Você está na página 1de 320

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

LESLYE BOMBONATTO URSINI

Sobreposições e suas implicações:

a complexidade fundiária em Paraty (Estado do Rio de Janeiro, Brasil)

CAMPINAS

2019
LESLYE BOMBONATTO URSINI

Sobreposições e suas implicações:

a complexidade fundiária em Paraty (Estado do Rio de Janeiro, Brasil)

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e


Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas como parte dos requisitos exigidos para
a obtenção do título de Doutora em Antropologia
Social.

Orientador: José Maurício Paiva Andion Arruti

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À


VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA
PELA ALUNA LESLYE BOMBONATTO
URSINI E ORIENTADA PELO PROF. DR.
JOSÉ MAURÍCIO PAIVA ANDION ARRUTI.

Campinas
2019
Powered by T CPDF (www.t cpdf.org )
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado,


composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em
29 de novembro de 2019, considerou a candidata Leslye Bombonatto Ursini
APROVADA.

Professor Doutor José Maurício Paiva Andion Arruti – presidente

Professora Doutora Mariana Balen Fernandes

Professora Doutora Luciana Quillet Heymann

Professor Doutor Christiano Key Tambascia

Doutora Patrícia Nunes da Silva Mariuzzo

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no


SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Dedico esta Tese à minha filha, Maria; aos meus pais, Anna Nelly e

Domingos Miguel; e à minha irmã,

Aline.
Agradecimentos

Há o risco de se agradecer a algumas pessoas e a instituições e de outras não


serem lembradas em tempo. Mesmo assim, vale mencionar que esta pesquisa e trabalho
contou com o apoio de outros.

Agradeço ao apoio do Programa de Excelência Acadêmica – PROEX que


custeou parte das despesas para uma das estadas em campo, em Paraty, por 11 dias, entre
junho e julho de 2017. Ao meu orientador, José Maurício Arruti, agradeço à orientação
que sempre trouxe questionamentos que me possibilitaram o exercício de destrinchar em
diversas faces alguma questão ou algo aparentemente estatuído. À banca de qualificação
— composta por Patrícia Nunes Mariuzzo e Mauro Almeida ⸻, que me guiou com
questionamentos os passos seguintes, agradeço. Sou tanto grata quanto feliz por ter José
Maurício Arruti como orientador, me indicando caminhos, o tempo todo, por entre
instituições e temas de forma que me levaram aos meus próprios caminhos.

Aos senhores Domingos, do Território Quilombola de Cabral e Apuhinã, da


Terra Indígena Kaña Pataxi Witanara, ambos em Paraty, pelas entrevistas. De uma forma
mais distante, mas não menos importante porque o diálogo entre territórios tem essas
experiências em outros territórios que não só em Paraty, agradeço aos Xavante da Terra
Indígena Pimentel Barbosa, no Mato Grosso, pela chance de ter estado com eles em um
território reivindicado, Tsorepré, em uma rápida e intensa expedição de dois dias.
Agradeço à Comunidade Extrativista da RESEX Marinha Pirajubaé, em Florianópolis,
no Estado de Santa Catarina, em um território marinho, com os trabalhos em campo em
2018 para um processo de licenciamento ambiental, cuja imagem foi paradigmática para
ajudar a pensar o tema de território.

Agradeço aos servidores da Secretaria de Pós-Graduação do Instituto de


Filosofia e Ciências Humanas ― PPGAS/IFCH/Unicamp, pela atenção a auxílio com a
urdidura institucional, sempre dispostos e bem-humorados. Agradeço aos colegas do
Incra, Roberto Alves de Almeida e Januaria Mello, pelas informações e carinho.

À minha família, à Marie e ao Carmelo gratidão sem tamanho. Companhias


de sempre.
Resumo

Territórios de povos indígenas, de comunidades tradicionais e de quilombolas


se encontram em situação de sobreposição com áreas protegidas, dentre elas as unidades
de conservação e, por vezes, estas últimas se sobrepõem entre si mesmas.

A paisagem é Paraty, no Estado do Rio de Janeiro, com apreensões diversas


acerca do espaço como territórios que fornecem um “laboratório” de observação para as
ações políticas do Estado e da administração pública. Da experiência do trabalho no
serviço público federal com o tema da regularização fundiária de terras indígenas e de
territórios quilombolas, no licenciamento ambiental de empreendimentos de
infraestrutura envolvendo populações tradicionais e na implementação de políticas
públicas para povos e comunidades tradicionais surgiu o meu interesse na forma como o
Estado e vê e trata as comunidades nas obrigações que o próprio Estado assumiu para si
com relação a elas; em especial as situações de sobreposição que têm implicações ao
próprio Estado, deflagrando alguma sua contradição que ele não consegue perfazer no
encadeamento dos discursos que profere de forma polifônica por meio de instituições suas
distintas. Os materiais utilizados são aqueles disponíveis onde o Estado fala: leis,
relatórios, processos de elaboração de leis a meio caminho e decisões. O objetivo é o de
analisar e mostrar como as comunidades são vistas e tratadas pelo Estado com a finalidade
de contribuir para a reflexão de como as coisas do Estado podem se constituir em um
objeto de análise, limitado tanto o quanto qualquer outro, especialmente quando elas
versam, decidem, interferem e ajustam destinos para as comunidades tradicionais, que
são “outros” povos, objeto historicamente privilegiado da antropologia.

Palavras-chave: Estado; Áreas Protegidas; Povos Indígenas – Brasil; Quilombolas;


Biodiversidade – Conservação – Brasil.
Abstract

Territories of indigenous peoples, traditional communities and quilombolas


are overlapping with protected areas.

The landscape is Paraty, in the state of Rio de Janeiro, with multiple notions
about space as territories that provide an observational “laboratory” for political, state and
public administration actions. The experience of working in the public service with the
theme of land regularization of indigenous lands and quilombola territories, and in the
environmental licensing of infrastructure enterprises and public policies for traditional
peoples and communities, has arisen an interest in the way the state and public
administration view and treat communities and the obligations that the state itself has
assumed for itself in relation to them; in particular the situations of overlapping that have
implications for the state itself, triggering some of its contradictions in the chain of
discourses it utters, in a polyphonic way through its distinct institutions. The materials
used are those available where the state speaks: laws, reports, midway law making
processes and decisions. The aim is to analyze and show how communities are viewed
and treated by the state with the purpose of contributing to the speculation on how things
of the state can constitute a legitimate object of analysis, limited as much as any other,
especially when they address, decide, interfere and adjust destinies for traditional
communities, the “other”, historically the privileged object of anthropology.

Keywords: State; Protected áreas – Paraty (RJ); Indigenous peoples – Brazil;


Quilombolas; Biodiversity – Conservation – Brazil.
Índice de gráficos

Gráfico 1 ― Processos de regularização fundiária de territórios quilombolas em várias fases


abertos no Incra .......................................................................................................................... 98
Gráfico 2 ― Número de Terras Indígenas e fases do processo de regularização fundiária (Funai,
2019) ......................................................................................................................................... 105
Índice de figuras

Figura 1 ― Funções de reprodução física, cultural, econômica e social observáveis em campo e


projetadas na delimitação de territórios tradicionais................................................................. 66
Figura 2 ― Território vetorial e território pontual...................................................................... 68
Figura 3 ― Detalhe do Mapa de Concessão de Sesmarias entre Mambucaba e Paraty (data
estimada: por volta de 1630), Província do Rio de Janeiro (croqui de L.B. Ursini sobre mapa); foi
transcrito ipsis litteris, em vermelho, o que está escrito no interior de cada sesmaria. ............ 71
Figura 4 ― Capitanias de São Vicente (Condessa de Vimieiro) e Santo Amaro (Conde de
Monsanto) a partir do limite da divisão do Tratado de Tordesilhas ........................................... 74
Figura 5 ― Croqui elaborado por Leslye Ursini sobre mapa de Jorge P. Cintra (2012) .............. 76
Figura 6 ― Mapa das Cortes (1749), possibilidades para a linha do Tratado de Tordesilhas .... 79
Figura 7 ― Caminho Marítimo-Terrestre, como era conhecido o Caminho do Ouro (velho) de
Paraty e, Caminho de Santos e o Caminho dos Paulistas (RIBAS, 2003, p. 30) ........................... 87
Figura 8 ― Estrada de automóveis (RJ-165 ou BR-549) ao lado do Caminho Velho do Ouro,
Caminho de Cunha-Paraty, com destaque para o Registro do Ouro .......................................... 90
Figura 9 ― Localização das Terras Indígenas em Paraty........................................................... 108
Figura 10 ― Área de Proteção Ambiental de Cairuçu em sobreposição com a Área Estadual de
Lazer de Paraty-Mirim e Reserva Ecológica da Juatinga ― situação em 2019 (Inea, 2013) ..... 111
Figura 11 ― Proposta de recategorizações decorrente do estudo de 2011 (Igara; Inea, 2013)
................................................................................................................................................... 113
Figura 12 ― Proposta de recategorizações do Inea (2013) ...................................................... 113
Figura 13 ― Mapa das três áreas da RPPN Laranjeiras (sem data no SIMRPPN/ICMBio) ........ 115
Figura 14 ― Trajeto marítimo do Condomínio Laranjeiras à Praia do Sono, Paraty, RJ. .......... 120
Figura 15 ― Trajetos marítimos a comunidades tradicionais a partir do Condomínio Laranjeiras
................................................................................................................................................... 122
Figura 16 ― Mapa da Área Estadual de Lazer de Paraty-Mirim ― AELPM, Terra Indígena
Araponga, Território Quilombola Campinho da Independência e Terra Indígena Parati Mirim
................................................................................................................................................... 128
Figura 17 ― APA de Cairuçu com suas 63 ilhas e indicação das Terras Indígenas Araponga e
Parati Mirim e os Territórios Quilombolas Campinho da Independência e Cabral (Plano de
Manejo, 2018) ........................................................................................................................... 131
Figura 18 ― Zonas do Plano de Manejo da APA de Cairuçu (Tabela 13, “tamanho das zonas de
manejo e porcentagem em relação ao tamanho da unidade; Plano de Manejo, 2018, p 56) ―
com hachurados inseridos ........................................................................................................ 139
Figura 19 – Zoneamento da Área de Proteção Ambiental de Cairuçu, Plano de Manejo de 2018
(APA de Cairuçu/ICMBio) .......................................................................................................... 144
Figura 20 ― APA Municipal da Baía de Paraty, Paraty-Mirim e Saco do Mamanguá; Área
Estadual de Lazer de Paraty-Mirim ........................................................................................... 150
Figura 21 ― Sobreposição entre a APA de Cairuçu e o PARNA da Bocaina, com detalhe da
porção marítima da Fazenda Guebetiba (mapa-base em “Cidade-Brasil” online) ................... 156
Figura 22 -- Reserva da Biosfera e respectivas zonas da Mata Atlântica .................................. 157
Figura 23 ― Indicação Geográfica da Cachaça de Paraty ......................................................... 160
Figura 24 – Parque Nacional da Serra da Bocaina ― PNSB, Paraty, RJ ..................................... 163
Figura 25 - Mapa das Zonas de Preservação do Conjunto Paisagístico de Paraty, Port.
402/2012/Iphan ........................................................................................................................ 165
Figura 26 ― Quadro cronológico da criação de Mosaicos no Brasil: 2005-2013 ..................... 257
Figura 27 ― Territórios tradicionais, Áreas Protegidas e Unidades de Conservação abrangidas
pelo Mosaico da Bocaina .......................................................................................................... 259
Índice de tabelas

Tabela 1 – Sobreposições administrativas entre as capitanias de Itanhaém, São Vicente e Santo


Amaro (com base em mapa de Cintra, 2014, p. 216) ................................................................. 73
Tabela 2 – Dados populacionais indígenas de 1500 a 2010 (Funai, 2019)................................ 104
Tabela 3 - Terras Indígenas e Territórios Quilombolas em Paraty, Brasil ................................. 106
Tabela 4 ― Unidades de Conservação e Áreas Protegidas em Paraty, sobreposições entre si e
com Territórios Tradicionais (em 2019) .................................................................................... 109
Tabela 5 ― Comunidades locais e tradicionais listadas na Portaria/Iphan nº 402/2012 (Sítio
Tombado de Paraty) .................................................................................................................. 167
Tabela 6 ⸻ Organização e Categorias de Unidades de Conservação propostas pela Funatura
em 1989..................................................................................................................................... 201
Tabela 7 ― Documentos de referência no Processo Projeto de Lei n° 2.892/1992 da Câmara do
Deputados ................................................................................................................................. 202
Tabela 8 ⸻ Classificação das unidades de conservação entre 1992 e 2000 ............................ 203
Tabela 9 ― Reuniões regionais da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos
e Comunidades Tradicionais: o início em 2006 ......................................................................... 239
Tabela 10 ― Sobreposições entre territórios quilombolas, unidades de conservação, áreas
militares e área de mineração................................................................................................... 249
Tabela 11 ― Dez Unidades de Conservação e Áreas Protegidas previstas para comporem o
Mosaico da Bocaina na época da sua criação ........................................................................... 258
Tabela 12 ― Assentos previstos na portaria de criação do Conselho Consultivo do Mosaico da
Bocaina ...................................................................................................................................... 262
Tabela 13 — Povos e Comunidades Tradicionais na composição do Conselho Consultivo do
Mosaico Bocaina, 2015 ............................................................................................................. 263
Tabela 14 — Povos e Comunidades Tradicionais na composição do Conselho Consultivo do
Mosaico Bocaina, 2015 ............................................................................................................. 318
Tabela 15— Instituições privadas ............................................................................................. 318
Tabela 16— Instituições privadas no Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina, 2015 ...... 319
Tabela 17 — Sociedade Civil (exceto Povos e Comunidades Tradicionais) na composição do
Conselho Consultivo do Mosaico Bocaina, 2015 ...................................................................... 319
Tabela 18 — Instituições governamentais na composição do Conselho Consultivo do Mosaico
Bocaina, 2015 ............................................................................................................................ 320
Tabela 19 ― Unidades de Conservação no Mosaico da Bocaina, 2015 .................................... 320
Sumário
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 15
1. TERRITÓRIO: ENTRE ANTROPOLOGIA E GEOGRAFIA .................................................................... 26
1.1. TERRITÓRIOS E CONJUNTOS DE TERRITÓRIOS TRADICIONAIS .................................................................... 28
1.2. ESPAÇO E TERRITÓRIO: UMA VISADA EM GEÓGRAFOS E EM ANTROPÓLOGOS .............................................. 33
1.3. IMAGENS DO ESTADO ..................................................................................................................... 58
1.4. ALGUMAS NOÇÕES NA BAGAGEM ...................................................................................................... 61
1.5. TERRITÓRIOS TRADICIONAIS, TERRITÓRIOS INSTITUCIONAIS ..................................................................... 64
2. PARATY ....................................................................................................................................... 70
2.1. LUGARES DE ANTES......................................................................................................................... 70
2.2. CAMINHOS ................................................................................................................................... 81
2.3. “OPORTUNIDADE” ......................................................................................................................... 93
3. SOBREPOSIÇÕES EM PARATY ...................................................................................................... 97
3.1. TERRITÓRIOS DE COMUNIDADES ........................................................................................................ 97
3.1.1. Territórios Quilombolas .................................................................................................... 97
3.1.2. Comunidades Caiçaras ................................................................................................... 101
3.1.3. Terras Indígenas ............................................................................................................. 104
3.2. ÁREAS PROTEGIDAS E UNIDADES DE CONSERVAÇÃO EM PARATY ........................................................... 108
3.2.1. Reserva Ecológica da Juatinga (em recategorização) ― estadual ................................. 110
3.2.2. Área Estadual de Lazer de Paraty-Mirim (parte em recategorização) ― estadual ........ 126
3.2.3. Área de Proteção Ambiental de Cairuçu ― federal ........................................................ 130
3.2.4. Área de Proteção Ambiental da Baía de Paraty, Paraty-Mirim e Saco do Mamanguá .. 149
3.2.5. Estação Ecológica Tamoios – federal ............................................................................. 151
3.2.6. Parque Nacional Serra da Bocaina ― federal ................................................................ 154
3.2.7. Reserva da Biosfera da Mata Atlântica .......................................................................... 157
3.3. OUTRAS SOBREPOSIÇÕES EM PARATY ............................................................................................... 158
3.3.1. Indicação Geográfica da cachaça de Paraty .................................................................. 159
3.3.2. Paraty: Sítio Tombado .................................................................................................... 164
3.4. TIPOS DE TERRITÓRIOS .................................................................................................................. 168
4. COMUNIDADES TRADICIONAIS E A CRIAÇÃO DO SISTEMA NACIONAL DE UNIDADES DE
CONSERVAÇÃO DA NATUREZA―SNUC .............................................................................................. 173
4.1. ÁREAS PROTEGIDAS NO BRASIL ....................................................................................................... 174
4.2. PROJETO DE LEI N° 2.892/1992: A ELABORAÇÃO DA LEI DO SNUC ...................................................... 198
4.2.1. “População tradicional” discutida e vetada ................................................................... 204
4.2.2. Reserva de Recursos Naturais ― proposta para o grupo de Manejo Provisório ............ 207
4.2.3. Reserva Ecológico-Cultural ― proposta para o grupo Uso Sustentável ......................... 210
4.2.4. Reserva de Desenvolvimento Sustentável ― grupo de uso sustentável ......................... 214
4.2.5. Reserva da Biosfera ........................................................................................................ 216
4.2.6. Reserva Ecológica Integrada ― proposta para o grupo de uso sustentável .................. 217
4.2.7. Corredores Ecológicos e Mosaicos ................................................................................. 218
4.2.8. Terras Indígenas no SNUC .............................................................................................. 221
4.3. GOVERNANÇA, DISCURSO E REASSENTAMENTO .................................................................................. 224
5. MOSAICO DA BOCAINA: SOBREPOSIÇÕES DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO ENTRE SI E DESSAS
COM TERRITÓRIOS TRADICIONAIS ..................................................................................................... 253
5.1. RECONHECIMENTO DO MOSAICO DA BOCAINA .................................................................................. 255
5.2. COMPOSIÇÃO DO CONSELHO CONSULTIVO DO MOSAICO DA BOCAINA ................................................... 260
5.3. SOBREPOSIÇÕES ENTRE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO .......................................................................... 264
5.3.1. Recategorização da Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ― REEJ ........................... 269
5.3.2. O Mosaico da Bocaina e outros projetos envolvendo as unidades de conservação
abrangidas por ele ........................................................................................................................... 273
5.4. LICENCIAMENTO AMBIENTAL .......................................................................................................... 277
5.4.1. Cana e cachaça............................................................................................................... 280
5.4.2. Outros empreendimentos............................................................................................... 280
5.4.3. Câmara Temática de Unidades de Conservação e Populações Tradicionais do Mosaico da
Bocaina 282
5.5. FÓRUM DE COMUNIDADES TRADICIONAIS DE ANGRA DOS REIS, PARATY E UBATUBA—FCT ....................... 288
5.6. COMUNIDADE E TERRITÓRIO........................................................................................................... 295
CONCLUSÃO: IMPLICAÇÕES DAS SOBREPOSIÇÕES ............................................................................. 298
DOCUMENTOS ANALISADOS .............................................................................................................. 302
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................................... 303
ANEXO 1 ― POLÍTICAS PÚBLICAS E AÇÕES DO ANTIGO MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E
COMBATE À FOME ― MDS, NA SECRETARIA DE ARTICULAÇÃO INSTITUCIONAL E PARCERIAS ― SAIP
PARA POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS (2006) ....................................................................... 312
ANEXO 2 — QUANTITATIVO DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO NO BRASIL NAS INSTÂNCIAS FEDERAL,
ESTADUAL E MUNICIPAL - JULHO/2019 ............................................................................................. 315

ANEXO 3 ― CATEGORIAS DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO (LEI Nº 9.985, DE 18 DE JULHO DE 2000) 316

ANEXO 4 ― COMPOSIÇÃO DO MOSAICO DA BOCAINA, 2015 ............................................................ 318


15

Introdução

O assunto desta tese são as sobreposições entre territórios de comunidades


(territórios tradicionais, terras indígenas e territórios quilombolas) e unidades de
conservação, sejam estas unidades de conservação de proteção integral ou de uso
sustentável.

As sobreposições são comumente apontadas na interferência mútua entre as


unidades de conservação de proteção integral e os territórios tradicionais, indígenas e
quilombolas. São dois os grupos de unidades de conservação previstos na Lei do SNUC1,
de 2000: as unidades de conservação de (1) proteção integral, que são aquelas que
apresentam, na sua constituição, restrição à permanência humana e de grupos humanos
em seu interior; e aquelas do grupo de (2) uso sustentável, que permitem a permanência
humana. Entender que há sobreposição apenas nos casos da proteção integral denota que
a perspectiva da análise da questão da sobreposição tem o foco na unidade de conservação
⸻ e não na comunidade ⸻ e, naquela perspectiva, o olhar a partir da unidade de
conservação recobrirá a comunidade e o seu território quase que irremediavelmente,
sendo a comunidade vista como um interferente. As interferências nas comunidades, por
outro lado, se dão tanto nas unidades de conservação de proteção integral quanto de uso
sustentável, pois há os regramentos voltados para os princípios da conservação do ponto
de vista da gestão da unidade de conservação e os usos de uma comunidade tradicional,
povos indígenas ou quilombolas são avaliados pela gestão da unidade de conservação
como compatíveis, ou não, aos objetivos de constituição da unidade de conservação.
Note-se que o esforço da legislação em garantir os territórios às comunidades tradicionais,
aos povos indígenas e quilombolas, com autonomia e autodeterminação, se vê submetido
aos critérios e aos instrumentos de gestão das unidades de conservação2 e das áreas
protegidas ambientalmente. Nas situações das sobreposições envolvendo unidades de

1
Lei nº 9.985/2000, que criou o Sistema Nacional de Unidade de Conservação ⸻ SNUC.
2
Unidades de conservação são as categorias indicadas no Sistema Nacional de Unidade de Conservação ⸻
SNUC, criado em 2000; Áreas Protegidas, que incluem as unidades de conservação, são áreas de proteção
ambiental e incluem diversas categorias de modelos internacionais e de outras áreas no Brasil que não foram
indicadas como categorias no SNUC, mas que podem integrar os mosaicos e os corredores ecológicos, estes
com previsão no SNUC.
16

conservação de proteção integral, a previsão legal é a da remoção das comunidades do


interior de unidades de conservação3.

Os casos de sobreposições entre territórios tradicionais e unidades de


conservação de proteção integral são matéria de tentativas conciliatórias na Câmara de
Conciliação e Arbitragem Federal ― CCAF da Advocacia Geral da União ― AGU, onde
tive a oportunidade de participar de reuniões de algumas câmaras no caso dos territórios
quilombolas entre 2008 e 2011 em época que fui servidora do Instituto Nacional de
Reforma e Agrária ⸻ Incra, autarquia responsável pela regularização fundiária dos
territórios dos remanescentes das comunidades dos quilombos4;5;6.

Portanto, a garantia às comunidades do acesso aos seus territórios livres e


desintrusados encontra, nas sobreposições, um desdito. Essa é uma contradição interna
ao Estado que aponto nesta tese. Geralmente, os estudos que se ocupam das sobreposições
trazem a contradição interna do Estado relacionada ao tema da conservação da
biodiversidade desempenhada pelas comunidades e pelos povos tradicionais, não apenas
indígenas e quilombolas. Em que a contradição reside nas políticas públicas ambientais
de criação das unidades de conservação, em proveito também da conservação da
biodiversidade por meio de áreas reservadas, e que vêm nas comunidades uma ameaça.
A essa contradição acrescento o que chamei, acima, por desdito.

O tema das sobreposições entre áreas protegidas e territórios tradicionais,


indígenas e quilombolas passou a me chamar a atenção pelo aspecto discursivo, de parte
do Estado. São dois discursos contundentes levados cada um apartado do outro no mesmo
Ministério do Meio Ambiente ⸻ MMA em setores administrativos diferentes. O discurso
da incompatibilidade da presença das comunidades em unidades de conservação de
proteção integral tem lugar privilegiado no Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade ⸻ ICMBio, responsável pelo Sistema Nacional de Unidade de
Conservação ⸻ SNUC; e aquele da compatibilidade das comunidades tradicionais com
a conservação da biodiversidade é apropriado por diversos setores da administração

3
Previsto no Artigo nº 42 do SNUC e no Decreto nº 4.340/2002, que regulamenta o SNUC.
4
Conforme previsão de regularização fundiária de seus territórios expressa no Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias nº 68 (o ADCT 68), na Constituição Federal de 1988 vigente.
5
Aqui, me reporto às sobreposições com unidades de conservação, porém, acompanhei casos de
sobreposição de áreas de empreendimentos minerários e de áreas militares.
6
O Artigo 231 é dedicado à regularização fundiária de terras indígenas e o ADCT 68 aos territórios
quilombolas, ambos constantes na Constituição Federal de 1988.
17

pública que dão relevo ao incremento e à inovação, por parte das comunidades e povos
tradicionais, à biodiversidade brasileira. No Ministério do Meio Ambiente ⸻ MMA,
trabalhei, entre 2003 e 2005, na triagem de projetos de pesquisas que buscavam
autorização para acessar os conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio
genético, no Departamento de Patrimônio Genético ― DPG, da Secretaria de
Biodiversidade e Florestas ― SBF/MMA7.

Em meu percurso profissional por instituições públicas do governo federal8


procurei onde esses dois discursos pudessem se encontrar e se confrontar e que colocasse
o Estado exposto à sua contradição. Embora o assunto da sobreposição, e os casos
concretos, fossem discutidos em reuniões para a conciliação entre os órgãos, as discussões
recaíam sobre a permanência, ou não, das comunidades em seus territórios em face da
existência de unidades de conservação de proteção integral e nunca sobre a contradição
interna do Estado em manter políticas conflitantes. A primeira intenção em desenvolver
este tema nesta tese foi a de verificar as sobreposições como o lugar desse “encontro”9,
cuja intenção que moveu as pesquisas para esta tese foi a de encontrar algum ponto em
que o Estado se visse em situação de ter de resolver tais contradições: a dos discursos da
biodiversidade; e a dos desditos nas legislação, que ora garante autonomia e
autodeterminação nos territórios tradicionais e ora os criva de regras enviesadas por uma
visão ambiental específica e que não é a das comunidades ou não as incorpora. O que
descobri com minhas investigações foram discursos difusos ou bifurcados, e não um
“encontro” ou confrontação interna ao Estado, como se verá nesta tese, e então, a questão
rumou para incluir as formas como o Estado se mantém inabalado, inabalável, no tema
das sobreposições, lugar este privilegiado para enumerar casos exemplares das

7
Trabalhando como Consultora em Meio Ambiente, contratada pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento ⸻ PNUD, uma agência da Organização das Nações Unidas ⸻ ONU.
8
Que incluiu, também, a Fundação Nacional do Índio ⸻ FUNAI, com a regularização fundiária de terras
indígenas; o Instituto Nacional de Reforma e Agrária ⸻ Incra com a regularização fundiária de territórios
quilombolas; o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome ⸻ MDS, atualmente integrado
ao Ministério da Cidadania, com políticas de Inclusão Produtiva e de geração de renda para povos e
comunidades tradicionais; o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis ⸻ Ibama,
com o licenciamento ambiental, como a primeira antropóloga a emitir pareceres em processos de
licenciamento ambiental; entre outros órgãos governamentais com outras experiências que tinham nos
povos e nas comunidades tradicionais o seu público para a implementação de políticas públicas.
Atualmente, trabalho com estudos de impactos ambientais de empreendimentos de grande porte em terras
indígenas e em territórios quilombolas e como consultora do Banco Mundial junto ao Instituto de Terras
do Estado do Piauí.
9
Porque era uma curiosidade não satisfeita nas minhas atividades no serviço público federal e algo que eu
havia observado existindo para ser irresoluto no âmbito governamental.
18

contradições internas ao Estado no trato com as comunidades tradicionais e povos


indígenas e quilombolas.

O objetivo da tese é o de analisar e mostrar como as comunidades são vistas


e tratadas pelo Estado em diversos episódios de contato com elas, com a finalidade de
contribuir para a reflexão de como as coisas do Estado podem se constituir em um objeto
de análise, limitado tanto o quanto qualquer outro, especialmente quando elas versam,
decidem, interferem e ajustam destinos para as comunidades tradicionais, os “outros”
povos; objeto historicamente privilegiado da antropologia.

Para abordar as sobreposições é necessário ter em conta algumas noções de


território. Nesta pesquisa não adotei uma ou outra definição integralmente, senão imagens
de diversos tipos de territórios e de territorializações para dar relevo ao que são os
territórios tradicionais e os territórios institucionais. Adianto que um território, para levar
esse nome, possui, minimante, limites. Tais limites podem ser os critérios próprios de
uma comunidade, com marcas significativas para ela; se um território é fixado por uma
instituição, em geral, ele contará com uma poligonal acompanhada do memorial
descritivo desse território. As marcas das comunidades podem não perfazer um polígono
ou ultrapassá-lo se irradiando.

Situo-me neste trabalho como uma pesquisadora com longo itinerário


pregresso por órgãos públicos federais onde pude ter contato com as territorializações das
políticas públicas para povos e comunidades tradicionais bem como as políticas de
garantia do acesso aos territórios por parte das comunidades tradicionais e povos
indígenas e quilombolas por meio dos relatórios de identificação e delimitação que
realizei. O que me habilita a manusear com facilidade os documentos públicos e cotejá-
los. Esta tese, por se reportar incansavelmente a normas, não se confunde com esses ou
outros inúmeros relatórios que escrevi para o governo, pois há uma distinção básica: nos
relatórios para o governo a pergunta está “fora”, ela é apresentada para se produzir um
estudo, um relatório, um parecer e essa pergunta pode ser debatida, questionada,
ampliada. Esta tese começa com a identificação de contradições internas ao Estado, que
observei no seu trato com as comunidades tradicionais e povos indígenas e quilombolas
enquanto trabalhei no governo ou para ele, e outras questões se vão desdobrando para
entender, ou mostrar, por quais caminhos o Estado não se “rompe”, não se abala a
despeito dos questionamentos e das reivindicações por resoluções partidos das
comunidades no tema das sobreposições. O que resultou, no formato da redação desta
19

tese: uma itinerância por diversos lugares e temas, reuniões e discussões em que podemos
ver um mesmo tema debatido. Sempre acompanhado de descrições porque entendo assim
oferecer imagens ao leitor para que ele possa me acompanhar ou de mim discordar.

O material de pesquisa utilizado nesta tese é documental. São leis, relatórios


de atividades das próprias comunidades, projetos, atas de reuniões, planos de manejo de
unidades de conservação, entre outros. A opção por utilizar o material disponível da
administração pública se deve à possibilidade de ter nesse material alguns debates sobre
ações e políticas que afetam as comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas
em que os temas da sobreposição e do territórios são discutidos por agentes públicos de
vários órgãos, por instituições apoiadoras e por diversas comunidades e povos
tradicionais em “tempo real” a cada questão. São situações ocorridas no tempo e que não
as observei; eu as tomo anotadas por terceiros e tornadas públicas em relatórios, atas
pareceres e outros documentos. O que merece cuidado na utilização do material tanto para
a apreensão das situações discutidas quanto para quaisquer afirmações, pois uma ata, por
exemplo, anota parte das discussões, pode anotar o que fora resolvido para reunião
seguinte quando o interessante pudesse ser o que não tivesse tido resolução, além dos
vieses políticos na cena da reunião nem sempre impressos no mesmo grau ou intensidade,
fosse para mais ou para menos, tal como se deram na situação da reunião.

É com essas ressalvas que o material resultante de reuniões, de consultas, de


oficinas (no caso da elaboração do Planos de Manejo da APA de Cairuçu) é analisado e
utilizado. Por isso a profusão de dados e de situações nesta tese, pois busquei me apoiar
na recorrência das formas das comunidades serem tratadas e vistas pelo Estado em
diversas situações, ampliando o material privilegiado sempre que possível com outras
fontes (jornais, teses, estudos). Também, o material escolhido é ímpar porque traz uma
visada do momento em que as comunidades e os agentes públicos estão discutindo os
temas entrelaçados de interesse desta tese que são os territórios, as implicações das
sobreposições e as formas como o Estado vê e trata as comunidades em reuniões e
ocasiões restritivas ao público externo. No caso do Projeto de Lei de elaboração da Lei
do SNUC, ressalto as alterações ocorridas no texto do Projeto relativas às populações
tradicionais em unidades de conservação até o conteúdo da lei vigente.

Identifico o material das reuniões (atas do Conselho Consultivo do Mosaico


da Bocaina ⸻ CCMB, memória da Ação Civil Pública de dezembro de 2018) como um
lugar onde a sociedade e o Estado se tocam. O que nos permite acrescentar uma
20

observação àquela linha entre sociedade e Estado em termos dos mecanismos do Estado
de que fala Mitchell (2015): ela é uma linha pontuada de questões, são as questões os
pontos que constituem a linha e, por isso, tal linha não existiria por si mesma ou por obra
unilateral do Estado; é uma linha que se vai formando, que depende da sociedade, que é
descontínua e dependente das questões, do interesse e do engajamento da sociedade nas
questões ao longo do tempo, a linha é dependente das relações entre Estado e sociedade
e, dessarte, não é, portanto, uma linha dada.

Timothy Mitchell diz que a linha não está entre os atores e seus setores, no
que concordo com ele, a linha está nos mecanismos institucionais, é interna a esses
mesmos mecanismos, que são mecanismos legais e administrativos10, segundo Mitchell,
por meio dos quais alguma ordem social é mantida, não havendo uma exterioridade
(MITCHELL, 2015, p. 160). Tomada essa disposição de Mitchell junto aos exemplos de
mecanismos que incluí em nota, essa é a expressão mais acertada do que podemos
entender por governança nesta tese.

Destaco quatro documentos principais nesta tese, que foram analisados, sendo
que os demais foram aqueles em que busquei a recorrência de alguma questão relacionada
aos territórios e às sobreposições ou um contraponto para ela. São os quatro documentos:
(1) a Ação Civil Pública de 4 de dezembro de 2018 (MPF ― Ministério Público Federal,
04/12/2018), a respeito das comunidades de Laranjeiras, Praia do Sono, Ponta Negra e
Patrimônio, é o documento abordado no capítulo 3; (2) o Projeto de Lei n° 2.892/1992
(CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1992), do qual resultou a Lei do SNUC, nele analiso
como a elaboração da lei abordou as comunidades tradicionais e povos indígenas e
quilombolas, o Projeto de Lei é analisado no capítulo 4, bem como o Plano de Manejo da
APA de Cairuçu; (3) o Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental ⸻ APA de
Cairuçu de 2018, que traz disposições para a territorialidade das comunidades caiçaras,

10
No caso, tais “mecanismos” são as reuniões ordinárias da câmara de comunidades tradicionais do
Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina ⸻ CCMB; as consultas do Ministério Público Federal ⸻
MPF na questão do acesso por parte das comunidades caiçaras às suas casas, tendo de atravessarem um
condomínio que lhes cerceia o direito de ir e de vir; as oficinas com os caiçaras no Plano de Manejo da
APA de Cairuçu, de 2018; a tramitação do Projeto de Lei discutindo as disposições relativas às populações
tradicionais e povos indígenas; o “termo de compromisso”, previsto no Decreto nº 4.640/2002, que
regulamenta o SNUC e prevê a remoção das comunidades do interior da unidade de conservação de
proteção integral; o CCDRU; a previsão da regularização fundiária dos territórios tradicionais; a previsão
da criação das unidades de conservação e seus instrumentos de gestão; o ordenamento territorial que a
Portaria/Iphan nº 402/2012 de tombamento do Sítio de Paraty e a localização e delimitação das
comunidades tradicionais, cuja atribuição do Iphan é questionável. Note-se que, no caso das leis e normas
correlatas em geral, elas não constituem os tais “mecanismos” por si, é necessário apontar quais e os seus
pontos de intervenção.
21

indígenas e quilombolas em Paraty em situação de sobreposição com aquela APA, que é


um unidade de conservação de uso sustentável; e (4) as atas das reuniões do Conselho
Consultivo do Mosaico da Bocaina ⸻ CCMB, entre 2007 e 2015, conselho no qual as
comunidades tradicionais e povos indígenas e quilombolas tiveram assento, as atas e
outros documentos elaborados no escopo do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina
⸻ CCMB são abordados no capítulo 5. O estudo sobre a violência contra trabalhadores
rurais e perseguição política intitulado “Conflitos por terra e repressão no campo no
Estado do Rio de Janeiro (1946-1988)”, publicado pelo CPDA/UFRRJ - Programa de
Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, em
2015, não constitui aqui um material de análise em si, como os quatro documentos acima
referidos, mas é um estudo importante pelo seu caráter de registro e de denúncia e que foi
amplamente referido no capítulo 2 desta tese acerca dos esbulhos contra trabalhadores e
caiçaras em Paraty no período militar e na época de abertura da rodovia BR-101, chamada
Rio-Santos.

Faz parte do material a minha própria experiência nos órgãos público federais
em que trabalhei sempre entre o campo e o escritório, o que traz um aspecto
multilocalizado a esta tese; de cuja experiência trago exemplos de situações a fim de
ampliar as informações e as análises.

Os documentos escolhidos me permitiram caminhar no tempo sem ter uma


sistematização em séries de elementos, mas percorrendo temas, lugares e problemas
relacionando as comunidades e o Estado quanto à permanência das comunidades e dos
povos nos seus territórios ou quanto ao seus acessos a esses territórios. Tais documentos
possibilitam uma série de entradas no assunto de como o Estado trata e vê as comunidades
e os povos tradicionais e nisso está o meu interesse no Estado e naqueles documentos,
que é o interesse em “ouvir” o Estado discutir e decidir.

Com a diversidade de possibilidades de o Estado se relacionar com a


sociedade, tenho interesse em Mitchell (MITCHELL, 2015) nas disjunções entre o Estado
e o político e em Abrams (ABRAMS, [1977] 1988) na arquitetura de uma “ilusão”, que
é a forma como o Estado se apresenta à sociedade como ideia, como prática, como um
conjunto de mecanismos legais e administrativos. Nessa forma de o Estado se apresentar,
ele encobre os mecanismos de controle para além dos que já o são as leis e a administração
pública. A distinção entre Estado, governo e administração são, em maior ou menor grau
entre os dois autores, uma decomposição do Estado.
22

Nos casos que trago nesta tese, o Estado se aproxima das comunidades por
meio dos seus agentes e as alcança por meio das normas. Importa, nesta tese, a
aproximação das comunidades por parte do Estado e quais os canais e vias que as
comunidades possuem ou de que se servem para se relacionar com o Estado quando elas
decidem fazê-lo e não apenas quando são envolvidas ou demandadas por algum assunto
de interesse do Estado. Nesse movimento de falas, que nem sempre significa uma
interlocução, é imprescindível que vejamos onde o Estado “fala”, onde decide e onde é
ele reticente por conveniência ou inércia. Não se está buscando, em contrário dos esforços
de Abrams e Mitchell, uma materialidade do Estado, senão os seus efeitos de presença,
pois o material privilegiado nesta pesquisa é a atuação do Estado e o comportamento do
Estado com o objetivo de ver como as comunidades são vistas e tratadas por ele. As falas
do Estado estão nas leis, nos documentos técnicos, nos seus agentes e em expressões e
nomes. O Estado, ao falar, profere discursos que se conectam a outros discursos
(FOUCAULT, 2012, pp. 7-9). Os sentidos se vão dando nas conexões entre discursos
acerca de temas sem que, no entanto, se formem “frases”, de acordo com Foucault.
Podemos entender que uma consequência prática disso é a dificuldade em se cobrar
coerência entre os discursos do Estado.

A organização desta tese está em cinco capítulos.

O capítulo 1 aborda as noções de território e de espaço que nos têm chegado


pelas mãos dos fundadores da geografia humana. Diria que nos fora “devolvido”, talvez,
pois ao ler aqueles autores nos deparamos com a profusão dos seus exemplos concretos
retirados de fontes secundárias, as quais são as etnografias e os estudos etnológicos
naquela época. Os territórios implicam limites e estes podem ser estabelecidos pelas
comunidades, pelas instituições públicas ou por ambos, é a posição colocada neste
capítulo quanto aos territórios. Distingo territórios tradicionais de territórios institucionais
como medida para, mais adiante nesta tese, observarmos o que está em relação de
sobreposição.

No capítulo 2, intitulado “Paraty”, tomo fragmentos nas histórias sobre


Paraty para percorrer um espaço de tempo extenso, o que não confere uma linearidade ou
um encadeamento de eventos e fatos, senão uma ordem cronológica de episódios nem
sempre conectados, cuja finalidade é a de falar um pouco das histórias acerca de Paraty.
Me reporto à concessão de sesmarias, na fundação de Paraty, e aos caminhos e rotas em
Paraty, desde as trilhas dos indígenas até à instalação da rodovia BR-101, naquele trecho
23

em que a rodovia é conhecida como Rio-Santos. O fio condutor para atravessar o tempo
e os assuntos são as imagens de territórios pontual e vetorial. Recupero a imagem de
território vetorial que os territórios institucionais, os quais são quase que invariavelmente
pontuais, fazem esmaecer como formas de territorizalização. Os objetivos nesse capítulo
são o de nos aproximarmos de Paraty e o de introduzir a ideia de oportunidade. Trata-se
de uma ação empreendida pela administração pública em nome do Estado, ou do Estado
por meio da administração pública, e que, uma vez praticada resolve tantas outras ações
ou pautas irresolutas; ou que, por causa dessas outras ações e pautas, algo de interesse do
Estado possui mais chances de acontecer. A relação “entre” ações, a sinergia entre elas,
é o que marca a sua diferença com o que pudesse ser interpretado como uma versão da
“fortuna” em Maquiavel.

Intitulado “Sobreposições em Paraty”, o capítulo 3 analisa cada um dos


territórios em Paraty para abordar as suas sobreposições. São territórios tradicionais,
territórios institucionais e territórios englobantes constituídos em períodos históricos e
em circunstâncias administrativas distintas, cada um deles, e não excludentes entre si,
pois são formas de apreensão de territórios distintas. Para abordá-los, tomei em cada um
deles uma questão, um problema, para os descrever e percorrer o território de Paraty. Nas
questões envolvendo os territórios, as comunidades, particulares, o poder público local,
dentre outras, o Estado se faz presente para dirimir os conflitos ou para implementar
políticas públicas, por meio de agentes públicos, de suas instituições e da atuação da
administração pública nas esferas estadual e municipal de governo. O item conclusivo
desse capítulo traz as diferenças entre territórios tradicionais, institucionais e englobantes
para identificarmos o que, propriamente, está em relação de sobreposição com um
território tradicional conforme a cognição das comunidades que o habitam o têm em vista,
o que nos sugere que há sobre-sobreposições.

Tem lugar no capítulo 4, como um preâmbulo à elaboração da Lei nº 9.985,


de 18 de julho de 2000, ou a “Lei do SNUC”, uma breve retrospectiva das ideias em torno
do que vieram a ser, depois, as áreas protegidas e a forte influência das organizações
ambientais internacionais “de centro” como mobilizadoras dos debates e com eles dos
entendimentos. Nesse quarto capítulo analiso o Projeto de Lei n° 2.892/1992 em seus oito
anos de tramitação no Congresso Nacional antes de se tornar a lei que institui o Sistema
Nacional de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC. Do processo físico,
acessado por meio digital disponibilizado pela Câmara do Deputados, listo e comento as
24

categorias de unidades de conservação que tinham em conta a presença de comunidades


tradicionais. Essas categorias foram previstas, permaneceram por um tempo nas
discussões no texto e não seguiram para a versão final da Lei do SNUC. Sem muita
melancolia quanto ao que poderia ter sido e não se deu, pois esta tese, em diversas
passagens quer pelas minhas observações quer, principalmente, pelas observações das
próprias comunidades que se relacionam com o órgão gestor das unidades de
conservação, denunciam a visão ambientalista restritiva que lhes recobre os territórios, a
autodeterminação e a autonomia. Ou seja, com aquelas categorias de unidade de
conservação que envolviam comunidades tradicionais se daria a mesma visão.

Algumas observações acerca da governança encerram o capítulo 4 com


comentários sobre as Câmaras de Conciliação e Arbitragem Federal ― CCAF, instância
na Advocacia Geral da União ― AGU para aonde são encaminhados os conflitos
institucionais nas sobreposições entre territórios tradicionais e unidades de conservação,
como já mencionado nesta Introdução; e trago informações sobre o período da
formulação do Decreto nº 6.040, de 2007, que criou a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, na época
pretendendo institucionalizar as “populações tradicionais” para que as políticas públicas
as alcançassem, na leitura que faço, tendo participado das reuniões e das oitivas na minuta
daquela norma no segundo semestre de 2006.

No capítulo 5 foram analisadas as atas de reuniões realizadas com


manifestações e questionamentos das comunidades e conflitos entre as próprias unidades
de conservação em situação de sobreposição entre si, o que constitui entraves aos gestores
das respectivas unidades de conservação. Também, me reporto às manifestações do
Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina ⸻ CCMB sobre o processo de
licenciamento ambiental da Usina Termonuclear de Angra 3, o Pré-sal e outros
empreendimentos. Ainda como material, estão as reuniões promovidas pelas
comunidades e documentos de instituições parceiras das comunidades, material este que
nos permite olhar para a participação das comunidades em outras agendas com o tema
dos territórios, que carregam a sobreposição como uma marca que, por um lado, pode ser
vista como ampliando circulação das comunidades por meio dos seus representantes, pois
podem discutir o licenciamento ambiental de empreendimentos, por exemplo, por duas
vias: a de que afetam os seus territórios e a das mitigações e compensações ambientais
para as unidades de conservação que venham a afetar ou a beneficiar as comunidades.
25

O objetivo do capítulo 5 é o de mostrar as relação entre identidade e território


para propor que não sejam separados, que território seja entendido como elemento de
identidade e não algo com o que as comunidades se relacionam, a fim de não se deixar
espaço para a discursividade do Estado se intersticiar nessa separação e afastar direitos,
posto que a identidade é a garantia do direito ao acesso ao território no ato da nominação,
como abordado por Arruti (ARRUTI, 2006, p. 52; ARRUTI, 1996, p. 129).

Na conclusão busco recolher imagens de territórios percebidas ao longo dos


capítulos anteriores sob o aspecto da sobreposição para reunir o que considero serem
algumas das implicações da situação de sobreposição, dentre as quais a principal delas a
é a construção discursiva da desterritorialização das comunidades por parte do Estado,
como incompatíveis na ocupação dos seus territórios em situação de sobreposição e,
também, uma desterritorialização na prática das regulamentações e restrições na forma
como vivem as comunidades nesses mesmos territórios. Outras implicações das
sobreposições são: o desarranjo no contexto da manutenção da biodiversidade ao serem
colocadas regras nos usos dos territórios; a sobreposição se tornando o assunto prioritário
em detrimento do território em si, quando o conflito é entre órgãos de governo nas suas
atribuições precípuas e a prioridade no tratamento do tema será, portanto, o conflito e não
os usos das comunidades que também marcam a sua territorialidade; as situações de
sobreposição possibilita às comunidades verem como o Estado se comporta em outras
ocasiões, além dos temas da regularização fundiária, da saúde, da educação, etc.

Ao final, há quatro anexos com informações suplementares, caso o leitor as


queira consultar. Peço desculpas, de antemão, pela não uniformidade dos mapas
constantes neste texto, pois em sua maioria foram tomados das fontes disponíveis e
contaram com intervenções minhas, informadas quando isso ocorrer. De outro lado, não
uniformizar tais mapas significa que serão os mesmos encontrados por aqueles que forem
buscar naquelas fontes ⸻ pesquisadores da academia e das comunidades ⸻ e os
encontrarão aqui sob análise, com a vantagem da memória imagética.
26

1. Território: entre antropologia e geografia

Este capítulo traz uma ideia simples: território implica limites. O que exige
indicar de quais limites se está falando e quais as noções de território são mobilizadas na
geografia e na antropologia.

O meu interesse na geografia se deve à perspectiva da disciplina, que tem no


espaço o seu objeto privilegiado distinguindo-o de território. Nos últimos anos, Claude
Raffestin e Yi-Fu Tuan vêm sendo amplamente citados em trabalhos sobre
territorialidades, na antropologia e na sociologia, ao menos, e nos estudos de impactos
ambientais envolvendo comunidades tradicionais, quilombolas e povos indígenas.

A leitura dos dois autores para outros trabalhos que empreendi 11 não se
mostraram atrativas. Ou porque Raffestin trazia um território já dado, uma base para a
sua análise e minha experiência com identificação e delimitação12 está em entender a
territorialidade e a partir dela sugerir a delimitação, e não o contrário (partindo-se de um
espaço dado), do que discordo; ou porque a afetividade, o apego e a memória relacionados
aos lugares eram extremamente individuais, e não coletivos, em Yi-Fu Tuan. Comumente
os trechos citados de ambos os autores em diversos trabalhos sobre territorialidade são

11
Dentre os trabalhos mais recentes: antropóloga coordenadora do Componente Indígena da rodovia BR-
080/MT, principalmente no Município de Ribeirão Cascalheira, no Estado do Mato Grosso, para estudos e
impactos ambientais envolvendo os povos Xavante, Iny-Karajá, Tapirapé, Avá-Canoeiro e Javaé (2016-
2019); antropóloga coordenadora do Estudo Antropológico ― sobre a comunidades tradicional extrativista
da Reserva Extrativista Pirajubaé, para o delineamento de comunidade tradicional urbana, no processo de
licenciamento ambiental no empreendimento do Novo Acesso ao Aeroporto de Florianópolis (em
andamento, desde 2018); e antropóloga coordenadora do Novo Levantamento Socioeconômico, na Terra
Indígena Wassu-Cocal no Estado de Alagoas (em andamento desde 2018), para a elaboração de critérios,
em conjunto com a comunidade e com base em normas operacionais do Banco Mundial e na OIT-169, de
realocação de famílias, dentro da própria terra indígena, por conta da duplicação planejada da BR-101/NE-
AL, que atravessa aquela terra indígena; todos os estudos são interdisciplinares.
12
Os territórios identificados como coordenadora dos Grupos Técnicos foram: Terra Indígena Cajuhiri-
Atravessado (2000), no Médio Solimões, no Município de Coari, no Estado do Amazonas, com os povos
Miranha, Mura e Kambeba; Terra Indígena Bacurizinho (2002), no Estado do Maranhão, com o povo
Tenetehara-Guajajara; nesses trabalhos para a Funai como consultora de agências da Organização das
Nações Unidas. Como Analista em Reforma e Desenvolvimento Agrário, no Incra-Sede: Território
Quilombola de Alto Alegre (2008), no Estado do Ceará, e Território Quilombola Machadinho (2008), em
Paracatu, no Estado de Minas Gerais. Todos os territórios, à época, eram afetados por empreendimentos de
agências governamentais ou privado, ou outras ações do governo: Terra Indígena Cajuhuiri-Atravessado,
Poliduto Urucu-Tesol/Transpetro; Terra Indígena Bacurizinho, Projeto de Assentamento do Incra em
sobreposição; Território Quilombola Alto Alegre, Canal do Trabalhador/Estado do Ceará; e Território
Quilombola Machadinho, com interferência de mina de ouro e de barragem de rejeitos da Kinross-Canadá.
27

quase invariavelmente os mesmos, seja o “espaço vivido” em Tuan, sejam as “tessituras”


de Raffestin. Uma leitura mais cuidadosa dos dois autores, no contrafundo dos
movimentos de inclusão do humano na geografia os restituiu para mim nas suas formas
de apreensão do espaço também como contrapontos às minhas ideias acerca de território
que, quero acreditar, me ajudaram a precisar melhor tais ideias. As noções de espaço
vivido e de redes, linhas e fios estão, também, em Henri Lefebrve (1974), em Tim Ingold
(2007) e em Italo Calvino (1972)13, ao menos. No entanto, o interessante nos autores que
são geógrafos é que partem da perspectiva do espaço, ou este os acompanha em suas
reflexões sob diversas formas. E isso interessa sobremaneira às discussões acerca dos
territórios. Em uma leitura mais cuidada de Raffestin (Por uma geografia do Poder, 1980)
e de Yi-Fu Tuan (Topofilia, 1974; Espaço e lugar, 1977) é possível discordar de
passagens e de proposições dos autores. Ao mesmo tempo, tal leitura me permitiu balizar
por onde eu queria ir ou não. É necessário situar os autores e, então, temos um aspecto
bastante aguçador para ler Raffestin e Tuan no esforço conspícuo de ambos em
assinalarem a presença humana no espaço, o que fizeram em período de constituição da
geografia cultural ou humana.

A preocupação com o tema do território nos estudos antropológicos se dá, no


Brasil, com a maior visibilidade dos grupos indígenas e quilombolas e das suas demandas
pelo reconhecimento dos seus territórios, especialmente depois da promulgação da
Constituição Federal em 5 de outubro de 1988. Pode-se dizer que os trabalhos de
antropólogos com a regularização fundiária de terras indígenas e territórios quilombolas
antecedem, em um primeiro momento, a profusão de estudos acadêmicos sobre o tema
do território. O que sugere um campo específico de estudo no Brasil e a sua contribuição
à antropologia.

A seguir, apresento algumas das abordagens de território na antropologia e na


geografia; as concepções de Estado em Timothy Mitchell e Philip Abrams, o primeiro
cientista político e o segundo sociólogo; e encerro com a diferenciação entre territórios
tradicionais e territórios institucionais para termos em conta quais territórios estamos
abordando nos casos das sobreposições.

13
Tais autores são lembrados, aqui, nas seguintes obras: Henri Lefebrve, La production de l’espace; Paris:
Éditions Anthropos, (1974) 2000; Tim Ingold, Lines: a brief history; London & New York: Routledge,
2007; Italo Calvino, As cidades invisíveis; São Paulo: Companhia das Letras, (1972) 2009.
28

1.1. Territórios e conjuntos de territórios tradicionais

Na antropologia a noção de território não é nova, diz João Pacheco de


Oliveira, nos lembrando o que Morgan, em 1877, utilizou como critério para distinguir
formas de governos: “societas” baseada em grupo de parentesco e “civitas” com base no
território e na propriedade; noção que Evans-Pritchard, em 1940, retomou ao classificar
os sistemas políticos africanos. Há sistemas que não se projetam em territórios; os estudos
de Bohanan (1967), aponta Oliveira, trazem os sistemas de linhagem, as classes de idades,
os sistemas rituais, entre outros princípios organizadores de uma sociedade e que, de
acordo com João Pacheco de Oliveira, “estão localizados em um ponto específico da
estrutura social [...], sem que as ações sociais possuam qualquer conexão mais
significativa com alguma base territorial fixa”. E há outras sociedades que “podem tomar
o território como um fator regulador das relações entre os seus membros” (OLIVEIRA,
1999, p. 19).

A identificação e delimitação de territórios de populações tradicionais, povos


indígenas e quilombolas busca evidenciar a inscrição das relações complexas de dado
grupo em um território. São sistemas, portanto, que se projetam em dada área e não em
outra; sistemas que envolvem classificações diversas quando classificar implica
hierarquizar coisas no mundo (DURKHEIM & MAUSS, [1903] 1990) e junto a elas
pessoas e grupos de pessoas, animais, plantas, lugares e objetos também são classificados.
Grupos que se relacionam sob diversas formas, as quais assumem expressões políticas
derivadas da hierarquização, cujas tensões e distensões podem ser lidas tanto internas a
uma mesma comunidade quanto as diferenciando de seus vizinhos. Além da fricção étnica
de Roberto Cardoso de Oliveira, me refiro-me mais precisamente à política “entre” os
homens, como a entende Hannah Arendt (ARENDT, 1998), que pode ser interpretada
como uma negociação entre pessoas movendo interesses além da sua individualidade, nos
interespaços entre os indivíduos. Essa perspectiva de Arendt é interessante porque parte
do aspecto relacional, ao contrário da ideia de sujeitos políticos, e o são, que na
perspectiva de Arendt podemos vê-los ampliados na sua interrelação nos espaços
políticos entre eles.

As diferenças entre comunidades, no aspecto da projeção territorial de


comunidades distintas ou aquelas que guardavam alguma semelhança, foram estudadas
por Franz Boas. Com formação em física e em geografia, Boas defendeu uma tese acerca
29

da cor da água ampliando o método para o ponto de vista do observador. Preocupado com
a dinâmica cultural, Boas tomou a cultura como um conjunto de costumes sociais de um
grupo ou de uma comunidade, cujos produtos das suas atividades seriam determinados
por esses mesmos costumes. Boas viajou pelo Nordeste do Canadá em 1883 e, em 1885,
demonstrou proposições deterministas na publicação resultante da pesquisa em suas
considerações acerca das relações entre terra e povo. Embora tenha sido uma viagem que
o tenha desanimado desse seu posicionamento, na leitura que faz o geógrafo Jörn
Seemann (SEEMANN, 2005, pp. 12-14), pois Boas havia observado que nos solos mais
férteis não se dava a agricultura e em águas navegáveis não se tinha a navegação; para
concluir que as condições ambientais poderiam estimular as atividades culturais, mas não
são a sua força criativa. Uma “fórmula”, portanto, não poderia se aplicar de maneira geral
a todos os casos e as formas antecedentes das comunidades, sua história, deveriam ser
conhecidas. Boas elaborou o conceito de “área cultural” como meio para descrever as
características típicas de tribos culturalmente relacionadas, por vezes em áreas contíguas,
indicadas em particularismos históricos como forma de não se generalizarem as culturas.

O que era um dispositivo classificatório ou pedagógico, cunhado em paralelo


à geografia, serviu àquela disciplina como ferramenta de ensino e de pesquisa
(SEEMANN, 2005, p. 14). Pelas mãos de Alfred Kroeber, discípulo de Boas e do
psicólogo Clark Wissler, a noção de áreas culturais, como agrupamento geográfico de
unidades sociais culturalmente similares, ganhou projeção e ampla utilização, quando se
tratava somente de uma ferramenta indicada por Boas, que aprovava sua aplicação,
segundo Seemann, “apenas no sentido de analisar as áreas culturais de vários pontos de
vista (cultura material, organização social e crenças)” a fim de fornecer uma visão ampla
das condições em que se formaram cada cultura individualmente (SEEMANN, 2005, pp.
15-16).

Clifford Geertz trata de forma diferente essa apropriação ou consecução das


ideias de Boas ao tomar a distinção que faz Michel Foucault entre autores e escritores14;
assim, Raymond Firth seria o melhor malinowskiano de que dispomos, segundo Geertz,
e “Kroeber fez o que Boas apenas prometeu” (GEERTZ, 2002, p. 34), diz Geertz ao falar
do fenômeno da formação de um “gênero”, e não propriamente de uma “escola”, ao serem
exploradas as “possibilidades recém-reveladas de representação” (ibidem).

14
Geertz se refere a Michel Foucault em “What is an author?, In J. V. Harris (org.), Textual strategies,
Ithaca, New York.
30

Trazer Boas não significa qualquer espécie de ponte, nesta tese, entre a
antropologia e a geografia, senão a finalidade de apontar desdobramentos das áreas
culturais no Brasil e, junto a isso, apresentei uma entrevista da leitura cuidadosa do
antropólogo Boas feita pelo geógrafo Seemann quem, aliás, se indaga como seria a
geografia cultural se Boas, e não os seus discípulos, a tivesse influenciado com mais força
e de forma mais aprofundada (SEEMANN, 2005, p. 17). A partir da análise da obra de
Boas feita por Roger Trindell (1969)15, Seemann aponta três tópicos na contribuição de
Boas à geografia, especialmente à geografia cultural: a relação do homem com o meio
ambiente na perspectiva antideterminista e contra o “ambientalismo grosseiro”; as áreas
culturais; e a difusão cultural (SEEMANN, 2005, p. 14).

Como desdobramentos do conceito de áreas culturais de Boas apontados por


Seemann, os estudos dedicados à aculturação e às relações raciais, no Brasil, e o mapa de
áreas culturais indígenas de Eduardo Galvão, de 196016, este dividido em onze áreas
culturais indígenas, tiveram amparo no conceito de áreas culturais de Wissler, elaborado
a partir de Boas. Também, com base na noção de áreas culturais, foram propostas doze
regiões a dividirem o Brasil, de autoria do antropólogo, jurista e folclorista alagoano
Manuel Diégues Júnior em 1980 (SEEMANN, 2005, p. 16)17.

Ainda, quanto às regionalizações de territórios no Brasil, acrescento a


publicação institucional organizada por Antonio Carlos Diegues e editada pelo Ministério
do Meio Ambiente ― MMA, em 2000, com o título Os Saberes Tradicionais e a
Biodiversidade no Brasil, que localiza em macrorregiões as populações praieiras,
caiçaras, açorianas, jangadeiras, caboclas e outras populações não indígenas (DIEGUES,
2000). O antropólogo Julio Cezar Melatti conta que Clark Wissler, em 1922, foi quem
primeiro propôs a divisão de áreas culturais nas Américas e que outras tentativas a ele se
seguiram com critérios vários de agrupamentos. O Handbook of South American Indians
⸻ publicado entre 1940 e 1947 pela Smithsonian Institution em sete volumes, trazendo
informações etnográficas, históricas e arqueológicas ⸻ estaria defasado teórica e
etnograficamente, segundo Melatti, por ter sido publicado em uma época quando ainda

15
A obra que Seemann cita é: Roger T. Trindell, “Franz Boas and American Geography”. The Professional
Geographer, v.21, n.5, 1969, pp. 328-332. Trindell se graduou em história e geografia, mestre em geografia
e ecologia e Ph.D. em geografia e antropologia.
16
Seemann se refere a Eduardo Galvão, “Áreas Culturais Indígenas do Brasil – 1900-1959”, Boletim Museu
Paraense Emílio Goeldi, Antropologia n. 8, Belém, 1960.
17
Obra citada por Seemann: Manuel Diégues Júnior, Etnias e Culturas no Brasil, Rio de Janeiro, Biblioteca
do Exército Editora, 1980.
31

existiam poucas pesquisas sobre a América do Sul. As Áreas Etnográficas da América


do Sul, de Julio Cezar Melatti18, a partir das áreas culturais propostas por Eduardo Galvão,
o qual colocou a validade de sessenta anos para a sua divisão, entre 1900-1959. Melatti
ampliou a classificação de áreas para toda a América do Sul e para a parte sul da América
do Sul, pois considerou conexões entre grupos.

Com base nas áreas etnográficas de Melatti, em dado momento por volta de
2002, o Departamento de Identificação e Delimitação de Terras Indígenas da Fundação
Nacional do Índio ― Funai19, esteve às voltas com a organização da demanda por
regularização fundiária de terras indígenas, tanto as novas quanto os passivos irresolutos,
e tinha nas Áreas Etnográficas sua estratégia de atuação. A proposta, segundo Marco
Paulo Fróes Schettino ― quem esteve à frente daquele departamento à época ―, era a de
sistematização dos dados preliminares à constituição de grupos de trabalhos para os
levantamentos em campo, nas terras indígenas, segundo Schettino (SCHETTINO, 2005,
p. 150). Foram identificadas dezessete áreas etnográficas e observo que tomaram dentre
os critérios, a logística do deslocamento dos grupos de trabalhos, tanto que os rios dão
nome à maior parte das áreas.

Outro mapeamento ― que, embora não traga regiões, agrupa povos indígenas
por famílias linguísticas e localiza a sua presença histórica ― é o Mapa etno-histórico do
Brasil e regiões adjacentes (1944/5), de Curt Nimuendajú (1883-1945), publicado de
forma acessível ao público em 198120, fruto de trabalhos em campo do autor entre 1905
e 1944 e de informações em fontes secundárias diversas (NIMUENDAJÚ, 2017, p. 29;
passim). Tais mapeamentos, por sua vez, constituem material para tantas outras pesquisas
e para os trabalhos técnico-científicos de regularização fundiária por localizarem grupos
étnico-sociais e por indicarem a presença histórica de determinado grupo em uma região;
uma vez em campo, por vezes é possível cotejar informações para dados de migração e
de expulsões, por exemplo. Uma dificuldade são os heterônimos. Com informações
obtidas de fontes secundárias do registro, notícia ou indício da presença de indígenas
desde o século XVI, por vezes um grupo que tenha sido indicado no passado, por
exemplo, em determinado local receba um nome e um outro registro, em outro local ou
em outro tempo ou por outro informante no passado, receba outro nome, quando na

18
Mantida em site chamado “Página do Melatti”, em: http://www.juliomelatti.pro.br/index.html.
19
O nome mudou para Coordenação-Geral de Identificação e Delimitação ― CGID, com a mesma função.
20
Antes disso, fizera três cópias para o Smithsonian Institution, para o Museu Paraense Emílio Goeldi e
para a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro entre 1943 e 1944.
32

verdade se tratariam do mesmo grupo ou de cisões internas ao grupo. Mesmo assim, é um


importante mapeamento para diversos estudos posteriores e o mapa merece ser ampliado,
recoberto pelo tempo, a partir das inúmeras etnografias e estudos linguísticos posteriores.

A referência espacial de Nimuendajú, no seu mapa, são os cursos dos rios.


Para a uniformidade e inteligibilidade do mapa estão algumas das informações nele
anotadas, assim, em cores estão assinalados os grupos em “troncos” linguísticos; as datas
da presença ou da notícia de presença dos grupos em dado local são indicadas, por vezes
há setas indicando o sentido da migração ou apenas “Índios”, para que algum trabalho
posterior possa emendar, ali, alguma informação. Imagino o material bruto, com outras
escalas de informação do mapa: com as serras, os caminhos e as informações de
possibilidades que não foram confirmadas à época da finalização do mapa, em 194521, no
mesmo ano da morte de Nimuendajú. O mapa original, os manuscritos, as gravações e os
negativos de fotografias estavam no Museu Nacional do Rio de Janeiro, queimado em 2
de setembro de 2018. O que é chocante tanto o quanto o é não terem sido dadas a público
informações sistematizadas e de fácil acesso desse material antes e ao longo dos mais de
cinquenta anos depois da morte de Nimuendajú.

Esses conjuntos de territórios não incorrem nas sobreposições, são


territorializações para a apreensão de áreas abrangentes de forma metodológica para os
estudos em antropologia ou para a aplicação das políticas públicas.

As espacializações e as regionalizações não constituem o único ponto de


diálogo, passado ou presente, entre a antropologia e a geografia. Mais recentemente, a
superveniência do tema dos territórios tradicionais ― quer como lugar de reflexão em si,
quer quanto à aplicação de políticas públicas, quer como atuação de antropólogos nos
estudos de identificação e nos estudos de impactos ambientais de licenciamento ambiental
― dois autores geógrafos têm sido amplamente citados: Raffestin e Yi-Fu Tuan. Ambos
os autores estavam abrindo campo na sua própria disciplina de modo a reconfigurar
entendimentos acerca do espaço destituído da presença humana, que procuraram
fortemente restituir entre ao longo da década de 1970.

Abordar tais autores não significa um diálogo entre disciplinas. Mas no caso
da antropologia, a profusão com que tais autores são indicados, lidos e citados é
sintomática, a meu ver, de uma lacuna quanto ao tema “território” na antropologia, que

21
Há quem indique ser 1944, quando Nimuendajú encerrou as etapas em campo.
33

não deve ser imperativamente cobrada da antropologia, pois trabalhou e trabalha com
elementos territoriais ou que se convertam em territorializações; o fez e faz de forma
sistemática e recorrentemente sem, no entanto, partir necessariamente do território ou ter
o território como seu objeto. Outro aspecto sintomático, e que poderia ajudar a elucidar a
ampla utilização de Yi-Fu Tuan e Raffestin nos estudos, no Brasil, acerca de territórios,
é o diálogo teórico. Embora haja uma grande quantidade de estudos, sejam acadêmicos
ou sejam os próprios estudos que se ocupam dos territórios22, até o momento não lograram
formar um corpo teórico. O diálogo, portanto, tem contado com ambos os autores para
pensar territórios no Brasil e meu interesse em Raffestin e em Yi-Fu Tuan é quanto ao
território e ao espaço, lendo neles como podem, também, serem essas categorias ou
conceitos apreendidos, em que as minhas discordâncias me serviram de motor e balizas
para este trabalho.

1.2. Espaço e território: uma visada em geógrafos e em


antropólogos

O espaço e a sua organização são objetos de estudo da geografia e território,


em linhas gerais, será o espaço onde o poder incide.

Jean Gottmann (1973) aborda o território como unidade na organização


política e que envolve os recursos naturais e as populações; Yi Fu Tuan (1974 e 1977)
traz a distinção caudalosa entre espaço e lugar no propósito do autor em ampliar o campo
da geografia ao privilegiar a percepção humana do espaço e do lugar. Claude Raffestin
(1980), abordando território, também, sob essa perspectiva, porém, mais situada na
globalização. O interesse em Rogério Haesbaert (2004) é mais específico e está na
desterritorialização. Do conjunto desses pensadores pretendo não travar uma discussão
entre eles, senão introduzir com eles aspectos sobre a noção de território, que nos
acompanhará nesta tese.

22
Tais estudos reúnem uma imensa quantidade de exemplos de territorialidades, de dados etnográficos e
de outras informações de ordem primária, além de uma coleção de questões que afligem e interpelam os
povos indígenas e remanescentes das comunidades dos quilombos; e isso nunca foi sistematizado. Outro
aspecto é o trabalho do antropólogo para discussões acerca do que ele faz, do que pode fazer e onde pode
atuar, interferindo e informando em políticas públicas e na sua relação com as questões do Estado e,
também, como é estar em campo praticamente a maior parte do tempo, em vários campos e, não raro, em
companhia de outros antropólogos. É um campo-laboratório imenso que se tem no Brasil para colaborar
com a antropologia.
34

O geógrafo francês Jean Gottmann apresenta The significance of territory,


publicado em 1973, nos Estados Unidos, advertindo que sua abordagem de território lida
somente com os conceitos e com a história ocidentais. Gottmann indica apreensões
distintas de um território por conhecimentos e interesses diferentes. Assim, o político tem
no território a população e os recursos nele contidos ou, ainda, um ponto de honra em
disputas; as características topográficas, as distâncias e as táticas que jogam com o
território e os recursos (como suprimentos locais) são, para Gottmann, o território dos
militares; para o jurista, a delimitação de jurisdição é o que conta em um território,
segundo Gottmann; o especialista em direito internacional vê o território como o espaço
do exercício da soberania e o mede conforme a extensão dessa soberania sobre um espaço.
Para os especialistas interessados em geografia política ― Gottmann informa ser um
deles e, também, ser o campo que quer delinear ―, o território aparece como uma noção
espacial material que estabelece vínculos essenciais entre: a política, as pessoas e o
cenário natural. (GOTTMANN, 1973, p. ix). O território do geógrafo é informado por
Gottmann como “a parte do espaço delimitada por linhas de contorno, cujas localização
e características internas devem ser descritas e explicadas” (ibidem).

Quanto aos limites de um território, o autor ressalta a importância da


confrontação com os vizinhos na constituição e cognição de um território (GOTTMANN,
1973, p. 1). Haesbaert (HAESBAERT, 2006) quer destrinchar territorialização e
desterritorialização, não apenas pelos prefixos ao radical “território”, mas ao próprio
sentido do movimento que o autor identifica inerente aos territórios na globalização da
sociedade. Há de se levar em conta, então, para onde se olha ao se ocupar de lidar com
“território” ou quando mais esta modalidade espacial sempre está presente quando se lidar
com o espaço.

O território como unidade na organização política do espaço define, diz


Gottmann, “ao menos por um tempo” as relações da comunidade com o seu habitat e,
ainda, as relações entre a comunidade e os seus vizinhos (GOTTMANN, 1973, p. 1),
sendo este um aspecto pouco explorado até aquele momento segundo o autor. Gottmann
diz querer evitar uma “abordagem puramente analítica” em que “a noção de território se
dividiria e se dissolveria em uma infinidade de conceitos diferentes”, tais como:
“localização, recursos naturais, densidade populacional, padrões de assentamento, modos
de vida e assim por diante” (GOTTMANN, 1973, p. ix).
35

Em Topofilia, publicado em 1974, Yi Fu Tuan fala que a terra é o corpo


humano em grande escala e indica termos para a analogia pretendida por ele: “fronte”
(testa), “costa”, polegadas, braças, pés e jarda (TUAN, [1974] 1980, p. 50). A jarda é um
múltiplo de palmos; uma jarda é a medida desde a ponta do nariz até o polegar (0,915m,
aproximadamente), uma braça é o dobro da jarda. Com uma abordagem para além de uma
simples analogia entre a terra e humanos (que será construída como experiência por meio
de sentimentos e sensações em Espaço e lugar, publicado em 1977, depois de Topofilia,
publicado em 1974), Yi-Fu Tuan busca o humano no espaço e, com isso, humanizar
espaço e lugar, sendo necessária para o autor outra propriedade da física além do espaço,
que é o tempo.

O espaço é onde se vive, conforme define Yi-Fu Tuan, com maior ou menor
largueza e liberdade; o lugar é a segurança, como o lar; e o território aponta para a ideia
de aprisionamento (TUAN, [1977] 1983, pp. 3-5;73). É o espaço “um recurso que produz
riqueza e poder quando adequadamente explorado” e “é mundialmente um símbolo de
prestígio do ‘homem importante’”; ocupar, ter acesso ao espaço ou possuir mais espaço
distingue o homem mais importante do homem menos importante, segundo Tuan (TUAN,
[1977] 1983, p. 66). Os homens compartilham espaços com animais, estes também têm
um sentido de território e de lugar como demonstrados, àquela época, nos estudos em
etologia, indica Yi-Fu Tuan, em que os espaços são demarcados na defesa contra
invasores. Aos espaços, segundo Yi-Fu Tuan, os humanos atribuem valores e é onde as
necessidades biológicas como água, comida, descanso e procriação são satisfeitas. De
acordo com Yi-Fu Tuan, as pessoas respondem ao “espaço” e ao “lugar” de maneiras
mais complicadas que o fazem os animais; e no que diz respeito ao “lugar”, que envolve
sentimentos, as respostas não eram bem conhecidas entre os animais, de acordo com o
autor.

Os “dotes humanos” diferenciam homens de animais, dado que ambos


possuem órgãos sensoriais análogos, explica Tuan (TUAN, [1977] 1983). O humano,
portanto, está simultaneamente em dois planos: no plano animal e no plano da fantasia e
do cálculo para experienciar e entender o mundo ― que Tuan aponta ser o tema central
da obra que apresenta ― nas formas como as pessoas atribuem significado e organizam
o espaço e o lugar. Os cientistas sociais se sentirão tentados, diz Tuan, “a ver a cultura
como fator explicativo”. A cultura é somente desenvolvida por seres humanos, diz o
autor, e ela “influencia intensamente o comportamento e os valores humanos” (TUAN,
36

[1977] 1983, pp. 5-6). Observo que, àquela altura da década de 1970, a antropologia já
entendia que tanto os valores quanto o comportamento são talhados pela cultura. Percebe-
se que Tuan entendeu uma estrutura mental e viu na cultura variantes e para que
conseguisse delinear “lugar” foi-lhe imprescindível a inserção do tempo. O autor leu os
trabalhos dos antropólogos Claude Lévi-Strauss, Evans-Pritchard e Raymond Firth e do
linguista Theodor George Strehlow, neste caso, Aranda Traditions (1947), em uma
abordagem afetiva dos povos descritos por eles ou da sua relação com o tempo ou, ainda,
no que indicou ser o tempo ausente.

Segundo Yi-Fu Tuan, o espaço que se estende sobre um reticulado de pontos


cardeais torna nítida a ideia de lugar, porém não transforma, por si, uma determinada
localidade geográfica em lugar (TUAN, [1977] 1983, p. 166). Da leitura que faço de
Tuan, a introdução do tempo no espaço só é possível, para ele, com a presença humana.
E há nisso um deslocamento para “lugar”, pois o “espaço” já estaria amplamente
conceituado na geografia física e analítica, justamente onde quer o autor abrir campo com
a humanização do espaço.

Yi-Fu Tuan delineia a sua forma de lidar com lugares, para o que é necessário
tratar do tempo para entrar e sair da imobilidade das paisagens e nelas inserir o humano
por meio da experiência. Em Espaço e Lugar, de 1977, Yi-Fu Tuan explica que tomou os
conceitos de espaço e de lugar para trabalhar o seu material heterogêneo sob a perspectiva
da experiência humana (TUAN, [1977] 1983, p. v). O espaço é uma noção na experiência
humana mais abstrata que lugar, segundo o autor. A experiência humana, um
aprendizado, carrega instintos e o aprendizado se reporta às percepções de espaço pelos
seres humanos desde criança, onde o primeiro espaço experienciado são os pais, conforme
entende Tuan. Os objetos, naturais ou feitos pelo Homem, que persistem no tempo como
“lugares através do tempo”, cuja percepção humana destes é afetada pela cultura
conferindo-lhes importância geral ou específica; a importância específica mudaria com o
tempo e a geral permaneceria (TUAN, [1977] 1983, p. 181).

Os limites das nações-estados nos mapas podem emplacar, no leitor, a noção


de autossuficiência na soberania dos países como entidades distintas e a representação de
cadeias de montanhas e de rios reforçam, segundo Tuan, a “sensação da nação como
lugar” (TUAN, [1977] 1983, p. 197). “Lugar”, um conceito estático ― como o aponta
Yi-Fu Tuan ― é colocado em movimento com o tempo e se fazendo visível através de
inúmeras formas: os lugares como rivalidades e conflitos com outros lugares; “o poder
37

evocativo da arte, da arquitetura, cerimônias e ritos”. Lugares humanos, portanto, se


tornam muito reais através da dramatização e se tem a identidade de um lugar na
“dramatização das aspirações, necessidades funcionais e vida pessoal dos grupos”
(TUAN, [1977] 1983, p. 197). Para descer ao cotidiano, como em uma escala, e falar de
experiência, na leitura que faço do movimento que faz Yi-Fu Tuan para poder incorporar
o humano na geografia, Tuan traz a rotina entre “pontos”, que são, nos exemplos do autor,
cadeiras, móveis, etc.; como lugares e estes são, para o autor, o centro que organiza o
mundo: “lugar é um mundo de significado organizado” e “essencialmente um conceito
estático” (TUAN, [1977] 1983, pp. 198-200). O autor relaciona tempo e lugar sob três
perspectivas: (a) lugar como tempo tornado visível ou lugar como lembrança de tempos
passados; (b) a afeição por um lugar como uma função do tempo, pois “leva tempo para
se conhecer um lugar” e (c) tempo como fluxo/movimento, em que “lugar” é uma pausa
na corrente temporal (TUAN, [1977] 1983, p. 198).

Yi-Fu Tuan cita uma passagem da “triste ocasião quando os norte-americanos


nativos tiveram que ceder terras ao governo de Stevens no território de Washington” e
que um chefe “índio” teria dito:

Houve um tempo em que nossa gente cobria a terra inteira como as


ondas de um mar encapelado cobre a praia coberta de conchas, mas há
muito esse tempo acabou, como agora as quase esquecidas grandezas
das tribos. Não me alongarei nem chorarei sobre nossa prematura
decadência nem repreenderei meus irmãos cara pálidas por terem-na
apressado. Somos duas raças diferentes. Há muito pouco em comum
entre nós. [...] Cada parte desse território é sagrada para meu povo. Cada
encosta, cada vale, cada planície bosque foi santificado por alguma
lembrança afetuosa ou alguma experiência triste de minha tribo. Mesmo
as pedras que aparecem emudecidas quando requentadas pelo sol longo
da praia silenciosa com grandeza solene emocionou-se com as
lembranças dos acontecimentos passados ligados à vida do meu povo. O
próprio passo sob seus pés responde mais afetuosamente as nossas
pegadas do que as suas porque as cinzas de nossos ancestrais, nossos
pés descalços estão conscientes de que o solo está cheio de vida de
nossos parentes. (TUAN, [1977] 1983, p. 172)

O comentário de Yi-Fu Tuan para a passagem acima é que “o sentimento


profundo pela terra não desapareceu; persiste em lugares isolados do convívio da
civilização”; cuja “retórica do sentimento pouco altera ao passar dos anos e pouco difere
de uma cultura para outra” (TUAN, [1977] 1983, p. 172). Escapou a Yi-Fu Tuan o que
38

podemos chamar da reflexividade do território. Estamos acostumados a essa leitura: a da


intimidade de um povo com o seu território. Na passagem acima, o território é descrito
como ser animado, o território reconhece e reage aos seus verdadeiros “ocupantes”23, é
uma observação que faço.

Tuan cita Raymond Firth acerca dos Maori da Nova Zelândia, estes com um
profundo respeito pela terra em si mesma e com uma afeição pelo solo ancestral. Tal
afeição e respeito não poderiam, segundo Tuan, estar relacionados apenas com a
fertilidade ― como valor imediato ou como fonte de alimento ―, pois era a terra onde
os antepassados viveram, lutaram e foram enterrados e, por isso, objeto de sentimento.
Ali, um condenado à morte poderia pedir para ir até a fronteira do território para que
pudesse vê-lo uma vez mais antes que morresse; ou, ainda, pedir para ir até o rio que
estivesse nos limites da sua casa para beber água em vez derradeira. (TUAN, [1977] 1983,
p. 171).

Observo que a noção de ancestralidade, da compartimentação do tempo por


eventos e por feitos de lideranças passadas, e não por um calendário em datas, é recorrente
nas comunidades e nos povos tradicionais no Brasil que vivem hoje e transitam na
sociedade e fazem parte dela da forma como são. O Brasil traz realidades que
desconcertam qualquer entendimento ou análise de povos tradicionais e indígenas no
sentido de “sobrevivências” de um passado. Pois traz para o proscênio de qualquer
análise, de maneira inegociável, a diversidade cultural.

Para corroborar com a abertura do campo da geografia humanista, na


geografia cultural, é providencial para Yi-Fu Tuan a distinção ― separando planos ―
entre o ambiente físico e natural da geografia para a cultura atuar nele como elaborações,
junções e disjunções humanas com a natureza e com a cultura. O autor pretende se afastar
de outra disciplina à época da publicação de Espaço e lugar (1977) que, segundo ele, ao

23
Situações com colocações análogas se deram em dois territórios em que tive a oportunidade de estar.
Com os Miranha, em 2000, no Médio Rio Solimões, no Município de Coari, no Estado do Amazonas, a
trabalho de uma agência da Organização das Nações Unidas ― ONU para a Fundação Nacional do Índio
― Funai, se tratava da regularização fundiária da Terra Indígena Cajuhiri-Atravessado. Dona Eunice
Marins, a memória do grupo indígena na reativação da regularização fundiária do território após sucessivos
esbulhos, remoções e prisões ao longo do século XX, me disse certa noite em sua casa no Cajuhiri, onde
me hospedei: “Essa terra só vai prosperar quando os verdadeiros donos estiverem em cima dela”. Estive
com os Xavante das Terras Indígenas Pimentel Barbosa, Wedeze e Tsorepré, no Estado do Mato Grosso,
em abril de 2017, por conta de um estudo para avaliação dos impactos da rodovia BR-080/MT; e o Bioma
Cerrado é o ambiente em que vivem ocupando porções a partir das aldeias, circundadas por áreas de coleta,
circundadas por áreas de caça e de expedições, uma forma excêntrica, a partir de cada aldeia, de
territorializarem o Cerrado, que chamam de Ró, e dizem que o Cerrado é o Xavante e os Xavante são o
Cerrado, uma relação que não deve ser lida somente na simples noção de “interdependência”.
39

observar os “universais o cientista comportamental provavelmente se voltaria para o


comportamento análogo ao primata”. Tuan alerta que não se desconhece a herança animal
dos seres humanos, tampouco que “a cultura é inevitável” e informa que ela percorrerá
em sua obra todos os capítulos no propósito de ressaltar as “questões gerais das aptidões
humanas, capacidades e necessidades, e como a cultura as acentua ou as distorce”
(TUAN, [1977] 1983, p. 6). Para introduzir o tempo de forma integral na construção de
lugar ― como pausa, em os objetos que “seguram o tempo”, retêm o tempo, como uma
visita a um velho bairro onde nascemos, na reconstrução do passado, e que não são os
objetos pessoais (TUAN, [1977] 1983, p. 207) ―, Tuan busca o tempo nas sociedade
“pré-letradas”. Para isso recorre aos exemplos em Lévi-Strauss, nas sociedades “frias”,
no aspecto da abolição do tempo marcado por acontecimentos históricos a fim da
manutenção do equilíbrio da sociedade. Na leitura que faz Tuan, aos pigmeus no Congo,
habitando a floresta úmida e com um sentido primário de tempo, lhes falta “uma estória
da criação do mundo” e algo no seu ambiente para lembrá-los do passado, pois estariam
imersos em um ambiente onde “a floresta úmida é imutável”.

Os aborígenes australianos teriam registrado na paisagem ― em um


desfiladeiro, em uma caverna ou pico ― as façanhas ancestrais e “os acontecimentos que
precedem o seu mundo presente”; completa Tuan indicando que, “apesar disso, sem um
registro escrito e um sofisticado sistema de contagem, o sentido de tempo não pode ser
profundo” (TUAN, [1977] 1983, p. 209). Tuan toma os Nuer, a partir de Evans-Pritchard,
para falar da pouca profundidade do tempo nas linhagens na passagem em que,
remontadas, não recuaria à árvore sob a qual surgira a humanidade (ibidem). Se, em parte,
Tuan dispensa a estrutura, com ela abre mão da possibilidade de percorrer um espaço
vivido junto aos clãs e linhagens Nuer, talvez porque os sentimentos-experiências,
necessários à sua construção de lugares, não estivessem descritos enquanto tais e não quis
imaginá-los ali. Aos povos pré-letrados faltariam os meios e, também, “a vontade de
pensar historicamente”, diz Tuan, e recorre à criança como exemplo e aos rituais de
iniciação, estes tomados por ele na dupla “instituições” e “mitos”, onde os últimos
sancionaria as instituições, apontando o autor que os mitos são eternos e o cosmo uma
constante.

Yi-Fu Tuan recorta as sociedades que repousam o tempo nos objetos e nos
lugares tidos como sagrados e veneram os objetos porque estariam associados a figuras
de poder e não pela sua antiguidade. Podemos ler, se quisermos, as joias da realeza
40

britânica e os braceletes trobriandeses abordados no seu valor de permanência histórica


em mãos da realeza, geração após geração, e na permanência da circulação para a os
trobriandeses no sistema de trocas do Kula, com o “au”24, na análise dessa contraposição
dos valores atribuídos que faz Marsahll Sahlins; e antes, nas análises de Henri Hubert,
segundo Marcel Mauss (MAUSS, [1950] 2003), a partir do desenvolvimento da noção de
mana como um fundamento arcaico da magia, que Hubert procede à descrição das
características da noção de tempo na “retalhação da extensão” e, portanto “de alguns
aspectos da noção de espaço” e a partir de onde, indica Mauss, Émile Durkheim concebeu
a ideia de todo (MAUSS, [1950] 2003, pp. 369-370). Uma outra forma, portanto, de se
lidar com o tempo em correlação ao espaço, promovida nesses autores pela suspeita de
terem encontrado uma “provavelmente muito primitiva noção de causa” (MAUSS, [1950]
2003, p. 370). Ao contrário da noção de “todo” dos antropólogos acima abordados, em
que uma “parte” diz acerca do “todo”, a noção de “lugar”, em Tuan, é uma parte
qualificada do espaço, mas vemos que a partir dela não se chega ao “todo”, se este for o
espaço.

Quando Yi-Fu Tuan aborda explicitamente “território”, o faz em relação ao


solo, ao campo ou à propriedade. Qualificar e definir “território” não é a preocupação de
Tuan em Espaço e lugar e em Topofilia. Se eu puder identificar semelhança como que se
pode ter de consenso acerca de “territórios” de povos e de comunidades tradicionais no
Brasil, indicaria o aspecto da afeição ao lugar, em Tuan no sentido de “lugar”, por vezes
a meio caminho da noção de casa; porém, de uma forma mais pessoal que coletiva
explicitada em Yi-Fu Tuan como “lar”, o que seria uma possível imagem de território em
Tuan na forma como me parece que as comunidades tradicionais e povos indígenas têm
seus próprios territórios: casa, lar. Mas é forçoso cobrar uma reflexão acerca de território
em Tuan ou dela se ressentir. Yi-Fu Tuan estava abrindo espaço para uma geografia
humana, em conjunto com outros de seu métier, em um espectro largo de diálogos para
ampliar a geografia em temas que levam à disciplina um tanto da psicologia, das ciências
sociais, da filosofia e que tem o ambiente em uma perspectiva que “contribuiria para a
preservação e valorização do ambiente terrestre” e “tendo como objeto a apreciação da
paisagem enquanto ambiente natural e humanizado”, cujo empreendimento se baseava na
“aproximação humanística”.

24
O Ensaio sobre a Dádiva, de Marcel Mauss, é publicado em 1924.
41

O objeto de Yi-Fu Tuan não é o território e os sentimentos que ele indica


estão relacionados a espaços como a pátria, o lar, a casa e o lugar (TUAN, [1977] 1983).
Quando Yi-Fu Tuan menciona território relacionado a limites, tem principalmente em
mente o estado-nação. Ao falar dos aborígenes australianos, conta que estes consideram
como território a parte da casa, a destacando de outra parte do território que é coletiva.
Tuan menciona que os aborígenes, mesmo sem terem sido influenciados pelos valores de
agricultores que cultivam a terra ― no caso, os agricultores sedentários, para o autor ―
constituem um exemplo de caçadores e coletores com profundo apego ao “lugar”; e que,
apesar de não possuindo regulamentos para a posse da terra ou “ideias rígidas sobre
limites territoriais”, têm dois tipos de territórios: a “propriedade” e o “campo”; diz Yi-Fu
Tuan. A propriedade corresponderia, em Tuan, à “casa tradicionalmente reconhecida” ou,
ainda, ao “lugar sonhado de um grupo descendente da linhagem paterna e seus adeptos”;
o campo traz a noção da porção de terra. Segundo Yi-Fu Tuan, a propriedade, ou a casa,
é mais importante para a vida social e cerimonial, na propriedade/casa é onde se pode
sentar; já no campo é onde o grupo pode correr e andar. Yi-Fu Tuan trata desses temas
no capítulo intitulado “Afeição pela Pátria”, e tem no “arraigamento ao solo” um
sentimento crescente e piedoso para com ele que “parece natural aos agricultores
sedentários”; contrapondo-os aos caçadores e coletores nômades com “o seu sentido de
posse da terra mal definido”, de quem se fosse de esperar uma menor afeição pela terra
quando, ao contrário, pode existir nesses povos “um forte sentimento pela mãe-terra”
(TUAN, [1977] 1983, p. 173).

Os Lacota das pradarias norte americana, reportados por Tuan, têm “o


sentimento mais carinhoso pelo seu país”; “imploram à mãe-terra” que faças as coisas
crescerem, a água correr e “que mantenha a terra firme para que possam andar sobre ela”;
descrevem as Black Hills como uma mulher reclinada, dela os seios geradores da vida, e
“para elas os Lacota vão como crianças para os braços de sua mãe”. No solo, os velhos,
mais que os jovens, se sentam e se reclinam “para estarem mais perto de um poder
fortalecedor”. Tuan diz que, talvez, o carinho dos Lacota pela sua terra, ou “país”, possa
“estar influenciado pelo seu próprio passado agrícola ou pelo contato com agricultores”
(TUAN, [1977] 1983, p. 173), indicando um aprendizado com terceiros nessa passagem
e em outras que destaquei atrás. Tal aprendizado se depreende, em Tuan, ora como um
contato, ora como uma gradação em que o trato com a terra dos terceiros externos às
comunidades é o parâmetro do autor; enquanto a antropologia prima por não eleger um
42

parâmetro, especialmente quando ele é mais próximo do observador. O que me leva a


imaginar como seria a leitura do que escrevo feita por um geógrafo. Nisso, temos que a
interdisciplinaridade não precisa ser complacente, mas resiliente.

Mais do que um ponto de vista em Tuan, senão “um sentimento complexo e


fugaz”, o território é a condição para a sobrevivência biológica e “território” como
“recurso” é assim auferido a partir da cultura. Yi-Fu Tuan traz como exemplo a China,
onde havia apenas pequenos proprietários contentes em viverem de renda, na ociosidade
em lugar de trabalharem visando o lucro e os investimentos no aumento das suas
propriedades; o contrário se passa nas sociedades ocidentais capitalistas de espírito
empresarial muito forte, diz Tuan, que fazem os espaços parecerem ser sempre
insuficientes e que fizeram com que “os apetites biológicos logo atingissem o limite
natural” e onde o “anseio ultra biológico ― que rapidamente assume a forma deturpada
da cobiça ― é potencialmente ilimitado”, diz Tuan. Para um ego agressivo, são
necessários espaço e poder insaciáveis sobre o dinheiro e sobre o território. (TUAN,
[1977] 1983, pp. 65-66). Vemos Tuan pensando a humanização da geografia e os usos do
espaço no seu próprio marco cultural, sendo ele chinês e docente nos Estados Unidos.

O espaço, uma necessidade biológica de todos os animais, é também para os


seres humanos uma necessidade psicológica, um requisito social e mesmo um atributo
espiritual (TUAN, [1977] 1983, p. 66). O autor busca referências diversas para a
construção do espaço e do lugar como objetos e diz que “espaciosidade” tem significados
no Velho Testamento, no Êxodo (3, 8, 24 e 34), ligados à terra “boa e grande onde corre
leite e mel”, em referência ao povo hebreu preocupado com o tamanho da terra prometida
e sem condições fazê-la maior por meio de armas, haveria a providência divina para
expulsar as nações invasoras e, assim, aumentar as fronteiras. Esta é uma propriedade
física da palavra “espaciosidade”; sua propriedade espiritual está relacionada à elevação
e à grandiosidade espiritual do homem conhecedor da Torá (Salmo 119), conotando
salvação e liberação; e, ainda, significando “escapar do perigo” (Salmo 18 e 19), com
conotação psicológica (TUAN, [1977] 1983, pp. 66-67). “Espaciosidade”, segundo Tuan,
está associada à liberdade, implica espaço, é estar livre em significados amplos para atuar.
O espaço fechado humanizado é “lugar”, é o centro calmo com valores estabelecidos e os
seres humanos necessitam de espaço e lugar. Espaço e espaciosidade têm diferentes
significados nas várias culturas e adverte Tuan que “do lado negativo, espaço e liberdade
são uma ameaça” (TUAN, [1977] 1983, pp. 59, 61). Chegamos até aqui, com Tuan, no
43

propósito de indicar que, para o autor, “território” guarda o referente estado-nação e com
isso a noção de “limites”:

O ego coletivo de uma nação tem reivindicado mais espaço vital às


expensas dos vizinhos mais fracos; uma vez que uma nação tem êxito na
conquista de territórios, pode ser que não veja nenhum impedimento
importante para não chegar quase a dominar o mundo. Tanto para a
nação agressiva como para o indivíduo agressivo, o contentamento que
acompanha a sensação de espaciosidade é uma miragem que
desaparece à medida que se adquire mais espaço. (TUAN, [1977] 1983,
p. 66)

Yi-Fu Tuan é nascido na China, em 1930, e lecionou nos Estados Unidos. O


marco em que lemos Yi-Fu Tuan é o de um geógrafo buscando repensar e alargar o campo
da geografia. Nas primeiras páginas de Espaço e lugar, Yi-Fu Tuan evoca “a seriedade
em nossa preocupação com a natureza e qualidade do meio ambiente humano” e exorta
os geógrafos a não continuarem apenas estudando ratos e lobos para inferir o
comportamento humano, para, em lugar disso, medir e mapear espaço e lugar, adquirir
leis especiais e inventários de recursos, que são abordagens importantes, segundo o autor,
“porém precisam ser complementadas por dados experimentais que precisamos coletar e
interpretar com fidedignidade, porque nós mesmos somos humanos” (TUAN, [1977]
1983, p. 5).

Podemos discordar de Tuan em passagens e em algumas proposições,


certamente, mas é necessário que leiamos Yi-Fu Tuan nesse seu espetáculo de
possibilidades de aproximação com as ciências sociais em plena época quando estavam
sendo gestadas as ideias e as políticas no cenário internacional para o meio ambiente,
como se verá no capítulo 4, onde descrevo a elaboração da lei de criação e de gestão das
unidades de conservação no Brasil, a Lei do SNUC, um processo que não foi capitaneado
pelas disciplinas da geografia, das ciências sociais ou da antropologia.

O ambiente em que Yi-Fu Tuan publicou Topofilia: um estudo da percepção,


atitudes e valores do meio ambiente, em 1974 e, depois Espaço e lugar, em 1977, é
assinalado pelo geógrafo econômico James Parsons como uma época de mudança em que
se encontrava a geografia, em 196925. Conforme conta Werther Holzer (HOLZER, 2008),

25
Werther Holzer (HOLZER, 2008) cita James Parsons em: Toward a more humane geography. Economic
Geography; nº 45 (3): Guest Editorial, 1969.
44

“os jovens, naquele momento, não estavam interessados em uma geografia operacional e
não acreditavam em leis mecanicistas ou em modelos de mundo”, os interessavam os
“valores humanos, a estética e um novo estilo de vida” muito em função do contexto do
movimento hippie no questionamento estudantil aos padrões culturais e políticos
vigentes. Era preciso que a geografia fosse ao encontro de “valores morais” e da
“subjetividade humana” eliminados da geografia pelo seu cientificismo e pelo seu
economicismo (HOLZER, 2008, p. 146). O estudo das paisagens, segundo Holzer,
conceito síntese da geografia e que deveria, na sugestão de Carl Sauer26, desde 1925,
“iniciar-se com o estabelecimento de um sistema crítico delimitado pela fenomenologia
da paisagem como método de estudo da relação entre o homem e o ambiente por ele
formatado e transformado em habitat, em paisagem cultural” (HOLZER, 2008, p. 137).
Tais ideias se difundiram tanto pelos Estados Unidos, onde Sauer foi docente, quanto pelo
exterior resultando na criação de diversos cursos de geografia cultural que, por meio do
“trabalho de campo e de relatos de não-geógrafos”, procuravam “fazer uma geografia que
captasse ‘os significados e cores do variado cenário terrestre’” (HOLZER, 2008, p. 137).

No cenário de humanização da geografia, ao contrário de Yi-Fu Tuan, o


geógrafo francês Claude Raffestin aponta, em Por uma Geografia do poder, publicado
em 1980, que o espaço é a matéria do território, este permeado por relações de poder
exercido por pessoas ou por grupos de pessoas. O poder não é englobante, mas vem de
toda parte, segundo Raffestin (RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 52).

Raffestin, percebe o espaço como um “dado que antecede à intervenção


humana, e seria excessivo dizer que ele é dominado por esta ou aquela noção”; sendo este
um “espaço real” (RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 48), é um dado “como, se fosse uma
matéria-prima” e “preexiste a qualquer ação” (RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 144). Uma
assepsia do espaço é promovida epistemologicamente pelo autor para conceber o espaço
em dois planos, que diz Raffestin serem “duas faces” do espaço: uma face é o “plano da
expressão”, constituído “por superfícies, distâncias e propriedades27”, como as leio, um
instrumental da geografia na apreensão do espaço pelas características da área; e a outra
face é o “plano do conteúdo, constituído pelas superfícies, pelas distâncias e propriedades

26
Citado por Werther Holzer (HOLZER, 2008): Carl Ortwin Sauer, The Morphology of landscape; In:
LEIGHLY, J. (ed.). Land and Life – a selection from the writtings of Carl Ortwin Sauer. Berkeley,
University of California Press, 1983, pp. 315-350.
27
“Propriedades” inerentes ao espaço; para não confundir com propriedade como posses.
45

reorganizadas, que têm seu significado dado pelos atores sociais” (RAFFESTIN, [1980]
1993, p. 48)28. Desses dois planos, segundo Raffestin, “em estreita relação com o espaço
real” e no entremeio dos dois planos emergem (a) “um ‘espaço abstrato’ simbólico, ligado
à ação das organizações” e (b) “o espaço relacional ‘inventado’ pelos homens e cuja
permanência se inscreve em escalas de tempo diferentes do espaço real ‘dado’”
(RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 48).

A partir daí, o autor seguirá com o mesmo método para outra propriedade da
física além do espaço, o tempo: tempo real, dos astrônomos que conseguiram o tempo
absoluto, que é um tempo “dado” do movimento da Terra em torno do Sol; e o tempo
“inventado”, é o tempo “dos atores sociais que, embora contido no primeiro, não deixa
de ser distinto”. Tempo e espaço, segundo Raffestin, devem ser considerados juntos nas
estratégias de ação dos atores sociais (RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 49).

O território, em Raffestin, é posterior ao espaço nos desenhos de curvas que


relacionam poder e comunicação, poder e religião, poder e língua e outros eixos em dada
área delimitada, um território; antes, um espaço sobre o qual, cita Lefebrve no De l’État;
Les contradictions de l’ Êtat moderne (1978), se constroem rodovias, canais na “produção
de um espaço nacional” (RAFFESTIN, [1980] 1993, pp. 143-144). Em uma apreensão
do território, onde se projetam relações de trabalho e, com elas, relações de poder e de
capital ― controles ―, “o espaço é abstratamente decifrado como um suporte” em
Raffestin: multinacionais norte-americanas se instalam em uma região para depois se
mudarem para outra região na instabilidade do assento econômico e, com isso, há a
instabilidade dos empregos dos trabalhadores.

Assim, aborda o que chama de economia nômade, em que não há a


territorialização da unidade de produção ao ser localizada na exploração das vantagens
que são temporárias; mas a população empregada por esse tipo de economia é, em
contrapartida, territorializada. O conflito estará entre a economia nômade e uma
população territorializante no seu aspecto desfavorável à mobilidade, com expressões em
níveis máximos, diz o autor, nas greves e ocupações das fábricas norte-americanas
migradas para Bruxelas, Amsterdã, Luxemburgo e outros locais ao norte de Genebra onde
primeiro se instalaram entre 1955 e 1975 (RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 94). O poder de
uma empresa está na combinação de códigos como pares de opostos e na sua

28
Grifo meu.
46

manipulação: territorialização/desterritorialização, estabilidade/instabilidade, espaço


concreto/espaço abstrato; uma territorialidade abstrata e instável das empresas
multinacionais e uma territorialidade concreta e estável da população. Diz Raffestin
(RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 95) que o conflito é “inevitável e sobretudo desigual, uma
vez que a empresa, manipulando a repartição de fluxos de energia simbólica e de
informação, não se expõe muito à resistência da população ativa”.

Podemos ver que Raffestin não traz os meios de produção como a assimetria
do poder e podemos, ainda, farejar o Leviatã de Thomas Hobbes na distribuição desigual
de poderes tanto para satisfazer a sede humana de poder quanto para que permaneçam
onde estão. Em Raffestin, a promotora da assimetria, na manipulação de códigos
conflitantes, é a empresa e não o Estado, cujo resultado, curiosamente, é a confrontação
dos trabalhadores mais fortemente feita em direção ao Estado que direcionada à empresa
(RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 95).

Rogério Haesbaert, geógrafo, tem em conta o processo migratório de gaúchos


para o Sul da Bahia, cena em que elabora as noções de territorialização e
desterritorialização no seu doutorado em 1997, para abordar processos de
desterritorialização em O mito da desterritorialização, junto às noções da compressão do
espaço-tempo em que vemos, ali, a noção de “desencaixe”, presente não apenas Anthony
Giddens (GIDDENS, 1991). Com relação a Giddens, podemos ler em Haesbaert uma
analogia entre os setores de estilos de vida de Giddens com a multiterritorialidade em
Haesbaert. É necessário, segundo o autor, que se tenha abordagens multidimensionais que
levam a ver o território como produto de um espaço híbrido “entre sociedade e natureza,
entre política, economia e cultura, e entre materialidade e ‘idealidade’” (HAESBAERT,
2006, p. 79).

Assim define o espaço geográfico: um híbrido, onde “o território pode ser


concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder”, desde o poder mais
material das relações econômico-políticas” em continuum “ao poder mais simbólico das
relações de ordem mais estritamente cultural” (HAESBAERT, 2006, p. 79). Esse seria o
território-rede, ao passo que as delimitações territoriais que abordo nesta tese ― tanto
unidades de conservação quanto territórios tradicionais ―, estariam, se vistas por
Haesbaert, associadas ao território-zona, fixos ou idealmente fixados.

No que toca às áreas protegidas, Haesbaert diz que algumas áreas do planeta
foram relegadas à reclusão justamente por sua condição de áreas protegidas, cuja reclusão
47

provoca, segundo ele, “a reprodução de territórios que são uma espécie de clausura ao
contrário”, pois muitas vezes são vedadas “a intervenção e a mobilidade humana no seu
interior” (HAESBAERT, 2006, p. 55). A imagem da área protegida, ou da unidade de
conservação, que Haesbaert indica nessa passagem, é a de território proibitivo para a
sociedade geral, um espaço extirpado do alcance e da mobilidade de quem está na região
abrangente, do lado de fora da unidade de conservação. A imagem de áreas protegidas e
de unidades de conservação com que lido nesta tese tem o ponto de observação, ou ponto
de situação, no seu interior e a partir dele, e não fora. São as características e propriedades
ecológicas intrínsecas ao lugar que faz dele elegível para ser preservado ou conservado,
cujo acesso externo será regulado ou impedido (o contrário da “clausura” de Haesbaert)
e, principalmente, a expulsão de quem ocupa o lugar ou a regulação intervindo em como
ocupar e viver no lugar; situação essa que destaco nas sobreposições entre territórios
tradicionais e unidades de conservação.

Os territórios-zona de Haesbaert admitem menos as sobreposições que os


territórios-redes, estes descontínuos e articulados entre si segundo Haesbaert
(HAESBAERT, 2006, p. 79). Ao contrário disso, ressalto que o que se verá nesta tese, é
que são exatamente aqueles territórios que podem ser considerados como territórios-zona
são os que estão em relação de sobreposição, se entendermos como territórios-zonas os
territórios das unidades de conservação e os territórios das comunidades. Há a ideia de
que territórios-redes ― principalmente pela sua sucessão na percepção histórica dos
territórios fixos nos estados-nação e, depois, na sociedade globalizada ― destruiriam e
pulverizariam os territórios-zonas, ou ao menos a sua noção, ideia de que Haesbaert não
partilha e que, como vemos e presenciamos na realidade no Brasil, existe a concomitância
das apropriações reticulares de territórios com aquela de áreas contínuas e fixas. Os
territórios são, também, agenciados, segundo Haesbaert. Os agenciamentos do território,
que têm como característica central a territorialidade humana ― essa relacionada à
identidade (HAESBAERT, 2006, p. 50) ― se dão nos movimentos concomitantes de
desterritorialização e de territorialização (HAESBAERT, 2006, pp. 122-123).

Há limitações nas aplicações dos autores expressos neste capítulo para


pensarmos nos territórios tradicionais, vividos e criados por populações tradicionais, e
nas sobreposições entre territórios institucionais, por exemplo, entre unidade de
conservação e terras indígenas ou territórios quilombolas.
48

Gottmann lida como crescimento como um desejo ou mesmo um tendência,


em que os recursos de um território poderão ser fatores limitantes, em que o território
teria uma evolução para a satisfação além das necessidades básicas de quem ocupa um
território e o autor traça uma linearidade histórica do território, antes como abrigo ou
mesmo como característica de território, aos dias atuais para uma população geral
(GOTTMANN, 1973). A ideia de que territórios evoluem (vilas, cidades, etc.) endereça
a noção de território à referência de estados-nações e suas subpartições. No Brasil, ao
lado disso, temos os territórios tradicionais, que em certa medida podem ser vistos como
produzidos ― ao menos como dimensões e na sua localização ― pelas políticas e formas
de interiorização do País e ciclos econômicos29. Nos casos de sobreposições entre
unidades de conservação e territórios de comunidades tradicionais, uma das justificativas
da parte daqueles que proclamam a prevalência das unidades de conservação sobre os
territórios tradicionais é a de que os grupos vão crescer nessa mesma linearidade com
mais desejos a serem satisfeitos além do que se presume serem suas necessidades básicas.
Quando não é de se viver tendo como meta as necessidades básicas somente
(especialmente imputada aos outros) e quando os desejos e outros usos são os de outra
matriz cultural, em que não se deve projetar naqueles povos o que se chamam por desejos
e usos inerentes à sociedade abrangente.

Raffestin indica relações diversas tecidas em um território dado, sendo as


tessituras um elemento que escolhe, admitindo existirem outros, para pensar a forma de
análise de um território. O território, em Raffestin, é formado por tais tessituras. As
tessituras, os nós e as redes de Claude Raffestin (RAFFESTIN, [1980] 1993), são tramas
que se articulam e se desenham sobre o território ao mesmo tempo em que o produzem,
a partir de planos ou superfícies, que são áreas dadas ou analisadas; de pontos, onde estão
indivíduos ou grupos; e de linhas, que podem ser as distâncias entre os pontos apreendidas
espacial, econômica e psicologicamente, se traduzindo nas interações políticas, culturais
e sociais. O conjunto forma o “sistema territorial”, proposto por Raffestin (RAFFESTIN,
[1980] 1993, p. 152), que resulta do cruzamento daqueles elementos de espaço ―
superfícies, pontos e linhas ― com um “sistemas de objetivos e de ações, conhecimentos
e práticas”, que são econômicos, políticos, sociais e culturais.

29
Me refiro, por exemplo, à Marcha para o Oeste, no Brasil central no período do Estado Novo (1937-
1945) que deslocou e dizimou povos indígenas que já vinham se movendo de um lado ao outro em um
ambiente mais amplo por conta de ciclos econômicos anteriores, como o do ouro e das pedras preciosas.
49

Descritos dessa maneira, e recortados aqui esses trechos, e não outros,


poderíamos enxergar um território tradicional aqui. No entanto, há de se ter em conta em
quais imagens o autor apoia suas assertivas antes de fazê-lo falar sobre o nosso objeto.
No caso de Raffestin, o território é um dado, um plano delimitado onde ele aplica sua
análise para identificar as relações de poder, que pode ser uma empresa e abarcar suas
sucursais. Em vez disso, em um território tradicional é possível analisar as relações de
poder que, inclusive, relacionam e alinham outros territórios próximos, principalmente
por meio de relações de parentesco. Identifico três limitações para uma aproximação
direta das análises de Raffestin por aqueles que procuram pensar territórios a partir do
autor, como seguem.

As relações dentro de um território tradicional, ligadas aos usos do espaço


(aldeia, áreas de caça, trilhas de caça, locais de habitação, de coleta, lugar de memória
dos antepassados, paisagem e topografia que relembram e localizam a mobilidade antes
possível, etc.), vão dar a dimensão desse território porque tais relações se projetam em
uma área. Isso é o que se deve buscar em uma identificação e delimitação de um território:
se parte da identificação de tais projeções para se chegar ao território, aos seus limites, e
não se toma um território como já dado para analisá-lo; esta é uma limitação na aplicação
direta das ideias de Raffestin para se pensar territórios tradicionais.

Uma outra pesquisa, que não se ocupe em delimitar um território tradicional,


poderá analisar as relações nele entremeadas, tecidas. Mas se essa pesquisa partir para
abordar o território, os limites e a territorialização será imprescindível à pesquisa levar
em conta a projeção territorial de tais relações para não incorrer em supor um território
“fixo”; quando um território tradicional reconhecido pelo Estado foi “fixado” pelo
próprio Estado. Neste aspecto o leitor poderá questionar se a identificação e delimitação
já trazem tais projeções, das quais decorrem os limites, de qual maneira, então uma outra
pesquisa deverá, ainda, retomar relações que se projetam e desenham um território e não
partir da poligonal já dada. Porque as políticas públicas de reconhecimento de territórios
tradicionais reconhecem direitos ao mesmo tempo em que fixam aquela população
tradicional. Mesmo em uma grande área que comporte o seu seminomadismo, por vezes
confundida com a circulação por áreas em dado território, perdem a itinerância que um
povo possa praticar em períodos mais amplos. Também, porque o instrumental legal para
o reconhecimento dos territórios impõe que se leve em conta a percepção da própria
comunidade, mas há limites, por exemplo, territórios reconhecidos são áreas circundadas
50

por poligonais, considerando que todos são territórios pontuais e não vetoriais. Outro
aspecto para sempre se percorrer as projeções territoriais em pesquisas que abordem a
territorialidade são os aspectos políticos locais, que pressionam, muitas vezes, os povos
a lidarem com parcelas de seus territórios em reivindicações. Por tais razões não há
necessariamente fixidez nos limites de um território tradicional, ela é fixada
institucionalmente para efeitos de ação em políticas públicas tanto do reconhecimento do
direito ao território quanto para ser possível a implementação de outras políticas públicas
(luz, água, habitação, projetos de etnodesenvolvimento, construção de escolas, postos de
saúde, etc.). Mais adiante, no item 1.5, na página 64, indico a diferença entre território
tradicional e território institucional. Raffestin não fala em fixidez dos territórios,
inclusive, se os territórios são as empresas, estas mudam de lugar, se são as sociedades
que dominam de forma fraca ou forte um território, a medida será o menor ou o maior
fluxo de informação, respectivamente, que as permeiam, atravessam (RAFFESTIN,
[1980] 1993, p. 213), se quisermos ver nisso uma ampliação de dado território. O autor
está se referindo às redes de comunicação tecidas na sociedade abrangente; já o caso
brasileiro da diversidade étnica é bastante específico.

Uma terceira, e última, limitação que identifico na aplicação direta das


análises de Raffestin acerca de territórios para pensarmos territórios tradicionais não
chega a ser algo relacionado imediatamente aos territórios, mas relacionado à
antropologia. Na antropologia, uma pesquisa preocupada ou não com a territorialidade,
olhará para a comunidade; a pesquisa em antropologia que se ocupar em abordar o
território sob quaisquer aspectos, também, partirá das pessoas, dos arranjos dos grupos de
pessoas ou mesmo da ausência das pessoas e das razões de tal ausência. As análises de
Raffestin, mesmo abordando linguagem e a comunicação, que ramifica um território,
partem do espaço, do território e não das pessoas.

O território em Haesbaert pode ser permeável aos entrecortes da modernidade


e a sua noção de desterritorialização acompanha essa fluidez. Ao passo que as
desterritorializações a que me refiro nesta tese são mais palpáveis. As
desterritorializações das comunidades e dos povos tradicionais são os esbulhos; as
remoções; e as regularizações fundiárias inconclusas, que são, também, exemplos de
desterritorialização, pois impedem o acesso pleno das comunidades ao seu território e
incrementam conflitos com terceiros, dando vantagem de tempo para a consolidação e
para a aparição de outros usos diversos feitos por terceiros (instalação de
51

empreendimentos de infraestrutura, venda de terras, instalação de empreendimentos


agropecuários, destinação de usos nos zoneamentos dos planos diretores municipais,
etc.); não raro tais usos são incongruentes com os usos do espaço, do ambiente, da
paisagem e dos recursos naturais feitos pelas comunidades.

A desterritorialização, como processo ou como resultado de uma ação


praticada, é a mudança do status fundiário do território de uma comunidade e de um povo
tradicional, do chão, sob uma comunidade por meio de mudanças na Lei em benefício de
outrem; a desterritorialização se constitui na inserção de terceiros com direitos sobre os
usos dos recursos naturais e sobre disposições sobre aquele território a turbarem a
autonomia e a autodeterminação das comunidades e dos povos tradicionais; a
desterritorialização se constitui, também, na remoção das comunidades do seu território
ou no impedimento do acesso pleno a esse território. Assim defino desterritorialização e
podemos notar que um agente desterritorializador, dentre outros, é o próprio Estado.

Dessa maneira, as sobreposições de unidades de conservação são exemplos


de processo de desterritorialização, além de essas fazerem seus próprios usos dos
recursos, a gestão das unidades de conservação busca com força indicar qual tipo de uso
as comunidades podem ou não fazer, com base nos Planos de Manejo, que têm força de
Lei. Desterritorializar é tanto a remoção forçada de uma comunidade de seu território
quanto outra destinação de uso do todo ou de partes desse território; bem como a turbação
no usufruto exclusivo dos recursos naturais, na autonomia e na autodeterminação30 nos
usos tradicionais dos recursos naturais e na gestão do próprio território e da própria vida
diária nesse território. A autonomia está ligada à ideia de independência e a
autodeterminação à ideia de um “por si”, quanto aos próprios entendimentos, as bases
desses entendimentos buscadas dentro da própria comunidade e não fora dela,
entendimentos sobre os quais as comunidades traçam seus planos futuros. Portanto,
quanto à “desterritorialização” de Haesbaert, não se trata de um limite para a sua
aplicação, mas se trata, sim, de uma noção do autor diferente da que trago para esta tese.

Quanto à Yi-Fu Tuan, a apropriação de um lugar pela experiência, do lugar


físico identificando sua topografia e seus topônimos, que permitem a alguém reconhecer
a si próprio nessa paisagem, são elementos interessantes. A limitação na aplicação direta

30
“Autonomia” e “autodeterminação” estão indicadas na Convenção Organização Internacional do
Trabalho ― OIT nº 169; comumente utilizada apenas para os aspectos da obrigação da Consulta e nas
disposições acerca da remoção.
52

das proposições de Yi-Fu Tuan está no cerne dessa experiência, que no autor é individual
e não coletiva. Por outro lado, os elementos que Yi-Fu Tuan traz para a experiência
humana com o meio ambiente são os utilizados na identificação e delimitação
principalmente como método, ao se andar em campo junto com pessoas da comunidade
em uma etapa dos levantamentos dos trabalhos de identificação e delimitação e que
poderão indicar limites do território.

Dos autores abordados em geografia, o único que não possui o Estado na


centralidade do poder é Yi-Fu Tuan, mas nitidamente escreve no avesso desse poder, que
é amplo, generalizado nas formas e nos padrões e valores de consumo vivendo ele nos
Estados Unidos e sendo chinês, como se pode notar nas noções de “espaciosidade” e de
“apinhamento”. E é, também, o autor, dentre os demais, que não possui o território como
objeto, mas podemos ler em larga medida as experiências que descreve como formas de
territorialização.

Os autores geógrafos abordados, da geografia humanista ou política, olharam


para vários lugares no espaço e no tempo, há neles uma profusão de exemplos retirados
das etnografias ou das pesquisas em antropologia e em linguística, que aqui me reportei
a algumas daquelas passagens. O que nos leva a indagar o fato de não existir ― aos
moldes de Gottmann, que indicou formas para cada capacidade técnica investigativa: os
juristas, os militares, os geógrafos políticos e outros ― um “território” para os
antropólogos; o que é perfeito, pois significa a consideração da percepção das
comunidades que vivem nos territórios ou os têm em vista, como na curta passagem que
trouxe de João Pacheco de Oliveira, está ali explicado – não que fosse a intenção dele,
mas vi resposta a essa questão ali. Há estruturas que podem não se expressar em um
território; em outros casos, a estrutura está no território.

Os territórios serão tantos quantos se queira, se se parte do parentesco, e se


este se projeta em um território, ou ainda se é o aspecto de suporte ou de
intervenção/efeito das relações de parentesco; se se parte dos círculos concêntricos do Ró
Xavante, por exemplo, tendo ao centro a aldeia no formato de ferradura e se vão
classificando os ambientes em uma imensidão dali para diante em que os espíritos contam
segredos da mata do Cerrado (ou Ró) aos Xavante. Os territórios se fundem com a
53

territorialização e abrangem as partes de que os indígenas, no caso, foram esbulhados,


desterritorializados, as porções interditas e aquelas de usos esporádicos31.

O território pode estar inscrito nas atividades e nos caminhos diários daqueles
que ali vivem ou mesmo na evitação de um lugar sagrado, ou de períodos religiosos
reservado a alguns. Pensando em lugares urbanos, as ruas no centro do Rio de Janeiro
eram proibidas às pessoas pobres, por lei suntuária, na intenção da municipalidade em
segregar o trânsito de uma população em determinados espaços, em cujo critério de cor
não era eficaz; ou para proibir os “capoeiras” de estarem nas praias32, lugares escusos no
século XIX e começo do XX (NEEDELL, 1993).

Na favela do João, em meados de 2011 no Rio de Janeiro, as facções do


narcotráfico redefiniram uma outra rua como limite entre si, esvaziando a clientela de um
projeto de geração de renda para mulheres que eu fiscalizava quando trabalhava no
governo federal33, pois as mulheres classificadas em uma facção não poderiam atravessar
para o outro lado e frequentar os cursos oferecidos pelo projeto governamental.

Na região de Paraty, as dificuldades estão em se transpor a Serra do Mar e


estabelecer uma circulação entre a parte de cima da serra e a de baixo. Os indígenas locais
mantinham o circuito cima-baixo por meio de trilhas desde a época da ocupação do
imigrante europeu e da distribuição de sesmarias na região. Na atualidade, os caminhos
marítimos dos caiçaras são reivindicados como parte de seu território, que não é
exclusivamente terrestre.

Há, portanto, os territórios dos grupos de pessoas. E há os territórios que o


Poder Executivo indica para a sua atuação. Estes são exemplos breves que busco trazer
em colaboração aos tantos outros para retirar do conjunto duas características irredutíveis
do território, que são os seus limites, o reconhecimento desses limites e o conteúdo do
território que o qualifica.

31
Habitações temporárias para caçadas, por exemplo, como o fazem alguns grupos étnicos sociais
indígenas.
32
As praias não eram um espaço de sociabilidade até o começo do século XX no Rio de Janeiro, tanto que
a frente das casas, que pudessem estar no espaço urbano e perto do mar, estava voltada para o lado oposto
ao mar, para as ruas da cidade, portanto.
33
Como Coordenadora-Geral de Apoio à Estruturação da Produção Familiar – CGEPF, coordenação ligada
ao Departamento de Fomento à Produção e à Estruturação Produtiva – DEFEP, na Secretaria de Segurança
Alimentar e Nutricional ― SESAN, no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome,
recentemente com o nome mudado para Ministério da Cidadania.
54

Território implica limites, sejam nítidos ou borrados; tais limites são


reconhecidos por aqueles que vivem no território, por aqueles que foram expulsos do
território e por aqueles que o reivindicam, reconhecidos pelos seus vizinhos, ainda que
não concordem. Os limites e o seu reconhecimento local vão se dando nas dinâmicas ao
longo do tempo, localmente. Quando é o Estado quem trata do território, a diferença é a
de que limite e reconhecimento se dão em um ato, ao mesmo tempo, e os limites deverão
ser precisos na linha da poligonal. A necessidade de expressar um território em um mapa,
que decorre de um memorial descritivo, é a necessidade do Estado para demonstrar o
cumprimento da política pública que desenhou para si, frequentemente demandadas pelos
grupos em busca de reconhecimento dos seus territórios, assumindo o Estado a
responsabilidade pela regularização fundiária. Uma vez que a delimitação de um território
é dada ao público pelo Estado, outras políticas poderão lidar com aquele espaço
diferenciado e planejar suas demandas e metas. Deve ser sempre lembrado que o Estado
reconhece não apenas os limites, mas o conteúdo.

Os territórios são para o Estado espaços que indicam onde se deve dar a sua
intervenção e como esta será diferenciada nas políticas públicas em proveito da isonomia,
do desenvolvimento nacional, da redução das desigualdades regionais, da equidade
social, do reconhecimento da diversidade étnica e da manutenção do ambiente saudável,
que são objetivos e obrigações do Estado e que qualificam diferentemente os territórios
para distribuir os tipos de intervenções.

Portanto, “território”, sozinho, nos dá uma ideia dos limites de algo, o seu
conteúdo vem por descrições ou em binômios. As terras indígenas, os territórios
quilombolas, outros territórios de outras comunidades tradicionais, as áreas protegidas e,
dentre elas, as unidades de conservação são os territórios nesta tese. Escolhi o enfoque
dos territórios principalmente na vertente do Estado, no reconhecimento dos territórios
tradicionais pré-existentes à ação do Estado e na criação de áreas protegidas, para
evidenciar algumas das implicações das sobreposições entre territórios.

As terras indígenas e os territórios quilombolas têm previsão legal, na


Constituição Federal com estes nomes, territórios de outras comunidades tradicionais não
o têm, embora sejam enxergadas nos artigos acerca da cultura (artigos 215 e 216 da
Constituição Federal―CF), do meio ambiente (artigo 225 da CF), nos direitos sociais
(artigo 6º da CF) de que decorrem leis e norma infralegais para elas. O reconhecimento,
não apenas dos territórios, como das próprias identidades, por parte do Estado, é
55

decorrência das lutas históricas dos próprios grupos étnicos sociais; Estado não
presenteia. As lutas continuam pelo reconhecimento de comunidades e povos e de seus
territórios que ainda não acessaram o direito disponibilizado. Nos últimos dez anos, pelo
menos, as lutas e mobilizações se têm concentrado, ainda, na manutenção desses direitos,
tanto em face dos grupos econômicos privados interessados na disponibilidade de terras
quanto em face da demora do Estado em reconhecer tais territórios tradicionais.

Os dispositivos constitucionais criaram um canal de comunicação, de junção,


entre o direito disponibilizado e os sujeitos de direito, em que o nome dos sujeitos
carregam junto o seu direito. Os nomes são “povos indígenas” e “remanescentes das
comunidades dos quilombos” na Constituição Federal, respectivamente no artigo nº 231
e no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ― ADCT nº 68. Os dois grupos
diferentes são nominados pelo Estado e deverão manifestar sua autoidentificação por
meio desses nomes para acessarem os seus direitos. Há, nisso, um mecanismo único de
junção do nome-direito correlato, que é o processo de nominação. Este processo foi assim
definido e descrito pelo historiador e antropólogo José Maurício Arruti, a partir das suas
experiências concretas na identificação e delimitação de territórios quilombolas, em
Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola (ARRUTI,
2006). Segundo o autor, o processo de nominação relacionado aos remanescentes das
comunidades de quilombos é observável nos anos que se seguem a 1988 ― quando
aquelas comunidades são nominadas pela Constituição Federal promulgada naquele ano
―, junto aos sujeitos concretos e às instituições, pois se trata de um processo mais recente
que o processo de nominação dos Povos Indígenas — estes portadores de uma “identidade
garantida”, firmada pelo Estado, no sentido que aponta Arruti (ARRUTI, 2006, p. 52). À
operação do mecanismo de nominação, José Maurício Arruti indica quatro processos, ou
quatro dimensões do processo mais amplo que passa pela “revalorização da memória”
dos sujeitos (ARRUTI, 2016, p. 225): nominação, identificação, reconhecimento e
territorialização. Como processo amplo, o conjunto das quatro dimensões imbricadas, de
acordo com Arruti, possibilita “interpretar aquilo que era chamado de etnogênese em
termos de um processo de formação” (ibidem). Esse processo de formação se refere à
formação de um grupo étnico (ARRUTI, 2016, p. 250) – e não simples “criação” ou
“geração”, mas uma tomada de consciência — em que os contornos das histórias, da
memória e da identidade são transformados em valor:
56

(...) transformando-se em um lugar social digno, em uma referência


histórica para a região, de forma que o próprio grupo ganha importância
política local, gerando um orgulho sobre si que seus ancestrais não
puderam experimentar. (ARRUTI, 2016, p. 250)

Uma expressão do processo de formação, nos termos de revalorização e


motivo de orgulho, é justamente a valorização da memória, como indica Arruti, em lugar
do que o autor chamou de “ethos do silêncio” (ARRUTI, 2016, p. 225).

Dentre os chamados “povos e comunidades tradicionais”, pelo Decreto nº


6.040, de 7 de fevereiro de 2007, estão os remanescentes das comunidades dos quilombos,
os povos indígenas, as comunidades de geraizeiros, de faxinalenses, de caiçaras, de
pomeranos e outros segmentos com percursos históricos, identidades e modos próprios
de viverem e de estarem em dado território. O Decreto nº 6.040/2007 instituiu a Política
Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais que dá
visibilidade às comunidades tradicionais e as aponta como público beneficiários de
diversas políticas públicas que têm nessa norma o seu embasamento. Há de ser
perguntado, sempre, porque não se erigiu, até o momento, uma legislação de
reconhecimento territorial para as comunidades tradicionais tal como existe para os povos
indígenas e para os remanescentes das comunidades dos quilombos. O Ministério Público
Federal ― MPF atua, por meio da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério
Público Federal (populações indígenas e comunidades tradicionais) na permanência, em
seus territórios, daquelas comunidades tradicionais que não possuem dispositivos
constitucionais como os indígenas e os quilombolas. Com o seu Regimento Interno
disposto na Resolução nº 136, de 10 de dezembro de 2012, a 6ª Câmara do MPF define
sua atuação:

A sexta Câmara de Coordenação e Revisão é o órgão do Ministério


Público Federal encarregado da coordenação, integração de revisão do
exercício funcional no que se refere à atuação judicial ou extrajudicial,
na matéria Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais. (art. 2º,
Res/MPF n° 136/2012) (sublinhei)

Há uma sutileza no trecho sublinhado acima em destacar os povos indígenas


das demais comunidades tradicionais em uma outra grade de classificação. Os povos
indígenas são os únicos que têm direitos originários e, também, são considerados
tradicionais; “comunidades tradicionais” inclui os remanescentes das comunidades dos
57

quilombos. Interessante observar que o texto de documentos públicos performa


entendimentos antes mesmo do que estão para dispor como norma ou informar. No caso,
povos indígenas de fato são diferenciados, pois são autóctones e há os direitos originários
e as terras indígenas que o Estado regulariza são terras da União e, também, os indígenas
demonstram preferência em ser referidos como “povos” e não como “comunidades”. No
entanto, os remanescentes das comunidades dos quilombos não estão em destaque no
trecho referido, mesmo estando os quilombolas tanto o quanto os indígenas, destacados
na Constituição Federal, o que não acontece, como já mencionado, com os outros
segmentos das comunidades tradicionais (geraizeiros, quebradeiras de coco, etc.).
Distinções, se forem gradativas ou se tiverem nisso uma intenção, não são interessantes
para a abordagem de grupos étnicos que pleiteiam direitos. O que me parece é que o
destaque aos povos indígenas talvez se deva tanto à disposição dos próprios indígenas
como querem ser referidos quanto à abordagem técnica e jurídica por conta dos direitos
originários; ou, ainda, no tratamento entre instituições governamentais porque terras
indígenas são terras da união.

No assunto sobreposição entre territórios tradicionais, terras indígenas,


territórios quilombolas e unidades de conservação, nos documentos que manuseei
enquanto estive lidando com o tema no serviço público federal 34 eram recorrentemente
frequentes as descrições das situações indicando, por exemplo, uma terra indígena “x”
“sobreposta à” unidade de conservação “y” ou a sobreposição de território quilombola
“k” “com a” unidade de conservação “z”, quando se poderia usar o conectivo “entre”, ou
o critério de anterioridade dos povos e comunidades, vivendo ali antes da criação da
unidade de conservação como se passa na maior parte dos casos. A forma de descrever o
caso já trazia a ideia de um território tradicional “incrustrado” em uma unidade de
conservação, mesmo que as comunidades a precedessem no tempo.

Temos que os territórios tradicionais são assunto que o Estado cuida e o faz a
partir de políticas conflitantes entre si.

34
Trabalhando no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária ― Incra/Sede em
acompanhamento técnico da Procuradoria Federal Especializada ― PFE/Incra nos casos discutidos na
Câmara de Conciliação e Arbitragem Federal ― CCAF entre 2008 e 2010.
58

1.3. Imagens do Estado

Um poderoso conjunto de métodos, diz Timothy Mitchell, é o Estado.


Métodos que ordenam e representam a realidade social produzidos a partir de estratégias
discursivas (MITCHELL, 2015, p. 13). O Estado, para o autor, se apresenta como o efeito
das práticas, das técnicas burocráticas, de representação e de regulação, estas são a
substância material do Estado (MITCHELL, 2015, p. 145). O Estado é um aparato ―
aparece apartado da sociedade como efeito de ilusão ― baseado em um sistema abstrato
de leis que fazem parecer existir uma estrutura. No entanto, a linha divisória entre
sociedade e Estado não está entre atores (MITCHELL, 2015, p. 160), essa linha é interna
aos mecanismos institucionais por meio dos quais, diz Mitchell, se mantêm alguma ordem
social, não havendo efetivamente uma exterioridade. O “efeito de Estado”, um todo
imaterial, uma entidade, existe resguardado de uma exterioridade que é o mundo material
da sociedade (MITCHELL, 2015, pp. 163, 175, 178 e 183). A noção “efeito de Estado”
com registro ilusório é elaborada por Mitchell a partir do que define Philip Abrams (2015)
como Estado-ideia, uma ideia projetada, divulgada e adotada por sociedades diferentes
em momentos distintos em que o Estado possui uma identidade simbólica separada da
prática política.

Abrams faz observações aos estudos em sociologia política para atravessá-las


e propor o Estado como poder ideológico, como uma ideia e não como um conceito ou
coisa (ABRAMS, et al., 2015, p. 58). Nesse percurso, Abrams se reporta aos estudos que,
sob diversas formas, recobram: (a) ou as funções e estrutura do Estado, esta encontrada
dentre os temas da sociologia política; (b) ou a separação entre Estado e sociedade, na
vertente marxista. Nesse movimento dos estudos em sociologia política, entre um
referencial teórico-metodológico e outro, apontados por Abrams, os estudiosos do Estado
por vezes deslocam o foco do Estado para os seus próprios temas, deixando ao largo a
dominação do Estado e, assim, reificando o Estado como estrutura; além de alguns
estudiosos apresentarem, segundo Abrams, alguma condescendência para com o Estado
ou para com a dominação; ou repousam suas análises no ingresso de populações antes
inativas na cena política, tendo ao fundo o referencial da separação entre Estado e
sociedade (ABRAMS, [1977] 1988, pp. 85-87); ou, ainda, trocam Estado por “centro”,
“núcleos” de poder, igualmente preservando a ideia de função do Estado tanto o quanto
59

os estudos que se ocupam da execução de objetivos do Estado e da aplicação de suas


regras.

Dentre os problemas que se apresentam ao estudo do Estado por parte


sociologia política, segundo Abrams, está a predisposição daqueles que o estudam
(ABRAMS, [1977] 1988, p. 83); no caso, balizados por aquelas duas vertentes teóricas
(indicadas por “a” e “b”, atrás) ou com métodos que vão ao particular das relações de
subjugação dos empregados e que, ao ascenderem a níveis mais altos nas análises das
instituições, se deparam com as lacunas de informações retidas em “el mundo del secreto
oficial” (ABRAMS, [1977] 1988, p. 82). Tal segredo não seria algo ocultado, mas sim a
retenção e o manejo de informação por parte do Estado, segundo Abrams. Uma suposta
realidade oculta por trás do poder político é tema para o qual muitos estudiosos se
voltaram a desencobrir, de acordo com Abrams. (ABRAMS, [1977] 1988, p. 83).

Este é, em linhas gerais, o contrafundo de um Estado do poder ideológico que


Abrams delineia (ABRAMS, [1977] 1988, p. 98; ABRAMS, et al., 2015, p. 58), mesmo
sem se afastar muito de Marx, Engels ou Lênin, que apresentam o Estado, conforme
Abrams, com algo ilusório em si e, simultaneamente, na materialidade de um órgão
“sobreimpuesto” à sociedade (ABRAMS, [1977] 1988, pp. 88, 90 e 98).

Em Abrams, o Estado não é coisa, tampouco há para o Estado uma estrutura


fundamental oculta; o Estado não está por trás de uma máscara, mas é ele a máscara que
impede que se veja a prática política (ABRAMS, et al., 2015, p. 98). Primeiro, o Estado
começa como um constructo implícito dentro da prática política, é reificado como “coisa
pública” (res publica), se coisificando; o Estado adquire, então, uma identidade simbólica
que se vai “divorciando” da prática política como um recurso ilusório, dela se afasta e se
desvencilha; uma vez divorciado da prática e adquirida a identidade simbólica ― todos
têm uma ideia de Estado ― se torna o responsável ilusório da prática. A ilusão, explica
Abrams, é a de que se há conservadores e há radicais, exemplifica, cada qual acreditará
que as suas ações não se destinam ao outro, mas para o Estado. Essa é a “ilusão” de que
fala Abrams e é onde está contida a mensagem de dominação que afirma a realidade do
Estado e por meio da qual se legitima a institucionalização do poder político, de acordo
com o autor (ABRAMS, [1977] 1988, p. 98; ABRAMS, et al., 2015, p. 63).

Para explicar o Estado como uma estruturação dentro da prática política,


Abrams recorre ao Estado-Sistema e ao Estado-Ideia como objetos de análise e, da
maneira como o leio, como duas formas de poder. No Estado-Sistema estão a prática
60

política e a estrutura institucional localizadas no governo, na administração ― como algo


palpável ― e que pode ser examinado empiricamente de maneira bastante simples
(ABRAMS, et al., 2015, p. 63). O Estado-Ideia, como crença, ideia projetada e difundida,
é adotado em maior ou menor medida ou parcimônia por diferentes sociedades em
diferentes momentos; gerando variações, também, passíveis de serem estudadas. Estado-
Sistema e Estado-Ideia se relacionam com outras formas de poder, conforme indica o
autor.

O esquema de Abrams é sofisticado, separa o político do Estado por processos


e não por instituições, o Estado surge como uma reestruturação dentro da prática política
― que é a das relações de classes e outras (ABRAMS, et al., 2015, p. 62) ― e não como
um aparato. Como dito pelo o autor: o Estado, portanto, é uma entidade, um agente e uma
função ou relação “em cima” do Estado-Ideia e do Estado-Sistema (ABRAMS, [1977]
1988, p. 83; ABRAMS, et al., 2015, p. 63).

Ambos os autores lidam com a ideia de Estado e sociedade. Nos casos de


relação do Estado com a sociedade, nesta tese, veremos as instituições públicas, por meio
dos agentes públicos, em contato com as comunidades. São pessoas que se relacionam
“lá na ponta”.

Uma imagem que me interessa sobremaneira para buscar entender como o


Estado se mantém em meio a políticas públicas contraditórias ― como o são a da
conservação da biodiversidade em que por uma via as populações tradicionais mantêm e
incrementam a biodiversidade, pela via da conservação da natureza, a presença de
comunidades em unidades de conservação seria incompatível ― é fornecida por Abrams,
conforme mencionei atrás e repito aqui: segundo o autor, nas queixas, os desajustes e as
práticas entre lados incongruentes na sociedade são endereçadas ao Estado; cada um dos
lados acredita estar atingindo o Estado e não um ao outro lado. Nessa “ilusão”, de acordo
com Abrams, está a dominação do Estado (ABRAMS, [1977] 1988, p. 98; ABRAMS, et
al., 2015, p. 63).

Outra imagem interessante, e sugestiva, é a da “internalização” da linha


divisória entre o Estado e a sociedade de que fala Mitchell (MITCHELL, 2015). Identifico
essa linha divisória nos procedimentos administrativos das relações com as comunidades,
as numerosas reuniões que o Estado organiza, por sua demanda ou em atendimento às
comunidades, são ocasiões em que trocam experiências e podem estabelecer em conjunto,
nessas ocasiões, estratégias em lidar com algum assunto ou limitação que o Estado lhes
61

coloca. São ocasiões quando o Estado acaba por instituir uma linguagem para se
relacionar com as comunidades e procura institucionalizá-las tendo como meios as
infinidades de reuniões; ao mesmo tempo, nisso, as comunidades vêm o Estado em seu
funcionamento, na sua casa de máquinas, e podem caminhar também por aquela linha
divisória, que separa Estado e sociedade, indicada por Mitchell e que, segundo ele, o
Estado, internaliza (MITCHELL, 2015, p. 160). Dessa forma, a sugestão é a de que a
linha divisória de Mitchell seja vista tanto como uma forma de controle de parte do Estado
quanto uma via de mão dupla pela qual a sociedade possa penetrar no Estado: a linha
internalizada representa tanto um Estado que toma tudo em seu corpo e nada lhe escapa
quase na forma de um Leviatã em Thomas Hobbes, quanto indica a senda para se chegar
ao seu centro e que pode ser usada pela sociedade, no caso, pelas comunidades.

Essas são duas imagens das relações das comunidades com o Estado que
podem nos acompanhar nesta tese. Para ler Abrams e Mitchell, é necessário ter em conta
que as forças sociais a que eles se referem na sociedade e o Estado apartado desta, na
mais da vez, é a classe trabalhadora. Esta seria uma limitação na aplicação direta desses
dois autores, pois as comunidades tradicionais e os povos indígenas ― também
trabalhadores, agricultores e as terras indígenas em diversas localidades são o celeiro
local, mas os termos não são os meios de produção, sua resistência é outra ― reivindicam
o direito ao território como condição de existência.

1.4. Algumas noções na bagagem

É necessário tecer algumas breves considerações acerca de conflito


relacionado aos territórios. Para abordar como o Estado constitui seus territórios e como
trata as comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas levaremos em conta,
também, como o Estado “internaliza” a participação das comunidades sempre criativas
em apresentarem alternativas ou percalços aos modelos de participação que a
administração pública disponibiliza para as suas manifestações e participação, quer em
reuniões, quer em documentos previstos, ou não, em normas e em consultas.

No Brasil, grande volume de demandas ao Estado e, também, de cobranças


de passivos diversos por sua inércia em levar ao cabo os processos de regularização
fundiária, partem das comunidades tradicionais, povos indígenas e povos quilombolas.
Um lugar não assentado para as comunidades tradicionais, povos indígenas e
62

quilombolas, enquanto tais, no modo de produção capitalista pode ser uma chave para
entender a constante e crônica reticência do Estado em providenciar-lhes o direito ao
território. Tendo o Estado retendo a regularização fundiária de territórios tradicionais a
meio caminho antes de deixarem de ser uma mercadoria em seu valor de troca com o
Estado se demorando para transpor os territórios de vez para o seu valor de uso, em
proveito das comunidades e dos povos tradicionais.

Outro descompasso na atuação do Estado está nos processos de licenciamento


ambiental de empreendimentos ― tais como barragens, ferrovias, rodovias e outros ―
quando povos e comunidades tradicionais estão envolvidos na área de impactos dos
empreendimentos e seus territórios estão em processo de regularização fundiária ou
reivindicados. Nesses casos, há o tempo entre os processos de licenciamento ambiental e
de regularização fundiária e há, sempre enfatizada, as pautas distintas em torno dos
territórios. Com relação aos povos indígenas, uma diretoria da Fundação Nacional do
Índio ― Funai cuidará da pauta do licenciamento ambiental e outra diretoria, da pauta da
regularização fundiária. Com relação aos remanescentes das comunidades dos quilombos
se dá o mesmo na Fundação Cultural Palmares ― FCP, responsável tanto pela
regularização fundiária (no início do processo apenas, pois a responsabilidade é do Incra)
quanto pela interveniência nos processos de licenciamento ambiental. Cada uma das
autarquias já se apresenta às comunidades em pautas separadas, exigindo das
comunidades uma dupla e separada atuação quanto aos trâmites de regularização
fundiária e aos de licenciamento ambiental, quando poderiam tratar em conjunto ou por
determinação de que a regularização fundiária de determinado grupo afetado por
empreendimento teria seu processo de regularização fundiária acelerado para resguardo
do território e sendo considerado que os empreendimentos não são para as necessidades
das comunidades ou voltados para elas.

Os empreendimentos, em especial aqueles de infraestrutura, têm como


empreendedores empresas públicas e autarquias, ou seja, o próprio Estado é o
empreendedor. Do ponto de vista das comunidade, anotado aqui a partir das reuniões de
consulta e dos estudos de impactos causados por empreendimentos que efetuei, há o
questionamento de que se tudo é Estado (órgão fundiário, órgão licenciador, órgão
interveniente e empreendedor), por qual razão já não estaria resolvido o reconhecimento
do território com o empreendedor e a alternativa locacional do seu empreendimento para,
depois, serem identificados e avaliados os impactos. Ocorre que serão pautas tocadas em
63

paralelo pelo Estado e a morosidade quanto à pauta da regularização fundiária abre espaço
para a consolidação de outros usos e da ocupação, que são diferentes dos usos dos povos
e comunidades em questão e que se dão, por causa dos empreendimentos, em porções dos
seus territórios ou próximos a estes. Para as comunidades, portanto, a discursividade da
diversidade social, cultural e étnica proferida pelo Estado não logra ações efetivas em
prazos hábeis e, em alguns casos, em prazo algum.

Os conflitos advindos dessa atuação descompassada do Estado são diversos e


a situação de sobreposição os evidencia. Percebo o lugar do conflito como um campo de
atuação do Estado para que faça algo ― reuniões, termos de ajustes de conduta, revisões
de suas decisões ― sem efetivamente erradicar as razões do conflito. Dou um exemplo:
o Estado se atribui a tarefa da regularização fundiária dos territórios tradicionais e não as
conclui, nisso abre um espaço para conflitos e para gestores de conflitos, o que se torna
um lugar de atuação do Estado e ele viverá ali ― gerindo o conflito, ocupando agentes
públicos ou contratando profissionais para isso ― sem que ele próprio se abale muito. O
Estado, nas questões fundiárias, tem a função e a capacidade ― e a obrigação ― de dizer
o que é de quem; enquanto não faz isso, há o conflito. Refiro-me a reportagens dos setores
privados ligados à agropecuária que, local e regionalmente, indicam o Estado
promovendo o conflito no campo ao regularizar terras indígenas e territórios quilombolas
quando, de fato, o conflito está enquanto o Estado não procede à regularização fundiária
e não aponta qual o direito que são das comunidades, dos posseiros e dos proprietários.
A reticência do Estado em suas ações para o reconhecimento dos direitos é geradora de
conflitos.

A conservação da biodiversidade, no âmbito internacional da Convenção


sobre a Diversidade Biológica―CDB e na sua regulamentação no Brasil tem nas
comunidades e nos povos tradicionais, nos povos indígenas, os promotores da
conservação, da manutenção e do incremento da biodiversidade; também, a criação e
implementação de áreas protegidas ou de unidades de conservação são promotoras da
conservação da biodiversidade. São duas políticas públicas ― o reconhecimento dos
territórios e a criação de unidade de conservação ― que entram em conflito nas situações
de sobreposição; dois territórios ― o da natureza e o das comunidades tradicionais que
são tratados, na prática, como incompatíveis. A dupla afetação entre territórios
tradicionais e áreas protegidas é questionável, pois, como se verá nesta tese, há a
subjugação das comunidades a uma visão de natureza apartada de seres humanos.
64

As sobreposições se dão entre certos tipos de territórios, e por isso, tenho que
ter “território” em alguma conta para prosseguir. Até aqui, tenho que território é
necessariamente delimitado. E isso é feito de diversas formas tanto pelas comunidades
quanto pelo Estado.

1.5. Territórios tradicionais, territórios institucionais

A palavra “território” implica delimitação. Delimitar, diz Raffestin, é “isolar


ou subtrair momentaneamente ou, ainda, manifestar um poder numa área precisa”
(RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 153). Raffestin apresenta a noção de limite resvalada em
uma natureza que os humanos carregam nas noções de propriedade, classe e pátria; sendo
a fronteira uma interface biossocial, segundo o autor, que, dada historicamente, pode ser
modificada ou ultrapassada e que, no entanto, as noções de limite e de fronteiras variaram
ao longo do tempo sem terem desaparecido (RAFFESTIN, [1980] 1993, pp. 164-165).
Em que a historicidade é providencial porque, se subtraída das noções de limite e de
fronteira, seria no intuito de naturalizá-las (RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 166). Um limite
traduziria um consenso coletivo, se bem leio Raffestin, cuja definição ― coisas com que
são marcados os limites ― pode variar, Raffestin diz que um limite pode ser marcado por
sinais, o limite pode ser utilizado para “manifestar modos de produção [...] para torná-los
espetaculares”. Das revoluções russa e francesa, diz Raffestin, resultaram reviravoltas
nos limites. No sistema sêmico do Estado Moderno, a fronteira se tornou um sinal em que
“fronteira” seria igual a “limite sagrado”, aderido ao controle territorial absoluto; porém,
contando com fronteiras mal delimitadas em uma “fronteira zonal” em que as
coletividades medievais, segundo Raffestin, nelas mais buscavam abrigo, o que a linha
demarcatória e precisa não oferecia.

O mapa aparece como o instrumento ideal para “definir, delimitar e demarcar


a fronteira” (RAFFESTIN, [1980] 1993, pp. 166-167). Vai se passando de uma etapa à
outra com acréscimo de informações de uma vaga representação de território a outra que
o inscreve; na etapa da demarcação, que é quando, e somente quando, a linha fronteiriça
“é de fato estabelecida”. Raffestin acrescenta, ainda, que mesmo a demarcação é uma
representação e significa que a linha definida não está mais sujeita a contestações pelos
Estados em disputas (RAFFESTIN, [1980] 1993). Um fascínio repleto de símbolos em
uma linha que pode ter o poder de separar ― ou não conciliar ― ideologias.
65

Com os limites demarcados, vêm a fiscalização e as outras formas de controle


para as quais foram criadas estruturas em uma matriz departamental, na França, para
cuidar de relações político-administrativas operantes à época e que permaneciam na
atualidade do autor, quando o Estado estava mais ocupado, segundo Raffestin, com
relações socioeconômicas e não propriamente político administrativas como há duzentos
anos atrás. As estruturas departamentais, na França, para as funções de controle do
território, portanto, surgiram em outro modo de produção que não mais existe, conclui
Raffestin (RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 175).

Várias malhas, ou níveis de malhas podem ser tecidos e projetados em um


território, ou observados a partir da análise dos mesmos; portanto, tal “tessitura territorial”
poderá comportar “vários níveis que são determinados pelas funções que devem se
realizar em cada uma dessas malhas”. (RAFFESTIN, [1980] 1993, pp. 150, 152 e 153).
Essa ideia de função de porções/níveis territoriais está presente no dispositivo
constitucional que regulamenta a obrigação do Estado em reconhecer e demarcar os
territórios quilombolas e as terras indígenas, como segue:

São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos


quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social,
econômica e cultural. (§ 2º, art. 2º do decreto nº 4.887/2003)

São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas


em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu
bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo
seus usos, costumes e tradições. (§ 1º, art. 231 da Constituição)

Tais porções/níveis devem ser vistas como layers, acamamentos qualitativos


que não se justapõem na Terra Indígena, ao contrário, são lidos a partir dela. A diferença
entre a justaposição dos quatro requisitos legais em cada uma das normas e, portanto,
quatro níveis prescritos para a análise de uma realidade sob a forma de funções, resulta
que os mesmos espaços físicos não congregam simultaneamente as quatro funções, ou os
quatro níveis. Como resultado da tradução da realidade para os requisitos legais, temos
o arranjo daqueles níveis-funções-requisitos, como quatro layers, “abertos” na imagem
do território, como segue na “Figura 1” para dar conta da “tradução” da realidade
66

observável a partir das normas e para responder às normas em um processo de


identificação de delimitação de territórios tradicionais.

Temos na figura a seguir: (A) se fossem justapostas as quatro funções (das


Terras Indígenas previstas no Artigo nº 231 da Constituição e as funções previstas no
Decreto nº 4.887/2003, acerca dos Territórios Quilombolas), a justaposição não faria
sentido tanto pelo conflito de funções quanto pelo observável na realidade: não se
desempenham funções distintas nos mesmos lugares; (B) exemplo de observação da
realidade dos arranjos sociais e características dos atributos ambientais para a tradução
da territorialidade indígena ou quilombola para as normas respectivas.

Figura 1 ― Funções de reprodução física, cultural, econômica e


social observáveis em campo e projetadas na delimitação de
territórios tradicionais

Temos que um território tradicional decorre dos seus elementos internos, ao


passo que em Claude Raffestin o território é, proeminentemente, uma área dada sobre a
qual se planeja ações e que pode ser lido a partir dessas ações. Porém, é possível entender
como um planejamento anterior, ainda, por parte do Estado, se levarmos em conta que as
indicações normativas para se identificar um território tradicional já são talhadas
tecnicamente para comportá-lo. Tais normas informam os roteiros dos relatórios de
identificação e delimitação, como abordam Lima e Barreto Filho (BARRETO FILHO,
2005; LIMA, 2005) ao se referirem às indicações dessas porções territoriais, cujas pré-
indicações decorrem da Portaria nº 14, de 9 de janeiro de1996/Funai. Podemos estender
esses mesmos comentários às instruções normativas do Incra, como o roteiro para a
67

elaboração dos relatórios de identificação e delimitação dos territórios quilombolas.


Tenho a posição de que os termos e as categorias das próprias comunidades não são
conhecidos de todo quanto à sua própria percepção do território e embora nos esforcemos
― para aquele que já teve experiências em identificações e delimitações ― em incluir ao
máximo tais percepções nos trabalhos de identificação. Há, por vezes, o
(pré)conhecimento de parte da comunidade das formas dos estudos e dos seus termos e
tramitação e mesmo que seja uma ideia superficial, esta já “atalha” o que poderia ser um
aprofundamento e uma ampliação das próprias categorias das comunidades.

Pode-se notar uma forma de poder do Estado em controlar resultados, não se


trata aqui do sistema territorial de Raffestin permeado pelo poder, que é, como leio
Raffestin, a forma de o Estado chegar até o indivíduo, a grupos de indivíduos de se
produzir territórios, e se quisermos, é de se relacionar com a sociedade e outros recortes,
segundo Raffestin, que não são apenas econômicos, sociais, políticos e culturais
(RAFFESTIN, [1980] 1993, p. 152). Tais recortes, ou aspectos, estão dentre as
institucionalizações de práticas de que fala Foucault (FOUCAULT, 2012, pp. 14-18) que
dão suporte ao discurso. A forma de poder no enfoque pré-estabelecido nas normas está
no silenciamento da novidade de outros critérios, outros termos dentro de uma área
discursiva. Como em Foucault, o discurso que se firma em uma “verdade” aceitável à
custa de exclusões de outros tipos de discursos para, por fim, se constituir como um
discurso que é o próprio poder (ibidem).

Para a identificação e o reconhecimento dos territórios tradicionais, é esse o


apanágio. As próprias instituições das comunidades ou o nome que fosse a engendrar a
cognição dos territórios por aquelas mesmas comunidades não são exatamente os critérios
das normas e o nosso instrumental se esforça para enxergá-los e traduzi-los de outros
sistemas culturais e intelectuais, que são os das comunidades com as quais nos
relacionamos quando identificamos o seu território para efeitos de reconhecimento pelo
Estado. O que se tem são, portanto, (a) territórios tradicionais ― indígenas, quilombolas
e de outras comunidades ou grupos étnico-sociais ― com um universo mais amplo no
registro das próprias comunidades, e os (b) territórios institucionais, delimitados
administrativamente, que são uma parte daqueles tradicionais. Dos dois “mapas”, um
tradicional e outro institucional, nos esforçamos para conhecer e alcançar o mapa
tradicional. Dito de outra forma, todo território identificado, delimitado e demarcado
68

administrativamente será, sempre, menos extenso que um território tradicional que fosse
delimitado na justa cognição da comunidade que nele viveu ou vive e que o produz.

Um território tradicional é localizado no espaço e traz consigo vários tempos.


Há um rastro de memória e nas regiões circunvizinhas impresso na paisagem, nos
topônimos e nos caminhos, ao menos. O entorno dos territórios tradicionais é importante
pelo resguardo da paisagem do ponto de vista da comunidade e de áreas de usos que não
estão, em muitos casos, restritas ao território institucional identificado, porque são
identificados os locais de usos existentes e passados e não aqueles possíveis futuros ou
mesmo os cíclicos em lagos períodos. Nisso reside a fixidez de um território institucional
e a fixação de uma comunidade tradicional.

Figura 2 ― Território vetorial e território pontual

Territórios vetorial
e pontual

território vetorial, com


ênfase nos caminhos
território tradicional
elaboração:
Leslye B. Ursini, 2019 (pontual)
território institucional
(pontual)

Os vetores podem ser os caminhos que dão acesso ao território ou que dele se
parte para localidades específicas de interesse da comunidade, marcando a sua mobilidade
interna, externa e cíclica em períodos longos. Também, a memória espacializada pode ser
entendida como um vetor. A direção de onde se vinha das casas e aldeias de parentes; as
69

quais não existem mais; uma antiga trilha de caça de um antepassado mais ou menos
conhecida a sua localização; a visão de um campo aberto onde se iam coletar e andar; o
alto de uma serra que sempre lembra lugar onde não se pode ir porque guardado por outros
seres; ou a direção de lugares bons para serem procurados e encontrados, pela primeira
vez, materiais para rituais antigos ou para remédios a serem testados.

No entorno dos territórios institucionais estarão, provavelmente, a


territorialidade segundo os critérios próprios das comunidades os quais as normas, na sua
tradução, não alcançam ao ponto de tê-los no rol dos roteiros normativos de identificação
e delimitação até o momento.

Nessa configuração de um território tradicional em território institucional a


visão de um território vetorial se vai perdendo, tendendo a ser pontual, porque mais
conciso, visualizável, fixo e palpável ao Estado segundo os seus próprios critérios.
70

2. Paraty

Localizar Paraty no tempo e no espaço é, também, falar de algumas das


imagens de territórios que nela foram produzidas. Com este objetivo, o presente capítulo
reconta, por meio de fragmentos episódicos, histórias sobre Paraty a partir da distribuição
de sesmarias e posterior ocupação sistemática por imigrantes europeus sobre territórios
da população autóctone indígena, onde os caminhos e a mobilidade eram elementos de
tessitura. Território pontuais e territórios vetoriais são desenhados e dão lugar a outras
tramas. Há controvérsias quanto à capitania à qual Paraty pertencia e, antes, a
manipulação de mapas dividindo as américas portuguesa e espanhola e Paraty, a depender
do mapa, poderia estar em uma ou em outra. A questão não é a real ou a original
localização de Paraty, mas como essas situações ― ambas criadas pela administração
pública e pelo poder político à época ― foram reapropriadas pela própria administração
pública com relativo sucesso. Em analogia a outros fenômenos percebidos e analisados
nesta tese, como o novo Plano de Manejo da APA de Cairuçu, em Paraty, foi necessário
dar um nome a tal prática e usei o descritivo oportunidade, sendo um fenômeno
observável, uma ação praticada pela administração pública em que atuam os agentes
públicos na percepção aguçada de dada situação e que, com uma ação, movem
sinergicamente outras tantas ou algumas pautas e demandas inconclusas ou problemáticas
do Estado em proveito àquelas pautas e demandas. Trata-se de uma ação que,
empreendida para resolver tantas outras e essa relação “entre” ações e a sinergia entre
elas diferencia oportunidade da “fortuna” em Maquiavel.

2.1. Lugares de antes

1630: contanto que se construísse uma capela dedicada à Nossa Senhora dos
Remédios, dona Maria Jácome de Mello recebe uma sesmaria que requisitara à Condessa
de Vimieiro, donatária. A sesmaria alcançava em uma légua de fundo a Aldeia de Cima35,
a frente da sesmaria acompanhava o litoral, de um lado e de outro estava encaixada entre
os rios Paratii Guaçu e Paratiitiba. O povoado do Morro do Forte segue para o entorno da
capela então construída, onde hoje é o Bairro Histórico de Paraty e o morro fica com o

35
Segundo Marco Caetano Ribas esta é uma nítida referência aos indígenas “Goianás” ou “Goiamins”
(RIBAS, 2003, p. 23).
71

nome de Vila Velha. Uma sesmaria dentre seis na região dispostas entre o que seria mais
tarde a Vila de Paraty e o rio Mambucaba ao norte de Paraty. É controverso de qual
capitania hereditária foi destacada a sesmaria que esteve na origem da Vila de Paraty, se
a Capitania de São Vicente ou a Capitania de Itanhaém.

Figura 3 ― Detalhe do Mapa de Concessão de Sesmarias entre


Mambucaba e Paraty (data estimada: por volta de 1630), Província
do Rio de Janeiro (croqui de L.B. Ursini sobre mapa); foi transcrito
ipsis litteris, em vermelho, o que está escrito no interior de cada
sesmaria.

A sesmaria de Maria Jácome de Mello tem origem na história da Capitania


de São Vicente, a qual a donatária Condessa de Vimieiro, título de Mariana de Souza
Guerra, havia recebido por herança. Dividida em dois lotes, a Capitania de São Vicente
doada a Martim Afonso de Souza tinha a Capitania de Santo Amaro ao meio (vide “Figura
4”). Pero Lopes de Souza ― pai de Mariana de Souza Guerra e irmão de Martim Afonso
de Souza ― era donatário dessa Capitania de Santo Amaro, que atualmente estaria à altura
do Guarujá para o interior, até o traçado do Tratado de Tordesilhas. Pero Lopes de Souza
era, também, donatário de mais duas outras capitanias: Itamaracá, ao norte e na margem
72

do Rio São Francisco; e Santana, ao sul, esta se estendendo de Cananeia (SP) a Laguna
(SC), as quais não virão ao caso aqui. As controvérsias acerca dos limites ao sul da
Capitania de Santo Amaro se dão a partir da contestação da herança deixada à Mariana
Guerra apresentada pelo Conde de Monsanto36, outro neto de Martim Afonso de Souza,
pelo fato da hereditariedade da Capitania dever seguir a linha masculina, conforme se
enfatizam nas cartas de doações (UNB - UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, s.d.;
CINTRA, 2017; ELLIS, 1972).

Apesar dos domínios se estendendo sobre as vilas de São Vicente, de Santa


Ana de Mogi das Cruzes e de São Paulo, Mariana Guerra é expulsa após se terem dado
ganho de causa ao Conde de Monsanto, o qual contestou a legitimidade de mariana como
herdeira. Maria, a Condessa de Vimieiro, transfere o centro administrativo de seus
domínios da Vila de São Vicente, a “Cabeça da Capitania”, em 1624, para a Vila de
Itanhaém (CINTRA, 2017, p. 214) e funda, ela mesma, uma capitania para si: a Capitania
de Itanhaém, seis anos antes da doação, à Maria Jácome de Mello, da sesmaria que
originou Paraty. O litígio durou até 1679 (UNB - UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA,
s.d.). Mariana Guerra, por meio de procuradores seus, alargou a jurisdição da Capitania
de Itanhaém concedendo sesmarias em Taubaté, Guaratinguetá e Cabo Frio. A relação de
vilas indicadas no Atlas Digital da América Lusa (UNB - UNIVERSIDADE DE
BRASÍLIA, s.d.) para as respectivas capitanias pode ser vista na Tabela 1, na página 73,
com destaque para as sobreposições de jurisdição37. O que se passou foi que Mariana de
Souza Guerra criou uma capitania, a de Itanhaém, que não constava no mapa, mas que
existia em terra por meio da jurisdição exercida por Mariana, quem ignorou as jurisdições
de outras capitanias, como é o caso de Paraty, jurisdicionada pela Capitania de Itanhaém
e pela Capitania de São Vicente.

Mariana de Souza Guerra foi a quarta donatária da Capitania de São Vicente,


herdada de seu irmão Lopo de Souza, o qual, por sua vez, herdara do pai de ambos, Pero
Lopes de Souza, herdeiro do donatário originário, Martim Afonso de Souza. Álvaro Pires
de Castro e Souza, o Conde de Monsanto, é o donatário que sucedeu a Mariana Guerra,
tendo ele vencido a contenda da contestação da herança de Mariana a partir de 1624.

36
Na genealogia levantada por esta pesquisa, o Conde de Monsanto seria parente pela via Isabel Lopes de
Souza, meia irmã de Pero Lopes de Souza, este pai de Mariana da Souza Guerra, a Condessa de Vimieiro.
37
E possivelmente mais outras vilas que não foram especificadas no Atlas para a sequência das vilas da
Capitania de Itanhaém: “todas as vilas ao norte da Cidade de São Paulo, com exceção de Vila de Santa Ana
de Mogi das Cruzes” (UNB - UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, s.d.).
73

Tabela 1 – Sobreposições administrativas entre as capitanias de


Itanhaém, São Vicente e Santo Amaro (com base em mapa de
Cintra, 2014, p. 216)
CAPITANIA DE SANTO AMARO CAPITANIA DE ITANHAÉM CAPITANIA DE SÃO VICENTE
Jundiaí Paraty Paraty
Parnaíba Guaratinguetá Guaratinguetá
Jacareí Iguape (até Cananéia) Iguape
São Paulo Angra dos Santos Reis da Ilha Grande São Paulo
Sorocaba Sorocaba Guaratuba

Mogi das Cruzes Nossa Senhora da Conceição de Itanhaém Mogi das Cruzes

Ubatuba Pindamonhangaba
Caraguatatuba Santo Antônio dos Anjos da Laguna
São Sebastião Paranaguá São Sebastião
Taubaté São Vicente
Itu Itu
Curitiba
Santos
Parnaíba

Lembremo-nos de que a sesmaria de Maria Jácome de Mello, na origem da


fundação de Paraty, foi recebida de Mariana de Souza Guerra em 1630. Ou Mariana doou
o que não lhe pertencia, ou seguiu na certeza de continuar a exercer domínios sobre o que
herdara da Capitania de São Vicente. O processo ainda durou recalcitrante e, cento e
cinquenta anos mais tarde, em 1780, há as notícias da busca feita por documentos
comprobatórios da razão de Mariana. Foram descobertas duas certidões na Vila de São
Vicente: “hum incontestável direito” em favor de Mariana, é o que escreveu o governador
da Capitania de São Paulo, Martim Lopes Lobo de Saldanha (1775-1782), em carta
dirigida ao conde de Vimieiro, herdeiro de Mariana de Souza Guerra38.

Jorge Cintra reconstrói as divisões das Capitanias Hereditárias doadas — com


a legenda de “vilas e cidades em terras alheias” ― para apontar o que afirma ter sido um
erro: as Vilas de São Paulo, de Jundiaí e outras, historicamente tidas como pertencentes
à Capitania de São Vicente (lote sul), estavam localizadas, na verdade, na Capitania de
Santo Amaro, em má fé da parte dos antecessores de Mariana Guerra, em ampliarem os
seus próprios domínios (CINTRA, 2017, p. 212). Alerta Cintra que conflitos não haviam
pelas linhas, porque as noções de área e de fronteira não faziam sentido à época, e cada
qual dos donatários saberia quantas e quais vilas jurisdicionava, o donatário que tivesse a
“cabeça” da capitania teria as demais vilas (CINTRA, 2017, p. 220).

38 Biblioteca Nacional, Documento 141 ― I-30, 21, 97, nº 1 (I-16-30); documento original
digitalizado.
74

Figura 4 ― Capitanias de São Vicente (Condessa de Vimieiro) e


Santo Amaro (Conde de Monsanto) a partir do limite da divisão do
Tratado de Tordesilhas

A imagem que a atitude de Mariana nos traz é a de territorialidade exercida


sobre pontos, lugares, que são as vilas; e do poder que em grande parte se deve aos valores
diferentes dos pontos. A jurisdição de Mariana Guerra não abarcava todas as vilas, senão
aquelas com as quais mantinha relações de comunicabilidade estabelecida pela
organicidade administrativa. No detalhe do limite norte da Capitania de Santo Amaro,
fletido para um vértice no litoral, há a possibilidade de as vilas de São Paulo, Itu, Jundiaí
e outras terem percorrido suas histórias crendo-se pertencentes à Capitania de São
Vicente, como já mencionado (CINTRA, 2017, p. 212), pois estavam cravadas na
Capitania de Santo Amaro. Tem-se a imagem de uma sobreposição entre “territórios
permeáveis”, ao ser criada a Capitania de Itanhaém se sobrepondo a vilas ponteadas nas
capitanias de São Vicente e de Santo Amaro.
75

A localização do traçado do Tratado de Tordesilhas foi outro ponto de


controvérsias. Estabelecido em junho de 1494, o traçado foi ajustado nos anos seguintes
nos dissensos entre espanhóis e portugueses que levaram a acordos, a permutas de
territórios, a guerras e a conflitos tendo os indígenas como aliados dos exércitos europeus
e, em outras ocasiões, ambos os exércitos em marcha contra os indígenas. A finalidade
de remontar a um tempo tão distante, aqui, não é a de mostrar que as fronteiras nacionais
mudaram, a despeito de uma população autóctone, como fiz em outro lugar a partir do
tema de Tordesilhas39, senão a de evidenciar aspectos dos conhecimentos no século XVI
na cartografia, que envolvia técnicas de medidas de tempo e de distâncias utilizadas na
navegação e o uso desses conhecimentos ― inclusive do conhecimento das imprecisões
das técnicas e dos métodos ― para a obtenção de resultados políticos. Portugal era muito
conhecedor de técnicas de cartografia, necessárias à navegação; a Espanha não, e em seu
desfavor foram empregadas propositalmente as imprecisões nas medidas.

Contando 370 léguas em direção à América do Sul, a definição do traçado do


Tratado de Tordesilhas resultou de cálculos feitos a partir das Ilhas do Cabo Verde,
dividindo não apenas a América como o mundo entre Espanha e Portugal (CINTRA,
2017). Existiam algumas dificuldades para a precisão da linha: no Tratado de Tordesilhas
não estava especificada qual ilha do conjunto de ilhas do Cabo Verde serviria de
referência, se aquela mais afastada da Europa ou a mais próxima; qual o valor da légua,
com valores diferentemente estabelecidos por Portugal e pela Espanha; e a forma de se
medirem as léguas. As regras e as experiências empíricas eram necessárias para a
avaliação e o cotejamento das léguas expressas no mapa, como explica Cintra:

(...) o Regimento das léguas ─ documento em uso a partir do século XV


que indicava como calcular as léguas percorridas na prática da
navegação ─ fornecia, para 24 horas, com vento teso em popa, de 36 a

39
Tomei conhecimento da bibliografia que trata dessa controvérsia por ocasião da elaboração dos estudos
de impactos ambientais para a construção e instalação do Contorno Rodoviário de Florianópolis, por conta
do envolvimento de dez Terras Indígenas Mbya e Nhandeva e a falácia local, não apenas no Estado de
Santa Catarina, mas também, no Rio Grande do Sul, de que as terras indígenas Guarani serviriam de apoio
a indígenas vindos do Paraguai. O argumento, utilizado em campanhas contra povos indígenas, veiculada
na mídia e na fala de dirigentes tomando tom de conhecimento público e popular, era o de que haveria
indígenas no Brasil e outros fora; nessa linha de raciocínio, as terras no Brasil não se serviriam a
acomodarem situações “estrangeiras”, em absoluta desconsideração à mobilidade Guarani. O propósito,
naquela ocasião, era o de buscar informações sobre as fronteiras políticas que foram traçadas sobre outras
fronteiras e espacialidades, no caso as terras guarani e os seus caminhos e rotas entre idas e vindas e a
permanência na visitação de parentes; e encontrei no estudo de Cintra (2012) as várias possibilidades para
uma divisão política ― circunstancializada economicamente ― do mundo em dois hemisférios.
76

38 léguas; com vento, quando a nau governa pela bolina, 8 léguas. Como
a nau andava em ziguezague, era necessário efetuar as reduções através
de fórmulas dadas por esse Regimento. (CINTRA, 2012, p. 424):

Dessa maneira, o estabelecimento da linha divisória variava, como segue no


exercício que fez Cintra, com os cálculos refeitos por ele, (as linhas vermelhas). O autor
incluiu no mapa original nomes de cidades que não existiam à época, para fins de
orientação do leitor40 (CINTRA, 2012, p. 425).

Figura 5 ― Croqui elaborado por Leslye Ursini sobre mapa de Jorge


P. Cintra (2012)

A respeito das posições da linha do traçado de Tordesilhas, explica Cintra que


o cálculo de alguns cartógrafos e o resultado da posição da linha em seus mapas reflete
“um grande desconcerto”, pois o mapa de origem portuguesa, como a linha encontrada
por Cantino (1502), colocava o meridiano a 42˚ 30’ e esta posição era muitíssimo
desfavorável a Portugal. Mapas de origem e de interesse castelhano, como era o de Diogo

40
Observamos que as variações do traçado são obtidas de Cintra (2012); no entanto, ao longo dos
levantamentos encontramos outras variações mais ao Oriente ou ao Ocidente, de forma que as posições
trazidas são as variações resultantes das medidas em vários experimentos de cálculos e não os resultados
das diversas negociações diplomáticas e proposições para a definição do traçado.
77

Ribeiro (1529), português a serviço da Espanha, não favoreciam este país. Reuniu-se uma
junta de especialistas em Badajós e em Elvas (1524), em Portugal, a fim de dirimir
dúvidas e a longitude de 46˚ 30’ foi apontada, “mas não estavam muito seguros desse
resultado”. Depois de pouco tempo, os mapas portugueses colocaram a posição do traçado
na foz do rio Amazonas41 ao norte e, ao sul, no estuário do rio Prata, não havendo
contestação espanhola nesse sentido (CINTRA, 2012, p. 423). Os mapas portugueses, por
ordem expressa de D. Manuel, deveriam ser todos deformados a partir de 1519 para “dar
a entender” que a bacia do rio Prata estaria englobada na porção portuguesa e não na
porção espanhola do globo (CINTRA, 2012, p. 426).

As negociações das porções de terras na América do Sul estavam inseridas


em um quadro mais amplo de negociações diplomáticas, envolvendo outros países
(Inglaterra, França, Alemanha, Holanda) em que as permutas se davam entre as potências
à época, em negociações políticas que iam além das ocupações e pretensões na América
do Sul com o meridiano. Isso porque havia o antimeridiano que se moveria lá conforme
fosse movido o meridiano aqui na partição de terras pela linha de Tordesilhas. Portugal
havia comprado direitos nas ilhas Molucas42, fonte de noz-moscada e de cravo. Por isso,
explica Cintra, por vezes seria mais interessante, portanto, a Portugal a linha de
Tordesilhas mais próxima ao Oceano Atlântico que ao Pacífico por causa do
antimeridiano no outro lado do globo (CINTRA, 2012: 424-425).

As discussões acerca da linha divisória do Tratado de Tordesilhas eram


concomitantes à ocupação de fato do território, o que trazia conflitos em meio à
indefinição das porções respectivas de Portugal e Espanha aliado aos esforços de Portugal
em ampliar mais e mais suas incursões e, com isso, o seu domínio em terras que não eram
suas. O investimento de Portugal na elaboração de mapas e em expedições com esse fim
garantiu àquele país tanto estratégias de ocupação efetiva como vantagens nas
negociações diplomáticas. Já os espanhóis não fizeram tal investimento. Os espanhóis
“sem terem absoluta certeza” do que seriam as suas terras, segundo Cintra (2012),
“chegaram a ocupar posições no oeste do Estado de São Paulo e norte do Paraná e do Rio
Grande do Sul”. Concretamente, estabeleceram por meio dos jesuítas, as missões que

41 Essa posição não está contemplada na figura que traz os traçados à época e os cálculos de Cintra.
42 Ilhas na Ásia, objeto do Tratado de Saragoça (1529).
78

foram a do Guairá (1612-1628) e a do Tapes43 (1626-1635), os chamados Sete Povos das


Missões. Já a Colônia Sacramento44, ao Sul do País (1648), e o forte de Belém, ao Norte
do País (1616), foram fundados pelos portugueses (CINTRA, 2012: 426). As dúvidas
entre o mapa e a realidade beneficiou o avanço do domínio português, no que a presença
em terra dos portugueses, por meio das Bandeiras, contribuíram para o alcance das
fronteiras do Brasil atual. Com base no princípio do uti possidetis45, Portugal consolidava
a sua ocupação e pretendia que a Espanha reconhecesse a soberania sobre tal ocupação,
quando de fato esta deveria ser mais restrita. Ainda, por conta das pretensões francesas
ao norte do Amazonas, nos territórios chamados Cabo Norte, Portugal pretendia ampliar
seus domínios ao norte (ALMEIDA, 1998, p. vi). Nisso, a depender dos cálculos, a linha
de Tordesilhas poderia alcançar parte do Cabo Norte a partir da costa; novamente sendo
interessante que a linha se aproximasse do Pacífico.

Em fins do século XVI, as Bandeiras partidas de São Paulo haviam penetrado


em regiões diversas em busca de prata e de ouro e outros roteiros por caminhos terrestres
fluviais sem compromisso com a linha divisória e, com isso, se foi dando a precedência
portuguesa na ocupação e na posse do território nas fronteiras sul e oeste, esta à altura do
Mato Grosso (CINTRA, 2012: 426). As partes reconheceram não terem respeitado o
Tratado de Tordesilhas e celebraram, em janeiro de 1750, o Tratado de Madri com a
finalidade de encerrarem as disputas por colônias na América do Sul, cuja base do Tratado
foi o Mapa das Cortes46, de 1749, que havia sido elaborado a partir de diversos mapas a
fim de subsidiar as negociações nesse Tratado (FERREIRA, 2007: 52). O Mapa das
Cortes apresentava distorções em favor de Portugal, dando a impressão, no mapa, de que
o território português era menor do que seria de fato a sua ocupação. A oportunidade, no
caso de Portugal, está em consolidar sua ocupação de má fé em um outro tratado, mesmo
reconhecendo erros anteriores, mas os revalidando posteriormente e assim, resolvendo a
questão com a Molucas ou outra e ampliando o domínio português nas porções do globo.

Na Figura 6, à página 79, reproduzo o Mapa das Cortes acrescido das


variações do traçado de Tordesilhas, para que o leitor visualize, juntos, os resultados das

43 Tapes: nome dado à região ocupada pelos indígenas Tape, região em que se instalou a primeira missão
de jesuítas, invadida por bandeirantes na primeira metade do século XVII, para apanhar indígenas como
mão-de-obra para a cana-de-açúcar, evadiram-se os indígenas para a região mesopotâmica formada pelos
rios Paraná e Uruguai Fonte bibliográfica inválida especificada..
44
Atualmente chamado de Colônia, pertencente ao Uruguai.
45
Que significa posse a quem possua de fato, ou seja, se já estivesse ocupando determinada área, dela seria
possuidor; princípio válido para a Espanha e para Portugal.
46
Ou “Mapa dos Confins do Brasil” com as terras da coroa de Espanha na América Meridional, 1749.
79

variações técnicas inerentes aos cálculos à época, manejados política e cartograficamente,


e as distorções propositais na fronteira oeste-leste. Indico a localização de Paraty, no
Estado do Rio de Janeiro, em alusão, apenas, às circunstâncias em que o lugar poderia ter
pertencido à América espanhola. Caso adotada a linha mais próxima ao oceano, o domínio
português não avançaria para o oeste além de Cabo Frio, no Estado do Rio de Janeiro.
Note-se o “encolhimento” proposital da real extensão ocupada pelos portugueses, onde
os pontos verdes são os topônimos, as localizações reais, e as pontas das setas são as
indicações distorcidas propositalmente das localidades no Mapa das Cortes47.

Figura 6 ― Mapa das Cortes (1749), possibilidades para a linha do


Tratado de Tordesilhas

As linhas magenta se referem aos traçados de Tordesilhas em diversas


medidas, como já abordado atrás neste capítulo; a linha azul desenha o Brasil como hoje
está, para uma referência; a linha vermelha tracejada corresponde ao Tratado de
Tordesilhas, em sua posição considerada para as negociações no Tratado de Madri (1750);
os pontos verdes são a localização física terrestre, com os vetores indicando o
deslocamento no mapa distorcido; e a linha vermelha representa os limites resultantes do

47
Lembrando que Cintra (2012) inseriu alguns topônimos, além daqueles existentes à época, para o leitor
melhor se localizar.
80

Tratado de Madri, que no papel expressava menor extensão na ocupação da parte de


Portugal, quando na verdade esta era maior, conforme os deslocamentos propositais que
Cintra recalculou e demonstrou com as indicações dos vetores e a verdadeira localização
dos topônimos Cuiabá e Vila Bela (CINTRA, 2012: 442).

O exemplo que quero ressaltar aqui nos episódios político-cartográficos, é


como o governo português se comportou e não as suas habilidades cartográficas:
reconheceu a ocupação indevida, a partir da manipulação da variação dos cálculos para a
linha de Tordesilhas48, e um outro mapa foi feito, o Mapa das Cortes, de 1749, este
novamente distorcido, dessa vez na ilusão dos deslocamentos dos topônimos. Tal mapa
distorcido em favor de Portugal serviu como base para o Tratado de Madri de 1750.

As distorções e os deslocamentos fizeram avançar as fronteiras do território


português sobre o espanhol na América do Sul e manter acomodado antimeridiano na
conveniência do domínio português no outro lado do globo. O Tratado de Madri acena
com a oportunidade de chancela à ocupação e à invasão portuguesa em domínios
espanhóis mantendo assentado o antimeridiano. Nas demarcações dos limites pelos
exércitos português e espanhol houve resistência de parte dos indígenas, pois, diante da
constatação, em terra, das distorções promovidas, indígenas foram expulsos49, outros
indígenas foram vitoriosos e padres pregaram a desobediência (GOLIN, 2011, pp. 3-5).
A história da fixação do mapa atual do Brasil se resolverá por volta de 1900, com o Barão
do Rio Branco. Um aspecto interessante, para esta tese, nos episódios da fixação dos
limites entre Portugal e Espanha são os topônimos, os quais “amarram” os espaços e
estabelecem conexão entre o mapa e a realidade física.

Em Yi-Fu Tuan, os lugares, como os topônimos, seguram o tempo (TUAN,


[1977] 1983, pp. 206-207). Lugares que atravessaram o tempo, em Paraty, têm exemplos
nas edificações históricas, com nomes constantes em roteiros turísticos. Os territórios do
turismo são essas “porções do espaço funcionalizadas pelo turismo” (CRUZ, 2000, p. 18).

48
Grande desconcerto diplomático se deu quando foram desvendadas tais variações propositais e relatadas
na Dissertação Guillaume Delisle, ou De L’Isle, (1720), quem refez os cálculos e expôs a extralimitação
portuguesa em domínios espanhóis e, também anotadas no mapa publicado por Charles Marie de La
Condamine, quem viajou à região amazônica (do Peru à foz do Amazonas, 1735 a 1744) e constatou a
invasão portuguesa em domínios amazônicos de Castela e da França (CINTRA, 2012, pp. 428-429;
RODRIGUES, 2013).
49
É a época das Guerras Guaraníticas (1753-1756), o conhecimento dos indígenas da topografia colocou
os exércitos europeus em enchentes sazonais; os cavalos europeus em determinada região morreram por
comerem grama tóxica (mio-mio); e indígenas, por vezes apoiadores de um exército, mudavam de lado.
Nesse processo, foi calculada a expulsão de trinta mil indígenas de seus territórios (GOLIN, 2011).
81

Tais territórios são eminentemente de consumo, produzidos para serem consumidos.


Podemos entender que o território e a identidade territorial são moldáveis; moldadas por
meio “do planejamento territorial”, que é “uma condição do sucesso de planos e políticas
setoriais” como o são a de turismo (CRUZ, 2000, p. 22). No que concerne aos topônimos
e ao seu tempo de existência, nos atrativos turísticos têm repetidos seus nomes, estão o
Morro do Forte, a Baía de Paraty, Caminho do Ouro, Forte Patatiba, Igreja de Santa Rita
e outros lugares abertos, como as ruas calçadas em pedra no Centro Histórico, o porto na
cheia da maré que alaga a cidade; são espaços tão moldados ao consumo que mesmo a
sua infraestrutura se converte em “ponto turístico”, como exemplos, a Pousada do
Marquês e a Pousada do Príncipe.

Há um aspecto interessante no território do turismo que é um “território de


destino”, vamos chamar assim. É um território fragmentado em itens cuja identidade do
território será moldável não necessariamente pelos usuários, pois há a indústria do
turismo, mas a identidade dos lugares turísticos começa a ser formada com esses usuários,
conforme indica de Rita de Cássia Cruz, e depois será moldada pela indústria do turismo
(CRUZ, 2000, p. 22). A autora classifica o que chama de “processo de turistificação”, em
três etapas: a primeira é a presença de turistas, é isso que definirá um lugar como turístico
(o começo da formação da identidade, mencionado acima), com potencial turístico; uma
segunda etapa é aquela que identificou tal potencial cultural ou natural, ou ambos, e parte
para a oferta de novos produtos; a terceira etapa é da ordem da atuação dos planejadores
e dos promotores territoriais em face da competitividade e da globalização do mercado
do turismo e da oferta de destinos (ibidem). A imagem é interessante, pois a identidade
está no território para onde se vai.

2.2. Caminhos

Os caminhos podem definir um território como alguns de seus limites como


uma referência em lugar de uma cerca, um muro ou uma vala. O Território Quilombola
do Cangume, em Itaóca, no Estado de São Paulo, descrito por José Maurício Arruti (2003)
não possui cercas ou outros limites e é delimitado pelo uso dos caminhos e de uma forma
peculiar, por meio da roçança. A roçança, conforme explica ou autor, se refere à limpeza
dos caminhos entre os bairros, dentre os quais um é quilombola, e a comunidade procede
à limpeza até os limites do seu bairro nesses caminhos, atitude que Arruti sublinha como
82

uma confirmação periódica dos limites da comunidade de Cangume (ARRUTI, 2003, p.


95 e 97).

O lugar incógnito, amedrontador pode ser atravessado por um caminho


conhecido mesmo que visíveis em rotas apenas, como o mar (CORBIN, 1989). Ou um
caminho é feito, enfim, para uma montanha indecifrável (TUAN, [1974] 1980, pp. 83-
84).

Os territórios do turismo de que fala Cruz (CRUZ, 2000) me parecem ser sem
caminhos, eles existem no deslocamento de quem chega ao lugar planejado. O caminho,
como vejo aqui, é a ideia de deslocamento e ele existirá uma vez que se esteja no lugar
de destino ou dele se retorne, ou seja, na confrontação desses dois espaços: um de origem
e outro de destino. A ideia de caminhos traz a de acesso, de ligação, de conexão e é uma
forma de territorialização, de ocupação. O desenvolvimento econômico ― seja nas
estradas reais para a interiorização às margens das quais se concediam sesmarias, seja nas
rodovias escoando grãos da região central do País até os portos ―anda junto com essas
ideias.

A materialidade dos caminhos na Serra do Mar, na sua abertura e


implantação, demandava, além de técnica, “um grande conhecimento empírico do meio
natural”, fosse por expedições previamente enviadas ou por repisar os caminhos já
indicados e utilizados por indígenas ou pelos primeiros moradores luso-brasileiros
(STRAFORINI, 2006, p. 7).

As incursões de expedições ao interior do Brasil, organizadas por donatários


das Capitanias Hereditárias, vigentes entre 1534 e 1821 em terras brasileiras, tinham a
finalidade, principalmente, a descoberta de novos cursos de água que rendessem ser
minerados. Mariana de Souza Guerra, a Condessa de Vimieiro e donatária da Capitania
de São Vicente e, depois, da Capitania de Itanhaém, investiu em tais entradas e é atribuído
aos seus esforços o ouro encontrado no lugar da Aldeia de Cima, ou “Taba-ibaté”, ou
“dos Tabaybaté”, na atual cidade de Taubaté, em datas prováveis: 1693, 1695 ou 1697
(CINTRA, 2017, p. 212; RIBAS, 2003). O ouro encontrado em Taubaté é o evento que
marca o início do que se chamou por “ciclo do ouro” no Brasil, marcado até o final do
século XVIII.

O Conselho Ultramarino, em 1701, advertiu o Rei de Portugal para que o Rei


restringisse os caminhos que acessavam as minas dos Cataguases ― como eram
83

conhecidas as minas do Rio das Velhas, do Ribeirão do Ouro Preto e do Ribeirão do


Carmo (RIBAS, 2003, p. 28) com a finalidade de aumentar o controle sobre tais
caminhos. Em 1702, foi editado o Regimento das Minas, em Alvará lavrado no Livro dos
Regimentos do Conselho Ultramarino (ANDRADE E SILVA, 1701, p. 34) com trinta e
dois capítulos curtos, tais como artigos de uma lei com seus incisos e alíneas, cujo
conteúdo versava, na mais da vez, sobre como dirimir os conflitos entre os mineiros na
repartição das suas datas, parcelas, de minerar. Para se ter uma ideia da intensidade da
atividade de mineração, foram criados os postos de Guardas-menores, abaixo de Guarda-
mor e outros postos para atuarem na ponta, no lugar mesmo das minas, ficando estes
diretamente subordinados à Coroa em Portugal por meio do escalonamento
administrativo.

Aquele que aportasse em Paraty seguiria atravessando a cidade, a pé ou em


mulas, alcançaria o pé da Serra do Mar e, nela, o Caminho do Ouro traçado no itinerário
da Serra da Cangalha, da Freguesia do Facão (atual cidade de Cunha), até alcançar o Rio
Paraíba do Sul. O caminho foi aberto sobre a antiga trilha dos indígenas Guaianás, que
ligava as partes de baixo e de cima da Serra do Mar. O caminho do Rio de Janeiro para
São Paulo do Piratininga, atual cidade de São Paulo, seguia o itinerário: Ilha do
Governador/terra  Santa Cruz/terra  Porto de Sepetiba  Angra dos Reis/mar, entre a
Ilha da Gipoia e a Ilha Grande  Porto de Paraty  Serra do Facão (Cunha, SP)/terra 
Guaratinguetá ou Taubaté/terra  São Paulo. Também, era possível sair do Rio de Janeiro
por mar até o Porto de Santos e de lá subir para São Paulo. O caminho do Porto de Santos
para São Paulo oferecia mais dificuldades em ser transposto que o Caminho do Ouro por
ser muito íngreme e escorregadio.

Roubos e sonegações frequentemente eram relatados como inerentes a


regiões de minerais e pedras preciosos à época da expansão aurífera no Brasil, tanto que
medidas diversas eram impostas pela Coroa e, depois, pelo Império. Nas barras fundidas
a partir do ouro em pó era cunhado “ouro quintado” indicando o imposto já recolhido, o
Quinto. A Casa de Fundição de Taubaté, ou Oficina Real dos Quintos50, aberta em 1695,
foi transferida para Paraty em 1703, por meio da Carta Régia de 9 de fevereiro deste
mesmo último ano. Ainda, há a história da falsificação de uma cunha de ouro

50
No século XVIII existiam, pelo menos, vinte Casas de Fundição, ou Casas de Quintar, sendo transferidas
de um lugar para outro e incorporadas por outras; há distinção com as Casas da Moeda — ver Sítio do
Ministério da Fazenda e André João Antonil (ANTONIL, [1711] 1968, p. 168).
84

empreendida por um morador de Taubaté, por um padre e por um frei (RIBAS, 2003), o
que pode ter animado o fechamento da Casa de Fundição de Taubaté em 170451. Nesse
mesmo momento, foi fechada a Casa de Guaratinguetá, que fora aberta em 1697 (idem).
Todas as três Casas de Fundição — Taubaté, Guaratinguetá e Paraty — pontuavam o
Caminho do Ouro de Paraty.

A Casa do Registro do Ouro, em Paraty, controlava o trânsito do ouro vindo


das minas para o Rio de Janeiro no que se chamava Caminho Marítimo-Terrestre52 e
continuou a funcionar passando por ela o ouro das chamadas minas velhas, provindo de
Jaraguá, em São Paulo; das minas de Minas Gerais; e das minas que foram encontradas
posteriormente em Cuiabá, em 1715, e em Goiás, em 1721 (RIBAS, 2003, p. 39). A
segurança dos tropeiros e dos viajantes, o controle dos impostos e o encurtamento das
distâncias foram variáveis intrincadas na procura de novos caminhos para ligarem o litoral
do Rio de Janeiro aos chamados Sertões, transpondo a Serra do Mar, que era vista como
um obstáculo a ser vencido. Também, o despiste do pagamento dos impostos e o
contrabando eram razões para a abertura de variantes e de outros caminhos.
Descaminhador era o nome dado à pessoa quem “descaminha, extravia, furta os direitos
às aduanas” (SOUZA, 1825, p. v. verbete), significava algo como sonegadores de
impostos, cujo delator recebia metade da carga e o transgressor, uma multa de três vezes
o valor da carga.

Outro caminho foi aberto em proveito da rapidez em se alcançar as minas no


interior, o Caminho Novo, atravessando a Serra dos Órgãos. A abertura do Caminho Novo
foi concluída em 1707 (CARVALHO, 2011, p. 4) e iniciada em 170453. Esse caminho era
considerado mais vantajoso que aquele de Paraty por causa da perecibilidade de produtos
a serem levados para a gente na região das minas e pela rapidez em se sair delas na
urgência de serem cobrados todos os impostos54 levados à Coroa. O Caminho Novo, a
partir do Porto da Estrela na Baía de Guanabara, reduzia em um para um terço o tempo

51
Carta Régia de 7 de fevereiro de 1704.
52
De São Paulo (Piratininga) a Paraty por terra, usando o Caminho do Ouro atravessando a serra do Facão,
em Cunha (SP) — levando dez dias de ida e onze de volta (RIBAS, 2003, p. 39) — e do Porto de Paraty ao
Rio de Janeiro por mar.
53
De acordo com o Plano de Manejo da Serra dos Órgãos (IBDF - INSTITUTO BRASILEIRO DE
DESENVOLVIMENTO FLORESTAL, 1980); Ribas indica que teriam começado em 1710 (RIBAS, 2003,
p. 39).
54
Além do quinto e do quinto régio, havia a capitação (por minerador), o direito de passagem, o direito de
entrada, a derrama (cobrada sobre quintos atrasados) a bateia (por bateia) e outros que consistiam em
contabilizar a escravatura ocupada na mineração (ANTONIL [1711], 1968 e PRADO JÚNIOR, 2003).
85

de viagem55, fazendo do caminho por Paraty um entrave à arrecadação de impostos,


aponta Straforini (STRAFORINI, 2006), que recaíam sobre a produção e a circulação de
ouro e, também, de outras mercadorias.

O Caminho Novo foi aberto aproveitando os caminhos do Proença e o


caminho aberto por Garcia Rodrigues. Partindo-se do Rio de Janeiro, cortando por água
a Baía da Guanabara e alcançado o Porto do Pilar, depois também, o Porto da Estrela,
hoje desativado e localizado no Município de Magé56, aos fundos da Baía da Guanabara
e, por ali, se subia a Serra dos Órgãos para alcançar o Arraial de Vila Rica, hoje a cidade
de Ouro Preto. Houve acertos de traçados e obras para que se pudessem passar comboios,
devido à segurança contra assaltos.

Para ligar São Paulo ao Rio de Janeiro, foi aberto o Caminho da Piedade (atual
cidade de Lorena), concluído em 1778. O trajeto seguia, partindo do Rio de Janeiro; por
Santa Cruz; passando por São João Marcos (do Príncipe), atual Rio Claro, na região de
Resende; seguindo por Bananal  São José do Barreiro  Areias  Guapacaré, nome
antigo de onde é a cidade de Lorena atualmente, encontrando, aí, o Caminho dos Paulistas
que vinha de São Paulo  Taubaté  Guaratinguetá, passava por Lorena e seguia para
Ouro Preto. O Caminho da Piedade era um atalho, inteiramente por terra, alternativo ao
Caminho Velho de Paraty  Cunha  Guaratinguetá.

O trânsito no Caminho Marítimo-Terrestre por Paraty, para se alcançarem as


minas, teve seu movimento reduzido em fins do século XVIII, com a mudança do eixo
do trânsito de mercadorias e ouro para o Caminho Novo. Pelos caminhos circulavam,
também, funcionários do governo, mercadores e informação entre os confins e a Corte57.
Com a produção cafeeira no Vale do Paraíba, do final do século XVIII ao final do século
XIX, o caminho de Paraty é utilizado para escoar o café do Vale do Paraíba e o abastece
com escravos como a mão de obra na cafeicultura Depois, nos portos de Paraty; Paraty-
Mirim; Jerumirim, em Angra dos Reis; até à Ponta da Marambaia o tráfico ilegal de

55
Há quem fale que o caminho que seguia por Paraty para se chegar a Ouro Preto rendia uma viagem de
73 dias, outros chegam a 95 dias; mas concordam com a redução desses dias a um terço quando se referem
a algum lugar, que não especificam, na denominada região das minas, se fosse feito o trajeto pelo Caminho
Novo, partindo do Porto da Estrela.
56
O porto da Estrela, ao fundo da Baía da Guanabara, existiu a partir de 1767, ao seu redor surgiu uma
próspera vila e a subida em direção à Serra dos Órgãos se chamava Estrada da Estrela.
57
Em outro contexto de relações e no XIX, Alcir Lenharo (LENHARO, 1993) ve na figura do tropeiro um
intercomunicante entre o Rio de Janeiro e os interiores, e entre essas mesmas localidades, mais que um
dependente do fazendeiro ou um agenciador ou fretador de transportes de carga.
86

escravos é negócio escuso e muito lucrativo. É construída a Igreja Nossa Senhora das
Dores, em 1800 em Paraty.

O Caminho do Ouro de Paraty foi fechado para o transporte de ouro e


comerciantes do Rio de Janeiro pediram licença ao Governador para utilizá-lo no percurso
para as minas de Minas Gerais partindo de Paraty. A razão do pedido seria o péssimo
estado do Caminho Novo, que passava pela Serra dos Órgãos, devido à falta de
manutenção. Um novo itinerário, sendo utilizados os dois caminhos, o velho e o novo, foi
estabelecido: a partir de Paraty, se seguia para as minas e se regressava pelo Caminho
Novo, onde estava a Casa de Registro da Paraíba Velha. Depois disso, o povo de Paraty
pede ao Rei de Portugal que libere o Caminho Velho de Paraty e é atendido 58; em 1733,
o caminho de Paraty é novamente fechado para o transporte de ouro59.

58
Carta Régia de 24 de maio de 1715.
59
Alvará de 27 de outubro de 1733.
87

Figura 7 ― Caminho Marítimo-Terrestre, como era conhecido o


Caminho do Ouro (velho) de Paraty e, Caminho de Santos e o
Caminho dos Paulistas (RIBAS, 2003, p. 30)

A estrada de Ferro Dom Pedro II chegando, em 1877, a Guaratinguetá e tendo


percorrido boa parte do Vale do Paraíba, cujo rio nasce em Jacareí, foi o meio de
escoamento da produção de café do vale. O modelo de empresa das fazendas do vale era
fincado na mão de obra escrava e no exaurimento do solo. À produção extraordinária de
1882 se seguiram acentuadas quedas de produtividade e a produção de café já estava, em
1870, na região de Campinas e se expandiu para o oeste Paulista com a força de trabalho
dos imigrantes. No Rio de Janeiro, em 1877, é fundado o primeiro Engenho Central, em
Quissamã; em 1879, entra em funcionamento a primeira usina no Brasil, a Usina do
88

Limão, em Campos dos Goytacazes; e o Engenho Central Bracuí, em 1885, inicia suas
atividades na cidade de Angra dos Reis, que é vizinha a Paraty.

Em Paraty houve a intenção de se ter um ramal ferroviário ligando a cidade à


Estrada de Ferro Dom Pedro II (Central do Brasil). O projeto da nova ferrovia, o ramal
— apresentado pelo Deputado Honorio Lima60 na “Assemblea Provincial” —, traria
vantagens a Paraty, escreveu a redação do Paratyense em 1882, por conta do que julgava
importante ser indicado: o contato diário com a Capital do Império, já transferida de
Salvador para o Rio de Janeiro naquela época. Paraty, no entanto, nunca foi alcançada
pela ferrovia apresentada pelo deputado e que teria Mangaratiba e Angra dos Reis no seu
itinerário. A Estrada de Ferro Dom Pedro II havia chegado ao Vale do Paraíba em 1864,
até à altura de Barra do Piraí, para escoar a produção de café do vale; depois, a linha férrea
alcançou Guaratinguetá e este lugar ficará, daí para diante, alinhado a essa ferrovia; sendo
que antes sua ligação era com Paraty por meio do Caminho do Ouro. Houve uma
mobilização para a construção do Engenho Central de Paraty anunciada no jornal
Paratyense61:

Hoje, ás 10 horas do dia, terá lugar no salão do Lyceu Paratyense, uma


reunião dos Srs. fazendeiros que se dedicam ao plantio de canna, a fim
de se tornar effectiva a grandiosa idéa de montar-se n’este Município
um Engenho Central. (“Engenho Central”, jornal Paratyense, ano 1, nº 1,
de 29/10/1882, página 2)

Francisco Carneiro de Souza acha-se authorizado a receber assignaturas


dos Drs. Fazendeiros e plantadores de canna, para a fundação de um
Engenho Central n’este Municipio; e convida as pessoas que desejarem
este melhoramento a se inscreverem na lista em poder do mesmo com
a quantidade de canna que puderem suprir o referido engenho. (idem,
página 4) (sublinhei)

Outro engenho estava previsto para ser instalado na região e o jornal veiculou
que um engenho para Paraty estava sendo reclamado. Ao lado de Paraty, em Angra dos
Reis, desde março de ano anterior a 1882, estava autorizada, pelo Ministro Manoel
Buarque de Macedo, a construção de um Engenho Central; mais tarde conhecido com

60
Honorio Lima presidiu a Câmara de Angra dos Reis, vizinha a Paraty, nos anos de 1881 e 1882.
61
Os dez números do semanário “Paratyense” sobreviventes ao tempo, no acervo da Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro, não ultrapassam o ano de 1884. Jornal impresso em tipografia própria, à rua do Rozário,
nº 16, em Paraty, já em 1883 aparece como “O Paratyense – Orgão Politico”, de propriedade de Joaquim
Mauricio de Velasco Molina”.
89

Engenho Central do Bracuí. Havia uma determinação, em 1681, de que, no Brasil, não se
alocariam engenhos a menos de 3,3 léguas de distância um do outro, cuja finalidade era
a de garantir recursos combustíveis, lenha no caso, no entorno dos engenhos (CASTRO,
2013, pp. 139-140). A distância entre os dois engenhos, de qualquer maneira, daria mais
de 20 léguas62. O novo modelo de empreendimento, trazido pelo negócio dos engenhos,
tratava os fazendeiros como meros fornecedores de matéria prima contrastando com a
autonomia, com o mando e com a capacidade de influenciar as políticas e o mercado que
possuíam anteriormente. São novas relações que estão indicadas, ombreando
“fazendeiros e plantadores”, como grifei no trecho transcrito, acima, no pedido de
assinaturas e da indicação da quantidade de cana que pudessem oferecer.

Na região ao sul da cidade do Rio de Janeiro, conforme Daniel Castro


(CASTRO, 2013), todos os portos pequenos escoavam principalmente café e aguardente
e possuíam grande movimentação no tráfico de escravos. Em Angra dos Reis, o Engenho
Central do Bracuí possuía um porto para si onde, também, funcionava o tráfico de
escravos em terras e propriedades de Joaquim de Souza Breves. Ele, quando jovem,
acumulou capital com comércio e o tráfico de escravos, possuindo portos da Ponta da
Marambaia à região de Angra dos Reis; quando mais velho, se tornaria o mais importante
cafeicultor do Brasil (MACHADO, 1995, pp. 11-12). O Engenho Central do Bracuí, em
regime de concessão, foi inaugurado em 12 de junho de 1885 pelo Ministro da
Agricultura, o Conselheiro Antonio Carneiro da Rocha. Posteriormente, essa pasta foi
ocupada por Lourenço Cavalcanti de Albuquerque, a quem coube desfazer
administrativamente, mais tarde em 1889, o projeto que tinha a previsão de operar por
mais vinte anos a partir de 1881, quando se deu a concessão. Ao todo, o Engenho do
Bracuí durou quatro anos, decretada a caducidade da concessão, em 3 de agosto de 1889,
por falta de capacidade operacional63.

Uma estrada, lingando Paraty à parte alta da Serra do Mar, foi aberta em 1925
para que possibilitasse a passagem de veículos automotores (vide Figura 8, na página 90.
O traçado coincidiu em parte com o Caminho Velho, aquele mesmo de Paraty, que
aproveitava trechos das trilhas dos indígenas. Ribas (RIBAS, 2003, p. 49) informa que o

62
Eram aproximados 75,5 km, pelas medidas variadas da légua, entre a maior e a menor medidas, seriam
de 10 a 37 léguas.
63
Por conta de não ter contratos de fornecimento de cana suficiente para a moagem diária de 150 mil quilos
por pelo menos 100 dias ao ano ou 15 mil toneladas por safra, conforme o Decreto nº 10.290, de 3 de agosto
de 1889.
90

primeiro carro chegou a Paraty, em 1929, permaneceu na cidade por não conseguir
retornar pela serra utilizando a estrada que fora aberta.

Figura 8 ― Estrada de automóveis (RJ-165 ou BR-549) ao lado do


Caminho Velho do Ouro, Caminho de Cunha-Paraty, com destaque
para o Registro do Ouro

No contexto da exploração turística de Paraty é planejada e construída a BR-


101, que naquele trecho é chamada rodovia Rio-Santos. A rodovia foi sendo aberta e os
trabalhadores rurais expulsos. Toda a área baixa do município ― e não apenas o eixo da
rodovia e suas faixas adjacentes ― foi sendo esmiuçada com o olhar do seu potencial
turístico. Um processo violento. Das quarenta e seis ocorrências em processos ― que
eram registros de queixas e registros em estudos das ações violentas contra trabalhadores
rurais em Paraty, entre as década de 1970, principalmente, e 1980 ―, trinta e dois casos
91

têm indicação de ponto de conflito na construção e na instalação da rodovia BR-101 no


trecho Rio-Santos em Paraty (CPDA, 2015). As ocorrências registradas se reportam à
destruição: de casas, de lavouras, de cercas, de máquina de fazer farinha; por vezes uma
combinação desses itens destruídos para uma mesma família que os possuía. Os autores,
quando identificados, são: o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem ― DNER;
a empresa Camargo Corrêa, a mando do DNER; as empresas C. R. Almeida e White
Martins S.A. e grileiros, conforme indica o relatório da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (CPDA, 2015). Quando os autores foram anotados como “jagunços” ou “jagunços
a mando de Gibrail Nubriniano”, os mesmos crimes tem como pontos de conflitos, áreas
litorâneas nas vilas caiçaras: Trindade, Fazenda Laranjeiras, Praia do Sono, Fazenda
Santa Maria e Ponta Negra (CPDA, 2015, pp. 919-924). O relatório é extenso e abrange
a repressão da organização dos trabalhadores no campo também em Itaboraí, Silva
Jardim, Paracambi, Araruama, Cabo Frio, Angra dos Reis e outras cidades do Estado do
Rio de Janeiro naquele período militar. Aqui, circunscrevi os fatos relacionados a Paraty.

Os estudos de viabilidade para a construção de uma rodovia que ligasse as


cidades do Rio de Janeiro e de Santos começaram em 1968. As obras de instalação da
rodovia causaram impactos de certo irreversíveis: o traçado do eixo da rodovia entre o
litoral e a Serra do Mar formou um dique para a água vinda da serra e a vegetação nativa,
ficando no alagado, apodreceu64; no trecho entre Paraty e Angra dos Reis os cortes dos
morros foram feitos com brutalidade, conforme reproduz Priscila Siqueira (SIQUEIRA,
1989) a comoção do paisagista Burle Max, o qual encaminhou um documento ao
Conselho Nacional de Cultura relatando o que anotara e considerara assombroso65. Das
250 praias listadas no projeto da Rodovia Rio-Santos na década de 1970, 70 praias foram
aterradas com os bota-foras aparados dos morros da Serra do Mar e ao impacto das obras
de instalação secundaram os efeitos da especulação imobiliária e do turismo (SIQUEIRA,
1989, p. 63).

Em um mesmo processo dava-se/criava-se a oportunidade de integrar


objetivos: a consolidação das ações capitalistas com as empresas multinacionais, a

64
Observação feita por Nelson Cembranelli, engenheiro agrônomo da base do Instituto Agronômico de
campinas—IAC no Vale do Paraíba, e que alertou o risco de rompimento dos diques com danos à
população; o mesmo problema seria identificado, mais tarde, em 1980, no trecho Bertioga-São Sebastião
da rodovia no Estado de São Paulo (SIQUEIRA, 1989, p. 63).
65
Em relatório de cunho de denúncia das agressões ao meio ambiente, encaminhado ao então Conselho
Federal de Cultura em 1973 (SIQUEIRA, 1989, p. 63).
92

desorganização das organizações de esquerda no campo coordenada pelo governo em


investidas com os projetos de turismo. Na mesma oportunidade, as exigências de rotas
de escoamento para as usinas termonucleares ainda previstas para serem instaladas em
Angra dos Reis e que ensejou a instalação da Rio-Santos66, podem ter servido de
justificativas para a guinada no planejamento do uso e da ocupação do solo. Pois, a mesma
região, em Paraty, anos antes, havia sido designada como área prioritária para a reforma
agrária.

A Empresa Brasileira de Turismo ― Embratur67 foi criada em 1952 e, em


1970, elaborou o Plano de Aproveitamento Turístico, chamado Projeto Turis, para abarcar
todo o litoral fluminense, um dos efeitos foi a construção da rodovia Rio-Santos. O
projeto tinha por referência os desenvolvimentos turísticos na Europa ― Côte
d’Aquitaine, Côte d’Azur e Languedoc-Rousillon ―, custou trezentos mil dólares e foi
deixado para trás pela Embratur dois anos depois de finalizado o Projeto Turis, pois o
início das obras da rodovia não esperou a conclusão daquele projeto. As intervenções
feitas na região perderam sua lógica, abrindo espaço, daí para diante, a um turismo
espontâneo e sem planejamento. A rodovia Rio-Santos é instalada e começa a operar em
meio a municípios com instrumentos normativos que fazem pouca frente para lidar com
o empreendimento da rodovia, com os impactos e com a ocupação e o uso do solo (CPDA,
2015, p. 299; SIQUEIRA, 1989, p. 63). Nesse meio tempo, Paraty que havia sido
decretada com a prioridade para ocupação em vista do Plano de Reforma Agrária é, a
partir do Decreto nº 71.791, de 31 de janeiro de 1973, considerada área prioritária para o
desenvolvimento turístico, ocasião em que o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
Florestal―IBDF, depois Ibama68, passa a atuar na região às voltas com o patrimônio
ambiental do litoral fluminense (CPDA, 2015, pp. 299, 300). As comunidades
tradicionais ― que não tinham esse nome à época ― e os trabalhadores rurais foram os
despojados e despejados do seu território, do seu trabalho, da sua moradia.

66
A BR-101, também, fazia parte da viabilização do programa nuclear brasileiro. Era necessário cumprir
acordos com a Alemanha no sentido de facilitar acesso ao polo tecnológico em Angra dos Reis e a saída da
população no caso de acidente nuclear. Angra I começou a ser construída em 1972 e entregue em 1985
(NOGUEIRA, 2011, p. 33 e 37).
67
Atual Instituto Brasileiro do Turismo, ligado ao Ministério do Turismo.
68
O IBDF é uma entidade autárquica, criada pelo decreto nº 289, de 28/02/1967, sob a administração do
Ministério da Agricultura. O órgão foi destinado a formular a política florestal e a orientar, coordenar e
executar medidas relacionadas à utilização, proteção e conservação dos recursos naturais renováveis e do
desenvolvimento florestal do país. Depois, em 1989, se tornará o Ibama e parte da sua estrutura, em 2007,
será o ICMBio.
93

Uma característica dos caminhos é a sua imagem de ligação ― além de ser


uma linha e contar ao menos dois pontos ―, e de continuidade; o percurso alinha coisas
sob um mesmo propósito e nisso poderá uniformizar tais coisas, lugares como as avenidas
em Yi-Fu Tuan, que abertas pelo objetivo do tráfego também vão “igualar a grandeza dos
seus monumentos” (TUAN, [1974] 1980, p. 208). Minha sugestão é a de que os caminhos
do Ouro, em Paraty, o Caminho Novo, na Serra dos Órgãos, o Caminho-Marítimo
Terrestre, da Piedade e a Estrada de Ferro Dom Pedro II, que também serviram de motes
para a pequena visada da economia e histórias da região, que apresentei acima, inseridas
em programas mais amplos de governo ao longo do tempo, sejam tomados na perspectiva
da ligação, continuidade e contiguidade entre lugares e territórios. No caso de Paraty e
dos portos é possível olhá-los da perspectiva econômica que esbocei neste capítulo como
um mesmo mundo apenas descontinuado fisicamente pela barreira física da Serra do Mar,
pois todos os caminhos se relacionam com as porções cima-baixo ― ou o contrário, tanto
faz ― conectando esses espaços contíguos, como setores dos mesmos movimentos
econômicos e de projetos de governo, se tomados por essa perspectiva. Mesmo a BR-101,
em certa medida, pode ser lida como cima-baixo quanto à circulação turística ou caminho
de uma segunda moradia de quem não vive ao lado dela na parte baixa do relevo; e nesse
aspecto, profundamente ligada à parte de cima.

Há a ideia de que Paraty permaneceu em isolamento, presa a um passado de


monumentos históricos, os mesmos que a conectam ao turismo nacional e internacional
e a fazem sede de diversas conferências e eventos internacionais como a Feira Literária
Internacional de Paraty ― FLIP. Antes, por meio dos caminhos por terra e por mar, os
gêneros alimentícios (criações e cultivos) ali produzidos eram levados ao Rio de Janeiro
e ao interior conectando Paraty a outras regiões sob diversas formas e sem fazer dela
apenas um lugar de passagem, mas um nó nas conexões.

2.3. “Oportunidade”

Alguns dos caminhos que não chegaram a Paraty podem ter contribuído como
suporte para o discurso do seu isolamento, como o ramal da estrada de ferro Dom Pedro
II (Central do Brasil), a conexão entre as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, antes
pelo caminho da Piedade (Lorena), acima da Serra do Mar e que cedeu lugar à rodovia
BR-116, sem passar pela parte baixa onde está Paraty. Por outro lado, se desconsiderava
94

as conexões existentes no discurso do isolamento: Paraty esteve conectando as cidades


do Rio de Janeiro e de São Paulo como o melhor itinerário a ser feito69, além das conexões
para o interior partindo de seu porto e permaneceu como ponto em rotas marítimas. O
critério de inserção em novos tempos, vamos chamar assim, no imaginário popular de
Paraty era a sua conexão por vias terrestres naqueles projetos da ferrovia e da estrada no
alto da serra, que eram novos à época. Se o jornal Paratyense (1882) pode captar esse
espírito popular em Paraty, o fez de forma dramática:

A occasião não está para hesitações. Urge reagir-se com esforço


herculeo para deter o nosso município da queda vertiginosa em que se
precipita. Para tanto ha necessidade de instruir-se o cidadão e eleva-lo
ao sentimento da dignidade, congregar a todos sob o mesmo
pensamento: ― Trabalhar pela prosperidade deste nosso torrão natal.
(Edital de abertura do primeiro número do jornal Paratyense, ano 1, n.
1, de 29/10/1882)

[Paraty] Já teve vida, já foi rico e já foi grande; um dia, porém, uma
estrada de ferro, a de Pedro 2°, cortou-lhe a artéria de sua existência, e
attirou-o na desgraça como a todos os portos marítimos do sul. ...Uma
estrada de ferro mattou-o, outra trazer-lhe-ha a vida! (“Estrada de ferro
de Paraty”, jornal Paratyense, ano 1, n. 1, de 29/10/1882, folha de rosto
e folha 2)

Do trecho se depreende a ideia de derrocada e a responsabilidade sendo


imputada à instalação da ferrovia em outro lugar, sem conexão com Paraty; no entanto, a
ferrovia foi instalada para o escoamento da produção pujante do Vale do Paraíba, ou seja,
a via férrea surge em meio a um processo econômico já antes consolidado na região acima
da Serra do Mar e longe de Paraty. Os exageros em desenhar Paraty como degredada de
projetos que impulsionaram a economia em outros lugares podem ter sido usados para
serem alinhados aos pleitos políticos remarcando necessidades muito urgentes para serem
atendidas. No caso, uma “retirada” de Paraty de seu suposto isolamento.

O ambiente de desenvolvimento econômico do Vale do Paraíba devastou o


ambiente natural naquela região. Mariana Priester (PRIESTER, 2015) lida com a ideia de
isolamento e entende que o relativo isolamento de Paraty lhe permitiu a conservação do
seu patrimônio histórico e paisagístico, inserindo a cidade na economia do turismo.

69
O caminho para transpor a Serra do Mar era feito por Paraty em melhores condições que o caminho a
partir do Porto de Santos (RIBAS, 2003).
95

Destino onde turistas procuravam a calma, em que o discurso do isolamento era


providencial. Hoje, a propaganda do turismo aponta Paraty como museu a céu aberto.

O isolamento, como um discurso, pode ser colado ao que se pretende,


tomando uma ideia vaga ― que todos possuem ― para modelá-lo como positivo ou
negativo. Ora há o “problema do isolamento” para algumas ações pretendidas para
programas de governo, ora há a “vantagem do isolamento” para outros programas de
governo, como o turismo; ambos ligados a empreendimentos econômicos de particulares,
no caso de Paraty. Como vimos, no caso da abertura da rodovia Rio-Santos, a ideia de
isolamento é o pano de fundo onde foram inscritas, e justificadas, as transformações em
cadeia promovidas por programas setoriais de órgãos de governo por meio do despejo de
trabalhadores rurais, invasões de vilas caiçaras, danos ambientais no apossamento da
região de Paraty como objeto de intervenção econômica para sujeitos externos.

A ideia de oportunidade ajuda a dar nome à ocorrência de fenômenos desse


tipo, que tomam elementos de um contexto e o leem em outro, que emolduram pautas de
governo para as ações do Estado no contrafundo de algum tema de conhecimento público
e do senso comum.

Jean Gottmann usa o termo “oportunidade” como um senso, uma metafísica


que resulta na busca humana de “maiores oportunidades” para além da satisfação das
“necessidades básicas da vida, além dos recursos do status quo” que um território
original, uma aldeia ou vila, pudesse oferecer, segundo o autor (GOTTMANN, 1973, p.
8 e 19); e a partir daí ele desenha a saída dessa originalidade por meio das relações
comerciais, guerras ou paz. Não é neste sentido a que me refiro à ideia de oportunidade
aqui. A oportunidade está na capacidade de o Estado, por meio dos seus administradores,
identificar elementos que possam ser sinérgicos e de conjugá-los em benefício mútuo em
proveito de promover e de tocar alguma pauta de seu próprio interesse nesse conjunto.

Retomaremos a oportunidade mais adiante, no caso da recategorização da


Área de Proteção Ambiental de Cairuçu, como exemplo de como o Estado se comporta
na constituição de territórios administrativos e como trata as comunidades e os seus
territórios tradicionais em situação de sobreposições com unidades de conservação, com
diversos elementos sinérgicos, dentre eles a obrigação do Estado em garantir direitos das
comunidades.
96

Vejo as situações de sobreposição como a oportunidade de o Estado atuar,


estar sempre presente administrando os conflitos das sobreposições, sem que nada resolva
quanto à sobreposição, quanto à regularização fundiária incompleta quer de um território
tradicional, quer de uma unidade de conservação (muitas unidades de conservação não
têm sua regularização fundiária levada a cabo).
97

3. Sobreposições em Paraty

Os Povos Indígenas e os Remanescentes das Comunidades dos Quilombos


contam com previsão na Constituição Federal para a regularização de seus territórios,
respectivamente no Artigo 231 e no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias—
ADCT nº 68. As Comunidades Caiçaras não têm previsão legal do reconhecimento de
seus territórios na Constituição Federal. Em Paraty, são dezoito comunidades
tradicionais70 somadas a seis Terras Indígenas e a dois Territórios Quilombolas em 2018.

O objetivo deste capítulo é o de remarcar que as interferências dos territórios


institucionais nos territórios tradicionais podem ser desastrosas à manutenção e aos
destinos desses territórios e das comunidades que os constituem.

3.1. Territórios de comunidades

As comunidades conhecidas na atualidade e que vivem em Paraty, no Estado


do Rio de Janeiro, são os povos indígenas, os quilombolas e as comunidades caiçaras.
Passo a falar sobre seus territórios e sobre elas.

3.1.1. Territórios Quilombolas

Há territórios quilombolas que têm seu processo de reconhecimento por parte


do Estado junto à instituição federal, no caso o Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária ― Incra e há os territórios quilombolas em que o seu processo de
regularização fundiária se passa no nível dos estados, atuando os institutos de terras
estaduais. A diferença onde o processo administrativo se dará, se na instância federal ou
se na estadual, é indicada pela dominialidade das terras, se são terras do estado ou da
União. Havendo títulos particulares incidentes nos territórios quilombolas identificados,
os proprietários serão citados e há um período para que possam contestar a delimitação.

70
Números tomados das comunidades com representação no Fórum de Comunidades Tradicionais de
Paraty, Angra dos Reis e Ubatuba ― FCT, em 2018 e há os 39 núcleos habitacionais indicados na
Portaria/Iphan nº 402/2012, de tombamento do Sítio de Paraty, que inclui as comunidades representadas no
FCT, um indicativo de que o número de 18 comunidades pode ser maior.
98

São 1.742 processos de regularização fundiária de territórios quilombolas


abertos na instância federal no Brasil, número que será maior com os processos abertos
nos estados, aqui não contabilizados, e acrescidos de quilombos que não têm processo de
regularização fundiária aberto.

Gráfico 1 ― Processos de regularização fundiária de territórios


quilombolas em várias fases abertos no Incra

Territórios Quilombolas - processos de


regularização fundiária abertos no Incra
(dados Incra, 2019 - organizados por Leslye Ursini)

Brasil 1.747
NORDESTE 1.005
SUDESTE 331
SUL 151
NORTE 142
CENTO-OESTE 118
Estado do Rio de Janeiro 27
Paraty 2

Os territórios quilombolas conhecidos no Município de Paraty são Cabral e


Campinho da Independência. Há uma comunidade desaparecida, de nome Güiti71, que
existiu entre as comunidades de Cabral e de Campinho. O Relatório Antropológico para
a identificação e delimitação do Território Quilombola de Cabral apresentado ao Incra, e
coordenado por José Maurício Arruti (ARRUTI, 2007) menciona que a comunidade de
Güiti, mesmo não existindo mais naquele lugar, reforça a “existência de território
contínuo” de comunidades negras rurais e quilombolas no sertão de Paraty, se estendendo
até Caçandoca, ao sul, em Ubatuba, no Estado de São Paulo, por meio das mesmas redes
de parentesco e de trocas.

O Território Quilombola de Cabral está em processo de regularização


fundiária há 12 anos, aguardando neste momento (2018) o Incra proceder à desintrusão
de um ocupante não quilombola para a finalização do processo. Os limites do Território
Quilombola de Cabral já estão decretados, faltando a consecução do processo de titulação
no registro da matrícula do imóvel em cartório em nome de associação quilombola.

71
Encontrei, também, o topônimo Güiti em local mais afastado, na região do sertão do Taquari ao norte da
cidade de Paraty, apenas indicado em mapas antigos e sem outras referências. Fica a indicação para
pesquisas ocupadas na identificação de novos territórios; com a possibilidade de formação de topônimos
quando alguém ou um grupo de dado lugar é designado pelo nome do lugar; também, em casos de mudança
de uma pessoa, de uma família ou de um grupo de um lugar para o outro por vezes carregam o nome do
lugar antigo passando a referenciar o lugar.
99

Ambos os dois quilombos são próximos e quase são conectados os seus limites
institucionais.

O Território Quilombola de Campinho da Independência tem seu processo de


regularização fundiária concluído pelo Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio
de Janeiro ― ITERJ, foi titulado em 21 de março de 1999, com a área de 287,94 hectares
e, atualmente (2018), abriga cerca de 120 famílias. A referida área foi desmembrada da
área total da Fazenda Paraty-Mirim e transferida para a Associação de Moradores do
Campinho em 23 de março de 1999 e o registro em cartório aconteceu em 2010.

A comunidade do Território Quilombola de Cabral, em Paraty-Mirim,


apresenta uma territorialização constituída a partir da história de herdeiros (quer de
familiares, quer de antigos senhores), no que se refere à origem da sua permanência
naquele território. A territorialidade tem uma dinâmica na partição em três domínios
familiares que respondem aos laços de parentesco na forma das heranças, são os núcleos:
Lucas, Cabral e Alves; que são, respectivamente, patrônimo, topônimo e sobrenome
senhorial, conforme o Relatório da Comunidade de Cabral72. Tais domínios
correspondem a três nucleações contíguas às quais José Maurício Arruti chamou por
nucleações “socioterritoriais” (ARRUTI, 2007, p. 22).

Em entrevista, o senhor Domingos Ramos dos Santos73, 77 anos, da parte dos


herdeiros de Benedito Lucas, apresentou de forma arrematada tais nucleações
socioterritoriais:

Cabral é Cabral, Lucas é Lucas e Alves é Alves. Todo mundo se respeita.


(sr. Domingos Ramos dos Santos, TQ Cabral)

O senhor Domingos informou que trabalha fora do quilombo, como ajudante


de manutenção em um sítio particular de mais de cinquenta mil metros quadrados da
empresa PHG, em Paraty, onde “só tem lá é mato”. A maior parte das mulheres no
quilombo “trabalha para fora”. Nas atividades de cultivo, no quilombo, trabalham apenas
o senhor Domingos e o Jorge, este de outra nucleação socioterritorial, e o senhor
Domingos, também, faz farinha de mandioca.

72
Cedido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária—Incra, da Superintendência Regional
do Rio de Janeiro, em 10/01/2018; elaborado por José Maurício Arruti, 2007.
73
Entrevista em 26 de julho de 2017, na casa do senhor Domingos, no Quilombo Cabral, Paraty-Mirim,
distrito de Paraty, Rio de Janeiro.
100

A demora na titulação do Território Quilombola tem, na avaliação do senhor


Domingos, desanimado os investimentos de parte das pessoas da comunidade em
projeções futuras para o território.

O processo de regularização do Quilombo Cabral se deu a partir das


indicações de lideranças do Quilombo Campinho da Independência, por conta da
experiência de Campinho na regularização, informou o sr. Domingos74. Os dois
quilombos são próximos, respectivamente: em um afluente esquerdo do Rio dos Meros e
ao longo do Rio Paraty-Mirim.

Observe-se que os territórios de ocupação das comunidades em suas relações


são mais amplos, estão inseridos em uma territorialidade que formava um corredor.
Também, os territórios podem não ser homogêneos sob alguma perspectiva, se a tomamos
como a divisão do espaço interno por famílias e dos percursos históricos de cada uma
delas. Há uma exterioridade, no caso os trabalhos “fora” do território diferenciados dos
trabalhos “no” território, que materializam o marcador étnico como dentro e fora
relacionado ao território e não às pessoas que trabalham dentro ou fora. Dito de outra
forma, um território se constitui, também, pela sua exterioridade.

Cabe observar que a exterioridade não é a mesma de que fala Raffestin e que,
nisso mesmo nos ajuda a pensá-la. Claude Raffestin indica uma interioridade que tende à
exterioridade por meio da linguagem marcada por relações de poder; interioridade se
refere a um grupo que pode ou não ter relações com a exterioridade (RAFFESTIN, [1980]
1993, pp. 100-102), esta seria o que podemos chamar, de forma ampla, por sociedade
envolvente. Nos fenômenos dos territórios tradicionais no Brasil, nas experiências
particulares e, sob outros aspectos próximas/similares das suas formas de
territorializações — o que nos permitem adjetivá-los como “tradicionais” — não há
tendência à exterioridade no sentido de Raffestin. Há, antes, uma exterioridade que a
antropologia tem tratado na linha limítrofe como fronteira étnica, no sentido de fricção
de Roberto Cardoso de Oliveira, em que a tendência é um processo de recrudescimento,
reavivamento étnico em face da exterioridade (CUNHA, 1986).

74
Em entrevista e, também, consta no Relatório Antropológico da Comunidade Cabral (ARRUTI, 2007,
pp. 43, 50)
101

3.1.2. Comunidades Caiçaras

A Lei Estadual nº 2.393, de 20 de abril de 1995, autoriza o Estado do Rio de


Janeiro a assegurar às “populações nativas”, residentes há mais de cinquenta anos em
unidades de conservação do Estado do Rio de Janeiro, o direito real de uso dos seus
territórios, sendo que esta concessão é inegociável e por prazo indeterminado, podendo
ser transferida apenas aos descendentes diretos do possuidor da concessão. A concessão
se dará “desde que dependam, para sua subsistência, direta e prioritariamente dos
ecossistemas locais, preservados os atributos essenciais de tais ecossistemas” (art. 1º
caput, Lei nº 2.393, 10/04/1995), e “como contrapartida deste direito”, conforme previsto
no parágrafo primeiro do mesmo artigo primeiro, “as populações beneficiadas por esta
Lei ficam obrigadas a participar da preservação, recuperação, defesa e manutenção das
unidades de conservação”. Há de se perguntar onde estaria a contrapartida da unidade de
conservação pelo território preservado sobre o qual se instalou e permanece, como espaço
reservado pela ocupação e usos das populações e defendidos os limites e o acesso de
terceiros, por vezes, com as atitudes diárias e não raro com a vida de alguns contra
invasores.

A Lei Estadual (RJ) nº 3.192, de 15 de março de 1999, assegura o direito dos


pescadores artesanais às terras que ocupam por meio da concessão do direito real de uso
a pescadores artesanais. Estes são definidos, pela lei, tendo a pesca como o principal meio
de subsistência e barcos de comprimento igual ou menos que oito metros. A referida lei
fala em “terras” ocupadas, não em “território”; o direito sucede na família, e não no grupo;
e, uma vez tituladas, as áreas serão incluídas como áreas de preservação para efeitos de
compensação financeira para as municipalidades. Nesse aspecto está dado que há alguma
resistência nos municípios com relação às comunidades e que se buscou dissuadi-los na
forma de compensação.

Ambas as leis não enfatizam os aspectos da territorialidade das populações,


senão a sua inserção em outros contextos, que são nas unidades de conservação e nos
municípios. Uma desterritorialização, portanto, quanto aos novos termos e contextos, se
vai tecendo a cada letra da Lei, mesmo quando, no caso, assegura direitos.

Com a especulação imobiliária a partir da década de 1970, incrementada na


abertura da Rodovia BR-101, em 1974, os Territórios de Comunidades Caiçaras foram
102

secionados e comunidades se mudaram para outras partes ou se perderam. Antes disso,


ao menos na década de 1960, Paraty já era um destino de turistas (PRIESTER, 2015, p.
134). Na atualidade há o turismo de frequentadores por períodos e daqueles que têm uma
segunda moradia de veraneio.

A Praia de Trindade, com a instalação do condomínio Laranjeiras, é


emblemática das pressões aos comunitários. São atribuídos a homens a serviço da
Agencia de Desarollo de América Latina — ADELA os incêndios criminosos feitos nas
casas de caiçaras da Comunidade de Trindade e os estupros contra professoras que
insistiram em lecionar na comunidade (SIQUEIRA, 1989, p. 64). Uma liminar teria sido
concedida em favor da permanência da Comunidade de Trindade e não foi respeitada pelo
Juiz de Direito de Paraty. Os funcionários do Fórum de Paraty reconhecem que “se todos
os títulos de terra do município fossem verdadeiros, este teria três andares...”
(SIQUEIRA, 1989, p. 64). Atualmente (2019), o acesso à Praia do Sono, localizado na
Juatinga, é possível por mar ou passando pelo interior de do Condomínio Laranjeiras,
onde há um veículo Kombi disponibilizado pelo condomínio para apanhar as pessoas do
lado de fora do Condomínio e transpô-las para um porto dentro do condomínio. A
frequência do transporte, o que pode ou não ser levado e as atitudes dos empregados do
condomínio são motivos de queixas dos moradores da Praia do Sono em uma miríade de
expressões do que é a mobilidade cerceada no direito de ir e vir, inclusive para se dirigir
à própria casa.

A vida ligada às costeiras é um universo de saberes que ligam esses dois


espaços: o mar e a terra. Juntos, eles compõem as características do modo e do compasso
de viver. Gioconda Mussolini ressalta as relações de compadrio, as novenas e a economia
de subsistência, esta como uma “economia de retaguarda”, expressão que toma por
empréstimo de Roberto Simonsen, economia que teria lugar paralelamente aos grandes
ciclos econômicos (MUSSOLINI, 1980, p. 222). Na leitura que Mariana Mendonça faz
de Carlos Diegues (2004)75, diz que migrar das áreas costeiras para centros urbanizados
— em busca de outros trabalhos — e retornar às regiões de origem sempre fizeram parte
da dinâmica caiçara, até que as primeiras unidades de conservação e a abertura de grandes
rodovias sumiram com tais locais ou inviabilizaram o retorno para eles (MENDONÇA,

75
A referência feita por Mariana Mendonça é: Carlos Diegues, A Mudança como modelo cultural o caso
da cultura caiçara e a urbanização; Enciclopédia Caiçara – 1; Hucitec/NUPAUB/USP, 2004.
103

2009). Mecanismo semelhante de desterritorialização pude observar em Minas Gerais, no


Quilombo Machadinho, em Paracatu. Em pesquisa, entre os anos de 2007 e 200876, as
dificuldades de acesso ao território pelo grupo quilombola, formado por três famílias, em
um passado próximo, se deu no momento em que a terra passou a ter valor de troca. Antes
disso, costumavam cercar as roças para as proteger dos animais, que eram soltos, e cada
família sabia quais eram os seus animais, bem como os limites da sua parte da “casa”, até
o pé de um morro ou à margem de um córrego. A venda do uso de um pasto, de uma
aguada para dessedentação animal, ou da área de um roçado era feita a pessoas do próprio
grupo familiar, como uma forma de se levantar recursos por meio de uma cessão
temporária de parcelas territoriais que eram compradas novamente por aquele que
vendera:

O que observamos é que esse “ciclo” de vender esse uso, comprar,


vender, e comprar novamente em dado momento não se perdurou, cujo
resultado, pela interrupção desse ciclo, foi a perda de parcelas do
território para terceiros e a impossibilidade de manter-se ligado àquela
porção do território e de voltar para ela. (URSINI, 2008, p. 120)

Na interceptação por terceiros, externos ao grupo, desse ciclo entre a cidade


e a roça, há a possibilidade de membros do grupo terem atuado de forma dissonante ao
grupo, e com má fé, ou de terem sido enganados:

A noção que perpassa as três famílias, além do ânimo de donos, é a da


imprescritibilidade dos direitos das gerações seguintes a despeito das
atitudes isoladas (de cunho não-coletivo) de membros da comunidade
no passado, fosse por vontade destes ou porque foram enganados
(como muitas vezes afirmam), ou ainda se alguns membros usaram a
desculpa do engano para se beneficiarem isoladamente em detrimento
do grupo. Nesse processo viram parcelas do território sendo cercadas e
“invadidas” — termo este usado pela comunidade — por pessoas
externas à comunidade e que, por sua vez, foram repassando a outros
externos à comunidade (e que, sequencialmente, vão lucrando com a
venda dessas partes ou usufruindo de recursos naturais ou ainda com
empreendimentos acerca dos recursos como a exploração do cascalho

76
Com servidora efetiva do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária—Incra, no Departamento
de Regularização Fundiária de Territórios Quilombolas — Diretoria de Ordenamento Fundiário, a mesma
que se ocupa dos Assentamentos da Reforma Agrária. A pesquisa se alongou porque o Incra enviava as
equipes a campo por períodos de 15 dias, era possível ampliá-los com alguma justificativa mais
contundente, aos olhos da instituição, prolongando a permanência em campo e a interação pesquisador e
pesquisado continuada e não “picada”, para que nesse contato etnográfico o trabalhado pudesse deslanchar.
O que mais se passava, no entanto, era voltar a campo e reestabelecer uma interação a cada vez.
104

retirado de cascalheiras instaladas em partes do território e a mineração


industrial de ouro. (URSINI, 2008, p. 120)

De uma forma ampla e genérica, a desterritorialização ocorre não apenas com


a remoção — que seria o exemplo acabado da desterritorialização — ou com os
impedimentos de acesso ao território e aos atributos identitários nele encontráveis; a
desterritorialização se dá, também, com: a mudança de status do território que se ocupa
ou que se tem em vista; com a mudança do nome do lugar, do topônimo, como despiste
para aquele que retorna ao lugar; e com a mudança da destinação de uso do território de
uma comunidade quando esse processo não foi encabeçado, autodeterminado, por ela,
como é o caso das sobreposições de unidades de conservação.

3.1.3. Terras Indígenas

No Brasil, segundo os dados do censo do IBGE de 2010, a população indígena


era de 817.963 mil indígenas em 305 diferentes etnias, com 274 línguas indígenas faladas.
Dados da população indígena, desde a vinda de imigrantes e colonizadores em 1500,
mostram o decréscimo populacional indígena, como segue:

Tabela 2 – Dados populacionais indígenas de 1500 a 2010 (Funai,


2019)

As terras indígenas com processos de regularização fundiária decorrentes do


dispositivo constitucional de 1988 são 567, em 2019, em diversas etapas da regularização
fundiária, como segue:
105

Gráfico 2 ― Número de Terras Indígenas e fases do processo de


regularização fundiária (Funai, 2019)

Terras Indígenas - segundo etapas do


processo de regularização Fundiária
(dados Funai, 2019; organizados por Leslye Ursini)

Total 567
Regularizadas 440
Homologadas 9
Declaradas 75
Delimitadas 43

Na categoria “em estudo” são 116 terras indígenas em 2019. Há as “Reservas


Indígenas”, que são áreas estabelecidas pela União adquiridas por meio de compra direta,
desapropriação ou doação e destinação à posse e à ocupação pelos povos indígenas. Na
atualidade, são 52 reservas indígenas, das quais 13 se encontram em processo de
encaminhamento no processo de aquisição.

Ao todo, no Estado do Rio de Janeiro, são conhecidas treze terras indígenas,


das quais: seis estão no Município de Paraty; duas, Sapukai e Guarani de Bracuí, em
Angra dos Reis77; e mais seis anotadas no Sítio da organização não governamental
Comissão Pró-Índio—CPISP: uma em Petrópolis; uma na cidade do Rio de Janeiro; duas
em Niterói, sendo uma delas a Terra Indígena Camboinhas ou Tekoha Itarypu; e outras
duas em Cabo Frio, em que uma delas tem o nome de Terra Indígena Cabo Frio 78. Há a
reivindicação da Terra Indígena Arandu, localizada nas proximidades de Paraty-Mirim.

As terras indígenas conhecidas no Município de Paraty, portanto, são seis,


sendo que uma delas é reivindicada por indígenas Pataxó e Guarani, juntos.

77
Nas informações publicadas da Funai constam cinco Terras Indígenas, sendo uma em Angra dos Reis;
Sítio da Fundação Nacional do Índio – Funai, em fevereiro de 2018:
http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/terras-indigenas.
78
Sítio da Comissão Pró-Índio—CPISP, em fevereiro de 2018:
http://www.cpisp.org.br/indios/html/uf.aspx?ID=RJ.
106

Tabela 3 - Terras Indígenas e Territórios Quilombolas em Paraty,


Brasil

A Terra Indígena Kaña Pataxi Witanara, uma dentre as treze terras indígenas
contabilizadas para o Estado do Rio de Janeiro, não consta estar em estudo pela Funai ou
anotada no Sítio da CPISP. Tomei conhecimento dessa Terra Indígena conversando com
indígenas guarani no Centro Histórico de Paraty, em meio à retirada de vendedores de
artesanato daquelas ruas por parte do poder público municipal, durante a Feira Literária
Internacional de Paraty—FLIP/2017, e fui visitá-los em sua aldeia. A presença Pataxó
Hã-hã-Hãe, em Paraty, é explanada pelo próprio Apuhinã, quem entrevistei, em 7 agosto
de 2017, na aldeia do território Kaña Pataxi Witanara, ao norte da cidade de Paraty. Ele
e seus familiares deixaram a Terra Indígena Caramuru-Paraguassu em Pau Brasil, no
Estado da Bahia em 2004, foram para uma área em Angras dos Reis e depois para Paraty.
A razão da saída da Bahia foi a tristeza, segundo Apuhinã, por conta das mortes nos
embates pela regularização da Terra Indígena no Município de Pau Brasil que se
arrastaram anos e contam, ainda hoje, com investidas de proprietários ou posseiros não
indígenas na região.

A Reserva Caramuru-Paraguassu, na Bahia, foi criada em 1926 pelo Serviço


de Proteção ao Índio—SPI79; a partir da década de 1930 os conflitos com ocupantes não
indígenas foram acirrados principalmente em porções da Reserva que haviam sido
arrendadas pelo próprio SPI (SOUZA, 2017). Apuhinã Pataxó, contou que no
deslocamento, da Bahia para onde vivem hoje, vieram descendo, segundo ele, pelo
mesmo território Tupinambá, seus ancestrais. As queixas locais quanto à morosidade no
processo de regularização indicaram alguma resistência por parte da administração local

79
Órgão governamental criado em 1910 e que precedeu a Fundação Nacional do Índio – Funai.
107

da Fundação Nacional do Índio ― Funai em tomar o pleito por considerar que Pataxó é
territorializado na Bahia, segundo reportado por Apuhinã. Na aldeia Kaña Pataxi
Witanara, onde estive, em Paraty, há as relações de convivência, de trocas e de percurso
com os Guarani que vivem na aldeia, e o órgão indigenista, nessa ocasião, parece ter
preferido tomar por critério o mapa da distribuição dos grupos étnicos, em lugar de tomar
a reivindicação onde ela é feita. Para justificar o mapa, se fosse o caso, há a presença
Guarani.

Acerca dos deslocamentos dos Guarani (os maiores deslocamentos, por vasto
território e, também, a micromobilidade), a despeito dos seus segmentos étnicos inerentes
(Chiripa, Mbya, Nhandeva e Kaiowa)80, historica e espacialmente são deslocamentos que
se dão em fluxos, também movidos pela busca da Terra sem Males, pela visita a parentes
onde se podem demorar anos, indo e voltando, indo e ficando, percorrendo as redes de
parentesco. A “macro” e a “micromobilidade” obedecem a rotas que não são aleatórias,
como elucida Mendes Júnior, o qual pesquisou entre os Mbya do litoral sul fluminense:

Esses deslocamentos das pessoas não obedecem a um único sentido:


elas tanto partem do interior para o litoral quanto o contrário também é
verdadeiro, ainda há muito de um desejo de se encontrar uma terra boa
para viver. É possível, no entanto que estes movimentos tenham uma
tendência a obedecer a certas rotas. Vê-se por exemplo no caso de
Araponga, que mantém um contato mais intenso com os estados de
Santa Catarina e Rio Grande do Sul. As pessoas de Parati-Mirim por sua
vez percorrem o oeste e sudoeste do Paraná. O mesmo se dá em relação
ao fluxo que essas aldeias estabelecem com diferentes aldeias no Estado
de São Paulo. (MENDES JÚNIOR, 2009, p. 34) (sublinhei terras indígenas
em Paraty)

A mobilidade dos Guarani e as relações de parentesco (há família Benites na


Terra Indígena Canelinha em Santa Catarina e a família Benite reocupou a Terra Indígena
Paraty-Mirim na década de 199081) aliadas à sua mobilidade desenham tanto uma
“territorialização guarani” entre Brasil, Bolívia, Uruguai, Paraguai e Argentina quanto
uma retomada do território tradicional por meio de uma rede de lideranças fortes e grupos

80
Pertencem à família linguística Guarani e, além de diferenças sutis dentro do grupo Guarani, são, também,
dialetos (MARTINS, 2003, p. 25).
81
Trata-se do Sr. Miguel Karai Tataxĩ Benite, que viveu na Aldeia Pinhal, na Terra Indígena Rio das Cobras,
no Estado do Paraná, e seguiu para Paraty-Mirim, segundo Rafael Mendes Júnior. Maria Inês Ladeira, em
sua Dissertação (LADEIRA, 1992, p. 42; citada por MENDES JÚNIOR, 2009), sublinhou a reocupação de
Paraty-Mirim, nos anos 1980-1990, no mesmo lugar que, na década de 1940, havia sido uma aldeia
importante por causa da força espiritual do líder naquela aldeia (MENDES JÚNIOR, 2009, pp. 25-26).
108

de parentes. Dentre as pessoas que entrevistei em Santa Catarina para a elaboração do


Programa Básico Ambiental do Componente Indígena, em 2012, por conta do
empreendimento de duplicação da BR-280/SC, conheci o Sr. André Benites da Terra
Indígena Canelinha e ex-morador da Terra Indígena Cambirela/SC e com parentes em
São Paulo e no Rio de Janeiro.

Segue a localização aproximada das terras indígenas na região de Paraty e de


Angra dos Reis, no Estado do Rio de Janeiro.

Figura 9 ― Localização das Terras Indígenas em Paraty

3.2. Áreas Protegidas e Unidades de Conservação em Paraty

As Unidades de Conservação da Natureza, em Paraty, no Estado do Rio de


Janeiro, estão instituídas nas instâncias federal, estadual e municipal com sobreposições
entre seus territórios e, junto a isso, com as sobreposições das atribuições dos órgãos em
diferentes ou mesmas instâncias.

O Bioma Mata Atlântica, onde se insere Paraty, possui 135 Unidades de


Conservação da Natureza atualmente; dentre as quais quase 35% são unidades do grupo
de proteção integral (com restrições à presença de pessoas em seu interior) e as demais
do grupo de uso sustentável (com os usos controlados pelos órgãos ambientais); neste
último grupo, 63,6% são Reservas Particulares do Patrimônio Natural—RPPNs.

Em Paraty, há as unidades de conservação e outras duas áreas protegidas


ambientalmente, estas últimas que o Sistema Nacional de Unidades de Conservação —
SNUC não abrangeu.
109

Tabela 4 ― Unidades de Conservação e Áreas Protegidas em Paraty, sobreposições entre si e com Territórios Tradicionais (em 2019)

Em Instância
data de Sobreposição entre Ucs e
relação adminis- Nome Instrumento legal Sobreposição entre Ucs
criação Territórios Tradicionais
ao SNUC trativa

sem
REEJ
categori- estadual Descreto Estadual nº Decreto
Reserva Ecológica da Juatinga (em 1992 1.APA de Cairuçu-federal territórios caiçaras
zação no (RJ) Estadual n. 17.981e nº 1992
recategorização)
SNUC
1. APA de Tamoios-estadual/RJ
ESEC Tamoios
(sobreposição contida nas territórios pesqueiros de
UC federal Estação Ecológica de Tamoios 1990 Decreto Federal 98.864/90
partes insulares) caiçaras
2. APA de Cairuçu-federal
1. PNSB-federal
APA de Cairuçu 1.TI Parati-Mirim
UC federal 1983 Decreto Federal 89.42/1983 2. REEJ-estadual/RJ
Área de Proteção Ambiental de Cairuçu 2.TI Guarani de Araponga
3. AELPM-municipal/Paraty

1.PESM- Pq. Estadual da Serra


1.TI Guarani de Araponga
PNSB Decreto Federal 68.172/1971 do Mar (Núcleos Stª Virgínia,
UC federal 1972 2.TQ do Campinho da
Parque Nacional da Serra da Bocaina e 70.694/1972 Pincinguaba e Cunha)-
Independência
estadual/SP
AELPM
sem
Área Estadual de Lazer de Paraty-Mirim Decreto Estadual 15.97/1972 1.TI Parati-Mirim
categori- 1.PNSB-federal
municipal (antigo Parque Ecológico de Paraty- 1972/1976 e Lei Estadual 220/1973; 2.TQ Campinho da
zação no 2.APA de Cairuçu-federal
Mirim)- parte em parte em Decreto Estadual 996/1976 Independência
SNUC
recategorização
APA da Baía de Paraty
Aréa de Proteção Ambiental Municipal 1984
Lei Municipal 685/1984 territórios marítimos de
UC municipal da Baía de 1987 1.APA de Cairuçu-federal
Lei Municipal 744/1987 caiçaras
Paraty, Parati-Mirim e Saco do alter. Limit
Mamanguá
110

Passo a descrever brevemente cada uma dessas áreas protegidas


ambientalmente com ênfase nos seus atributos naturais indicados em seus respectivos
Planos de Manejo e material de divulgação feitos pelos órgãos ambientais por elas
responsáveis e nos estudos a respeito de tais áreas protegidas.

3.2.1. Reserva Ecológica da Juatinga (em


recategorização) ― estadual

Com o nome de “Reserva Ecológica de Juatinga”, o Decreto Estadual-RJ nº


17.981, de 30 de outubro de 1992, editado no governo de Leonel Brizola, cria a reserva
em um parágrafo sucinto com a justificativa da sua relevância e urgência:

(...) considerando ser impostergável preservar o sistema local, composto


por costões rochosos, remanescentes florestais de Mata Atlântica,
restinga e mangues que, em conjunto com o mar, ao fundo, forma
cenário de notável beleza, apresentando peculiaridades não
encontradas em outras regiões do estado. (Preâmbulo do Decreto
Estadual-RJ nº 17.981/1992)

A Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ― REEJ, como um todo, é uma


área non aedificandi e o memorial descritivo apresentado no decreto segue a geografia do
local acompanhando a linha do mar, cuja poligonal é formada por uma linha seca,
imaginária, que parte “do ponto conhecido como Cachoeira Cocal (no lado do Canto
Bravo da Praia do Sono)”, essa linha seca alcança, na outra ponta, “o local conhecido
como Porto do Sono (ao fundo do Mamanguá). O memorial descritivo informa, ainda,
que fica resguardada a faixa de marinha, que por sua vez é, também, área non aedificandi.
A área da REEJ ― ou “REJ”, como é chamada ― é ocupada por comunidades caiçaras
e suas nucleações de habitações são interligadas por caminhos tanto terrestres quanto
marítimos, cujo acesso se dá por trilha, a pé, ou por mar, em embarcações. A “reserva
ecológica” é uma categoria de área protegida que não existe prevista no Sistema Nacional
de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC, instituído em 2000, e está classificada
pelo Instituto Estadual do Ambiente ― Inea como uma unidade de conservação de
proteção integral, ou seja, com restrições à presença humana. As sobreposições, na
atualidade, estão dadas entre a Área de Proteção Ambiental de Cairuçu, criada em 1983,
de administração federal; a REEJ; e as comunidades caiçaras.
111

Figura 10 ― Área de Proteção Ambiental de Cairuçu em


sobreposição com a Área Estadual de Lazer de Paraty-Mirim e
Reserva Ecológica da Juatinga ― situação em 2019 (Inea, 2013)

Entre 2010 e 2011 foi realizado o estudo intitulado “Definição de Categoria


de Unidade de Conservação da Natureza” para o espaço territorial constituído pela
Reserva Ecológica da Juatinga e Área Estadual de Lazer de Paraty Mirim (IGARA, 2011)
para recategorização da Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ― REEJ e foram
identificados doze núcleos de ocupação e oito comunidades tradicionais. O material da
“Consulta Pública da Recategorização da Reserva da Juatinga em Paraty” (2013), de
responsabilidade do Instituto Estadual do Ambiente ― Inea, tomou por base o estudo da
instituição Igara Consultoria em Aquicultura e Gestão Ambiental, porém o Inea elaborou
sua própria proposta. O material veiculou impresso e no meio cibernético, foi distribuído
e publicado no sítio do Fórum de Comunidades Quilombolas, Indígenas e Caiçaras, que
reúne vinte e três comunidades entre Ubatuba, Paraty e Angra dos Reis. Aquele material
de consulta tomou por base as edificações como índices de ocupação e relacionou 921
edificações identificadas no interior da reserva: 52% “casas de nativos”, 18% de “casas
de veranistas”, 12% “edificações rudimentares (ranchos e casas de farinha)”, 7% de
“casas de nativos para aluguel”, 5% de edificações comerciais e 4% de áreas de camping
(INEA - Instituto Estadual do Ambiente, 2011). Observe-se que a proporção de ocupação
112

por comunidades tradicionais, no quesito edificações, ficou relegada a “casas de nativos


para aluguel” e a “casas de nativos”, toma uma aparência reduzida quando a ocupação
poderia ser vista em termos de território, incluindo as atividades produtivas, quer na
participação no comércio empreendido pelas comunidades, quer nas atividades do fabrico
da farinha que implica, também, áreas de plantio, no que caracterizaria melhor a
territorialidade das comunidades ainda sem alcançar os caminhos que as emaranham e as
suas atividades no “sertão”, como características dos caiçaras no entremeio do ambiente
da mata e do mar.

De acordo com a antropóloga Ana Alves De Francesco, as vinte localidades


das comunidades, por ela identificadas, partilham de uma memória comum, de circuitos
de trocas e há “uma relação histórica entre elas” que apontam a Península da Juatinga
como um território contínuo, como é percebido pelos próprios moradores, afirma a autora
(DE FRANCESCO, 2012, p. 2). O mesmo modo de vida tem particularidades em algumas
comunidades quanto às atividades econômicas que desenvolvem e ao acesso, por vezes,
exclusivamente por mar, cujo padrão de deslocamento e da relação com os caminhos
marítimos dão ritmos à comunidade (idem, p. 3).

Com o título se referindo à recategorização da Reserva da Juatinga, o material


de consulta traz em seu conteúdo outras categorizações e criação de novas áreas: a área
Estadual de Lazer de Paraty Mirim ― AELPM permanecendo como a Área de Proteção
Ambiental de Cairuçu e outra parte se convertendo em um parque estadual, que é uma
unidade de proteção integral se interligando com a REEJ, que seria transformada no
mesmo parque estadual. Os locais identificados pelo estudo da Igara Consultoria de
comunidades caiçaras têm indicações para neles serem implantadas unidades de
conservação da categoria de Reserva de Desenvolvimento Sustentável ― RDS, ou seja,
todos os territórios tradicionais coincidiriam com as RDS’s. Nesse projeto amplo de
recategorização, é mantida a sobreposição entre a APA de Cairuçu e o Parque Nacional
da Serra da Bocaina ― PNSB; a AELPM, que é municipal, deixaria de existir e a Área
de Proteção Ambiental de Cairuçu, que é federal, continuaria como está, sendo sobreposta
pelo parque estadual a ser criado, e que é uma categoria de unidade de conservação mais
restritiva que a Área de Proteção Ambiental. As diferenças entre as duas propostas – a
proposta do estudo da Igara Consultoria encomendando pelo Inea e a proposta do próprio
Inea ― estão comparadas na página 113, na Figura 11 e na Figura 12.
113

Figura 11 ― Proposta de recategorizações decorrente do estudo de


2011 (Igara; Inea, 2013)

Figura 12 ― Proposta de recategorizações do Inea (2013)


114

Comparadas as propostas do estudo da Igara Consultoria e do Instituto


Estadual do Ambiente ― Inea, temos que ambas seccionam a territorialidade caiçara,
transformando parte dos locais de uso das comunidades, a da habitação e entrono, em
Reserva de Desenvolvimento Sustentável e parte em parque estadual, unidade de
conservação de proteção integral.

A proposta do Inea, conforme indicações feitas na Figura 12 ― Proposta de


recategorizações do Inea (2013): diminuiu a área de cinco comunidades caiçaras,
indicadas em (A) na figura ― que já estavam diminuídas na proposta da Igara Consultoria
por não considerar a interligação entre as comunidades e os outros usos na mata que não
implicam edificações; (C) propôs uma RDS marinha para a proteção do Saco do
Mamanguá; manteve a Terras Indígena Parati Mirim e o Território Quilombola de
Campinho da Independência cada qual confrontado com a APA de Cairuçu (G), de uso
sustentável de um lado e, de outro com o parque estadual, em verde na figura; isso indica
de qual lado será possível o território crescer ou ser reivindicada eventual correção, se for
o caso. No caso das comunidades caiçaras na Península da Juatinga e na comunidade de
Trindade, se ocorrer a recategorização para um parque estadual, haverá uma “delimitação
por fora”, vamos chamar assim, pois os territórios serão circundados por uma área que
não poderá ser utilizada pelas comunidades, por se tratar de proteção integral.

A abrangência de áreas a serem convertidas em proteção integral, em relação


à proposta do estudo da Igara Consultoria, foi ampliada pelo Inea em “B”, “D” e “F”. A
proposta de recategorização do Inea, ainda, perfez um corredor ecológico (F) ao encostar
o parque estadual proposto no Parque Nacional da Serra da Bocaina, mantendo a
conectividade por unidades de conservação compatíveis, o que é interessante, pois a meu
ver, os usos da APA, menos restritos e dada a intensa especulação imobiliária, poderiam
criar um enclave nessa região no futuro. No entanto, essa ideia de corredor ecológico se
desmancha no gargalo estreito entre o Território Quilombola de Campinho da
Independência e a Reserva particular do Patrimônio Natural―RPPN Laranjeiras (E),
inserida no mapa pelo Inea.

Os territórios, ainda que parciais, das comunidades caiçaras transformados


em pequenas Reservas de Desenvolvimento Sustentável não fazem as vezes de
regularização fundiária das comunidades, pois depende de interpretação do arranjo no
tratamento da presença de “moradores de fora” e de famílias caiçaras. Como se verá
abordado nesta tese, as interpretações das RDS’s são muitas, conforme indicou o estudo
115

da WWF―Brasil (WWF BRASIL, 2006) para a Reserva de Desenvolvimento


Sustentável, dentre as quais está a tentativa de equacionar conflitos sem necessariamente
comprometer-se com o pagamento indenizações; nessa perspectiva acrescento uma outra
finalidade, no caso e olhando para os mapas das duas propostas, que é “ilhar” tais
conflitos.

A questão com a RPPN é, também, complexa. A RPPN Laranjeiras,


localizada na porção de mata fechada, atrás da parte edificada do condomínio de mesmo
nome e contígua ao condomínio.

Figura 13 ― Mapa das três áreas da RPPN Laranjeiras (sem data no


SIMRPPN/ICMBio)

Na busca pela data da criação da RPPN Laranjeiras, para que constasse,


portanto, plotada nos mapas da consulta pública da recategorização da REEJ em 2013, e
na checagem de informações atualizada para a finalização da tese, em 2019, em consulta
que fiz ao Cadastro Nacional de Unidades de Conservação ― CNUC, não consta a RPPN
Laranjeiras nas instâncias federal, estadual ou municipal. Constam no Sistema de
116

Monitoria de RPPN ― SIMRPPN/ICMBio, o memorial descritivo82 e o mapa83


respectivo, que é diferente do mapa apresentado no material de consulta do Inea, onde
não está a terceira área da RPPN Laranjeiras, marcada em vermelho na Figura 13 ― Mapa
das três áreas da RPPN Laranjeiras (sem data no SIMRPPN/ICMBio), parte que pudesse
ter sido anexada àquela RPPN posteriormente à consulta da recategorização da REEJ e
demais áreas em 2013. No entanto, a consulta pública para a criação da RPPN Laranjeiras
da RPPN, dividida em três áreas, foi feita em 201884, dada a público no Diário Oficial da
União no “Aviso de Consulta Pública”85, em 1º de novembro de 2018, indicando a área
de 648,89 hectares e não a área de 618,89. A consulta pública para a criação da RPPN foi
aberta pelo ICMBio, na sede em Brasília, em “conduta contraditória” ― conforme
analisou o Ministério Público Federal em 4 de dezembro de 2018. A criação da RPPN
recebeu manifestação negativa da comunidade caiçara de Trindade, conforme consta no
jornal local “Vai Paraty”, de 29 de novembro de 2018, sob o título “Associação de
Moradores de Trindade se posiciona contra a proposta de criação da Reserva Particular
do Patrimônio Natural Laranjeiras, com 618,89 hectares”, e escreveram:

Nós da AMOT ― associação de moradores de Trindade não poderíamos


deixar de nós manifestar publicamente contra a proposta de criação da
reserva particular do patrimônio natural RPPN Laranjeiras, com área de
618,89 hectares. Há mais de 40 anos estamos lutando pela permanência
em nosso território tradicional Caiçara. Sofremos ao longo do tempo
inúmeras violências cometidas por empresas que sempre tentaram (e
ainda tentam) nos expulsar desse local e restringir nosso acesso ao
patrimônio natural preservado por nós mesmos. Durante a década de
1970 resistimos contra a construção de um condomínio luxuoso nas
terras em que vivemos há mais de quatro gerações. No entanto, fomos
obrigados a ter com os vizinhos do condomínio Laranjeiras, onde
seguranças guardam campo de golfe, quadras de tênis, helipontos e
centenas de mansões que privatizam as praias local, embora praias
particulares sejam proibidas por lei. Com a criação dessas três RPPNs
pelo Condomínio Laranjeiras (...) somente os órgãos ambientais terão
livre acesso a essa área, fato que certamente irá afetar brutalmente o
território das comunidades inseridas dentro da Área de Proteção
Ambiental do Cairuçu, e Unidade de Conservação que tem por objetivo,

82
Endereço da página do Sistema Informatizado de Monitoria de RPPN ― SIMRPPN, do ICMBio, com o
memorial descritivo da RPPN Laranjeiras, indicando área de 618,89 hectares totais para a soma de três
áreas distintas: http://sistemas.icmbio.gov.br/simrppn/requerimento/impressao/1261/memorppn/.
83
Endereço da página do Sistema Informatizado de Monitoria de RPPN ― SIMRPPN, do ICMBio:
Laranjeiras:http://sistemas.icmbio.gov.br/simrppn/requerimento/impressao/1261/mapa/.
84
Cinco anos depois de ter o polígono da RPPN Laranjeiras constado no mapa de consulta do Inea, em
2013, de recategorização da Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ⸻ REEJ.
85
DOU, 01/11/2018, Seção 3, p 130.
117

além de preservar o ambiente natural, segurar o modo de vida das


populações tradicionais. Ressaltamos ainda que caso seja efetivada essa
proposta, se ampliará a tensão entre os caiçaras e o Condomínio
Laranjeiras, visto que historicamente são inúmeros os casos de conflitos
envolvendo as comunidades do entorno e o referido empreendimento
imobiliário. Esperamos que nosso território não seja cada vez mais
privatizado, que os órgãos ambientais e as instituições democráticas não
permitam outra vez esse terrível ataque aos povos tradicionais de Paraty.
(Jornal “Vai Paraty, 29/11/2018)

O jornal El País - Brasil, em reportagem intitulada “O controverso


condomínio de Paraty que criou praias exclusivas para seus bilionários - segurança as
vigiam praias de difícil acesso: assim é o condomínio que divide comunidades caiçaras”,
de 30 de novembro de 2017, um ano antes da consulta pública para criação da RPPN
Laranjeiras. Nessa reportagem falam a advogada das comunidades tradicionais; o síndico
do Condomínio Laranjeiras; e o chefe da APA de Cairuçu no marco do impedimento do
acesso das comunidades tanto às praias quanto ao acesso de uma comunidade a outra,
antes do assunto da RPPN. Para alcançar as praias na Península da Juatinga (onde estão
a Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ⸻ REEJ e a APA de Cairuçu), o condomínio
disponibiliza às comunidades caiçaras e aos turistas um transporte coletivo, pois são
impedidos por seguranças de percorrerem o trecho de cinco minutos de caminhada a pé
para transpor o condomínio. Há atrasos no transporte, as pessoas perdem horários de
ônibus. E à noite, após às 18 horas, são transportados apenas os moradores enfermos com
prévia comunicação ao condomínio, e nunca os turistas. O transporte oferecido pelo
condomínio para duas comunidades, na Península da Juatinga, estipula o número máximo
de 400 pessoas na ida e na volta, o que atrapalha a saída dos turistas das praias de Ponta
Negra e do Sono, relata a advogada do Fórum de Comunidades Tradicionais de Paraty,
Thatiana Lourival.

A seguir, me reporto a dois documentos constantes na Ação Civil Pública


com pedido de tutela de urgência86, em 4 de dezembro de 2018 (MPF ― Ministério
Público Federal, 04/12/2018), um é a memória da reunião acontecida em setembro de
2016, com a presença do Ministério Público Federal em Angra dos Reis, no Estado do
Rio de Janeiro, e trata do assunto da travessia do Condomínio Laranjeiras com

86
Dependente da Ação Civil Pública nº 000841-78.2009.4.02.5111; referente ao Inquérito Civil nº
1.30.014.000229/2016-76; 1.30.014.000141/2012-21; 1.30.000052/2018-70; 1.30.000168/2017-28 e
1.30.014.000203/2003-11.
118

representantes das comunidades da Praia do Sono e de Ponta Negra; o outro documento


é um parecer em que o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade ―
ICMBio, por meio da APA de Cairuçu, se manifesta após tomar conhecimento da
proposta, em novembro de 2018, de criação da RPPN Laranjeiras.

As comunidades caiçaras da Praia do Sono e de Ponta Negra enfrentam


questões quanto à regulação da passagem por uma área ocupada pelo condomínio. Na
Ação Civil Pública com pedido de tutela de urgência, em 4 de dezembro de 2018 (MPF
― Ministério Público Federal, 04/12/2018), é relatada uma reunião acontecida, em 27 de
setembro de 2016, entre o Ministério Público, membros da comunidade da Praia do Sono
e representante do Condomínio Laranjeiras e representantes do Fórum de Comunidades
Tradicionais. Dessa reunião, ocorrida em 2016, resultou o documento “Memória da
Reunião realizada entre Ministério Público Federal, Comunidade da Praia do Sono e
Condomínio Laranjeiras” (MPF ― Ministério Público Federal, 04/12/2018, pp. 15-29).
Esse material é interessante por deixar entrever as discussões naquela cena, onde temas
são colocados para a resolução e nele estão indicadas as aflições das comunidades, ainda
que anotadas no propósito do registro da explanação do acompanhamento de Inquérito
Civil instaurado, não constituindo, certamente, um relato de todas as questões
relacionadas às comunidades. A centralidade no tema do acesso dos moradores e dos
turistas às comunidades na interposição por parte do condomínio é a chance ímpar que o
documento traz de uma reunião restrita aos envolvidos e aos seus assessores:
Observatório de Territórios Saudáveis e Sustentáveis da Bocaina ― OTSS, Fórum de
Comunidades Tradicionais de Angra, Paraty e Ubatuba ― FCT e Fundação Oswaldo
Cruz ― Fiocruz.

O material é rico no debate das questões, identifiquei alguns grupos de temas,


os quais apresento a seguir.

Representatividade:
Em 2009 houve um acordo para o acesso à Praia do Sono com regramentos
distintos para o turista e para o morador, este poderia transpor o condomínio e o turista
usaria a trilha. Conforme lembrado pela advogada do Fórum de Comunidades
Tradicionais ― FCT, na reunião em 27 de setembro de 2016, que aquele acordo de 2009
foi selado entre o Ministério Público Federal ― MPF e o condomínio; e que a comunidade
119

da Praia do Sono não assinou o acordo. Das falas da procuradora do MPF e da advogada
do Fórum de Comunidades Tradicionais ― FCT se depreendem que há uma questão
quanto à validação do acordo de 2009 relacionada à representatividade. Comentou a
procuradora do Ministério Público Federal ― MPF que, na ocasião, “o juiz perguntou
quem era o representante da comunidade na primeira vez que esteve no local. Assim,
havia representatividade para que o que fosse acordado a comunidade iria aceitar”; reitera
a advogada do Fórum de Comunidade Tradicionais que é “importante deixar claro para
os comunitários presentes que os representantes fizeram o melhor que puderam. Nós
íamos submeter o acordo final para a comunidade, mas não tivemos como fazer. Nós
ainda não tivemos acesso a esse acordo final”. Acerca do tema da representatividade,
Ronaldo, quilombola do Campinho da Independência e representante do FCT, “disse
também que a representatividade é uma forma de representação, mas a Convenção 169
da OIT diz que medidas que interfiram na vida das comunidades necessitam de consulta
pública”, diz ele que “possivelmente o que as lideranças propuseram foi isso, antes que o
acordo tivesse sido assinado. Assim, eles poderiam concordar e discordar das cláusulas
propostas”.

O que ocorreu foi que o número de representantes não garantia a abrangência


da consulta, os representantes entenderam que o documento seria restituído para a
consulta mais ampla, mas foi assinado de forma final antes disso. Um morador (não
identificado na memória da reunião) da comunidade da Praia do Sono contou que estava
na reunião que gerou o acordo de 2009 “e lá foi pedido para o acordo passar pela
comunidade antes de ser assinado. Mas, isso não foi respeitado”, disse que o acordo não
é satisfatório a exemplo do transporte de barco não ser “suficiente para transportar o
material de construção, pois a comunidade está em desenvolvimento”, disse que o juiz,
na ocasião, aventou a possibilidade de se “fazer um acesso independente junto com a
prefeitura, por exemplo, uma estrada”; a procuradora do Ministério Público informou que
a estrada está em licenciamento e lembrou “que a estrada é algo que a comunidade não
entrou em acordo, se será uma estrada com acesso direto” e lembrou que “a ação judicial
[contra o condomínio] estava suspensa por conta da estrada”, sugerindo ser cobrado esse
assunto da Prefeitura de Paraty, pois o processo da ação judicial estava suspenso por isso
e “os presentes desconhecem o projeto, a discussão está baseada em suposições” (MPF
― Ministério Público Federal, 04/12/2018, pp. 17-20).
120

Acordo:
Dentre as indicações para o do condomínio, no acordo de 2009, e o
acompanhamento do MPF no seu cumprimento, foram lembrados, na reunião do dia 27
de setembro de 2016, os seguintes compromissos: “(i) o Condomínio irá se empenhar em
ampliar o deck87; (ii) tornar o local de embarque/desembarque mais seguro em relação à
chuva e ao vento [o deck]; (iii) [garantir] a passagem do barco com material de construção
uma vez por semana”.

Figura 14 ― Trajeto marítimo do Condomínio Laranjeiras à Praia do


Sono, Paraty, RJ.

Fonte: Sítio na Rede Mundial de Computadores chamado “Um lugar para viajar” 88

Rafaela (Comunidade da Praia do Sono) disse que o transporte com a Kombi


já existe, “mas não funcionam e nós tentamos melhorar com a ação [ação civil pública].
Nós vimos que tem alguns pontos no acordo que já existem e não funcionam”. Dra.
Monique (MPF/ Angra dos Reis) disse que “quando os moradores da Praia do Sono
entraram com a ação, acreditaram que conseguiriam tudo o que tinham direito”. Mas, a
decisão final depende de cada juiz.

Limitação ao turismo e à economia:


Jadson dos Santos, caiçara da comunidade da Praia do Sono e presidente da
Associação de Moradores, no início da reunião de 27 de setembro de 2016, a abriu e

87
Onde as pessoas ficam esperando a vez de utilizar o transporte do condomínio, reclamam que ficam
apertadas ali.
88
Endereço na Rede: https://umlugarparaviajar.com/tag/paraty/.
121

“enfatizou que o Sono é uma comunidade caiçara, seus modos de vida tradicionais e a
importância do turismo para sua sobrevivência local. Em outro momento da reunião,
Ronaldo, representando o FCT, a respeito da comunidade da Praia do Sono, “comentou
que essa é uma das poucas comunidades que discutem o turismo de base comunitária na
região e que não se deve dissociar os turistas e os moradores”.

Acesso às comunidades Praia do Sono e Ponta Negra:


São dois caminhos de acesso à Praia do Sono e à Ponta Negra, na porção
direita da Reserva Ecológica Estadual da Juatinga: uma trilha pela mata que dura
aproximadas três horas e o trajeto da portaria do Condomínio Laranjeiras, por Kombi, até
o ancoradouro e de lá para as comunidades da Praia do Sono e de Ponta Negra.

Naquela reunião, de 27 de setembro de 2016, a comunidade caiçara da Praia


do Sono se manifestou indicando que no passado, seus avós passavam livremente pelo
condomínio, disse Lidiane; outro morador caiçara contou “que não pode responder pelo
que acontecia nas décadas de 70 e 80, mas que o acordo não regrediu o direito que os
moradores da Praia do Sono têm hoje” e que “é preciso entender que uma coisa é o que a
gente quer, outra coisa é o que o judiciário decide”. No entendimento do juiz que
“percorreu as trilhas e considerou que é dado o devido acesso às praias”, segundo relatado
pela procuradora do Ministério Público Federal; no entanto, “possibilitar o acesso às
praias é passar pelo Condomínio no entendimento de alguns” e “a lei entende que deve
se criar um acesso, não o acesso que alguns acharem melhor” e, em dado momento a
partir do acordo de 2009, muitos moradores entenderam que teriam acesso livre, explicou
a procuradora. Rafaela, da comunidade da Praia do Sono, disse que a ação com que entrou
a comunidade contra o condomínio era para melhorar o transporte já existente e que,
talvez, pudesse “ver com os seguranças o que funciona e o que não funciona para ver
como melhorar”.

Jadson, também da comunidade, relatou que se gasta perto de uma hora na


espera do transporte e que o acordo foi feito com os representantes do condomínio, mas
que estes não estão lá no dia a dia; ao que respondeu a procuradora do MPF que é essa a
razão dos vigilantes participarem da reunião; outra moradora da Praia do Sono, acerca da
segurança, contou que “sua filha teve as dores de parto prematuro durante a noite e o
segurança não se prontificou a auxiliá-la no píer, colocando a mão no bolso como
122

indicativo de não poder tomar nenhuma atitude” e, passadas duas semanas, ela mesma
tomando o transporte, “sentiu-se muito humilhada quando refez o trajeto e o segurança
falou de forma irônica que estava com dor”; outra moradora da Praia do Sono relatou já
ter lido as cláusulas do acordo e pergunta, na reunião, por quem pode procurar no
condomínio às 7 horas da manhã para o filho chegar à escola às 8 horas; a procuradora
do MPF “explicou que não acontecerá da criança não conseguir ir à escola por não poder
passar. Não é questão de boa vontade, o condomínio vai se organizar para atender essa
demanda”. O síndico do condomínio, o senhor Cirilo, pediu à procuradora do MPF que
lesse as cláusulas do acordo para os presentes em proveito daquela “chance de ordenar as
ações”. Com essa atitude do síndico, observo, se teria uma espécie de chancela das
cláusulas proibitivas às comunidades, porque é disso que aquele acordo de 2009 tratou,
na voz do Ministério Público para as comunidades naquela reunião, reiterando o acordo
e não os questionamentos das comunidades.

Ainda, na reunião, outra pessoa da comunidade da Praia do Sono disse que a


preferência para o embarque no transporte é dada às pessoas ligadas ao condomínio e,
por isso, os moradores da Praia do Sono acabam esperando horas para serem
transportados; um outro morador da comunidade da Praia do Sono contou que o local em
que os barcos da comunidade ancoram são quebrados propositalmente.

Figura 15 ― Trajetos marítimos a comunidades tradicionais a partir


do Condomínio Laranjeiras
123

Diferenças e distinções
Um morador da Praia do Sono questionou o fato de os moradores da Vila
Oratório poderem andar livremente pelo condomínio e não os da Praia do Sono; Lidiane,
moradora do Sono, disse que “a Kombi estava parada e ela ia perder o ônibus para Paraty”,
quando foi tentar passar a pé pelo Condomínio e foi agredida pelo segurança, Lidiane
questionou não ter podido percorrer a pé um percurso de cinco minutos perto do rancho
quando este “é percorrido pelo pessoal da Vila Oratório”; também da comunidade da
Praia do Sono, Adriana “questionou o Sr. Cirilo sobre qual a diferença entre o caiçara da
Praia do Sono, da Vila Oratório e da Ponta Negra”, contou que “existia um acordo
antigamente de passar a pé pelo rancho e agora o Condomínio quer fazer outro acordo só
com os moradores da Praia do Sono”, falou que pelo fato de os seguranças do condomínio
reconhecerem os moradores da Praia do Sono “sempre solicitam que se identifiquem”;
outra moradora da comunidade da Praia do Sono disse que “a situação ficou mais
complicada após a entrada do Sr. Cirilo como síndico o Condomínio Laranjeiras”.
Ronaldo, quilombola e representante do Fórum de Comunidades Tradicionais, alertou
que “é preciso tomar cuidado para não colocar os companheiros nesse balaio de gato e
serem nivelados por baixo, assim todos perderem”; Leila, da comunidade da Praia do
Sono, retomou a história comentando “que as pessoas da Vila Oratório moravam dentro
do Condomínio Laranjeiras e não podem ser proibidos de passar. Esses moradores são os
donos da terra onde os condôminos moram atualmente”.

É, de alguma maneira, desconcertante ver o Ministério Público Federal ―


MPF organizar o acordo (de 2009) no cerceamento dos caminhos para as moradias dos
caiçaras e para a escola dos filhos, compras de supermercado e a vida cotidiana. Mais
tarde, o MPF retomou o assunto e entendeu que se tratava mais que uma interposição no
direito de ir e vir e que o condomínio se apoiava no acordo feito para criminalizar
membros das comunidades caiçaras (MPF ― Ministério Público Federal, 04/12/2018, p.
34).

Outro tema conflitivo, é o licenciamento ambiental de empreendimentos


naquela mesma região. Em novembro de 2017, é reportado pelo El País ― Brasil que a
chefe da APA de Cairuçu estava para exigir do condomínio Laranjeiras documentos
relativos a um posto de gasolina, dois heliportos e quanto à dragagem periódica de uma
marina pequena; empreendimentos estes já instalados e que, portanto, o licenciamento
seria posteriori, na condição de um passivo ambiental. No que tocou aos limites do
124

condomínio, o jornal El País – Brasil perguntou ao seu síndico, Cirilo Pierre Ribeiro:
“Toda aquela mata com placas ao longo do trajeto pertence ao condomínio?”, ao que
respondeu o senhor Cirilo para o jornal “Se tem placa com o nome do condomínio, sim”.
A reportagem diz que “os limites do terreno não são claros”, conforme a reportagem
interpretou as informações fornecidas pela chefe da APA de Cairuçu, Lilian Hangae,
quem, também, explicou àquele jornal a perspectiva do penúltimo Plano de Manejo da
APA de Cairuçu, vigente entre 2004 e maio de 2018:

...feito em 2004 pela ONG SOS Mata Atlântica, com acompanhamento e


aprovação do Ibama com recursos do condomínio Laranjeiras (...) Esses
proprietários foram ouvidos no sentido de fazer aumentar as zonas de
expansão residencial e turística. (...) ao nos reunirmos com populações
tradicionais da região [tempos depois da ocasião de elaboração do Plano
de Manejo de 2004], há uma queixa unânime de que foram pouco
escutadas. Agora, vamos mudar isso. (Lilian Hangae, chefe da APA de
Cairuçu, entrevista ao El País ― Brasil, 30/11/2017)

Faz parte das chaves de diálogo, que o poder público disponibiliza, a


setorização das questões e dos problemas já alinhados ao órgão administrativo afeto, com
responsabilidade e com atribuições para tratar deste ou aquele tema. Os temas estão nas
comunidades tradicionais, confluídos nelas, de uma única vez no seu dia a dia e no seu
percurso. Devemos estar atentos ao falar das aflições e problemas das comunidades, ou
em reportar o que elas manifestam, para não inverter tal confluência e fazer parecer que
das comunidades emanariam problemas e questões trabalhosas às instituições
governamentais e percalços ao Estado. O que pode ser uma inversão desavisada ou
proposital.

Retomemos a cronologia até aqui para seguir um pouco mais adiante: a Área
de Proteção Ambiental ― APA de Cairuçu foi criada pelo governo federal em 1983; a
Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ― REEJ, pelo governo do Estado do Rio de
Janeiro em 1992, com sua área sobreposta à APA de Cairuçu; a consulta da
recategorização promovida pelo Instituto Estadual do Ambiente ― Inea ocorreu em 2013;
O Inea insere na sua proposta de recategorização um mapa da RPPN Laranjeiras que não
havia sido ainda criada, cuja consulta de RPPN se dará cinco anos mais tarde, com um
mapa ampliado e, conforme remarcou o Ministério Público Federal na Ação Civil Pública
em dezembro de 2018, o aviso de consulta e acolhimento para estudo da RPPN proposta
por parte do ICMBio/Sede se dá em contradição interna ao órgão. Meses antes, o novo
125

Plano Manejo da APA de Cairuçu havia sido aprovado pelo ICMBio, por meio da
Portaria/ICMBio nº 533, de 24 de maio de 2018, publicada no Diário Oficial da União no
dia seguinte, à Seção 1, página 50.

Os técnicos do ICMBio se vão manifestar com relação à criação da RPPN


Laranjeiras, cujo Parecer/ICMBio ― SEI nº 11/2018-APA Cairuçu (MPF ― Ministério
Público Federal, 04/12/2018, p. 58) ― parecer este que é um dos documentos subsidiários
constantes na Ação Civil Pública com pedido de tutela de urgência89, em 4 de dezembro
de 2018, que cita como réus o Condomínio Laranjeiras, o Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade ― ICMBio, a União, o Instituto Estadual do Ambiente
― Inea e o Município de Paraty. Aquele parecer analisa as poligonais de cada uma das
três RPPN’s criadas na mata sob o mesmo nome, como segue na numeração dos polígonos
do norte para o sul, em direção à área ocupada pela infraestrutura construída condomínio
rente ao mar.

Os limites constantes da proposta de RPPN Laranjeiras 01 se


sobreporiam predominantemente à parte da Zona de Conservação e a
uma parte menor da Zona de Uso Restrito [do zoneamento do Plano de
Manejo da APA de Cairuçu]. A porção norte dos limites propostos
apresenta contiguidade ao Território Quilombola do Campinho da
Independência. Contudo, é imprescindível identificar e avaliar os sabidos
usos que a comunidade quilombola exerce fora dos limites das áreas do
território titulado, atividades que poderiam ser afetadas pela criação da
RPPN 01. (Parecer/ICMBio ― SEI nº 11/2018-APA Cairuçu, na Ação Civil
Pública 04/12/2018, p. 58)

Explica, também, o Parecer/ICMBio ― SEI nº 11/2018-APA Cairuçu, que:

Os limites constantes da proposta da RPPN Laranjeiras 02 se


sobreporiam totalmente à ZURE que integra a territorialidade dos
caiçaras de Laranjeiras, bem como restaria justaposta à Zona
Populacional Caiçara de Laranjeiras, onde estão as áreas de moradia das
famílias da Vila Oratório e do Sítio dos Tucanos. Igualmente, os limites da
RPPN Laranjeiras 03 se sobreporiam à ZURE que integra a territorialidade
dos caiçaras de Laranjeiras e da Praia do Sono. ― Parecer/ICMBio ― SEI

89
Dependente da Ação Civil Pública nº 000841-78.2009.4.02.5111; referente ao Inquérito Civil nº
1.30.014.000229/2016-76; 1.30.014.000141/2012-21; 1.30.000052/2018-70; 1.30.000168/2017-28 e
1.30.014.000203/2003-11.
126

nº 11/2018-APA Cairuçu (MPF ― Ministério Público Federal, 04/12/2018,


p. 59)

No Parecer, está informado que o rito da consulta prévia, livre e informada


não foi considerado, o que cabe quando se trata de quilombolas, povos indígenas e
comunidades tradicionais, no caso caiçaras, como sujeitos de direito. O mencionado
Parecer reitera que o condomínio está integralmente afetado pela APA de Cairuçu e que
esta não foi consultada nos termos da Lei nº 9.985/2000, a Lei do SNUC, e do seu
regulamento, o art. 10, Decreto nº 4.340/2002; e que o novo Plano de Manejo elegeu
quatro prioridades de gestão, dentre as quais “promover a regularização fundiária dos
Territórios Tradicionais Caiçaras, assim entendido conforme a definição instituída no art.
3°, II, do Decreto n° 6.040/2007”, este que instituiu a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais.

Na extremidade oposta ao condomínio e fora dele, do outro lado da Península


da Juatinga e ao fundo do Saco do Mamanguá, está a Terra Indígena Arandu Mirim. Em
2005 a administração da Reserva Ecológica Estadual da Juatinga notificou a Funai e
solicitou a retirada dos indígenas. Pedido reiterado em 2006, dessa vez com o pedido
encaminhado ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – MPE, para que
intervisse junto à Funai na retirada dos indígenas (IGARA, 2011, pp. 59, 64).

3.2.2. Área Estadual de Lazer de Paraty-Mirim (parte


em recategorização) ― estadual

A histórica Igreja de Nossa Senhora da Conceição integra o Complexo


Arquitetônico Ruínas de Paraty-Mirim, localizado na Área Estadual de Lazer de Paraty-
Mirim ― AELPM. O potencial turístico histórico de Paraty-Mirim foi a razão da
mudança do nome de Parque Estadual Paraty Mirim, criado em 1972, para o nome de
Área Estadual de Lazer de Paraty Mirim, em 1976, ocasião em que o parque é doado ao
patrimônio do Estado do Rio de Janeiro, para a Companhia de Turismo do Estado do Rio
de Janeiro S.A. ― Flumitur, depois chamada Companhia de Turismo do Estado do Rio
de Janeiro ― Turisrio (ZUQUIM, 2002, p. 88; IBAMA, 2004, p. 76). A AELPM é
constituída por terras estaduais das fazendas Paraty-Mirim e Independência, adquiridas
pelo Estado do Rio de Janeiro em meio a diversas desapropriações feitas entre 1959-1963
127

(CPDA, 2015), ao longo dos governos de Roberto Silveira (1959-1961, eleito pela
coligação PTB-UDN), de Celso Peçanha (1961-1962), de Luiz Miguel Pinaud (1963,
PSD, mandato tampão) e de Badger da Silveira (1963-1964, PTB). As desapropriações,
a partir de fins da década de 1950, passaram a constituir a frente das demandas dos
movimentos dos trabalhadores rurais, pois eram tais demandas eram encaminhadas ao
Poder Executivo; ao passo que as ações de usucapião eram submetidas à avaliação do
Poder Legislativo, o que era mais moroso. E o histórico com as experiências nas ações de
usucapião não era bom: advogados aceitavam dinheiro da empresa para convencer a
comunidade de Trindade a aceitar negociações e deixarem a vila, cujo valor era superior
ao pago aos advogados pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais; há caso de que um
advogado que obteve a procuração de um trindadeiro para entrar com a ação de usucapião
e entregou o documento à empresa Adela-Brascan (CPDA, 2015, pp. 321, 338)

Com a crescente valorização das terras incrementada pela instalação do trecho


da rodovia BR-101, a Rio-Santos, a criação de áreas de preservação surgiu como forma
de conter o desflorestamento nos municípios de Angra dos Reis e de Paraty, os quais
possuíam parcos e frágeis instrumentos legais quanto ao uso e à ocupação do solo. Em
Paraty, nesse sentido, foram criados o Parque Nacional da Serra da Bocaina, em 1971, e
o Parque Estadual Paraty Mirim em 1792 (CPDA, 2015, p. 301), depois chamado Área
Estadual de Lazer de Paraty Mirim ― AELPM. De área prioritária para a reforma agrária,
Paraty é convertida para a prioridade turística.

O espaço geográfico da AELPM é aquele abrangido por toda a Bacia


Hidrográfica do Rio Paraty-Mirim, desde o divisor de águas onde está marcada a divisão
entre os estados do Rio de Janeiro e o de São Paulo. A porção das nascentes no Morro do
Cruzeiro, Morro da Forquilha e Morro da Pedra Redonda estão sob a proteção do Parque
Nacional da Serra da Bocaina ― PNSB, que é uma unidade de conservação do grupo de
proteção integral. E nessa porção há uma tripla afetação: o PNSB, a APA de Cairuçu e a
AELPM. Na área abrangida pela AELPM estão, também, o Território Quilombola do
Campinho da Independência e a Terra Indígena Parati-Mirim dos indígenas Guarani,
como podem ser visualizados na Figura 16, na página 128. O território Guarani está parte
regularizado, na Terra Indígena Parati-Mirim, conforme o mapa na figura, e parte se
encontra em regularização fundiária desde 2008, com a Portaria nº 184/Funai, de 6 de
fevereiro de 2008, que instituiu o grupo de estudo para a sua identificação e delimitação.
128

Figura 16 ― Mapa da Área Estadual de Lazer de Paraty-Mirim ― AELPM, Terra Indígena Araponga, Território Quilombola Campinho da
Independência e Terra Indígena Parati Mirim
129

A AEPLM abrangia ao todo, em 2011, dez localidades populacionais com a


predominância de sítios e núcleos de ocupação rural (Pedras Azuis, Forquilha, Córrego
dos Micos, Patrimônio, Novo Horizonte e Independência), ocupação urbana (Paraty-
Mirim) e as Terras Indígenas Araponga e Parati-Mirim e o Território Quilombola do
Campinho da Independência. O estudo de redefinição de categoria de unidade de
conservação (IGARA, 2011, pp. 40, 47) destaca que a localidade de Novo Horizonte foi
formada com moradores das localidades Campinho e de Independência. Paraty-Mirim é
um distrito do Município de Paraty abrangido pela AELPM, tendo sido porto de
mercadorias e de escravos e fazenda para a produção de açúcar. O local era movimentado
e chamado de “Pequeno-Paraty” por volta de 1850. A Fazenda Paraty-Mirim foi
comprada pelo Estado do Rio de Janeiro no intuito de doá-la aos moradores em uma forma
de reforma agrária (IGARA, 2011, p. 46). O cadastramento das famílias e o cuidado com
a área adquirida era feito pelo “Senhor Itamar” colocado ali pelo governo do Estado do
Rio de Janeiro para essa finalidade, depois, ele foi retirado do posto, restando a ocupação
desordenada:

Em meados dos anos 1960, não se sabe bem, talvez pela política de
Paraty, o responsável da área foi retirado, possibilitando a ocupação das
terras da fazenda por pessoas de fora, inclusive de outras regiões, com a
esperança de serem beneficiados pelo trabalho do governo. (IGARA,
2011, p. 46)

Provavelmente, o ocorrido se deva à edição da Lei nº 3.961, dada a público


no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro em 24 de junho de 1959, que trazia a
previsão de que “nacionais favelados”, para se resolver questões urbanas, poderiam ser
acomodados em áreas para atividades agrícolas, bem como uma série de migrantes que
chegavam à baixada fluminense em busca de trabalho (CPDA, 2015, p. 62). O que não
retira a possibilidade de outros usos da lei nas “brechas” em assentar outros que não os
beneficiários nela indicados.

Na Área Estadual de Lazer de Paraty Mirim ― AELPM, há um vale entre as


fazendas Independência e Paraty-Mirim que foi sendo ocupado pelos negros, após 1888,
com as suas casas construídas, que derrubavam e que as construíam em outro lugar, com
os roçados ao redor, conforme relatório acerca da violência no campo do CPDA/UFRJ
(CPDA, 2015).
130

Essa era a dinâmica. As pessoas das comunidades hoje conhecidas como


Cabral, Campinho da Independência, Camburi e Fazenda usavam o
mesmo território. A ocupação continuada do território se rompeu
apenas quando surgiram Patrimônio, Pedras Azuis e Córrego dos Micos,
comunidades formadas pela migração de capixabas, mineiros e baianos
na década de 1960. (CPDA, 2015, p. 353)

A contiguidade da ocupação quilombola foi observada por Arruti (ARRUTI,


2007) seguindo até Ubatuba, na comunidade de Caçandoca, como mencionei atrás. Em
dado momento, proprietários locais pretenderam anexar a área do Campinho da
Independência à fazenda Paraty-Mirim. Na década de 1960, fazendeiros em Paraty-Mirim
e seus herdeiros, se dizendo donos das terras do Campinho, obtiveram folhas em branco
com assinaturas datiloscópicas de moradores do Campinho e as anexaram a uma ação de
despejo (CPDA, 2015, p. 354).

3.2.3. Área de Proteção Ambiental de Cairuçu ―


federal

A APA de Cairuçu foi criada por meio do Decreto federal nº 89.242, de 27 de


dezembro de 1983, com o Ministério do Interior sob a responsabilidade de Mário
Andreazza, no governo de João Figueiredo. A cooperação técnica entre a organização não
governamental SOS Mata Atlântica; o Ibama; o Instituo Estadual de Florestas ― IEF,
atual Instituto Estadual do Ambiente ― Inea; e a Prefeitura Municipal de Paraty, com
recursos do Condomínio Laranjeiras, viabilizaram a elaboração do Plano de Gestão
Ambiental da APA Cairuçu em 2004, (PREFEITURA MUNICIPAL DE PARATY, s/d;
IBAMA, 2004).

A área da APA de Cairuçu se estende da divisa entre os estados de São Paulo


e do Rio de Janeiro até o contorno do Centro Histórico de Paraty e do litoral até o Parque
Nacional da Serra da Bocaina. Ao ser criada, se sobrepôs em parte do Parque Nacional
da Serra da Bocaina (criado em 1971) e ficou sobreposta integralmente à Área Estadual
de Lazer de Paraty Mirim ― AELPM. Depois, foi criada APA da Baía de Paraty90 (em
1984) pelo Município de Paraty com partes em sobreposição à APA de Cairuçu (criada

90
APA da Baía de Paraty, ou Área de Proteção Ambiental Municipal da Baía de Paraty, Parati-Mirim e
Saco do Mamanguá.
131

em 1983), a Estação Ecológica Tamoios (criada em 1990) se sobrepôs em parcela do


território da APA de Cairuçu e a Reserva Ecológica Estadual da Juatinga foi criada (em
1992) totalmente inserida na APA de Cairuçu.

Figura 17 ― APA de Cairuçu com suas 63 ilhas e indicação das


Terras Indígenas Araponga e Parati Mirim e os Territórios
Quilombolas Campinho da Independência e Cabral (Plano de
Manejo, 2018)

A contenção da expansão do desflorestamento e da abertura de áreas na


especulação imobiliária consta como um importante propósito na criação da Área de
Proteção Ambiental de Cairuçu, bem como na criação do Parque Nacional da Serra da
Bocaina e da Área Estadual de Lazer de Paraty Mirim ― AELPM (ALMEIDA, 1997, p.
33). A possibilidade da existência de uma “indústria” de indenizações por conta da
criação de áreas protegidas não foram investigadas na pesquisa desenvolvida para esta
tese, mas é uma possibilidade que não é descartada e deve ser ressaltado, ainda, que
muitas unidades de conservação de proteção integral não tiveram seu processo de
regularização fundiária concluído por conta de não retirarem a população do seu interior,
o que só pode ser feito após a devida indenização.
132

É de se pensar que as unidades de conservação de proteção integral que se


sobrepõem aos territórios tradicionais contam com a vantagem de não de indenizarem o
valor da terra nua às famílias das comunidades, o que é pago aos proprietários
particulares91, além de requisitar ao órgão de governo a providência na remoção, como
fez o Instituto Estadual do Ambiente do Estado do Rio de Janeiro (quando era ainda IEF)
à Fundação Nacional do Índio ― Funai, em 2005 e 2006, por conta da Terra Indígena
Arandu Mirim localizada na Reserva Ecológica Estadual da Juatinga. Feito o parêntese
para essa observação com relação às situações de sobreposição, voltemos à criação da
APA de Cairuçu.

No artigo 6º do decreto que criou a APA de Cairuçu, em 1983, há restrições


aos trabalhos de movimentação de terra: “a terraplenagem e a abertura de canais, quando
essas atividades importarem em sensível alteração das condições ecológicas locais” (art.
6º, inciso II) e “o exercício de atividades capazes de provocar acelerada erosão das terras
ou acentuado assoreamento das coleções hídricas” (art. 6º, inciso III). Também, as
atividades de extração de granito e outras atividades minerárias estavam submetidas a
regras naquele decreto que criou a APA de Cairuçu. O Plano de Manejo da APA de
Cairuçu, de 2004, aponta a ocorrência de um tipo especial de granito no interior da APA:

Na região sul do Saco de Mamanguá, na Fazenda Santa Maria, ocorre um


tipo muito valorizado de granito, o granito Ubatuba, objeto de extração
de blocos para exportação no passado, e que conta com autorização do
CPRM e licenciamento atualizado para exploração. Na área permanecem
cerca de 20 blocos que ainda não foram retirados. (IBAMA, 2004, p. 27)

Parte da Fazenda Santa Maria do Mamanguá foi adquirida por Gibrail Nubile
Tannus comprada da família de Teófilo Remek, e na sequência se dizia dono da área toda
da fazenda em porções que não lhe pertenciam, que eram: Ponta Negra, Antigo Grande e
Antigo Pequeno. Nas décadas de 1960 e 1970 seguintes, prosseguiu se apossando de
terras com interferência intermediada nos cartórios na adulteração e na subtração de
documentos dos imóveis, como no episódio da grileira Maria Dutra, em caso judicial,
flagrada ao arrancar folhas de escritura daquelas terras em 1976. Os documentos
adulterados faziam a cadeia dominial de Gibrail remontar ao século XVI (CPDA, 2015,

91
Se algum membro da comunidade possuir algum título, será tratada como proprietário.
133

p. 324), conforme relatado pelo padre Pedro Geurts, em relato à CPT Nacional92. Com
respaldo de instituições governamentais, por meio da autorização de lavra do DNPM e de
projeto de empreendimento turístico junto ao Incra e à Embratur, Gibrail se servia dessa
chancela governamental para tramitar documentos com a comunidade da Praia do Sono,
com indenizações pífias que significavam, em fato, o seu despejo no reconhecimento de
posse ao Gibrail. Os comunitários eram enganados ao assinarem um termo de comodato93
com impressões datiloscópicas, aconselhados pelo pastor Agostinho Ignácio a fazerem-
no como se fosse uma boa garantia da terra (CPDA, 2015, p. 325).

Gibrail Tannus, na década de 1970, possuía dois projetos na área da Fazenda


Santa Maria (em região incerta em meio à Praia do Sono e do Saco do Mamanguá), um
projeto de mineração de granito, autorizado pelo governo; e o outro era um projeto
turístico aprovado pela Embratur. Os projetos ligados ao governo serviram para Tannus
obter documentos e assinaturas dos caiçaras e promover esbulhos (CPDA, 2015; IGARA,
2011). Em exame da cadeia dominial sucessória da Fazenda Santa Maria, a Secretaria
Extraordinária de Assuntos Fundiários, Assentamentos Humanos e Projetos Especiais –
SEAF entendeu que os erros no registro dos documentos das terras da Fazenda Santa
Maria tornavam nulos os documentos daquele imóvel e a Procuradoria Geral do Estado
ajuizou Ação Discriminatória da Praia do Sono (ACO 586, de 19 de fevereiro de 1997)
relacionando tanto Gibrail Nubile Tannus quanto a sua esposa Maria Leny de Andrade
Tannus (IGARA, 2011, p. 54).

As terras da Fazenda Santa Maria do Mamanguá atraíram, também, o


interesse do Condomínio Laranjeiras, próximo a elas (CPDA, 2015, pp. 324-326). O caso
do empreendimento da Água Mansa Patrimonial LTDA. envolve esse cenário e acresce
a conivência do Ibama de Angra dos Reis no licenciamento da instalação de um cais como
estrutura para apoio náutico no local Ponta da Foice, nos fundos do Saco do Mamanguá.
Aquela localidade, além de se área de conservação e de preservação afetada pela APA de
Cairuçu e pela Reserva Ecológica Estadual da Juatinga, é um berçário de espécies
marinhas e de seres específicos do ambiente da costeira. Estudos feitos entre 1992 e 2000
(na biologia, antropologia e oceanografia) abordaram aquela região específica, dentre os

92
Referente ao documento SNI-Relatório, 06/10/1977. Atuação da esquerda clerical. Acervo Memórias
Reveladas/Arquivo Nacional – Documento ARJ_ACE_12131_85, conforme informado no Relatório
intitulado “Conflitos por terra e repressão no campo no estado do Rio de Janeiro (1946-1988)” (CPDA,
2015, p. 324).
93
Uma prática recorrente utilizada nos esbulhos dos territórios caiçaras (IGARA, 2011, p. 55; CPDA, 2015,
pp. 321-335).
134

quais o biólogo Paulo Nogara e o antropólogo Carlos Diegues destacam as comunidades


tradicionais que ali vivem e a região do Saco do Mamanguá como um berçário de espécies
marinhas que fazem do local um lugar único, com aproximados 8,5 quilômetros de
comprimento em águas rasas em uma largura de até 1,5 quilômetro, em um trecho sendo
400 metros essa largura.

A despeito dos estudos existentes, o Ibama, em Paraty, enviou um biólogo


para a vistoria naquele local, o qual concluiu ser possível a implantação do cais flutuante
ali, desde que não fossem alteradas a parte terrestre afetando taludes e envolvendo corte
de pedras. O “Estudo técnico do caso do Saco do Mamanguá – Paraty-RJ: uma questão
sócio-ambiental” (GODOY JÚNIOR & CAMARGO, 2006), aponta que após se ter
manifestado tecnicamente favorável, o biólogo do Ibama recuou indicando que o
empreendedor deveria apresentar a requisição de licenciamento à gestão da APA de
Cairuçu; deveria solicitar autorização municipal, por se tratar da Área de Proteção
Ambiental da Baía de Paraty, de Paraty-Mirim de Saco do Mamanguá; além de ter de
solicitar parecer da Capitania dos Portos e do Departamento do Patrimônio da União. A
primeira manifestação do técnico em vistoria, como dito, foi favorável ao
empreendimento, cujo laudo, de 26 de novembro de 2001, contou com a subscrição do
agente regional responsável pelo Ibama de Angra dos Reis.

A situação mereceu o Memorando nº 14/2002-APA de Cairuçu/ICMBio, de


4 de março de 2002, dirigido àquela regional de Angra dos Reis com o assunto
“Interferência de funcionário lotado no Escritório Regional de Angra dos Reis na UC
APA de Cairuçu”. Nesse mesmo memorando foi anexada uma cópia da correspondência
que a administração da Estação Ecológica de Tamoios, na mesma data, relatava para a
administração da APA de Cairuçu o fato da aprovação do cais por parte do Ibama
(GODOY JÚNIOR & CAMARGO, 2006, p. 6). O caso consta na Ação Civil Pública94
com pedido de Liminar, ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro,
com o procedimento administrativo nº 38/01, instaurado em agosto de 2001, para apurar
a notícia do empreendimento.

Naquele episódio, os moradores locais, todos caiçaras e representados por


meio da Associação de Moradores e Amigos do Saco do Mamanguá ― AMAM apoiaram
o Ministério Público na ação e se opuseram ao empreendimento porque souberam que os

94
Processo nº 2002.041.000216-5.
135

proprietários da Água Mansa Patrimonial eram do Condomínio Laranjeiras, tiveram o


receio da implantação futura de um condomínio no mesmo padrão e dimensão que aquele
condomínio e que lhes viesse limitar o espaço da comunidade, que havia sido conseguido
por antepassados (GODOY JÚNIOR & CAMARGO, 2006, p. 3). Da decisão judicial, de
6 de julho de 2002, ficou para a empresa Água Mansa Patrimonial LTDA. paralisar a
obra; para a Prefeitura de Paraty, foi determinada a suspensão do procedimento
administrativo de licenciamento ambiental; e foi indicada a verificação no local do cais
por oficial de justiça, para apuração.

O jornal Folha de São Paulo, de 25 de novembro de 2001, com o título


“Condomínio ‘invade’ santuário ecológico”, traz a notícia de uma estrada “aberta há vinte
dias”, entre um ponto a cinquenta metros da entrada do Condomínio Laranjeiras até a
Ponta da Foice, no fundo do Saco do Mamanguá, ou seja, a estrada foi aberta mesmo
depois da ação do Ministério Público Estadual, em agosto de 2001, portanto, e antes da
decisão judicial proferida em julho de 2002. A abertura da estrada levou dez dias com
doze trabalhadores contratados por quarenta condôminos para uma estrada de largura
média de quatro metros e os seus sete quilômetros sobre a trilha centenária, atravessando
a Mata Atlântica e a APA de Cairuçu. A estrada foi interditada pelo Ibama. Ney França,
engenheiro florestal e gerente da APA de Cairuçu, declarou ao jornal Folha de São Paulo
que:

O problema fundamental dessa história é: o saco [do Mamanguá] é o


único fiorde do Brasil. Uma vez entrando a estrada, virão casas, marinas,
lanchas de alta turbulência no fundo do saco [do Mamanguá], uma
região de muita produtividade em biologia marinha, com peixes,
crustáceos, ostras. (Ney França, Folha de São Paulo, 25/11/2001)

Paulo Nogara, biólogo da Universidade de São Paulo ― USP, estudando o


ambiente no Saco do Mamanguá desde a década de 1990, diz ser o Saco do Mamanguá
“único” e que “é inviável ter dez barcos grandes no saco, quanto mais 40”, contabilizando
o número de condôminos que arcaram com os custos da abertura da estrada; e continua:

O aumento do tráfego marítimo de grandes lanchas e iates vai acabar


com ele [Saco do Mamanguá]. As espécies vão ser dizimadas. As 120
famílias que habitam o local e vivem da pesca terão que se mudar para
não morrer de fome. (Paulo Nogara, Folha de São Paulo, 25/11/2001)
136

À margem direita do Saco do Mamanguá, a Praia do Uba foi comprada pelos


condôminos de Laranjeiras de um posseiro para nela instalar um atracadouro, segundo a
reportagem, e que “o interesse dos condôminos pelo Mamanguá se deve, oficialmente, à
turbulência do mar na ponta da Juatinga, trajeto obrigatório entre o Laranjeiras e a baía
da Ilha Grande. Partindo do Saco, os barcos não passam pela Juatinga”. Stainer Braga,
então Secretário de Meio Ambiente da Prefeitura de Paraty, explicou ao jornal que “o que
ocorreu foi uma limpeza de trilha, uma roçada”, disse que há interesse dos condôminos
em terem acesso ao Saco do Mamanguá; que o Saco deve ser preservado e que “nossa
preocupação é coibir esse tipo de ação” (FOLHA DE SÃO PAULO, 2001).

Cinco meses depois da decisão judicial acerca do episódio da estrutura


náutica no Saco do Mamanguá, naquele mesmo ano de 2002, é sancionada a Lei
Municipal nº 1.339, de 27 de dezembro de 2002, aprovada pela Câmara Municipal de
Paraty, cuja ementa traz: “Cria o plano de gestão ambiental da APA de Cairuçu e reserva
ecológica da Juatinga”. Os municípios têm sua parcela de responsabilidade e participação
nas unidades de conservação existentes em seu território municipal, mas dispor sobre
unidades de conservação de instância federal e estadual, como é o caso, é algo impróprio.
A norma municipal foi editada entre o Natal e o Ano Novo e seu conteúdo trata de uma
verdadeira abertura de caminhos para o uso e a ocupação de alguns grupos de atividades
econômicas e não traz uma proposta planificada que contemplasse outros grupos da
sociedade, ainda que apenas econômicos. A redação da norma transparece ter sido escrita
às pressas e o seu teor procura vasar as restrições daquelas unidades de conservação. Em
2016, essa Lei Municipal teve a representação de inconstitucionalidade acolhida e a lei
não mais é aplicável. De qualquer maneira, vale conhecer algumas de suas disposições.

Às comunidades caiçaras, aquela lei disse garantir a sua permanência, uma


menção sem providência fazendo as vezes de um chamariz que pudesse dar um tom de
equanimidade ao teor da norma, segue localizando nos seus parágrafos os interesses
específicos. Reproduzo parte da lei, com os seus erros, erros de pressa, na concordância,
na pontuação e na ortografia95.

Lei Municipal nº 1.339, de 27 de dezembro de 2002:

95
Para consultar a referida lei na íntegra, acesse o portal da Câmara dos Vereadores de Paraty, ou o linque:
http://www.paraty.rj.leg.br/camaraparaty/painel/Leis/2002/Lei_1339_2002.pdf.
137

.........................

Art. 2º Fica assegurado a permanência das comunidades caiçaras, bem


como de todos os acessos tradicionais, caminhos, picadas e passagens
Estradas Antigas pelas praias em toda a área da APA do Cairuçu e Reserva
da Juatinga.

Art. 3º Nas áreas de vocação do Eco Turismo fica garantido a implantação


de projetos para desenvolvimento do Eco Turismo, desde que seja parte
integrante dos projetos nas comunidades caiçaras.

Art. 4º Fica garantido o acesso pelo fundo do Saco do Mamanguá, pelas


comunidades daquela região, Praia do Cruzeiro, Praia Grande e todas as
demais.

Art. 5º Fica garantida a exploração da jazida de Mármore Ubatuba nas


imediações do Saco do Mamanguá no lugar conhecido como Estrada da
Fazenda Santa Maria desde que atendidas as licenças de prospecção.

.........................

Art. 7º Todas as trilhas estradas deverão ser controladas através da


implantação da “Estrada Parque”, evitando assim o turismo predatório e
a venda descontrolada de posses.

Art. 8º Todos que adquiriram posses na APA do Cairuçu e Reserva da


Juatinga que não são caiçaras nativos deverão ser notificados e
informados da precariedade de suas posses, inclusive aquelas que já
saíram da localidade e que pretendem, voltar evitando assim a ocupação
desordenada.

Art. 9º Fica assegurado o direito de construção dentro dos parâmetros


estabelecidos neste plano e em regulamento a ser editado pelo
executivo nas zonas delimitadas da APA de Cairuçu e Reserva Ecológica
da Juatinga a todos os titulares de posse e de propriedade que
adquiriram anteriormente à criação da referida APA e Reserva.

As comunidades estão onde estão por mérito próprio e aquela lei não lhes
rende nada exceto disposições confusas acerca de quem sai e quem volta; as licenças de
prospecção são parte de todo um processo de licenciamento que já existe mesmo sem as
138

unidades de conservação, e sendo os empreendimentos instalados nas unidades de


conservação, é necessária a análise e a manifestação da administração da unidade de
conservação. No conjunto, foram jogadas palavras em trechos sem sentido, pretendendo,
de certo, que se colassem aos debates sobre comunidades. É melhor se fazer uma leitura
dos parágrafos daquela Lei Municipal por meio de expressões-chaves, porque o sentido
da norma, me parece, estava para ser feito, complementado, em algum outro lugar fora
da Lei: “mármore Ubatuba”, “posse de quem não é nativo”, “empreendimento imobiliário
na APA e na Estação Ecológica”, “acesso pelos fundos do Saco do Mamanguá”.

O Plano de Manejo da APA de Cairuçu foi revisto após a publicação do


Decreto nº 8.775 de 11 de maio de 2016, que revogou parte do decreto que instituiu a
APA de Cairuçu. Esse decreto indicou que a APA deveria proceder ao zoneamento para
o seu território, com normas gerais e específicas para cada zona em seu interior. O novo
Plano de Manejo da APA de Cairuçu data do ano de 2018 ― como resultado da revisão
do plano anterior, de 2004 e vigente desde 2005 ― e tem a aprovação do ICMBio por
meio da Portaria/ICMBio nº 533, de 24 de maio de 2018, publicada no Diário Oficial da
União em 29 de maio de 2018.

Dentre diversas disposições no Plano de Manejo a respeito da necessidade de


autorização por parte da administração da APA de Cairuçu para intervenções no território
da unidade de conservação, estão: a proibição da derrubada de vegetação arbórea em
estágio médio e avançado de regeneração e a vegetação nativa de grande porte, exceto
em caso de “risco para residências pré-existentes comprovado mediante laudo técnico e
autorizado APA”; a abertura de novas vias de acesso ou o alargamento de acessos e de
trilhas existentes que são permitidos, contanto que autorizados pela APA96; e a
concordância das populações residentes ― ou seja, caiçaras, populações rurais e
proprietários de residências de turismo de temporada como uma segunda residência.

A Zona Populacional está dividida em quatro zonas (ou subzonas) e o Plano


de Manejo indica o que é permitido ou proibido em cada uma delas. De forma comum a
essas quatro subzonas populacionais estão: a proibição de criação de animais de grande
porte; a proibição do despejo de resíduos sólidos e do lançamento de efluentes sem
tratamento no ambiente; e permitida a criação de animais domésticos com instalações não

96
Disposição que, de certo, levou em conta o episódio da abertura da estrada entre o Condomínio
Laranjeiras e o cais planejado no Saco do Mamanguá.
139

incidindo nas Áreas de Proteção Permanentes – APPs, cujos efluentes não devem alcançar
os corpos de água.

Figura 18 ― Zonas do Plano de Manejo da APA de Cairuçu (Tabela


13, “tamanho das zonas de manejo e porcentagem em relação ao
tamanho da unidade; Plano de Manejo, 2018, p 56) ― com
hachurados inseridos

Da Zona Populacional destaco a Zona Populacional Caiçara ― ZPCA, que é


a área que indica a moradia das comunidades caiçaras. Como se observa na Figura 19, na
página 144, quando a ZPCA é delimitada no continente e não em ilhas, é circundada por
outras zonas em gradações de restrições, excêntricas em sua maior parte. Dessa maneira,
na área imediata às ZPCA está a Zona de Uso Comunitário ― ZUCO, seguida pela Zona
de Uso Restrito ― ZURE e esta pela Zona de Conservação ― ZCON.

A Zona de Conservação ― ZCON tem os objetivos: da “preservação do


ambiente proporcionando condições próximas ao estado primitivo para conservação da
biodiversidade”, a preservação dos mananciais e a “manutenção da paisagem e suas
belezas cênicas, além da realização das atividades de pesquisa e visitação de baixo
impacto” (ICMBio, 2018, p. 57); a ZCON é caraterizada, e justificada, por nascentes e
mananciais, envolve as bacias hidrográficas dos rios Carapitanga, Meros e São Mateus,
há declividades e há afloramentos rochosos, com a floresta em bom estado de conservação
e sem a ocorrência do uso direto, conforme classifica o Plano de Manejo. São permitidas
as atividades de proteção e monitoramento, de educação ambiental e a visitação com
140

baixo grau de intervenção prioritariamente quando exercidas guiadas ou monitoradas


pelas comunidades tradicionais e a manutenção dos caminhos tradicionais caiçaras; a
captação de água para uso doméstico é permitida, desde que não interfira no curso das
águas. São proibidas a abertura de novas trilhas ou picadas, exceto os imprescindíveis à
manutenção da zona, pesquisa e visitação; atividades de movimentação de terra; a
supressão da vegetação nativa; extração de madeira, de cipós, de plantas ornamentais, de
taquaras e de palmeiras.

Na Zona de Uso Restrito ― ZURE são permitidos os usos de recursos


naturais “de forma eventual ou em escala reduzida” e o usos de cipós, plantas medicinais,
taquaras, fibras, bambus são submetidos a um plano de manejo florestal; repete-se a
disposição para o uso doméstico de água disposta na ZCON; a manutenção das ocupações
de moradores isolados e suas roças é permitida; “o acréscimo de residências de moradores
tradicionais poderá ser autorizado pelo ICMBio, em casos excepcionais devidamente
justificados” com vedação à “construção de nova residência por motivo de cessão ou
venda da moradia original a terceiros”; permitido, também, “o uso eventual de madeira
para confecção de canoa e remos, manutenção e reformas de casas, estiva de embarcações
e ranchos de pesca mediante autorização do ICMBio” e o uso comercial da madeira é
vedado; permitidas a visitação que tem nas organizações comunitárias a prioridade, e não
a exclusividade, bem como a permissão da instalação “de equipamentos simples para a
visitação, de natureza rústica, sempre em harmonia com a paisagem” (ICMBio, 2018, p.
58).

A Zona de Uso Comunitário ― ZUCO é caracterizada como área de cobertura


florestal, em bom estado de conservação; nessa área “podem existir moradias e áreas de
roçado e áreas de manguezais e caixetais”, também, pode ser feito o “uso direto e
sustentável dos recursos naturais pelas populações tradicionais, agricultores familiares e
proprietários conforme as regras” (ICMBio, 2018, p. 59) A ZUCO é a área imediata à
ZPCA, que é a zona das moradias, onde estão mais concentradas; na ZUCO “podem
existir moradias e áreas de roçado”, mas não é a região central de habitação (que é a
ZPCA) e a ZUCO é recomendada, naquele Plano de Manejo, como área com potencial
para o manejo florestal sustentável. Na ZUCO são permitidas as roças, “inclusive a prática
do pousio”, também é permitida a construção de estruturas rústicas de apoio à atividade
produtiva, “mediante autorização do ICMBio” (ibidem).
141

A ZUCO e a ZURE podem ser vistas como uma zona de transição entre as
áreas de concentração de moradias rentes ao mar (as ZPCA’s) e a área de preservação e
conservação (a ZCON), nesta áreas são proibidas as roças, subentendidas na de “qualquer
tipo de supressão da vegetação nativa ou extração de espécies vegetais como madeira,
plantas ornamentais, cipós, taquaras e palmeiras”. É permitida a coleta de sementes para
fins de recuperação ambiental. Tanto na ZUCO como na ZURE a quantidade de
residências não pode ser aumentada:

O acréscimo de residências de moradores tradicionais poderá ser


autorizado pelo ICMBio, em casos excepcionais devidamente
justificados, sendo vedada a construção de nova residência por motivo
de cessão ou venda da moradia original a terceiros. (ICMBio, 2018, pp.
58, 59) (o trecho é o mesmo na ZURE e na ZUCO)

Nas ZPCA’s, a preocupação do Plano de Manejo repousa, especialmente, nas


disposições sobre o aumento de novas construções. Os caiçaras podem construir novas
edificações com finalidades previstas no “atendimento das necessidades de moradia,
trabalho, lazer, religião e subsistência das comunidades caiçaras nativas e residentes
locais”, uma vez que sejam observados os “documentos de organização interna da
comunidade e desde que autorizada pelo ICMBio”. Noto que os “residentes locais” são
os próprios caiçaras, em explícita vedação, como leio o Plano de Manejo, aos parentes
que resolvam voltar a morar vindos da cidade ou de outra parte. “Residentes locais” não
se referem a pessoas externas à comunidade e que morem nas vilas, pois, para essas
pessoas externas à comunidade há a vedação expressa: “Não é permitida a expansão da
ocupação residencial, a construção de quaisquer novas edificações, por pessoas que não
sejam nativas ou que não tenham vínculo ancestral com as comunidades caiçaras”
(ICMBio, 2018, p. 63).

Ou seja, uma forma de a comunidade caiçara crescer é a de se reproduzir


fisicamente, tendo filhos. Novos moradores, caiçara ou não caiçaras para viverem na vila,
talvez, possam se casar com comunitários. Criou-se uma situação de endogamia. Tais
interferências na forma de como a comunidade se reproduz merece ser observada pelo
Ministério Público e por comissão de Direitos Humanos.

A forma de as comunidades se espacializarem é cerceada nas proibições e,


também, nas permissões. As permissões indicam o que já é praticado identificado em
relação ao meio ambiente biológico e físico com a noção de conservação e preservação
142

hoje estabelecida; as permissões, também, impedem inovações por parte das comunidades
e são acompanhadas de autorizações do ICMBio em um universo de discricionaridades,
tais como: “forma eventual”, “em escala reduzida”, “rústico”. Com base em quais
parâmetros tais características podem se aferidas?

O conjunto das duas zonas, Zona de Uso Restrito ― ZURE e Zona de Uso
Comunitário ― ZUCO, como uma transição de áreas de ocupação para a não ocupação
(na ZCON, exceto pelos caminhos e visitação) parecem ser até onde as comunidades
poderiam chegar a ocupar, ou a partir de onde vão ser desestimuladas a estarem,
encolhendo-se rente ao mar. É uma área de vetores opostos de ocupação em expectativa
e que, em lugar de uma linha dura cindindo espações, temos no conjunto das duas zonas
uma espécie de linha alargada que acomoda e não deflagra ou incrementa os conflitos
entre órgão ambiental e comunidades.

Um aspecto bastante interessante no Plano de Manejo está nas disposições


diferenciadas para caiçara e não caiçaras. Nem tanto nas disposições em si, mas no
conjunto delas que parte da convivência como um dado, mesmo sem qualificá-la. O Plano
de Manejo foi ao cerne de um problema dessa convivência de forma objetiva ao abordar
a cessão ou venda das casas. Em prazos médio ou longo, na história de diversas
comunidades, essa é uma forma comum de uma comunidade tradicional ceder o seu lugar
a terceiros. São ações praticadas uma a uma, e quando a comunidade percebe, como um
todo, ela não possui mais território, parentes, convivialidade, trocas ou perspectiva como
comunidade.

Outro aspecto interessante é a manutenção das comunidades em seus


territórios, com as ressalvas já feitas aqui, ao que acrescento a recorrente perspectiva das
“necessidades básicas” que permeiam as normas não somente relacionadas às áreas
protegidas, como também as normas que se ocupam das comunidades e dos povos
tradicionais e indígenas. O resultado será um território básico, em todos os casos.

A recategorização da APA de Cairuçu desenhou um mosaico de usos nas


destinações das zonas. Fez isso por determinação daquele decreto que mencionei acima,
o Decreto nº 8.775 de 11 de maio de 2016, que indicou que a APA de Cairuçu deveria
proceder ao zoneamento. Em uma escala mais ampla, se pode ver a APA de Cairuçu como
um território englobante, e o Plano de Manejo (de 2018), coordenado por Lilian Hangae,
a meu ver, muda o status prático de uma Área de Proteção Ambiental (acerca da qual é
143

sempre repetido que é uma unidade de conservação “em que tudo pode”) para graus mais
restritivos, E fez isso sem mobilizar indenizações da terra nua, pois para uma APA não
há essa previsão.
144

Figura 19 – Zoneamento da Área de Proteção Ambiental de Cairuçu, Plano de Manejo de 2018 (APA de Cairuçu/ICMBio)

Fonte: ICMBio, arquivo no formato “KMZ” disponível na página da APA de Cairuçu, com as seguintes inserções feitas por L. B. Ursini, em 2019 na figura acima: legenda junto à
figura, conforme layers da imagem, e alterada a cor da ZURB para cor preta para não se confundir com a cor da ZPRT e não está indicada a Zinf por ser pequena e não visualizável na figura acima.
145

A APA de Cairuçu é a unidade de conservação com o maior número de


relações de sobreposições. Algumas observações merecem ser feitas sobre a maneira
como o Plano de Manejo lida com as sobreposições.

Zona de Sobreposição Territorial ― ZSTE indica: o Parque Nacional da Serra


da Bocaina (federal), a Estação Ecológica de Tamoios (federal), o Território Quilombola
Campinho da Independência (associação e ITERJ), o Território Quilombola Cabral
(associação e Incra), a Terra Indígena Parati Mirim (União) e a Terra Indígena Araponga
(União).

O Plano de Manejo estabelece o diálogo com as unidades de conservação


previstas no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC (2000),
desconsiderando outras áreas protegidas que não foram recepcionadas pelo SNUC. A não
inclusão da Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ― REEJ (proteção integral, estadual)
se deveu ao fato de a REEJ não possuir o seu próprio plano de manejo, conforme
explicado no Plano de Manejo da APA de Cairuçu (ICMBio, 2018, p. 70). Já a não
inclusão da Área de Proteção Ambiental da Baía de Paraty, Paraty-Mirim e Saco do
Mamanguá (unidade de conservação de uso sustentável, municipal) não teve sua razão
explicitada e a APA da Baía de Paraty não foi mencionada dentre as áreas em
sobreposição com as quais se devesse lidar no zoneamento97, embora haja sobreposição
com a APA de Cairuçu e com a ESEC de Tamoios em parte das ilhas na Baía de Paraty.
A Área Estadual de Lazer de Paraty Mirim ― AELPM foi igualmente ignorada.

A APA de Cairuçu é das unidades de conservação do grupo de uso sustentável


e a sua maleabilidade às características locais. O que pode fragilizar os objetivos de
conservação da APA onde diversos usos são permitidos. A presença das comunidades
pode ser um ponto estratégico no relevo que o Plano de Manejo as coloca, mesmo que
discordemos de algumas das abordagens. Pois, por meio das comunidades caiçaras, dos
povos indígenas e quilombolas, a área como um todo pode assumir outro status em termos
de conservação, se o Estado tomar o discurso de que essas áreas são relevantes porque
conservadas pelas comunidades, na sua face de manutenção da conservação da
biodiversidade no Brasil, compromisso que assumiu como signatário da Convenção sobre
a Diversidade Biológica―CDB. Ou, de forma rara, que as áreas com restrições

97
Há informações sobre a localização da Baía de Paraty e a informação de que tanto a APA da Baía de
Paraty quanto a Reserva Ecológica Estadual da Juatinga foram consultadas ao longo do processo (ICMBio,
2018, pp. 13, 69).
146

ambientais são necessárias à manutenção das comunidades, as protegendo, se não fossem


também os usos das comunidades restringidos a partir de uma perspectiva biológica e
física.

A elaboração do novo Plano de Manejo contou com ciclos de reuniões desde


2017, em que foram realizadas mais de 30 reuniões com comunidades e povos
tradicionais (ICMBio, 2018). Também, a APA de Cairuçu, e com ela o governo federal,
toma a dianteira no aspecto da proposta de recategorização da Reserva Ecológica Estadual
da Juatinga que vinha sendo empreendida pelo Estado do Rio de Janeiro.

Este é um exemplo de oportunidade, uma situação em que o Estado apresenta


resoluções, ao menos planejadas, para pautas que são passivos que são seus. A pendência
da situação das comunidades caiçaras, os usos indevidos e abusivos de empreendedores
na APA de Cairuçu. O que mais possa estar em questão, será especulação: a possibilidade
da compensação ambiental paga às unidades de conservação por empreendimentos
próximos, como no caso o Pré-Sal, e pode haver razões novas que se vão alinhando.

Tais elementos em sinergia são a provável dianteira na manutenção das


instituições federais no lugar ao desconsiderar as unidades de conservação estaduais e
municipais; a aproximação com as comunidades e povos tradicionais em reuniões em
ciclos, por um período em que tais comunidades pudessem se familiarizar com a proposta
da APA, se mover por ela e, por fim, nela se virem. Ademais, as comunidades não
tomaram com bons olhos as propostas de recategorização da Reserva Ecológica Estadual
da Juatinga pelo Instituto Estadual do Ambiente ― Inea, antigo IEF, órgão que não
gostavam nada, como se verá em capítulo mais adiante. Também, as propostas do Inea
(em 2013) previam a conversão de grande parte da área em uma unidade de proteção
integral, ampliando a Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ― REEJ como um parque
estadual, como vimos atrás. O zoneamento da APA de Cairuçu, unidade de conservação
de uso sustentável, parece ser mais palatável tanto aos ocupantes e quanto aos munícipes;
e de qualquer maneira, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da
Natureza―SNUC tem a previsão de que uma unidade de conservação de uso sustentável
pode ser convertida em proteção integral sem ter que passar pelo Congresso Nacional
para isso, já para o rebaixamento das restrições ou a diminuição de área de qualquer tipo
de unidade de conservação é necessário lei tramitada no Congresso para isso, como segue:
147

Artigo 22 do SNUC ― As unidades de conservação são criadas por ato do


Poder Público.

.........................

§ 5o As unidades de conservação do grupo de Uso Sustentável podem ser


transformadas total ou parcialmente em unidades do grupo de Proteção
Integral, por instrumento normativo do mesmo nível hierárquico do que
criou a unidade, desde que obedecidos os procedimentos de consulta
estabelecidos no § 2o deste artigo.

§ 6º A ampliação dos limites de uma unidade de conservação, sem


modificação dos seus limites originais, exceto pelo acréscimo proposto,
pode ser feita por instrumento normativo do mesmo nível hierárquico
do que criou a unidade, desde que obedecidos os procedimentos de
consulta estabelecidos no § 2º deste artigo. [o § 2º diz: A criação de uma
unidade de conservação deve ser precedida de estudos técnicos e de
consulta pública que permitam identificar a localização, a dimensão e os
limites mais adequados para a unidade, conforme se dispuser em
regulamento]

§ 7o A desafetação ou redução dos limites de uma unidade de


conservação só pode ser feita mediante lei específica. (sublinhei)

O que já estava à disposição das comunidades caiçaras, antes do novo Plano


de Manejo da APA de Cairuçu, era o direito das comunidades caiçaras por meio em
obterem o Termo de Autorização de Uso Sustentável ― Taus, expedido pela Secretaria
do Patrimônio da União ― SPU, em caráter transitório e precário, segundo a Portaria/SPU
nº 89, de 15 de abril de 2010; e o direito ao Contrato de Concessão de Direito Real de Uso
― CCDRU, este relacionado à própria APA de Cairuçu. No Plano de Manejo da APA de
Cairuçu, de 2018, a obtenção do TAUS, este porque se trata de área de marinha, e do
CCDRU constam no Plano de Manejo sob o título de “necessidade de planejamento”, ou
seja, é uma providência prevista para ser ainda planejada, portanto, não decorre
diretamente daquele Plano de Manejo:

Plano de Regularização Fundiária e Reconhecimento e dos territórios


caiçaras (Termo de Autorização de Uso Sustentável ― Taus, Contrato de
Concessão de Direito Real de Uso ― CCDRU, Zoneamento, Reserva
Extrativista ou ampliação da APA), com apoio a realização do
planejamento territoriais pelas comunidades. (ICMBio, 2018, p. 25)
148

Ressalto dois aspectos na aproximação com as comunidades como um


elemento de oportunidade: primeiro: os direitos são reintroduzidos (pois já existiam
antes) em um plano para planejar o que fazer posteriormente; não que seja prescindível o
planejamento, a ênfase é na reintrodução e (re)abordagem de coisas que já eram para
terem se passado, terem sido implementadas e terem acontecido. Os planejamentos
infindáveis fazem deles um lugar para as comunidades interagirem, participarem; o que
não deve acontecer são as reiteradas interações em detrimento de resolução por parte do
Estado.

A imagem do território categorizado em níveis de restrições e áreas de usos,


o zoneamento que a APA de Cairuçu traz se parecem com uma categoria de unidade de
conservação que foi proposta ao longo das discussões da elaboração do Sistema Nacional
de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC na Câmara dos Deputados, que é a
Reserva Ecológica Integrada. Com um olhar para o contexto regional, aquela categoria
tinha por objetivos propostos a compatibilização da preservação da biodiversidade e a
valorização da sociodiversidade em uma mesma unidade de conservação guindados pelo
desenvolvimento sustentável e era descrita como um “mosaico articulado de áreas
protegidas, com diferentes objetivos de manejo”98, que previa a gestão integrada e
participativa. O formato da Reserva Ecológica Integrada é bastante semelhante ao arranjo
do zoneamento da APA de Cairuçu no Plano de Manejo de 2018.

A Reserva Ecológica Integrada (prevista como categoria de unidade de conservação do


grupo de unidades de uso sustentável) não permaneceu no texto do SNUC e as suas
finalidades e arranjos foram absorvidos principalmente pela figura do “mosaico” no
SNUC, que não é uma categoria, mas uma forma de gestão integrada de unidades de
conservação constituídas. A Reserva Extrativista não é um substituto para a Reserva
Ecológica Integrada, pois uma Reserva Extrativista lida com um produto do extrativismo
e uma comunidade em torno dele, ainda que tenham outros produtos aproveitáveis, mas
é a relação entre uma comunidade com um recurso natural, principalmente.

Uma outra imagem de território de conservação tradicional, vamos chamar


assim, é a Reserva Ecológico-Cultural, também não incorporada ao texto final do SNUC.
A Reserva Ecológico-Cultural possuía uma perspectiva a partir das comunidades e trazia
a imagem de territórios como seções de conservação e de preservação entremeados aos

98
Ver, nesta tese, o item 4.2.6― Reserva Ecológica Integrada ― proposta para o grupo de uso sustentável.
149

territórios de forma integrada. Essa, uma imagem mais interessante que a Reserva
Ecológica Integrada, porque parte da territorialidade das comunidades, para se pensar os
territórios naturais de comunidades que a APA de Cairuçu abrangeu.

Partir da territorialidade das comunidades e da sua perspectiva é diferente de


enxergá-las no ambiente e de localizá-las. São abordagens distintas. A observação crítica
que faço com relação ao Plano de Manejo da APA de Cairuçu de 2018 é que os aspectos
de conservação das próprias comunidades, o que possam ter empreendido ou que possam
empreender para a conservação e preservação, não são pontuados e incorporados na
metodologia que envolveu as comunidades.

3.2.4. Área de Proteção Ambiental da Baía de Paraty,


Paraty-Mirim e Saco do Mamanguá

A Área de Proteção Ambiental ― APA da Baía de Paraty, Paraty-Mirim e


Saco do Mamanguá é uma unidade de conservação municipal criada por meio da Lei
Municipal nº 685, de 11 de outubro de 1984, em consonância com Lei nº 6.902, de 27 de
abril de 1981, que prevê e dispõe sobre a criação de Áreas de Proteção Ambiental e de
Estações Ecológicas; esta lei é vigente e é anterior à instituição do Sistema Nacional de
Unidades de Conservação da Natureza ― SNUC em 2000; que, como se verá no capítulo
seguinte, reuniu sob um mesmo sistema categorias de unidades de conservação existentes
e criou novas categorias.

A criação da APA de Cairuçu é, também, apoiada na Lei nº 6.938, de 31 de


agosto de 1981, que traz disposições sobre a Política Nacional do Meio Ambiente ―
PNMA. Desde 1990, com o Decreto Federal nº 99.274, de 6 de junho de 1990, há
incentivos para a criação de Áreas de Proteção Ambiental como a priorização, por parte
de instituições federais, de crédito e de financiamento aos pedidos encaminhados com o
apoio da Secretaria Especial do Meio Ambiente ― SEMAM, da Presidência da República
(atual Ministério do Meio Ambiente) cujo objeto seja a melhoria das condições
habitacionais, sanitárias e o “uso racional do solo” das propriedades situadas em uma
Área de Proteção Ambiental; a consideração de relevância e o reconhecimento público
dos serviços prestados à causa conservacionista; e, aos proprietários de terras abrangidas
pelas Áreas de Proteção Ambiental, é facultado que se coloque o nome da APA nas suas
150

placas indicadoras de propriedade para a promoção de atividades turísticas e, também,


podem mencionar o nome da APA para eventual indicação de procedência dos produtos
nela originados (arts. 30, Parágrafo único; 31 e 32 do Decreto nº 99.274/1990).

Figura 20 ― APA Municipal da Baía de Paraty, Paraty-Mirim e Saco


do Mamanguá; Área Estadual de Lazer de Paraty-Mirim

Vemos, na “Figura 20 ― APA Municipal da Baía de Paraty, Paraty-Mirim e


Saco do Mamanguá; Área Estadual de Lazer de Paraty-Mirim”, que a contiguidade entre
duas unidades de conservação da mesma categoria ― APA de Cairuçu e APA Municipal
da Baía de Paraty ― e com objetivos iguais estatuídos no Sistema Nacional de Unidades
de Conservação da Natureza―SNUC, também, mescladas cada uma delas às suas
próprias especificidades, localmente aquelas duas unidades de conservação de mesma
categoria não formam um conjunto, um sistema, por questões políticas e econômicas. A
APA de Cairuçu é uma unidade de conservação terrestre, continental e mais 63 ilhas, que
não tem previsão no SNUC de uma Zona de Amortecimento para ela; a região do Saco
do Mamanguá é importante para APA de Cairuçu por compor o ecossistema dos costões
rochosos e nem por isso abrangeu relações com aquela unidade de conservação municipal.
Cabe ressaltar que as ações contra ou a despeito da APA de Cairuçu ― abertura de
estrada, licenciamento de atracadouro no Saco do Mamanguá, aqui mencionadas ― feitas
em nome da prefeitura parecem não ensejar uma relação de confiança. Por outro lado,
151

vemos que a finalidade da instituição de um sistema de unidades de conservação, que é o


SNUC, depende de outras variáveis que a Lei não comporta ou não vence.

A sobreposição entre a APA de Cairuçu e a APA Municipal da Baía de Paraty,


Paraty-Mirim e Saco do Mamanguá se dá nas ilhas no interior dos das baías e da enseada
que a Área de Proteção Ambiental municipal abrange, estas, também, em relação de
sobreposição com a Estação Ecológica de Tamoios, unidade de conservação de proteção
integral marinha criada na instância federal, cujas Zonas de Amortecimento das suas 29
ilhas é de um raio de um quilômetro. Ao aparente, ou não, isolamento da APA municipal
da Baía de Paraty, Paraty-Mirim e Saco do Mamanguá, há a leitura da região como um
todo por parte do ICMBio no Plano de Manejo da APA de Cairuçu, que busca acomodar
contradições de sobreposições e políticas em uma solução na resposta sintética para uma
pergunta rápida, postada na página oficial do ICMBio, portanto um documento oficial, na
seção “perguntas frequentes”, em que a figura dos corredores ecológicos foi providencial:

[pergunta de uma pessoa:] O que são a APA de Cairuçu, o Parque


Nacional da Serra da Bocaina, a ESEC Tamoios, a REGE [REEJ] Juatinga e
a APA Baía de Paraty?

[resposta do ICMBio:] São cinco unidades de conservação que compõem


o corredor de áreas protegidas no município de Paraty/RJ, das quais três
são federais e gerenciadas pelo ICMBio, uma é estadual e administrada
pelo Inea e uma é ligada à prefeitura municipal de Paraty.99

3.2.5. Estação Ecológica Tamoios – federal

Unidade de conservação marinha, nas jurisdições dos municípios de Paraty e


de Angra dos Reis, a Estação Ecológica de Tamoios é uma dentre as unidades de
conservação criadas pela antiga Secretaria Especial do Meio Ambiente ― SEMA ― que
havia sido criada, em 1973 no reflexo da Conferência sobre a Natureza, o Homem e a
Biosfera, em Estocolmo no ano de 1972. Aquela Secretaria foi desfeita para integrar a
estrutura do novo órgão criado em 1989, o Ibama. A APA de Cairuçu insere-se no rol de
atribuições da SEMA, que era a criação das categorias: Áreas de Relevante Interesse

99
Para acesso à seção na página oficial do ICMBio: http://www.icmbio.gov.br/cairucu/quem-
somos/perguntas-frequentes/com-phocagallery-imagerating/110-o-que-sao-a-apa-de-cairucu-o-parque-
nacional-da-serra-da-bocaina-a-estacao-ecologica-de-tamoios-a-reserva-ecologica-estadual-da-juatinga-e-
a-area-de-protecao-ambiental-baia-de-paraty.html.
152

Ecológico ― ARIE’s, Áreas de Proteção Ambiental ― APA’s e Estação Ecológica ―


ESEC’s. A SEMA tinha Professor Paulo Nogueira Neto, do Instituto de Biologia da
Universidade de São Paulo ⸻ USP, à frente daquela Secretaria entre 1974 e 1986. A
Estação Ecológica de Tamoios é criada no ano seguinte à criação do Ibama, pelo Decreto
nº 98.864, de 23 de janeiro de 1990, com base na Lei nº 6.902, de 27 de abril de 1981 ―
lei vigente e que dispõe sobre a criação de APA’s e de ESEC’s ― onde consta a definição
e finalidade de uma Estação Ecológica como:

Áreas representativas de ecossistemas brasileiros, destinadas à


realização de pesquisas básicas e aplicadas de ecologia, a proteção do
ambiente natural e ao desenvolvimento da educação conservacionista.
(art. 1º, Decreto nº 98.864/1990)

A Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, a Lei do SNUC, define a Estação


Ecológica com o objetivo de “preservação da natureza e a realização de pesquisas
científicas” (art. 9º, SNUC/2000) e desobriga o procedimento de Consulta para a sua
criação e o mesmo se passa com procedimento de criação de Reservas Biológicas. Ambas
as categorias são as mais restritivas ao uso e ao consumo de recursos naturais, exceto
pesquisa científica autorizada (Art. 22. § 4º, Lei nº 9.985/200). O nome da Estação
Ecológica de Tamoios tem a curiosidade na sua escolha pelo cientista Paulo Nogueira
Neto, conforme relatado no Plano de Manejo da Estação Ecológica de Tamoios:

A Estação Ecológica de Tamoios foi estabelecida numa região habitada


pelos antigos índios tupinambás, dos quais os tamoios constituíram um
segmento importante. Chegaram a formar a Confederação dos Tamoios,
que se aliou aos franceses contra os portugueses. Eram índios da grande
família Tupiguarani. Dos índios litorâneos da época do descobrimento,
os tupinambás são os melhor conhecidos, pois o artilheiro alemão Hans
Staden, capturado e mantido por eles, na região de Ubatuba, escreveu
um livro sobre o seu cativeiro. Aproveitei-me desse fato, pois quando
tive que dar nomes a algumas ilhotas-rochedos, no arquipélago de
Alcatrazes, usei os nomes de alguns caciques citados por Hans Staden.
Alcatrazes está mais ao sul da Estação Ecológica Tamoios. Era território
disputado por Tupinambás e Tupiniquins. (ICMBio, 2001, p. 6)

A Estação Ecológica de Tamoios é constituída por 29 ilhas100 junto com o


entorno de um quilômetro destas; e a Área de Proteção Ambiental de Cairuçu, com 63

100
São ilhas, lajes, ilhotes e rochedos.
153

ilhas, ambas as unidades de conservação se sobrepõem nas ilhas: do Catimbau, dos


Ganchos, das Palmas, Comprida e Grande (em Tarituba), Pequena, Araçatiba, Laje do
Cesto, Ilha Araraquarinha e Araraquara, Jurubaiba, Ilha do Algodão (do norte) e Rochedo
de São Pedro (IBAMA, 2004, p. 19 e 152).

Embora não sejam permitidos a ocupação e o uso dos recursos naturais, à


época da elaboração do Plano de Manejo da Estação Ecológica de Tamoios, em 2001,
eles se dão na Estação Ecológica de Tamoios. Foram identificados, naquele Plano de
Manejo, os problemas que ameaçavam gravemente tanto os objetivos de preservação
quanto a unidade de conservação em si, como seguem: o pouco conhecimento da unidade
de conservação pela população local; turismo descontrolado como forma de
desenvolvimento da região; degradação de manguezais; efluentes industriais da Baía de
Sepetiba; grande número de embarcações lançando resíduos no meio hídrico; inexistência
de gerenciamento costeiro; instalação de grandes empreendimentos como hotéis e
condomínios lançando efluentes diretamente na baía; e o interesse coletivo desassistido
frente ao poderio econômico e político. Outras questões foram relacionadas como “pontos
fracos” no Relatório da Oficina de Planejamento, dos quais destaco as questões
relacionadas às ilhas e cercanias: arrastões nas proximidades das ilhas; coleta de estrelas
do mar, moluscos e corais para o artesanato; invasão das ilhas da unidade de conservação
e conflitos fundiários; venda ilegal de ilhas; comércio no interior das ilhas como fonte de
renda de famílias instaladas em ilhas; casas de veraneio (segunda residência); turismo,
atividades recreativas e comerciais no interior da ilha. (ICMBio, 2001-b). Chamo a
atenção, aqui, para o desconcerto da Lei municipal que regulamenta a proibição de uso
de descartáveis (copos, saquinhos) no comércio na região da Baía de Paraty, permitindo
a venda de destilados em garrafa e latas de cervejas e refrigerantes. Ainda que
providencial para a redução de resíduos sólidos que possam ir ao mar, a regulamentação
editada pela Câmara Municipal de Paraty, indica explicitamente a região da Estação
Ecológica de Tamoios, se esquecendo da proteção integral, grupo de unidades de
conservação das mais restritas como as reservas biológicas, ao dispor sobre o comércio
no seu interior. Também, a sanção da lei parece correr em socorro dos efeitos de um
turismo agressivo e descontrolado.

Outros aspectos das dificuldades enfrentadas pelos gestores da Estação


Ecológica de Tamoios que forma identificados e relatados na oficina de planejamento,
em 2001, são: o manejo deficiente; poucos funcionários na unidade de conservação;
154

dificuldades para fiscalização por conta da localização geográfica das ilhas; fiscalização
fraca por parte do Ibama ou norteada pela repressão e não pela educação; precariedade da
educação ambiental; ser uma unidade de conservação de fácil acesso, situada em área de
fluxo de embarcação de lazer e turismo intenso; perímetro muito grande, fragmentação
ou dispersão da área; necessidade de documentos legais quanto ao entorno marinho das
ilhas; e dificuldade de visualização da delimitação física, que é abstrata por não ter
referências. O relatório informa que “existem usos tradicionais de difícil supressão”, o
que pode ser interprestado como arraigados e não restritos às comunidades. Dentre os
“pontos fortes” da ESEC de Tamoios foi apontada a quase inexistência de populações
tradicionais (ICMBio, 2001-b).

É necessário considerar a peculiaridade da Estação Ecológica de Tamoios.


Sua criação foi obrigatória, por força do Decreto nº 84.973, de 29 de julho de 1980,
vigente, que traz em seu primeiro artigo, que “as usinas nucleares deverão ser localizadas
em áreas delimitadas como estações ecológicas”; a exigência é a da “co-localização”.
Explicado, naquele decreto, que há a necessidade de se ter um ambiente em excelentes
condições ecológicas para serem feitas as avaliações pormenorizadas da atividade
nuclear. Esta determinação, no propósito do acompanhamento preciso das características
do meio ambiente na operação do empreendimento da usina, compatibilizou na Lei a
necessidade de conservação do meio ambiente e o uso racional dos recursos naturais com
o imperativo da continuidade do programa nuclear brasileiro. As providências para criar
uma Estação Ecológica e a efetivação da unidade de conservação ficaram ao cargo do
Ministério das Minas e Energia e, à época, ao Ministério do Interior ao qual a Secretaria
Especial do Meio Ambiente ― SEMA estava vinculada.

Os projetos de grande porte, à época da realização da Oficina de


Planejamento, cujo relatório consta no Plano de Manejo da Estação Ecológica de
Tamoios, em 2001, eram a movimentação portuária em Angra dos Reis para a descarga
de petróleo e a Usina Nuclear. Na atualidade, se soma a movimentação relacionada ao
Pré-Sal.

3.2.6. Parque Nacional Serra da Bocaina ― federal

O Parque Nacional da Serra da Bocaina foi criado abrangendo áreas


particulares, terras devolutas, terras do Horto Florestal de Mambucaba e o Núcleo
155

Colonial Senador Vergueiro. A redelimitação do Parque Nacional Serra da Bocaina —


PNSB se deu por meio do Decreto nº 70.694, de 8 de junho de 1972, pouco mais de um
ano após o parque ter sido criado pelo Decreto nº 68.172, de 4 de fevereiro de 1971.
Dentre os nove municípios abrangidos parcialmente pelo parque, dois deles estão no
Estado do Rio de Janeiro e os demais no Estado de São Paulo. No Município de Paraty,
o parque abrange cerca de 40% da área do município contornando e emoldurando a baía.
Com a redelimitação, o parque foi reduzido dos 134.000 hectares iniciais para 110 mil;
dos quais 6 mil hectares são de área marinha; e, também, foi redefinida a sua localização,
deixando de compreender áreas no município de Bananal, vizinho à Angra dos Reis, em
São José do Barreiro para englobar áreas em Paraty e no Litoral Norte Paulista. Com a
criação do Parque Nacional da Serra da Bocaina, em 1971, práticas costumeiras dos
quilombolas do Campinho não puderam mais serem exercidas no Sertão e a Fetag, em
1979101, apontou o Parque sendo, ele próprio, um conflito fundiário. As áreas que foram
desmembradas do parque ficaram com empresas tanto nacionais quanto multinacionais
(CPDA, 2015, p. 356).

Conforme o Plano de Manejo do Parque Nacional da Serra da Bocaina, a


retirada de áreas do município de Bananal e de áreas do município de São José do Barreiro
da abrangência do parque se deveu a um pedido do Instituto do Patrimônio Histórico e
Arquitetônico Nacional ― IPHAN. Os limites do parque são imprecisos, segundo o Plano
de Manejo do Parque Nacional da Serra da Bocaina, por serem indicados em cotas
altimétricas e limites de fazendas (MMA - Ministério do Meio Ambiente, 2002 [data de
aprovação do Plano de Manejo], p. 7). Havia irregularidades praticadas por servidores do
antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal―IBDF no processo de
aquisição da Fazenda Guebetiba, em 1985, para compor o Parque Nacional da Serra da
Bocaina e o nome da fazenda era um falso topônimo (GOMES, 2002, p. 24).

101
No “Relatório de Conflitos de Terras”, Fetag/RJ, 1979.
156

Figura 21 ― Sobreposição entre a APA de Cairuçu e o PARNA da


Bocaina, com detalhe da porção marítima da Fazenda Guebetiba
(mapa-base em “Cidade-Brasil” online)

Explica o Relatório “Conflitos por terra e repressão no campo no estado do


Rio de Janeiro (1946-1988)”, do CPDA/UFRJ, que o nome “Guebetiba” era desconhecido
dos moradores locais e, portanto, esses não identificariam a venda que incluiu terras de
terceiros, os quais não souberam da transação de venda de áreas que incluíram
condomínios como o de Laranjeiras e as fazendas Serraria e Barra Grande, além de 6 mil
hectares no mar. A fazenda Guebetiba possuía dois terços em terra e um terço no oceano
(CPDA, 2015, p. 302), como pode ser observado na “Figura 21 ― Sobreposição entre a
APA de Cairuçu e o PARNA da Bocaina, com detalhe da porção marítima da Fazenda
Guebetiba”.
157

3.2.7. Reserva da Biosfera da Mata Atlântica

Figura 22 -- Reserva da
Biosfera e respectivas
zonas da Mata Atlântica

Reserva da Biosfera

Fonte: Plano de Manejo do


Parque Nacional da Serra
da Bocaina, sítio do ICMBio.

A gestão da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica—RBMA (vide “Figura


22 -- Reserva da Biosfera e respectivas zonas da Mata Atlântica”) é feita por Comitês
Estaduais e um Conselho Nacional. Criada em 1992 pela Unesco, a RBMA abrange as
áreas protegidas do domínio da Mata Atlântica e seus remanescentes florestais, ambientes
ecossistêmicos associados e ilhas, são cerca de mil municípios abrangidos em uma área
de 290 mil Km2 (ICMBio, 2004, p. 24). São sete unidades desse tipo no Brasil: a da Mata
Atlântica, a do Cinturão Verde de São Paulo, a do Cerrado, a do Pantanal, a da Caatinga,
a da Amazônia Central e a da Serra do Espinhaço. A Lei do SNUC, promulgada em 2000,
se alinha à forma de gestão integrada das Reservas da Biosfera.

A Reserva da Biosfera da Mata Atlântica—RBMA se estende no Bioma Mata


Atlântica com vários núcleos e em Paraty, no Núcleo da Reserva está o Parque Nacional
da Serra da Bocaina; na sua Zona de influência está a Estação Ecológica de Tamoios com
as respectivas ilhas e, também, as Usinas Termonucleares de Angra dos Reis.

O Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC,


editado em 2000, incluiu o modelo de gestão integrada da Reserva da Biosfera em seu
158

sistema. É um modelo internacional criado em 1972 pela Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura ― Unesco adotado por pouco mais de cem países
com 440 Reservas da Biosfera instituídas.

Alguns problemas relacionados às Reservas da Biosfera foram listados


durante a reunião da Rede Brasileira das Reservas da Biosfera102, dentre os quais a falta
de conhecimento do que são as Reservas, se constando “que nem mesmo os atores da área
ambiental (de forma geral) têm conhecimento do que são e para o que servem as Reservas
da Biosfera no Brasil”, conforme anotado na memória daquela reunião. Para o que
previram formas de ampla divulgação dos seus limites a serem incorporados em mapas e
outras medidas para o fortalecimento da Rede de Reservas da Biosfera, entre outras
medidas, a fim de se evitar o descrédito do Brasil no cenário internacional.

A Reserva da Biosfera é um exemplo de um território englobante, ordena


políticas e diretrizes sobre uma região e se constitui não como uma sobreposição, mas a
partir de unidades de conservação e áreas protegidas.

3.3. Outras sobreposições em Paraty

Outras imagens de territórios englobantes são observáveis em Paraty.

A Indicação Geográfica parte dos atributos territoriais de dada região para


referendar um produto, no caso, a cachaça, sem propriamente intervir nos usos e forma
de ocupação; mas podemos compreender haver interferência porque as condições dadas
para a referenda do produto não poderão ser alteradas e é uma territorialização das regras,
dentre as quais, apenas os produtos daquela região delimitada poderão contar com a
indicação de origem. Já o tombamento de Paraty, como sítio, prevê restrições detalhadas
sobre os usos e a ocupação do solo no município, o que foi questionado pela Câmara dos
Vereadores de Paraty, como se verá adiante.

102
Conforme Memória de Reunião, ocorrida durante o Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação
– CBUC, em Florianópolis em 31/07/2018, arquivada no sítio oficial do Ministério do Meio Ambiente—
MMA.
159

3.3.1. Indicação Geográfica da cachaça de Paraty

Sentaram-se à mesa. Quaresma agarrou uma pequena garrafa de cristal


e serviu dous cálices de parati.
― É do programa nacional, fez a irmã, sorrindo.
― Decerto, e é um magnífico aperitivo. Esses vermutes por aí, drogas!
Isto é álcool puro, bom, de cana, não é de batatas ou milho...
Ricardo agarrou o cálice com delicadeza e respeito, levou-o aos lábios
e foi como se todo ele bebesse o licor nacional.
― Está bom, hein? indagou o major.
― Magnífico, fez Ricardo, estalando os lábios.
― É de Angra.
(O triste fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto)

Parati, 1666, ao redor de Angra dos Reis, vai avançando de tal ritmo que,
ao passar na centúria imediata,
o nome da Vila é sinônimo nacional da aguardente.
Um cálice de parati, diz-se ainda hoje,
como que diz Madeira, Porto Colares, Cognac, Champagne, Bordeaux, Tokay,
terras que são nomes de vinhos.
(Prelúdio da cachaça, Luís da Câmara Cascudo, 1968)

A região de Paraty ficou conhecida pela produção de aguardente e “Paraty” é


metonímia de “cachaça”.

A produção de cachaça foi proibida, em 1690, por Portugal, porque se


necessitava de açúcar na Europa103 (CASCUDO, 2006). A proibição ocorre em épocas
quando o açúcar passa a perder lugar para o ouro no Brasil, na passagem do XVII para o
XVIII; e quando os escravos passaram a ser necessários para a mineração. Escravos eram
comprados nos mercados africanos com pagamento em tabaco e cachaça (ibidem). A
despeito da proibição da sua produção, não deixou de ser produzida e a cachaça era a
economia pujante em Paraty, contabilizada em mais de 100 alambiques. Governantes e
superintendentes, naquela época, fizeram o que se chama de “vista grossa” à produção da
cachaça em tempos de proibição.

Com a Indicação Geográfica104 da cachaça produzida em Paraty, em 2012, se


estabeleceu um território para a procedência do produto: da Serra do Mar para a linha do

103
Em 1660, noutro momento econômico e político, a fim de se evitar a superprodução, se proibiu a
construção de novos engenhos no Brasil.
104
A Instrução Normativa nº 25/INPI/2013 dispões sobre a Indicação Geográfica.
160

oceano; e a parte alta do Município, acima das encostas da Serra do Mar, na porção
noroeste de Paraty, não pertence ao território da cachaça, como segue:

Figura 23 ― Indicação Geográfica da Cachaça de Paraty

Os pontos 1, 2 e 3 indicados acima são os pontos do memorial Descritivo


constante na Nota Técnica do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento ―
MAPA, sem número e sem data, assinada por André Vieira Ramos de Assis, Chefe do
Serviço de Política e Desenvolvimento Agropecuário DT/SFA-RJ/MAPA. A exclusão da
porção noroeste do Município de Paraty é justificada na Nota Técnica/DT/SFA-
RJ/MAPA por ser de ocupação humana em decorrência da instalação das usinas
termonucleares em Angra dos Reis. O rio Mambucaba se configurou como limite natural
entre Paraty e Angra dos Reis, conforme explicado na Nota Técnica:

Com os desentendimentos havidos por volta de 1660 entre as vilas de


Paraty e de Angra dos Reis foi definido como divisa entre os domínios
destas cidades o Rio Mambucaba, seguindo a tendência corrente de se
161

buscar relevante acidente geográfico capaz de pôr fim à demanda. Assim


a planície de inundação do Rio Mambucaba ficou dividida entre os dois
municípios, esta porém, possui maior núcleo populacional em sua
margem esquerda, isto é em Angra dos Reis. (Nota Técnica/DT/SFA-
RJ/MAPA, s/d).

A justificativa para a atuação administrativa do governo na região mobilizou


a ideia entorno de coisas intocadas, conservadas, no suposto isolamento para Paraty, que
tivesse sido quebrado pelas vias terrestres, portanto, uma noção de comunicabilidade
repousada em estadas e em rodovias do governo como um critério próprio e útil para os
próprios fins. Na justificativa para a indicação geográfica para a cachaça de Paraty, a ideia
de isolamento é útil para corroborar com a ideia de coisas preservadas, mantidas no
original, não alteradas e outras imagens nessa linha:

Antes da implantação da Rodovia Rio-Santos (BR 101) toda a


comunicação era realizada ou pelo mar, ou por pela Estrada Paraty-
Cunha, bastante precária. No mais a comunicação terrestre dependia de
caminhos só transpostos por tropas de muares, cujo deslocamento lento
cobria a distância máxima de cerca de 20 quilômetros em um dia. Pelo
mar, o deslocamento das pequenas embarcações não possibilitava
distanciamentos maiores no curso do dia. Por este motivo Paraty parou
no tempo, como atesta seu Centro Histórico, que mantém a mesma
aparência do período colonial. Desta forma, os alambiques foram
instalados na Baía de Paraty, pois a produção, ou se destinava ao
abastecimento das minas através da Estrada Real, ou à exportação, pelo
Porto de Paraty. (Nota Técnica/DT/SFA-RJ/MAPA, s/d)

Ainda, percorrendo a observação dos argumentos para as justificativas, há o


ateste da região como identitária daquela cachaça e que, ao mesmo tempo, produz
cachaças em acordo com padrões especificados e com aprendizado desses padrões; feito
isso, Paraty é reinserida em seu ambiente dele ressaltados a beleza cênica e a gente que
nele vive:

Em Paraty, num passado recente, houve um intenso trabalho integrado


entre os produtores, mais tarde organizados na Associação dos
Produtores e Amigos da Cachaça Artesanal de Paraty (APACAP), os
162

técnicos do MAPA, e um consultor (especializado no processo industrial)


da Fundação Bio-Rio, mobilizado pelo Serviço Brasileiro de Apoio à Micro
e Pequena Empresa (SEBRAE), no sentido da adequação dos alambiques
às normas que regulamentam a produção de cachaça no Brasil. Todos
aprenderam no processo, levando ao estabelecimento de técnicas de
fabricação coerentes com a legislação, sem, contudo, deixar de observar
aquelas práticas tradicionais que levaram à cachaça de Paraty renome
internacional. De fato, a atração turística exercida pelo Centro Histórico
de Paraty, e a exuberante beleza natural circundante sensibilizam
cidadãos de todo mundo, em especial franceses, alemães e italianos, que
ao retornarem aos seus países de origem não medem elogios a
hospitalidade do povo, às belezas naturais e à cachaça de Paraty. (Nota
Técnica/DT/SFA-RJ/MAPA, s/d)

Também, o documento informa que na área excluída não há alambiques


registrado junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento ― MAPA. A
Nota Técnica percorreu os caminhos normativos necessários para a atuação do órgão, foi
o que ressaltei acima, fez a sua função, apenas isso. Fora o fato de o território do Parque
Nacional da Serra da Bocaina coincidir perto de 40% de área com o território da cachaça,
cuja unidade de conservação de proteção integral federal é restritiva a qualquer atividade
humana exceto as de educação ambiental, pesquisa, visitação e as instalações de
manutenção e necessárias à visitação, o que quero ressaltar é o aspecto da atuação
institucional, para pensarmos os territórios, em que as instituições primeiro
institucionalizam os território para, depois, lidar com eles.
163

Figura 24 – Parque Nacional da Serra da Bocaina ― PNSB, Paraty, RJ


164

3.3.2. Paraty: Sítio Tombado

Paraty possui topônimos que atravessaram o tempo porque celebrados


historicamente: o lugar dos portões de ferro, a cadeia, o forte, a Igreja do Rosário, o rocio,
cada qual registrado em livros de tombos específicos, a depender da sua categoria, ou no
Livro do Tombo Etnográfico e Paisagístico, ou no Livro do Tombo das Belas Artes, ou
no Livro do Tombo Histórico. Um a um tombado.

Um outro tombamento se deu no território do Município de Paraty, na forma


de uma poligonal na Portaria nº 402, de 13 de setembro de 2012, do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ⸻ Iphan. O tombamento leva o nome de “Sítio
Tombado”, que coincide com a totalidade da área e com os limites do município.
Conforme o Art. 1º, como segue, o tombamento se deu no intuito manifesto de:

Estabelecer critérios e procedimentos que visam à preservação do


patrimônio artístico, histórico, arquitetônico, paisagístico e
arqueológico, do Município de Paraty, Estado do Rio de Janeiro,
doravante identificado como SÍTIO TOMBADO.

No município tombado por inteiro, as demais áreas para além do centro


histórico e cercanias foram categorizadas em três “Zonas de Preservação do Conjunto
Paisagístico de Paraty”, que são definidas no Art. 7º da Portaria nº 402/2012/Iphan:

I - Zona de Preservação do Patrimônio Natural (ZPPN): compreende


áreas que têm a função de garantir a conservação da paisagem e do
patrimônio natural, cujos limites abrangem a porção do Parque Nacional
da Serra da Bocaina no território de Paraty e todas as áreas classificadas
como Zona de Proteção da Vida Silvestre (ZPVS) pelo Plano de Manejo
da APA de Cairuçu instituído pela Portaria/Ibama nº. 28/2005, em vigor
na data de publicação desta Portaria;

II - Zona Especial de Preservação (ZEP): abrange toda a área


compreendida no círculo de 5 (cinco) quilômetros de raio cujo centro é
o ponto de interseção dos eixos da Praça Monsenhor Hélio Pires e da Rua
Marechal Santos Dias, de acordo com definição do Decreto 58.077/66, e
toda a área situada entre o referido círculo e o limite da ZPPN, acima
identificada; e

164
165

III - Zona de Preservação (ZP): corresponde às demais áreas do


Município, não classificadas como ZPPN ou ZEP.

Segue mapa, conforme o anexo àquela portaria:

Figura 25 - Mapa das Zonas de Preservação do Conjunto


Paisagístico de Paraty, Port. 402/2012/Iphan

A portaria do Iphan, de 2012, relativa às três Zonas de Preservação do


Conjunto Paisagístico de Paraty, regulamenta as formas de intervenção nos espaços que
delimita (como construção de torres telefônicas, por exemplo) e as áreas impeditivas de
se construir ou manter estruturas que atrapalhem a visão do conjunto, especialmente no
centro histórico. O que ocorre é uma organização territorial e administrativa do espaço,
por meio de delimitações e prescrições de usos, ao mesmo tempo em que são alcançadas
áreas de proteção ambiental e territórios de populações tradicionais. Para tais
comunidades são delimitadas suas ocupações em poligonais acompanhadas dos
respectivos memoriais descritivos, são elas: Chapéu do Sol, Prainha de Mambucaba,
Tarituba, São Gonçalo, Taquari, São Roque, Barra Grande, Graúna, Praia Grande, Paraty-
Mirim, Cabral, Pedras Azuis, Novo Horizonte, Patrimônio, Curupira, Praia do Baixio,
Vila do Cruzeiro, Ponta da Romana, Praia Grande da Cajaíba, Calhaus, Pouso da Cajaíba,

165
166

Ponta da Juatinga, Martim de Sá, Saco das Enxovas, Cairuçu das Pedras, Ponta Negra,
Sono, Vila Oratório, Trindade, Ilha do Araújo, Ilha do Algodão.

A Câmara dos Vereadores de Paraty reagiu ao tombamento de Paraty. O


requerimento nº 23, de 24 de março de 2014105, questiona a Portaria/Iphan nº 402/2012
no ordenamento jurídico para as restrições que traz: proibição de edificações com telhas
metálicas ou outra, indicando que devem ser cobertas por telhas e o grau de inclinação do
telhado; proibição da construção de terraços nos pavimentos superiores (art. nº 25 da
Portaria/Iphan nº 402/2012); estipula taxa de ocupação (art. nº 24 da Portaria/Iphan nº
402/2012) e a distância de 30 metros de largura para a faixa litorânea de uso comunitário
(FLUC), a partir da faixa de marinha (art. nº 12 da Portaria/Iphan nº 402/2012). Essas são
algumas das disposições e restrições expressas no zoneamento que a Portaria/Iphan nº
402/2012 fez, excetuando a área do centro histórico do tombamento, mas incidindo sobre
ela algumas disposições, sendo que há restrições para o território municipal como um
todo. A Câmara dos Vereadores de Paraty questionou se aquelas restrições seriam da
competência do Iphan tanto quanto se seriam as suas atribuições fiscalizar, proibir e
autorizar (PARATY, 2014, p. 9), além de colocar em dúvida a competência do Iphan para
legislar sobre o assunto de ordenamento do uso e da ocupação do solo, de competência
da municipalidade, sendo esta, portanto, a principal queixa expressa no requerimento da
Câmara dos Vereadores.

Acerca do embasamento legal, constante no preâmbulo da Portaria/Iphan nº


402/2012, podemos verificar que a competência ali indicada é no sentido da competência
do Iphan para tombar bens e as normas que trazem os bens em tombamentos já ocorridos
(que são editais), e não são normas sobre o tema do ordenamento do uso e da ocupação
do solo ou competências adicionais do Iphan. Ou seja, o preâmbulo não coincide com o
teor da norma.

O Requerimento da Câmara dos Vereadores de Paraty indica diversos


passivos do Iphan com relação aos bens já tombados, como: a previsão feita pelo Iphan,
antes, de adoção de um plano urbanístico adequado a preservação do acervo arquitetônico
e natural do sítio histórico de Paraty; a possibilidade de ser criada uma fundação para a
cooperação entre o Ministério da Cultura, como o órgão federal para o melhoramento de

105
Requerimento da Câmara Municipal de Paraty nº 23, de 24 de março de 2014, disponível no sítio da
Assembleia Legislativa e Câmara dos Vereadores de Paraty.

166
167

estradas e vias; e um plano de turismo relacionado a Paraty como Monumento Nacional


― que figurou na epígrafe dos documentos oficiais na Prefeitura de Paraty ao menos até
ser declarada Patrimônio da Humanidade, no último dia 5 de julho de 2019 pela
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura ― Unesco. Os
passivos indicados no Requerimento da Câmara dos Vereadores de Paraty constam do
Decreto nº 58.077, de 24 de março de 1966, que é vigente, e por meio dele Castelo Branco
decretou Paraty como Monumento Nacional naquele contexto do planejamento da
construção de uma rodovia que ligasse o Rio de Janeiro a São Paulo, a BR-101/RJ, e que
promovesse o turismo na parte baixa do relevo, junto às praias.

A Portaria/Iphan nº 402/2012 indica 39 núcleos habitacionais, que são


comunidades locais e tradicionais.

Tabela 5 ― Comunidades locais e tradicionais listadas na


Portaria/Iphan nº 402/2012 (Sítio Tombado de Paraty)

Núcleos Habitacionais – Portaria/Iphan nº 402/2012


1 Barra Grande
2 Cabral
3 Cairuçu das Pedras
4 Calhaus
5 Condado
Coriscão II - Núcleos da Zona de Preservação: núcleos habitacionais
6
localizados dentro dos limites da ZP: Chapéu do Sol
7 Corisquinho
8 Corumbê
9 Curupira
10 Graúna
11 Ilha do Algodão
12 Ilha do Araújo
13 Martim de Sá
14 Novo Horizonte
15 Pantanal
16 Paraty-Mirim
17 Patrimônio
18 Pedra Branca
19 Pedras Azuis
20 Penha
21 Ponta da Juatinga
22 Ponta da Romana
23 Ponta Negra
24 Ponte Branca
25 Pouso da Cajaíba
26 Praia do Baixio
27 Praia Grande
28 Praia Grande da Cajaíba
29 Prainha de Mambucaba
30 Saco das Enxovas

167
168

Núcleos Habitacionais – Portaria/Iphan nº 402/2012


31 São Gonçalo
32 São Roque
33 Sono
34 Taquari
35 Tarituba
36 Trindade
37 Várzea do Corumbê
38 Vila do Cruzeiro
39 Vila Oratório

Ao indicar os “núcleos habitacionais”, uniformizando territórios caiçaras,


quilombos, terras indígenas e outras populações106, aquela portaria corrobora com uma
destituição do caráter tradicional das comunidades.

Observo que a Portaria do Iphan, ao excluir comunidades do tombamento


indicando poligonais para elas e, assim as tendo delimitado, procedeu ao que se chama
de “delimitação por fora”, ou seja, indicou onde não seria um território tradicional ou
onde o território tradicional não possa alcançar e, remarque-se, sem capacidade técnica e
normativa para isso por parte do Iphan.

A figura de “Sítio Tombado” não possui uma norma específica para esse
efeito. Há tombamentos de conjunto de bens, de áreas para a preservação do conjunto
paisagístico a fim de resguardar a visibilidade — como é o caso das edificações jesuíticas
das Missões — regulando-se, inclusive, áreas de entorno. A cidade de Ouro Preto foi
tombada em grande proporção de seu território, em 2010, sendo que Paraty é o único caso
de tombamento integral até o presente momento (em 2018).

3.4. Tipos de territórios

Por territórios tradicionais entendemos que são os territórios de povos


indígenas, quilombolas e de outras comunidades e povos que não foram nominados pelo
Estado, até o momento, como o foram os povos indígenas e o remanescentes das
comunidades dos quilombos (ARRUTI, 2006). Porém, tais comunidades e povos
preexistem à nominação e têm um território em vista. O reconhecimento de seus

106
O que é outra crítica em reação da Câmara em Paraty, do Vereador Luciano de Oliveira Vidal, que
questiona, além do que já indiquei acima, qual a metodologia utilizada pelo Iphan, pois a Portaria/Iphan nº
402/2012 surge, sem um relatório ou outro documento que a apresente ou em que ela se apoie.

168
169

territórios por parte do Estado resulta em um território institucional, delimitado


administrativamente, o que foi tema do capítulo 1 nesta tese.

A complexidade dos territórios em Paraty é fundiária, no sentido de que há


conflito fundiário e é, também, complexa a sobreposição de gestão de tais territórios, tanto
administrativa quanto tradicional. A gestão das próprias comunidades dos seus territórios
é uma gestão turbada pela sobreposição de unidades de conservação, as quais interferem
principalmente nos usos dos recursos naturais. Outras delimitações administrativas, que
não implicam em desapropriações e são inserções de gestão em dada área especificada,
podem englobar as unidades de conservação, as terras indígenas, os territórios
quilombolas e os territórios em que vivem comunidades tradicionais, como exemplos: a
Reserva da Biosfera, o Mosaico da Bocaina, a Indicação Geográfica e o Sítio Tombado
de Paraty.

Faz-se necessário destacar que há tanto a sobreposição física entre os


territórios e quanto entre as atribuições institucionais na gestão e na administração desses
territórios, na mais da vez conflitantes107. São três tipos de territórios, diferenciados
quanto à sua origem, ao menos: os territórios tradicionais, os territórios institucionais e
os territórios englobantes.

Território Tradicional ― são os territórios segundo os critérios das próprias


comunidades: territórios dos povos indígenas, das comunidades de quilombos e das
comunidades caiçaras (até o momento não se tem notícias de outras comunidades em
Paraty); se incluem os caminhos nesses territórios e as rotas marítimas dos caiçaras.

Territórios Institucionais ― são os territórios segundo os critérios das


normas para o seu reconhecimento pelo Estado, aplicadas pela administração pública. No
caso das Terras Indígenas e dos Territórios Quilombolas, os critérios das comunidades
são traduzidos para os critérios das normas; critérios estes que, não raro, não alcançam
aqueles critérios tradicionais todos. São exemplos de territórios institucionais: Terras
Indígenas (Artigo 231 da Constituição Federal e normas correlatas), Territórios
Quilombolas (ADCT 68 e demais normas), Unidades de Conservação (Lei do SNUC) e
as demais Áreas Protegidas (assim reconhecidas por normas que as decretaram).

107
Observo que as divisões e os limites políticos territoriais de municípios, de unidades da federação e do
país ou as propriedades particulares não são objeto de análise aqui, mas que, eventualmente, estarão
envolvidas nessas três classes de diversas formas em uma profusão de situações e exemplos que serão
apontados circunstancialmente.

169
170

Territórios Englobantes ― são os territórios feitos para a gestão


administrativa, no caso do Sítio Tombado, se poderia falar em “território do patrimônio”,
ainda assim, englobante bem como a área do Patrimônio da Humanidade, no caso de
Paraty; são eles: Sítio Tombado de Paraty, Patrimônio da Humanidade, Reserva da
Biosfera, Mosaico de áreas Protegidas da Bocaina, Indicação Geográfica da Cachaça e
zonas do Zoneamento Econômico Ecológico Municipal.

Os territórios vetoriais e pontuais podem formar uma matriz com as três


classes, ou tipos, acima. Os Territórios vetoriais e pontuais, além de indicarem “formatos”
se diferenciam quanto às maneiras de se territorializar, sendo que os nossos olhos estão
mais acostumados à visualização pontual que a vetorial e essa se vai perdendo, também,
nos registros que fazemos da territorialidade dos outros.

As sobreposições entre os territórios institucionais de comunidades (terras


indígenas, territórios quilombolas, territórios das comunidades caiçaras e outras
tradicionais) e as unidades de conservação trazem conflitos diversos e não um “reforço”
para as áreas em sobreposição mutuamente, uma não reforça a outra. O que poderia se
dar, se fosse o caso, frente à exploração econômica destruidora. Nisso, há um contraponto
com o instituto do tombamento, pois o olhar, a partir do tombamento, traz uma imagem
de reforço da proteção de um bem em seus sucessivos tombamentos, um após o outro
cumulativamente. As disposições para o tombamento estão estatuídas no Decreto-Lei nº
25 de 30 de novembro de 1937, editado na época de Getúlio Vargas como presidente do
Brasil e de Gustavo Capanema ocupando a pasta de Ministro de Educação e Cultura.
Ambos os dois subscrevem esse decreto. O bem que a União vier tombar não impede que
os estados e as municipalidades também o façam, com o mesmo objeto (FRANÇA, 1982,
p. 22), sobrepostamente, onde cada uma das três instâncias atua conforme suas próprias
atribuições. O acamamento de tombos é visto como um “reforço” (ibidem) desse regime
de proteção. Sublinhe-se que tal reforço advém do mesmo universo de preocupações; o
que não se passa com as sobreposições entre unidades de conservação e territórios
tradicionais em que os usos dos recursos naturais são um ponto de atrito, principalmente
discursivo: os usos dos recursos naturais são alguns dos critérios por onde se identificam
e se reconhecem terras indígenas, territórios quilombolas e territórios tradicionais108 e por
conta desses mesmos usos alguma incompatibilidade com as unidades de conservação é

108
Nas normas diversas que asseguram a permanência por conta da pesca e de outras atividades de um
grupo específico.

170
171

apontada como justificativa para a não permanência das comunidades em unidades de


conservação de proteção integral..

A separação entre territórios institucionais (quilombolas, indígenas) e


territórios tradicionais (ocupados ou pleiteados por povos indígenas e quilombolas e
outras comunidades) tem, aqui, a finalidade de evidenciar que preexiste um território, que
é delimitado e configurado segundo os critérios de cada comunidade para cada território.
Isso ajuda a entender os pleitos das comunidades por correção de limites ou pela demanda
por áreas lindeiras em boa parte dos casos. Pois as normas para a identificação e
delimitação, além da necessidade de serem padrões para a ação da administração pública
e possam, em larga medida, alcançar os critérios próprios das comunidades, não levam
em conta “todos” os critérios das comunidades nesse marco da ação do Estado. Disso
resulta que um território identificado e delimitado reconhecido pelo Estado (território
institucional), como já mencionado em outra parte nesta tese, tenderá a ser menor que o
território de uma comunidade (território tradicional).

Quanto à sobreposição, não seria o território institucional (uma terra indígena


ou um território quilombola), identificado para o reconhecimento do Estado uma primeira
sobreposição ao território tradicional de uma comunidade? Se assim for, quando falamos
em sobreposições com unidades de conservação, estas seriam a segunda sobreposição,
portanto, aos territórios tradicionais. As questões das sobreposições são tratadas entre
territórios institucionais, portanto, esquecendo-se que há para as comunidades os seus
territórios tradicionais, estes convertidos em territórios institucionais ao serem
reconhecidos pelo Estado ao ingressarem em processo de regularização fundiária e que
ambos poderão, ou não, coincidir.

A constituição dos territórios institucionais terá o formato de território


pontual, na verdade, não um ponto, mas uma área, fixa e que “fixará” a comunidade nela.
Tal fixação dificulta sobremaneira os processos históricos de territorialização em curso,
que são estancados ou dificultados. Comunidades com dinâmicas de ocupação mais
expansivas ou descontínuas em áreas, serão prejudicadas no seu curso. As comunidades
caiçaras, entre as idas e vindas na sua circulação perderam parcelas consideráveis dos
territórios, que foram esbulhados. Portanto, a constituição de um território institucional
traz a vantagem do reconhecimento acompanhada da desvantagem da fixação. No geral,
fixar significa romper, inclusive, com a mobilidade das comunidades e liberar terras.

171
172

Nas questões relacionadas a cada caso das sobreposições abordadas neste


capítulo podemos levar em conta a participação das comunidades, ou o envolvimento
delas nos casos, como tendo essas duas perspectivas: o seu território tradicional e o seu
território institucional. Junto a isso a atuação do Estado, que assumiu a responsabilidade
primeira naquela “conversão” para o reconhecimento dos direitos. Some-se a isso os
processos de regularização fundiária não levados a cabo de terras indígenas e de território
quilombola; e no caso das comunidades caiçaras, há uma miríade de normas que lhes
garantem ou o acesso ao mar, ou o direito de pescar, ou a permanência no chão de morada,
todos em processos administrativos diferentes. Trata-se tanto de uma dispersão das
normas quanto da desintegração de uma comunidade, na forma de abordá-la, promovida
pelas próprias normas, no caso caiçara, ao menos.

Entre os mapas dos territórios vetoriais e pontuais há um espaço, o que leva


um aspecto de conflito ao próprio processo de regularização fundiária; nos casos do
envolvimento de comunidades em processos de licenciamento ambiental de
empreendimentos, a comunidade tem em mente o seu mapa de território tradicional e é a
partir desse mapa (muitas vezes mental) que identificam os impactos de um
empreendimento. O mesmo se passa nos casos de sobreposições entre unidades de
conservação e territórios de comunidades tradicionais, de povos indígenas e de
quilombolas. As unidades de conservação, como conceito e como território
institucionalizado, têm uma longa história na sua formulação e, como as terras indígenas,
os territórios tradicionais e quilombolas, as unidades de conservação são resultam de
algumas conquistas.

172
173

4. Comunidades tradicionais e a criação do Sistema Nacional de


Unidades de Conservação da Natureza―SNUC

A noção de ambientes “intocados”, explicam Gómez-Pompa e Kaus


(GÓMEZ-POMPA & KAUS, 2000, p. 129), foi tomada por empréstimo da história
ocidental e das experiências em zonas temperadas, o que permeou as políticas ambientais
globais e os planos de manejos de recursos naturais, inadequados, portanto, às zonas
tropicais (ibidem). Já a ideia de “indomado” guarda em si, paradoxalmente, o aspecto da
subjugação da natureza pelo homem, cujas raízes são bíblicas (ibidem) e engendram a
crença de que o destino da humanidade seria o da domesticação dos lugares
naturais/selvagens, incluídas aí as religiões animistas em oposição à religião da
“civilização ocidental” (COLCHESTER, 2000, p. 227).

Na linha de que não existiriam ambientes nunca antropizados (POSEY,


1987), a ideia de “habitat não modificado” se esmaece, segundo Darrell Posey, à medida
que se adensa o conhecimento acerca da influência antropogênica na constituição da
vegetação madura (GÓMEZ-POMPA & KAUS, 2000, p. 133). Também, as próprias
noções, denominações e classificações desses ambientes “naturais” ou “não naturais” são
produtos sociais de ordem moral, ideológica, estética, econômica, religiosa, política.
Henyo Barreto Filho chama a atenção para a instituição de áreas de proteção ambiental
como sendo estas construções humanas; áreas protegidas como “artefatos” de
planejamento e controle no período desenvolvimentista, no Brasil, a partir da década de
1970 (BARRETTO FILHO, 2001). São as florestas tropicais tanto artefatos quanto
habitats — advertem Gómez-Pompa e Kaus que é necessário que entendamos isso para
que políticas ambientais não sejam produtos da imaginação para um meio ambiente
original (GÓMEZ-POMPA & KAUS, 2000, p. 133), o qual inexiste.

O objetivo deste capítulo é o de mostrar como o Estado brasileiro se comporta


ao constituir suas áreas protegidas ambientalmente e como lida com as populações,
principalmente as comunidades tradicionais e povos indígenas, na categorização das áreas
protegidas. O lugar de análise é a discussão do Projeto de Lei de criação do Sistema
Nacional de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC, instituído pela Lei nº
9.985/2000, vigente, e que tramitou durante oito anos na Câmara dos Deputados. O tempo
de tramitação nos oferece um período razoável para observarmos as sucessivas alterações

173
174

e propostas ao texto da lei relacionando ou incompatibilizando populações humanas e


unidades de conservação.

As formas como as comunidades tradicionais, os povos indígenas e


quilombolas são vistos pelo Estado e como a categorização das unidades de conservação
foram planejadas no SNUC, no aspecto da relação com as comunidades, são a finalidade
deste capítulo. Antes, passamos a um breve histórico da constituição das áreas protegidas.

4.1. Áreas Protegidas no Brasil

A lógica econômica definiu e, de certa maneira, impulsionou a prática de


serem reservadas áreas com recursos naturais, em especial a madeira. A Coroa evidencia
o seu monopólio sobre o uso comercial de madeiras: a proibição, em 1698, de serem
doadas sesmarias em áreas recobertas por árvores de valor comercial — para a indústria
naval — e demais proibições legais, que regravam e restringiam a exploração de recursos
florestais madeireiros e que impunham ao sesmeiro a necessidade de obter a autorização
régia para explorá-los; vem daí a expressão “madeira de lei”, de acordo com Daniel Castro
(CASTRO, 2013). O corte de madeira em propriedades particulares foi proibido, em
1800, a uma distância de 10 léguas, cerca de 2,7 km, a partir da costa e havia, em 1698,
a indicação de que os engenhos centrais fossem instalados a uma distância mínima de 3,3
léguas (aproximadamente 1 km) entre si, em proveito da reserva de lenha entre eles para
neles ser utilizada na geração de energia109 (CASTRO, 2013, p. 140), como mencionei no
capítulo 2. Segundo o Castro (2013), é possível observar regramentos de reservas
florestais nessas práticas, voltadas para a economia das distâncias dos recursos naturais e
na utilização dos mesmos.

Com o antigo nome de “Real Horto” e de uso privativo da família real com
as finalidades de aclimatação de espécies exóticas e como espaço restrito para passeio, o
Jardim Botânico do Rio de Janeiro foi inaugurado em 13 de junho de 1808 e, em 1811,
sua área foi ampliada para a plantação de chá. Depois, passou a ser público
(CARVALHO, 2015, pp. 11-12). O Jardim Botânico abrigava plantas para os estudos de

109
Não encontrei disposição em contrário após a data de 1698; no entanto, não é seguro afirmar que à época
do desejo de se construir um engenho central em Paraty — o que não aconteceu — a norma seria vigente;
de qualquer maneira

174
175

aproveitamento econômico da flora brasileira e com a influência de modelo europeu de


embelezamento das cidades, a criação de jardins botânicos no Brasil é apontada por Ivan
Mota110 como o embrião da administração florestal brasileira (MOTA, 2007, p. 59).

Na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos, a crítica à “destruição do


mundo natural” tiveram o fito da contemplação e da elevação do espírito que o contato com
áreas naturais proporcionava, segundo Franco, com influência do romantismo europeu
(FRANCO, et al., 2015, p. 239). Uma diferença quanto aos Estados Unidos deve ser
remarcada: sem tradição de patrimônio cultural e histórico tanto o quanto a Inglaterra,
enfatizou a beleza cênica e os atributos naturais amplamente registrados em pinturas e na
criação de parques.

No Brasil, a crítica à destruição da natureza foi-se estruturar no propósito de


superação do modo de produção colonial escravagista, menos apoiada na valorização
estética ou da natureza em si, relacionada ao racionalismo herdado do iluminismo,
segundo Franco (2015). A conservação da natureza estava voltada para uma
instrumentalização para o progresso ― se afastando da monocultura e do latifúndio.
Intelectuais estiveram envolvidos em defender o “uso racional dos recursos naturais”,
como José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838)111, para uma sociedade rural
composta em outros moldes, com campos agrícolas utilizando tecnologias e insumos
(FRANCO, et al., 2015, p. 240). Bonifácio, com formação acadêmica em Portugal, na
França e Alemanha, era naturalista e incorporou, a partir da sua trajetória acadêmica, os
princípios de uma “economia da natureza”. O que, depois, segundo Franco (FRANCO, et
al., 2015, p. 239) se tornou a disciplina que mais tarde foi chamada de Ecologia; já o
termo “ecológico” aparecerá, em 1969, no artigo 172 da Emenda Constitucional nº 1, de
17 de outubro, que reescreveu a Constituição Federal de 1967, no período militar, e que
previa o levantamento ecológico prévio para o aproveitamento agrícola de áreas sujeitas
a calamidades e dispôs sobre a suspensão de benefícios a proprietários pelo mau uso da
terra. Seguiram-se a José Bonifácio de Andrada e Silva no envolvimento com as propostas
ambientais: André Rebouças (1838-1898), na proposição da criação de parques para neles
se desenvolverem atividades de turismo e das belas paisagens, aos olhos do imigrante e

110
Em sua dissertação na Engenharia Civil sobre o Parque Estadual Serra do Mar, defendida em 2007.
111
José Bonifácio de Andrada e Silva, homem público na Coroa e com formação acadêmica diversa pela
físico-química e filosofia, ele volta ao Brasil depois de aproximados 30 anos vividos na Europa; pretendeu
ocupar cargos públicos e reformular a capacidade dos funcionários do governos na sua atuação (VARELA,
et al., 2005).

175
176

os meios de transporte que, também, poderiam ser desenvolvidos; e Alberto Torres (1865-
1917), na defesa da proteção da natureza como responsabilidade da sociedade, a fim de
manter reservas futuras. Foram previstas a implantação de um parque em Sete Quedas,
no Paraná, e outro na Ilha do Bananal, ao norte de Goiás, hoje Estado do Tocantins. O
primeiro, a Hidrelétrica de Itaipu cobriu, e o Parque Nacional do Araguaia tem outras
histórias contadas mais adiante neste capítulo.

No ideário das providências para a conservação e utilização racional da


natureza estão, entre outras medidas, a proteção de encostas e de mananciais para o
abastecimento urbano; são medidas que se assemelham ao que hoje são as Áreas de
Proteção Permanente112. A criação de uma cidade que fosse modelo de “higiene e
saúde”113 e a criação de um parque nacional na cidade de Itatiaia114, no Estado do Rio de
Janeiro, era uma ideia defendida por André Rebouças em 1878 (LEITE, 2007, p. 20)115.
Embora criado mais tarde, em 1937, o Parque Nacional de Itatiaia começou a ser
planejado em 1913 (LEITE, 2007, p. 20), pelo botânico Alberto Löfgren, e a sua
instituição é apontada como inspirada pela criação do Parque Nacional de Yellowstone,
nos Estados Unidos, em 1872, reconhecido como o primeiro parque nacional do mundo
(TOZZO & MARCHI, 2014, p. 509). A área do parque em Itatiaia, uma antiga fazenda
do Visconde de Mauá, abrigou um projeto agrícola que não teve sucesso e, por isso, foi
vendida por ele, em 1908, ao governo. A fazenda foi adquirida pelo Ministério da Fazenda
e repassada ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Em 1914, foi criada uma reserva
florestal nessa área; depois, em 1927, uma estação biológica, em uma sucessão de
destinações de usos para a área (LEITE, 2007, p. 21); e, em 1937, a área é decretada como
o Parque Nacional de Itatiaia. A administração do parque está instalada no que era a sede
da antiga fazenda Mont Serrat.

Com a imagem de um território descontínuo, é criada a Reserva Florestal do


Acre para proteger as cabeceiras dos tributários dos rios formadores das bacias dos rios
Juruá, Japurá e Acre, as três grandes bacias no Estado do Acre, com a finalidade da

112
São veredas, margens de lagos artificiais ou naturais, bordas de chapada, nascentes, matas ciliares,
angulação de inclinação de morros e outras pequenas porções, se comparadas às unidades de conservação,
em que os usos e a recomposição são regulados em normas, dentre elas estão diversas resoluções do
Conselho Nacional do Meio Ambiente ― CONAMA.
113
No rastro da teoria dos miasmas.
114
O Parque Nacional do Itatiaia, apontado como o primeiro parque nacional do Brasil, e a Reserva Florestal
do Acre, que pode ter sido a primeira Área Protegida criada no Brasil, em 1911.
115
Empresário, Engenheiro Civil, abolicionista e reformador social, André Pinto Rebouças defendia
programas de agricultura para a integração de escravos libertos (CARVALHO, 1998, p. 211 e ss); sugeriu,
também, a criação do Parque de Sete Quedas e do Parque da Ilha do Bananal.

176
177

conservação da navegabilidade fluvial, como segue no trecho do Decreto nº 8.843/1911,


preservada a ortografia da época:

O Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brazil, attendendo a


que a devastação desordenada das mattas está produzindo em todo o
paiz effeitos sensiveis e desastrosos, salientando-se entre elles
alterações na constituição climaterica de varias zonas e no regimen das
aguas pluviaes e das correntes que dellas dependem; e reconhecendo
que é da maior e mais urgente necessidade impedir que tal estado de
cousa se estenda ao Territorio do Acre, mesmo por tratar-se de região
onde como igualmente em toda a Amazonia, ha necessidade de proteger
e assegurar a navegação fluvial e, consequentemente, de obstar que
soffra modificação o regimen hydrographico respectivo. (Decreto nº
8.843/1911)

A presença humana – seringueiros e “aborígenes” ― era vedada, com


previsão da “mudança” dos povos indígenas com o auxílio do Serviço de Proteção ao
Índio ― SPI, recém-criado em 1910. Somadas as quatro poligonais que formavam a área
da reserva são 2,8 milhões de hectares116, cujo Decreto nº 8.843, de 26 de julho de 1911,
é vigente. A delimitação de quatro polígonos disjuntos para o território da reserva se deve
às características da hidrografia do Território do Acre e pela finalidade de proteção das
nascentes. São três bacias hidrográfica que atravessam o antigo Território do Acre na
direção oeste-leste, entre a divisa com a o Peru e a Bolívia de um lado e com o Estado do
Amazonas no outro, até a “linha Cunha Gomes”, uma linha seca117. Observando-se a
Carta Geographica do Territorio do Acre (CASTRO, 1907), se vê que cada um dos três
departamentos em que o governo federal dividiu aquele território federal correspondia às
bacias e sub-bacias dos rios Juruá, Purus e Acre, separados pelos divisores de águas entre
aquelas bacias hidrográficas. A delimitação da Reserva Florestal do Acre traz as quatro
poligonais descontínuas e distantes entre si em que três delas acompanham as cumeeiras
das divisas entre as bacias e são delimitadas em linhas secas paralelas com larguras de 40
ou 20 quilômetros cada uma, de modo a abranger, de fora a fora, as nascentes dos
tributários das bacias. A quarta poligonal delimita região centro-leste do Alto Juruá

116
O decreto, embora traga o memorial descritivo da delimitação, não traz a área da reserva, que encontrei
calculada e plotada na pesquisa de André Vital (VITAL, 2018, p. 43) sobre saúde pública no Território
Federal do Acre.
117
Uma “linha seca”, em delimitação e demarcação, é a reta que liga pontos de referência, diferente
daquelas que usam os cursos dos rios e outros marcadores naturais.

177
178

localizada em porção elevada e da qual partem tributários de oito rios à sua volta118. No
decreto de criação da reserva, de 1911, há a vedação de acesso à área da reserva florestal,
exceto o trânsito necessário, no caso de caminhos de intercomunicação de povoados; há
vedação à extração de madeiras e de quaisquer outros produtos florestais; são proibidas a
caça e a pesca. Há a previsão de desapropriação de moradores que apresentem
documentos comprobatórios, ou um acordo amigável para a aquisição de outras terras.

A criação da reserva florestal no Território do Acre se deu em meio a


preocupações, entre 1910 e 1913, com os usos do solo e das florestas e da proteção de
águas mananciais e de animais. O que era debatido em termos de proteção contra a
devastação que pudesse alterar permanentemente o clima e o solo, além da extinção de
animais em perspectiva que alinhava cientistas ligados ao Museu Nacional e ao Ministério
da Agricultura, Indústria e Comércio ― MAIC, com Pedro Manuel de Toledo, envolvido
com propostas de conservação de “usos racional de recursos naturais” (VITAL, 2016, pp.
194-195). A preocupação com a manutenção da navegabilidade dos rios ― em regime de
grande variação do volume de água e dos níveis dos cursos de água naquela região acreana
― se apoiava na “teoria do dessecamento”, formulada na Europa e que relacionava a
devastação da cobertura vegetal às mudanças no clima e à desestruturação de um
“equilíbrio ambiental”.

O dessecamento, também, foi relido para providenciar medidas de saúde


pública no Brasil quanto a águas acumuladas em regiões urbanas e adjacências, quanto à
drenagem dos solos por meio da construção de valas e, depois, pela instalação de
tubulações.

O plantio de eucaliptos, no primeiro decênio do século XX, na cidade do Rio


de Janeiro, teve a finalidade de retirar a humidade dos solos e de “purificar o ar”, medidas
relacionadas às preocupações com a proliferação de mosquitos e de doenças como a febre
amarela.

Na cidade de Sena Madureira, no Acre, a floresta foi afastada do núcleo


urbano e nele drenado o solo. Muitas das providências movidas pelos “miasmas”, cheiro
pútrido da decomposição de matéria orgânica, que se acreditavam transmitirem a malária
no começo do século XX no Brasil nas disputas entre “contagionistas” e “miasmáticos”

118
Conforme indicação em croqui de André Vital (VITAL, 2016, p. 199) sobre o mapa de Placido de Castro
de 1907 (CASTRO, 1907).

178
179

(VITAL, 2016, pp. 155-157; CZERESNIA, 1997, p. 86)119. O que parece se esboçar no
que seria um campo de aplicações científicas de diversas ordens e correntes apontadas
para o Território Federal do Acre, de racionalidade nos recursos naturais, nos meios para
a organização com a construção de uma ferrovia ― que não foi construída ― e um cenário
que a criação da reserva florestal corrobora.

Com a queda do preço da borracha e um ciclo seu terminado naquele período


em que a reserva é criada, houve um esmorecimento aliado ao corte de investimentos por
parte do governo federal e a criação da reserva ficou envolvida em questões de outra
escala que a permearam. A escolha do Acre para a implantação da reserva se deu por que
seria, do ponto de vista político, o único local para se criar uma reserva, baseada no que
se julgava ser o sucesso da Floresta da Tijuca (VITAL, 2018, p. 61), apontada como
podendo ser considerada, hoje, a primeira experiência de manejo no Brasil (FRANCO, et
al., 2015, p. 240). Da parte dos pesquisadores e dos políticos envolvidos na formulação
do decreto para a criação da reserva no Acre, em 1911, os arranjos políticos e a realidade
do Acre estavam em um universo distante (VITAL, 2018, p. 101) tanto o quanto o que se
desenrolou a partir da publicação do decreto.

O território do Acre se encontrava sob judice ― o Estado do Amazonas


pretendia anexá-lo ―; havia o movimento dos seringalistas para a constituição de um
estado à parte, com relações com o governo do Ceará por conta da emigração massiva
daquele estado com destino aos seringais no Acre; as arrecadações do governo federal
com a borracha eram vultosas e o investimento nos departamentos administrativos no
território do Acre, não raro em conflitos e com desavenças entre si, eram ínfimos; e os
seringalistas buscavam controlar os departamentos aliando-se às oligarquias do Ceará, do
Amazonas e do Pará representadas no Congresso Nacional, com rebatimento em outros
assuntos do governo federal.

O decreto de criação da reserva, em 1911, foi utilizado politicamente por


seringalistas para se tentar um levante com os seringueiros, em Xapuri, em uma revolta
armada contra o governo federal; não queriam o governo federal tão próximo e
interferindo naquela região, o que a decretação da Reserva Florestal do Acre representava.
Como retrucadas, os seringalistas diziam que o governo federal não se devia meter no que

119
O Decreto 17.042/1925, que regulamentou o Serviço Florestal em 1921, traz em seu artigo 18, alínea
“d”, acerca das funções ― podemos considerar serviços ambientais ― da categoria Floresta Protetora:
“concorrer para a salubridade publica, pelo saneamento e purificação da atmosfera”.

179
180

não conhece e com um mapa tão mal feito, se referindo ao mapa da criação da reserva
florestal (VITAL, 2016, p. 200; VITAL, 2018). Quanto a este ponto, não apenas pela
novidade e pela antipatia que o decreto causou aos seringalistas, mas de certo porque as
delimitações do conjunto de áreas da reserva se dão por longas retas “em linhas secas”,
que são típicas de mapas desenhados “em gabinete” ligando pontos identificáveis (por
qualquer um à distância do local real) como a confluência de rios, os núcleos habitacionais
estabelecidos, que denotam a produção de tal delimitação com um profundo
desconhecimento de quem o faz; às pressas e de longe.

O governo federal criou para si problemas políticos e para os cofres públicos


com a previsão de desapropriações na reserva florestal, cujo prazo era estipulado, no
decreto, para a apresentação de documentos dentro de um ano. A proposta de código
florestal ― que era prevista no decreto como forma de sua normatização ― foi elaborada
pela mesma comissão que elaborou o decreto120. A aprovação do código florestal,
apresentado ao Congresso pelo Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio ―
MAIC, era condição para o decreto que criou a reserva Florestal passar a vigorar. Por
uma gestão do MAIC junto aos governos, para que se manifestasse, apenas o Amazonas,
o Ceará e o Pará declararam apoio à proposta do código florestal, os demais governos
estaduais a ignoraram e o Rio Grande do Norte respondeu dizendo que não tinha terras
para entregar ao governo federal. O decreto, com as celeumas e impasses criados foi
esquecido (VITAL, 2016, pp. 197-199) e a existência da Reserva Florestal do Acre é
pouco conhecida e explorada na história ambiental brasileira.

As intenções do decreto, no que transbordassem a criação da Reserva


Florestal do Acre, são difíceis de serem exatamente conhecidas e afirmadas. O decreto
publicado, tendo causado surpresa aos administradores dos departamentos naquele
território, indica que eles não participaram do planejamento da reserva e, com isso, não
levariam notícias às oligarquias a que se aliavam; havia a oportunidade de se experimentar
criar uma reserva em local que não fosse dentro de espaços urbanos e colocar em prática
saberes e, com isso, dar relevo a determinadas políticas em saneamento para a
erradicação/controle de epidemias e derruir outras políticas; havia o efeito da contenção
do poder dos seringalistas por parte do governo federal sem que este tivesse que se alinhar

120
A mesma comissão elaborou os dois documentos e era composta por deputados; representante do MAIC;
pelo representante do Serviço Mineralógico e Geológico do Brasil, o geólogo Felipe de Campos e pelo
naturalista do Jardim Botânico geólogo, Manuel Pio Corrêa (VITAL, 2018, p. 60).

180
181

com outros estados em um arranjo ou com qualquer um deles em detrimento de outros;


pois, a proposta em criar a reserva tinha por finalidade atender a uma necessidade
ambiental identificada tecnicamente no que viam ser um problema a variação do nível
dos rios e cientificamente apoiada no dessecamento. São todas, e pelo menos essas, as
possiblidades para a decretação da reserva ― e podemos imaginar, ainda, que a intenção
fosse a publicação do decreto como efeito e não propriamente a implantação da reserva.
Restando certo que o governo federal, com o decreto, se implantou como um outro ator
em arranjos já dados e conflitantes. Depois disso, as verbas federais para aquele território
foram em grande parte cortadas por causa da queda do preço da borracha e as questões já
seriam de outra ordem. Vale observar que o espanto com o espectro da variação dos níveis
dos rios no Acre, que moveu inicialmente os estudiosos, denota o desconhecimento do
regime hídrico da região amazônica.

Getúlio Vargas, nos primeiros anos de seu governo como Presidente na


década de 1930, se interessa pela movimentação em torno da preservação da natureza.
Com perfil de governar firme, centralizador, o governo federal edita uma série de códigos
sobre o uso das águas, de minérios, de proteção aos animais e regulamentação sobre as
atividades de caça de pesca; são medidas que, junto à reestruturação de órgãos, em 1938,
têm o tom tanto do ordenamento territorial como da “estrita regulamentação do uso e da
apropriação dos recursos naturais colocado sobre a propriedade do Estado”, analisa
Henyo Barreto Filho (BARRETTO FILHO, 2001, p. 127).

O tema do turismo em áreas naturais e históricas, que acompanha a questão


da preservação ambiental na instituição de territórios e de categorias, será tratado no
âmbito do Departamento de Imprensa e Propaganda ― DIP, criado por Vargas em 1939.
O departamento possuía a capacidade de criar estações hidrominerais, climáticas e outras
ligadas a ambientes e locais históricos e naturais; prevendo incentivos financeiros e o
estabelecimento de diretrizes para a administração pública municipal na manutenção das
estâncias com o pré-requisito de serem necessariamente ligadas a um bem natural. Brasil
Novo e Travel in Brazil eram duas revistas do DIP que se serviram amplamente do recurso
da fotografia para divulgar o Brasil no exterior com suas regiões naturais, típicas e sobre
o folclore, tema este de que Mário de Andrade era colaborador, para fazer propaganda
das ações do governo em outras áreas que não apenas aquelas relacionadas com o meio
ambiente e turismo a partir daquele Departamento, que era um instrumento de censura no
governo de Vargas (GOULART, 1990; LUCA, 2011). A Seção de Turismo dividia com

181
182

as seções de Imprensa, de Teatro, de Cinema e de Rádio a organização em franca censura


aos meios de comunicação e expressão, excetuados aqueles pertencentes aos empresários
de imprensa com manifestações expressas, e impressas, de apoio ao governo. Em 1939,
Cecília Meireles121 se torna editora da revista Travel in Brazil. Departamento de Imprensa
e Propaganda ― DIP era o próprio instrumento do governo na repressão à imprensa122
(SILVA, 2019) e o governo, à época, tinha em Cecília Meireles alguém que circulava no
meio intelectual e artístico, escrevia seções em jornais e revistas para um público variado;
nisso, o governo pode ter tomado da poetisa, por empréstimo, uma rede e a legitimidade
na veiculação da revista e do seu conteúdo.

Até aqui, temos medidas de proteção à natureza, categorias de reservas de


áreas e instituições diversas responsáveis por elas outras que se vão criando integrando
funções de outras. O diálogo com a proteção da natureza no âmbito internacional se dá
por meio dos intelectuais e cientistas ― em viagens para apresentações em congressos
internacionais e no acesso a publicações científicas de outros países ―, os quais
participam de formas variadas no tratamento e no peso do tema no Estado, ou fora dele.

A Sociedade dos Amigos das Árvores foi criada em 1931 no Rio de Janeiro,
era presidida por Leôncio Corrêa, havia sido idealizada por Alberto José de Sampaio,
botânico do Museu Nacional e era organizada pelo naturalista Frederico Carlos Hoehne.
Alberto Sampaio vê no governo possibilidades e meios de se terem aplicadas medidas de
proteção da natureza, tendo ele escrito, desde meados de 1912, em favor do
reflorestamento, das reservas naturais e da preservação da floresta primária remanescente
por meio de uma reforma na agricultura em favor de uma lei florestal (HAMMERL, 2013,
p. 4; DEAN, 1996, p. 275), no que era ele prosélito junto às elites, de acordo com Dean
(DEAN, idem).

Apontada como a primeira entidade brasileira de movimento social


ambiental, a Sociedade dos Amigos das Árvores não era a única com o fito do tema da
proteção à natureza. A Federação Brasileira para o Progresso Feminino, com Berta Lutz,

121
A poetisa, defensora do que seria a “educação nova” e da liberdade de imprensa tem, nessa contradição,
a análise de Mariana Batista da Silva (SILVA, 2019) que ressalta duas faces que não se juntam, como as
vejo e comento: Cecília Meireles já havia colaborado como jornalista no Diário de Notícias e no Observador
Econômico e Financeiro e, segundo a autora, sempre havia conseguido trazer para as páginas alguma crítica
ao governo; ao que parece, pode não ter tido muitas possibilidades como editora é à frente da revista do
DIP.
122
O autor se reporta a cartas escritas a Manuel Bandeira em que Cecília Meireles ora se entusiasma e ora
demonstra decepção quanto estar à frente da revista.

182
183

tomou posturas conservacionistas, segundo Warren Dean; foram criados o Clube dos
Amigos da Natureza; a Sociedade Geográfica do Rio de Janeiro; a Sociedade dos Amigos
da Flora Brasílica, com 113 sócios fundadores; uma reserva biológica foi adquirida pela
Sociedade de Amigos do Museu, formada por servidores do Museu Nacional do Rio de
Janeiro em uma organização fechada de atuação política em favor do Museu, informa
Dean; e a Sociedade de Amigos de Alberto Torres, na forma de células, com mais de mil
delas ao final da década de 1930 atuando com palestras em escolas e no fornecimento de
ferramentas e de sementes, com posturas ativas na conservação relacionadas às questões
locais (DEAN, 1996, p. 275).

Em 1934, entre os dias entre 8 e 15 de abril, acontece a Primeira Conferência


Brasileira de Proteção à Natureza, uma realização conjunta da Sociedade dos Amigos das
Árvores e da Sociedade de Amigos de Alberto Torres. Com apoio de infraestrutura do
Museu Nacional e patrocínio do governo federal, cujo chefe era Getúlio Vargas. Henyo
Barreto Filho (2001) interpreta o acontecimento como uma forma de pressão ao governo
para a promulgação do Código Florestal. Barreto Filho mapeia a relação entre o governo
e a sociedade civil indicando a perspectiva de Warren Dean quanto à grande produção
legislativa que pudesse ter provocado um “refluxo da sociedade civil” (BARRETTO
FILHO, 2001, pp. 127-128); sentido esse reiterado na passagem em que diz Dean:
“Diversas organizações, diretamente envolvidas com a conservação parecem ter
influenciado a legislação inicial do período Vargas”, passando a enumerá-las daí em
diante (DEAN, 1996, p. 275). Portanto, se tratava tanto de alguma mobilização quanto de
influência e participação na elaboração das normas na década de 1930. Barreto Filho fala
da perspectiva de Antônio Augusto Drummond, quem observou certa desmobilização no
exercício da cidadania relativa à gestão dos recursos naturais por conta de o governo ter
se antecipado à capacidade de reivindicação da sociedade civil. E Barreto Filho pontua
que a ciência já “estava institucionalizada no aparelho do Estado”, limitando a força de
pressão do lobby científico por questões, assim, estruturais (BARRETTO FILHO, 2001,
p. 128).

A pressão para a edição do Código Florestal tem expressão logo no discurso


de abertura de Leôncio Correia, na abertura da Conferência acerca do “problema
florestal” que “é neste instante, a preocupação suprema dos países civilizados do mundo”,
e a disponibilidade da Sociedade dos Amigos das Árvores em colaborar com o poder
público e a importância daquele Governo Provisório no futuro do Brasil do “problema

183
184

econômico sintetizado na fórmula já expressa, de Proteção à Natureza” e nela Correia


inclui o subsolo. Com coisa alguma escapando ao mundo natural em sua fala, Correia
segue na Proteção à Natureza justificando-a por duas vias: o uso racional dos recursos do
ambiente Natural na forma de recurso econômico e o “culto” ao ambiente natural para o
usufruto estético. Duas abordagens tanto da natureza quanto da justificativa de sua
proteção que tinham, naquele momento, um caráter unificado alinhado ao nacionalismo
e ao cientificismo na apreensão da natureza, tanto pelas suas descrições e quanto pelos
projetos pensados para ela, no caso, a sua proteção.

O debate entre preservacionistas e conservacionistas travado nos Estados


Unidos, desde fins do século XIX, era um debate naquele país; no Brasil, as discussões
estavam-se pautando por angariar os esforços e um arranjo entre a comunidade científica,
funcionários públicos e sociedade civil para a preservação da natureza ou uso racional
dos recursos naturais. Quando falo em arranjo, me refiro a pessoas/instituições chaves em
lugares/instituições estratégicos e conhecedoras de uma questão e de seus obstáculos e
que formam uma cadeia envolvida na resolução para a questão da proteção da natureza.
Naquela época, os objetivos parecem existir sem maiores dissensos nos movimentos
ambientais e com chances de mobilizar leis e governo. De qualquer maneira, as duas vias
de apreensão da natureza, no discurso de Leôncio Correia (os usos e os atributos estéticos,
que não deixam de ser um uso), mostram a natureza convertida ao humano.

O Código Florestal é promulgado em 1934 ― em um novo contexto, diferente


daquela tentativa do Presidente Hermes da Fonseca em aprovar um código florestal, no
episódio da criação da Reserva Florestal do Acre, em 1911. A promulgação tanto da
Constituição Federal quanto do Código Florestal, em 1934, traz noções e expressões que
vão sendo revistas ao longo do tempo, tanto quanto são essas expressões os resultados de
compreensões anteriores. Barreto Filho (BARRETTO FILHO, 2001, p. 127) chama a
atenção para a categoria de área protegida da natureza referida como “monumento público
natural”, que aparece no texto na Constituição Federal. A palavra “monumento”, segundo
Barreto Filho, traz a noção de perenidade e de algo constituído para atravessar o tempo,
além do aspecto da contemplação. No primeiro Código Florestal (1934) ― depois vieram
o de 1965 e o de 2012 ―, as Florestas Nacionais estavam divididas em quatro categorias:
Florestas Protetoras, Florestas Remanescentes, Florestas Modelo e Florestas de
Rendimento e um impacto que a bibliografia acerca dessa legislação aponta é a limitação
do direito de propriedade, por meio das previsões de cuidados com áreas sensíveis no

184
185

interior da propriedade, que hoje podemos vê-las com o nome de Áreas de Proteção
Permanente ― APP’s.

O Serviço Florestal, criado em 1921 na estrutura do MAIC, é reestruturado


por meio do Decreto-Lei nº 982, em 23 de dezembro de 1938, no o conjunto de órgãos e
de atribuições administrativos que já existiam, como observa Barreto Filho (BARRETTO
FILHO, 2001, p. 127), no Departamento Nacional da Produção Vegetal, que eram o
Jardim Botânico do Instituto de Biologia Vegetal e a Segunda Seção do Serviço de
Irrigação, Reflorestamento e Colonização, sendo criada, em 1939, a Seção de Parques
Nacionais, do Serviço Florestal (ibidem).

No ano anterior ao da Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza,


havia sido realizada a Convenção Internacional sobre Proteção de Fauna e Flora em seu
Estado Natural na África123, em 8 de novembro de 1933, em Londres, para a proteção de
animais selvagens. A Conferência tratou do o extermínio de animais selvagens para o
controle, pelas autoridades; da mosca tsé-tsé; e do desmatamento crescente e áreas sendo
abertas para a agricultura sem planejamento na política colonial na África. A Convenção
foi assinada por estados europeus apenas, guardando a perspectiva e as preocupações
daqueles países e a antipatia pela conservação por parte dos africanos colonizados,
segundo Franco e outros (FRANCO, et al., 2015, p. 244) Nessa Conferência, teve lugar
o estabelecimento de uma conceituação mundialmente homogênea para a categoria
parque nacional, a apontando como modelo de preservação em que o uso, mesmo
racional, dos recursos naturais não se aplicariam aos parques. Sendo marcada desde aí a
ideia de parques nacionais excetuando a presença humana.

O parque na Ilha do Bananal proposto por André Rebouças, em 1878124, foi


ser criado em 1959, por Juscelino Kubitschek, e guardou a inspiração no Parque de
Yellowstone tanto o quanto o “exotismo” da vida selvagem pela presença de indígenas
na ilha, o que não consistiu em maiores problemas, à época, para um Parque Nacional
como depois, em 2000, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da
Natureza―SNUC previu que não seria permitida presença humana para aquela categoria
e que resultou em sobreposições entre duas Terras Indígenas e o Parque Nacional do

123
Em Washington, em 12 de outubro de 1940, aconteceu outra conferência com os mesmos objetivos
daquela de Londres em 1933, porém, voltada para a América.
124
O Plano de Manejo do Parque Nacional do Araguaia (ICMBIo, 200, p. 6) aponta a data de 1876.

185
186

Araguaia. A Ilha do Bananal (o nome anterior era Ilha de Sant’Ana) se localiza entre a
margem direita do rio Araguaia e a esquerda do rio Javaés, antes Goiás e hoje Tocantins;
sendo que o registro da presença de indígenas Karajá e inclusive a indicação da presença
Xavante na ilha125 e outros povos já era conhecido à época da proposição do parque:

A província ou distrito da Nova Beira fica ao norte da de Goiás, e estende-


se para o setentrião por entre os Rios Araguaia e Tocantins a terminar no
ângulo da sua confluência, com 130 léguas de comprimento norte-sul, e
40 de largura. A Ilha de Sant’Ana [antigo nome da Ilha do Bananal]
pertence-lhe. Quase toda está ainda no domínio de várias nações
selvagens. A do gentio Chavante, que parece ser a mais numerosa possui
a maior parte para o norte. Os seus convizinhos são os Pochetis, os
Noroguages, os Apinagés, os Carajás, os Cortis, e os Xerentes. (Casal,
1817: 154).

Juscelino Kubitscheck encampou o Projeto Bananal126, o qual previa a criação


de um centro turístico na ilha: construiu o hotel internacional JK, uma escola, a pista de
pouso para aviões, um hospital e a casa da presidência. Tais estruturas foram construídas
com o material vindo de caminhão até a Barreira da Bem-Vinda na margem esquerda do
Rio Araguaia à altura de São Félix do Araguaia, no Estado do Mato Grosso. O material
era atravessado para a ilha por três balsas, conforme lembra Dunkmar Guntlher,
responsável pela Operação da Barreira da Bem-Vinda, em entrevista à rede de televisão
local127, em 22 de janeiro de 2013. Talheres em prata, copos de cristal, geladeiras em cada
um dos 18 quartos aclimatados por isolamento térmico sob o telhado em metal, visita de
dirigentes russos, festas, pescarias e caçadas. A ideia do presidente, lembra Guntlher, era
a de trazer pessoas do mundo todo para ajudar a preservar as belezas da ilha; com o Golpe
de 64, continua ele, buscaram apagar obras de JK e o hotel mudou o nome para o do
Presidente Kennedy. Hoje, o hotel está em ruínas em meio à aldeia Santa Isabel, dos
indígenas Iny-Karajá, a mais populosa na Ilha do Bananal.

As iniciativas internacionais no tema da preservação da natureza estavam


desarticuladas no cenário internacional após 1948, terminada a Segunda Guerra Mundial

125
Os registros de etnólogos e etnógrafos os mapeiam, por vezes, citados em documentos antigos em meio
aos Xerente, de quem se diferenciam. Depois que estiveram juntos no Aldeamento Carretão, em Goiás, na
margem direita do Rio Araguaia e afastado dela.
126
Com recursos financeiros da Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia
SPVEA, criada em 1953, sucedida pela Superintendência da Amazônia ― SUDAM, em 1966, vide
Portifólio de Instituições Governamentais, Presidência da República.
127
Rede Record TV-Confresa; arquivo de vídeos “Memórias do Araguaia 2º episódio – Hotel JK”,
disponível em www.rnatv.com.br.

186
187

(BARRETTO FILHO, 2001, pp. 34, 143). As nações estavam às voltas em se


reestabelecerem e os usos dos recursos naturais foram maximizados, nesse contexto foi
criada a União Internacional para a Proteção da Natureza ― IUPN, em 1948 (FRANCO,
et al., 2015, p. 245), na estrutura da Organização das Nações Unidas para a Ciência,
Educação e Cultura ― Unesco, fundada em 1946. Dentre algumas das instituições do
chamado “sistema ONU”, estão o Fundo Monetário Internacional ― FMI, fundado em
1945; o Banco Internacional para Reconstrução e o Desenvolvimento ― BIRD, 1945,
ligado ao Banco Mundial; o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento ―
PNUD, 1968, com o objetivo de promover o desenvolvimento e de erradicar a pobreza128;
a Organização Internacional do Trabalho ― OIT, fundada em 1919, cuja Convenção nº
169 Sobre povos Indígenas e Tribais é alçada nos documentos produzidos pelo Poder
Público nos direitos ao território; à consulta livre, prévia e informada em quaisquer
assuntos que os envolva ou venha a afetar; à autonomia; à autodeterminação nas decisões
e nos seus destinos e planos de vida; à autodeclaração, pois não se procede à identificação
étnica. Interpreta-se, na Convenção 169 da OIT, “povos tribais” os grupos étnica e
socialmente diferenciados da sociedade homogeneizante, abrangendo povos indígenas,
comunidades quilombolas e comunidades tradicionais.

Outra estrutura integrante do sistema ONU foi o Projeto Integrado de


Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal ― PPTAL, que teve início
no final da década de 1990 e foi encerrado em 2008, financiando os estudos de
identificação e delimitação de terras indígenas, que são peças processuais na
regularização fundiária de terras indígenas, em parceria com a Fundação Nacional do
Índio ― Funai, órgão detentor da atribuição precípua na regularização fundiária daqueles
territórios.

A IUPN, uma rede de proteção à natureza das mais antigas e das maiores,
segundo Franco (FRANCO, et al., 2015, p. 246), depois de criada em 1948, mudou o
nome, em 1965, para União Internacional para a Conservação da Natureza ― IUCN. Mais
tarde, A IUCN e outras organizações não governamentais internacionais vão estar
envolvidas nas discussões de áreas naturais protegidas como instrumentos de conservação

128
A Fundação Nacional do Índio ― Funai, em cooperação com o PNUD, no marco do Projeto Integrado
de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal ― PPTAL, efetuou diversas
identificações e delimitações de terras indígenas na Região Amazônica, eu mesma coordenei dois grupos
técnicos contratada pelo PNUD, que resultaram em dois Relatórios Circunstanciados de Identificação e
Delimitação (RCID), um para a Terra Indígena Cajuhiri-AStravessado, no Estado do Amazonas, no Médio
Solimões (2001); e outro para a Terra Indígena Bacurizinho, no Estado do Maranhão (2004).

187
188

dos recursos naturais, como aponta Barreto Filho; anteriormente estiveram às voltas com
ações pautadas na ideologia do progresso, ao longo de duas décadas no cenário de
reconstrução pós-guerra (BARRETTO FILHO, 2001, pp. 4, 34; FRANCO, et al., 2015,
p. 245) por meio das organizações do sistema ONU.

Quando acontece a conferência em Estocolmo, em 1972, no cenário


internacional, já havia corrido a Conferência Intergovernamental sobre o Uso e a
Conservação da Biosfera, em 1968, que apresentou uma discussão inicial sobre o conceito
de sustentabilidade. Nos Estados Unidos são criados, em 1969, a organização não
governamental Friends of the Earth, com foco na conservação da diversidade biológica,
cultural e étnica e com o objetivo de envolver o cidadão, com voz, para a proteção do
meio ambiente e o planeta contra a degradação ambiental; e o National Environment
Policy Act, que estabelece uma política nacional de ambiente. No ano seguinte, 20
milhões de pessoas participam do Primeiro Dia da Terra, nos Estados Unidos, em defesa
do ambiente. Em 1971, no Canadá, é criada a organização não governamental
Greenpeace, de atuação por ações não violentas praticadas pela sociedade civil com base
em uma agenda própria para a proteção do ambiente.

No mesmo ano de 1971, o Conselho da Organização para Cooperação e


Desenvolvimento Econômico ― OCDE introduz no cenário mundial o princípio
poluidor-pagador a partir da ideia de que as necessidades humanas são ilimitadas ao passo
que os recursos naturais são limitados e finitos, devendo o empreendedor (indústria,
produção de bens de consumo) incorporar no custo dos seus produtos as indenizações
pela contaminação e pela escassez dos recursos naturais. A finalidade era a de
homogeneizar os preços de produtos no cenário internacional e se evitarem distorções nos
casos de produtos a preços baixos no mercado à custa da degradação ambiental. De
âmbito internacional e com sede na França, o OCDE surgiu com outro nome, Organização
para a Cooperação Económica Europeia ― OCEE, restrita aos países europeus e atuando
como gestora do Plano Marshall na reconstrução da Europa no pós-guerra.

Na legislação sobre o licenciamento ambiental de empreendimentos de


infraestrutura e atividades econômicas e industriais, no Brasil, vamos encontrar o
princípio poluidor-pagador especialmente na mitigação e compensação de impactos
ambientais identificados em estudos prévios à instalação e operação de atividades listadas
na Resolução nº 237, 19 de dezembro de 1997, do Conselho Nacional do Meio Ambiente
― CONAMA, instância ligada ao Ministério do Meio Ambiente ― MMA. O princípio

188
189

poluidor-pagador está, também, referido na Declaração de Princípios, que foi estabelecida


na conferência mundial Rio 92. Desse princípio decorrem as obrigações de se proceder
ao licenciamento ― tanto aos órgãos licenciadores quanto aos empreendedores ― e as
obrigações relacionadas aos impactos e aos danos ambientais.

O ambiente é discutido em termos globais no encontro de países tem na


Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente Humano, entre 5 e 16 de junho de 1972,
em Estocolmo, na Suécia, um marco com desdobramentos para a um novo encontro e
pactos: a “Rio 92” 129
, com o nome de Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento ― CNUMAD, ocorrida na cidade do Rio de Janeiro, no
Brasil, entre os dias 3 e 14 de junho de 1992. As preocupações, em 1972, estiveram
pousadas em relacionar desenvolvimento econômico e preservação ambiental; vinte anos
mais tarde, na “Rio 92”, a fórmula seria o “desenvolvimento sustentável”, na busca do
equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e o meio ambiente.

A Declaração de Estocolmo (1972), resultante daquela conferência realizada


pela Organização das Nações Unidas ― ONU, trouxe para o cenário mundial as
preocupações acerca do esgotamento dos recursos não renováveis, da contaminação do
meio ambiente, da necessidade de proteção do meio ambiente e, também, a condenação
do apartheid e a necessidade de planejamento racional entre o desenvolvimento e o
ambiente de forma integrada. Os recursos não renováveis deveriam ser cuidados para o
futuro, se evitando o seu esgotamento e a sua extinção, assegurado “que toda a
humanidade compartilhe dos benefícios de sua utilização”130. Se previram, naquela
ocasião, providências: preços razoáveis para as exportações dos países em
desenvolvimento; financiamento dos países em desenvolvimento para a implementação
da proteção do ambiente; implementação de políticas ambientais que não afetassem o
desenvolvimento; a eliminação de armas de destruição maciça. São 26 princípios com a
recomendação de que cada país estabelecesse suas normas junto e a partir de tais
princípios. Com esse programa que remarca a diferença entre países do Sul e do Norte, a
conexão entre ambiente e desenvolvimento, ou as formas de fazer, vão sendo alinhadas
no intervalo desses 20 anos com o cunho terceiro-mundista.

O Relatório Brundtland (1987), documento conhecido como “Nosso Futuro


Comum”, foi um resultado da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e

129
Há outras denominações: Cúpula da Terra, Eco 92 e Cimeira do Verão.
130
Princípio nº 5 da Declaração de Estocolmo sobre o ambiente humano – 1972.

189
190

Desenvolvimento; comissão essa criada na ocasião da Conferência de Estocolmo em


1972. É a partir do Relatório Brundtland que a expressão “desenvolvimento sustentável”
desponta para perpassar os setores da vida humana em documentos nos temas como:
saúde, educação, lixo, espaço aéreo, paz, mineração, energia nuclear, crescimento
populacional (UNITED NATIONS, 1987) e que estarão presentes na Agenda 21 e na
“Rio 92”. A implementação da Agenda 21 Nacional amplia a apropriação da expressão
no delineamento das políticas públicas no Brasil.

A criação de estruturas governamentais específicas para a discussão dos


assuntos do meio ambiente, no Brasil, se dá depois da Conferência de Estocolmo em
1972, como a criação da Secretaria Especial do Meio Ambiente ― SEMA131 na estrutura
do Ministério do Interior-MINTER, em outubro de 1973132, com o Professor Paulo
Nogueira Neto, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo ― USP e
fundador da organização não governamental Associação de Defesa do Meio Ambiente ―
Adema e que havia participado da Conferência de Estocolmo (MERCADANTE, 2001;
BARRETTO FILHO, 2001, p. 185). Alguns apontam que a criação da SEMA respondeu
à demonstração de retratação do Brasil na declaração de outro integrante da delegação
brasileira, durante aquela conferência, de que seria bem-vinda a poluição ao país contanto
que acompanhada de crescimento e de desenvolvimento (MEDEIROS, 2006, p. 53;
GOMES, 2002, p. 16). Uma leitura de Henyo Barreto Filho (BARRETTO FILHO, 2001,
pp. 149-150) da posição brasileira na Conferência de Estocolmo, se faço jus a tal leitura
aqui arriscando uma redução porque a trago em linhas gerais, é a de que a delegação
brasileira se entrincheirou, para usar uma expressão do autor, na defesa da soberania
nacional frente às acusações frequentes da destruição da Amazônia e aos episódios entre
Brasil e Argentina na construção da hidrelétrica binacional de Itaipu; soberania que não
se deveria concertar sob “interesses ambientais mal definidos e imprecisos”, tampouco os
assuntos nacionais deveriam ser submetidos aos interesses externos tendo a cooperação
internacional como um instrumento.

A criação da Secretaria Especial do Meio Ambiente ― SEMA seguiu a


atitude de criação de agências ambientais em diversos países, a Exposição de Motivos do
decreto que criou a SEMA, em 1973, faz referência explícita à Conferência de Estocolmo,

131
Depois, integrou o conjunto de instituições na criação do Ibama, são as outras instituições: o próprio
Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal―IBDF, a Superintendência da Borracha ―SUDHEVEA
e a Superintendência da Pesca ― SUDEPE.
132
Criada por meio do Decreto nº 7.3030, de 30/10/1973.

190
191

como destaca Barreto Filho (BARRETTO FILHO, 2001, p. 150). A dispersão das
discussões sobre o meio ambiente e a não centralização do tema em alguma instituição
no Brasil transparecem nas recomendações aos ministérios para suas manifestações para
se construir a posição brasileira, que seria levada a Estocolmo, ao indicar que se devia
“evitar iniciativas isoladas e fracionárias por parte de órgãos da administração pública do
país” nas suas contribuições, na forma que consta na Exposição de Motivos nº
001/1971133, de 22 de dezembro de 1971, do Conselho de Segurança Nacional e assinada
por pelo do Secretário-Geral daquele conselho João Batista Figueiredo (BRASIL, 1972).

Um outro efeito da Conferência de Estocolmo, no cenário internacional e nas


disputas entre as agências da Organização das Nações Unidas ― ONU, foi o a criação
de outro órgão no sistema ONU, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
― PNUMA, específico para questões ambientais (BARRETTO FILHO, 2001, p. 150);
no entanto, o PNUNA não conseguiu se constituir como casa para a governança nas
relações políticas e econômicas e a sua aplicação aos limites ambientais por causa do seu
desenho institucional limitado (IVANOVA, 2012).

O Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal―IBDF, instituído em


1967, e a Secretaria Especial do Meio Ambiente ― SEMA, criada em 1973, integraram
o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis ― Ibama,
em conjunto com a Superintendência da Borracha ―SUDHEVEA e a Superintendência
da Pesca ― SUDEPE. Criado o Ibama, por meio da Lei nº 7.735 de 22 de fevereiro de
1989, ele foi reestruturado em 2007 e as atribuições de execução do Sistema Nacional de
Unidades de Conservação da Natureza―SNUC ficaram na responsabilidade Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade ― ICMBio, criado por meio da lei nº
11.516, de 28 de agosto de 2007. Antes disso, com atribuições parecidas e em
sobreposição com IBDF, a SEMA, segundo Rodrigo Medeiros (2006), possuía um
sistema próprio de criação e de tipologias de áreas protegidas entre 1981 e 1996, que
eram: a Área de Proteção Ambiental ― APA; a Área de Relevante Interesse Ecológico
― ARIE; a Reserva Particular do Patrimônio Natural ― RPPN; e a Estação Ecológica

133
A Exposição de Motivos nº 001/1971 é dirigida à Presidência da República em resposta ao Ministério
das Relações Exteriores - Exposição de Motivos AEsp/AOI/DNU/266/602.60(04)-MRE, de 23 de agosto
de 1971, que trata da posição a ser adotada pelo governo brasileiro “no que diz respeito aos problemas
ligados ao meio ambiente” na Conferência de Estocolmo em 1972.

191
192

― ESEC, esta criada em 1981134, com objetivos parecidos aos da Reserva Biológica ―
REBIO criada pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal―IBDF em 1967135
(MEDEIROS, 2006, p. 54). ESEC e REBIO são as duas categorias de unidades de
conservação mais restritivas à presença humana, sendo permitidas a pesquisa científica
em ambas e foram recepcionadas pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação da
Natureza―SNUC, criado em 2000.

A ideia de se colocarem as áreas protegidas em rede tinha por objetivo


organizá-las em torno de uma política de conservação que não contasse com áreas criadas
por vários órgãos e, nesse sentido “isoladas”, prevendo o alinhamento dessas áreas a uma
lei (GUGELMIN, et al., 2003), que viria a ser a “Lei do SNUC”, como é conhecida

O processo de discussão do Projeto de Lei do Sistema Nacional de Unidades


de Conservação da Natureza―SNUC já acumulava discussões em torno da proteção
ambiental que foram acrescidas e revistas a partir das discussões com foco na conservação
da biodiversidade, um ponto chave, ao lado do desenvolvimento sustentável, na
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento ―
CNUMAD no Brasil, Rio 92. Os documentos produzidos naquela Conferência rebateram
na organização das estruturas governamentais, como já mencionado, e na elaboração de
normas no País para o cumprimento do compromisso assumido pelo Estado naquela
ocasião. São cinco os documentos produzidos na ocasião da “Rio 92”: a Convenção sobre
a Diversidade Biológica ― CDB; a Convenção sobre Mudanças Climáticas; a Declaração
do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Carta de Princípios das Florestas e a
Agenda 21 (GUGELMIN, et al., 2003).

Dentre os documentos Produzidos na “Rio 92” e os mais de 170 países


convidados a subscrevê-los, a Agenda 21 trazia para o assunto do desenvolvimento
sustentável os setores temáticos para a sua implementação: aspectos sociais econômicos
(pobreza, consumo, saúde, população, dívida externa); conservação e administração de
recursos (gerenciamento de recursos como terra, mar, energia, lixo); fortalecimento dos
grupos sociais (formas de apoio a grupos sociais ― organizados ou minoritários ― que
colaborassem com a sustentabilidade); e meios de implementação (financiamento de

134
Lei nº 6.902, de 27 de abril de 1981, criou, também, as Áreas de Proteção Ambiental - APPs.
135
A categoria “Reserva Biológica” foi criada por meio da Lei nº 5.197, de 3 de janeiro de 1967, que
dispunha sobre a proteção da fauna e que criou, também, o “Parque de Caça”.

192
193

organizações governamentais e não governamentais) (GUGELMIN, et al., 2003, pp. 89-


93). Todos esses temas em face do meio ambiente e da sua conservação.

Os temas podem parecer amplos, e o são, como acontece em instrumentos


internacionais para que os países se enxerguem nas disposições e para que se sintam
confortáveis na subscrição do compromisso. A precisão se dá na etapa da aplicação das
diretrizes dos acordos internacionais na elaboração de planos e programas que os
governos dos países elaboram, em resposta de implementação do compromissado,
marcando a especificidade daquele país e a da sua contribuição ao que foi tratado e
assumido internacionalmente. Em linhas gerais, a Agenda 21 Local, a partir da
identificação de experiências, atores, parceiros, é um instrumento para a internalização
das diretrizes de sustentabilidade por meios de mecanismos institucionais. Com a
Convenção Rio+5136, em Nova Iorque, nos Estados Unidos, se aproximando, o Brasil
deveria apresentar seus avanços. A elaboração da Agenda 21 Brasileira era uma
decorrência dos compromissos firmados na “Rio 92”, sediada no Brasil e o Brasil não
tinha uma agenda brasileira feita. Contam-nos Eunice Gugelmin e outros:

Naquela época, era necessário gerar resultados que pudessem ser


apresentados na Conferência Rio+5. Teria sido desastroso para o
governo brasileiro, hospedeiro da Eco 92 (...) e signatário de primeira
hora de protocolo da Agenda 21, não ter nada a apresentar 5 anos
depois. (GUGELMIN, et al., 2003, p. 93)

Foram realizados workshops e preparatórios entre governo, acadêmicos e


sociedade civil organizada, sendo o primeiro em abril de 1996, organizado pelo governo,
em Brasília (GUGELMIN, et al., 2003, p. 93). Um workshop aconteceu em janeiro de
1997, em Embu, no Estado de São Paulo137, poucos meses antes da Conferência Rio+5,
por iniciativa da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável138 convidando
a Academia Brasileira de Ciências e o Instituto de Estudos Avançados da Universidade
de São Paulo.

136
O evento foi Rio+5 se referiu à Special Session of the General Assembly to Review and Appraise the
Implementation of Agenda 21, ocorrido entre os dias 23 e 27 de junho de 1997.
137
Responsável pela elaboração de nove documentos (CORDANI, et al., 1997)
138
Na atualidade, a Fundação tem parceria e apoio do MCTI/CNPq, do Projeto Biota/Fapesp; foi fundada
por empresas.

193
194

A institucionalização, necessária para o cumprimento dos objetivos de


implementação da agenda local, veio com a criação da Comissão de Políticas de
Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 21 Nacional139 ― por “pressão da Rio+5”
(GUGELMIN, et al., 2003, p. 93) que estava próxima de acontecer. O decreto presidencial
que criou essa comissão substituiu uma outra praticamente igual, a Comissão
Interministerial para o Desenvolvimento Sustentável ― CIDES, criada em 1994140 na
esteira da “Rio 92”. O novo decreto trouxe, além do nome que passou a ter expresso na
ementa do decreto “Agenda XXI Nacional”, a indicação da composição da Comissão; e
as disposições de coordenadorias e arranjos institucionais ficaram sem lugar na pressa.
No decreto seguinte, de 2003, serão previstas expressamente a composição da nova
comissão com comunidades indígenas, comunidades tradicionais, organizações dos
direitos humanos, entidades representativas da juventude, entidades empresariais, de
movimentos sociais para o meio ambiente, de centrais sindicais. Em 2004, é editado novo
decreto revogando esse, com ajustes na composição de entidades organizadas, sendo
mantida a paridade entre instituições do governo e representações da sociedade civil.
Concomitantemente, foi realizada uma pesquisa nacional e sistematizados os dados na
publicação “O que o brasileiro pensa sobre Meio Ambiente, Desenvolvimento e da
Sustentabilidade”141, na época, sob a coordenação do Instituto de Estudo da Religião ―
Iser.

Com esses breves exemplos ― de correrias, mas de esforços, também,


representativos de tantos outros ― quero chamar a atenção para os diversos setores às
voltas com o tema do desenvolvimento sustentável e com o objetivo de engajamento no
diálogo internacional. Neste momento, não nos ateremos à polêmica acerca da
contradição entre termos, aparente ou não, da expressão “desenvolvimento sustentável”,
apenas indico que a expressão ganhou as letras da Lei do SNUC, junto com previsões
normativas acerca dos recursos genéticos e conservação da biodiversidade dispostas na
Convenção sobre a Diversidade Biológica―CDB assinada na “Rio 92”.

A noção de “conservação da biodiversidade” (e a promoção dessa


conservação), segundo Boaventura Sousa Santos e outros, surgiu no meio científico
mundial entre as décadas de 1980 e 1990 e foi acolhida pelo discurso acerca do meio

139
Decreto de 26 de fevereiro de 1997.
140
Criada pelo Decreto nº 1.160, de 21 de junho de 1994.
141
Tanto as pesquisas quanto as suas publicações continuaram em edições posteriores.

194
195

ambiente no mundo nos debates em fóruns, notadamente na “Rio 92”. A ideia de


“biodiversidade” é a de que os países do Sul seriam o reservatório mundial de diversidade
biológica (SANTOS, et al., 2005, p. 60) e acrescento que traz, também, a ideia de que os
países do Norte são repletos de tecnologias para essa biodiversidade. Em outra escala,
essa visão se repete no acesso aos Conhecimentos Tradicionais Associados ao Patrimônio
Genético, porém, com o sentido de que um lado ― os conhecedores (chamados
“detentores” de conhecimento na futura norma que será editada em 2001, por meio de
Medida Provisória) e formuladores desses conhecimentos ― oferecem o conhecimento
que seria “aperfeiçoado” em outro lugar, em outro contexto (nas empresas e com
pesquisadores que trabalham com bioprospecção).

No processo de aprovação da CDB, chama a atenção as justificativas na


Exposição de Motivos, que é a ocasião do proponente expressar o quanto pode ser
oportuno acolher o que se apresenta.

Trata-se, assim, de moderno instrumento jurídico consoante os


princípios consagrados na conferência do Rio. Ao ratificá-lo, o Brasil
demonstrará empenho em desenvolver, de maneira sustentável, seu
enorme potencial natural, contando para tanto com os dispositivos de
cooperação internacional estabelecidos de maneira clara e justa na
presente convenção. Ao Tornar-se parte da convenção, requerer-se-á a
adoção de legislação adequada para sua eficaz implementação.

Caberá ao Congresso Nacional a importante tarefa de regulamentação


de seus dispositivos. Dessa forma, estaremos protegendo os interesses
nacionais em área de enorme importância econômica e estratégica.
(Fernando Henrique Cardoso, Ministro de Estado das Relações
Exteriores; Exposição de Motivos, 27/03/1993)142

O objetivo do governo é o de incorporar a Convenção sobre a Diversidade


Biológica―CDB no ordenamento jurídico brasileiro; o que está previsto na própria
Convenção. Talvez, isso justifique a Exposição de Motivos trazer um texto polissêmico,
em seus dois últimos parágrafos, para se comunicar com os vários setores representados
pelos parlamentares. Desse trecho, destaco os seguintes pontos em que identifico tal
comunicação: a modernidade, ou novidade, do que se apresenta, para as discussões, ou

142
Mensagem nº 132/1993, de 19 de março de 1993, do Poder Executivo, acompanhada: da Exposição de
Motivos Exposição de Motivos, assinada pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores, Fernando
Henrique Cardoso, publicada no Diário do Congresso Nacional, seção 1, em 27 de março de 1993 - sábado,
pp. 6.224-6.225.

195
196

mesmo as disputas, serem travadas em outro campo, sob um outro marco legal; a
participação dos parlamentares na elaboração dos dispositivos que decorreriam da
regulamentação da CDB; a “ambientação” do novo marco legal, aliado ao enfoque
econômico e estratégico da biodiversidade nos interesses nacionais; e, finalmente, o
aposto “de forma sustentável”, abrangendo partidários do “desenvolvimento sustentável”.
Uma multiplicidade de endereçamentos que pudesse fazer com que diversos setores ali
se enxergassem em maior ou menor amplitude. O texto da Convenção é aprovado em
fevereiro de 1994 e, como lei, passa a vigorar a partir de maio daquele ano143. Depois
disso, era necessário implementar a Convenção sobre a Diversidade Biológica―CDB.

O Artigo 8º da Convenção sobre a Diversidade Biológica―CDB, dedicado à


conservação in situ, abre seus onze itens indicando que o país parte (signatário) deverá
“estabelecer um sistema de áreas protegidas ou áreas onde medidas especiais precisem
ser tomadas para conservar a diversidade biológica”. Nos demais itens do Artigo 8º estão
disposições sobre as formas de conservação de áreas protegidas, do seu entorno, previsão
quanto à manutenção e monitoramento das espécies e, no rol de situações em proveito da
conservação, estão indicadas no “8j” da Convenção sobre a Diversidade
Biológica―CDB: as “comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida
tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica”,
com a obrigação de cada país parte da Convenção “respeitar, preservar e manter o
conhecimento, inovações e práticas” dessas comunidades e populações.

O dispositivo “8j” da CDB dá relevo aos estilos de vida relevantes à


conservação da biodiversidade das comunidades locais e povos indígenas, em nítida
referência de que há formas de viver e de organização que são benéficas ao meio
ambiente. Mais tarde, é editada a Medida Provisória nº 2.186, de 23 de agosto de 2001,
para tratar do acesso ao patrimônio genético, aos conhecimentos tradicionais a ele
associado, do depósito de amostras e de instituições fiéis depositárias, do contratos de
repartição de benefícios advindos de tais acessos, da criação do Conselho de Gestão do
Patrimônio Genético―CGen e o seu assessoramento pelo Departamento de Patrimônio

143
O Decreto nº 2.519, de 16 de março de 1998, promulga a Convenção sobre Diversidade Biológica, cujo
texto foi aprovado por meio do Decreto Legislativo n° 02, de 3 de fevereiro de 1994. No cenário
internacional, a CDB começou a vigorar em 29 de dezembro de 1993 e, no Brasil, passa a vigorar a partir
de 29 de maio de 1994, 90 dias após o governo brasileiro ter depositado o instrumento de ratificação da
Convenção em 28 de fevereiro de 1994, conforme prevê o Artigo 36º da CDB.

196
197

Genético, ligado à Secretaria de Biodiversidade e Florestas, do Ministério do Meio


Ambiente; onde trabalhei na tramitação e análise dos pedidos de autorização de acesso
àqueles conhecimentos tradicionais e na regulamentação técnica da tramitação e das
definições dos procedimentos144. Aspectos da regulamentação, portanto, dos usos desses
conhecimentos por parte de terceiros em sistemas de referência sócio cultural, objetivos
e aplicação diferentes do contexto em que são formulados, inovados formulados e são
utilizados. Sempre muito trabalhoso emplacar a perspectiva de que são conhecimentos
ombreados ao científico, porém, formulados em outro sistema e indicando, com a própria
existência, que não são apenas os conhecimentos produzidos pela ciência a existirem,
com os seus campos e o seu meio de legitimação e de reprodução.

Outro aspecto, precedente à Convenção sobre a Diversidade


Biológica―CDB e à sua vigência no Brasil, é a existência e permanência de comunidades
locais e povos indígenas a partir da criação de áreas protegidas de uso indireto (as
Unidades de Conservação de Proteção Integral) em situação de sobreposição.

Entre a visão de que (a) as comunidades tradicionais e os povos indígenas


possuem estilos de vida compatíveis com a conservação e a preservação da biodiversidade
e que são estilos inerentes à manutenção do seu ambiente, do seu território; e a visão de
que (b) a preservação dos ambientes não se pode dar com a presença humana, não há
efetiva conciliação. Cristina Adams e outros (ADAMS, et al., 2006) apontam que
qualquer dos lados não foi capaz o bastante em desdizer o outro.

Portanto, quando são iniciadas as discussões do Projeto de Lei nº 2.892/1992


na Câmara dos Deputados, que se tornou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação
da Natureza―SNUC, as expressões “desenvolvimento sustentável” e “biodiversidade” já
existiam disseminadas e com polêmicas. Leandro Dias de Oliveira entende que a
centralidade do desenvolvimento sustentável nas discussões na Rio 92 “permitiu aparar
arestas entre organizações não-governamentais e Estados, multinacionais e movimentos”
(OLIVEIRA, 2015). Ao mesmo tempo, a “conservação da biodiversidade” abre campo
de atuação e de entrecruzamento, e não de confluência, de propósitos diversos de
movimentos sociais, de acadêmicos e do governo. A perspectiva da Convenção sobre a
Diversidade Biológica―CDB para as comunidades tradicionais é o seu importante
serviço de conservação da biodiversidade; as populações locais residentes “nas

144
Entre 2003 e 2005, contratada pelo PNUD.

197
198

adjacências” de áreas de conservação devem contribuir para a conservação; e ambas, as


tradicionais e as adjacentes ― sem que esteja explicito que as populações tradicionais
estão “dentro” ― são regradas no sentido da manutenção da diversidade biológica sendo
destacados os seus usos sustentáveis.

Nos oito anos de discussão do Projeto de Lei nº 2.892/1992, a partir do seu


encaminhamento pelo Presidente Fernando Collor de Mello, em maio de 1992, foi criado
o Ministério do Meio Ambiente, em novembro de 1992, que trocou de ministro diversas
vezes; houve o impeachment de Collor, resultando no seu afastamento; o Instituto
Brasileiro de Desenvolvimento Florestal―IBDF passou a ser o Ibama. A demora nas
discussões do Projeto de Lei para que ele seguisse seu curso no processo legislativo, em
que pese a instabilidade política, a meu ver apenas encimou a oportunidade no
desinteresse por parte do governo em decidir e em se posicionar com relação à
desapropriação, à participação da sociedade civil, aos indígenas às e comunidades
tradicionais e quanto à criação de unidades de conservação. Em dado momento, em uma
única chance, o governo perderia apoio, mais que ganharia, com qualquer posicionamento
expressivo que assumisse entre “preservacionistas”, “conservacionistas”; movimentos
sociais ligados ao meio ambiente e bancada ruralista.

A superveniência do tema da conservação da biodiversidade, dos recursos


genéticos, da importância da preservação do patrimônio genético na estabilidade dos
ecossistemas pode ter desarranjado os termos dessa polarização ― entre grupos pró ou
contra a criação de unidades de conservação e de uma mediação por meio do
desenvolvimento sustentável ― reorganizando-a nos termos do compromisso nacional,
assumido na “Rio 92”, de implementar a Convenção sobre a Diversidade
Biológica―CDB.

4.2. Projeto de Lei n° 2.892/1992: a elaboração da Lei do


SNUC

No transcurso de oito anos dentro do Congresso Nacional, a formulação da


Lei nº 9.985/2000, a Lei do SNUC, teve início com a proposição do Presidente da
República ao Poder Legislativo, em 20 de maio de 1992, recebendo o nome de Projeto de

198
199

Lei (PL) nº 2.892/1992 na Câmara dos Deputados145 em 5 de maio de 1992 e, ao final das
discussões e tramitação, a lei é promulgada em 18 de julho de 2000. Ajustes na redação,
próprios do processo de tramitação de uma lei, foram feitos ao texto e neste item quero
destacar a alterações que que relacionam populações humanas e unidades de conservação
em que o longo período de tramitação nos permite. A ênfase no olhar para esse período
será dada ao tratamento das comunidades tradicionais e dos povos indígenas.

As categorias de unidades de conservação são classificadas entre o grupo de


proteção integral e o grupo de uso sustentável no formato final da Lei do SNUC, em 2000
(Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000):

proteção integral: manutenção dos ecossistemas livres de alterações


causadas por interferência humana, admitido apenas o uso indireto dos
seus atributos naturais.

uso sustentável: exploração do ambiente de maneira a garantir a


perenidade dos recursos ambientais renováveis e dos processos
ecológicos, mantendo a biodiversidade e os demais atributos ecológicos,
de forma socialmente justa e economicamente viável.

A definição “preservação” que a lei do SNUC apresenta traz nos


“procedimentos e políticas que visem a proteção a longo prazo das espécies, habitats e
ecossistemas” (artigo 2º, inciso V) em que se pode enxergar a noção de “monumentos”,
para a qual Barreto Filho chamou a atenção (BARRETTO FILHO, 2001) pela solidez no
transcurso do tempo, como já mencionado antes. O aspecto de uso econômico aliado ao
“sustentável”, está na base de todas as unidades de conservação, mesmo nas restritivas
Reserva Biológica e na Estação Ecológica, permitidas somente as pesquisas científicas e
de forma regulada, se entendermos que a ciência é, em dado momento, também tratada
como valor econômico (SANTOS, 2004).

A lei do SNUC carreia uma tradição para dentro do texto e deverá acomodá-
la no seu propósito de ser uma lei geral para as formas de conservação e proteção da
natureza. Em minha pesquisa do processo de formulação da lei olho para como as

145
Na sua tramitação no Senado Federal recebe o nome de Projeto de Lei da Câmara dos Deputados (PLc)
nº 27/1999.

199
200

populações e comunidades tradicionais, principalmente, como elas aparecem e são vistas


naquele processo com disposições que, na maior parte das vezes, não foram para o texto
final, mas que ecoam na prática, na constituição e na implementação das áreas protegidas
com a questão de o que se fazer com as pessoas?; e quando as pessoas são grupos sociais
identitários organizados e agem?

O documento com a Proposição de Projeto de Lei encaminhado do Poder


Executivo ao Poder Legislativo, era o estudo elaborado pela Fundação Pró-
Natureza―Funatura, organização não governamental sediada em Brasília, no Distrito
Federal. O Anteprojeto de Lei surge de propostas apresentadas pelo IBDF (Ibama) que
havia encomendado um estudo à Fundação Pró-Natureza ― Funatura, em 1988, com a
finalidade de se terem as unidades de conservação em um sistema que as interligasse em
uma política de conservação, diz Maurício Mercadante (MERCADANTE, 2001, pp. 3-
4). O estudo buscou apontar as lacunas na legislação existente, a tipologia de unidades de
conservação em excesso para serem extintas e as categorias de unidades de conservação
em sobreposição de objetivos similares, que deveriam ser fundidas.

A proposta da Funatura, para Rodrigo Medeiros (MEDEIROS, 2006, p. 17),


possuía um perfil mais voltado ao preservacionismo em aspectos restritivos à participação
da sociedade civil na criação, na organização e na gestão das unidades de conservação,
bem como na permanência de população humana em áreas de conservação. Concluído o
estudo, a Funatura apresentou duas propostas, em 1989, ao recém-criado Ibama em lugar
do IBDF. Uma proposta com dez categorias de unidades de conservação e a outra com
nove categorias, que fundia, sob o nome de “Reserva Ecológica” duas outras categorias:
a Reserva Biológica do antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal―IBDF
e a Estação Ecológica da Secretaria Especial do Meio Ambiente ― SEMA
(MERCADANTE, 2001, p. 4), que respectivamente já existiam desde 1967 e 1981. As
nove, ou dez, categorias das unidades de conservação foram apresentadas originalmente
organizadas em três grupos, e não em dois grupos como estão divididos na atualidade,
havendo um grupo “temporário” entre o grupo de unidades de conservação de uso direto
o grupo de uso indireto, como seguem:

200
201

Tabela 6 ⸻ Organização e Categorias de Unidades de Conservação


propostas pela Funatura em 1989
Propostas da Funatura para a sistematização de Unidades de Conservação, entregue ao IBAMA em 1989
Grupos de Unidades de Conservação Categorias de Unidades de Conservação

1. Parque Nacional
2. Monumento Natural
3. Refúgio da Vida Silvestre
(incluindo os objetivos da Área de Relevante Interesse
Ecológico com a proposta de exclusão desta)
Proteção Integral (uso indireto)
4. Reserva Ecológica
(proposta de fusão entre Reserva Biológica e Estação Ecológica)
ou:
4. Reserva Biológica
5. Estação Ecológica
Manejo Provisório 1. Reserva de Recursos Naturais
1. Reserva de Fauna (extinguindo-se o Parque de Caça)
Manejo Sustentável 2. Área de proteção Ambiental
3. Reserva Extrativista

Das duas propostas elaboradas pela Funatura, a proposta de manutenção das


dez categorias foi a escolhida e apresentada ao Legislativo pelo Presidente da República;
portanto, mantidas em separado Estação Ecológica e Reserva Biológica. As modificações
ocorridas na Presidência da República, segundo Mercadante foram poucas
(MERCADANTE, 2001), dentre as quais: a previsão da atribuição do Poder Executivo
na criação de conservação foi modificada para a atribuição do Poder Público; e a previsão
de penalidades na condição de crimes contra as unidades de conservação foram
substituídas por sanções administrativas. Se foram poucas as modificações, estas foram
intensas. A “descriminalização” de ações nocivas às unidades de conservação poderia
trazer menos força à lei, por outro lado, contaria com menor resistência na sua aprovação.
A mudança na criação das unidades de conservação por ato do Poder Executivo para ato
do Poder Público foi novamente modificada para “ato do Poder Executivo”, em 1996;
depois volta a ser Poder Público em 1998; e poucos dias ante do Projeto de Lei ser votado
na Comissão de Direitos do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias ― CDCMAM da
Câmara dos Deputados, representantes do Poder Executivo apresentaram alterações, por
pressão de preservacionistas, segundo Maurício Mercadante, quem havia participado da
elaboração daquele estudo (MERCADANTE, 2001), para que permanecesse como ato do
Executivo.

A proposição do Projeto de Lei (PL) do Presidente da República, Fernando


Collor de Mello, com a Mensagem nº 176/92, datada de 20 de maio de 1992 (CÂMARA
DOS DEPUTADOS, 1992, p. 14), foi apresentada ao Poder Legislativo e a Comissão de
Direitos do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias ― CDCMAM, da Câmara dos

201
202

Deputados ficou responsável pelas discussões e tramitação do que agora era o Projeto de
Lei nº 2.892/1992.

Do manuseio do processo do PL nº 2.892/1992146, estão selecionados


documentos no processo da formulação da Lei do SNUC e incluída a lei vigente para
serem comparados três momentos distintos do Projeto de Lei n° 2.892/1992 até a lei atual.
Compus um pequeno painel com esses momentos para “parar” o material e podermos nos
mover por ele no seu curso. Uso, eventualmente, documentos intermediários aos
indicados no painel, quando se faz necessário. Listo todos os documentos utilizados neste
item, marcados aqueles utilizados para o painel de classificação de unidades de
conservação.

Tabela 7 ― Documentos de referência no Processo Projeto de Lei n°


2.892/1992 da Câmara do Deputados

1992 ― Projeto inicial, ou principal, formado a partir da Proposição do Poder Executivo ―


20/05/1992, folhas de 4 a 13 do arquivo do processo Projeto de Lei n° 2.892/1992
1996 ― 1º Substitutivo do Relator Deputado Fernando Gabeira - 14/06/1996, folhas 531 a
554 do arquivo do processo Projeto de Lei n° 2.892/1992
1999 ― Substitutivo, Relator Deputado Fernando Gabeira - 21/05/1999 folhas 61 a 80 do
arquivo do processo Projeto de Lei n° 2.892/1992
1999 ― “Substitutivo Adotado pela Comissão”, Flávio Derzi (Presidente da CDCMAM) –
09/06/1999; resultado das alterações propostas por representantes da Casa Civil, Ministério
do Meio Ambiente e parlamentares, em reunião de 26/05/1999; folhas 98 a 113 do arquivo
do processo Projeto de Lei n° 2.892/1992
2000 ― Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000 promulgada; última consulta das atualizações
efetuada por mim em 30/06/2019

As classificações das categorias de unidades de conservação foram ajustadas


ao longo da tramitação do Projeto de Lei ⸻ desde a sua entrada no Poder Legislativo, em
1992, até o término do processo legislativo ⸻ e mantiveram sob o grupo de proteção
integral praticamente as mesmas categorias e no grupo de uso sustentável novas
categorias novas foram propostas em várias apreensões da presença de comunidades
tradicionais do ponto de vista da proteção de áreas naturais, como as resumo
comparativamente no painel que segue.

146
Processo físico, encontrável digitalizado no sítio da Câmara dos Deputados.

202
203

1992 1996 vigente


1º Substitutivo
Projeto inicial Relator Deputado Fernando SNUC - Lei 9.985/2000
Gabeira - CDCMAM de 18 de julho de 2000
20/05/1992, folhas 4-13 14/08/1996, folhas 531-554 (DOU 19/07/2000)
do Projeto de Lei n° 2.892/1992 do Projeto de Lei n° 2.892/1992

1. Unidades de Proteção Integral


1. Unidades de Proteção Integral
Grupos 2. Unidades de Manejo Provisório 1. Unidades de Proteção Integral
2. Unidades de Uso Sustentável
3. Unidades de Manejo 2. Unidades de Uso Sustentável
3. Unidades de Manejo Provisório
Sustentável

Para os grupos, acima indicados nos períodos recortados, seguem as


respectivas categorias:

Tabela 8 ⸻ Classificação das unidades de conservação entre 1992 e


2000

1992 1996 vigente


1º Substitutivo
Projeto inicial Relator Deputado Fernando SNUC - Lei 9.985/2000
Gabeira - CDCMAM de 18 de julho de 2000
20/05/1992, folhas 4-13 14/08/1996, folhas 531-554 (DOU 19/07/2000)
do Projeto de Lei n° 2.892/1992 do Projeto de Lei n° 2.892/1992
1. Reserva Biológica
2. Estação Ecológica 1. Reserva Biológica
1. Estação Ecológica
Categorias de 3. Parque Nacional, Parque 2. Estação Ecológica
2. Parque Nacional
Proteção Estadual e Parque Natural 3. Parque Nacional
3. Monumento Natural
Integral Municipal 4. Monumento Natural
4. Refúgio de Vida Silvestre
4. Monumento Natural 5. Refúgio de Vida Silvestre
5. Refúgio de Vida silvestre
Categoria de
Manejo Reserva de Recursos Naturais Reserva de Recursos Naturais (deixou de existir)
Provisório

1. Área de Proteção Ambiental


Categorias de 1. Área de Proteção Ambiental 2. Floresta Nacional
Uso 1. Área de Proteção Ambiental
2. Floresta Nacional 3. Reserva Extrativista
Sustentável 2. Floresta Nacional, Floresta 3. Reserva Extrativista 4. Reserva de Fauna
Estadual e Floresta Municipal
4. Reserva de Fauna 5. Reserva de Desenvolvimento
3. Reserva Extrativista
5. Reserva Ecológico-Cultural Sustentável
antes 4. Reserva de Fauna
"Manejo 6. Reserva Ecológica Integrada 6. Área de Relevante Interesse Ecológico
Sustentável" 7. Reserva Produtora de Água 7. Reserva Particular do Patrimônio
Natural
elaboração: Leslye B. Ursini, 2019, com base no Projeto de Lei n° 2.892/1992 - Câmara dos Deputados Federais

As disposições sobre comunidades tradicionais propostas, suprimidas e que


permaneceram são analisadas na tramitação do Projeto de Lei n° 2.892/1992 nas
categorias Reserva de Recursos Naturais, Reserva Ecológico-Cultural e Reserva

203
204

Ecológica Integrada, que não seguiram para a edição final da Lei nº 9.985, de 18 de julho
de 2000.

4.2.1. “População tradicional” discutida e vetada

O projeto inicial, de 1992, se refere a comunidades tradicionais sem trazer


uma definição para elas dentre as demais definições expressas no artigo 2º Projeto de Lei,
que definiam: conservação da natureza, diversidade biológica, preservação, manejo,
unidades de conservação e zona tampão, que depois será a zona de amortecimento.
Posteriormente, é inserida uma definição para população tradicional que foi sendo
alterada em detalhes até receber o veto do Presidente da República na edição final da Lei
do SNUC, em 2000. Para facilitar ao leitor vê-las no conjunto de suas alterações, senguem
abaixo juntas e apresento meus comentários a elas depois.

(A) Redação no “1º Substitutivo”, agosto de 1996:

Art. 2º, XV - POPULAÇÃO TRADICIONAL: população culturalmente


diferenciada, vivendo há várias gerações em um determinado
ecossistema, em estreita dependência do meio natural para sua
alimentação, abrigo e outras condições materiais de subsistência. (1º
Substitutivo, 14/08/1996, fl. 532)

(B) Redação no “Substitutivo” de 21 maio de 1999:

XV - POPULAÇÃO TRADICIONAL: população vivendo há pelo menos duas


gerações em um determinado ecossistema, em estreita relação com o
ambiente natural, dependendo de seus recursos naturais para a sua
reprodução sociocultural, por meio de atividades de baixo impacto
ambiental. (Substitutivo, 21/05/1999, fl. 62)

(C) Redação do “Substitutivo adotado pela Comissão”, 9 de junho de 1999;


resultado das alterações de representantes da Casa Civil, Ministério do Meio Ambiente e
parlamentares:

Art. 2º, XV - POPULAÇÃO TRADICIONAL: grupos humanos culturalmente


diferenciados, vivendo há no mínimo, três gerações em um determinado
ecossistema, historicamente reproduzindo seu modo de vida, em
estreita dependência do meio natural para sua subsistência e utilizando

204
205

os recursos naturais de forma sustentável. (Projeto de Lei nº 2.892/1992,


fl. 99; inciso vetado na Mensagem de Veto nº 967, 18/07/2000)

Grifei as indecisões no Projeto de Lei quanto a uma temporalidade de


existência das populações tradicionais, o que seria desnecessário estimar, dado que as
comunidades tradicionais precedem à criação das unidades de conservação. Há ainda a
incongruência (vide “C”) entre a previsão de “três gerações” e a caracterização das
comunidades por “historicamente reproduzindo seu modo de vida”; essa história se
realizaria onde se não no território tradicional? Há a recusa na palavra “território”; assim,
o plano, o chão, o lugar seria o “ecossistema”. Os termos “subsistência” e “alimentação”,
são tratados como permutáveis nas versões da definição de populações tradicionais, sobre
o pano de fundo das discussões, desde o século XIX, de que o aumento populacional
coloca em cheque o meio ambiente, e o coloca, no entanto, a lógica nas versões é apenas
transportada para as comunidades tradicionais como se as apontar no limite da sua
subsistência fosse a garantia de poder relacioná-las a unidades de conservação. A
“subsistência” é a constante relegada às comunidades tradicionais e não sabemos se há
um registro para elas de um “mínimo”; e se houver, se seria o mesmo para todas elas ou
do seu ponto de vista; provavelmente não existe e a “subsistência”, de forma
discricionária, lhes é imputada.

O Decreto nº 6.040/2007, que instituiu a Política Nacional de


Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, já na sua
formulação de que participei das reuniões em que foi minutado, os representantes das
associações de comunidades tradicionais inseriram a palavra “econômica” na
imprescindibilidade da ocupação por elas dos seus territórios para a “sua reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e
práticas gerados e transmitidos pela tradição” (art. 3º, inciso I do Decreto nº 6.040, de 7
de fevereiro de 2007).

No dia 9 de junho de 1999, são apresentadas na Comissão de Direitos do


Consumidor, Meio Ambiente e Minorias ― CDCMAM, em reunião ordinária147,

147
Deputados presentes na reunião ordinária da Comissão de Direitos do Consumidor, Meio Ambiente e
Minorias ― CDCMAM de 9 de junho de 1999: Flávio Derzi (Presidente), Luciano Pizzatto, Celso
Russomanno e Paulo Baltazar (Vice-Presidentes), Fátima Pelaes, Expedito Júnior, Reginaldo Germano,
Eunício Oliveira, Fernando Gabeira, Ben-Hur Ferreira, Jorge Tadeu Mudalen, Luiz Bittencourt, José Borba,
Badu Picanço, Murilo Domingos, Sebastião Madeira, Vittório Medioli, João Magno, Marcos Afonso,

205
206

sugestões de alterações ao Projeto de Lei por parlamentares e, também, um grande


conjunto de alterações, de acordo com Maurício Mercadante, pelo Poder Executivo, que
foram praticamente todas aceitas no texto (MERCADANTE, 2001). O Deputado
Fernando Gabeira, relator, informa que os órgãos do Poder Executivo que apresentaram
as alterações foram a Casa Civil da Presidência da República e o Ministério do Meio
Ambiente (Projeto de Lei n° 2.892/1992, fl. 82). Daquela reunião em sessão ordinária
resultou o “Substitutivo adotado pela Comissão”, dentre as alterações feitas, as
populações tradicionais deveriam estar há pelo menos três gerações “nos ecossistemas”
para serem consideradas como tais, e foi suprimido o trecho “dependendo de seus
recursos naturais para a sua reprodução sociocultural, por meio de atividades de baixo
impacto ambiental”, sendo substituída a última parte por “desenvolvimento sustentável”.
Sobre esta definição (que é o texto de “C”, acima transcrito) ― a que o Poder Executivo
teve acesso e revisou ― incidiu o veto presidencial menos de dez dias depois, cuja
justificativa reproduzo:

Razões do veto: “O conteúdo da disposição é tão abrangente que nela,


com pouco esforço de imaginação, caberia toda a população do Brasil.
De fato, determinados grupos humanos, apenas por habitarem
continuadamente em um mesmo ecossistema, não podem ser definidos
como população tradicional, para os fins do Sistema Nacional de
Unidades de Conservação da Natureza. O conceito de ecossistema não
se presta para delimitar espaços para a concessão de benefícios, assim
como o número de gerações não deve ser considerado para definir se a
população é tradicional ou não, haja vista não trazer consigo,
necessariamente, a noção de tempo de permanência em determinado
local, caso contrário, o conceito de populações tradicionais se ampliaria
de tal forma que alcançaria, praticamente, toda a população rural de
baixa renda, impossibilitando a proteção especial que se pretende dar às
populações verdadeiramente tradicionais. Sugerimos, por essa razão, o
veto ao art. 2º, inciso XV, por contrariar o interesse público.” (Mensagem
nº 967, de 18 de julho de 2000) (sublinhei)

Na parte sublinhada há o eco de alas que entendiam um oportunismo das


populações tradicionais em obterem alguma espécie de direito sobre terras para si por
meio das áreas protegidas, no caso as unidades de conservação, e que isso seria tema da
reforma agrária. Mercadante comenta que a versão final da Lei saiu muito parecida com

Ricardo Izar, Régis Cavalcante, Valdeci Paiva, Aroldo Cedraz, Pedro Pedrossian, Moacir Micheletto,
Márcio Bittar, Philemon Rodrigues, Ronaldo Vasconcellos, Arlindo Chinaglia, Alcione Athayde, Duílio
Pisaneschi, Fernando Coruja, Sérgio Novais e Aloízio Santos (Projeto de Lei n° 2.892/1992, fl. 97).

206
207

o Anteprojeto de Lei apresentado pelo Poder Executivo, em 1992, com cunho


preservacionista mais que conservacionista (MERCADANTE, 2001).

Passo a descrever as categorias das unidades de conservação que foram


discutidas ao longo da tramitação do Projeto de Lei n° 2.892/1992, anteriormente ao veto
presidencial.

4.2.2. Reserva de Recursos Naturais ― proposta para o


grupo de Manejo Provisório

O grupo Manejo Provisório continha uma única categoria, a Reserva de


Recursos Naturais, uma categoria transitória, que inicia como uma unidade de
conservação e de “proteção total”, até que fosse encontrada a sua categorização final, ou
diversas categorizações poderiam compor a mesma unidade de conservação. Havia a
possibilidade de criação de Reserva de Recursos Naturais em áreas em que houvesse
territórios de comunidades tradicionais, como se depreende da sua definição:

Art. 10, § 2º Nas Unidades de Manejo Provisório, haverá, em caráter


transitório, proteção total dos atributos naturais, até que haja definição
da destinação por meio de estudos técnico-científicos, tolerado o uso
direto sustentável dos recursos apenas pelas comunidades tradicionais
existentes no ato da criação. (Projeto de Lei nº 2.892/1992 de
20/05/1992, fl. 7) (sem grifo no original)

Na redação no 1º Substitutivo (14/08/1996, fls. 531-544), “comunidades


tradicionais” passam a ser chamadas de “populações tradicionais” e a categoria de
Reserva de Recursos Naturais ganha parágrafos

Art. 8º, § 3° O objetivo das Unidades de Manejo Provisório é assegurar,


temporariamente, a proteção integral da natureza, até que estudos
técnico-científicos indiquem a melhor destinação para as áreas sob
proteção.

.............................

207
208

Art. 22. Constitui o grupo Unidades de Manejo Provisório a categoria


denominada Reserva de Recursos Naturais, com a finalidade expressa no
art. 8°, § 3°, desta Lei [vide acima].

.............................

§ 6º Na Reserva de Recursos Naturais, as populações tradicionais


residentes na área no momento da criação da unidade terão assegurado
o direito de nela permanecerem e desenvolverem as atividades
econômicas necessárias à sua subsistência, com a orientação, o apoio e
de acordo com normas estabelecidas pelo órgão ambiental competente,
com o propósito de assegurar o uso sustentável dos recursos naturais.
(Substitutivo, 14/08/1996, fl. 543) (sem grifo no original)

Observo que nas últimas linhas do Artigo 6º, imediatamente acima, está
expresso que as comunidades não conservam, tampouco fazem uso sustentável e só o
empreenderiam se guiadas, cuidadas e tuteladas nos usos.

A Reserva de Recursos Naturais (art. 22, fl. 543) dentre todas as demais
categorias dos outros grupos, estava dispensada de ter um plano de manejo, por conta de
seu caráter provisório. Ela não poderia ser confundida como “área em estudo prévio para
a criação de unidade de conservação”, para o que havia uma disposição específica nesse
mesmo Substitutivo (art. 24, fl. 544) com meios de interdição das áreas. O prazo para a
destinação de uma categorização definitiva, posteriormente à Reserva de Recursos
Naturais, era de dois anos, prorrogáveis por igual período, para a sua destinação final. Na
Reserva de Recursos Naturais eram proibidas “a concessão de licenças para pesquisa e
lavra de minérios, a construção de barragens e estradas, e qualquer forma de exploração
comercial dos seus recursos naturais” (art. 22, § 5º, fl. 543).

Na redação dada pelo 1º Substitutivo, em 1996 (14/08/1996, fls. 531-544) à


Reserva de Recursos Naturais é apresentada uma forma maleável de constituição de
unidades, uma espécie de mosaico desde a sua criação:

Art. 22, § 4º A Reserva de Recursos Naturais pode ser transformada, no


todo ou em parte, em outras categorias de unidades de conservação, do
grupo de Proteção Integral ou de Manejo Sustentável, ou ainda extinta,
por ato de mesmo nível hierárquico que a criou, obedecidos os
procedimentos de consulta aos órgãos, entidades e população
interessada estabelecidos nesta Lei. (1º Substitutivo, 14/08/1996, fl. 543)

208
209

O objetivo da Reserva de Recursos Naturais não é explícito. Porém, a


dispensa do plano de manejo, as interdições precisas sobre áreas com empreendimentos
― que a redação passou a ganhar no 1º Substitutivo (14/08/1996, fls. 531-544)―, a
maleabilidade para a constituição de uma unidade de conservação desuniforme em um
mesmo ato administrativo com destinação de categorias distintas no todo ou em partes e
o prazo para se decidir posteriormente o que se fazer com ela, me parecem conferir à
Reserva de Recursos Naturais ― que não permaneceu no texto da Lei do SNUC ― uma
certa agilidade para encampar áreas em risco ambiental de maneira emergencial podendo-
se a extinguir por ato administrativo do mesmo nível hierárquico que a criara, sem que
necessariamente fosse uma lei tramitada. Sua implantação ― cujo caráter emergencial se
depreende das suas especificações ― não tem o objetivo de atender as comunidades
tradicionais, ou seja, o propósito daquela unidade de conservação é outro, mas poderia
envolver as populações tradicionais e em caráter temporário e, enquanto isso, “tolerá-
las”, “orientá-las” e “apoiá-las”.

Foram previstas consultas à “população interessada” ― que é o todo:


adjacências, moradores, comunidades tradicionais. As consultas se referem a uma etapa
seguinte à declaração da área que, de início, é de proteção total. Além de colocar as
comunidades tradicionais em um rol de situações que pudessem ser consideradas
emergenciais para a intervenção, situações que o dispositivo não indica. A criação da
Reserva de Recursos Naturais poderia ter em sua mira, inclusive, áreas de interesse
ambiental ocupada pelas comunidades tradicionais.

A categoria de Reserva de Recursos Naturais foi suprimida e com ela o grupo


de Manejo Provisório; ao que parece, no processo de formulação da lei, foram aparados
dispositivos que seriam posteriormente necessários, como é o caráter emergencial na
possibilidade de decretação de áreas para estudo ou intervenção, que reaparecerá em
2005, cinco anos depois da Lei do SNUC promulgada, inserido por meio de Medida
Provisória convertida na Lei nº 11.132, de 4 de julho de 2005.

Art. 22-A. O Poder Público poderá, ressalvadas as atividades


agropecuárias e outras atividades econômicas em andamento e obras
públicas licenciadas, na forma da lei, decretar limitações administrativas
provisórias ao exercício de atividades e empreendimentos efetiva ou
potencialmente causadores de degradação ambiental, para a realização
de estudos com vistas na criação de Unidade de Conservação, quando, a

209
210

critério do órgão ambiental competente, houver risco de dano grave aos


recursos naturais ali existentes.

Um exemplo da aplicação do Artigo 22-A do SNUC ⸻ este que recupera o


teor da Reserva de Recursos Naturais retirada do texto do Projeto de Lei que resultou no
SNUC ⸻ é a decretação148 de uma área nas imediações da BR-319, no Estado do
Amazonas, na margem esquerda do Rio Amazonas. A área decretada prevê uma
“limitação administrativa provisória” em uma área especificada por um memorial
descritivo que excluiu do perímetro decretado e, portanto, da limitação administrativa, as
terras indígenas reconhecidas e as unidades de conservação criadas anteriormente àquela
decretação, feita pelo Decreto de 2 de janeiro de 2006. Naquele caso, das poucas
disposições constantes no Decreto de 2 de janeiro de 2006 se depreende que se trata
provavelmente de uma área com o desflorestamento em marcha, pois há a proibição
expressa do corte raso da vegetação nativa. O Decreto prevê, como existia na Reserva de
Recursos Naturais, um prazo para a destinação final da área (o enquadramento em alguma
categoria de unidade de conservação) que, nesse caso, foi estipulado em sete meses a
contar da data de publicação do Decreto.

Quanto à tramitação do Projeto de Lei, à altura de agosto de 1996, havia uma


categoria de unidade de conservação destinada a populações tradicionais que era a
Reserva Ecológico-Cultural, além da Reserva Extrativista.

4.2.3. Reserva Ecológico-Cultural ― proposta para o


grupo Uso Sustentável

As comunidades tradicionais eram o objetivo da instituição da Reserva


Ecológico-Cultural. Esta categoria foi proposta à Câmara dos Deputados pelo Estado de
São Paulo em contribuição à formulação da Lei do SNUC. O Conselho Estadual do Meio
Ambiente ― Consema, do Estado de São Paulo, começou a promover reuniões a partir
de 1992 e o Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas
Brasileiras — Nupaub, ligado à Universidade de São Paulo ― USP, elaborou uma
proposta e a encaminhou para a Fundação S.O.S. Mata Atlântica, em 24 de Junho de

148
Decreto de 2 de janeiro de 2006.

210
211

1993. A mesma proposta foi reencaminhada, em 8 de dezembro de 1993, para João Paulo
Capobianco, então presidente da fundação SOS mata Atlântica149 e, desta vez, a proposta
também seguiu para o Instituto Florestal no Estado de São Paulo e para a Direção do
Consema. Depois das tentativas, a proposta surgiu no Projeto de Lei n° 2.892/1992.

O texto proposto pelo Nupaub, já na forma de artigos, não foi incorporando


na íntegra ao texto do Projeto de Lei, mas ficou impresso o sentido de que aquela tipologia
de unidade de conservação, a Reserva Ecológico-Cultural, contemplando as populações
tradicionais.

Definição de Reserva Ecológico-Cultural proposta pelo NUPAUB:

Art. “X”. São áreas naturais, de domínio público, que possuem


características naturais ou exemplares da biota com valores ecológicos
significativos, ocupada por populações tradicionais que apresentem
aspectos culturais próprios e diferenciados, entre eles o
desenvolvimento histórico de sistemas produtivos de atividades
complementares que se baseiam na exploração direta e ou indireta de
recursos naturais (terrestres, intertidais150 e aquáticos), de maneira
sustentável. Essas áreas são compostas tanto por espaços de proteção
integral quanto por espaços destinados à exploração sustentável dos
recursos naturais, pelas populações tradicionais”. (DIEGUES, s/d, p. 2)

Reformulação da definição de Reserva Ecológico-Cultural no 1º Substitutivo


(14/08/1996) no Projeto de Lei:

Art. 20. A Reserva Ecológico-Cultural é uma área natural que abriga


populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas
sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao
longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais, e que
desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na
manutenção da diversidade biológica. (1º Substitutivo, 14/08/1996, fl.
541).

Na proposta do Nupaub, os cinco parágrafos que seguem ao artigo “x”, acima


transcrito, previram, entre outros aspectos, que a extração comercial de madeiras e a

149
Mais tarde, seria Secretário de Biodiversidade de Florestas ― SBF, no Ministério do Meio Ambiente,
onde trabalhei no Departamento de Recursos Genéticos ― DPG, ligado à SBF, entre 2003 e 2005, com o
tema dos acessos aos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético, na análise e na
tramitação das solicitações de acesso.
150
Parte litorânea exposta na maré baixa e parte afetada pelas ondas na maré alta, essa faixa é chamada de
Zona Intertidal.

211
212

exploração de recursos minerais seriam vedadas; que a exploração dos recursos naturais
seria dada sob manejo sustentável dos recursos; e que “a substituição da cobertura vegetal
por espécies cultiváveis em pequenas áreas” estaria sujeita às limitações legais ― no que
imagino se referir aos roçados das populações, sempre apontados como nocivos aos
ambientes nas refutações à permanência de comunidades tradicionais em áreas que se
tornam unidades de conservação151.

O reconhecimento dos direitos reais de uso das comunidades tradicionais e a


indicação para a transferência aos descendentes diretos estavam previstos naquela
proposta apresentada pelo Nupaub, tanto o quanto o uso exclusivo dos recursos naturais
pelas comunidades tradicionais. O seu conteúdo percorreu algumas chaves de diálogo na
lei em formulação ao enfatizar a “maneira sustentável” das atividades da vida das
comunidades, ao repetir “recursos naturais”, ao remarcar o “equilíbrio” entre população
humana e recursos naturais disponíveis; ao enfatizar a submissão a um “plano de manejo”
com a valorização dos sistemas tradicionais de manejo historicamente desenvolvidos.

O texto da proposta elaborada pelo Nupaub continha, além do caput do artigo


“x”, transcrito mais acima, dez incisos distribuídos em cinco parágrafos e o seu transporte
para a lei poderia desmembrá-los para cada tema na lei (definição, objetivo, vedações,
posse, etc.); portanto, a sua extensão não deveria constituir uma dificuldade para o
equilíbrio do texto da Lei quanto ao espaço, no texto, ocupado por outras categorias de
unidades de conservação. A sua extensão ⸻ o seu tamanho, pois é longa ⸻ por outro
lado, pode ter sido uma estratégia, pois algo daquela contribuição deveria ser aproveitado
pelo legislador ou, então, ser assumida pelo legislador uma posição de recusa total, o que
dificilmente aconteceria, pois aquela era uma contribuição do Estado de São Paulo à
formulação da lei.

O 1º Substitutivo (14/08/1996, fls. 531-544) manterá, na definição de Reserva


Ecológico-Cultural, a referência à área que abriga comunidades tradicionais como
finalidade da Reserva Ecológico-Cultural. Da proposta elaborada pelo Nupaub ao Projeto
de Lei n° 2.892/1992 foram mantidos, basicamente, os objetivos concomitantes de abrigo
das populações tradicionais e de preservação da natureza, com a previsão de se “assegurar
as condições e os meios necessários para a reprodução e a melhoria dos modos de vida e
de exploração dos recursos naturais das populações tradicionais”; o aperfeiçoamento do

151
O pousio e a coivara.

212
213

conhecimento e das “técnicas de manejo do meio ambiente desenvolvidos por estas


comunidades”; a dominialidade pública, implicando desapropriações de terceiros e, de
certo, de títulos que membros da comunidade pudessem possuir; a substituição da
cobertura vegetal por pequenas áreas “desde que sujeitas às limitações legais e ao plano
de manejo”; o “equilíbrio dinâmico entre o tamanho da população e a conservação“; e a
vedação quanto à exploração comercial de madeiras e recursos minerais; e recebeu
restrições quanto à caça amadorística ou profissional (1º Substitutivo, 14/08/1996, fls.
541-542).

São os acréscimos à Reserva Ecológico-Cultural, pelo 1º Substitutivo


(14/08/1996, fls. 531-544): a visitação pública, em conformidade com interesses locais e
com o plano de manejo; a permissão e o incentivo à pesquisa científica “sujeitando-se à
prévia autorização do órgão responsável pela administração da unidade, às condições e
restrições por este estabelecidas e às normas previstas em regulamento” e sem previsão
de decisão das comunidades tradicionais, retirando, portanto, a autonomia das
comunidades ao endereçar uma maior participação das comunidades pudesse ser
restituída, talvez a um futuro plano de manejo e composição do conselho deliberativo,
cuja previsão também foi acrescida.

Foram descartados daquela proposta inicial do Nupaub remetida pelo Estado


de São Paulo à Câmara dos Deputados: o uso exclusivo pelas populações tradicionais; a
possibilidade de se terem áreas destinadas tanto de uso direto e uso indireto dentro da
Reserva Ecológico-Cultural; o objetivo de proteção das comunidades em si; os aspectos
de proteção ao modo de subsistência e incentivo ao seu desenvolvimento social e
econômico. Tampouco seguiram para o 1º Substitutivo (14/08/1996) as indicações da
variedade de ambientes, marinhos, terrestres e o ambiente específico entre as marés baixa
e alta, que localizavam as Reservas Ecológico-Cultural e indicavam qual relação das
comunidades com o meio, proeminentemente as caiçaras e não apenas elas, senão todas
aquelas vivendo na costa brasileira incluídas as ilhas.

A inexistência de uma unidade de conservação no Projeto de Lei n°


2.892/1992 dedicada a comunidades tradicionais constou dentre as justificativas
apresentadas para a proposta da Reserva Ecológico-Cultural encaminhada pelo Estado de
São Paulo à Câmara dos Deputados. Tal justificativa reiterava o fato de que a unidade de
conservação Reserva Extrativista se constitui na extração e no manejo de somente um
tipo de recurso e, por isso, não alcançaria as comunidades em ambientes litorâneos, que

213
214

não são apenas extrativistas vegetais, conforme explicado na proposta elaborada pelo
Nupaub (DIEGUES, s/d, p. 5). Acrescendo que a Lei do SNUC vigente indica a
população das Reservas Extrativistas como “população tradicional extrastivista”.

Ao longo das versões intermediárias entre o segundo e o terceiro momentos


indicados na Tabela 8, atrás, respectivamente o 1º Substitutivo (14/08/1996, fls. 531-
544) e a Lei 9.985/2000 promulgada, o Conselho Deliberativo previsto no Projeto de Lei
para a Reserva Ecológico-Cultural grifou a participação das comunidades tradicionais na
sua constituição juntamente com representantes de órgãos públicos, das organizações da
sociedade civil, o que se mantém na lei vigente, porém, Reserva Ecológico-Cultural foi
substituída por Reserva de Desenvolvimento Sustentável, deixando de existir a figura da
Reserva Ecológico-Cultural.

4.2.4. Reserva de Desenvolvimento Sustentável ―


grupo de uso sustentável

Já havia experiências no Estado do Amazonas na criação de Reservas de


Desenvolvimento Sustentável quando dos últimos cinco anos de discussão do Projeto de
Lei n° 2.892/1992. Entre 26 de maio e 9 de junho de 1999, como já mencionado, o Projeto
de Lei é alterado substantivamente pelo Poder Executivo, por meio de representantes do
Ministério do Meio Ambiente e da Casa Civil da Presidência da República e nessa
ocasião, entre outras mudanças naquele Projeto de Lei, a Reserva Ecológico-Cultural é
substituída pela Reserva de Desenvolvimento Sustentável, sem alterações na definição
daquela categoria, mas mais relacionada com o Bioma Amazônia que com o ambiente
litorâneo por conta de experiências pregressas. A Lei do SNUC assim define a Reserva
de Desenvolvimento Sustentável:

Art. 20. A Reserva de Desenvolvimento Sustentável é uma área natural


que abriga populações tradicionais, cuja existência baseia-se em
sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais,
desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas
locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da
natureza e na manutenção da diversidade biológica. (Lei nº 9.985/2000,
vigente)

214
215

Embora previsto na Lei do SNUC que a posse por parte das populações
tradicionais ⸻ nas categorias de unidades de conservação Reserva de Desenvolvimento
Sustentável e na Reserva Extrativista ⸻ seria disciplinada em regulamentação específica,
tal regulamentação foi editada dois anos depois, sem, no entanto, dispor sobre a posse.
Trata-se do Decreto nº 4.340, que, de acordo com o estudo de iniciativa da World Wide
Fund for Nature ―WWF Brasil (2006) informa que:

(...) a regulamentação específica da Lei do SNUC, promulgada por meio


do Decreto nº 4.340, de 22 de agosto de 2002, além de não tratar da
regulação da posse e usos das áreas de reservas de uso sustentável (RDS
e Reservas Extrativistas), não dispôs sobre a regulamentação específica
de qualquer outra categoria de manejo, fazendo com que importantes
aspectos jurídicos e socioambientais referentes às unidades de
conservação ficassem adescobertos, notadamente as de uso
sustentável. (WWF BRASIL, 2006, p. 2)

No caso das Reservas de Desenvolvimento Sustentável ― RDS, segundo o


estudo da WWF Brasil (2006), os órgãos executores do Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza―SNUC fizeram, ao menos até 2006, diferentes interpretações
da categoria de unidade de conservação Reserva de Desenvolvimento Sustentável em
função da indefinição regulamentar. As consequências apontadas, naquela ocasião, foram
a criação de várias Reservas de Desenvolvimento Sustentável por parte dos estados sobre
áreas particulares para não comprometerem seus próprios orçamentos com
desapropriações, pois parte interpreta que as Reservas de Desenvolvimento Sustentável –
RDS’s podem comportar propriedades privadas em seu interior. Com isso, há conflitos
de interesse, pois proprietários rurais, empresários, população local convivem em áreas
sob um único regime legal, tal como permanece até a atualidade. (WWF BRASIL, 2006,
pp. 2, 46). Aquele estudo levantou, também, outras razões para a criação de Reservas de
Desenvolvimento Sustentável por parte dos estados, dentre as quais estão: a palavra
“sustentável” no nome, utilizada a título de marketing para atrair apoio financeiro de
empresas e de agências de fomento; a existência de locais com conflitos, em que a criação
da RDS, neste caso, os abrandaria; a criação de RDS como medida urgente e protetiva de
grupos sociais e de ecossistemas; e como forma de acomodar as sobreposições entre
unidades de conservação do grupo de proteção integral e territórios de populações
tradicionais (WWF BRASIL, 2006, pp. 45-46, 65). Um exemplo desse último caso, como
se viu no capítulo anterior, é a proposta do Estado do Rio de Janeiro, do Instituto Estadual

215
216

do Ambiente - Inea, para a recategorização da Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ―


REEJ em Paraty em que as vilas caiçaras seriam RDS’s e as áreas circundantes
convertidas em parque estadual. O que seria uma releitura da Reserva Ecológico-Cultural,
podemos ver assim.

4.2.5. Reserva da Biosfera

O assunto das Reservas da Biosfera ― uma rede mundial de áreas protegidas


― era tratado por uma comissão organizada pelo Ministério das Relações Exteriores, com
instituições governamentais, por meio do Decreto nº 74.685, de 14 de outubro de 1974,
para planejar, coordenar e, também, supervisionar as atividades do Programa “O Homem
e a Biosfera” da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
― Unesco, criado na década de 1971. Abrangendo 78 municípios nos Biomas Cerrado e
Mata Atlântica, é criada a Reserva da Biosfera da Mata Atlântica em 1994
(PELLEGRINO, 2012, pp. 4-5). Em 1999, o Decreto de 21 de setembro de 1999 cria a
Comissão Brasileira para o Programa Man and Biosphere Programme – COBRAMAB e
o programa passa a ser gerido no âmbito do Ministério do Meio Ambiente—MMA.

As disposições sobre a Reserva da Biosfera no 1º Substitutivo (14/08/1996)


são as mesmas que seguirão para a Lei do SNUC vigente e o art. 10, Decreto nº
4.340/2002 regulamenta o as instâncias dos conselhos deliberativos, entre regionais e
estaduais, a depender da abrangência da unidade em um ou mais estados. Podendo conter
áreas de domínio público, a Reserva da Biosfera tem um desenho diferente do mosaico:
se refere apenas a unidade de conservação de proteção integral e pode ser integrada por
apenas uma unidade de conservação, ou mais desse mesmo grupo, bem como suas zonas
de amortecimento, segue sua definição e constituição, conforme consta na Lei do SNUC:

Art. 42. A Reserva da Biosfera é um modelo, adotado


internacionalmente. De gestão integrada, participativa e sustentável dos
recursos naturais, com os objetivos básicos de preservação da
diversidade biológica, o desenvolvimento de atividades de pesquisa, o
monitoramento ambiental, a educação ambiental, o desenvolvimento
sustentável e a melhoria da qualidade de vida das populações.

§ 1° A Reserva da Biosfera é constituída por uma ou várias áreas-núcleo,


destinadas à proteção integral da natureza; uma ou várias zonas de

216
217

amortecimento, onde só são admitidas atividades que não resultem em


dano para as áreas-núcleo; e uma ou várias zonas de transição, sem
limites rígidos, onde o processo de ocupação e o manejo dos recursos
naturais são planejados e conduzidos de modo participativo e em bases
sustentáveis. (Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000)

A Reserva da Biosfera é inserida no SNUC como uma forma de gestão


integrada na relação com outras unidades de conservação.

4.2.6. Reserva Ecológica Integrada ― proposta para o


grupo de uso sustentável

Dentre as categorias de unidades de conservação discutidas no Projeto de Lei


n° 2.892/1992, que traziam situações diversas das relações das atividades humanas com
o meio ambiente, esteve a Reserva Ecológica Integrada com a seguinte definição:

Art. 21. A Reserva Ecológica Integrada é um mosaico articulado de áreas


protegidas, com diferentes objetivos de manejo, gerido de forma
integrada e participativa, e tem como objetivo compatibilizar a
preservação da biodiversidade, a valorização da sociodiversidade e o
desenvolvimento sustentável no contexto regional. (1º Substitutivo,
14/08/1996, fl. 542, Projeto de Lei n° 2.892/1992)

A Reserva Ecológica Integrada poderia ser constituída por áreas de domínio


público ou privado e abranger unidades de conservação criadas pelo poder público
respeitando-se as normas de gestão dessas unidades (§§ 1º; 2º do art. 21, fl. 542, Projeto
de Lei n° 2.892/1992). O que significa, observo, que poderia se sobrepor às próprias
categorias de unidade de conservação indicadas naquele Projeto de Lei, uma vez a lei
editada e as unidades criadas. Também, foi prevista para a Reserva Ecológica Integrada
abranger zonas de uso público, de uso sustentável e de proteção integral; em disposição
parecida, quanto à organização, do que era proposto para a Reserva Ecológico-Cultural,
com a diferença que na Reserva Ecológico-Cultural a concepção da unidade de
conservação partiria da territorialização das comunidades. Na Reserva Ecológica
Integrada, as populações tradicionais que pudessem existir, permaneceriam:

§ 5° Na Reserva Ecológica Integrada, as populações tradicionais


porventura existentes terão suas áreas de uso delimitadas como zonas

217
218

especiais que, sob regime jurídico adequado, assegurem a continuidade


de seus padrões de subsistência, desenvolvimento e cultura, sem
prejuízo de outras soluções, ecológica e socialmente adequadas, que
venham a ser implementadas pelos órgãos responsáveis, com a
participação dos referidos moradores.

Como vimos no capítulo anterior, o Plano de Manejo da APA de Cairuçu


(2018) perfez, em grande medida, as disposições da Reserva Ecológica Integrada. A
categoria Reserva Ecológica Integrada é suprimida do texto do Projeto de Lei n°
2.892/1992 e é mantida a figura de uma instância, o mosaico, para gerir outras unidades
de conservação próximas ou justapostas, as abrangendo.

4.2.7. Corredores Ecológicos e Mosaicos

Os Corredores Ecológicos não constaram no Projeto inicial de 1992, por meio


do qual o Projeto de Lei começou a sua tramitação no Poder Legislativo. De 1993 para
diante, as discussões sobre Corredores Ecológicos, na esteira da Conferência das Nações
Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento ⸻ CNUMAD, ou Eco-92, ou Rio-
92. A partir de 1998, o conceito de Corredor Ecológico é incorporado pelo Ibama e pelo
MMA (BRITO, 2012) e constam na Lei do SNUC e na sua regulamentação, que é o
Decreto nº 4.340/2002. A concepção de Corredores Ecológicos — também Corredores
de Biodiversidade ou Corredores Biológicos — precede, portanto, a figura do Mosaico.

O Corredor Ecológico é entendido como modalidade de gestão participativa


e o Mosaico como modalidade de gestão integrada (BRITO, 2012, pp. 23-25). A noção
de Mosaico, no Projeto de Lei n° 2.892/1992, aparece relacionada à sobreposição de
unidades de conservação entre si e a de Corredores Ecológicos na ideia de conexão e
manutenção de fluxos gênicos.

Surge a indicação específica para a constituição de um mosaico e a categoria


Reserva Ecológica Integrada deixa de existir, não sendo concomitantes pelo menos desde
21 de maio de 1999, como segue:

Projeto de Lei n° 2.892/1999 Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000 –

(21/05/1999, fl.67) SNUC - vigente

Art. 27. Quando existir um mosaico de Art. 26. Quando existir um conjunto de
unidades de conservação de categorias unidades de conservação de categorias

218
219

diferentes ou não, próximas, justapostas diferentes ou não, próximas, justapostas


ou sobrepostas, e outras áreas protegidas ou sobrepostas, e outras áreas protegidas
públicas ou privadas, a gestão do conjunto públicas ou privadas, constituindo um
deverá ser feita de forma integrada e mosaico, a gestão do conjunto deverá ser
participativa, considerando-se os seus feita de forma integrada e participativa,
distintos objetivos de conservação, de considerando-se os seus distintos
forma a compatibilizar a presença da objetivos de conservação, de forma a
biodiversidade, a valorização da compatibilizar a presença da
sociodiversidade e o desenvolvimento biodiversidade, a valorização da
sustentável no contexto regional. sociodiversidade e o desenvolvimento
sustentável no contexto regional.
(Regulamento: Decreto nº 4.340/2002 )

Parágrafo único. Os mosaicos possuirão


um Conselho Deliberativo, constituído por
representantes de órgãos públicos, Parágrafo único. O regulamento desta Lei
inclusive municipais, da população local, disporá sobre a forma de gestão integrada
da comunidade científica e do do conjunto das unidades.
organizações não-governamentais,
conforme se dispuser em regulamento.

Acima, a parte hachurada no Projeto de Lei n° 2.892/1992 foi suprimida e,


dois anos mais tarde aparecem as disposições acerca do Conselho do Mosaico e sua
composição no regulamento da lei, que é o Decreto nº 4.340/2002. Além da palavra
“mosaico”, há ecos da Reserva Ecológica Integrada na formulação posterior da ideia de
mosaico acima expressa, com a diferença que na Reserva Ecológica Integrada se tratava
de uma articulação de áreas protegidas e o mosaico, agora definido, se ocupa da
articulação na proximidade de áreas, na justaposição e sobreposição; o que me parece
poder desvelar que lá, na Reserva Ecológica Integrada, estivesse dada a questão das
sobreposições entre unidades de conservação e territórios tradicionais. Se, mesmo de
forma ambígua e submetidas à subsistência e a regramentos, as comunidades tradicionais
(excetuados indígenas e quilombolas que contam com dispositivos na Constituição
Federal para isso) pudessem contar com alguma delimitação para os seus territórios, no
que isso fosse bom ou ruim, em um caso ou em outros, na definição do mosaico isso se
perde.

A razão de trazer transcritas as disposições sobre o mosaico é a de mostrar


como uma noção vai sendo torneada até assumir um corpo, o mesmo se passou com a
expressão “gestão integrada”. No caso do mosaico, sua noção assumiu uma feição de
unidade de conservação excepcional, como aparecerá dois anos depois de publicada a Lei

219
220

do SNUC, em um capítulo intitulado “Do Mosaico de Unidades de Conservação”, no


Decreto nº 4.340, de 22 de agosto de 2002, o mesmo decreto que deveria regulamentar o
plano de manejo que constitui as unidades de conservação, conforme apontamento crítico
da WWF (WWF BRASIL, 2006). Naquele decreto de 2002 estão os passos
administrativos para a constituição do mosaico, o qual ganha um conselho consultivo, e
não mais deliberativo, como havia sido previsto anteriormente no Projeto de Lei
2.892/1992 do SNUC. Portanto, nessas passagens de uma versão à outra, o Estado cuidou
de dar voz a diversos atores e de retirar-lhes a decisão.

A definição de Corredores Ecológicos passa a constar no 1º Substitutivo


(14/08/1996) e é a mesma redação da Lei do SNUC vigente, como segue:

XIX - CORREDORES ECOLÓGICOS: porções de ecossistemas naturais ou


seminaturais, ligando unidades de conservação, que possibilitam entre
elas o fluxo de genes e o movimento da biota, facilitando a dispersão de
espécies e a recolonização de áreas degradadas, bem como a
manutenção de populações que demandam para sua sobrevivência
áreas com extensão maior do que aquela das unidades individuais.(1º
Substitutivo, 14/08/1996, fl. 533)

Os mosaicos, como os corredores ecológicos, são criados por meio do


reconhecimento por ato do Ministério do Meio Ambiente—MMA, com o acréscimo de
ser necessário ao mosaico um pedido apresentado pelos órgãos gestores das unidades de
conservação. Os mosaicos abrangem os corredores ecológicos para fins da gestão destes
e “na ausência de mosaico, o corredor ecológico que interliga unidades de conservação
terá o mesmo tratamento da sua zona de amortecimento” (arts. 8 º e 11, Decreto nº
4.340/2002). Notamos, aqui, que o mosaico, embora não definido no SNUC, como o são
o corredor ecológico e a zona de amortecimento, assumiu importância como instrumento
de gestão detalhado no decreto de 2002.

Os mosaicos, os corredores ecológicos e as zonas de amortecimento são


conectores de áreas protegidas e são três tipologias de gestão dos usos dos recursos
naturais e, se pode dizer, de ordenamento dos usos e da ocupação do solo. Os corredores
ecológicos e as zonas de amortecimento152, por vezes, recebem questionamentos pelo fato

152
Os mosaicos se referem à gestão integrada entre unidades de conservação, já as zonas de amortecimento
e os corredores ecológicos dispõem sobre os usos externos às unidades de conservação e, portanto, em áreas
não sujeitas à desapropriação, daí as queixas das interferências de proprietários.

220
221

de o Estado interferir no direito de propriedade e não sendo elas áreas de domínio público,
não implicando desapropriações.

4.2.8. Terras Indígenas no SNUC

Seguindo a linha do tempo das versões do Projeto de Lei n° 2.892/1992 na


formulação da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, os povos indígenas não são
mencionados no Projeto inicial, de 1992, nem no 1º Substitutivo, de 1996; fato que não
precisa ser interpretado como uma omissão, ao contrário, o vejo como o entendimento de
que as unidades de conservação não estariam para alcançar as terras indígenas.

As disposições sobre as terras indígenas constam no Substitutivo de 21 de


maio de 1999 (fls. 61 a 80) no seu artigo nº 59, o último artigo antes das disposições de
praxe na redação das normas, que se referem à sua vigência a partir da publicação da lei
e das revogações expressas, no caso de existirem. Diz o artigo acerca dos povos indígenas:

Art. 59. Os órgãos federais responsáveis pela execução das políticas


ambiental e indigenista deverão compor grupos de trabalho para, no
prazo de 90 (noventa) dias a partir da vigência desta Lei, propor as
diretrizes a serem adotadas com vistas à regularização das eventuais
superposições entre áreas indígenas e unidades de conservação.

§ 1 ° Os grupos de trabalho de que trata este artigo deverão ser


compostos por representantes dos órgãos ambiental e indigenista
federais, das comunidades indígenas afetadas e de organizações da
sociedade civil de defesa dos direitos indígenas e ambientais.

§ 2° No ato de criação dos grupos de trabalho serão fixados os


participantes, bem como a estratégia de ação e a abrangência dos
trabalhos. (Projeto de Lei n° 2.892/1992, Substitutivo de 09/06/1999)

Posteriormente, o “Substitutivo Adotado pela Comissão”, de 9 de junho de


1999, suprimiu o parágrafo primeiro e com ele a participação da sociedade civil
organizada na defesa dos direitos indígenas e acrescentou a garantia da participação das
comunidades envolvidas no parágrafo que trata do ato de criação dos grupos de trabalhos
no tema da sobreposição, com cento e oitenta dias de prazo, e não mais noventa nessa
versão; ficando, assim, o texto vigente na Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000:

221
222

Art. 57. Os órgãos federais responsáveis pela execução das políticas


ambiental e indigenista deverão instituir grupos de trabalho para, no
prazo de cento e oitenta dias a partir da vigência desta Lei, propor as
diretrizes a serem adotadas com vistas à regularização das eventuais
superposições entre áreas indígenas e unidades de conservação.

Parágrafo único. No ato de criação dos grupos de trabalho serão fixados


os participantes, bem como a estratégia de ação e a abrangência dos
trabalhos, garantida a participação das comunidades envolvidas. (Lei nº
9.985, de 18 de julho de 2000)

Aqui se passa um fenômeno nas discussões de temas por parte do Estado: o


tema da sobreposição, ou “superposição” é discutido, trabalhado e aqueles que tomam
essa tarefa podem imprimir no seu resultado as reivindicações, os ajustes, toda uma
movimentação de pessoas, de representantes de grupos de pessoas, de posições, de papéis,
de querelas e o importante estará ao lado, parado. A “regularização” das sobreposições,
objetivo dos grupos de trabalhos a serem instituídos, ficou intocada nesse “fenômeno
nublador”. O que significa propor diretrizes para a regularização da sobreposição?;
quando os direitos dos povos indígenas são originários e quando o mosaico primou por
cuidar de sobreposição/justaposição das unidades de conservação entre si na tramitação
do Projeto de Lei n° 2.892/1992.

A “regularização das eventuais superposições” poderia compreender os


ajustes na delimitação da unidade de uma conservação recém-criada de forma a
confrontá-la rente e justa à delimitação da terra indígena, criando uma zona mútua de
amortecimento, ou uma “zona de sinergia”, vamos chamar assim, nessa junção; de modo
a não deixar bolsões entre as poligonais do território indígena e o da unidade de
conservação. Tais bolsões poderiam se tornar enclaves de ocupação de terceiros
pressionando tanto as terras indígenas quanto as unidades de conservação. Portanto, ter
unidades de conservação confrontando terras indígenas, e não as abarcando e se
sobrepondo a elas, seria um bom arranjo, imagino.

A “regularização”, termo ali aberto no Projeto de Lei, pode recepcionar


expectativas diversas: alguma expectativa como aquela minha que, tendo trabalhado com
regularização fundiária de terras indígenas, vê uma situação ideal; outra que veja a
possibilidade que unidades de conservação efetivamente se sobrepusessem às terras
indígenas; outra expectativa, com leitura apressada do artigo 57, que entenda finalmente

222
223

se resolverem as sobreposições, sem que se tenha de maneira explicitada sob qual forma
se daria tal sobreposição. Temos aí outro fenômeno do comportamento do Poder Público
nas discussões: em questões polêmicas deixa espaços, vagas, lacunas ― no caso, por meio
da palavra “regularizar” ― para que alas distintas se vejam contempladas, de alguma
forma, e não ofereçam resistência à norma e à sua aprovação.

O que está escrito no artigo nº 57 do Sistema Nacional de Unidades de


Conservação da Natureza―SNUC vigente pode ser interpretado em duas temporalidades
para a ação de “regularizar”, temporalidades que o texto da Lei vigente não remarca e que
deixa vaga: (a) uma temporalidade que retroage, dando a ideia de que se vão tratar do
passivo das sobreposições; e (b) outra temporalidade futura a partir da Lei, que se
continuarão a criar unidades de conservação sobre as terras indígenas, caso contrário teria
apontado algo para os estudos prévios à criação de unidade de conservação previstos no
SNUC com a finalidade expressa de não serem criadas unidades de conservação sobre
terras indígenas. Está dito, também, que se pretendeu com a disposição do artigo nº 57 do
SNUC ombrear o status de unidade de conservação ao de terra indígena ― duas
finalidades precípuas de dois órgãos da administração pública e ambas obrigações
assumidas pelo Estado; e há os direitos originários aí desconsiderados na Lei do SNUC.

A organização não governamental Instituto Socioambiental ― ISA


apresentou uma proposta para as discussões, na formulação da Lei do SNUC, de uma
Reserva Indígena de Recursos Naturais ― RIRN, cuja criação se daria pela solicitação
dessa modalidade por parte dos próprios indígenas, sem prejuízo das competências do
órgão indigenista; e a gestão do território indígena seria empreendida pelos próprios
indígenas em parceria com o Estado. Encontrei a proposta na publicação daquela
organização, intitulada Povos Indígenas do Brasil, que é uma publicação regular daquele
instituto, e essa recobriu os anos de 1996 a 2000. Segundo o ISA, tal proposta foi
apresentada ao Deputado Fernando Gabeira e desconsiderada, “sequer apareceu no
relatório final da Comissão de Direitos do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias ―
CDCMAM” (ISA - Instituto Socioambiental, 2000).

223
224

4.3. Governança, discurso e reassentamento

Territórios quilombolas, terras indígenas e unidades de conservação são os


três territórios tratados no Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas – PNAP,
instituído pelo Decreto nº 5.758, de 13 de abril de 2006, que pretende a governança na
integração de áreas protegidas sob os auspícios do Ministério do Meio Ambiente—MMA,
na Diretoria de áreas Protegidas. O PNAP dialoga com o SNUC e percorre as suas
disposições em reforço a elas, nas sua efetiva implementação e apoio aos conselhos para
o aprimoramento da gestão do SNUC. A finalidade é o envolvimento de outras
instituições e órgãos em proveito da conservação da biodiversidade, dos recursos
genéticos, dos recursos naturais sob a ótica de áreas protegidas. Quilombolas, indígenas,
extrativistas e “comunidades locais” (uma terminologia da Convenção sobre a
Diversidade Biológica―CDB especialmente no seu artigo 8j, que indica comunidades
tradicionais no Brasil) são convidados a participarem da gestão das unidades de
conservação e outras áreas protegidas (Anexo do Decreto nº 5.75/2006). Ressalte-se que
o PNAP, sem dizê-lo taxativamente, entende os territórios tradicionais como áreas
protegidas, no que há pontos positivos como negativos: por um lado reconhece algum
serviço ambiental ou ecológico daqueles povos e comunidades e, por outro, estende a
normatização ambiental sobre eles. O tema da sobreposição está presente em dois
sentidos, como os leio, no Plano Nacional de Áreas Protegidas ⸻ PNAP: (a) para serem
apresentadas soluções aos “conflitos decorrentes da sobreposição das unidades de
conservação com terras indígenas e terras quilombolas” e, no caso de sobreposição na
gestão de grande áreas para (b):

avaliar a aplicabilidade de instrumentos de gestão territorial de grandes


paisagens, como Reservas da Biosfera, corredores ecológicos, mosaicos,
bacias hidrográficas e zona costeira, levando em conta as sobreposições,
conflitos, efetividade delas e benefícios sociais advindos. (3.3, I, d, do
Anexo do Decreto nº 5.75/2006)

O texto é ambíguo, de qualquer maneira, nesse cenário os “benefícios sociais”


seriam para quem? Há comunidades tradicionais e há a população local, que não se
confundem. Quanto às sobreposições entre unidades de conservação, elas trazem
problemas, também, à gestão das unidades de conservação, como se verá no capítulo 5,
relativo às discussões no Mosaico da Bocaina, em Paraty, no Estado do Rio de Janeiro.

224
225

O que deve ser remarcado é que, de ato em ato, os entendimentos se vão


modelando, neste trecho acima transcrito, por exemplo, corredores ecológicos foram
escritos como “grandes áreas”, para além do seu entendimento de extensão mais restrito
no SNUC. Em uma publicação da PNAP pelo Ministério, no preâmbulo ao Decreto feito
por Maurício Mercadante, então Diretor de Áreas Protegidas, ao falar da representação
de vários setores da sociedade na Comissão Nacional para a implementação do PNAP ele
menciona a participação de “comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas,
extrativistas)” (MMA - Ministério do Meio Ambiente, 2006, p. 5), se pudermos entender
aí uma definição “oficial” de populações tradicionais, porque consta em uma publicação
do Ministério que havia sido suprimida pelo veto presidencial na promulgação da Lei do
SNUC. O aspecto das comunidades como promotoras da conservação da biodiversidade
(que é enfatizado na Convenção sobre a Diversidade Biológica ⸻ CDB) não é enfatizado
no PNAP, mas há essa indicação em seu no preâmbulo intitulado “Porque um Plano de
Áreas Protegidas?”153, na publicação do Ministério do Meio Ambiente—MMA, como
segue:

É importante sublinhar que o PNAP abrange, além das unidades de


conservação também as terras indígenas e as terras de quilombos. A
incorporação desses territórios ao PNAP traduz o reconhecimento de
que: a) além da importância para a vida das comunidades indígenas e
quilombolas, eles desempenham um papel chave na conservação da
biodiversidade e, consequentemente, no desenvolvimento nacional; b)
a gestão articulada e integrada das unidades de conservação, das terras
indígenas e das terras de quilombo é fundamental para o alcance dos
objetivos do Sistema Nacional de Unidades de Conservação; c) traduz
ainda a firme decisão do Ministério do Meio Ambiente de fazer com que
os esforços em favor da conservação da biodiversidade beneficiem de
forma direta as populações tradicionais e locais. (MMA - Ministério do
Meio Ambiente, 2006, p. 5)

O preâmbulo ao PNAP percorre lacunas e omissões do SNUC quanto às


populações tradicionais e o papel das comunidades na conservação da biodiversidade. As
terras indígenas e os territórios quilombolas são lidos como “áreas protegidas”, cuja
definição não consta no decreto que institui a PNAP; mas podemos encontrá-la como
“territórios delimitados e geridos com o objetivo de conservar o seu patrimônio natural,

153
Assinado por Maurício Mercadante, à época Diretor de Áreas Protegidas, e quem havia acompanhado
como assessor a tramitação do Projeto de Lei n° 2.892/1992 na elaboração do SNUC.

225
226

que inclui elementos ecológicos, históricos, geológicos e culturais”, conforme definido


pela União Institucional para a Conservação da Natureza ― IUCN, fundada em 1948 e
filiada à Unesco. A IUCN possui as próprias categorias de áreas protegidas em um sistema
mundial ― em que podemos observar, também, a similaridade entre categorias com o
SNUC, o que aponta para esforços coordenados e programáticos na defesa do meio
ambiente do qual o Brasil faz parte. São as categorias de áreas protegidas da IUCN:
reserva natural, dividida em reserva natural estrita e área de vida selvagem; parque
nacional; monumento natural; área de gestão de espécies e habitat; paisagens protegidas
terrestres e marinhas; e área protegida de utilização sustentável dos recursos naturais
(DUDLE, 2008).

O Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC foi


pensado como sistema para se contrapor ao isolamento de unidades de conservação,
considerando problemas para a gestão e a falta que uma sistematização de áreas
protegidas pudesse acarretar ao meio ambiente e à governabilidade sobre tais áreas que
não dialogassem com programas de governo. Também, nesse propósito, é nítido o temor
de os estados e de as municipalidades gerirem de forma ampla a conservação e a
preservação, de certo porque o envolvimento com interesses locais na ocupação e na
exploração econômica das áreas pudessem interferir nas decisões acerca das próprias
áreas em desfavorecimento à conservação e à preservação. Daí o sistema abranger,
inclusive, as instâncias estaduais e municipais, mas como sistema, é centralizado na
instância federal. Outra questão que se colocava à elaboração da lei era o quanto o sistema
estaria afastado da população local, na proibição de usos, dividindo visões quanto aos
usos econômicos na exploração de unidades de conservação e suas finalidades e vocações
locais.

A presença de comunidades tradicionais era uma questão, por vezes tratada


como problema. Em 1992, aconteceu em Caracas, na Venezuela, o Quarto Congresso
Mundial de Parques da IUCN e dele se retirou a recomendação de rejeitar o reassentamento de
comunidades tradicionais e foram ratificados os direitos dos povos indígenas. Pairava a questão
acerca de quais comunidades seriam ou não consideradas tradicionais (FRANCO, et al., 2015, pp.
225-226). Em um dos relatórios das sessões da Comissão de Direitos do Consumidor,
Meio Ambiente e Minorias ― CDCMAM da Câmara dos Deputados, durante a
elaboração da Lei do SNUC na tramitação do Projeto de Lei n° 2.892/1992, o Relator

226
227

Fernando Gabeira se reporta à questão das populações tradicionais, em 21 de maio de


1999:

O problema das comunidades que vivem em unidades de conservação


foi, sem dúvida, a questão que motivou os mais acalorados debates
durante as reuniões técnicas realizadas por esta Comissão para subsidiar
o parecer do Relator. Constata-se hoje que mais de 80% das unidades já
criadas são habitadas por populações tradicionais. Entretanto, de acordo
com a legislação vigente, essas áreas, na sua grande maioria, não
admitem a presença dessas pessoas dentro dos seus limites. (Relator F.
Gabeira, Projeto de Lei n° 2.892/1992, 21/05/1999, p. 52)

A fala de um Relator, que deverá dar o seu voto, é dirigida a diversos setores
e ideologias envolvidos na tramitação e com reflexo no mundo fora a Câmara, não apenas
por conta da esquematização de organização política na forma de representação, senão
como repercussão das decisões tomadas, além do fato de nem todos estarem
representados, de certo. O trecho que transcrevo abaixo, daquele mesmo relatório, tem
esse tom polifônico:

Hoje se reconhece que a expulsão das populações tradicionais é


negativa, não apenas sob o ponto de vista social e humano, mas têm
consequências danosas também no que se refere à conservação da
natureza. Essas comunidades são em grande medida responsáveis pela
manutenção da diversidade biológica e pela proteção das áreas naturais.
Ao longo de gerações desenvolveram sistemas ecologicamente
adaptados e não agressivos de manejo do ambiente. Sua exclusão, aliada
às dificuldades de fiscalização dos órgãos públicos, muitas vezes expõe
as unidades de conservação à exploração florestal, agropecuária e
imobiliária predatórias. Com isso, perde-se também o conhecimento
sobre o manejo sustentável do ambiente natural acumulado por essas
populações. (Relator F. Gabeira, Projeto de Lei n° 2.892/1992,
21/05/1999, p. 51)

É de se levar em conta as escusas do Relator, pois não vemos esse teor na


letra dos textos que se foram alternando até o texto final do SNUC.

Deve ser remarcado que ao longo das discussões da elaboração da Lei do


SNUC as comunidades e as instituições da sociedade civil, suas apoiadoras, puderam ver
as comunidades tradicionais inseridas nas discussões para, ao final, serem excluídas do

227
228

escopo da Lei. Vale mencionar que territórios quilombolas não são abordados nas versões
parciais do Projeto de Lei, e os quilombolas estariam inseridos em “populações
tradicionais”. A manutenção da definição de “populações tradicionais” pode se ter devido
a uma estratégia política, a meu ver, que levou as comunidades e as organizações
comunitárias até o final das discussões e, então, cedeu às pressões preservacionistas
combinadas com o descontentamento na definição de “populações tradicionais”
imprecisa por ter como critério o número de gerações o que, até mesmo a Senadora
Marina Silva, representando os extrativistas do Acre, se mostraram contra a definição de
“populações tradicionais”, como informado por Mercadante, o que teria sido decisivo
para o veto presidencial ao artigo da definição, segundo o Mercadante (MERCADANTE,
2001).

A Lei promulgada já prenunciaria as dificuldades que se teriam com a


governança. Mas não foi isso o que se passou.

Governança é diferente de governabilidade. A governabilidade se refere ao


governo como instituição estatal, à organização das instituições; ao passo que a
governança abrange as instituições governamentais e conta “com mecanismos informais,
de caráter não-governamental”, de acordo com Rosenau (ROSENAU, 2000, p. 15). As
instituições públicas se reconfiguram combinando regras formais e informais na
articulação de interesses, preferências e objetivos dos setores envolvidos, incluída
necessariamente a sociedade civil. A ideia é que se tenha a capacidade de influenciar o
resultado político, segundo Pedro Cavalcante e outros, e junto a isso o comportamento da
burocracia (CAVALCANTE, et al., 2018, p. 61). Esses são alguns dos pressupostos
teóricos básicos da governança. Na prática, a governança é um fenômeno mais amplo no
governo; ressaltando que governança não é o mesmo que governo (ROSENAU, 2000, pp.
15-16). Para o governo, que vem sendo demandado em situações mais complexas
marcadas pelo pluralismo, pelas ambiguidades e pela fragmentação, a governança opera
a distinção entre a gestão pública praticada em tempos mais recentes, nos últimos vinte
anos, e a administração pública burocrática ortodoxa (CAVALCANTE, et al., 2018, p.
76). Há vertentes que analisam a governança ou sob o aspecto do desempenho como a
“soma de esforços” preocupada com o desempenho na economicidade, na execução e na
excelência com atenção aos “resultados” na eficiência, na eficácia e na efetividade; ou
tomam a governança no aspecto colaborativo em pautas que entrelaçam agentes públicos

228
229

e privados na forma de “cocriação” que vão abranger serviços e políticas públicas com o
envolvimento social (ibidem).

Deve-se diferenciar participação social do envolvimento social. A


participação social é a presencial, são as Consultas, a elaboração participativa no Plano
de Manejo, a participação nos conselhos de saúde ou no Conselho do Mosaico da
Bocaina, por exemplo. A interferência do Ministério Público Federal ― MPF em exigir
que as comunidades sejam ouvidas são demandas, embora gerais, sempre encaminhadas
por determinada comunidade em determinado contexto relacionadas a episódios. O que
ocorreu com o veto da definição de populações tradicionais para a Lei do SNUC foi a
retirada da visibilidade das comunidades e destas como pauta para seguir como projeto
na conservação, um corte ideológico em respeito ao que se vinha sendo discutido na
constituição de áreas protegidas e, dentre elas as unidades de conservação antes mesmo
do Projeto de Lei n° 2.892/1992. Questão ideológica e de métier ambientalista. O SNUC,
com isso, ganhou governabilidade na sua implementação, no sentido político-
institucional; não teve abalada a governança estatal, no sentido do envolvimento social,
no caso das comunidades; e o ICMBio promove o envolvimento social nos Planos de
Manejos, que têm força de Lei.

Portanto, a participação e o envolvimento social garantem tanto a governança


e a governabilidade nos temas da conservação dispostos no SNUC. No entanto, a
contrapartida para as comunidades não pode ser a garantia de participação e
envolvimento, isso são pressupostos. O que está reservado na Lei para as populações
tradicionais, nos casos de sobreposições entre territórios tradicionais e unidades de
conservação, é o reassentamento.

O Decreto nº 4.340/2002 permanece, mesmo com o que me parece ser uma


incoerência ter sido o veto ao Artigo nº 56, na promulgação da Lei do SNUC, e ter deixado

no texto promulgado Artigo nº 42, ambos versando sobre o reassentamento imposto às

comunidades. O Artigo nº 56 do Projeto de Lei n° 2.892/1992, que foi vetado junto a

outros e à definição de “populações tradicionais”, dispunha em um de seus incisos:

Artigo nº 56, Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, vetados o seu caput e os

seus incisos:

229
230

Art. 56. A presença de população tradicional em uma unidade de conservação


do Grupo de Proteção Integral criada em função de legislação anterior obriga
o Poder Público, no prazo de cinco anos a partir da vigência desta Lei,
prorrogável por igual período, a adotar uma das seguintes medidas:

I - reassentar a população tradicional, nos termos do art. 42 desta Lei; ou

II - reclassificar a área ocupada pela população tradicional em Reserva


Extrativista ou Reserva de Desenvolvimento Sustentável, conforme o disposto
em regulamento.

As razões do veto ao Inciso I foram as seguintes:

Por sua vez, o inciso I do art. 56, ao obrigar o Poder Público a promover
o reassentamento de populações tradicionais, estabelecendo, inclusive,
o prazo de cinco anos para tanto, aborda matéria alheia ao Sistema
Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. O reassentamento
de populações é matéria relativa à política fundiária do Governo Federal,
não se admitindo que esta lei venha a abordar tema tão díspar à
problemática relativa às unidades de conservação. Ademais, tornar
obrigatório o reassentamento de populações presentes no interior de
unidades de conservação já existentes pode suscitar a ocupação
irregular dessas áreas. (Mensagem nº 967, 09/07/2000)

Por quais motivos a “razão” do veto acima não se estendeu ao Artigo nº 42

do SNUC? Sendo que o Artigo nº 42 também prevê o reassentamento. Transcrevo-o:

Art. 42. As populações tradicionais residentes em unidades de


conservação nas quais sua permanência não seja permitida serão
indenizadas ou compensadas pelas benfeitorias existentes e
devidamente realocadas pelo Poder Público, em local e condições
acordados entre as partes.

§ 1o O Poder Público, por meio do órgão competente, priorizará o


reassentamento das populações tradicionais a serem realocadas.

§ 2o Até que seja possível efetuar o reassentamento de que trata este


artigo, serão estabelecidas normas e ações específicas destinadas a
compatibilizar a presença das populações tradicionais residentes com os
objetivos da unidade, sem prejuízo dos modos de vida, das fontes de
subsistência e dos locais de moradia destas populações, assegurando-se
a sua participação na elaboração das referidas normas e ações.

230
231

§ 3o Na hipótese prevista no § 2o, as normas regulando o prazo de


permanência e suas condições serão estabelecidas em regulamento.

Há outra pergunta sem respostas: se o SNUC se eximiu de definir “populações


tradicionais”, de qual parâmetro parte para dispor sobre essa mesma população tradicional
no seu reassentamento? Se os critérios são autodeclaratórios para se definir uma
comunidade ou população tradicional, qual outra instituição, além do próprio ICMBio,
estará em contato com as comunidades tradicionais? Dito de outra maneira, as populações
tradicionais estão de todo sob os auspícios do ICMBio nos casos de sobreposição ⸻ não
sendo elas aquelas nominadas pelo Estado (ARRUTI, 2006) ⸻ não sendo elas indígenas
e quilombolas, contam com as instituições, respectivamente, Funai ou Incra e Fundação
Cultural Palmares. O Ministério Público Federal ― MPF atua quando chamado ou de
ofício quando as coisas já não se passam bem e não estará lá acompanhando
preventivamente aquela relação entre as comunidades tradicionais e o órgão ambiental, o
qual quase sempre vê problemas na presença das comunidades e está junto a elas no dia
a dia.

Além do reassentamento de populações tradicionais nos casos de


sobreposição entre territórios tradicionais e unidades de conservação previsto no Artigo
nº 42 do SNUC e no Decreto nº 4.340/2002, há a previsão do “termo de compromisso”,

a ser estabelecido entre famílias de população tradicional e o ICMBio. Sobre o “termo de


compromisso” está disposto na Instrução Normativa nº 26, de 4 de julho de 2012, que

tem a seguinte ementa:

Estabelece diretrizes e regulamenta os procedimentos para a


elaboração, implementação e monitoramento de termos de
compromisso entre o Instituto Chico Mendes e populações tradicionais
residentes em unidades de conservação onde a sua presença não seja
admitida ou esteja em desacordo com os instrumentos de gestão.
(Ementa da IN 26/ICMBio, 04/07/2012)

Note-se que no trecho sublinhado acima, os “instrumentos de gestão”, o


desacordo não deveria ser colocado em relação ao SNUC?; e apenas no que
circunscrevesse as unidades de conservação do grupo de proteção integral? No entanto,
da forma como aparece em uma norma menor, os “Instrumentos de gestão” expandem
qualquer desacordo na alegação da incompatibilidade nos usos dos recursos naturais de

231
232

uma unidade de conservação na perspectiva de determinada unidade de conservação.


Além disso, como leio, expande a aplicação do “termo de compromisso” para outros casos
que não sejam somente aqueles das sobreposições envolvendo unidades de conservação
de proteção integral onde a presença não é admitida, ou seja, para todos os casos em que
as comunidades sejam avaliadas como estando em desacordo com os “instrumentos de
gestão”, mesmo nas unidades de conservação de uso sustentável. É um olhar parcial sobre
as comunidades a partir dos critérios de constituição e de manutenção das unidades de
conservação e não das comunidades, embora elas possam ser envolvidas e consultadas;
mas, mesmo assim e por essa via, os critérios aplicados e de envolvimento são ambientais,
na perspectiva do “ambiente” lido a partir da unidade de conservação. Nos “instrumentos
de gestão”, constantes em um Plano de Manejo de uma unidade de conservação; e nos
termos de compromisso estarão as formas de apreensão e das comunidades estarem em
seus territórios na convivência com unidade de conservação nos casos de sobreposição.

Os “instrumentos de gestão” podem ser os indicados em um Plano de Manejo


das unidades de conservação, assim, vemos que o tema das comunidades e povos em
unidades de conservação serão assunto de esferas com maior margem discricionária do
administrador. Ou seja, o caso a caso em certa medida é interessante, porque trata de
questões específicas; por outro lado, o caso específico estará em mãos do gestor de uma
unidade de conservação específico e da gestão da unidade de conservação. E o Plano de
Manejo tem força de Lei.

A mencionada Instrução Normativa nº 26/ICMBio de 2012, com disposições


sobre o “termo de compromisso”, é referida ⸻ e não é problematizada ⸻ na publicação
“Territórios de Povos e Comunidades Tradicionais e as Unidades de Conservação de
Proteção Integral ― Alternativas para o Asseguramento de Direitos Socioambientais”, de
2014, do Ministério Público Federal ― MPF. Essa publicação constitui o “Manual de
Atuação” para os Procuradores para lidarem com as situações de sobreposições e
conciliação. A ideia de oferecer linhas-guias para a atuação do Ministério no seu suporte
às comunidades é interessante. No entanto, ainda que haja limites para a atuação do MPF,
ao propor formas de lidar com as sobreposições se está propondo uma convivência
institucional nas situações de sobreposição; o que é o mesmo que acomodar as
comunidades em algum lugar na administração pública. E não se pode esquecer que é ele,
o MPF, também, um aparato do Estado.

232
233

Temos que a governabilidade, a governança e a participação social154 são


escalas e enfoques, e não gradações em hierarquia, na relação entre o Estado e a sociedade
pela via do governo e da administração pública. A governança pode trazer um tom “de
baixo para cima”, mas quando atentamos para as suas características abordadas mais atrás
neste item, o que vemos são os princípios constitucionais da administração pública e a
própria gestão pública. Todos os três termos se referem à atuação do Estado para o Estado,
na sua obrigação de promover o bem-estar, os direitos sociais e coletivos, individuais,
etc.; matérias do Estado que internaliza a sociedade já na sua previsão e pode-se dizer que
a governança e a participação social podem lidar melhor, porque mais perto das
comunidades, com a imprevisibilidade dos resultados na implementação das políticas
públicas. Em proveito da governabilidade, a participação crescente da sociedade civil é
desejável por parte do Estado.

Os casos de sobreposições podem sair da esfera administrativa e seguir para


a esfera judicial. Pois são órgãos da administração pública que se chocam em suas
atribuições precípuas. Assim, no caso de uma sobreposição entre uma unidade de
conservação e um território quilombola, estarão em choque o Incra, que tem a
responsabilidade de regularizar aquele território, e o ICMBio, que tem a atribuição de
criar e de gerir unidades de conservação155. No caso dos povos indígenas, estarão em
choque as atribuições da Funai e do ICMBio; e no caso das demais comunidades
tradicionais é mais complexo, pois o ICMBio, de certo, é a instituição governamental com
maior proximidade das comunidades e que detém mais dados acerca as comunidades na
cena de se discutirem as sobreposições156.

Se os choques entre as atribuições dos órgãos perdurarem e seguirem para a


esfera judicial, o “advogado” de cada um dos órgãos será o mesmo: a Advocacia Geral

154
“Participação” não se confunde com “envolvimento”. Explico a diferença: em um processo de
licenciamento ambiental para a construção de uma rodovia, por exemplo, as comunidades que estejam em
áreas afetadas pelo empreendimento já estão envolvidas por ele e pelo seu processo de licenciamento. A
participação depende, e prescinde, da consideração dos termos das próprias comunidades e do diálogo com
elas, na consideração das vozes que venham delas; já o envolvimento, não necessariamente, pois se trata
do conhecimento da existência de uma comunidade em tema ou área de atuação dos projetos de governo
(no caso, projetos de infraestrutura), em que a participação da comunidade é necessária na indicação e na
avaliação dos impactos na sua perspectiva, bem como no desenho dos programas ambientais de mitigação
e compensação desses impactos. Lembrando que no modelo que temos vigente, a participação das
comunidades se inicia a meio caminho, pois as comunidades não participaram, ainda que regionalmente,
da política de construção de rodovias.
155
No caso, serão os respectivos ministérios.
156
Os órgãos afetos e em choque nas suas atribuições são análogos, no que couber, nas instâncias estadual
e municipal.

233
234

da União ― AGU. Na AGU, para cada caso de sobreposição é instaurada uma câmara
para conciliar tais conflitos chamada Câmara de Conciliação e Arbitragem Federal ―
CCAF.

Ter definidas as “populações tradicionais” na Lei do SNUC não evitaria as


sobreposições. Se imaginarmos as unidades de conservação voltadas para comunidades
tradicionais e que não permaneceram no texto do SNUC (Reserva Ecológico-Cultural e
Reserva Ecológica Integrada), haveria, de certo, o recobrimento da visão estrita do
ambientalismo institucional sobre tais áreas e sobre a vida cotidiana das comunidades em
conflitos que Almeida e Rezende exemplificam, como fator decisivo, no caso de algumas
comunidades que têm origens culturais tradicionais que envolve a identidade indígena e
não apenas ela, mas optam por esta como uma forma de se esquivarem da administração
do ICMBio (ALMEIDA & REZENDE, 2013).

O Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, merece ser abordado na


perspectiva de o Estado ter buscado, com a sua edição, uma base legal para o governo
aplicar e ampliar as suas políticas públicas para as comunidades tradicionais. A
elaboração da minuta do decreto contou com ampla participação dos segmentos
específicos das populações tradicionais. Em lugar de enxergar essa norma como uma
mescla entre governança e governabilidade, a vejo como inserida em novas formas de
governar, como chamou Cavalcante (CAVALCANTE, et al., 2018, p. 76), como uma
“cocriação”. Lembrando que são relações mediadas, por vezes com confrontações entre
lados, cuja diferença é se buscar o consenso e, lembrando, ainda Mary Douglas, ao
analisar como se comportam e pensam as instituições: as instituições são quem decidem
(DOUGLAS, 2007).

Instituída pelo Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, a Política

Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais foi


elaborada pela Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades
Tradicionais, criada pelo Decreto de 27 de dezembro de 2004, alterada pelo Decreto de
13 de julho de 2006 e que depois passou a ter no título a expressão “Povos e Comunidades
Tradicionais”, especialmente por conta dos povos indígenas, que não se sentiam à vontade
com a denominação “comunidades”, se entendendo como “povos” e, também, pelo povo
de terreiro. Mais tarde, a Comissão foi configurada como Conselho Nacional dos Povos
e Comunidades Tradicionais, por meio do Decreto nº 8.750, de 9 de maio de 2016 e, em

234
235

agosto de 2018, passou a integrar o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos


Humanos. A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades
Tradicionais é resultado da demanda das comunidades tradicionais, principalmente por
territórios. Da parte do governo, faltava um instrumento normativo que referisse esse
público. Também, era imaginada como uma forma de se ter status mais aproximado ao
dos povos indígenas e dos remanescentes das comunidades dos quilombos, ambos
previstos e nominados na Constituição Federal, na elaboração de políticas públicas, que
não se restringiam à demanda pela regularização fundiária dos territórios, embora fosse a
principal demanda.

Antes, em 2005, aconteceu o “I Encontro Nacional de Comunidades


Tradicionais: pautas para Políticas Públicas”, na cidade de Luziânia, no Estado de Goiás,
entre os dias 17 e 19 de agosto de 2005.

Tal evento [o I Encontro Nacional de Comunidades Tradicionais, em


2005] teve como principal objetivo não só estabelecer uma discussão
conceitual a respeito do termo “comunidades tradicionais” no Brasil,
mas também identificar, junto aos representantes das diversas
comunidades por ele subentendidas, quais as principais demandas do
setor em políticas públicas, e os principais entraves para que tais políticas
possam ser efetivadas. (MDS ― Ministério de Desenvolvimento Social e
Combate à Fome e MMA ― Ministério do Meio Ambiente, 2006, p. 6).

Foram, portanto, eleitas naquela reunião as associações representantes na dos


povos e comunidades tradicionais na Comissão Nacional de Desenvolvimento
Sustentável das Comunidades Tradicionais, ainda sem a troca de nome para incluir
“Povos”, como segue:

235
236

Luziânia é bastante próxima de Brasília, a escolha do local se deveu à


possibilidade de hospedar os representantes participantes e, no mesmo local, contar com
infraestrutura para reuniões e alimentação. A organização foi feita pelo Ministério do
Meio Ambiente ⸻ MMA e pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à
Fome ⸻ MDS. Daquele primeiro encontro, em 2005 em Luziânia, no Estado de Goiás,
os representantes das comunidades tradicionais indicaram um rol de trinta e cinco
demandas e delas priorizaram doze demandas, como segue abaixo.

236
237

As doze diretrizes indicadas pelas comunidades tradicionais representadas na


Comissão, naquele Encontro de Luziânia em 2005, são o começo da elaboração da
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais
instituída em 2007, pelo Decreto nº 6.040.

A Comissão, como instância colegiada, reuniu associações na sua


composição e não indicou quem eram povos e comunidades tradicionais nominalmente,
pois, pretendendo discutir e influenciar políticas públicas, ao se indicar um grupo étnico-
social acaba-se por excluir outros. A Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável
dos Povos e Comunidades Tradicionais foi instalada em solenidade no Ministério da
Cultura no dia 02 de agosto de 2006, com base no Decreto de 13 de julho de 2006, quando
os ministros de Estado do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e do Meio
Ambiente eram, respectivamente, Patrus Ananias e Marina Silva. A Comissão era
presidida pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome ― MDS e
secretariada pelo Ministério do Meio Ambiente—MMA.

237
238

A organização interna aos ministérios do Meio Ambiente ― MMA e o


Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome ― MDS, para o assunto da
Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades
Tradicionais era a seguinte: no MMA o assunto da Comissão estava ligado à Diretoria de
Agroextrativismo e Desenvolvimento Sustentável do MMA, cujo diretor era Jorg
Zimmermann; no MDS era ligada ao Núcleo de Povos e Comunidades Tradicionais,
coordenado pelo antropólogo Aderval Costa Filho; o Núcleo era ligado à Secretaria de
Articulação Institucional e Parcerias ― SAIP157. Trabalhei, em 2006, naquele Núcleo de
Povos e Comunidades Tradicionais como consultora da Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura ― Unesco/ONU. O Núcleo tinha a função, no
MDS, tanto de acompanhar ações no ministério para povos indígenas, quilombolas e
comunidades tradicionais quanto a de ser o responsável por algumas das ações do
ministério. Uma lista das ações restritas à SAIP se encontra no Anexo 1, para se ter uma
ideia no universo de projetos naquela secretaria à época em que a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais estava sendo
formulada.

A partir das doze diretrizes que foram retiradas no “I Encontro Nacional de


Comunidades Tradicionais: pautas para Políticas Públicas”, em Luziânia em 2005, foi
elaborado por Teresa Cristina Moreira, no MMA, órgão que secretariava a Comissão
Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Comunidades Tradicionais; e por mim, no
MDS, órgão que presidia a Comissão, o documento intitulado “Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais ― Subsídios para a
elaboração do texto base para a Oficina de Trabalho (25 e 26 de maio de 2006), versão
de 09 de maio de 2006, Brasília” (MDS ― Ministério de Desenvolvimento Social e
Combate à Fome e MMA ― Ministério do Meio Ambiente, 2006). Nesse documento
constam os “Antecedentes”, nas movimentações e ações anteriores à Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, as justificativas
para a instituição da Política em forma de “considerandos” e para cada uma das doze
diretrizes retiradas no Encontro de Luziânia, em 2005, foram colocados os subtítulos de

157
Depois passou a ser chamada Secretaria de Articulação e Inclusão Produtiva ― SAIP e, em 2011, foi
reorganizada, tendo algumas das suas funções distribuídas para outras Secretarias no MDS para poder
abrigar o Programa Brasil Sem Miséria.

238
239

“Objetivo Específico” e “Diretrizes Gerais de Ação”; e uma minuta da Exposição de


Motivos do que veio a ser o Decreto nº 6.040/2007 também foi feita.

A minuta do decreto foi submetida à Comissão e no segundo semestre de


2006 e os “objetivos” e as “diretrizes” foram escritos nas reuniões da Comissão. Tais
reuniões aconteciam em Brasília, em geral, em estrutura da Companhia Nacional de
Abastecimento ― CONAB, ligada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento – MAPA, que possuía um auditório e salas, para reuniões setorizadas dos
grupos étnico sociais representados na Comissão. Para escrever a minuta do decreto, o
texto era projetado para que todos tivesse acesso juntos aos mesmos pontos de discussão
e ia-se discutindo e redigindo o conteúdo, retirando destaques para discussões
pormenorizadas. Meu papel era o de redigir e outras atividades como a da organização
das reuniões e elaboração de documentos acessórios, tais como relatórios, muitas das
atividades divididas com Júlia Otero no MDS e com Teresa Cristina no MMA. O texto
da minuta foi submetido a reuniões regionais, para abranger representantes de outros
povos e comunidades tradicionais que não participavam diretamente da Comissão e
lideranças locais. Foram as reuniões:

Tabela 9 ― Reuniões regionais da Política Nacional de


Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais:
o início em 2006

Local Data
2006
Rio Branco/AC 14 a16 de setembro
Belém/PA 14 a 16 de setembro
Curitiba/SC 18 a 20 de setembro
Cuiabá/MT 21 a 23 de setembro
Paulo Afonso/BA 21 a 23 de setembro
OBS: as datas foram as previsões, e podem ter pequenas divergências com as datas de fato ocorridas.

O documento resultante era bastante interessante porque tinha impresso em


cada um dos itens a percepção dos povos e comunidades participantes. Quanto ao termo
“povos”, nas reuniões que trazia representantes de governo e das comunidades, era
sempre necessário enfatizar para alguns dos órgãos de governo que “povos” se referia a
“povos tribais”, como na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho e
era, também, uma autodenominação e que não disputava ou pretendia um outro povo para
o País em desacordo com a Constituição Federal e a Segurança Nacional. Quando o

239
240

decreto foi publicado, trouxe apenas os headlines, sem as suas descrições na forma de
“Objetivo Específico” e “Diretrizes Gerais de Ação”, que cada um deles continha. São,
portanto, os itens que constam no Artigo nº 3, no Anexo do Decreto nº 6.040/2007, em
quatorze incisos, que foram os desdobramentos daquelas doze demandas iniciais do
encontro em Luziânia em 2005,

Em larga medida o Decreto nº 6.040/2007 reforça e reitera normas existentes,


no entanto, faz adendos importantes: a definição de território incorpora a ocupação de
“forma permanente ou temporária”, pois já havia mobilização contra a regularização
fundiária de terras indígenas e de territórios quilombolas apegadas a uma leitura temporal
da “ocupação”; incluiu atividades “econômicas” dentre os usos dos territórios necessários
à reprodução física e temporal; e definiu “povos e comunidades tradicionais”, que era um
objetivo já colocado pelo governo às comunidades, naquele encontro em Luziânia em
2005:

Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e


que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização
social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para
sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
(art. 3º. Inciso I, do Decreto nº 6.040/2007)

O interessante, com relação aos territórios, é que há diferentes formas de


territorialização e de reivindicações como, por exemplo, as quebradeiras de coco-do-
babaçu tinham em vista o acesso livre aos recursos e não ao território onde ele se encontra;
atualmente (2019) no Estado do Piauí, há reivindicações territoriais nesse sentido, porque
o recurso é de propriedade de alguém que poderá vendê-lo, inclusive à quebradeira de
coco-do-babaçu.

Quanto às sobreposições e à indicação de não serem mais criadas unidades de


conservação de proteção integral, expressada dentre aquelas doze diretrizes do Encontro
de Luziânia em 2005, não surtiram efeitos contundentes nos anos ulteriores. E aqui
podemos identificar a bifurcação nos discursos do Estado acerca da conservação da
biodiversidade que endereça o tema para a Repartição de Benefícios, prevista na
Convenção sobre a Diversidade Biológica―CDB, como na publicação “Áreas
Prioritárias para a Conservação, Uso Sustentável e Repartição de Benefícios da
Biodiversidade Brasileira: atualização da Portaria MMA nº 9, de 23 de janeiro de 2007”.
O mapa gerado para a conservação é atualizado de tempos em tempos e a finalidade da

240
241

indicação de áreas prioritárias no Ministério do Meio Ambiente—MMA é a de apoiar a


implementação de ações (criação de unidades de conservação, fiscalização, licenciamento
ambiental e fomento ao uso sustentável) e subsidiar a tomada de decisão daquele
ministério. As terras indígenas são indicadas no mapa e participam, são recobertas, por
indicações para a conservação em vários níveis. Os outros territórios não possuem um
mapeamento dado a público, no caso dos quilombolas, e no caso das comunidades
tradicionais, não previstas na Constituição Federal, não têm visibilidade. As
sobreposições decorrem já da falta de planejamento transversal entre os órgãos.

Quanto à Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e


Comunidades Tradicionais, a ideia era a de que o Decreto nº 6.040/2007 tivesse ampla
aplicação nas ações de órgãos governamentais, a fim de se ter uma base legal para elas e,
também, nos municípios e unidades da federação e, como colocado acima, havia a
representação de associações das comunidades prevista na composição da Comissão
Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, com
mandato bienal; o Decreto nº 6.040/2007 não traz indicação de quais são ou não povos e
comunidades tradicionais, como dito atrás, para não excluir e nem supor que se conheçam
todas. A Câmara Municipal de Paraty promulgou a Lei nº 1.835, de 10 de janeiro de 2012,

para estabelecer diretrizes para políticas públicas para povos e comunidades tradicionais.
É um bom resultado que aquele decreto tenha surtido reproduções até às municipalidades;
no entanto, no mesmo texto da Lei, o Município de Paraty restringe quais são os povos e
comunidades tradicionais que o município reconhece, conforme o Artigo nº 4 daquela

Lei: “São reconhecidos pelo Município de Paraty, os seguintes povos tradicionais,


conforme sua etnia, histórico e característica diferenciada...” listando, na sequência,
indígenas, quilombolas e caiçaras. Observo que a administração pública pode, e deve,
circunscrever suas ações a um público beneficiário e pode tratá-los de forma isonômica,
o que pode comportar algumas ações para uns grupos e para outros grupos outras ações
ou nenhuma em dada ação específica. Mas inscrever na Lei reconhecer determinados
grupos me parece que aponta para ferir a autodeterminação e o autorreconhecimento. É
ambíguo, porque a Lei, também é um documento que coloca, ao menos ali, indígenas,
quilombolas e caiçaras em pé de igualdade para as políticas públicas.

241
242

Já a instância da Câmara de Conciliação e Arbitragem Federal ― CCAF tem


o viés de proteção da atuação dos órgãos governamentais no exemplo que pode ser o mais
acabado da governabilidade, se a entendermos no estrito senso das atribuições dos órgãos
expressas na Lei que os instituiu. Tive a chance de participar de algumas das Câmaras
enquanto trabalhei no Incra-Sede, em Brasília. Nas questões de sobreposições, a questão
colocada era a de que os usos seriam divergentes, tanto os das comunidades quanto os
previstos para a categoria das unidades de conservação de proteção integral. Havendo o
“conflito de interesses” entre o Incra e o ICMBio e sendo o Advogado-Geral da União a
mesma instância para defender os interesses tanto do Incra quanto o do ICMBio em uma
eventual judicialização de disputas, seria impraticável que a AGU atuasse. Daí a busca
do Governo em dirimir conflitos por meio da Câmara de Conciliação e Arbitragem
Federal—CCAF.

Os impasses nas reuniões, que eram comuns às situações de sobreposição,


não foram poucos. O Incra entendia que não haveria priori usos divergentes quando o
estilo de vida das comunidades quilombolas seriam compatíveis com a conservação,
manutenção e incremento da biodiversidade, conforme a política de biodiversidade
empreendida pelo Ministério do Meio Ambiente, ao qual o ICMBio é ligado. Portanto,
não haveria por que o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade ―
ICMBio reivindicar as áreas que estavam em regularização fundiária para os territórios
quilombolas. O ICMBio não se mostrava afável a abrir mão das áreas e as poucas vitórias
em favor dos quilombos resultaram em desafetação de uma parcela do território
quilombola, a ser submetida, ainda, ao Congresso Nacional para a desafetação, conforme
prevê a Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, a Lei do SNUC, nos casos de desafetação e
alteração de unidades de conservação. o termo de compromisso era elaborado em
conjunto com as comunidades, no entanto, era este documento previsto no capítulo
relativo ao reassentamento de populações tradicionais do Decreto nº 4.340, de 22 de
agosto de 2002, que regulamenta o artigo nº 42 da Lei do SNUC.

Havia o documento “termo de compromisso”, que surgia como um


cadastramento e serviria certamente, em última instância, para isso: quantificar e
mensurar qualquer indenização e retirar a comunidade do território com prazo definido.
Remarque-se que eram termos de compromisso a serem assinados por famílias, onde se
perdia a noção de grupo. O artigo n° 39 do Decreto nº 4.340/2002 prevê que:

242
243

Enquanto não forem reassentadas, as condições de permanência das


populações tradicionais em Unidade de Conservação de Proteção
Integral serão reguladas por termo de compromisso, negociado entre o
órgão executor e as populações, ouvido o conselho da unidade de
conservação. (art. 39, Decreto nº 4.340/2002)

Nas reuniões dos técnicos do ICMBio e do Incra, as dificuldades estavam nas


perspectivas diferentes — de um lado era esperado que as comunidades saíssem das
unidades de conservação e, de outro, que permanecessem —, cuja finalidade era retirar
caminhos para uma situação em subsídio à manifestação da CCAF/AGU que, ao meu ver,
esperava o consenso; eis aqui o ponto: o da deslegitimação de um processo que logrou
garantir direitos (o do acesso ao território e à sua regularização fundiária expresso no
ADCT 68) e das próprias comunidades como sujeitos históricos e de direitos, em que em
uma mesa de técnicos se pudessem, até, realinhar limites. Enquanto participei das
discussões, a postura dos técnicos do Incra tinha o propósito consciente de estar nas
discussões e reiteradamente buscar imprimir, que fosse, alguma internalização àquelas
tratativas em proveito da diversidade cultural e mesmo da defesa da missão institucional
do Incra, que é a de regularizar os territórios e defender os interesses das comunidades
quilombolas. De outra parte, os termos de compromissos ao serem discutidos, debatidos,
discordados, refeitos, acabavam podendo instruir os processos administrativos de
regularização das unidades de conservação nos termos do Artigo nº 42 do SNUC, o que
me pareceu ser providencial em colocar a perspectiva do ICMBio sempre um passo à
frente.

O termo de compromisso era indicado como um documento provisório pelo


ICMBio, como um ajuste de condutas até o deslinde da situação na CCAF, porém, o nome
do documento era o mesmo previsto no artigo n° 39 do Decreto nº 4.340/2002 como
instrumento de retirada das comunidades. Nessa atuação conjunta entre Incra e ICMBio,
indicada pela CCAF/CGU/AGU, foram feitas reuniões junto às comunidades para
explicar a situação, as consultar e formular minuta de termo de compromisso, das que
participei, foram feitas em Rondônia, no Quilombo Santo Antônio do Guaporé, em
relação de sobreposição com a Reserva Biológica do Guaporé; em Minas Gerais, no
Quilombo de Mumbuca em relação de sobreposição com a Reserva Biológica da Mata
Escura; no Amazonas no Quilombo de Tambor em face do Parque Nacional do Jaú; e no
Quilombo de São Roque, no sul do Estado de Santa Catarina, por conta do Parque
Nacional de Aparados da Serra e do Parque Nacional Serra Geral.

243
244

Para a comunidade de Santo Antônio do Guaporé, em Rondônia, que as


negociações estavam mais avançadas, foi proposto um outro nome para o documento
“termo de convivência etnoambiental” para se buscar sair do escopo das previsões de
retirada da comunidade que o “termo de compromisso” carregava consigo. Em de abril
de 2009, a comunidade quilombola de Santo Antônio do Guaporé, no Estado de
Rondônia, enviou uma correspondência a Câmara de Conciliação e Arbitragem Federal
― CCAF dizendo ter tomado conhecimento de que haveria uma reunião naquela CCAF
prevista para maio de 2009. A correspondência foi enviada via Departamento de
Regularização Fundiária de Quilombos ― DFQ/Incra. Na correspondência se
manifestaram acerca do documento “Quadro de Diagnósticos e Proposições”, que era o
documento feito a partir das reuniões de consulta em campo no escopo da Câmara de
Conciliação e subsidiário ao termo de compromisso. Nessa correspondência, a
comunidade solicitou estar presencialmente nas reuniões da CCAF e que não queria um
documento que falasse por ela. Na manifestação, a comunidade reiterou que eram vinte e
sete anos de conflitos com as autoridades do ICMBio e, antes, do Ibama por conta da
instalação da Reserva Biológica do Guaporé em terras onde as famílias viviam desde há
muito tempo.

A postura da CCAF foi a de que a consulta já teria o seu lugar nas idas a
campo de técnicos do Incra e do ICMBio e a participação nas reuniões de conciliação são
restritas a entes da federação nos termos da Portaria/AGU nº 1.281, de 27 de setembro de
2007. Essa Portaria em conjunto com a Portaria/AGU nº 1.099, de 28 de julho de 2008,
tratam da instauração da conciliação e de quem pode solicitar a sua instauração (Ministros
de Estado; Governadores; dirigentes de entidades da Administração Federal Indireta;
Prefeitos, em casos específicos158; Procuradores159 o Advogado-Geral da União), a
finalidade da conciliação é o “deslinde, em sede administrativa, de controvérsia de
natureza jurídica” (art. 1º da Portaria nº 1.281/2007), ou seja, se busca a conciliação na
esfera administrativa para que não seja tratada na esfera judicial, onde o “advogado” dos
órgãos federais em conflitos de interesse seria o mesmo para as partes, no caso a AGU,
como mencionado atrás. Outras comunidades que apontaram a pertinência de

158
“Municípios que sejam Capital de Estado ou que possuam mais de duzentos mil habitantes” (art. 1º da
Portaria nº 1.099/2008).
159
“Consultor-Geral da União, Procurador-Geral da União, Procurador-Geral da Fazenda Nacional,
Procurador-Geral Federal e Secretários-Gerais de Contencioso e de Consultoria” (inciso III, art. 2º da
Portaria nº 1.099/2008).

244
245

participarem das reuniões da CCAF e solicitaram sua participação à época foram: a


Comunidade Quilombola de São Roque, no Estado de Santa Catarina, já manifestada na
própria reunião de Consulta realizada no quilombo, em 21 de maio de 2009; e a
Comunidade Quilombola de Mumbuca, no Município de Jequitinhonha no Estado de
Minas Gerais.

O Parque Nacional de Aparados da Serra e o Parque Nacional Serra Geral


estão em sobreposição com o Território Quilombola de São Roque, localizado nos
municípios de Praia Grande, no Estado de Santa Catarina, e de Mampituba, no Estado do
Rio Grande do Sul. A comunidade solicitou que o Incra apresentasse o termo de
compromisso na comunidade, reunião realizada com a presença dos gestores das unidades
de conservação e dirigentes do ICMBio. A comunidade contou com assessores do
Movimento Negro Unido ― MNU e se manifestou, na reunião e registrado em ata, contra
o termo de compromisso, com a proposta de participar da Câmara de Conciliação uma
vez que não tinha sido ouvida na elaboração do Termo de Compromisso.

Acerca das reuniões da CCAF quanto à sobreposição entre o Quilombo de


Mumbuca e a Reserva Biológica da Mata Escura, em Jequitinhonha, no Estado de Minas
Gerais, a Associação Quilombola Mumbuca e a Federação dos Trabalhadores na
Agricultura do Estado de Minas Gerais―FETAEMG se manifestaram por escrito para
participarem das reuniões da CCAF, com base no Artigo 9º da Lei nº 9.784, de 29 de
janeiro de 1999, cuja ementa indica o seu objetivo de regulamentar o processo
administrativo no âmbito da Administração Pública Federal e o referido artigo dispõe
sobre os legitimados como interessados no processo administrativo, como transcrevo da
Lei:

Lei nº 9.784/1999:

Art. 9º São legitimados como interessados no processo administrativo:

I - pessoas físicas ou jurídicas que o iniciem como titulares de direitos ou


interesses individuais ou no exercício do direito de representação;

II - aqueles que, sem terem iniciado o processo, têm direitos ou


interesses que possam ser afetados pela decisão a ser adotada;

245
246

III - as organizações e associações representativas, no tocante a direitos


e interesses coletivos;

IV - as pessoas ou as associações legalmente constituídas quanto a


direitos ou interesses difusos.

Art. 10. São capazes, para fins de processo administrativo, os maiores de


dezoito anos, ressalvada previsão especial em ato normativo próprio.

Reporto, aqui, os pleitos das comunidades porque participei das reuniões, em


campo e em algumas delas na CCAF, sobre essas comunidades e outras, sendo que
elaborei informações técnicas ao Incra, onde trabalhava, com o apanhado das situações.
Minha participação nas reuniões da CCAF se devia ao acompanhamento técnico e
antropológico para Procuradoria Federal Especializada do Incra Sede, em Brasília ― PFE
por solicitação feita pela PFE ao o Departamento de Regularização Fundiária do Incra ―
DFQ onde eu trabalhava. Para o acompanhamento nas Superintendências Regionais do
Incra foram indicados Samuel Cruz, em Rondônia; Marcelo Spaolonse, em Santa
Catarina; Vanessa Cançado, em Minas Gerais e Cindia Brustolin, que, graduada em
direito, acompanhava as reuniões em campo e entre os técnicos realizadas em Brasília,
tendo à época como Coordenadora-Geral do Departamento a Givânia Maria da Silva,
quilombola do Quilombo de Conceição das Crioulas, no Estado de Pernambuco.

Naquele período, as solicitações das comunidades em participarem das


reuniões nas Câmaras de Conciliação não foram acolhidas pela CCAF. No caso específico
da solicitação da Comunidade Quilombola de Mumbuca, assessorada pela FETAEMG,
me recordo que a alegação da coordenação da CCAF havia sido a de que a condição de
“interessado” em processo administrativo não abrangia a participação nas reuniões da
Administração Pública, com base na mesma Lei que a comunidade se baseara para
solicitar sua participação. Transcrevo o artigo:

Lei nº 9.784/1999:

Art. 3º O administrado tem os seguintes direitos perante a


Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados:

I - ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão


facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações;

246
247

II - ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha


a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de
documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas;

III - formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os


quais serão objeto de consideração pelo órgão competente;

IV - fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando


obrigatória a representação, por força de lei.

Portanto, no dispositivo que aborda a participação dos interessados nos


processos administrativos não está contemplada a participação dos interessados em
reuniões de governo; mas devemos observar que, também, não a impede.

É necessário entender que “interessado” é o administrado comum e que para


os povos e comunidades tradicionais, além de administrado, há a Convenção n º 169 da
Organização Internacional do Trabalho, a OIT 169, que trata tanto da participação dos
povos em todas as etapas de processos governamentais, em que as comunidades possam
ser afetadas por decisões, quanto aborda o “consentimento” das comunidades a esses
processos e decisões.

OIT 169 ― Artigo 6o

1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos


deverão:

a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos


apropriados e, particularmente, através de suas instituições
representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou
administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;

................................

2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser


efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o
objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca
das medidas propostas.

247
248

Em uma das informações feita ao Incra, o meu argumento era o de que a


consulta “mediante procedimentos apropriados” não deveria ter outra medida senão a da
própria comunidade para a sua livre manifestação e que formas contrárias a isso
impossibilitaria, inclusive, o “consentimento” por parte das comunidades para uma
decisão conciliada nos processos tramitando na Câmara de Conciliação na
CCAF/CGU/AGU. Ainda, com relação à participação das comunidades quilombolas, a
Portaria/AGU n° 910, de 04 de julho de 2008, poderia ser interpretada para o atendimento
das comunidades. A Portaria/AGU nº 910/2008 “estabelece procedimentos para a
concessão de audiências a particulares no âmbito da Advocacia-Geral da União e dos
órgãos a ela vinculados” e especifica o “particular” como “todo aquele que, mesmo
ocupante de cargo ou função pública, solicita audiência para tratar de interesse privado
seu ou de terceiros” (Inciso II°, § Único, art. 1° da Portaria/AGU nº 910/2008). Como se
tratava de grupos étnicos, no caso os remanescentes das comunidades dos quilombos,
“privado” deveria ser entendido como o próprio interesse do grupo, o que faria dele
elegível para as audiências e, por meio desse dispositivo, haveria base legal para receber
as comunidades.

O papel do Incra era a garantia da defesa dos interesses das comunidades


quilombolas, conforme o Artigo nº 15 do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003,
“nas questões surgidas em decorrência da titulação das suas terras” e representar os
interesses da comunidade para defendê-los; há diferença com relação à representação da
própria comunidade, como entenderam as comunidades de Mumbuca, de São Roque e de
Santo Antônio do Guaporé, ao menos, nos processos de elaboração do Termo de
Compromisso nos exemplos de manifestação quanto a esse tema, que expus mais atrás
neste item. As informações eram apresentadas ao Incra para que as usasse em subsídio a
outros documentos de sua manifestação.

Além das sobreposições de territórios tradicionais e de unidades de


conservação, havia sobreposições com área de mineração e área militar, cujos casos entre
2008 e 2011 eram os seguintes:

248
249

Tabela 10 ― Sobreposições entre territórios quilombolas, unidades


de conservação, áreas militares e área de mineração
RTID
Território Quilombola Unidade de Nº do Processo no
publicado
Município/UF Conservação Incra
(fev/2010)
Território Quilombola Tambor;
sim PARNA Jaú 54270.001270/2007-61
em Novo Airão/AM
Território Quilombola Cunani;
não PARNA Cabo Orange 54350.000346/2004-07
em Calçoene/AP

PARNA Aparados da
Território Quilombola de São
sim Serra 54210.000262/05-41
Roque, em Praia Grande/SC
PARNA Serra Geral
Território Quilombola do Alto
não 54100.002186/2004-16
Trombetas; em Orximiná/PA
Território Quilombola do
Jamari, Juquirizinho, Juquiri e
Palhal (há outras comunidades REBIO do Rio
não que são nucleações de Trombetas e FLONA 54100.002185/04-20
habitação permanente das Saracá-Taquera
mesmas comunidades),
Oriximiná/PA
Território Quilombola do Moura,
não 54100.002186/04-24
Oriximiná/PA
Território Quilombola do
sim Guaporé; em São Francisco do REBIO Guaporé 54300.000746/2005-81
Guaporé/RO
Território Quilombola
sim Mumbuca; em Jequitinhonha e REBIO Mata Escura 54179.003745/2005-11
Almenara/MG
Elaboração: Leslye Ursini, 2019

RTID
Território Quilombola Projeto de Nº do Processo no
publicado
Município/UF Mineração Incra
(fev/2010)
Território Quilombola de
sim 54170.003688/05-70
Machadinho, Paracatu/MG
RPM – Rio Paracatu
Território Quilombola de São Mineração (empresa
sim
privada do grupo 54170.000059/04-15
Domingos, Paracatu/MG
canadense Kinross)
Território Quilombola dos
sim 54170.008897/03-48
Amaros, Paracatu/MG
Elaboração: Leslye Ursini, 2019

RTID
Território Quilombola Nº do Processo no
publicado Área Militar
Município/UF Incra
(fev/2010)
Território Quilombola de
sim a partir de 1971 54180.000945/2006-83
Marambaia
Território Quilombola de desde a década de
sim 54230.002401/2006-13
Alcântara 1980
Elaboração: Leslye Ursini, 2019

Além da tramitação da Câmara de Conciliação e Arbitragem Federal ―


CCAF, na fase do contestatório no rito processual da regularização fundiária dos
territórios quilombolas no Incra, o ICMBio apresentou sua própria contestação aos

249
250

processos de regularização fundiária de dois territórios quilombolas: ao de São Roque, no


Estado de Santa Catarina, e ao processo de regularização fundiária de Santo Antônio do
Guaporé. Em 2009, o Supremo Tribunal Federal entendeu que:

Há perfeita compatibilidade entre meio ambiente e terras indígenas,


ainda que estas envolvam áreas de "conservação" e "preservação"
ambiental. Essa compatibilidade é que autoriza a dupla afetação, sob a
administração do competente órgão de defesa ambiental. [Pet 3.388,
rel. Ministro Ayres Britto, j. 19-3-2009, DJE de 1º-7-2010.]

Em que pese para a não retirada da comunidade, o entendimento acima não


fez cessar a conciliação e, em 2017, a situação era a seguinte:

Hoje tramitam processos na CCAF de sobreposição entre territórios


quilombolas e Unidades de Conservação (TQ Tambor e Parna Jaú no AM;
TQ Cunani e Parna Cabo Orange no AP; TQ São Roque e Parna Serra Geral
em SC; TQ Guaporé e Parna Guaporé em RO; TQ Mumbuca e Rebio Mata
Escura em MG; TQ Alto Trombetas, Jamari e Moura e Rebio do Rio
Trombetas e Flona Saracá-Taquera no PA e TQ Cambury e Parna Serra da
Bocaina em SP), mineração (TQs Machadinho, São Domingos e Amaros e
Kinross Mineradora em MG) e área de interesse militar e científico (TQ
Alcântara e área de expansão da Base da AEB no Maranhão).

Recentemente foram conciliados os interesses entre os territórios


quilombolas de Rio dos Macacos-BA e Marambaia-RJ e bases da Marinha
do Brasil. A partir de tal acerto, a primeira comunidade já teve seu
território reconhecido e a segunda já teve seu território titulado em
definitivo.

De acordo com a Instrução Normativa do Incra nº 57/2009 (art. 16), a


Casa Civil da Presidência da República coordenará as negociações
quando houver controvérsias em se tratando do mérito. (INCRA ―
INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA, 2017, p.
14)

Vê-se que, com a participação da Casa Civil, o tema das sobreposições vai
caminhado dos aspectos técnicos e legais para o aspecto de decisão política.

Da experiência com as Câmaras de Conciliação tem-se que tudo se passa


como se uma visão ambiental, estrita, se sobrepuja à do reconhecimento dos territórios
quilombolas, mesmo os quilombos tendo previsão constitucional e as unidades de

250
251

conservação estabelecidas em Lei. Talvez, seja esta a via de entender por que o
ambientalismo preservacionista das unidades de conservação de proteção integral
repetem que não há compatibilidade nos usos das comunidades tradicionais quanto à
conservação, pois a conservação da natureza possui previsão constitucional, no Artigo nº
225. E ali se vão buscar alguma incompatibilidade. Por outro lado, os conhecimentos
tradicionais associados ao patrimônio genético, a inovação na biodiversidade e a
implementação da Convenção sobre a Diversidade Biológica―CDB, que levam em conta
as comunidades tradicionais e os seus saberes, tem como foco na Constituição Federal
aquele mesmo Artigo nº 225 para a sua implementação.

A contradição que aponto é interna ao mesmo Ministério do Meio Ambiente


― MMA em políticas de conservação da biodiversidade que, quando abordadas pela
Secretaria de Biodiversidade e Florestas ― SBF, tem nas populações e na diversidade
cultural um valor, um painel para a implementação da Convenção sobre a Diversidade
Biológica―CDB; quando a conservação é abordada sob o ponto de vista das áreas
protegidas e unidades de conservação, as comunidades seriam uma ameaça. Essa é uma
contradição no discurso, no entanto, o discurso geral acerca da conservação é o mesmo:
a conservação se dá pela valorização dos estilos de vida das populações tradicionais e por
meio da criação de unidades de conservação, para falar de dois modos que são os tratados
nesta tese. No nível da “aplicação” das políticas respectivas o discurso sobre a
conservação vai-se tornando “rarefeito”, para usar uma expressão de Foucault, como uma
forma de “exclusão” (FOUCAULT, 2012, p. 9 e 26) de parte do discurso. As normas têm
signatários e não autores, de acordo com Foucault (FOUCAULT, 2012, p. 26), e há os
discursos tecidos, ditos e enunciados pelo Estado que partem das normas para um público
de administrados, instituições parceiras e internacionais. São discursos que seguem
adiante, envolvendo instituições e seus pesquisadores em narrativas mais localizadas, que
seguiriam bem não fossem as sobreposições na forma como são vistas, portanto, pelo
próprio Estado, sob a incompatibilidade inexplicada e suficiente para seguir com a
remoção das comunidades. As sobreposições deflagram essa contradição discursiva do
Estado quanto à conservação da biodiversidade, mas não fazem o Estado se abalar.

De maneira alguma o discurso multifocado nas instituições do Estado ou a


sua bifurcação são espontâneos, há o controle desses discursos em que a “rarefação” é
uma espécie interna a um princípio de exclusão discursiva, segundo Foucault
(FOUCAULT, 2012, p. 26). Tanto há que a previsão da instituição de um “plano de ação

251
252

para solucionar os conflitos devidos à sobreposição de unidades de conservação, terras


indígenas e de quilombolas”, indicada na Política Nacional da Biodiversidade, instituída
pelo Decreto nº 4.339, em 2002, anterior à constituição das Câmaras de Conciliação e
Arbitragem Federal para os casos acima mencionados, foi ignorada. Essa previsão é
indicada com relevo pelo Ministério Público Federal ― MPF para a orientação dos
membros daquele Ministério no acompanhamento e tratamento dos casos de sobreposição
em subsídio ao posicionamento dos seus membros (MPF ― MINISTÉRIO PÚBLICO
FEDERAL, 2014, p. 20). Para tanto, o MPF compôs o documento “Territórios de Povos
e Comunidades Tradicionais e as Unidades de Conservação de Proteção Integral -
Alternativas para o Asseguramento de Direitos Socioambientais”, publicado em 2014, na
série Manual de Atuação. Acerca dos casos em conciliação na Advocacia Geral da União,
apurou dificuldades como: morosidade na manifestação das instituições envolvidas,
conflitantes; a participação das comunidades que não foi contemplada “nos debates
perante as Câmaras de Conciliação”; e “a ausência de dados seguros sobre o possível
risco de comprometimento da biodiversidade a longo prazo” (MPF ― MINISTÉRIO
PÚBLICO FEDERAL, 2014, p. 21). O MPF apontou no documento, também, “grave
omissão” da União nos impasses que persistiram por tempo além do que fosse razoável e
pelos casos sem conciliação ou arbitragem, para o que o MPF expediu uma recomendação
ao Consultor-Geral da União do prazo de cento e oitenta dias para a promoção da
conciliação ou arbitragem (idem, p. 22). E que, em 2017, os casos não haviam sido
deslindados ou estavam paralisados, como vimos acima.

As situações das sobreposições trazem vários pontos de “contato” entre


Estado e as comunidades tradicionais. “Contato” esse, que como vimos, é permeado por
uma série de instituições, documentos e expedientes. O contato presencial recorrente,
como veremos no capítulo seguinte, também é permeado por documentos, por instituições
e pelo escalonamento hierárquico das instituições governamentais. O que nos dá a
impressão de que as coisas a serem resolvidas são sempre em outra sala, em outra ocasião.
Por outo lado, o poder de decisão desconcentrado das mãos de um é uma segurança. Dito
de outra forma, o poder de decisão, também, não poderá estar naquele em contato diário
com as comunidades para a preservação das próprias comunidades. Essas medidas de
retaguarda, ainda, não poderiam fazer as vezes de se não apresentarem decisões e
resoluções alguma, porque esse é um aspecto de inércia do Estado.

252
253

5. Mosaico da Bocaina: sobreposições de unidades de conservação


entre si e dessas com territórios tradicionais

O mosaico é um território institucional diferente, ele tem a finalidade da


gestão integrada de unidades de conservação e é uma imagem de sobreposição
administrativa, prevista no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da
Natureza―SNUC. A finalidade do mosaico é, justamente, a de compatibilizar as
sobreposições entre unidades de conservação, conforme previsto no SNUC.

O material privilegiado neste capítulo são as atas das reuniões do Conselho


Consultivo do Mosaico da Bocaina ⸻ CCMB, com temas abordados no marco das
unidades de conservação próximas, sobrepostas ou justapostas, como é definido o
mosaico no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC. Há a
participação das comunidades caiçaras, dos povos indígenas e dos quilombolas nas
reuniões do Conselho do Mosaico por conta de seus territórios se encontrarem em relação
de sobreposição com unidades de conservação. Tais comunidades têm assento no
Conselho do Mosaico.

O material foi obtido no sítio próprio do Mosaico da Bocaina, que buscou dar
visibilidade às atividades daquele mosaico que se pretendeu tornar um modelo de gestão
integrada. O Mosaico da Bocaina foi um dos primeiros mosaicos reconhecidos no Brasil.
No sítio em que as atas estão, ou estavam, disponibilizadas se encontram as manifestações
feitas por gestores, por pesquisadores e por comunidades quanto a diversos assuntos,
como por exemplo, as manifestações subscritas pelo Conselho do Mosaico ao processo
de licenciamento ambiental de Angra 3, os estudos sobre agrofloresta, os relatórios e as
atas das reuniões. O material privilegiado são as atas, me reporto a outros documentos
conforme o tema abordado, pois eles ampliam o entendimento dos temas discutidos entre
as comunidades e as instituições gestoras das unidades de conservação. Nas atas, que
anotam as discussões no Conselho do Mosaico, mesmo que de forma resumida ou
parcializada, pois não reportam todas as nuances das discussões, podemos ver o tema da
recategorização em outro lugar sob outra perspectiva e, também, a questão da certificação
da cachaça, que foram assuntos abordados no capítulo 3 desta tese. Nas atas estão as
dúvidas das comunidades quanto aos aspectos das sobreposições, da constituição de
“populações tradicionais” e, com isso, a sua definição. As atas nos permitem uma

253
254

entrevista do “funcionamento” da gestão das sobreposições, inclusive entre unidades de


conservação.

O Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina ⸻ CCMB está inativo e a


análise do conteúdo das atas recobriu o período desde a sua primeira reunião, em 2007
até a última ata constante no sítio do mosaico em 2015. Na passagem de 2018 para 2019,
o sítio foi retirado do acesso ao público, o que confere a esse material, que já era ímpar,
o aspecto de alguma raridade. Até o fechamento desta tese não se conheceu as razões da
retirada do sítio. É possível que as diversas instituições mantenedoras de ações e projetos
do mosaico e dos meios de comunicação para visibilidade e divulgação tenham cessado
o seu apoio, que por vezes eram financeiros ou de disponibilização de técnicos e
pesquisadores envolvidos com os temas diversos mobilizados pelo mosaico. Para o
público que tenha interesse em visitar o sítio, obtive um recurso que ajuda a recuperar
sítios perdidos, cujos registros de captura estão no espaço cibernético160. Durante a minha
pesquisa, eu possuía as atas salvas no formato “pdf” e, na curiosidade de saber se havia
alguma movimentação nova com disponibilização de documentos naquele sítio, já
indisponível e sendo acessado na forma que mencionei há pouco, observei que os
documentos antes ali disponíveis vão se perdendo. Em dado momento estão acessíveis e
dias depois, não; são impossíveis de serem acessados conforme passa o tempo, o sítio está
se ruindo e a cada nova entrada a experiência é estar diante de um palimpsesto. Se este é
um reflexo do desmonte das instituições de pesquisa, como Fiocruz, Universidade Federal
Fluminense e outras cujos pesquisadores participaram em diversos momentos de projetos
e de ações do mosaico, e que tem rebatimento mais amplo nas desejáveis redes que foram
constituídas envolvendo governo, sociedade civil organizada, comunidades tradicionais
e instituições de pesquisa acadêmica, neste momento não há como saber, mas fica o
registro.

A finalidade deste capítulo é a de buscar evidenciar as relações entre


território, comunidade e identidade.

160
Endereço para acesso: https://web.archive.org/web/sitemap/www.bocaina.org.br.

254
255

5.1. Reconhecimento do Mosaico da Bocaina

Os mosaicos, segundo Francisco Brito, se converteram em novas


modalidades de conservação juntamente com os corredores ecológicos, os primeiros
como gestão integrada e os segundos como gestão participativa (BRITO, 2012, pp. 23-
25), ao que acrescento o aspecto de regulamentarem os usos nas áreas que abrangem sem
implicar desapropriações, como dito no capítulo anterior. São uma espécie de
territorialização da gestão dos recursos, em que o envolvimento da população local,
comunidades tradicionais e dos setores interessados (empresas, instituições de pesquisa,
organizações da sociedade civil, etc.), de certo, são o maior desafio na gestão. O fato de
não implicarem desapropriações, garantiria ao órgão ambiental maior desenvoltura, antes
Ibama e depois ICMBio, ambos com sérios problemas constantes de alocação de recursos
humanos e orçamentários por parte do governo.

A gestão dos mosaicos, com as reuniões, com a própria organização do


mosaico (coordenação do conselho, datas de reuniões ordinárias, agendamento de
reuniões e dos seus locais, elaboração de atas, assessoria de comunicação, comunicação
interna e outras atividades que eram inerentes ao seu funcionamento), é uma demanda
sobre funções já desempenhadas pelos servidores, o que, talvez, ajude a explicar a não
expansão do número de mosaicos e de corredores ecológicos161. Outra possibilidade para
não se terem mais criado mosaicos pode ser o fato de ser esse um ato de reconhecimento
por parte da ministra ou do ministro do Ministério do Meio Ambiente—MMA em épocas
em que a pauta ambiental vem sendo ponto de pressão negativa sobre iniciativas de
conservação e preservação.

O Mosaico Capivara-Confusões (Piauí) é, dentre os demais mosaicos criados,


o único a trazer a delimitação de um território para o Corredor Ecológico em sua portaria
de reconhecimento, o que pode indicar um ajuste nos procedimentos com a nova
modalidade de conservação, sendo considerada a delimitação em memorial prescindível
para os demais mosaicos. Reconhecido pelo governo federal por meio da Portaria n° 76,
de 11 de março de 2005, do Ministério do Meio Ambiente—MMA, o Mosaico Capivara-

161
Em grande medida o Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina ⸻ CCMB firmou parcerias com
apoiadores e algumas das funções organizacionais foram desempenhadas por colaboradores de instituições
como a Fiocruz e outras.

255
256

Confusões (Piauí) foi o primeiro Mosaico a ser criado. O objetivo indicado na portaria de
criação desse mosaico é o de...

...integrar a gestão dessas unidades, suas zonas de amortecimento e o


corredor ecológico de que trata o artigo seguinte. (Art. 1º da
Portaria/MMA nº 76/2005)

E o corredor ecológico foi criado...

...conectando o Parque Nacional da Serra da Capivara e o Parque


Nacional da Serra das Confusões, com o fim de assegurar a conservação
e o uso sustentável dos recursos naturais da área do corredor e a efetiva
conservação da diversidade biológica das unidades de conservação
componentes do Mosaico. (Art. 2º da Portaria/MMA nº 76/2005)

A Portaria/MMA nº 76/2005 traz o Memorial Descritivo para o Corredor


Ecológico apontando o perímetro de 390,53 quilômetros para uma área de aproximados
414.565,27 (MMA - Ministério do Meio Ambiente; Portaria/MMA 76, de 11 de março
de 2005, 2005) e abrangeu terras de dez municípios162 entre o Parque Nacional da Serra
das Confusões e Parque Nacional da Serra da Capivara.

O Planejamento Estratégico do Mosaico Central Fluminense — o mosaico foi


reconhecido em 2006, o planejamento data de 2010 — coloca como desejável, dentre os
seus “objetivos estratégicos”, a “conectividade com outros mosaicos” e indica: o Mosaico
Mico-Leão, o Corredor do Muriqui e o Corredor Tinguá-Bocaina (PLANEJAMENTO
ESTRATÉGICO DO MOSAICO CENTRAL FLUMINENSE, 2010, p. 48). Amplia-se,
portanto, a abrangência tanto da gestão quanto de uma ideia de território para um
agrupamento de áreas sensíveis já previamente agrupadas.

A seguir, estão os quatorze mosaicos existentes, criados entre 2005 e 2013.

162
São eles: Caracol, Jurema, Guaribas, Anísio de Abreu, Bonfim do Piauí, São Raimundo Nonato, São
Braz do Piauí, Tamboril do Piauí, Canto do Buriti e Brejo do Piauí (Parágrafo Único, do Art. 2º, da
Portaria/MMA nº 76/2005).

256
257

Figura 26 ― Quadro cronológico da criação de Mosaicos no Brasil:


2005-2013

MOSAICOS RECONHECIDOS: 2005 -2013

03/01/2013
25/08/2011
11/07/2011
17/12/2010
14/12/2010

14/12/2010

17/12/2010
26/11/2010
24/04/2009
11/12/2006

11/12/2006

11/12/2006
08/05/2006
11/03/2005

2010
2006

2006

2006

2006

2009

2010

2010

2010

2010

2011

2011

2013
2005

MOSAICO DO BAIXO RIO NEGRO

MOSAICO MICO-LEÃO-DOURADO
MOSAICO CAPIVARA-

MOSAICO CARIOCA
MOSAICO MATA ATLÂNTINCA
MOSAICO BOCAINA

MOSAICO DO ESPINHAÇO: ALTO

MOSAICO DO EXTREMO SUL DA


MOSAICO DA MANTIQUEIRA

MOSAICO GRANDE SERTÃO

MOSAICO DA FOZ DO RIO DOCE

MOSAICO DA AMAZÔNIA
MOSAICO DO LAGAMAR

MOSAICO DO OESTE DO AMAPA E


JEQUITINHONHA - SERRA DO…
MOSAICOS EM ORDEM DE CRIAÇÃO

CENTRAL FLUMINENSE

VEREDAS-PERUAÇU
CONFUNSÕES

MERIDIONAL

NORTE DO PARÁ
BAHIA
ORGANIZAÇÃO LESLYE URSINI, 2019 - DADOS ICMBIO E MINISTÉRIO DO MEIO
AMBIENTE/2018

Mais tarde, a Portaria nº 482, de 14 de dezembro de 2010, institui os


procedimentos necessários para o reconhecimento dos Mosaicos, cujo itinerário
administrativo é, em resumo, o seguinte: é feita uma proposta de constituição do mosaico,
com a adesão dos Chefes das Unidades de Conservação integrantes e outras áreas
protegidas, contendo a manifestação de outros responsáveis por áreas protegidas; são
juntados ao processo administrativo o ato de criação das unidades de conservação e das
áreas protegidas abrangidas acompanhados de memorial descritivo comprovando seus
respectivos limites (vide artigo 4º da Portaria nº 482/2010). Um ato do ministro ou da
ministra do Ministério do Meio Ambiente cria o mosaico.

O Mosaico da Bocaina foi reconhecido pela Portaria do Ministério do Meio


Ambiente n° 349, de 11 de dezembro de 2006, abrange áreas nos estados do Rio de
Janeiro e de São Paulo e incorporando dez unidades de conservação e áreas protegidas
indicadas na Portaria. Inicialmente, dez unidades de conservação compunham o Mosaico
da Bocaina e depois, seriam dezessete; o assento para povos e comunidades tradicionais

257
258

era apenas um, e este foi ampliado, como se verá mais adiante, para estarem representados
os quatorze territórios tradicionais , conforme o mapa e a lista de unidades de conservação
constantes na “Figura 27 ― Territórios tradicionais, Áreas Protegidas e Unidades de
Conservação abrangidas pelo Mosaico da Bocaina”, na página 259.

Tabela 11 ― Dez Unidades de Conservação e Áreas Protegidas


previstas para comporem o Mosaico da Bocaina na época da sua
criação

Unidades de Conservação da Natureza na formação inicial do Conselho Consultivo do


Mosaico da Bocaina (Portaria/MMA nº 349/2006)
Estado do Rio de Janeiro
a) sob a gestão do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis-Ibama
1. Parque Nacional da Serra da Bocaina
2. Estação Ecológica Tamoios
3. Área de Proteção Ambiental Cairuçu
b) sob a gestão da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente da Secretaria
Estadual do Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano do Estado do Rio de Janeiro-
FEEMA/SEMADUR
1. Área de Proteção Ambiental de Tamoios
2. Reserva Biológica da Praia do Sul
3. Parque Estadual Marinho do Aventureiro
c) sob a gestão da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Pesca e Agricultura da Prefeitura
Municipal de Parati
1. Área de Proteção Ambiental Baia de Parati, Parati-Mirim e Saco do Mamanguá
II - Estado de São Paulo
a) sob a gestão do Instituto Florestal da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São
Paulo-IF/SMA
1. Parque Estadual da Serra do Mar (Núcleos Picinguaba, Cunha e Santa Virgínia)
2. Parque Estadual Ilha Anchieta
3. Estação Ecológica do Bananal

258
259

Figura 27 ― Territórios tradicionais, Áreas Protegidas e Unidades de Conservação abrangidas pelo Mosaico da Bocaina

259
260

O Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina ⸻ CCMB é criado na mesma


Portaria n° 349/MMA/2006 que criou o Mosaico da Bocaina, conforme previsto no Decreto
nº 4.340/2002. Conselhos podem ser consultivos, normativos ou deliberativos. Lembro que,
na formulação da Lei do SNUC, a previsão para os conselhos dos mosaicos era a de que
fossem deliberativos e a Lei foi promulgada constando a previsão de conselho consultivo.
São vinte e sete reuniões anotadas em atas, cada reunião realizada em uma sede das unidades
de conservação, na mais da vez, ou de associação da sociedade civil participante do
Conselho sendo esta de comunidade tradicional ou não. Quanto ao número de pessoas nas
reuniões, quinze era considerado um número baixo pelos próprios participantes163, entre
chefes e gestores de núcleos das unidades de conservação e áreas protegidas, representantes
dos povos e comunidades tradicionais, este e outros setores com assento no Conselho.

5.2. Composição do Conselho Consultivo do Mosaico da


Bocaina

Inicialmente, na portaria de criação do Mosaico da Bocaina, em 2006, havia um


único assento para uma única pessoa que representasse indígenas, quilombola e pescadores
artesanais, conforme apresentado na “Tabela 12 ― Assentos previstos na portaria de criação
do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina” na página 262. As primeiras reuniões do
Conselho do Mosaico da Bocaina ― a partir da primeira, ocorrida em 12 de fevereiro de
2007, no Núcleo Picinguaba do Parque Estadual da Serra do Mar, em Ubatuba, Estado de
São Paulo ― se prestaram a compor o Conselho, ao repasse de informes e à organização da
representação no Conselho, em que as comunidades tradicionais buscaram ampliar sua
representação e ajustá-la às suas especificidades. E desde logo se observa que o Mosaico é
uma instância de diálogo e que não resolverá questões relacionadas às sobreposições entre
unidades de conservação e territórios tradicionais, como, por exemplo, no endereçamento
das reivindicações das comunidades às unidades de conservação a elas relacionadas, como
uma espécie de jurisdição:

Vagner, representante da Associação dos Moradores do Campinho da


Independência protestou contra a ausência das comunidades nas
discussões do mosaico. Em resposta, Eliane Simões [Fundação Florestal]

163
Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata de 17/10/2007.
260
261

explicou que o momento de definição dos integrantes do Conselho Mosaico


é justamente este, mas realçou que esta participação e representação deve
ser discutida no conselho da respectiva UC’s onde a comunidade está
inserida. Marcelo Pessanha164 também explicou que várias UC’s não têm
conselhos gestores ou mesmo possuem conselhos gestores deficitários,
enquanto participação de todas as comunidades. Ronaldo, do Quilombo do
Campinho, questionou sobre o estabelecimento da Portaria, sem a
participação destas comunidades, afirmando que as comunidades precisam
ter todas as notícias. Marcelo Pessanha respondeu que o Regimento
Interno a ser aprovado pelos presentes será encaminhado para fazer parte
da portaria165. (ATA Reunião do Conselho Gestor do Mosaico Bocaina de 20
de Março 2007, ocorrida na Associação Cairuçu – Paraty, RJ)

Mais adiante se verá que as propostas de representação poderiam ser


encaminhadas diretamente ao Mosaico. Era uma época de ajustes. Dentre os ajustes para a
composição e assentos no Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina, havia a dúvida de
como se daria a representação e o cacique da Terra Indígena Renascer “questionou sobre
como se dará sua representatividade”, sendo ele informado pela coordenação do Conselho
Consultivo do Mosaico da Bocaina “que cada Terra Indígena equivale a uma Unidade de
Conservação, sendo seu cacique equiparável ao gestor de uma UC’s”. O senhor Altino,
indígena, questionou para “quem eles encaminharão suas propostas”, obtendo como
resposta que “as próprias comunidades indígenas escolherão seus representantes e
encaminharão suas propostas diretamente ao próprio Conselho do Mosaico”. Guadalupe, da
associação caiçara Caxadaço e Paulo Nogara, representante da Associação de moradores e
amigos de Mamanguá ― AMAM propuseram que “a denominação ‘pescadores
artesanais’”, constante na Portaria que criara o Mosaico da Bocaina, fosse alterada para
“caiçaras”, o que foi assentido pelos presentes.

No que se refere ao item das comunidades tradicionais, foi acordado pelos


presentes que cada categoria “caiçaras, quilombolas e indígenas” deveria ter um
representante de cada estado que as unidades de conservação abrangessem. Os ajustes
naquela ocasião, diziam respeito, também, à conformação das representações das unidades
de conservação. Nesse sentido, Eliane Simões, do Parque Estadual da Serra do Mar,
explicou que os três núcleos do Parque Estadual da Serra do Mar (Cunha, Picinguaba e Santa

164
Gestor da APA de Cairuçu e Coordenador do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina até 2008, depois
foi transferido para outra unidade de conservação.
165
O que significa que demais disposições poderiam constar no Regimento Interno .

261
262

Virgínia) haviam sido unificados na representação do Conselho, porém, são os núcleos que
possuem realidades distintas, sendo necessária uma revisão para uma representação por
núcleo. Quanto à Reserva Ecológica Estadual da Juatinga – REEJ, que não é categoria de
unidade de conservação no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da
Natureza―SNUC, mas é uma Área Protegida, foi solicitada, pelo seu gestor, René Duquet,
a sua inclusão. Também, o Parque Estadual da Ilha Grande foi incluído. Em dado momento
da reunião, René Duquet, do IEF/RJ e administrador da REEJ, “expôs sua preocupação
quanto ao crescimento do número de vagas dentro do grupo do Mosaico” e Marcelo
Pessanha explicou que “como as alterações haviam sido feitas na presença dos presentes,
não haveria condições de rever os assuntos já acordados”, também, porque “as alterações
realizadas no regimento interno são cabíveis, bem como o pequeno aumento de vagas”.
Nessa reunião do Mosaico da Bocaina de 20 de março de 2007, a primeira após a reunião
inicial de posse, ocorrida em 12 de fevereiro de 2007, se abordou a criação de câmaras
temáticas para se discutirem os assuntos de cada segmento.

A composição do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina se amplia, tanto


para a representação de comunidades tradicionais quanto para unidades de conservação e
outros setores. Em 2015, são quatorze assentos, entre titulares e suplentes.

Tabela 12 ― Assentos previstos na portaria de criação do Conselho


Consultivo do Mosaico da Bocaina

Representação no Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina inicial, conforme na Portaria/MMA n º


349/2006
I - representação governamental
a) os chefes, administradores ou gestores das unidades de conservação abrangidos pelo Mosaico
Bocaina
b) um representante da Superintendência do Ibama no Estado do Rio de Janeiro
c) um representante da Superintendência do Ibama no Estado de São Paulo
d) um representante do IF/SMA do Estado de São Paulo
e) um representante da FEEMA/SEMADUR do Estado do Rio de Janeiro
f) um representante do Comitê da Bacia Hidrográfica do Estado de São Paulo, de municípios inseridos
no Mosaico Bocaina
g) um representante de uma estatal que atue na região do Mosaico Bocaina, indicado pela maioria do
Conselho.
II - representação da sociedade civil
a) um para cada unidade de conservação, indicado pelo seu Conselho Consultivo ou pelo gestor da
unidade, quando não houver conselho
b) três representantes de entidades do setor turístico/cultural, preferencialmente um por região,
indicado no caput do art. 1º desta Portaria [A. do Paraíba, Litoral Sul do Estado do Rio de Janeiro e Litoral
Norte do Estado de São Paulo]
c) um representante das comunidades tradicionais, pescadores artesanais, quilombos, povos
indígenas
d) um representante do setor empresarial
e) um representante do setor agrossilvopastoril

262
263

Tabela 13 — Povos e Comunidades Tradicionais na composição do


Conselho Consultivo do Mosaico Bocaina, 2015

Para uma visão completa da composição do Conselho Consultivo do Mosaico


da Bocaina, ver o “ANEXO 4 ― Composição do Mosaico da Bocaina, 2015”.

O sentido do mosaico vai se conformando na prática das reuniões como um


espaço de circulação de informações sobre acontecimentos nas unidades de conservação,
questões relacionadas às comunidades, apresentações de projetos e de estudos de outras
instituições, acompanhamento de processos de licenciamento ambiental, propostas de
resoluções de gestão das unidades de conservação sobrepostas entre si, formas de apoio às
comunidades, dentre outros aspectos. Boa parte do trabalho dos envolvidos no Conselho
Consultivo do Mosaico da Bocaina se concentra na organização das reuniões seguintes e na
distribuição de tarefas entre os participantes, conforme constam nas atas do Conselho. No
começo, a finalidade e os objetivos de um mosaico não eram auto evidentes para os
participantes do Conselho e mesmo as suas funções que, embora indicadas na portaria que
o havia criado, como segue em trechos da segunda reunião do Conselho:

Graziela, da APA de Cairuçu, citou que não se trata de uma nova UC que foi
criada [com o Mosaico da Bocaina], mas sim da junção de várias UC’s para
facilitar a gestão das mesmas. Vagner, do Campinho, ressaltou que várias
263
264

comunidades não sabem para que é que existe cada UC, nem o que é APA
ou mesmo Mosaico. Marcelo Pessanha, citou que acaba de receber o apoio
de um grupo de técnicos do Ibama, especializados em educação ambiental,
justamente para realizar estes esclarecimentos junto às comunidades.
Marco Antonio, secretário de Pesca e Meio Ambiente de Paraty, esclareceu
que a postura dos órgãos ambientais que compõem o Mosaico, tem sido
positiva no sentido de estabelecer parcerias com as comunidades e não
somente fiscalização. Eliane Simões ressaltou que o Conselho do Mosaico
pode ser um espaço para integrar ideias – e também ajudar a organizar
setores que não estão tão organizados quanto os quilombolas. (...) Rafael,
da SAPE, explanou sobre a questão de concepção do Mosaico, onde não
adianta falar em gestão participativa quando a prática é excludente.
Questionou sobre a incorporação de algumas associações sem terem
passado pela votação nos referidos conselhos de suas UC’s. Ressaltou
também a importância de uma participação maior das prefeituras no
conselho. Marcelo Pessanha, respondeu que houve indicações
temporárias, uma vez que algumas UC’s não têm seu conselho
gestor/consultivo funcionando. Estas indicações serão revistas durante as
reuniões e passarão por votação interna. (Conselho Consultivo do Mosaico
da Bocaina - Ata da reunião de 20/03/2007; 2ª reunião)

Leonardo Rocha [Ibama/RJ] destacou que ainda não temos experiência em


atuação com o Mosaico, portanto desenvolver ações integradas é
extremamente importante e estimula a gestão deste grande território
através de diretrizes unificadas. (Conselho Consultivo do Mosaico da
Bocaina - Ata da reunião de 16-17/10/2007)

5.3. Sobreposições entre unidades de conservação

Dentre as competências do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina estão:


a compatibilização e a integração das atividades desenvolvidas em cada unidades de
conservação quanto aos usos das fronteiras, ao acesso às unidades, à fiscalização, ao plano
de manejo, à pesquisa científica, à alocação dos recursos advindos da compensação
ambiental e quanto à manifestação acerca das “propostas de solução para a sobreposição de
unidades” (art. 4º da Portaria/MMA nº 349/2009).

Na quinta reunião do Conselho, é apontada a questão da sobreposição entre o


Parque Nacional da Serra da Bocaina e o Parque Estadual da Serra do Mar, com a
“necessidade de gestão integrada na porção sobreposta que envolve as comunidades
tradicionais”, que são: a (1) comunidade quilombola de Camburi, em que “60% do bairro é
quilombola” e a (2) comunidade caiçara de Ubatumirim, ambas em Ubatuba, no Estado de
São Paulo, próximas à divisa com o Estado do Rio de Janeiro, onde os dois parques se
264
265

sobrepunham. A questão da sobreposição é a de que o Plano de Manejo do Parque Nacional


da Serra da Bocaina “não reconhece a presença de moradores” no seu interior ao passo que
no Plano de Manejo do Parque Nacional da Serra do Mar há a Zona Histórica Cultural
Antropológica...

...com direito à permanência e desenvolvimento de atividades sustentáveis


(novas moradias, ampliações e reformas de edificações já existentes;
instalação de energia elétrica e saneamento; licenciamento de roças e de
extrativismo vegetal, mediante plano de manejo de espécies, entre outros).
(Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata da reunião da reunião de
16-17/10/2007, 5ª reunião)

Um Termo de Uso Tradicional, elaborado no escopo do Conselho Consultivo


do Núcleo de Picinguaba do Parque Estadual da Serra do Mar, foi assinado pelo diretor do
Parque Nacional da Serra da Bocaina relacionado à comunidade de Camburi e de
Ubatumirim, porém o Ibama166 não reconheceu o documento. A gestora do Núcleo
Picinguaba do Parque Estadual da Serra do Mar, quem relatou o ocorrido, disse ser preciso
que o Plano de Manejo do parque estadual fosse revisto e que delegasse a gestão da porção
sobreposta para a Fundação Florestal do Estado de São Paulo, órgão gestor do Parque
Estadual da Serra do Mar, por meio daquele Núcleo. Nessa mesma reunião, que durou dois
dias, entre 16 e 17 de outubro de 2007, foram relatadas as situações de sobreposição entre
as próprias unidades de conservação, o que dificultava a gestão dos chefes das respectivas
unidades. Foram relacionados três blocos de sobreposições: as sobreposições (1) entre a
APA de Cairuçu, a APA de Paraty Mirim, a ESEC Tamoios, o Parque Nacional da Serra da
Bocaina e a Reserva Ecológica Estadual da Juatinga, esta última, à época, em
recategorização para Parque Estadual; (2) entre a APA Tamoios, a ESEC Tamoios, o Parque
Estadual da Ilha Grande, a Reserva Biológica Praia do Sul, o Parque Municipal de
Aventureiro, este bloco na porção litoral norte de Paraty e Angra dos Reis; além da já
mencionada (3) sobreposição entre o Parque Nacional da Serra da Bocaina e o Parque
Estadual da Serra do Mar.

Uma solução local entre instituições, mesmo “caseira”, e que contemplasse o


Plano Diretor do Município de Angra dos Reis, mesmo que provisória, para viabilizar a
gestão é sugerida para o bloco de sobreposições “2”; a situação relatada para o bloco “1”

166
A reunião aconteceu em outubro e relata um fato passado; o ICMBio, que assumiu a gestão do Sistema
Nacional de Unidades de Conservação da Natureza―SNUC, foi criado depois, em 28 de outubro de 2007.
265
266

estava, à época, no aguardo da decisão acerca da recategorização da Reserva Ecológica


Estadual da Juatinga ⸻ REEJ com o posicionamento das comunidades; que, como vimos
antes, nesta tese, se emudeceu e, em 2018, um novo Plano de Manejo da APA de Cairuçu
(instância federal) foi apresentado desconsiderando as propostas anteriores feitas pelo
Estado do Rio de Janeiro para a REEJ, reinaugurando, assim, novas aproximações com as
comunidades caiçaras no marco da APA de Cairuçu.

Para a criação do Parque Estadual de Cunhambebe, em Mangaratiba, Alba


Simon, Diretora de Conservação do Instituto Florestal do Rio de Janeiro ― IEF167, contou
em reunião do Conselho do Mosaico da Bocaina que a unidade de conservação recém-
criada168 nasceu de diversos estudos e “não sob pressão relacionada a algum impacto
ambiental em curso, como normalmente ocorre”, a unidade de conservação foi criada em
“área manejada como bananal, historicamente pela comunidade local” e o parque é um elo
entre os mosaicos Fluminense o da Bocaina.

Observo, como dito antes, que a relação entre mosaico e corredor ecológico se
permutam e por vezes é uma questão de escala, pois, conforme foi informado nessa mesma
reunião, no relato da criação da nova unidade de conservação (a de Cunhambebe), aparece
a figura do corredor ecológico, dessa vez, “protegido” por unidades de conservação: “O
Corredor de Biodiversidade Tinguá–Bocaina já havia trabalhado na criação de UC’s entre
as duas áreas [os dois mosaicos], afim de proteger o corredor”. Transparecendo a função
maleável do corredor ecológico, cujas funções expressas no SNUC e no Decreto nº
4.340/2002 são a de conectar unidades de conservação e de fazer as vezes de zona de
amortecimento na ausência destas.

Ainda acerca de Cunhambebe, naquela mesma reunião do Conselho do Mosaico


da Bocaina, entre 16 e 17 de outubro de 2007, foi relatado que o gestor do Parque Nacional
da Serra da Bocaina havia sido convidado para conversar e se evitar a sobreposição,
entretanto contratempos dificultaram a sua participação no processo, conforme anotado na
ata. O senhor Livino, Chefe do Parque Nacional da Serra da Bocaina ⸻ PNSB, pondera
sobre a ampliação do PNSB, pois, segundo ele, “há trechos em que os limites são
imprecisos” e que, “embora seja interessante ampliar trechos para unir-se ao Parque
Estadual Cunhambebe, talvez seja mais interessante garantir áreas efetivamente protegíveis

Depois passou a ser o Instituto Estadual do Ambiente ― Inea.


167
168
Por meio do Decreto Estadual nº 41.358, de 13 de junho de 2008, com 38 mil hectares, envolvendo os
municípios de Mangaratiba, Angra dos Reis, Itaguaí e Rio Claro.
266
267

ao invés de novas inserções de populações moradoras”. Livino lembra que para alterar os
limites de uma unidade de conservação, uma lei deveria tramitar no Congresso Nacional o
que “é algo muito complexo, com pouca governabilidade e, portanto, muitos riscos”
(Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata da reunião de 2 de julho de 2008,
realizada na ESEC Tamoios).

O Parque Estadual de Cunhambebe, recém-criado, é abordado na reunião de


julho de 2008 e Rafael, representante da organização não governamental Sapê, comenta o
processo de criação do parque e, conforme consta em ata, “reforçando que não se opõe a ela
[à criação da unidade de conservação] mas sim, questiona o processo, que não incorpora os
parceiros e organismos de gestão já existentes na região”. Também, a representante da
Coordenação Regional do ICMBio, Sylvia Chada, “lembra que Conselho do Mosaico, em
funcionamento desde o início de 2007, não foi envolvido no processo [de criação do PE de
Cunhabebe]. Soube depois que o decreto já havia sido aprovado. Não é contra também à
criação mas sim, ao processo”; Mônica Nemer, representante o Movimento Verde ―
MOVE, “pergunta sobre trecho que entende que deveria ter sido incluído, com presença de
manguezal”, ao que responde Alba, Diretora no Instituto Estadual do Ambiente ⸻ Inea
(RJ), instituição que criara o parque, a qual “entende que se tratou do aproveitamento de
uma conjuntura propícia, de um trabalho em curso. A ideia era no sentido de chamar
parceiros e não de boicotar participação” (Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina -
Ata da reunião de 2 de julho de 2008).

Depreende-se das discussões reproduzidas, acima, que os gestores são ciosos


das unidades de conservação que gerem ⸻ o que não poderia ser muito diferente, pois são
sua responsabilidade ⸻ e a criação de novas unidades de conservação, no caso a de
Cunhambebe, em uma territorialização como a do Mosaico da Bocaina, era desconhecida
até que se apresentasse ao Mosaico já criada. Por fim, a nova unidade de conservação
integrará o Mosaico e por conta da proximidade da instalação da Usina Termonuclear de
Angra 3, Cunhambebe constará no rol de unidades de conservação para o recebimento da
compensação ambiental, conforme prevê a Lei do SNUC.

Em 28 de maio de 2015, na 32ª Reunião Ordinária do agora chamado Mosaico


da Bocaina de Áreas Protegidas (com maior abrangência do que “unidades de conservação),
acontecida no Centro de Visitantes do Núcleo Picinguaba do Parque Estadual da Serra do
Mar, o curso da pauta, que estava em andamento na reunião, foi interrompida por
intervenção dos agricultores do Sertão de Ubatumirim por causa de o Chefe do Parque

267
268

Nacional da Serra da Bocaina, Francisco Livino, ter saído da reunião, “com o qual
esperavam poder debater a recente ação de fiscalização que o Parque Nacional realizou no
Sertão de Ubatumirim, o que acarretou em autos de infração e multas para alguns
agricultores”. Foram apresentadas manifestações de diversos agricultores acerca dos
“conflitos que vêm ocorrendo com o Parque Nacional da Serra da Bocaina, destacando a
falta de diálogo e de abertura por parte do gestor [do PNSB] em relação à situação dos
comunitários e segue um intenso debate sobre esse assunto”, conforme anotado na ata da
reunião. Felipe Spina, consultor do Projeto da Baía da Ilha Grande-FAO, explica que
Francisco havia dito que tinha compromisso. Diz Felipe, conforme anotado na memória da
reunião, que “a questão colocada [pela comunidade] é legitima e deve ser debatida mas que
não é no âmbito do Conselho do Mosaico que ela será resolvida”, que o mosaico tem o seu
papel na busca do diálogo entre comunidades tradicionais e unidades de conservação “mas
que questões pontuais e jurídicas como essa deveriam por exemplo serem debatidas no
grupo de negociação”, a ser criado pelo Ministério Público, como um efeito do Encontro de
Justiça Socioambiental da Bocaina. E, na sequência da memória daquela reunião, é também
anotado que...

Vagner do Nascimento (AMOQC e membro da Coordenação Colegiada do


Mosaico Bocaina) faz uma fala resgatando o histórico dos conflitos das
Comunidades Tradicionais com as Unidades de Conservação em especial, o
Parque Nacional da Serra da Bocaina, que são em parte decorrentes do
processo histórico que ocorreu em nosso país. (Conselho Consultivo do
Mosaico da Bocaina - Ata da reunião de 28 de maio de 2015)

Porém, sem que os conflitos resgatados por Vagner fossem, também, anotados
na memória da reunião. É informado que Vagner prosseguiu sua fala dizendo que os
conflitos já foram assunto de diversas reuniões, que o mosaico “vem tentando contribuir
para um diálogo entre as Unidades de Conservação e as Comunidades Tradicionais”,
lembrou que foi feita “uma carta de apoio às comunidades pedindo diálogo em relação a
uma série de conflitos que ocorrem no território”. Com essa postura diplomática de Vagner,
a redação da memória da reunião anotou que Vagner “finalizou destacando o papel das
Comunidades Tradicionais na preservação da natureza” e que estava “ansioso pelo início
dos trabalhos do grupo de negociação proposto pelo Ministério Público”. Acerca dos
conflitos, Danilo Santos, da Fundação Florestal/Parque Estadual da Serra do Mar, gestor do

268
269

Núcleo Picinguaba169― “destaca que a questão é reflexo de falta de diálogo institucional


entre os órgãos gestores que se sobrepõem na região”; ressaltou que a “abordagem da
Fundação Florestal (SP) nos últimos anos tem sido no sentido de se construir acordos e
mecanismos para a convivência harmônica entre o Parque e a Comunidade” e, por fim,
informou que a Fundação Florestal não havia sido previamente informada da ação de
fiscalização do ICMBio e que “é urgente que as instituições dialoguem mais e busquem
alinhar suas visões e ações” (Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata da reunião
de 28 de maio de 2015).

5.3.1. Recategorização da Reserva Ecológica Estadual da


Juatinga ― REEJ

Mesmo após o SNUC não ter reconhecido “Reserva Ecológica” como categoria
de unidade de conservação, em 2000, a Reserva Ecológica Estadual da Juatinga, aquela área
protegida não deixou de existir, informa o gestor René Duque, apesar da polêmica, segundo
ele, com a criação da Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ― REEJ classificada como
proteção integral, ou seja, com restrição à presença e à permanência humana, “em uma área
onde já habitavam 1.100” pessoas. O gestor da REEJ, René Duquet, fala, aqui, em um
período anterior à consulta para a recategorização da Reserva Ecológica Estadual da
Juatinga, que abordei no capítulo 3. Diz o gestor da REEJ que “existe também a questão da
elaboração de um Termo de Referência pelo próprio IEF (que depois se tornou o Inea,
instituição do governo do Estado do Rio de Janeiro), sem o conhecimento da gestão daquela
REEJ, prevendo a recategorização para incluir Paraty-Mirim na área da RESEC [o mesmo
que Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ⸻ REEJ]”; e que “devido à ameaça de
recategorização”, o Conselho da REEJ está desarticulado. O gestor da REEJ, dessa forma
isolado do diálogo com o Estado do Rio de Janeiro ao qual está vinculada a REEJ, pede “o
apoio das UC’s mais próximas para um posicionamento unificado sobre esta questão” e
informa, que, além, disso, possui vários conflitos fundiários na REEJ. E (continua relatado
na ata:) “na sua opinião a UC é também um instrumento legal sobreposto, já que
geograficamente 95 % da área total da UC ser em Área de Preservação Permanente”, se
reverendo à APA de Cairuçu (Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata da reunião
de 16 e 17 de outubro de 2007).

169
Lembrando que o núcleo se encontra em sobreposição com o Parque Nacional da Serra da Bocaina.
269
270

Quatro anos depois, na seção de informes ― de praxe no início das reuniões do


Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina ― na Ata Reunião do Conselho Gestor do
Mosaico Bocaina do dia 29 de setembro de 2011, foram relatados os assuntos tratados em
reunião ocorrida anteriormente, no dia 22 de julho de 2011, no âmbito da reunião da Câmara
Temática de UC’s e Populações Tradicionais, acerca da recategorização da REEJ, ainda em
curso e sem desfecho. Na ocasião da reunião da Câmara Temática, em julho de 2011, foi
apresentado, por Ana Cecília, o estudo da recategorização da Reserva Ecológica Estadual
da Juatinga elaborado pelo Instituto Igara em reunião com aproximadas setenta pessoas
dentre as quais mais de 40 eram das comunidades tradicionais abrangidas pelas REEJ e
organizações não governamentais que têm trabalhos naquela reserva; estava presente,
também, o colegiado do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina. Uma avaliação
acerca do processo de recategorização foi apresentada, pelos presentes, naquela reunião do
Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina de 29 de setembro de 2011, e tal avaliação
identificou que o estudo da recategorização havia sido prejudicado pelo pouco tempo em
que foi realizado (sete meses) e que os trabalhos foram feitos em meses de alta temporada,
em meio à agitação do turismo na região, o que ocupava os comunitários. Vagner,
quilombola representante da AMOQC e coordenador da Câmara Temática de UC’s e
Populações Tradicionais170, reportou que “as comunidades precisam se apropriar mais desse
debate (entender as categorias, qual seria o papel deles nesses tipos de categorias...)” e que
“outras áreas precisam ser discutidas e incluídas no estudo, como a Área Estadual de Lazer
de Paraty-Mirim, a Aldeia Indígena de Paraty-Mirim, Patrimônio, Pedra Azul e etc.” e, por
fim, Vagner indicou que “acha importante a continuidade da discussão antes que se feche o
processo [de recategorização]”, que é necessário “estreitar as relações entre o Inea
[responsável pela REEJ e proponente da recategorização] e as comunidades, planejar
agendas e construir cronogramas juntos”. Lembremo-nos que esse debate se passa
aproximadamente sete anos antes da elaboração do Plano de Manejo da APA de Cairuçu,
em 2018, em relação de sobreposição com a REEJ, e que desconsiderou a REEJ naquele
plano de manejo. Rodrigo, gestor da REEJ na data dessa reunião do Conselho do Mosaico
da Bocaina, em 2011, informa entender e concordar com os demais que “o prazo do estudo
realmente não foi o mais adequado, concorda com o Vaguinho [Vagner, quilombola] que o
estudo no período de temporada complicou, porém é um estudo legítimo e deve ser
considerado”, lembrando “que o projeto foi estendido por mais 2 meses e que em hipótese
alguma a equipe de consultoria foi contratada para negociar e sim produzir um estudo

170
Em dado momento mudaram o nome substituindo “UC’s” por “Áreas Protegidas”.
270
271

técnico de subsídio”. Rodrigo fala que “este estudo não é o único subsídio, existem ainda as
análises técnicas e jurídicas do Inea” e que as reivindicações e sugestões feitas no dia da
reunião na Câmara Técnica de UC’s e Populações Tradicionais “foram inseridas no estudo,
como por exemplo, a questão de inserir Martim de Sá e etc.” e informa que “o estudo entrou
em fase de análise técnica e jurídica”. Diz Rodrigo Rocha Barros, gestor da REEJ, que após
tais análises serem concluídas, os próximos passos serão as devolutivas do estudo, as
consultas públicas e que a reunião da Câmara Técnica “não substitui as consultas públicas
que serão feitas pelo Inea e nem os processos de negociações com a Prefeitura de Paraty.
Ele diz que o processo está no início” (Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata
da reunião de 29 de setembro de 2011).

Continuando na descrição das manifestações acerca da recategorização da


Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ⸻ REEJ, Leila, representante da comunidade
caiçara da Praia do Sono, uma das quais abrangidas pela REEJ, “acrescentou que muitas
pessoas [nas comunidades] não entendem a importância do que está acontecendo” e que está
preocupada “com os grandes empreendimentos na região” ao questionar “o porquê de
Martim de Sá não estar inserido no processo, por que só essas duas possibilidades de
categorias (Parque e RDS), por que não pode ser APA”. Leila aponta, ainda, a necessidade
de serem feitos mais informativos para as comunidades; “reivindica que não tirem as
pessoas que nasceram ali e que para isso também [essas pessoas] precisam de garantias”;
diz que a reunião de apresentação do estudo sobre a recategorização [da REEJ] foi boa,
“porém, tem certeza que muita gente saiu dali sem saber o que estava acontecendo”. Ticote,
da comunidade do Pouso da Cajaíba, a respeito das regularizações da permanência das
comunidades na Juatinga, “fala do pavor que as comunidades têm do Instituto Estadual do
Ambiente - Inea171 por conta disso e que por isso a comunidade fica receosa quando se
começa agora um processo participativo desse”; faz a ressalva de que “com o gestor atual
Rodrigo, está tendo essa oportunidade de conversa, mas que existe a mudança de gestão e
com ela muda-se tudo”; a preocupação de Ticote é sob quais formas “a comunidade terá
garantias desse processo” e exemplifica com o “posto de saúde que foi embargado e que
tem casas que não foram embargadas”; pede, conforme anotado na ata, “que os órgãos
cuidem da comunidade sempre, para a comunidade saber o papel dela, ter as informações e

171
Observação nesta tese e não no original transcrito: por conta de experiências ruins pregressas com a gestão
da REEJ, que era feita pelo Instituto Florestal do Rio de Janeiro ― IEF, antes de mudar o nome para Instituto
Estadual do Ambiente - Inea.
271
272

etc.” (Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata da reunião de 29 de setembro de


2011).

Rodrigo, que era o novo gestor da Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ―


REEJ, em 2011, e também coordenador colegiado do Conselho Consultivo do Mosaico da
Bocaina, conta que outras obras foram embargadas e que “o embargo não tem a ver com a
recategorização”, pois “o posto de saúde é uma obra pública impactante que foi iniciada
sem licença devida do órgão licenciador” e que, “sem licença o Inea tem que cumprir a lei”
e, ainda, que “a comunidade deve ter orgulho do órgão que está exercendo o seu papel e
solicitar à prefeitura que regularize as suas obras e que faça consulta prévia ao órgão antes
de construir”. Com essa fala do gestor Rodrigo, o comunitário “Ticote sugere que o órgão
vá até a comunidade e explique o que realmente está acontecendo” (Conselho Consultivo
do Mosaico da Bocaina - Ata da reunião de 29 de setembro de 2011).

A praia de Martin de Sá é questão constante nos debates sobre a Reserva


Ecológica Estadual da Juatinga ⸻ REEJ. Nos informes da reunião do Conselho Consultivo
do Mosaico da Bocaina, de 27 de junho de 2012, foi relatado por Vagner, do Quilombo
Campinho da Independência, que a mobilização feita por diversas entidades da sociedade
civil surtiu efeito “como instrumento de pressão para o julgamento, no Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro, de ação sobre a propriedade de terras na praia de Martins de Sá que
resultou em decisão favorável às famílias ali assentadas há várias gerações”. No entanto, os
impasses não cessaram quanto a Martin de Sá.

Com relação à Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ⸻ REEJ, quanto à


campanha de final de ano e à pesquisa conjunta da APA de Cairuçu, REEJ e Associação
Cairuçu, uma membra de comunidade caiçara conta que equipes de monitores chegaram à
Praia do Sono fazendo perguntas e entregando folhetos, o que foi comentado por Leila,
caiçara do Sono, e por Vaguinho, do quilombo Campinho, “que a forma como aconteceu
essas operações não foi discutida com as comunidades”, além disso, “os moradores não
gostaram de como foi realizado o trabalho, se sentiram mal e não contrataram pessoas da
comunidade para trabalharem”. Ainda, com relação à Juatinga, é perguntado na sobre a
venda de Martim de Sá e Iliana, da APA de Cairuçu, informa que há tempos a fazenda
Martim de Sá está à venda e que há um site que a anuncia com a extensão desde a Ponta
Negra. É externalizado naquela reunião que “mesmo que seja feita a compra e o novo
‘proprietário’ não possa edificar, a preocupação sempre é a expulsão das famílias das

272
273

comunidades pelo ‘comprador’”. (Ata da Reunião da Câmara Temática de Populações


Tradicionais do Mosaico da Bocaina, de 3 de maio de 2013, no Quilombo do Campinho)172.

Uma diferença fundamental entre a recategorização da REEJ para parque


estadual ou permanecer como APA é que o parque procede à desapropriação de
proprietários que sejam incidentes na área do parque e a APA continuará a lidar com as
vendas de áreas entre particulares, inclusive de áreas das comunidades tradicionais.

Um outro caso de recategorização se passa na Reserva Biológica do


Aventureiro. A permanência das populações nativas residentes em unidades de conservação
foi assegurada pela Lei estadual-RJ nº 2.393/1995 e esta foi questionada pelo ICMBio tendo
em vista o SNUC, instituído em 2000, segundo Alba Simon, representante do Instituto
Florestal do Rio de Janeiro ― IEF, atual Instituto Estadual do Ambiente ― Inea. A Diretora
de Conservação no Inea fez uma apresentação na reunião do Conselho em 2 de julho de
2008 sobre as ações daquele Instituto informando que foi provocada a Universidade Federal
Fluminense para a elaboração da regulamentação daquela lei, sendo criado um grupo de
pesquisa com sociólogos, antropólogos, advogados, biólogos e geólogos na formulação de
um decreto. Já a exclusão da comunidade da Reserva Biológica do Aventureiro, uma
unidade de conservação de proteção integral estadual, estava sendo debatida, à época, pelo
Grupo de Trabalho Aventureiro, instituído pela Resolução SEA nº 57, de 9 de abril de 2008,
com a finalidade de propor a desafetação e a criação de uma unidade de conservação de uso
sustentável em proveito das comunidades.

5.3.2. O Mosaico da Bocaina e outros projetos


envolvendo as unidades de conservação abrangidas por ele

As situações de sobreposições entre unidades de conservação inserem o


Mosaico da Bocaina em outros projetos relacionados a unidades de conservação específicas,
como o Projeto Gestão Integrada dos Ecossistemas da Baía da Ilha Grande
(GEF/Inea/FAO), que contempla o Mosaico da Bocaina em um dos seus componentes, o
“Componente Biodiversidade e Conservação”, que é um dos quatro componentes do
projeto. O projeto foi apresentado na reunião do Conselho Consultivo do Mosaico da
Bocaina ⸻ CCMB, de 29 de abril de 2011, por Ricardo Voivodic, do Instituto Estadual do

172
Dentre os documentos disponibilizados pelo Mosaico da Bocaina, há documentos produzidos pela Câmara
Temática de unidade de conservação e Populações Tradicionais.
273
274

Ambiente ― Inea. O mencionado componente possui outras ações e dentre elas o


Fortalecimento do Mosaico da Bocaina, ressalta Voivodic, informando que é importante
que o Mosaico não dependesse desses recursos futuramente, a fim de se sustentar sozinho a
longo prazo. O componente tem como alguns objetivos: fortalecer a secretaria executiva do
mosaico, contratar técnicos, integrar as unidades de conservação e promover capacitações,
pois o mosaico compreende muitas unidades de conservação diferentes entre si, explica
Voivodic. Perspectivas futuras foram consideradas, anotadas na ata, quanto ao
fortalecimento das unidades de conservação por meio de “criações de Unidade Protegidas
Marinhas e criações de RPPN’s com o objetivo da conectividade entre UC’s,
implementando corredores ecológicos”. Os outros três componentes estão relacionados: à
educação ambiental, na criação de um horto comunitário e incentivo de geração de renda
com o cultivo de plantas nativas; outro componente cuida de ameaças, como a energia
nuclear, a exploração de petróleo e do Pré-sal em que o Global Environment Facitlity ―
GEF173 informa que não tem competência para se contrapor, mas planeja ações de mitigação
com o apoio do monitoramento da água, por exemplo; e, por fim, o componente de
planejamento, política e fortalecimento institucional identificado na “necessidade de um
estudo das políticas para se entender as lacunas dos procedimentos institucionais e a
sobreposição de competências” (Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata da
reunião de 29 de abril de 2011; realizada no Núcleo Santa Virgínia/PESM).

Do “Projeto Mosaicos: Fortalecimento dos Mosaicos de Unidades de


Conservação do Corredor da Serra do Mar”, a convidada Cláudia Costa, da instituição Valor
Natural, apresentou um histórico das ações realizadas em 2008. O projeto, que se encontrava
em aprimoramento naquela ocasião e em linhas gerais, e é abordado aqui, buscava a
identidade e os propósitos dos mosaicos. O projeto contou com três núcleos estratégicos nos
seguintes temas: (1) o fortalecimento e a articulação institucional por meio do
estabelecimento de parcerias para influenciar as políticas públicas e os processos de
licenciamento ambiental de grandes impactos socioambientais contando com o
desenvolvimento de um modelo de gestão integrada aos “instrumentos de gestão territorial
(exemplos: Plano de Manejo, Zoneamento Costeiro, Plano Diretor, Agenda 21, etc.) na
implementação de estruturas eficientes e participativas para a garantia da conservação
efetiva das áreas protegidas, conforme anotado em ata, naquela reunião do dia 29 de abril
de 2011; (2) outro núcleo temático, considerado estratégico no projeto, era o da mobilização

173
Mecanismo de financiamento de pautas mundiais como clima e biodiversidade, financia a Convenção sobre
a Diversidade Biológica―CDB, por exemplo.
274
275

e do engajamento de grupos de interesse ligados ao Mosaico da Bocaina, nas estratégias de


comunicação para integrar os grupos e divulgar os resultados e impactos das ações
empreendidas; e, por fim (3) o núcleo temático da valorização da sociobiodiversidade, com
o apoio à criação de novas áreas protegidas que conectassem ecossistemas marinhos e
terrestres, a “manutenção do modo de vida das comunidades tradicionais e de seus
territórios, considerando a vocação e potencial de negócios locais” de forma a abranger a
população regional, o incentivo ao empreendedorismo, à geração de trabalho e renda ligados
ao turismo, à pesca, e à indústria. Neste último caso, citados como exemplos para a
implementação de modelo de gestão regional baseado no “desenvolvimento
socioambiental” (Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata da reunião de 29 de
abril de 2011; Núcleo Santa Virgínia/PESM).

Na apresentação do projeto Roteiros da Biosfera: o Bioma da Mata Atlântica ―


na Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, reconhecida pela Unesco ―, Clayton Lino, do
Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, explica que a “escolha da
região para a implementação do projeto Roteiros da Biosfera: O Bioma Mata Atlântica” se
deveu “às diferentes e inúmeras áreas protegidas, à diversidade das culturas inseridas, aos
processos históricos culturais, etnoconhecimento e etc.”, como anotado na ata da reunião do
dia 29 de abril de 2011. O propósito é o de valorizar o que há de práticas sustentáveis na
região como atrativas: a agrofloresta, um bom manejo de mexilhão, as pescas tradicionais,
o a artesanato, citados como exemplos, em face das “pressões que serão geradas pelas
grandes obras”, em que a proximidade com o Mosaico da Bocaina “poderá contribuir para
mitigar essas pressões de forma a articular algumas partes do processo a ajudando a definir
parâmetros para ações” (Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata da reunião de
29 de abril de 2011).

O projeto Fortalecimento do Mosaico Bocaina, iniciado em 2010, é um projeto


do próprio Mosaico da Bocaina, mencionado dentre os componentes explanados por
Voivodic para apoio. O Projeto foi viabilizado pela OSCIP Caminhos de Cunha, com
recursos da Conservação Internacional – CI/Brasil e recebeu recursos para atividades
distintas de várias instituições por tempos determinados por meio de redes de parcerias.
Dessa maneira foi possível se manter com atividades continuadas que visavam o
fortalecimento do próprio Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina e o fortalecimento
“das comunidades de maneira sustentável em seu território”, por meio dos parâmetros para
acordos em três tipos de manejos de recursos naturais: extrativismo, pesca e agricultura.

275
276

Dentre os parceiros estão as instituições: Associação Mico Leão Dourado, Fundo de


Parceria para Ecossistemas Críticos, Reserva da Biosfera da Mata Atlântica – RBMA, SOS
Mata Atlântica, Valor Natural, Funbio, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social ⸻ BNDES entre outros para apoio segmentares nas atividades do Mosaico da
Bocaina.

As atividades, os projetos, as iniciativas, as instituições de ensino e pesquisa, as


organizações não governamentais, o financiamento externo da organização do mosaico, os
colaboradores constituem uma rede que, como tal, não é estática ou fixa nos mesmos nós e
linhas porque o movimento de intensidade e do desenho da malha são inerentes às redes.
Mesmo com a não consecução das atividades do Conselho Consultivo do Mosaico da
Bocaina ⸻ CCMB, uma rede foi constituída com grandes esforços e impulso e dali para
diante vai se estabelecendo. As questões das sobreposições entre os territórios tradicionais
e as unidades de conservação é o pano de fundo ⸻ pois o mosaico é constituído por causa
delas ⸻ mas o tema da sobreposição não é colocado no debate, aparece como motivo e não
como algo a ser solucionado tanto o quanto não é objeto de algum projeto uma proposta de
norma, mesmo partida da sociedade civil, que com sua rede pudesse abranger parlamentares,
que alterasse dispositivos na Lei do SNUC. As questões relacionadas às unidades de
conservação e às comunidades, quando colocadas nas reuniões do Conselho Consultivo do
Mosaico da Bocaina ⸻ CCMB, são endereçadas para serem discutidas nos casos
específicos, como vimos atrás, entre comunidade e gestão da unidade de conservação,
sendo, assim, o tema retirado da cena do debate amplo e ficando circunscrito a determinada
comunidade e unidade de conservação, como abordei no início deste capítulo. Embora as
questões de sobreposições devessem receber “propostas de solução para a sobreposição de
unidades” e se manifestarem sobre elas, conforme previsto na Portaria que criou o Mosaico
da Bocaina (art. 4º da Portaria/MMA nº 349/2009).

A responsabilidade com determinada unidade de conservação é do ICMBio que


está em contato direto com as comunidades (no seu dia a dia com agentes circulando pelas
áreas da unidade de conservação/território tradicional com olhar de fiscalização porque é
essa a sua função) nos casos práticos, presente no território todo o tempo, quando a Funai,
o Incra e a Fundação Cultural Palmares (nos casos de povos indígenas e quilombolas) não
têm essa função. Funai e Incra são instituições presentes, mas não têm o papel de estarem
fisicamente com os seus agentes administrativos nos territórios no dia a dia porque tais
territórios são para serem livres e desimpedidos. Portanto, na “vivência da sobreposição”,

276
277

vamos chamar assim, a relação é assimétrica, os membros das comunidades lidam, um a


um, com uma instituição no seu dia a dia nas suas atividades corriqueiras como acesso à
água, moradia, caminhos, roçados, trânsito.

5.4. Licenciamento ambiental

A título de apresentação de um panorama geral, na região de Paraty, em 2010,


eram 36 processos de licenciamento ambiental em andamento na instância federal
(Ibama174), divididos da seguinte forma: 18 processos no Vale do Paraíba; 03 na região
Mantiqueira; e 15 no Litoral Norte Paulista. Há os processos de licenciamento ambiental
que são tramitados na instância estadual e, para a região, ou são tramitados pela Cetesb, no
Estado de São Paulo, ou pelo Inea, no Estado do Rio de Janeiro; e há os processos na
instância municipal. O Terminal Aquaviário Almirante Barroso — TEBAR, em São
Sebastião, recebe o petróleo da Bacia de Campos, no Estado do Rio de Janeiro, e o petróleo
importado para abastecer quatro refinarias em São Paulo, dentre elas a Replan, em Paulínia,
e a Revap, em São José dos Campos. O bombeamento de óleo é feito por oleoduto que
atravessa a Serra do Mar.

No aspecto da participação no processo de licenciamento ambiental, o Conselho


Consultivo do Mosaico da Bocaina ⸻ CCMB, também, se manifestou para participar —
ser considerado — no processo de licenciamento ambiental da Usina Termonuclear (UTN)
Angra 3, no que se refere aos Estudos de Impactos Ambientais (EIA) daquele
empreendimento em Angra dos Reis que, em um primeiro momento, não haviam sido
enviados para as respectivas administrações das unidades de conservação em tempo hábil
para análise e manifestação administrativa nas audiências públicas acerca do
empreendimento.

No licenciamento ambiental da Usina Termonuclear Angra 3, as queixas iniciais


dos órgãos governamentais participantes do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina
eram por participação no processo de licenciamento ambiental, por consideração e por
visibilidade.

174
O Ibama é o órgão fiscalizador e, no caso de povos indígenas e de comunidades quilombolas, a Funai e a
Fundação Cultural Palmares são as respectivas instituições intervenientes nos processos de licenciamento
ambiental.
277
278

No item informes, os conselheiros Sylvia Chada (ESEC Tamoios), Dalton


(PARNA Bocaina) e Rafael (SAPÊ) deram um panorama de como está se
dando o licenciamento ambiental de Angra 3, conduzido pela Diretoria de
Licenciamento do Ibama, atropelando os gestores de UC’s. Dalton informa
que a Eletronuclear deve 4 milhões e meio de compensação ambiental para
a Bocaina. Grazzielle, do IEF, sugere a formação de um GT no Mosaico sobre
Angra 3. Dalton sugere que o Mosaico solicite o parecer final ao Ibama.
Sylvia informa que o Conselho Consultivo da ESEC Tamoios já aprovou um
documento sobre o processo de licenciamento. Rafael sugere que o
Mosaico manifeste-se alegando desconhecimento do processo, posto que
as UC’s do mosaico – com exceção da ESEC Tamoios – não receberam o EIA-
RIMA, a necessidade de transparência e o desejo de estar participando
efetivamente. Roberto Starviski (Núcleo Cunha) chama a atenção para os
licenciamentos de um modo geral, que estão sendo feitos de uma forma
aviltante, e sugere a formação de uma CT175 de Licenciamento no âmbito
do Conselho do Mosaico. A CT foi formada com a participação de todas as
UC’s do mosaico, a SAPÊ e a Associação Cunhambebe. Quanto à
manifestação sobre o licenciamento de Angra foi formado um grupo para a
elaboração do documento, composto por: Sylvia (ESEC Tamoios), Rafael
(SAPÊ), Alexandre (Instituto Arruda Botelho), que será disponibilizado em
rede para que os demais possam opinar. Este documento deve ser
encaminhado para o Ibama, ICMBio, MPF (RJ e SP), Secretaria de Meio
Ambiente de São Paulo e Secretaria de Ambiente do Rio de Janeiro. (ATA
Reunião do Conselho Gestor do Mosaico Bocaina Sede Associação Cairuçu
– Patrimônio, Paraty, RJ - 04 de dezembro de 2007)

O empreendimento Angra 3 recebeu a Licença Prévia (LP) em 2008 e a Licença


de Instalação (LI) em 2009. Em 20 de abril de 2011, o Conselho Consultivo do Mosaico
Bocaina se manifestou, em documento intitulado “Manifestação Mosaico Bocaina nº
01/2011” e endereçado à Ministra do Meio Ambiente, acerca do cumprimento das
condicionantes ambientais, em especial à Condicionante 2.31: “que a Eletronuclear deverá
assumir os custos de manutenção e custeio da ESEC Tamoios e do Parque Nacional da
Bocaina”:

A Plenária do Conselho do Mosaico Bocaina, nesta data reunida na sede do


Núcleo Santa Virgínia do Parque Estadual da Serra do Mar, em São Luiz do
Paraitinga/SP, solicita a Vossa Senhoria que proceda às medidas necessárias
para paralisação imediata das atividades do empreendimento até que se
inicie o efetivo cumprimento da condicionante 2.31 da LP 279/08.
(CONSELHO CONSULTIVO DO MOSAICO BOCAINA, 2011)

175
Câmara Temática dentro do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina ⸻ CCMB.
278
279

A razão da manifestação foi a de que, em parecer, o Ibama indicara que as


condicionantes haviam sido atendidas e, segundo o Conselho Consultivo do Mosaico
Bocaina, não apenas não o haviam sido atendidas — para a emissão da LI após a LP —
como a Condicionante n° 2.31 ⸻ como fora suprimida pelo Ibama antes de a condicionante
ser atendida, como segue:

(...) em dezembro de 2009 a condicionante 2.31 da LP 279/08 foi suprimida


da redação da LI 591/2009 com base no parecer do Ibama já mencionado.
(CONSELHO CONSULTIVO DO MOSAICO BOCAINA, 2011)

O Conselho do Mosaico se manifestou em outras ocasiões e, depois disso, as


unidades de conservação foram consideradas no processo de licenciamento ambiental de
Angra 3; lembrando que a compensação ambiental de empreendimentos que afetem
unidades de conservação é prevista no parágrafo 3º do Artigo nº 36 do SNUC e definida no
Decreto nº 4.340/2002. A compensação ambiental do projeto UTN Angra 3 para as Unidades
de Conservação na região do empreendimento somava 40 milhões de reais. Segundo
Ronaldo Oliveira (OLIVEIRA, 2014), ligado à Eletronuclear, empresa empreendedora do
projeto, a distribuição se deu para as seguintes Unidades de Conservação em 2013:

 R$ 29.662.160,00 para as UC’s Federais:


Parque Nacional da Serra da Bocaina;
ESEC Tamoios;
RPPN Gleba do Saquinho de Itapirapuã;
APA Cairuçu; e
PN Saint-Hilaire/Lange

 R$ 10.421.840,00 para as UC’s estaduais (RJ):


Parque Estadual do Cunhambebe;
Parque Estadual da Ilha Grande; e
APA de Tamoios

Desde o início dos trabalhos do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina,


instalado em 2007, o tema do licenciamento ambiental é recorrente e é interessante que, em
sede de conselho consultivo para as suas manifestações, a presença de comunidades nas
unidades de conservação reforça a importância dos impactos ambientais, mesmo aqueles
impactos que possam ser considerados temporários ou reversíveis; ou seja, a presença das
comunidades pode ser vista como um ponto positivo para reforçar a necessidade de
consideração de determinada unidade de conservação no processo de licenciamento
ambiental.

279
280

5.4.1. Cana e cachaça

Anteriormente à Indicação Geográfica da Cachaça de Paraty, ocorrida depois de


2012 e que mencionei em capítulo anterior como um tipo de território, sob a perspectiva da
constituição de um território institucional, o tema da certificação da cachaça de Paraty foi
abordado em uma reunião do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina, ocorrida no
Núcleo Picinguaba do Parque Estadual da Serra do Mar, entre os dias 10 e 11 de setembro
de 2008. Iliana, da APA de Cairuçu, informou ter participado, no dia 9 de setembro de 2008,
da reunião da Rede de Tecnologia com representantes do SEBRAE, do Ibama, da FEEMA
e do ICMBio, dentre outros. O licenciamento ambiental do plantio de cana em Paraty foi o
assunto naquela reunião por conta do “Selo Verde obtido pela cachaça de Paraty, toda a
produção precisa ser feita com matéria prima local – aumentar os plantios de cana em
Paraty”, conforme anotado na ata da reunião do Conselho do Mosaico da Bocaina, e foi
informado que o SEBRAE e a FEEMA estavam às voltas com a elaboração de uma
Instrução Técnica, daí a participação das unidades de conservação, segundo explicou Iliana,
e que nova reunião fora marcada para o dia 25 de setembro na sede da APA de Cairuçu.
“Sylvia (ESEC Tamoios) observa a incongruência da política de incentivo ao plantio de
cana em Paraty”, pois: o município “não dispõe de grandes áreas para isso e indo na
contramão dos vários projetos de agroflorestal e de polpa de juçara em andamento, como
por exemplo no Campinho”. Vagner Nascimento, representando a AMOQC, “resgata que
Paraty já teve tradição de plantio de cana nas comunidades rurais” e que “a relação sempre
foi de muita desigualdade e exploração dos plantadores de cana pelos donos dos
alambiques” e finaliza a advertência ao dizer que “se esta relação não mudar, ele acredita
que não haverá muito interesse neste plantio” (Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina
- Ata da reunião de 10 e 11 de setembro de 2008).

5.4.2. Outros empreendimentos

Na reunião do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina realizada na ESEC


Tamoios, em 2 de julho de 2008, foram noticiados alguns empreendimentos planejados em
áreas protegidas. Dentre as notícias, a existência de um projeto imobiliário no Saco do

280
281

Mamanguá e Itatinga havia sido anunciada em um jornal sem que fosse indicado o local
preciso, mas como sendo uma área de fácil acesso e indicadas duas praias onde está o único
fiorde brasileiro; não é possível saber ao certo a localização do empreendimento a partir da
notícia do jornal, informa o conselheiro Paulo Nogara.

O episódio do atracadouro, noticiado pela Folha de São Paulo, no Saco do


Mamanguá aconteceu em 2001 (ver item 3.2.3⸻Área de Proteção Ambiental de Cairuçu ―
federal), de que falamos atrás nesta tese, e este é outro empreendimento planejado naquela
região. É informado, nessa mesma reunião do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina,
em 2 de julho de 2008, que gestão da APA de Cairuçu, segundo Júlio, seu representante,
não teve conhecimento oficial desse projeto e informa, ainda, que há outros tantos projetos
com processos abertos junto ao Ibama com finalidades diversas com localização em Itatinga.
Ainda, nessa reunião do Conselho do Mosaico da Bocaina é informado, pelo representante
da APA de Cairuçu, que o processo de licenciamento ambiental de um outro
empreendimento imobiliário em “que o processo foi montado pelo Ibama, tem 3 volumes,
foi encaminhado para a APA [de Cairuçu] que também apresentou ao Conselho da APA
Cairuçu para se posicionar”. Ao projeto chamado Ilha do Itu, ou Itur, o Ibama havia
apresentado um parecer positivo em favor do empreendimento que constou no processo
recebido pela APA de Cairuçu, a qual se manifestou contrariamente à licença em parecer e
o encaminhou, também, ao Ministério Público Federal ― MPF, em Angra dos Reis, onde o
processo se encontrava. O representante da APA de Cairuçu explicou o posicionamento da
gestão daquela unidade de conservação: nos documentos do processo de licenciamento
ambiental, a Prefeitura de Paraty “mudou a caracterização da Ilha, no Plano Diretor, para
‘continente’, considerando que o manguezal que se situa na extremidade da ilha gera uma
continuidade com o continente” e dessa forma “descaracterizando inclusive a sua
característica de área de preservação permanente”, o que facilitava o parecer favorável do
Ibama (Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata da reunião de 2 de julho de 2008).

Nessa reunião do Conselho do Mosaico da Bocaina, há o entendimento de que


é necessário o posicionamento do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina em tais
aspectos e processos. É sugerido, na reunião, que se inclua a Ilha Rasa e a praia de Martim
de Sá no rol das manifestações. As razões das inclusões são as seguintes: a Ilha Rasa é
localizada na Baía de Paraty, onde há ilhas abrangidas pela APA de Cairuçu, com
construções irregulares e bares, que são alvos de fiscalização ambiental que resultaram no
embargo da ilha por parte de órgãos ambientais em março de 2008, e onde vivem

281
282

comunidades que desempenham atividades no turismo; e na Praia de Martim de Sá (na APA


de Cairuçu em situação de sobreposição com a Reserva Ecológica Estadual da Juatinga ⸻
REEJ), a comunidade é pressionada por empreendimentos imobiliários. A indicação da
necessidade do posicionamento do Conselho do Mosaico da Bocaina nesses casos é
aquiescida por Vaguinho (Vagner Nascimento), quilombola representante da Associação de
Moradores do Quilombo do Campinho ― AMOQC, quem fala da “necessidade de brecar
situação de pressão nas áreas protegidas da região de Paraty, com forte rebatimento para as
comunidades tradicionais”. As manifestações do Conselho do Mosaico da Bocaina
seguiriam como uma pressão estratégica por parte do Conselho frente a tais questões, que
deveriam incluir, segundo Cristino da Fundação Nacional do Índio ― Funai, os “agentes
governamentais que normalmente apresentam dificuldades frente a esse tipo de pressão”,
como reportado na ata, por causa das colisões de visões entre a área técnica e as diretorias
nos órgãos governamentais. Dessa maneira, remarcando as instâncias de decisão política e
da prática vivenciada como duas faces, ao menos, na gestão. Ou seja, o que fosse combinado
entre os agentes que estão na ponta não necessariamente “subiria” na hierarquia de cada um
dos órgãos. A essa altura na reunião, um participante da reunião da Associação Cairuçu,
associação civil e não tradicional, informa que terá de se retirar da reunião para atender à
convocação do Ministério Público para depor em caso de um policial civil que vem
intimidando os moradores da Praia Grande da Cajaíba; o representante da agradece ao apoio
dos colegas no episódio de intimidação que sofrera com a queima da sua moto, sem autor
identificado naquela ocasião (Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina - Ata da reunião
de 2 de julho de 2008).

5.4.3. Câmara Temática de Unidades de Conservação e


Populações Tradicionais do Mosaico da Bocaina

O Mosaico da Bocaina constituiu câmaras técnicas, ou temáticas, de


Ecoturismo176, com ênfase no turismo de base comunitária; de Unidades de Conservação e

176
Coordenação: Roberto Mourão, Vagner Nascimento (Vaguinho) – AQUILERJ; Sérgio Pinchiaro – Cunha-
Paratii; Juliana Pires - Mosaico Bocaina ― secretária executiva; Eduardo Godoy - chefe APA
Cairuçu/Colegiado M. Bocaina; Jian Niotti ― PESM Picinguaba; João Fernandes – PEC Lucila Pinsard - APA
Marinha Litoral Norte e Rodrigo Silva - Secretaria de Turismo de Ubatuba, Estado de São Paulo em 2011.

282
283

Populações Tradicionais177 e a Câmara Técnica de Comunicação do Mosaico da Bocaina178


a fim de realizar reuniões setorizadas acerca de temas que já vinham sendo tratados em
reuniões específicas, como o encontro de comunidades tradicionais.

O I Encontro de Comunidades Tradicionais e Áreas Protegidas do Mosaico da


Bocaina aconteceu em 2008, entre os dias 24, 25 e 26 de outubro, com a finalidade de…

...enfrentar os conflitos existentes na região, em especial decorrentes da


sobreposição de unidades de conservação e territórios ocupados por povos
e comunidades tradicionais - indígenas Guarani, Quilombolas, Caiçaras e
Caipiras.

Para organização do encontro foi constituído um grupo de trabalho com a


participação de representantes das comunidades tradicionais, gestores das unidades de
conservação integrantes do Mosaico da Bocaina e de organizações não-governamentais. A
Câmara Temática de Populações Tradicionais do Conselho Consultivo do Mosaico da
Bocaina (CT-UC’s) foi que propôs o encontro. O documento “Relatório Final” daquele
encontro traz proposições e diretrizes com a seguinte recomendação de consecução:

Daqui em diante cabe ao Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina, às


instituições responsáveis pela gestão das áreas protegidas e seus gestores,
povos e comunidades tradicionais, organizações não governamentais
atuantes na região e outros parceiros, fazer valer o que foi combinado
nessa ampla agenda de compromissos firmados. 179

A criação deste Mosaico tem como objetivo estimular a gestão integrada


entre as diversas Unidades de Conservação, contribuindo para a
preservação e conservação dos recursos naturais e pesqueiros, bem como
para o desenvolvimento sustentável deste território situado na divisa Rio
de Janeiro/São Paulo, que abriga importantes fragmentos florestais,
totalizando cerca de 216 mil hectares de florestas sob condições especiais

177
Coordenação: Vagner Nascimento (Vaguinho) - AQUILERJ, Juliana Bussolotti - Associação Cunhambebe
ONG – SP; Juliana - Secretária Executiva Mosaico Bocaina; Mônica Nemer - MOVE – Movimento Verde,
ONG – RJ; Maristela Resende - PNSB/ICMBio UC – RJ; Lúcia - Quilombo da Fazenda/Fórum Populações
Quilombola; Guadalupe - Associação Caxadaço-Mar, ONG- RJ; Jadson - Praia do Sono, Caiçara; Seu João
Paraty-Mirim, Caiçara; Ivanildes - Aldeia Paraty-Mirim, Indígena; convidados: Funai, Ministério Público
Federal, Ibama, SAPÊ e Verde Cidadania, em 2011.
178
Monica Nemer - APA Tamoios; Grazielle Zacaro - APA da Baía de Paraty; Sylvia Chada - Coordenação
Regional ICMBio-CR8; Vaguinho (Vagner Nascimento) - Associação Quilombola e Manuela - DIBAP/Inea;
Roberto, PESM - Núcleo Cunha.
179
“Relatório Final”, intitulado “Carta do I Encontro de Comunidades Tradicionais e Áreas Protegidas - 24-
26 outubro 2008”, estava disponível no material do Mosaico da Bocaina, em www.mosaicobocaina.org.br.

283
284

de manejo e proteção legal, além de comunidades tradicionais, territórios


quilombolas e indígenas. 180

Acerca da abrangência do Mosaico Bocaina, o Relatório Final do I Encontro


indicou a participação de 15 Unidades de Conservação, 5 Terras Indígenas e 2 quilombos181.

Objetivos do Encontro:

a) Traçar visão panorâmica sobre a situação das comunidades tradicionais


e das áreas protegidas em que se inserem, sob o ponto de vista da gestão,
conflitos principais decorrentes, soluções e diretrizes já estabelecidas ou
previstas.

b) Refletir sobre experiências em desenvolvimento em áreas protegidas na


abrangência do Mosaico da Bocaina, visando obter propostas aplicáveis
para situações semelhantes.

c) Definir, a partir de estratégias práticas e claras, uma agenda de


compromissos para viabilizar diretrizes de gestão unificada para os
principais conflitos vigentes na área do Mosaico.

Como fio condutor das discussões, tiveram lugar as questões da gestão


participativa, que é um propósito para a constituição de mosaicos. Note-se que a presença
das comunidades tradicionais amplia as finalidades do mosaico, previsto para empreender a
gestão integrada. Foram anotados os problemas percebidos pelas comunidades em conjunto
com indicações de soluções, como seguem da forma como foram anotados em documento
de reunião preparatória ao primeiro encontro:

1. Resolver problema do lixo – na aldeia e nas comunidades


2. As comunidades gerarem menos lixo – plantar mais e comprar menos na cidade
3. Debater o turismo pensando numa forma que valorize e beneficie diretamente as
comunidades
4. Manter a sabedoria das comunidades sobre o uso dos recursos naturais – caça, plantas
medicinais
5. Chegar na solução que garanta interesse comum diante dos diferentes interesses
existentes numa comunidade (ex. recategorização da REBIO Aventureiro)
6. As comunidades terem informação adequada e participação nas decisões em processos de
recategorização de UC
7. Como as comunidades tradicionais podem receber recursos financeiros por fazerem a
conservação?

180
Ibidem.
181
Em 2017, o Mosaico da Bocaina abrangia 17 unidades de conservação e áreas protegidas e 13 comunidades
e povos tradicionais, além da representação do Fórum de Comunidades Tradicionais de Paraty.
284
285

8. Como manter a riqueza dos recursos naturais existentes no território das comunidades?
9. Como proteger as águas?
10. Como manter os laços da cultura tradicional em comunidades como Ilha Grande?
11. Com o crescimento das populações tradicionais, como vamos tirar madeira para nossas
casas e canoas?
12. Como conciliar as leis conflitantes – UC de proteção integral e Decreto 6040
13. [Que] As leis e regulamentações considerem as comunidades tradicionais na sua
elaboração
14. Fazer com que os gestores reconheçam o papel das comunidades na gestão das UC
15. Abertura de oportunidade de diálogo entre comunidades tradicionais e UC
16. Espaço para conversar sobre nossos problemas
17. Reconhecimento do valor das comunidades tradicionais
18. Decreto 6040 de 07/02/2007 – Política de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais.
19. O Fórum Regional das Comunidades Tradicionais
20. Só temos nossos direitos reconhecidos se nos posicionarmos – como movimento social
21. Unificou a realidade das diferentes culturas
22. Garantia na lei de existir controle social – conselhos
23. Temos consciência das leis sobre UC e a relação com as comunidades tradicionais
24. Reconhecimento da necessidade de território
25. Os trabalhos com as comunidades dependem das normas das UC
26. Plano de Manejo e Mosaico podem ajudar a resolver os problemas das comunidades
tradicionais
27. Não entendemos por que as UC exigem autorização para todas as atividades das
comunidades tradicionais acordadas no plano de manejo
28. Os índios ajudando a controlar caça, coleta de palmito, madeira na Terra Indígena As
pessoas não abandonam suas casas à toa. Os sobreviventes não podem plantar e caçar
29. As comunidades devem dialogar diretamente com os gestores
30. Limite de fluxo turístico na Praia do Aventureiro foi importante
31. A organização do turismo pelas comunidades e com apoio de parceiros está trazendo
qualidade ao turismo

Todas as questões acima são relativas aos territórios tradicionais em situação de


sobreposição como unidades de conservação e são colocadas tanto como indagações quanto
como resolução a ser providenciada. Dentre outros apontamentos nas reuniões preparatórias
ao I Encontro de Comunidades Tradicionais e Áreas Protegidas, em 2008, destaco algumas
das observações feitas naquela ocasião, como seguem:

 Quem é tradicional na lei vive de recurso natural?


 Quantas pessoas formam uma comunidade tradicional, não é claro na lei
 Quem é filho de tradicional pode voltar para a sua terra de origem?
 No território tem que ter área de moradia, plantio e floresta de uso sustentável e
mostrar que existe um manejo como a agrofloresta

285
286

Acima, estão alguns dos questionamentos colocados pelas comunidades no


cotejamento, feito por pessoas de comunidades tradicionais em conjunto, elas mesmas se
ouvindo mutuamente, é um momento de tradução entre território tradicional e território
institucional interferente, no caso da unidade de conservação; sendo que as comunidades
que tiveram seus territórios regularizados fundiariamente, ou que se encontram em processo
no regularização fundiária em curso, passaram ou passam por uma tradução dos usos dos
recursos naturais e do espaço. Com a diferença que os usos dos recursos naturais e do espaço
do território, na regularização fundiária de um território tradicional, inscrevem as
comunidades nos territórios institucionais de regularização fundiária administrativa; e nas
situações de sobreposição, serão esses mesmos usos das comunidades os pontos de
justificativas de incompatibilidade com a unidade de conservação. Cabe ressaltar que os
apontamentos das comunidades anotados nas atas das reuniões e do encontro se dão nas
ocasiões específicas para tratar dos assuntos das comunidades no escopo do Mosaico da
Bocaina e que, por isso, trazem o tema da sobreposição, porque é a condição da sua
participação no Mosaico da Bocaina, via unidades de conservação que se sobrepõem aos
seus territórios. Vale lembrar, portanto, que sobreposição não é de forma alguma inerente
aos territórios de povos e comunidades tradicionais; mas o tema acaba revestindo todas as
esferas da comunidade no seu dia a dia, nas suas reuniões, na sua participação em oitivas.

As sobreposições em si, a discussão do seu tema entre as comunidades ou nas


oitivas de que participam em reuniões de instituições governamentais acabam por ser uma
“antessala” das discussões sobre a efetivação da regularização fundiária, o que permite larga
atuação dos governos em não se adentrarem na “sala principal” da regularização.

Comunidades e seus territórios estão intrincados, daí está a constatação de que


quando se fala de um se remete ao outro, como podemos observar nos apontamentos das
próprias comunidades acima listados. A abordagem da questão fundiária, portanto, não é
um “item” na realidade, ela é o “todo”, mas, metodologicamente, é interessante que se a
aponte em documentos, com isso, ela parece para nós como um domínio de coisas juntas; e,
para o Estado, a questão fundiária estará ao lado, e não necessariamente interdependente da
questão da saúde, da educação e de outros temas que são tratados em órgãos de
administração distintos para melhor cuidado e elaboração de instrumentos específicos ao
tema. O resultado é uma separação por temas e por locais de atuação nas esferas
administrativas do Estado, quando nas comunidades são coisas juntas, como as podemos
ver em campo.

286
287

As próprias comunidades acabam se encarregando de não deixarem que se


invisibilize a pauta da regularização fundiária dos seus territórios em meio à agitação das
discussões em torno das sobreposições e o fazem por meio das descrições de casos e de
efeitos. Naquela mesma reunião da Câmara Temática de Populações Tradicionais, em maio
de 2010, no Quilombo Campinho da Independência, na sua abertura e recepção dos
participantes da Câmara, Vagner “comenta que as comunidades estão perdendo sua tradição,
exemplo, na Ponta Negra que antes tinham diversas espécies de mandioca, hoje não tem
mais nada, e que isso tem relação direta com as UC’s” e Leila, caiçara da Praia do Sono,
“afirma que isso começou com o governo anterior ao Inea, o IEF, que as pessoas eram
proibidas de manter seus costumes, pois estavam desmatando”. Amanda, da AMOQC,
“questiona como fazer isto avançar no poder público, já que as próprias academias, onde ele
se baseia, debate esta questão, até com livros publicados” e o senhor Domingos Ramos dos
Santos, do Quilombo Cabral “fala sobre os costumes que os mais antigos têm de queimar a
roça, vão continuar queimando”.

A questão fundiária foi assunto na reunião da Câmara Temática de Populações


Tradicionais do Mosaico da Bocaina, acontecida no Quilombo Campinho da Independência
em 03 de maio de 2010, dois anos após o I Encontro de Comunidades Tradicionais e Áreas
Protegidas, entre 24 e 26 de outubro de 2008, com a presença de representantes das
comunidades tradicionais, de gestores das unidades de conservação e do Conselho
Consultivo do Mosaico da Bocaina182. Durante a reunião, Mônica Nemer, do Movimento
Verde ― MOVE, “pergunta se a questão fundiária deve ser trazida para a pauta da CT ou
para a pauta do Conselho” e Vaguinho (Vagner Nascimento, quilombola) responde que “o
ideal seria trazer para os dois níveis de discussão”. É anotado na ata que “as comunidades
entendem que somente a questão fundiária vai resolver os conflitos”. Para o tratamento da
questão fundiária, há a sugestão da parte de Mônica, que a composição da CT-Populações
Tradicionais seja revista, para buscar quem se tenha afastado das discussões, para resgatar
as demandas e para “levar esta pauta também para o Fórum de Comunidades Tradicionais -
FCT, para que se trabalhe em conjunto, um fortalecendo o outro”. Vagner diz que “a

182
Os documentos produzidos e disponibilizados Câmara Temática de Populações Tradicionais e UC’s do
Mosaico da Bocaina são as atas de 03/05/2010, de 11/06/2011 e de 22/07/2011; também, a memória do
Encontro de Práticas Sustentáveis do Mosaico da Bocaina, datada de 08/06/2010. Do I Encontro de
Comunidades Tradicionais e Áreas Protegidas - 24-26 outubro 2008, foi retirado das reuniões um documento
que explana a organização das reuniões prévias e apresenta diretrizes para a Câmara Técnica de UC’s e
Populações Tradicionais, intitulado “Carta do I Encontro de Comunidades Tradicionais e Áreas Protegidas -
24-26 outubro 2008”. Todos os documentos citados estão disponíveis no sítio www.mosaicobocaina.org.br,
na seção “documentos”, sítio perdido em encontrável em:
https://web.archive.org/web/sitemap/www.bocaina.org.br.
287
288

principal bandeira do FCT é a questão fundiária” e nas suas reuniões são feitas chamadas
para as reuniões do Mosaico da Bocaina (Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina;
Reunião da Câmara Temática de Populações Tradicionais - Ata da reunião de 03 de maio
de 2010, no Quilombo Campinho da Independência).

Iliana, da APA de Cairuçu, recomenda que sejam convidadas pessoas


especialistas em questão fundiária” para participarem das reuniões da Câmara Temática de
Populações Tradicionais, “para que esclareçam as dúvidas que tanto as pessoas dos órgãos
quanto as comunidades têm”. Foi lembrado por Vaguinho (Vagner Nascimento) “que essa
já era uma ação que saiu do Encontro de Populações Tradicionais” e que, na ocasião, além
de especialistas no tema que pudessem trazer informações, “foi discutida também a
importância de trazer a juíza de Paraty para alguns momentos”, entretanto, teria dito Vagner,
“para convidar a juíza para uma reunião da CT, é necessário preparar bem o que vai ser
discutido, caso contrário o resultado pode ser pior ainda”.

Notamos que a cada novo stakeholder que toma contato com as comunidades
por meio de ações junto ou com elas, se dá um aprendizado na forma de approach, na
medição dos passos com implicações e consequências políticas ou práticas, o que habilitará
esse mesmo stakeholder em outros trabalhos futuros, ou seja, as comunidades colaboram e
enriquecem a profissionalização de diversos consultores e agentes da administração pública.

5.5. Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis,


Paraty e Ubatuba—FCT

Criado em 2007, o Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis,


Paraty e Ubatuba—FCT se constituiu na articulação de quilombolas, indígenas e caiçaras.
A regularização fundiária dos territórios tradicionais foi a “primeira bandeira” do Fórum,
como dito no site da organização, e permanece em pauta junto às questões da especulação
imobiliária e das unidades de conservação em situação de sobreposição. Todas essas pautas,
em seu conjunto, se referem à territorialidade. Educação, saúde, agroecologia e turismo de
base comunitária são ações e projetos que foram assumindo contorno com o fortalecimento
das comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas entorno do Fórum, que
angaria várias parcerias. Cujas campanhas e programas retomo brevemente, a seguir, entre
os anos de 2014 e de 2018 abrangidos por esta pesquisa.

288
289

A campanha “Preservar é Resistir ― em defesa dos Territórios Tradicionais” é


Uma campanha empreendida pelo Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis,
Paraty e Ubatuba ― FCT, iniciada em 16 de maio de 2014...

(...) com a finalidade de sensibilizar um número abrangente pessoas acerca


dos conflitos diversos vividos por Povos e Comunidades Tradicionais
fortalecendo a luta destes (PRESERVAR É RESISTIR, 2014).

A campanha é, também, um instrumento de visibilidade não apenas das ações


do FCT como das próprias comunidades e das suas associações:

 Associação Comunitária Indígena de Araponga


 Associação Comunitária Indígena do Bracuí
 Associação Comunitária Indígena do Paraty-Mirim
 Associação de Barqueiros e Pescadores Artesanais da Trindade
 Associação de Moradores do Quilombo Campinho da Independência
 Associação de Moradores Originários do Sono
 Associação dos Bananicultores de Ubatumirim
 Associação dos Moradores e Amigos do Pouso da Cajaíba
 Associação dos Moradores do Aventureiro (Ilha Grande, Angra dos Reis)
 Associação Comunitária dos Remanescentes do Quilombo da Fazenda
Picinguaba
 Associação dos Remanescentes do Quilombo do Cambury
 Associação dos Remanescentes do Quilombo Santa Rita do Bracuí
 Caxadaço Bocaina Mar
 Instituto de Permacultura e Educação Caiçara (IPECA)
 IPEMA
 SAPÊ
 Verde Cidadania
 FCT

A depender das campanhas que lança, “Preservar é Resistir” agrega adesões de


comunidades, associações, pesquisadores e instituições diversos.

O Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina ― OTSS,


iniciado em 2015, tem por objetivo promover o desenvolvimento sustentável nos territórios
tradicionais da região da Bocaina e atua nas seguintes frentes:

 justiça socioambiental,
 fortalecimento e qualificação do FCT;
 defesa do território,
 cartografia social;
 saneamento ecológico;
 educação diferenciada;
289
290

 incubadora de tecnologias sociais;


 agroecologia;
 turismo de base comunitária;
 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 das Nações
Unidas; e
 articulação de redes de solidariedade internacionais.

O OTSS surgiu a partir de uma parceria entre o Fórum de Comunidades


Tradicionais e a Fundação Oswaldo Cruz — Fiocruz e com apoio da Fundação Nacional de
Saúde—FUNASA, cuja iniciativa trabalha de maneira integrada com os povos caiçaras,
indígenas e quilombolas.

“A educação das comunidades tradicionais em Paraty: um balanço de 2 anos de


Educação (2015-2017)”, é uma publicação online, um e-book, o que amplia a sua circulação
e o seu acesso, que avalia os avanços e os passivos governamentais da educação diferenciada
e apresenta proposições ao Plano de Educação Municipal em Paraty, para atender a Povos
e Comunidades Tradicionais.

Embora tendo direitos constitucionais garantidos, a pressão de órgãos


ambientais, a especulação imobiliária e ausência de políticas públicas
específicas expõem ao risco a reprodução social das comunidades
tradicionais, colocando em xeque não só a cultura, que garante a
diversidade da sociedade brasileira e o patrimônio cultural (material e
imaterial) do país, mas sua própria sobrevivência. Com o objetivo de
implementar, nos níveis federal, estadual e municipal, os objetivos e
princípios estabelecidos por essa política e legislações que protegem os
povos tradicionais, desde 2007, o FCT da região, formado por quilombolas,
indígenas, caiçaras, vem se consolidando e fortalecendo a luta pelos
direitos dessas populações. (FCT - Fórum de Comunidades Tradicionais,
2018, p. 7) (sublinhei)

O Fórum contou com apoiadores externos provindos de universidades e de


organizações da sociedade civil envolvidos com o tema da educação e, em conjunto,
organizaram um Coletivo subsidiário ao FCT, à época, em que o plano de educação estava
sendo discutido pela municipalidade. O documento aponta a legislação existente sobre a
educação e a diversidade social, que não estava sendo respeitada e indica demandas e
aspectos que necessitam ser observados pela administração municipal para que a educação
de quilombolas, indígenas e caiçaras siga bem183. O passivo governamental é grave: famílias

183
O documento está disponível apenas em meio digital; no caso de haver interesse pelo tema da educação
diferenciada e o inteiro teor daquele documento:
https://issuu.com/forumdecomunidadestradicionais/docs/dossie.
290
291

com filhos em idade escolar da comunidade caiçara de Cairuçu das Pedras têm-se mudado
para Ponta Negra; crianças não avançam, na mais da vez, além do 5º ano escolar por conta
da falta de escolas e da consecução das etapas de ensino não disponibilizadas dentro das
comunidades; comunidades próximas ao centro de Paraty são atendidas por transporte de
barco com o deslocamento dos alunos em três horas na ida e em igual tempo para a volta
(FCT - Fórum de Comunidades Tradicionais, 2018, p. 17).

Outra atuação documentada do Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra


dos Reis, Paraty e Ubatuba― FCT é com relação aos territórios quilombolas e caiçaras na
região, com o apoio do Fundo Brasil. Instituído por líderes políticos externos às
comunidades nos movimentos de garantia dos direitos humanos e étnicos — dentre os quais:
Abdias do Nascimento, Margarida Genovois, Rose Marie Muraro e Dom Pedro Casaldáliga
—, o Fundo Brasil foi beneficiado para a sua implantação, em 2006, por um fundo
patrimonial (endowment), no valor de três milhões de dólares com o apoio da Fundação
Ford. Desde 2017, o Fundo Brasil desenvolve ⸻ em conjunto com o Fórum de
Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba ⸻ a ação intitulada
“Litígios Socioambientais: Defesa dos Territórios Tradicionais em conflito de sobreposição
com Unidades de Conservação na Região da Bocaina”; cujas atividades principais indicadas
são: a retomada da Mesa de Diálogo por Justiça Socioambiental da Bocaina (coordenada
pelo Fórum de Comunidades Tradicionais e o Ministério Público Federal) e a interposição
de Amicus Curiae, na questão da sobreposição de unidades de conservação e territórios
tradicionais (FUNDO BRASIL, 2017). A instituição conta com o recebimento de doações
e para a questão dos litígios em sobreposições e para esta ação de apoio ao Fórum doou
oitenta mil reais para um período de 18 meses.

Com o documento de assistência ao julgador de maneira a auxiliá-lo no seu


juízo, em proveito da decisão justa, o Amicus Curiae e, também, a instância de diálogo
instituída junto ao Ministério Público Federal, o caráter desse apoio técnico, jurídico e
financeiro do Fundo Brasil é o de ajuste de cena, se posso chamar assim, para a atuação do
Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba.

A campanha lançada pelo Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos


Reis, Paraty e Ubatuba “FCT+10 — Em defesa do Território Tradicional”, no dia 19 de
novembro de 2016, véspera do Dia da Consciência Negra, durante a 18ª Festa da Cultura
Negra, no Quilombo do Campinho da Independência. Acerca da Campanha FCT+10, no
site Preservar é Resistir ressalta vários temas correlacionados:

291
292

Luta pelo território, direito à saúde, à educação diferenciada, valorização


da cultura e respeito por suas tradições e modos de vida. Todos esses
desafios fizeram com que, há dez anos, na região da Bocaina, nós nos
uníssemos em busca de fortalecer lutas e enfrentamentos comuns. Somos
caiçaras, indígenas e quilombolas de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba e o
Fórum de Comunidades Tradicionais é um espaço comum e nosso, de luta
e de resistência.

Dez anos se passaram desde a criação e das primeiras reuniões, muitas


histórias foram compartilhadas, conquistas de diversas comunidades,
reconhecimento, enfrentamento e muita luta. Hoje, por meio das
bandeiras da Agroecologia, Educação Diferenciada, Cultura, Turismo de
Base Comunitária (TBC), Saneamento Ecológico e Defesa do Território,
seguimos em busca de ampliar nossas redes e permanecer em nossos
territórios como forma de preservar, resistir e garantir nossos modos de
vida tradicionais.

A campanha “FCT+10 - Em Defesa do Território Tradicional” faz parte


dos nossos sonhos, desejos e missões para os próximos dez anos em busca
de caminhar rumo à garantia dos direitos de todos nós, povos e
comunidades tradicionais.

A Carta de Ubatuba184, de 2017, tem lugar na campanha “Preservar é Resistir”.


Assinada em 28 de setembro de 2017, é encabeçada pelo Fórum de Comunidades
Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba― FCT e mais vinte e uma associações
de Povos e Comunidades Tradicionais e, também, quatro associações civis
paracomunitárias. Na Carta de Ubatuba, em seu preâmbulo, os signatários manifestam o...

...repúdio ao intenso processo de privatização do patrimônio comum -


terras, florestas e águas, essenciais à vida dos povos e comunidades
tradicionais - em curso no país chamando atenção ao consequente
acirramento dos conflitos fundiários e disputa pelos recursos naturais que
derramam o sangue de indígenas, quilombolas, caiçaras, trabalhadores
rurais, defensores da floresta e de direitos humanos em uma proporção
perversa e sem precedentes no Brasil. (FCT - Fórum de Comunidades
Tradicionais e outras associações, 2017)

A Carta se reporta à marcha dos Povos Indígenas em Ubatuba, 14 de setembro


de 2017, em celebração aos direitos originários e à paz, rememorando o extermínio de Povos

184
http://docs.wixstatic.com/ugd/4fab7e_7cf03a918c8740ea886db47e93755627.pdf
292
293

Indígenas iniciado no povoamento do Brasil e perdurado até os dias de hoje; também se


manifesta contra o chamado “marco temporal” para o reconhecimento das Terras indígenas
e contra a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI-3239/2004) impetrada pelo Partido
Democratas—DEM contra o Decreto nº 4.887/2003, que regulamenta o reconhecimento por
parte do Estado dos territórios quilombolas. Segue a manifestação pontual do Fórum e de
outras instituições, transcrita da Carta de Ubatuba (FCT - Fórum de Comunidades
Tradicionais e outras associações, 2017):

Reunidos para fortalecer a luta pela defesa de nossos territórios e modo de


vida, nos manifestamos:

(i) Pelo reconhecimento, regularização fundiária e titulação coletiva dos


territórios tradicionais quilombolas e caiçaras do Litoral Norte de São Paulo
pela SPU, Incra, ITESP, com apoio do MPF e DPE/SP; (sublinhei)

(ii) Contra a privatização dos Parques Estaduais por meio de parcerias


público-privada, política em curso pela Fundação Florestal, em detrimento
das experiências de turismo de base comunitária;

(iii) Contra a paralisação das atividades dos Conselhos Gestores de


Unidades de Conservação do Litoral Norte pela SMA/Fundação Florestal e
pela retomada imediata de suas atividades;

(iv) Contra a criminalização ambiental das comunidades tradicionais pela


Polícia Militar Ambiental; e

(v) Contra a implantação de grandes empreendimentos terrestres e


marítimos sem a consulta prévia, livre e informada às comunidades
diretamente afetadas e sem sua devida caracterização nos estudos de
impacto ambiental pelos grandes empreendimentos públicos e privados.

A ADI-3239/2004 foi vencida no Superior Tribunal Federal por maioria, em 8


de fevereiro de 2018185.

Por ocasião das Eleições-2018, o Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra


dos Reis, Paraty e Ubatuba ― FCT, redigiu um manifesto circulado de forma rápida e ágil
por meio do próprio site do Fórum, aproveitado pela Mídia Ninja, com o título

185
Vide Ata nº 3, de 8 de fevereiro de 2018.
293
294

“Comunidades Tradicionais manifestam-se contra Bolsonaro”, em 24 de outubro de 2018,


cujo conteúdo é o do receio do enfraquecimento de instituições governamentais afetas às
políticas públicas relacionadas com as comunidades, como segue:

O Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba


(FCT), que reúne indígenas, caiçaras e quilombolas desta região e as
instituições parceiras abaixo subscritas, vem a público externar grande
preocupação com as manifestações irresponsáveis do candidato à
presidência Jair Messias Bolsonaro no que se refere a sua intenção de
desmontar e até mesmo extinguir importantes instituições públicas como
Ministério do Meio Ambiente, Ibama, ICMBio, Ministério da Cultura, e
enfraquecer políticas públicas ligadas a estes órgãos, assim como aquelas
relacionadas à Funai, Fundação Palmares, Incra e IPHAN. Estas declarações
são uma ameaça ao nosso patrimônio ambiental e cultural, protegidos pela
constituição federal. A flexibilização de legislações e instrumentos de
proteção desses patrimônios atendem tão somente aos interesses dos
setores do agronegócio, mineração, especulação imobiliária, empreiteiras
e construtoras, entre outros setores empresariais que tem por objetivo
ampliar suas fronteiras e aumentar incessantemente seus lucros à custa da
expropriação da natureza e dos territórios tradicionais e do acirramento
dos conflitos no campo.

Acreditamos que esses órgãos são importantes conquistas da democracia


e precisam ser mantidos, aprimorados e fortalecidos, uma vez que são
fundamentais na proteção do meio ambiente, na salvaguarda das
manifestações culturais tradicionais, bem como no reconhecimento dos
territórios tradicionais, manutenção e fortalecimento de políticas públicas
para os povos e comunidades tradicionais e garantia dos direitos já
adquiridos.

Dessa forma, nos posicionamos em defesa do estado democrático de


direitos e destas instituições citadas, que são fundamentais à proteção e
garantia de direitos ambientais e culturais das comunidades tradicionais e
de toda a sociedade brasileira e nos posicionamos também contra os
retrocessos que a possível eleição deste candidato representará.

Transcrevi longos trechos para deixar expresso, aqui, os elementos utilizados


que mesclam as justificativas das próprias políticas públicas, das atribuições precípuas das
instituições responsáveis pela execução dessas políticas e dos pleitos das comunidades, em
manifestação subscrita pelas comunidades. Com o resultado para a o diálogo direto e rápido
com essas instituições nessa linguagem que se vale de “chaves de diálogo”, estas sendo um
expediente da administração pública e do Estado em transitarem por um universo de temas

294
295

e que, aqui, aparece a comunidade caminhando sobre esse mesmo expediente


governamental em proveito da voz da própria comunidade.

5.6. Comunidade e território

O espaço do Mosaico da Bocaina, das reuniões do seu Conselho e seus


desdobramentos serviram como mais um nó em uma rede de relações para as comunidades
tradicionais, que possuem outras tantas redes de relações e interesses. Junto a isso, quero
destacar que nesse espaço, as comunidades tiveram chances de virem como unidades de
conservação são criadas, as dificuldades enfrentadas pelas instituições gestoras das unidades
de conservação e as questões e dúvidas dos gestores dessas unidades de conservação.
Também, os gestores viram as comunidades sob outros aspectos que não os de incidentes
em unidades de conservação. Os arranjos locais com base nessa proximidade de agentes
públicos e comunidades ― que propiciou se virem como sujeitos uns ao outros ― puderam
não lograr reconhecimento por parte do Estado. As reuniões do Conselho Consultivo do
Mosaico da Bocaina se constituíram em um espaço de governança da administração pública,
no sentido do exercício do poder, em que são os seus recursos: os fatores sociais,
econômicos e podemos incluir territoriais, um dos pilares do exercício do poder do Estado
em Raffestin (RAFFESTIN, [1980] 1993), por meio do planejamento, no monitoramento da
formulação de ações e na programação das mesmas, para serem cumpridas as funções do
Estado.

Nessa relação de reuniões, de execução de programas e de ações, oficinas, etc.;


têm lugar “chaves de diálogo” amplamente utilizadas pelo Poder Público em normas,
documentos e nas falas orais: “usos tradicionais”, “uso sustentável”, “formas próprias do
seu modo de vida”, “usos dos recursos naturais”, “populações tradicionais”, “conservação
da biodiversidade” e outros termos remetem a um universo de questões e alçá-los indicam
um lugar de conexão com o tema e se pode pressupor um diálogo, quando um lado e outro
podem, de fato, não estarem conversando. Ao mesmo tempo, é uma linguagem que se
instaura em um marco de desigualdade ― que é a dos territórios ameaçados, mesmo os
territórios já garantidos, por interferência na autonomia das comunidades nas situações de
sobreposição ― pois se está dialogando na cena do que seria a incompatibilidade da
presença das comunidades em unidades de conservação e que tais “chaves de diálogo”
parecem atenuar a situação de questionamento e de proibição da permanência das

295
296

comunidades em unidades de conservação ao possibilitarem um diálogo, uma conversa,


aliás. O fato de tais expressões se tornarem esvaziadas de sentido pela demasiada aplicação
e repetição ― e porque não levam os sentidos das comunidades consigo ― permite um
maior e mais amplo uso das mesmas, sendo empregadas no discurso da manutenção da
biodiversidade (positivamente para as comunidades) tanto o quanto no discurso da
incompatibilidade de comunidade e povos tradicionais em unidades de conservação de
proteção integral (negativo para as comunidades).

Essa ampla aplicação é possível porque as expressões esvaziadas das


características das comunidades a que se referem ― “usos tradicionais”, “usos sustentável”,
“formas próprias do seu modo de vida”, “usos dos recursos naturais”, “populações
tradicionais”, “conservação da biodiversidade” ― podem ser entendidas tanto da forma
positiva quanto negativa relacionadas às comunidades, quando podem ter sido proferidas no
sentido inverso. Isso porque podem se referir exclusivamente às comunidades, apartando-
as dos seus territórios. Aquelas expressões comportam essa separação porque a maior parte
delas são ações, praticadas por sujeitos (“alguém”), mas não trazem elementos identitários
e não se referem a territórios. Mas até poderiam, eis a ambiguidade no discurso do Estado
que se ordena ou por uma via ou por outra; em favor ou em desfavor das comunidades
relacionadas aos seus territórios. Para que aquelas expressões incorporem o território elas
dependerão da pergunta “onde?” ou “de quem?”. As “chaves de diálogo” do vocabulário
socioambiental do Poder Público, portanto, mais favorecem uma manutenção da cesura
exercida pela escuta ⸻ de que fala Foucault para indicar sistemas de exclusão
(FOUCAULT, 2012, p. 13) ⸻, do que oferecem alguma margem para a agência das
comunidades, no sentido antinômico da ordem como analisa Kuang-ki Kim (KIM, 2003).

A identidade significa o acesso direto ao território em comunidades e povos


nominados pelo Estado, como aborda José Maurício Arruti, na proximidade e na coesão
território-direitos-identidade (ARRUTI, 1996, p. 129 e passim). Na mesma linha das
circunstâncias do acesso ao território em que a identidade já traz em sua essência o território,
a procuradora federal Débora Duprat186 Pereira diz que...

(...) ao conferir aos remanescentes das comunidades dos quilombos a


propriedade das terras por eles ocupadas, faz isso à vista da circunstância
de que os territórios físicos onde estão esses grupos constituem-se em

186
Ao analisar e criticar o Decreto nº 3.912/2001, revogado pelo Decreto nº 4.887/2003, sendo que aquele
impunha um período de ocupação para as comunidades quilombolas que, lido ao pé da letra, franqueava os
esbulhos que pudessem se ter dado anteriormente.
296
297

espaços simbólicos de identidade, de produção e reprodução cultural, não


sendo, portanto, algo exterior à identidade, mas sim a ela imanente”
(PEREIRA, 2002, p. 285)

Temos, em Arruti (1996) e em Pereira (2002) que território e comunidade não


são disjuntos: a identidade é fundamental no acesso ao território; e território é essencial e
pertence à identidade. O que proponho é um ajuste sutil, mas preciso, na abordagem de
território: território é elemento de identidade e não algo com o que a identidade e as
comunidades se relacionam. Para, com isso, é necessário buscar barrar esse interstício em
que o Estado se adentra na separação entre comunidade e território nos casos de
sobreposição em que as comunidades são abordadas e o território e a sua regularização ficam
como um assunto delas apartado, sendo as comunidades lidas nas unidades de conservação
pelos seus “usos” de um território que é uma unidade de conservação, portanto, os usos e as
comunidades são tomados como indesejáveis e se criminalizam as comunidades por isso.
Naquele I Encontro de Comunidades Tradicionais e Áreas Protegidas do Mosaico da
Bocaina, ocorrido em outubro de 2008, as comunidades questionaram os usos dos recursos
naturais por parte dos agentes das unidades de conservação e das estruturas das unidades de
conservação em seus territórios tradicionais.

297
298

Conclusão: Implicações das sobreposições

As sobreposições se dão sobre os conhecimentos, os usos e a apreensão do


espaço por parte das comunidades e, com isso, as sobreposições entre territórios tradicionais
e unidades de conservação estão modificando e desarranjando os contextos de tais
conhecimentos. Conhecimentos e comunidades são dinâmicos, o que é diferente de
adaptação providencial a condições impostas. Portanto, como todos os princípios ativos,
tecnologias não são ainda conhecidos, os seus “celeiros” acabam deixando de existir; o que
é uma falta de estratégia política, inclusive, para as futuras gerações da sociedade nacional,
em desacordo com o Artigo 225 da Constituição Federal.

Nos capítulos antecedentes, foram abordados os efeitos práticos das


sobreposições, que podem ser de diversas ordens, no aprendizado das comunidades em
lidarem com instituições; no aprendizado do Estado em lidar com comunidades na chance
ímpar que o Estado teria de conhecê-las nos seus territórios por meio dos seus agentes
públicos. No entanto, o envolvimento das comunidades tradicionais, povos indígenas e
quilombolas nos assuntos das unidades de conservação não tem a finalidade de conhecer,
senão a de excluir. A turbação da reprodução cultural, econômica e física das comunidades
tradicionais, povos indígenas e quilombolas nas situações de sobreposição as coloca em uma
linha descendente para deixarem de existir com o tempo. As interferências administrativas
das unidades de conservação na vida das comunidades desfazem a autonomia e a
autodeterminação que o reconhecimento de seus territórios, por parte do Estado, tem por
objetivo assegurar para elas.

As sobreposições foram feitas assuntos a serem discutidos e rediscutidos em


fóruns, reuniões, oficinas e com isso há um sobretrabalho para as comunidades em
manterem a pauta fundiária e a pauta da sua permanência nos seus territórios nos casos de
sobreposições, assuntos que o Estado separa para que não se encontrem e tenha ele, o
Estado, que resolver. Já há para as comunidades com os seus territórios reconhecidos
fundiariamente, há uma sobre-sobreposição aos territórios tradicionais identificados: a
primeira sobreposição é a do território institucional “sobre” o território tradicional
reconhecido; a segunda sobreposição é a da unidade de conservação, ou mais de uma
unidade de conservação.

298
299

Outra implicação de efeito prático das sobreposições é a atenção dada às


próprias comunidades e aos seus territórios no marco da sobreposição com unidades de
conservação. Acaba sendo levantados os usos das comunidades, no percurso da intenção de
exclusão das comunidades das áreas das unidades de conservação, junto a tais usos está
justamente o que deve estar e permanecer; especialmente no caso das comunidades
tradicionais não nominadas pelo Estado, pois há no levantamento da presença da
comunidade, com vistas à sua exclusão, um reconhecimento do Estado de que ela está,
ocupa e permanece determinado território.

Se há um “híbrido” (HAESBAERT, 2006, p. 55) entre sociedade e natureza, não


é na sobreposição entre territórios tradicionais e unidades de conservação que ele estará,
porque ali estão bastante separados os domínios, por obra da visão a partir das unidades de
conservação que recobre os territórios tradicionais, em que a “natureza” (uso aqui como
meio físico e biológico) acaba sendo um domínio exclusivo dos órgãos de gestão das
unidades de conservação; sendo, assim, retirado esse domínio das comunidades tradicionais,
dos povos indígenas, e dos quilombolas. É o caso de se devolver e parar de se retirar a
“natureza” das comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas como é feito nos
planos de manejo que não incorporam os conhecimentos das comunidades em proveito
dessa mesma “natureza”.

O discurso da conservação da biodiversidade, na vertente em que as


comunidades são essenciais (por suas atitudes e por seus conhecimentos e por elas
existirem) assevera a necessidade da presença das comunidades na manutenção dos
ambientes, como expressos em projetos e em relatórios e quando o Brasil se mostra ao
exterior do País. No trato prático da conservação da biodiversidade por meio das unidades
de conservação, o cenário é outro. No tema da conservação da biodiversidade o Estado
apresenta um discurso bifurcado ou discursos difusos, porque parte de vários pontos dentro
da estrutura do Estado, de cuja multifocalidade o Estado se serve para ora se reafirmar como
País megassociobiodiverso e ora para empreender a conservação da biodiversidade por meio
da conservação da natureza na cognição parcializada da gestão das unidades de conservação,
como abordado nesta tese. Os discursos do Estado, os quais transitam entre a conservação
da biodiversidade empreendida pelas comunidades e a conservação da biodiversidade por
meio de áreas restritivas a essas mesmas comunidades tradicionais, são discursos que
contam com visões cunhadas, também, na política, na história e na ciência e, por isso
mesmo, são visões circunstanciais. Não haveria contradição se fossem buscadas as

299
300

contribuições das comunidades e esmaecidos os exageros com que se restringem as


comunidades por não serem conhecidas de todo as suas contribuições. Portanto, se passa
que no desconhecimento, na dúvida, para as comunidades há um “não”. Nisso há a
oportunidade do Estado em desenhar quadros de questões arrumadas para neles se mover.
O Estado levará os dois discursos simultaneamente, com públicos diferentes para públicos
distintos ― me refiro às agências de financiamento com as quais o governo conta e aos
relatórios de gestão periódicos do governo, em que tais temas irão aparecer separados, na
“caixa” administrativa de cada instituição, não se cruzam e, portanto, não se contradizem.
O que permite essa dupla fala ― com um vocabulário próprio do Poder Público com
expressões tais como “usos de recursos naturais”, “conservação da biodiversidade”, entre
outras ― me pareceu ser a separação identitária da comunidades ao ser colocado o seu
território como algo com o qual uma comunidade se relaciona e não como um elemento
inerente à sua própria identidade. Daí a minha sugestão de entendermos “território” como
elemento constitutivo da identidade. Tema este que abordei nesta tese junto à percepção de
mundo, à língua e à linguagem, à organização social, que por si já envolvem os usos, a partir
das quais se desenham um território e que o diferencia de um território dado como uma
superfície em que tais coisas possam ser vistas, essa é uma pequena, e importante, diferença
com as tessituras de que fala Raffestin (RAFFESTIN, [1980] 1993, pp. 150-153).

Nessa separação de discursos, de visões, de públicos de diálogo feita pelo


Estado por meio da administração pública, os conhecimentos tradicionais serão tratados
mais relacionados às próprias comunidades e, daí para diante, sob o assunto da repartição
de benefícios, em cumprimento à Convenção sobre a Diversidade Biológica ― CDB e em
uma miríade de projetos para a “valorização” de tais conhecimentos, “resgate” de sementes,
de memória e assim por diante, se supondo um território para elas, não raro, pendente de
regularização fundiária ou de regulamentação normativa, no caso das comunidades
tradicionais que não possuem as “identidades garantidas” (ARRUTI, 2006, p. 52) pelo
Estado, o que poderá comprometer, vale dizer, a própria repartição de benefícios em face
de uma série de alegações da instituição que terá a obrigação de reparti-los com as
comunidades.

A profusão de atividades oferecidas às comunidades e a sobreposição como


assunto com importância posta à frente e antes do tratamento da questão da regularização
fundiária dos territórios tradicionais é uma oportunidade de o Estado se fazer presente, por
um lado e, por outro lado, de protelar a regularização fundiária. E isso não deve, de certo,

300
301

ser um mero efeito ou circunstância; pois dada a recorrência de tal protelação, me parece
um projeto. Lembrando que não há previsão de não serem criadas unidades de conservação
sobre territórios tradicionais. O que se vê, não é um ocultamento de uma intenção por trás
das ações do governo, senão a evidente recusa em reconhecer autonomia de outro sobre
porção territorial do Estado, exceto pelo direito de propriedade. Tudo se passa como se uma
vez reconhecidos os territórios quilombolas e as terras indígenas, o Estado buscasse alcançá-
los de volta por meio das sobreposições com interferência nos “usos dos recursos naturais”,
uma chave que o Estado disponibilizou para o reconhecimento dos territórios e que a
maneja, depois, por meio das unidades de conservação.

Dentre esses efeitos e os prováveis propósitos das sobreposições está a


desterritorialização. O entendimento de “desterritorialização”, aqui, é mais simples e
material que a desterritorialização de que fala Haesbaert (2006a).

Desterritorialização é a destituição programática da apreensão das próprias


comunidades dos seus territórios pela surdez de seus discursos e pelo recobrimento de suas
práticas por uma visão ambientalista de cunho preservacionista que não considera os
serviços ambientais prestados pelas comunidades nos territórios escolhidos para serem
criadas as unidades de conservação. Desterritorialização é o espaço de tempo em que a
inércia do Estado em reconhecer e em regularizar fundiariamente um território tradicional
se converte em um percalço à comunidade tradicional que vive no território ou o tem em
vista; pois, enquanto o Estado não institucionaliza o território tradicional e passa a não se
ocupar dele em um prazo que terceiros externos às comunidades tradicionais vão
consolidando uma outra ocupação. Dito de outra forma, a desterritorialização se passa tanto
quando a comunidade é destituída de importância identitária perante o Estado quanto
quando o status fundiário do território que é da comunidade é designado para outra
finalidade que não um território de comunidade tradicional, de povo indígena ou de
quilombola, para mencionar os grupos étnicos sociais que conhecemos até o momento.

301
302

DOCUMENTOS ANALISADOS

CÂMARA DOS DEPUTADOS


Projeto de Lei n° 2.892/1992.
(CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1992), do qual resultou a Lei do SNUC (Lei
nº 9.985/2000).
Acesso ao processo físico digitalizado: www.camara.leg.br (em “proposições”)

ICMBIO ― INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA


BIODIVERSIDADE
Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental de Cairuçu (ICMBio, 2018)
Acesso: www.icmbio.gov.br

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL


Ação Civil Pública (pedido de urgência em 4 de dezembro de 2018);
Dependente da Ação Civil Pública nº 000841-78.2009.4.02.5111; referente ao
Inquérito Civil nº 1.30.014.000229/2016-76; 1.30.014.000141/2012-21;
1.30.000052/2018-70; 1.30.000168/2017-28 e 1.30.014.000203/2003-11.
(MPF ― Ministério Público Federal, 04/12/2018), a respeito das comunidades
de Laranjeiras, Praia do Sono, Ponta Negra e Patrimônio, em Paraty, Estado do
Rio de Janeiro.
Acesso: www.mpf.mp.br

MOSAICO DA BOCAINA
Atas das Reuniões do Conselho Consultivo do Mosaico da Bocaina ⸻
CCMB (2007-2015).
27 documentos.
Acesso inviabilizado para: www.bocaina.org
Acesso possível em Waybackmachine:
https://web.archive.org/web/sitemap/www.bocaina.org.br

302
303

BIBLIOGRAFIA

ABRAMS, P., [1977] 1988. Notas sobre la dificultad de estudiar el Estado (1977). Journal of
Historical Sociology, março, Volume 1. N. I, pp. 58-89.
ABRAMS, P., GUPTA, A. & MITCHELL, T., 2015. Antropología del Estado.
ADAMS, C., MURRIETA, R. & NEVES, W., 2006. Introdução. Em: Sociedades Caboclas
Amazônicas. Modernidade e invisibilidade. São Paulo(SP): Annablume.
ALMEIDA, A. F. d., 1998. A formação do espaço brasileiro e o projecto do Novo Atlas do Brasil.
Lisboa: Universidade Nova de Lisboa.
ALMEIDA, M. W. B. d. & REZENDE, R. S., 2013. Uma nota sobre comunidades tradicionais e
unidades de conservação. Ruris, Volume 7. N. 2, pp. 185-195.
ANDRADE E SILVA, J. J., 1701. Collecção chronologica da legislação portugeza compilada e
annotada. Acervo USP ed. Lisboa: Imprensa Nacional.
ANTONIL, J. A., [1711] 1968. Cultura e opulencia do Brasil por suas dorgas e minas. Paris:
Institut des Hautes àtudes de l'Amerique Latine.
ARENDT, H., 1998. O que é política?. Rio de Janeiro(RJ): Bertrand Brasil.
ARRUTI, J. M., 1996. O Reencantamento do Mundo. Trama histórica e Arranjos Territoriais
Pankararu. Rio de Janeiro(RJ): Dissertação/PPGAS-MN/UFRJ.
ARRUTI, J. M., 2003. Relatório Técnico Científico sobre a Comunidade de Quilombo de
Cangume, Município de Itaóca, São Paulo, São Paulo: (Mimeo-cortesia do autor e em
http://www.itesp.sp.gov.br/br/info/acoes/rtc/RTC_Cangume.pdf).
ARRUTI, J. M., 2006. Mocambo - Antropologia e História do processo de formação quilombola.
Bauru(SP): Edusc.
ARRUTI, J. M., 2007. Relatório Antropológico: Comunidade de Cabral, Paraty-Mirim, 2º
Distrito de Paraty, RJ, Rio de Janeiro: s.n.
ARRUTI, J. M. P. A., 2016. Reintroduzindo o Relatório Histórico-Antropológico do Mocambo
de Porto da Folha vinte anos depois. Ambivalências - Revista do Grupo de Pesquisa
“Processos Identitários e Poder” – GEPPIP, Volume V.4 • N.7.
BARRETO FILHO, H. T., 2005. Disciplinando a diversidade cultural: uma perspectiva
antropológica sobre a Portaria 14. Em: Antropologia e identificação: os antropólogos e
a definição de terras indígenas no Brasil, 1997-2002. Rio de Janeiro(RJ): Contra Capa,
pp. 119-135.

303
304

BARRETTO FILHO, H. T., 2001. Da nação ao planeta através da natureza: uma abordagem
antropológica das unidades de conservação de proteção integral na Amazônia
brasileira. São Paulo(SP): TESE/USP.
BRASIL, 1972. BRASIL Relatório da Delegação do Brasil à Conferência das Nações Unidas
sobre o Meio Ambiente Humano, Estocolmo, 1972. Disponível em
https://cetesb.sp.gov.br/proclima/ ed. São Paulo(SP): CETESB.
BRITO, F., 2012. Corredores Ecológicos: uma estratégia integradora na gestão de
ecossistemas. 2ª ed. Florianópolis(SC): Editora da UFSC.
CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1992. Projeto de Lei nº 2.892/1992-Processo. Brasília(DF):
Câmara dos Deputados.
CARVALHO, F. d. A., 2011. A memória toponímica da Estrada Real e os escritos dos viajantes
naturalistas dos séculos XVIII e XIX. Paraty; 10-13 de maio, s.n.
CARVALHO, M. A. R. d., 1998. O quinto século. André Rebouças e a construção do Brasil.
s.l.:Revan.
CARVALHO, R. C. d., 2015. Flora domesticada: percepções sobre os jardins do Rio de Janeiro
(1890 - 1909). Campinas(SP): Dissertação em Antropologia/Unicamp.
CASCUDO, L. d. C., 2006. Prelúdio da cachaça. s/c: Global.
CASTRO, D. S., 2013. A instituição da Reserva Legal no Código Florestal Brasileiro:
fundamentos histórico-conceituais. Revista do Departamento de Geografia – USP,
Volume V.26, pp. 132-154.
CASTRO, P. d., 1907. Carta Geographica do Territorio do Acre (desenhado por Arthur Duarte).
Rio de Janeiro(RJ): Francisco Alves & Companhia Editores.
CAVALCANTE, P., LOTTA, G. S. & OLIVEIRA, V. E. d., 2018. Do insulamento burocrático
à governança democrática: as transformações institucionais e a burocracia no Brasil. Em:
Burocracia e políticas públicas no Brasil. Interseções analíticas. Brasília(DF): Enap;
IPEA.
CINTRA, J. P., 2012. O Mapa das Cortes e as fronteiras do Brasil. Boletim de Ciências
Geodésicas, Volume 18-3.
CINTRA, J. P., 2017. Os limites das capitanias hereditárias do sul e o conceito de território. Anais
do Museu Paulista, mai-ago, Volume V.25; N.2.
COLCHESTER, M., 2000. Resgatando a Natureza: comunidades tradicionais e áreas protegidas.
Em: Etnoconservação. Novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. São
Paulo: Annablume.
CONSELHO CONSULTIVO DO MOSAICO BOCAINA, 2011. Manifestação Mosaico
Bocaina n.º 01/2011 — 29/04/2011, s.l.: s.n.
CORBIN, A., 1989. O teritório do vazio. A praia e o imaginário ocidental. São Paulo:
Companhia das Letras.

304
305

CORDANI, U. G. .., MARCOVITCH, J. & SALATI, E., 1997. Avaliação das ações brasileiras
após a Rio-92. Estudos Avançados, abril, Volume 11, pp. 399-408.
CPDA, 2015. Conflitos por terra e repressão no campo no Estado do Rio de Janeiro (1946-1988)
- Relatório Final; E-38/2013 - Apoio ao estudo de temas relativos a violações dos
Direitos Humanos (Processo E-26/110.008/2014). Rio de Janeiro(RJ): CPDA –
Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e
Sociedade.
CRUZ, R. d. C., 2000. Política de turismo e território. São Paulo(SP): Contexto.
CUNHA, M. C. d., 1986. Antropologia do Brasil : mito, historia, etnicidade. São Paulo:
Brasiliense.
CZERESNIA, D., 1997. Do contágio à transmissão: uma mudança na estrutura perceptiva de
apreensão da epidemia. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, mar-jun, Volume IV
(l), pp. 75-94.
DE FRANCESCO, A. A., 2012. Este é o nosso lugar: uma etnografia da territorialidade caiçara
na Cajaíba (Paraty, RJ). Campinas(SP): Dissertação/Unicamp.
DEAN, W., 1996. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São
Paulo(SP): Companhia das Letras.
DIEGUES, A. C. (., 2000. Os Saberes Tradicionais e a Biodiversidade no Brasil. Brasília(DF):
Ministério do Meio Ambiente-MMA.
DIEGUES, A. C., s/d. Da Reserva Ecológico-Cultural (REC) à Reserva de Desenvolvimento
Sustentável (RDS):um pouco da história recente. São Paulo(SP): Nupaub/USP.
DOUGLAS, M., 2007. Como as instituições pensam. São Paulo(SP): Edusp.
DUDLE, N., 2008. Guidelines for Applying Protected Area Management Categories. Gland:
IUCN.
DURKHEIM, É. & MAUSS, M., [1903] 1990. Algumas formas primitivas de classificação:
contribuição para o estudo das representações coletivas. Em: Ensaios de Sociologia. São
Paulo(SP): Perspectiva.
ELLIS, M., 1972. SÃO PAULO, DE CAPITANIA A PROVÍNCIA. Pontos de partida para uma
História político-administrativa da Capitania de São Paulo. Primeiro Congresso de
História de História, pp. 147-216.
FCT - Fórum de Comunidades Tradicionais e outras associações, 2017. Carta de Ubatuba.
Ubatuba(SP): s.n.
FCT - Fórum de Comunidades Tradicionais, 2018. Educação das comunidades tradicionais em
Paraty: um balanço de 2 anos de Educação (2015-2017). Paraty(RJ): s.n.
FOLHA DE SÃO PAULO, 2001. Condomínio "invade" santuário ecológico (reportagem de
Sérgio Torres). São Paulo(SP): s.n.

305
306

FOUCAULT, M., 2012. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France (2 de


dezembro de 1970). SãoPaulo(SP): Loyola.
FRANÇA, L., 1982. Enciclopédia Saraiva do Direito - Tombamento. Volume 74.
FRANCO, J. L. d. A., SCHITTINI, G. d. M. & BRAZ, V. d. S., 2015. História da conservação
da natureza e das áreas protegidas: panorama geral. Historiæ, Volume 6 (2), pp. 233-270.
FUNDO BRASIL, 2017. Litígios Socioambientais: Defesa dos Territórios Tradicionais em
conflito de sobreposição com Unidades de Conservação na Região da Bocaina. s.l.:s.n.
GEERTZ, C., 2002. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro(RJ): Editora da
EFRJ.
GIDDENS, A., 1991. Modernity and self-identity: self and society in the Late Modern Age.
Stanford: Stanford University Press.
GODOY JÚNIOR, E. & CAMARGO, J. R. (., 2006. Estudo técnico do caso do Saco do
Mamanguá – Paraty-RJ: uma questão sócio-ambiental. Em: (Estudo de caso).
Taubaté(SP): Universidade de Taubaté, p. 12.
GOLIN, T., 2011. Cartografia da Guerra Guaranítica. Paraty, s.n.
GOMES, L. J., 2002. Conflitos entre a conservação e o uso da terra em comunidades rurai no
entorno do Parque Nacional da Serra da Bocaina: uma análise interpretativa.
Campinas(SP): Tese-Engenharia Agrícola/UNICAMP.
GÓMEZ-POMPA, A. & KAUS, A., 2000. Domesticando o mito da natureza selvagem. Em:
Etnoconservação. Novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. São Paulo:
Annablume.
GOTTMANN, J., 1973. The Significance of Territory. Charlottesville: University Press of
Virginia.
GOULART, S., 1990. Sob a verdade oficial: ideologia, propaganda e censura no Estado Novo.
São Paulo(SP): Marco Zero.
GUGELMIN, E. E. et al., 2003. Agenda 21 Local no Brasil. Em: Políticas Ambientais no Brasil:
análises, instrumentos e experiências. Brasília(DF): IIEB, pp. 89-112.
HAESBAERT, R., 2006. O mito da desterritorialização. Rio de Janeiro(RJ): Bertrand Brasil.
HAMMERL, P. C., 2013. Política ambiental e o turismo na Era Vargas: análise do caso de
Campos do Jordão-SP. Priscyla Christine Hammerl XXVII Simpósio nacional de história
- Conhecimento histórico diálogo social; Natal, 26 a 22 de julho.
HOLZER, W., 2008. A Geografia Humanista: uma revisão. Espaço e Cultura, Issue Edição
comemorativa:1993-2008, pp. 137-147.
IBAMA, 2004. Plano de Manejo da APA de Cairuçu, Brasília: IBAMA - Instituto do Meio
Ambiente e dos Recursos Renováveis; MMA - Ministério do Meio Ambiente.

306
307

IBDF - INSTITUTO BRASILEIRO DE DESENVOLVIMENTO FLORESTAL, 1980. Plano de


Manejo do Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Brasília: s.n.
ICMBio, 2001-b. Plano de Manejo da Estação Ecológica de Tamoios - Relatório da Oficina de
Planejamento. Angra dos Reis(RJ): Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade - ICMBiio; Ministério do Meio Ambiente.
ICMBio, 2001. Plano de Manejo da Estação Ecológica de Tamoios - Fase 1; Encarte 1 - Dados
Gerais. Angra dos Reis(RJ): Instituto Chico Mendes de Conservalção da Biodiversidade
- ICMBio; Ministério do Meio Ambiente - MMA.
ICMBio, 2004. Plano de Manejo da APA de Curiaçu. Encarte Proteção Legal - Unidades de
Conservação, Brasília: Instituto Chico Mendes de Conservalção da Biodiversidade -
ICMBio; Ministério do Meio Ambiente - MMA.
ICMBio, 2018. Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental de Cairuçu. maio.
IGARA, 2011. Definição de categoria de Unidade de Conservação da Natureza para o espaço
territorial constituído pela Reserva Ecologica da Juatinga e Área Estadual de Lazer de
Paraty Mirim. Em: Rio de Janeiro(RJ): IGARA Consultoria em Aquicultura e Gestão
Ambiental.
INCRA ― INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA, 2017.
Perguntas e respostas. Brasília(DF): Coordenação Geral de Regularização de Territórios
Quilombolas ―DFQ/Diretoria de Ordenamento da Estrutura Fundiária/Incra.
INEA - Instituto Estadual do Ambiente, 2011. Proposta de criação da Área de Proteção
Ambiental Estadual Marinha da Baía da Ilha Grande, Rio de Janeiro: s.n.
ISA - Instituto Socioambiental, 2000. Povos Indígenas no Brasil: 1996-2000. Brasília: Instituto
Socioambiental.
IVANOVA, M., 2012. Institutional design and UNEP reform: historical insights on form,
function and finacing. International Affairs, Volume 88. N. 3, pp. 565-584.
KIM, K.-k., 2003. Order and agency in modernity: Talcot parsons, Erving Goffman and Harold
Garfinkel. New York: State University of New York Press.
LEITE, H. P. P., 2007. Planalto do Itatiaia, região das Agulhas Negras. Rio de Janeiro: Publit.
LENHARO, A., 1993. As tropas de moderação. O abastecimento da corte na formação política
do Brasil 1808-1842.. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e
Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural.
LIMA, A. C. d. S., 2005. A identificação como categoria histórica. Em: Antropologia e
identificação. Rio de Janeiro(RF): Contra Capa, pp. 29-73.
LUCA, T. R. d., 2011. A produção do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) em acervos
norte-americanos: estudo de caso. Revista Brasileira de História, Volume 31. N. 61, pp.
271-296.

307
308

MACHADO, L. O., 1995. Angra dos Reis: porque olhar para o passado?, Rio de Janeiro:
Convênio Furnas-UFRJ.
MARTINS, M. F., 2003. Descrição e análise de aspectos da gramática Guarani Mbyá.
Campinas(SP): Tese/Unicamp.
MAUSS, M., [1950] 2003. Sociologia e Antropologia. São Paulo(SP): Cosa Naify.
MDS ― Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome e MMA ― Ministério do
Meio Ambiente, 2006. Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e
Comunidades Tradicionais ― Subsídios para a elaboração do texto base para a Oficina
de Trabalho (25 e 26 de maio de 2006). Brasília: 1º versão, 9 de maio de 2006 (mimeo).
MEDEIROS, R., 2006. Evolução das tiopologias e categorias de Áreas Protegidas no Brasil.
Ambiente & Sociedade, jan/jun, Volume IX, pp. 41-64.
MENDES JÚNIOR, R. F., 2009. Os animais são muito mais que algo somente bom para comer.
Rio de Janeiro: Dissertação/UFF.
MENDONÇA, M. d. O., 2009. Apropriação do espaço Caiçara em Paraty, RJ. São Luís, UFMA.
MERCADANTE, M., 2001. Uma década de debate e negociação: a história da elaboração da Lei
do SNUC. Em: Direito Ambiental das Áreas Protegidas. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, pp. 190-231.
MITCHELL, T., 2015. Sociedad, Economia y el efecto del estado. Em: Antropología del estado.
México: FCE.
MMA - Ministério do Meio Ambiente; Portaria/MMA 76, de 11 de março de 2005, 2005.
Reconhecimento do Mosaico Capivara-Confusões (PI). [Online]
Available at: http://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/mosaicos/portaria-
capivara.pdf
[Acesso em 30 de outubro de 2018].
MMA - Ministério do Meio Ambiente, 2002 [data de aprovação do Plano de Manejo]. Plano de
Manejo do Parque Nacional da Serra da Bocaina - ENCARTE 1: Informações Gerais do
Parque Nacional da Serra da Bocaina. Brasília(DF): s.n.
MMA - Ministério do Meio Ambiente, 2006. Plano Estratégido Nacional de Áreas Protegidas -
PNAP. Brasília(DF): DAP/MMA.
MOTA, I. S. d., 2007. Uma via cênica no Parque Estadual da Serra do Mar – PESM.
Campinas(SP): Dissertação em Engenharia Civil/Unicamp.
MPF ― Ministério Público Federal, 04/12/2018. Ação Civil Pública (RPPN Condomínio
Laranjeiras); Dependente da Ação Civil Pública nº 000841-78.2009.4.02.5111. Angra
dos Reis(RJ): s.n.
MPF ― MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2014. Territórios de Povos e Comunidades
Tradicionais e as Unidades de Conservação de Proteção Integral - Alternativas para o
Asseguramento de Direitos Socioambientais. Brasília(DF): MPF.

308
309

MUSSOLINI, G., 1980. Ensaios de Antropologia Indígena e Caiçara. Rio de Janeiro (RJ): Paz
e Terra.
NEEDELL, J., 1993. Belle Époque tropical. São Paulo(SP): Companhia das Letras.
NIMUENDAJÚ, C., 2017. Mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes. Brasília(DF):
IPHAN; IBGE.
NOGUEIRA, N. d. V., 2011. Paraty: análise histórica do seu desenvolvimento turístico.
Niterói(RJ): TCC/Turismo: UFF.
OLIVEIRA, J. P., 1999. Apresentação. Em: A viagem de volta: etnicidade, política e
reelaboração cultural nno nordeste indígena. Rio de Janeiro(RJ): Contra Capa Livraria.
OLIVEIRA, L. D., 2015. OLIVEIRA Leandro Dias de Entre a ideologia e a utopia: reflexões
sobre a geopolítica do Desenvolvimento Sustentável. REDE – Revista Eletrônica do
PRODEMA, jan/jun.pp. 7-20.
OLIVEIRA, R., 2014. Licenciamento Ambiental e Nuclear de Angra 3. 3º Seminário sobre
Energia Nuclear Aspectos Econômicos, Políticos e Ambientais (Laboratório de
Geografia Física do Instituto de Geografia da UERJ).
PARATY, C. D. V. D., 2014. Requerimento da Câmara Municipal de Paraty nº 23, de 24 de
março de 1914. Em: s.l.:s.n.
PELLEGRINO, P. R. M., 2012. Corredores Ecológicos na Reserva da Biosfera do Cinturão
Verde de São Paulo: possibilidades e conflitos. São Paulo(SP): Tese/FAU-USP.
PEREIRA, D. M. D. d. B., 2002. Breves considerações sobre o Decreto n° 3.912/01. Em:
Quilombos : Identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro(RJ): FGV.
PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO DO MOSAICO CENTRAL FLUMINENSE, 2010.
[Online]
[Acesso em 4 de novembro de 2018].
POSEY, D., 1987. Introdução – Etnobiologia e prática. Em: Suma Etnológica Brasileira.
s.l.:Petrópolis: Vozes/Finep.
PREFEITURA MUNICIPAL DE PARATY, s/d. Proposta do Município para a Revisão do
Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental do Cairuçu - Apa Cairuçu. Paraty(RJ):
s.n.
PRESERVAR É RESISTIR, 2014. Campanha. [Online]
Available at: http://www.preservareresistir.org/campanha
[Acesso em 9 de novembro de 2018].
PRIESTER, M. F., 2015. Os olhares sobre o bairro histórico de Paraty/RJ: Análise de
intervenções na arquitetura civil e no espaço público. Mestrado Profissional do Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ed. Rio de Janeiro(RJ): IHAN.
RAFFESTIN, C., [1980] 1993. Por uma geografia do poder. São Paulo(SP): Ática.

309
310

RIBAS, M. C., 2003. A história do Caminho do Ouro em Paraty. 3ª ed. paraty(RJ): Contest
Produções Culturais.
RODRIGUES, G., 2013. A presença dos padres matemáticos na América Portuguesa. s.l., s.n.
ROSENAU, J. N., 2000. Ordem e transformação na política mundial. Em: Governança sem
governo: ordem e transformação na política mundial. Brasília; São Paulo(DF; SP):
Editora da UnB e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, pp. 11-46.
SANTOS, B. d. S., 2004. Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as
ciências revisitado. São Paulo(SP): Cortez.
SANTOS, B. d. S., MENESES, M. P. G. d. & NUNES, J. A., 2005. Introdução: Para ampliar o
cânone da ciência: a diversidade epistemológica do mundo. Em: Semear outras soluções:
os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos. Rio de janeiro(RJ): Civilização
Brasileira, pp. 21-122.
SCHETTINO, M. P. F., 2005. Áreas Etnográficas: proposta de reestruturação. Em: Antropologia
e Identificação: os antrop´´ologos e a definição de terras indígenas no Brasil - 1977-
2002. Rio de Janeiro(RJ): LACED/CNPq/FAPERJ/IIEB, pp. 137-146.
SEEMANN, J., 2005. Em busca do lugar de Franz Boas na geografia cultural. Espaço e Cultura,
jan-dez, Volume N. 19-20, pp. 7-21.
SILVA, M. B. d. N., 2019. Cecília Meireles: a educadora jornalista na imprensa. Em: Os
intelectuais brasileiros a realidade social. Jundiaí(SP): Paco Editorial.
SIQUEIRA, P., 1989. Os caiçaras e a Rio-Santos. São Paulo em Perspectiva, out/dez, Volume
3(4), pp. 62-64.
SOUZA, J. J. C. P. e., 1825. Esboço de hum diccionario juridico, theortico, e paractico remissivo
ás leis compiladas, e extravagantes. Biblioteca da Universidade de Coimbra (digital) ed.
Lisboa: s.n.
SOUZA, J. M. d. A., 2017. Os indígenas da Reserva Caramuru-Paraguassu: famílias étnicas e
organização política. Revista de estudos em relações interétnicas, Volume V.20; N.2.
STRAFORINI, R., 2006. Estradas Reais no século XVIII: a importância de um complexo sistema
de circulação na produção territórial brasileira , 1 de agosto de 2006. Scripta Nova -
Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Volume Vol. X, núm. 218 (33).
TOZZO, R. A. & MARCHI, E. C. d., 2014. Unidades de Conservação no Brasil: uma visão
conceitual, histórica e legislativa. Revista Meio Ambiente e Sustentabilidade, jul-dez,
Volume V.6; N.3, pp. 508-523.
TUAN, Y.-F., [1974] 1980. Topofilia - um estudo da percepção, atitudes e valores do meio
ambiente. São Paulo e Rio de Janeiro(SP/RJ): Difel.
TUAN, Y. F., [1977] 1983. Espaço e lugar: a perspectiva de experiência. São Paulo(SP): Difel.
UNB - UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, s.d. Atlas Digital da América Lusa. Brasília: UnB.

310
311

UNITED NATIONS, 1987. Report of the World Commission on Environment and Development
“Our common future”. , s.l.: s.n.
URSINI, L. B., 2008. Relatório antropológico de caraterização histórica, econômica e sócio-
cultural do território dos Remanescentes das Comunidades do Quilombo Machadinho -
Paracatu/MG (Laudo Pericial Antropológico), Brasília: INCRA.
VARELA, A. G., LOPES, M. M. & FONSECA, M. R. F. d., 2005. Naturalista e homem público:
a trajetória do ilustrado José Bonifácio de Andrada e Silva em sua fase portuguesa (1780
-1819). Anais do Museu Paulista, Volume 3. N. 1, pp. 207-234.
VITAL, A. V., 2016. Política e saúde pública no cativeiro dos rios: a integração nacional do
Território Federal do Acre (Alto Purus, 1904-1920). Tese em História das Ciências e da
Saúde da Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz. Rui de Janeiro(RJ): Fiocruz.
VITAL, A. V., 2018. As “Florestas Sagradas” do impasse: a Reserva Florestal do Território
Federal do Acre (1911). HALAC – Historia Ambiental, Latinoamericana y Caribeña,
Volume 8. N. 1, pp. 42-66.
WWF BRASIL, 2006. Reserva de Desenvolvimento Sustentável - RDS: análise da categoria de
manejo e proposta de regulamentação. Em: Brasília(DF): s.n.
ZUQUIM, M. d. L., 2002. Os Caminhos da Bocaina: uma Questão Agrária Ambiental. São
Paulo(SP): (Tese em Arquitetura e Urbanismo) FAU/USP.

311
312

ANEXO 1 ― Políticas públicas e ações do antigo Ministério do


Desenvolvimento Social e Combate à Fome ― MDS, na Secretaria
de Articulação Institucional e Parcerias ― SAIP para povos e
comunidades tradicionais (2006)

Observação: Reproduzo a seguir, parte de um relatório de minha autoria das


atividades sob responsabilidade da SAIP, em 2006, a título de registro das atividades daquele
Ministério e que podem servir como informação inicial ou complementar a pesquisadores
interessados em políticas públicas para comunidades tradicionais no País. A distribuição de
tarefas no Núcleo de Povos e Comunidades Tradicionais/SAIP/MDS tinha o formato de que
todos os seis técnicos acompanhavam todas as ações, repassadas em reuniões periódicas, e
eram responsáveis, cada qual, por um grupo de programas ou ações; sob minha
reponsabilidade estavam os assuntos da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável
de Povos e Comunidades Tradicionais; acompanhamento do grupo interministerial para o
Programa de Revitalização do Rio São Francisco e do Comitê Executivo Nacional para o
Desenvolvimento Sustentável de Alcântara (CENDSA).

1. Programa Brasil Quilombola―PBQ - O MDS é membro da Coordenação do PBQ


(SEPPIR, MDA, MDS, FCP e Incra), que articula as ações de governo para
Comunidades Remanescentes de Quilombo e busca elaborar Planos de
Desenvolvimento Sustentável para essas comunidades;

2. Projetos PETROBRAS ― Foram 10 Projetos aprovados e financiados, na ordem de


R$3,8 milhões (Recursos da Petrobrás), com acompanhamento e monitoramento do
MDS e SEPPIR. 10 Comunidades beneficiadas: Castainho (PE), Itamatatiua (MA),
Ivaporunduva (SP), Mocambo (SE), Oriximiná (PA), Rio das Contas (BA),
Sumidouro (PI), Fazenda Machadinha (RJ), Tapuio (PI), Campinho da Independência
– (RJ). O MDS é membro do Comitê Gestor;

3. Projeto de Etnodesenvolvimento Econômico Solidário das Comunidades


Quilombolas ― Cooperam os órgãos: MDS, MTE, MDA, SEPPIR, FCP,
FUNASA/MS e FUBRA. O objetivo é valorizar as relações de cooperação; melhorar
a distribuição da renda; fortalecer o desenvolvimento local sustentável e transmitir o
conhecimento sobre a produção, por meio de organização nacional baseada na
Economia Solidária e na autogestão. Foi feito um diagnóstico da situação sócio-

312
313

econômica e de fomento à organização coletiva de 150 comunidades quilombolas,


além da formação de agentes de etnodesenvolvimento;

4. Programa Gera Ação Quilombola ― Cooperam os órgãos: MDS, SEPPIR, MDA,


FBB. A Chamada de Projetos para fortalecimento institucional, inclusão produtiva,
infra-estrutura e assitência técnica rural, abrangeu 50 comunidades remanescentes de
quilombos, localizadas em 20 Estados brasileiros. Recursos já aportados pelo MDS
da ordem de R$ 1.015.000,00 e possibilidade de mais R$ 500.000,00 para 2006;

5. Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades


Tradicionais ― Presidida pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome e secretariada pelo Ministério do Meio Ambiente, objetiva apoiar, propor,
avaliar, qualificar e articular os princípios e diretrizes das políticas públicas que
contemplam comunidades tradicionais no âmbito do Governo Federal. Têm em seu
escopo as Comunidades Remanescentes de Quilombos;

6. Programa de Revitalização do Rio São Francisco ― O MDS é parceiro, ao lado


de outros ministérios, órgãos federais, órgãos colegiados e governos estaduais de sete
estados (Alagoas, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Minas Gerais, Pernambuco e
Sergipe), para a implementação do Programa, em que “revitalização“ assume o
seguinte sentido, explicitado no site do Programa (www.mma.gov.br):

“Compreende o processo de recuperação, conservação e preservação


ambiental, por meio da implementação de ações integradas e
permanentes, que promovam o uso sustentável dos recursos naturais,
a melhoria das condições socioambientais, o aumento da quantidade
e a melhoria da qualidade da água para usos múltiplos.”

Nos dias 29 a 31 do maio de 2006 acontecerá o I Seminário dos Povos


e Comunidades Tradicionais da Bacia do São Francisco: Região do
Baixo e Sub-Médio, em Paulo Afonso (BA)

7. Ações de Mobilização Social (ocorrida) ― Apoio na Capacitação de Lideranças e


Agentes Locais em Ações Sustentáveis -Oficina em Maquiné/Prainha/Morro Alto,
no estado do Rio Grande do Sul, em agosto de 2004;

8. Apoio na Capacitação de Alfabetizadores Quilombolas – Programa BB Educar


(MDS, FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES, MEC, SEPPIR, FUNDAÇÃO
BANCO DO BRASIL). Projeto Piloto no Vale do Gorutuba – MG – MAI/JUN/2005;

9. O Comitê Executivo Nacional para o Desenvolvimento Sustentável de Alcântara


(CENDSA) ― O CENDSA, criado pelo Acordo de Cooperação Técnica (ACT),
iniciou seus trabalhos em 20 de janeiro de 2006, com o objetivo de coordenar e
acompanhar, na esfera federal, a execução das ações pertinentes ao Acordo. A
primeira iniciativa do CENDSA foi a instalação do Comitê Gestor Local, para
acompanhar as ações constantes do ACT na esfera regional, o que ocorreu em 22 de

313
314

fevereiro de 2006. O referido Comitê, também previsto no ACT, conta com a


participação de 15 (quinze) membros de órgãos governamentais e 15 (quinze)
membros de representações da sociedade civil.

10. Realização de Seminário Nacional de Capacitação de Gestores Públicos –


previsto;

11. Doações Parceiros Fome Zero Destinadas aos Quilombolas ― Ações


emergenciais e estruturantes: 637 toneladas de alimentos (feijão, farinha, arroz,
açúcar), 163 mil litros de leite, 90 computadores, 2.000 m2 de cerâmica, 2 veículos

314
315

ANEXO 2 — Quantitativo de Unidades de Conservação no Brasil nas instâncias federal, estadual e municipal
- julho/2019

315
316

ANEXO 3 ― Categorias de Unidades de Conservação (Lei nº


9.985, de 18 de julho de 2000)

316
317

grupo USO SUSTENTÁVEL


Categoria Característica Objetivo Uso

Área extensa, pública ou


Proteger a biodiversidade,
privada, com atributos
disciplinar o processo de São estabelecidas normas e restrições
Área de Proteção importantes para a
ocupação e assegurar a para a utilização de uma propriedade
Ambiental (APA) qualidade de vida das
sustentabilidade do uso privada localizada em uma APA.
populações humanas
dos recursos naturais.
locais.

Área de pequena
extensão, pública ou Respeitados os limites constitucionais,
Área de Relevante privada, com pouca ou Manter os ecossistemas podem ser estabelecidas normas e
Interesse Ecológico nenhuma ocupação naturais e regular o uso restrições para utilização de uma
(ARIE) humana, com admissível dessas áreas. propriedade privada localizada em uma
características naturais ARIE.
extraordinárias.

Uso múltiplo sustentável


Área de posse e domínio dos recursos florestais
público com cobertura para a pesquisa científica, Visitação, pesquisa científica e
Floresta Nacional
vegetal de espécies com ênfase em métodos manutenção de populações
(FLONA)
predominantemente para exploração tradicionais.
nativas. sustentável de florestas
nativas.

Proteger os meios de vida


Área de domínio público e a cultura das Extrativismo vegetal, agricultura de
Reserva
com uso concedido às populações extrativistas subsistência e criação de animais de
Extrativista
populações extrativistas tradicionais, e assegurar o pequeno porte. Visitação pode ser
(RESEX)
tradicionais. uso sustentável dos permitida.
recursos naturais.

Área natural de posse e


Preservar populações
domínio público, com
animais de espécies
Reserva de Fauna populações animais
nativas, terrestres ou Pesquisa científica.
(REFAU) adequadas para estudos
aquáticas, residentes ou
sobre o manejo econômico
migratórias.
sustentável.

Área natural, de domínio Preservar a natureza e


público, que abriga assegurar as condições
Exploração sustentável de
Reserva de populações tradicionais, necessárias para a
componentes do ecossistema.
Desenvolvimento cuja existência baseia-se reprodução e melhoria dos
Visitação e pesquisas científicas
Sustentável (RDS) em sistemas sustentáveis modos e da qualidade de
podem ser permitidas.
de exploração dos vida das populações
recursos naturais. tradicionais.

Reserva Particular
Área privada, gravada com Conservar a diversidade Pesquisa científica, atividades de
do Patrimônio
perpetuidade. biológica. educação ambiental e turismo.
Natural (RPPN)

Resumo a partir do SNUC (Lei nº 9.985/2000) e World Wildlife Fund for Nature - WWF "Unidades de Conservação", sítio.

317
318

ANEXO 4 ― Composição do Mosaico da Bocaina, 2015

Tabela 14 — Povos e Comunidades Tradicionais na composição do


Conselho Consultivo do Mosaico Bocaina, 2015

Tabela 15— Instituições privadas

318
319

Tabela 16— Instituições privadas no Conselho Consultivo do


Mosaico da Bocaina, 2015

Tabela 17 — Sociedade Civil (exceto Povos e Comunidades


Tradicionais) na composição do Conselho Consultivo do Mosaico
Bocaina, 2015

319
320

Tabela 18 — Instituições governamentais na composição do


Conselho Consultivo do Mosaico Bocaina, 2015

Tabela 19 ― Unidades de Conservação no Mosaico da Bocaina,


2015

320

Você também pode gostar