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Sociedade e Cultura

ISSN: 1415-8566
brmpechincha@hotmail.com
Universidade Federal de Goiás
Brasil

Lima, Roberto
Escrituras nos corpos, na roça e na cidade: as diferentes penitências no Médio São Francisco
Sociedade e Cultura, vol. 9, núm. 1, janeiro-junho, 2006, pp. 105-120
Universidade Federal de Goiás
Goiania, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=70390108

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Escrituras nos corpos, na roça e na cidade:
as diferentes penitências no Médio São Francisco
ROBERTO LIMA*

Resumo: O texto visa discutir a oposição que se formou no município de Juazeiro da


Bahia – que, junto com Petrolina, compõe um dos pólos mais dinamizados por políticas
públicas do sertão – entre a penitência “da roça” e a penitência “da cidade”. A penitência
em si, a flagelação dos próprios corpos com navalhas durante a quaresma, é uma prática
católica bastante antiga que foi proibida pelo Concílio Vaticano II. Contudo, essa proibição
está longe de chegar ao sertão são franciscano, onde tem crescido bastante nos últimos
anos, e de maneira diferente entre espaços urbanos e rurais. Por estranho que possa
parecer, é no núcleo urbano “moderno” que tem mais crescido, mas com características
próprias, sendo as mais notáveis a recusa à visibilidade diante da mídia e o uso das
sombras urbanas como locais de trânsito.
Palavras-chave: penitentes; simbolismo; Juazeiro (BA).

O enigma é um fragmento que junto a 2001, conversando com antigos praticantes. É


outro fragmento que lhe convenha forma material escasso para fazer mais que uma
um todo. O mistério, pelo contrário, tem
sido sempre evocado mediante a imagem comunicação curta, ou de divulgação. Talvez não
do véu, esse velho cúmplice do longínquo. mais do que os curtos artigos que Alceu
(WALTER BENJAMIN) Maynard de Araújo publicou sobre o mesmo
assunto nas décadas de 1960 e 1970.
Este texto tem uma limitação que me é Contudo, o tipo de material que recolhi, o
complicada, e que devo compartilhar logo no que presenciei e as dificuldades que tive em
início com o leitor. campo pedem uma tentativa mais ousada,1 mas
Por um lado, o material que possuo é por que ficará marcada como um work in progress.2
demais pequeno. Passei as Semanas Santas de Os coletivos de penitentes são auto-refe-
2003 e 2005 em Juazeiro (BA) conversando, ridos como grupos, cordões ou irmandades3 com
observando e documentando em foto, vídeo e
áudio os rituais que me preocuparei em descre- 1. Uma versão anterior deste texto foi apresentada na XIII
ver, e uma semana em Xique-Xique (BA), em Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina.
2. A curiosa categoria desse tempo acadêmico atrás da qual
* Professor de Antropologia Social na Universidade Federal temos muitas vezes nos refugiado.
de Goiás. Os dois períodos de pesquisa de campo em Juazeiro 3. Alguns conceitos conhecidos sociologicamente são usa-
deste estudo tiveram auxílio financeiro do Pronex “Movi- dos com significados locais que não são necessariamente os
mentos Religiosos no Mundo Contemporâneo”, e o primei- mesmos presentes na literatura especializada. Esses concei-
ro foi realizado juntamente com Christianne Evaristo, do tos nativos que têm similar na linguagem “nativa” da soci-
Prodema-UFC. Tenho uma longa lista de agradecimentos (e ologia serão precisados de acordo com o significado atribu-
desculpas por possíveis incorreções) às pessoas que entre- ído localmente. No caso das irmandades, o significado não
vistei em Xique-Xique e Juazeiro. As principais são: David implica ter termo registrado em cartório, nem funciona
Nogueira e Do Carmo, D. Emília Nogueira, D. Neném e S. necessariamente como associação de ajuda mútua ou de ar-
Barreto, S. Máximo, D. Bastiana e Careca, em Juazeiro recadação de fundos para uma ordem eclesial. As principais
(BA), sede; D.Alice, Carlinhos, S. José, D. Mercê e S. João, obrigações são de devoção nos rituais cuja descrição se se-
em São Gonçalo do Salitre, na zona rural de Juazeiro; S. gue, em visitar mortos ligados ao grupo nos velórios, e
Maninho Meira, S. Zé de Júlio de Anália e D. Ditosa de Zé rezar nos túmulos dos membros falecidos quando da quares-
de Júlio, em Xique-Xique (BA). ma.
LIMA, ROBERTO. Escrituras nos corpos, na roça e na cidade: as diferentes penitências...

pretensão de serem secretos, e anônimos os seus e submédio São Francisco, a partir das obser-
componentes. Eles caminham, tanto nas cidades vações que fiz na cidade de Juazeiro (BA) e
quanto nas zonas rurais, pelas noites da quares- em relatos recolhidos em Xique-Xique (BA).7
ma, visitando cemitérios, cruzeiros à beira das Nesse sentido, este artigo é uma espécie de
estradas4 e algumas casas de pessoas ligadas estudo antropológico dos cuidados com os mor-
às irmandades que, em decorrência de uma tos e o morrer. Algo que faz a contraparte das
promessa, solicitam aos chefes as visitas e podem técnicas corporais do nascer que Marcel Mauss
ofertar um “café (com bolo) aos penitentes”. aponta (2003, p. 412), seguindo para além, além-
Com as faces cobertas, pedem pelo perdão das túmulo.
almas do purgatório, as de pessoas que não Não existe uma memória do início da
tiveram tempo de arrepender-se dos pecados prática da penitência nessa parte do Vale do Rio
pelo caráter brusco do falecimento no sistema São Francisco, diferente, por exemplo da irman-
de crenças locais.5 Seus componentes são, pelo dade de Barbalha (CE), ligada às pregações do
menos em Juazeiro, todos negros (embora os Padre Ibiapina na região na década de 70 do
chefes de alguns cordões sejam mais claros que século XIX, posterior à epidemia de cólera
o restante do grupo, e o marido de uma chefe, (1862) que marca o retorno do mestre à região
que “ajuda a puxar” os benditos, possa passar (há uma interessante convergência com a Euro-
por branco) e têm profissões que podem ser pa, onde a penitência cresceu muito durante o
qualificadas por trabalho braçal na cidade e grande surto da peste negra no século XIV).8
lavradores na zona rural.6 Como Juazeiro foi fundada no início do século
Minha intenção é pensar essa prática XVIII por capuchinhos e franciscanos, credita-
religiosa razoavelmente difundida no baixo-médio se a ambos a introdução da prática no local.
Devo observar ainda que a palavra “peni-
tente” do modo como estou discutindo aqui é,
4. Os cruzeiros que marcam e simbolizam os lugares onde
caíram pessoas vitimadas por mortes violentas ou súbitas, nas duas cidades em que me centro, um conceito
como atropelamentos e assassinatos. Estou usando a pala-
vra símbolo em um sentido muito forte, como aquilo que
liga ou une, sentido muito próximo ao que era dado pelos 7. Donald Pierson (1972) enumera vários lugares em que
gregos. No mito do andrógeno, Platão fala de símbolos registrou ou teve relatos dessa prática, incluindo a Ilha de
como ossos que partimos e ofertamos a nossos convivas, e Assunção, onde há a particularidade dos cortes serem feitos
que para sempre nos unem. Diferencio-o aqui do signo, que nas nádegas e coxas, possivelmente para ficarem mais es-
é arbitrário, e da alegoria, o símbolo morto ou degenerado, condidos durante o dia-a-dia do trabalho; Alceu Maynard
que perdeu sua vitalidade. Araújo (1964, 1973) descreve penitentes em várias cidades
5. Para o catolicismo romano, além desses motivos, vão do Vale e em São Paulo, onde migrantes nordestinos que
para o purgatório os que morrem em culpa por pecados trabalhavam nas lavouras de café reuniam-se para cumprir
menores (veniais) e aqueles que morrem “na graça de Deus”, suas obrigações, cada um penitenciando-se conforme as re-
mas “imperfeitamente purificados”. Esses motivos não são gras do lugar de origem. No estado do Ceará, é famosa a
alegados nos discursos dos penitentes. Também não tenho Ordem dos Penitentes da Cruz, de Barbalha (Maria
como precisar se, no sistema local, as almas do purgatório Antonacci, 2002), às vezes reconhecidos como os “peni-
agem como no caso estudado por Carlo Ginzburg (2001), tentes do padre Cícero”. São famosos também os peniten-
no Friul, séculos XVI e XVII, em que as almas ficavam no tes do Conselheiro. Walnice Galvão lembra que ele canali-
purgatório, ou perambulando, no intervalo entre o faleci- zou a prática de se penitenciar carregando pedras à cabeça
mento e o momento em que deveriam, de fato, terem para a construção de igrejas e cemitérios, vindo a tornar-se
morrido, como se houvesse um hiato entre o destino que o o maior arquiteto do sertão da Bahia à época (2001, 36-
morto deveria cumprir e o que realmente cumpriu. Nada 40).
semelhante foi referido, exceto quanto as almas de peniten- 8. Com a diferença marcante de que não há um anti-semitismo
tes que morreram sem completar o ciclo de sete anos que explícito na prática da penitência, tanto no Cariri, quanto
cada um tem de cumprir. Retornarei a esse ponto adiante. são-franciscana (ver Bárbara Tuchman, 2004, p. 55), ao
6. Esta é uma região de prevalência negra. Na época dos contrário da Europa, onde a perseguição dos judeus foi parte
primeiros estudos sobre penitentes na cidade de Xique-Xique das pregações. Observo que, embora o tema da culpa dos
(1951), o percentual de pardos e pretos era de 75,3%. As judeus pela morte do Cristo seja bastante difundida no Brasil
ocupações no cordão de D. Emilia são: 2 zeladores, 1 enfer- (ver Oswaldo Xidieh, 1967), dos 27 benditos recolhidos em
meiro e guarda, 4 aposentados, 2 cozinheiros (um deles Juazeiro, por Carlos Vicente (1992), apenas um faz alusão
declaradamente homossexual), 2 empregados domésticos aos judeus. Contudo, um outro tema que pode surgir daqui, e
(uma mulher e um homem, homossexual), 6 estudantes (cri- que ainda espera um etnógrafo, são as crenças ligadas aos
anças e adolescentes), 2 garis, uma dona de terreiro de “cemitérios do cólera”, normalmente criados fora dos es-
umbanda e uma funcionária pública (sem discriminação da paços dos cemitérios oficiais das localidades, e que também
função). são habitados por “santas almas” e alvo de devoção.
SOCIEDADE E CULTURA, V. 9, N. 1, JAN./JUN. 2006, P. 105-120

nativo e assim será tratado.9 Contudo, ele se partida do cortejo). É uma prática mais velada
bifurca na cidade de Juazeiro em “alimenta- e tem como marca seus membros cortarem-se
deiras” e “disciplinadores”. às costas com lâminas presas a chicotes (a
As “alimentadeiras” (sempre no feminino disciplina), em determinados dias da quaresma,
e, às vezes, referidos “como cordões de mulhe- enquanto entoam benditos dentro do cemitério.
res”) são homens e mulheres que, cobertos dos Normalmente, o trabalho11 dura o tempo neces-
pés à cabeça por vestes brancas (o lençol), amar- sário para o sangue que escorre das feridas
radas pelo cordão de São Francisco, caminham banhar toda a roupa, que num penitente expe-
em fila indiana, acompanhando um madero riente12 fica uniformemente vermelha.
sagrado,10 que é carregado pelo primeiro da fila, Meu interesse por essas práticas surgiu por
penitente este que tem também o ofício de acaso, em 2001, quando estava fazendo pesqui-
“puxar” os benditos (ladainhas e rezas canta- sa de campo de meu doutoramento em Xique-
das), sendo secundado pelos outros compo- Xique e, ao entrevistar um senhor que havia sido
nentes do cordão. Essa fila, ou cordão propria- prefeito na década de 1950, Maninho Meira, ele
mente dito, é acompanhada por pessoas da me relatou do “escândalo” que havia ocorrido
comunidade, e pelo “chefe”, que vai “à paisana”, na cidade em 1952, quando a revista O Cruzeiro
fechando o grupo. Faz parte da tradição que as publicou uma reportagem sobre os “penitentes”.
pessoas segurem o lençol que cobre a cabeça, Eu já tinha ouvido falar dessa reportagem, por
de forma a tapar o rosto (uns fazem isso com a ter lido bastante a dita revista, que era a mais
mão, enquanto outros prendem um alfinete de importante à época, e porque Altenfelder Silva
segurança fechando o pano frente ao rosto). (1961) comenta que ele fez pesquisa na cidade
Os “disciplinadores” (que nos povoados em no mesmo ano, acompanhou os penitentes e que
que não existem “alimentadeiras” são chamados houve um rebuliço devido à não-aprovação pelos
“penitentes”) vestem-se com uma fina saia, a penitentes do conteúdo da reportagem, que, no
anágua, e enrolam um pano na cabeça, a toalha. mínimo, era sensacionalista, como vim a saber,
Também saem em grupos, seguindo um madero, de forma bastante desastrada, no mesmo dia
mas a poucos externos ao grupo é permitido em que entrevistei Meira.
acompanhá-los (normalmente apenas ex-peni- Na década de 1950, a revista O Cruzeiro
tentes, e duas ou três pessoas ligadas ao cordão publicou uma série de reportagens sobre as
que têm a função de carregar sacolas contendo regiões centrais do país, que queriam “mostrar
velas, necessárias às diversas promessas indivi- o Brasil [sertão] que o Brasil [litorâneo] não
duais e coletivas, e as roupas de uso diário que conhece”. Contudo, essas reportagens muitas
os penitentes trajavam ao chegar ao local de vezes preocupavam-se em afirmar estereótipos
sobre os tipos sertanejos, ajudando a propagar
9. Ou seja, não vou discutir a multiplicidade de práticas de uma imagem “selvagem” do sertão, e raramente
penitência relacionadas aos diversos processos de cristia-
nização que existem no mundo, como os citados por Ruth
se questionavam sobre os reais habitantes des-
Benedict [1934], no Novo México, em que as pessoas se ses espaços imaginados. Por outro lado, especifi-
crucifixam na quaresma, ou os que existem nas várias etnias camente quanto às expressões religiosas brasi-
que tiveram influência jesuítica, como os Bororo, que têm a
prática de, na Quarta-Feira de Cinzas, cada um ser indivi- leiras, seja do litoral ou do interior, a revista era
dualmente espancado por parentes, afins e desafetos, dentro particularmente cruenta: um ano antes (1951)
da capela (Joana Aparecida Silva, comunicação pessoal). ela criara um sério embaraço no meio das reli-
10. Uma cruz de madeira com cerca de 1,7 m para alimen- giões afro-brasileiras ao publicar uma repor-
tadeiras e 1,2 m para os disciplinadores da zona rural (quan-
do têm, pois “os cordões dos homens não costumavam ter
madero, não” – S. João, Bairro Sabiá), paramentada com 11. Um dos termos de auto-referência para a atividade cen-
um pano branco, em forma de M, e um crucifixo. Embora tral dos disciplinadores.
questionados, os penitentes que entrevistei não me deram 12. Nas primeiras vezes que um penitente sai, ou seja, segue
nenhuma explicação para o significado do pano, ou à forma o cortejo e se corta no cemitério, ele ainda não consegue
como é preso ao madero, diferente de Xique-Xique, onde coordenar bem o movimento do chicote, o que às vezes se
associavam o M a Maria Madalena (Silva, 1961), e em dá também por conta da idade do praticante, que pode en-
Correntina, onde o pano é associado ao sudário que restou trar no grupo, com aval do pai, aos dez anos de idade: “Você
vazio no túmulo de Jesus quando da ressurreição (encarte do vai ver lá, tem deles que ainda é iniciante, e aí não...[tinge
CD a Arte no canto de encomendar as almas: Encomenda- toda a roupa], mas têm outros que já fazem bem” (S. José,
deiras de Correntina, s/d). São Gonçalo do Salitre).
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tagem, com texto de Arlindo Silva e fotos de A primeira pista teórica que segui para sair
José Medeiros, intitulada “As noivas dos deuses de dentro desse enigma foi a proposta que
sanguinários”. Nesse episódio, a única voz aca- Edward Said apresentou para discutir o orien-
dêmica que se levantou para protestar foi a do talismo:
antropólogo Roger Bastide (para a revista O
Cruzeiro, ver Ursini, Leslye, 2000 e Kassab, [...] no fim, foi a ignorância ocidental que ficou
Álvaro, 2004; para a construção do sertão, ver mais refinada e complexa, e não um corpo de
Lima, Nísia, 1999 e Sena, Custódia, 2003). conhecimento ocidental positivo que cresceu
Novamente o acaso colocou-me, no mesmo em tamanho e precisão. Isso se deve às ficções
dia em que conversei com Meira, frente a frente terem sua própria lógica e sua própria dialética
de crescimento e declínio. (1990, p. 72)
a um velho casal de ex-penitentes, que se
mostrou muito irritado quando falei a eles do
A disciplina orientalismo, em seu esforço
relato da revista O Cruzeiro, e que este estava
de contenciar a realidade islâmica e representá-
sendo retomado por um historiador local.13 A
la para um público que compartilha com o
co-incidência de presenças me foi chocante.
orientalista (ocidental) uma série bastante grande
Num único dia eu ficara frente a frente com
de preconceitos, surge como “uma idéia que se
três remanescentes da época de um dos maiores
projetos de ciências sociais já realizados no põe em marcha” e que começa a se reproduzir
Brasil, que era central a minha tese,14 e de uma indefinidamente, como imagens em espelhos
época crucial para a constituição da idéia atual colocados frente a frente:
de sertão no imaginário nacional como lugar
O Oriente é assim orientalizado, um processo
privilegiado para intervenção em “políticas
que não apenas o marca como a província do
públicas” de alto impacto social e ambiental. orientalista como também força o leitor ocidental
Tudo e todos – relatos, relatórios, reportagens e não-iniciado a aceitar as codificações orienta-
esses agentes – implicavam uma opacidade listas. (Said, p. 77, grifos no original)
muito forte de uns diante dos outros. Isso tudo
em uma cidade que tinha, no censo de 1950, O vazio que marca a relação puramente
3.608 moradores na sede do município. arbitrária entre significado e significante nos
Havia algo muito estranho: é claro que em signos é manipulado dentro de uma determinada
um universo tão reduzido de pessoas, todos se conjuntura política e um sistema sígnico, criando
reconhecem, mesmo com rostos tampados, pelo uma cadeia de significantes em que a tradução
modo de mover-se e, se não se pode cair em (cultural), em vez de fortalecer o original, o
uma ilusão que o reconhecimento implica conhe- degrada.16
cimento da intimidade e/ou compreensão mútua,
o consocialismo15 dessas pessoas não parecia
lugar do curso da vida cotidiana. Eles compartilham, assim,
indicar uma postura tão próxima à esquizofrenia embora breve ou superficialmente, de uma comunidade não
nas relações entre as partes. apenas no tempo, mas também no espaço. Eles estão en-
volvidos na biografia um do outro, pelo menos em caráter
mínimo; eles ‘envelhecem juntos’, pelo menos momenta-
13. Embora se possa dizer que toda história é local, no neamente, interagindo direta e pessoalmente como egos,
sentido de que só temos acesso a ela através de suas narrati- sujeitos, individualidades” (Geertz,1989, p. 230).
vas (Jameson,1992), estou usando a expressão em sentido
próximo ao usado por Carlos Brandão (1984), o sábio do 16. Um processo contrário ao que seria a função da tradu-
lugar, que escreve sobre sua cidade, às vezes com uma visão ção, tal como discutido no clássico ensaio de Walter
extremamente etnocêntrica, mas que fornece muitos dados Benjamim (2001). Também não estou usando “sertanejo”
sobre a ideologia da elite de sua localidade. como um sinônimo purificado da carga pejorativa do “po-
pular”, com a grande tendência à homogeneização subjacente
14. O “projeto São Francisco”, coordenado por Donald ao termo. Ao contrário, o sertanejo aqui tem algo do cará-
Pierson, que teve a participação de 22 pesquisadores, entre ter insurgente e multifacetado da subalternidade, como es-
os mais conhecidos cito Altenfelder Silva, Levy Cruz, Esdras tudada pelos autores do grupo Subaltern Studies. Finalmen-
Borges, Maynard Araújo. (Para discussões parciais sobre te, Paula Montero (2005) observa que talvez nem devamos
esse projeto e o papel de Pierson nas ciências sociais brasi- falar em “religião” na maior parte de nossos estudos, pois
leiras, ver Lima, Roberto, 2002; Vila Nova, Sebastião, 1998, esse termo, no Brasil, sempre foi pensado como sinônimo
e Corrêa, Marisa, 1987). de “católica”, o que implicaria um apagamento das
15. “Consócios são indivíduos que se encontram realmente, especificidades das práticas brasileiras (como candomblé,
pessoas que se encontram umas com as outras em qualquer umbanda) e outras (budismo etc.)
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Retornando a Xique-Xique, esse mesmo outras cidades, para que não viessem perguntar
processo parecia estar-se delineando em menor da penitência”.
escala na forma como a elite local (não) via os Não há como não fazer eco às indagações
praticantes da penitência. Cinquenta anos passa- de Said:
dos da fatídica reportagem, os termos em que
Maninho Meira descreveu os penitentes pare- Parece ser uma falha humana comum preferir a
ciam retirados da revista, que cito: autoridade esquemática de um texto às
desorientações de encontros diretos com o
A flagelação se inicia logo em seguida ao humano. Será, porém, que essa falha está
primeiro padre-nosso rezado dentro do cemi- sempre presente, ou existirão circunstâncias
que, mais que outras, tornam mais provável a
tério. Conduzindo a cruz, o chefe da procissão
prevalência da atitude textual. (1990, p. 102)
se distancia, indo até a orla da mata. Ali, solta
um assobio que é o sinal de aviso, e os peni-
tentes saem de dentro de mato e começam a A inserção ambígua do país de onde falo, e
flagelar-se [em outra parte os autores dizem que do grupo do qual falo, no “mundo do logocen-
eles chegam gritando como animais]. Em trismo” não me ajuda a dar uma resposta à
primeiro lugar, eles saltam para agitar o sangue, duvida de Said, mas a convergência de datas e
e por fim vibram contra as suas próprias carnes eventos no início da década de 1950 parece
os açoites com navalhas na extremidade. O apontar na direção de estarmos diante de uma
sangue jorra das feridas abertas e encharcam dessas circunstâncias, pois vários autores têm
as anáguas por eles vestidas. Além das aná- discutido o papel pedagógico dessa revista na
guas, os penitentes trazem a cabeça coberta
criação de uma imagem e uma performance da
com um pano. Os iniciados se flagelam com
folhas de urtigas, até que estejam em condições
nação brasileira. De fato, em 2001, de acordo
de trocá-las pelos açoites. Ao terminar a com os dois ex-penitentes entrevistados, Zé de
penitência, todas as feridas são banhadas com Júlio de Anália e Ditosa de Zé de Julio, não havia
água de sal. (Sales e Damm, 1952, 16-17) mais grupos de penitentes na sede do município
de Xique-Xique (a cidade que era apontada à
De acordo com os ex-penitentes, nem gri- época como o grande centro da prática), embora
tos, nem urtigas e cachaça, nem saltos havia. os cordões ainda se reunissem na zona rural,
As folhas portadas pelos penitentes eram de em uma fazenda de um político local, na mesma
malva, planta com que Jesus, no cristianismo localidade, As Pedrinhas, em que Silva (1961)
sertanejo,17 foi saudado em Jerusalém, e à qual assistiu a uma procissão de penitentes e a
é creditada ação cicatrizante em fitoterapia. O registrou.
exame das fotos veiculadas por O Cruzeiro Mas o argumento de Said não repara a
também não mostra ações bruscas por parte dos dúvida de como se deu o fato de que, no período
penitentes que ou estão ajoelhados, ou em pé, que vai de 1950 a 2002, ter crescido o número
empertigados. Ainda assim, Meira, na sacada de cordões em Juazeiro. Afinal, o município de
de sua casa, onde o entrevistei, falava, rindo, Xique-Xique contou, em 2000, com 44.718
que: “Naquela época, quando eu ia no Rio de habitantes, sendo 31.565 urbanos, e teve cresci-
Janeiro por conta da política, eu dizia que era de mento populacional bastante reduzido (1,18%
ano/últimos dez anos, menor que o crescimento
17. Tenho evitado o uso da categoria sociológica “catoli- vegetativo do Brasil). Já Juazeiro é parte do pólo
cismo popular”, assim como o uso de cada um dos termos mais dinâmico do médio São Francisco (junto
em separado. No caso em questão ainda é possível falar em
um cristianismo pela presença do “Cristo” no imaginário,
com Petrolina), sede de bispado (o bispo da
que tem significados muito diferentes dos dados ao mesmo cidade até 2005, Dom José Rodrigues, era um
personagem pelo catolicismo, com a carga pejorativa que dos mais carismáticos lideres religiosos da
essa tradição historicamente lança sobre quem não segue
seus preceitos e dogmas. No caso em questão, sistemas sim- região), e tinha, no mesmo ano, uma população
bólicos muito diferentes (tanto africanos quanto indígenas) total de 174.567 habitantes, dos quais 133.278
atuam juntos, em um processo de hibridação altamente
agonístico em certos momentos, e de um sincretismo “mui-
urbanos, com crescimento bastante acelerado
to esperto” em outros. (3,9% ano/últimos dez anos). São duas cidades
LIMA, ROBERTO. Escrituras nos corpos, na roça e na cidade: as diferentes penitências...

bastante diferentes em traçado e história re- Pode, mas rapidamente, que eu estou muito
cente. cansada de ontem, e daqui a pouco vêm me
Não é só o contraste que cria um estra- pegar para gravar uma entrevista para um
nhamento. O próprio crescimento tem pontos documentário.
bastante interessantes, aparentemente não é só
A tradição da penitência, embora banida
uma questão demográfica, embora um dos
da liturgia oficial da Igreja Católica pelo Concílio
motivos possa ser creditado a movimentos
Vaticano II, na região é parte dos rituais da
imigratórios, em sentido análogo ao caso anali-
quaresma.18 O ciclo começa, então, na Quarta-
sado por Araújo (1964 e 1973) em São Paulo.
Feira de Cinzas e termina na Sexta-Feira Santa.
Há uma série de situações novas, ou um “como”
O período todo é liminar. Marcas dessa limi-
cresceu a atividade, que me interessam mais
naridade são visíveis nas casas e igrejas, onde
discutir e que quero começar a indicar a partir
oratórios e santos são cobertos com panos, ora
de duas cenas anotadas na caderneta e de uma
pretos, ora roxos, ora brancos, em sinal de luto.
rápida análise do processo ritual:
As vestes que apagam a identidade, pela padro-
Cena 1 (telefonando para um chefe de cordão nização e pela desaparição dos rostos, são
de “disciplina” na cidade de Juazeiro que, de coerentes com o modelo de personae liminar
acordo com algumas “alimentadeiras”, seria de Victor Turner (1974 e1974a), assim como é
mais fácil de conversar). concordante com a idéia de poder dos fracos
que essas pessoas sagradas venham dos estratos
Terça-Feira Santa de 2003: Alô, queria falar com mais baixos e estigmatizados da sociedade.
Máximo? Contudo, cada um desses marcadores tem
É ele. de ser visto sem perder de vista a historicidade
Sr. Máximo, meu nome é Roberto, sou da
do processo: de acordo com D. Alice, em São
Universidade Estadual do Ceará, eu estou
fazendo uma pesquisa para a universidade aqui,
Gonçalo do Salitre, “antigamente” muitas vezes
sobre os penitentes e eu queria falar com o os pais não sabiam que os filhos eram penitentes
senhor, entrevistá-lo, se possível seguir seu de disciplina, pois estes nunca ficavam sem blusa
cordão hoje... na frente daqueles, as esposas deveriam guardar
Olha, se você quer conversar comigo, pode, segredo que seus maridos eram penitentes e
mas sem gravar. E pode ir atrás da gente, mas havia no povoado apenas uma pessoa, uma velha
sem foto ou filme, que os meus não gostam. senhora, que lavava as roupas ensangüentadas
Mas eu posso ir aí falar com o senhor? de todos. Esses “segredos” aparentemente têm
Pode, mas gravar eu não deixo, e se eu deixar, perdido sua força, para desgosto de algumas
os meus não vão.
pessoas, “penitentes antigos”.
Quando que eu posso ir falar com o senhor?
Pode ser amanhã? Desde o início, ficou claro que a análise
Pode. não poderia ser realizada através de teorias que
Que horas? marcam de maneira abrupta a separação sagra-
Às 10 horas. do/profano, pois, se há a percepção de que os
Obrigado, Sr. Máximo, até amanhã.
18. O texto de Tuchman indica que, pelo menos desde o
Dia seguinte, Quarta-Feira Santa de 2003 século XIV, a Igreja Católica tem uma relação ambígua e
Alô, eu queria falar com o Sr. Máximo. freqüentemente agressiva para com os penitentes, por estes
afirmarem agir sob inspiração divina, sem a mediação da-
Ele viajou.
quela. Assim, em Xique-Xique, dependendo da posição do
padre, houve momentos em que era permitida a entrada dos
Cena 2 (Na porta da casa de D. Neném, chefe penitentes na igreja da cidade, em outros, era permitido
do Cordão de Alimentadeiras de Atrás da rezar na porta da igreja, e outras vezes, nem em frente
podiam passar. Em Juazeiro da Bahia, não era permitido aos
Banca, o mais antigo de Juazeiro).
disciplinadores entrarem nas igrejas na sede, as alimenta-
Dona Neném, meu nome é Roberto, sou deiras podiam entrar paramentadas em algumas, mas não na
professor da Universidade Estadual do Ceará, catedral. Já nos povoados da área rural, eram ambos permi-
posso conversar com a senhora? tidos. Em Juazeiro do Ceará, um domingo por mês os peni-
tentes participam da missa entoando seus benditos, devida-
mente paramentados, mas sem se flagelarem.
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dias mais importantes do ciclo são justamente o sacrifício (1981), ou à quarta obrigação do dom
primeiro e o último – os dias em que os cordões (2003).
estão com maior número de praticantes, e é Mauss (1981), ao descrever as fases em
maior o público –, quando se verifica que a que divide o sacrifício, mostra a grande impor-
Semana Santa é, de todas da quaresma, a mais tância que há nas fases de sacralização e de
importante,19 a observação da distribuição dessacralização. Na verdade, essas duas são
desigual do sagrado pelo período implica a as mais elaboradas e longas dos ritos sacrificiais
impossibilidade de pensar o ciclo através de (claro que cada ritual de sacrifício tem suas
antinomias, ou do engenhoso gráfico de Leach particularidades; em alguns é a primeira e, em
(1974), em que ele divide o tempo sagrado/ outros, a terceira fase que é mais elaborada). O
profano em quatro fases:20 momento da imolação em si do animal ou vegetal
pouco espaço ocupa na análise dele, havendo
Fase A. O rito de sacralização ou separação. A muito mais preocupação em perceber as nuan-
pessoa moral é transferida do mundo Secular- ces do processo que faz possível a aproximação
profano para o mundo Sagrado; ela ‘morre’. dos sacerdotes às forças destrutivas do sagrado
Fase B. O Estado Marginal. A pessoa Moral e os processos pelos quais essa força é poste-
está numa condição sagrada, uma espécie de riormente canalizada e transformada em benefí-
animação ou suspensão. O tempo social
cios para a comunidade.
ordinário parou.
Essa maneira de pensar todo o processo é
Fase C. O rito de dessacralização, ou agregação. mais satisfatória, no nosso caso, para pensar os
A pessoa moral é trazida de volta do mundo do
penitentes de disciplina, pois, se o ato de flage-
Sagrado para o Profano; ela é ‘renascida’, o
tempo secular começa de novo. larem-se é central – “é o nosso trabalho”, como
vários me disseram, no entender deles e também
Fase D. Esta é a fase da vida secular normal, o
intervalo entre festivais sucessivos. (Leach, para a comunidade –, o mais importante é a
1974, p. 207) caminhada que realizam passando por várias
casas, sempre que saem do cemitério, antes de
rumarem para uma casa especial, a “casa de
oração”, que é a última parada das noites em
que saem, uma espécie de “giro”, como nas
festas do Divino, que tem de ser realizado, mas
com a particularidade de “não ser permitido ver”
Para nosso problema, teríamos de reescre- os penitentes.21 Discorrendo sobre as modifi-
ver o gráfico de forma que, além de um “sagrado cações mais recentes na forma como se dão as
base”, vários picos de sacralidade pudessem ser procissões, D. Alice, proprietária da casa de
pensados. Nesse caso, pensar uma oscilação oração de São Gonçalo do Salitre, questionava
entre momentos de maior e menor sacralidade, o fato de o grupo de penitentes locais (muitos
e a própria caminhada com as vestes enchar- deles são seus netos) não fazerem mais a cami-
cadas de sangue, também parece afastar-se da nhada pelas várias casas: “Não sei que penitente
representação de onda binária de Leach (1974) é esse que não anda! Antigamente eles quando
para algo mais próximo às idéias de Mauss de
21. Cada lugar parece ter suas próprias leituras dessa ques-
tão da visualidade. Em 1994, pesquisando no bairro de Cam-
19. As noites da Semana Santa, que é também a mais impor- po Redondo, em Itamonte (MG), distante mais de mil km
tante festa do calendário cristão, têm uma programação de Juazeiro, recolhi alguns depoimentos sobre a prática que
religiosa bastante ampla na cidade, incluindo a Via Sacra – antes havia lá de “alimentar as almas”: “eles batiam na
realizada dentro da catedral por pessoas predominantemen- porta, cantando, e o pai abria um pouco a porta, e dava algo
te brancas –, encenações da Paixão de Cristo dentro do de comer para eles. Não podia ter luz nem barulho dentro da
estádio de futebol, malhação do Judas em várias ruas e bair- casa, de criança, de nada. E se algum deles visse que tinha
ros. Infelizmente, seria demais para os propósitos deste alguém olhando eles pela fresta da janela, tinha que sair no
artigo discutir essas outras manifestações. ano seguinte, e durante sete anos” (Marcinha). A oferenda
20. Mas é coerente com o texto anterior de Leach (1995 pela fresta da janela é comum no Juazeiro, mas, neste, as
[1964]), em que ele propõe haver um continuum entre pessoas de dentro de casa cantam junto com os penitentes
sagrado e profano, que são faces de todos os atos humanos. os benditos.
LIMA, ROBERTO. Escrituras nos corpos, na roça e na cidade: as diferentes penitências...

chegavam aqui [na casa de oração] já era quase Mas, complicando um pouco mais nosso
amanhecendo”. quadro, ocorre também que outras tempo-
Já no seu texto mais famoso, O ensaio ralidades caminham juntas no período. Destaco
sobre a dádiva, Mauss acrescenta outro ponto um tempo profano ou cotidiano que tem várias
importante ao trazer à discussão o caráter faces, tanto pelo fato de que nem toda a
obrigatório do presente feito aos deuses. A comunidade (população da cidade/povoado)
eficácia é central aqui. Os sacrifícios ou as participa e/ou partilha da crença que motiva os
trocas com os espíritos dos mortos têm de ser penitentes quanto por haver uma necessidade
realizados e isso tem de ser público, assim não de manter-se produzindo. Esse profano que
só o sangue tem de ser vertido, mas tem de ser continua correndo em paralelo ao tempo sagrado
(não)mostrado: em 2005, vários penitentes do também faz parte da vida dos penitentes, pois
cordão de São Gonçalo do Salitre não se corta- estes não param de trabalhar durante o ciclo
ram na Sexta-Feira Santa e um deles pediu para (exceto nos dias santos que pontuam o início e
outro, seu tio, que se cortara, para este se secar fim da quaresma – carnaval e Sexta-Feira
com suas roupas, para o sobrinho aparentar ter Santa). Além destes há um terceiro profano,
cumprido a “obrigação”. Esses dois fatos gera- iconoclasta, que pode invadir o espaço sagrado,
ram um profundo mal-estar e comentários como os carros que se recusam a parar quando
irritados entre os penitentes de outro cordão (do os cordões estão atravessando as estradas,24 e,
Sabiá) que estavam juntos no cemitério e nos ainda, um profano quase blasfemo que vimos
ex-penitentes que acompanhavam o cortejo: na tentativa frustrada que houve de furtarem o
“Está até parecendo cordão de mulher” [que gado do chefe do cordão de penitentes que
não se cortam]; “Antigamente, quando isso estávamos registrando, em plena Sexta-Feira
acontecia [de não se cortarem], a gente colocava Santa de 2003.
ele no macaco: ele te abraçava por trás e você Assim, só para o sagrado, o gráfico pode
cortava ele”; “Olha, passar a noite inteira vestido ser reelaborado como na Figura 1.25
no seu sangue já é estranho, imagine no sangue Além dessas questões que poderíamos
de outro...”. chamar de doutrinárias, o que foi dito acima sobre
E não só isso, mas a idéia dos objetos rituais o ciclo ritual tem de ser aberto para abarcar
participarem das almas e serem eles mesmos uma série de questões sociologicamente relacio-
almas (2003, p. 203-208, em especial a nota 59)22 nadas às regulações do sagrado que são ligadas
é parte do conjunto de crenças de ambos os às práticas sem, contudo, serem pensadas como
grupos, em uma leitura do simbólico que não se intrínsecas a elas. Trata-se das questões políti-
reduz ao arbitrário símbolo lingüístico. Assim, cas, pois, da mesma forma que em Xique-Xique
no cemitério superlotado de Juazeiro, não só os houve um lugar (pela sua negação e pela “trans-
túmulos dos falecidos penitentes são muito mais formação em passado”) para os penitentes no
suntuosos do que se esperaria pela condição trabalho da hegemonia local, em Juazeiro temos:
econômica, mas também os túmulos mais sim- as questões políticas internas aos grupos, entre
ples, apenas um monte de terra, costumam ter eles e com a classe dirigente das cidades, e com
cinco ou seis cruzes plantadas sobre eles. É que, o que vou chamar “os dispositivos de Estado
no reaproveitamento das covas, cada um que locais”, que me parecem associados com o fato
ali foi enterrado tem a sua cruz que é seu sím- Sentença/sentença// Reza aí irmão meu”. Também as pesso-
bolo.23 as conversam com os moradores dos túmulos; quando é um
parente, contam-lhes carinhosamente as novidades, dese-
22. Mauss fala em “espíritos”. Estou fazendo uma tradução jam-lhes que fiquem com Deus e se despedem com um beijo
livre para o sertão, pois interessa é a idéia de participação. na lápide.
23. Nos túmulos das chefes costuma-se “plantar o madero” 24. Se o cordão é “cortado”, ou seja, alguém o atravessa,
do cordão – “aquele madero é da chefe, vai para o túmulo “vai ter azar”, que dizer, vai morrer antes da próxima qua-
dela. Quem quiser continuar o cordão, se quiser que faça resma. Devido a isso os componentes dos cordões protes-
outro” (D. Emilia) –, e faz-se uma estação ali: “reza um Pai tam mais veementemente quando crianças resolvem passar
Nosso/ com sua Ave Maria// Com sua Ave Maria/ Ave Ma- correndo entre eles que quando essa atitude vem de adultos.
ria// Para a alma daqueles que eram chefes de penitência/ 25. Agradeço a Christianne Evaristo pela elaboração do
Para que Deus, Nossa Senhora, me perdoe sua sentença// gráfico no computador.
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Figura 1

de o número de cordões de “alimentadeiras” ter noção menos sistêmica que a de ritual, que nem
crescido, assim como o de “disciplinadores”. sempre tem uma “resolução clara”, mas que tem
Há, sem dúvida, questões de política de a vantagem de estar focada em ver “pessoas
chefia que implicam um faccionarismo bastante interagindo dia-a-dia e, como dia sucede dia, as
acentuado. Entre as alimentadeiras, em 1978, conseqüências de suas interações” (p. 32).28
Izabel Marques de Souza contou cinco cordões, O drama aponta para uma multiplicidade
e em 2003 contei sete. Esses dois últimos são de processos andando simultaneamente, em que
dissidências internas, sendo que um é dissidência alguns “se resolvem” enquanto outros se agra-
do cordão mais antigo – Atrás da Banca26 – e vam. Assim, Turner divide o drama em quatro
ambos “não quiseram entrar no cemitério”27 fases:
junto com os outros para o importantíssimo
“encontro dos maderos”, que ocorre na Quarta- a forma processual do drama social pode ser
Feira Santa. Quanto aos disciplinadores, nem formulada como (1) quebra ou ruptura; (2) crise;
mesmo o chefe com quem conversamos – (3) ação de desagravo ou reparação; (4)
apenas por telefone – soube dizer quantos são reintegração ou reconhecimento da cisma ou
(mas o secretário de Cultura do município dissidência. (1957, p. 92, grifo no original)
afirmou serem cinco cordões)
Esse conjunto de tensões nos remetem à E, embora no encadeamento das fases
noção de drama social de Victor Turner (1974) propostas por Turner, haja uma idéia de ciclos
e à sua preocupação com os processos sociais que se fecham, ele comenta que, na realidade,
e conflitos que entremeiam a vida das pessoas, nem sempre as coisas ocorrem dessa forma,
e tomam lugar nas “chamadas fases ‘a-harmô- não havendo nenhum caminho inevitável
micas’ do contínuo processo social” (p. 33), uma entre duas fases. Importante deixar claro que
há diferenças aqui e entre os Ndembu. Nestes,
26. Os cordões são referidos por topônimos, o lugar de onde
saem, ou pelo nome do chefe atual, ou de um falecido chefe 28. E aqui temos de fazer o movimento contrário ao de
famoso. Assim, o cordão de D. Emília é o cordão de Romira Mariza Peirano (1993), que retoma o material Ndembu de
(chefe falecida); e o cordão de D. Neném é o de Atrás da Turner com intenção de mostrar que as quatro fases do
Banca (a parte da cidade atrás do elevado da ponte, de onde drama na verdade escondiam dois rituais complementares,
sai), ou de Maria Veada (outra chefe falecida). simétricos e parcialmente superpostos em que duas fases
27. De acordo com D. Emília, mais velha chefe de cordão não tinham sido isoladas por esse autor. Certamente, se
em atividade na cidade. Turner não fez essa formalização, não foi sem motivo.
LIMA, ROBERTO. Escrituras nos corpos, na roça e na cidade: as diferentes penitências...

o drama muitas vezes era ligado a uma tensão diferentes estratégias que esses grupos elabo-
entre matrilinearidade e casamentos virilocais e ram ao serem (em possibilidade) vistos clara-
freqüentemente implicava o surgimento de mente, e o que quis mostrar através das duas
novas aldeias. No caso dos dramas de Juazeiro, cenas de entrevistas, são marcas de atos de
os resultados da cisma são cordões novos ou a resistência específicos a cada cordão e mostram
dissolução de antigos. como estes têm tentado escolher quais novos
Além do ponto específico das cismas inter- elementos serão absorvidos.
nas, a política local e regional tem refletido nas Cada cordão está procurando um caminho
relações entre os cordões e entre os tipos de para dialogar com o que Guy Débord chamou
penitência: quando D. Emília assumiu a chefia de sociedade do espetáculo – o esvaziamento
do cordão que era de Romira, houve uma reunião de todo significado do vivido pela excessiva
para legitimar essa decisão, da qual participou apresentação da imagem/significante – que tem
até o senador Nilo Coelho. A Secretaria de entrado de formas muito interessantes no sertão
Cultura da cidade tem promovido ano a ano (não há nenhuma intenção de advogar pela volta
reuniões com os chefes de cordão, “para dar a um momento adâmico anterior à midiatização,
aquela ajuda” (D. Emília), em panos para as mas, sim, de afirmar que nesses lugares os
roupas ou velas para as promessas. Algumas processos de espetacularização têm ocorrido
“políticas públicas” de infra-estrutura ligam-se com uma lógica diferente daquela das grandes
aos cordões pelo interesse da Secretaria de Cul- cidades, sejam estas pensadas como “litorâneas”
tura de fomentar o turismo religioso na Semana ou “metropolitanas”). Tenho consciência do
Santa: em 2003, foi inaugurada a nova ilumina- quão estranha e provocativa pode soar essa
ção do cemitério, tão potente que nos foi possível formulação, mas ela parece bastante próxima
filmar à noite sem necessidade de luzes extras, ao processo de esvaziamento dos símbolos que
mas já em 2005 os penitentes reclamaram que se transformam em alegorias por dessacra-
“o cemitério não estava bem cuidado” (não lização, ou por perda da característica de viva
estava “limpo” do mato entre os túmulos), o que riqueza e capacidade geradora de novos signi-
gerava comentários incomodados das alimenta- ficados, que têm sido descritos para vários outros
contextos (por exemplo, na Origem do drama
deiras, que volta e meia pediam “desculpa meu
barroco alemão, de Walter Benjamim).
irmão, mas vou ter que pisar em você”, quando
Assim, entre as várias possibilidades inter-
tinham de passar por sobre algum túmulo devido
pretativas que os pontos elencados acima forne-
à falta de trilhas.
cem para pensar as possibilidades de deflagração
Sobre a iluminação, um depoimento que
desses processos de dramas, quero discutir uma
ilustra bem os dilemas dos cordões nos foi dado
específica cujo ponto de partida é que, em
por D. Emília. Questionada, na Quinta-Feira
Juazeiro, cada grupo tem percebido de alguma
Santa de 2003, se houvera algo de que ela não
forma uma redução do mistério em enigma
tinha gostado no encontro de cordões que
ligado diretamente ao movimento de esvazia-
havíamos registrado na véspera, ela disse:
mento do simbólico indicado e que está também
sim foi aquela iluminação tão forte, parecendo
na epígrafe deste texto.
estrelas [faz um gesto com a mão mostrando as Há, nas relações entre penitentes e aquilo
luzes colocadas em arco] em cima da capela que vou chamar de maneira simplificada de
que fizeram para a mostração, né, que ficou “sociedade envolvente”, uma relação ambiva-
aquela coisa mais linda. (o grifo é meu e essa lente, em que o desejo de ser visto/ver (que se
palavra retornará adiante) reflete em uma certa carga de frustração que
se manifesta de forma violenta nos rostos escon-
As lâmpadas e a curiosa conjunção de didos por aqueles que querem atravessar o véu)
sentidos entre o ato de bombardear o objeto com e um medo infundado se complementam na
fótons e o movimento racionalizador de dessa- forma de eventos intolerantes. Assim, as duas
cralização ou desencantamento borram parte cenas implicam duas maneiras que as vertentes
dos sentidos dessa tradição noturna. Então as da penitência na sede de Juazeiro optaram por
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seguir como contradança nesse cenário, que Que o meu [cordão] não é de mostração. O
inclui, por exemplo, a aceitação por parte dos meu é de devoção. Eu, meu cordão não sai pra
cordões à designação de guardas municipais ir fazer apresentação aqui, ali, acolá, não. De
jeito nenhum. Isso é um problema meu que eu
para os acompanharem, o que ocorreu a partir
tenho por mim que não faço. (Grifo meu)
de algum processo político que não foi explicitado
pelos entrevistados, mas motivou a prefeitura, e Uma mostração que parece estar ligada à
que é visto por alguns chefes como importante “vaidade”31 da possibilidade de ver-se fotogra-
para “manter a integridade dos participantes” fada e filmada, e a que D. Emília tem creditado
“porque hoje tem muita vagabundagem”. uma perda do horizonte significativo dos cordões
Enquanto parte dos cordões das alimen- e da penitência:
tadeiras “entrou na mídia”,29 e tornaram-se
visíveis na noite quase dia da forte iluminação Mas hoje o povo entram e saem [nos cordões].
dos cemitérios, os disciplinadores estão cada vez Com qualquer uma coisa, falam Ah!, arrancam
mais praticando suas crenças em retalhos de os pano. Este ano mesmo, diz que nesse cordão
aí, daqui dessa rua, diz que foi uma briga muito
sombra que ainda existem, pela própria percep-
grande, que arrancaram os panos. Isso aí. Eu
ção de que não querem seus corpos sangrando digo: nos meu se acontecer uma coisa dessas,
sendo televisionados junto a guerras, novelas e não entra mais. Sai para não entrar mais. Mas
boletins econômicos. Como em Xique-Xique, num tem responsabilidade.32 Eu tô dizendo o
onde os praticantes saíram da cidade quando senhor que o povo hoje querem fazer da peni-
ela se iluminou e negou de forma destrutiva o tência é uma coisa assim, uma vaidade, uma
que de mistério havia em suas noites de quares- mostração assim.
ma, em Juazeiro os disciplinadores também
Como uma espécie de terceiro nessa discus-
tiveram de criar táticas. Uma delas é acompa-
são, gostaria de trazer as questões postas pelo
nhar “à paisana” o cordão de alimentadeiras,
cordão de disciplinadores que acompanhei em
portando, contudo, “seus ferros enrolados na
2003, pois, quando achávamos que naquele ano
mão”. Para Careca, madeirista do cordão de
não ia ser possível uma documentação mínima
D. Emília, só eles podem andar imediatamente dessa prática, conseguimos, via David Nogueira,
atrás dos cordões de alimentadeiras, pois se o contato com um grupo recém-formado de
considera que atrás da chefe, que fecha o cor- disciplinadores em um bairro rural de Juazeiro,
dão, que fica “no coice”, vem um outro cordão São Gonçalo do Salitre, onde fomos registrar os
dos penitentes mortos daquele grupo.30 A outra acontecimentos da Sexta-Feira Santa.
tática é caminhar “às carreiras” por ruas É um povoado de uma rua, que vive a seca
menores, sem iluminação, usando as sombras a poucos metros da margem do São Francisco.
de telheiros para se esconder, e tentando Lá, S. José criou um grupo por pedido de alguns
escapar dos olhares de curiosos. Um desses meninos que estavam saindo à noite, sozinhos,
transeuntes, meu anfitrião na cidade, assim me sem orientação, “brincando de penitentes”.33
disse sobre os disciplinadores: “Não sei quem
tem mais medo, se somos nós deles ou eles de 31. Essa palavra foi muitas vezes utilizada nas entrevistas
para referir a pessoas ou a grupos de dentro da penitência
nós”. E sua tia, a já citada e muito respeitada que a concebem como autopromoção.
D. Emília, muito falou dessa tensão em seu 32. De acordo com ela, depois da briga, essas mulheres a
cordão de alimentadeiras: haviam procurado para ingressar em seu cordão e ela negou
o pedido: “Agora essas outras que vieram, eu não aceitei
não, meu filho, porque diz que arrancaram os pano na porta
29. Como curiosa exceção, nas ocupações dos penitentes, o do cemitério. Ficaram só de calcinha e sutião, assim, no
marido de uma das chefes que entrevistei possuíra um “es- meio de todo mundo”.
critório de publicidade”, e ela própria animou-se mais em
33. Há um imaginário social sobre os penitentes que permeia
contar de sua participação em alguns filmes (Eu, tu, eles e
o município, e é possível ver crianças “brincando” de peni-
Guerra de Canudos) que propriamente falar da penitência.
tentes nas ruas da cidade, imitando suas vestimentas e cor-
30. “Antigamente, nenhum penitente saía na rua durante a tejos noturnos. No caso de São Gonçalo, a “brincadeira”
quaresma sem a sua disciplina. Ela ficava o tempo todo ali, incluía a ida ao cemitério e o uso da disciplina! A idade dos
no bolso. E ali atrás [do cordão] é que vem tudo de ruim, meninos, alguns tendo começado a se cortar com 10 ou 12
chama de coice. Ali fica a chefe, fica com o crucifixo do anos, aponta em direção à interpretação de Silva (1961),
cordão, para que nada de ruim entre” (Careca). que viu nas companhias de penitentes um rito de puberdade.
LIMA, ROBERTO. Escrituras nos corpos, na roça e na cidade: as diferentes penitências...

Isso porque o antigo cordão que havia no povoa- ex-penitentes, sentados ou deitados nos poucos
do tinha-se desfeito, de acordo com conversas túmulos de alvenaria do cemitério.
com S. José e sua esposa, D. Mercê, por descaso A multivocalidade do sangue, e o poder que
dos próprios penitentes, que foram parando de é a ele atribuído em diversos contextos sagrados
sair: “Teve dia de chegar aqui só o guia e o (e outros nem tanto) que se embaralham no
saqueiro [o acompanhante que carrega as Brasil, sempre me tem criado embaraços quando
sacolas com velas], e mais ninguém” (Mercê). eu apresento o material iconográfico que recolhi
O grupo se reúne pelas 19h30 em um em campo.36 Um imunologista disse que eu tinha
descampado em frente à casa de S. José e dali a obrigação de orientá-los a usar luvas e a não
saem em cortejo noturno, sem outra luz que não ajudarem uns aos outros a se limpar para evitar
a lua, em marcha rápida em direção ao cemitério, contaminação com vírus de hepatites B e C.
entoando benditos que são pontuados pelo som Muitas das pessoas que viram os slides que
da matraca, indicativo dos momentos em que passei, quando apresentei meu primeiro escrito
devem se ajoelhar para oferecer o bendito. sobre o tema na ABA de 2004, por mais que eu
Dentro do cemitério, que deve ser saudado colocasse a ênfase no contexto ritual, pareceram
antes de nele se entrar,34 os penitentes espalham- “travar” a racionalização sobre o que é mostrado
se por entre as sepulturas; suspendem, enrolan- quando disse que o vermelho que tinge as vestes
do, suas anáguas, que ficam parecendo grossos inteiramente é sangue.
cintos; estendem o pano que lhes oculta o rosto No pouco que é falado sobre o sangue,
– a toalha – no chão. Medem no braço o compri- afirma-se que é um sacrifício que reportaria ao
mento da disciplina (da ponta do dedo ao sacrifício do Cristo – “Corta, corta disciplina/
cotovelo). Um pede que comecem a entoar um numa linha de retrós/ derramemos nosso sangue/
“bendito de corte” e, a um toque de matraca, por quem derramou por nós” (trecho do Bendito
todos passam a se chicotear ao mesmo tempo. de Santa Quitéria) –, logo, livre de qualquer
Aqui principiam meus problemas com a marca séptica. Para os disciplinadores que
representação. Eu posso expor de forma muito entrevistei, a seqüência é um ato de fé muito
crua o que vi: em pé, com pés firmemente sereno, não há dor no momento, nem há infec-
plantados no chão, doze pessoas, entre 14 e 40 ções posteriores,37 e alguns que conversei no
anos, com os rostos tranqüilos cantavam bendi- Sábado de Aleluia (ou seja, um dia depois de se
tos, iluminados pela lua cheia, enquanto batiam- cortarem) já estavam com as costas secas.
se nas costas com navalhas, derramando sangue Além disso, a aderência a essa prática
para alimentar almas de pessoas que tinham parece organizar várias outras esferas da vida
morrido subitamente, sem se arrependerem de dos penitentes, um fato social total sertanejo que
seus pecados (almas estas que, disseram-me, pode ser exemplificado nas relações de paren-
se misturam a eles cantando também).35 Obser- tesco e compadrio de S. José (com pai e avô
vavam estes cerca de dez pessoas, a maioria penitentes, guia, ex-penitente, filho da dona da
casa de oração local, compadre do dono da casa
34. Bebela, folclorista de Juazeiro, afirma que, para os peni- de oração do povoado vizinho, pai de cinco
tentes, quando eles se ajoelham diante do portão do cemité-
rio para saudá-lo, as almas lá dentro também se ajoelham penitentes, casado com D. Mercê, uma filha e
para rezarem junto. neta de penitentes) e que tem dentro de suas
35. Há algo que lembra bastante as crenças italianas nas
almas, no século XIII a XVI, descritas e analisadas por Carlo
Ginzburg (2001). Apesar de diferenças marcantes (os 36. Três vezes apresentei esse material a um público espe-
benandantes saem em espírito para guerrear com os feiti- cializado: no congresso da ABA de 2004, no Centro de
ceiros, e para encontrarem-se com os mortos que em certas Humanidades da Uece e na XIII Jornadas sobre Alternativas
noites caminham em procissão), aqui os cordões são acom- Religiosas na América Latina, em 2005.
panhados pelas almas que se somam ao coro dos benditos e, 37. Um ponto triste quanto aos símbolos manipulados é que
em determinado dia (Quinta-Feira Santa, o dia da Última o Rio São Francisco, que nos relatos recolhidos por Silva
Ceia), deve-se dar “uma esmola” aos penitentes, como se (1961) e Pierson (1972) era reportado sagrado, e onde as
fazia aos benandantes. Em Juazeiro, o marido de D. Neném feridas eram lavadas ao fim das noites de penitência como
relatou que as almas seguem, cantando, os cordões e, às única forma de higienização, não é mais procurado como
vezes, ele, que ia fechando a fila, escutava alguém cantando tal. Eles alegam que, como o rio está poluído, a água, ao
atrás de si. entrar nas feridas, pode inflamá-las.
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atividades produtivas uma plantação de mara- precisamente à irrupção do privado no público


cujá, uma planta muito ligada à quaresma, como ou, melhor, à criação de um novo valor social,
podemos depreender da bela narrativa abaixo, que é a publicidade do privado no público” (1980,
recolhida em São Paulo por Oswaldo Xidieh: p. 137). Nesse caso, o etnógrafo/fotógrafo fica
totalmente preso em uma malha que nega e
Quando Jesus estava na cruz, seu sangue ia afirma – sempre fico me questionando sobre o
escorrendo pela madeira e molhava o chão. No quanto que minhas fotos etnográficas são
pé da cruz tinha uma planta que nunca deu flor diferentes das fotos sensacionalistas de O
e não tinha nenhuma virtude. Quando o sangue
Cruzeiro.
molhou a planta, ela soltou um botão, o botão
virou flor e a flor trazia todos os sinais da
Esta não é uma pergunta retórica, está
crucifixão. Essa planta tem o nome de planta da intimamente relacionada aos símbolos manipu-
paixão, que a gente chama também de maracujá. lados pelos penitentes (como a resistência que
(1967, p. 67) verifico no traduzir o sangue em palavras, que é
ampliada pelo próprio fato de ser um tema sobre
Mas o que isso diz? Jorge Luis Borges criou o qual eles falam alegoricamente, como se
um etnógrafo que, após passar um longo período volteassem o assunto para manter seu núcleo
em campo, desiste de terminar a tese. Talvez protegido). Para outro lugar e temática, o
esse personagem tenha-se visto diante do tipo Pelourinho de Salvador, Osmundo Pinho (1999)
de dilema que ora me vejo. E alguns fatos de fez um questionamento parecido ao do parágrafo
campo parecem que me levam nesta direção, acima e a resposta era o contexto, princi-
pois um dos filmes fotográficos recusou-se a palmente textual, que emoldurava as imagens:
sair do cemitério em 2003, caindo do meu bolso, a explicação que ele dava a partir de sua própria
e meu gravador não registrou os cantos no cemi- posição como sujeito de fala. Para meu caso,
tério. Um problema sério, então, é como usar a tenho percebido uma tremenda dificuldade em
linguagem da antropologia sem vilipendiar o quem me escuta em fazer o exercício de seguir
simbolismo que, devo deixar bem claro, está o argumento enquanto vê as fotos. Uma das
muito vivo em Juazeiro e que certamente faz pistas que Barthes nos dá é que justamente não
contraparte às questões políticas já tratadas, há escapatória, isso ao nos explicitar que o algo
apesar de ainda não me ser possível avaliar todos que permite uma entrada para uma interpretação
os processos de ressignificação que têm ocor- da dificuldade que em um ponto uniu a fotografia,
rido. a etnografia e a penitência em minha pesquisa
Elaborada de outra maneira, minha pergunta é, justo, a morte (mais uma!).
final poderia ser: como penetrar o véu, mas No início de seu livro, Barthes nos diz que
preservando sua característica misteriosa? Afi- toda fotografia é contingente (isto é, não tem
nal, se esse espaço opaco e escuro, que também sentido intrínseco, p. 57), mas, mais próximo ao
é o espaço da morte, é também um lugar criativo fim do texto, ele vê algo inerente à fotografia
(pelo menos é o que os relatos recolhidos indicam que é o solapamento do tempo (p. 133-136).
fortemente), gerador e nutriz de significados, Contemplando fotografias históricas, aquilo que
como também não ser eu um fixador?38 Um está tão vivo na foto é algo morto, já morto no
agente da degeneração do mistério em enigma? momento em que a foto acaba de ser batida.
Ou do símbolo em alegoria? Então a foto é sempre um retorno do morto39 e
Aí é necessário pensar um pouco sobre os essa é outra morte que permeia este texto.
dilemas da documentação visual. Roland Trazer à discussão a prática dos penitentes
Barthes, em suas reflexões sobre a fotografia, (mediada pela fotografia, como prática e alvo
afirmou que “a idade da fotografia corresponde de reflexão) posicionou-me aqui no meio de um
grande nó filosófico e ideológico ocidental (pois
38. É no mínimo curioso para a discussão que se segue que o é nessa tradição que se insere o relato antro-
momento central para a temporalidade no laboratório fo-
tográfico não é a revelação (quando a imagem aparece no
papel), mas a fixação (que impede que ela suma ou se adul- 39. Agradeço a John Dawsey a sugestão de pensar esse au-
tere). tor.
LIMA, ROBERTO. Escrituras nos corpos, na roça e na cidade: as diferentes penitências...

pológico): a proximidade com a morte. Spivak, pessoas que apenas podem ouvir os penitentes,
em sua discussão sobre as margens externas mulheres e crianças, a vê-los.42
da racionalidade e da responsabilidade que Ainda quando travei os primeiros contatos
marcam esse discurso, mostra (via Derrida) com essa tradição, ainda antes de presenciá-
como Heidegger não consegue nunca discutir e los, uma das questões que primeiro me assom-
explicitar o que é esta morte que incomoda o braram quando soube dessas práticas era se a
dasein (cf. Spivak, 1996). Esses sertanejos, que força do ritual replicava a violência das relações
estão fora do espírito (europeu) tal como formu- sociais (Lima, 2002 e 2004). Continuo sem
lado por Heidegger, transitam por entre esses responder conclusivamente a isso, algumas
mundos, tanto os que alimentam as almas quanto observações me levam nesse sentido e outras
os assistentes que tranqüilamente jogam conver- me deixam em dúvida. Uma possibilidade é que
sa fora sentados nos túmulos (em Juazeiro, essa penitência é parte de um grande idioma da
enquanto havia a reunião dos madeiros, alguns violência, a que age diretamente sobre os corpos,
casais namoravam despreocupadamente apoia- mas isso ultrapassa as relações sociais, que
dos em lápides), recusando-se a expurgar essa são o campo da sociologia e nos joga de maneira
parte da experiência de suas vidas. muito abrupta no projeto da antropologia de
Mas o fato de sair de casa para virar a Mauss, o estudo do homem inteiro. Um projeto
noite40 na companhia do forte odor de sangue que a antropologia ainda está por realizar.
que envolve essas pessoas me coloca diante da Discutir as marcas dos corpos implicou um
discussão que Zizek (2003) levanta, de que o jogo muito complexo de traduções em campo.
século XX caracterizou-se pela paixão do Real, Por exemplo, o fato de terem-me deixado
e no meio do pastiche pós-moderno, em que a fotografá-los dizendo que este era o meu trabalho
irrealidade explode por todos os lados,41 cortar- e aquele era o deles. Mas o significado de traba-
se, ver seu sangue escorrendo é uma forma de lho ressurgiu totalmente alterado desse movi-
(re)dominar a realidade, “basear firmemente o mento.
ego na realidade do corpo contra a angústia de Por isso a incômoda situação em que me
sentir-se inexistente” (2003, p. 24). encontro, como pesquisador, mesmo sabendo
Não há dúvida, esta é uma preocupação que o registro que fiz foi por eles autorizado: há
que, de formas diferentes, é próxima ao pesqui- a percepção de estar quebrando um refúgio, um
sador e aos penitentes, mas creio que é essa lugar onde se resguarda uma das mais puras
irrealidade que os confronta quando vêem sua concretizações do espírito do dom que Mauss
prática noturna na TV, em flashes do noticiário (2003) tentou captar, em que os penitentes/
do meio-dia. Afinal, todas as reportagens televi- símbolos usam seus corpos para se unir ao des-
sivas que vi desse ritual noturno foram veiculadas conhecido.43
de dia e num formato que faculta àquelas
42. Há um interessante jogo de ocultação que lembra alguns
rituais para os mortos do Xangô do Recife. Há um movi-
40. Quem define o fim da jornada noturna da Sexta-Feira mento de entrada e saída da casa de oração, que faz com que
Santa é o galo, que deve cantar três vezes para anunciar a mulheres e crianças participem da presença dos penitentes,
ressurreição (na Sexta-Feira Santa de 2003, ele foi ouvido mas não os vejam. Assim, quando os penitentes chegam,
às 3h30 da manhã) e, assim, atualizar o mito bíblico do galo elas estão dentro da casa. Enquanto eles pedem licença para
da ressurreição. Na Sexta-Feira Santa, quando isso ocorre, entrar, entoando um Calix Bento, elas saem pelos fundos da
os penitentes que ficam esperando esse momento reunidos casa, e ali ficarão, cantando benditos, às vezes puxando,
na “casa de oração” entoam o “bendito do galo”, desco- outras respondendo, até o galo cantar três vezes, quando os
brem o oratório da casa, que tinha ficado coberto durante homens saem conforme descrito acima e elas tornam a
toda a quaresma e saem e se dispersam. entrar (sempre pela porta oposta à que eles usaram) para
41. Por exemplo, enquanto escrevia a primeira versão des- saudar o oratório.
te texto, li a notícia de que, para evitar que se repetissem 43. Turner (1974) utiliza uma definição de metáfora como
cenas perversas como as vistas nas fotos veiculadas pela a união de dois conceitos vindos de reinos conhecidos que
imprensa – de tortura e sadismo (literal, etimológico) de nos permitem pensar o desconhecido, o que é também a
prisioneiros iraquianos por soldados dos EUA na infame “definição Ndembu” de símbolo ritual. Parece-me que é
guerra de ocupação que ora ocorre –, as forças armadas exatamente isso o que Mauss está propondo quando lembra
deste país estavam criando um jogo de computador para que conhecemos pouco o “elemento mítico” e que quis
ensinar os soldados a fazer interrogatórios! tentar preservar nesta descrição.
SOCIEDADE E CULTURA, V. 9, N. 1, JAN./JUN. 2006, P. 105-120

É por isso que este texto pára aqui sem CORRÊA, Marisa. História da antropologia no
respostas e sem imagens. Deixei claro no início Brasil (1930-1960). Campinas: Vértice, 1987.
que meu material era incompleto, encerro DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de
esperando que a minha expectativa deste texto Janeiro: Contraponto, 1997.
ser um work in progress se concretize, com DURKHEIM, Emile. As formas elementares da vida
retornos a campo e novas reflexões, para que religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989.
algumas questões em aberto possam ser melhor ENCOMENDADEIRAS de Correntina. Sons do
descritas. cerrado, vol. 3. Goiânia: UCG (CD), 2000.
GALVÃO, Walnice Nogueira. O império de Belo
Monte. São Paulo: Perseu Abramo, 2001.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio
Abstract: This article presents a discussion about the de Janeiro: Guanabara, 1989.
opposition between the religious penance done by the
GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem. São
people living in the countryside and those living in the
Paulo: Companhia das Letras, 2001.
town in the county of Juazeiro, Bahia. Juazeiro and
Petrolina belong to a very dynamic pole of public politics KASSAB, Álvaro. Clouzot, ‘O Cruzeiro’ e intelectuais
in Brazil backlands. Though officially forbidden by the rodaram a baiana. Jornal da Unicamp, julho, 2004.
Catholic Church, the penances involving corporal Disponível em http://www.unicamp.br/unicamp/
punishment and mutilation is not only performed today unicamp_hoje/ju/julho2004/ju259pag06.html#top).
in the sertao of São Francisco but the adepts numbers is
JAMESON, Fredric. O inconsciente político. São
growing too among the so called “modern town people”.
Here, the distinctions assumed by the penances in rural
Paulo: Ática, 1992.
and urban areas are discussed and also the strategies used LEACH, Edmund R. Dois ensaios a respeito da repre-
by the penitents to avoid publicity. sentação simbólica do tempo. In: Repensando a
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