos conhecimento tradicionais associados ao patrimônio genético, que
identifica uma parte dos conhecimentos (músicas, plantas, rezas, encantamentos,
remédios, alimentos, edificações, comportamento de animais, etc.), ancorados/partidos
em relações de parentesco, em divisões de clãs e na própria distribuição interna desigual
desses conhecimentos entre aqueles que possuem determinados conhecimentos e outros
que não podem possuí-los, a exemplo de pajés e da divisão quanto ao gênero. É a parte
“útil” ao contexto externo, de destino, que é acessada e identificada, no arcabouço
daqueles conhecimentos tradicionais, a partir dos instrumentos, conhecimentos e
capacidade que a ciência dispõe até agora.

Entre a visão de que as comunidades e os povos indígenas possuem estilos de


vida compatíveis com a conservação e preservação da biodiversidade inerente à
necessidade da manutenção do seu ambiente, do seu território; e a visão de que a
preservação dos ambientes não se pode dar com a presença humana, não há efetiva
conciliação. Cristina Adams e outros (ADAMS, et al., 2006) apontam que qualquer dos
lados não foi capaz o bastante para desdizer o outro. Da forma como vejo, o consenso
entre pesquisadores não é interessante para, como antípodas, forcem o Estado reconhecer
que leva duas políticas incidindo sobre os povos e comunidades tradicionais: que lhes
valoriza os conhecimentos os estilos de vida na preservação, conservação, manutenção e
inovação dos recursos genéticos, que tanto endossam quanto são o motivo das ações e
programas do governo na implementação da Convenção sobre a Diversidade Biológica
― CDB; e outra política que não cuida de como a promoção daquilo tudo se dá na prática,
que é a permanência das comunidades em seus territórios sempre com a pecha da unidade
de conservação criada ou por existir ― ela mesma uma tipologia dentre as áreas

125
protegidas, como indica isso Rodrigo Medeiros (MEDEIROS, 2006, p. 42) ― em que a
execução do SNUC é parcela da implementação da CDB no Brasil. Uma ambiguidade na
atuação do Estado da que ele se serve, engastada no Ministério do Meio Ambiente—
MMA.

3.2. Projeto de Lei n° 2.892/1992: a elaboração do SNUC

Em um transcurso que durou oito anos dentro do Congresso Nacional, a


formulação da Lei nº 9.985/2000, a Lei do SNUC, teve início com a proposição do
Presidente da República ao Poder Legislativo, em 20 de maio de 1992, recebendo o nome
de Projeto de Lei (PL) nº 2.892/1992 na Câmara dos Deputados52 em 5 de maio de 1992
e, ao final das discussões e tramitação, a lei é promulgada em 18 de julho de 2000. Ajustes
na redação, próprios do processo de tramitação de uma lei, foram feitos ao texto e neste
item quero destacar a alterações que que relacionam populações humanas e unidades de
conservação em que o longo período de tramitação nos permite. A ênfase no olhar para
esse período será dada ao tratamento de comunidades tradicionais e povos indígenas.

12 unidades de conservação são classificadas entre o grupo de proteção


integral e o grupo de uso sustentável no formato final da Lei do SNUC, definidos os
grupos seu artigo 2º, abaixo, e as categorias respectivas são listadas na “Tabela 5 ―
Classificação das unidades de conservação entre 1992 e 2000”. São os dois
grupos de categorias de unidades de conservação:

proteção integral: manutenção dos ecossistemas livres de alterações


causadas por interferência humana, admitido apenas o uso indireto dos
seus atributos naturais.

uso sustentável: exploração do ambiente de maneira a garantir a


perenidade dos recursos ambientais renováveis e dos processos
ecológicos, mantendo a biodiversidade e os demais atributos
ecológicos, de forma socialmente justa e economicamente viável.

A definição “preservação” que a lei apresenta traz nos “procedimentos e


políticas que visem a proteção a longo prazo das espécies, habitats e ecossistemas” (artigo

52 Na sua tramitação no Senado Federal recebe o nome de Projeto de Lei da Câmara dos
Deputados (PLc) nº 27/1999.

126
2º, inciso V) em que se pode enxergar a noção de monumentos que transcorrem o tempo
como catedrais, imagens de contorno e de sentido desde as primeiras áreas protegidas
nos Estados Unidos e que delinearam a preservação como um valor no tempo, perspectiva
de análise minuciosa feita por Barreto Filho na Tese que privilegiou unidades de
conservação de proteção integral (BARRETTO FILHO, 2001).

As vozes dos pensadores de áreas protegidas estão na lei nas possibilidades e


objetivos das unidades de conservação quanto à pesquisa científica, educação e educação
ambiental e visitação pública para o contato com a natureza e, se quisermos emendar,
para a elevação do espírito, ou mesmo como forma de sensibilização da população para
a conservação ao lado da contemplação. O aspecto de uso econômico, “sustentável”, está
na base de todas as unidades de conservação, mesmo nas restritivas Reserva Biológica e
na Estação Ecológica, permitidas somente as pesquisas científicas e de forma regulada,
se entendermos que a ciência é, em dado momento, também tratada como valor
econômico (SANTOS, 2004)

A lei carreia uma tradição para dentro do texto e deverá acomodá-la no seu
propósito de ser uma lei geral para as formas de conservação e proteção da natureza. Em
minha pesquisa ao processo de formulação da lei olho para como as populações e
comunidades tradicionais, principalmente, aparecem e são vistas naquele processo com
disposições que, na maior parte das vezes, não foram para o texto final, mas que ecoam
na prática na constituição e na implementação das áreas protegidas na questão de o que
se fazer com as pessoas?; e quando as pessoas são grupos sociais identitários e falam?. A
definição de “população tradicional” foi vetada no texto da lei pelo Poder Executivo
pouco antes da sua votação no Plenário da Câmara dos Deputados e as disposições sobre
comunidades tradicionais constam na lei de forma mais ou não explicita; sendo que a
parte do “que fazer com elas” estão nas discussões daquele Projeto de Lei.

O documento com a Proposição de Projeto de Lei encaminhado do Poder


Executivo ao Poder Legislativo, era o estudo elaborado pela Fundação Pró-
Natureza―Funatura, organização não governamental sediada em Brasília, no Distrito
Federal. Foram duas as propostas elaboradas pela Funatura apresentadas em 1989 ao
recém-criado IBAMA em lugar do IBDF. Uma proposta com dez categorias de unidades
de conservação e a outra com nove, que fundia, sob o nome de “Reserva Ecológia” duas
outras categorias: a Reserva Biológica do antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
Florestal―IBDF e a Estação Ecológica da Secretaria Especial do Meio Ambiente ―

127
SEMA (MERCADANTE, 2001, p. 4), que respectivamente já existiam desde 1967 e
1981. As nove, ou dez, categorias das unidades de conservação foram apresentadas
originalmente organizadas em três grupos, e não em dois como estão divididos na
atualidade, havendo um grupo “temporário” entre os grupos de unidades de conservação
de uso direto o grupo de uso indireto das áreas protegidas, como seguem:

Propostas da Funatura para a sistematização de Unidades de Conservação, entregue ao IBAMA em 1989


Grupos de Unidades de Conservação Categorias de Unidades de Conservação

1. Parque Nacional
2. Monumento Natural
3. Refúgio da Vida Silvestre
(incluindo os objetivos da Área de Relevante Interesse
Ecológico com a proposta de exclusão desta)
Proteção Integral (uso indireto)
4. Reserva Ecológica
(proposta de fusão entre Reserva Biológica e Estação Ecológica)
ou:
4. Reserva Biológica
5. Estação Ecológica
Manejo Provisório 1. Reserva de Recursos Naturais
1. Reserva de Fauna (extinguindo-se o Parque de Caça)
Manejo Sustentável 2. Área de proteção Ambiental
3. Reserva Extrativista

Tabela 3 ― Organização e Categorias de Unidades de Conservação


propostas pela Funatura em 1989.

Das duas versões elaboradas pela Funatura, a proposta de manutenção das dez
categorias foi a escolhida e apresentada ao Legislativo pelo Presidente da República;
portanto, mantidas em separado Estação Ecológica e Reserva Biológica. As modificações
ocorridas na Presidência da República, segundo Mercadante foram poucas
(MERCADANTE, 2001), dentre as quais: a previsão da atribuição do Poder Executivo
na criação de conservação foi modificada para a atribuição do Poder Público; e a previsão
de penalidades na condição de crimes contra as unidades de conservação foram
substituídas por sanções administrativas. Se foram poucas as modificações, estas foram
intensas. A “descriminalização” de ações nocivas às unidades de conservação poderia
trazer menos força à lei, por outro lado, contaria com menor resistência na sua aprovação.
A mudança na criação das unidades de conservação por ato do Poder Executivo para ato
do Poder Público foi novamente modificada para “ato do Poder Executivo”, em 1996;
depois volta a ser Poder Público em 1998; e poucos dias ante do Projeto de Lei ser votado
na Comissão de Direitos do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias ― CDCMAM da
Câmara dos Deputados, representantes do Poder Executivo apresentaram alterações, por
pressão de preservacionistas, segundo Maurício Mercadante, quem havia participado da
elaboração daquele estudo (MERCADANTE, 2001), para que permanecesse como ato do

128
Executivo. A proposição do Projeto de Lei do Presidente da República, Fernando Collor
de Mello, com a Mensagem nº 176/92, datada de 20 de maio de 1992 (CÂMARA DOS
DEPUTADOS, 1992, p. 14), foi apresentada ao Poder Legislativo e a Comissão de
Direitos do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias ― CDCMAM, da Câmara dos
Deputados ficou responsável pelas discussões e tramitação do que agora era o Projeto de
Lei nº 2.892/1992.

Do manuseio do processo do PL nº 2.892/199253, estão selecionados dois


documentos no processo da formulação da Lei do SNUC e incluída a lei vigente para
serem comparados três momentos distintos do Projeto de Lei n° 2.892/1992 até a lei atual.

São os três documentos escolhidos na tramitação que não obedecem a uma


divisão temporal que, embora tenham divido o tempo de tramitação de forma equiparada,
são as versões em que constam maiores diferenças entre os ajustes nas categorias de
unidades de conservação que vão implicar nos ajustes dos grupos que as compreendem.
Compus um pequeno painel com esses momentos para “parar” o material e podermos nos
mover por ele no seu curso. Uso, eventualmente, documentos intermediários aos
indicados no painel, quando se faz necessário. Listo todos os documentos utilizados neste
item, marcados aqueles utilizados para o painel de classificação de unidades de
conservação.

Tabela 4 ― Documentos de referência no Processo Projeto de Lei n°


2.892/1992 da Câmara do Deputados

1992 ― Projeto inicial, ou principal, formado a partir da Proposição do Poder Executivo ―


20/05/1992, folhas de 4 a 13 do arquivo do processo Projeto de Lei n° 2.892/1992
1996 ― 1º Substitutivo do Relator Deputado Fernando Gabeira - 14/06/1996, folhas 531 a
554 do arquivo do processo Projeto de Lei n° 2.892/1992
1999 ― Substitutivo, Relator Deputado Fernando Gabeira - 21/05/199 folhas 61 a 80 do
arquivo do processo Projeto de Lei n° 2.892/1992
1999 ― “Substitutivo Adotado pela Comissão”, Flávio Derzi (Presidente da CDCMAM) –
09/06/1999; resultado das alterações propostas por representantes da Casa Civil, Ministério
do Meio Ambiente e parlamentares, em reunião de 26/05/1999; folhas 98 a 113 do do
arquivo do processo Projeto de Lei n° 2.892/1992
2000 ― Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000 promulgada; última consulta das atualizações
em 30/06/2019

As classificações das categorias de unidades de conservação ajustadas ao


longo da tramitação do Projeto de Lei desde a sua entrada no Poder Legislativo em 1992

53 Processo físico, encontrável digitalizado no sítio da Câmara dos Deputados.

129
até o término do processo legislativo mantiveram sob o grupo de proteção integral
praticamente as mesmas categorias: Reserva Biológica ― REBIO, Estação Ecológica ―
ESEC, Parque Nacional ― PARNA, Monumento Natural ― MONA e Refúgio da Vida
Silvestre ― RVS. No grupo de uso sustentável, categorias novas foram propostas em
várias apreensões da presença de comunidades tradicionais do ponto de vista da proteção
de áreas naturais, como as resumo comparativamente no painel que segue.

1992 1996 vigente


1º Substitutivo
Projeto inicial Relator Deputado Fernando SNUC - Lei 9.985/2000
Gabeira - CDCMAM de 18 de julho de 2000
20/05/1992, folhas 4-13 14/08/1996, folhas 531-554 (DOU 19/07/2000)
do Projeto de Lei n° 2.892/1992 do Projeto de Lei n° 2.892/1992

1. Unidades de Proteção Integral


1. Unidades de Proteção Integral
Grupos 2. Unidades de Manejo Provisório 1. Unidades de Proteção Integral
2. Unidades de Uso Sustentável
3. Unidades de Manejo 2. Unidades de Uso Sustentável
3. Unidades de Manejo Provisório
Sustentável

Para os grupos, acima indicados nos períodos recortados, seguem as


respectivas categorias:

1992 1996 vigente


1º Substitutivo
Projeto inicial Relator Deputado Fernando SNUC - Lei 9.985/2000
Gabeira - CDCMAM de 18 de julho de 2000
20/05/1992, folhas 4-13 14/08/1996, folhas 531-554 (DOU 19/07/2000)
do Projeto de Lei n° 2.892/1992 do Projeto de Lei n° 2.892/1992
1. Reserva Biológica
2. Estação Ecológica 1. Reserva Biológica
1. Estação Ecológica
Categorias de 3. Parque Nacional, Parque 2. Estação Ecológica
2. Parque Nacional
Proteção Estadual e Parque Natural 3. Parque Nacional
3. Monumento Natural
Integral Municipal 4. Monumento Natural
4. Refúgio de Vida Silvestre
4. Monumento Natural 5. Refúgio de Vida Silvestre
5. Refúgio de Vida silvestre
Categoria de
Manejo Reserva de Recursos Naturais Reserva de Recursos Naturais (deixou de existir)
Provisório

1. Área de Proteção Ambiental


Categorias de 1. Área de Proteção Ambiental 2. Floresta Nacional
Uso 1. Área de Proteção Ambiental
2. Floresta Nacional 3. Reserva Extrativista
Sustentável 2. Floresta Nacional, Floresta 3. Reserva Extrativista 4. Reserva de Fauna
Estadual e Floresta Municipal
4. Reserva de Fauna 5. Reserva de Desenvolvimento
3. Reserva Extrativista
5. Reserva Ecológico-Cultural Sustentável
antes 4. Reserva de Fauna
"Manejo 6. Reserva Ecológica Integrada 6. Área de Relevante Interesse Ecológico
Sustentável" 7. Reserva Produtora de Água 7. Reserva Particular do Patrimônio
Natural
elaboração: Leslye B. Ursini, 2019, com base no Projeto de Lei n° 2.892/1992 - Câmara dos Deputados Federais

Tabela 5 ― Classificação das unidades de conservação entre 1992 e


2000

130
As disposições sobre comunidades tradicionais propostas, suprimidas e que
permaneceram são analisadas na tramitação do Projeto de Lei n° 2.892/1992 nas
categorias Reserva de Recursos Naturais, Reserva Ecológico-Cultural e Reserva
Ecológica Integrada, que não seguiram para a edição final da Lei nº 9.985, de 18 de julho
de 2000.

3.2.1. “População tradicional” discutida e vetada

O projeto inicial, de 1992 se refere a comunidades tradicionais sem trazer uma


definição para elas dentre as demais definições expressas no artigo 2º: conservação da
natureza, diversidade biológica, preservação, manejo, unidades de conservação e zona
tampão, que depois será a zona de amortecimento. Posteriormente, é inserida uma
definição para população tradicional que foi sendo alterada em detalhes até receber o veto
do Presidente da República na edição final da Lei do SNUC. Para facilitar ao leitor vê-
las no conjunto, senguem abaixo juntas e apresento meus comentários a elas depois.

(A) Redação no “1º Substitutivo”, agosto de 1996:

Art. 2º, XV - POPULAÇÃO TRADICIONAL: população culturalmente


diferenciada, vivendo há várias gerações em um determinado
ecossistema, em estreita dependência do meio natural para sua
alimentação, abrigo e outras condições materiais de subsistência. (1º
Substitutivo, 14/08/1996, fl. 532)

(B) Redação no “Substitutivo” de 21 maio de 1999:

XV - POPULAÇÃO TRADICIONAL: população vivendo há pelo menos


duas gerações em um determinado ecossistema, em estreita relação
com o ambiente natural, dependendo de seus recursos naturais para a
sua reprodução sociocultural, por meio de atividades de baixo impacto
ambiental. (Substitutivo, 21/05/1999, fl. 62)

(C) Redação do “Substitutivo adotado pela Comissão”, 9 de junho de 1999;


resultado das alterações de representantes da Casa Civil, Ministério do Meio Ambiente e
parlamentares:

131
Art. 2º, XV - POPULAÇÃO TRADICIONAL: grupos humanos culturalmente
diferenciados, vivendo há no mínimo, três gerações em um
determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu modo de
vida, em estreita dependência do meio natural para sua subsistência e
utilizando os recursos naturais de forma sustentável. (Projeto de Lei nº
2.892/1992, fl 99; inciso vetado na Mensagem de Veto nº 967,
18/07/2000)

Grifei as indecisões no Projeto de Lei quanto a uma temporalidade de


existência das populações tradicionais, o que seria desnecessário estimar, dado que as
comunidades tradicionais precedem à criação das unidades de conservação de
conservação. Há ainda a incongruência (vide “C”) entre a previsão de “três gerações” e a
caracterização das comunidades por “historicamente reproduzindo seu modo de vida”;
essa história se realizaria onde se não no território tradicional? Há a recusa na palavra
“território”; o plano, o chão, o lugar seria o “ecossistema”. Os termos “subsistência” e
“alimentação”, são tratados como permutáveis nas versões da definição de populações
tradicionais, sobre o pano de fundo das discussões, desde o século XIX, de que o aumento
populacional coloca em cheque o meio ambiente, e o coloca, no entanto, a lógica nas
versões é apenas transportada para as comunidades tradicionais como se as apontar no
limite da sua subsistência fosse a garantia de poder relacioná-las a unidades de
conservação. A “subsistência” é a constante relegada às comunidades tradicionais e não
sabemos se há um registro para elas de um “mínimo”; esse há, se é o mesmo para todas
elas; e a “subsistência”, de forma discricionária, lhes é imputada.

O Decreto nº 6.040/2007, que instituiu a Política Nacional de


Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, já na sua
formulação de que participei das reuniões em que foi minutado, os representantes das
associações de comunidades tradicionais inseriram a palavra “econômica” na
imprescindibilidade da ocupação por elas dos seus territórios para a para a “sua
reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos,
inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição” (art. 3º, inciso I do Decreto nº
6.040, de 7 de fevereiro de 2007).

No dia 9 de junho de 1999 são apresentadas na Comissão de Direitos do


Consumidor, Meio Ambiente e Minorias ― CDCMAM, em reunião ordinária 54,

54 Deputados presentes na reunião ordinária da Comissão de Direitos do Consumidor, Meio


Ambiente e Minorias ― CDCMAM de 9 de junho de 1999: Flávio Derzi (Presidente); Luciano Pizzatto,

132
sugestões de alterações ao Projeto de Lei por parlamentares e, também, um grande
conjunto de alterações, de acordo com Maurício Mercadante, pelo Poder Executivo, que
foram praticamente todas aceitas no texto (MERCADANTE, 2001). O Deputado
Fernando Gabeira, relator, informa que os órgãos do Poder Executivo a apresentarem
alterações foram a Casa Civil da Presidência da República e o Ministério do Meio
Ambiente (Projeto de Lei n° 2.892/1992, fl. 82). Daquela reunião em sessão ordinária
resultou o “Substitutivo adotado pela Comissão”, dentre as alterações feitas, as
populações tradicionais deveriam estar há pelo menos três gerações “nos ecossistemas”
para serem consideradas como tais, trecho que e foi suprimido o trecho “dependendo de
seus recursos naturais para a sua reprodução sociocultural, por meio de atividades de
baixo impacto ambiental”, sendo substituída a última parte por “desenvolvimento
sustentável”. Sobre esta definição (que é o texto de “C”, acima transcrito) ― a que o
Poder Executivo teve acesso e revisou ― incidiu o veto presidencial menos de dez dias
depois, cuja justificativa reproduzo:

Razões do veto: “O conteúdo da disposição é tão abrangente que nela,


com pouco esforço de imaginação, caberia toda a população do Brasil.
De fato, determinados grupos humanos, apenas por habitarem
continuadamente em um mesmo ecossistema, não podem ser
definidos como população tradicional, para os fins do Sistema Nacional
de Unidades de Conservação da Natureza. O conceito de ecossistema
não se presta para delimitar espaços para a concessão de benefícios,
assim como o número de gerações não deve ser considerado para
definir se a população é tradicional ou não, haja vista não trazer
consigo, necessariamente, a noção de tempo de permanência em
determinado local, caso contrário, o conceito de populações
tradicionais se ampliaria de tal forma que alcançaria, praticamente,
toda a população rural de baixa renda, impossibilitando a proteção
especial que se pretende dar às populações verdadeiramente
tradicionais. Sugerimos, por essa razão, o veto ao art. 2º, inciso XV, por
contrariar o interesse público.” (Mensagem nº 967, de 18 de julho de
2000)

Celso Russomanno e Paulo Baltazar (Vice-Presidentes); Fátima Pelaes, Expedito Júnior, Reginaldo
Germano, Eunício Oliveira, Fernando Gabeira, Ben-Hur Ferreira, Jorge Tadeu Mudalen, Luiz Bittencourt,
José Borba, Badu Picanço, Murilo Domingos, Sebastião Madeira, Vittório Medioli, João Magno, Marcos
Afonso, Ricardo Izar, Régis Cavalcante, Valdeci Paiva, Aroldo Cedraz, Pedro Pedrossian, Moacir
Micheletto, Márcio Bittar, Philemon Rodrigues, Ronaldo Vasconcellos, Arlindo Chinaglia, Alcione
Athayde, Duílio Pisaneschi, Fernando Coruja, Sérgio Novais e Aloízio Santos (Projeto de Lei n°
2.892/1992, fl. 97).

133
Mercadante comenta que a versão final da Lei saiu muito parecida com o
Anteprojeto de Lei apresentado pelo Poder Executivo, em 1992, com cunho
preservacionista mais que conservacionista (MERCADANTE, 2001).

Passo a descrever categorias de unidades de conservação que foram discutidas


ao longo da tramitação do Projeto de Lei n° 2.892/1992, anteriormente ao veto
presidencial.

3.2.2. Reserva de Recursos Naturais ― proposta para o


grupo de Manejo Provisório

O grupo Manejo Provisório continha uma única categoria, a Reserva de


Recursos Naturais, uma categoria transitória, que inicia como uma unidade de
conservação e de “proteção total”, até que fosse encontrada a sua categorização final, ou
diversas categorizações poderiam compor a mesma unidade de conservação. Havia a
possibilidade de criação de Reserva de Recursos Naturais em áreas em que houvesse
territórios de comunidades tradicionais, como se depreende da sua definição:

Art. 10, § 2º Nas Unidades de Manejo Provisório, haverá, em caráter


transitório, proteção total dos atributos naturais, até que haja definição
da destinação por meio de estudos técnico-científicos, tolerado o uso
direto sustentável dos recursos apenas pelas comunidades tradicionais
existentes no ato da criação. (Projeto de Lei nº 2.892/1992 de
20/05/1992, fl. 7) (sem grifo no original)

Na redação no 1º Substitutivo (14/08/1996, fls. 531-544), “comunidades


tradicionais” passam a ser chamadas de “populações tradicionais” e a categoria de
Reserva de Recursos Naturais ganha parágrafos

Art. 8º, § 3° O objetivo das Unidades de Manejo Provisório é assegurar,


temporariamente, a proteção integral da natureza, até que estudos
técnico-científicos indiquem a melhor destinação para as áreas sob
proteção.

.............................

134
Art. 22. Constitui o grupo Unidades de Manejo Provisório a categoria
denominada Reserva de Recursos Naturais, com a finalidade expressa
no art. 8°, § 3°, desta Lei [vide acima].

.............................

§ 6º Na Reserva de Recursos Naturais, as populações tradicionais


residentes na área no momento da criação da unidade terão
assegurado o direito de nela permanecerem e desenvolverem as
atividades econômicas necessárias à sua subsistência, com a
orientação, o apoio e de acordo com normas estabelecidas pelo órgão
ambiental competente, com o propósito de assegurar o uso sustentável
dos recursos naturais. (Substitutivo, 14/08/1996, fl. 543) (sem grifo no
original)

Observo que nas últimas linhas do Artigo 6º, imediatamente acima, está dito,
que as comunidades não conservam, tampouco fazem uso sustentável e só o
empreenderiam se guiadas, cuidadas e tuteladas nos usos.

A Reserva de Recursos Naturais (art. 22, fl. 543) dentre todas as demais
categorias dos outros grupos, estava dispensada da elaboração de um plano de manejo,
por conta de seu caráter provisório. Ela não poderia ser confundida como “área em estudo
prévio para a criação de unidade de conservação”, para o que havia uma disposição
específica nesse mesmo Substitutivo (art. 24, fl. 544), acompanhada de formas de
interdição das áreas. O prazo para a destinação de sua categorização definitiva previsto
era de dois anos, prorrogáveis por igual período, para a sua destinação final. Na Reserva
de Recursos Naturais eram proibidas “a concessão de licenças para pesquisa e lavra de
minérios, a construção de barragens e estradas, e qualquer forma de exploração comercial
dos seus recursos naturais” (art. 22, § 5º, fl. 543).

Na da redação dada pelo 1º Substitutivo, em 1996 (14/08/1996, fls. 531-544),


à Reserva de Recursos Naturais é apresentada uma forma maleável de constituição de
unidades, uma espécie de mosaico desde a sua criação:

Art. 22, § 4º A Reserva de Recursos Naturais pode ser transformada, no


todo ou em parte, em outras categorias de unidades de conservação,
do grupo de Proteção Integral ou de Manejo Sustentável, ou ainda
extinta, por ato de mesmo nível hierárquico que a criou, obedecidos os
procedimentos de consulta aos órgãos, entidades e população

135
interessada estabelecidos nesta Lei. (1º Substitutivo, 14/08/1996, fl.
543)

O objetivo da Reserva de Recursos Naturais não é explícito. Porém, a


dispensa do plano de manejo, as interdições precisas sobre áreas com empreendimentos
― que a redação passou a ganhar no 1º Substitutivo (14/08/1996, fls. 531-544)―, a
maleabilidade para a constituição de uma unidade de conservação desuniforme em um
mesmo ato administrativo com destinação de categorias distintas no todo ou em partes e
o prazo para se decidir posteriormente o que se fazer com ela, me parecem conferir à
Reserva de Recursos Naturais ― que não permaneceu no texto da Lei do SNUC ― uma
certa agilidade para encampar áreas em risco ambiental de maneira emergencial podendo-
se a extinguir por ato administrativo do mesmo nível hierárquico que a criara, sem que
necessariamente fosse uma lei tramitada. Sua implantação ― cujo caráter emergencial se
depreende das suas especificações ― não tem o objetivo de atender a comunidades
tradicionais, mas poderia envolvê-las e em caráter temporário tolerá-las e, na redação
seguinte, orientá-las, apoiá-las

Foram previstas consultas à “população interessada” ― que é o todo:


adjacências, moradores, comunidades tradicionais. As consultas se referem a uma etapa
seguinte à declaração da área que, de início, é de proteção total. Além de colocar as
comunidades tradicionais em um rol de outras situações consideradas emergenciais que
o dispositivo não indica ou especifica, a criação da Reserva de Recursos Naturais poderia
ter em sua mira, inclusive, a ocupação das comunidades tradicionais ou em áreas de
interesse ambiental conservado pelas comunidades tradicionais ou algum uso considerado
em desacordo com o ambiente.

A categoria de Reserva de Recursos Naturais foi suprimida e com ela o grupo


de Manejo Provisório; ao que parece, no processo de formulação da lei, foram aparados
dispositivos que seriam posteriormente necessários, como é o caráter emergencial na
possibilidade de decretação de áreas para estudo, que reaparecerá em 2005, depois da Lei
do SNUC promulgada, inserido por meio de Medida Provisória convertida na Lei nº
11.132, de 4 de julho de 2005.

Art. 22-A. O Poder Público poderá, ressalvadas as atividades


agropecuárias e outras atividades econômicas em andamento e obras
públicas licenciadas, na forma da lei, decretar limitações
administrativas provisórias ao exercício de atividades e

136
empreendimentos efetiva ou potencialmente causadores de
degradação ambiental, para a realização de estudos com vistas na
criação de Unidade de Conservação, quando, a critério do órgão
ambiental competente, houver risco de dano grave aos recursos
naturais ali existentes.

A decretação de uma área nas imediações da BR-319, no Estado do


Amazonas, na margem esquerda do Rio Amazonas, teve como base legal o artigo acima,
prevendo a exclusão de terras indígenas reconhecidas e unidades de conservação criadas
anteriormente àquele Decreto de 2 de janeiro de 2006.

Quanto à tramitação do Projeto de Lei, à altura de agosto de 1996, havia uma


categoria de unidade de conservação destinada a populações tradicionais, além da
Reserva Extrativista sempre presente, que foi a Reserva Ecológico-Cultural.

3.2.3. Reserva Ecológico-Cultural ― proposta para o grupo


Uso Sustentável

As comunidades tradicionais eram o objetivo da instituição da Reserva


Ecológico-Cultural. Esta categoria foi proposta à Câmara dos Deputados pelo Estado de
São Paulo em contribuição à formulação da Lei do SNUC. O Conselho Estadual do Meio
Ambiente ― Consema, do Estado de São Paulo, começou a promover reuniões a partir
de 1992 e o Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas
Brasileiras — Nupaub, ligado à Universidade de São Paulo ― USP, elaborou uma
proposta e a encaminhou para a Fundação S.O.S. Mata Atlântica, em 24 de Junho de
1993. A mesma proposta foi reencaminhada, em 8 de dezembro de 1993, para João Paulo
Capobianco ― presidente da fundação SOS mata Atlântica à época e, mais tarde,
Secretário de Biodiversidade de Florestas no Ministério do Meio Ambiente ― e, desta
vez, a proposta também seguiu para o Instituto Florestal no Estado de São Paulo e para a
Direção do Consema. Depois das tentativas, a proposta surgiu no Projeto de Lei n°
2.892/1992.

O texto proposto pelo Nupaub, já na forma de artigos, não foi incorporando


na íntegra ao texto do Projeto de Lei, mas ficou impresso o sentido de que aquela tipologia

137
de unidade de conservação, a Reserva Ecológico-Cultural, é que abriga as populações
tradicionais.

Definição de Reserva Ecológico-Cultural proposta pelo NUPAUB:

Art. “X”. São áreas naturais, de domínio público, que possuem


características naturais ou exemplares da biota com valores ecológicos
significativos, ocupada por populações tradicionais que apresentem
aspectos culturais próprios é diferenciados, entre eles o
desenvolvimento histórico de sistemas produtivos de atividades
complementares que se baseiam na exploração direta e ou indireta de
recursos naturais (terrestres, intertidais55 e aquáticos), De maneira
sustentável. Essas áreas Compostas tanto por espaços de proteção
integral quanto por espaços destinados à exploração sustentável dos
recursos naturais, pelas populações tradicionais”. (DIEGUES, s/d, p. 2)

Definição de Reserva Ecológico-Cultural no 1º Substitutivo (14/08/1996) no


Projeto de Lei:

Art. 20. A Reserva Ecológico-Cultural é uma área natural que abriga


populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas
sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao
longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais, e que
desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na
manutenção da diversidade biológica. (1º Substitutivo, 14/08/1996, fl.
541).

Na proposta do Nupaub, os cinco parágrafos que seguem ao artigo “x”, acima


transcrito, previram, entre outros aspectos: a extração comercial de madeiras e a
exploração de recursos minerais seriam vedadas; e a exploração dos recursos naturais
seria dada sob manejo sustentável dos recursos, “a substituição da cobertura vegetal por
espécies cultiváveis em pequenas áreas, sujeito às limitações legais” ― no que imagino
se referir aos roçados das populações, sempre apontados como nocivos aos ambientes nas
refutações à permanência de comunidades tradicionais em áreas que se tornam unidades
de conservação. O reconhecimento dos direitos reais de uso por parte das comunidades
tradicionais e a indicação para a transferência aos descendentes diretos estavam previstos
naquela proposta apresentada pelo Nupaub, tanto o quanto o uso exclusivo dos recursos

55 Parte litorânea exposta na maré baixa e parte afetada pelas ondas na maré alta, essa faixa é
chamada de Zona Intertidal.

138
naturais pelas comunidades tradicionais. O seu conteúdo percorreu algumas chaves de
diálogo na lei em formulação ao enfatizar a “maneira sustentável” das atividades da vida
das comunidades, ao repetir “recursos naturais”, ao remarcar o equilíbrio entre população
humana e recursos naturais disponíveis; ao enfatizar a submissão a um “plano de manejo”
com a valorização dos sistemas tradicionais de manejo historicamente desenvolvidos.

O texto da proposta elaborada pelo Nupaub continha, além do caput do artigo


“x”, transcrito mais acima, dez incisos distribuídos em cinco parágrafos e o seu transporte
para a lei poderia desmembrá-los para cada tema na lei (definição, objetivo, vedações,
posse, etc.); portanto, a sua extensão não deveria constituir uma dificuldade para o
equilíbrio, em face do espaço ocupado por outras categorias de unidades de conservação,
no corpo da lei, com relação às disposições das demais tipologias de unidades de
conservação. A sua extensão, por outro lado, se pode ter tornado estratégica, pois algo
daquela contribuição deveria ser aproveitado pelo legislador ou, então, ser assumida uma
posição de recusa total, o que dificilmente aconteceria, pois era aquela uma contribuição
do Estado de São Paulo à formulação da lei.

O 1º Substitutivo (14/08/1996, fls. 531-544) manterá, na definição de Reserva


Ecológico-Cultural, a referência à área que abriga comunidades tradicionais como
finalidade da Reserva Ecológico-Cultural. Da proposta elaborada pelo Nupaub ao Projeto
de Lei n° 2.892/1992 foram mantidos, basicamente, os objetivos concomitantes de abrigo
das populações tradicionais e de preservação da natureza, com a previsão de se “assegurar
as condições e os meios necessários para a reprodução e a melhoria dos modos de vida e
de exploração dos recursos naturais das populações tradicionais”; o aperfeiçoamento do
conhecimento e das “técnicas de manejo do meio ambiente desenvolvidos por estas
comunidades”; a dominialidade pública, implicando desapropriações de terceiros e, de
certo, de títulos que membros da comunidade pudessem possuir; a substituição da
cobertura vegetal por pequenas áreas “desde que sujeitas às limitações legais e ao plano
de manejos”; o “equilíbrio dinâmico entre o tamanho da população e a conservação“; e a
vedação, agora “proibição”, quanto à exploração comercial de madeiras e recursos
minerais, “exceto água em bases sustentáveis”; recebeu restrições quanto à caça
amadorística ou profissional (1º Substitutivo, 14/08/1996, fls. 541-542).

A visitação pública, em conformidade com interesses locais e com o plano de


manejo; a permissão e o incentivo à pesquisa científica “sujeitando-se à prévia
autorização do órgão responsável pela administração da unidade, às condições e restrições

139
por este estabelecidas e às normas previstas em regulamento” e sem previsão de decisão
das comunidades tradicionais são os acréscimos à Reserva Ecológico-Cultural, pelo 1º
Substitutivo (14/08/1996, fls. 531-544), retirando a autonomia das comunidades ao
endereçar uma maior participação das comunidades pudesse ser restituída, talvez a um
futuro plano de manejo e composição do conselho deliberativo, cuja previsão também foi
acrescida.

Foram descartados daquela proposta inicial do Nupaub remetida pelo Estado


de São Paulo à Câmara dos Deputados: o uso exclusivo pelas populações tradicionais; a
possibilidade de se terem áreas destinadas tanto de uso direto e uso indireto dentro da
Reserva Ecológico-Cultural; o objetivo de proteção das comunidades em si; os aspectos
de proteção ao modo de subsistência e incentivo ao seu desenvolvimento social e
econômico. Tampouco seguiram para o 1º Substitutivo (14/08/1996) as indicações da
variedade de ambientes, marinhos, terrestres e o ambiente específico entre as marés baixa
e alta, que localizavam as Reserva Ecológico-Cultural e indicava qual relação das
comunidades com o meio, proeminentemente as caiçaras e não apenas elas, senão todas
aquelas vivendo na costa brasileira incluídas as ilhas.

A inexistência de uma unidade de conservação no Projeto de Lei n°


2.892/1992 dedicada a comunidades tradicionais constou dentre as justificativas
apresentadas para a proposta da Reserva Ecológico-Cultural encaminhada pelo Estado de
São Paulo à Câmara dos Deputados. Tal justificativa reiterava o fato de que a unidade de
conservação Reserva Extrativista se constitui na extração e no manejo de somente um
tipo de recurso e, por isso, não alcançaria as comunidades em ambientes litorâneos, que
não são apenas extrativistas vegetais, conforme explicado na proposta elaborada pelo
Nupaub (DIEGUES, s/d, p. 5).

Ao longo das versões intermediárias entre o segundo e o terceiro momentos


indicados na “Tabela 5 ― Classificação das unidades de conservação entre 1992 e 2000”,
respectivamente o 1º Substitutivo (14/08/1996, fls. 531-544) e a Lei 9.985/2000
promulgada, o Conselho Deliberativo previsto no Projeto de Lei para a Reserva
Ecológico-Cultural grifou a participação das comunidades tradicionais na sua
constituição juntamente com representantes de órgãos públicos, das organizações da
sociedade civil, o que se mantém na lei vigente, porém, Reserva Ecológico-Cultural foi
substituída por Reserva de Desenvolvimento Sustentável, deixando de existir a figura da
Reserva Ecológico-Cultural.

140
3.2.4. Reserva de Desenvolvimento Sustentável ― grupo
de uso sustentável

Já havia experiências no Estado do Amazonas na criação de Reservas de


Desenvolvimento Sustentável quando dos últimos cinco anos de discussão do Projeto de
Lei n° 2.892/1992. Entre 26 de maio e 9 de junho de 1999, como já mencionado, o Projeto
de Lei é alterado substantivamente pelo Poder Executivo, por meio de representantes do
Ministério do Meio Ambiente e da Casa Civil da Presidência da República e nessa
ocasião, entre outras mudanças naquele Projeto de Lei, a Reserva Ecológico-Cultural é
substituída pela Reserva de Desenvolvimento Sustentável, sem alterações na definição
daquela categoria, mas indicando o Bioma Amazônia por conta de experiências
pregressas. A Lei do SNUC assim define a Reserva de Desenvolvimento Sustentável:

Art. 20. A Reserva de Desenvolvimento Sustentável é uma área natural


que abriga populações tradicionais, cuja existência baseia-se em
sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais,
desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições
ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na
proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica. (Lei
nº 9.985/2000, vigente)

Embora previsto, na lei vigente, que a posse por parte das populações
tradicionais nas categorias de unidades de conservação Reserva de Desenvolvimento
Sustentável e na Reserva Extrativista seria prevista em regulamentação específica, tal
regulamentação foi editada dois anos depois, sem, no entanto, dispor sobre a posse. Trata-
se do Decreto nº 4.340, que, de acordo com o estudo de iniciativa da World Wide Fund
for Nature ―WWF Brasil (2006):

(...) a regulamentação específica da Lei do SNUC, promulgada por meio


do Decreto nº 4.340, de 22 de agosto de 2002, além de não tratar da
regulação da posse e usos das áreas de reservas de uso sustentável
(RDS e Reservas Extrativistas), não dispôs sobre a regulamentação
específica de qualquer outra categoria de manejo, fazendo com que
importantes aspectos jurídicos e socioambientais referentes às
unidades de conservação ficassem a descobertos, notadamente as de
uso sustentável. (WWF BRASIL, 2006, p. 2)

141
No caso das Reservas de Desenvolvimento Sustentável ― RDS, segundo o
estudo da WWF Brasil (2006), os órgãos executores do Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza―SNUC fizeram, ao menos até 2006, diferentes interpretações
da categoria de unidade de conservação Reserva de Desenvolvimento Sustentável em
função da indefinição regulamentar. As consequências apontadas, naquela ocasião, era a
criação de várias Reservas de Desenvolvimento Sustentável por parte dos estados sobre
áreas particulares para não comprometerem seus próprios orçamentos, pois parte
interpreta que as Reservas de Desenvolvimento Sustentável podem comportar
propriedades privadas em seu interior; com isso, colocando proprietários rurais,
empresários, população local em conflito de interesses convivendo em áreas sob um único
regime legal, pois abriu possibilidades múltiplas de interpretação na falta do seu
regulamento (WWF BRASIL, 2006, pp. 2, 46), tal como permanece até a atualidade.
Dentre outras razões levantadas por aquele estudo, para a criação de Reservas de
Desenvolvimento Sustentável por parte dos estados, estão: a palavra “sustentável” no
nome, utilizada a título de marketing para atrair apoio financeiro de empresas e agências;
a existência de locais com conflitos e a falta de recursos do Poder Público para a
desapropriação; a criação de RDS como medida urgente e protetiva de grupos sociais e
de ecossistemas; e como forma de acomodar as sobreposições entre unidades de
conservação do grupo de proteção integral e territórios de populações tradicionais (WWF
BRASIL, 2006, pp. 45-46, 65), neste último caso, como se verá no capítulo seguinte, na
proposta do Estado do Rio de Janeiro para a recategorização da Reserva Ecológica
Estadual da Juatinga, em Paraty.

3.2.5. Reserva da Biosfera

O assunto das Reservas da Biosferas ― uma rede mundial de áreas protegidas


― era tratado por uma comissão organizada pelo Ministério das Relações Exteriores, com
instituições governamentais, por meio do Decreto nº 74.685, de 14 de outubro de 1974,
para planejar, coordenar e, também, supervisionar as atividades do Programa “O Homem
e a Biosfera” da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
― Unesco, criado na década de 1971. Abrangendo 78 municípios nos Biomas Cerrado e
Mata Atlântica, é criada a Reserva da Biosfera da Mata Atlântica em 1994
(PELLEGRINO, 2012, pp. 4-5). Em 1999, o Decreto de 21 de setembro de 1999 cria a

142
Comissão Brasileira para o Programa Man and Biosphere Programme – COBRAMAB e
o programa passa a ser gerido no âmbito do Ministério do Meio Ambiente—MMA.

As disposições sobre a Reserva da Biosfera no 1º Substitutivo (14/08/1996) é


o mesmo que seguirá para a Lei do SNUC vigente e o art. 10, Decreto nº 4.340/2002
regulamenta o as instâncias dos conselhos deliberativos, entre regionais e estaduais, a
depender da abrangência da unidade em um ou mais estados. Podendo conter áreas de
domínio público, a Reserva da Biosfera tem um desenho diferente do mosaico: se refere
apenas a unidade de conservação de proteção integral e pode ser integrada por apenas
uma unidade de conservação, ou mais desse mesmo grupo, bem como suas zonas de
amortecimento, segue sua definição e constituição, conforme consta na Lei do SNUC:

Art. 42. A Reserva da Biosfera é um modelo, adotado


internacionalmente. De gestão integrada, participativa e sustentável
dos recursos naturais, com os objetivos básicos de preservação da
diversidade biológica, o desenvolvimento de atividades de pesquisa, o
monitoramento ambiental, a educação ambiental, o desenvolvimento
sustentável e a melhoria da qualidade de vida das populações.

§ 1° A Reserva da Biosfera é constituída por uma ou várias áreas-núcleo,


destinadas à proteção integral da natureza; uma ou várias zonas de
amortecimento, onde só são admitidas atividades que não resultem em
dano para as áreas-núcleo; e uma ou várias zonas de transição, sem
limites rígidos, onde o processo de ocupação e o manejo dos recursos
naturais são planejados e conduzidos de modo participativo e em bases
sustentáveis. (Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000)

A Reserva da Biosfera é inserida no SNUC como uma forma de gestão


integrada na relação com outras unidades de conservação. Outras categorias já existentes
passaram a fazer parte do SNUC, são a Estação Ecológica e a Área de Proteção
Ambiental, criadas em 1981 e administradas pela Secretaria Especial do Meio Ambiente
― SEMA; a figura das Reservas Biológicas Nacionais, Estaduais e Municipais foi criada
em 1967, no âmbito da pasta do governo federal da agricultura56, onde estava o Instituto
Brasileiro de Desenvolvimento Florestal―IBDF. As Reservas Biológicas nas três esferas
administrativas e Parque de Caça Federal, Estadual e Municipal foram criados juntos, este

56 Na época, sob o governo de Castello Branco, era ministro Severo Fagundes Gomes, de Angra
dos Reis, no Estado do Rio de Janeiro.

143
último no SNUC é remodelado e para a ser, segundo Medeiros (MEDEIROS, 2006, p.
57) para a Reserva de Fauna.

3.2.6. Reserva Ecológica Integrada ― proposta para o


grupo de uso sustentável

Dentre as categorias de unidades de conservação discutidas no Projeto de Lei


n° 2.892/1992 que traziam situações diversas das relações das atividades humanas com o
meio ambiente, esteve a Reserva Ecológica Integrada com a seguinte definição:

Art. 21. A Reserva Ecológica Integrada é um mosaico articulado de


áreas protegidas, com diferentes objetivos de manejo, gerido de forma
integrada e participativa, e tem como objetivo compatibilizar a
preservação da biodiversidade, a valorização da sociodiversidade e o
desenvolvimento sustentável no contexto regional. (1º Substitutivo,
14/08/1996, fl. 542, Projeto de Lei n° 2.892/1992)

A Reserva Ecológica Integrada poderia ser constituída por áreas de domínio


público ou privado e abranger unidades de conservação criadas pelo poder público
respeitando-se as normas de gestão dessas unidades (§§ 1º; 2º do art. 21, fl. 542, Projeto
de Lei n° 2.892/1992). O que significa que poderia se sobrepor às próprias categorias de
unidade de conservação indicadas naquele Projeto de Lei, uma vez a lei editada e as
unidades criadas. Também, foi prevista para a Reserva Ecológica Integrada abranger
zonas de uso público, de uso sustentável e de proteção integral; em disposição parecida,
quanto à organização, do que era proposto para a Reserva Ecológico-Cultural, porém, lá,
se tratava de essas áreas (exceto o uso público) serem designadas dentro de uma área de
ocupação de comunidades tradicionais e aqui é proposta a sua incorporação. Com a
Reserva Ecológica Integrada as populações tradicionais existentes permaneceriam:

§ 5° Na Reserva Ecológica Integrada, as populações tradicionais


porventura existentes terão suas áreas de uso delimitadas como zonas
especiais que, sob regime jurídico adequado, assegurem a
continuidade de seus padrões de subsistência, desenvolvimento e
cultura, sem prejuízo de outras soluções, ecológica e socialmente
adequadas, que venham a ser implementadas pelos órgãos
responsáveis, com a participação dos referidos moradores.

144
A categoria Reserva Ecológica Integrada é suprimida do texto do Projeto de
Lei n° 2.892/1992 e é mantida a figura de uma instância, o mosaico, a gerir outras
unidades de conservação próximas ou justapostas, as abrangendo.

3.2.7. Corredores Ecológicos e Mosaicos

Quando foram instituídos — entre 2000 e 2002; com o SNUC e sua


regulamentação — e quando “passaram a ser as novas modalidades de conservação
ambiental”, Corredor Ecológico era a modalidade de gestão participativa e Mosaico a de
gestão integrada (BRITO, 2012, pp. 23-25). Na histórico da concepção de Corredores
Ecológicos — também Corredores de Biodiversidade ou Corredores Biológicos — estes
precedem a figura do Mosaico. De 1993 para diante, as discussões sobre corredores
ecológicos, na esteira da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento (CNUMAD) — ou ECO-92, ou Rio-92 e a partir de 1998 o conceito
de Corredor Ecológico é incorporado pelo Ibama e pelo MMA (BRITO, 2012).

A noção de mosaico, no Projeto de Lei n° 2.892/1992, aparece relacionada à


sobreposição de unidades de conservação entre si e a de corredores ecológicos na ideia
de conexão e manutenção de fluxos gênicos.

Surge a indicação específica para a constituição de um mosaico e a categoria


Reserva Ecológica Integrada deixa de existir, não sendo concomitantes pelo menos desde
21 de maio de 1999, que é a versão do Projeto de Lei que passaria pela apreciação
contribuições de parlamentares, como segue:

Projeto de Lei n° 2.892/1999 Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000 -

(21/05/1999, fl.67) SNUC

Art. 26. Quando existir um conjunto de


Art. 27. Quando existir um mosaico de
unidades de conservação de categorias
unidades de conservação de categorias
diferentes ou não, próximas, justapostas
diferentes ou não, próximas, justapostas
ou sobrepostas, e outras áreas protegidas
ou sobrepostas, e outras áreas protegidas
públicas ou privadas, constituindo um
públicas ou privadas, a gestão do conjunto
mosaico, a gestão do conjunto deverá ser
deverá ser feita de forma integrada e
feita de forma integrada e participativa,
participativa, considerando-se os seus
considerando-se os seus distintos
distintos objetivos de conservação, de
objetivos de conservação, de forma a
forma a compatibilizar a presença da
compatibilizar a presença da
biodiversidade, a valorização da
biodiversidade, a valorização da

145
sociodiversidade e o desenvolvimento sociodiversidade e o desenvolvimento
sustentável no contexto regional. sustentável no contexto regional.
(Regulamento: Decreto nº 4.340/2002 )

Parágrafo único. Os mosaicos possuirão


um Conselho Deliberativo, constituído por
representantes de órgãos públicos, Parágrafo único. O regulamento desta Lei
inclusive municipais, da população local, disporá sobre a forma de gestão integrada
da comunidade científica e do do conjunto das unidades.
organizações não-governamentais,
conforme se dispuser em regulamento.

Acima, a parte hachurada no Projeto de Lei n° 2.892/1992 foi suprimida e,


dois anos mais tarde aparecem as disposições acerca do conselho do mosaico e sua
composição no regulamento da lei, que é o Decreto nº 4.340/2002. Além da palavra
“mosaico”, há ecos da Reserva Ecológica Integrada na formulação posterior da ideia de
mosaico acima expressa, com a diferença que na Reserva Ecológica Integrada se tratava
de uma articulação de áreas protegidas e o mosaico, agora definido, se ocupa da
articulação na proximidade de áreas, na justaposição e sobreposição; o que me parece
poder desvelar que lá, na Reserva Ecológica Integrada estivesse dada a questão das
sobreposições entre unidades de conservação e necessariamente dada entre estas e
territórios tradicionais. Se, mesmo de forma ambígua e submetidas à subsistência e a
regramentos, as comunidades tradicionais pudesse contar com alguma delimitação para
os seus territórios, no que isso fosse bom ou ruim, em um caso ou em outros, na definição
do mosaico isso se perde.

A razão de trazer transcritas as disposições sobre o mosaico é a de mostrar


como uma noção vai sendo torneada até assumir um corpo, o mesmo se passou com a
expressão “gestão integrada”. No caso do mosaico, sua noção assumiu uma feição de
unidade de conservação excepcional, como aparecerá dois anos depois de publicada a Lei
do SNUC, em um capítulo intitulado “Do Mosaico de Unidades de Conservação”, no
Decreto nº 4.340, de 22 de agosto de 2002, o mesmo decreto que deveria regulamentar o
plano de manejo, conforme apontamento crítico da WWF (WWF BRASIL, 2006). Ali
estão os passos administrativos para a sua constituição e ganha um conselho consultivo
no lugar de ser ele deliberativo, como havia sido previsto. Portanto, nessas passagens de
uma versão à outra, o Estado cuidou de dar voz a diversos atores e retirar-lhes a decisão.

146
Corredores Ecológicos não constaram no Projeto inicial de 1992, por meio do
qual o Projeto de Lei começou a sua tramitação no Poder Legislativo. Sua definição
consta no 1º Substitutivo (14/08/1996) e é a mesma redação da Lei do SNUC vigente,
como segue:

XIX - CORREDORES ECOLÓGICOS: porções de ecossistemas naturais ou


seminaturais, ligando unidades de conservação, que possibilitam entre
elas o fluxo de genes e o movimento da biota, facilitando a dispersão
de espécies e a recolonização de áreas degradadas, bem como a
manutenção de populações que demandam para sua sobrevivência
áreas com extensão maior do que aquela das unidades individuais.(1º
Substitutivo, 14/08/1996, fl. 533)

Os mosaicos, como os corredores ecológicos, são criados por meio do


reconhecimento por ato do Ministério do Meio Ambiente—MMA, com o acréscimo de
ser necessário ao mosaico um pedido apresentado pelos órgãos gestores das unidades de
conservação, os mosaicos abrangem os corredores ecológicos para fins da gestão destes
e “na ausência de mosaico, o corredor ecológico que interliga unidades de conservação
terá o mesmo tratamento da sua zona de amortecimento” (arts. 8º e 11, Decreto nº
4.340/2002). Notamos, aqui, que o mosaico, embora não definido no SNUC, como o são
o corredor ecológico e a zona de amortecimento, assumiu importância como instrumento
de gestão detalhada no decreto de 2002. Há, portanto, uma relação englobante, em que na
ausência da indicação de zona de amortecimento o corredor ecológico

Os mosaicos e os corredores ecológicos e as zonas de amortecimento


conectores de unidades de áreas protegidas podendo envolvê-las são formas ordenamento
dos usos dos recursos naturais. As zonas de amortecimento circundam as unidades de
conservação e são estabelecidas no respectivo planos de manejo. Essas três tipologias de
gestão dos usos dos recursos naturais e, se pode dizer, de ordenamento dos usos e da
ocupação do solo, que são as zonas de amortecimento, os corredores ecológicos e os
mosaicos, por vezes recebem questionamentos ― principalmente os corredores e as zonas
de amortecimento porque inscrevem no plano de manejo as limitações ― pelo fato de o
Estado interferir no direito de propriedade e não sendo elas áreas de domínio público, não
implicando desapropriações. As propostas de diretrizes para a compatibilização de tais
usos é uma atribuição do conselho do mosaico. Outro questionamento é o de que caberia
aos municípios tratarem dos usos nessas áreas, de outra parte, poderiam fazer isso de

147
forma suplementar à legislação federal, explica Patrícia Vitalli (VITALLI, 2007, pp. 23-
24) em seu estudo de caso sobre a Estação Ecológica de Assis, no Estado de São Paulo.

3.2.8. Terras Indígenas

Seguindo a linha do tempo das versões do Projeto de Lei n° 2.892/1992 na


formulação da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, povos indígenas não são mencionados
no Projeto inicial, de 1992, nem no 1º Substitutivo, de 1996; fato que não precisa ser
interpretado como uma omissão, ao contrário, o vejo como o entendimento de que as
unidades de conservação não estariam para alcançar as terras indígenas. Até aquele
momento. As disposições sobre terras indígenas constam no Substitutivo de 21 de maio
de 1999 (fls. 61 a 80) no seu artigo nº 59, o último antes das disposições de praxe na
redação das norma quanto à publicação da lei e das revogações expressas:

Art. 59. Os órgãos federais responsáveis pela execução das políticas


ambiental e indigenista deverão compor grupos de trabalho para, no
prazo de 90 (noventa) dias a partir da vigência desta Lei, propor as
diretrizes a serem adotadas com vistas à regularização das eventuais
superposições entre áreas indígenas e unidades de conservação.

§ 1 ° Os grupos de trabalho de que trata este artigo deverão ser


compostos por representantes dos órgãos ambiental e indigenista
federais, das comunidades indígenas afetadas e de organizações da
sociedade civil de defesa dos direitos indígenas e ambientais.

§ 2° No ato de criação dos grupos de trabalho serão fixados os


participantes, bem como a estratégia de ação e a abrangência dos
trabalhos. (Projeto de Lei n° 2.892/1992, Substitutivo de 09/06/1999)

O “Substitutivo Adotado pela Comissão”, de 9 de junho de 1999, suprimiu o


parágrafo primeiro e com ele a participação da sociedade civil organizada na defesa dos
direitos indígenas e acrescentou a garantia da participação das comunidades envolvidas
no parágrafo que trata do ato de criação dos grupos de trabalhos no tema da sobreposição,
com cento e oitenta dias de prazo e não mais noventa nessa versão; ficando, assim, o texto
vigente na Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000:

148
Art. 57. Os órgãos federais responsáveis pela execução das políticas
ambiental e indigenista deverão instituir grupos de trabalho para, no
prazo de cento e oitenta dias a partir da vigência desta Lei, propor as
diretrizes a serem adotadas com vistas à regularização das eventuais
superposições entre áreas indígenas e unidades de conservação.

Parágrafo único. No ato de criação dos grupos de trabalho serão fixados


os participantes, bem como a estratégia de ação e a abrangência dos
trabalhos, garantida a participação das comunidades envolvidas. (Lei nº
9.985, de 18 de julho de 2000)

Aqui se passa um fenômeno nas discussões de temas por parte do Estado: o


tema da sobreposição, ou “superposição” é discutido, trabalhado e aquele que tomam essa
tarefa podem imprimir no seu resultado as reivindicações, os ajustes, toda uma
movimentação de pessoas, de representantes de grupos de pessoas, de posições, de papéis,
de querelas e o importante estará ao lado parado. A “regularização” das sobreposições,
objetivo dos grupos de trabalhos a serem instituídos, ficou intocada nesse fenômeno
nublador. O que significa propor diretrizes para a regularização da sobreposição?; quando
os direitos originários são ― como o eram à época ― dos povos indígena e quando o
mosaico primou por cuidar de unidades de conservação entre si e em recuperar algo da
Reserva Ecológica Integrada descartada como unidade de conservação na tramitação do
Projeto de Lei n° 2.892/1992.

A “regularização das eventuais superposições” pode compreender os ajustes


na delimitação da unidade de conservação recém-criada de forma a confrontá-la rente e
justa à delimitação da terra indígena, criando uma zona mútua de amortecimento, de modo
a não deixar bolsões entre as poligonais do território indígena e o da unidade de
conservação, que possam se tornarem enclaves de ocupação pressionando tanto as terras
indígenas quanto as unidades de conservação ou que limitem sobremaneira as atividades
da própria ocupação pré-existente à unidades de conservação no local. Isso seria um bom
arranjo. A “regularização”, termo ali aberto, pode recepcionar expectativas diversas:
alguma como aquela minha que, tendo trabalhado com regularização fundiária de terras
indígenas vê uma situação ideal; outra que veja a possibilidade que Unidades de
Conservação efetivamente se sobrepusessem a Terras Indígenas; outra, com leitura
apressada do artigo 57, que entenda finalmente se revolverem as sobreposições. Temos
aí outro fenômeno do comportamento do Poder Público nas discussões: em questões
polêmicas deixa espaços, vagas, lacunas ― no caso, por meio de uma palavra

149
“regularizar” ― para que alas distintas se vejam contempladas, de alguma forma, mesmo
que em um momento seguinte a um ato do governo.

O que está escrito no artigo nº 57 do Sistema Nacional de Unidades de


Conservação da Natureza―SNUC vigente está em duas temporalidade para a ação nele
proposta, que ele mesmo não remarca e deixa vaga: uma que retroage, que se vão tratar
do passivo das sobreposições; e outra futura a partir da lei: que se continuarão a criar
unidades de conservação sobre as terras indígenas, caso contrário teria apontado algo para
os estudos prévios à criação de unidade de conservação previstos no SNUC. Está dito,
também, que se pretendeu com a disposição do artigo nº 57 do SNUC ombrear o status
de Unidade de Conservação ao de Terra Indígena ― duas finalidades precípuas de dois
órgãos da administração pública e obrigações assumidas pelo Estado e há os direitos
originários aí desconsiderados na Lei do SNUC.

Para uma Terra Indígena não se cabe falar em “sobreposição parcial”, pois
são elas identificadas sob quatro exigências do artigo 231 da Constituição que não se
sobrepõem no território necessariamente, mas são projetadas no território, uma terra
indígena é a terra toda, ela é um sistema de áreas interdependentes com usos diversos,
inclusive interditos e que a delimitação do Estado a encurta em extensão. Explico. Como
quem elaborou as chaves de reconhecimento oficial para a tradução técnica foi o Estado,
e não cada grupo nos seus próprios registros de territorialidade que se busca traduzir
identificando atividades produtivas, recursos naturais, habitação permanente ou
temporária, cosmologia, organização social e parentes, etc., que dão conta da proposta do
Estado ao mesmo tempo em que algo fica de fora porque as chaves de identificação do
próprio Estado não alcança ao mesmo tempo em que deixam algo de fora porque escapa
ao registro daquelas chaves. E que isso não sirva distorcido para ser apontada
levianamente alguma deficiência do Estado para justificar uma nova proposta em que,
tanto nos dias de hoje como em outros, novas propostas surgem quase via de regra para
retaliar direitos indígenas a começar por roerem porções e beiradas de terras indígenas;
onde o artigo nº 57, se não teve no cerne a intenção, ajuda no serviço. Quando digo que
o Estado não fornece chaves suficientes, é porque ele oferece as chaves mínimas para
obter a ação generalizada do governo que não pode, sob questão de colocar em risco sua
política geral, seguir caso a caso; essa é a tarefa do trabalho técnico do antropólogo, em
sua perícia, ampliar o entendimento daquelas mesmas chaves, quando for o caso, a partir

150
da realidade que encontra em campo no território. Pelo dito, um território tradicional, uma
Terra Indígena, reconhecido pelo Estado será sempre um território mínimo.

A organização não governamental Instituto Socioambiental ― ISA


apresentou uma proposta para as discussões, na formulação da Lei do SNUC, de uma
Reserva Indígena de Recursos Naturais ― RIRN, cuja criação se daria pela solicitação
dessa modalidade por parte dos próprios indígenas, sem prejuízo das competências do
órgão indigenista; e a gestão do território indígena seria empreendida pelos próprios
indígenas em parceria com o Estado. Encontrei a proposta na publicação daquela
organização, intitulada Povos Indígenas do Brasil, que é uma publicação regular daquele
instituto, e essa recobriu os anos de 1996 a 2000. Segundo o ISA, ao órgão a proposta foi
apresentada ao Deputado Fernando Gabeira e desconsiderada, “sequer apareceu no
relatório final da Comissão de Direitos do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias ―
CDCMAM”. Quanto à sobreposição, ou superposição, o ISA apresentou nessa mesma
publicação (ISA - Instituto Socioambiental, 2000, pp. 169, 170, 175)

Territórios quilombolas, terras indígenas e unidades de conservação são os


três territórios tratados no Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas – PNAP,
instituído pelo Decreto nº 5.758, de 13 de abril de 2006, que pretende a governança na
integração de áreas protegidas sob os auspícios do Ministério do Meio Ambiente—MMA,
na Diretoria de áreas Protegidas. O Plano dialoga com o SNUC e percorre as suas
disposições em reforço a elas, nas sua efetiva implementação e apoio aos conselhos para
o aprimoramento da gestão do SNUC”, dentre objetivos, se caracterizando pela indicação
do envolvimento de outras instituições e órgãos em proveito da conservação da
biodiversidade, dos recursos genéticos, dos recursos naturais sob a ótica de áreas
protegidas. Quilombolas, indígenas, extrativistas e comunidades locais (uma
terminologia da Convenção sobre a Diversidade Biológica―CDB especialmente no seu
artigo 8j, que indica comunidades tradicionais no Brasil) são convidados a participarem
da gestão das unidades de conservação e outras áreas protegidas (Anexo do Decreto nº
5.75/2006). O interessante é que o Plano, sem dizê-lo taxativamente, entende os territórios
tradicionais como áreas protegidas: por um lado reconhece algum “serviço ambiental” ou
“ecológico” desses povos e comunidades e, por outro, estende a normatização ambiental
sobre eles. O tema da sobreposição está presente em dois sentidos: para serem
apresentadas soluções aos “conflitos decorrentes da sobreposição das unidades de

151
conservação com terras indígenas e terras quilombolas” e, no caso de sobreposição na
gestão de grande áreas para:

avaliar a aplicabilidade de instrumentos de gestão territorial de grandes


paisagens, como Reservas da Biosfera, corredores ecológicos,
mosaicos, bacias hidrográficas e zona costeira, levando em conta as
sobreposições, conflitos, efetividade delas e benefícios sociais
advindos. (3.3, I, d, do Anexo do Decreto nº 5.75/2006)

Embora o texto dúbio, não o interpreto como as sobreposições, ali, sendo elas
a promoverem benefícios. Trazem problemas também à gestão das unidades de
conservação, como se verá no capítulo 6, relativo às discussões no Mosaico da Bocaina,
em Paraty, no Estado do Rio de Janeiro. O que deve ser remarcado é que, de ato em ato,
os entendimentos se vão modelando, neste trecho, por exemplo, corredores ecológicos
foram escritos como grandes áreas, para além do seu entendimento de extensão restritos
no SNUC. Em uma publicação da PNAP pelo Ministério, no preâmbulo ao Decreto feito
por Maurício Mercadante, então Diretor de Áreas Protegidas, ao falar da representação
de vários setores da sociedade na Comissão Nacional para a implementação do Plano ele
menciona a participação de “comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas,
extrativistas)” (MMA - Ministério do Meio Ambiente, 2006, p. 5), se pudermos entender
aí uma definição “legal” em publicação do Ministério que havia sido suprimida do SNUC.
Na mesma linha de tornear entendimentos, inclusive para a participação das comunidades
e acesso a políticas públicas, os povos e as comunidades tradicionais são tratados no
aspecto de promotoras da conservação da biodiversidade, ênfase que não é dada no Plano.
Assim, a o preâmbulo à PNAP, intitulado “Porque um Plano de Áreas Protegidas?” 57, na
publicação do Ministério do Meio Ambiente—MMA diz:

É importante sublinhar que o PNAP abrange, além das unidades de


conservação também as terras indígenas e as terras de quilombos. A
incorporação desses territórios ao PNAP traduz o reconhecimento de
que: a) além da importância para a vida das comunidades indígenas e
quilombolas, eles desempenham um papel chave na conservação da
biodiversidade e, consequentemente, no desenvolvimento nacional; b)
a gestão articulada e integrada das unidades de conservação, das terras
indígenas e das terras de quilombo é fundamental para o alcance dos
objetivos do Sistema Nacional de Unidades de Conservação; c) traduz

57 Assinado por Maurício Mercadante, à época Diretor de Áreas Protegidas, e quem havia
acompanhado como assessor a tramitação do Projeto de Lei n° 2.892/1992 na elaboração do SNUC.

152
ainda a firme decisão do Ministério do Meio Ambiente de fazer com
que os esforços em favor da conservação da biodiversidade beneficiem
de forma direta as populações tradicionais e locais. (MMA - Ministério
do Meio Ambiente, 2006, p. 5)

As terras indígenas e os territórios quilombolas e as populações tradicionais


lidos como áreas protegidas, cuja definição não conta no decreto que institui a PNAP;
mas podemos encontrá-la como “territórios delimitados e geridos com o objetivo de
conservar o seu patrimônio natural, que inclui elementos ecológicos, históricos,
geológicos e culturais”, conforme definido pela União Institucional para a Conservação
da Natureza ― IUCN, fundada em 1948 e filiada ao Unesco. A IUCN possui as próprias
categorias de áreas protegidas em um sistema mundial ― em que podemos observar,
também, a similaridade entre categorias com o SNUC, o que aponta para esforços
coordenados e programáticos na defesa do meio ambiente do qual o Brasil faz parte. São
as categorias de áreas protegidas da IUCN: reserva natural, dividida em reserva natural
estrita e área de vida à selvagem; parque nacional; monumento natural; área de gestão de
espécies e habitat; paisagens protegidas terrestres e marinhas; e área protegida de
utilização sustentável dos recursos naturais (DUDLE, 2008).

O Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC foi


pensado como sistema para se contrapor ao isolamento de unidades de conservação,
considerando problemas para a gestão e a falta que uma sistematização de áreas
protegidas pudesse acarretar ao meio ambiente e à governabilidade sobre tais áreas que
não dialogassem com programas. Também, nesse propósito, é nítido o temor de os estados
e as municipalidades gerirem de forma ampla a conservação e preservação, de certo
porque o envolvimento com interesses locais na ocupação e na exploração econômica das
áreas pudessem interferir nas decisões acerca das próprias áreas em desfavorecimento à
conservação e à preservação. Daí o sistema abranger, inclusive, as instâncias estaduais e
municipais, mas como sistema, é centralizado na instância federal. Outra questão que se
colocava à elaboração da lei, dentro do aspecto do isolamento das unidades de
conservação, agora não mais administrativo se feito de forma dispersa por vários órgãos
e instituições, era o isolamento da população local, na proibição de usos, dividindo visões
quanto aos usos econômicos na exploração de unidades de conservação e suas finalidades
e vocações locais.

153
A presença de comunidades tradicionais era uma questão, por vezes tratada
como problema. Em 1992 aconteceu, em Caracas, na Venezuela, o Quarto Congresso
Mundial de Parques da IUCN e dele se retirou a recomendação de rejeitar o reassentamento de
comunidades tradicionais e foram ratificados os direitos dos povos indígenas. Pairava a questão
acerca de quais comunidades seriam ou não consideradas tradicionais (FRANCO, et al., 2015, pp.
225-226).

Em um dos relatórios das sessões da Comissão de Direitos do Consumidor,


Meio Ambiente e Minorias ― CDCMAM da Câmara dos Deputados, durante a
elaboração da Lei do SNUC na tramitação do Projeto de Lei n° 2.892/1992, o Relator
Fernando Gabeira se reporta à questão das populações tradicionais, em 21 de maio de
1999:

O problema das comunidades que vivem em unidades de conservação


foi, sem dúvida, a questão que motivou os mais acalorados debates
durante as reuniões técnicas realizadas por esta Comissão para
subsidiar o parecer do Relator. Constata-se hoje que mais de 80% das
unidades já criadas são habitadas por populações tradicionais.
Entretanto, de acordo com a legislação vigente, essas áreas, na sua
grande maioria, não admitem a presença dessas pessoas dentro dos
seus limites. (Relator F. Gabeira, Projeto de Lei n° 2.892/1992,
21/05/1999, p. 52)

A fala de um Relator, que deverá dar o seu voto, é dirigida a diversos setores
e ideologias envolvidos na tramitação e com reflexo no mundo fora a Câmara, não apenas
por o esquema de organização política na forma de representação, senão como
repercussão das decisões tomadas, além do fato de nem todos estarem representados de
certo. O trecho que transcrevo abaixo tem esse tom polifônico, do mesmo relatório:

Hoje se reconhece que a expulsão das populações tradicionais é


negativa, não apenas sob o ponto de vista social e humano, mas têm
consequências danosas também no que se refere à conservação da
natureza. Essas comunidades são em grande medida responsáveis pela
manutenção da diversidade biológica e pela proteção das áreas
naturais. Ao longo de gerações desenvolveram sistemas
ecologicamente adaptados e não agressivos de manejo do ambiente.
Sua exclusão, aliada às dificuldades de fiscalização dos órgãos públicos,
muitas vezes expõe as unidades de conservação à exploração florestal,
agropecuária e imobiliária predatórias. Com isso, perde-se também o
conhecimento sobre o manejo sustentável do ambiente natural

154
acumulado por essas populações. (Relator F. Gabeira, Projeto de Lei n°
2.892/1992, 21/05/1999, p. 51)

3.3. Governança

A Lei promulgada já prenunciaria as dificuldades que se teriam com a


governança. Mas não foi isso o que se passou.

Deve ser remarcado que ao longo das discussões da elaboração da Lei do


SNUC as comunidades e as instituições da sociedade civil, suas apoiadoras, puderam ver
as comunidades tradicionais puderam se ver inserida naquele Projeto de Lei para, ao final,
serem excluídas do escopo da Lei, inclusive, os remanescentes das comunidades dos
quilombos que dispõem de previsão constitucional. Se olharmos para a questão fundiária,
temos as os territórios quilombolas como títulos de propriedade e as terras indígenas como
terras da União, esse pode ser um recorte possível, sendo as terras indígenas alcançadas
no olhar da conservação por incorporá-las como áreas Protegidas. Vale mencionar que
territórios quilombolas não são abordados nas versões parciais dos Projeto de Lei,
estariam inseridos em “populações tradicionais”. Uma estratégia política, a meu ver, que
levou as comunidades e organizações até o final das discussões e cedeu às pressões
preservacionistas combinadas com o descontentamento na definição de “populações
tradicionais” imprecisa por ter como critério o número de gerações o que, até mesmo a
Senadora Marina Silva, representando e junto aos extrativistas do Acre, se mostraram
contra a definição de “populações tradicionais”, como informado por Mercadante, o que
teria sido decisivo para o veto presidencial ao artigo da definição, segundo o autor
(MERCADANTE, 2001).

Governança é diferente de governabilidade. A governabilidade se refere ao


governo como instituição estatal, à organização das instituições ao passo que governança,
abrange as instituições governamentais e conta “com mecanismos informais, de caráter
não-governamental”, de acordo com Rosenau (ROSENAU, 2000, p. 15). As instituições
públicas se reconfiguram combinando regras formais e informais na articulação de
interesses, preferências e objetivos dos setores envolvidos, incluída necessariamente a
sociedade civil. A ideia é que se tenha a capacidade de influenciar o resultado político,
segundo Pedro Cavalcante e outros, e junto a isso o comportamento da burocracia
(CAVALCANTE, et al., 2018, p. 61). Esses são alguns dos pressupostos teóricos básicos

155
da governança. Na prática, a governança é um fenômeno mais amplo no governo;
ressaltando que governança não é o mesmo que governo (ROSENAU, 2000, pp. 15-16).
Para o governo, que vem sendo demandado em situações mais complexas marcadas pelo
pluralismo, pelas ambiguidades e pela fragmentação, a governança opera a distinção entre
a gestão pública praticada em tempos mais recentes, nos últimos vinte anos, e a
administração pública burocrática ortodoxa (CAVALCANTE, et al., 2018, p. 76). Há
vertentes que analisam a governança ou sob o aspecto do desempenho como a “soma de
esforços” preocupada com o desempenho na economicidade, na execução e na excelência
com atenção aos “resultados” na eficiência, na eficácia e na efetividade; ou tomam a
governança no aspecto colaborativo em pautas que entrelaçam agentes públicos e
privados na forma de “cocriação” que vão abranger serviços e políticas públicas com o
envolvimento social (ibidem).

Deve-se diferenciar participação social do envolvimento social. A


participação social é a presencial, são as Consultas, a elaboração participativa no Plano
de Manejo, a participação nos conselhos de saúde ou no Conselho do Mosaico da
Bocaina, por exemplo. A interferência do Ministério Público Federal ― MPF em exigir
que as comunidades sejam ouvidas são demandas, embora gerais, sempre encaminhadas
por determinada comunidade em determinado contexto relacionadas a episódios. O que
ocorreu com o veto da definição de populações tradicionais para a Lei do SNUC foi a
retirada da visibilidade das comunidades e destas como pauta para seguir como projeto
na conservação, um corte ideológico em respeito ao que se vinha sendo discutido na
constituição de áreas protegidas e, dentre elas as unidades de conservação antes mesmo
do Projeto de Lei n° 2.892/1992. Questão ideológica e de métier ambientalista. O SNUC,
com isso, ganhou governabilidade na sua implementação, no sentido político-
institucional; não teve abalada a governança estatal, no sentido do envolvimento social,
no caso das comunidades; e o ICMBio promove a participação social nos Planos de
Manejos, que têm força de Lei.

O Decreto nº 4.340/2002 permanece, mesmo com o que me parece ser uma


incoerência ter sido o veto ao Artigo nº 56 e ter deixado no texto da lei o Artigo nº 42,
ambos versando sobre o reassentamento imposto às comunidades. O Artigo nº 56 do
Projeto de Lei n° 2.892/1992, que foi vetado junto a outros e à definição de “populações
tradicionais”, dispunha em um de seus incisos:

Artigo nº 56, Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, vetados caput e incisos:

156
Art. 56. A presença de população tradicional em uma unidade de conservação
do Grupo de Proteção Integral criada em função de legislação anterior obriga
o Poder Público, no prazo de cinco anos a partir da vigência desta Lei,
prorrogável por igual período, a adotar uma das seguintes medidas:

I - reassentar a população tradicional, nos termos do art. 42 desta Lei; ou

II - reclassificar a área ocupada pela população tradicional em Reserva


Extrativista ou Reserva de Desenvolvimento Sustentável, conforme o disposto
em regulamento.

As razões do veto ao Inciso I foram as seguintes:

Por sua vez, o inciso I do art. 56, ao obrigar o Poder Público a promover
o reassentamento de populações tradicionais, estabelecendo,
inclusive, o prazo de cinco anos para tanto, aborda matéria alheia ao
Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. O
reassentamento de populações é matéria relativa à política fundiária
do Governo Federal, não se admitindo que esta lei venha a abordar
tema tão díspar à problemática relativa às unidades de conservação.
Ademais, tornar obrigatório o reassentamento de populações
presentes no interior de unidades de conservação já existentes pode
suscitar a ocupação irregular dessas áreas. (Mensagem nº 967,
09/07/2000)

Por quais motivos a “razão” acima não se estendeu ao Artigo nº 42 do SNUC?


Transcrevo-o:

Art. 42. As populações tradicionais residentes em unidades de


conservação nas quais sua permanência não seja permitida serão
indenizadas ou compensadas pelas benfeitorias existentes e
devidamente realocadas pelo Poder Público, em local e condições
acordados entre as partes.

§ 1o O Poder Público, por meio do órgão competente, priorizará o


reassentamento das populações tradicionais a serem realocadas.

§ 2o Até que seja possível efetuar o reassentamento de que trata este


artigo, serão estabelecidas normas e ações específicas destinadas a
compatibilizar a presença das populações tradicionais residentes com
os objetivos da unidade, sem prejuízo dos modos de vida, das fontes de
subsistência e dos locais de moradia destas populações, assegurando-
se a sua participação na elaboração das referidas normas e ações.

157
§ 3o Na hipótese prevista no § 2o, as normas regulando o prazo de
permanência e suas condições serão estabelecidas em regulamento.

Há outra pergunta sem respostas: se o SNUC se eximiu de definir “populações


tradicionais”, de qual parâmetro parte para dispor sobre essa mesma população tradicional
no seu reassentamento? Se critérios autodeclaratórios, qual outra instituição, além do
próprio ICMBio, estará em contato com as comunidades tradicionais?; não sendo elas
indígenas e quilombolas, estes sujeitos de direito nominados pelo Estado (ARRUTI,
2006), que contam com as instituições, respectivamente, Funai ou Incra e Fundação
Cultural Palmares. O Ministério Público Federal ― MPF atua quando chamado ou de
ofício quando as coisas já não se passam bem, não estará lá acompanhando
preventivamente aquela relação entre comunidades tradicionais e o órgão ambiental que
nelas vê problemas. Se a definição de “povos e comunidades tradicionais”, definida no
Decreto nº

Nem somente o Artigo nº 42 do SNUC e o Decreto nº 4.340/2002


permanecem como este último foi acrescido da regulamentação do “termo de
compromisso”, por meio da Instrução Normativa nº 26, de 4 de julho de 2012 que tem a
seguinte ementa:

Estabelece diretrizes e regulamenta os procedimentos para a


elaboração, implementação e monitoramento de termos de
compromisso entre o Instituto Chico Mendes e populações tradicionais
residentes em unidades de conservação onde a sua presença não seja
admitida ou esteja em desacordo com os instrumentos de gestão.
(Ementa da IN 26/ICMBio, 04/07/2012)

Note-se que no trecho sublinhado acima, os “instrumentos de gestão”, não


deveria ser “em desacordo com o SNUC/Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000” e apenas
no que se circunscreve às unidades de conservação do grupo de proteção integral?
“Instrumentos de gestão” expande qualquer desacordo para além da alegação da
incompatibilidade nos usos dos recursos naturais. A mencionada Instrução Normativa é
referida e não é problematizada na publicação “Territórios de Povos e Comunidades
Tradicionais e as Unidades de Conservação de Proteção Integral ― Alternativas para o
Asseguramento de Direitos Socioambientais”, de 2014, do Ministério Público Federal ―
MPF, que constitui o “Manual de Atuação” para os Procuradores para lidares com as

158
situações de sobreposições e conciliação. O que é interessante, uniformizar a participação
do Ministério e no seu suporte às comunidades. No entanto, ainda que haja limites para a
atuação do MPF, ao propor uma convivência institucional com as situações de
sobreposição é o mesmo que acomodá-las em algum lugar na administração pública. E
não se pode esquecer que é ele, o MPF, também, um aparato do Estado. Os instrumentos
de gestão podem ser os indicados em um Plano de Manejo, assim, vemos que tema das
comunidades e povos em unidades de conservação serão assunto de esferas com maior
margem discricionária do administrador. Ou seja, o caso a caso em certa medida é
interessante, porque trata de questões específicas; por outro lado, o caso específico estará
em mãos de gestor específico ou de um pequeno número de gestores ao seu redor.

Temos que a governabilidade, a governança e a participação social são escalas


e enfoques, e não gradações em hierarquia, na relação entre o Estado e a sociedade pela
via do governo e da administração pública. A governança pode trazer um tom “de baixo
para cima”, mas quando atentamos para as suas características nas duas vertentes,
abordadas mais atrás neste item, o que vemos são os princípios constitucionais da gestão
pública e da administração pública. Todos os três termos se referem à atuação do Estado
para o Estado, na sua obrigação de promover o bem-estar, os direitos sociais e coletivos,
individuais, etc.; matérias do Estado que internaliza a sociedade já na sua previsão e pode-
se dizer que a governança e a participação social podem lidar melhor, porque mais perto,
com a imprevisibilidade dos resultados na implementação das políticas públicas. Em
proveito da governança, a participação crescente da sociedade civil é desejável. Um efeito
pode ser uma crescente organização da sociedade civil, especialmente institucional, como
associações, por exemplo; ou em formas próprias de representação, em geral, por meio
de lideranças locais. Nisso, a legitimidade é dada neste nível e a legitimação da
participação social, portanto, estará nas mãos das comunidades. A administração tenderá
a buscar representações legitimadas para garantir a governança.

Difícil não é, portanto, notar que as comunidades são alcançadas na aplicação


da lei, que se dá na esfera da administração; aplicação de uma Lei que não as definiu. Se
retomamos as discussões na Câmara de Conciliação e Arbitragem Federal ― CCAF, da
Advocacia Geral da União ― AGU, abordadas no capítulo 2 desta Tese, ter definidas as
“populações tradicionais” na Lei do SNUC não evitaria as sobreposições. Se imaginamos
as unidades de conservação voltadas para comunidades tradicionais, e que não
permaneceram no texto do SNUC (Reserva Ecológico-Cultural e Reserva Ecológica

159
Integrada), haveria, de certo, o recobrimento da visão estrita do ambientalismo
institucional sobre tais áreas e sobre a vida cotidiana das comunidades, em conflitos que
Almeida e Rezende exemplificam, como fator decisivo, no caso de comunidades que têm
origens culturais tradicionais que envolve a identidade indígena e não apenas ela, mas
optam por esta como uma forma de se esquivarem da administração do ICMBio
(ALMEIDA & REZENDE, 2013). Tudo seria evitado se não se fossem criadas, e
mantidas, unidades de conservação de proteção integral em territórios tradicionais,
quaisquer um. Mas note-se a quantidade e profusão de temas que nos ocupa em lugar
deste tema central. legitimidade ― podemos arriscar de tipo carismático (WEBER, 1964,
pp. 172-173) ― constituída pela própria aproximação local e real entre administradores
e comunidades nas lidas como os planos de manejos e outras questões relacionadas à
busca de soluções para um problema que o governo criara.

160
4. Paraty

Para localizar Paraty no tempo e no espaço é, também, falar de algumas das


imagens de territórios que nela foram produzidos. Com este objetivo, o presente capítulo
reconta, a partir de fragmentos episódicos, histórias sobre Paraty a partir da distribuição
de sesmarias e posterior ocupação sistemática por imigrantes sobre territórios da
população autóctone, indígena, onde os caminhos e a mobilidade eram elementos de
tessitura. Território pontuais e territórios vetoriais são desenhados e dão lugar a outras
tramas. Há controvérsias quanto à capitania à qual Paraty pertencia e, antes, a
manipulação de mapas dividindo as américas portuguesa e espanhola e Paraty, a depender
do mapa, poderia estar em uma ou noutra. A questão não é a real, original, localização de
Paraty, mas como essas situações ― ambas criadas pela administração à época ― foram
reapropriadas com relativo sucesso, pela própria administração pública. Em analogia a
outros fenômenos percebidos e analisados nesta Tese, como o novo Plano de Manejo da
APA de Cairuçu, em Paraty, foi necessário dar um nome, e usei o descritivo
oportunidade, praticado pela administração pública, na agência do administrador ou um
grupo deles na percepção aguçada de dada situação e que, com uma ação move
sinergicamente outras tantas ou algumas pautas e demandas inconclusas ou problemáticas
do Estado em proveito àquelas pautas e demandas. Trata-se de uma ação que,
empreendida, resolve tantas outras ou que, por causa dessas outras, possui mais chances
de acontecer e essa relação “entre” ações e a sinergia entre elas diferencia de todo o que
pudesse assemelhar oportunidade à “fortuna” em Maquiavel.

4.1. Lugares de antes

1630: contanto que se construísse uma capela dedicada à Nossa Senhora dos
Remédios, dona Maria Jácome de Mello recebe uma sesmaria que requisitara à Condessa
de Vimieiro, donatária. A sesmaria alcançava em uma légua de fundo, a Aldeia de Cima58
e a frente, no litoral, se encaixava entre os rios Paratii Guaçu e Paratiitiba. O povoado do
Morro do Forte segue para o entorno da capela então construída, onde hoje é o Bairro
Histórico de Paraty e o morro fica com o nome de Vila Velha. Uma sesmaria dentre seis

58 Segundo Marco Caetano Ribas esta é uma nítida referência aos indígenas “Goianás” ou
“Goiamins” (RIBAS, 2003, p. 23).

161
na região, entre a posterior Vila de Paraty que se formaria e o rio Mambucaba ao norte,
como segue em mapa na “Figura 3”. É controverso de qual capitania hereditária foi
destacada a sesmaria que esteve na origem da Vila de Paraty, se de São Vicente ou de
Itanhaém.

Figura 3 - detalhe do Mapa de concessão de Sesmarias entre


Mambucaba e Paraty (data estimada: por volta de 1630), Província
do Rio de Janeiro (croqui de L.B. Ursini sobre mapa); foi transcrito
ipsis litteris, em vermelho, o que está escrito no interior de cada
sesmaria.

A sesmaria de Maria Jácome de Mello tem origem na história da Capitania


de São Vicente, recebida por herança pela Condessa de Vimieiro, título de Mariana de
Souza Guerra, neta de Martim Afonso de Souza. Dividia em dois lotes, a Capitania de
São Vicente doada a Martim Afonso de Souza tinha a Capitania de Santo Amaro ao meio
(vide “Figura 4”). Pero Lopes de Souza, irmão de Martim Afonso de Souza, era donatário
desta Capitania de Santo Amaro, atualmente à altura do Guarujá para o interior, até o
traçado do Tratado de Tordesilhas; e de mais duas outras capitanias: Itamaracá, ao norte,
margem do Rio São Francisco; e Santana, ao sul, esta se estendendo de Cananeia a
Laguna, as quais não virão ao caso aqui. As controvérsias acerca dos limites ao sul da

162
Capitania de Santo Amaro se dão a partir da contestação da herança deixada à Mariana
Guerra apresentada pelo Conde de Monsanto59, outro neto de Martim Afonso de Souza,
pelo fato da hereditariedade da Capitania dever seguir a linha masculina, conforme se
enfatizam nas cartas de doações (UNB - UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, s.d.;
CINTRA, 2017; ELLIS, 1972).

Apesar dos domínios sobre São Vicente (vila), Santa Ana de Mogi das Cruzes
e São Paulo, Mariana Guerra é expulsa após se terem dado ganho de causa ao Conde de
Monsanto. A Condessa de Vimieiro transfere o centro administrativo de seus domínios
da Vila de São Vicente, a “Cabeça da Capitania”, em 1624, para a Vila de Itanhaém
(CINTRA, 2017, p. 214) e funda ― ela mesma uma capitania para si ― a Capitania de
Itanhaém. O litígio durou até 1679 (UNB - UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, s.d.).
Mariana Guerra, por meio de procuradores seus, alargou a jurisdição da Capitania de
Itanhaém concedendo sesmarias em Taubaté, Guaratinguetá e Cabo Frio. Segue a relação
de vilas indicadas no Atlas Digital da América Lusa (UNB - UNIVERSIDADE DE
BRASÍLIA, s.d.) para as respectivas capitanias, com destaque de sobreposição de
jurisdição indicadas abaixo:60

Tabela 6 – Sobreposições administrativas entre as capitanias de


Itanhaém, São Vicente e Guaratinguetá (com base em mapa de
Cintra, 2014, p. 216)
CAPITANIA DE SANTO AMARO CAPITANIA DE ITANHAÉM CAPITANIA DE SÃO VICENTE
Jundiaí Paraty Paraty
Parnaíba Guaratinguetá Guaratinguetá
Jacareí Iguape (até Cananéia) Iguape
São Paulo Angra dos Santos Reis da Ilha Grande São Paulo
Sorocaba Sorocaba Guaratuba

Mogi das Cruzes Nossa Senhora da Conceição de Itanhaém Mogi das Cruzes

Ubatuba Pindamonhangaba
Caraguatatuba Santo Antônio dos Anjos da Laguna
São Sebastião Paranaguá São Sebastião
Taubaté São Vicente
Itu Itu
Curitiba
Santos
Parnaíba

59 Na genealogia levantada por esta pesquisa, o Conde de Monsanto seria parente pela via Isabel
Lopes de Souza, meia irmã de Pero Lopes de Souza, este pai de Mariana da Souza Guerra, a Condessa de
Vimieiro.
60 E possivelmente outras, que não foram especificadas no Atlas para a sequência das vilas da
Capitania de Itanhaém: “todas as vilas ao norte da Cidade de São Paulo, com exceção de Vila de Santa Ana
de Mogi das Cruzes” (UNB - UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, s.d.).

163
Mariana de Souza Guerra foi a quarta donatária da Capitania de São Vicente,
herdada de seu irmão Lopo de Souza, o qual, por sua, vez herdara do pai de ambos, Pero
Lopes de Souza, herdeiro do donatário originário, Martim Afonso de Souza. Álvaro Pires
de Castro e Souza, o Conde de Monsanto, é o donatário que sucede à Mariana Guerra,
tendo ele vencido a contenda, a partir de 1624. Lembremo-nos de que a sesmaria de Maria
Jácome de Mello, na origem da fundação de Paraty, foi recebida de Mariana de Souza
Guerra em 1630. Ou doou o que não lhe pertencia, ou seguiu na certeza de continuar a
exercer domínios sobre o que herdara da Capitania de São Vicente. O processo ainda
durou recalcitrante e, mais tarde, em 1780 há notícias da busca feita por documentos
comprobatórios, descobertas duas certidões na Vila de São Vicente: “hum incontestável
direito”. A carta é do governador da Capitania de São Paulo, Martim Lopes Lobo de
Saldanha (1775-1782) dirigida ao conde de Vimieiro61.

Figura 4 ― Capitanias de São Vicente (Condessa de Vimieiro) e


Santo Amaro (Conde de Monsanto) a partir do limite da divisão do
Tratado de Tordesilhas

61 Biblioteca Nacional, Documento 141 ― I-30, 21, 97, nº 1 (I-16-30); documento original
digitalizado.

164
Jorge Cintra reconstrói das divisões das Capitanias Hereditárias doadas —
com a legenda de “vilas e cidades em terras alheias” para apontar o que afirma ter sido
um erro: as Vilas de São Paulo, de Jundiaí e outras, historicamente tidas como
pertencentes à Capitania de São Vicente (lote sul), estavam localizadas, na verdade, na
Capitania de Santo Amaro, em má fé da parte dos antecessores de Mariana Guerra, em
ampliarem os domínios (CINTRA, 2017, p. 212). Alerta Cintra que conflitos não haviam
pelas linhas, porque as noções de área e de fronteira não faziam sentido à época, e cada
qual saberia quantas vilas jurisdicionava e aquele que tivesse a Cabeça teria as demais
(CINTRA, 2017, p. 220). A Capitania criada é sobreposta à de São Vicente e a maior
parte das vilas de Santo Amaro — Capitania que Mariana perdeu — seguem
jurisdicionadas à sua Capitania de Itanhaém.

A imagem que a atitude de Mariana nos traz é a de territorialidade exercida


sobre pontos, lugares, que são as vilas; de poder que em grande parte se deve aos valores
diferentes dos pontos, das vilas: a jurisdição de Mariana Guerra não abarcavam todas as
vilas senão aquelas com as quais mantinha relações de comunicabilidade estabelecida
pela organicidade administrativa com as mesmas. No detalhe do limite norte da Capitania
de Santo Amaro, fletido para um vértice no litoral, há a possibilidade das vilas de São
Paulo, Itu, Jundiaí e outras terem percorrido suas histórias crendo-se pertencentes à
Capitania de São Vicente quando, de acordo com Cintra (CINTRA, 2017, p. 212), quando
estariam cravadas na Capitania de Santo Amaro. Tem-se a imagem de uma sobreposição
“permeável”, ao ser criada a Capitania de Itanhaém sobrepondo-se a vilas ponteadas nas
capitanias de São Vicente e em parte, à de Santo Amaro, sendo as vilas dessa capitania
jurisdicionadas pela Capitania de Itanhaém, exceto as vilas de Santo Amaro, Santos e São
Paulo. São áreas jurisdicionais que se sobrepõem e onde, em princípio, não há
interferência de uma jurisdição na outra, elas se entremeariam. A territorialidade
administrativa é relativa às vilas, não têm em vista necessariamente os limites, as linhas,
senão os pontos no seu interior.

A localização do traçado do Tratado de Tordesilhas foi outro ponto de


controvérsias. Estabelecido em junho de 1494, o traçado foi ajustado nos anos seguintes
nos dissensos entre espanhóis e portugueses que levaram a acordos, a permutas de
territórios, a guerras e a conflitos tendo os indígenas como aliados dos exércitos europeus
e, em outras ocasiões, ambos os exércitos em marcha contra os indígenas. A finalidade

165
de remontar a um tempo tão distante, aqui não é a de mostrar que as fronteiras nacionais
cambiaram, a despeito de uma população autóctone, como fiz em outro lugar a partir do
tema de Tordesilhas62, senão a de evidenciar aspectos das as técnicas de mensura e de
leitura, os conhecimentos no século XVI na cartografia, que envolvia medidas de tempo
e de distâncias utilizadas na navegação e o uso desses conhecimento, inclusive do
conhecimento de suas imprecisões, para resultados políticos. Portugal era muito
conhecedor de técnicas de cartografia, necessária à navegação; a Espanha, não.

Contando 370 léguas em direção à América do Sul, a definição do traçado do


Tratado de Tordesilhas resultou de cálculos feitos a partir das Ilhas do Cabo Verde,
dividindo não apenas a América como o mundo entre Espanha e Portugal. Jorge Pimentel
Cintra (CINTRA, 2017) aponta algumas dificuldades para a precisão da linha: no tratado:
não está especificada qual ilha do conjunto de ilhas do Cabo Verde serviria de referência,
se aquela mais afastada da Europa ou a mais próxima; qual o valor da légua, com valores
diferentemente estabelecidos por Portugal e pela Espanha; e a forma de se medirem as
léguas. As experiências e regras empíricas eram necessárias para avaliação eu
cotejamento das léguas expressas no mapa, como explica Cintra:

(...) o Regimento das léguas ─ documento em uso a partir do século XV


que indicava como calcular as léguas percorridas na prática da
navegação ─ fornecia, para 24 horas, com vento teso em popa, de 36 a
38 léguas; com vento, quando a nau governa pela bolina, 8 léguas.
Como a nau andava em ziguezague, era necessário efetuar as reduções
através de fórmulas dadas por esse Regimento. (CINTRA, 2012, p. 424):

62 Tomei conhecimento da bibliografia que trata dessa controvérsia por ocasião da elaboração dos
estudos de impactos ambientais para a construção e instalação do Contorno Rodoviário de Florianópolis,
por conta do envolvimento de dez Terras Indígenas Mbya e Nhadeva e a falácia local, não apenas no Estado
de Santa Catarina, mas também, no Rio Grande do Sul, de que as terras indígenas Guarani serviriam de
apoio a indígenas vindos do Paraguai. O argumento, utilizado em campanhas contra povos indígenas,
veiculada na mídia e na fala de dirigentes tomando tom de conhecimento público e popular, era o de que
haveria indígenas no Brasil e outros fora; nessa linha de raciocínio, as terras no Brasil não se serviriam a
acomodarem situações “estrangeiras”, em absoluta desconsideração à mobilidade Guarani. O propósito,
naquela ocasião, em buscar informações sobre as fronteiras políticas que foram traçadas sobre outras
fronteiras e espacialidades, no caso as terras guarani e os seus caminhos e rotas entre idas e vindas e
permanência na visitação de parentes, e encontrei no estudo de Cintra (2012) as várias possibilidades para
uma divisão política ― circunstancializada economicamente ― do mundo em dois hemisférios. Naquele
trabalho que se chamou Componente Indígena ― Contorno Rodoviário de Florianópolis, 2014 teve aquela
função de demonstrar fronteiras que fazem sentido para uns, e que que mudaram e eram imprecisas; nesta
Tese o efeito, a título de curiosidade, daquela divisão móvel, é que da atual Cabo Frio para o oeste, seria
tudo américa espanhola de acordo com um dos traçados indicado em 1502.

166
Dessa maneira, o estabelecimento da linha divisória variava, como segue no
exercício que fez Cintra, com os cálculos refeitos por ele, (as linhas vermelhas). O autor
que incluiu nomes de cidades, no mapa original, que não existiam à época para fins de
orientação do leitor63 (CINTRA, 2012, p. 425).

Figura 5 ― croqui elaborado por Leslye Ursini sobre mapa de Jorge


P. Cintra (2012)

A respeito das posições da linha do traçado de Tordesilhas, explica Cintra que


o cálculo de alguns cartógrafos e o resultado da posição da linha em seus mapas reflete
“um grande desconcerto”, pois o mapa de origem portuguesa, como a linha encontrada
por Cantino (1502), colocava o meridiano a 42º 30’ e esta posição era mutíssimo
desfavorável a Portugal. Mapas de origem e de interesse castelhano, como era o de Diogo
Ribeiro (1529), português a serviço da Espanha, não favorecia este país. Reuniu-se uma
junta de especialistas em Badajós e em Elvas (1524) a fim de dirimir dúvidas e a longitude
de 46º 30’ foi apontada, “mas não estavam muito seguros desse resultado”. Depois de
pouco de tempo, os mapas portugueses colocaram a posição do traçado na foz do rio
Amazonas64 ao norte e, ao sul, no estuário do rio Prata, não havendo contestação
espanhola nesse sentido (CINTRA, 2012, p. 423). Os mapas portugueses, por ordem

63 Observamos que as variações do traçado são retiradas de Cintra (ibidem); no entanto, ao longo
dos levantamentos encontramos outras variações mais ao Oriente ou ao Ocidente, de forma que as posições
trazidas são exemplificativas e não os resultados das diversas negociações e proposições para o traçado.
64 Essa posição não está contemplada na figura que traz os traçados à época e os cálculos de
Cintra.

167
expressa de D. Manuel, deveria ser todos deformados a partir de 1519 para “dar a
entender” que a bacia do rio Prata estaria englobada na porção portuguesa (CINTRA,
2012, p. 426).

As negociações das porções de terras na América do Sul estavam inseridas


em um quadro mais amplo de negociações diplomáticas, envolvendo outros países
(Inglaterra, França, Alemanha, Holanda) em que permutas se davam entre as potências à
época, em negociações políticas que iam além das ocupações e pretensões na América do
Sul com o meridiano, havia o antimeridiano que se moveria lá conforme fosse movido
aqui na partição de terras pela linha de Tordesilhas. Portugal havia comprado direitos nas
ilhas Molucas65, fonte de noz-moscada e de cravo. Por isso, explica Cintra, por vezes seria
mais interessante, portanto, a Portugal a linha de Tordesilhas mais próxima ao Oceano
Atlântico que ao Pacífico por causa da linha no outro lado do globo (CINTRA, 2012: 424-
425).

As discussões acerca da linha divisória do Tratado de Tordesilhas eram


concomitantes à ocupação de fato do território, o que trazia conflitos em meio à
indefinição das porções respectivas de Portugal e Espanha aliado aos esforços de Portugal
em ampliar mais e mais suas incursões e, com isso, o seu domínio em terras que não eram
suas. O investimento de Portugal na elaboração de mapas e em expedições com esse fim
garantiu àquele país tanto estratégias de ocupação efetiva como vantagens nas
negociações diplomáticas. Já os espanhóis não fizeram tal investimento. Os espanhóis
“sem terem absoluta certeza” do que seriam as suas terras, segundo Jorge Cintra (2012),
“chegaram a ocupar posições no oeste do Estado de São Paulo e norte do Paraná e do Rio
Grande do Sul”. Concretamente, estabeleceram por meio dos jesuítas, as missões que
foram a do Guairá (1612-1628) e a do Tape66 (1626-1635), os chamados Sete Povos das
Missões. Já a Colônia Sacramento67 (1648) e, no norte, o forte de Belém (1616) foram
fundados pelos portugueses (CINTRA, 2012: 426). As dúvidas entre o mapa ― além das
alterações ― e a realidade beneficiou o avanço do domínio português, no que a presença
em terra dos portugueses, por meio das Bandeiras, contribuíram para o alcance das

65 Ilhas na Ásia, objeto do Tratado de Saragoça (1529).


66 Tapes: nome dado à região ocupada pelos indígenas Tape, região em que se instalou a primeira
missão de jesuítas, invadida por bandeirantes – na primeira metade do século XVII, para apanhar indígenas
como mão-se-obra para a cana-de-açúcar, evadiram-se os indígenas para a região mesopotâmica formada
pelos rios Paraná e Uruguai Fonte bibliográfica inválida especificada..
67 Atualmente chamado de Colônia, pertencente ao Uruguai.

168
fronteiras do Brasil atual, com base no princípio do uti possidetis68, Portugal consolidava
a sua ocupação e pretendia que a Espanha reconhecesse a soberania sobre tal ocupação,
quando de fato esta deveria ser mais restrita. Ainda, por conta das pretensões francesas
ao norte do Amazonas, nos territórios chamados Cabo Norte, Portugal pretendia ampliar
seus domínios ao norte (ALMEIDA, 1998, p. vi). Nisso, a depender dos cálculos, a linha
de Tordesilhas poderia alcançar parte do Cabo Norte a partir da costa; novamente sendo
interessante que a linha se aproximasse do Pacífico.

Em fins do século XVI, as Bandeiras partidas de São Paulo haviam penetrado


em regiões diversas em busca de prata e de ouro e outros roteiros por caminhos terrestres
fluviais sem compromisso com a linha divisória e, com isso, se foi dando a precedência
portuguesa na ocupação e na posse do território nas fronteiras oeste (esta à altura do Mato
Grosso) e sul (CINTRA, 2012: 426). As partes reconheciam não terem respeitado o
Tratado de Tordesilhas e celebraram, em janeiro de 1750, o Tratado de Madri, com base
no Mapa das Cortes69, de 1749, elaborado a partir de diversos mapas a fim de subsidiar
as negociações no Tratado de Madri, de 1750 (FERREIRA, 2007: 52). À época, se buscou
o levantamento para a elaboração de novos mapas para o Brasil, projeto encampado por
D. João V com a contratação de padres matemáticos italianos, os quais chegaram ao Brasil
em 173070. Tal projeto tinha como entrave o muito tempo que tais levantamentos
demandavam. André Ferrand de Almeida aponta que D. João V tinha propósitos
geoestratégicos, pois quem dispusesse de melhores mapas conheceria efetivamente o
território que reclamava para si. A missão dos padres jesuítas nos levantamentos para os
mapas foi concomitante às estratégias expansionistas da Coroa Portuguesa para além da
linha de Tordesilhas (ALMEIDA, 2009, p. vii). O Mapa das Cortes apresentava
distorções em favor de Portugal, dando a impressão, no mapa, de que o território
português era menor do que seria de fato a sua ocupação; em terra, os espanhóis poderiam
se localizar por rios, outros acidentes geográficos e topônimos e, assim, se crerem estar
percorrendo, no chão, o mesmo mapa. Abaixo reproduzo o Mapa das Cortes, com as
indicações de Jorge Cintra acrescido das variações do traçado de Tordesilhas, para que o
leitor visualize, juntos, os resultados das variações técnicas inerentes aos cálculos à época,

68 Que significa posse a que possua de fato, ou seja, se já estivesse ocupando determinada área,
dela seria possuidor; princípio válido para a Espanha e para Portugal.
69 Ou Mapa dos confins do Brasil com as terras da coroa de Espanha na América Meridional,
1749.
70 Diogo Soares e Domingos Capassi que chegaram ao Rio de Janeiro em 1730, para início de sua
missão (RODRIGUES, 2013).

169
manejados política, e as distorções propositais na fronteira oeste-leste. Indico a
localização de Paraty, no Estado do Rio de Janeiro, em alusão, apenas, às circunstâncias
em que o lugar poderia ter pertencido à América espanhola.

Figura 6 ― Mapa das Cortes (1749), possibilidades para a linha do


Tratado de Tordesilhas

As linhas magenta se referem aos traçados de Tordesilhas; a linha azul


desenha o Brasil como hoje está, para uma referência; a linha tracejada corresponde ao
Tratado de Tordesilhas, em sua posição considerada para as negociações no Tratado de
Madri (1750); os pontos verdes são a localização física terrestre, com os vetores indicando
o deslocamento no mapa distorcido; e a linha vermelha representa os limites resultantes
do Tratado de Madri, que no papel expressava menor extensão na ocupação da parte de
Portugal, quando na verdade esta era maior, conforme os deslocamentos propositais que
Cintra recalculou e demonstrou com as indicações dos vetores e a verdadeira localização
dos topônimos Cuiabá e Vila Bela (CINTRA, 2012: 442).

Lugares que atravessaram o tempo, em Paraty, têm exemplos nas edificações


históricas, com nomes constantes em roteiros turísticos. Os territórios do turismo são
essas “porções do espaço funcionalizadas pelo turismo” (CRUZ, 2000, p. 18). Tais
territórios são eminentemente de consumo, produzidos para serem consumidos. Podemos

170
entender que o território e a identidade territorial são moldáveis; moldadas por meio “do
planejamento territorial”, que é “uma condição do sucesso de planos e políticas setoriais”
como o são a de turismo (CRUZ, 2000, p. 22).

Há um aspecto interessante no território do turismo que é um território de


destino, fragmentado em itens cuja identidade será moldável não necessariamente pelos
“usuários”, mas que começa com esses usuários, conforme se depreende de Rita de Cássia
Cruz (CRUZ, 2000, p. 22), que classifica o processo de “turistificação”, em três etapas: a
primeira é a presença de turistas, é isso que definirá um lugar como turístico, com
potencial turístico; uma segunda etapa que identificou tal potencial cultural ou natural, ou
ambos, e parte para a oferta de novos produtos; a terceira etapa é da ordem da atuação
dos planejadores e promotores territoriais em face da competitividade e da globalização
do mercado (ibidem).

No que concerne aos topônimos e ao seu tempo de existência, nos atrativos


turísticos têm repetidos seus nomes, estão o Morro do Forte, a Baía de Paraty, Caminho
do Ouro, Forte Patatiba, Igreja de Santa Rita e outros lugares abertos, como as ruas
calçadas em pedra no Centro Histórico, o porto na cheia da maré que alaga a cidade; são
espaços tão moldados ao consumo que mesmo a sua infraestrutura se converte em “ponto
turístico”, como exemplos, a Pousada da Marques e a Pousada do Príncipe.

4.2. Caminhos

As incursões de expedições ao interior, organizadas por donatários das


Capitanias Hereditárias, vigente entre 1534 e 1821 em terras brasileiras, tinham a
finalidade, principalmente, de se descobrirem novos cursos de água que rendessem
minerá-los. Mariana de Souza Guerra, donatária da Capitania de São Vicente e, depois,
da Capitania de Itanhaém, investiu em tais entradas e é atribuído aos seus esforços o ouro
encontrado no lugar da Aldeia de Cima, ou “Taba-ibaté”, ou “dos Tabaybaté”, na atual
cidade de Taubaté, em datas prováveis: 1695, 1693 ou 1697 (CINTRA, 2017, p. 212;
RIBAS, 2003). O ouro encontrado em Taubaté é o evento que marca o início do que se
chamou por “ciclo do ouro” no Brasil, marcado até o final do século XVIII. O Conselho
Ultramarino, em 1701, advertiu o Rei de Portugal para que restringisse os caminhos que
acessavam as minas dos Cataguases - como eram conhecidas as minas do Rio das Velhas,
do Ribeirão do Ouro Preto e do Ribeirão do Carmo (RIBAS, 2003, p. 28); em 1702 foi
171
editado o Regimento das Minas, em Alvará lavrado no Livro dos Regimentos do
Conselho Ultramarino (ANDRADE E SILVA, 1701, p. 34); com trinta e dois capítulos
curtos, tais como artigos de uma lei com seus incisos e alíneas, versava na mais da vez
sobre como dirimir conflitos entre mineiros na repartição de suas datas de minerar; criou
os postos de Guardas-menores, abaixo de Guarda-mor e outros postos para atuarem na
ponta, no lugar mesmo das minas, ficando estas diretamente ligadas à Coroa em Portugal
por meio do escalonamento administrativo.

Aquele que aportasse em Paraty seguiria atravessando a cidade, a pé ou em


mulas, alcançava o pé da Serra do Mar e nela o Caminho do Ouro traçado no itinerário
da Serra da Cangalha, Freguesia do Facão Cunha, até alcançar o Rio Paraíba do Sul. O
caminho foi aberto sobre a antiga trilha dos indígenas Guaianás que ligava as partes de.
Baixo e de cima as Serra do Mar, sobre ela a Ordem de 21 de agosto de 1660, do
governador do Rio de Janeiro, Salvador Correia de Sá (o mais novo) mandava que fosse
aberta e desbastada a trilha.

O caminho do Rio de Janeiro para São Paulo do Piratininga, atual cidade de


São Paulo, seguia o itinerário: Ilha do Governador/terra → Santa Cruz/terra → Porto de
Sepetiba → Angra dos Reis/mar, entre a Ilha da Gipoia e a Ilha Grande → Porto de Paraty
→ Serra do Facão (Cunha, SP)/terra → Guaratinguetá ou Taubaté/terra → São Paulo.

Também, era possível sair do Rio de Janeiro por mar até o Porto de Santos e de lá subir
para São Paulo. O caminho do Porto de Santos para São Paulo oferecia mais dificuldades
em ser transposto que o Caminho do Ouro.

O Caminho Novo, para atravessar a Serra dos Órgãos, foi aberto em proveito
da rapidez em se alcançar as minas. Pela perecividade de produtos a serem levados para
a gente na região das minas ou na rapidez em se sair delas na urgência de serem cobrados
todos os impostos71 levados à Coroa, aquele caminho era mais vantajoso que o de Paraty.
O Caminho Novo, a partir do Porto da Estrela na Baía de Guanabara, reduzia em um para
um terço o tempo de viagem72, fazendo do caminho por Paraty um entrave à arrecadação
de impostos, aponta Straforini (STRAFORINI, 2006), que recaíam sobre a produção e a

71 Além do quinto e do quinto régio, havia a capitação (por minerador), o direito de passagem, o
direito de entrada, a derrama (cobrada sobre quintos atrasados) a bateia (por bateia) e outros que consistiam
em contabilizar a escravatura ocupada na mineração (ANTONIL [1711], 1968 e PRADO JÚNIOR, 2003).
72 Há quem fale que por Paraty eram 73 dias, outros chegam a 95 dias; mas concorda com a
proporção de terços quando se referem a algum lugar, que não especificam, na denominada região das
minas.

172
circulação de ouro e de outras mercadorias. O Caminho Novo foi aberto aproveitando os
caminhos do Proença e o de Garcia Rodrigues partindo-se do Rio de Janeiro, cortando
por água a Baía da Guanabara e alcançado o Porto do Pilar, depois também, o Porto da
Estrela, hoje desativado e localizado no Município de Magé73, aos fundos da Baía da
Guanabara e, por ali, subia a Serra dos Órgãos para alcançar o Arraial de Vila Rica, hoje
a cidade de Ouro Preto.

A abertura do Caminho Novo foi concluída em 1707 (CARVALHO, 2011, p.


4) e iniciada em 170474. Houve acertos de traçados e obras para que se pudessem passar
comboios, devido à segurança contra assaltos. As obras foram terminadas em 1767
(RIBAS, 2003, p. 39). O tempo de viagem era menor em noventa dias (STRAFORINI,
2006) em relação ao Caminho Velho, ou o Caminho do Ouro em Paraty. Para ligar São
Paulo ao Rio de Janeiro, foi aberto o Caminho da Piedade (atual Lorena), concluído em
1778. O trajeto seguia, partindo do Rio de Janeiro; por Santa Cruz; passando por São João
Marcos (do Príncipe), atual Rio Claro, na região de Resende; seguindo por Bananal →
São José do Barreiro → Areias → Guapacaré, nome antigo de onde é a cidade de Lorena
atualmente, encontrando, aí, o Caminho dos Paulistas que vinha de São Paulo → Taubaté
→ Guaratinguetá, passava por Lorena e seguia para Ouro Preto. O Caminho da Piedade

era um atalho, inteiramente por terra, alternativo ao Caminho Velho de Paraty → Cunha
→ Guaratinguetá.

Roubos e sonegações frequentemente eram relatados como inerentes a


regiões de minerais e pedras preciosos à época da expansão aurífera no Brasil, tanto que
medidas diversas eram impostas pela Coroa e pelo Império. Nas barras fundidas a partir
do ouro em pó era cunhado “ouro quintado” indicando o imposto já recolhido, o Quinto.
A Casa de Fundição de Taubaté, ou Oficina Real dos Quintos75, aberta em 1695, foi
transferida para Paraty em 1703, por meio da Carta Régia de 9 de fevereiro deste mesmo
último ano. Ainda, há a história da falsificação de uma cunha de ouro empreendida por
um morador de Taubaté, por um padre e por um frei (RIBAS, 2003), o que pode ter

73 O porto da Estrela, ao fundo da Baía da Guanabara, existiu a partir de 1767, ao seu redor surgiu
uma próspera vila e a subida em direção à Serra dos Órgãos se chamava Estrada da Estrela.
74 De acordo com o Plano de Manejo da Serra dos Órgãos (IBDF - INSTITUTO BRASILEIRO
DE DESENVOLVIMENTO FLORESTAL, 1980); Ribas indica que teriam começado em 1710 (RIBAS,
2003, p. 39).
75 No século XVIII eram pelo menos vinte Casas de Fundição, ou Casas de Quintar, sendo
transferidas de um lugar para outro e incorporadas por outras; há distinção com Casas da Moeda — ver
Sítio do Ministério da Fazenda e André João Antonil (ANTONIL, [1711] 1968, p. 168).

173
animado o fechamento da Casa de Fundição de Taubaté em 170476. Nesse mesmo
momento, foi fechada a Casa de Guaratinguetá, que fora aberta em 1697 (idem). Todas
as três Casas de Fundição — Taubaté, Guaratinguetá e Paraty — pontuavam o Caminho
do Ouro de Paraty.

A Casa do Registro do Ouro em Paraty controlava o trânsito do ouro vindo


das minas para o Rio de Janeiro no que se chamava Caminho Marítimo-Terrestre77 e
continuou a funcionar passando por ela o ouro das chamadas minas velhas, provindo de
Jaraguá, em São Paulo; das minas de Minas Gerais; e das minas que foram encontradas
posteriormente em Cuiabá, em 1715, e em Goiás, em 1721 (RIBAS, 2003, p. 39). A
segurança dos tropeiros e dos viajantes, o controle dos impostos e o encurtamento das
distâncias foram variáveis intrincadas na procura de novos caminhos para ligarem o litoral
do Rio de Janeiro aos chamados Sertões, transpondo a Serra do Mar, que era vista como
um obstáculo a ser vencido. Também, o despiste do pagamento dos impostos e o
contrabando eram razões para a abertura de variantes e de outros caminhos.
Descaminhador era i nome dado à pessoa quem “descaminha, extravia, furta os direitos
às aduanas” (SOUZA, 1825, p. v. verbete), significava algo como sonegadores de
impostos, cujo delator recebia metade da carga e o transgressor, uma multa de três vezes
o valor da carga.

O movimento do Caminho Marítimo-Terrestre por Paraty para se alcançarem


as minas teve seu movimento reduzido em fins do século XVIII, com a mudança do eixo
do trânsito de mercadorias e ouro para o Caminho Novo. Pelos caminhos circulavam,
também, funcionários do governo, mercadores e informação entre os confins e a Corte78.
Com a produção cafeeira no Vale do Paraíba, do final do século XVIII ao final do século
XIX, o caminho de Paraty é utilizado para escoar o café do Vale do Paraíba e o abastece
com escravos como a mão de obra na cafeicultura, depois, nos portos de Paraty; Paraty-
Mirim; Jerumirim, em Angra dos Reis; até à Ponta da Marambaia o tráfico ilegal de
escravos é negócio escuso, ilegal e muito lucrativo. É construída a Igreja Nossa Senhora
das Dores em 1800.

76 Carta Régia de 7 de fevereiro de 1704.


77 De São Paulo (Piratininga), a Paraty por terra, usando o Caminho do Ouro atravessando a serra
do Facão, em Cunha (SP) — levando dez dias de ida e onze de volta (RIBAS, 2003, p. 39) — e do Porto
de Paraty ao Rio de Janeiro por mar.
78 Em outro contexto de relações e no XIX, Alcir Lenharo (LENHARO, 1993) vê na figura do
tropeiro um intercomunicante mais que um dependente do fazendeiro ou um agenciador ou fretador de
transportes de carga.

174
O Caminho do Ouro de Paraty foi fechado para o transporte de ouro e
comerciantes do Rio de Janeiro pediram licença ao Governador para utilizá-lo no percurso
para as minas de Minas Gerais partindo de Paraty. A razão do pedido seria o péssimo
estado do Caminho Novo que passavam pela Serra dos Órgão, devido à falta de
manutenção. O itinerário era partir de Paraty para as minas e regressar pelo Caminho
Novo, onde estava a Casa de Registro da Paraíba Velha; Depois disso, o povo de Paraty
pede ao Rei de Portugal que libere o Caminho Velho de Paraty e é atendido79; em 1733,
o caminho de Paraty é novamente fechado para o transporte de outro80. Em 1756, um ano
antes do término das obras de abertura do Caminho Novo que transpunha a Serra dos
Órgãos, paratienses, por meio de influência política, impedir a abertura do caminho e são
repreendidos por Portugal, na figura do Rei Dom José (RIBAS, 2003, pp. 36-39).

Figura 7 ― Caminho Marítimo-Terrestre, como era conhecido o


Caminho do Ouro (velho) de Paraty e, Caminho de Santos e o
Caminho dos Paulistas (RIBAS, 2003, p. 30)

79 Carta Régia de 24 de maio de 1715.


80 Alvará de 27 de outubro de 1733.

175
A estrada de Ferro Dom Pedro II chegando, em 1877, a Guaratinguetá e tendo
percorrido boa parte do Vale do Paraíba, cujo rio nasce em Jacareí, foi o meio de
escoamento da produção de café do vale. O modelo de empresa das fazendas do vale era
fincado na mão de obra escrava e no exaurimento do solo. À produção extraordinária de
1882 se seguiram acentuadas quedas de produtividade e a produção de café já estava, em
1870, na região de Campinas e se expandiu para o oeste Paulista com a força de trabalho
dos imigrantes. No Rio de Janeiro há primeiro Engenho Central, em Quissamã, fundado
em 1877; em 1879 entra em funcionamento a primeira usina no Brasil, a Usina do Limão,
em Campos dos Goytacazes; e o Engenho Central Bracuí, em 1885, inicia suas atividades
na cidade vizinha a Paraty, Angra dos Reis.

Em Paraty houve intenção de se ter um ramal ferroviário ligando a cidade à


estrada de Ferro Dom Pedro II. O projeto da nova ferrovia — apresentado pelo Deputado
Honorio Lima81 na “Assemblea Provincial” — traria vantagens a Paraty, escreveu a
redação do Paratyense em 1882, por conta do que julgava ser importante ser indicado: o
contato diário com a Capital do Império, já transferida de Salvador para o Rio de Janeiro
nessa época. Paraty, no entanto, nunca foi alcançada pela ferrovia apresentada pelo
deputado e que teria Mangaratiba e Angra dos Reis no seu itinerário. A Estrada de Ferro
Dom Pedro II tinha chegado ao Vale do Paraíba em 1864, até à altura de Barra do Piraí,
para escoar a produção de café do vale; depois, a linha férrea alcançou Guaratinguetá e
este lugar ficará, daí para diante, alinhado a essa ferrovia; sendo que antes sua ligação era
com Paraty por meio do Caminho do Ouro. Houve um a mobilização para a construção
do Engenho Central de Paraty anunciada no jornal Paratyense82:

Hoje, ás 10 horas do dia, terá lugar no salão do Lyceu Paratyense, uma


reunião dos Srs. fazendeiros que se dedicam ao plantio de canna, a fim
de se tornar effectiva a grandiosa idéa de montar-se n’este Município
um Engenho Central. (“Engenho Central”, jornal Paratyense, ano 1, nº
1, de 29/10/1882, página 2)

Francisco Carneiro de Souza acha-se authorizado a receber


assignaturas dos Drs. Fazendeiros e plantadores de canna, para a

81 Honorio Lima presidiu a Câmara de Angra dos Reis, vizinha a Paraty, nos anos de 1881 e 1882
Fonte bibliográfica inválida especificada..
82 Os dez números do semanário Paratyense sobreviventes ao tempo, no acervo da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro, não ultrapassam o ano de 1884. Impresso em tipografia própria, à rua do
Rozário, nº 16, já em 1883 aparece como O Paratyense – Orgão Politico, de propriedade de Joaquim
Mauricio de Velasco Molina.

176
fundação de um Engenho Ventral n’este Municipio; e convida as
pessoas que desejarem este melhoramento a se inscreverem na lista
em poder do mesmo com a quantidade de canna que poderem suprir
o referido engenho. (idem, página 4) (sublinhei)

Outro engenho estava previsto para ser instalado na região e o jornal veiculou
que um engenho para Paraty estava sendo reclamado. Ao lado de Paraty, em Angra dos
Reis, desde março de ano anterior a 1882, estava autorizada, pelo Ministro Manoel
Buarque de Macedo, a construção de um Engenho Central; mais tarde conhecido com
Engenho Central do Bracuí. Havia uma determinação, em 1681, de que, no Brasil, não se
alocariam engenhos — no período canavieiro anterior — a menos de 3,3 léguas de
distância um do outro, cuja finalidade era a de garantir recursos combustíveis, lenha no
caso, no entorno dos engenhos (CASTRO, 2013, pp. 139-140). A distância entre os dois
engenhos, de qualquer maneira, daria mais de 20 léguas 83; no entanto, o novo modelo de
empreendimento que trazia o negócio dos engenhos era tratar os fazendeiros como
fornecedores de matéria prima contrastando com a autonomia, mando e capacidade de
influenciar políticas e mercado que possuíam anteriormente. Além da tentativa de um
planejamento da atividade, são novas relações que estão indicadas, ombreando
“fazendeiros e plantadores”, como grifei no trecho transcrito, acima, no pedido de
assinaturas e da indicação da quantidade de cana que pudessem oferecer.

Na região, conforme Daniel Castro (CASTRO, 2013), todos os portos


pequenos escoavam principalmente café e aguardente e possuíam grande movimentação
no tráfico de escravos. O Engenho Central do Bracuí, em Angra dos Reis, possuía um
porto para si onde, também, funcionava o tráfico em terras de propriedade e
responsabilidade de Joaquim de Souza Breves. Quando jovem, acumulou capital com
comércio e o tráfico de escravos, possuindo portos da Ponta da Marambaia à região de
Angra dos Reis; quando mais velho, se tornaria o mais importante cafeicultor do Brasil,
referenciado por São João Marcos do Príncipe, no Rio de Janeiro (MACHADO, 1995,
pp. 11-12). O Engenho Central do Bracuí, em regime de concessão, foi inaugurado em
12 de junho de 1885 pelo Ministro da Agricultura, o Conselheiro Antonio Carneiro da
Rocha. Posteriormente, essa pasta foi ocupada por Lourenço Cavalcanti de Albuquerque,
a quem coube desfazer, mais tarde em 1889, o projeto que tinha a previsão de operar mais

83 Eram aproximados 75,5 km, pelas medidas variadas da légua, entre a maior e a menor medidas,
seriam de 10 a37 léguas.

177
vinte anos a partir de 1881, quando se deu a concessão. Ao todo, o Engenho do Bracuí
durou quatro anos, decretada a caducidade da concessão em 3 de agosto de 188984.

Uma estrada, lingando Paraty à parte alta da Serra do Mar, foi aberta em 1925
para que possibilitasse a passagem de veículos automotores. O traçado coincidiu em parte
com o Caminho Velho, aquele mesmo de Paraty, que aproveitava trechos das trilhas dos
indígenas. Ribas (RIBAS, 2003, p. 49) informa que o primeiro carro chegou a Paraty em
1929, permanecendo na cidade por não conseguir retornar pela serra.

No contexto da exploração turística de Paraty é planejada e construída a BR-


101, naquele trecho é chamada rodovia Rio-Santos. A rodovia foi sendo aberta e os
trabalhadores rurais expulsos. A área baixa do município, não apenas o eixo da rodovia e
faixas adjacentes que a acompanham de fora a fora, foi sendo esmiuçada com o olhar do
seu potencial turístico. Um processo violento. Das quarenta e seis ocorrências em
processos, registros de queixas e registros em estudos das ações violentas contra
trabalhadores rurais em Paraty, entre as década de 1970, principalmente, e 1980, trinta e
dois casos têm indicação de ponto de conflito sendo a construção e a instalação da rodovia
BR-10185 no trecho Rio-Santos em Paraty (CPDA, 2015). As ocorrências registradas são
a destruição de casas, de lavouras, de cercas, de máquina de fazer farinha; por vezes uma
combinação desses itens destruídos para uma mesma família.

Os autores, quando identificados, são o Departamento Nacional de Estradas


de Rodagem ― DNER, a empresa Camargo Corrêa a mando do DNER, as empresas C.
R. Almeida e White Martins S.A. e grileiros. Quando os autores foram anotados como
“jagunços” ou “jagunços a mando de Gibrail Nubriniano”, os mesmos crimes tem outros
pontos de conflitos: o local Trindade, a Fazenda Laranjeiras, a Praia do Sono, a Fazenda
Santa Maria, a Ponta Negra (CPDA, 2015, pp. 919-924). O relatório é extenso e abrange
a repressão da organização dos trabalhadores no campo também em Itaboraí, Silva
Jardim, Paracambi, Araruama, Cabo Frio, Angra dos Reis e outras cidades do Estado do
Rio de Janeiro naquele período militar. Aqui, circunscrevi os fatos relacionados a Paraty.

84 Por conta de não ter contratos de fornecimento de cana suficiente para a moagem diária de 150
mil quilos por pelo menos 100 dias ao ano ou 15 mil toneladas por safra, conforme o Decreto nº 10.290, de
3 de agosto de 1889.
85 A BR-101 também fazia parte da viabilização do programa nuclear brasileiro. Era necessário
cumprir acordos com a Alemanha no sentido de facilitar acesso ao polo tecnológico em Angra dos Reis e
a saída da população no caso de acidente nuclear. Angra I começou a ser construída em 1972 e entregue
em 1985 (NOGUEIRA, 2011, p. 33 e 37).

178
Figura 8 – Estrada de automóveis (RJ-165 ou BR-549) ao lado do
Caminho Velho do Ouro, Caminho de Cunha-Paraty, com destaque
para o Registro do Ouro

Os estudos de viabilidade para a construção de uma rodovia que ligasse as


cidades do Rio de Janeiro e de Santos começaram em 1968. As obras de instalação da
rodovia causaram impactos de certo irreversíveis: o traçado do eixo da rodovia entre o
litoral e a Serra do Mar formou um dique para a água que vinda da serra, a vegetação
nativa apodreceu86; no trecho entre Paraty e Angra dos Reis os cortes dos morros foram
feitos com brutalidade, conforme reproduz Priscila Siqueira (SIQUEIRA, 1989) a
comoção do paisagista Burle Max, o qual encaminhou um documento ao Conselho

86 Observação feita por Nelson Cembranelli, engenheiro agrônomo da base do Instituto


Agronômico de campinas—IAC no Vale do Paraíba, e que alertou o risco de rompimento dos diques com
danos à população; o mesmo problema seria identificado, mais tarde, em 1980, no trecho Bertioga-São
Sebastião da rodovia no estado de São Paulo (SIQUEIRA, 1989, p. 63).

179
Nacional de Cultura relatando o que anotara e considerara assombroso 87. Das 250 praias
listadas no projeto da Rodovia Rio-Santos na década de 1970, 70 praias foram aterradas
com os bota-foras aparados dos morros da Serra do Mar e ao impacto das obras de
instalação secundaram os efeitos da especulação imobiliária e do turismo (SIQUEIRA,
1989, p. 63). Em um mesmo processo dava-se/criava-se a oportunidade de integrar
objetivos: a consolidação das ações capitalistas com as empresas multinacionais e a
desorganização das organizações de esquerda no campo coordenadas pelo governo em
investidas sob projetos de turismo.

A Embratur foi criada em 1960 e em 1970 elaborou o Plano de


Aproveitamento Turístico, chamado Projeto Turis, para abarcar todo o litoral flumiense,
um dos efeitos foi a construção da rodovia Rio-Santos. O projeto tinha por referência os
desenvolvimentos turísticos na Europa ― Côte d’Aquitaine, Côte d’Azur e Languedoc-
Rousillon ―, custou trezentos mil dólares e foi deixado para trás pela Embratur dois anos
depois de finalizado o Projeto Turis, pois as obras da rodovia não esperaram haviam
esperado a conclusão daquele projeto e as intervenções perderam uma lógica, abrindo
espaço, daí para diante, a um turismo espontâneo e sem planejamento; a rodovia Rio-
Santos é instalada e começa a operar em meio a municípios com instrumentos normativos
que fazem pouca frente para lidar com o empreendimento da rodovia e com a ocupação
e uso do solo (CPDA, 2015, p. 299; SIQUEIRA, 1989, p. 63). Nesse meio tempo, Paraty
que havia sido decretada com a prioridade para ocupação em vista do Plano de Reforma
Agrária é, a partir do Decreto nº 71.791, de 31 de janeiro de 1973, considerada área
prioritária para o desenvolvimento turístico, ocasião em que o Instituto Brasileiro de
Desenvolvimento Florestal―IBDF88 passa a atuas na região às voltas com o patrimônio
ambiental do litoral fluminense (CPDA, 2015, pp. 299, 300). Foram comunidades
tradicionais ― que não tinham esse nome à época ―, trabalhadores rurais os despojados
e despejados do seu território, do seu trabalho, da sua moradia.

87 Em relatório de cunho de denúncia das agressões ao meio ambiente, encaminhado ao então


Conselho Federal de Cultura em 1973 (SIQUEIRA, 1989, p. 63).
88 O IBDF é uma entidade autárquica, criada pelo decreto nº 289, de 28/02/1967, sob a
administração do Ministério da Agricultura. O órgão foi destinado a formular a política florestal e a orientar,
coordenar e executar medidas relacionadas à utilização, proteção e conservação dos recursos naturais
renováveis e do desenvolvimento florestal do país. Depois, em 1989, se tornará o IBAMA e parte da sua
estrutura, em 2007, será o ICMBio.

180
4.3. Oportunidade

A fim de concluir este capítulo, quero introduzir a ideia de oportunidade no


sentido de que algumas coisas dadas em um contexto administrativo são resolvidas em
outro por parte do Estado. Antes será necessário, retomar os episódios da herança negada
que resultou em outra capitania hereditária e as distorções dos mapas, para encerrá-las
aqui e fechar alguma noção acerca de território pontual e território vetorial para dar os
exemplos de oportunidade e para seguirmos adiante com territórios.

Abordei, acima, a sobreposição administrativa, no episódio de Vimieiro, entre


a capitanias de São Vicente e de Itanhaém se dava em vilas, pontos, sendo que do total
de vilas por São Vicente ― três delas pertenciam a ambas jurisdições: Guaratinguetá,
Iguape e Paraty. Há a possibilidade de existirem territórios contínuos e concisos tanto
para uma capitania quanto para outra nos atos administrativos e no papel. As técnicas e
os conhecimentos para o estabelecimento da linha do Tratado de Tordesilhas eram
conhecidos a partir da navegação e também conhecidas suas variações, cotejáveis e
verificáveis pelo conhecimento empírico que lidava com aquelas variações. A
manipulação do conhecimento e das suas zonas de possibilidades por parte de Portugal,
aliadas ao desconhecimento da Espanha, favoreceram o estabelecimento do traçado em
algumas ocasiões, inclusive depois de ter avançado para uma direção revê-la recuando
porque o interesse já era outro. Depois, foi abordado o jogo entre carta e espaço físico,
com as distorções no Mapa das Cortes. Temos, portanto, nesses três episódios, exemplos
de territórios administrativos que são móveis tanto quanto aos limites quanto ao seu
conteúdo sempre tendo por base um território real.

A materialidade dos caminhos, na sua abertura e implantação, demandava,


além de técnica, “um grande conhecimento empírico do meio natural”, fosse por
expedições previamente enviada ou por repisar os caminhos já indicados por indígenas
ou pelos primeiros moradores luso-brasileiros (STRAFORINI, 2006, p. 7).

Os caminhos podem definir um território como alguns de seus limites como


uma referência em lugar de uma cerca, um muro ou uma vala. O Território Quilombola
do Cangume, em Itaóca, no Estado de São Paulo, descrito por José Maurício Arruti (2003)
não possui cercas ou outros limites e é delimitado pelo uso dos caminhos e de uma forma
peculiar, por meio da ronçança. A roçança, conforme explica ou autor, se refere à
limpeza dos caminhos entre os bairros, dentre os quais um é quilombola, e a comunidade

181
procede à limpeza até os limites do seu bairro nesses caminhos, atitude que Arruti
sublinha como uma confirmação periódica dos limites da comunidade de Cangume
(ARRUTI, 2003, p. 95 e 97). Uma atitude necessária para interromper qualquer
contiguidade. O lugar incógnito, amedrontador pode ser atravessado por um caminho
conhecido mesmo que visíveis em rotas apenas, como o mar (CORBIN, 1989). Ou um
caminho é feito, enfim, para uma montanha indecifrável (TUAN, [1974] 1980, pp. 83-
84). Os territórios do turismo de que fala Cruz (CRUZ, 2000) parecem ser sem caminho,
eles existem no deslocamento de quem chega ao lugar planejado. O caminho, aqui, é a
ideia de deslocamento e ele existirá uma vez que se esteja no lugar de destino ou dele se
retorne.

Uma característica, portanto, dos caminhos é a sua imagem de ligação ―


além de ser uma linha e contar ao menos dois pontos, pois isto é dado ―, de continuidade;
o percurso alinha coisas sob um mesmo propósito e nisso poderá uniformizar tais coisas,
lugares como as avenidas em Yi-Fu Tuan, que abertas pelo objetivo do tráfego também
vão “igualar a grandeza dos seus monumentos” (TUAN, [1974] 1980, p. 208). Minha
sugestão é a de que os caminhos do Ouro, em Paraty, o Caminho Novo, na Serra dos
Órgãos, o Caminho-Marítimo Terrestre, da Piedade e a Estrada de Ferro Dom Pedro II,
que também serviram de motes para a pequena visada da economia e histórias da região,
que apresentei acima, inseridas em programas mais amplos de governo ao longo do
tempo, sejam tomados na perspectiva da ligação, continuidade e contiguidade entre
lugares e territórios. No caso de Paraty e dos portos é possível olhá-los da perspectiva
econômica que esbocei neste capítulo como um mesmo mundo apenas descontinuado
fisicamente pela barreira física da Serra do Mar, pois todos os caminhos se relacionam
com as porções cima-baixo ― ou o contrário, tanto faz ― conectando esses espaços
contíguos, como setores dos mesmos movimentos econômicos e de projetos de governo,
se tomados por essa perspectiva. Mesmo a BR-101, em certa medida, por ser lida como
cima-baixo quanto à circulação turística ou caminho de uma segunda moradia de quem
não vive ao lado dela na parte baixa do relevo; nesse aspecto, profundamente ligada à
parte de cima. Porções diferentes e ligadas por caminhos, cuja tendência, por causa da
ligação, é a uniformização de aspectos na sua apreensão.

A oportunidade se refere à capacidade de reler e reinterpretar situações


complexas e que envolvem diversos sujeitos com seus poderes em assuntos administrados
e de responsabilidade do Estado.

182
No episódio da trama para a perda da herança da Capitania de São Vicente há
um exemplo de como uma situação de injustiça foi revertida de forma criativa respaldada
pelo conhecimento da administradora do quanto abrangia em terra sua administração, não
resolvendo a injustiça. As mudanças de posição do traçado do tratado de Tordesilhas se
deveram à manipulação dos resultados baseados em vagas científicas, era tudo verdade;
mas, verdades que variavam conforme a maneira de obtenção dos dados e dos cálculos,
essa variância sendo ajustadas a interesses e conveniências políticas enquanto, por terra,
a ocupação portuguesa avançava para além de todas as posições do traçado viáveis a partir
dos cálculos possíveis. Grande desconcerto diplomático se deu quando foram
desvendadas tais variações propositais e relatadas na Dissertação Guillaume Delisle89
(1720), quem refez os cálculos e expôs a extralimitação portuguesa em domínios
espanhóis e, também anotadas no mapa publicado por Charles Marie de La Condamine,
quem viajou à região amazônica90 e constatou a invasão portuguesa em domínios
amazônicos de Castela e da França (CINTRA, 2012, pp. 428-429; RODRIGUES, 2013).
O exemplo que quero ressaltar aqui nos episódios político-cartográficos, é como o
governo português se comportou e não as suas habilidades cartográficas: reconheceu a
ocupação indevida e um outro mapa foi feito, o Mapa das Cortes, de 1749, este
novamente distorcido, dessa vez na ilusão dos deslocamentos dos topônimos. Tal mapa
distorcido em favor de Portugal serviu como base para o Tratado de Madri de 1750. Outro
exemplo, que também se refere a ocasiões oportunas na manutenção de poder ― no
aspecto da manutenção de domínios ― tem na obrigação do governo em ligar regiões,
abrir caminhos e mantê-los. Nos caminhos exemplificados aqui, havia a necessidade de
que fossem abertos e que se multiplicassem em rede, nisso havia caminhos que
conectavam outros caminhos e não propriamente lugares. Além de serem vetores de
ocupação, carreavam riquezas levando minérios, notícias para a parte baixa litorânea nos
centro administrativos e voltando com víveres, outros alimentos e produtos e notícias.
Serviam de controle com postos instalados nas passagens e, em alguns caminhos, se
cobrava pelo seu uso. Uma expressão de controle não apenas dos caminhos como dos
lugares. Há, no entanto, uma distinção a ser feita entre o aproveitamento oportuno de
ocasiões com a oportunidade em situações complexas em que o Estado é compelido a se
manifestar.

89 Ou De L’Isle.
90 Do Peru à foz do Amazonas, 1735 a 1744.

183
O exemplo para esta situação diferenciada das demais vem dos elementos,
mais atrás mencionados, do desejo do Estado na consolidação das ações capitalistas com
as empresas multinacionais, na desorganização das organizações de esquerda no campo
e no investimento em projetos de turismo. Cada um desses elementos poderiam resultar
em análises específicas no contrafundo de políticas e ideologia de governo e a presença
de sujeitos; tomá-los no seu conjunto nos permite ver como o governo resolve, se
manifesta e realiza seus projetos ao mexer em um ou alguns dos elementos de uma
situação complexa para, indiretamente, mexer em outros. No caso do exemplo dado, o
governo usou do projeto de turismo em Paraty, dentro de um programa de turismo maior,
entre as décadas de 1960 e 1970 como legitimação da consolidação do capital com
multinacionais e nas tentativas de desmobilização da esquerda; a ação foi a construção da
BR-101 naquele trecho entre o Rio de Janeiro e Santos, cujas obras, por si, já deslocariam
trabalhadores rurais e, se quisermos, pode se ter servido da fala popular do suposto
isolamento da cidade de Paraty e, ainda, cumpriria obrigações para com a instalação da
usina nuclear em Angra dos Reis quanto ao acesso facilitado à área, se partindo do Rio
de Janeiro ou de São Paulo, dois polos desenvolvidos no País, além da rodovia servir de
via rápida para evasão em caso de acidente.

Jean Gottmann usa o termo “oportunidade” como um senso, uma metafísica


que resulta na busca humana de maiores oportunidades para além da satisfação das
“necessidades básicas da vida, além dos recursos do status quo” básicas que um
território original, uma aldeia ou vila, pudesse oferecer, segundo o autor (GOTTMANN,
1973, p. 8 e 19); e a partir daí ele desenha a saída dessa originalidade por meio das
relações comerciais, guerras ou paz. Não é neste sentido que usarei a oportunidade aqui
e os territórios são mais reais que em Gottmann. A oportunidade está na capacidade ―
do Estado por meio dos administradores ― de identificar elementos que possam ser
sinérgicos e de conjugá-los em benefício mútuo. Retomaremos a oportunidade mais
adiante em ao menos um exemplo de como o Estado se comporta na constituição de
territórios administrativos e como trata as comunidades e os seus territórios tradicionais
em situação de sobreposições com unidades de conservação, com diversos elementos
sinérgicos, dentre eles a obrigação do Estado em garantir direitos das comunidades.

184
5. Sobreposições em Paraty

Povos Indígenas e Remanescentes das Comunidades dos Quilombos contam


com previsão na Constituição Federal para a regularização de seus territórios,
respetivamente no Artigo 231 e no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias—
ADCT nº 68. As Comunidades Caiçaras não têm previsão legal do reconhecimento de
seus territórios na Constituição Federal. Em Paraty, são dezoito comunidades
tradicionais91 somadas a seis Terras Indígenas e a dois Territórios Quilombolas em 2018.

No capítulo 3 foi abordada a constituição das categorias de unidades de


conservação, uma tipologia de áreas protegidas. Neste capítulo o objetivo é o de mostrar
tais categorias na prática, em Paraty, na situação de sobreposição entre territórios
tradicionais e unidades de conservação e entre as próprias unidades de conservação, ou
áreas protegidas. A finalidade é a de remarcar que existem territórios tradicionais, cujas
interferências dos territórios institucionais podem ser desastrosas à manutenção e aos
destinos daqueles territórios e das comunidades que os constituem.

5.1. Territórios de comunidades

As comunidades conhecidas na atualidade e que vivem em Paraty, no Estado


do Rio de Janeiro, são os povos indígenas, os quilombolas e as comunidades caiçaras.
Passo a falar sobre seus territórios e sobre elas.

5.1.1. Territórios Quilombolas

Há territórios quilombolas que têm seu processo de reconhecimento por parte


do Estado junto à instituição federal, no caso o Instituto nacional de Colonização e
Reforma Agrária ― Incra e há os aqueles em que o processo se passa no nível dos estados,
atuando os institutos de terras estaduais, principalmente, com a atribuição de
regularização fundiária. A diferença onde o processo administrativo se dará é a

91 Números tomados das comunidades com representação no Fórum de Comunidades


Tradicionais de Paraty, Angra dos Reis e Ubatuba ― FCT, em 2018 e há os 39 núcleos habitacionais
indicados na Portaria/Iphan nº 402/2012, de tombamento do Sítio de Paraty, que inclui as comunidades
representadas no FCT, um indicativo de que o número de 18 pode ser maior.

185
dominialidade das terras, se estaduais ou se da União; havendo títulos particulares
incidentes, os proprietários serão citados, há um período para que possam contestar.

São 1.742 processos de regularização fundiária de territórios quilombolas


abertos na instância federal, número que será maior com os processos abertos nos estados
e acrescidos de quilombos que não têm processo de regularização fundiária aberto.

Gráfico 1 ― Processos de regularização fundiária de territórios


quilombolas em várias fases abertos no Incra

Territórios Quilombolas - processos de


regularização fundiária abertos no INCRA
(dados INCRA, 2019 - organizados por Leslye Ursini)

Brasil 1.747
NORDESTE 1.005
SUDESTE 331
SUL 151
NORTE 142
CENTO-OESTE 118
Estado do Rio de Janeiro 27
Paraty 2

Os territórios quilombolas conhecidos no Município de Paraty são Cabral e


Campinho da Independência. Há uma comunidade desaparecida, de nome Güiti92, que era
existiu entre as comunidades de Cabral e de Campinho. No Relatório Antropológico para
a identificação e delimitação do Território Quilombola de Cabral apresentado ao Incra
(ARRUTI, 2007), José Maurício Arruti fala que a comunidade de Güiti, mesmo não
existindo mais naquele lugar, reforça a “existência de território contínuo” de comunidades
negras rurais e quilombolas no sertão de Paraty, se estendendo até Caçandoca, ao sul, por
meio da mesma redes de parentesco e de trocas.

O Território Quilombola de Cabral está em processo de regularização


fundiária há 12 anos, aguardando neste momento o Incra proceder a desintrusão de um
ocupante não quilombola para a finalização do processo. O Território Quilombola de
Campinho da Independência tem seu processo de regularização fundiária concluído pelo

92 Encontrei, também, o topônimo Güiti em local mais afastado, na região do sertão do Taquari
ao norte da cidade de Paraty, apenas indicado em mapas antigos e sem outras referências. Fica a indicação
para pesquisas ocupadas na identificação de novos territórios; com a possibilidade de formação de
topônimos quando alguém ou um grupo de dado lugar é designado pelo nome do lugar ou de família com
quem se relaciona e que é de outro lugar; também, em casos de mudança de uma pessoa, família ou grupo
de um lugar para o outro por vezes carregam o nome do lugar antigo ou, se o nome for do grupo, o próprio
pelo qual o grupo é conhecido passa a referenciar o lugar.

186
Estado do Rio de Janeiro, foi titulado em 21 de março de 1999, e sua área totaliza 287,94
hectares e atualmente abriga cerca de 120 famílias. A referida área foi desmembrada da
área total da Fazenda Paraty-Mirim e transferida para a Associação de Moradores do
Campinho em 23 de março de 1999 e o registro em cartório aconteceu em 2010. Ainda
em fase de regularização fundiária, Território Quilombola Cabral os limites já estão
decretados, faltando a consecução do processo de titulação registro da matrícula do
imóvel em cartório em nome de associação quilombola. Ambos os dois quilombos são
próximos e quase conectados seus limites institucionais.

A comunidade do Território Quilombola de Cabral, em Paraty-Mirim,


apresenta uma territorialização que construiu a partir da história de herdeiros (quer de
familiares, quer de antigos senhores), no que se refere à origem da sua permanência
naquele territórios, e com um dinâmica da partição em três domínios familiares que
respondem aos laços de parentesco na foram das heranças: são Lucas, Cabral e Alves;
que são respectivamente, patrônimo, topônimo e sobrenome senhorial, conforme o
Relatório da Comunidade de Cabral93 que, projetadas no mesmo território, também,
correspondem a três nucleações contíguas às quais José Maurício Arruti chamou por
socioterritoriais (ARRUTI, 2007, p. 22).

Em entrevista ao senhor Domingos Ramos dos Santos94, 77 anos, da parte dos


herdeiros de Benedito Lucas, apresentou de forma arrematada nucleações
socioterritoriais:

Cabral é Cabral, Lucas é Lucas e Alves é Alves. Todo mundo se respeita.


(sr. Domingos Ramos dos Santos, TQ Cabral)

Ajudante de manutenção em um sítio particular de mais de cinquenta mil


metros quadrados da empresa PHG, em Paraty, onde “só tem terá e mato”, informou o
senhor Domingos que trabalha fora do quilombo, o que se passa à maioria das mulheres
ali: “trabalham para fora”; e que, no quilombo, com o cultivo, trabalham apenas ele e o
Jorge, este de outra nucleação socioterritorial; também faz farinha. A demora na titulação

93
Cedido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária—INCRA, da
Superintendência Regional do Rio de Janeiro, em 10/01/2018; elaborado por José Maurício Arruti,
2007.
94
Em 26 de julho de 2017, na casa do senhor Domingos, no Quilombo Cabral, Paraty-
Mirim, distrito de Paraty, Rio de Janeiro.
187
do Território Quilombola tem, na avaliação do senhor Domingos, tem desanimado os
investimentos de parte das pessoas na comunidade em projeções futuras para o território.

O processo de regularização do Quilombo Cabral se deu a partir das


indicações de lideranças do Quilombo Campinho da Independência para os
levantamentos de José Maurício Arruti, em 1999 e, a partir daí, pela experiência de
Campinho na regularização, informou o sr. Domingos95. Os dois quilombos são
próximos, respectivamente: em um afluente esquerdo do Rio dos Meros e ao longo do
Rio Paraty-Mirim.

Observe-se que os territórios de ocupação das comunidades em suas relações


são mais amplos e que não são homogêneos, sempre indicados por uma exterioridade:
sejam os vizinhos, o trabalho “fora” do território e outros marcadores que materializam o
marcador étnico. Dito de outra forma, um território se constitui, também, pela sua
exterioridade. Cabe observar que a exterioridade não é a mesma de que fala Raffestin e
que, nisso mesmo nos ajuda a pensá-la. Claude Raffestin indica uma interioridade que
tende à exterioridade por meio da linguagem marcada por relações de poder; interioridade
se refere a um grupo que pode ou não ter relações com a exterioridade (RAFFESTIN,
[1980] 1993, pp. 100-102), esta seria o que podemos chamar, de forma ampla, por
sociedade envolvente. Nos fenômenos dos territórios tradicionais no Brasil, nas
experiências particulares e, sob outros aspectos próximas/similares das suas formas de
territorializações — o que nos permitem adjetivá-los como “tradicionais” — não há
tendência à exterioridade no sentido de Raffestin. Há, antes, uma exterioridade que a
antropologia tem tratado na linha limítrofe como fronteira étnica, no sentido de fricção
de Roberto Cardoso de Oliveira, em que a tendência — para indicar uma e de forma
resumida, aqui — é um processo de recrudescimento, reavivamento étnico em face da
exterioridade (CUNHA, 1986).

5.1.2. Comunidades Caiçaras

A Lei Estadual nº 2.393, de 20 de abril de 1995, autoriza o Estado do Rio de


Janeiro a assegurar às “populações nativas”, residentes há mais de cinquenta anos em

95
Em entrevista e, também, consta no Relatório Antropológico da Comunidade Cabral
(ARRUTI, 2007, pp. 43, 50)
188
unidades de conservação do Estado do Rio de Janeiro, o direito real de uso dos seus
territórios, sendo que esta concessão é inegociável por prazo indeterminado e pode apenas
ser transferida aos seus descendentes diretos. A concessão se dará “desde que dependam,
para sua subsistência, direta e prioritariamente dos ecossistemas locais, preservados, os
atributos essenciais de tais ecossistemas” (art. 1º caput, Lei nº 2.393, 10/04/1995), e
“como contrapartida deste direito”, prevista no parágrafo primeiro do mesmo artigo
primeiro, “as populações beneficiadas por esta Lei ficam obrigadas a participar da
preservação, recuperação, defesa e manutenção das unidades de conservação”. Há de se
perguntar onde estaria a contrapartida da unidade de conservação pelo território
preservado sobre o qual se instalou, como espaço reservado pela ocupação e usos das
populações e defendido, por vezes, com as atitudes diárias e não raro com a vida de alguns
contra invasores. A Lei Estadual 3.192, de 15 de março de 1999, do Estado do Rio de
Janeiro, assegura o direito dos pescadores artesanais às terras que ocupam por meio de
concessão do direito real de uso a pescadores artesanais. Estes são definidos, pela lei,
tendo a pesca como o principal meio de subsistência e barcos de comprimento igual ou
menos que oito metros. A referida lei fala em “terras” ocupadas, não em o território, o
direito sucede na família, e não no grupo e, uma vez tituladas, serão incluídas como áreas
de preservação para efeitos de compensação financeira para os municípios. Nesse aspecto
está dado que há alguma resistência nos municípios. Ambas as leis não enfatizam os
aspectos da territorialidade das populações, senão a sua inserção em outros contextos, nas
unidades de conservação e nos municípios. Uma desterritorialização, portanto, quanto a
novos termos e contextos, se vi tecendo a cada letra da Lei, mesmo quando, no caso,
assegura direitos.

A especulação imobiliária a partir da década de 1970, com a abertura da


Rodovia BR-101, em 1974, territórios de Comunidades Caiçaras foram secionados e
comunidades se mudaram para outras partes ou se perderam. Antes disso, ao menos na
década de 1960. Paraty já era um destino de turistas (PRIESTER, 2015, p. 134) que, além
de frequentadores por períodos, há aqueles que têm uma segunda moradia. A Praia de
Trindade, com a instalação do condomínio Laranjeiras é emblemática das pressões aos
comunitários. São atribuídos a homens a serviço da Agencia de Desarollo de América
Latina — ADELA incêndios criminosos em casas de caiçaras da Comunidade de
Trindade e estupros contra professoras que insistiram em lecionar na comunidade
(SIQUEIRA, 1989, p. 64). Uma liminar teria sido concedida em favor da permanência da

189
Comunidade de Trindade e não foi respeitada pelo Juiz de Direito de Paraty. Os
funcionários do Fórum de Paraty reconhecem que “se todos os títulos de terra do
município fossem verdadeiros, este teria três andares...” (SIQUEIRA, 1989, p. 64); com
essa afirmação, reconhecem, também, as possibilidades de títulos falsos naquele
município. Atualmente, o acesso à Praia do Sono, na Juatinga é possível por mar ou
passando pelo interior de do Condomínio Laranjeiras, onde há uma van disponibilizada
para apanhar as pessoas do lado de fora do Condomínio e transpô-las para o outro lado.

A vida ligada às costeiras e um universo de saberes que ligam esses dois


espaços, o mar e a terra, lhes compõem as características do modo e do compasso de
viver. Gioconda Mussolini ressalta as relações de compadrio, as novenas e a economia de
subsistência, uma “economia de retaguarda”, expressão que toma por empréstimo de
Roberto Simonsen, que se deu paralelamente aos grandes ciclos econômicos
(MUSSOLINI, 1980, p. 222). Na leitura que Mariana Mendonça faz de Carlos Diegues
(2004)96, diz que migrar das áreas costeiras para centros urbanizados — em busca de
outros trabalhos — e retornar às regiões de origem sempre fizeram parte da dinâmica
caiçara, até que as primeiras unidades de conservação e a abertura de grandes rodovias
sumiram com tais locais ou inviabilizaram o retorno a eles (MENDONÇA, 2009).
Mecanismo semelhante de desterritorialização pude observar em Minas Gerais, no
Quilombo Machadinho, em Paracatu. Em pesquisa, entre os anos de 2007 e 200897, as
dificuldades de acesso ao território pelo grupo, formado por três famílias, em um passado
próximo, se deu no momento em que a terra passou a ter valor de troca; antes, cercavam
as roças e os animais era soltos e cada qual sabia qual eram os seus bem como os limites
da sua parte da “casa”, até o pé de um morro ou à margem de um córrego. A venda do
uso de um pasto, de uma aguada para dessedentação animal, ou da área de um roçado era
feita a pessoas do próprio grupo, como uma forma de se levantar recursos por meio de
uma cessão temporária, parcelas territoriais que eram compradas novamente por aquele
que vendera:

96 A referência feita por Mariana Mendonça é: Carlos Diegues, A Mudança como modelo cultural
o caso da cultura caiçara e a urbanização; Enciclopédia Caiçara – .1; Hucitec/NUPAUB/USP, 2004.
97 Com servidora efetiva do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária—Incra, no
Departamento de Regularização Fundiária de Territórios Quilombolas — Diretoria de Ordenamento
Fundiário, a mesma que se ocupa dos Assentamentos da Reforma Agrária. A pesquisa se alongou porque o
Incra enviava as equipes a campo por períodos de 15 dias, era possível ampliá-los com alguma justificativa
mais contundente, aos olhos da instituição, para a permanência além da que os desenvolvimentos da
interação pesquisador e pesquisado para que nesse contato etnográfico o trabalhado pudesse deslanchar. O
que mais se passava era voltar a campo e começar praticamente do ponto de interação inicial, a cada vez.

190
O que observamos é que esse “ciclo” de vender esse uso, comprar,
vender, e comprar novamente em dado momento não se perdurou,
cujo resultado, pela interrupção desse ciclo, foi a perda de parcelas do
território para terceiros e a impossibilidade de manter-se ligado àquela
porção do território e de voltar para ela. (URSINI, 2008, p. 120)

Na interceptação por terceiros externos ao grupo desse ciclo entre a cidade e


a roça, há a possibilidade de membros do grupo terem atuado de forma dissonante ao
grupo, e com má fé:

A noção que perpassa as três famílias, além do ânimo de donos, é a da


imprescritibilidade dos direitos das gerações seguintes a despeito das
atitudes isoladas (de cunho não-coletivo) de membros da comunidade
no passado, fosse por vontade destes ou porque foram enganados
(como muitas vezes afirmam), ou ainda se alguns membros usaram a
desculpa do engano para se beneficiarem isoladamente em detrimento
do grupo. Nesse processo viram parcelas do território sendo cercadas
e “invadidas” — termo este usado pela comunidade — por pessoas
externas à comunidade e que, por sua vez, foram repassando a outros
externos à comunidade (e que, sequencialmente, vão lucrando com a
venda dessas partes ou usufruindo de recursos naturais ou ainda com
empreendimentos acerca dos recursos como a exploração do cascalho
retirado de cascalheiras instaladas em partes do território e a
mineração industrial de ouro. (URSINI, 2008, p. 120)

De uma forma ampla e genérica, a desterritorialização ocorre não apenas com


remoção — que seria o exemplo acabado da desterritorialização — ou impedimentos de
acesso ao território e aos atributos identitários nele encontráveis; a desterritorialização se
dá, também, também, com a mudança de status do território que se ocupa ou que se tem
em vista, do nome do lugar, como despiste para aquele que retornar ao lugar; e da
destinação de uso do território de uma comunidade quando esse processo não foi
encabeçado por ela.

5.1.3. Terras Indígenas

No Brasil, segundo os dados do censo do IBGE de 2010, a população indígena


era de 817.963 mil são indígenas em 305 diferentes etnias, com 274 línguas indígenas
faladas. Dados da população indígena desde a vinda de imigrantes e colonizadores em
1500 mostram o decréscimo populacional, como segue:
191
Tabela 7 – Dados populacionais indígenas de 1500 a 2010 (Funai,
2019)

Podemos notar a curva ascendente da década de 1980 para diante,


provavelmente pelos movimentos de valorização étnica indígena e o reconhecimento dos
direitos reforçados pelo reconhecimento ao território na Constituição de 1988, com ela os
direitos originários, sendo a terra indígena da União, com concessão de uso especial aos
indígenas. As terras indígenas de processos de regularização fundiária decorrentes do
dispositivo constitucional são 567. Em 2019, em diversas etapas de regularização, tem-
se:

Gráfico 2 ― Número de Terras Indígenas e fases do processo de


regularização fundiária (Funai, 2019)

Terras Indígenas - segundo etapas do


processo de regularização Fundiária
(dados Funai, 2019; organizados por Leslye Ursini)

Total 567
Regularizadas 440
Homologadas 9
Declaradas 75
Delimitadas 43

Na categoria “em estudo” são 116 terras indígenas em 2019. Há as Reservas


Indígenas, que são áreas estabelecidas pela União adquiridas por meio de compra direta,
desapropriação ou doação e destinação à posse e à ocupação pelos povos indígenas. Na
atualidade são 52 Reservas Indígenas, das quais 13 se encontram em processo de
encaminhamento no processo de aquisição.

192
As terras indígenas conhecidas no Município de Paraty são seis, sendo que
uma delas é reivindicada por indígenas Pataxó e Guarani, juntos.

Tabela 8 - Terras Indígenas e Territórios Quilombolas em Paraty,


Brasil

TERRA SUPERFÍCIE FASE DO


ETNIA UF MUNICÍPIO MODALIDADE
INDÍGENA (ha) PROCEDIMENTO

ainda não Tradicionalmente


Araponga Guarani RJ Paraty Em Estudo
conhecida ocupada

DADOS FUNAI, fev/2018


Guarani Tradicionalmente
Guarani RJ Paraty 213,2033 Regularizada
Araponga ocupada
Tradicionalmente
Arabdu-Mirim Guarani RJ Paraty 0 Em Estudo
ocupada
Tradicionalmente
Paraty-Mirim Guarani RJ Paraty 79,1997 Regularizada
ocupada
Tekoha Jevy Tradicionalmente
Guarani RJ Paraty 2.370 Delimitada
(Rio Pequeno) ocupada
DADOS DA PESQUISADORA - Aldeia
Kaña Pataxi Pataxó e ainda não
RJ Paraty ocupada visitada por Leslye Ursini
Witanara Guarani conhecida
em 07/08/2017

Ao todo, no Estado do Rio de Janeiro conhecidas são treze Terras Indígenas,


das quais seis estão no Município de Paraty; duas, Sapukai e Guarani de Bracuí, em Angra
dos Reis98; e mais seis anotadas no Sítio da organização não governamental Comissão
Pró-Índio—CPISP: uma em Petrópolis; uma na cidade do Rio de Janeiro; duas em
Niterói, sendo uma delas a Terra Indígena Camboinhas ou Tekoha Itarypu; e outras duas
em Cabo Frio, em que uma delas tem o nome de Terra Indígena Cabo Frio99. Há a
reivindicação da Terra Indígena Arandu, localizada nas proximidades de Paraty-Mirim.

A Terra Indígena Kaña Pataxi Witanara, uma dentre as treze Terra Indígena
contabilizadas para o Estado do Rio de Janeiro, não consta estar em estudo pela Funai ou
anotada no Sítio da CPISP, eu soube dela conversando com indígenas guarani no Centro
Histórico de Paraty em meio à retirada de vendedores de artesanato daquelas ruas por
parte do poder público municipal, durante a Feira Literária Internacional de Paraty—
FLIP/2017 e fui visitá-los em sua aldeia. A presença Pataxó Hã-hã-Hãe, em Paraty, é
explanada pelo próprio Apohinã, quem entrevistei, em 7 agosto de 2017, na aldeia do
território Kaña Pataxi Witanara, ao norte da cidade de Paraty. Ele e seus familiares

98 Nas informações publicadas da Funai constam cinco Terras Indígenas, sendo uma em Angra
dos Reis; Sítio da Fundação Nacional do Índio – Funai, em fevereiro de 2018:
http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/terras-indigenas.
99 Sítio da Comissão Pró-Índio—CPISP, em fevereiro de 2018:
http://www.cpisp.org.br/indios/html/uf.aspx?ID=RJ.

193
deixaram a Terra Indígena Caramuru-Paraguassu em Pau Brasil, no Estado da Bahia entre
em 2004, foram para uma área em Angras dos Reis e depois para Paraty. A razão da saída
da Bahia foi a tristeza, segundo Apuhinã, por conta das mortes nos embates pela
regularização da Terra Indígena no Município de Pau Brasil que se arrastaram anos e
contam, ainda hoje, com investidas de proprietários ou posseiros não indígenas na região.
A Reserva Caramuru-Paraguassu, na Bahia, foi criada em 1926 pelo Serviço de Proteção
ao Índio—SPI100; a partir da década de 1930 os conflitos com ocupantes não indígenas
foram acirrados principalmente em porções da Reserva que haviam sido arrendadas pelo
próprio SPI (SOUZA, 2017). Apuhinã Pataxó, contou que no deslocamento, da Bahia
para onde vivem hoje, vieram descendo, segundo ele, pelo mesmo território Tupinambá,
seus ancestrais. As queixas locais quanto à morosidade no processo de regularização
indicaram alguma resistência por parte da administração da Funai local em tomar o pleito,
por considerar que Pataxó é territorializado na Bahia sendo que, há as relações de
convivência, de trocas e de percurso com os Guarani que vivem no lugar, e o órgão parece
ter preferido tomar o ponto em que no mapa da Funai não faria sentido, em lugar de tomar
a reivindicação onde ela faz, que é a presença Guarani.

Acerca dos deslocamentos dos Guarani (os maiores deslocamentos, por vasto
território e, também, a micromobilidade), a despeito dos seus segmentos étnicos inerentes
(Chiripa, Mbya, Nhandeva e Kaiowa)101, historicamente e espacialmente se dão em fluxos
em busca da Terra sem Males, e também, na visita a parentes onde se podem demorar
anos, indo e voltado, indo e ficando, percorrendo redes de parentesco. Tais “macro” ou
“micromobilidade” obedecem a rotas que não são aleatórias, como elucida Mendes
Júnior, o qual pesquisou entre os Mbya do litoral sul fluminense:

Esses deslocamentos das pessoas não obedecem a um único sentido:


elas tanto partem do interior para o litoral quanto o contrário também
é verdadeiro, ainda há muito de um desejo de se encontrar uma terra
boa para viver. É possível, no entanto que estes movimentos tenham
uma tendência a obedecer a certas rotas. Vê-se por exemplo no caso
de Araponga, que mantém um contato mais intenso com os estados de
Santa Catarina e Rio Grande do Sul. As pessoas de Parati-Mirim por sua
vez percorrem o oeste e sudoeste do Paraná. O mesmo se dá em

100 Órgão governamental criado em 1911 e que precedeu a Fundação Nacional do Índio – Funai.
101 Pertencem à família linguística Guarani e, além de diferenças sutis dentro do grupo Guarani,
são, também, dialetos (MARTINS, 2003, p. 25).

194
relação ao fluxo que essas aldeias estabelecem com diferentes aldeias
no Estado de São Paulo. (MENDES JÚNIOR, 2009, p. 34) (sublinhei)

Figura 9 ― Localização das Terras Indígenas em Paraty

A mobilidade dos Guarani e as relações de parentesco (há família Benites na


Terra Indígena Canelinha em Santa Catarina e a família Benite reocupou a Terra Indígena
Paraty-Mirim na década de 1990102) aliadas à sua mobilidade desenham uma tanto uma
“territorialização guarani” entre Brasil, Bolívia, Uruguai, Paraguai e Argentina quanto
uma retomada do território tradicional por meio de uma rede de lideranças fortes e grupos
de parentes. Dentre as pessoas que entrevistei em Santa Catarina para a elaboração do
Programa Básico Ambiental do Componente Indígena, em 2012, por conta do
empreendimento de duplicação da BR-280/SC, conheci o Sr. André Benites da Terra
Indígena Canelinha e ex-morador da Terra Indígena Cambirela/SC e com parentes em
São Paulo e no Rio de Janeiro.

5.2. Áreas Protegidas e Unidades de Conservação em Paraty

As Unidades de Conservação da Natureza, em Paraty, no Estado do Rio de


Janeiro, estão instituídas nas instâncias federal, estadual e municipal com sobreposições
entre seus territórios e, junto a isso, sobreposições de atribuições de órgãos e instâncias

102 Trata-se do Sr. Miguel Karai Tataxĩ Benite, que viveu na Aldeia Pinhal, na Terra Indígena
Rio das Cobras, no Estado do Paraná, e seguiu para Paraty-Mirim, segundo Mello Júnior, Maria Inês
Ladeira em sua Dissertação sublinhou a reocupação de Paraty-Mirim, nos anos 1980-1990 em lugar que na
década de 1940 havia sido uma aldeia importante por causa da força espiritual do líder naquela aldeia
(LADEIRA, 1992, p. 42 apud MELLO JÚNIOR, 2009, p. 25).

195
diferentes. O Bioma Mata Atlântica possui, atualmente, 135 Unidades de Conservação da
Natureza; dentre as quais quase 35% são unidades do grupo de proteção integral e as
demais do grupo de uso sustentável; neste último grupo, 63,6% são Reservas Particulares
do Patrimônio Natural—RPPNs.

Em Paraty, são seis Unidades de Conservação e duas áreas protegidas


ambientalmente que o Sistema Nacional de Unidades de Conservação — SNUC não
abrange.

Tabela 9 ― Tabela das Unidades de Conservação em Paraty, RJ (L. B


Ursini, 2019)
em Instância
Categori
UF Município PI/US relação adminis- Nome Sobreposição
a de UC
ao SNUC trativa

sem
INEA REEJ
categori- estadual
RJ Paraty classifica REE Reserva Ecológica da Juatinga 1.APA de Cairuçu-federal
zação no (RJ)
como PI (em recategorização)
SNUC

1. APA de Tamoios-estadual/RJ
ESEC Tamoios
Angra dos Reis, (sobreposição contida nas
RJ PI ESEC UC federal Estação Ecológica de Tamoios
Paraty partes insulares)
2. APA de Cairuçu-federal

APA de Cairuçu
Área de Proteção Ambiental de 1. PNSB-federal
RJ Paraty US APA UC federal Cairuçu 2. REEJ-estadual/RJ
3. AELPM-municipal/Paraty

RJ: Paraty e Angra


dos Reis 1.PESM- Pq. Estadual da Serra
PNSB
SP e SP: Cunha, Ubatuba, do Mar (Núcleos Stª Virgínia,
PI PARNA UC federal Parque Nacional da Serra da
RJ Arapeí, Areias, Pincinguaba e Cunha)-
Bocaina
Bananal, S. José do estadual/SP
Barreiro e Silveiras

AELPM
sem Área Estadual de Lazer de
categori- Paraty-Mirim (antigo Parque 1.PNSB-federal
RJ Paraty US AELPM municipal
zação no Ecológico de Paraty-Mirim)- 2.APA de Cairuçu-federal
SNUC parte em parte em
recategorização

APA da Baía de Paraty


Aréa de Proteção Ambiental
Municipal
RJ Paraty US APA UC municipal 1.APA de Cairuçu-federal
da Baía de
Paraty, Parati-Mirim e Saco do
Mamanguá

196
Passo a descrever brevemente cada uma dessas áreas protegidas
ambientalmente com ênfase nos seus atributos naturais indicados em seus respectivos
Planos de Manejo, estudos e divulgação, pelos órgãos ambientais por elas responsáveis.

5.2.1. Reserva Ecológica da Juatinga (em recategorização)


― estadual

Com o nome de “Reserva Ecológica de Juatinga”, o Decreto Estadual-RJ nº


17.981, de 30 de outubro de 1992, no governo de Leonel Brizola, cria a reserva em um
parágrafo sucinto com a justificativa da sua relevância e urgência:

(...) considerando ser impostergável preservar o sistema local,


composto por costões rochosos, remanescentes florestais de Mata
Atlântica, restinga e mangues que, em conjunto com o mar, ao fundo,
forma cenário de notável beleza, apresentando peculiaridades não
encontradas em outras regiões do estado. (Preâmbulo do Decreto
Estadual-RJ nº 17.981/1992)

A reserva como um todo é a área não edificante e o memorial descritivo


apresentado no decreto segue a geografia do local, cuja poligonal é formada por uma linha
seca, imaginária, que parte “do ponto conhecido como Cachoeira Cocal (no lado do Canto
Bravo da Praia do Sono)”, essa linha seca alcança de outro lado “o local conhecido como
Porto do Sono (ao fundo do Mamanguá); informando, ainda, que fica resguardada a faixa
de marinha, que por sua vez é, também, área não edificante. A área da REEJ ― ou “REJ”,
como é chamada ― é ocupada por comunidades caiçaras e suas nucleações de habitações
são interligadas por caminhos tanto terrestres quanto marítimos, cujo acesso é por trilha
a pé ou por mar. A “reserva ecológica” é uma categoria de área protegida que não existe
prevista no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC,
instituído em 2000, e está classificada pelo Instituto Estadual do Ambiente ― INEA como
uma unidade de conservação de proteção integral. As sobreposições, na atualidade são

197
entre a Área de Proteção Ambiental de Cairuçu, criada em 1983 e de administração
federal, a REEJ e comunidades caiçaras.

Figura 10 ― Área de Proteção Ambiental de Cairuçu em


sobreposição com a Área Estadual de Lazer de Paraty-Mirim e
Reserva Ecológica da Juatinga ― situação em 2019 (INEA, 2013)

Entre 2010 e 2011 foi realizado o estudo Definição de categoria de Unidade


de Conservação da Natureza para o espaço territorial constituído pela Reserva Ecológica
da Juatinga e Área Estadual de Lazer de Paraty Mirim (IGARA, 2011) para
recategorização da Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ― REEJ e foram
identificados doze núcleos de ocupação e oito comunidades tradicionais. O material da
“Consulta Pública da Recategorização da Reserva da Juatinga em Paraty” (2013), de
responsabilidade do INEA, tomou por base o estudo da instituição Igara em Aquicultura
e Gestão Ambiental e o Instituto Estadual do Ambiente elaborou sua própria proposta. O
material veiculou impresso e no meio cibernético, foi distribuído e publicado no sítio do
Fórum de Comunidades Quilombolas, Indígenas e Caiçaras, que reúne vinte e três
comunidades entre Ubatuba, Paraty e Angra dos Reis ― FCT. Aquele material de
consulta tomou por base as edificações como índices de ocupação e relacionou 921
198
edificações identificadas no interior da reserva: 52% “casas de nativos”, 18% de “casas
de veranistas”, 12% “edificações rudimentares (ranchos e casas de farinha)”, 7% de
“casas de nativos para aluguel”, 5% de edificações comerciais e 4% de áreas de camping
(INEA - Instituto Estadual do Ambiente, 2011). Observe-se que a proporção de ocupação
por comunidades tradicionais, no quesito edificações, ficou relegada a “casas de nativos
para aluguel” e a “casas de nativos”, toma uma aparência reduzida quando a ocupação
poderia ser vista em termos de território, incluindo as atividades produtivas, quer na
participação no comércio empreendido pelas comunidades, quer nas atividades do fabrico
da farinha que implica, também, áreas de plantio, no que caracterizaria melhor a
territorialidade das comunidades ainda sem alcançar os caminhos que as emaranham e as
suas atividades no “sertão”, como características dos caiçaras no entremeio do ambiente
da mata e do mar. De acordo com a antropóloga Ana Alves De Francesco, as vinte
localidades das comunidades partilham de uma memória comum, de circuitos de trocas e
há “uma relação histórica entre elas” que apontam a Península da Juatinga como um
território contínuo, como é percebido pelos próprios moradores, afirma a autora (DE
FRANCESCO, 2012, p. 2). O mesmo modo de vida tem particularidades em algumas
comunidades quanto às atividades econômicas que desenvolvem e ao acesso, por vezes,
exclusivamente por mar, cujo padrão de deslocamento e da relação com os caminhos
marítimos dão ritmos à comunidade (idem, p. 3).

Com o título se referindo à recategorização da Reserva da Juatinga, o material


traz em seu conteúdo outras categorizações e criação de novas áreas: a área Estadual de
Lazer de Paraty Mirim ― AELPM permanecendo como a Área de Proteção Ambiental
de Cairuçu e outra parte se convertendo em um parque estadual, que é unidade de proteção
integral se interligando com a REEJ transformada no mesmo parque estadual; os locais
identificados pelo estudo da Igara Consultoria de comunidades caiçaras têm indicações
para, neles, se implantar várias Reserva de Desenvolvimento Sustentável; mantidas as
sobreposições do Parque Nacional da Serra da Bocaina ― PNSB e da Área de Proteção
Ambiental de Cairuçu, na perspectiva da AELPM deixar de existir.

199
Figura 11 ― Proposta de recategorizações decorrente do estudo de
2011 (Igara; INEA, 2013)

Figura 12 ― Proposta de recategorizações do INEA (2013)

200
Comparadas as propostas do estudo da Igara Consultoria e do Instituto
Estadual do Ambiente ― INEA, temos que ambas seccionam a territorialidade caiçara,
transformando parte dos locais de uso das comunidades em Reserva de Desenvolvimento
Sustentável e parte em parque estadual, unidade de conservação de proteção integral. A
proposta do INEA, conforme indicações feitas na Figura 12 ― Proposta de
recategorizações do INEA (2013): diminuiu a área de cinco comunidades caiçaras,
indicadas em (A) na figura ― que já estavam diminuídas na proposta da Igara Consultoria
não considerar a interligação entre as comunidades e outros usos na mata que não
implicam edificações; (C) propôs uma RDS marinha para a proteção do Saco do
Mamanguá; manteve a Terras Indígena Parati Mirim e o Território Quilombola de
Campinho da Independência cada qual confrontado com a APA de Cairuçu (G), de uso
sustentável, e com o parque, em verde na figura, indicando o INEA o vetor de crescimento
de ambos os territórios quilombola e indígena e “delimitando por fora”, com o parque
estadual, onde não poderia ser utilizado pelas comunidades, por se tratar de uso
sustentável de proteção integral; como se deu com todas as comunidades localizadas na
Península da Juatinga e a comunidade de Trindade. A abrangência de áreas de proteção
integral, em relação à proposta decorrente do estudo da Igara Consultoria, foi ampliada
em “B”, “D” e “F”. A proposta de recategorização do INEA, ainda, perfez um corredor
ecológico (F) ao encostar o parque estadual proposto no Parque Nacional da Serra da
Bocaina, mantendo a conectividade por unidades de conservação compatíveis, o que é
interessante, pois ao meu ver, os usos da APA, menos restritos e dada a intensa
especulação imobiliária, poderiam criar um enclave nessa região no futuro, dadas as
restrições de um lado pelo Parque Nacional da Serra da Bocaina e de outro pelo parque
estadual previsto. No entanto, essa ideia de corredor ecológico se desmancha no gargalo
estreito entre o Território Quilombola de Campinho da Independência a RPPN
Laranjeiras (E), inserida no mapa.

Os territórios, ainda que parciais, das comunidades caiçaras transformados


em pequenas Reservas de Desenvolvimento Sustentável não fazem as vezes de
regularização fundiária das comunidades, pois depende de interpretação do arranjo no
tratamento da presença de “moradores de fora” e de famílias caiçaras. Como abordado
atrás, neste capítulo, as interpretações são muitas, conforme estudo da WWF―Brasil
(WWF BRASIL, 2006) para a Reserva de Desenvolvimento Sustentável, dentre os quais
tentar equacionar conflitos sem necessariamente comprometer-se com o pagamento

201
indenizações; nessa perspectiva acrescento uma outra finalidade, no caso e olhando para
o mapa, que é ilhar tais conflitos.

Figura 13 ― Mapa das três áreas da RPPN Laranjeiras (sem data no


SIMRPPN/ICMBio)

A questão com a RPPN é, também, complexa. A RPPN Laranjeiras,


localizada na porção de mata fechada, atrás da parte edificada do condomínio de mesmo
nome e contígua a ela. Na busca pela data da criação da RPPN Laranjeiras, para que
constasse, portanto, plotada nos mapas da consulta pública da recategorização da REEJ
em 2013, na checagem de informações atualizada para a finalização da Tese, em 2019,
em consulta ao Cadastro Nacional de Unidades de Conservação ― CNUC, não consta a
RPPN Laranjeiras nas instâncias federal, estadual ou municipal. Constam no Sistema de
Monitoria de RPPN ― SIMRPPN/ICMBio, o memorial descritivo103 e o mapa104
respectivo, que é diferente do mapa apresentado no material de consulta do INEA, onde
não está a terceira área da RPPN Laranjeiras, marcada em vermelho na Figura 13 ― Mapa
das três áreas da RPPN Laranjeiras (sem data no SIMRPPN/ICMBio), parte que pudesse

103 Endereço da página do Sistema Informatizado de Monitoria de RPPN ― SIMRPPN, do


ICMBio do memorial descritivo da RPPN Laranjeiras, indicando área de 618,89 hectares totais para a soma
de três áreas distintas: http://sistemas.icmbio.gov.br/simrppn/requerimento/impressao/1261/memorppn/.
104 Endereço da página do Sistema Informatizado de Monitoria de RPPN ― SIMRPPN, do
ICMBio Laranjeiras:http://sistemas.icmbio.gov.br/simrppn/requerimento/impressao/1261/mapa/.

202
ter sido anexada àquela RPPN posteriormente à consulta da recategorização da REEJ e
demais áreas em 2013. No entanto, a consulta pública para a criação da RPPN Laranjeiras
da RPPN, dividida em três áreas, foi feita em 2018, dada a público no Diário Oficial da
União no “Aviso de Consulta Pública”105, em 1º de novembro de 2018, indicando a área
de 648,89 hectares e não a de 618,89, se observarmos, como no mapa e no memorial
descritivo. A consulta pública para a criação da RPPN foi aberta pelo ICMBio, na sede
em Brasília, em “conduta contraditória” ― conforme analisou o Ministério Público
Federal em 4 de dezembro de 2018. A criação da RPPN recebeu manifestação negativa
da comunidade caiçara de Trindade no Jornal local “Vai Paraty”, de 29 de novembro de
2018, e sob o título Associação de Moradores de Trindade se posiciona contra a proposta
de criação da Reserva Particular do Patrimônio Natural Laranjeiras, com 618,89 hectares,
escreveram:

Nós da AMOT ― associação de moradores de Trindade não poderíamos


deixar de nós manifestar publicamente contra a proposta de criação da
reserva particular do patrimônio natural RPPN Laranjeiras, com área de
618,89 hectares. Há mais de 40 anos estamos lutando pela
permanência em nosso território tradicional Caiçara ponto sofremos ao
longo do tempo inúmeras violências cometidas por empresas que
sempre tentaram (e ainda tentam) nos expulsar desse local e restringir
nosso acesso ao patrimônio natural preservado por nós mesmos.
Durante a década de 1970 resistimos contra a construção de um
condomínio luxuoso nas terras em que vivemos há mais de quatro
gerações. No entanto, fomos obrigados a ter com os vizinhos do
condomínio Laranjeiras, onde seguranças guardam campo de golfe,
quadras de tênis, helipontos e centenas de mansões que privatizam as
praias local, embora praias particulares sejam proibidas por lei. Com a
criação dessas três RPPNs pelo Condomínio Laranjeiras (...) somente os
órgãos ambientais terão livre acesso a essa área, fato que certamente
irá afetar brutalmente o território das comunidades inseridas dentro da
Área de Proteção Ambiental do Cairuçu, e Unidade de Conservação que
tem por objetivo, além de preservar o ambiente natural, segurar o
modo de vida das populações tradicionais. Ressaltamos ainda que caso
seja efetivada essa proposta, se ampliará a tensão entre os caiçaras e o
Condomínio Laranjeiras, visto que historicamente são inúmeros os
casos de conflitos envolvendo as comunidades do entorno e o referido
empreendimento imobiliário. Esperamos que nosso território não seja
cada vez mais privatizado, que os órgãos ambientais e as instituições

105 DOU, 01/11/2018, Seção 3, p 130.

203
democráticas não permitam outra vez esse terrível ataque aos povos
tradicionais de Paraty. (Jornal “Vai Paraty, 29/11/2018)

No jornal El País - Brasil, em reportagem intitulada “O controverso


condomínio de Paraty que criou praias exclusivas para seus bilionários - segurança as
vigiam praias de difícil acesso: assim é o condomínio que divide comunidades caiçaras”,
de 30 de novembro de 2017, portanto, um ano antes da consulta pública para criação da
RPPN Laranjeiras. Nela falam a advogada das comunidades tradicionais; o síndico do
Condomínio Laranjeiras e chefe da APA de Cairuçu no marco do impedimento do acesso
das comunidades tanto a praias quanto de uma comunidade a outra, antes do assunto da
RPPN. Para alcançar praias, comunidades e barcos, o condomínio disponibiliza às
comunidades caiçaras e aos turistas um transporte coletivo, pois são impedidos por
seguranças de percorrerem o trecho de cinco minutos de caminhada a pé para transpor o
condomínio. Há atrasos no transporte, as pessoas perdem horários de ônibus e à noite,
após às 18 horas, são transportados apenas os moradores enfermos, com prévia
comunicação ao condomínio, e nunca os turistas. O transporte, oferecido pelo
condomínio, para outras duas comunidades, na Península da Juatinga, estipula o número
máximo de 400 pessoas na ida e na volta, o que atrapalha a saída dos turistas das praias
Ponta Negra e do Sono, relata a advogada do Fórum de Tradicionais de Paraty, Thatiana
Lourival.

A seguir, me reporto a dois documentos constantes na Ação Civil Pública


com pedido de tutela de urgência106, em 4 de dezembro de 2018 (MPF ― Ministério
Público Federal, 04/12/2018), um é a memória da reunião acontecida em setembro de
2016, com a presença do Ministério Público Federal em Angra dos Reis, no Estado do
Rio de Janeiro, e trata do assunto da travessia do Condomínio Laranjeiras com as
comunidades da Praia do Sono e Ponta Negra e o outro é um parecer em que Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade ― ICMBio, por meio da APA de
Cairuçu, se manifesta após tomar conhecimento da proposta, em novembro de 2018, de
criação da RPPN Laranjeiras.

As comunidades caiçaras da Praia do Sono e de Ponta Negra ― na Reserva


Ecológica Estadual da Juatinga, no outro extremo da comunidade de Trindade e com o

106 Dependente da Ação Civil Pública nº 000841-78.2009.4.02.5111; referente ao Inquérito Civil


nº 1.30.014.000229/2016-76; 1.30.014.000141/2012-21; 1.30.000052/2018-70; 1.30.000168/2017-28 e
1.30.014.000203/2003-11.

204
Condomínio Laranjeiras as separando na linha do mar ― enfrentam questões quanto à
regulação da passagem por uma área ocupada pelo condomínio. Na Ação Civil Pública
com pedido de tutela de urgência107, em 4 de dezembro de 2018 (MPF ― Ministério
Público Federal, 04/12/2018) é relatada uma reunião acontecida, em 27 de setembro de
2016, entre o Ministério Público, membros da comunidade da Praia do Sono,
representante do Condomínio Laranjeiras e representantes do Fórum de Comunidades
Tradicionais. Dessa reunião resultou o documento “Memória da Reunião realizada entre
Ministério Público Federal, Comunidade da Praia do Sono e Condomínio Laranjeiras”
(MPF ― Ministério Público Federal, 04/12/2018, pp. 15-29). Esse material é interessante
por deixar entrever das discussões naquela cena temas que são colocados para resolução
e aflições das comunidades, ainda que anotadas pelo Ministério Público no propósito do
registro da explanação do seu acompanhamento de Inquérito Civil instaurado, não
constituindo, certamente, um relato de todas as questões relacionadas às comunidades. A
centralidade no tema do acesso dos moradores e dos turistas às comunidades na
interposição de parte do condomínio é a chance ímpar que o documento traz de uma
reunião restrita aos envolvidos e seus assessores: Observatório de Territórios Saudáveis
e Sustentáveis da Bocaina ― OTSS, Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra,
Paraty e Ubatuba ― FCT e Fundação Oswaldo Cruz ― Fiocruz.

Representatividade:
Em 2009 houve um acordo para o acesso à Praia do Sono com regramentos
distintos para o turista e para o morador, este poderia transpor o condomínio e o turista
usaria a trilha. Conforme lembrado pela advogada do Fórum de Comunidades
Tradicionais ― FCT, na reunião em 27 de setembro de 2016, que aquele acordo de 2009
foi selado entre o Ministério Público Federal ― MPF e o condomínio e que a comunidade
da Praia do Sono não assinou o acordo. Das falas da procuradora e da advogada do Fórum
de Comunidades Tradicionais ― FCT se depreende que há uma questão quanto à
validação do acordo de 2009 relacionada à representatividade ― o que é diferente,
observo das formas próprias e legitimadas de representação, que não é o acaso aqui.
Comentou a procuradora do MPF que, na ocasião, “o juiz perguntou quem era o
representante da comunidade na primeira vez que esteve no local. Assim, havia

107 Idem nota anterior.

205
representatividade para que o que fosse acordado a comunidade iria aceitar”; reitera a
advogada do Fórum de Comunidade Tradicionais que é “importante deixar claro para os
comunitários presentes que os representantes fizeram o melhor que puderam. Nós íamos
submeter o acordo final para a comunidade, mas não tivemos como fazer. Nós ainda não
tivemos acesso a esse acordo final”. Acerca do tema da representatividade, Ronaldo,
quilombola do Campinho da Independência e representante do FCT, “disse também que
a representatividade é uma forma de representação, mas a Convenção 169 da OIT diz que
medidas que interfiram na vida das comunidades necessitam de consulta pública”, diz ele
que “possivelmente o que as lideranças propuseram foi isso, antes que o acordo tivesse
sido assinado. Assim, eles poderiam concordar e discordar das cláusulas propostas”.

Um morador da comunidade da Praia do Sono contou que estava na reunião


que gerou o acordo de 2009 “e lá foi pedido para o acordo passar pela comunidade antes
de ser assinado. Mas, isso não foi respeitado”, disse que o acordo não é satisfatório a
exemplo do transporte de barco não ser “suficiente para transportar o material de
construção, pois a comunidade está em desenvolvimento”, disse que o juiz, na ocasião,
aventou a possibilidade de se “fazer um acesso independente junto com a prefeitura, por
exemplo, uma estrada”; a procuradora do Ministério Público informou que a estrada está
em licenciamento e lembrou “que a estrada é algo que a comunidade não entrou em
acordo, se será uma estrada com acesso direto” e lembrou que “a ação judicial [contra o
condomínio] estava suspensa por conta da estrada”, sugerindo ser cobrado esse assunto
da Prefeitura de Paraty, pois o processo da ação judicial estava suspenso por isso e “os
presentes desconhecem o projeto, a discussão está baseada em suposições” (MPF ―
Ministério Público Federal, 04/12/2018, pp. 17-20).

Acordo:
Dentre as indicações para o do condomínio, no acordo de 2009, e o
acompanhamento do MPF no seu cumprimento, foram lembrados, na reunião do dia 27
de setembro de 2016, os seguintes compromissos: “(i) o Condomínio irá se empenhar em
ampliar o deck; (ii) tornar o local de embarque/desembarque mais seguro em relação à
chuva e ao vento; (iii) a passagem do barco com material de construção uma vez por
semana”.

206
Figura 14 ― Trajeto marítimo do Condomínio Laranjeiras à Praia do
Sono, Paraty, RJ.

Fonte: Sítio na Rede Mundial de Computadores chamado “Um lugar para viajar”108

Esclareceu que os moradores da Praia do Sono entraram com uma ação civil
pública e o MPF que entrou com a ação. Rafaela (Comunidade da Praia do Sono): Ela
disse que o transporte com a Kombi já existe, mas não funcionam e nós tentamos melhorar
com a ação. Nós vimos que tem alguns pontos no acordo que já existem e não funcionam.
Dra. Monique (MPF/ Angra dos Reis): Disse que, quando os moradores da Praia do Sono
entraram com a ação, acreditaram que conseguiriam tudo o que tinha direito. Mas, a
decisão depende de cada juiz. Ela questionou quantas vezes alguém entra com uma ação
judicial e acontece o inverso.

Limitação ao turismo e à economia:


Jadson dos Santos, caiçara da comunidade da Praia do Sono e presidente da
Associação de Moradores, no início da reunião de 27 de setembro de 2016, a abriu e
“enfatizou que o Sono é uma comunidade caiçara, seus modos de vida tradicionais e a
importância do turismo para sua sobrevivência local. Em outro momento da reunião,
Ronaldo, representando o FCT, a respeito da comunidade da Praia do Sono, “comentou
que essa é uma das poucas comunidades que discutem o turismo de base comunitária na
região” e que não se deve dissociar os turistas e os moradores”.

Acesso às comunidades Praia do Sono e Ponta Negra:


São dois caminhos de acesso à Praia do Sono e à Ponta Negra, na porção
direita da Reserva Ecológica Estadual da Juatinga: uma trilha pela mata que dura

108 Endereço na Rede: https://umlugarparaviajar.com/tag/paraty/.

207
aproximadas três horas e o trajeto da portaria do Condomínio Laranjeiras, por Kombi, até
o ancoradouro e de lá para as comunidades da Praia do Sono e de Ponta Negra.

Naquela reunião, de 27 de setembro de 2016, a comunidade caiçara da Praia


do Sono se manifestou indicando que no passado, seus avós passavam livremente pelo
condomínio, disse Lidiane; outro morador contou “que não pode responder pelo que
acontecia nas décadas de 70 e 80, mas que o acordo não regrediu o direito que os
moradores da Praia do Sono têm hoje” e que “é preciso entender que uma coisa é o que a
gente quer, outra coisa é o que o judiciário decide”. No entendimento do juiz que
“percorreu as trilhas e considerou que o é dado o devido acesso às praias”, segundo a
procuradora do Ministério Público Federal; no entanto, “possibilitar o acesso às praias é
passar pelo Condomínio no entendimento de alguns” e “a lei entende que deve se criar
um acesso, não o acesso que alguns acharem melhor” e, em dado momento a partir do
acordo de 2009, muitos moradores entenderam que teriam acesso livre, explicou ela.
Rafaela, da comunidade da Praia do Sono, disse que a ação com que entrou a comunidade
contra o condomínio era para melhorar o transporte já existente e que, talvez, pudesse o
“ver com os seguranças o que funciona e o que não funciona para ver como melhorar”;
Jadson, também da comunidade, relatou que se gasta perto de uma hora na espera do
transporte e que o acordo foi feito com os representantes do condomínio, mas que estes
não estão lá no dia a dia; ao que respondeu a procuradora do MPF que é essa a razão dos
vigilantes participarem da reunião; outra moradora da Praia do Sono, acerca da segurança,
contou que “sua filha teve as dores de parto prematuro durante a noite e o segurança não
se prontificou a auxiliá-la no píer, colocando a mão no bolso como indicativo de não
poder tomar nenhuma atitude” e, passadas duas semanas, ela mesma tomando o
transporte, “sentiu-se muito humilhada quando refez o trajeto e o segurança falou de
forma irônica que estava com dor”; outra moradora da Praia do Sono relatou já ter lido as
cláusulas do acordo e pergunta, na reunião, por quem pode procurar no condomínio às 7
horas da manhã para o filho chegar à escola às 8 horas; a procuradora do MPF “explicou
que não acontecerá da criança não conseguir ir à escola por não poder passar. Não é
questão de boa vontade, o condomínio vai se organizar para atender essa demanda”; o
síndico do condomínio, Cirilo, e pediu à procuradora do MPF que lesse as cláusulas do
acordo para os presentes em proveito daquela “chance de ordenar as ações”; outra pessoa
da comunidade da Praia do Sono disse que a preferência no transporte é dada a pessoas
ligadas ao condomínio e, por isso, os moradores da Praia do Sono acabam esperando

208
horas para serem transportados; um outro morador da comunidade da Praia do Sono
contou que o local em que os barcos da comunidade ancoram são quebrados
propositalmente.

Figura 15 ― Trajetos marítimos a comunidades tradicionais a partir


do Condomínio Laranjeiras

Diferenças e distinções
Um morador da Praia do questionou o fato de os moradores da Vila Oratório
poderem andar livremente pelo condomínio e não os da Praia do Sono; Lidiane, moradora
do Sono, disse que “a Kombi estava parada e ela ia perder o ônibus para Paraty, quando
foi tentar passar a pé pelo Condomínio e agredida pelo segurança” e questionou não ter
podido percorrer a pé um percurso de cinco minutos perto do rancho quando este “é
percorrido pelo pessoal da Vila Oratório”; também da comunidade da Praia do Sono,
Adriana “questionou o Sr. Cirilo sobre qual a diferença entre o caiçara da Praia do Sono,
da Vila Oratório e da Ponta Negra”, contou que “existia um acordo antigamente de passar
a pé pelo rancho e agora o Condomínio quer fazer outro acordo só com os moradores da
Praia do Sono”, falou que pelo fato de os seguranças do condomínio reconhecerem os
moradores da Praia do Sono “sempre solicitam que se identifiquem”; outra moradora da
comunidade da Praia do Sono disse que “a situação ficou mais complicada após a entrada
do Sr. Cirilo como síndico o Condomínio Laranjeiras”; Ronaldo, quilombola e
representante do Fórum de Comunidades Tradicionais, alertou que “é preciso tomar
cuidado para não colocar os companheiros nesse balaio de gato e serem nivelados por
baixo, assim todos perderem”; Leila, da comunidade da Praia do Sono, retomou a história
comentando “que as pessoas da Vila Oratório moravam dentro do Condomínio

209
Laranjeiras e não podem ser proibidos de passar. Esses moradores são os donos da terra
onde os condôminos moram atualmente”.

Quanto ao licenciamento ambiental, também, é reportado pelo El País ―


Brasil, em novembro de 20117, que a chefe da APA de Cairuçu estava para exigir do
condomínio Laranjeiras documentos relativos a um posto de gasolina, dois heliportos e
quanto à dragagem periódica de uma marina pequena, empreendimentos instalados e que,
portanto, o licenciamento é posteriori na condição de um passivo. No que toucou aos
limites do condomínio, o El País – Brasil perguntou ao seu síndico, Cirilo Pierre Ribeiro:
“Toda aquela mata com placas ao longo do trajeto pertence ao condomínio?”, ao que
respondeu o senhor Cirilo para o jornal “Se tem placa com o nome do condomínio, sim”.
A reportagem diz que “os limites do terreno não são claros”, conforme interpretou a
reportagem as informações fornecidas pela chefe da APA de Cairuçu, Lilian Hangae,
quem, também, explicou àquele jornal a perspectiva do penúltimo plano de manejo da
APA de Cairuçu, vigente entre 2004 e maio de 2018:

...feito em 2004 pela ONG SOS Mata Atlântica, com acompanhamento


e aprovação do Ibama com recursos do condomínio Laranjeiras (...)
Esses proprietários foram ouvidos no sentido de fazer aumentar as
zonas de expansão residencial e turística. (...) ao nos reunirmos com
populações tradicionais da região [tempos depois da ocasião de
elaboração do Plano de Manejo de 2004], há uma queixa unânime de
que foram pouco escutadas. Agora, vamos mudar isso. (Lilian Hangae,
chefe da APA de Cairuçu, entrevista ao El País ― Brasil, 30/112017)

Faz parte das chaves de diálogo que poder público disponibiliza a setorização
de questões e problemas já alinhados ao órgão administrativo afeto, com responsabilidade
e com atribuições para tratar deste ou aquele tema. Os temas estão nas comunidades
tradicionais, confluídos nelas, de uma única vez no seu dia a dia e no seu percurso. Uma
inversão desatenta, ou proposital, pode inverter o vetor e desenhar uma imagem das
comunidades como se fossem polos de onde as questões trabalhosas ao poder público se
emanassem.

Retomemos a cronologia até aqui para seguir um pouco mais adiante: a Área
de Proteção Ambiental ― APA de Cairuçu foi criada pelo governo federal em 1983; a
Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ― REEJ, pelo governo do Estado do Rio de
Janeiro em 1992, com sua área inteiramente em dupla afetação com a APA; a consulta da

210
recategorização promovida pelo Instituto Estadual do Ambiente ― INEA, em 2013,
insere na sua proposta uma mapa da RPPN Laranjeiras que não havia sido criada, cuja
consulta se dará cinco anos mais tarde, com um mapa ampliado e, conforme remarcou o
Ministério Público Federal na Ação Civil Pública em dezembro de 2018, o aviso de
consulta e acolhimento para estudo da RPPN proposta por parte do ICMBio/Sede se dá
em contradição interna ao órgão. Meses antes, o novo Plano Manejo da APA de Cairuçu
havia sido aprovado pelo ICMBio, por meio da Portaria/ICMBio nº 533, de 24 de maio
de 2018, publicada no Diário Oficial da União no dia seguinte, à Seção 1, página 50.

Os técnicos do ICMBio se vão manifestar com relação à criação da RPPN


Laranjeiras, cujo Parecer/ICMBio ― SEI nº 11/2018-APA Cairuçu (MPF ― Ministério
Público Federal, 04/12/2018, p. 58) ― parecer este que é um dos documentos subsidiários
constantes na Ação Civil Pública com pedido de tutela de urgência109, em 4 de dezembro
de 2018, que cita o Condomínio Laranjeiras, o Instituto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade ― ICMBio, a União, o Instituto Estadual do Ambiente ― INEA e o
Município de Paraty. Aquele parecer analisa as poligonais de cada uma das três RPPNs
criadas na mata sob o mesmo nome, como segue na numeração dos polígonos do norte
para o sul, em direção à área ocupada pela infraestrutura construída condomínio rente ao
mar.

Os limites constantes da proposta de RPPN Laranjeiras 01 se


sobreporiam predominantemente à parte da Zona de Conservação e a
uma parte menor da Zona de Uso Restrito [do zoneamento do Plano de
Manejo da APA de Cairuçu]. A porção norte dos limites propostos
apresenta contiguidade ao Território Quilombola do Campinho da
Independência. Contudo, é imprescindível identificar e avaliar os
sabidos usos que a comunidade quilombola exerce fora dos limites das
áreas do território titulado, atividades que poderiam ser afetadas pela
criação da RPPN 01. (Parecer/ICMBio ― SEI nº 11/2018-APA Cairuçu,
na Ação Civil Pública 04/12/2018, p. 58)

Explica, também, o Parecer/ICMBio ― SEI nº 11/2018-APA Cairuçu, que:

Os limites constantes da proposta da RPPN Laranjeiras 02 se


sobreporiam totalmente à ZURE que integra a territorialidade dos
caiçaras de Laranjeiras, bem como restaria justaposta à Zona

109 Dependente da Ação Civil Pública nº 000841-78.2009.4.02.5111; referente ao Inquérito Civil


nº 1.30.014.000229/2016-76; 1.30.014.000141/2012-21; 1.30.000052/2018-70; 1.30.000168/2017-28 e
1.30.014.000203/2003-11.

211
Populacional Caiçara de Laranjeiras, onde estão as áreas de moradia
das famílias da Vila Oratório e do Sítio dos Tucanos. Igualmente, os
limites da RPPN Laranjeiras 03 se sobreporiam à ZURE que integra a
territorialidade dos caiçaras de Laranjeiras e da Praia do Sono. ―
Parecer/ICMBio ― SEI nº 11/2018-APA Cairuçu (MPF ― Ministério
Público Federal, 04/12/2018, p. 59)

No Parecer está informado que o rito da consulta prévia, livre e informada


não foi considerada, o que cabe quando se trata de quilombolas e comunidades caiçaras
como sujeito de direito, reitera aquele parecer; que o condomínio está integralmente
afetado pela APA de Cairuçu e que esta não foi consultada nos termos da Lei nº
9.985/2000, a Lei do SNUC, e do seu regulamento, o art. 10, Decreto nº 4.340/2002; e
que o novo Plano de Manejo elegeu quatro prioridades de gestão, dentre as quais
“promover a regularização fundiária dos Territórios Tradicionais Caiçaras, assim
entendido conforme a definição instituída no art. 3°, II, do Decreto n° 6.040/2007”, este
que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e
Comunidades Tradicionais.

No fundo do Saco do Mamanguá, na Bacia do Rio Grande, existe um pequeno


aldeamento dos indígenas Guarani, oriundos da Terra Indígena Parati Mirim, que ali se
instalaram definitivamente no ano de 2005. Esta ocupação tem sido vista pelo Inea como
um conflito de interesses, tanto que ao ser constatada a presença dos indígenas nesta área,
a administração da REJ, em 24/02/2005, notificou a Funai solicitando providências para
a retirada imediata dos indígenas da área por estar inserida no interior da reserva. Passado
quase um ano sem que a Funai tomasse as providências solicitadas, em 05/01/2006, a
presidência do IEF solicita ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – MPE
intervenção junto a Funai para a retirada dos indígenas, resultando na instauração do
Processo Administrativo 1.30.014.000044/2005-17, Minorias “Índios Guarani-Formação
de Novo Aldeamento na Localidade do Saco do Mamanguá, Reserva Ecológica da
JuatingaMunicípio de Paraty-RJ-Possível Conflito Possessório”. Segundo informações
do Sr. Cristino Cabreira Machado, Coordenador Técnico Local da Funai em Paraty,
obtidas em 15 de março de 2011, a Funai realizou estudos preliminares e atualmente está
constituindo um novo Grupo de Trabalho para definir as dimensões e localização exata
da futura TI Arandu Mirim (IGARA, 2011, p. 59).

Na Praia do Sono, o conflito acontece desde a década de 1970 com a família


de Gibrail Nubile Tannus. Naquela época, além de atos de violência, foram promovidas

212
diversas ações possessórias contra alguns caiçaras que, amedrontados, abandonaram suas
terras, sua cultura, seu modo de vida, e foram viver nas periferias de Paraty – 53 Igara

Desse modo, não se consegue nem a conservação do patrimônio natural nem


a melhoria da qualidade de vida da população, as principais características que de fato
determinaram a preocupação pública e, consequentemente, as regulamentações de
proteção do patrimônio natural – ou seja, a qualidade cênica da paisagem e o modo de
vida da população local. Essa problemática pode ser percebida na fala da Sra. Lindalva,
vice-presidente da Associação de Moradores da Praia do Sono, em depoimento colhido
no levantamento de campo de 2001: “O maior problema que tem aqui são as leis
ambientais, elas são feitas para os ricos, pois os ricos conseguem ocupar as praias e os
pobres só sofrem com a fiscalização e embargos.”...”Vem gente do Rio de Janeiro, do
IEF, da Reserva e outros mais, para tirar nossa atividade turística, nós não esperamos
nada mais dos políticos.” 138 C V As diversas Unidades de Conservação existentes no
município de Paraty – Área de Proteção Ambiental de Cairuçu, Parque Nacional da Serra
da Bocaina, Reserva Ecológica da Juatinga, Área Estadual de Lazer de Paraty Mirim,
APA Municipal da Baía de Paraty, e outras – relacionam-se unicamente pela sobreposição
física territorial. (ZUQUIM, 2002, pp. 137-138)

Lei Estadual nº 1.859/91, e a Lei Estadual nº 2.393/95 que dispõe sobre a


permanência de populações nativas residentes em Unidades de Conservação no Estado
do Rio de Janeiro. Esta área está totalmente inserida na APA de Cairuçu.

5.2.2. Área Estadual de Lazer de Paraty-Mirim (parte em


recategorização) ― estadual

A Igreja de Nossa Senhora da Conceição integra o Complexo Arquitetônico


Ruínas de Paraty-Mirim, localizado na Área Estadual de Lazer de Paraty-Mirim ―
AELPM, e o potencial turístico histórico de Paraty-Mirim foi a razão da mudança do
nome de Parque Estadual Paraty Mirim, criado em 1972, para ter o nome de Área Estadual
de Lazer de Paraty Mirim, em 1976, ocasião em que é doado ao patrimônio do Estado do
Rio de Janeiro, para a Companhia de Turismo do Estado do Rio de Janeiro S.A. ―
Flumitur, depois chamada Companhia de Turismo do Estado do Rio de Janeiro ―
Turisrio (ZUQUIM, 2002, p. 88; IBAMA, 2004, p. 76). A AELPM é constituída por terras
estaduais das fazendas Paraty-Mirim de Independência, adquiridas pelo Estado do Rio de
213
Janeiro em meio a diversas desapropriações feitas entre 1959-1963 (CPDA, 2015), ao
longo dos governos do de Roberto Silveira (1959-1961, eleito pela coligação PTB-UDN),
de Celso Peçanha (1961-1962), Luiz Miguel Pinaud (1963, PSD, mandato tampão) e
Badger da Silveira (1963-1964, PTB). As desapropriações tiveram, antes, um recurso aos
trabalhadores e aos movimentos rurais em lugar das reivindicações por usucapião, esta
sendo submetida à avaliação do Poder Legislativo e as desapropriações tratadas pelo
Poder Executivo. (CPDA, 2015), pressupondo aí maior facilidade.

Com a crescente valorização das terras com a construção do trecho da BR-


101, a Rio-Santos, a criação de áreas de preservação surgiu como formas de conter o
desflorestamento nos municípios com parcos e frágeis instrumentos quanto ao uso e
ocupação do solo. Em Paraty, nesse sentido, foram criados o Parque Nacional da Serra da
Bocaina, em 1971, e o Parque Estadual Paraty Mirim em 1792 (CPDA, 2015, p. 301). De
área prioritária para a reforma agrária, Paraty é convertida para a prioridade turística.

O espaço geográfico da AELPM é aquele abrangido por toda a Bacia


Hidrográfica do Rio Paraty-Mirim, desde o divisor de águas onde está marcada a divisão
entre os estados do Rio de Janeiro e o de São Paulo. A porção das nascentes no Morro do
Cruzeiro, Morro da Forquilha e Morro da Pedra Redonda estão sob a proteção do Parque
Nacional da Serra da Bocaina ― PNSB, unidades de proteção integral, nessa porção em
tripla afetação: o PNSB, a APA de Cairuçu e a AELPM, restando nessa porção uma dupla
afetação entre as outras duas unidades de conservação federais, uma de uso sustentável e
outra de proteção integral e a Terra Indígena Araponga. Na área abrangida pela help estão,
também, o Território Quilombola do Campinho da Independência e a Terra Indígena
Parati-Mirim dos indígenas Guarani, como podem ser visualizados na Figura 16, na
página 216. O território Guarani está parte regularizado, na Terra Indígena Parati-Mirim,
conforme o mapa na figura, e parte se encontra em regularização fundiária desde 2008,
com a Portaria nº 184/Funai, de 6 de fevereiro de 2008, que instituiu o grupo de estudo
para a sua identificação e delimitação.

A AEPLM abrangia ao todo, em 2011, dez localidades populacionais com a


predominância de sítios e núcleos de ocupação rural (Pedras Azuis, Forquilha, Córrego
dos Micos, Patrimônio, Novo Horizonte e Independência), ocupação urbana (Paraty-
Mirim) e as Terras Indígenas Araponga e Parati-Mirim e o Território Quilombola do
Campinho da Independência. O estudo de definição de categoria de unidade de
conservação (IGARA, 2011, pp. 40, 47) destaca que a localidade de Novo Horizonte,

214
formado com moradores das localidades Campinho e Independência. Paraty-Mirim é um
distrito do Município de Paraty abrangido pela AELPM, tendo sido porto de mercadorias
e de escravos, fazenda para a produção de açúcar. O local era movimentado e chamado
de “Pequeno-Paraty” por volta de 1850. A Fazenda Paraty-Mirim foi comprada pelo
Estado do Rio de Janeiro no intuito de doá-la aos moradores em uma forma de reforma
agrária, conta o levantamento da AELPM feito para fins da sua recategorização (IGARA,
2011, p. 46). O cadastramento das famílias e o cuidado com a área adquirida era feito
pelo “Senhor Itamar” colocado ali pelo governo do Estado do Rio de Janeiro para essa
finalidade, depois retirado restando a ocupação desordenada:

Em meados dos anos 1960, não se sabe bem, talvez pela política de
Paraty, o responsável da área foi retirado, possibilitando a ocupação
das terras da fazenda por pessoas de fora, inclusive de outras regiões,
com a esperança de serem beneficiados pelo trabalho do governo.
(IGARA, 2011, p. 46)

Provavelmente, o ocorrido se deva à edição da Lei nº 3.961, dada a público


no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro em 24 de junho de 1959, que trazia a
previsão de que “nacionais favelados”, para se resolver questões urbanas, poderiam ser
acomodados em áreas para atividades agrícolas, bem como uma série de migrantes que
chegavam à baixada fluminense em busca de trabalho (CPDA, 2015, p. 62). O que não
retira a possibilidade de outros usos da lei nas “brechas” em assentar outros que não os
beneficiários nela indicados.

5.2.3. Área de Proteção Ambiental de Cairuçu ― federal

A APA de Cairuçu foi criada por meio do Decreto federal nº 89.242, de 27 de


dezembro de 1983, com o Ministério do Interior sob a responsabilidade de Mário
Andreazza, no governo de João Figueiredo. A cooperação técnica entre a organização não
governamental SOS ―- Mata Atlântica; o Ibama; o Instituo Estadual de Florestas ― IEF,
atual Instituto Estadual do Ambiente ― INEA; e a Prefeitura Municipal de Paraty, com
recursos do Condomínio Laranjeiras viabilizaram a elaboração do Plano de Gestão
Ambiental da APA Cairuçu em 2004, (PREFEITURA MUNICIPAL DE PARATY, s/d;
IBAMA, 2004).

215
Figura 16 ― Mapa da Área Estadual de Lazer de Paraty-Mirim ― AELPM, Terra Indígena Araponga, Território Quilombola Campinho da
Independência e Terra Indígena Parati Mirim

216
Figura 17 ― APA de Cairuçu com suas 63 ilhas e indicação das
Terras Indígenas Araponga e Parati Mirim e os Territórios
Quilombolas Campinho da Independência e Cabral (Plano de
Manejo, 2018)

A contenção da expansão do desflorestamento e da abertura de áreas na


especulação imobiliária consta como um importante propósito na criação da Área de
Proteção Ambiental de Cairuçu. No artigo 6º do decreto que cria essa APA, em 1983, das
cinco restrições três fazem referência explícita aos trabalhos de movimentação de terra:
“a terraplenagem e a abertura de canais, quando essas atividades importarem em sensível
alteração das condições ecológicas locais” (art. 6º, inciso II) e “o exercício de atividades
capazes de provocar acelerada erosão das terras ou acentuado assoreamento das coleções
hídricas” (art. 6º, inciso III); a destinação para projetos de agricultura, que foram a
primeira destinação de áreas abrangidas pela APA, no caso da AELPM, principalmente,
também é tornada restritiva no “uso de biocidas capazes de causar mortandade de animais
vertebrados, exceto ratos e morcegos hematófagos” (art. 6º, inciso V). Também, as
atividades de extração de granito e outras minerárias estavam submetidas ao território da

217
APA de Cairuçu com usos regrados por aquele decreto. O Plano de Manejo da APA de
Cairuçu, de 2004, aponta a ocorrência de um tipo especial de granito:

Na região sul do Saco de Mamanguá, na Fazenda Santa Maria, ocorre


um tipo muito valorizado de granito, o granito Ubatuba, objeto de
extração de blocos para exportação no passado, e que conta com
autorização do CPRM e licenciamento atualizado para exploração. Na
área permanecem cerca de 20 blocos que ainda não foram retirados.
(IBAMA, 2004, p. 27)

Parte da Fazenda Santa Maria do Mamanguá foi adquirida por Gibrail Nubile
Tannus da família Teófilo Remek e na sequência se dizia dono da área toda da fazenda
em porções que não lhe pertenciam, que eram Ponta Negra, Antigo Grande e Antigo
Pequeno. Nas décadas de 1960 e 1970 seguintes, prosseguiu grilando terras com
interferência intermediada nos cartórios na adulteração e na subtração de documentos dos
imóveis, como no episódio da grileira Maria Dutra, em caso judicial, flagrada ao arrancar
folhas de escritura daquelas terras em 1976, tais documentos faziam remontar a cadeia
dominial de Gibrail ao século XVI (CPDA, 2015, p. 324), conforme relatado pelo padre
Pedro Geurts, em relato à CPT Nacional110. Com respaldo de instituições governamentais
por meio da autorização de lavra do DNPM e projeto de empreendimento turístico junto
ao Incra e à Embratur, servia-se dessa chancela governamental para tramitar documentos
com a comunidade da Praia do Sono com indenizações pífias que significavam, em fato,
o seu despejo no reconhecimento de posse ao Gibrail enganados ao assinarem um termo
de comodato com impressões datiloscópicas, aconselhados pelo pastor Agostinho Ignácio
a fazerem-no como uma boa opção a ser feita ― assinar o documento que lhes
apresentaram como se fosse o apontar para a sua garantia à terra.

As terras da Fazenda Santa Maria do Mamanguá atraíam, também, o interesse


do Condomínio Laranjeiras, próximo a elas (CPDA, 2015, pp. 324-326). Em exame da
cadeia dominial sucessória, a Secretaria Extraordinária de Assuntos Fundiários,
Assentamentos Humanos e Projetos Especiais – SEAF entendeu que a documentação da
terra da Fazenda Santa Maria era nula por conta de erros no registro, e a Procuradoria

110 Referente ao documento SNI-Relatório, 06/10/1977. Atuação da esquerda clerical. Acervo


Memórias Reveladas/Arquivo Nacional – Documento ARJ_ACE_12131_85, conforme informado no
Relatório intitulado Conflitos por terra e repressão no campo no estado do Rio de Janeiro (1946-1988)
(CPDA, 2015, p. 324).

218
Geral do Estado ajuizou Ação Discriminatória da Praia do Sono ― ACO 586, 19 de
fevereiro de 1997 ― relacionando tanto Gibrail Nubile Tannus quanto a esposa Maria
Leny de Andrade Tannus (IGARA, 2011, p. 54).

Além dos conflitos e a violência contra a população local e comunidades


caiçaras, a Área de Proteção Ambiental de Cairuçu é criada envolvendo um trecho longo,
porque meândrico e no todo curvo, da rodovia BR-101, de onde pudessem partir novas
áreas no seu transcurso e a partir dele para a Serra da Bocaina de um lado da rodovia e
para o litoral de outro. A APA de Cairuçu tem como limites ao norte: desde a margem
direita do rio Mateus Nunes; ao sul: pela divisa com o Estado de São Paulo, em vértice
na direção acima da cabeceira daquele rio, tendo na área projetada a partir do vértice toda
a costa entre as proximidades da comunidade de Trindade (e Laranjeiras, Península da
Juatinga, Saco do Mamanguá, Paraty-Mirim, Praia Boa Vista e segue por cureto trecho
da rodovia BR-101, contornando o centro urbano de Paraty, até encontrar o rio Mateus
Nunes, fechando o polígono) terrestre; fazem parte da APA de Cairuçu as 63 ilhas entre
a Ilha da Trindade e a Ilha do Algodão, inclusas ambas as duas.

O receio das mazelas ambientais comprometendo a biota tem referência


explícita quanto às restrições a marinas e a terraplenagens e é possível nelas ver as obras
que foram necessárias à instalação do Condomínio Laranjeiras ― cujas experiências
recentes, em 2018, com as comunidades e as instituições foram relatadas atrás, neste
capítulo, sendo que a instalação daquele condomínio e da abertura de outras áreas datam
da década de 1970.

Dessarte, o Decreto federal nº 89.242/1983 traz no parágrafo 1º do artigo 6º,


que a “abertura de vias de comunicações, a realização de grandes escavações de canais e
a implantação de projetos de urbanização, sempre que importarem na realização de obras
de terraplenagem, dependerão de autorização prévia da SEMA” indicando, nos incisos
subsequentes, que as autorizações para aquelas atividades “somente” serão concedidas
com a realização de estudo prévio, com alternativas examinadas, avaliação das
consequências ambientais e com a consideração de medidas “necessárias à salvaguarda
dos ecossistemas atingidos”. Com vocabulário próprio em 1983, aí estão o diagnóstico
ambiental, a indicação de alternativas locacionais do empreendimento, a indicação dos
seus impactos e a previsão de medidas mitigadoras ou compensatórias em perspectiva do
processo de licenciamento ambiental. E todas as autorizações que a Secretaria Especial
do Meio Ambiente ― SEMA expedisse, não dispensariam a as licenças estaduais e

219
municipais. Nessa época, o Ibama ainda não havia sido criado, na fusão e reestruturação
de órgãos como a SEMA e a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca-SUDEPE,
e o cumprimento da legislação dessa superintendência é indicada para impedir “a pesca
predatória, nas águas marítimas ou interiores da APA de Cairuçu e nas suas
proximidades” (art. 6º, § 5º do Decreto federal nº 89.242/1983).

A área delimitada da APA de Cairuçu foi mantida, e as disposições acima


foram revogadas pelo Decreto nº 8.775, de 11 de maio de 2016, endereçadas ao Plano de
Manejo e, sempre, necessários os procedimentos para avaliação de impactos ambientais
na solicitação de empreendimentos em qualquer parte e principalmente em uma unidade
de conservação. Quero chamar a atenção para o fato de o Ibama, criado em 1989, ser o
órgão licenciador na instância federal de empreendimentos que se deem em algumas
circunstâncias como, por exemplo, próximos ou incidindo em Terras Indígenas, que são
terras da União; em mais de uma unidade da federação, entre outros e no caso de afetar
unidade de conservação federal, que o órgão acumulava as atribuições de zelar e de
promover a gestão da unidade de conservação e, ao mesmo tempo, de proceder ao
licenciamento ambiental que a envolvesse, borrando a segregação das funções de se
manifestar no processo do licenciamento e de conduzi-lo.

O caso do empreendimento da Água Mansa Patrimonial LTDA envolve esse


cenário e acresce a conivência do Ibama de Angra dos Reis no licenciamento da instalação
de estrutura para apoio náutico no local Ponta da Foice , nos fundos do Saco do
Mamanguá, área afetada pela APA de Cairuçu, unidade de conservação de uso sustentável
federal e pela Reserva Ecológica Estadual da Juatinga, de proteção integral. Estudos
existentes, entre 1992 e 2000, de biólogos, antropólogo, oceanógrafos que abordaram
aquela região específica, dentre os quais Paulo Nogara, Carlos Diegues, destacam as
comunidades que ali vivem e a região do Saco como um berçário de espécies marinhas
que fazem do local um lugar único, com aproximados 8,5 quilômetros de comprimento e
águas rasas em uma largura de até 1,5 quilômetro, em um trecho sendo 400 metros essa
largura.

A despeito dos estudos, o Ibama enviou um biólogo para a vistoria no local


que concluiu ser possível a implantação do cais flutuante ali, desde que não fossem
alteradas a parte terrestre afetando taludes e envolvendo corte de pedras. O “Estudo
técnico do caso do Saco do Mamanguá – Paraty-RJ: uma questão sócio-ambiental”
(GODOY JÚNIOR & CAMARGO, 2006), aponta que após se ter manifestado

220
tecnicamente favorável, o biólogo recuou indicando que o empreendedor deveria
apresentar a requisição de licenciamento feita à gestão da APA de Cairuçu; solicitar
autorização municipal, por se tratar da Área de Proteção Ambiental da Baía de Paraty, de
Paraty-Mirim de Saco do Mamanguá; além de ter de solicitar parecer da Capitania dos
Portos e do Departamento do Patrimônio da União. A primeira manifestação do técnico
em vistoria favorável ao empreendimento, cujo laudo, de 26 de novembro de 2001, contou
com a subscrição do agente regional responsável pelo Ibama de Agra dos Reis.

A situação mereceu o Memorando nº 14/2002-APA de Cairuçu/ICMBio, de


4 de março de 2002, dirigido àquela regional de Angra dos Reis com o assunto
“Interferência de funcionário lotado no Escritório Regional de Angra dos Reis na UC
APA de Cairuçu”, anexada a cópia da correspondência partida da Estação Ecológica de
Tamoios, de mesma data, com o relato do fato à gestão da APA de Cairuçu (GODOY
JÚNIOR & CAMARGO, 2006, p. 6). O caso consta na Ação Civil Pública111 com pedido
de Liminar, ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, com o
procedimento administrativo nº 38/01 instaurado em agosto de 2001 para apurar a notícia
do empreendimento.

Os moradores locais, “todos caiçaras” e representados por meio da AMAM –


Associação de Moradores e Amigos do Saco do Mamanguá, informa o estudo de caso,
apoiaram o Ministério Público na ação e se opuseram ao empreendimento porque
souberam que os proprietários da Água Mansa Patrimonial eram do Condomínio
Laranjeiras, tiveram o receio da implantação futura de um condomínio nos mesmos
padrão e dimensão que aquele condomínio e que viesse lhes limitar o seu espaço
conseguido por antepassados (GODOY JÚNIOR & CAMARGO, 2006, p. 3). Da decisão
judicial, de 6 de julho de 2002, ficou para a empresa Água Mansa Patrimonial LTDA
paralisar a obra; para a Prefeitura de Paraty foi determinada a suspensão do procedimento
administrativo de licenciamento; e foi indicada a verificação por oficial de justiça a
apuração no local.

O jornal Folha de São Paulo, de 25 de novembro de 2001 traz a notícia, com


o título “Condomínio ‘invade’ santuário ecológico”, de uma estrada aberta há vinte dias,
entre um ponto a cinquenta metros da entrada do Condomínio Laranjeiras até a Ponta da
Foice, no fundo do Saco do Mamanguá, ― depois da ação do Ministério Público Estadual,

111 Processo nº2002.041.000216-5.

221
portanto, e antes da decisão judicial. A sua abertura levou dez dias com doze
trabalhadores contratados por quarenta condôminos para uma estrada de largura média de
quatro metros e os seus sete quilômetros sobre trilha centenária, atravessando a Mata
Atlântica e a APA de Cairuçu. A estrada foi interditada pelo Ibama. Ney França,
engenheiro florestal e gerente da APA de Cairuçu, declarou ao jornal Folha de São Paulo
que:

O problema fundamental dessa história é: o saco é o único fiorde do


Brasil. Uma vez entrando a estrada, virão casas, marinas, lanchas de
alta turbulência no fundo do saco [do Mamanguá], uma região de muita
produtividade em biologia marinha, com peixes, crustáceos, ostras.
(Ney França, Folha de São Paulo, 25/11/2001)

Paulo Nogara, biólogo da Univerdidade de São Paulo ― USP, estudando o


ambiente no Saco do Mamanguá desde a década de 1990, dizer ser o Saco do Mamanguá
“único” e que “é inviável ter dez barcos grandes no saco, quanto mais 40” e continua:

O aumento do tráfego marítimo de grandes lanchas e iates vai acabar


com ele. As espécies vão ser dizimadas. As 120 famílias que habitam o
local e vivem da pesca terão que se mudar para não morrer de fome.
(Paulo Nogara, Folha de São Paulo, 25/11/2001)

À margem direita do Saco do Mamanguá, a Praia do Uba foi comprada pelos


condôminos de um posseiro para nela instalar um atracadouro, segundo a reportagem, e
que “o interesse dos condôminos pelo Mamanguá se deve, oficialmente, à turbulência do
mar na ponta da Juatinga, trajeto obrigatório entre o Laranjeiras e a baía da Ilha Grande.
Partindo do Saco, os barcos não passam pela Juatinga”. Stainer Braga, então Secretário
de Meio Ambiente da Prefeitura de Paraty, explicou ao jornal que “o que ocorreu foi uma
limpeza de trilha, uma roçada”, disse que há interesse dos condôminos em terem acesso
ao Saco do Mamanguá; que o Saco deve ser preservado e que “nossa preocupação é coibir
esse tipo de ação” (FOLHA DE SÃO PAULO, 2001).

Cinco meses depois da decisão judicial acerca do episódio da estrutura


náutica no Saco do Mamanguá, naquele mesmo ano de 2002, é sancionada a Lei
Municipal nº 1.339, de 27 de dezembro de 2002, aprovada pela Câmara Municipal de
Paraty, cuja ementa traz: “Cria o plano de gestão ambiental da APA de Cairuçu e reserva
ecológica da Juatinga”. Editada entre o Natal e o Ano Novo, a norma é uma verdadeira

222
abertura de caminhos para o uso e a ocupação de alguns grupos de atividades econômicas;
não traz uma proposta planificada que contemplasse outros grupos, ainda que apenas
econômicos, ou um planejamento, e procura vasar as restrições das unidades de
conservação. Em 2016, a Lei Municipal nº 1.339/2002 teve a representação de
inconstitucionalidade acolhida e a lei não mais é aplicável. De qualquer maneira, vale
conhecer algumas de suas disposições.

Às comunidades caiçaras, aquela lei disse garantir a sua permanência, uma


menção sem providência fazendo as vezes de um chamariz que pudesse dar um tom de
equanimidade ao teor da norma, segue localizando nos seus parágrafos os interesses
específicos. Reproduzo parte da lei, com os seus erros, erros de pressa, na concordância,
pontuação e ortografia112.

Lei Municipal nº 1.339, de 27 de dezembro de 2002:

.........................

Art. 2º Fica assegurado a permanência das comunidades caiçaras, bem


como de todos os acessos tradicionais, caminhos, picadas e passagens
Estradas Antigas pelas praias em toda a área da APA do Cairuçu e
Reserva da Juatinga.

Art. 3º Nas áreas de vocação do Eco Turismo fica garantido a


implantação de projetos para desenvolvimento do Eco Turismo, desde
que seja parte integrante dos projetos nas comunidades caiçaras.

Art. 4º Fica garantido o acesso pelo fundo do Saco do Mamanguá, pelas


comunidades daquela região, Praia do Cruzeiro, Praia Grande e todas
as demais.

Art. 5º Fica garantida a exploração da jazida de Mármore Ubatuba nas


imediações do Saco do Mamanguá no lugar conhecido como Estrada
da Fazenda Santa Maria desde que atendidas as licenças de
prospecção.

.........................

112 Para consultar a referida lei na íntegra, acesse o portal da Câmara dos Vereadores de Paraty,
ou o linque: http://www.paraty.rj.leg.br/camaraparaty/painel/Leis/2002/Lei_1339_2002.pdf.

223
Art. 7º Todas as trilhas estradas deverão ser controladas através da
implantação da “Estrada Parque”, evitando assim o turismo predatório
a venda descontrolada de posses.

Art. 8º Todos que adquiriram posses na APA do Cairuçu e Reserva da


Juatinga que não são caiçaras nativos deverão ser notificados em
formatos da precariedade de suas posses, inclusive aquelas que já
saíram da localidade e que pretendem, voltar evitando assim a
ocupação desordenada.

Art. 9º Fica assegurado o direito de construção dentro dos parâmetros


estabelecidos neste plano e em regulamento a ser editado pelo
executivo nas zonas delimitadas da APA de Cairuçu sul e Reserva
Ecológica da Juatinga a todos os titulares de posse e de propriedade
que adquiriram anteriormente a criação da referida APA e Reserva.

As comunidades estão onde estão por mérito próprio e aquela lei não lhes
rende nada exceto disposições confusas acerca de quem volta; as licenças de prospecção
são parte de todo um processo de licenciamento que já existiria mesmo sem as unidades
de conservação, e sendo nelas, é necessária sua análise e manifestação. No conjunto,
foram jogadas palavras em trechos sem sentido, pretendendo, de certo, que se colassem
aos debates sobre comunidades. É melhor se fazer uma leitura dos parágrafos por meio
de expressões-chaves, porque o sentido estava para ser feito em algum outro lugar fora
da lei: mármore Ubatuba, posse de quem não é nativo, empreendimento imobiliário na
APA e na Estação Ecológica, acesso pelos fundos do Saco do Mamanguá.

O Plano de Manejo da APA de Cairuçu foi revisto após a publicação do


mencionado Decreto nº 8.775 de 11 de maio de 2016, que revogou parte do decreto que
instituiu a APA de Cairuçu; manteve a sua delimitação e indicou que a APA deveria
proceder ao zoneamento para o território, com normas gerais e específicas para cada zona
zoneamento de áreas em seu interior. O novo Plano de Manejo da APA de Cairuçu 2018
― como resultado da revisão do plano anterior, de 2004 e vigente desde 2005 ― tem a
aprovação do ICMBio por meio da Portaria/ICMBio nº 533, de 24 de maio de 2018,
publicada no Diário Oficial da União em 29 de maio de 2018. Nele são indicadas dez
zonas, conforme listadas naquele plano na “Tabela 13 - tamanho das zonas de manejo e
porcentagem em relação ao tamanho da unidade”, acima reproduzida do Plano de Manejo
da APA de Cairuçu (ICMBio ― Instituto Chico Mendes de Conservação da
224
Biodiversidade, 2018, p. 56) reproduzida, aqui, na Figura 18 ― Zonas do Plano de
Manejo da APA de Cairuçu (Tabela 13, “tamanho das zonas de manejo e porcentagem
em relação ao tamanho da unidade; Plano de Manejo, 2018, p 56).

Figura 18 ― Zonas do Plano de Manejo da APA de Cairuçu (Tabela


13, “tamanho das zonas de manejo e porcentagem em relação ao
tamanho da unidade; Plano de Manejo, 2018, p 56)

Vamo-nos demorar em analisar as disposições feitas no Plano de Manejo para


a Zona Populacional, dividida em quatro zonas. As “normas comuns às quatro zonas
populacionais” elencam sete tópicos de usos proibidos ou permitidos. São proibidos a
criação de animais de grande porte; o despejo de resíduos sólidos e do lançamento de
efluentes sem tratamento no ambiente; permitida a criação de animais domésticos com
instalações não incidindo nas áreas de Proteção Permanentes – APPs, cujos efluentes não
devem alcançar corpos de água.

Os casos expressos para autorização de parte da APA de Cairuçu, são: a


proibição da derrubada de vegetação arbórea em estágio médio e avançado de
regeneração e a vegetação nativa de grande porte, exceto em caso de “risco para
residências pré-existentes comprovado mediante laudo técnico e autorizado APA”; e a
abertura de novas vias de acesso ou o alargamento de acessos e de trilhas existentes que

225
são permitidos, contanto que autorizados pela APA. Outros dois tópicos indicam uma
necessidade dupla: a concordância das populações residentes ― ou seja, caiçaras,
populações rurais e proprietários de residências de turismo de temporada como uma
segunda residência ― e a compatibilidade com as “normas específicas do tipo de zona”
para: a instalação de estruturas com alto grau de intervenção e de apoio à visitação
turística; uso direto dos recursos naturais, o estabelecimento de residências,
infraestruturas pública e privadas; a criação de animais de médio e pequeno portes,
atividades produtivas, visitação, monitoramento ambiental e pesquisa científica; entre
outras indicações que se repetem em dois tópicos em separado.

Dentre as quatro zonas, destaco a Zona Populacional Caiçara ― ZPCA para


vermos quais as disposições nela previstas pelo Plano de Manejo da APA de Cairuçu. Na
Figura 19 – Zoneamento da Área de Proteção Ambiental de Cairuçu, Plano de Manejo de
2018 (APA de Cairuçu/ICMBio), observa-se que a Zona Populacional Caiçara ― ZPCA,
quando delimitada no continente e não ilhas, é circundada por outras zonas em gradações
de restrições, concêntricas em sua maior parte. Dessa maneira, na área imediata às ZPCA
está a Zona de Uso Comunitário ― ZUCO, seguida pela Zona de Uso Restrito ― ZURE
e esta pela Zona de Conservação ― ZCON.

Com o objetivo da “preservação do ambiente proporcionando condições


próximas ao estado primitivo para conservação da biodiversidade” a preservação dos
mananciais e a “manutenção da paisagem e suas belezas cênicas, além da realização das
atividades de pesquisa e visitação de baixo impacto” (ICMBio ― Instituto Chico Mendes
de Conservação da Biodiversidade, 2018, p. 57), a zona é caraterizada por nascentes e
mananciais, envolve as bacias hidrográficas dos rios Carapitanga, Meros e São Mateus,
há declividades e há afloramentos rochosos, com a floresta em bom estado de conservação
e sem a ocorrência do uso direto, conforme classifica o Plano de Manejo.

Permitidas as atividades de proteção e monitoramento, de educação ambiental


e a visitação com baixo grau de intervenção prioritariamente quando exercidas guiadas
ou monitoradas pelas comunidades tradicionais e a manutenção dos caminhos tradicionais
caiçaras; captação de água para uso doméstico é permitida, desde que não interfira no
curso das águas. São proibidas a abertura de novas trilhas ou picadas, exceto os
imprescindíveis à manutenção da zona, pesquisa e visitação; atividades de movimentação
de terra; a supressão da vegetação nativa; extração de madeira, de cipós, de plantas
ornamentais, de taquaras e de palmeiras.

226
Na Zona de Uso Restrito ― ZURE são permitidos os usos de recursos
naturais “de forma eventual ou em escala reduzida” e o usos de cipós, plantas medicinais,
taquaras, fibras, bambus são submetidos a um plano de manejo florestal; repete-se a
disposição para o uso doméstico de água; a manutenção das ocupações de moradores
isolados e suas roças é permitida; “o acréscimo de residências de moradores tradicionais
poderá ser autorizado pelo ICMBio, em casos excepcionais devidamente justificados”
com vedação à “construção de nova residência por motivo de cessão ou venda da moradia
original a terceiros”; permitido, também, “o uso eventual de madeira para confecção de
canoa e remos, manutenção e reformas de casas, estiva de embarcações e ranchos de pesca
mediante autorização do ICMBio” e o uso comercial da madeira é vedado; permitidas a
visitação que tem nas organizações comunitárias a prioridade, e não a exclusividade, bem
como a permissão da instalação “de equipamentos simples para a visitação, de natureza
rústica, sempre em harmonia com a paisagem” (ICMBio ― Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade, 2018).

Em comandos onde nada escapa à autorização do ICMBio no propósito de


preservação/conservação de áreas, estão aliadas a configuração do primitivismo de áreas
que recobrem a paisagem humana. As disposições não são restritas aos caiçaras e há a
prática de moradores de foram se instalarem em acordos com as comunidades locais. No
marco do receio do aumento populacional frente a recursos limitados da natureza, e com
os exemplos, trazidos neste capítulo, das tentativas de grupos econômicos aliando-se a
órgãos da administração pública, em se contornarem disposições legais ambientais, não
apenas relacionadas à APA de Cairuçu; vemos que o receio passa a justificar o pano de
fundo do exercício do controle sobre as comunidades, que não fosse intencional, em
princípio, é o que se apresenta nas proibições e permissões; permissões estas
acompanhadas de um “desde que”.

As disposições quanto ao uso da água, de madeira para canoas e remos e


manutenção das casa, de moradores isolados e suas roças, a construção de novas casas
são como as dispostas com as restrições e vedações na ZURE, sendo que agora, na Zona
de Uso Comunitário ― ZUCO, é permitida em médio impacto, as roças, “inclusive o
pousio” e a implantação de implantação de estruturas rústicas de apoio à atividade
produtiva, mediante autorização do ICMBio, permitidas infraestrutura de
empreendimentos de proprietários que apresentem documentos fundiários
comprobatórios e que não ultrapassem 15% da dimensão da propriedade construções

227
rústicas, não sendo permitidas tais construções no entorno imediato da Zona Populacional
Caiçara; barcos a motor nos manguezais do Saco do Mamanguá e no Rio Grande não são
permitidos, só o são para “os moradores das comunidades tradicionais do local e sob as
condições definidas em planejamentos específicos ou com anuência do conselho gestor
da APA de Cairuçu”. O objetivo da ZUCO, ao lado de restringir o adensamento de
construções residenciais, é dito que a se buscou integrar a unidade de conservação à
“dinâmica social e econômica das comunidades, bem como a subsistência de moradores.

justes usos dos recursos naturais são indicados em previsões de plano de


manejo florestal e a navegação em planejamentos específicos. Até que ocorram, e se
acordado pelas comunidades, sendo o acesso de comunidades por barco, no seu cotidiano,
se não incorrer em ilegalidade, ocorre em profundo desconforto com a “falta” de
regulamentação. Serão notificados? Até qual ponto a presença da unidade de conservação
e dos seus mecanismos traz uma parceria com as comunidades, dada a monta dos esforços
no detalhamento de inúmeras situações feitas nas disposições do Plano de Manejo
indicando e percorrendo a complexidade do território da APA de Cairuçu.

A visão de territórios tradicionais como áreas protegidas carece de ajustes


pelas lentes das comunidades dos territórios ― e precisariam? ―, o que é diferente das
consultas obrigatórias para o propósito de revisão das áreas conforme previsto no Sistema
Nacional de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC, embora seja interessante a
participação, mas o marco é o de uma unidade de conservação e não o de um território.

228
Figura 19 – Zoneamento da Área de Proteção Ambiental de Cairuçu, Plano de Manejo de 2018 (APA de Cairuçu/ICMBio)

Fonte: ICMBio, arquivo no formato “KMZ” disponível na página da APA de Cairuçu, com as seguintes inserções feitas por L. B. Ursini, em 2019 na figura acima: legenda junto à
figura, conforme layers da imagem, e alterada a cor da ZURB para cor preta para não se confundir com a cor da ZPRT e não está indicada a Zinf por ser pequena e não visualizável na figura acima.

229
A Zona Populacional Caiçara ― ZPCA “integram os Territórios Tradicionais
Caiçaras, reconhecidos conforme autodefinição das representações das comunidades”
(ICMBio ― Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, 2018, p. 62) e
há a indicação da definição dos territórios da seguinte maneira:

Territórios e comunidades tradicionais: a região é ocupada por quatro


grupos étnicos e culturais, os caiçaras, quilombolas, indígenas e
comunidades rurais, que apresentam diferentes níveis de garantia
sobre o território, buscando autonomia de gestão, condições materiais
de permanência e o manejo sustentável dos recursos naturais
essenciais para a continuidade de seus saberes, fazeres e identidade
cultural (gastronomia, religiosidade, músicas, rituais, ofícios, entre
outros). (ICMBio ― Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade, 2018, p. 49)

Definida como “áreas protegidas legalmente instituídas com regime jurídico


que prevaleça sobre a APA de Cairuçu”, a Zona de Sobreposição Territorial ― ZSTE
indica: o Parque Nacional da Serra da Bocaina (proteção integral, federal), a Estação
Ecológica de Tamoios (federal), o Território Quilombola Campinho da Independência
(associação e ITERJ), o Território Quilombola Cabral (associação e Incra), a Terra
Indígena Parati Mirim (União) e a Terra Indígena Araponga (União). A não inclusão da
Reserva Ecológica Estadual da Juatinga (proteção integral, estadual) é explicada no Plano
de Manejo da APA de Cairuçu por não possuir seu próprio plano de manejo (ICMBio ―
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, 2018, p. 70) e a Área de
Proteção Ambiental da Baía de Paraty, Paraty-Mirim e Saco do Mamanguá (uso
sustentável, municipal) não foi mencionada dentre as áreas e há sobreposição da APA
municipal com a APA de Cairuçu e com a ESEC de Tamoios em parte das ilhas na Baía
de Paraty. A Área Estadual de Lazer de Paraty Mirim ― AELPM foi igualmente
ignorada. Estabelecido o diálogo com as Unidades de Conservação previstas no Sistema
Nacional de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC e dentre estas, aquelas
unidades de conservação federais ― a saber: Parque Nacional da Serra da Bocaina e
Estação Ecológica de Tamoios ― a APA de Cairuçu é das unidades de conservação de
uso sustentável uma categoria que pode praticamente tudo nela caber ao que me parece
ter sido estratégico o relevo, mais que o reconhecimento, dado às comunidades tracionais
caiçaras e rurais, povos indígenas e quilombolas. Pois, por meio das comunidades
caiçaras, povos indígenas e quilombolas, a área como um todo pode assumir outro status

230
em conservação, se o Estado tomar o discurso de que essas áreas são relevantes,
conservadas pelas comunidades, no seu papel de implementar a conservação da
biodiversidade no Brasil, compromisso que assumiu como signatário da Convenção sobre
a Diversidade Biológica―CDB. A elaboração do novo Plano de Manejo contou com
ciclos de reuniões desde 2017, em que foram realizadas mais de 30 reuniões com
comunidades e povos tradicionais (ICMBio ― Instituto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade, 2018). Também, a APA de Cairuçu, e com ela o governo federal, toma
a dianteira no aspecto da proposta de recategorização da Reserva Ecológica Estadual da
Juatinga pelo Estado do Rio de Janeiro.

Este é um exemplo de oportunidade em que o Estado, por meio da


administração, convalida as suas instituições e o seu domínio sobre territórios e sobre
populações tradicionais sob um olhar do meio ambiente como conservação e
desenvolvimento sustentável. As comunidades são apontadas empreendendo usos de
baixo impacto dentre as categorias que distinguem os estratos do zoneamento, o baixo
impacto é uma categoria que reside no corpo da conformação das leis a partir de
entendimentos de disciplinas ligadas ao meio ambiente-natureza para olhar populações.
Os elementos em sinergia são a provável dianteira na manutenção das instituições federais
no lugar ao desconsiderar as unidades de conservação estaduais e municipais; a
aproximação com as comunidades e povos tradicionais em reuniões em ciclos, por um
período em que esses pudessem de familiarizar com a proposta, se mover por ela e, por
fim, nela se virem; é uma unidade de conservação de uso sustentável, e não a de proteção
integral que o Estado do Rio de Janeiro planejou com a recategorização da Reserva
Ecológica Estadual da Juatinga, mais palatável aos demais ocupantes e munícipes; já
estava previsto no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC
que a unidade de conservação de uso sustentável pode ser convertida em proteção
integral, coisa que o governo federal não fez com a área da APA de Cairuçu e que pode
dar-lhe vantagem de aceitação popular na região. Transcrevo as passagens da lei:

Artigo 22 do SNUC ― As unidades de conservação são criadas por ato


do Poder Público.

.........................

231
§ 5o As unidades de conservação do grupo de Uso Sustentável podem
ser transformadas total ou parcialmente em unidades do grupo de
Proteção Integral, por instrumento normativo do mesmo nível
hierárquico do que criou a unidade, desde que obedecidos os
procedimentos de consulta estabelecidos no § 2o deste artigo.

§ 6º A ampliação dos limites de uma unidade de conservação, sem


modificação dos seus limites originais, exceto pelo acréscimo proposto,
pode ser feita por instrumento normativo do mesmo nível hierárquico
do que criou a unidade, desde que obedecidos os procedimentos de
consulta estabelecidos no § 2º deste artigo. [o § 2º diz: A criação de
uma unidade de conservação deve ser precedida de estudos técnicos e
de consulta pública que permitam identificar a localização, a dimensão
e os limites mais adequados para a unidade, conforme se dispuser em
regulamento]

§ 7o A desafetação ou redução dos limites de uma unidade de


conservação só pode ser feita mediante lei específica.

O que já estava à disposição das comunidades caiçaras, antes do novo plano


de manejo da APA de Cairuçu, era o direito das comunidades caiçaras por meio em
obterem o Termo de Autorização de Uso Sustentável ― Taus, expedido pela Secretaria
do Patrimônio da União ― SPU, em caráter transitório e precário, segundo a Portaria/SPU
nº 89, de 15 de abril de 2010; e o direito ao Contrato de Concessão de Direito Real de
Uso ― CCDRU, este relacionado à própria APA de Cairuçu. No Plano de Manejo da
APA de Cairuçu, de 2018, a obtenção do TAUS, este porque se trata de área de marinha,
e do CCDRU está inserida no Plano de Manejo sob o título de “necessidade de
planejamento”:

Plano de Regularização Fundiária e Reconhecimento e dos territórios


caiçaras (Termo de Autorização de Uso Sustentável ― Taus, Contrato
de Concessão de Direito Real de Uso ― CCDRU, Zoneamento, Reserva
Extrativista ou ampliação da APA), com apoio a realização do
planejamento territoriais pelas comunidades. (ICMBio ― Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, 2018, p. 25)

Ressalto dois aspectos na aproximação com as comunidades como um


elemento de oportunidade: primeiro: os direitos são reintroduzidos (pois já existiam
antes) em um plano para planejar o que fazer posteriormente; não que seja prescindível o
planejamento, a ênfase é na reintrodução e (re)abordagem de coisas que já eram para

232
terem se passado, que fosse apenas como planejamento, fazendo dele um lugar para as
comunidades em detrimento de resolução, esta que seria, ainda, paliativa, porque se tratar
de territórios tradicionais lidos no marco das unidades de conservação e não em
instrumentos legais próprios com autonomia para as comunidades; e o segundo aspecto:
a possibilidade de ampliação da APA. A possibilidade de ampliação da APA de Cairuçu
não repousa apenas nas comunidades e nos seus territórios, mas a partir delas, como vejo,
alcançam outros setores da população.

Para as propostas na “necessidade de planejamento”, que consta em uma


tabela grande no Plano de Manejo, há uma coluna anterior em que estão identificadas as
“ameaças”. As ameaças para o trecho que transcrevi acima foram indicadas nas oficinas,
segundo o Plano de Manejo, o que faz do conteúdo da tabela um diagnóstico de situação:
(a) falta de informação sobre limites e usos permitidos (direitos e deveres) para todos os
territórios tradicionais, (b) especulação e pressão imobiliária sobre as comunidades
caiçaras e (c) ausência de serviços e políticas públicas (saúde, educação, água, luz,
saneamento, etc.) em todos os territórios tradicionais. Também, o “Plano de
Regularização Fundiária e Reconhecimento e dos territórios caiçaras” é indicado para as
“ameaças”:

Plano de Regularização Fundiária e Reconhecimento e dos territórios caiçaras


(Termo de Autorização de Uso Sustentável - Taus, Contrato de Concessão de Direito Real
de Uso - CCDRU, Zoneamento, Reserva Extrativista ou ampliação da APA), com apoio
a realização do planejamento territoriais pelas comunidades: (a) degradação das praias,
ilhas e costões por construções irregulares ameaçando os modos de vida tradicionais, (b)
pressão imobiliária. (c) cerceamento de caminhos terrestres dos comunitários nas praias,
ilhas e costões (e) falta de saneamento básico nas praias (água tratada, coleta de lixo, rede
e tratamento de esgoto). Entre “a” e “e” há questões que são ameaças à própria unidade
de conservação e que se mesclam a ameaças contra as comunidades e onde podemos ver
as próprias comunidades como ameaças.

5.2.4. Área de Proteção Ambiental da Baía de Paraty,


Paraty-Mirim e Saco do Mamanguá

A Área de Proteção Ambiental da APA municipal da Baía de Paraty, Paraty-


Mirim e Saco do Mamanguá é uma unidade de conservação municipal criada por meio
233
da Lei Municipal nº 685, de 11 de outubro de 1984, em consonância com a Lei federal nº
6.902 de Lei nº 6.902, de 27 de abril de 1981, que prevê e dispõe sobre a criação de Áreas
de Proteção Ambiental e de Estações Ecológicas; esta lei é vigente e é anterior à
instituição do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza ― SNUC em
2000 que, como visto anteriormente, reuniu sob um sistema categorias de unidades de
conservação existentes e delineou novas categorias.

A criação da APA de Cairuçu é, também, apoiada na Lei nº 6.938, de 31 de


agosto de 1981, que traz disposições sobre a Política Nacional do Meio Ambiente ―
PNMA. Desde 1990, com o Decreto federal nº 99.274, de 6 de junho de 1990, há
incentivos para a criação de Áreas de Proteção Ambiental como a priorização por parte
de instituições federais de crédito e de financiamento aos pedidos encaminhados com o
apoio da Secretaria Especial do Meio Ambiente ― SEMAM, da Presidência da República
cujo objeto seja a melhoria das condições habitacionais e sanitárias das propriedades e o
“uso racional do solo” das propriedades situadas em uma Área de Proteção Ambiental; a
consideração de relevância e o reconhecimento público dos serviços prestados à causa
conservacionista por qualquer forma que sejam eles prestados; e, aos proprietários de
terras abrangidas pelas Áreas de Proteção Ambiental, é facultado que coloque o nome da
APA nas suas placas indicadoras de propriedade para a promoção de atividades turísticas
e, também, podem mencionar o nome da APA para eventual indicação de procedência
dos produtos nela originados; (arts. 30, Parágrafo único; 31 e 32 do Decreto nº
99.274/1990).

O decreto de 1990 prevê penalidades sob a forma de multas a diversas


atividades consideradas degradadoras do meio ambiente, dentre as quais: realizar na
APA, sem licença do respectivo órgão de controle ambiental, “a abertura de canais ou
obras de terraplanagem, com movimentação de areia, terra ou material rochoso, em
volume superior a 100 metros cúbicos, que possam causar degradação ambiental” (art.
35, inciso I) e outros dispositivos quanto aos corpos hídricos, à ictiofauna e outros que
podemos reconhecer nas restrições do Plano de Manejo da APA de Cairuçu, além de
disposições para o meio ambiente urbano.

234
Figura 20 ― APA Municipal da Baía de Paraty, Paraty-Mirim e Saco
do Mamanguá; Área Estadual de Lazer de Paraty-Mirim

A delimitando a APA de Cairuçu incluía uma porção terrestre a partir do eixo


da rodovia BR-101, ou rodovia Rio-Santos, para abranger a baía de Paraty, desde a Ilha
das Cobras até o Corumbê, ao norte do dentro de Paraty. Os limites foram alterados para
incluírem interior do Saco do Mamanguá e o interior da Enseada de Paraty-Mirim com a
Lei Municipal nº 744, de 9 de novembro de 1987, alterou os limites compondo-os somente
com a parte marítima. Ambas as leis preveem multas para infratores e reincidentes, no
caso da lei de 1987, que alterou a de 1984, há a previsão para a punição em uma terceira
vez; ficando 3, 6 e 10 salários mínimos.

Como medidas ambientais expressas em leis, a municipalidade regulamentou


o Transporte na baía de Paraty embarcações com capacidade superior a 30 pessoas (Lei
municipal nº 1.475/2005) e proibiu o uso de descartáveis estabelecimentos comerciais nas
ilhas da baía de Paraty inseridas dentro da unidade de conservação da APA do Cairuçu o
que da Estação Ecológica de Tamoios, sendo permitido destilados em garrafa em
refrigerantes e cerveja sem lata e previstas punições e da previsão de fiscalização (Lei
municipal nº 1.884/2013).

Vemos, na “Figura 20 ― APA Municipal da Baía de Paraty, Paraty-Mirim e


Saco do Mamanguá; Área Estadual de Lazer de Paraty-Mirim”, que a contiguidade entre
duas unidades de conservação da mesma categoria ― duas Áreas de Proteção Ambiental

235
― e com objetivos estatuídos no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da
Natureza―SNUC iguais, mescladas cada uma delas às suas próprias especificidades,
localmente não formam um conjunto, um sistema, localmente por questões políticas e
econômicas. A APA de Cairuçu é uma unidade de conservação terrestre, continental e
mais 63 ilhas, que não tem previsão no SNUC de uma Zona de Amortecimento para ela;
a região do Saco do Mamanguá é importante para APA de Cairuçu por compor o
ecossistema dos costões rochosos e nem por isso abrangeu relações com a unidade de
conservação municipal. Cabe ressaltar que as ações contra ou a despeito da APA de
Cairuçu ― abertura de caminho, licenciamento de atracadouro no Saco do Mamanguá,
aqui mencionadas ― feitas em nome da prefeitura parecem não ensejar uma relação de
confiança.

A sobreposição entre a APA de Cairuçu e a APA Municipal da Baía de Paraty,


Paraty-Mirim e Saco do Mamanguá se dá nas ilhas no interior dos das baías e da enseada
que a Área de Proteção Ambiental municipal abrange, estas, também, em relação de
sobreposição com a Estação Ecológica de Tamoios, unidade de conservação de proteção
integral marinha criada na instância federal, cujas Zonas de Amortecimento das suas 29
ilhas é de um raio de um quilômetro. Ao aparente, ou não, isolamento da APA municipal
da Baía de Paraty, Paraty-Mirim e Saco do Mamanguá, há a leitura da região como um
todo por parte do ICMBio que busca acomodar contradições de sobreposições e políticas
em uma solução na resposta sintética para uma pergunta rápida, postada na página oficial
do ICMBio, portanto um documento, na seção “perguntas frequentes”, em que a figura
dos corredores ecológicos foi providencial:

[pergunta:] O que são a APA de Cairuçu, o Parque Nacional da Serra da


Bocaina, a ESEC Tamoios, a REGE [sic] Juatinga e a APA Baía de Paraty?

[resposta do ICMBio:] São cinco unidades de conservação que


compõem o corredor de áreas protegidas no município de Paraty/RJ,
das quais três são federais e gerenciadas pelo ICMBio, uma é estadual
e administrada pelo Inea e uma é ligada à prefeitura municipal de
Paraty.113

113 Para acesso à seção na página oficial do ICMBio: http://www.icmbio.gov.br/cairucu/quem-


somos/perguntas-frequentes/com-phocagallery-imagerating/110-o-que-sao-a-apa-de-cairucu-o-parque-
nacional-da-serra-da-bocaina-a-estacao-ecologica-de-tamoios-a-reserva-ecologica-estadual-da-juatinga-e-
a-area-de-protecao-ambiental-baia-de-paraty.html.

236
5.2.5. Estação Ecológica Tamoios – federal

Unidade de conservação marinha, nas jurisdições dos municípios de Paraty e


de Angra dos Reis, a Estação Ecológica de Tamoios é uma dentre as unidades de
conservação criadas pela Secretaria Especial do Meio Ambiente ― SEMA ― que havia
sido criada, em 1973 no reflexo da Conferência sobre a Natureza, o Homem e a Biosfera,
em Estocolmo no ano de 1972, e desfeita aquela Secretaria para integrar a estrutura do
novo órgão criado em 1989, o Ibama. A APA de Cairuçu insere-se no rol de atribuições
da SEMA ― na criação das categorias Áreas de Relevante Interesse Ecológico ― ARIEs,
Áreas de Proteção Ambiental ― APAs e Estação Ecológica ― ESECs ― com o Professor
Paulo Nogueira Neto do Instituto de Biologia da Universidade de São Paulo à frente
daquela Secretaria entre 1974 e 1986. A Estação Ecológica de Tamoios é criada no ano
seguinte à criação do Ibama, pelo Decreto nº 98.864, de 23 de janeiro de 1990, com base
na Lei nº 6.902, de 27 de abril de 1981 ― lei vigente e que dispõe sobre a criação de
APAs e de ESECs ― onde consta a definição e finalidade de uma Estação Ecológica
como:

Áreas representativas de ecossistemas brasileiros, destinadas à


realização de pesquisas básicas e aplicadas de ecologia, a proteção do
ambiente natural e ao desenvolvimento da educação conservacionista.
(art. 1º, Decreto nº 98.864/1990)

Ao que a Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, a Lei do SNUC, define uma


Estação Ecológica indicando dela o objetivo de “preservação da natureza e a realização
de pesquisas científicas” (art. 9º, SNUC/2000) e desobriga o procedimento de Consulta
para a sua criação e o mesmo se passa com procedimento de criação de Reservas
Biológica, ambas categorias das mais restritivas ao uso e ao consumo de recursos naturais,
exceto pesquisa científica autorizada (Art. 22. § 4º, Lei nº 9.985/200). O nome da Estação
Ecológica de Tamoios tem a curiosidade na sua escolha pelo cientista Paulo Nogueira
Neto, conforme relatado no Plano de Manejo da Estação Ecológica de Tamoios:

A Estação Ecológica de Tamoios foi estabelecida numa região habitada


pelos antigos índios tupinambás, dos quais os tamoios constituíram um
segmento importante. Chegaram a formar a Confederação dos
Tamoios, que se aliou aos franceses contra os portugueses. Eram índios
da grande família Tupiguarani. Dos índios litorâneos da época do

237
descobrimento, os tupinambás são os melhor conhecidos, pois o
artilheiro alemão Hans Staden, capturado e mantido por eles, na região
de Ubatuba, escreveu um livro sobre o seu cativeiro. Aproveitei-me
desse fato, pois quando tive que dar nomes a algumas ilhotas-
rochedos, no arquipélago de Alcatrazes, usei os nomes de alguns
caciques citados por Hans Staden. Alcatrazes está mais ao sul da
Estação Ecológica Tamoios. Era território disputado por Tupinambás e
Tupiniquins. (ICMBio, 2001, p. 6)

O Estação Ecológica de Tamoios, constituída por 29 ilhas114 e o entorno de


um quilômetro destas; e a Área de Proteção Ambiental de Cairuçu, com 63, se sobrepõem
na ilhas: do Catimbau, dos Ganchos, das Palmas, Comprida e Grande (em Tarituba),
Pequena, Araçatiba, Laje do Cesto, Ilha Araraquarinha e Araraquara, Jurubaiba, Ilha do
Algodão (do norte) e Rochedo de São Pedro (IBAMA, 2004, p. 19 e 152).

Embora não sejam permitidos a ocupação e o uso dos recursos naturais, à


época da elaboração do Plano de Manejo da Estação Ecológica de Tamoios, em 2001,
forma identificados como problemas que ameaçavam gravemente tanto os objetivos de
preservação quanto a unidade de conservação em si, dentre os quais: o pouco
conhecimento da unidade de conservação pela população local; turismo descontrolado
como forma de desenvolvimento da região; degradação de manguezais; efluentes
industriais da Baía de Sepetiba; grande número de embarcações lançando resíduos no
meio hídrico; inexistência de gerenciamento costeiro; instalação de grandes
empreendimentos como hotéis e condomínios lançando efluentes diretamente na baía; e
o interesse coletivo desassistido frente ao poderio econômico e político. Outras questões
relacionadas como “pontos fracos” no Relatório da Oficina de Planejamento, dos quase
destaco os relativos às ilhas e cercanias, forma indicados no relatório: Arrastões próximos
as ilhas; coleta de estrelas do mar, moluscos, corais para o artesanato; invasão das ilhas
da unidade e conflitos fundiários; venda ilegal de ilhas; Comércio no interior das ilhas
fonte, famílias instaladas em ilhas; casas de veraneio (segunda residência); turismo,
atividades recreativas e comerciais interior da ilha. (ICMBio, 2001-b). Chamo a atenção,
aqui, para o desconcerto da Lei municipal que regulamenta a proibição de uso de
descartáveis em comércio na região da baía de Paraty permitindo a venda de destilados
em garrafa e latas de cervejas e refrigerantes. ainda que providencial para a redução de
resíduos sólidos que possam ir ao mar, a regulamentação indica explicitamente a região

114 São ilhas, lages, ilhotes e rochedos.

238
da estação ecológica de Tamoios. esquecendo de proteção integral é de categoria das mais
restritas como as reservas biológicas, já se não era para ali estar. Também, a sanção da lei
parece correr em socorro dos efeitos de um turismo agressivo e descontrolado.

Outros aspectos das dificuldades enfrentadas pelos gestores da Estação


Ecológica de Tamoios identificados e relatados na oficina de planejamento, em 2001,
foram: o manejo deficiente poucos funcionários na unidade pouca circulação da unidade
com o contexto local; dificuldades para fiscalização por conta da localização geográfica
das ilhas, o que dificulta; fiscalização fraca por parte do Ibama eu norteada pela repressão
e não pela educação; precariedade da educação ambiental; e ser uma unidade de
conservação de fácil acesso, situada em área de fluxo de embarcação de lazer e turismo
fonte, Perímetro muito grande, fragmentação eu dispersão da área, e precisam de
documentos legais enquanto em torno Marinho e dificuldade de visualização ainda
imitação física que é abstrata por não ter referências. O relatório informa que “existem
usos tradicionais de difícil supressão”, o que pode ser interprestado como “arraigados” e
não restritos às comunidades. Dentre os “pontos fortes” genericamente da ESEC de
Tamoios foi apontada a quase inexistência de populações tradicionais (ICMBio, 2001-b).
Há o ponto positivo, na perspectiva da defesa da permanência e direitos das comunidades,
no fato de serem indicadas como uma questão, ou mesmo um “problema”, diante da qual
se deve, necessariamente, parar e cuidar.

É necessário considerar a peculiaridade da Estação Ecológica de Tamoios.


Sua criação foi obrigatória por força do Decreto nº 84.973, de 29 de julho de 1980,
vigente, que determina, em seu primeiro artigo, que “as usinas nucleares deverão ser
localizadas em áreas delimitadas como estação ecológicas”. Explicado, no decreto, que
há a necessidade de ambiente em excelentes condições ecológicas para serem feitas
avaliações pormenorizadas da atividade nuclear. Esta determinação, não propósito do
acompanhamento preciso uma das características do meio ambiente na operação do
empreendimento, compatibilizou a necessidade de conservação do meio ambiente e o uso
racional dos recursos naturais com o imperativo da continuidade do programa nuclear
brasileiro. As providências para criar uma Estação Ecológica e a efetivação da unidade
de conservação ficam ao cargo do Ministério das Minas e Energia e, à época, ao
Ministério do Interior ao qual vinculava Secretaria Especial do Meio Ambiente ―
SEMA.

239
Os projetos de grande porte, à época da realização da Oficina de
Planejamento, cujo relatório consta no Plano de Manejo da Estação Ecológica de
Tamoios, em 2001, eram a movimentação portuária em Angra dos Reis para a descarga
de petróleo e a Usina Nuclear, na atualidade se soma a movimentação relacionada ao Pré-
Sal.

5.2.6. Parque Nacional Serra da Bocaina ― federal

O Parque Nacional da Serra da Bocaina foi criado abrangendo áreas


particulares, terras devolutas, terras do Horto Florestal de Mambucaba e o Núcleo
Colonial Senador Vergueiro. A redelimitação do Parque Nacional Serra da Bocaina—
PNSB se deu por meio do Decreto nº 70.694, de 8 de junho de 1972, pouco mais de um
ano após ter sido criado pelo Decreto nº 68.172, de 4 de fevereiro de 1971. Dentre os nove
municípios abrangidos, dois deles, estão no Estado do Rio de Janeiro e os demais no
Estado de São Paulo. No Município de Paraty, o parque abrange cerca de 40% da área do
município contornando e emoldurando a baía. Com a redelimitação, o parque foi reduzido
e dos 134.000 iniciais restaram 110 mil, dos quais 6 mil são de área marinha; e, também,
foi redefinida a sua localização deixando de compreender áreas no município de Bananal,
vizinho à Angra dos Reis, em São José do Barreiro para englobar áreas em Paraty e no
Litoral Norte Paulista.

Conforme o Plano de Manejo do Parque Nacional da Serra da Bocaina, a


retirada de áreas do município de Bananal e de áreas do município de São José do Barreiro
da abrangência do parque se deveu a um pedido do Instituto do Patrimônio Histórico e
Arquitetônico Nacional ― IPHAN. Os limites do parque são imprecisos, segundo o Plano
de Manejo do Parque Nacional da Serra da Bocaina, por serem indicados em cotas
altimétricas e limites de fazendas (MMA - Ministério do Meio Ambiente, 2002 [data de
aprovação do Plano de Manejo], p. 7). Que fosse o motivo, a justificativa, daquela
alteração o pedido do IPHAN, no entanto, a Fazenda Guebetiba, adquirida em 1985 para
compor o Parque Nacional da Serra da Bocaina, há irregularidades no processo de
aquisição praticadas por servidores do antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
Florestal―IBDF, depois Ibama e em 2007 dividia as atribuições entre o Ibama e o
ICMBio criado em 28 de outubro desse ano.

240
Antes, se faz necessário mencionar que as área protegidas em Paraty foram
instituídas para bloquear a devastação das áreas naturais com a abertura da rodovia Rio-
Santos, assim foram criados o Parque Nacional da Serra da Bocaina, em 1971, e o Parque
Estadual de Paraty, em 1972 ― com o nome de Área Estadual de Lazer de Paraty Mirim
― AELPM, de 1976 à atualidade; sendo que as terras que compuseram o parque haviam
sido desapropriadas em 1960, por meio do Decreto estadual nº 6.897, por “pressão dos
trabalhadores das antigas Fazendas Paraty-Mirim e Independência” (CPDA, 2015, p.
302). Essas terras, quando ainda estavam ocupadas por posseiros, os trabalhadores e
locais, foram doadas à Companhia de Turismo do Estado do Rio de Janeiro ―Flumitur
para que o Parque Estadual fosse criado. Foram comunidades tradicionais ― que não
tinham esse nome à época ― dentre os trabalhadores rurais os despojados do seu
território, do seu trabalho, da sua moradia.

Aqui reencontramos a fala de Ronaldo, quilombola do Campinho da


Independência, representando o Fórum de Comunidades Tradicionais ― FCT naquela
reunião com o Ministério Público Federal acerca da questão da proibição de acesso e do
trânsito dos caiçaras da Praia do Sono que ressaltou se tratarem de trabalhadores, uma
luta pela terra e os símbolos e agências capitalista, que pudesse parecer uma colocação
deslocada naquela reunião anotada em memórias e passagens, mas é esse percurso
violento que aquela fala recobra para que não se deslinde da história das comunidades
tradicionais e que não seja perdido nas novas descrições dos seus conhecimentos, dos
seus serviços prestados ao ambiente, da sua colaboração com a biodiversidade e, por fim,
por regulamentações que possam interferir em seu trabalho e na sua territorialização
histórica. Votamos, portanto, àquela região de Paraty ― Trindade, Sono Laranjeiras e
Ponta Negra ― em um momento anterior à reunião do Ministério Público com caiçaras,
representantes do Condomínio Laranjeiras, da OTSS e do FCT: na aquisição irregular da
Fazenda Guebetiba pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal―IBDF, em
1985 (GOMES, 2002, p. 24), para compor a área do Parque Nacional da Serra da Bocaina.
Tratava-se de um falso topônimo, portanto.

241
Figura 21 ― Sobreposição entre a APA de Cairuçu e o PARNA da
Bocaina, com detalhe da porção marítima da Fazenda Guebetiba
(mapa-base em “Cidade-Brasil” online)

Explica o Relatório “Conflitos por terra e repressão no campo no estado do


Rio de Janeiro (1946-1988)”, que o nome “Guebetiba” era desconhecido dos moradores
locais e, portanto, esses não identificariam a venda que incluiu terras de terceiros, os quais
não souberam da transação de venda de áreas de condomínios como o Laranjeiras e as
fazendas Serraria e Barra Grande. A fazenda Guebetiba possuía dois terços em terra e um
terço no oceano, aí cerca de 6.000 hectares (CPDA, 2015, p. 302), como pode ser
observado na Figura 21 ― Sobreposição entre a APA de Cairuçu e o PARNA da Bocaina,
com detalhe da porção marítima da Fazenda Guebetiba.

Segundo o Plano de Manejo do Parque Nacional da Serra da Bocaina,


aprovado em 2002 pela Portaria/Ibama nº 112, de 21 de agosto de 2002 (MMA -
Ministério do Meio Ambiente, 2002 [data de aprovação do Plano de Manejo], pp. 11, 12),
a nova delimitação do Parque Nacional da Serra da Bocaina, em 1972, incluiu as áreas
costeiras e marinhas na região de Trindade, na divisão entre os estados de São Paulo e
Rio de Janeiro abrangeu o costão rochoso do Camburi e, também, as praias do Meio,
Caixa de Aço (Caxadaço) e as ilhas do Tesouro, de Trindade e da Casca.

242
5.2.7. Reserva da Biosfera da Mata Atlântica

Figura 22 -- Reserva da
Biosfera e respectivas
zonas da Mata Atlântica

Reserva da Biosfera

Fonte: Plano de Manejo do


Parque Nacional da Serra
da Bocaina, sítio do ICMBio.

A gestão da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica—RBMA (vide “Figura


22 -- Reserva da Biosfera e respectivas zonas da Mata Atlântica”) é feita por Comitês
Estaduais e um Conselho Nacional. Criada em 1992 pela Unesco, a RBMA abrange as
áreas protegidas do domínio da Mata Atlântica e seus remanescentes florestais, ambientes
ecossistêmicos associados e ilhas, são cerca de mil municípios abrangidos em uma área
de 290 mil Km2 (ICMBio, 2004, p. 24). São sete unidades desse tipo no Brasil: a da Mata
Atlântica, a do Cinturão Verde de São Paulo, a do Cerrado, a do Pantanal, a da Caatinga,
a da Amazônia Central e a da Serra do Espinhaço. A Lei do SNUC, promulgada em 2000,
se alinha à forma de gestão integrada das Reservas da Biosfera.

O núcleo da reserva é parte do Parque Nacional da Serra da Bocaina, a zona


de influência tem a Estação Ecológica de Tamoios com as ilhas e, também, a Usina Termo
Nuclear de Angra dos Reis. Ao longo desse tempo, “procurou-se tomar medidas para
conter este processo [de degradação ambiental provocado pela valorização das terras],
através da criação das diversas unidades de preservação” (ALMEIDA, 1997, p. 33). Uma
delas foi o Parque Nacional da Serra da Bocaina, criado pelo Decreto Federal nº 68.172
de 04/02/1971, com 130 mil hectares e outra, a criação do Parque Estadual de Paraty-

243
Mirim, em 1972. Ao longo desta década e da seguinte, outros parques foram criados,
indicativo que as tensões socioambientais ainda pairavam na região: em Paraty, foi criada
a Área de Preservação Ambiental do Cairuçu, em 1983; na Ilha Grande, a Praia de
Aventureiro teve uma de suas partes transformada em Reserva Biológica Estadual da
Praia do Sul, em 1981. Também foi criada a Área de Proteção Ambiental de Tamoios, em
1986. Para tanto, foi feita a desapropriação das terras afetadas.

5.3. Outras sobreposições em Paraty

A Indicação Geográfica parte dos atributos territoriais de dada região para


referendar um produto, no caso, a cachaça, sem propriamente intervir nos usos e forma
de ocupação; mas podemos compreender haver interferência porque as condições dadas
para a referenda do produto não poderão ser alteradas e é uma territorialização das regras,
dentre as quais, apenas os produtos daquela região delimitada poderão contar com a
indicação de origem. Já o tombamento de Paraty como sítio prevê restrições detalhadas
sobre o usos e a ocupação do solo em Paraty, o que foi questionado pela Câmara dos
Vereadores daquele município, como se verá adiante.

5.3.1. Indicação Geográfica da cachaça de Paraty

Sentaram-se à mesa. Quaresma agarrou uma pequena garrafa de cristal


e serviu dous cálices de parati.
― É do programa nacional, fez a irmã, sorrindo.
― Decerto, e é um magnífico aperitivo. Esses vermutes por aí, drogas!
Isto é álcool puro, bom, de cana, não é de batatas ou milho...
Ricardo agarrou o cálice com delicadeza e respeito, levou-o aos lábios
e foi como se todo ele bebesse o licor nacional.
― Está bom, hein? indagou o major.
― Magnífico, fez Ricardo, estalando os lábios.
― É de Angra.
(O triste fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto)

“Paraty” é metonímia de “cachaça”.

Parati, 1666, ao redor de Angra dos Reis, vai avançando de tal ritmo
que, ao passar na centúria imediata, no nome da Vila é sinônimo
nacional da aguardente. Um cálice de parati, diz-se [sic] ainda hoje,

244
como que diz Madeira, Porto Colares, Cognac, Champagne, Bordeaux,
Tokay, terras que são nomes de vinhos. (CASCUDO, 2006)

A produção de cachaça foi proibida, em 1690, por Portugal, porque se


necessitava de açúcar na Europa115 (CASCUDO, 2006). A proibição ocorre em épocas
quando o açúcar passa a perder lugar para o ouro no Brasil, na passagem do XVII para o
XVIII; e quando os escravos passaram a ser necessários para a mineração. Escravos
comprados nos mercados africanos com tabaco e cachaça (ibidem). A despeito da
proibição da sua produção, a cachaça era a economia pujante em Paraty contabilizada em
mais de 100 alambiques, não deixou de ser produzida. Governantes e superintendentes
fizeram o que se chama de “vista grossa”. Com a Indicação de Geográfica116 da cachaça
produzida em Paraty, em 2012, se estabeleceu um território para a procedência do
produto: da Serra do Mar para a linha do oceano, a parte alta do Município, acima das
encostas da Serra do Mar, na sua porção em Paraty, não pertence ao território da cachaça,
como segue:

Figura 23 ― Indicação Geográfica da Cachaça de Paraty

115 Em 1660, noutro momento econômico e político, a fim de se evitar a superprodução, se proibiu
a construção de novos engenhos no Brasil.
116 A Instrução Normativa nº 25/INPI/2013 dispões sobre a Indicação Geográfica.

245
Os pontos 1, 2 e 3 indicados acima são os pontos do memorial Descritivo
constante na Nota Técnica do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento ―
MAPA, sem número e sem data, assinada por André Vieira Ramos de Assis, Chefe do
Serviço de Política e Desenvolvimento Agropecuário DT/SFA-RJ/MAPA.

A exclusão da porção noroeste do Município de Paraty é justificada na Nota


Técnica/DT/SFA-RJ/MAPA por ser de ocupação que decorre da instalação das usinas
nucleares em Angra dos Reis. O rio Mambucaba se configurou como limite natural entre
Paraty e Angra dos Reis, conforme explicado na Nota Técnica:

Com os desentendimentos havidos por volta de 1660 entre as vilas de


Paraty e de Angra dos reis foi definido como divisa entre os domínios
destas cidades o Rio Mambucaba, seguindo a tendência corrente de se
buscar relevante acidente geográfico capaz de pôr fim a demanda.
Assim a planície de inundação do Rio Mambucaba ficou dividida entre
os dois municípios, esta porém, possui maior núcleo populacional em
sua margem esquerda, isto é em Angra dos Reis. (Nota Técnica/DT/SFA-
RJ/MAPA, s/d).

A justificativa para a atuação administrativa do governo em dada região


mobilizou a ideia entorno de coisas intocadas, conservadas, no suposto isolamento para
Paraty, sempre relacionado a vias terrestres conhecidas e instaladas ou não pelo governo,
portanto, uma noção de comunicabilidade repousada em estadas e rodovias do governo
como um critério próprio e útil para os próprios fins.

Antes da implantação da Rodovia Rio-Santos (BR 101) toda a


comunicação era realizada ou pelo mar, ou por pela Estrada Paraty-
Cunha, bastante precária. No mais a comunicação terrestre dependia
de caminhos só transpostos por tropas de muares, cujo deslocamento
lento cobria a distância máxima de cerca de 20 quilômetros em um dia.
Pelo mar, o deslocamento das pequenas embarcações não possibilitava
distanciamentos maiores no curso do dia. Por este motivo Paraty parou
no tempo, como atesta seu Centro Histórico, que mantém a mesma
aparência do período colonial. Desta forma, os alambiques foram
instalados na Baía de Paraty, pois a produção, ou se destinava ao
abastecimento das minas através da Estrada Real, ou à exportação,
pelo Porto de Paraty. (Nota Técnica/DT/SFA-RJ/MAPA, s/d)

246
Ainda percorrendo a observação dos argumentos para as justificativas, há o
ateste da região como identitária daquela cachaça e que, ao mesmo tempo, produz
cachaças em acordo com padrões especificados e com aprendizado desses padrões; feito
isso, Paraty é reinserida em seu ambiente dele ressaltados a beleza cênica e a gente:

Em Paraty, num passado recente, houve um intenso trabalho integrado


entre os produtores, mais tarde organizados na Associação dos
Produtores e Amigos da Cachaça Artesanal de Paraty (APACAP), os
técnicos do MAPA, e um consultor (especializado no processo
industrial) da Fundação Bio-Rio, mobilizado pelo Serviço Brasileiro de
Apoio à Micro e Pequena Empresa (SEBRAE), no sentido da adequação
dos alambiques às normas que regulamentam a produção de cachaça
no Brasil. Todos aprenderam no processo, levando ao estabelecimento
de técnicas de fabricação coerentes com a legislação, sem, contudo,
deixar de observar aquelas práticas tradicionais que levaram à cachaça
de Paraty renome internacional. De fato, a atração turística exercida
pelo Centro Histórico de Paraty, e a exuberante beleza natural
circundante sensibilizam cidadãos de todo mundo, em especial
franceses, alemães e italianos, que ao retornarem aos seus países de
origem não medem elogios a hospitalidade do povo, às belezas naturais
e à cachaça de Paraty. (Nota Técnica/DT/SFA-RJ/MAPA, s/d)

Também, o documento informa que na área excluída não há alambiques


registrado junto ao MAPA. A Nota Técnica percorreu os caminhos normativos
necessários para a atuação do órgão, foi o que ressaltei acima, fez a sua função, apenas
isso. Fora o fato de o território do Parque Nacional da Serra da Bocaina que coincidir
perto de 50% de área com o território da cachaça, cuja unidade de conservação de
proteção integral federal é restritiva a qualquer atividade humana exceto as de educação
ambiental, pesquisa, visitação e as instalações de manutenção e necessárias à visitação, o
que quero ressaltar é o aspecto da atuação institucional, para pensarmos os territórios, em
que as instituições primeiro institucionalizam os território para, depois, lidar com eles.

247
Figura 24 – Parque Nacional da Serra da Bocaina ― PNSB, Paraty, RJ

248
5.3.2. Paraty: Sítio Tombado

Paraty possui topônimos que atravessaram o tempo porque celebrados


historicamente: o lugar dos portões de ferro, a cadeia, o forte, a Igreja do Rosário, o rocio,
cada qual registrado em livros de tombos específicos, a depender da sua categoria, ou no
Livro do Tombo Etnográfico e Paisagístico, ou no Livro do Tombo das Belas Artes, ou
no Livro do Tombo Histórico. Um a um tombado e o conjunto deles delimitado por uma
poligonal na Portaria nº 402, de 13 de setembro de 2012, do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Ao conjunto é dado o nome de “Sítio Tombado”, que
coincide com a totalidade da área e com os limites do Município de Paraty. Conforme o
Art. 1º, como segue, o tombamento se deu no intuito manifesto de:

Estabelecer critérios e procedimentos que visam à preservação do


patrimônio artístico, histórico, arquitetônico, paisagístico e
arqueológico, do Município de Paraty, Estado do Rio de Janeiro,
doravante identificado como SÍTIO TOMBADO.

No município tombado por inteiro, as demais áreas para além do centro


histórico e cercanias foram categorizadas em três “Zonas de Preservação do Conjunto
Paisagístico de Paraty” que dele se irradiam e perfazem os limites administrativos do
município — o Sítio Tombado, as quais estão definidas no Art. 7º da Portaria nº
402/2012/Iphan:

I - Zona de Preservação do Patrimônio Natural (ZPPN): compreende


áreas que têm a função de garantir a conservação da paisagem e do
patrimônio natural, cujos limites abrangem a porção do Parque
Nacional da Serra da Bocaina no território de Paraty e todas as áreas
classificadas como Zona de Proteção da Vida Silvestre (ZPVS) pelo Plano
de Manejo da APA de Cairuçu instituído pela Portaria/IBAMA nº.
28/2005, em vigor na data de publicação desta Portaria;

II - Zona Especial de Preservação (ZEP): abrange toda a área


compreendida no círculo de 5 (cinco) quilômetros de raio cujo centro é
o ponto de interseção dos eixos da Praça Monsenhor Hélio Pires e da
Rua Marechal Santos Dias, de acordo com definição do Decreto
58.077/66, e toda a área situada entre o referido círculo e o limite da
ZPPN, acima identificada; e

249
III - Zona de Preservação (ZP): corresponde às demais áreas do
Município, não classificadas como ZPPN ou ZEP.

Segue mapa, conforme o anexo àquela portaria:

Figura 25 - Mapa das Zonas de Preservação do Conjunto


Paisagístico de Paraty, Port. 402/2012/Iphan

A portaria do Iphan, de 2012 — relativa às Zonas de Preservação do Conjunto


Paisagístico de Paraty —, termina por “tombar” a municipalidade inteira ao denominá-la
e a denomina Sítio Tombado e regulamenta as formas de intervenção nos espaços que
delimita (como construção de torres telefônicas, por exemplo) e as áreas impeditivas de
se construir ou manter estruturas que atrapalhem a visão do conjunto, especialmente no
centro histórico. O que ocorre é uma organização territorial e administrativa do espaço,
por meio de delimitações e prescrições de usos, ao mesmo tempo em que são alcançadas
áreas de proteção ambiental e povoações de populações tradicionais. Para tais
comunidades são delimitadas suas ocupações em poligonais acompanhadas dos
respectivos memoriais descritivos, são elas: Chapéu do Sol, Prainha de Mambucaba,
Tarituba, São Gonçalo, Taquari, São Roque, Barra Grande, Graúna, Praia Grande, Paraty-
Mirim, Cabral, Pedras Azuis, Novo Horizonte, Patrimônio, Curupira, Praia do Baixio,
Vila do Cruzeiro, Ponta da Romana, Praia Grande da Cajaíba, Calhaus, Pouso da Cajaíba,
Ponta da Juatinga, Martim de Sá, Saco das Enxovas, Cairuçu das Pedras, Ponta Negra,
Sono, Vila Oratório, Trindade, Ilha do Araújo, Ilha do Algodão.

250
A Câmara dos Vereadores de Paraty reagiu ao tombamento de Paraty. O
requerimento nº 23, de 24 de março de 2014117, questiona a Portaria/Iphan nº 402/2012
no ordenamento jurídico para as restrições que traz: proibição de edificações com telhas
metálicas ou outra, indicando que devem ser cobertas por telhas; o grau de inclinação do
telhado; proibição da construção de terraços nos pavimentos superiores (art. nº 25 da
Portaria/Iphan nº 402/2012); estipula taxa de ocupação (art. nº 24 da Portaria/Iphan nº
402/2012) e a distância de 30 metros de largura para a faixa litorânea de uso comunitário
(FLUC), a partir da faixa de marinha (art. nº 12 da Portaria/Iphan nº 402/2012); são
proibições que incidem sobre o zoneamento que a Portaria/Iphan nº 402/2012 fez,
excetuando a área do centro histórico do tombamento, mas incidindo sobre ela
disposições e para o território municipal como um todo. O vereador questiona se essas
seriam de competência do Iphan tanto quanto a sua atribuição para fiscalizar quanto para
proibir e autorizar (PARATY, 2014, p. 9), além de colocar em dúvida a competência do
Iphan para legislar, enfim, sobre o assunto de ordenamento do uso e da ocupação do solo,
de competência da municipalidade e a principal queixa do requerimento.

Acerca do embasamento legal, constante no preâmbulo da Portaria/Iphan nº


402/2012, onde podemos verificar que a competência ali indicada é no sentido de tombar
e indica normas de tombamentos ocorridos, de onde não deriva o tema do ordenamento
do uso e da ocupação do solo. Indica, ainda, o requerimento, diversos passivos do Iphan
com relação aos bens já tombados; a previsão feita pelo Iphan, antes, de adoção de um
plano urbanístico adequado a preservação do acervo arquitetônico e natural do sítio
histórico de Paraty; a possibilidade de ser criada uma fundação para a cooperação entre o
ministério da cultura, como o órgão federal para o melhoramento de estradas e vias e um
plano de turismo relacionado a Paraty como Monumento Nacional ― que figurou na
epígrafe dos documentos oficiais na Prefeitura de Paraty ao menos até ser Patrimônio da
Humanidade, no último dia 5 de julho de 2019 pela Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura ― Unesco. Os passivos indicados no Requerimento da
Câmara dos Vereadores de Paraty são retirados do Decreto nº 58.077, de 24 de março de
1966, que é vigente, e por meio dele Castelo Branco decretou Paraty em Monumento
Nacional naquele contexto do planejamento da construção de uma rodovia que ligasse o

117 Requerimento da Câmara Municipal de Paraty nº 23, de 24 de março de 2014, disponível no


sítio da Assembleia Legislativa e Câmara dos Vereadores de Paraty.

251
Rio de Janeiro a São Paulo, a BR-101/RJ, e que promovesse o turismo na parte baixa do
relevo, junto às praias.

A Portaria/Iphan nº 402/2012 indica 39 núcleo habitacionais, que são


comunidades locais e tradicionais.

Tabela 10 ― Comunidades locai e tradicionais listadas na


Portaria/Iphan nº 402/2012 (Sítio Tombado de Paraty)

Núcleos Habitacionais – Portaria/Iphan nº 402/2012


1 Barra Grande
2 Cabral
3 Cairuçu das Pedras
4 Calhaus
5 Condado
Coriscão II - Núcleos da Zona de Preservação: núcleos habitacionais
6
localizados dentro dos limites da ZP: Chapéu do Sol
7 Corisquinho
8 Corumbê
9 Curupira
10 Graúna
11 Ilha do Algodão
12 Ilha do Araújo
13 Martim de Sá
14 Novo Horizonte
15 Pantanal
16 Paraty-Mirim
17 Patrimônio
18 Pedra Branca
19 Pedras Azuis
20 Penha
21 Ponta da Juatinga
22 Ponta da Romana
23 Ponta Negra
24 Ponte Branca
25 Pouso da Cajaíba
26 Praia do Baixio
27 Praia Grande
28 Praia Grande da Cajaíba
29 Prainha de Mambucaba
30 Saco das Enxovas
31 São Gonçalo
32 São Roque
33 Sono
34 Taquari
35 Tarituba
36 Trindade
37 Várzea do Corumbê
38 Vila do Cruzeiro
39 Vila Oratório

252
Ao indicar os núcleos habitacionais, aquela portaria corrobora com uma
destituição do caráter tradicional das comunidades. Como conhecemos os nomes de
muitas, o efeito pode ser oposto: a depender alguma uniformidade há nos critérios
utilizados pelo Iphan118, para a Portaria/Iphan nº 402/2012, o que nos é apresentados são
núcleos comunitários e são, pelo menos 39 em Paraty indicados em documento oficial,
dentre os quais, comunidades tradicionais.

A figura de Sítio Tombado, como se dá em Paraty, pelo tombamento da


totalidade do município, sendo excetuadas áreas já tombadas, não consta de normatização
para esse efeito. Há tombamentos de conjunto de bens, de áreas para a preservação do
conjunto paisagístico a fim de resguardar a visibilidade — como é o caso das edificações
jesuíticas das Missões — regulando-se, inclusive, áreas de entorno. A cidade de Ouro
Preto foi tombada em grande proporção de seu território, em 2010, sendo que Paraty é o
único caso de tombamento integral até o presente momento.

5.4. Tipos de territórios

Por territórios tradicionais entendemos que são os territórios de povos


indígenas, quilombolas e de outras comunidades e povos que não foram nominados pelo
Estado, como o foram os povos indígenas e o remanescentes das comunidades dos
quilombos (ARRUTI, 2006). Porém, tais comunidades e povos existem previamente à
nominação e têm um território em vista. O reconhecimento de seus territórios por parte
do Estado resulta em um território institucional, delimitado administrativamente. Há
outros territórios que são delimitados administrativamente e que não se referem a grupos
étnico sociais, exemplos são o Sítio Tombado e a Indicação Geográfica; poderíamos
acrescentar o território do Semiárido, com os municípios integrantes dessa área; um
conjunto de municípios sob um consórcio municipal, etc. Os territórios que foram
abordados neste capítulo são os tradicionais, habitados pelas comunidades tradicionais,
reconhecidos ou não pelo Estado e em relação de sobreposição com áreas protegidas,
dentre as quais, unidades de conservação, por sua vez territórios institucionais como o
são as Terras Indígenas e os Territórios Quilombolas na regularização fundiária dos

118 O que é outra crítica em reação da Câmara em Paraty, do Vereador Luciano de Oliveira Vidal,
que questiona, além do que já indiquei acima, qual a metodologia utilizada pelo Iphan, pois a Portaria/Iphan
nº 402/2012 surge, sem um relatório ou outro documento que a apesente.

253
territórios tradicionais indígenas e quilombolas que passam ou passaram pelos
procedimentos de regularização fundiária.

A complexidade dos territórios em Paraty é fundiária, no sentido de que há


conflito fundiário e é, também, complexa a sobreposição de gestão de tais territórios, tanto
administrativa quanto tradicional, a das próprias comunidades nos seus territórios, gestão
esta turbada pela sobreposição de unidades de conservação que interferem principalmente
nos usos dos recursos naturais. Outras delimitações administrativas, que não implicam
em desapropriações e são inserções de gestão em dada área especificada, podem englobar
as unidades de conservação, as terras indígenas, os territórios quilombolas e os territórios
em que vivem comunidades tradicionais, como exemplos: a Reserva da Biosfera, o
Mosaico da Bocaina, a Indicação Geográfica e o Sítio Tombado de Paraty que, observo,
ao excluir do tombamento a delimitação das terras indígenas, dos território quilombola e
do que entendeu serem os territórios das comunidades tradicionais, procedeu ao que se
chama de “delimitação por fora”, ou seja, indicou onde não seria um território tradicional
e, remarque-se, sem capacidade técnica e normativa para tanto por parte do Iphan.

Faz-se necessário destacar que há a sobreposição física entre os territórios e


entre as atribuições institucionais na gestão e na administração desses territórios, na mais
da vez conflitantes119.

São três classes de territórios, diferenciados quanto à sua origem, finalidade


e constituição fundiária que remetem a instituições distintas: os territórios tradicionais, os
territórios institucionais e os territórios de gestão. Tomando Paraty, no Estado do Rio de
Janeiro, como um espaço amostral rico no aspecto da complexidade fundiária e de usos,
apresento, temos as classe de territórios:

Território Tradicional ― são os territórios segundo os critérios das próprias


comunidades: territórios do povos indígenas, das comunidades de quilombos e das
comunidades caiçaras (até o momento não se tem notícias de outras comunidades em
Paraty), incluem-se os caminhos e as rotas marítimas dos caiçaras.

Territórios Institucionais ― são os territórios segundo os critérios das


normas para o seu reconhecimento pelo Estado, aplicadas pela administração pública (no

119 Observo que as divisões e limites políticos territoriais de municípios, de unidades da federação
e do país ou as propriedades particulares não são objeto de análise aqui, mas que, eventualmente, estarão
envolvidas nessas três classes de diversas formas em uma profusão de situações e exemplos que serão
apontados circunstancialmente.

254
caso das Terras Indígenas e dos Territórios Quilombolas os critérios das comunidades são
traduzidos para os critérios das normas que, não raro, não alcança aqueles critérios todos):
Terras Indígenas, Territórios Quilombolas, Unidades de Conservação e as demais Áreas
Protegidas.

Territórios Englobantes ― são os territórios feitos para a gestão


administrativa, no caso do Sítio Tombado, se poderia falar em “território do patrimônio”,
ainda assim, englobante bem como a área do Patrimônio da Humanidade, no caso de
Paraty; são eles: Sítio Tombado de Paraty, Patrimônio da Humanidade, Reserva da
Biosfera, Mosaico de áreas Protegidas da Bocaina, Indicação Geográfica da Cachaça e
zonas do Zoenamento Econômico Ecológico Municipal.

Os territórios tradicionais comportam a territorialização pontual e vetorial ao


passo que os territórios institucionais primam pela fixidez, e os territórios englobantes,
como o nome diz, serão sobreposições por excelência.

As sobreposições entre os territórios institucionais de comunidades (terras


indígenas, territórios quilombolas, territórios das comunidades caiçaras e outras
tradicionais) e unidades de conservação trazem conflitos diversos e não um “reforço” para
as áreas mutuamente, o que poderia se dar, se fosse o caso, frente à exploração econômica
destruidora. Nisso, há um contraponto com o instituto do tombamento, pois o olhar a
partir do tombamento traz uma imagem de reforço de um bem em sucessivos
tombamentos. As disposições para o tombamento estão estatuídas no Decreto-Lei nº 25
de 30 de novembro de 1937, com Getúlio Vargas presidente do Brasil e Gustavo
Capanema ocupando a pasta de Ministro de Educação e Cultura. Ambos os dois
subscrevem esse decreto. O bem que a União vier tombar não impede que os estados e as
municipalidades também o façam, com o mesmo objeto (FRANÇA, 1982, p. 22),
sobrepostamente, onde cada uma das três instâncias atua conforme suas próprias
atribuições. O acamamento de tombos é visto como um “reforço” (ibidem) desse regime
de proteção. Sublinhe-se que tal reforço advém do mesmo universo de preocupações; o
que não se passa com as sobreposições entre unidades de conservação e territórios
tradicionais em que os usos dos recursos naturais são um ponto de atrito: sob eles se
identificam e se reconhecem terras indígenas, territórios quilombolas e territórios

255
tradicionais120 e por conta desses mesmos usos as unidades de conservação apontam uma
incompatibilidade das comunidades tradicionais abrangidas por elas.

Separar territórios institucionais (quilombolas, indígenas) dos territórios


tradicionais ocupados ou pleiteados por povos indígenas e quilombolas e outras
comunidades tem, aqui, a finalidade de evidenciar que preexiste um território, que é
delimitado e configurado segundo os critérios de cada comunidade para cada território.
Isso ajuda a entender os pleitos das comunidades por correção de limites ou pela demanda
por áreas lindeiras em boa parte dos casos, pois as normas para a identificação e
delimitação, além da necessidade de serem padrões para a ação da administração pública
e embora se possa em larga medida alcançar os critérios próprios das comunidades, não
se tem em conta todos os critérios das comunidades nesse marco da ação do Estado,
porque a questão é colocada pelo Estado e nos seus termos. Disso resulta que um território
identificado e delimitado para ser reconhecido pelo Estado, como já mencionado em outra
parte nesta Tese, tenderá a ser menor que o território de uma comunidade. Ainda, quanto
à sobreposição, não seria o território institucional, identificado para o reconhecimento do
Estado, uma primeira sobreposição ao território tradicional da comunidade? Se assim for,
quando falamos em sobreposições com unidades de conservação, estas seriam a segunda
sobreposição, portanto, aos territórios tradicionais. As questões das sobreposições são
tratadas entre territórios institucionais, portanto, esquecendo-se que há para as
comunidades os seus territórios tradicionais, estes convertidos em territórios
institucionais ao serem reconhecidos pelo Estado ao ingressarem em processo de
regularização fundiária e que ambos poderão, ou não, coincidir.

A constituição dos territórios institucionais terá o formato de território


pontual, na verdade, não um ponto, mas uma área, fixa e que “fixará” a comunidade nela.
Nisso estanca, ou dificulta sobremaneira, os processos históricos de territorialização em
curso são estancados ou dificultados. Se esses processos se referem à desterritorialização
das comunidades, será uma fixação positiva; no entanto, comunidades com dinâmicas de
ocupação mais expansivas ou descontínuas em áreas, serão prejudicadas no seu curso. As
comunidades caiçaras, entre as idas e vindas a porções territoriais, como abordado neste
capítulo, perderem parcelas consideráveis dos territórios que foram esbulhados por tais
idas e vindas. Portanto, a fixação em um território institucional, traz vantagens e

120 Nas normas diversas que asseguram a permanência por conta da pesca e de outras atividades
de um grupo específico.

256
desvantagens. No geral, fixar significa romper, inclusive, com tal mobilidade e liberar
terras.

Nas questões relacionadas a cada caso das sobreposições abordadas neste


capítulo podemos levar em conta a participação das comunidades, ou o envolvimento
delas nos casos, como tendo essas duas perspectivas: o seu território tradicional e o seu
território institucional. Junto a isso a atuação do Estado, que assumiu a responsabilidade
primeira naquela “conversão” para o reconhecimento dos direitos. Some-se processos de
regularização fundiária não levados a cabo, no caso das comunidades caiçaras, uma
miríade de normas que lhes garantem ou o acesso ao mar, ou o direito de pescar, ou a
permanência no chão de morada, todos em processos administrativos diferentes. Trata-se
tanto de uma dispersão das normas quanto da desintegração de uma comunidade
promovida pelas normas. O licenciamento ambiental do caminho ao Saco do Mamanguá
por entre a mata quando o caminho da comunidade para casa é negado porque se juntou
a isso os problemas, não poucos, com o trânsito de turistas; a construção de um
atracadouro com licenciamento em uma instância administrativa inadequada; a nova
Reserva do Patrimônio Particular Natural que amplia as restrições à comunidade Caiçara
de Laranjeiras e adjacentes solicitada na instância estadual, federal, em uma confusão de
limites e de procedimentos administrativos; a recategorização da Reserva Ecológica
Estadual da Juatinga com queixas das comunidades aos procedimentos de consulta na
distribuição de folhetos (como se verá no capítulo seguinte). É um universo de
informações e fatos dispersos, em que podemos ver Philip Abrams quando fala da
“retenção” das informações por parte do Estado (ABRAMS, [1977] 1988, p. 83), que
tomo em sentido amplo na figura do Estado, quando se faz presente, como o informante
e aglutinador das informações retidas, dispersas e não raro compondo uma narrativa
encadeada para elas.

Ao cuidar dos conflitos, em dirimi-los, em ouvir as comunidades ― e é uma


obrigação do Estado que ele mesmo se impôs ao mesmo tempo que um respeito às
comunidades ―, se pode ter a impressão tanto de que algo está sendo feito pelas
comunidade quanto que o estado irá resolver. São questões que afetam a vida cotidiana
das comunidades e por isso, urgentes. Abalam-lhes os caminhos para casa, o humor, o
trabalho, a escola do filho e a visão de si próprio. Bem, o que pode estar mais atrás? Dizer
que é a regularização fundiária pode não parecer criativo, mas é importante, porque é uma
questão premente, e isso não faz das questões diárias menores, o Estado deverá cuidar de

257
todas as questões e o que faz, é tomar as mais urgentes e cotidianas, boa parte decorrida
da regularização fundiária pendente. Com isso o Estado se faz presente e o status do
território das comunidades não muda para o reconhecimento do estado de forma efetiva.
Repousei a atenção em grande parte no que o estado deixa de fazer, a regularização
fundiária, e no que ele faz, estar presente por meio dos Procuradores, dos grupos de
identificação e delimitação, dos agentes do ICMBio e outros. Aqui, nas interações entre
os agentes administrativos a serviço do Estado para cuidar de implementação de políticas
públicas ajustadas às situações concretas ou dirimir os desajustes, ou outra questão,
podemos ter a “ilusão” de que fala Philip Abrams (ABRAMS, [1977] 1988, p. 98;
ABRAMS, et al., 2015, p. 63) de que as exigências, as demandas, e as denúncias de um
lado e, de outro, as restrições, as explicações, as impossibilidades não estão endereçadas
de um lado para o outro, e vice-versa, mas ambas ao Estado. E essa é a face da dominação,
segundo Abrams (ibidem).

258
6. Mosaico da Bocaina: sobreposições entre unidades de conservação

O mosaico é um território institucional diferente, ele tem a finalidade da


gestão integrada de unidades de conservação e é uma imagem de sobreposição
administrativa, prevista no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da
Natureza―SNUC. A finalidade do mosaico é, justamente, a de compatibilizar as
sobreposições entre unidades de conservação, conforme o SNUC.

Este é um capítulo mais descritivo. O material privilegiado são as atas das


reuniões do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina, com temas abordados no marco
das unidades de conservação próximas, sobrepostas ou justapostas, como definido o
mosaico no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC e a
participação das comunidades caiçaras, povos indígenas e quilombolas nas reuniões, por
conta de seus territórios se encontrarem em relação se sobreposição com unidades de
conservação e áreas protegidas.

O material foi obtido no sítio próprio do Mosaico da Bocaina, que buscou


visibilidade e se tornar um modelo de gestão integrada, sendo o Mosaico da Bocaina um
dos primeiros mosaicos reconhecidos. No sítio se encontravam as manifestações feitas
por gestores, pesquisadores e comunidades, como exemplo ao processo de licenciamento
ambiental de Angra 3, estudos sobre agroflorestal, relatórios e as atas das reuniões. O
material privilegiado são as atas, me reporto a outros documentos conforme o tema
abordado, que oferecem uma espécie de checagem dos temas discutidos entre as
comunidades e as instituições gestoras das áreas protegidas, de que as unidades de
conservação são um tipo destacado no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da
Natureza―SNUC, fazendo das atas um outro lugar para ver como os temas da
recategorização, da criação de unidades de conservação e as comunidades são tratadas.
Nas atas estão as dúvidas das comunidades quanto aos aspectos das sobreposições, da
constituição de “populações tradicionais” e, com isso, a sua definição. O que temos, a
partir do material contido nas atas, é o “funcionamento” da gestão das sobreposições,
inclusive entre unidades de conservação.

O mosaico ficou inativo, o que circunscreveu a análise no período de 2007 a


2015, e na passagem de 2018 para 2019 o sítio foi retirado do acesso ao público, o que
confere a esse material, que já era ímpar, o aspecto de alguma raridade. Até o fechamento
desta Tese não se conheceu as razões, exceto a inatividade do mosaico e mesmo assim, o

259
sítio havia permanecido disponível. É possível que as diversas instituições mantenedoras
de ações e projetos do mosaico ― dentre eles os meios de comunicação que tinham no
sítio esse aspecto, além do organizacional do próprio Mosaico da Bocaina ― tenham
cortado o apoio, que por vezes eram financeiros ou de disponibilização de técnicos e
pesquisadores envolvidos com os temas diversos mobilizados pelo mosaico. Para o
público que tenha interesse em visitar o sítio, obtive um recurso que ajuda a recuperar
sítios perdidos, cujos registros de captura estão no espaço cibernético 121, no entanto, na
curiosidade de saber se havia movimentação nova com disponibilização no sítio e, na
curiosidade do destino do sítio e dos documento lá existentes ― tendo o meu material
salvo em downloads, felizmente, muito antes disso ― observei que os documentos que
estariam disponíveis ao público vão se perdendo. Em dado momento estão acessíveis e
dias depois, não; são impossíveis de serem acessados conforme passa o tempo, o sítio está
se ruindo e a cada nova entrada a experiência é estar diante de um palimpsesto. Se este é
um reflexo do desmonte das instituições de pesquisa, como Fiocruz, Universidade Federal
Fluminense e outras cujos pesquisadores participaram em diversos momentos de projetos
e de ações do mosaico, e que tem rebatimento mais amplo nas desejáveis redes que foram
constituídas envolvendo governo, sociedade civil organizada, comunidades tradicionais
e instituições de pesquisa acadêmica, neste momento não há como saber, mas fica o
registro.

A finalidade deste capítulo é a de buscar evidenciar as relações entre


território, comunidade e identidade.

6.1. Reconhecimento do Mosaico da Bocaina

Os mosaicos, segundo Francisco Brito, se converteram em novas


modalidades de conservação juntamente com os corredores ecológicos, os primeiros
como gestão integrada e os segundos como gestão participativa (BRITO, 2012, pp. 23-
25), ao que acrescento o aspecto de regulamentarem os usos nas áreas que abrangem sem
implicar desapropriações, como dito no capítulo anterior. São uma espécie de
territorialização da gestão dos recursos, em que o envolvimento da população local e dos
setores interessados, de certo, são o maior desafio na gestão. O fato de não implicarem

121 Endereço para acesso: https://web.archive.org/web/sitemap/www.bocaina.org.br.

260
desapropriações, garantiria ao órgão ambiental maior desenvoltura ― antes Ibama e
depois ICMBio, ambos com sérios problemas constantes de alocação de recursos
humanos e orçamentários por parte do governo ― que é limitada justamente pelo pouco
pessoal disponível para a demanda. A gestão dos mosaicos, com as reuniões, organização
e coordenação é uma demanda sobre funções já desempenhadas pelos servidores, o que,
talvez, explique a não expansão do número de mosaicos e de corredores ecológicos.
Também, sendo um ato de reconhecimento por parte do Ministério do Meio Ambiente—
MMA e a pauta ambiental sendo ponto de pressão há tempos, pode ser este um outro
fator.

O Mosaico Capivara-Confusões (Piauí), é o único a trazer a delimitação de


um território para o Corredor Ecológico em sua portaria de reconhecimento, o que pode
indicar um ajuste nos procedimentos com a nova modalidade de conservação, sendo
considerada a delimitação em memorial prescindível para os demais mosaicos.
Reconhecido pelo governo federal por meio da Portaria n°76, de 11 de março de 2005,
do Ministério do Meio Ambiente—MMA, o Mosaico Capivara-Confusões (Piauí) foi o
primeiro Mosaico a ser criado. A finalidade indicada para este mosaico, que abrangeu o
Parque Nacional da Serra das Confusões e Parque Nacional da Serra da Capivara, é a de...

...integrar a gestão dessas unidades, suas zonas de amortecimento e o


corredor ecológico de que trata o artigo seguinte. (Art. 1º da
Portaria/MMA nº 76/2005)

E o corredor ecológico — sem nome indicado para ele na mencionada norma


— foi criado...

...conectando o Parque Nacional da Serra da Capivara e o Parque


Nacional da Serra das Confusões, com o fim de assegurar a conservação
e o uso sustentável dos recursos naturais da área do corredor e a
efetiva conservação da diversidade biológica das unidades de
conservação componentes do Mosaico. (Art. 2º da Portaria/MMA nº
76/2005)

A Portaria/MMA nº 76/2005 traz o Memorial Descritivo para o Corredor


Ecológico apontando o perímetro de 390,53 quilômetros para uma área de aproximados
414.565,27 (MMA - Ministério do Meio Ambiente; Portaria/MMA 76, de 11 de março

261
de 2005, 2005) e abrangeu terras de dez municípios122 entre o Parque Nacional da Serra
das Confusões e Parque Nacional da Serra da Capivara.

O Planejamento Estratégico do Mosaico Central Fluminense — o mosaico foi


reconhecido em 2006, o planejamento data de 2010 —, coloca como desejável, dentre os
seus “objetivos estratégicos” a “conectividade com outros mosaicos” e indica: o Mosaico
Mico-Leão, o Corredor do Muriqui e o Corredor Tinguá-Bocaina (PLANEJAMENTO
ESTRATÉGICO DO MOSAICO CENTRAL FLUMINENSE, 2010, p. 48). Amplia-se,
portanto, a abrangência tanto da gestão quanto de uma ideia de território para um
agrupamento de áreas sensíveis já agrupadas e indica dois corredores como um desses
“mosaicos”, no caso, o corredor como um correlato.

Figura 26 ― Quadro cronológico da criação de Mosaicos no Brasil:


2005-2013

MOSAICOS RECONHECIDOS: 2005 -2013

03/01/2013
25/08/2011
11/07/2011
14/12/2010

17/12/2010
14/12/2010

17/12/2010
26/11/2010
24/04/2009
11/12/2006

11/12/2006

11/12/2006
08/05/2006
11/03/2005

2011

2011

2013
2010
2005

2006

2006

2006

2006

2009

2010

2010

2010

2010
M O S A I C O M I C O - L E Ã O - D OU R A D O
MOSAICO BOCAINA
MOSAICO CAPIVARA-

MOSAICO DA MANTIQUEIRA
MOSAICO MATA ATLÂNTINCA

MOSAICO CARIOCA
MOSAICO GRANDE SERTÃO

MOSAICO DA AMAZÔNIA
MOSAICO DO BAIXO RIO NEGRO
MOSAICO DO LAGAMAR

M O S A I C O D O E S P I N H A Ç O: A L T O

MOSAICO DO OESTE DO AMAPA E


MOSAICO DO EXTREMO SUL DA
MOSAICO DA FOZ DO RIO DOCE
JEQUITINHONHA - SERRA DO…
MOSAICOS EM ORDEM DE CRIAÇÃO

CENTRAL FLUMINENSE

VEREDAS-PERUAÇU
CONFUNSÕES

ME R I DI ON AL

NORTE DO PARÁ
BAHIA

ORGANIZAÇÃO LESLYE URSINI, 2019 - DADOS ICMBIO E MINISTÉRIO DO MEIO


AMBIENTE/2018

122 São eles: Caracol, Jurema, Guaribas, Anísio de Abreu, Bonfim do Piauí, São Raimundo
Nonato, São Braz do Piauí, Tamboril do Piauí, Canto do Buriti e Brejo do Piauí (Parágrafo Único, do Art.
2º, da Portaria/MMA nº 76/2005).

262
Mais tarde, a Portaria nº 482, de 14 de dezembro de 2010, institui os
procedimentos necessários para o reconhecimento dos Mosaicos, cujo itinerário
administrativo é, em resumo, o seguinte: é feita uma proposta de constituição do Mosaico,
com a adesão dos Chefes das Unidades de Conservação integrantes e outras áreas
protegidas, contendo a manifestação de outros responsáveis por áreas protegidas; são
juntados ao processo administrativo o ato de criação das unidades de conservação e das
áreas protegidas abrangidas acompanhadas de memorial descritivo comprovando seus
limites (vide artigo 4º da Portaria nº 482/2010).

São, atualmente, reconhecidos dez mosaicos no Brasil, reconhecidos entre


2005 e 2013. O Mosaico da Bocaina foi reconhecido pela Portaria do Ministério do Meio
Ambiente n° 349, de 11 de dezembro de 2006, abrange áreas do Rio de Janeiro e São
Paulo, abrangendo dez unidades de conservação indicadas na Portaria, inicialmente com
dez unidades de conservação e em 2015 abrangia quatorze, conforme mapa e lista
constantes na “Figura 27 ― Abrangência do Mosaico da Bocaina”.

Tabela 11 ― Unidades de Conservação prevista para comporem o


Mosaico da Bocaina

Unidades de Conservação da Natureza na formação inicial do Conselho Consultivo do


Mosaico da Bocaina (Portaria/MMA nº 349/2006)
Estado do Rio de Janeiro
a) sob a gestão do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis-IBAMA
1. Parque Nacional da Serra da Bocaina
2. Estação Ecológica Tamoios
3. Área de Proteção Ambiental Cairuçu
b) sob a gestão da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente da Secretaria
Estadual do Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano do Estado do Rio de Janeiro-
FEEMA/SEMADUR
1. Área de Proteção Ambiental de Tamoios
2. Reserva Biológica da Praia do Sul
3. Parque Estadual Marinho do Aventureiro
c) sob a gestão da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Pesca e Agricultura da Prefeitura
Municipal de Parati
1. Área de Proteção Ambiental Baia de Parati, Parati-Mirim e Saco do Mamanguá
II - Estado de São Paulo
a) sob a gestão do Instituto Florestal da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São
Paulo-IF/SMA
1. Parque Estadual da Serra do Mar (Núcleos Picinguaba, Cunha e Santa Virgínia)
2. Parque Estadual Ilha Anchieta
3. Estação Ecológica do Bananal

263
Figura 27 ― Abrangência do Mosaico da Bocaina

264
O Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina é criado na mesma Portaria n°
349/MMA/2006 que cria o Mosaico da Bocaina, conforme previsto no Decreto nº
4.340/2002. Conselhos podem ser consultivos, normativos ou deliberativos. Lembro que na
formulação da Lei do SNUC a previsão para os conselhos dos mosaicos era de que fossem
deliberativos e a lei foi promulgada constando a previsão de conselho consultivo. Embora
com menor poder, pois a rigor não delibera, para todo conselho e instância é necessária a
participação dos setores abrangidos para se ter a cena das discussões. São vinte e sete
reuniões anotadas em atas, cada reunião realizada em uma sede e unidades de conservação,
na mais da vez, ou de associação da sociedade civil participante do Conselho sendo de
comunidade tradicional ou não. Quanto ao número de pessoas nas reuniões, quinze era
considerado um número baixo pelos próprios participantes123, entre chefes e gestores de
núcleos das unidades de conservação e áreas protegidas, representantes dos povos e
comunidades tradicionais, este e outros setores com assento no Conselho, como se verá a
seguir indicados por representações, e convidados eventuais.

6.2. Composição do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina

Inicialmente, na portaria de criação do Mosaico da Bocaina, em 2006, havia um


único assento para uma única representação que reunisse indígenas, quilombola e
pescadores artesanais, conforme apresentado na “Tabela 12 ― Assentos previstos na
portaria de criação do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina”. As primeiras reuniões
do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina ― a partir da primeira, ocorrida em 12 de
fevereiro de 2007, no Núcleo Picinguaba do Parque Estadual da Serra do Mar, em Ubatuba,
Estado de São Paulo ― se prestaram a compor o Conselho, a informes e à organização da
representação no Conselho, em que as comunidades tradicionais buscaram ampliar sua
representação e ajustá-la às suas especificidades.

Vagner, representante da Associação dos Moradores do Campinho da


Independência protestou contra a ausência das comunidades nas
discussões do mosaico. Em resposta, Eliane Simões [Fundação Florestal]
explicou que o momento de definição dos integrantes do Conselho
Mosaico é justamente este, mas realçou que esta participação e
representação deve ser discutida no conselho da respectiva UCs onde a

123 Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata de 17/10/2007.


265
comunidade está inserida. Marcelo Pessanha124 também explicou que
várias UCs não têm conselhos gestores ou mesmo possuem conselhos
gestores deficitários, enquanto participação de todas as comunidades.
Ronaldo, do Quilombo do Campinho, questionou sobre o estabelecimento
da Portaria, sem a participação destas comunidades, afirmando que as
comunidades precisam ter todas as notícias. Marcelo Pessanha
respondeu que o Regimento Interno a ser aprovado pelos presentes será
encaminhado para fazer parte da portaria. (ATA Reunião do Conselho
Gestor do Mosaico Bocaina de 20 de Março 2007, ocorrida na Associação
Cairuçu – Paraty, RJ)

Dentre os ajustes para a composição e assentos no Conselho Consultivo do


Mosaico da Bocaina havia a dúvida de como se daria a representação e o cacique AUA, da
Terra Indígena Renascer, “questionou sobre como se dará sua representatividade” e foi
informado pela coordenação do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina “que cada
Terra Indígena equivale a uma Unidade de Conservação, sendo seu cacique equiparável ao
gestor de uma UCs”. Questionamento, também, feito pelo senhor Altino, indígena, e “a
quem eles encaminharão suas propostas”, obtendo como resposta que “as próprias
comunidades indígenas escolherão seus representantes e encaminharão suas propostas
diretamente ao próprio conselho do Mosaico”. Guadalupe, da associação caiçara Caxadaço
e Paulo Nogara, representante da Associação de moradores e amigos de Mamanguá ―
AMAM propuseram que “a denominação ‘pescadores artesanais’”, constante na Portaria,
fosse alterada para “caiçaras”, o que foi assentido pelos presentes.

No que se refere ao item das comunidades tradicionais, foi acordado pelos


presentes que cada categoria “caicaras, quilombolas e indígenas” terão um representante de
cada estado inseridos nas unidades de conservação. Eliane Simões, do Parque Estadual da
Serra do Mar, explicou que os três núcleos do Parque Estadual da Serra do Mar (Cunha,
Picinguaba e Santa Virgínia) haviam sido unificados na representação do Conselho, porém,
os núcleos possuem realidades distintas, sendo necessária uma revisão para uma
representação por núcleo. Quanto à Reserva Ecológica Estadual da Juatinga – REEJ, que
não é categoria de unidade de conservação no Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza―SNUC, foi solicitada, pelo seu gestor, René Duquet, a sua
inclusão. Também, o Parque Estadual da Ilha Grande foi incluído. Em dado momento da

124 Gestor da APA de Cairuçu e Coordenador do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina até
2008, depois foi transferido para outra unidade de conservação.
266
reunião, René Duquet, do IEF/RJ e administrador da REJ, “expôs sua preocupação quanto
ao crescimento do número de vagas dentro do grupo do Mosaico” e Marcelo Pessanha
explicou que “como as alterações haviam sido feitas na presença dos presentes, não haveria
condições de rever os assuntos já acordados”, também, porque “as alterações realizadas no
regimento interno são cabíveis, bem como o pequeno aumento de vagas”. Nessa reunião do
Mosaico da Bocaina de 20 de março de 2007, a primeira após a reunião inicial de posse,
ocorrida em 12 de fevereiro de 2007, se abordou a criação de câmaras temáticas para se
discutirem os assuntos de cada segmento.

A composição do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina se amplia, tanto


para a representação de comunidades tradicionais quanto para unidades de conservação e
outros setores. Em 2015 são quatorze assentos, entre titulares e suplentes.

Tabela 12 ― Assentos previstos na portaria de criação do Conselho


Consultivo do Mosaico da Bocaina

Representação no Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina inicial, conforme na Portaria/MMA nº


349/2006
I - representação governamental
a) os chefes, administradores ou gestores das unidades de conservação abrangidos pelo Mosaico
Bocaina
b) um representante da Superintendência do IBAMA no Estado do Rio de Janeiro
c) um representante da Superintendência do IBAMA no Estado de São Paulo
d) um representante do IF/SMA do Estado de São Paulo
e) um representante da FEEMA/SEMADUR do Estado do Rio de Janeiro
f) um representante do Comitê da Bacia Hidrográfica do Estado de São Paulo, de municípios inseridos
no Mosaico Bocaina
g) um representante de uma estatal que atue na região do Mosaico Bocaina, indicado pela maioria do
Conselho.
II - representação da sociedade civil
a) um para cada unidade de conservação, indicado pelo seu Conselho Consultivo ou pelo gestor da
unidade, quando não houver conselho
b) três representantes de entidades do setor turístico/cultural, preferencialmente um por região,
indicado no caput do art. 1º desta Portaria [A. do Paraíba, Litoral Sul do Estado do Rio de Janeiro e
Litoral Norte do Estado de São Paulo]
c) um representante das comunidades tradicionais, pescadores artesanais, quilombos, povos
indígenas
d) um representante do setor empresarial
e) um representante do setor agrossilvopastoril

267
Tabela 13 — Povos e Comunidades Tradicionais na composição do
Conselho Consultivo do Mosaico Bocaina, 2015

Para uma visão completa da composição do Conselho Consultivo do Mosaico


da Bocaina, ver o “Anexo 4 ― Composição do Mosaico da Bocaina, 2015”.

O sentidos do mosaico vai se conformando na prática das reuniões como um


espaço de circulação de informações sobre acontecimentos nas unidades de conservação,
questões relacionadas às comunidades, apresentações de projetos e estudos de outras
instituições, acompanhamento de processos de licenciamento ambiental, propostas de
resoluções de gestão das unidades de conservação sobrepostas entre si, forma de apoio às
comunidades, dentre outros. Boa parte do trabalho dos envolvidos no Conselho Consultivo
do Mosaico da Bocaina se concentra na organização das reuniões seguintes e na distribuição
de tarefas entre os participantes, conforme constam nas atas. No começo, a finalidade e os
objetivos de um mosaico não eram auto evidentes para os participantes do Conselho e
mesmo suas funções que, embora indicadas na portaria que o havia criado, como segue em
trechos da segunda reunião do Conselho:

Graziela, da APA de Cairucu, citou que não se trata de uma nova UC que
foi criada [com o Mosaico da Bocaina], mas sim da junção de várias UCs
para facilitar a gestão das mesmas. Vagner, do Campinho, ressaltou que
várias comunidades não sabem para que é que existe cada UC, nem o que
é APA ou mesmo Mosaico. Marcelo Pessanha, citou que acaba de receber
o apoio de um grupo de técnicos do Ibama, especializados em educação
268
ambiental, justamente para realizar estes esclarecimentos junto às
comunidades. Marco Antonio, secretário de Pesca e Meio Ambiente de
Paraty, esclareceu que a postura dos órgãos ambientais que compõem o
Mosaico, tem sido positiva no sentido de estabelecer parceiras com as
comunidades e não somente fiscalização. Eliane Simões ressaltou que o
conselho do mosaico pode ser um espaço para integrar ideias – e também
ajudar a organizar setores que não estão tão organizados quanto os
quilombolas.

Rafael, da SAPE, explanou sobre a questão de concepção do Mosaico,


onde não adianta falar em gestão participativa quando a prática é
excludente. Questionou sobre a incorporação de algumas associações
sem terem passado pela votação nos referidos conselhos de suas UCs.
Ressaltou também a importância de uma participação maior das
prefeituras no conselho. Marcelo Pessanha, respondeu que houve
indicações temporárias, uma vez que algumas UCs não têm seu conselho
gestor/consultivo funcionando. Estas indicações serão revistas durante as
reuniões e passarão por votação interna. (Conselho Consultivo do
Mosaico da Bocaina - Ata da reunião de 20/03/207; 2ª reunião)

Leonardo Rocha [Ibama/RJ] destacou que ainda não temos experiência


em atuação com o Mosaico, portanto desenvolver ações integradas é
extremamente importante e estimula a gestão deste grande território
através de diretrizes unificadas. (Conselho Consultivo do Mosaico da
Bocaina - Ata da reunião de 16-17/10/2007)

6.3. Sobreposições entre unidades de conservação

Dentre as competências do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina estão:


a compatibilização e a integração das atividades desenvolvidas em cada unidades de
conservação quanto aos usos das fronteiras, ao acesso às unidades, à fiscalização, ao plano
de manejo, à pesquisa científica, à alocação dos recursos advindos da compensação
ambiental e manifestação acerca “propostas de solução para a sobreposição de unidades”
(art. 4º da Portaria/MMA nº 349/2009).

Na quinta reunião do Conselho, é apontada a questão da sobreposição entre o


Parque Nacional da Serra da Bocaina e o Parque Estadual da Serra do Mar, com a
“necessidade de gestão integrada na porção sobreposta que envolve as comunidades
tradicionais”: a comunidade quilombola de Camburi, em que “60% do bairro é quilombola”
e comunidade caiçara de Ubatumirim, ambas em Ubatuba, no Estado de São Paulo,
próximas à divisa com o Estado do Rio de Janeiro, onde os dois parque se sobrepõem. A
269
questão da sobreposição é a de que o Plano de Manejo do Parque Nacional da Serra da
Bocaina “não reconhece a presença de moradores” no seu interior ao passo que no Plano de
Manejo do Parque Nacional da Serra do Mar há a Zona Histórica Cultural Antropológica...

... com direito à permanência e desenvolvimento de atividades


sustentáveis (novas moradias, ampliações e reformas de edificações já
existentes; instalação de energia elétrica e saneamento; licenciamento de
roças e de extrativismo vegetal, mediante plano de manejo de espécies,
entre outros). (Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata da
reunião da reunião de 16-17/10/2007, 5ª reunião)

Um Termo de Uso Tradicional, elaborado no escopo do Conselho Consultivo


do Núcleo de Pincinguaba do Parque Estadual da Serra do Mar, foi assinado foi assinado
assinou pelo diretor do Parque Nacional da Serra da Bocaina relacionado à comunidade de
Camburi e Ubatumirim, porém o Ibama125 não o reconheceu o documento. A gestora do
Núcleo Picinguaba do Parque Estadual da Serra do Mar, quem relatou o ocorrido, disse ser
preciso que o Plano de Manejo do fosse revisto e que delegasse a gestão da porção
sobreposta para a Fundação Florestal do Estado de São Paulo, órgão gestor do Parque
Estadual da Serra do Mar, por meio daquele Núcleo. Nessa mesma reunião de dois dias,
entre 16 e 17 de outubro de 2007, foram relatadas as situações de sobreposição entre
unidades de conservação que dificultam a gestão dos chefes das unidades, que foram os
blocos de sobreposições (1) entre a APA de Cairuçu, a APA de Paraty Mirim, a ESEC
Tamoios, Parque Nacional da Serra da Bocaina e a Reserva Ecológica Estadual da Juatinga,
à época em recategorização para Parque Estadual; (2) APA Tamoios, ESEC Tamoios,
Parque Estadual da Ilha Grande, Reserva Biológica Praia do Sul, Parque Municipal de
Aventureiro, este bloco na porção litoral norte de Paraty e Angra dos Reis; além da já
mencionada (3) sobreposição entre o Parque Nacional da Serra da Bocaina e o Parque
Estadual da Serra do Mar. Uma solução local entre instituições, mesmo caseira, e que
contemplasse o Plano Diretor do Município de Angra dos Reis, mesmo que provisória, para
viabilizar a gestão é sugerida para o bloco de sobreposições “2”; a situação relatada para o
bloco “1” estava, à época, no aguardo da decisão acerca da recategorização da Reserva
Ecológica Estadual da Juatinga com o posicionamento das comunidades; que, como vimos

125 A reunião aconteceu em outubro e relata um fato passado; o ICMBio, que assumiu a gestão do
Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC, foi criado depois, em 28 de outubro de
2007.
270
antes, nesta Tese, se emudeceu e no ano passado um novo Plano de Manejo da APA de
Cairuçu foi apresentado.

Para a criação do Parque Estadual de Cunhambebe, em Mangaratiba, Alba


Simon, Diretora de Conservação do Instituto Florestal do Rio de Janeiro ― IEF126, contou
que a unidade de conservação recém-criada127 nasceu de diversos estudo e “não sob pressão
relacionada a algum impacto ambiental em curso, como normalmente ocorre”, a unidade de
conservação foi criada em “área manejada como bananal, historicamente pela comunidade
local” e o parque é um elo entre os mosaicos da Bocaina e Fluminense. Observo, como dito
antes, a relação entre mosaico e corredor ecológico se permutam e por vezes é uma questão
de escala, pois, conforme foi informado nessa mesma reunião, no relato da criação da nova
unidade de conservação, aparece a figura do corredor ecológico, dessa ves, “protegido” por
unidades de conservação: “O Corredor de Biodiversidade Tinguá – Bocaina já havia
trabalhado na criação de UCs entre as duas áreas [os dois mosaicos], afim de proteger o
corredor”. Transparecendo a função maleável do corredor ecológico, cujas funções no
SNUC e no Decreto nº 4.340/2002 são a de conectar unidades de conservação e de fazer as
vezes de zona de amortecimento na ausência destas. Foi relatado que o gestor do Parque
Nacional da Serra da Bocaina foi convidado para conversar e se evitar a sobreposição,
entretanto contratempos dificultaram a sua participação no processo, conforme anotado na
ata. Segundo Livino, Chefe do Parque Nacional da Serra da Bocaina pondera a ampliação
do parque, pois “há trechos em que os limites são imprecisos” e que “embora seja
interessante ampliar trechos para unir-se ao PE Cunhambebe, talvez seja mais interessante
garantir áreas efetivamente protegíveis ao invés de novas inserções de populações
moradoras”; fala ainda que para alterar limites, um alei deveria tramitar no Congresso
Nacional para os fins de desafetação, recategorização ou ampliação o que “é algo muito
complexo, com pouca governabilidade e portanto, muitos riscos” (Conselho Consultivo do
Mosaico da Bocaina - Ata da reunião de 2 de julho de 2008, realizada na ESEC Tamoios).

Ainda acerca do Parque Estadual de Cunhambebe, recém-criado e abordado na


reunião de julho de 2008, Rafael, representante da organização não governamental Sapê
comenta o processo de criação parque e, conforme consta em ata, “reforçando que não se
opõe a ela [a criação da unidade de conservação] mas sim, questiona o processo, que não
incorpora os parceiros e organismos de gestão já existentes na região. Também, a

126 Depois passou a ser o Instituto Estadual do Ambiente ― INEA.


127 Por meio do Decreto Estadual nº 41.358, de 13 de junho de 2008, com 38 mil hectares,
envolvendo os municípios de Mangaratiba, Angra dos Reis, Itaguaí e Rio Claro.
271
representante da Coordenação regional do ICMBio, Sylvia Chada, “lembra que Conselho
do Mosaico, em funcionamento desde o início de 2007, não foi envolvido no processo.
Soube depois que o decreto já havia sido aprovado. Não é contra também à criação mas sim,
ao processo”; Mônica Nemer , representante o Movimento Verde ― MOVE, “pergunta
sobre trecho que entende que deveria ter sido incluído, com presença de manguezal”, ao que
responde Alba, Diretora no Instituto Estadual do Ambiente, instituição que criara o parque,
que “entende que se tratou- do aproveitamento de uma conjuntura propícia, de um trabalho
em curso. A ideia era no sentido de chamar parceiros e não de boicotar participação”
(Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata da reunião de 2 de julho de 2008).

Em 28 de maio de 2015, na 32ª Reunião Ordinária do agora chamado Mosaico


da Bocaina de Áreas Protegidas, acontecida no Centro de Visitantes do Núcleo Picinguaba
do Parque Estadual da Serra do Mar, a pauta em andamento na reunião foi interrompida por
intervenção dos agricultores do Serão de Ubatumirim por causa de o Chefe do Parque
Nacional da Serra da Bocaina, Francisco Livino, ter saído da reunião, “com o qual
esperavam poder debater a recente ação de fiscalização que o Parque Nacional realizou no
Sertão de Ubatumirim, que acarretou em autos de infração e multas para alguns
agricultores”. Foram apresentadas manifestações de diversos agricultores acerca dos
“conflitos que vêm ocorrendo com o Parque Nacional da Serra da Bocaina, destacando a
falta de diálogo e abertura por parte do gestor em relação a situação dos comunitários e
segue um intenso debate sobre esse assunto”. Felipe Spina, consultor do Projeto da Baía da
Ilha Grande-FAO, explica que Francisco havia dito que tinha compromisso. Diz Felipe,
conforme anotado na memória da reunião, que “a questão colocada é legitima e deve ser
debatida mas que não é no âmbito do Conselho do Mosaico que ela será resolvida”, que o
mosaico tem o seu papel na busca do diálogo entre comunidades tradicionais e unidades de
conservação “mas que questões pontuais e jurídicas como essa deveriam por exemplo serem
debatidas no grupo de negociação”, a ser criado pelo Ministério Público, como um efeito do
Encontro de Justiça Socioambiental da Bocaina. E, na sequência da memória daquela
reunião, é anotado que...

Vagner do Nascimento (AMOQC e membro da Coordenação Colegiada do


Mosaico Bocaina) faz uma fala resgatando o histórico dos conflitos das
Comunidades Tradicionais com as Unidades de Conservação em especial,
o Parque Nacional da Serra da Bocaina, que são em parte decorrentes do
processo histórico que ocorreu em nosso país. (Conselho Consultivo do
Mosaico da Bocaina - Ata da reunião de 28 de maio de 2015)

272
Porém, sem que os conflitos apontados por Vagner fossem, também, anotados
na memória da reunião. É informado que Vagner prosseguiu sua fala dizendo que os
conflitos já foram assunto de diversas reuniões, que o mosaico “vem tentando contribuir
para um diálogo entre as Unidades de Conservação e as Comunidade Tradicionais”, lembrou
que foi feita “uma carta de apoio às comunidades pedindo diálogo em relação a uma série
de conflitos que ocorrem no território”. Com essa postura diplomática de Vagner, a redação
da memória da reunião anotou que Vagner “finalizou destacando o papel das Comunidades
Tradicionais na preservação da natureza” e que estava “ansioso pela início dos trabalhos do
grupo de negociação proposto pelo Ministério Público”. Acerca dos conflitos, Danilo
Santos, da Fundação Florestal/Parque Estadual da Serra do Mar, gestor do Núcleo
Picinguaba ― lembrando que o núcleo se encontra em sobreposição com o Parque Nacional
da Serra da Bocaina ― “destaca que a questão é reflexo de falta de diálogo institucional
entre os órgãos gestores que se sobrepõem na região”; ressaltou que a “abordagem da
Fundação Florestal nos últimos anos tem sido no sentido de se construir acordos e
mecanismos para a convivência harmônica entre o Parque e a Comunidade” e, por fim,
informou que a Fundação Florestal não havia sido previamente informada da ação de
fiscalização do ICMBio e que “é urgente que as instituições dialoguem mais e busquem
alinhar suas visões e ações” (Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata da reunião
de 28 de maio de 2015).

6.3.1. Recategorização da Reserva Ecológica Estadual da


Juatinga ― REEJ

Mesmo após o SNUC não ter reconhecido Reserva Ecológica como categoria
em 2000, a Reserva Ecológica Estadual da Juatinga aquela área protegida não deixou de
existir, informa o gestor René Duque, apesar da polêmica, segundo ele, com a criação da
Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ― REEJ classificada como proteção integral, ou
seja, restrição à presença e permanência humana, “em uma área onde já habitavam 1.100”
pessoas. O gestor da REEJ, René Duquet, fala, aqui, em um período anterior à consulta para
a recategorização da Reserva Ecológica Estadual da Juatinga, que abordei em item anterior
neste capítulo 5. Diz o gestor que “existe também a questão da elaboração de um Termo de
Referência pelo próprio IEF, sem o conhecimento da gestão, prevendo a recategorização
para incluir Paraty-Mirim na área da RESEC [Reserva Ecológica Estadual da Juatinga]”; e
que “devido à ameaça de recategorização”, o Conselho da REEJ está desarticulado. Pede “o
273
apoio das UC’s mais próximas para um posicionamento unificado sobre esta questão” e
informa, que, além, disso, possui vários conflitos fundiários na REEJ; e “na sua opinião a
UC é também um instrumento legal sobreposto, já que geograficamente 95 % da área total
da UC ser em Área de Preservação Permanente” (Conselho Consultivo do Mosaico da
Bocaina - Ata da reunião de 16 e 17 de outubro de 2007).

Na seção de informes ― de praxe no início das reuniões do Conselho Consultivo


do Mosaico da Bocaina ― na ATA Reunião do Conselho Gestor do Mosaico Bocaina do
dia 29 de setembro de 2011 foram relatados os assuntos tratados em reunião ocorrida
anteriormente, no dia 22 de julho de 2011, no âmbito da reunião da Câmara Temática de
UCs e Populações Tradicionais, acerca da recategorização da REEJ e que acabou sendo
retomado nessa reunião Conselho. Na ocasião da reunião da Câmara Temática, em julho,
foi apresentado, por Ana Cecília, o estudo da recategorização da Reserva Ecológica Estadual
da Juatinga elaborado pelo Instituto Igara em reunião com aproximadas setenta pessoas
dentre as quais mais de 40 eram das comunidades tradicionais abrangidas pelas REEJ e
organizações não governamentais que têm trabalhos naquela reserva; presente, também, o
colegiado do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina. Uma avaliação feita naquela
ocasião, foi apresentada nessa reunião do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina de
setembro de 2011: o estudo foi prejudicado pelo pouco tempo, decorreu ao longo de sete
meses; os trabalhos foram feitos em meses de alta temporada; Vagner, quilombola
representante da AMOQC e coordenador da Câmara Temática de UCs e Populações
Tradicionais128, reportou que “as comunidades precisam se apropriar mais desse debate
(entender as categorias, qual seria o papel deles nesse tipo de categorias...)” e que “outras
áreas precisam ser discutidas e incluídas no estudo, como a Área Estadual de Lazer de
Paraty-mirim mirim, a Aldeia Indígena de Paraty-Mirim, Patrimônio, Pedra Azul e etc.” e,
por fim, indicou que “acha importante a continuidade da discussão antes que se feche o
processo [de recategorização], que é necessário “estreitar as relações entre o INEA
[responsável pela REEJ e proponente da recategorização] e as comunidades, planejar
agendas e construir cronogramas juntos”.

Continuando na descrição das manifestações acerca da recategorização da


Reserva Ecológica Estadual da Juatinga, Leila, representante da comunidade caiçara da
Praia do Sono, uma das quais abrangidas pela REEJ, “acrescentou que muitas pessoas [nas
comunidades] não entendem a importância do que está acontecendo” e que está preocupada

128 Em dado momento mudaram o nome substituindo “UCs” por “Áreas Protegidas”.
274
“com os grandes empreendimentos na região” ao questionar “o porquê de Martim de Sá não
estar inserido no processo, por que só essas duas possibilidades de categorias (Parque e
RDS), por que não pode ser APA”; aponta a necessidade de serem feitos mais informativos
para as comunidades; “reivindica que não tirem as pessoas que nasceram ali e que para isso
também precisam de garantias”; diz que a reunião de apresentação do estudo sobre a
recategorização foi boa, “porém, tem certeza que muita gente saiu dali sem saber o que
estava acontecendo”. Ticote, da comunidade do Pouso da Cajaíba, a respeito das
regularizações da permanência das comunidades na Juatinga, “fala do pavor que as
comunidades têm do INEA por conta disso e que por isso a comunidade fica receosa quando
se começa agora um processo participativo desse”; faz a ressalva de que “com o gestor atual
Rodrigo, está tendo essa oportunidade de conversa, mas que existe a mudança de gestão e
com ela muda-se tudo”, a preocupação de Ticote é sob quais formas “a comunidade terá
garantias desse processo” e exemplifica com o “posto de saúde que foi embargado e que
tem casas que não foram embargadas”; pede, conforme anotação da ata, “que os órgãos
cuidem da comunidade sempre, para a comunidade saber o papel dela, ter as informações e
etc.” (Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata da reunião de 29 de setembro de
2011).

Rodrigo, novo gestor da Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ― REEJ, em


2011, e também coordenador colegiado do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina,
conta que outras obras foram embargadas e que “o embargo não tem a ver com a
recategorização”, que “o posto de saúde é uma obra pública impactante que foi iniciada sem
licença devida do órgão licenciador” e sem licença o INEA tem que cumprir a lei” e que “a
comunidade deve ter orgulho do órgão que está exercendo o seu papel e solicitar à prefeitura
que regularize as suas obras e que faça consulta prévia ao órgão antes de construir” e “Ticote
sugere que o órgão vá até a comunidade e explique o que realmente está acontecendo”
(Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata da reunião de 29 de setembro de 2011).

Na ata de 29 de setembro de 2011 aparece anotado que a pauta da


recategorização é retomada. Que seja por conta da redação de quem anota e presencia as
discussões, tendo informado antes que longa discussão se dera por causa dos embargos. Mas
ressalto que as dúvidas das comunidades com relação à amplitude das interferências em
função da lei são as mesmas que revestem o assunto da recategorização, expressas nos
exemplo que as comunidade fornecem. Rodrigo informa entender e concordar com os
demais que “o prazo do estudo realmente não foi o mais adequado, concorda com o

275
Vaguinho que o estudo no período de temporada complicou, porém é um estudo legítimo e
deve ser considerado”, lembrando “que o projeto foi estendido por mais 2 meses e que em
hipótese alguma a equipe de consultoria foi contratada para negociar e sim produzir um
estudo técnico de subsídio”, fala que “este estudo não é o único subsídio, existem ainda as
análises técnicas e jurídicas do INEA” e que as reivindicações e sugestões feitas no dia da
reunião na Câmara Técnica de UCs e Populações Tradicionais “foram inseridas no estudo,
como por exemplo, a questão de inserir Martim de Sá e etc.” e informa que “o estudo entrou
em fase de análise técnica e jurídica”. Diz Rodrigo Rocha Barros, gestor da REEJ, que após
tais análises serem concluídas, os próximos passos serão as devolutivas do estudo, as
consultas públicas e que a reunião da Câmara Técnica “não substitui as consultas públicas
que serão feitas pelo INEA e nem os processos de negociações com a Prefeitura de Paraty.
Ele diz que o processo está no início”.

Com relação à Reserva Ecológica Estadual da Juatinga, porém quanto a


campanha de final de ano e pesquisa conjunta da APA de Cairuçu, REEJ e Associação
Cairuçu, uma membra de comunidade caiçara conta que equipes de monitores chegaram à
Praia do Sono fazendo perguntas e entregando folhetos, o que foi comentado por Leila,
caiçara do Sono, e por Vaguinho, do quilombo Campinho, “que a forma como aconteceu
essas operações não foi discutida com as comunidades”, além disso, “os moradores não
gostaram de como foi realizado o trabalho, se sentiram mal e não contrataram pessoas da
comunidade para trabalharem” (Ata da Reunião da Câmara Temática de Populações
Tradicionais do Mosaico da Bocaina, de 3 de maio de 2013, no Quilombo do Campinho)129.

Ainda, com relação à Juatinga, é perguntado na reunião no Campinho sobre a


venda de Martim de Sá e Iliana, da APA de Cairuçu, informa que há tempos a fazenda
Martim de Sá está à venda, há um site que a anuncia com a extensão desde a Ponta Negra.
É externalizado naquela reunião que “mesmo que seja feita a compra e o novo ‘proprietário’
não possa edificar, a preocupação sempre é a expulsão das famílias das comunidades pelo
‘comprador’” (Ata da Reunião da Câmara Temática de Populações Tradicionais do Mosaico
da Bocaina, de 3 de maio de 2013, no Quilombo do Campinho).

Um outro caso de recategorização se passa na Reserva Biológica do


Aventureiro. A permanência de populações nativas residentes em unidades de conservação
foi assegurada pela Lei estadual-RJ nº 2.393/1995 e esta foi questionada pelo SNUC,

129 Dentre os documentos disponibilizados pelo Mosaico da Bocaina, há dois produzidos pela
Câmara Temática de unidade de conservação e Populações Tradicionais.
276
instituído em 2000, segundo Alba Simon, representante do Instituto Florestal do Rio de
Janeiro ― IEF, atual Instituto Estadual do Ambiente ― INEA. A Diretora de Conservação
no INEA fez uma apresentação na reunião do Conselho em 2 de julho de 2008 sobre as
ações daquele Instituto informando que foi provocada a Universidade Federal Fluminense
para a elaboração da regulamentação daquela lei, sendo criado um grupo de pesquisa com
sociólogos, antropólogos, advogados, biólogos e geólogos na formulação de um decreto. Já
a exclusão da comunidade da Reserva Biológica do Aventureiro, uma unidade de
conservação de proteção integral estadual, estava sendo debatida, à época, pelo Grupo de
Trabalho Aventureiro, instituído pela Resolução SEA nº 57, de 9 de abril de 2008 com a
finalidade de propor a desafetação e a criação de uma unidade de conservação de uso
sustentável.

Nos informes da reunião do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina, de


27 de junho de 2012, foi relatado por Vagner, do Campinho da Independência, que surtiram
efeitos a mobilização feita por diversas entidades da sociedade civil “como instrumento de
pressão para o julgamento, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de ação sobre a
propriedade de terras na praia de Martins de Sá que resultou em decisão favorável às
famílias ali assentadas há várias gerações”.

6.3.2. O Mosaico da Bocaina e outros projetos envolvendo


as unidades de conservação abrangidas por ele

As situações de sobreposições entre unidades de conservação inserem o


Mosaico da Bocaina em outros projetos relacionado a unidades de conservação específicas,
como o Projeto Gestão Integrada dos Ecossistemas da Baia da Ilha Grande
(GEF/INEA/FAO), que contempla o Mosaico da Bocaina no “Componente Biodiversidade
e Conservação” em um dos quatro componentes do projeto. Apresentado por Ricardo
Voivodic, do Instituto Estadual do Ambiente ― INEA, o mencionado componente possui
outras ações e dentre elas o Fortalecimento do Mosaico da Bocaina, ressalta Voivodic,
informando que é importante que o Mosaico não dependesse desses recursos futuramente,
a fim de se sustentar sozinho a longo prazo. O componente tem como alguns objetivos:
fortalecer a secretaria executiva do mosaico, contratar técnicos, integrar as unidades e
conservação e capacitação, pois o mosaico compreende muitas e diferentes categorias de
UCs. Perspectivas futuras foram consideradas, anotadas na ata, quanto ao fortalecimento

277
das unidades de conservação por meio de “criações de Unidade Protegidas Marinhas e
criações de RPPNs com o objetivo da conectividade entre UCs, implementando corredores
ecológicos”. O outros três componentes estão relacionados à educação ambiental, na criação
de um horto comunitário e incentivo de geração de renda com o cultivo de plantas nativas;
outro cuida de ameaças, como a energia nuclear, a exploração de petróleo e do Pré-sal em
que o Global Environment Facitlity ― GEF130, informa, não tem competência para se
contrapor, mas planeja ações de mitigação com o apoio do monitoramento da água, por
exemplo; e o componente de planejamento, política e fortalecimento institucional
identificado na “Necessidade de um estudo das políticas para se entender as lacunas dos
procedimentos institucionais e a sobreposição de competências” (Conselho Consultivo do
Mosaico da Bocaina - Ata da reunião de 29 de abril de 2001; Núcleo Santa Virgínia/PESM).

Do Projeto Mosaicos: Fortalecimento dos Mosaicos de Unidades de


Conservação do Corredor da Serra do Mar, a convidada Cláudia Costa, da instituição Valor
Natural, apresentou um histórico das ações em 2008. O projeto, em aprimoramento na
ocasião e em linhas gerais aqui, busca a identidade e os propósitos dos mosaicos. Contando
com três núcleos estratégicos com os seguintes temas: (1) o fortalecimento e articulação
institucional, no estabelecimento de parcerias para influenciar políticas públicas e processos
de licenciamento ambiental de grandes impactos socioambientais, desenvolvimento de um
modelo de gestão integrada aos “instrumentos de gestão de gestão territorial (ex. Plano de
manejo, Zoneamento Costeiro, Plano Diretor, Agenda 21, etc) na implementação de
estruturas eficientes e participativas para a garantia da conservação efetiva das áreas
protegidas, conforme anotado em ata, naquela reunião do dia 29 de abril de 2011. Outro
núcleo de temas considerados estratégicos, no projeto, era a mobilização engajamento de
grupos de interesse ligados ao Mosaico da Bocaina, nas estratégias de comunicação para
integrar os grupos e divulgar os resultados e impactos das ações empreendidas; e, por fim
(3) o núcleo de valorização da sociobiodiversidade, com o apoio à criação de novas áreas
protegidas que conectassem ecossistemas marinhos e terrestres; “manutenção do modo de
vida das comunidades tradicionais e de seus territórios, considerando a vocação e potencial
de negócios locais” e de forma a abranger a população regional, o incentivo ao
empreendedorismo, geração de trabalho e renda ligados ao turismo, à pesca, e à indústria,
citados como exemplos, para a implementação de modelo de gestão regional baseado no

130 Mecanismo de financiamento de pautas mundiais como clima e biodiversidade, financia a


Convenção sobre a Diversidade Biológica―CDB, por exemplo.
278
“desenvolvimento socioambiental” (Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata da
reunião de 29 de abril de 2001; Núcleo Santa Virgínia/PESM).

Na apresentação do projeto Roteiros da Biosfera: o Bioma da Mata Atlântica ―


na Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, reconhecida pela Unesco ―, Clayton Lino, do
Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, explica que a “escolha da
região para a implementação do Projeto Roteiros da Biosfera: O Bioma Mata Atlântica se
deveu “às diferentes e inúmeras áreas protegidas, à diversidade das culturas inseridas, aos
processos históricos culturais, etnoconhecimento e etc.”, como anotado na ata da reunião do
dia 29 de abril de 2011. O propósito é o de valorizar o que há de práticas sustentáveis na
região como atrativas: a agrofloresta, um bom manejo de mexilhão, as pescas tradicionais,
o a artesanato, citados como exemplos, em face das “pressões que serão geradas pelas
grandes obras”, em que a proximidade com o Mosaico da Bocaina “poderá contribuir para
mitigar essas pressões de forma a articular algumas partes do processo a ajudando a definir
parâmetros para ações” (Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata da reunião de
29 de abril de 2011)

O Projeto Fortalecimento do Mosaico Bocaina, iniciado em 2010, é um projeto


do próprio Mosaico da Bocaina, mencionado dentre os componentes explanados por
Voivodic para apoio. O Projeto foi viabilizado pela OSCIP Caminhos de Cunha, com
recursos da Conservação Internacional - CI Brasil e recebeu recursos para atividades
distintas de várias instituições por tempos determinados por meio de redes de parcerias pode
se manter com atividades continuadas que visavam o fortalecimento do próprio Conselho
Consultivo do Mosaico da Bocaina e o fortalecimento “das comunidades de maneira
sustentável em seu território”, por meio dos parâmetros para acordos em três tipos de
manejos de recursos naturais: extrativismo, pesca e agricultura. Dentre os parceiros estão as
instituições: Associação Mico Leão Dourado, Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos,
Reserva da Biosfera da Mata Atlântica – RBMA, SOS Mata Atlântica, Valor Natural,
Funbio, BNDES entre outros para apoio segmentares nas atividades do Mosaico da Bocaina.

6.4. Licenciamento ambiental

A título de um panorama geral, na região, em 2010, eram 36 processos de


licenciamento ambiental, na instância federal (licenciados pelo IBAMA) em andamento
divididos da seguinte forma: 18 processos, no Vale do Paraíba; 03, na região Mantiqueira;
279
e 15, no Litoral Norte paulista; com obras como o TEBAR. Há os processos de
licenciamento ambiental que são tramitados na instância estadual e, para a região, ou pela
Cetesb, no Estado de São Paulo, ou pelo Inea, no Estado do Rio de Janeiro e processos na
instância municipal. O Terminal Aquaviário Almirante Barroso — TEBAR, em São
Sebastião, recebe petróleo da Bacia de Campos e petróleo importado para abastecer quatro
refinarias em São Paulo, dentre elas a Replan, em Paulínia, e a Revap, em São José dos
Campos. O bombeamento de óleo é feito por oleoduto que atravessa a Serra do Mar.

No aspecto da participação no processo de licenciamento ambiental, o Conselho


Consultivo do Mosaico da Bocaina, também, se manifestou para participar — ser
considerado — no processo de licenciamento ambiental da Usina Termonuclear (UTN)
Angra 3, no que se refere ao envio dos Estudos de Impactos Ambientais (EIA) que, em um
primeiro momento, não haviam sido enviados para as Unidades de Conservação ao menos
em tempo hábil para análise e manifestação nas audiências públicas acerca do
empreendimento. O empreendimento recebeu a Licença prévia (LP) em 2008 e a Licença
de Instalação (LI) em 2009. Em 20 de abril de 2011, o Conselho Consultivo do Mosaico
Bocaina se manifestou, em documento endereçado à Ministra do Meio Ambiente intitulado
“Manifestação Mosaico Bocaina nº 01/2011”, acerca do cumprimento das condicionantes
ambientais em especial à Condicionante 2.31: “que a Eletronuclear deverá assumir os custos
de manutenção e custeio da ESEC Tamoios e do Parque Nacional da Bocaina”:

A Plenária do Conselho do Mosaico Bocaina, nesta data reunida na sede


do Núcleo Santa Virgínia do Parque Estadual da Serra do Mar, em São Luiz
do Paraitinga/SP, solicita a Vossa Senhoria que proceda as medidas
necessárias para paralisação imediata das atividades do empreendimento
até que se inicie o efetivo cumprimento da condicionante 2.31 da LP
279/08. (CONSELHO CONSULTIVO DO MOSAICO BOCAINA, 2011)

A razão da manifestação foi a de que, em parecer, o IBAMA indicara que as


condicionantes haviam sido atendidas e, segundo o Conselho Consultivo do Mosaico
Bocaina, não apenas não o haviam sido — para a emissão da LI após a LP — como a
Condicionante n° 2.31 fora suprimida antes de ser atendida:

Considerando que em dezembro de 2009 a condicionante 2.31 da LP


279/08 foi suprimida da redação da LI 591/2009 com base no parecer
IBAMA já mencionado. (CONSELHO CONSULTIVO DO MOSAICO BOCAINA,
2011)

280
Depois de outras manifestações, as unidades de conservação foram
consideradas, lembrando que a compensação ambiental é prevista no Artigo nº 36, parágrafo
terceiro do SNUC e definida no Decreto nº 4.340/2002. A compensação ambiental do
projeto UTN Angra 3 para as Unidades de Conservação na região do empreendimento
somava 40 milhões de reais. Segundo Ronaldo Oliveira (OLIVEIRA, 2014), ligado à
Eletronuclear, empresa empreendedora do projeto, a distribuição se deu para as seguintes
Unidades de Conservação em 2013:

• R$ 29.662.160,00 para as UCs Federais:


Parque Nacional da Serra da Bocaina;
ESEC Tamoios;
RPPN Gleba do Saquinho de Itapirapuã;
APA Cairuçu; e
PN Saint-Hilaire/Lange

• R$ 10.421.840,00 para as UCs estaduais:


Parque Estadual do Cunhambebe;
Parque Estadual da Ilha Grande; e
APA de Tamoios

Desde o início dos trabalhos do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina,


instalado em 2007, o tema do licenciamento ambiental é recorrente, e é interessante que em
sede de conselho consultivo, para as suas manifestações,, a presença de comunidades nas
Unidades de Conservação adensa, vamos chamar assim, a magnitude dos impactos
ambientais, mesmo que temporários ou reversíveis. No aspecto do licenciamento ambiental
da Usina Termonuclear Angra 3, as queixas iniciais dos órgãos governamentais
participantes do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina eram por participação,
consideração e visibilidade:

No item informes, os conselheiros Sylvia Chada (ESEC Tamoios), Dalton


(PARNA Bocaina) e Rafael (SAPÊ) deram um panorama de como está se
dando o licenciamento ambiental de Angra 3, conduzido pela Diretoria de
Licenciamento do IBAMA, atropelando os gestores de UCs. Dalton informa
que a Eletronuclear deve 4 milhões e meio de compensação ambiental
para a Bocaina. Grazzielle, do IEF, sugere a formação de um GT no
Mosaico sobre Angra 3. Dalton sugere que o Mosaico solicite o parecer
final ao IBAMA. Sylvia informa que o Conselho Consultivo da ESEC Tamoios
já aprovou um documento sobre o processo de licenciamento. Rafael
sugere que o Mosaico manifeste-se alegando desconhecimento do
processo, posto que as UCs do mosaico – com exceção da ESEC Tamoios
– não receberam o EIA-RIMA, a necessidade de transparência e o desejo
de estar participando efetivamente. Roberto Starviski (Núcleo Cunha)
chama a atenção para os licenciamentos de um modo geral, que estão
sendo feitos de uma forma aviltante, e sugere a formação de uma CT de

281
Licenciamento no âmbito do conselho do mosaico. A CT foi formada com
a participação de todas as UCs do mosaico, a SAPÊ e a Associação
Cunhambebe. Quanto à manifestação sobre o licenciamento de Angra foi
formado um grupo para a elaboração do documento, composto por:
Sylvia (ESEC Tamoios), Rafael (SAPÊ), Alexandre (Instituto Arruda Botelho),
que será disponibilizado em rede para que os demais possam opinar. Este
documento deve ser encaminhado para o IBAMA, ICMBIO, MPF (RJ e SP),
Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo e Secretaria de Ambiente do
Rio de Janeiro. (ATA Reunião do Conselho Gestor do Mosaico Bocaina
Sede Associação Cairuçu – Patrimônio, Paraty, RJ - 04 de dezembro de
2007)

6.4.1. Cana e cachaça

Anteriormente à Indicação Geográfica da Cachaça de Paraty, ocorrida depois de


2012 e que mencionei acima sob a perspectiva da constituição de um território institucional,
anos antes, na reunião do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina ocorrida no Núcleo
Pincinguaba do Parque Estadual da Serra do Mar, entre os dias 10 e 11 de setembro de 2008,
Iliana, da APA de Cairuçu, informou ter participado, no último dia 9, da reunião da Rede de
Tecnologia com representantes do SEBRAE, do IBAMA, da FEEMA e do ICMBio, dentre
outros. O licenciamento ambiental do plantio de cana em Paraty foi o assunto da reunião,
por conta do “Selo Verde obtido pela cachaça de Paraty, toda a produção precisa ser feita
com matéria prima local – aumentar os plantios de cana em Paraty” e o SEBRAE e a
FEEMA estavam às voltas com a elaboração de uma Instrução Técnica, daí a participação
das unidades de conservação, segundo explicou Iliana, e que nova reunião fora marcada
para o dia 25 de setembro na sede da APA de Cairuçu. “Sylvia (ESEC Tamoios) observa a
incongruência da política de incentivo ao plantio de cana em Paraty”, pois: o município “não
dispõe de grandes áreas para isso e indo na contramão dos vários projetos de agrofloresta,
polpa de juçara em andamento, como por exemplo no Campinho”. Vagner Nascimento,
representando a AMOQC, “resgata que Paraty já teve tradição de plantio de cana nas
comunidades rurais” e que “a relação sempre foi de muita desigualdade e exploração dos
plantadores de cana pelos donos dos alambiques” e finaliza a advertência ao dizer que “se
esta relação não mudar, ele acredita que não haverá muito interesse neste plantio” (Conselho
Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata da reunião de 10 e 11 de setembro de 2008).

282
6.4.2. Outros empreendimentos

Na reunião do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina realizada na ESEC


Tamoios, em 2 de julho de 2008, foram noticiados alguns empreendimentos planejados em
áreas protegidas. O um projeto imobiliário no Saco do Mamanguá e Itatinga foi noticiado
em um jornal como sendo a área descrita como de fácil acesso a indicadas duas praias onde
está o único fiorde brasileiro; não é possível saber ao certo a localização do empreendimento
a partir da notícia do jornal, informa o conselheiro Paulo Nogara.

O episódio do atracadouro noticiado pela Folha de São Paulo, no Saco do


Mamanguá, aconteceu em 2001, de que falamos atrás nesta Tese, e este é outro
empreendimento planejado. É informado, nessa mesma reunião do Conselho Consultivo do
Mosaico da Bocaina, em 2 de julho de 2008, que gestão da APA de Cairuçu, segundo Júlio,
seu representante, não teve conhecimento oficial daquele projeto e informa, ainda, que há
outros tantos projetos com processos abertos junto ao Ibama com finalidades diversas com
localização em Itatinga. Nessa mesma reunião é informado pelo representante da APA de
Cairuçu, o processo de licenciamento ambiental de um outro empreendimento imobiliário
em “que o processo foi montado pelo IBAMA, tem 3 volumes, foi encaminhado para a APA
que também apresentou ao Conselho da APA Cairuçú para se posicionar”. Ao projeto
chamado Ilha do Itu, ou Itur, o Ibama havia apresentado o parecer positivo, constante no
processo recebido pela APA de Cairuçu, que se manifestou contrariamente à licença em
parecer e o encaminhou ao Ministério Público Federal ― MPF, em Angra dos Reis, onde o
processo se encontrava. O representante da APA de Cairuçu explicou o posicionamento da
gestão daquela unidade de conservação: nos documentos do processo de licenciamento
ambiental, a Prefeitura de Paraty “mudou a caracterização da Ilha, no Plano Diretor, para
‘continente’, considerando que o manguezal que se situa na extremidade da ilha gera uma
continuidade com o continente” e dessa forma “descaracterizando inclusive a sua
característica de área de preservação permanente” (Conselho Consultivo do Mosaico da
Bocaina - Ata da reunião de 2 de julho de 2008).

Nessa reunião, há o entendimento de que é necessário o posicionamento do


Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina em tais aspectos e processos. É sugerido que
se inclua a Ilha Rasa e a praia de Martim de Sá no rol das manifestações. A Ilha Rasa,
localizada na Baía de Paraty em que há ilhas abrangidas pela APA de Cairuçu, com
construções irregulares e bares, alvos de fiscalização resultando no embargo da ilha por

283
parte de órgãos ambientais em março de 2008. A Praia de Martim de Sá, na APA de Cairuçu
em situação de sobreposição com a Reserva Ecológica Estadual da Juatinga, em que a
comunidade é pressionada com empreendimentos imobiliários. O posicionamento do
Conselho é aquiescido por Vaguinho (Vagner Nascimento), quilombola representante da
Associação de Moradores do Quilombo do Campinho ― AMOQC, com relação a outros
locais em que há, conforme anotado em ata a sua fala, a “necessidade de brecar situação de
pressão nas áreas protegidas da região de Paraty, com forte rebatimento para as comunidades
tradicionais”. As manifestações do Conselho seguiriam como uma pressão estratégica por
parte do Conselho frente a tais questões, que deveriam incluir, segundo Cristino, da
Fundação Nacional do Índio ― Funai, como reportado na ata, os “agentes governamentais
que normalmente apresentam dificuldades frente a esse tipo de pressão” e quanto à colisões
de visões entre a área técnica e as diretorias nos órgãos governamentais. A essa altura, na
reunião, um participante da reunião informa que terá de se retirar para atender à convocação
do Ministério Público para depor em caso de um policial civil que vem intimidando os
moradores da Praia Grande da Cajaíba” e o representante da Associação Cairuçu, civil e não
tradicional, agradece ao apoio dos colegas no episódio de intimidação que sofrera, com a
queima da sua moto (Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata da reunião de 2 de
julho de 2008).

6.4.3. Câmara Temática de Unidades de Conservação e


Populações Tradicionais do Mosaico da Bocaina

O Mosaico da Bocaina constituiu câmaras técnicas, ou temáticas, de


Ecoturismo131, com ênfase no turismo de base comunitária; de Unidades de Conservação e
Populações Tradicionais132 e a Câmara Técnica de Comunicação do Mosaico da Bocaina133

131 Coordenação: Roberto Mourão, Vagner Nascimento (Vaguinho) – AQUILERJ; Sérgio Pinchiaro
– Cunha-Paratii; Juliana Pires - Mosaico Bocaina ― secretária executiva; Eduardo Godoy - chefe APA
Cairuçu/Colegiado M. Bocaina; Jian Niotti ― PESM Picinguaba; João Fernandes – PEC Lucila Pinsard - APA
Marinha Litoral Norte e Rodrigo Silva - Secretaria de Turismo de Ubatuba, Estado de São Paulo; em 2011.
132 Coordenação: Vagner Nascimento (Vaguinho) - AQUILERJ, Juliana Bussolotti - Associação
Cunhambebe ONG – SP; Juliana - Secretária Executiva Mosaico Bocaina; Mônica Nemer - MOVE –
Movimento Verde, ONG – RJ; Maristela Resende - PNSB/ICMBio UC – RJ; Lúcia - Quilombo da
Fazenda/Fórum Populações Quilombola; Guadalupe - Associação Caxadaço-Mar, ONG- RJ; Jadson - Praia
do Sono, Caiçara; Seu João Paraty-Mirim, Caiçara; Ivanildes - Aldeia Paraty-Mirim, Indígena; convidados:
FUNAI, Ministério Público Federal, IBAMA, SAPÊ e Verde Cidadania, em 2011.
133 Monica Nemer - APA Tamoios; Grazielle Zacaro - APA da Baía de Paraty; Sylvia Chada -
Coordenação Regional ICMBio-CR8; Vaguinho (Vagner Nascimento) - Associação Quilombola e Manuela -
DIBAP/INEA; Roberto, PESM - Núcleo Cunha.
284
a fim de realizar reuniões setorizadas acerca dos temas, que já vinham sendo tratados em
reuniões específicas, como foi o encontro de comunidades tradicionais.

O I Encontro de Comunidades Tradicionais e Áreas Protegidas do Mosaico da


Bocaina aconteceu em 2008, entre os dias 24, 25 e 26 de outubro, com a finalidade de…

...enfrentar os conflitos existentes na região, em especial decorrentes da


sobreposição de unidades de conservação e territórios ocupados por
povos e comunidades tradicionais - indígenas Guarani, Quilombolas,
Caiçaras e Caipiras.

Para organização do encontro foi constituído um grupo de trabalho com a


participação de representantes das comunidades tradicionais, gestores das unidades de
conservação integrantes do mosaico da Bocaina e de organizações não-governamentais. A
Câmara Temática de Populações Tradicionais do Conselho Consultivo do Mosaico da
Bocaina (CT-UCs) foi que propôs o encontro. O documento “Relatório Final” do encontro
traz proposições e diretrizes com a seguinte recomendação de consecução:

Daqui em diante cabe ao Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina, às


instituições responsáveis pela gestão das áreas protegidas e seus
gestores, povos e comunidades tradicionais, organizações não
governamentais atuantes na região e outros parceiros, fazer valer o que
foi combinado nessa ampla agenda de compromissos firmados. 134

A criação deste Mosaico tem como objetivo estimular a gestão integrada


entre as diversas Unidades de Conservação, contribuindo para a
preservação e conservação dos recursos naturais e pesqueiros, bem como
para o desenvolvimento sustentável deste território situado na divisa Rio
de Janeiro/São Paulo, que abriga importantes fragmentos florestais,
totalizando cerca de 216 mil hectares de florestas sob condições especiais
de manejo e proteção legal, além de comunidades tradicionais, territórios
quilombolas e indígenas. 135

Acerca da abrangência do Mosaico Bocaina, o Relatório Final do I Encontro


indicou a participação de 15 Unidades de Conservação, 5 Terras Indígenas e 2 quilombos.

Objetivos do Encontro:

134 “Relatório Final”, intitulado “Carta do I Encontro de Comunidades Tradicionais e Áreas


Protegidas - 24-26 outubro 2008”, disponível no material do Mosaico da Bocaina, em
www.mosaicobocaina.org.br
135 ibidem.
285
a) Traçar visão panorâmica sobre a situação das comunidades tradicionais
e das áreas protegidas em que se inserem, sob o ponto de vista da gestão,
conflitos principais decorrentes, soluções e diretrizes já estabelecidas ou
previstas.

b) Refletir sobre experiências em desenvolvimento em áreas protegidas


na abrangência do Mosaico da Bocaina, visando obter propostas
aplicáveis para situações semelhantes.

c) Definir, a partir de estratégias práticas e claras, uma agenda de


compromissos para viabilizar diretrizes de gestão unificada para os
principais conflitos vigentes na área do Mosaico.

Como fio condutor das discussões, tiveram lugar as questões da gestão


participativa, que é um propósito para a constituição de mosaicos. Foram anotados os
problemas percebidos pelas comunidades em conjunto com indicações de soluções, como
seguem da forma como anotados em documento de reunião preparatória ao primeiro
encontro:

1. Resolver problema do lixo – na aldeia e nas comunidades


2. As comunidades gerarem menos lixo – plantar mais e comprar menos na cidade
3. Debater o turismo pensando numa forma que valorize e beneficie diretamente as
comunidades
4. Manter a sabedoria das comunidades sobre o uso dos recursos naturais – caça, plantas
medicinais
5. Chegar na solução que garanta interesse comum diante dos diferentes interesses
existentes numa comunidade (ex. recategorização da REBIO Aventureiro)
6. As comunidades terem informação adequada e participação nas decisões em processos de
recategorização de UC
7. Como as comunidades tradicionais podem receber recursos financeiros por fazerem a
conservação?
8. Como manter a riqueza dos recursos naturais existentes no território das comunidades?
9. Como proteger as águas?
10. Como manter os laços da cultura tradicional em comunidades como Ilha Grande?
11. Com o crescimento das populações tradicionais, como vamos tirar madeira para nossas
casas e canoas?
12. Como conciliar as leis conflitantes – UC de proteção integral e Decreto 6040
13. [Que] As leis e regulamentações considerem as comunidades tradicionais na sua
elaboração
14. Fazer com que os gestores reconheçam o papel das comunidades na gestão das UC
15. Abertura de oportunidade de diálogo entre comunidades tradicionais e UC.
16. Espaço para conversar sobre nossos problemas
17. Reconhecimento do valor das comunidades tradicionais
18. Decreto 6040 de 07/02/2007 – Política de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais.
286
19. O Fórum Regional das Comunidades Tradicionais
20. Só temos nossos direitos reconhecidos se nos posicionarmos – como movimento social
21. Unificou a realidade das diferentes culturas
22. Garantia na lei de existir controle social – conselhos
23. Temos consciência das leis sobre UC e a relação com as comunidades tradicionais
24. Reconhecimento da necessidade de território
25. Os trabalhos com as comunidades dependem das normas das UC
26. Plano de Manejo e Mosaico podem ajudar a resolver os problemas das comunidades
tradicionais
27. Não entendemos por que as UC exigem autorização para todas as atividades das
comunidades tradicionais acordadas no plano de manejo
28. Os índios ajudando a controlar caça, coleta de palmito, madeira na Terra Indígena As
pessoas não abandonam suas casas à toa. Os sobreviventes não podem plantar e caçar
29. As comunidades devem dialogar diretamente com os gestores
30. Limite de fluxo turístico na Praia do Aventureiro foi importante
31. A organização do turismo pelas comunidades e com apoio de parceiros está trazendo
qualidade ao turismo

Todas as questões acima são relativas aos territórios tradicionais em situação de


sobreposição como unidades de conservação. colocadas permanecem tanto como
indagações como quanto resolução por vir, no caso que prescindam do ponto de vista da
apreensão dos territórios tradicionais. E serão reinaugurados, muitos dos questionamentos,
a cada inauguração da relação entre um território tradicional e uma novo unidade de
conservação que seja criada em relação de sobreposição. Dentre outros apontamentos nas
reuniões preparatórias ao I Encontro de Comunidades Tradicionais e Áreas Protegidas,
2008, destaco as observações feitas naquela ocasião: como seguem:

• Quem é tradicional na lei vive de recurso natural?


• Quantas pessoas formam uma comunidade tradicional, não é claro na lei
• Quem é filho de tradicional pode voltar para a sua terra de origem?
• No território tem que ter área de moradia, plantio e floresta de uso sustentável e
mostrar que existe um manejo como a agrofloresta

Acima, estão alguns dos questionamentos colocados pelas comunidades no


cotejamento, feito por pessoas de comunidades tradicionais em conjunto, se ouvindo
mutuamente, é um momento de tradução entre território tradicional e território
administrativo interferente, no caso da unidade de conservação; sendo que as comunidades
que tiveram seus territórios regularizados fundiariamente ou se encontram em processo de
regularização fundiária em curso, passaram ou passam por uma tradução, com a diferença
que os usos dos recurso naturais na regularização fundiária as inscreve nos territórios
287
tradicionais de regularização fundiária administrativa e tais usos nas sobreposições são os
que justamente os pontos de justificativas de práticas que procuram descompatibilizar
comunidades e territórios Cabe ressaltar que os apontamentos das comunidades anotados
nas atas da reunião e do encontro se dão nas ocasiões específicas para tratar dos assuntos
das comunidades no escopo do Mosaico da Bocaina e que, por isso, trazem o tema da
sobreposição, porque é a condição da sua participação no Mosaico da Bocaina, via unidades
de conservação que se sobrepõem aos seus territórios. Vale lembrar, portanto, que
sobreposição não é de forma alguma inerente a territórios de povos e comunidades
tradicionais.

Comunidades e seus territórios estão intrincados, daí está a constatação de que


quando se fala de um se remete ao outro, como podemos observar nos apontamentos acima.
A abordagem da questão fundiária, portanto, não é um item na realidade, ela seria o todo,
mas, metodologicamente, é interessante que se a aponte em documentos, com isso, ela
parece, para nós, surgir como um domínio de coisas e, para o Estado, a questão fundiária
estará ao lado da questão da saúde, da educação e de outros temas que são tratados em
órgãos de administração distintos para melhor cuidado e elaboração de instrumentos
específicos ao tema. O resultado é a separação, por fim, e não raro se busca pesquisas da
interdependência dos temas como uma forma de recomposição do que fora separado antes.

A questão fundiária foi assunto na reunião da Câmara Temática de Populações


Tradicionais do Mosaico da Bocaina, acontecida no Quilombo Campinho da Independência
em 03 de maio de 2010, dois anos após o I Encontro de Comunidades Tradicionais e Áreas
Protegidas - 24-26 outubro 2008, com a presença de representantes das comunidades
tradicionais, de gestores das unidades de conservação e do Conselho Consultivo do Mosaico
da Bocaina136. Durante a reunião, Mônica Nemer, Movimento Verde ― MOVE “pergunta
se a questão fundiária deve ser trazida para a pauta da CT ou para a pauta do Conselho” e
Vaguinho (Vagner Nascimento) responde que “o ideal seria trazer para os dois níveis de
discussão”. É anotado na ata que “as comunidades entendem que somente a questão
fundiária vai resolver os conflitos”. Para o tratamento da questão fundiária, há a sugestão da

136 Os documentos produzidos e disponibilizados Câmara Temática de Populações Tradicionais e


UCs do Mosaico da Bocaina são as atas de 03/05/2010, de 11/06/2011 e de 22/07/2011; também, a memória
do Encontro de Práticas Sustentáveis do Mosaico da Bocaina, datada de 08/06/2010. Do I Encontro de
Comunidades Tradicionais e Áreas Protegidas - 24-26 outubro 2008, foi retirado das reuniões um documento
que explana a organização das reuniões prévias e apresenta diretrizes para a Câmara Técnica de UCs e
Populações Tradicionais, intitulado “Carta do I Encontro de Comunidades Tradicionais e Áreas Protegidas -
24-26 outubro 2008”. Todos os documentos citados estão disponíveis no sítio www.mosaicobocaina.org.br,
na seção “documentos”.
288
parte da gestora Mônica, que a composição da CT-Populações Tradicionais seja revista,
buscar quem tenha se afastado das discussões, resgatar as demandas e “levar esta pauta
também para o Fórum de Comunidades Tradicionais - FCT, para que se trabalhe em
conjunto, um fortalecendo o outro”. Vagner diz que “a principal bandeira do FCT é a
questão fundiária” e nas suas reuniões são feitas chamadas para as reuniões do Mosaico da
Bocaina (Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina; Reunião da Câmara Temática de
Populações Tradicionais - Ata da reunião de 03 de maio de 2010, no Quilombo Campinho
da Independência).

Iliana, da APA de Cairuçu, recomenda que sejam convidadas pessoas


especialistas em questão fundiária” para participarem das reuniões da nas reuniões da
Câmara Temática de Populações Tradicionais, “para que esclareçam as dúvidas que tanto
as pessoas dos órgãos quanto as comunidades têm”. Foi lembra por Vaguinho (Vagner
Nascimento) “que essa já era uma ação que saiu do Encontro de Populações Tradicionais”
e que, na ocasião, além de especialistas no tema que pudessem trazer informações, “foi
discutida também a importância de trazer a juíza de Paraty para alguns momentos”,
entretanto, teria dito Vagner, “para convidar a juíza para uma reunião da CT, é necessário
preparar bem o que vai ser discutido, caso contrário o resultado pode ser pior ainda.

O tema da sobreposição entre territórios ― de unidades de conservação e de


territórios tradicionais, ou terras indígenas ou territórios quilombolas ― tem na “questão
fundiária” o aspecto das demandas, levadas para documentos a serem apresentados ao
Estado em instâncias diversas; e tem o aspecto da formulação de tais demandas, este com
descrições de casos. As demandas são formuladas no uníssono dos casos, como vários
relatados neste capítulo 5, especialmente, e de outras formas nos capítulos 3 e 4. Naquela
mesma reunião da Câmara Temática de Populações Tradicionais, em maio de 2010, na sua
abertura e recepção dos participantes da Câmara no quilombo, Vagner “comenta que as
comunidades estão perdendo sua tradição, exemplo, na Ponta Negra que antes tinham
diversas espécies de mandioca, hoje não tem mais nada, e que isso tem relação direta com
as UC’s” e Leila, caiçara da Praia do Sono, “afirma que isso começou com o governo
anterior ao INEA, o IEF, que as pessoas eram proibidas de manter seus costumes, pois
estavam desmatando”. Amanda, da AMOQC, “questiona como fazer isto avançar no poder
público, já que as próprias academias, onde ele se baseia, debate esta questão, até com livros
publicados” e o senhor Domingos Ramos dos Santos, do Quilombo Cabral “fala sobre os
costumes que os mais antigos têm de queimar a roça, vão continuar queimando”.

289
6.5. Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty
e Ubatuba—FCT

Criado em 2007, o Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis,


Paraty e Ubatuba—FCT se constituiu por associação articulada de indígenas, quilombolas
e caiçaras. A regularização fundiária dos territórios tradicionais foi a “primeira bandeira”
do Fórum, como dito no site da organização, e permanece em pauta junto às questões da
especulação imobiliária, das unidades de conservação em situação de sobreposição. Todas
essas pautas, em seu conjunto, se referem à territorialidade. Educação, saúde agroecologia,
turismo de base comunitária são ações e projetos que foram assumindo contorno com o
fortalecimento das comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas entorno do
Fórum que angaria várias parcerias. Cujas campanhas e programas retomo brevemente a
seguir nos seus últimos quatro anos, entre 2014 e 2018.

A campanha “Preservar é Resistir ― em defesa dos Territórios Tradicionais” é


Uma campanha empreendida pelo Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis,
Paraty e Ubatuba ― FCT, iniciada em 16 de maio de 2014...

(...) com a finalidade de sensibilizar um número abrangente pessoas


acerca dos conflitos diversos vividos por Povos e Comunidades
Tradicionais fortalecendo a luta destes (PRESERVAR É RESISTIR, 2014).

A campanha é, também, um instrumento de visibilidade não apenas das ações


do FCT como das próprias comunidades e das suas associações:

• Associação Comunitária Indígena de Araponga


• Associação Comunitária Indígena do Bracuí
• Associação Comunitária Indígena do Paraty-Mirim
• Associação de Barqueiros e Pescadores Artesanais da Trindade
• Associação de Moradores do Quilombo Campinho da Independência
• Associação de Moradores Originários do Sono
• Associação dos Bananicultores de Ubatumirim
• Associação dos Moradores e Amigos do Pouso da Cajaíba
• Associação dos Moradores do Aventureiro (Ilha Grande, Angra dos Reis)
• Associação Comunitária dos Remanescentes do Quilombo da Fazenda
Picinguaba
• Associação dos Remanescentes do Quilombo do Cambury
• Associação dos Remanescentes do Quilombo Santa Rita do Bracuí
• Caxadaço Bocaina Mar
• Instituto de Permacultura e Educação Caiçara (IPECA)
• IPEMA
290
• SAPÊ
• Verde Cidadania
• FCT

A depender das campanhas que lança, “Preservar é Resistir” agrega adesões de


comunidades, associações, pesquisadores e instituições diversos.

O Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina ― OTSS,


iniciado em 2015, tem por objetivo promover o desenvolvimento sustentável nos territórios
tradicionais da região da Bocaina e atua nas seguintes frentes:

• justiça socioambiental,
• fortalecimento e qualificação do FCT;
• defesa do território,
• cartografia Social;
• saneamento ecológico;
• educação diferenciada;
• incubadora de tecnologias sociais;
• agroecologia;
• turismo de base comunitária;
• Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 das Nações
Unidas; e
• articulação de redes de solidariedade internacionais.

O OTSS surgiu a partir de uma parceria entre o Fórum de Comunidades


Tradicionais e a Fundação Oswaldo Cruz — Fiocruz e com apoio da Fundação Nacional de
Saúde—FUNASA, cuja iniciativa trabalha de maneira integrada com os povos caiçara s,
indígenas e quilombolas.

“A educação das comunidades tradicionais em Paraty: um balanço de 2 anos de


Educação (2015-2017)”, é uma publicação online, um ebook, o que amplia o seu acesso,
que avalia avanços e passivos governamentais da educação diferenciada e apresenta
proposições ao Plano de Educação Municipal em Paraty, para atender a Povos e
Comunidades Tradicionais.

Embora tendo direitos constitucionais garantidos, a pressão de órgãos


ambientais, a especulação imobiliária e ausência de políticas públicas
específicas expõem ao risco a reprodução social das comunidades
tradicionais, colocando em xeque não só a cultura, que garante a
diversidade da sociedade brasileira e o patrimônio cultural (material e
imaterial) do país, mas sua própria sobrevivência. com o objetivo de
implementar, nos níveis federal, estadual e municipal, os objetivos e
princípios estabelecidos por essa política e legislações que protegem os
291
povos tradicionais, desde 2007, o FCT da região, formado por
quilombolas, indígenas, caiçaras, vem se consolidando e fortalecendo a
luta pelos direitos dessas populações. (FCT - Fórum de Comunidades
Tradicionais, 2018, p. 7)

O Fórum contou com apoiadores externos provindos de universidades e de


organizações da sociedade civil envolvidos com o tema da educação e, em conjunto,
organizaram um Coletivo subsidiário ao FCT à época em que o plano de educação estava
sendo discutido. O documento aponta a legislação existente sobre a educação e a diversidade
social, que não estava sendo respeitada e indica demandas e aspectos que necessitam ser
observados pela administração municipal para que a educação de quilombolas, indígenas e
caiçaras siga bem137. O passivo governamental é grave: famílias com filhos em idade escolar
da comunidade caiçara de Cairuçu das Pedras tem-se mudado para Ponta Negra; crianças
não avançam, na mais da vez, além do 5º ano escolar por conta da falta de escolas e
consecução das etapas de ensino não disponibilizadas dentro das comunidades;
comunidades próximas ao centro de Paraty são atendidas por transporte de barco: três horas
na ida e igual tempo para a volta (FCT - Fórum de Comunidades Tradicionais, 2018, p. 17).

Outra atuação documentada do Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra


dos Reis, Paraty e Ubatuba― FCT é com relação aos territórios quilombolas e caiçaras na
região, com o apoio do Fundo Brasil. Instituído por líderes políticos nos movimentos de
garantia dos direitos humanos e étnicos — Abdias do Nascimento, Margarida Genovois,
Rose Marie Muraro e Dom Pedro Casaldáliga — o Fundo Brasil foi beneficiado para a sua
implantação, em 2006, por um fundo patrimonial (endowment) de três milhões de dólares
com apoio da Fundação Ford. Desde 2017, o Fundo Brasil desenvolve em conjunto com o
Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba ação intitulada
“Litígios Socioambientais: Defesa dos Territórios Tradicionais em conflito de sobreposição
com Unidades de Conservação na Região da Bocaina”; cujas atividades principais indicadas
são: a retomada da Mesa de Diálogo por Justiça Socioambiental da Bocaina (coordenada
pelo Fórum de Comunidades Tradicionais e o Ministério Público Federal) e a interposição
de Amicus Curiae, na questão da sobreposição de Unidades de Conservação e Territórios
Tradicionais (FUNDO BRASIL, 2017). A instituição conta com o recebimento de doações

137 O documento está disponível apenas em meio digital; no caso de haver interesse pelo tema da
educação diferenciada e o inteiro teor daquele documento:
https://issuu.com/forumdecomunidadestradicionais/docs/dossie__educac_a_o_diferencia_parat

292
e para a questão dos litígios em sobreposições e para esta ação de apoio ao Fórum doou
oitenta mil reais para um período de 18 meses.

Com o documento de assistência ao julgador a auxiliá-lo no seu juízo, em


proveito da decisão justa, o Amicus Curiae e, também, a instância de diálogo instituída junto
ao Ministério Público Federal, o caráter desse apoio técnico, jurídico e financeiro do Fundo
Brasil é o de ajuste de cena, se posso chamar assim, para a atuação do Fórum de
Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba.

A campanha lançada pelo Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos


Reis, Paraty e Ubatuba “FCT+10 — Em defesa do Território Tradicional”, no dia 19 de
novembro de 2016, véspera do Dia da Consciência Negra, durante a 18ª Festa da Cultura
Negra, no Quilombo do Campinho da Independência. Acerca da Campanha FCT+10, no
site Preservar é Resistir ressalta temas correlacionados:

Luta pelo território, direito à saúde, à educação diferenciada, valorização


da cultura e respeito por suas tradições e modos de vida. Todos esses
desafios fizeram com que, há dez anos, na região da Bocaina, nós nos
uníssemos em busca de fortalecer lutas e enfrentamentos comuns. Somos
caiçaras, indígenas e quilombolas de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba e o
Fórum de Comunidades Tradicionais é um espaço comum e nosso, de luta
e de resistência.

Dez anos se passaram desde a criação e das primeiras reuniões, muitas


histórias foram compartilhadas, conquistas de diversas comunidades,
reconhecimento, enfrentamento e muita luta. Hoje, por meio das
bandeiras da Agroecologia, Educação Diferenciada, Cultura, Turismo de
Base Comunitária (TBC), Saneamento Ecológico e Defesa do Território,
seguimos em busca de ampliar nossas redes e permanecer em nossos
territórios como forma de preservar, resistir e garantir nossos modos de
vida tradicionais.

A campanha “FCT+10 - Em Defesa do Território Tradicional” faz


parte dos nossos sonhos, desejos e missões para os próximos dez anos em
busca de caminhar rumo à garantia dos direitos de todos nós, povos e
comunidades tradicionais.

A Carta de Ubatuba138, 2017, tem lugar na campanha “Preservar é Resistir”.


Assinada em 28 de setembro de 2017, é encabeçada pelo Fórum de Comunidades

138 http://docs.wixstatic.com/ugd/4fab7e_7cf03a918c8740ea886db47e93755627.pdf
293
Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba― FCT e mais vinte e uma associações
de Povos e Comunidades Tradicionais e, também, quatro associações civis
paracomunitárias. Na Carta de Ubatuba, em seu preâmbulo, os signatários manifestam o...

...repúdio ao intenso processo de privatização do patrimônio comum -


terras, florestas e águas, essenciais à vida dos povos e comunidades
tradicionais - em curso no país chamando atenção ao consequente
acirramento dos conflitos fundiários e disputa pelos recursos naturais que
derramam o sangue de indígenas, quilombolas, caiçaras, trabalhadores
rurais, defensores da floresta e de direitos humanos em uma proporção
perversa e sem precedentes no Brasil. (FCT - Fórum de Comunidades
Tradicionais e outras associações, 2017)

A Carta se reporta à marcha dos Povos Indígenas em Ubatuba, 14 de setembro


de 2017, em celebração aos direito originários e à paz e rememorando o extermínio de Povos
Indígenas iniciado no povoamento do Brasil até os dias de hoje; se manifesta contra o
chamado “marco temporal” para o reconhecimento das Terras Indígenas e contra a Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADI-3239/2004) impetrada pelo Partido Democratas—
DEM contra o Decreto nº 4.887/2003, que regulamenta o reconhecimento de parte do Estado
dos Territórios Quilombolas. Segue a manifestação pontual do Fórum e de outras
instituições, transcrita da Carta de Ubatuba (FCT - Fórum de Comunidades Tradicionais e
outras associações, 2017):

Reunidos para fortalecer a luta pela defesa de nossos territórios e modo


de vida, nos manifestamos:

(i) Pelo reconhecimento, regularização fundiária e titulação coletiva dos


territórios tradicionais quilombolas e caiçaras do Litoral Norte de São
Paulo pela SPU, INCRA, ITESP, com apoio do MPF e DPE/SP;

(ii) Contra a privatização dos Parques Estaduais por meio de parcerias


público-privada, política em curso pela Fundação Florestal, em
detrimento das experiências de turismo de base comunitária;

(iii) Contra a paralisação das atividades dos Conselhos Gestores de


Unidades de Conservação do Litoral Norte pela SMA/Fundação Florestal e
pela retomada imediata de suas atividades;

294
(iv) Contra a criminalização ambiental das comunidades tradicionais pela
Polícia Militar Ambiental; e

(v) Contra a implantação de grandes empreendimentos terrestres e


marítimos sem a consulta prévia, livre e informada às comunidades
diretamente afetadas e sem sua devida caracterização nos estudos de
impacto ambiental pelos grandes empreendimentos públicos e privados.

A ADI 3239 foi vencida no Superior Tribunal Federal por maioria, em 8 de


fevereiro de 2018139.

Por ocasião das Eleições-2018, o Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra


dos Reis, Paraty e Ubatuba ― FCT, redigiu um manifesto circulado de forma rápida e ágil
por meio do próprio site do Fórum, aproveitado pela Mídia Ninja, com o título
“Comunidades Tradicionais manifestam-se contra Bolsonaro”, em 24 de outubro de 2018,
cujo conteúdo é o do receio do enfraquecimento de instituições governamentais afetas às
políticas públicas relacionadas com as comunidades, como segue:

O Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e


Ubatuba (FCT), que reúne indígenas, caiçaras e quilombolas desta região
e as instituições parceiras abaixo subscritas, vem a público externar
grande preocupação com as manifestações irresponsáveis do candidato à
presidência Jair Messias Bolsonaro no que se refere a sua intenção de
desmontar e até mesmo extinguir importantes instituições públicas como
Ministério do Meio Ambiente, IBAMA, ICMBio, Ministério da Cultura, e
enfraquecer políticas públicas ligadas a estes órgãos, assim como aquelas
relacionadas à FUNAI, Fundação Palmares, INCRA e IPHAN. Estas
declarações são uma ameaça ao nosso patrimônio ambiental e cultural,
protegidos pela constituição federal. A flexibilização de legislações e
instrumentos de proteção desses patrimônios atendem tão somente aos
interesses dos setores do agronegócio, mineração, especulação
imobiliária, empreiteiras e construtoras, entre outros setores
empresariais que tem por objetivo ampliar suas fronteiras e aumentar
incessantemente seus lucros às custas da expropriação da natureza e dos
territórios tradicionais e do acirramento dos conflitos no campo.

Acreditamos que esses órgãos são importantes conquistas da democracia


e precisam ser mantidos, aprimorados e fortalecidos, uma vez que são
fundamentais na proteção do meio ambiente, na salvaguarda das
manifestações culturais tradicionais, bem como no reconhecimento dos
territórios tradicionais, manutenção e fortalecimento de políticas públicas

139 Vide Ata nº 3, de 8 de fevereiro de 2018.


295
para os povos e comunidades tradicionais e garantia dos direitos já
adquiridos.

Dessa forma, nos posicionamos em defesa do estado democrático de


direitos e destas instituições citadas, que são fundamentais à proteção e
garantia de direitos ambientais e culturais das comunidades tradicionais
e de toda a sociedade brasileira e nos posicionamos também contra os
retrocessos que a possível eleição deste candidato representará.

Transcrevi longos trechos para deixar expresso, aqui, os elementos utilizados


que mesclam as justificativas das próprias políticas públicas, das atribuições precípuas das
instituições responsáveis pela execução dessas políticas e de pleitos das comunidades, em
manifestação subscrita pelas comunidades. Um aspecto em que as instituições contam e
obtêm apoio das comunidades.

6.6. Comunidade e território

O espaço do Mosaico da Bocaina, das reuniões do seu Conselho e


desdobramentos serviram como mais um nó em uma rede de relações para as comunidades
tradicionais, que possuem outras redes de relações e interesses. Junto a isso, quero destacar
que nesse espaço, as comunidades tiveram chances de virem como unidades de conservação
são criadas, as dificuldades enfrentadas pelas instituições gestoras das unidades de
conservação e as questões e dúvidas dos gestores dessas unidades de conservação. Também,
os gestores viram as comunidades sob outros aspectos que não os de incidentes em unidades
de conservação. Pode-se falar em aprendizado mútuo. No entanto, estatuído nas obrigações
institucionais estão a fiscalização e as normas. Os arranjos locais com base nessa
proximidade de questões ― que propiciou se virem como sujeitos uns ao outros ― puderam
não lograr reconhecimento por parte do Estado, vide o Termo de Uso Tradicional feito entre
Parque Estadual da Serra do Mar e comunidades em situação de sobreposição com esse
parque e o Parque Nacional da Serra da Bocaina, simultaneamente. As reuniões do Conselho
Consultivo do Mosaico da Bocaina se constituíram em um espaço de governança da
administração pública, no sentido do exercício do poder, em que são recursos os fatores
sociais, econômicos e podemos incluir territoriais, um dos pilares do exercício do poder do
Estado em Raffestin (RAFFESTIN, [1980] 1993), por meio do planejamento, no

296
monitoramento da formulação de ações e programação das mesmas para serem cumpridas
as funções do Estado.

Nessa relação de reuniões, de execução de programas e de ações, oficinas, etc.;


têm lugar “chaves de diálogo”, cuja origem de constituição das mesmas me escapa, mas são
elas amplamente utilizadas pelo Poder Público em normas, documentos e nas falas orais:
“usos tradicionais”, “usos sustentável”, “formas próprias do seu modo de vida”, “usos dos
recursos naturais”, “populações tradicionais”, “conservação da biodiversidade” e outros
termos remetem a um universo de questões e alçá-los indicam um lugar de conexão com o
tema e se pode pressupor um diálogo, quando um lado e outro podem, de fato, não estarem
conversando. Ao mesmo tempo, é uma linguagem que se instaura em um marco de
desigualdade ― que é a dos territórios ameaçados, mesmo os territórios já garantidos, por
interferência na autonomia das comunidades nas situações de sobreposição ― pois se está
dialogando na cena do que seria a incompatibilidade da presença das comunidades em
unidades de conservação e que tais “chaves de diálogo” parecem atenuar a situação de
questionamento e de proibição da permanência das comunidades em unidades de
conservação ao possibilitarem um diálogo, uma conversa, aliás. O fato de tais expressões se
tornarem esvaziadas de sentido pela demasiada aplicação e repetição ― e porque não levam
os sentidos das comunidades consigo ― permite um maior e mais amplo uso das mesmas,
sendo empregadas no discurso da manutenção da biodiversidade (positivamente para as
comunidades) tanto o quanto no discurso da incompatibilidade de comunidade e povos
tradicionais em unidades de conservação de proteção integral (negativo para as
comunidades). Essa ampla aplicação é possível porque as expressões esvaziadas das
características das comunidades a que se referem ― “usos tradicionais”, “usos sustentável”,
“formas próprias do seu modo de vida”, “usos dos recursos naturais”, “populações
tradicionais”, “conservação da biodiversidade” ― podem ser entendidas tanto da forma
positiva quanto negativa relacionas às comunidades, quando podem ter sido proferidas no
sentido inverso. Isso porque podem se referir exclusivamente às comunidades, apartando-
as dos seus territórios.

Separar comunidade, identidade e território pode atender a qualquer interesse e


em menor grau aos das próprias comunidades. Aquelas expressões comportam essa
separação porque a maior parte delas são ações, praticadas por sujeitos (“alguém”), mas não
trazem elementos identitários e não se referem a territórios. Mas até poderiam, eis a
ambiguidade no discurso que se ordena ou por uma via ou por outra; em favor ou em

297
desfavor das comunidades relacionadas aos seus territórios. Para que aqueles expressões
incorporem o território elas dependerão da pergunta “onde?”. As “chaves de diálogo” do
vocabulário socioambiental do Poder Público, portanto, mais favorecem uma manutenção
da cesura exercida pela escuta, de que fala Foucault para indicar sistemas de exclusão
(FOUCAULT, 2012, p. 13), que oferecem alguma margem para a agência das comunidades,
no sentido antinômico da ordem como analisa Kuang-ki Kim (KIM, 2003).

A identidade significa o acesso direto ao território em comunidades e povos


nominados pelo Estado como aborda José Maurício Arruti na proximidade e coesão
território-direitos-identidade (ARRUTI, 1996, p. 129 e passim). Na mesma linha das
circunstâncias do acesso ao território em que a identidade já traz em sua essência o território,
a procuradora federal Débora Duprat140 Pereira diz que...

(...) ao conferir aos remanescentes das comunidades dos quilombos a


propriedade das terras por eles ocupadas, faz isso à vista da circunstância
de que os territórios físicos onde estão esses grupos constituem-se em
espaços simbólicos de identidade, de produção e reprodução cultural, não
sendo, portanto, algo exterior à identidade, mas sim a ela imanente”
(PEREIRA, 2002, p. 285)

Temos que território e comunidade não são disjuntos: a identidade é


fundamental no acesso ao território; e território é essencial e pertence à identidade. O que
proponho é um ajuste sutil, mas preciso, na abordagem de território: território é elemento
de identidade e não algo com o que a identidade e as comunidades se relacionam. Para, com
isso, buscar barrar esse interstício em que o Estado se adentra na separação entre
comunidade e território.

140
Ao analisar e criticar o Decreto nº 3.912/2001, revogado pelo Decreto nº 4.887/2003, sendo que aquele
impunha um período de ocupação para as comunidades quilombolas que, lido ao pé da letra, franqueava
os esbulhos que pudessem se ter dado.
298
Conclusão: Implicações das sobreposições

Pode-se dizer que, como “categorias oficiais de sobreposição” temos: a Reserva


de Desenvolvimento Sustentável, que a depender da interpretação implica ou não em
desapropriações; e as demais que não implicam em desapropriação: Reserva da Biosfera e
Área de Proteção Ambiental; e os instrumentos de gestão dos recursos naturais: mosaicos,
corredores, incluindo as zonas de amortecimento. No caso das comunidades tradicionais,
quando as sobreposições não se dão entre unidades de conservação e territórios tradicionais,
quilombolas e terras indígenas seus territórios podem estar alcançados por algum desses três
instrumentos de gestão dos recursos naturais, como territórios em si, os tem alcançado a
noção de área protegida se estendendo sobre eles. Em todos os casos é uma visão de uma
política em um tempo sobre tais comunidades e povos, e que normatiza ― em todos os casos
― os seus usos e relação com o meio ambiente, na visão do meio ambiente do lado de cá.
Em lugar de enumerar as consequências para as comunidades e povos, vou seguir no registro
da conservação e do uso econômico da biodiversidade, cujo domínio, além de se dar sobre
os territórios, se espraiam sobre os conhecimentos, os usos: se tão modificando e
desarranjando os contextos de tais conhecimentos. Conhecimentos e comunidades são
dinâmicos, o que é diferente de adaptação providencial a condições impostas. Portanto,
como todos os princípios ativos, tecnologias não são conhecidos, os “celeiros” deixando de
existirem é uma falta de estratégia política para as gerações futuras.

As sobreposições entre áreas protegida, dentre estas as unidades de conservação,


e territórios tradicionais, reconhecidos pelo Estado ou não, têm implicações. Nos capítulos
antecedentes foram abordados os efeitos práticos das sobreposições, que podem ser de
diversas ordens, no aprendizado das comunidade a lidarem com instituições, talvez não da
melhor forma; no aprendizado do estado a lidar com comunidades, em chance ímpar de
conhecê-las nos seus territórios. No entanto, o que é feito com isso quando se passa ao largo
as regularizações fundiárias pendentes? No trato miúdo dos conflitos de sobreposições
protela-se a solução. As sobreposições foram feitas assuntos e com elas sobra aos territórios
e à sua regularização, para as comunidades um sobretrabalho, uma sobre-sobreposição aos
territórios tradicionais identificados e convertidos em territórios institucionais; e, para o
governo, resta toda uma mobilização de recursos humanos e financeiros em torno da
resolução de conflitos que se preveem nos Planos Plurianuais da União para o cumprimento
299
de metas planejadas para programas na resolução de conflitos. Uma forma de fazer as
comunidade crerem que estariam sendo atendidas de alguma forma, ao se tratar das
sobreposições, e não dos territórios como elemento identitário das comunidades.

Outro efeito prático das sobreposições é a atenção dada às próprias comunidades


e aos seus territórios no marco da sobreposição com unidades de conservação. Acaba-se
levantando, no percurso da intenção de exclusão das comunidades justamente o que deve
estar e permanecer, portanto, a demanda por direitos e territórios, que nos próprios termos
do governo está dada, bastaria inverter o vetor da ação do Estado, especialmente para
comunidades tradicionais não nominadas, há no levantamento da sua presença, com vistas
à exclusão, um reconhecimento do Estado de que ela está, ocupa e permanece. Porque não
o faz pode estar no exemplo da constituição de lei do Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza―SNUC, em que se levou até o último momento a impressão de
consideração de populações tradicionais para retirá-las da lei. Uma forma de medir a força
do outro lado ao mesmo tempo que protelar o golpe, sendo as comunidades alcançadas em
norma regulamentar posterior, por meio do reassentamento. Não há um segredo, como
também diz Abrams não haver algo secreto nas ações do Estado, exceto, para ele a própria
dominação da retenção ou não das informações, e não a informação em si como algo oculto
atrás do poder político (ABRAMS, [1977] 1988, p. 83). O que há, de acordo com Mitchell,
é um conjunto de métodos poderoso, métodos produzidos a partir de estratégias discursivas
que representam a realidade social e vão ordenar essa realidade (MITCHELL, 2015, p. 13).

Se um “híbrido” ente sociedade e natureza (HAESBAERT, 2006, p. 55), não é


na sobreposição física de territórios tradicionais e unidades de conservação, porque ali estão
bastante separados os domínios, por obra da visão a partir das unidades de conservação que
recobrem os territórios tradicionais, em que a “natureza”, uso aqui como meio físico e
biológico, acaba sendo um domínio exclusivo dos órgãos de gestão das unidades de
conservação; retirado esse domínio das comunidades tradicionais, povos indígenas, e
quilombolas. É o caso de devolver e parar de se retirar a “natureza” das comunidades
tradicionais, povos indígenas e quilombolas feitas nos planos de manejo que não incorporam
os conhecimento das comunidades; nas reuniões; nos termos de compromisso do Decreto
nº 4.340/2002 e que não parte dos conhecimentos das mesmas, sendo que a participação da
comunidade é ponto necessário nas normas para os próprios propósitos de administração
das unidades de conservação.

300
Quanto à conservação da biodiversidade, tomadas as comunidades pelo discurso
que assevera a necessidade da sua presença na manutenção dos ambientes em projetos e
relatórios e quando o Brasil de mostra ao exterior. No trato prático, da conservação da
biodiversidade por meio das unidades de conservação o cenário é outro. Um discurso
bifurcado de que se serve o Estado para ora mostrar-se megassociobiodiverso; ora para
empreender a conservação da biodiversidade por meio da conservação da natureza no
registro e cognição das unidades de conservação como abordado nesta Tese, em uma visão
cunhada, também, política, histórica e científica, portanto, circunstanciais. Não há
contradição aí, o que há é a oportunidade do Estado em desenhar quadros de questões
arrumadas para nele se mover. Levará os dois discursos simultaneamente, com públicos
diferentes para públicos distintos ― me refiro às agências de financiamento com que conta
o governo e mesmo dos relatórios de gestão periódicos do governo, em que tais temas irão
aparecer separados, na “caixa” administrativa de cada instituição, não se cruzam e, portanto,
não se contradizem. O que permite essa dupla fala, ― com um vocabulário próprio do Poder
Público próprio de expressões tais como “usos de recursos naturais”, “conservação da
biodiversidade”, entre outras ― me pareceu ser a separação identitária da comunidades,
colocado o seu território como algo com o qual ela se relaciona e não como um elemento da
sua própria identidade, tema que abordei na conclusão do capítulo 6, junto à percepção de
mundo, língua e linguagem, organização social e não propriamente apenas como uma
superfície em que tais coisas se dão, essa seria uma pequena, e importante, diferença com
as tessituras de que fala Raffestin (RAFFESTIN, [1980] 1993, pp. 150-153). Nessa
separação, os conhecimentos serão tratados mais relacionados às próprias comunidades, daí
para diante na repartição de benefícios, em cumprimento à Convenção sobre a Diversidade
Biológica ― CDB e em uma miríade de projetos para a “valorização” de tais
conhecimentos, “resgate” de sementes, de memória e assim por diante, supondo-se um
território para elas, não raro, pendente de regularização fundiária ou normativa, no caso das
comunidades tradicionais que não possuem as “identidades garantidas” (ARRUTI, 2006, p.
52) pelo Estado, o que compromete, vale dizer, a repartição de benefícios com outras
comunidades que não as quilombolas e os povos indígenas,

A profusão de atividades oferecidas às comunidades e a sobreposição como


assunto com importância posta à frente do território é uma oportunidade de se rechear o
conflitos com atividades para a sua solução, ao mesmo tempo, em abalo no andamento das
regularizações fundiárias dos territórios das comunidades. Lembrando que não há previsão
de não serem criadas unidades de conservação sobre territórios tradicionais. O que se vê,
301
não é um ocultamento de uma intenção por de trás das ações do governo, senão a evidente
recusa em reconhecer autonomia de outro sobre porção territorial exceto pelo direito de
propriedade. Reconhecidos os territórios quilombolas e as terras indígenas, busca alcançá-
las “de volta” por meio das sobreposições com interferência nos “usos dos recursos
naturais”, uma chave que o Estado disponibilizou para o reconhecimento dos territórios e
que a maneja, depois, por meio das unidades de conservação.

Dentre esses efeitos e propósitos das sobreposições, há a uma implicação que os


perpassa nos casos de sobreposição, que é a inerente desterritorialização. Em que a acepção,
aqui, é mais simples e material que a desterritorialização de que fala Haesbaert, falo da
destituição programática da apreensão das próprias comunidades de seus territórios pela
surdez de seus discursos e pelo recobrimento de suas práticas por uma visão ambientalista
de cunho preservacionista que não considera os serviços ambientais prestados pelas
comunidades nos territórios que se escolhem criar unidades de conservação. Em sentido
diferente, mais tímido e não menos importante, do que fala Haesbaert (HAESBAERT,
2006a, p. 121), como territórios reticulares permeados por dimensões locais, regionais e
globais em um novo sistema de territorialização em que fronteiras se evanescem e dão lugar
a outras formas territoriais. Se passa como se, pelas mão do Estado, essa imagem fosse
ofertada às comunidades em lugar da regularização fundiária de seus territórios, pela via da
profusão de projetos, que são importantes, mas que também servem de medidas de contorno
à questão fundiária pendente.

302
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311
Anexo 1 ― Políticas públicas e ações do antigo Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome ― MDS, na Secretaria de
Articulação Institucional e Parcerias ― SAIP para povos e comunidades
tradicionais (2006)

Observação: Reproduzo a seguir, parte de um relatório de minha autoria das


atividades sob responsabilidade da SAIP, em 2006, a título de registro das atividades daquele
Ministério e que podem servir como informação inicial ou complementar a pesquisadores
interessados em políticas públicas para comunidades tradicionais no País. A distribuição de
tarefas no Núcleo de Povos e Comunidades Tradicionais/SAIP/MDS tinha o formato de que
todos os seis técnicos acompanhavam todas as ações, repassadas em reuniões periódicas, e
eram responsáveis, cada qual, por um grupo de programas ou ações; sob minha
reponsabilidade estavam os assuntos da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável
de Povos e Comunidades Tradicionais; acompanhamento do grupo interministerial para o
Programa de Revitalização do Rio São Francisco e do Comitê Executivo Nacional para o
Desenvolvimento Sustentável de Alcântara (CENDSA).

1. Programa Brasil Quilombola―PBQ - O MDS é membro da Coordenação do PBQ


(SEPPIR, MDA, MDS, FCP e INCRA), que articula as ações de governo para
Comunidades Remanescentes de Quilombo e busca elaborar Planos de
Desenvolvimento Sustentável para essas comunidades;

2. Projetos PETROBRAS ― Foram 10 Projetos aprovados e financiados, na ordem de


R$3,8 milhões (Recursos da Petrobrás), com acompanhamento e monitoramento do
MDS e SEPPIR. 10 Comunidades beneficiadas: Castainho (PE), Itamatatiua (MA),
Ivaporunduva (SP), Mocambo (SE), Oriximiná (PA), Rio das Contas (BA),
Sumidouro (PI), Fazenda Machadinha (RJ), Tapuio (PI), Campinho da Independência
– (RJ). O MDS é membro do Comitê Gestor;

3. Projeto de Etnodesenvolvimento Econômico Solidário das Comunidades


Quilombolas ― Cooperam os órgãos: MDS, MTE, MDA, SEPPIR, FCP,
FUNASA/MS e FUBRA. O objetivo é valorizar as relações de cooperação; melhorar
a distribuição da renda; fortalecer o desenvolvimento local sustentável e transmitir o
conhecimento sobre a produção, por meio de organização nacional baseada na
Economia Solidária e na autogestão. Foi feito um diagnóstico da situação sócio-

312
econômica e de fomento à organização coletiva de 150 comunidades quilombolas,
além da formação de agentes de etnodesenvolvimento;

4. Programa Gera Ação Quilombola ― Cooperam os órgãos: MDS, SEPPIR, MDA,


FBB. A Chamada de Projetos para fortalecimento institucional, inclusão produtiva,
infra-estrutura e assitência técnica rural, abrangeu 50 comunidades remanescentes de
quilombos, localizadas em 20 Estados brasileiros. Recursos já aportados pelo MDS
da ordem de R$ 1.015.000,00 e possibilidade de mais R$ 500.000,00 para 2006;

5. Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades


Tradicionais ― Presidida pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome e secretariada pelo Ministério do Meio Ambiente, objetiva apoiar, propor,
avaliar, qualificar e articular os princípios e diretrizes das políticas públicas que
contemplam comunidades tradicionais no âmbito do Governo Federal. Têm em seu
escopo as Comunidades Remanescentes de Quilombos;

6. Programa de Revitalização do Rio São Francisco ― O MDS é parceiro, ao lado


de outros ministérios, órgãos federais, órgãos colegiados e governos estaduais de sete
estados (Alagoas, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Minas Gerais, Pernambuco e
Sergipe), para a implementação do Programa, em que “revitalização“ assume o
seguinte sentido, explicitado no site do Programa (www.mma.gov.br):

“Compreende o processo de recuperação, conservação e preservação


ambiental, por meio da implementação de ações integradas e
permanentes, que promovam o uso sustentável dos recursos naturais,
a melhoria das condições socioambientais, o aumento da quantidade
e a melhoria da qualidade da água para usos múltiplos.”

Nos dias 29 a 31 do maio de 2006 acontecerá o I Seminário dos Povos


e Comunidades Tradicionais da Bacia do São Francisco: Região do
Baixo e Sub-Médio, em Paulo Afonso (BA)

7. Ações de Mobilização Social (ocorrida) ― Apoio na Capacitação de Lideranças e


Agentes Locais em Ações Sustentáveis -Oficina em Maquiné/Prainha/Morro Alto,
no estado do Rio Grande do Sul, em agosto de 2004;

8. Apoio na Capacitação de Alfabetizadores Quilombolas – Programa BB Educar


(MDS, FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES, MEC, SEPPIR, FUNDAÇÃO
BANCO DO BRASIL). Projeto Piloto no Vale do Gorutuba – MG – MAI/JUN/2005;

9. O Comitê Executivo Nacional para o Desenvolvimento Sustentável de Alcântara


(CENDSA) ― O CENDSA, criado pelo Acordo de Cooperação Técnica (ACT),
iniciou seus trabalhos em 20 de janeiro de 2006, com o objetivo de coordenar e
acompanhar, na esfera federal, a execução das ações pertinentes ao Acordo. A
primeira iniciativa do CENDSA foi a instalação do Comitê Gestor Local, para
acompanhar as ações constantes do ACT na esfera regional, o que ocorreu em 22 de

313
fevereiro de 2006. O referido Comitê, também previsto no ACT, conta com a
participação de 15 (quinze) membros de órgãos governamentais e 15 (quinze)
membros de representações da sociedade civil.

10. Realização de Seminário Nacional de Capacitação de Gestores Públicos –


previsto;

11. Doações Parceiros Fome Zero Destinadas aos Quilombolas ― Ações


emergenciais e estruturantes: 637 toneladas de alimentos (feijão, farinha, arroz,
açúcar), 163 mil litros de leite, 90 computadores, 2.000 m 2 de cerâmica, 2 veículos

314
Anexo 2 — Quantitativo de Unidades de Conservação no Brasil nas instâncias federal, estadual e municipal
(jan/2019)

315
Anexo 3 ― Categorias de Unidades de Conservação (Lei nº 9.985,
de 18 de julho de 2000)

316
grupo USO SUSTENTÁVEL
Categoria Característica Objetivo Uso

Área extensa, pública ou


Proteger a biodiversidade,
privada, com atributos
disciplinar o processo de São estabelecidas normas e restrições
Área de Proteção importantes para a
ocupação e assegurar a para a utilização de uma propriedade
Ambiental (APA) qualidade de vida das
sustentabilidade do uso privada localizada em uma APA.
populações humanas
dos recursos naturais.
locais.

Área de pequena
extensão, pública ou Respeitados os limites constitucionais,
Área de Relevante privada, com pouca ou Manter os ecossistemas podem ser estabelecidas normas e
Interesse Ecológico nenhuma ocupação naturais e regular o uso restrições para utilização de uma
(ARIE) humana, com admissível dessas áreas. propriedade privada localizada em uma
características naturais ARIE.
extraordinárias.

Uso múltiplo sustentável


Área de posse e domínio dos recursos florestais
público com cobertura para a pesquisa científica, Visitação, pesquisa científica e
Floresta Nacional
vegetal de espécies com ênfase em métodos manutenção de populações
(FLONA)
predominantemente para exploração tradicionais.
nativas. sustentável de florestas
nativas.

Proteger os meios de vida


Área de domínio público e a cultura das Extrativismo vegetal, agricultura de
Reserva
com uso concedido às populações extrativistas subsistência e criação de animais de
Extrativista
populações extrativistas tradicionais, e assegurar o pequeno porte. Visitação pode ser
(RESEX)
tradicionais. uso sustentável dos permitida.
recursos naturais.

Área natural de posse e


Preservar populações
domínio público, com
animais de espécies
Reserva de Fauna populações animais
nativas, terrestres ou Pesquisa científica.
(REFAU) adequadas para estudos
aquáticas, residentes ou
sobre o manejo econômico
migratórias.
sustentável.

Área natural, de domínio Preservar a natureza e


público, que abriga assegurar as condições
Exploração sustentável de
Reserva de populações tradicionais, necessárias para a
componentes do ecossistema.
Desenvolvimento cuja existência baseia-se reprodução e melhoria dos
Visitação e pesquisas científicas
Sustentável (RDS) em sistemas sustentáveis modos e da qualidade de
podem ser permitidas.
de exploração dos vida das populações
recursos naturais. tradicionais.

Reserva Particular
Área privada, gravada com Conservar a diversidade Pesquisa científica, atividades de
do Patrimônio
perpetuidade. biológica. educação ambiental e turismo.
Natural (RPPN)

Resumo a partir do SNUC (Lei nº 9.985/2000) e World Wildlife Fund for Nature - WWF "Unidades de Conservação", sítio.

317
Anexo 4 ― Composição do Mosaico da Bocaina, 2015

Tabela 14 — Povos e Comunidades Tradicionais na composição do


Conselho Consultivo do Mosaico Bocaina, 2015

Tabela 15— Instituições privadas

318
Tabela 16— Instituições privadas no Conselho Consultivo do
Mosaico da Bocaina, 2015

Tabela 17 — Sociedade Civil (exceto Povos e Comunidades


Tradicionais) na composição do Conselho Consultivo do Mosaico
Bocaina, 2015

319
Tabela 18 — Instituições governamentais na composição do
Conselho Consultivo do Mosaico Bocaina, 2015

Tabela 19 ― Unidades de Conservação no Mosaico da Bocaina,


2015

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