Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
UNIVERSIDADE DA INTEGRAÇÃO INTERNACIONAL DA LUSOFONIA AFRO-
BRASILEIRA
INSTITUTO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
FORTALEZA-REDENÇÃO
2022
2
FORTALEZA-REDENÇÃO
2022
Aprovada em XX/XX/2022.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
_____________________________________________
_____________________________________________
AGRADECIMENTOS
Primeiramente a Deus, Olorum, Pai Tupã, Gaya, Ser Supremo, pela perfeição dos
meus sentidos e por permitir que o alcance da minha compreensão se estenda e consiga,
minimamente, abarcar os conceitos profundos aqui oferecidos.
Ao Ministério Público Federal, em especial aos colegas Francisco Erivaldo de
Sousa Filho, Manuela Cartaxo Philomeno Gomes e Cícero Erivelthon Gomes de Melo, gestores
altamente capacitados, que entenderam a importância desse trabalho para nossa instituição e
viabilizaram meu afastamento das atividades laborais para realização da pesquisa.
À minha esposa Fabrízia Pimentel Bezerra Portela pela paciência nos momentos de
ausência que ao longo desses dois anos foram muitos.
Às minhas filhas Dandara e Marina Portela, fontes reais da minha inspiração diária.
À minha mãe Katia Maria de Souza Barbosa pela dedicação à minha formação,
sobretudo pelo legado de uma educação voltada ao amor e a caridade, princípios nos quais fui
instruído por ela e por minha avó paterna, Jandira Souto Portela dos Santos (in memoriam).
À minha irmã Rebecca Barbosa Portela pelo amor incondicional.
À família Souto, em especial às primas Carla Souto Lima e Maria Vitória Souto
Cruz e às tias-avós Glacil Maria Embiruçu Souto, Lícia Margarida Souto Cruz e Moema
Embiruçu Souto, que muito me auxiliaram na busca por informações dos nossos antepassados.
À minha tia-avó Luthgardes Portela dos Santos (in memoriam), que fez a passagem
para o plano espiritual no intercurso desta pesquisa e deixou suas últimas reminiscências sobre
a nossa família gravadas em áudios no meu celular, no período em que ficou internada no
Hospital Teresa de Lisieux em Salvador/Ba. Tia Lulu deixou um pouco do seu Axé comigo.
Ao meu pai biológico Hugo Eduardo Souto Portela dos Santos e ao meu tio-pai
Francisco Sérgio Souto Portela dos Santos por terem mandado notícias de Tia Lulu e viabilizado
nossos encontros.
À minha querida tia Tereza Vitória Souto Portela dos Santos, que se manteve em
contato comigo durante toda a pesquisa, indicando os caminhos que eu deveria trilhar para
encontrar mais elementos da nossa ancestralidade.
Ao Fórum de Negras, Negros e Negres das Ciências Sociais da UFC, em especial
a Lilica Santos e Carll Serena, por terem despertado em mim a necessidade e a urgência de
debater a questão das identidades étnico-raciais no Brasil, onde historicamente negou-se a
influência negra e indígena a partir do reforço de um ideal de mestiçagem à brasileira, no qual
supostamente prevalece uma falsa harmonia entre as raças.
6
SUMÁRIO
RESUMO................................................................................................................................. 11
Capítulo 1 – As Substâncias................................................................................................... 12
1. Prólogo ........................................................................................................................... 13
RESUMO
Esta pesquisa consiste num estudo antropológico que parte da seguinte reflexão: como as
abordagens contemporâneas das relações raciais podem influenciar na compreensão que temos
sobre raça, racismo e identidades étnico-raciais e, consequentemente, afetar autodeclarações e
heteroidentificações, fundamentais na execução institucional das políticas afirmativas? A
pesquisa desenvolve-se com base nos conceitos de substâncias teóricas e matérias investigadas.
O primeiro diz respeito a um conjunto de percepções de origem reflexiva, conceitual e
epistemológica. As substâncias teóricas advêm dos conceitos trazidos ao trabalho cuja base
assenta-se nos estudos desenvolvidos por Césarie ([1955], 2020), Ramos ([1957] 1995), Hall
([1992], 2006; 2003), Gonzalez (1988), Munanga (1996; 2003; [2004], 2019; [2009], 2019),
entre outros. As matérias investigadas consistem no corpo de dados empíricos pesquisados. Foi
feita uma revisão bibliográfica sobre os conceitos de raça, mestiçagem e identidade étnico-
racial e será apresentada uma análise situacional do campo de pesquisa, o Ministério Público
Federal brasileiro. As metodologias utilizadas serão: autorreflexão e Histórias de Vida (HV). A
participação observante e a entrevista etnográfica foram as técnicas selecionadas para o
desenvolvimento do trabalho. Serão realizadas 5 entrevistas com pessoas autodeclaradas,
branca, amarela, preta, parda e indígena, preferencialmente atuantes nas ações afirmativas do
órgão. Com isso busca-se um recorte empírico que permita uma visão que é ao mesmo tempo
particular e geral, pois elucidará a percepção de cada indivíduo a partir da sua trajetória de vida
considerando a categoria cor/raça de identificação. As entrevistas serão baseadas no método
das HV, as quais serão cotejadas com o auxílio de categorias afro-brasileiras, usadas como
recursos analíticos da pesquisa. As técnicas e metodologias utilizadas tem inspiração nos
trabalhos de Haraway (1995), Favrett-Saada (2005), Queiroz (1988), Paulilo (1999), Meksenas
(2002), Beaud & Weber (2007), Martins (1997) e Domingos (2017; 2020).
Capítulo 1 – As Substâncias
13
1. Prólogo
Kardec, assim como seus antecessores, em que pese ter aprofundado sobre a
natureza dos espíritos no seu trabalho, manteve a ideia de que ambos conceitos, apesar de
interligados, são independentes entre si. Senão vejamos:
Concordo com Viveiros de Castro que essa inversão feita pelo pensamento
ameríndio corrobora uma distinção entre conteúdos relativos às categorias Natureza e Cultura,
bem como seus análogos corpo e espírito, ou como nomearei nesse texto Matéria e Substância.
Além de supor que essas categorias não possuem o mesmo estatuto dos seus equivalentes
ocidentais, ou seja, apontam para o contexto relacional entre os conceitos, seus pontos de vista
(VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 116).
Em que pese minha posição pessoal estar mais próxima do perspectivismo
ameríndio e da cosmovisão tradicional Banto, nesse trabalho utilizarei as categorias Matéria e
Substância como designadores da distinção Corpo e Espírito.
Apresentei o termo “Matérias” investigadas como o conjunto de dados empíricos
pesquisados. Aqui Matéria será utilizada como conceito análogo ao designador Corpo.
Utilizarei também os termos corpo de dados ou corpo empírico como sinônimos de matéria
investigada.
“Substâncias” teóricas consistem no conjunto de percepções de origem reflexiva,
conceitual e epistemológica que podem ser traduzidos como o Espírito do presente trabalho.
Esse espírito advém do aporte conceitual trazido à baila cuja base assenta-se nos estudos
desenvolvidos por Césarie ([1955], 2020), Ramos ([1957] 1995), Hall ([1992], 2006; 2003),
Gonzalez (1988), Munanga (1996; 2003; [2004], 2019; [2009], 2019), entre outros.
Para refletir sobre a primeira substância teórica a qual denominei “questão” racial,
preciso explicar a utilização intencional das aspas na palavra. Busquei o uso do recurso para
instigar o/a leitor/a a pensar sobre o modo como a sociedade ocidental se estruturou, a partir do
colonialismo e depois do imperialismo, posicionando o debate sobre raça no lugar de mera
questão. O tema foi tratado sob diferentes perspectivas e quase todas fizeram referência à ideia
16
de democracia racial, conceito que será aprofundado na subseção 3.4, como importante
elemento para construção da nacionalidade brasileira.
No âmbito da ciência política, Guimarães (2001, p. 122), trouxe importantes
contribuições sobre como o tema foi tratado a partir de questões substantivas em especial sobre
a relação entre raça e política. Lamounier (1968) e Souza (1971) consideraram alguns pontos
sobre essa relação sem, contudo, ultrapassar o binômio branco-negro na análise. Os autores
concentraram-se na ideia de que negros e brancos têm comportamentos políticos diferenciais,
presumindo que essas diferenças estavam relacionadas às experiências de desigualdades sociais
vividas pelos integrantes dos dois grupos. Se por um lado essa perspectiva serviu para jogar luz
sobre o modo como essas experiências específicas influenciaram no ser político de negros e
brancos, por outro não aprofundou as nuanças e sutilezas que compõem a trajetória individual
de cada integrante, obliterando outras dimensões que interferem na formação política do
indivíduo, tais como, formação cultural, escolar, religiosa, entre outras.
Ainda no campo da política, Souza (1971, p. 122) identifica que a maioria dos que
escreveram sobre a relação entre raça e política no Brasil (SILVA e SOARES, 1985; CASTRO,
1992; BERQUÓ e ALENCASTRO, 1992; PRANDI, 1996) restringiram-se a estudar a questão
do comportamento dos políticos, brancos e negros.
No campo da análise sociológica, a construção do conceito de raça no Brasil
também se fez a partir da constatação de que as desigualdades sociais entre brancos e não-
brancos também poderiam ser reunidas em torno do referido binômio. Contudo, observação
feita por Costa (2002, p. 35) revela que no âmbito das desigualdades raciais, a categoria raça,
ao ser transformada num instrumento geral de análise, leva a uma compreensão incompleta da
formação nacional brasileira. Segundo Costa, isso implica em uma visão objetivista das relações
sociais, além de reduzir as identidades sociais apenas a sua dimensão político-instrumental.
Nesse sentido, aproximamos a nossa visão de raça do conceito apresentado por
Stuart Hall:
Desse modo, utilizo as aspas no termo questão para indicar que ao estudarmos temas
relacionados à raça e suas relações, não devemos deixá-los adstritos apenas a uma “questão”,
qual seja, o conjunto de desigualdades sociais entre brancos e não-brancos. Devemos
compreender o fenômeno das relações raciais a partir do entendimento de que o modelo de
17
sociedade que temos hoje foi erigido com base na diferenciação entre os povos e pela
subjugação de agrupamentos humanos específicos em detrimento de outros, com base em suas
características físicas, filosóficas, morais, religiosas etc (MUNANGA, 2003, p. 5).
A questão racial se constitui nesse cenário e tem como plano de fundo os debates
sobre a necessidade de implementação de uma agenda positiva, que busque restituir valores
sociais que contribuam para a superação das diferenças de raça, gênero, classe, origem e
geração e para que ocorra a justa distribuição do produto social aos que o produziram
efetivamente.
Por isso, esse trabalho não trata tão somente de reproduzir a história de brutalidade
da escravização, do tráfico humano, da mutilação, do genocídio1 de corpos e do epistemicídio2
de mentes no Atlântico Negro (GILROY, 2012, p. 161; GROSFOGUEL, 2016, p. 25). Essas,
sem dúvidas, são questões fundamentais que foram e estão sendo recuperadas em outros textos.
O que proponho aqui é um mergulho nas teorias, doutrinas e pensamentos, pondo-
os em debate na e pela ciência, com o intuito de fugir das superficialidades que crenças, opiniões
e o conteúdo de massa nos oferecem diariamente. Nesse sentido, apresento uma discussão sobre
o conceito de raça, identificando a sua componente histórica, ideológica e social, com o intuito
de aproximá-lo do debate contemporâneo sobre a temática.
Buscarei fundamentar minha ideia no fato de que o debate sobre raça é, além de
necessário e urgente, uma resposta à dinâmica de distribuição de poder que perdura desde o
largo século XVI e se intensificou a partir dos séculos XVIII e XIX, numa plataforma que
privilegiou grupos beneficiários históricos do sistema colonialista, construído às custas do
genocídio/epistemicídio dos sujeitos coloniais no sistema-mundo.
1
Para Abdias do Nascimento (1978, p. 69), a ameaça da “mancha negra” na miscigenação brasileira foi combatida
a partir do estupro da mulher negra pelos brancos da sociedade dominante, originando os produtos de sangue
misto: o multado, o pardo, o moreno, o parda-vasco, o homem de cor, o fusco. Para ele foi o processo de
mulatização, ocorrido ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX, apoiado na exploração sexual da negra, que retrata
um fenômeno de puro e simples genocídio pois, com o crescimento da população mulata a raça negra estaria
desaparecendo sob a coação do progressivo clareamento da população geral do país.
2
Para Santos e Meneses (2009) epistemicídio consiste na destruição de conhecimentos ligada à destruição de seres
humanos. Essa prática esteve ligada tanto à escravização de corpos, a partir de uma violência material, mas também
àquilo que Césarie ([1955], 2020, p. 25) descreveu como resultado do colonialismo a partir da prática de arrancar
milhões de homens de seus deuses, suas terras, seus costumes, sua vida, a dança, a sabedoria. O epistemicídio
também está ligado à ideia de que a África e a América, de um modo geral, e o negro e o ameríndio, em particular,
eram apresentados pelo europeu como os símbolos acabados da vida vegetal e limitada. Ou seja, sem conhecimento
ou sabedoria. Hegel dizia a propósito de tais figuras que eram estátuas sem linguagem nem consciência de si
(MBEMBE [2013], 2019, p. 30; HEGEL [1807], 2003, p. 469).
18
XVI refere-se aos 200 anos que cobrem o período entre 1450-1650. Concordamos que este é
um período central para a formação de um novo sistema histórico, o qual Wallestein denomina
como o moderno sistema-mundo ou a economia-mundo europeia ou a economia-mundo
capitalista. (GROSFOGUEL, 2016, p. 26). Usaremos o termo longo século XVI para nos
referirmos ao processo de “longa duração que cobre a formação inicial desse sistema histórico”.
O termo século XVI foi utilizado para nos referirmos aos anos 1500.
adiante, torna-se incompatível com a ideia de “Pretos” pois é associado aos habitantes da Arábia
antes de Maomé. Diop diz que se trata de uma das muitas contradições que denunciam o medo
que especialistas tem em afirmar que a civilização humana tenha sido originada pelos referidos
Negros (Kushitas, Cananeus, Egípcios, etc) (DIOP [1955], 1974, p. 349).
A questão da conexão do antigo Egito à África Negra também foi objeto de
discussão do teórico congolês, discípulo de Diop, Théophile Obenga (1936-). Durante um
simpósio internacional organizado pela UNESCO no Cairo em 1974 alguns pontos
significativos dessa relação foram expostos (OBENGA, 2004, p.2).
Primeiro, a relação entre a língua egípcia e as modernas línguas africanas, faladas
atualmente na África Negra, constituem a mesma comunidade linguística dividas em várias
partes. Segundo o antigo Egito era um reino antigo do nordeste da África, localizado no vale
do Nilo que, durante o período faraônico (3.400-343 a.C), tinha a natureza essencial de uma
civilização africana, “segundo seu espírito, caráter, comportamento, cultura, pensamento e
sentimento profundo” (OBENGA, 2004, p. 3).
Parece-me que a filosofia foi cúmplice dessas distorções. Hegel, considerado
grande filósofo, declarou em uma de suas palestras proferidas no inverno de 1830-31 sobre a
história filosófica da África:
“Com isso deixamos a África. Não vamos abordá-la posteriormente pois ela não faz
parte da história mundial; não tem nenhum movimento ou desenvolvimento para
mostrar (...) O Egito será abordado como transição do espírito humano do Oriente
para o Ocidente, mas ele não pertence ao espírito africano. Na verdade, o que
entendemos por África é algo fechado sem história, que ainda está envolto no espírito
natural, e que teve que ser apresentado aqui no limiar da história universal” (HEGEL
[1995], 2008, p. 88)
Apesar de não ter sido historiador, essa visão da filosofia hegeliana tornou-se quase
uma opinião comum e um paradigma acadêmico na História Ocidental. A questão por trás do
argumento hegeliano é a não aceitação de que uma grande cultura ou civilização tenha sido
produzida por pessoas Africanas (pretas). Além disso, segundo o raciocínio acima, os Africanos
nunca tiveram qualquer tipo de contribuição para a história do mundo. Para Obenga o principal
documento relativo à conexão egípcia com o resto da África Negra foi, até o simpósio do Cairo
em 1974, a Filosofia da História de Hegel. Assim, demorou-se 143 anos, desde Hegel (1831)
ao Cairo (1974), para mudar o paradigma instalado pelo filósofo alemão (OBENGA, 2004, p.
3).
20
Nas civilizações greco-romanas que, segundo James (1954, p. 16), tiveram seu
sistema construído com base num legado roubado dos antigos egípcios e do seu sistema
religioso muito complexo chamado de Mistérios, o conceito de raça também esteve relacionado
às características herdadas por determinados indivíduos que tinham um ancestral em comum.
A questão é: nessas sociedades a ideia foi utilizada para definir os status morais dos indivíduos
a partir desses grupos de pertencimento.
Em A República3, o alter ego de Platão, Sócrates4, descreve as diferenças entre
indivíduos com base no mito de que os deuses teriam forjado na alma de cada pessoa um metal:
ouro, prata ou bronze. Nessa fábula, segundo Sócrates, a linhagem da pessoa também poderia
influenciar na composição da sua essência. Ou seja, a depender da herança fornecida pelos
genitores aos seus descendentes, esses poderiam ser cidadãos com alma de ouro, prata ou
bronze. Nessa passagem, conhecida como Mito dos Metais, Sócrates reforça que a essência, ao
ser definida com base na linhagem familiar, será determinante para a posição que o indivíduo
irá ocupar na República.
Em A Política5, Aristóteles, discípulo de Platão, justifica que a escravidão é obra da
própria natureza humana. Segundo ele, é a distinção entre a essência de cada ser, do caráter de
cada pessoa, que cria pessoas mais propensas a mandar e outras a obedecer.
Na Antiguidade onde viveram Platão e Aristóteles, entre os séculos V aC e IV dC,
a Grécia foi retratada por Homero, Heródoto e outros, como uma civilização altiva e guerreira
que conquistou e dominou diversos povos, sobretudo no norte da África, ao longo da Dinastia
3
Ver Livro III, pp. 138-139, In: PLATÃO. A República. Tradução de Leonel Vallandro. Editora Nova Fronteira,
Rio de Janeiro, 2016. 440 p.
4
Sócrates (Atenas, 470 ou 469 a.C. – 399 a.C.) foi um filósofo grego, filho do escultor Sofronisco e da parteira
Fainareté, que recebeu ensinamentos de astronomia e geometria do pitagórico Arquelau. Ao longo de sua vida
Sócrates abdicou de ambições individuais e se tornou um debatedor ambulante, que discutia qualquer assunto em
praça pública, procurando viver voltado aos interesses dos seus concidadãos. Em que pese existirem muitos
registros sobre Sócrates, o filósofo não se dedicou a vida política e nem deixou textos escritos. Foi retratado nas
obras de Xenofonte, seu contemporâneo no exército ateniense, de Platão, seu principal discípulo, bem como de
Aristófanes e Aristóteles. Esse último não chegou a conhece-lo pois nascera cerca de quinze anos após sua morte
(CARRASCO, 2013, p. 10-11). Quase tudo que se sabe sobre as ideias e a personalidade de Sócrates vem das
obras de Platão e do livro Memorabilia, do historiador clássico grego Xenofonte. O problema é que esses dois
autores eram cerca de 40 anos mais novos que Sócrates e só testemunharam a última década de vida do filósofo.
Portanto, o Sócrates que conhecemos nada mais é do que a parte selecionada por Platão e Xenofonte daquilo que
eles puderam acompanhar da vida dele. Platão, ao reproduzir os diálogos de Sócrates, descreve a maiêutica
socrática, o faz a partir do olhar de um discípulo ao seu mestre. Nesse olhar, não se pode negligenciar o afeto, a
admiração. Por isso Sócrates é alter ego de Platão. Platão descreve, portanto, a parte de Sócrates contida nele
mesmo.
5
Ver Livro Primeiro, Capítulo 1, p. 27, In: ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Nestor Silveira Chaves.
Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2017. 352 p.
21
Ptolemaica6. Contudo, nesse caso, a dominação não estava diretamente ligada à cor da pele ou
outra característica física dessas populações.
Como posicionaremos nosso olhar no contexto de invasão das Américas, pelo fato
da pesquisa estar situada no território brasileiro, onde ser “negro” e “índio” tornou-se sinônimo
de primitivo e inferior, abordarei o tipo de dominação baseado nas diferenças raciais.
No período colonial, ao longo de todo o largo século XVI e subsequentes, tanto o
negro quanto os povos originários foram identificados com mentalidades atrasadas. Embora os
europeus reconhecessem as diferenças físicas e culturais, bem como a multiplicidade fenotípica
dos negros do continente africano e das Américas, para fins de dominação, associavam-se seus
status morais a aspectos comuns entre vários povos: cor da pele, cabelo, forma do nariz e dos
lábios (MUNANGA, 2003, p. 4).
Vista desse modo, a raça pode ser entendida como uma crença de que existe uma
associação direta entre critérios físicos e seus correspondentes morais. Dito de outra forma, é
uma tendência que consiste em considerar que as características intelectuais de um determinado
grupo são decorrência direta dos seus atributos biológicos.
No século XVIII, o século das luzes, o modelo de racionalidade dos filósofos
iluministas questionava o monopólio sobre o conhecimento concentrado na Igreja e nas
monarquias absolutas. As primeiras refutações práticas ao absolutismo monárquico com base
nessas ideias se deram na Inglaterra ainda no século XVII, com as revoluções Puritana de 1640
e Gloriosa de 1688. Posteriormente, o movimento foi replicado na França, no século XVIII, a
partir dos esforços de Montesquieu e Voltaire que, ao voltar da Inglaterra, encarregaram-se de
difundir e desenvolver o pensamento inglês, haja vista o recrudescimento do absolutismo
monárquico na França, o que culminou na Revolução Francesa de 1798 (GRESPAN, 2003).
Foi exatamente nesse período que a cor da pele passou a ser o critério fundamental
e um marco para a classificação das raças. A partir daí a espécie humana ficou, grosso modo,
dividida em três grandes grupos raciais que perduram até hoje tanto no imaginário coletivo
quanto nas terminologias científicas: raça branca, negra e amarela (MUNANGA, 2003, p. 19).
Segundo Parrón (2003, p. 99), entre os séculos XV e XVII, os atributos físicos e
morais dos homens não eram considerados hereditários nem imutáveis. Apenas na virada do
XVII os homens começaram a ser catalogáveis em raças, tendência essa que se cristalizou no
6
A Dinastia Ptolemaica (grego antigo: Πτολεμαϊκὴ βασιλεία, Ptolemaïkḕ basileía) era um reino helenístico
baseado no Egito. O domínio começou com a ascensão de Ptolemeu I Sóter após a morte de Alexandre, o Grande,
em 323 a.C., e terminou com a morte de Cleópatra e a conquista romana em 30 a.C.
22
XVIII, quando atributos físicos e morais passaram a ser considerados fixos e transmissíveis de
geração em geração.
Para Boulle, a indeterminação de caracteres físicos e morais do homem, nos séculos
XV, XVI e XVII, foi fundamental para que a negritude da pele africana se associasse
intimamente à ideia de pecado – a negritude era a prova da maldição de Deus (BOULLE, 2002).
A cor da pele como base para classificação racial é estabelecida pela concentração
de melanina e o grau dessa concentração confere cor tanto a derme quantos aos olhos e cabelos.
Essas características fenotípicas foram utilizadas para embasar os critérios de definição das
raças. A raça branca tem menos concentração de melanina e se define pela cor branca da pele,
cabelos e olhos mais claros. A raça negra é a que concentra mais melanina, por isso tem pele,
cabelos e olhos mais escuros. A raça amarela ocupa uma posição intermediária.
No século XIX outros critérios morfológicos como forma do nariz, dos lábios, do
crânio e ângulo facial, foram acrescentados à cor da pele, olhos e cabelos, para “aperfeiçoar” a
definição racial. A expansão da dominação colonial europeia pelo mundo e o aperfeiçoamento
dos critérios de fenotipicação da população, fez emergir uma multiplicidade de novas
identidades sociais e históricas: mestiços, caboclos, cafuzos, mamelucos, azeitonados,
oliváceos, indígenas etc., que se somaram aos três grandes grupos raciais iniciais.
O avanço científico, sobretudo no campo da genética humana, com a descoberta do
DNA7 e a possibilidade de realização de pesquisas comparativas entre populações, levou a
conclusão de que não existe diferença biológica entre os grupos humanos. Esse progresso na
ciência influencia novas conclusões sobre o conceito de raça que passa a ser entendida não mais
como uma realidade biológica, mas como uma realidade sociocultural.
O conceito de raça emerge, portanto, como uma categoria dinâmica, um
fundamento sociopolítico que se constrói historicamente a partir das relações de poder
estabelecidas entre os agrupamentos humanos, suas instituições e o complexo de definições e
classificações criadas para diferenciar povos em contato.
Aqui, ao falarmos o termo raça, estaremos falando num sentido que relaciona o
conceito à sua origem na experiência colonial que produziu identidades novas do ponto de vista
social, histórico e cultural: “índios”, “negros”, “mestiços”; e redefiniu outras, “brancos”,
“europeus”, “portugueses”, “imigrantes”, “gringos” etc. Termos que não indicam apenas
procedência geográfica, mas que passam a ter relação com identidades raciais, pertencimentos
7
Ácido desoxirribonucleico
23
étnicos, locais socais que são criados a partir de uma conotação racial relacionada a um
repertório de status morais.
8
A Igreja Católica Romana é a instituição cristã mais antiga do mundo e registrou seu início por volta do ano 30
d.C. Durante o período denominado Antiguidade Cristã, entre os anos 33 e 313, a Igreja foi perseguida por
24
propagar as ideias de Jesus Cristo pois isso, de algum modo, “ameaçava” o Império Romano. Em 303 o imperador
Diocleciano decretou A Grande Perseguição. Segundo ele a unidade do estado romano estava ameaçada pelo
cristianismo e seria preciso resgatá-la a partir da perseguição aos cristãos, que eram jogados aos leões nas arenas.
Diocleciano ordenou ainda que todas as igrejas cristãs fossem demolidas. Somente em 313, com o Édito de Milão,
o Império se determina neutro em relação à religião. A partir daí os cristãos puderam ter liberdade de culto, foi
dada legitimidade ao cristianismo e se destituiu o paganismo como religião oficial do Império. Contudo, a Igreja
Católica Romana apesar de ter sido uma instituição perseguida pelo Império Romano conseguiu expandir-se por
toda Europa após o contato com os povos germânicos durante a invasão bárbara no século IV. Missionários
levaram o cristianismo aos povos Frísios, Saxões, Bávaros, Alamanos, Turíngios, Eslavos e Normandos que
acabaram se convertendo. A Igreja alcançou seu apogeu no período medieval, nos séculos XII e XIII. Nesse
período são fundadas ordens religiosas de renome como a de São Francisco de Assis, São Domingos de Gusmão,
a Ordem das Mercês, os ermitões de Santo Agostinho, a Ordem do Carmo, entre outras.
25
A possibilidade de existirem “povos com alma” versus “povos sem alma” foi um
dos primeiros elementos racistas que marca efetivamente o “sistema-mundo patriarcal,
eurocêntrico, cristão, moderno e colonialista” (GROSFOGUEL, 2016, p. 36). Grosfoguel
explicita a lógica de argumentação do discurso colonial racista de modo simples:
1. se você não tem religião, você não tem Deus; 2. se você não tem um Deus, você
não tem uma alma; e, por fim, 3. se você não tem uma alma não é humano, mas animal
(GROSFOGUEL, 2016, p. 37).
A Igreja Católica Romana foi uma das instituições que auxiliou na consolidação da
ideia de raça e, consequentemente, na solidificação de uma ideologia racista. O cristianismo
também foi utilizado como ideologia durante a colonização das Américas, uma vez que ela
havia se tornado a principal instituição do período medieval e teve papel fundamental na
formação dos Estados nacionais europeus. A Igreja era responsável por legitimar o conjunto de
relações existentes e seus intelectuais agiam no sentido de ratificar as hierarquias sociais, a
partir de uma visão de mundo que teve por base uma ética judaico-cristã, a qual delimitava os
valores morais da sociedade no período.
As posturas das lideranças eclesiásticas da época davam o balizamento da Igreja
Católica, sobretudo no que concerne à posição da instituição em relação à legitimação da
escravidão, especialmente dos povos da África. Alguns exemplos, como o caso dos papas
Nicolau V e Inocêncio VIII, demonstram que a Igreja via com bons olhos o contato dos
28
europeus com os africanos, tendo o primeiro pontífice dado livre permissão para a prática da
escravidão em 18 de junho de 1452, com a publicação da bula papal "Dum diversas", dirigida
ao rei Afonso V de Portugal, na qual o pontífice afirma:
"(…) nós lhe concedemos, por estes presentes documentos, com nossa Autoridade
Apostólica, plena e livre permissão de invadir, buscar, capturar e subjugar os
sarracenos, pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de Cristo onde quer que
estejam, bem como os seus reinos, ducados, condados, principados e outros bens (...)
e para reduzir as suas pessoas à escravidão perpétua” (NICOLAU V, 1452).
JESUS, 2019, p.50-51). Observa-se que a descendência de Cam originou os povos africanos,
ameríndios e parte dos asiáticos e da Oceania.
Ao ser recuperada como discurso, a maldição de Noé deu sentido à ideia de
diferenciação entre as raças e a relação de inferioridade que ficou associada a esses povos,
descendentes amaldiçoados da linhagem de Canaã. A maldição que Noé proferiu contra Canaã
dizia: “Maldito seja Canaã; seja servo dos servos de seus irmãos".
Apesar do termo “raça” ainda não aparecer com a acepção que conhecemos
atualmente, a ideologia que lhe deu origem foi utilizada dentro e fora da Igreja como meio de
defender a subjugação de negros e indígenas durante a colonização. Por isso que vemos até hoje
ideólogos utilizarem-se do cristianismo e de parte do discurso teológico como justificativa para
os problemas sociais e humanitários que atingem parte do continente africano. Em 2021, o
deputado federal brasileiro Marcos Feliciano utilizou a maldição de Noé como justificativa para
moléstias graves que afligem a África, identificando o continente com uma imagem de miséria
e fome. Segundo Domingos (2017, p. 192) essas associações fornecem “constante apelo a um
passado de mágoa e degradação”.
No século XIX o conceito de raça emerge numa perspectiva conhecida como
raciologia, que consiste numa concepção teórica de viés racista que foi incorporada como
discurso científico. Médicos legistas, criminologistas, filósofos e intelectuais da época tais
como Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882), Francis Galton (1822-1911), Cesare Lombroso
(1835-1909), Nina Rodrigues (1862-1906), João Batista Lacerda (1846-1915), Renato Kehl
(1889-1974), Edgard Roquette-Pinto (1884-1954), Enrico Ferri (1856-1929), Raffale Garofalo
(1851-1934), J. B. de Sá Oliveira, envidaram esforços para associar aspectos morais às
características morfológicas das raças, as quais eram investigadas nos institutos médico-legais
e laboratórios de antropologia física. Por exemplo, crânios alongados ditos dolicocéfalos,
seriam capazes de desenvolver um córtex cerebral mais avantajado e, consequentemente, mais
sofisticado. Essa morfologia era tida como característica dos brancos “nórdicos”. Já os crânios
arredondados, braquicéfalos, eram característicos dos negros e amarelos (MUNANGA, 2003,
p. 4).
O pensamento racialista classificou a humanidade em hierarquias de raças e pode
ser identificado como uma pseudoteoria que ganhou notoriedade nos espaços da
intelectualidade no início do século XX e foi incorporada à sociedade como ideologia (Idem,
ibidem). O conteúdo dessa doutrina ultrapassou os cenários intelectuais e se difundiu como
projeto político nas sociedades ocidentais dominantes. Esses ideais foram recuperados por
ultranacionalismos autoritários na Europa no período entre guerras (1918-1939), e foram
30
9
Fiz aqui uma analogia entre a segregação racial e territorial contemporânea, produto do estágio de avanço atual
do capitalismo tardio nos países colonizados, que tem raízes históricas na escravidão, e o regime de segregação
racial ocorrido na África do Sul, no século XX, originado por volta de 1948, a partir do posicionamento político
tomado pelo país diante da Guerra Fria, o qual buscou identificar-se como um “país europeu estabelecido na
África”.
31
10
A antropologia funcionalista pode ser considerada aquela representada pela linhagem francesa de Durkheim e
Mauss. A antropologia social britânica, através de etnógrafos como Malinowski (1884-1942) e Radcliffe-Brown
(1881-1955), propôs uma abordagem funcional-estruturalista, unindo o funcionalismo durkheimiano à teoria dos
sistemas de Spencer. (BODART et al 2020, p. 87).
11
Franz Boas (1858-1942), antropólogo alemão naturalizado norte-americano, formula a crítica radical ao
evolucionismo, demonstrando que as culturas somente podem ser entendidas em seu contexto particular, com as
diferenças derivadas da trajetória histórica e autônoma de cada sociedade. A crítica de Boas é fundadora do
culturalismo, responsável pela noção de relativismo cultural (BODART et al 2020, p. 87).
33
sociedades. Essa linhagem é representada por Lewis H. Morgan (1818-1881), Edward B. Tylor
(1832-1917) e James G. Frazer (1854-1941), que tiveram forte influência de Herbert Spencer
(CASTRO, 2005).
Para Spencer o evolucionismo é uma dinâmica universal de diferenciação do
simples para o complexo que pode ser verificado em todas as ocorrências, as quais somos
capazes de conceber racionalmente e indutivamente. Esse é o princípio do evolucionismo
enquanto conceito geral.
Morgan, Tylor e Frazer, foram precursores em utilizar essa perspectiva para
interpretar as culturas. Seus trabalhos basearam-se na ideia de que cada sociedade produz sua
cultura a partir das condições históricas e de desenvolvimento social de cada povo. As
sociedades evoluem, portanto, a partir dessas condições O evolucionismo, portanto, considera
a existência de sociedades selvagens e bárbaras, respectivamente sem e com pouca evolução
cultural. Elas podem avançar, tornando-se civilizadas, pelo progresso social (CASTRO, 2005).
Pensar culturas nesses termos significa acreditar que existem algumas culturas
superiores e outras, inferiores. Ou então, em termos raciais, que existem raças superiores e
outras inferiores. Nesta perspectiva, o evolucionismo cultural constituiu-se como um conjunto
de percepções e teorias que produziu a classificação do ethos cultural dos povos postos em
contato com a colonização. Essa perspectiva permitiu a classificação do avanço das sociedades,
auxiliando os mecanismos coercitivos da colonização.
No sistema colonialista a teoria do evolucionismo cultural produziu efeitos em dois
sentidos. Primeiro porque forneceu informações para o aprimoramento da dominação. Segundo
por ter sido utilizada como ideologia para justificar a dominação, com o pretexto de civilizar o
Outro.
O discurso evolucionista pôde ser utilizado como justificativa para países
colonizadores selecionarem sociedades primitivas para submeter-lhes à dominação. A
Antropologia foi utilizada como instrumento para essa seleção, classificando como selvagens
os povos originários das colônias e como civilizados os colonos.
Com o aprimoramento dos instrumentos de controle colonial, a partir da invasão e
partilha do território africano pós Conferência de Berlim em 1885, novas correntes
antropológicas surgiram e os métodos de investigação das culturas foram sendo sofisticados.
O funcionalismo, ramo da Antropologia que busca explicar os fenômenos humanos
em termos das suas funções, pega empréstimos da biologia e da teoria durkheimiana para
comparar a sociedade a um organismo vivo e cada instituição social com órgãos. Essa linhagem
ficou marcada por trabalhos pioneiros de sociólogos e antropólogos, tais como: Émile
34
1893) e Jacques Augustin Thierry (1795-1856) ganhou fôlego na crença de que a restauração
da monarquia e a colonização trariam progresso pela civilização dos selvagens. De la
civilisation em Europe (1828) e De la civilisation em France (1829) de Guizot, são obras de
presságio dessa crença: “A ideia de progresso, (...), parece ser a ideia fundamental contida na
palavra civilização” (KUPER, 2002, p. 47).
Na antropologia social britânica Radcliffe-Brown (1973, p. 220), enuncia o
conceito de função baseando-se numa analogia entre a vida social e a vida orgânica, assim como
Mauss. Radcliffe-Brown foi diretamente influenciado pelo positivismo de Durkheim e pela
teoria dos sistemas sociais de Spencer.
Já a relação de Malinowski com o evolucionismo foi mais intensa. Segundo o
próprio, sua abordagem não se separava do evolucionismo. Manteve-se evolucionista durante
toda a carreira, acreditando que o trabalho intenso de campo (observação participante) e a coleta
de dados vivos (etnografia), iria leva-lo às leis evolucionárias (KUPER, 1978, p. 19).
O funcionalismo francês e a antropologia social britânica permaneceram com a
mesma sanha evolucionista de classificar as sociedades, para compreender aquilo que julgavam
ser o primitivo padrão. Ambas não levaram em conta que as culturas se desenvolvem num
processo histórico e não se pode aferir complexidade a partir de referências externas, que
partem, a priori, da ideia de que o Outro é inferior. Logo são etnocêntricas.
A relação da antropologia social britânica com o colonialismo se deu com a
decadência do evolucionismo e a reivindicação do modelo pela organização interna dos estados
colonizados. É justamente essa reivindicação o ponto de união entre a teoria antropológica e a
colonização. Para se administrar as colônias era necessário manter uma relativa estabilidade
pois, mesmo ocupadas violentamente, elas deveriam servir ao propósito comercial. Precisava-
se de tranquilidade social.
Os administradores coloniais enfrentavam um profundo desconhecimento dos
nativos e a Antropologia poderia oferecer uma melhor compreensão dos sistemas sociais vistos
como “degradados” e “desorganizados”. A ideia era que a Antropologia argumentasse para que
o mundo “mítico”, “feroz” e “irresponsável” dos “selvagens”, pudesse ser transformado em
comunidades estáveis governadas pelo colono (GAONA, 1985, p. 89)12.
A Antropologia injetou nas sociedades colonizadas uma visão particular do seu
funcionamento. Conceituou-as como coerentes e equilibrados a partir de uma tendencia a
ressaltar a solidariedade e a ordem, o que contribuiu para conter algumas lutas por libertação
12
Todas as traduções apresentadas neste trabalho, oriundas deste artigo em espanhol, são de minha autoria.
36
mesmo diante das fortes contradições do sistema colonial. Por isso, a posição da Antropologia
resulta ambígua.
Raymond Firth (1901-2002) dizia: “o antropólogo e sua ciência se encontram cada
vez mais em perigo de cair nas mãos dos interesses da administração colonial” (Ibid., p. 91).
Firth foi um dos antropólogos da época que se negou a trabalhar para a colonização.
Assim como a antropologia social britânica, a tradição culturalista também surgiu
em reação ao evolucionismo, mas seguiu rumos distintos. A antropologia social britânica
“movia-se na direção da ciência”, já a antropologia culturalista “movia-se na direção da
história” (STOCKING, 2004, p. 34).
Franz Boas (1858-1942), antropólogo alemão radicado nos Estados Unidos,
introduziu na antropologia norte-americana o conceito de cultura com base na distinção entre
os termos kultur, de origem alemã, e civilisation, de origem francesa.
Boas empregava o termo cultura no plural. Referia-se a cultura como um aspecto
característico de determinado povo, mas também como sua existência total. Para ele existem
culturas humanas e cada uma pode ser estudada no âmbito do seu sistema de valores (KUPER,
2002, p. 12).
A partir da segunda geração boasiana, sob a liderança do polonês radicado nos
Estados Unidos Edward Sapir (1884-1939), e das norte-americanas Margareth Mead (1901-
1978) e Ruth Benedict (1887-1948) foi dado um novo rumo a antropologia culturalista.
Sapir (1949, p. 309) entendia que a “cultura significa qualquer elemento
socialmente herdado da vida do homem, material e espiritual”. Robert Lowie (1883-1957),
polonês radicado nos Estados Unidos e discípulo de Boas, via de modo semelhante. Após uma
série de palestras com o título Cultura e Etnologia trouxe o argumento central de que a cultura
poderia ser explicada como algo em si e não determinada pela raça ou ambiente. A afirmação
de que a cultura é um sucedâneo universal para outros marcadores ficou conhecida como
relativismo cultural ou culturalismo.
O culturalismo também foi convertido em ideologia e afirma, por exemplo, que raça
e cultura são independentes entre si, sendo a cultura o elemento responsável por tornar as
pessoas o que elas são. Esse argumento foi utilizado na África do Sul como justificativa para o
apartheid (KUPER, 2002, p. 12) e influenciou a obra Casa Grande & Senzala do antropólogo
brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987).
No caso de Freyre, o relativismo cultural influenciou o conceito de
lusotropicalismo, que relacionava a colonização brasileira à capacidade dos portugueses de
37
povoar o território tropical utilizando sua cultura (lusitana) como amálgama entre as outras
(indígena e africana), criando uma cultura luso-tropical.
O lusotropicalismo foi utilizado como ideologia e passou a elogiar os feitos da
colonização lusitana. Baseando-se na ideia de que os portugueses possuem uma aptidão natural
para se relacionar com culturas diversas, herdada do convívio com árabes, mouros e outros
povos durante séculos na península ibérica, criou-se o mito de que as colonizações portuguesas
teriam sido mais bem sucedidas que outras. O Brasil foi usado como exemplo e essas ideologias
influenciaram a interpretação de Freyre sobre a colonização brasileira. Fez com que ele
atribuísse à cultura lusitana uma certa “benevolência”, em oposição, por exemplo, à violência
praticada nos regimes segregacionistas britânicos nos Estados Unidos e na África do Sul
(REINHARDT, 2014, p. 330).
Os anos entre 1920 a 1960 ficaram marcados pelo período de institucionalização da
Antropologia na Europa e nos Estados Unidos e pela consolidação do trabalho etnográfico
inicialmente desenvolvido por Malinowski. As sociedades africanas tiveram um papel central
nesse momento pois eram o alvo preferencial do grupo mais consolidado de antropólogos que
fazia pesquisa de campo: a escola da antropologia social britânica. Esse grupo se tornou
hegemônico nas pesquisas etnográficas primeiro porque a direção de Malinowski e, depois, a
de Radcliffe-Brown, promovia uma capacidade única de agregar pupilos para trabalhos de
campo tal qual idealizaram os filósofos empiristas de longas datas; segundo, e muito
importante, porque eles possuíam vínculos com os “governos indiretos” britânicos na África
(REINHARDT, 2014, p. 333).
Em 1932 a Rockfeller Foundation ofereceu dinheiro ao recém criado Institute of
African Languages and Cultures para executar um projeto que visava reduzir a disparidade
entre o conhecimento antropológico e as políticas coloniais. A Antropologia era considerada
“fonte subutilizada de conhecimentos administrativamente úteis sobre as sociedades africanas”
(Idem ibidem).
Nesse sistema da Rockfeller Foundation a Antropologia funcionaria com papel
duplo. Passaria a absorver os princípios do governo indireto, pelas instituições nativas, e
responderia à preocupação do “desenvolvimento”, justificativa das políticas coloniais britânicas
no pós-guerra (Idem ibidem). Novamente se coloca o papel ambíguo da Antropologia
Desse modo, percebemos que a questão cultural está imbricada na construção do
conhecimento antropológico e que perpassa toda sociedade, sendo a Antropologia a ciência que
estuda os fundamentos do comportamento humano, pode atuar como catalisador das ideologias.
O tema das identidades étnico-raciais no Brasil é complexo pois aqui tentou-se construir uma
38
3.2. Pseudoteorias
Analisar fenômenos humanos nos faz acionar um conjunto de valores pré-
estabelecidos os quais chamarei aqui de crença. Ao longo da história, crenças foram tomadas
como verdade, seja pela importância da pessoa que as enunciam, seja pelo espaço de poder que
essa pessoa ocupa ao enuncia-las, seja pela força das crenças para a coletividade.
41
13
O termo éthos está sendo utilizado no sentido original do grego, conforme utilizado por Ésquilo (525-456 a.C),
e refere-se ao modo de ser e estar no mundo. Nos remete à tradição, aquilo que é habitual ou corriqueiro.
14
Doravante denominarei apenas de Essai.
42
3.2.2 Eugenia
A segunda pseudoteoria foi apresentada em 1883 por Francis Galton, que se propôs
a fornecer bases teóricas para compreender a transmissão dos caracteres entre as gerações e
contribuir para a melhora das características do conjunto populacional (DEL CONTI, 2008, p.
201), e visava selecionar as “melhores” características humanas em detrimento de outras
consideradas degenerativas, geralmente associadas aos povos africanos, asiáticos e ameríndios.
A eugenia foi apresentada como “a ciência que lida com as agências sociais que
influenciam, mental ou fisicamente, as qualidades raciais das gerações futuras” (GALTON,
44
1906, p. 3) teve, tal qual a teoria da pureza racial, boa recepção entre intelectuais brasileiros,
influenciando programas políticos de embranquecimento da população.
Galton acreditava que a raça humana poderia ser melhorada caso fossem evitados
cruzamentos indesejados o que acompanhava o sentido racista da eminente burguesia europeia
da época. O seu primeiro livro de relevância científica foi Hereditary Genius (1869). A sua tese
afirmava que um homem notável teria filhos notáveis. O termo eugenia passa a ser cunhado
efetivamente apenas em 1883 na obra Inquires into Human Faculty and Its Development.
No Brasil, em 1918 foi fundada a Sociedade Eugênica de São Paulo, com 140
membros, a maioria composta pela elite médica do país. Entre os integrantes estavam figuras
de renome: Afrânio Peixoto, Juliano Moreira, Fernando Azevedo e o influente escritor Monteiro
Lobato. O movimento eugênico organizou o Congresso Brasileiro de Eugenia e uma publicação
periódica, o Boletim de Eugenia, que circulou entre 1929 e 1934 (SOUZA, 2016).
No início dos anos 1930 foi fundada a Comissão Central Brasileira de Eugenia,
instituição que agregava eugenistas e psiquiatras, com o intuito de assessorar o governo
brasileiro em assuntos de políticas públicas eugênicas. Destacaram-se como lideranças desse
movimento Renato Ferraz Kehl e Edgard Roquette-Pinto, médicos formados no início do século
XX pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e que dedicaram suas carreiras ao estudo da
“questão” racial. Entre os membros deste colegiado estavam ainda: Arnaldo Vieira de Carvalho
(fundados da Faculdade de Medicina de São Paulo), Vital Brazil Mineiro da Campanha
(fundador do instituto Butantan), Arthur Neiva (sanitarista), Franco da Rocha (psiquiatra) e
Monteiro Lobato (escritor). Vale ressaltar ainda que o escritor patrocinou as primeiras
publicações do movimento: Annaes de Eugenia, lançados em 1919. Ambos mantiveram contato
com antropólogos e eugenistas estrangeiros, tais como: Francis Galton, Eugen Fischer, Leonard
Darwin. A ligação dos eugenistas brasileiros com essa tradição científica era sólida, o que
aparecia em suas obras e também nas correspondências que trocavam com esses autores
(SOUZA, 2016, pp. 96-98).
15
Em 1848 Auguste Comte criou uma “Sociedade Positivista”, que angariou grande número de seguidores. Entre
1851 e 1854, publicou os volumes do “Sistema de política positivista”, cujas idéias viriam fundamentar várias
correntes de pensamento político, em vários países. No Brasil a influência do positivismo de Comte traduziu-se
não só no ideário dos republicanos, mas nas ações políticas que acompanharam a proclamação da República. Entre
elas, a separação entre Igreja e Estado, o estabelecimento do casamento civil, o fim do anonimato na imprensa e a
reforma educacional proposta por Benjamin Constant (Dicionário de Sociologia 2002 apud CARDOSO, 2008,
p.40).
47
ao se relacionar, por repetidas gerações realizando cruzamento com brancos, nunca haveria
retrocesso racial, pois estaríamos sempre caminhando para a pureza da raça com o
embranquecimento (MUNANGA [2004] 2019, p. 49-78).
Cardoso (2008, p. 42) relaciona a perspectiva desses autores ao otimismo da pureza
racial, num sentido de desejar um país branco e pensar nas possibilidades de incentivar o
branqueamento. Foi com apego a esse otimismo que se incentivou a imigração de povos brancos
para o Brasil nos séculos XIX e XX, sobretudo alemães, italianos, japoneses, sírios, libaneses,
austríacos entre outros, considerados povos mais civilizados e mais puros que os negros e
indígenas.
Tanto na defesa da ideia de que o mestiço era o caminho para o embranquecimento
da população brasileira, quanto no incentivo à imigração de brancos, Silvio Romero e João
Batista Lacerda destacavam-se. Nesse período a elite intelectual brasileira, composta sobretudo
por indivíduos letrados, médicos, advogados e políticos brancos, também discutia propostas de
branqueamento para o país, como se pode destacar num texto de Sílvio Romero, transcrito:
Dos três povos que constituíram a atual população brasileira, o que um rastro mais
profundo deixou foi por certo o português; segue-se-lhe o negro e depois o indígena.
À medida, porém, que a ação direta das últimas tende a diminuir, com a internação 16
do selvagem e a extinção do tráfico dos pretos, a influência europeia tende a crescer
com a imigração e pela natural propensão para prevalecer o mais forte e o mais hábil.
O mestiço é a condição para vitória do branco, fortificando-lhe o sangue para habilitá-
lo aos rigores do clima. É em sua forma ainda grosseira uma transição necessária e
útil, que caminha para aproximar-se do tipo superior (Sílvio Romero, 1953 apud
Costa, 2006, p. 179).
Chama a atenção no discurso de Silvio Romero o fato de que com o aumento da
imigração europeia tenderia a crescer a influência branca e, consequentemente, a prevalecer,
por seleção natural, o mais forte e hábil, ou seja, o branco mais “puro”. A ideia contida no
discurso diz respeito ao incentivo da imigração de brancos. Foi essa a política de incentivo à
imigração que fez chegar ao Brasil, naquele período, italianos, espanhóis, alemães e austríacos
e também japoneses (CARDOSO, 2008, p. 43).
16
Sérgio Costa diz que Silvio Romero faz alusão ao extermínio indígena.
49
intelectualidade brasileira, no final do século XIX e início do século XX: a construção de uma
ideia de nação de caráter moderno e de uma identidade nacional. Para muitos, um país formado
pela pluralidade racial nascida de um processo colonial, teria a mestiçagem como obstáculo à
construção de nação que, naquele momento, se pretendia branca (MUNANGA [2004], 2019, p.
50).
Essa ideia foi reforçada por movimentos teóricos e culturais que exaltaram a
capacidade assimilativa do branco-português como fator determinante da nossa colonização, no
sentido de que a figura mítica do bandeirante, capaz de antropofagizar17 culturas, esteve
presente tanto em obras clássicas do Pensamento Social Brasileiro quanto em eventos artísticos
como a Semana de Arte Moderna de 1922. Esse programa se deu, sobretudo, em desfavor da
cultura negra e indígena que mesmo diversas em sentido amplo, foram tratadas como inferiores
na perspectiva do evolucionismo cultural, predominante no final do século XIX.
O mito baseou-se no fato de que os portugueses, tidos como os mestiços da Europa,
haja vista o contato de séculos que tiveram com os mouros na Península Ibérica, eram os mais
aptos a incorporar as culturas presentes nesse território, e formar uma nova, originalmente
brasileira. Contudo, isso só serviu para invisibilizar e esvaziar o conteúdo semântico das
culturas negra e ameríndia, que se tornaram meras peças ilustrativas, entidades folclóricas.
A ideia de que o branco-português seria o mais apto a realizar a fusão entre culturas,
de forma harmoniosa, também serviu de explicação para a formação da sociedade brasileira.
Em Casa-grande & Senzala, Gilberto Freyre faz uma defesa peremptória dessa explicação ao
mesmo tempo que apresenta uma “concepção neo-lamarckiana" de raça (ARAÚJO, 1993, p. 39
apud SOUZA, 2000, p. 70), fetichizada por um olhar sexual sobre a relação do branco-
português com os demais elementos constituintes do povo brasileiro.
A defesa de Freyre ([1933], 2017, p. 70-1) parte da premissa de que a miscibilidade
foi a principal característica do povo português que aqui “foi misturando-se gostosamente com
mulheres de cor logo ao primeiro contato”, reproduzindo um contato que já havia ocorrido na
Península Ibérica entre o branco europeu e a figura mítica da moura-encantada que, envolta em
17
A noção de antropofagia aqui empregada remete ao conceito de Oswald de Andrade em A utopia antropofágica.
Considerando a simultânea de múltiplos significados e tendo em mente que o uso da palavra ''antropófago”, ora
emocional, ora exortativo, ora referencial, faz-se nesses modos da linguagem e em duas pautas semânticas, uma
etnográfica, que nos remete às sociedades primitivas, particularmente aos tupis de antes da descoberta do
Brasil; outra histórica, da sociedade brasileira, a qual se extrapola, como prática de rebeldia individual, dirigida
contra os seus interditos e tabus, o rito antropofágico da primeira (ANDRADE, 1990, p. 16, grifo meu). Ou seja,
a perspectiva antropofágica exalta a relação dos ameríndios antes da chegada do branco português e toma como
referência justamente essa chegada. A capacidade para romper interditos e tabus da sociedade colonial se faz na
forma de “rito de rebeldia individual” do bandeirante “nativo”, que pratica a antropofagia do primitivo e constrói
uma nova ordem livre e brasileira.
50
18
Conceito muito controvertido, significa essencialmente que, na situação de contato entre portadores de culturas
diferentes, elas influenciam-se reciprocamente, o que sem dúvida modifica, se o tempo for suficiente. Georges
51
culturas. Em que pese a ideia de influência recíproca, sendo a cultura portuguesa europeia, tida
como “superior” em relação à cultura dos negros e indígenas, ela foi adotada como padrão
hegemônico, em termos institucionais, políticos, jurídicos, religiosos etc.
Nesse sentido, a ideia do contato harmonioso entre as raças jogou uma cortina de
fumaça nos problemas reais da colonização escravista no Brasil, o que reverberou intensamente
no campo teórico, produzindo o que ficou conhecido como mito da democracia racial, que
serviu de explicação base para certas (in)compreensões da realidade social brasileira.
Quando falamos então que a democracia racial brasileira é um mito, estamos
indicando que existe uma falsa ideia, que foi defendida por intelectuais brasileiros, de que o
contato entre colonizador e colonizado aqui foi mais pacífico do que em outros países da rota
colonizatória, devido a tal capacidade de hibridização do branco-português.
Carlos Moore (2007, p. 24) chama o mito-ideologia da “democracia racial” de
autoengano que, “graças aos esforços perseverantes de décadas do movimento social negro
brasileiro uma parte da sociedade tem identificado como uma perigosa falsa visão”. Esse
trabalho tem o mesmo compromisso, qual seja, tentar revelar o quão prejudicial essa ideologia
se tornou para a sociedade brasileira.
Ao contrário do que se pensa, o termo “democracia racial”, atribuído originalmente
a Gilberto Freyre19, não se encontra nas suas obras mais famosas e só vem aparecer na literatura
por volta dos anos 1950. Guimarães (2001, p. 2), após consulta em livros publicados, buscou
traçar a cronologia do termo. O autor constatou que a primeira referência teórica à ideia de
democracia racial foi feita por Abdias do Nascimento (1914-2011) em sua fala inaugural ao I
Congresso do Negro Brasileiro, em agosto de 1950:
Balandier faz uma severa crítica ao conceito, mostrando que na situação colonial, caracterizada por uma relação
de forças onde há mais imposição de uma cultura do que reciprocidade, a aculturação quase não existe, mas sim o
que ele chama de déculturation (desculturação) (Idem, ibidem).
19
Ver Souza (2000, p. 136): “Gilberto teria sido o criador do conceito de ‘democracia racial’, o qual agiu como
principal impedimento da possibilidade de construção de uma consciência racial por parte dos negros.”
52
Vale destacar que antes de Abdias, Gilberto Freyre, em uma conferência realizada
na Universidade do Estado de Indiana em 1944, utilizou o termo “democracia étnica”,
referindo-se ao processo catequista dos jesuítas:
(...), mas o seu sistema excessivamente paternalista e mesmo autocrático de educar os
índios desenvolveu-se às vezes em oposição às primeiras tendências esboçadas no
Brasil no sentido de uma democracia étnica e social” (FREYRE, 1947, p. 78).
é um dos processos pelo qual a dominação objetiva se subjetiva num eterno retorno colonial.
Ou seja, o local do negro e do indígena devem ser sempre a miséria.
Bento ([2002], 2020, p. 148), ao citar Hasenbalg (1979), aponta que a ideologia da
democracia racial brasileira traz no seu cerne a negação do preconceito e da discriminação,
além da isenção do branco e a culpabilização dos negros. De fato, essa negação vem à tona
quando, individual ou coletivamente, não estamos prontos para enfrentar determinada
realidade, seja pelo fato de não nos vermos como sujeitos de determinadas ações, nesse caso
sujeitos do racismo, seja pelo fato de termos interesses que nem sempre podem ser explicitados.
Isso se dá quando milhões passam a se ver não como oriundas dos índios de certa
tribo, nem africanos tribais ou genéricos, porque daquilo havia saído, e muito menos
como portugueses metropolitanos ou crioulos, e a sentir-se soltas e desafiadas a
construir-se a partir das rejeições que sofriam, com nova identidade étnico-racial, a de
brasileiros.
Em que pese a questão concreta feita por Darcy, a mesma não foi acompanhada de
uma resposta palpável. Ele não apresenta documentos nem relatos de mestiços brasileiros que
pudesse apontar na direção de que existiam pessoas que tinham tomado consciência da sua
condição de “autênticos” brasileiros. Por outro lado, o autor parece entrar em contradição
quando afirma que a nova identidade seria resultado da opressão das identidades originárias.
O povo brasileiro nasceu originariamente do cruzamento de uns poucos brancos
com multidões de mulheres indígenas e negras. Embora Darcy rejeite o argumento de Freyre
em ver no consentimento desse intercurso sexual entre brancos, negras e indígenas a
configuração de uma “democracia racial”, ele considera que o sistema adotado no Brasil, no
qual não se criou objetivamente uma linha de cor e permitiu a passabilidade dos mestiços claros
à categoria de brancos, foi melhor do que o Apartheid ou Jim Crow20.
Como falei anteriormente, identidade é um conceito dinâmico e, portanto, precisa
ser analisado a luz de conceitos teóricos que deem conta desse dinamismo. O grupo dos Estudos
Culturais, do qual o mito de origem identifica o sociólogo britânico-jamaicano ou jamaicano-
20
Nos Estados Unidos pós-abolição, o uso da violência era uma resposta à reivindicação da população negra pela
livre mobilidade como um direito. De acordo com a historiadora Elizabeth Pryor, a presença negra nos vagões
contrastava com o significado das ferrovias, então associadas ao progresso e sofisticação. A década de 1860, que
marcou uma revolução nos transportes, foi também a década da Guerra Civil e da abolição. Para a população
branca, inclusive, e talvez sobretudo para aquelas pessoas que faziam parte da classe trabalhadora, a presença
negra nos vagões era deslocada desse contexto de modernização. Assim, o Jim Crow era um repertório de leis que
proibiam e criminalizavam a presença negra nos trens, gerando suspeição, vigilância e violência contra pessoas
negras que estavam em trânsito (PRYOR, 2016, p. 46-48). É importante situar que o Jim Crow surge na Região
Norte, ainda na primeira metade do século XIX. Na Região Sul, no pós-abolição, vigoravam de forma específica
leis chamadas de black codes, que passaram a valer logo após a abolição. Michelle Alexander (2017: 66- 73) define
os “códigos negros” como leis criadas logo após o fim da Guerra Civil por elites brancas sulistas movidas por um
forte sentimento de “supremacia branca”. Assim, os “black codes” eram leis que garantiam a permanência do
trabalho forçado e criminalizavam práticas ordinárias da vida de homens e mulheres afro-americanas, sobretudo
dos homens. Após o período conhecido por Reconstrução, que, a partir de 1867 revogou estes códigos negros, o
Jim Crow se estabeleceria no Sul a partir de 1877 na forma de leis que só seriam derrubadas na década de 1960,
com o movimento em prol dos direitos civis (BRITO, 2019, p. 246-7).
55
britânico Stuart Hall (1932-2014) como fundador, oferece elementos teóricos e conceituais que
possibilitam apreender a dinâmica intrínseca ao conceito.
Quando tratamos de identidade, do ponto de vista dos Estudos Culturais, é preciso
atentar para uma série de questões fundamentais para a compreensão de como a dinâmica do
conceito opera no contexto empírico. Primeiro deve-se perceber que existem abordagens
distintas da identidade, que podem ser essencialistas e não essencialistas.
As essencialistas estão ligadas a ideia de que identidade seria algo compartilhado
coletivamente por um conjunto de pessoas e que não se altera ao longo do tempo. Ou seja, uma
abordagem essencialista entenderia que a identidade branca brasileira conserva algo que
permanece perene e pode ser identificado desde a colonização até agora, algo autêntico, parte
de um conjunto cristalino de caracteres que definem a identidade “branca” como algo
reconhecível ao longo da sua trajetória enquanto ideia.
Segundo Woodward (2000, p. 15) o essencialismo pode fundamentar suas
afirmações tanto na história quanto na biologia, para afirmar o conceito de identidade ora como
verdade fixa ora como verdade biológica. No Brasil, podemos considerar que uma abordagem
essencialista da identidade racial, especificamente relacionada à identidade negra, seria
fundamentar a identificação da raça exclusivamente no critério cor e não nas características
fenotípicas, como atualmente é feito em procedimentos de heteroidentificação, por exemplo.
Uma abordagem que considerasse apenas a cor da pele como critério de determinação racial,
ou seja, como elemento de verdade identitária do qual um conjunto de indivíduos compartilha,
deixaria de lado outros marcadores sociais da diferença que implicam preconceito de marca nos
indivíduos de traços predominantemente negroides, como observou Oracy Nogueira, ainda nos
anos 1950 (NOGUEIRA, [1955] 2006). Traços fenotípicos, tais como tipo do cabelo, formato
da boca e nariz, somados à cor da pele, atualmente são critérios utilizados nos procedimentos
de heteroidentificação racial.
Por outro lado, uma definição não essencialista seria guiada a perceber as
diferenças, características comuns e partilhadas entre indivíduos do mesmo grupo e entre eles
e indivíduos de outros grupos raciais. Uma perspectiva não essencialista se interessa em
entender como a definição do que significa ser “negro” ou “branco” tem se alterado ao longo
do tempo por condicionantes históricas, sociais e políticas. Essa investigação aproxima-se desse
tipo de abordagem.
Necessário entender como a identidade funciona, por isso irei contextualizá-la e
dividi-la em suas diferentes dimensões. Desse modo, o tema da identidade branca é apresentado
56
junto com suas ramificações, quais sejam, branquitude crítica e acrítica21, com foco na primeira,
identificando ainda o campo de atuação do conceito, a saber: as políticas de ações afirmativas
do Ministério Público Federal (MPF).
Nesse sentido, argumentarei nesse trabalho que as identidades são formadas e
transformadas no interior das representações sociais. Ou seja, o significado de ser branco,
negro, mestiço, amarelo, árabe, ou outra categoria étnico-racial de autoidentificação ou
heteroidentificação, constitui-se pelo modo como atribuímos o pertencimento a determinada
identidade a partir do que isso representa – com um conjunto de significados – na cultura
brasileira (HALL, 2006, p. 48-9).
Assim, trataremos a identidade étnico-racial como algo que produz sentidos num
sistema de representação cultural, não tão somente como uma característica autodeterminada
biológica ou filosoficamente pelo indivíduo. Mas produzida pela relação que esses indivíduos
tem com a representação simbólica do que é ser o que se diz ser (branco, negro, amarelo ou
indígena), no Brasil.
Assim, na próxima seção buscarei uma aproximação teórica dos conceitos sobre o
conjunto de identidades étnico-raciais predominantes na formação da identidade brasileira. A
partir da identificação de elementos característicos dessas identidades serão apresentados
elementos constitutivos das suas significações nas dimensões biológica e sociocultural.
21
Segundo Cardoso (2008, p. 178) “branquitude crítica” é aquela pertencente ao indivíduo ou ao grupo de brancos
que desaprova publicamente o racismo. Em contraposição a essa perspectiva, nomearei “branquitude acrítica” a
identidade branca individual ou coletiva que argumenta a favor da superioridade racial.
57
como um risco, um traço da realidade nacional que chama a atenção”. O autor complementa,
“(...) pode-se dizer que, no Brasil, o branco tem desfrutado do privilégio de ver o negro, sem
por este último ser visto. Nossa sociologia do negro até agora tem sido uma ilustração desse
privilégio” (RAMOS, [1957] 1995, p. 202).
Lourenço Cardoso desenvolve argumentos com base na tese de Guerreiro Ramos:
Desse modo, optar por uma análise que se atenha a aprofundar em qualquer uma
das faces da moeda do pertencimento étnico-racial, seja ela branca ou negra, tem o condão de
corroborar com o modelo de investigação historicamente consolidado. Tal modelo se apoia
sobre a lógica da oposição binária, que foi reforçada pelas Ciências Humanas e pela
Antropologia, que se consolidou como campo de estudos do Outro.
Assim, adotamos aqui uma perspectiva que se apoia na ideia de
complementariedade. Ou seja, argumentamos por uma análise cuidadosa das múltiplas
identidades étnico-raciais que compõem a matriz racial brasileira com um olhar que visa
aprofundar elementos de convergência e divergência, tanto biológica quanto sociocultural, na
relação entre os povos que se mestiçaram no Brasil. Essa perspectiva busca entender como a
miscigenação se deu aqui, para além de um processo físico e material, como um fenômeno
cultural e simbólico, e como essa dinâmica pode ser compreendida dentro da lógica de disputa
pelo poder de representação de determinados símbolos, relacionados às identidades
reivindicadas.
Os estudos sobre as relações raciais muito falaram do negro e dos problemas que lhe
foram criados no universo racial brasileiro, mas deixaram de falar de brancos numa
sociedade em que a Branquitude poderia também fazer parte do processo de
transformação social, partindo da hipótese de que os brancos conscientes dos
privilégios que sua cor lhes traz na sociedade poderiam questioná-los e participar do
debate sobre a divisão equitativa do produto social nacional entre brancos e negros.
(MUNANGA apud CARDOSO; MÜLLER 2017, p. 11-12).
constitui enquanto elemento ativo nas sociedades colonizadas pela Europa. Como afirma Silva
(2017, p. 21), estudos sobre branquitude
(...) nasceram da percepção de que era preciso analisar o papel da identidade racial
branca enquanto elemento ativo nas relações raciais em sociedades marcadas pelo
colonialismo europeu” (SILVA, 2017, p. 21).
Cardoso (2008; 2014) coloca W.E.B Du Bois, Frantz Fanon, Albert Memmi, Steve
Biko e Guerreiro Ramos como precursores nos estudos sobre branquitude. Esses autores foram
pioneiros ao lançar seus olhares sobre o papel da branquitude nas relações raciais pós-coloniais.
Silva (2017, p. 21) corrobora com Cardoso que foram eles que primeiro chamaram atenção para
os efeitos da colonização e do racismo na subjetividade não só do negro, mas, sobretudo, do
branco.
Em meados do século XX, Guerreiro Ramos traz as primeiras inquietações teóricas
sobre a branquitude no Brasil. Ramos parte da crítica sobre a não existência de uma real
antropologia brasileira. Segundo ele, os estudos raciais no Brasil focaram no problema do negro
e especializaram-se na importação de teorias estrangeiras para isso (RAMOS, [1957] 1995, p.
163). Nesse texto Guerreiro Ramos desvela o fato de que os estudos que historicamente
abordaram o negro-tema foram deduzidos de categorias tiradas da realidade europeia e norte-
americana. O seu trabalho revelou as fragilidades das metodologias utilizadas nos estudos
antropológicos sobre raça no país.
Lourenço Cardoso (2014) demonstra que somente a partir dos anos 2000 os estudos
sobre branquitude emergem de forma mais sistemática (SILVA, 2017, p. 25). Destaca-se nessa
época a tese de doutorado de Maria Aparecida Silva Bento, Pactos narcísicos no racismo:
branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público (2002), a qual
problematiza sobre a urgência de entendermos e atuarmos diante dos impactos que o legado de
branqueamento deixou nas instituições públicas e organizações privadas brasileiras.
De acordo com Silva (2017, p. 26),
“a partir da primeira década do século XXI, o tema branquitude tem chamado cada
vez mais a atenção de novos pesquisadores, o que tem fortalecido o tema,
constituindo-o como campo de pesquisa reconhecido por seus pares”. (SILVA, 2017,
p. 26)
60
Com isso busca-se um recorte empírico que permita uma visão que é ao mesmo tempo particular
e geral, pois elucidará a percepção de cada indivíduo a partir da sua trajetória de vida
considerando a categoria cor/raça de identificação. As entrevistas serão baseadas no método
das HV, as quais serão cotejadas com o auxílio de categorias afro-brasileiras, usadas como
recursos analíticos da pesquisa.
A primeira categoria analítica será Sankofa, já detalhada anteriormente. As demais
serão Exú/Legbara e Ubuntu que serão desenvolvidas no decorrer da pesquisa. As categorias a
serem desenvolvidas tomarão como base as teorias desenvolvidas por Martins (1997) e
Domingos (2020).
A metodologia de HV utilizada tem inspiração nos trabalhos de Queiroz (1988),
Paulilo (1999), Meksenas (2002).
As entrevistas etnográficas tomarão como base a teoria desenvolvida por Beaud &
Weber (2007).
Capítulo 3 – As Matérias
66
3 Conclusões parciais
67
REFERÊNCIAS
ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São
Paulo: Boitempo, 2017.
ANDRADE, Oswald. A utopia antropofágica. Escritos doutrinários de Oswald de Andrade
entre os anos de 1924 e 1953 pertencentes ao Espólio do artista, reunidos por Benedito Nunes.
São Paulo: Editora Globo, Secretaria do Estado da Cultura, 1990.
BALANDIER, Georges. A noção de situação colonial. Tradução de Nicolás Nyimi
Campanário. Primeiro capítulo do livro Sociologie Actuelle de l’ Afrique noire. Dinamique
Sociale en Afrique Centrale. Primeira publicação em 1955. 2ª edição, pp. 107-131, PUF: Paris,
1963. Cadernos de campo n.º 3, 1993. p. 107-131.
BEAUD, Stéphane; WEBER, Florence. Guia para a pesquisa de campo: produzir e analisar
dados etnográficos [1997]. Tradução de Sérgio Joaquim de Almeida. Petrópolis: Editora Vozes,
2007.
BENTO, Maria Aparecida Silva. Branquitude – o lado oculto do discurso sobre o negro. In:
CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida silva (orgs.). Psicologia Social do Racismo.
Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. [2002]. 6ª edição. Petrópolis: Vozes,
2020. p. 145-162.
__________________. Pactos narcísicos no racismo: Branquitude e poder nas organizações
empresariais e no poder público. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e
da Personalidade, 2002. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-
18062019-181514/pt-br.php. Acesso em: 29 de set. 2021.
BERQUÓ, Elza; ALENCASTRO, Luis F. A emergência do voto negro. In: Novos Estudos,
33. Cebrap, 1992. p. 77-88.
BODART, Cristiano das Neves; BRUNETTA, Antônio Alberto; CIGALES, Marcelo Pinheiro.
Dicionário do Ensino de Sociologia. Maceió: Café com Sociologia, 2020.
BOULLE, Pierre H. La construction du concept de race dans la France d’ancien régime. In:
Revue Française d’Histoire d’Outre-mer, T. 89, n. 336-337, 2º sem. Paris, 2002. p.155-175.
BRITO, Luciana da Cruz Brito. “Mr. Perpetual Motion” enfrenta o Jim Crow: André Rebouças
e sua passagem pelos Estados Unidos no Pós-Abolição. In: Estudos Históricos, vol 32, n.º 66, Rio
de Janeiro, janeiro-abril, 2019. P. 241-266.
CARDOSO, Lourenço; MÜLLER, Tânia M. P. (org.). Branquitude: Estudos sobre a
Identidade Branca no Brasil. 1ª edição. Curitiba: Appris Editora e Livraria, 2017.
CARDOSO, Lourenço da Conceição. O branco ante a rebeldia do desejo. Um estudo sobre
o pesquisador branco que possui o negro como objeto científico tradicional. A branquitude
acadêmica: Volume 2. 1ª edição. Curitiba: Appris, 2020. 355 p.
__________________. O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude
no Brasil. 2014. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Faculdade de Ciências e Letras,
Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2014. Disponível em:
http://wwws.fclar.unesp.br/agenda-pos/ciencias_sociais/3146.pdf. Acesso em: 29 de set. 2020.
__________________. O branco “invisível”: um estudo sobre a emergência da
branquitude nas pesquisas sobre relações raciais no brasil (Período: 1957 - 2007). 2008.
Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Economia da Universidade de
68