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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA


FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

GABRIELA MACHADO BACELAR RODRIGUES

(CONTRA)MESTIÇAGEM NEGRA:
PELE CLARA, ANTI-COLORISMO E COMISSÕES DE
HETEROIDENTIFICAÇÃO RACIAL

Salvador
2021
1

GABRIELA MACHADO BACELAR RODRIGUES

(CONTRA)MESTIÇAGEM NEGRA:
PELE CLARA, ANTI-COLORISMO E COMISSÕES DE
HETEROIDENTIFICAÇÃO RACIAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Antropologia da Universidade Federal da Bahia, como
requisito parcial para obtenção do grau de Mestra em
Antropologia.
Orientador: Prof. Dr. Milton Júlio de Carvalho Filho.

Salvador
2021
2

Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema Universitário de Bibliotecas (SIBI/UFBA),


com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
______________________________________________________________________

Rodrigues, Gabriela Machado Bacelar


R696 (Contra)mestiçagem negra: pele clara, anti-colorismo e comissões de
heteroidentificação racial. / Gabriela Machado Bacelar Rodrigues. – 2021.
271 f.: il.

Orientador: Prof. Dr. Milton Júlio de Carvalho Filho


Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia. Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, Salvador, 2021.

1. Negros – Identidade racial. 2. Cor da pele. 3. Estudantes negros. I. Carvalho Filho,


Milton Julio de. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas. III. Título.

CDD: 305.8
______________________________________________________________________
3

GABRIELA MACHADO BACELAR RODRIGUES

(CONTRA)MESTIÇAGEM NEGRA:
PELE CLARA, ANTI-COLORISMO E COMISSÕES DE
HETEROIDENTIFICAÇÃO RACIAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade


Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestra em Antropologia.
Orientador: Prof. Dr. Milton Júlio de Carvalho Filho.

Salvador, 28 de maio de 2021.

Banca Examinadora

Milton Júlio de Carvalho Filho – Orientador_____________________________


Doutor em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São
Paulo
Universidade Federal da Bahia

Cíntia Beatriz Müller_______________________________________________


Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
Porto Alegre
Universidade Federal da Bahia

Denise Carrascosa França____________________________________________


Doutora em Estudos Linguísticos e Literários pela Universidade Federal da Bahia (UFBA),
Salvador
Universidade Federal da Bahia

Jacques d’Adesky__________________________________________________
Doutor em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (USP), São
Paulo
4

A
Mara e Paulo, meus pais, e minhas avós Maria e Joana, por construírem as minhas
possibilidades de ser, antes mesmo d’eu vir a ser.
Meu irmão Gabriel, que chegando ao mundo depois de mim, me ajuda a ser melhor.
A toda minha comunidade ancestral, Oxum Opará é o início de tudo,
não há fim no ciclo do Tempo.
5

AGRADECIMENTOS

A minha família que me deu tempo e espaço para que eu escrevesse esse trabalho durante a
pandemia do novo coronavírus, e por todo apoio que tive ao longo da minha vida;
Ao meu orientador, Milton Júlio, por encarar esse trabalho comigo e por se posicionar em
questões importantes, relativas às cotas raciais dentro do Programa;
Aos amigos que tornaram a experiência da Pós-Graduação mais feliz e menos dolorosa;
A Penildon, Pró-Reitor de Ensino de Graduação (PROGRAD), Karina e Ana Karina também
da PROGRAD, pelo acolhimento e incentivo à minha proposta de pesquisa. Ana Karina me
conduziu aos ambientes dos trabalhos da Comissão com muita gentileza.
Ao Programa de Bolsa Milton Santos, pelo financiamento da pesquisa;
Ao diretor, Lucas, e a coordenadora, Lilian, da escola onde leciono, pelo apoio essencial para
que eu conciliasse trabalho e Mestrado;
A Rafaela Magalhães, Naiaranize Pinheiro e Marcilene Garcia, professoras do IFBA, o
colégio que me formei no Ensino Médio, que me receberam em suas casas e acreditaram,
emprestaram livros, leram o trabalho e deram sugestões.
Aos meus interlocutores que dispuseram de tempo para me encontrar e conversar comigo;
A Sávio Roz pelo apoio, pela leitura dos meus textos, do meu slide de apresentação e pela
elaboração do card para divulgação do momento da minha Defesa;
A Talita Vidal, pela escuta, pelo apoio e pela fé depositada em mim;
Aos nossos ancestrais políticos e intelectuais negros, assim como as novas gerações, pelo
poder e pela força com as quais movem estruturas seculares de extermínio das nossas vidas e
espírito.
6

O crioulo me diz que eu sou mulato,


O branquelo me diz que eu sou moreno,
Tem quem diga que eu sou bicho do mato,
Porque me fazem mal, mas eu não temo.
Nem com furo de bala não me abato,
Nem com corte de faca muito menos,
Pois meu corpo eu fechei com um retrato
Da medalha de São Bento pequeno.

Paulo César Pinheiro, Toque de São Bento Pequeno.


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RODRIGUES, Gabriela Machado Bacelar. (Contra)Mestiçagem negra: pele clara, anti-


colorismo e comissões de heteroidentificação racial. 2021. Orientador: Milton Júlio de
Carvalho Filho. 269 f. il. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2021.

RESUMO

Essa dissertação trata das dinâmicas de autodeclaração e de heteroclassificação raciais das


pessoas negras, com pele clara, em Salvador, a partir da Universidade Federal da Bahia
(UFBA), com base no estudo etnográfico realizado durante os trabalhos da Comissão de
Aferição da Autodeclaração Étnico-Racial da Universidade. A pesquisa possibilitou observar
o curso de formação dos membros, evento anterior à seleção dos candidatos, e o próprio dia
da aferição. Os componentes da banca, estudantes e ex-estudantes da UFBA foram ouvidos,
seja por meio de entrevistas ou conversas sobre o tema, como parte do processo metodológico
da pesquisa. Entre os estudantes, foi contemplada a audição tanto dos aprovados quanto dos
reprovados no processo de heteroclassificação. A pesquisa também se voltou à observação de
redes sociais da Internet, visando compreender como discussões sobre o tema estão sendo
apropriadas por uma comunidade mais ampla que o espaço acadêmico. Esse trabalho assume
que os negros de pele clara são os “pardos” das categorias de cor ou raça do IBGE e, assim
observa nos indicadores sociais a posição desse grupo em relação às outras categorias. Isso
revelou como, desde a proposição de que pardos mais pretos compõem a população negra
brasileira, na década de 70, os indicadores continuam demonstrando a semelhança de posições
entre ambos os grupos. Já na pesquisa bibliográfica, a categoria “pardos” foi problematizada,
no sentido de compreender as maneiras em que foi usada por teorias sociais, elaboradas a
partir do/sobre o Brasil, desde os teóricos do branqueamento e entusiastas da democracia
racial, até os dias atuais. Essa busca revela que o “pardo” é utilizado de maneiras diversas, em
referência a diferentes estereótipos raciais. A pesquisa analisa também uma atualização
recente nas perspectivas sobre as relações raciais no Brasil. Essa nova proposta, ainda em
formação no país e pouco apropriada pela sociedade brasileira, incorpora o “colorismo” como
chave para discutir miscigenação. O conceito aparece inserido em discussões sobre o
“privilégio pardo” ou sobre possíveis trânsitos raciais, como aponta, por exemplo, a ideia de
“passabilidade”, tema bastante presente nos discursos sobre o colorismo. O lugar social dos
pardos e seus correlatos na sociedade brasileira, desde a atribuição do termo “mulato”,
apresenta uma grande variação de denominações, muitas delas com conteúdos pejorativos,
como “afrobeges” e “afroconvenientes”. Esses termos, engatilhados pelo colorismo, apontam
para falta de legitimidade na autodeclaração negra desses indivíduos de pele clara. O que se
chama de anti-colorismo, nesse trabalho, é a proposta de que o conceito, “colorismo”, seja
reexaminado pelo contexto das relações raciais do Brasil, dando lugar a uma concepção que
pensa a racialização de modos distintos. A diversidade das experiências negras ocorre a partir
do posicionamento de diferentes marcadores sociais, como o pertencimento de classe ou a
identidade de gênero, por exemplo. A pele clara, ao ser analisada como um desses
marcadores, informa um processo de racialização desses pardos desde uma posição complexa,
que envolve o mito da democracia racial e a miscigenação dentro da população negra.

Palavras-chave: Negros de pele clara. Comissão de heteroclassificação racial. Colorismo.


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RODRIGUES, Gabriela Machado Bacelar. Black (counter)miscegenation: light skin, anti-


colourism and racial heteroidentification committees. 2021. Orientador: Milton Júlio de
Carvalho Filho. 269 f. il. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2021.

ABSTRACT

This dissertation addresses the dynamics of racial self-declaration and heteroclassification of


black people, with light-skin, in Salvador, based on an ethnographic study carried out during
the Ethnic-racial Self-declaration Assessment Committee of Bahia Federal University
(UFBA). The research enabled us to observe the members training course, event prior to the
selection of candidates, and the day of assessment itself. Board members as well as current
and former students were heard, either by interviews or conversations about the topic, as part
of the methodology of the research. The students who passed the heteroidentification process
and those who didn’t were heard alike. The research also focused on online social network, in
order to understand how debates on this subject are being appropriated by a larger community
than that of the academia. The present dissertation assumes that light-skinned black people are
the “pardos” of IBGE’s colour or race category and, thus, notices in social indicators the
position of this group in relation to other categories. This reveals how the indicators still
demonstrate the resemblance of positions between both groups, since the 70s, when it was
first suggested that pardos and pretos (dark-skinned black) integrate Brazilian black
population. In the bibliographic research, however, “pardos” category was discussed, in an
effort to understand the ways in which it was used by social theories, elaborated from/about
Brazil, from whitening theorists and racial democracy enthusiasts until present times. This
quest reveals that “pardo” is used in different ways, referring to different racial stereotypes.
The research also analyses a recent update in the perspectives about racial relations in Brazil.
This new proposition, still in formation in Brazil and scarcely appropriated by its society,
incorporates “colourism” as a key to discuss miscegenation. Such concept arises in debates
regarding “pardo privilege” or the possibility of someone passing for black and/or white, as,
for instance, the idea of “passability” shows, which is a usual topic in colourism speeches.
Pardos and pardo-like individuals’ social place in Brazilian society, since the emergence of
the term “mulato”, have an array of nomenclature, many of which display pejorative content,
as in “afrobeiges” and “afrocovenient”. These terms, triggered by colourism, point to the lack
of legitimacy when light-skinned individuals self-identify as black. Herein, what is called
anti-colourism is the proposition of re-examination of the “colourism” concept in the context
of racial relations in Brazil, giving rise to a conception that thinks racialization in different
ways. The diversity of black experiences happens by means of different social markers, as
class belonging or gender identity, for example. When analysed as one of those social
markers, light-coloured skin indicates a racialization process to which these pardos are subject
from a complex position that involves the racial democracy myth and miscegenation within
black people.

Keywords: Light-skinned black people. Racial heteroidentification committees. Colourism.


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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Qual minha cor? Printscreen da publicação em 2020.


Figura 2 Disputas em torno do limite da cor, “negresco”. Printscreen da publicação em
2020.
Figura 3 Disputas em torno do limite da cor, “afrobege”. Printscreen da publicação em
2020.
Figura 4 Nem filho branco, nem filho afrobege. Printscreen da publicação em 2020.
Figura 5 Não tem opressão no termo “afrobege”. Printscreen da publicação em 2020.
Figura 6 Camila Pitanga, “blackfishing brasileira”.
Figura 7 Bege e begice. Printscreen da publicação em 2020.
Figura 8 O caso de Matheus Pires, notícia do Extra Globo, 2020.
Figura 9 (1) Comentários sobre o texto “O colorismo e o privilégio que ninguém te deu”
no site do Portal Geledés. Printscreen da publicação em 2020.
Figura 10 (2) Comentários sobre o texto “O colorismo e o privilégio que ninguém te deu”
no site do Portal Geledés. Printscreen da publicação em 2020.
Figura 11 Tipos de cabelo do 1A ao 4C.
Figura 12 Duas mulheres da mesma cor: uma é branca outra é negra.
Figura 13 Busca no Google Imagens: “negros”, printscreen 2020.
Figura 14 Busca no Google Imagens: “racismo”, printscreen 2020.
Figura 15 Busca no Google Imagens: “jovens mortos pela polícia”, printscreen 2020.
Figura 16 Busca no Google Imagens: “traficante”, printscreen 2020.
Figura 17 Busca no Google Imagens: “pobres”, printscreen 2020.
Figura 18 (1) Pretos, brancos ou pardos? Printscreen da publicação em 2020.
Figura 19 (2) Pretos, brancos ou pardos? Printscreen da publicação em 2020.
Figura 20 Blackfishing.
Figura 21 Advogado critica a Comissão de heteroclassificação da UFBA, printscreen da
publicação em 2020.
Figura 22 (1) Opinião: “todos os afrodescendentes merecem as cotas”, printscreen da
publicação em 2020.
Figura 23 (2) Opinião: “todos os afrodescendentes merecem as cotas”, printscreen da
publicação em 2020.
Figura 24 “Como saber se você é negro”, printscreen da publicação em 2020.
10

Figura 25 Opinião: “pretos devem ter prioridade nas cotas raciais”, printscreen da
publicação em 2020.
Figura 26 Para quê servem os “pardos”? Printscreen da publicação em 2020.
Figura 27 Opinião: “pardos não sofrem preconceito”, printscreen da publicação em 2020.
Figura 28 Opinião: “pardos devem sair do direito às cotas”, printscreen da publicação em
2020.
Figura 29 Quem é pardo? Printscreen da publicação em 2020.
Figura 30 Qual o lugar dos pardos? Printscreen da publicação em 2020.
Figura 31 Diferentes contagens da população parda.
Figura 32 O significado do termo “pardo”, printscreen da publicação em 2020.
Figura 33 Quem deve ter direito às cotas, printscreen da publicação em 2020.
Figura 34 Taxa de maiores de 16 anos desempregados por cor ou raça em Salvador
(2010)
Figura 35 Taxa da população com renda menor que metade de um salário mínimo por cor
ou raça em Salvador (2010)
Figura 36 Taxa de analfabetismo por cor ou raça em Salvador (2010)
Figura 37 Gráfico do padrão de vitimização raça/cor e sexo das vítimas dos homicídios.
Figura 38 Printscreen da pesquisa no Google “mulher negra”.
Figura 39 Printscreen da pesquisa no Google “mulher mulata”.
Figura 40 Lightskin e brown skin.
Figura 41 Lightskin, brownskin e darkskin (1).
Figura 42 Lightskin, brownskin e darkskin (2).
Figura 43 Lightskin, brownskin e darkskin (3).
Figura 44 A Redenção de Cam (1985).
Figura 45 Não deixe sua cor passar em branco: responda com bom senso (censo).
Figura 46 Categorias raciais brasileiras (1).
Figura 47 Categorias raciais brasileiras (2).
Figura 48 Categorias raciais brasileiras (3).
11

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABA Associação Brasileira de Antropologia


ABNT Associação Brasileira de Normas Técnicas
AC Análise de Conteúdo
AD Análise de Discurso
ADC Ação Declaratória de Constitucionalidade
ADPF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
BI Bacharelado Interdisciplinar
CAE Conselho Acadêmico de Ensino
CEFET Centro Federal de Educação Tecnológica
DF Distrito Federal
FHC Fernando Henrique Cardoso
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IFBA Instituto Federal da Bahia
IML Instituto Médico Legal
MNU Movimento Negro Unificado
MPDG Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão
OIT Organização Internacional do Trabalho
ONG Organização não governamental
PL Progressão Linear
PME Pesquisa Mensal de Empregos
PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PNDH Programa Nacional de Direitos Humanos
PPGA Programa de Pós-Graduação em Antropologia
PROAE Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil
PROGRAD Pró-Reitoria de Ensino de Graduação
TEN Teatro Experimental do Negro
UERJ Universidade Estadual do Rio de Janeiro
UFBA Universidade Federal da Bahia
UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora
UnB Universidade de Brasília
UNESCO União das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
12

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO........................................................................................... 14

2 AUTODECLARAÇÃO RACIAL: A IDENTIDADE NEGRA SE MANIFESTA,


NÃO SE INCORPORA.............................................................................. 45
2.1 O NEGRO DESDE DENTRO...................................................................... 48
2.2 SER NEGRO(A) PARA A FAMÍLIA.......................................................... 59
2.3 O AFROBEGE OU AFROCONVENIENTE............................................... 62
2.4 PRIVILÉGIO. ............................................................................................... 72
2.5 O RACISMO. ............................................................................................... 83
2.6 O LIMBO RACIAL...................................................................................... 91
2.7 O CONFRONTO.......................................................................................... 92

3 DE DENTRO E DE FORA: A AUTODECLARAÇÃO E A


HETEROCLASSIFICAÇÃO.................................................................... 102
3.1 O PARDO OU O NEGRO-VIDA DESAFRICANIZADO. ........................ 104
3.2 O QUE COMPÕE ESSA IDENTIDADE NEGRA?.................................... 110
3.3 O CONFLITO INTERNO............................................................................ 121
3.4 MOVIMENTOS NEGROS.............. ........................................................... 128
3.5 RETEXTUALIZANDO A VIDA.................................................... ............ 129
3.6 A EXPERIÊNCIA DE AFERIÇÃO DA AUTODECLARAÇÃO.............. 134

4 HETEROCLASSIFICAÇÃO RACIAL: NEGROS DE PELE CLARA E/OU


FRAUDADORES........................................................................................ 138
4.1 CONTEXTO................................................................................................. 140
4.2 É TUDO A MESMA COISA? CASOS DIFÍCEIS, BLACKFISHING,
AFROCONVENIENTES E FRAUDADORES.......................................... 149
4.3 A HETEROIDENTIFICAÇÃO.................................................................... 155
4.4 O AUTORRECONHECIMENTO................................................................ 159
4.5 O FENÓTIPO E O GENÓTIPO................................................................... 160
4.6 A CONTROVÉRSIA.................................................................................... 165
4.7 PARA ONDE CAMINHA A IDEOLOGIA DO PRIVILÉGIO PARDO... . 168
13

4.8 “OJÚ AXÊ: OLHOS DA E PARA JUSTIÇA”............................................ 177

5 O COLORISMO PONTO A PONTO....................................................... 183


5.1 NEGROS DE PELE CLARA ESTÃO FAZENDO ETNOGÊNESE?......... 183
5.2 PRIVILÉGIO PARDO E RACISMO.......................................................... 185
5.3 AS MULATAS......................................................... .................................... 196
5.4 LIGHTSKIN, BROWNSKIN E DARKSKIN.................................................. 200
5.5 MANIPULAÇÃO ESTÉTICA..................................................................... 203
5.6 TENSÕES........................................................................................ ............ 205
5.7 PASSABILIDADE....................................................................................... 212

6 ANTI-COLORISMO.................................................................................. 215
6.1 A HISTÓRIA DOS MULATOS E OS PROBLEMAS TEÓRICOS........... 215
6.2 OS MULATOS NA ÁFRICA DO SUL E MOÇAMBIQUE....................... 222
6.3 MISCIGENAÇÃO........................................................................................ 227
6.4 A CONSTITUIÇÃO DA POPULAÇAO NEGRA PELOS MOVIMENTOS
NEGROS...................................................................................................... 232
6.5 TORNAR-SE NEGRO................................................................................. 233
6.6 NEGROS DE PELE CLARA....................................................................... 240
6.7 IDENTIDADE E CAPITALISMO GLOBAL.............................................. 242
6.8 COLORISMO............................................................................................... 245
6.9 MESTIÇAGEM, DISPOSITIVO E ANTI-COLORISMO.......................... 251

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 256

REFERÊNCIAS...................................................................................................... 260
14

1 INTRODUÇÃO

Essa pesquisa se constrói em torno dos dilemas políticos dos “negros de pele clara”
(CARNEIRO, 2016). Queremos analisar como as dinâmicas de autodeclaração e
heteroidentificação estão sendo elaboradas pelos e para os indivíduos autodeclarados negros,
com pele clara, em Salvador. Para isso foi pesquisado o processo seletivo de estudantes na
Universidade Federal da Bahia (UFBA) no ano de 2020. Este processo representa um
momento importante das disputas que interessam a este trabalho de pesquisa. A experiência
de acompanhar os trabalhos da Comissão de Aferição da Veracidade da Autodeclaração
Étnico-racial da UFBA constitui esta etnografia, cujo pressuposto inicial é que a identidade
negra, das pessoas de pele clara, está situada num terreno conflituoso, em constante disputa.
Nesse sentido, interessa compreender as dimensões que alcançam essa identidade – a
autodeclaração e a heteroidentificação.
A discussão sobre mestiçagem, embranquecimento e democracia racial no país é
extensa, mesmo com vários aspectos a serem ainda explorados. Mesmo que tenha havido
miscigenação em todos os países que viveram regimes escravocratas, no Brasil, o
branqueamento conformou uma teoria peculiar, “jamais adotada na Europa ou nos Estados
Unidos” (SKIDMORE, 1976, p. 81). Portanto, esta pesquisa visa compreender uma
elaboração identitária que leva em consideração a mestiçagem, mas reivindica uma posição
dentro no tabuleiro racial que divide brancos e negros. Esse lugar não é o de “meio termo” ou
“não lugar”, é um posicionamento negro.
No momento dessa escrita, as Ciências Humanas e Sociais brasileiras já possuíam uma
vasta literatura sobre racismo, democracia racial e mestiçagem. Ainda assim não
identificamos uma produção consolidada sobre o colorismo. Esse é um conceito trabalhado
nos Estados Unidos, berço dessa produção, e aparece pela primeira vez em 1983 com Alice
Walker, em “In Search of Our Mothers’ Garden”, que ainda não está traduzido para o
português. No Brasil, o colorismo é amplamente discutido nas redes sociais e nas discussões
políticas acerca do lugar dos “negros de pele clara” ou “pardos” na população negra brasileira,
principalmente por movimentos sociais negros. Este trabalho objetiva contribuir para a
ampliação do debate sobre o colorismo no Brasil e especialmente em Salvador, cidade
considerada como a mais negra fora do continente africano. Fazemos isso a partir de uma
pesquisa etnográfica, realizada numa instituição pública de ensino superior na Bahia. O
colorismo é um tema importante para o debate público, principalmente quando se
problematiza a chamada democracia racial como uma falácia, e a existência histórica do
15

racismo. Apesar da miscigenação, ou a partir dela, existem diferenças hierárquicas entre os


grupos étnico-raciais que compõe a nossa população, o que exige a intensificação desse
debate.
Como autora desse trabalho, me apresento engajada e implicada no tema em estudo: sou
mulher negra, “de pele clara”, e componho a escrita desse texto etnográfico a partir das
observações, das entrevistas, das conversas de campo e da literatura, considerando também as
minhas próprias experiências pessoais, sem reivindicar com isso uma abordagem
“autoetnográfica” para a pesquisa. Na medida em que “brancura e teoria política, em outras
palavras, são transparentes, neutras e objetivas [...] e cores e teoria política são essencialistas e
fundamentalistas” (MIGNOLO, 2008, p. 297), as cores dos meus interlocutores e a minha
própria cor, conformam outro desafio para esse trabalho, o de se fazer suficientemente
científico-acadêmico, e cuja dificuldade outros autores negros vem testemunhando
historicamente.
A mestiçagem ou o “espetáculo das raças” é um tema popular, como Schwarcz, (1993, p
11) nos mostra, e recebeu diferentes nomes dentro das Ciências Sociais, como: “festival de
cores”, “sociedade de raças cruzadas” e “espetáculo brasileiro da miscigenação”. Os autores
clássicos do considerado “pensamento antropológico brasileiro” ou os estudiosos da
“formação social do Brasil”, valorizam a miscigenação como tema e também como principal
conteúdo da história de formação do país. Sobre isso, Guimarães (2008), expressa:

Autores como Maggie e Fry tendem a ver a “democracia racial” como parte
constituinte da formação social brasileira, como uma matriz cultural
periodicamente atualizada por políticas, discursos e crenças. [...] Eu tendo,
ao contrário, a analisar a “democracia racial” brasileira como uma ideologia
historicamente datada, materializada em práticas sociais, em políticas
estatais e em discursos literários e artísticos (p. 55).

Darcy Ribeiro, outro desses clássicos, em seu livro “Moinhos de Gastar Gente” (1995),
ao tratar sobre a mestiçagem, elabora assim esse dilema:

[...] brasileiro consciente de si foi, talvez, o mameluco, esse brasilíndio


mestiço na carne e no espírito [...] via-se condenado à pretensão de ser o que
não era nem existia: “o brasileiro”, porque ele desprezava seus antepassados
indígenas e era rejeitado pelos europeus (p. 128).

Para Darcy Ribeiro (1995), os “protobrasileiros”, os filhos das misturas inter-raciais,


eram os verdadeiros brasileiros. Hofbauer (2006) cita uma passagem, desta vez de Gilberto
Freyre (1979), no mesmo sentido:
16

[...] “o conceito – o de metarraça – a que se liga o de morenidade, como


resposta brasileira – acima de ideologismos sectários ou de racismo arcaicos
– a branquitudes, negritudes e amarelitudes. O uso cada dia mais
generalizado, no Brasil, da palavra moreno e a valorização cada dia maior,
entre os brasileiros, da condição ou da aparência também morena, que o
diga. Nosso mais expressivos exemplos atuais de beleza de mulher são ou
biologicamente morenos como a tão encantadora Sônia Braga, ou
ecologicamente amorenados ou bronzeados pelo sol do trópico, como as
louras Vera Fischer e Bruna Lombardi. Qual a loura brasileira que
atualmente não se faz amorenar pelos sóis das Copacabanas?” (FREYRE,
1979, apud HOFBAUER, 2006, p. 252).

Ou seja, brancos e pretos seriam incorporados à brasilidade (ou à morenidade) a partir


da mistura, é o que comenta Guimarães (2008):

Para Gilberto Freyre, nos anos 1960, o Brasil já assistia a esse fenômeno de
perda de cor, cujo principal sintoma era a popularização do termo “moreno”.
No seu dizer, o crescente uso dessa palavra corresponderia não apenas a uma
transformação semântica, mas “a uma crescente tendência para considerar-se
moreno não só o branco moreno como outrora, mas o pardo, em vários graus
de morenidade, da clara a mais escura, por efeitos de mestiçagem, e o
próprio preto” (p. 33-34).

Hofbauer (2006) irá nos mostrar que Freyre pensava num ideal de mistura orientada
pelo embranquecimento. A metarraça, nesse sentido, seria miscigenada do ponto de vista
genético, porém clara no seu fenótipo.

Freyre parecia estar consciente de que sua defesa do branqueamento se


inseria num ideário ocidental de longa tradição. Para sustentar sua
argumentação, o autor remete-se também a uma “tabuada das misturas” do
início do século XIX (reproduzido por Gayoso), que previa a transformação
de negro em branco (e vice-versa) num prazo de quatro gerações. Ao insistir
no discurso ideológico do branqueamento, Freyre reivindicava também,
implicitamente, a continuidade de negociações pessoais das definições
(delimitações) do “outro” sob a égide do poder patrimonial. Até o final da
vida, opôs-se enfaticamente contra qualquer tentativa de formalizar a ideia
da diferença (HOFBAUER, 2006, p. 251).

Para Skidmore (1976), a miscigenação foi encarada como a solução do país para o
“problema negro”, forma de evitar uma guerra inter-racial diferente dos Estados Unidos, que
tentou isolar essa população. É útil lembrarmos, como faz D’Adesky (2002), que a “solução”
nacional não foi uma solução para a população negra:

O culto à miscigenação, que aproxima e une, reforça na realidade a primazia


do tipo-ideal branco, secundariamente do moreno mestiço, enquanto coloca
o negro à margem, sendo este induzido a interiorizar a dupla negação acima
referida, bem como a aceitar o branqueamento como opção melhor e
preferível. Tal paradoxo, associando essa dupla negação a uma propensão
17

mixófila, evidencia sobretudo a coexistência de um racismo e de um anti-


racismo, como modo que opera a sublimação e estetização do tipo branco,
como norma de referência por excelência (p. 70-71).

Ou seja, levada a cabo pelo ideal do branqueamento, a miscigenação não foi uma forma
de “resolver o problema negro”, mas de eliminá-lo. Ainda que exista um conteúdo anti-racista
na mestiçagem, como argumenta Jacques D’Adesky (2001) em sua obra, no Brasil a sua
receptividade se dá pela sua negatividade:

Por exemplo: na medida em que a prescrição ideológica de homogeneização


apresenta a mestiçagem como fundamentalmente ligada a um eugenismo,
perseguido pelo fantasma do enegrecimento da população brasileiro, ela
torna-se o índice maior de uma norma racista que rejeita aqueles
considerados negros. A forma de estigmatização implica sua inferiorização
social e sua exclusão simbólica (Ibid., p. 72).

É assim que o autor irá nos mostrar que, sendo uma prática consensualmente extensa na
nossa história, a mestiçagem também guarda o fundamento da democracia racial. Ela
esconderia um “racimo antinegro e antiindigena que jamais pode ser praticado ou falado
abertamente, sob pena de se romper um consenso” (Ibid., p. 73). D’Adesky (2001) apresenta a
mestiçagem como “alienação”1, cuja função seria “homogeneizar, unificar, padronizar ‘que
leva o brasileiro a supor e desejar que os negros desapareçam pelo branqueamento
progressivo’.” (p. 138). Giralda Seyferth (1995) vai nos dizer, por exemplo, que sob o
imperativo da “mistura das raças”, Silvio Romero irá condenar a imigração alemã no sul do
país:

[...] por resistirem à assimilação, ao casamento inter-étnico e ao uso da


língua portuguesa. A exclusão dos alemães, que, no Império, foram
considerados os imigrantes ideais para o sistema de colonização com
pequenas propriedades, ocorreu porque nossos teóricos do branqueamento
incorreram num paradoxo, conforme mostrei em outra ocasião (Seyferth
1991): conceberam a "formação (étnica) brasileira" desde a época colonial
como resultado de um amplo processo de caldeamento de raças consideradas
inferiores, bárbaras e selvagens (negros e índios), ou brancos produzidos por
mestiçagem (portugueses); os imigrantes europeus serviriam, entre muitas
outras coisas, para branquear essa população mestiça que, mesmo concebida
como inferior em raça e cultura, tinha a missão de abrasileirá-los (p. 181).

1
“as expressões ‘limpeza de sangue’, ‘barriga limpa’, ‘cabelo bom’, ‘cor no ponto’ ilustram, entre os negros, o
desejo mixófilo que elege o tipo mestiço como o intermediário para se chegar ao ideal supremo que é tornar-se
branco. Mas, tal indiferenciação por meio da mistura, vista como libertadora e emancipadora, submete os negros
a efeitos destrutivos, na medida em que substituiu o desejo racial de ser reconhecido como igual pelo desejo
irracional de ser reconhecido numa inferioridade relativa. Assim, ela produz uma alienação caracterizada pela
exigência de despertencimento, com um discurso cuja retórica coercitiva explora desejos de semelhança e de
homogeneidade em relação ao tipo ideal” (D’ADESKY, 2001, p. 174).
18

Nesse contexto de supervalorização da mestiçagem constituído fortemente no início do


século XX e presente ainda nos dias atuais, são os movimentos sociais negros, principalmente
a partir da década de 60 e 70, que irão desempenhar papel decisivo para a concretização de
um contra-discurso teórico e político:

[...] essa evidência consensual [sobre a miscigenação] também produz uma


inquietude no seio dos movimentos anti-racistas, nomeadamente o
Movimento Negro que prega a preservação identitária como forma de luta
anti-racista e como forma de autodefinição coletiva. De fato, a evidência
consensual que integra o negro, mesmo rejeitando-o, apresenta um dilema:
como coloca-lo em discussão se já se sabe, segundo as palavras de Taguieff,
que o critério de uma evidência consensual é que ninguém pode coloca-la
em questão, em uma dada conjuntura, sem sair da normalidade do campo de
debates legítimos, do espaço secretamente normatizado da opinião, isto é, do
conjunto de opiniões aceitáveis e convencionais (D’ADESKY, 2001, p. 73).

Também é isso que nos diz Guimarães (2002):

Por um lado, o Movimento Negro Unificado, assim como as demais


organizações negras, priorizaram em sua luta a desmistificação do credo da
democracia racial, negando o caráter cordial das relações raciais e afirmando
que, no Brasil, o racismo está entranhado nas relações sociais. O movimento
aprofundou, por outro lado, sua política de construção de identidade racial,
chamando de “negros” todos aqueles com alguma ascendência africana, e
não apenas os “pretos” (p. 56).

Ou seja, esses movimentos estão dizendo que não há espaço dentro do discurso oficial
da nação, para que se elabore uma identidade negra e para que se combata o racismo
embutido na ideia de mestiçagem2. Eles estariam lutando contra uma “subtração
universalista” (D’ADESKY, 2001, p. 139) e pelo “pluralismo cultural” (Ibid., op. cit.), uma
das demandas inseridas nas políticas de reconhecimento.
Temos como superadas as falsas polêmicas de que “não existem raças humanas”, por
isso não aprofundaremos essas discussões aqui. Mesmo assim, lembramos brevemente, a
respeito disso, o que ensina Kabengele Munanga (2003). O autor explica que os avanços da
Genética Humana teriam descartado de uma vez por todas, qualquer fundamentação biológica
ou científica das classificações raciais para diferentes grupos humanos, feitas pelo menos
desde 16843. Apesar disso, “raça” continua tendo valor social e sociológico4 e por isso

2
“[...] afirmar a existência de um grupo negro ‘autônomo’ ia contra a construção analítica de Freyre, que
apostava na consolidação de uma ‘meta-raça’ que o autor via diretamente ligada à existência de um ‘etos’
(cultura) brasileiro próprio, concebido como uma espécie de totalidade orgânica, uma entidade coesa e
homogênea” (HOFBAUER, 2006, p. 252-253).
3
Sobre o primeiro registro do termo “raça” nas classificações humanas, ver Guimarães (2008).
4
“A partir dos anos 1980 e 1990, assumem maior visibilidade duas perspectivas no campo dos estudos raciais.
Como observa Costa (2002), a primeira delas, que guarda estreita relação com as pesquisas de Hasenbalg e
19

reivindicado no campo dos estudos étnicos-raciais. No Brasil, Guimarães (2008) nos mostra,
o termo “negro” não se referia apenas à população africana e afrodescendente, mas todos os
escravizados, inclusive indígenas, os “negros da terra” (p. 21)5. Essa “raça negra” conotava
assim, não apenas características físicas, mas status. Munanga (2003) irá dizer que a
formulação colonizadora sobre “raça” aponta diretamente para uma hierarquia na condição
humana, colocando no topo da escala evolutiva o homem europeu, e os demais povos na
condição de menos humanos, selvagens. “Raça”, portanto, guardará intimidade com racismo6.
Para o autor, a sociedade continua sendo organizada por critérios raciais. Nesse sentido,
reivindicando a “raça negra”, os movimentos negros não sobrelevam uma diferença
ontológica entre seres humanos negros e não negros. Ao contrário disso, estariam
denunciando a atualização do processo de racialização7. Também são os movimentos negros
que reivindicarão a formalização da coleta de dados relativos à cor ou raça em registros
médicos, por exemplo, ou em outros serviços públicos pelo Estado. Isso porque, formalmente,
dentro da nossa história de nação, “raça não importa”8. Ilustrando esse argumento, Skidmore
(1976) nos fala sobre o que aconteceu no censo de 1970:

[...] não se coletaram dados sobre raça. A comissão censitária tomou essa
decisão explicando que veriam de tal maneira as definições de categorias
raciais (e, especialmente, sua aplicação em casos individuais) que não seria
possível as recenseadores recolher dados fidedignos. [...] Na realidade, o
governo federal decidiu que a cor não era tão importante que justificasse
maiores esforços no sentido da coleta de dados mais exatos, pelo menos no

Silva, atém-se às investigações das assimetrias existentes no plano das relações raciais no Brasil, sem desprezar
outros elementos determinantes, tais como: classe, gênero, educação e espaço geográfico (HASENBALG, 1979;
1996; HASENBALG; VALLE SILVA, 1988). No caso da segunda perspectiva, raça transforma-se em uma
categoria primordial para o entendimento da dinâmica societária no Brasil que, por meio do modelo bipolar – a
ênfase nas desigualdades entre brancos e negros e no binômio racismo/anti-racismo –, se torna a chave
explicativa para as demais iniqüidades sociais (GUIMARÃES, 1999; HANCHARD, 1994; HENRIQUES, 2001;
WINANT, 1994). Cabe ressaltar que em ambas as visões o conceito de raça é concebido como fundamental para
a compreensão das disparidades sociais existentes no Brasil” (MAIO&SANTOS, 2008, p. 91).
5
João Reis (2000) fala que “crioulo” e “preto” eram os principais termos raciais na primeira metade do século
XIX, para designar respectivamente, negros brasileiros e africanos. Já na segunda metade do século XIX, “preto”
passa a abarcar ambos os grupos. Isso significa, para o autor, uma africanização desses crioulos, assim como
uma tendência, principalmente entre os trabalhadores de rua no final da escravidão, de uma convergência “em
torno de um reconhecimento de que eram todos – ou quase todos – negros ou tratados como tais” (p. 241).
6
“Racismo é palavra surgida na década de 1930, segundo Banton (1977), para identificar um tipo de doutrina
que, em essência, afirma que a raça determina a cultura” (SEYFERTH, 1995, p. 178). Ver também Hofbauer,
2006.
7
Guimarães define esse processo como o: “[...] fenômeno cultural que se utiliza de diferentes regras para traçar
filiação e pertença grupal, conforme o contexto histórico, demográfico e social, “... um sistema de marcas físicas
(percebidas como indeléveis e hereditárias), ao qual se associa uma ‘essência’, que consiste em valores morais,
intelectuais e culturais.” Nesse sistema, apesar da necessidade da ideia de ‘sangue’ como transmissor dessa
‘essência’, “...as regras de transmissão podem variar, amplamente, segundo os diferentes racialismos.”
(Guimarães, 1999: 28 apud RIOS, 2018, p. 221).
8
Ver mais Hofbauer (2006) que o interesse em eliminar essas concepções formais sobre “raças humanas” não é
particular do Brasil.
20

recenseamento de 1970. Essa atitude vai de par com a relativa ausência de


discussão pública sobre o tópico raça (p. 239).

Apesar disso, como já sinalizamos, esse quadro de negação formal das diferenças raciais
começou a ser modificado no Brasil alguns anos antes, na década de 60, em função das ações
dos movimentos negros e dos estudos patrocinados pela UNESCO9. Através dessas pesquisas,
o pensamento social sobre as relações raciais no Brasil se transformou, “ficou patente que
quanto mais escuro fosse o brasileiro mais provável seria encontrá-lo no fundo da escala
sócio-econômica – e nisso coincidiam os diversos indicadores – renda, ocupação, educação”
(Ibid., p. 237). Zoninsein (2008) também constata a importâncias dessas pesquisas ao trazer
que:

[...] o final da década de 1970, a discussão sobre a situação racial no Brasil


apresentava novos contornos, principalmente após a realização e divulgação
dos resultados do Suplemento Mobilidade Social e cor da PNAD 1976. Os
desdobramentos das discussões então surgidas favoreceram a reinclusão do
quesito cor no Censo de 1980, restabelecendo a série que havia sido
interrompida no planejamento do Censo de 1970 por razões políticas (p. 82).

Destacamos, no conjunto desses estudos, àqueles realizados por Hasenbalg e Valle


Silva. No final da década de 70 esses pesquisadores propuseram que não-brancos (pretos e
pardos) fossem agrupados em uma só categoria, observando a compatibilidade de resultados
desses dois grupos quanto aos indicadores sociais10.

Pioneiro em estudos empíricos sobre discriminação e desigualdades raciais


baseados em dados estatísticos, Hasenbalg fundia, já nos primeiros
trabalhos, as categorias “pardo” e “preto” (usadas pelo IBGE), com o
objetivo de analisar a situação social dos “negros”. Partindo dessa
dicotomização analítica entre “brancos” e “não-brancos”, pesquisadores
ligados aos Estudos das Relações Raciais têm conseguido, sobretudo a partir
da década de 1980, reunir uma grande quantidade de dados estatísticos
detalhados que comprovam a existência da discriminação do grupo dos
“negros” em relação aos “brancos” em todos os âmbitos da vida social”
(HOFBAUER, 2006, p. 280).

No nosso trabalho, assumimos metodologicamente que os negros de pele clara são


equivalentes aos “pardos” das categorias de cor ou raça do IBGE - ainda que possamos

9
Depois da II Guerra (1950) “a Columbia Unisersity e o governo da Bahia deram início, em conjunto, a um
projeto de pesquisa sobre as mudanças sociais naquele estado. No mesmo ano, o programa foi ampliado. A
UNESCO forneceu fundos para financiar pesquisa mais completa e minuciosa, principalmente de relações
raciais. Era parte de um estudo em larga escala das relações raciais no Brasil autorizado pela UNESCO na
presunção de que a experiência brasileira pudesse dar ao resto do mundo uma lição única de relações
‘harmoniosas’ entre as raças.” (SKIDMORE, 1976, p. 236).
10
Há uma crítica extensa, que esse trabalho busca trazer, sobre os descendentes indígenas que estariam
subsumidos nessa dualidade entre brancos e negros. Sobre isso, ver mais em Verán, 2010.
21

observar na nossa pesquisa, que alguns interlocutores irão criticar o termo e optar pela
categoria “preto” do Instituto. É importante mais uma vez intervir nessa discussão, como nos
lembra Zoninsein (2008), mostrando que existem outros grupos, como os indígenas e seus
descendentes, que estão frequentemente enquadrados enquanto pardos. Isso revela o
apagamento desse grupo na categoria. Adianto também que, nessa pesquisa, esses “caboclos”
não são nossos interlocutores diretos.
Piza e Rosemberg (2002) analisam que o “pardo”11 aparece nos censos brasileiros a
partir de 1872, compreendendo os filhos das misturas interraciais entre pretos e brancos. Lima
e Venâncio (1991), citados por Piza e Rosemberg (2002, p. 95), mostram que depois de 1871,
após a Lei do Ventre Livre, o número de pardos cresceu e o de brancos diminuiu, o que nos
leva a pensar sobre a relação entre cor/raça e a condição de liberdade/escravização. Já no
século XX, entre os anos de 1900 a 1920, não se incluiu cor na coleta de dados. O censo
seguinte, de 1940, voltou a incluir as cores branco, pardo, preto e amarelo, tal como o censo
de 1950 (Ibid., p. 95,96). Este último censo conceituava “pardos” como além daqueles filhos
de pretos e brancos, incluindo “índios e os que se declaram mulatos, caboclos, cafuzos, etc.”
(IBGE, 1956, p. xvii-xviii apud PIZA&ROSEMBERG, 2002, p. 96). Esse termo, pardo, que
aparece ao longo da história como um “saco de gatos”, para utilizar o termo de Schwarcz
(2012), pretende abarcar àqueles que não correspondem ao desenho estático do que é o negro,
nem as expectativas do grupo de prestígio, branco. Ou seja, pardos são aqueles que não são
pretos, mas também não são brancos. Para Piza e Rosemberg (2002), eles se constituem como

[...] o grupo onde a variação do pertencimento parece ser maior e mais


influenciada pelos significados sociais de cor. É esta população que mais
fluidamente transita pelas linhas de cor, estabelecendo limites geralmente
amplos (Wood, 1991, apud PIZA&ROSEMBERG, 2002, p.100).

Weschenfelder e Silva (2018) nos falam sobre três momentos em que o termo pardo é
utilizado: para distanciar-se da escravidão, na medida em que “definir-se ou ser definido
como pardo evidencia uma relação com a liberdade” (p. 6-7); no enaltecimento da
“mestiçagem como identidade nacional, resultando na crença da democracia racial” (Ibid., op.
cit.) e na “rearticulação do movimento negro, no final da década de 1970” (Ibid., op. cit.)
onde o “deslocamento da categoria cor/raça parda, que agora em conjunto com os
autodeclarados pretos, passa a ser nomeada como população negra” (Ibid., op. cit.), isso “será
um dos elementos responsáveis pela contestação dessa suposta democracia” (Ibid., op. cit.). A
saída ou entrada da cor ou de determinadas categorias nos censos, reflete como as ideologias

11
Ver mais em Guimarães (2008) sobre o histórico do uso das categorias raciais pelos censos brasileiros.
22

racialistas foram se rearranjando ao longo do tempo, cumprindo diferentes agendas políticas


dos seus respectivos contextos. Schwarcz (2012) nos fala sobre a diversidade de categorias
não oficializadas pelo Estado, mas utilizadas no cotidiano da vida para identificar cor.
Segundo a autora,

O dado mais notável não é a multiplicidade de termos, mas a subjetividade e


a dependência contextual de sua aplicação. A identificação racial é quase
uma questão relacional no Brasil: varia de indivíduo para indivíduo, depende
do lugar, do tempo e do próprio observador (p. 104).

Esse comentário configura a base da problemática da heteroclassificação da qual


estaremos desenvolvendo nesse trabalho. O contexto comentado por Schwarz (2012) também
reverbera na cidade de Salvador, onde essa pesquisa acontece. Destaco um trecho da
dissertação de Barros (2003), realizada em Salvador, sobre casais inter-raciais:

Além dos perigos inerentes ao trabalho com representações, estudar


identidade racial na sociedade soteropolitana implica em nos depararmos
com um sistema de classificação racial bastante amplo, no qual se incluem
vários termos que atuam como mediadores entre os dois pólos. Um exemplo
é a categoria “moreno”, que abarca uma gama variada de cores e pode se
referir tanto a brancos de cabelo escuro como a negros com menor teor de
pigmentação da pele. Aliada a isso, temos a intervenção de fatores subjetivos
e da relatividade das definições de cor, o que faz com que um negro seja
tratado como “preto”, “moreno” ou “escuro”, dependendo da sua situação
socioeconômica (SANSONE, 1992; AZEVEDO, 1996 apud BARROS,
2003, p. 99).

Ainda sobre essa multiplicidade de categorias raciais no contexto baiano e


soteropolitano, Guimarães (2008) cita a pesquisa realizada por Marvin Harris no interior da
Bahia em 1962, sobre os sistemas de classificação racial:

“A evidência sugere que, se procuramos especificar as condições sob as


quais o termo racial será empregado em relação a um indivíduo, deveremos
estar preparados para desenvolver um cálculo cognitivo altamente complexo
no qual a classe do sujeito e a sua aparência física são apenas duas
componentes. Mas, eu pessoalmente me inclino a achar que possivelmente
tal cálculo nunca possa ser formulado. O uso de termos raciais parece variar
de indivíduo para indivíduo, de lugar a lugar, de tempo a tempo,
experimento a experimento, observador a observador” (Harris, 1964: 27
apud Guimarães p. 37).

Skidmore (1976) diz que existem três motivos para essa multiplicidade de termos
raciais (que chamará de “sistema multirracial”) existir no Brasil: o primeiro seria que “a
escassez crônica de mão-de-obra branca especializada e semi-especializada [poderia ter]
forçado os colonizadores europeus a legitimar a criação de uma categoria de homens livres de
23

cor, capazes de desempenhar certas tarefas” (Ibid., p. 58). O segundo motivo fala sobre
“fertilidade diferencial”, ou seja,

[...] mesmo considerando as inexatidões dos dados estatísticos brasileiros


(como o classificar crianças de sangue misturado em grupo diferente do de
suas mães), os demógrafos concluíram que a população preta reproduziu
num ritmo mais lento depois da Abolição do que a branca e a mulata. [...]
essa taxa mais baixa de fertilidade dos pretos contribuiu de maneira
substancial para o processo de “branqueamento”, cuja promoção tornou-se o
coração do ideal racial brasileiro. [...] Uma das hipóteses mais prováveis é a
da dificuldade de cruzamento encontrada pelas mulheres pretas (Ibid., p. 59).

Por fim, o autor indica uma “relativa ausência de sectarismo no Brasil” (Ibid., p. 59).
Segundo ele, a escravidão no país foi nacional, diferente do caráter regional que teve nos
Estados Unidos. A tese do autor é de que “homens livres de cor, muito antes da abolição,
desempenhavam já importantes funções na economia, na política e nas artes. E essa inserção é
prova de que já existia um padrão multirracial de categorização racial que a permitiu” (Ibid.,
p. 60). Ou seja, existiriam mulatos exercendo funções livres em diferentes setores da
sociedade, e isso provaria um sistema racial complexo e de múltiplas classificações que o
tornasse possível. Wagley (1968), citado por Guimarães (2008), analisa esse fenômeno a
partir da América Latina12, identificando

[...] três padrões distintos ou três tipos de sistemas de classificação, baseados


nos critérios de: (1) ancestralidade ou origem, (2) status sociocultural, ou (3)
aparência física. Na verdade, Wagley sistematiza as descobertas de uma
série de estudos antropológicos e sociológicos sobre relações raciais na
América latina, das décadas de 1950 e 1960 (p. 35).

Já Jacques D’Adesky (2001) indica que existem cinco tipos de sistemas classificatórios
operando no Brasil. Seriam eles:

[...] o sistema do IBGE, usado no censo demográfico, com as categorias


branco, pardo, preto e amarelo; o sistema branco, negro e índio, referente ao
mito fundador da civilização brasileira; o sistema de classificação popular de
135 categorias, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de

12 Villar e Villar (2019) tratarão sobre esse sistema raça/classe em países da América Latina no contexto de
capitalismo global, nomeando-como como “pigmentocracia”. Segundo os autores, o termo terá origem em 1944
com o autor chileno Alejandro Lipschutz. Villar e Villar (2019) concordam com a noção de que um sistema
multirracial existe para garantir uma faixa intermediária entre o preto e o branco: “a hierarquia pigmentocrática
começa com pessoas brancas no nível superior, mestiços no nível médio e povos afro e indígenas no nível
inferior. Para Moore, esse conceito é a chave no pré-capitalismo e na formação do capitalismo moderno: no nível
concreto, a estruturação de classes de uma sociedade pigmentar-crática obedece a um sistema de classificação,
no qual linhagem e linhagem são confundidas com diferenciações fenotípicas: da pele, textura do cabelo,
formato dos lábios e nariz, entre outras características, padronizam tanto os comportamentos quanto o 'lugar'
social de cada um. A lógica racial que as sociedades pigmentocráticas encerram é uma forma de pensamento e
hierarquização dermo-fenotípica, a partir da cor da pele e da aparência do sujeito.” (tradução nossa, p. 41).
24

Domicílios (PNAD) realizada pelo IBGE em 1976; o sistema bipolar branco


e não-branco, utilizado por grande número de pesquisadores de ciências
humanas; o sistema de classificação bipolar branco e negro, proposto pelo
Movimento Negro (p. 135).

Dentre esses sistemas, poderíamos destacar aquele utilizado pelo IBGE, em combinação
com o sistema negro-branco, como os mais notáveis para o acesso as cotas raciais nos editais
de concursos públicos. Fazendo uma comparação com os Estados Unidos, o autor informará
os critérios mobilizados por esses sistemas:

[...] o sistema do IBGE, e o popular, não manifestam a permanência das


classificações caracterizadas pela fixidez das categorias raciais, segundo as
quais os indivíduos se classificam ou são classificados em relação à
bipolaridade dos sinais exteriores (fenótipo) e da ascendência. De fato,
diferentes fatores relativizam a classificação e a identificação racial
brasileira. O primeiro fator é a intersubjetividade da autopercepção e da
percepção do outro que reflete o dilema da escolha unívoca ante o grande
número de categorias raciais existentes. Outro fator é a realidade da
miscigenação em muitas famílias, em que convivem pessoas de diferentes
tonalidades de pele (Ibid., op. cit.).

Ou seja, para D’Adesky (2001), existe uma complexidade maior nos sistemas de
classificação racial brasileiros, ao levar em consideração diferentes variáveis. Nos Estados
Unidos13 essa classificação estaria fundamentalmente baseada em critérios de herança
genética. Esse sistema “multirracial” nos insere na discussão sobre branqueamento. Isso
porque toda essa complexidade pode ser compreendida como categorias furtivas à identidade
negra. As pessoas prefeririam a cor “branco sujo” ou “queimadinho de sol” do que uma
autodeclaração preta ou negra.
As teorias racistas que exerciam influência na sociedade estadunidense, por derivação
também inspiravam muitos brasileiros que alimentavam admiração pelos Estados Unidos. A
teoria da superioridade ariana, por exemplo, “era aceita como fato de determinismo histórico,
pela elite brasileira entra 1888 e 1914” (SKIDMORE, 1976, p. 69). Essa admiração pela
sociedade americana e a crença na superioridade europeia levou inclusive a um sentimento
antiportuguês, “como os mais atrasados dos europeus – decorrentes da imprevidência, da
indolência e da imoralidade.” (Ibid., op. cit.). Os nacionalistas ao mesmo tempo em que se
assustavam com essa crítica,

[...] não repudiavam a teoria ariana, só alertava para a necessidade de entrar


na “Luta darwiniana” em busca de investimentos estrangeiros ou colônias

13
Ironizando sobre isso, Telles (2003) escreve que, “alegam que a regra de uma gota de sangue no Brasil, se
acaso existisse, seria revertida para significar que uma gota de sangue branco seria suficiente para evitar a
classificação de alguém como negro” (p. 110).
25

imigrantes. [...] Praticamente, todo pensador social brasileiro – antes de 1914


– se viu a braços com o darwinismo social (Ibid., p. 69-70).

Schwartcz (1993) compreende o branqueamento como uma adaptação brasileira para as


principais escolas das teorias racistas que emergiram no século XIX. Isso porque, tal como
Seyferth (1995) nos mostra, na origem dessas teorias racistas, a miscigenação não era uma
solução, e sim um problema de degenerescência:

Na verdade, o principal dogma do racismo afirma que as raças humanas são


desiguais, os brancos são superiores, e toda a mestiçagem resulta em
degenerescência. O processo evolutivo, associado à idéia de progresso, é
pensado como "luta de raças", na qual os "inferiores" são "naturalmente"
dominados. O dogma racista condena todos os mestiços à extinção
progressiva, criando, assim, uma dificuldade quase incontornável para a
ciência das raças à brasileira, defrontada com uma enorme variedade de
mestiços de todos os matizes. Mas, assim como Gobineau conseguiu
imaginar algum tipo de- mestiçagem criativa, nossos pensadores inventaram
o branqueamento, dando alguma chance a uns poucos eleitos como
"mestiços superiores". Ideologias nem sempre precisam de coerência para
serem assumidas como "verdades" (p. 181).

Skidmore (1976) nos conta que a teoria do branqueamento foi aceita pela maior parte da
elite brasileira entre 1889 e 191414 baseando-se “[...] na presunção da superioridade branca, às
vezes, pelo uso dos eufemismos raças ‘mais adiantadas’ e ‘menos adiantadas’ e pelo fato de
ficar em aberto a questão de ser a inferioridade inata” (Ibid., p. 81). Dessa forma, Seyferth
(1995) argumenta:

[...] certos mestiços são melhores que a massa de trabalhadores nacionais


destinada ao desaparecimento progressivo por sua inata incapacidade de
adaptação a uma nação civilizada, vítima irremediável da "inexorável"
seleção natural/social. O postulado de uma política intensa de incentivo à
imigração branca, portanto, está relacionado a esta crença acerca dos efeitos
mortais da "civilização" sobre os povos considerados racialmente inferiores
(p. 183).

É sobre essa realidade de uma miscigenação extensa entre os povos, com repercussão
sobre os sistemas classificatórios, que os pesquisadores e movimentos negros irão se debruçar
para pensar raça e políticas afirmativas. Valle e Silva (1994), citados por Schwarcz (2012),
formulam o conceito de “raça social” para explicar as “discrepâncias entre cor atribuída e cor
autopercebida” (SCHWARCZ, 2012, p. 106). Essa é uma proposição que pretende resolver
esse espaço dialógico entre o “eu” e o “outro”. O argumento se alinha a perspectiva de Rios
14
O autor nos dá três explicações para o processo de branqueamento no Brasil até década de 70 ter sido tão bem
acolhido: as imigrações de brancos; a baixa de natalidade de negros; e o branqueamento da miscigenação pelos
pais brancos (SKIDMORE, 1976, p. 60).
26

(2018), quando comenta as experiências das Comissões de Verificação da Autodeclaração


Étnico-racial. Essas Comissões têm como objetivo garantir a lisura no acesso de pessoas
negras às políticas afirmativas, por meio de uma aferição da autodeclaração racial dos
candidatos cotistas. Essa aferição não pretende suspender o que, subjetivamente, o indivíduo
formulou quanto a sua identidade. Ao contrário, seu intuito é observar, a partir de uma leitura
fenotípica, aqueles para os quais se justifica o acesso às cotas. Rios (2018) nos diz que:

Reconhecer ao fenótipo papel decisivo decorre da constatação de que, no


racismo e na atribuição de identidades étnico raciais, organiza-se uma
taxinomia de indivíduos e de grupos humanos a partir da ideia de raça,
fenômeno cultural que se utiliza de diferentes regras para traçar filiação e
pertença grupal, conforme o contexto histórico, demográfico e social, “... um
sistema de marcas físicas (percebidas como indeléveis e hereditárias), ao
qual se associa uma ‘essência’, que consiste em valores morais, intelectuais e
culturais”, associação esta que se valeu, ao longo da história, de vários
marcadores, desde a cor, até outras características antropofísicas e psíquicas
(RIOS, p. 236/237).

Nesse sentido, seria possível resolver a relação entre autodeclaração e


heteroclassificação para além das elaborações individuais:

Quando a regulamentação da política pública fala de “aferir”, “verificar” a


“veracidade”, não se se trata de uma pretensa “verdade sobre a raça”, no
sentido de um realismo ontológico, apelando para dados biológicos,
essências irredutíveis, fixas e cristalizadas, ou porta-vozes indiscutíveis e
“donos da verdade”. [...] Verificar a veracidade, portanto, encerra dupla
tarefa: desvendar a que identidade racial (documental, privada, pública,
social) referiu-se o autodeclarante, além de aferir se a vivência declarada
atende, de modo concreto, à centralidade que os objetivos da política pública
dão à raça social (Ibid., op. cit.).

Na UFBA, a Comissão de heteroidentificação começa a ser implementada a partir do


edital nº02/2016 para o concurso de técnicos administrativos, e a partir de 2019 para os cursos
de graduação, através da resolução Nº 07/2018, formulada durante reunião do Conselho
Acadêmico de Ensino (CAE), em 19 de dezembro de 2018. O método utilizado pela
Comissão foi o Ojú Oxê (Olhos da e para a Justiça), elaborado pela socióloga Marcilene
Garcia de Souza, e cujo termo foi proposto pela intelectual negra e baiana Lindinalva
Barbosa15. Marcilene

15
Em reunião com Marcilene, ela narra que o termo foi sugerido por Lindinalva Barbosa durante uma reunião do
Coletivo Mahin Mulheres Negras, quando estava presente, além de Marcilene e Lindinalva, Vilma Reis, Zezé
Pacheco, Tânia Palma, Eva Bahia e Denize Ribeiro. A proposição de Lindinvalva Barbosa surgiu quando
Marcilene colocou para o grupo, a necessidade de pensar um nome para o seu projeto, que se remetesse a uma
elaboração Yorubá de nomeação e de Justiça.
27

[...] sistematizou experiências de 10 anos de participação de bancas de


verificação da autodeclaração de pessoa negra [...]. Seu método, que visa
humanizar o máximo possível o processo, busca treinar integrar a equipe
envolvida nas bancas (membros da banca, fiscais, fotógrafos, técnicos de
filmagens, etc), assim como o candidato antes de entrar na banca de
aferição.16

Nesse momento é importante traçar algo do percurso das políticas afirmativas,


principalmente na Bahia, uma vez que, é a partir delas que surgem as comissões de
heteroidentificação. Ana Célia Silva (2017), intelectual negra baiana e professora, nos mostra,
por exemplo, os trabalhos que antecederam a criação da Lei n. 10.639/03. Essa Lei fala sobre
a obrigatoriedade do ensino da “História e Cultura Afro-Brasileira” nas escolas do ensino
fundamental e médio. Já em 1984 o Movimento Negro Unificado17 – Bahia (MNU-BA)18
teria encaminhado um abaixo-assinado para a Secretaria Estadual de Educação da Bahia
“solicitando a inclusão da disciplina ‘introdução aos estudos africanos’ na rede oficial de
ensino” (Ibid., p. 45). Isso porque, desde já o movimento compreendia que a educação era
uma arma forte contra

[...] a invisibilidade do outro, o estereótipo e a exclusão [que] operam para


esvaziar os descendentes de africanos dos seus significados e dos valores de
sua cultura, ao mesmo tempo em que os preenchem com a “tradição”, o
“passado significativo” de um só grupo, aquele que tem prevalência histórica
na sociedade (Ibid., p. 90)

A educação sempre foi, como mostra a autora, um campo de reivindicação política


muito importante para os movimentos negros19.

[...] a procura da instrução e de educação, como forma de mobilidade e


contribuição para a inserção de um segmento majoritário na sociedade,
sempre foi uma meta perseguida pelos afro-brasileiros. Nesse sentido, as

16
CALDAS, F. Tranquilidade e acolhimento marcam primeira verificação de autodeclaração de cotas na UFBA.
Disponível em <http://www.edgardigital.ufba.br/?p=11316>.
17
O MNU aparece muitas vezes nesse trabalho, ainda que, recorrentemente, façamos menção a outras
organizações do movimento negro brasileiro. A importância do Movimento está registrada na história como
aquele que mudou a forma como se enfrentava politicamente a discriminação racial. Em plena Ditadura Militar,
a organização cria uma manifestação contra a prisão e tortura de jovens negros, no dia 7 de julho de 1978, que
agregou nomes importantes como Abdias do Nascimento e Lélia Gonzales, este também é o dia que funda a
organização.
18
Além do MNU-BA, outra organização, “A Frente Negra Baiana também via a educação como via de
mobilidade, ascensão e integração social, por isso ministrou cursos de alfabetização noturnos, cursos primários,
de música, de datilografia e de línguas” (BACELAR, 1996, p. 76 apud Ana Célia p. 195).
19
A autora cita “algumas ações sistemáticas e paralelas à educação oficial” (SILVA, A. C., 2017 p. 191-192)
empreendidas pelo Movimento Negro como: Publicação dos Cadernos Negros desde a década de 80, “propostas
de currículos pluriculturais implementados pelas entidades do Movimento Negro” (Ibid., op. cit.) , “escolas
comunitárias e escolas de blocos afros” (Ibid., op. cit.), “Pesquisas dos pesquisadores militantes universitários
sobre currículos pluriculturais, dissertações, teses e dissertações de questões raciais” (Ibid., op. cit.),
“Congressos, seminários e encontros sobre educação em entidades negras, Congresso de Pesquisadores Negros”
(Ibid., op. cit.), dentro outros exemplos..
28

irmandades, associações culturais e recreativas negras procuraram instituir


escolas de alfabetização para seus associados, logo após a abolição
(NASCIMENTO, 1981 apud SILVA, A. C., 2017, p. 191).

Apesar desse histórico esforço dos movimentos e comunidades negras em reivindicar


direitos e garantir educação para a população negra, Telles (2003) irá nos mostrar que as
“políticas sociais brasileiras voltadas ao combate do racismo e da desigualdade racial, têm
uma história bem recente” (p. 263) e se dividem em dois formatos: de legislação anti-
racismo20 e de ação afirmativa21. Telles (2003) diz que a partir de uma separação entre
“democratização formal e a aplicação da lei” (p. 264), haverá morosidade do Estado em punir
o racismo e garantir direitos à população negra. É nesse sentido que podemos compreender
três coisas: a primeira é que muitos anos se passaram, desde a implementação das cotas, sem
que houvesse fiscalização ou qualquer tipo de acompanhamento, pelo Estado, que garantisse
sua efetividade. A segunda: podemos enxergar ainda hoje a relutância de alguns editais de
concursos públicos em inserir o processo de heteroidentificação como uma etapa do processo
seletivo de cotistas. Por fim, que “o sistema legal também considerou a questão racial pouco
importante”22.

[...] a lei garante os direitos e deveres do indivíduo, ao mesmo tempo em


que seus conceitos e comandos são muitas vezes violados pelos detentores
do poder. A título de exemplo, o ditado “aos meus amigos, tudo, aos meus
inimigos, a lei”, demonstra a flexibilidade no uso das leis pelos poderosos no
Brasil, incluindo as autoridades do Estado. [...] A despeito da reforma legal
da Constituição de 1988, que garantiu a proteção aos direitos políticos, civis
e muitos dos direitos sociais dos pobres e dos negros, a implementação da
reforma tem deixado muito a desejar. Frequentemente, as leis são ignoradas,
especialmente quando defendem os interesses dos desfavorecidos. No Brasil,
há uma crença generalizada de que “há leis que pegam e leis que não
pegam” e aquelas contra o racismo caem na segunda categoria. As leis
relativas a pobres e negros aplicadas são, geralmente, as utilizadas para
manter a ordem social. Em referência a estas, há ainda um outro ditado
comumente usado no sistema da Justiça Criminal, segundo o qual “a lei é,
preferencialmente, direcionada para os três pês: pobres, pretos e prostitutas”
(Ibid., p. 269).

20
“A legislação anti-racista procura combater a discriminação através de meios para os quais as vítimas só
podem apelas após tê-la sofrido, pedindo que os infratores sejam punidos. Este tipo de legislação já aparece em
1951, apesar de as leis mais eficazes terem surgido somente em 1988” (TELLES, 2003, p. 263).
21
Fazendo uma genealogia das políticas afirmativas no Brasil, Telles (2003) irá nos dizer que “um dos pontos de
partida da ação afirmativa federal, através do Ministério de Desenvolvimento Agrário, foi reconhecer e conceder
títulos de posse a todas as terras de quilombo, o que representa uma ruptura importante com o modelo norte-
americano, logo de início” (p. 274).
22
O autor narra nessa obra as estratégias que os movimentos negros fizeram para criminalizar o racismo, como
recorrer a organismos internacionais, reivindicar os direitos coletivos (difusos) e outros mecanismos
constitucionais.
29

O que nos faz pensar que, apesar dos esforços conjuntos dos movimentos negros, o
Estado não se empenhou no êxito dessas políticas. Por exemplo, “apesar de haver assinado,
em 1965, a Convenção 111 das Nações Unidas, que determina a promoção de minorias
étnicas e raciais no que concernem a empregos, ninguém esperava que tais políticas fossem de
fato implementadas.” (Ibid., p. 272). A Convenção não é a primeira iniciativa governamental
no sentido de políticas afirmativas. Telles (2003) irá nos mostrar que Getúlio Vargas já teria
criado políticas nesse sentido quando

[...] apoiou a ação afirmativa com a chamada “lei dos dois terços”, ao
estabelecer que pelo menos dois terços de todas as contratações feitas por
empresas em território brasileiro fossem de brasileiros natos. Dessa forma,
permitiu que os negros entrassem no mercado de trabalho industrializado,
formalmente dominado por trabalhadores imigrantes (Ibid., p. 284).

Ainda que antecedida por essas iniciativas, Telles (2003) considera que é na década de
80 que de fato começam a surgir tentativas de criar políticas públicas em benefício da
população negra. Nessa década

[...] alguns estados implantaram conselhos especiais sobre a condição dos


negros. O primeiro desses foi o Conselho da Participação e Desenvolvimento
da Comunidade Negra do Estado de São Paulo, criado em 1984. Seu
propósito era monitorar a legislação que defendia aos interesses da
população negra, sugerir projetos para a Assembleia Legislativa e setores do
executivo e investigar denúncias de discriminação e violência policial. Com
o início da democratização, o Conselho e membros da sociedade civil
estavam confiantes de que o momento histórico oferecia oportunidade para
reunir grupos de líderes negros antes divididos para juntos criarem uma
“emancipação real” para os negros (Ibid., p. 70).

A experiência teria se espelhado para outros estados, e em 1985,

[...] logo após se encontrar com líderes afro-brasileiros, apesar de seu


hesitante apoio à democracia racial, o Presidente José Sarney propôs, mas
nunca implementou, o Conselho Negro de Ação Compensatória, em nível
federal. No entanto, em 13 de maio de 1988, no centenário da Abolição da
Escravatura, o Presidente Sarney anunciou a criação do Instituto Fundação
Cultural Palmares (Ibid., p. 71).

Outro marco da história dessas políticas para o Estado brasileiro, como já comentamos,
é a Constituição de 1988. Telles (2003) nos mostra que ela inclui leis antirracistas e
antissexistas23, expandiu direitos individuais e coletivos, fortaleceu o papel do judiciário, que

23
O autor chama atenção para dois Artigos: no Artigo 3 a Constituição “[...] afirma que a República Federativa
do Brasil, ‘fundamentalmente’, deve criar uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a
marginalização, reduzir as desigualdades social e regional e providenciar incentivos especiais de proteção à
30

por sua vez “se tornou um promotor estatal de direitos para membros da sociedade que tinham
pouco ou nenhum poder político” (Ibid., p.72). Quanto ao protagonismo político negro, a
década de 80 também foi marcante porque Abdias do Nascimento

[...] suplente de um senador do rio de janeiro, tornou-se o primeiro


congressista a defender explicitamente no congresso a população afro-
brasileira. A partir de 1991, com a 49ª. Assembleia e a eleição de uma
mulher negra e pobre, Benedita da Silva, que levantou questões raciais em
sua campanha de base, desde 1989, os negros no Congresso Nacional
começaram a defender pública e regularmente questões raciais (Ibid., p. 72).

Esse período também marcou a articulação de muitas organizações negras.

Como outros movimentos sociais e com o apoio de fundações internacionais,


particularmente da Fundação Ford, vários líderes negros conseguiram criar
organizações não-governamentais – ONG, que utilizavam profissionais
treinados e funcionários de apoio. Por exemplo, o Geledés – Instituto da
Mulher Negra Brasileira foi criado em São Paulo em 1990 (Ibid., p. 77).

Segundo o autor, na década de 90 é quando acontece, pela primeira vez, do governo


brasileiro admitir a existência do racismo no país e utilizar o termo “negro” para a população
afrodescendente. Isso teria ocorrido na Conferência de 1996, convocada pelo então presidente
Fernando Henrique Cardoso, quando também houve a seguinte declaração de Dora Lúcia
Bertúlio (1996: 204 apud TELLES, 2003, p. 111):

“Minha sugestão é que se proponha ao IBGE a unificação da categoria


negro para englobar pretos e pardos dos atuais formulários oficias”. Logo
depois, o Presidente e o Ministro da Justiça, através do Programa Nacional
de Direitos Humanos, endossaram Bertúlio e outros ativistas do movimento
negro através da recomendação de “instruir ao IBGE que adote o critério que
considere mulatos, pardos e pretos como membros da população negra”
(Ibid., op. cit.).

Telles (2003) fala que, nesse mesmo ano, as ações afirmativas são discutidas no
“Seminário Internacional sobre Multiculturalismo e Racismo financiado pelo Ministério da
Justiça e sancionado pelo Presidente Cardoso” (p. 78) e há a criação “do Programa Nacional
de Direitos Humanos – PNDH, cujo objetivo em médio prazo era ‘desenvolver ações
afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas
de tecnologia de ponta’” (Ibid., p. 78). O PNDH é importante porque, com ele o movimento
negro conseguiu colocar o racismo no centro das preocupações do Movimento Nacional de
Direitos Humanos, que nasceu na década de 70 pelas mãos da classe média vítima da ditadura

mulher no mercado de trabalho” (TELLES, 2003, p. 284). O Artigo 5 (inciso 42) “tornou a prática de racismo
um crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão” (Ibid., p. 72).
31

militar (TELLES, 2003). Finalmente em 200124, acontece a Terceira Conferência Mundial


contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Outras Formas de Intolerância em
Durban, África do Sul. Nela, as lideranças dos movimentos negros encontram-se e definem
uma agenda política que prioriza o ingresso de estudantes negras nas Universidades públicas,
o que torna as políticas afirmativas uma pauta ainda mais urgente. Telles (2003) diz que a
criação de cotas para pessoas com deficiência em cargos públicos e de mulheres nas eleições,
antecederam as políticas afirmativas para negros. Essas últimas tomam forma principalmente
a partir da eleição do presidente Lula (Partido dos Trabalhadores) em 2002. A isso o autor
atribui a “crescente parcela de negros nas bases do partido” (Ibid., p. 286).
Comparando as realidades brasileira e estadunidense, Telles (2003) diz que “enquanto
as diferenças na educação superior vêm aumentando no Brasil, elas diminuíram nos Estados
Unidos. Logo, as diferenças entre os dois países são espelhadas na composição racial das
classes médias”25 (Ibid.,p. 278). E isso é verdade na medida em que constatamos que a
expansão de vagas no ensino superior das Universidades públicas brasileiras tem beneficiado
mais aos brancos, que, por sua vez, conseguem mais facilmente acesso à classe média
(TELLES, 2003).
Os últimos anos têm sido marcados por denúncias de que as cotas raciais estariam sendo
fraudadas por sujeitos brancos. As denúncias destacam menos de cinco anos pra cá. Mesmo
assim, esse fenômeno já era algo mais ou menos previsível há mais tempo que isso.
Encontramos indícios dessa discussão, por exemplo, em Telles (2003):

“Escurecer” a própria identificação para se beneficiar da ação afirmativa é


uma alternativa clara para muitos brasileiros. Como o sistema brasileiro é
baseado na aparência e não na ascendência, a oportunidade de conseguir
uma qualificação superior de graça pode levar alguns ‘brancos’ a se
declararem negros. Pela primeira vez, ter sangue negro poderia oferecer uma
vantagem estratégica. O próprio presidente Fernando Henrique Cardoso
afirmou, certa vez, ter ‘um pé na cozinha’, ou seja, que tinha ancestrais
negros, quando buscava os votos dos negros para sua reeleição, em 1998. Se
até o presidente tenta se beneficiar de tal oportunidade racial, por que não os
tantos brasileiros comuns que normalmente se consideram brancos? (p. 290)

Naquele momento, “alguns ativistas negros propuseram uma alternativa com humor,
mas ineficaz: contratar porteiros ou policiais, alegando que ‘eles nunca erram ao classificar

24
Para uma referência mais completa sobre a trajetória das políticas afirmativas no Brasil ver Tellles, 2003. Na
obra o autor também descreve as alianças, estratégias e arranjos antes, durante e após a Conferência.
25
Essas desigualdades no acesso ao ensino superior ou à classe média, por exemplo, desigualdades relacionadas
a recursos políticos e econômicos para os diferentes grupos, Telles (2003) irá nomear como “desigualdade
vertical”. Ela seria menor nos Estados Unidos do que no Brasil. Entretanto, em termos de relações pessoais de
amizade ou consaguinidade, o que o autor chama de “desigualdade horizontal”, no Brasil teria menor expressão.
32

negros’” (Ibid., p. 292). Esse tipo de “solução” é algo que se repetirá na fala dos nossos
interlocutores de pesquisa.
Apesar de suas controversas, a autodeclaração é o mecanismo mais valorizado para os
acessos de pessoas negras às políticas afirmativas. Do ponto de vista normativo, a Convenção
169 da Organização Internacional do Trabalho diz que a “persona se identifica a sí misma
como perteneciente a este grupo o pueblo; o bien el grupo se considera a sí mismo como
indígena o tribal de conformidad con las disposiciones del Convenio” (OIT, 2003, p. 8, apud
RIOS, 2018, p. 224). Este é, segundo Rios (2018), o “primeiro instrumento internacional que
reconhece o direito à autodeclaração” (OIT, 2003 apud RIOS, 2018, p. 224).

A autodeclaração também é prevista no Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº


12.288, de 2010), com o objetivo de “garantir à população negra a efetivação
da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais,
coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de
intolerância étnica” (BRASIL, 2010). O parágrafo único do art. 1º do
Estatuto da Igualdade Racial (BRASIL, 2010), ao trazer a definição de quem
é a população negra, adota a autodeclaração como método de identificação
do pertencimento étnico-racial: Parágrafo único. Para efeito deste Estatuto,
considera-se: [...] IV - população negra: o conjunto de pessoas que se
autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela
Fundação Instituto Brasileiro de Geografia. Ainda, a autodeclaração foi
reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, que analisa a
constitucionalidade da reserva de vagas para negros na Universidade de
Brasília (UNB). Apesar de o objeto desta ADPF não versar especificamente
sobre a autodeclaração, o seu uso foi discutido, tendo o Relator, Ministro
Ricardo Lewandowski, se manifestado pela possibilidade da autodeclaração
nos sistemas de seleção para o ingresso do ensino superior, combinada ou
não com sistemas de heteroidentificação (Ibid., p. 224, 225, 226).

O marco jurídico é importante porque dentro dele os movimentos sociais negros irão
disputar a lisura do acesso às políticas de ações afirmativas para os sujeitos destinados, o que
implica uma relação entre a autodeclaração e política pública/Estado. Discutir o lugar dos
pardos é, portanto, discutir como esse processo de racialização incide sobre seus corpos. Ou
seja, independentemente dos seus sentimentos de pertença, para fins de políticas públicas, eles
estariam situados numa “cidadania de segunda classe” (GUIMARÃES, 1999, p. 239)? Isso
significa pensar como esses indivíduos “pardos” estão se autoavaliando e sendo
heteroclassificados dentro do sistema de cotas. Essa é uma questão importante, saber situar
esse grupo dentro do tabuleiro racial do Brasil é parte da luta pela garantia de direitos.
Nos Estados Unidos, segundo o estudo de Nogueira (2006), o fenótipo, mas também a
origem, são dados importantes para a definição de quem é negro. No Brasil, essa “origem”
não tem o mesmo valor, de forma que, negro aqui é quem apresenta essa marca. Ela será o
33

motivo central das comissões de heteroidentificação, “a invocação do fenótipo responde,


precisamente, ao reconhecimento de uma dinâmica social, e não de uma tipologia de grupos
humanos por caracteres biológicos em si mesmos” (RIOS, 2018, p. 237).
Stuart Hall (2003), ao discutir sobre as políticas de multiculturalismo26, nos mostra
como a identidade nos situa em um conjunto de repertórios que falam sobre pertencimento e o
que somos. Estes são vocabulários culturais sem os quais “não conseguimos produzir
enunciações enquanto sujeitos culturais” (Ibid., p.83). A identidade, ao mesmo tempo em que
nos ancora em uma narrativa particular, abre uma arena de negociação com o outro, ou seja,
ela não acontece sem conflitos ou trocas recíprocas. É nesse sentido que, para Hall, “cada
identidade, é radicalmente insuficiente” (Ibid., p. 85). Sem o estatuto político do
reconhecimento, qualquer outra relação que se estabeleça entre esse grupo identitário e “os
outros” será uma relação de violência, porque será uma relação de negação e exclusão. “É por
isso que o desenvolvimento de um ideal de identidade gerada interiormente atribui uma nova
importância ao reconhecimento. A minha própria identidade depende, decisivamente, das
minhas reacções dialógicas com os outros” (TAYLOR, 1994, p. 54). Avritzer e Gomes (2013)
citam Honneth (1996, 2003), para trazer dois elementos estruturantes desse reconhecimento: a
igualdade e a dignidade (p. 40). Os autores vão mais adiante ao falarem a importância dos
elementos da subjetividade ou do self, para essa esfera do reconhecimento:

[...] o estabelecimento de status igualitário na sociedade brasileira cria a


necessidade de trato com os elementos do self, pois é nesse âmbito que são
vivenciadas as experiências de desrespeito e que vão manifestando, desde a

26 Embora o multiculturalismo seja um tema caro e defendido por intelectuais negros citados nesse trabalho,
como o próprio Stuart Hall e Jacques D’Adesky, a saída que apresenta para os grupos racializados não é
consensual. Sem entrarmos no mérito dessa discussão, pontuamos brevemente esse debate através de Villar e
Villar (2019). Segundo os autores, o multiculturalismo estaria dentro de uma lógica do capitalismo global que
despotencializa os grupos em função de um suposto reconhecimento identitário, dentro de uma estrutura que
simboliza o racismo. “A complexidade deste acordo — para além das posições subjetivas— nos leva a reavaliar
como o multiculturalismo — considerado como ‘a forma ideológica ideal deste capitalismo (global)’, mesmo
que seja um acordo multicultural e conceda os benefícios do reconhecimento parcial a grupos étnicos diferentes,
não basta concebê-lo em termos da reciprocidade que ele simula. Essa articulação sem pontos de ruptura, de
forte cunho burocrático, leva à despolitização, justamente, dessas etnias dentro dos Estados-nação ocidentais. A
discussão atual sobre multiculturalismo e multiculturalismo é pertinente, uma vez que debate diferentes aspectos
que se situam no interior da pergunta: É possível outra lógica multiculturalista e politização do
multiculturalismo? Neste espaço, consideramos que os novos racismos tecidos em torno da lógica
multiculturalista universal não são simplesmente uma série de racismo simbólico, mas a própria simbolização do
racismo. Consideremos que hoje não é possível manter o antigo apartheid, e que, principalmente devido à
dinâmica sociopolítica desses grupos diferenciados, ele não seria mais combatido apenas pelo simbolismo, ou,
como diria Scott, por discursos ocultos ou infra-política. Seria tolice pensar que, hoje, uma resistência ao
racismo violento ocorreria por meio de canções ou poemas. A multiplicidade étnica, vista em termos de
multiculturalismo, pode ser entendida como a face pública do racismo. Serve de justificativa para o sistema que
emerge das autoproclamações mais íntimas de inclusão de uma falsa consciência, sem a reparação que a história
mostra como necessária para aspirar à justiça social.” (VILLAR&VILLAR, 2019, p. 43, tradução nossa).
34

mais tenra idade, o modo como os negros e os brancos são representados na


sociedade brasileira no âmbito das relações sociais e privadas (Ibid., p. 50).

Analisando essas experiências do self, podemos chegar à elaboração do lugar de


pertença que essas pessoas negras de pele clara fazem sobre si mesmas.
Há hoje um crescimento da população negra brasileira que acompanha a ampliação das
políticas afirmativas. Isso desenha um desafio, porque diferentes casos denunciados27 pelos
movimentos sociais apontam para a apropriação indevida dessas políticas pelos sujeitos
brancos, que reivindicam uma parditude em referência a antepassados negros de sua família.
Santos, Souza e Sasak (2013) apresentam o conceito de “subproduto social” para falar desses
outros grupos de indivíduos não-negros, que acabaram por se beneficiar das políticas de cotas
construídas pelos movimentos negros:

O conceito de “subproduto social” das cotas raciais abordado aqui deve ser
entendido em sua dupla constituição: a de cunho ideológico e a de
transferência de oportunidades. O somatório desses dois componentes
fortaleceu as oportunidades dos estudantes do ensino básico da escola
pública nessa década de ações afirmativas que se completou em 2011 (p.
17).

Avritzer e Gomes (2013) analisam que as ações afirmativas estariam subvertendo uma
tradição de inclusão da população negra pela via privada (miscigenação), “instituindo
políticas de acesso que incentivem a identidade racial e étnica” (Ibid., p.56). Para Paulo Neves
(2005), as políticas afirmativas embora falem sobre discriminação positiva, cidadania
diferencial e equidade, repercutem sobre a identidade quando, “em um processo dinâmico,
essas políticas, por sua vez, terão efeitos sobre o processo de construção das identidades, que
retroagirão sobre as próprias políticas de identidade” (Ibid., p. 87). Podemos pensar com isso,
que essas políticas alteram o tabuleiro racial do Brasil, não apenas dinamizando a relação
classe/raça, mas também a própria autodeclaração racial, ou seja, as proporções raciais do
país. A relação entre as políticas afirmativas e a reivindicação da identidade negra por parte
desses sujeitos “pardos” acrescenta suspeita a essa autodeclaração, pela própria plasticidade
da categoria. Apelida-se de “afroconveniente” aqueles pardos, por exemplo, que supostamente
passaram a denominarem-se negros em vistas das vagas para cotistas. O fato é que, para
Oliveira e Oliveira (1974) citado por Campos (2013), “o mestiço é o principal ‘Obstáculo
epistemológico’ para a compreensão das relacionais raciais no Brasil” (p. 82). Esse obstáculo,

27
Faço referência aos casos veiculados na mídia de fraudes nos sistemas de cotas de universidades públicas e
concursos para cargos públicos, como exemplo: “UFJF divulga resultado de sindicância que apurou denúncias de
fraude em cotas”, G1, 16/07/2018, <https://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noticia/ufjf-divulga-resultado-de-
sindicancia-que-apurou-denuncias-de-fraude-em-cotas.ghtml>.
35

segundo Campos (2013), foi transposto para a política através das ações afirmativas. Uma
controversa interessante é que, ao passo que os “pardos” configuram um desafio, também é a
saída para que se compreenda a extensão do racismo na sociedade brasileira. A questão que
está colocada também passa pela compreensão de que, na medida em que as políticas
afirmativas constituem as ações que tematizam a reparação, o incentivo à diversidade e a
positivação da negritude, sua potência está em mobilizar a adesão ao grupo. Isto é, indivíduos
negros que antes se pensavam a partir da ótica do branqueamento, passam a desenvolver
orgulho e a declararem-se negros.

Recuperar uma identificação estigmatizada pela discriminação social não é


um processo pessoal ou social simples, isento de conflitos existenciais. Não
se trata de um romantismo nostálgico, do qual só se esperam resultados
gratificantes, mas da adoção deliberada de uma condição tradicionalmente
subalterna, à qual se pretende imprimir uma nova dignidade. Isto pressupõe
uma atitude contestatória e de desafio diante da sociedade majoritária em
que gestou o preconceito (NEVES, 2005, p. 58).

O contexto que temos desenhado até aqui, e que inclui a expansão das políticas
afirmativas, o crescimento da população autodeclarada negra no Brasil e as crescentes
denúncias de fraudes28 no sistema de cotas, configura uma situação em que a autodeclaração
negra, desses indivíduos de pele clara, é colocada em suspenso.
Escolho tratar desse tema na Antropologia, disciplina que acumula uma vasta produção
acerca das questões identitárias e de relações étnico-raciais. Esse acúmulo, não podemos
deixar de mencionar, é, também, fruto do papel colonial que o campo desempenha. A
Antropologia reivindica para si a autoridade de falar sobre as identidades, os cultos, e os
costumes alheios, sob a rubrica da alteridade. Skidmore (1976) mostra que, sobre as Ciências
Sociais no Brasil, “a antropologia física foi das primeiras disciplinas reconhecidas [...] em
1876, [quando] um laboratório de fisiologia experimental foi fundado, em conexão com o
Museu Nacional, no Rio de Janeiro” (p. 73). Outro em 1893, com o Museu Paulista, e o
Museu Paraense em 1885 em Porto de Belém. Eles se ocupavam dos

[...] estudos dos primitivos de tribos indígenas, não se preocupavam


inicialmente com o negro ou o afrodescendente. O primeiro estudo
etnográfico a considerar a população negra foi feito por Nina Rodrigues
(mulato). Na sua época se tornou “o principal doutrinador racista brasileiro
da sua época” (Ibid., p. 75).

28
Ainda que o tema mereça ampla discussão, conservamos aqui o termo “fraude” que aparece nas manchetes
jornalísticas a respeito dessas situações, a exemplo da matéria “A luta contra os fraudadores de cotas raciais nas
universidades públicas” da BBC, disponível em <https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/02/23/a-luta-
contra-os-fraudadores-de-cotas-raciais-nas-universidades-publicas.ghtml>.
36

Não coincidentemente a Bahia e o Rio de Janeiro eram os locais, segundo Sabóia


(2013), “mais radicais quanto às teorias raciais e eugênicas” (p. 4). Na Bahia, o autor
prossegue, se desenvolveria, por exemplo, os estudos de Nina Rodrigues29, autor lombrosiano,
adepto das teorias da degenerescência.
Ainda que se considere a trajetória pela qual a disciplina se constituiu, esse trabalho se
apega a uma questão importante, já desenvolvida por outros antropólogos do “terceiro
mundo”: a despeito da subalternização de determinados grupos pela hegemonia ocidental,
refletida num poder de capital branco do eixo Europa-Estados Unidos, os marginais, ou “o
outro” não são, por mais difíceis e precárias que sejam suas condições de vida, seres
completamente desprovidos de agência. “O outro” está, cada dia mais, alçando voos para os
territórios tradicionais da produção do saber acadêmico na condição de pesquisadores. A
citação de Sahlins (2004) que segue, sustenta esse argumento:

Para que as categorias possam ser contestadas, é preciso haver um


sistema comum de inteligibilidade, estendendo-se as bases, meios,
modos e tópicos do desacordo. As diferenças em pauta, além disso,
implicam alguma relação. Tanto mais se elas são subversivas,
expressando assim os valores e interesses posicionais dos falantes em
uma certa ordem sociopolítica. Como disse Cassirer em um outro
contexto, “a consciência de uma diferença é a consciência de uma
conexão” (p. 36).

Essa passagem nos faz pensar duas coisas. A primeira é que há algo em comum entre
“nativos e antropólogos”, que é, dentre muitas outras coisas, a capacidade compartilhada de
produzirem saber, se assim não fosse, não seria possível produzir as extensas dissertações que
a Antropologia tem escrito sobre “a cultura” dos diferentes povos. A questão é que, o
reconhecimento intelectual tem se dado apenas sobre um lado dessa relação. Observando a
produção intelectual de autores periféricos indígenas, negros, ou pertencentes a demais grupos
minoritários, entendemos a potência que reside em desestabilizar as posições tradicionais
acadêmicas. Esse é um modo importante de se produzir intertextualidade e multivocalidade
textual (encontros e trocas), em contraste a uma experiência de sobre-texto
(sobredeterminação, colonialismo) que tradicionalmente a Antropologia tem desenvolvido até
aqui. Eis a motivação que perseguimos.

29
A respeito do que tratamos nesse trabalho, Nina Rodrigues inclusive escreveu sobre os diferentes tipos de
mestiço. Para o autor, existiriam três subgrupos: “o tipo superior (inteiramente responsável, no qual, é lícito
presumir, incluir-se-ia o próprio Nina Rodrigues); b) os degenerados (alguns parcialmente responsáveis; o resto,
totalmente irresponsável; e c) os tipos instáveis socialmente, como os pretos e os índios, aos quais se podia
apenas atribuir ‘responsabilidade atenuada’ (responsabilidade atenuada como os menores)” (SKIDMORE, 1976,
p. 76).
37

Com isso, podemos apresentar como esse trabalho está organizado: o segundo capítulo e
o terceiro, os quais sucedem esta Introdução, são dedicados aos nossos interlocutores e
entrevistados autodeclarados negros, com pele clara, que são provocados a pensar sobre suas
trajetórias, em termos de um processo de racialização. Partimos do entendimento de que todos
aqueles que assim se declaram, negros, reivindicam para si uma trajetória racializada, ainda
que sejam elas múltiplas. Pois, “é preciso [...] entender que a identidade coletiva não
corresponde necessariamente a um modelo estanque em que os sujeitos estejam
preconcebidos” (SILVA, V., 2016, p. 157).
É compreensível a atenção que o termo “negro de pele clara” chama para si. Isso
porque, ele estaria configurando duas ideias inicialmente opostas: “negro” e “pele clara”.
Trabalhamos, portanto, nesses capítulos, com duas ideias de diferença: a primeira que diz
respeito a autodeclaração étnico racial do tipo negro-branco e a segunda que encara possíveis
desigualdades no interior da comunidade negra, do tipo pele preta ou pele clara. Essa segunda
ideia de diferença parece incorporar ou antecipar um processo de heteroidentificação. Já me
explico: ninguém se apresenta como “negro de pele clara”, e sim “negro”, apenas. A
especificidade da “pele clara” aparece quando o contexto solicita um complemento naquela
autodeclaração racial. Nesse sentido, embora a auto e a hetero-identificação, “negro e
branco”, se deem por critérios fenotípicos, operam em um espectro mais ou menos amplo para
os negros – comporta pretos, pardos e todos os outros termos correlatos que denotam
mestiçagem. O “negro de pele clara” está dentro desse grupo “negro”, e a “pele clara” só
interessa ser destacada quando, o que está em questão, são as diferenças dos negros de pele
preta e clara. Esse posicionar-se é um cálculo extremamente complexo e importante, assim
descrito por Guimarães (2008):

[...] a oposição “preto-branco” denota desigualdade social, e é por isso que é


a oposição que se usa nos censos e levantamentos estatísticos. A oposição
“negro-branco” denota diferenças culturais, de origem, portanto, de
identidade étnica. O triângulo é imediato, porque entre o “negro” e o
“branco” há o “índio”, e os três formam a nação mestiça. O gradiente
“escuro -claro” fala da naturalidade, valoriza diferenças por contiguidade e
dilui as oposições por ser relacional. As três ordens de classificação são
usadas em momentos e situações específicas. Ao se falar de “negro” fala-se
de África, de origem, da distância e do triângulo. Ao se usar a oposição
“preto-branco” fala-se do lugar social e, como diz Teixeira (1986), esses
termos nunca são usados quando se fala de próximos, só ao se falar de um
terceiro distante. O gradiente é usado em situações contextualizadas e
relacionais. Não se pode sair de uma ordem para outra com facilidade, e é
por isso que muitas pessoas falam em “tornar-se negro”. Ninguém é negro.
Ao passo que todos nascem pretos, brancos ou pardos. As três ordens não se
misturam. Tornar-se negro significa remeter-se à origem, construir a
38

identidade através da origem e explicar a diferença pela cultura e pela


escravidão (p. 42).

O “negro de pele clara” também nos indica outra coisa: ele estaria se retirando daquele
tão discutido lugar de meio, de trânsito ou “passabilidade”. Ele poderia se autodeclarar apenas
pardo, moreno, ou qualquer uma das mais de 135 cores que as pesquisas já registraram em
1976, ou as 143 cores da pesquisa da Pesquisa Mensal de Empregos (PME) em 198830. Ou
seja, o "negro de pele clara” é uma elaboração identitária que assume uma posição no
dualismo “negro-branco” e que, ao mesmo tempo, leva em consideração a mestiçagem.
No terceiro capítulo, conversando com pessoas autodeclaradas negras, com pele clara,
analiso a forma como essa identidade é elaborada por esses indivíduos na relação com o
outro. Observo nessa trajetória a relação com a família, amigos, com a própria Universidade,
com os movimentos negros e com os diferentes temas relacionados à identidade racial. Busco
compreender, em outras palavras, aquilo que Neusa Santos (1984) chamou de “tornar-se
negro”. Na medida em que a sociedade cria uma identidade negra como denotativa de
características, comportamentos e legado histórico indesejável, assumir-se negro não é um
processo automático. Segundo D’Adesky (2001),

[...] a negritude vai além da simples identificação racial. Ela não somente é
uma busca de identidade enquanto forma positiva de afirmação da
personalidade negra, mas também um argumento político diante de uma
relação de dominação. Ela serve aos militantes como vetor entre as
identidades pessoal e coletiva. As palavras de Aimé Cesaire assim resumem
a negritude: “(...) é o simples reconhecimento do fato de ser negro, a
aceitação desse fato, do nosso destinado de negro, da nossa história e da
nossa cultura” (p. 140).

No quarto capítulo, lidamos com os processos de heteroclassificação a partir dos


trabalhos da Comissão de Aferição da Autodeclaração Étnico-racial da UFBA. Nele
conversamos com dois interlocutores que compuseram essas comissões em diferentes
momentos, 2019 e 2020. Além disso, registramos a etnografia realizada durante os trabalhos
da Comissão em 2020. Como dissemos antes, existe no Brasil um sistema complexo de
classificação racial. Interessa-nos saber como as comissões articulam essa complexidade no
trabalho de garantir uma política pública cuja base é o reconhecimento identitário. Afinal as

30
Examinando essa Dissertação, Jacques D’Adesky (2021) indica algo que corresponde ao argumento
desenvolvido aqui: citando José Luis Petruccelli, D’Adesky aponta que, ao contrário da suposta incapacidade de
se determinar as classificações raciais no Brasil, em função dessa multiplicidade de termos, “um conjunto bem
pequeno de sete denominações acumula 97% das respostas, e dez delas conseguem cobrir 99% do conjunto”.
39

duas coisas são verdade no nosso processo de formação nacional e de relações sociais: a
mestiçagem e o racismo31.
Por fim, como nos antecipamos no início do texto, no quinto e no sexto capítulos,
tentamos propor uma contribuição teórica a respeito do “colorismo” desde o nosso contexto.
Pensamos, nesses capítulos, em responder as seguintes questões: os mestiços, população
produzida para ocupar, supostamente, um lugar de “meio”, está hoje em que posição da
estrutura social brasileira? Esse “meio” é um lugar racializado? Ainda se mantém verdadeiro
que pretos e pardos compartilham dos mesmos indicadores sociais? Se a democracia racial
brasileira é mentira, também é mentira que o Brasil é o paraíso dos mulatos? Essas questões
nos encaminham para pensar uma perspectiva contextualizada a respeito do colorismo. No
quinto capítulo tentamos desmembrar conteúdos internos ao colorismo e discuti-los, ponto a
ponto, enquanto no último capítulo, a ênfase está na aproximação entre o colorismo e o campo
teórico brasileiro sobre a miscigenação, tema que já acumula muitas produções. Fazemos isso
no intuito de propor um pensamento próprio, brasileiro, acerca das preocupações que o
colorismo tem trazido, enquanto um conceito que opera politica e teoricamente no campo das
relações raciais do país atualmente.
Como costuma ser, a primeira parte desse trabalho corresponde à busca pelas
referências bibliográficas que amparam a pesquisa e ampliam suas possibilidades
interpretativas - ou compreensivas. Revisitei os clássicos e foi muito interessante observar que
termos como “mestiço” são usados de forma dúbia. Às vezes irão tratar sobre aquelas pessoas
com fenótipo mestiço, quem possivelmente estaria inserido na categoria dos “pardos” do
IBGE. Às vezes irá se referir a pessoas com fenótipo branco, com ascendência familiar branca
e preta. Ou seja, “mestiço” pode se referir a um fenótipo, mas também a um genótipo, e nossa
atenção precisa estar aguçada para captar os contextos respectivos. A pesquisa bibliográfica
também buscou as atuais discussões sobre mestiçagem e colorismo. A respeito do último
tema, como já discutido, as pesquisas no Brasil são iniciais, de forma que encontrei esse
conteúdo em ambientes online menos formais, a exemplo dos textos de sites como Portal
Geledés e Blogueiras Negras, trocas em redes sociais como Facebook e Instagram, e vídeos
no Youtube. Falei anteriormente que o colorismo já é um tema de pesquisa consolidado nos
Estados Unidos, dessa forma, pude conhecer alguns trabalhos desenvolvidos naquele país.

31
Em comparação com os Estados Unidos, por exemplo, Edward Telles (2003) irá dizer que “os Estados Unidos
têm muito o que aprender sobre como não ser obcecado com a cor da pele, a partir das experiências do Brasil e
que isso não impede o racismo” (p. 282).
40

Quanto aos meus entrevistados, usei de pseudônimos para eles e para os membros da
Comissão de Aferição da UFBA, quando registrei suas ações e falas no processo etnográfico.
Esses nomes trazem à tona personalidades negras importantes da nossa história, ou irmãos
cujos corpos desapareceram, Amarildo, e cuja morte segue sem explicação, Marielle. Devo
ainda dizer que as falas dessas pessoas aparecem sempre destacadas pelo itálico.
Vamos à apresentação dos nossos interlocutores: Jaci, Davi e Elza eram, no momento
da entrevista, ex estudantes formados na graduação da UFBA. Além de “negros de pele
clara”, estudaram na Universidade num momento em que as comissões de heteroidentificação
ainda não existiam na seleção de alunos cotistas, julguei importante compor essas discussões
com esses estudantes de outras gerações. Eles eram pessoas que eu já mantinha uma relação
de proximidade anteriormente, o que me permitiu a abordagem nesse momento da pesquisa.
Entrevistei Jaci num shopping, próximo ao bairro de sua residência. Elza, por sua vez,
conversou comigo na casa de um amigo em comum, também próximo de sua moradia. Com
Davi, que é um amigo muito próximo, aproveitei um momento de visita em sua casa para
entrevista-lo. A professora Beatriz, com a qual tive uma conversa mais informal, também foi
estudante da UFBA. Ela se declara negra, com pele clara, e nossa conversa aconteceu em sua
casa, num momento em que falávamos sobre questões da pesquisa. Laudelina é graduanda na
UFBA, mas no momento em que ingressou, a Comissão ainda não estava instituída. Ela
também é alguém que se declara negra, com pele clara, e que eu tinha uma relação de
proximidade anteriormente, o que me permitiu o contato para a entrevista. Nossa conversa
aconteceu na própria Universidade, logo após suas aulas da manhã. Carlos e Marielle, “negros
de pele clara”, também estudantes de graduação da UFBA, não passaram pela Comissão. No
ano em que ingressaram na Universidade, as Comissões já existiam, mas, segundo me
contam, por terem uma formação de qualidade na educação básica, não optaram pelas cotas.
Os entrevistei na Biblioteca Pública dos Barris juntos, o que, como desenvolvo ao longo do
trabalho, influenciou as posições que ambos desenvolviam. Suas falas eram, em geral, no
sentido de encontrar similaridades e concordâncias entre suas experiências. Não conhecia
Carlos e Marielle antes de iniciar essa pesquisa, meu contato com eles se deu pelo intermédio
de uma amiga, com quem conversei sobre minha proposta de trabalho. Manoel e Chica, por
sua vez, são estudantes cotistas aprovados pela Comissão. Também não os conhecia, porém
Manoel foi alguém que, numa conversa em um grupo da UFBA do Facebook, se colocou
como estudante cotista negro, aprovado pela Comissão de 2019. Como estava pesquisando
esses assuntos nessa rede social, o vi, entrei em contato, e marcamos um momento presencial
na UFBA para conversarmos. Manoel me indicou Chica, sua amiga, que recebeu bem a
41

proposta do trabalho. Com Chica a entrevista aconteceu numa praça próxima à sua casa, no
bairro da Fazenda Grande do Retiro (Salvador). Dias é estudante de graduação n’uma
Universidade privada. Isso porque, tendo se candidatado às cotas raciais, foi reprovado pela
Comissão da UFBA. Eu sabia que contatar os estudantes reprovados pela Comissão não seria
fácil. O caminho que busquei foi o de procurar os nomes das listas dos indeferidos desse
processo seletivo, nas redes sociais do Facebook e Instagram. Nessa busca, consegui
encontrar poucas pessoas que tinham um nome ou sobrenome singular. Algumas delas não me
responderam, ou não quiseram conversar comigo. Dias aceitou, foi bastante solícito e me
recebeu em sua casa para a entrevista. Amarildo e Luís foram os membros da Comissão
entrevistados. Luís participou da banca no primeiro ano em que ela foi organizada para a
seleção de estudantes cotistas, e Amarildo participou no ano seguinte, quando essa pesquisa
aconteceu. Eles tiveram um papel importante nesse trabalho, na medida em que nos falaram
sobre os processos de heteroidentificação. Ambos têm uma relação com o Instituto Federal da
Bahia, onde cursei o Ensino Médio, o que me facilitou o contato. Luís é professor e Amarildo
ex-aluno. Conversar com Luís foi interessante porque, além do trabalho de
heteroidentificação, ele falou do lugar de um “negro de pele clara”. Luís me foi sugerido
como entrevistado pela professora Beatriz. Amarildo, por outro lado, era alguém que eu já
conhecia. Quando acompanhei o curso de treinamento dos membros da Comissão de 2020, o
vi dentre os integrantes e marcamos nossa entrevista. Conversei com Luís no próprio IFBA,
onde ele leciona e, Amarildo, na UFBA, onde ele trabalha e estuda.
A escolha dessas pessoas se deu por um “mapa de tipologias”32, que dentro da teoria
metodológica de Gaskell (2002), aparece como “seleção dos entrevistados”. Essa seleção não
se refere ao esforço de “retirar uma amostra” - “a amostragem carrega, inevitavelmente,
conotações dos levantamentos e pesquisa de opinião onde, a partir de uma amostra estatística
sistemática da população, os resultados podem ser generalizados dentro de limites específicos
de confiabilidade” (Ibid., p. 67). O “mapa” é uma seleção de entrevistados baseados em seus
grupos de pertencimento, suas vivências em Salvador, e sua relação com a UFBA como
estudantes ou membros da Banca. Tal como adverte Gaskell,

a finalidade real da pesquisa qualitativa não é contar opiniões ou


pessoas, mas ao contrário, explorar o espectro de opiniões, as
diferentes representações sobre o assunto em questão. [...] o objetivo é
maximizar a oportunidade de compreender as diferentes posições
tomadas pelos membros do meio social (Ibid., p. 69).

32
Proposta metodológica do professor Dr. Milton Júlio de Carvalho Filho, em reunião de orientação.
42

Observei que apesar de não ter sido uma reação unânime, houve, por parte dos meus
entrevistados, uma grande aprovação quanto à problemática do trabalho de pesquisa. Chica
por exemplo, me disse que não costuma participar de pesquisas quando é convidada, mas
achou muito interessante o tema. Como dissemos antes, eu não conhecia os estudantes mais
novos, os que tinham passado pela Comissão. Carlos, um dos meus entrevistados, me ajudou
nesse trabalho:

Carlos: Quando a gente conversou pela primeira vez que você pediu pra eu
ver pessoas que se identificavam como pessoas negras, de pele clara, eu
publiquei lá, eu fiz uma seleçãozinha e publiquei lá. [...] E aí eu fiz uma
postagem e eu percebi que as pessoas que se ofereceram pra falar sobre o
assunto eram pessoas do meu contexto acadêmico, sabe? Pessoas que se
reconheciam como negros de pele clara. E de pessoas que não militavam,
pessoas negras mais retintas até chegaram pra mim e mandaram
mensagem: “Isso existe? Pessoa negra de pele clara?”. E eu falei:
“existe!”. Sabe?

De acordo com o argumento de Ingold (2015), a Antropologia seria a prática da


observação, do estar com, ancorado no diálogo participativo, na correspondência e na
experiência de habitar. Ele propõe uma inversão do que se entende convencionalmente como
etnografia ou Antropologia. Para ele, quem se isola no gabinete para escrever é o etnógrafo,
que transforma a experiência em campo para objetivá-la e afastar-se dela, a fim de descrevê-
la. A Antropologia seria, nesse sentido, a própria experiência da troca da vida orgânica, que é
social e por isso mesmo, vida da mente (Ibid., p. 17). A pesquisa antropológica (ou
etnográfica) que desenvolvemos nessa dissertação, corresponde, além das onze entrevistas, no
acompanhamento que fiz dos trabalhos da Comissão de Aferição da Veracidade da
Autodeclaração Étnico-racial da UFBA em 2020. Esse trabalho se dividiu em duas partes: o
curso de treinamento, que ocorreu durante um dia para os membros da Comissão, e o próprio
dia da aferição.
A Internet, como já citado, também foi uma fonte importante. Pesquisei por exemplo,
num grupo da UFBA do Facebook, sobre temas relacionados às cotas. Encontrei situações
como a de um rapaz que se reivindicava advogado de amigas suas, que teriam perdido na
Comissão. Ele estava muito aborrecido e questionava o porquê delas terem perdido. Em outro
grupo, também do Facebook, encontrei muitas pessoas que perguntavam: “qual a minha
cor?”. Outras vezes, também nas redes sociais, internautas expunham fotos de pessoas que
seriam supostamente brancas, “se passando por negras”. Não faltam conteúdos assim na
Internet.
43

Por fim, percebo que não pude fazer uma escolha entre a análise de conteúdo (AC) ou
análise de discurso (AD) no tratamento dos dados das entrevistas, optei por ambos. Quando,
por exemplo, um entrevistado fala que “negros sofrem racismo” e ele mesmo se autodeclara
negro, tento observar como essa frase faz sentido em sua vida. Isso é uma prática de análise
discursiva:

[Para a AD] O sentido não está “colado” na palavra, é um elemento


simbólico, não é fechado nem exato, portanto sempre incompleto; por
isso o sentido pode escapar. O enunciado não diz tudo, devendo o
analista buscar os efeitos dos sentidos e, para isso, precisa sair do
enunciado e chegar ao enunciável através da interpretação
(CAREGNATO&MUTTI, 2006, p. 681).

Mesmo partindo do pressuposto de que converso com pessoas que problematizam o


mito da democracia racial, ouço-as falar sobre o lugar do “pardo” sem a intensão de descobrir
algo novo sobre a categoria. Faço isso para compreender como ela é mobilizada por aqueles
que, ao se identificarem com ela, autodeclaram-se negro. É que esses discursos me revelam
um posicionamento político frente às questões de miscigenação e racismo, por exemplo. Tal
incursão representa uma prática da AD:

Partindo do princípio que a AD trabalha com o sentido, sendo o


discurso heterogêneo marcado pela história e ideologia, a AD entende
que não irá descobrir nada novo, apenas fará uma nova interpretação
ou uma re-leitura; outro aspecto a ressaltar é que a AD mostra como o
discurso funciona não tendo a pretensão de dizer o que é certo, porque
isso não está em julgamento (Ibid., p. 681).

De outra forma, também quero saber como os interlocutores dessa pesquisa significam
os termos “afrobege” e “afroconveniente”. Essas palavras que não estão no dicionário,
aparecem na linguagem corrente dessas pessoas. Nesse sentido, encontro subsídios dentro da
análise de conteúdo para tal investigação, entendendo que a AC é:

[...] uma técnica de pesquisa que trabalha com a palavra, permitindo


de forma prática e objetiva produzir inferências do conteúdo da
comunicação de um texto replicáveis ao seu contexto social. Na AC o
texto é um meio de expressão do sujeito, onde o analista busca
categorizar as unidades de texto (palavras ou frases) que se repetem,
inferindo uma expressão que as representem (Ibid., p. 682).

Falava lá atrás que eu me localizo explicitamente nesse texto, porque ele, em grande
medida, reflete a minha própria vida. Finalizo esse momento com uma passagem da obra
44

“Tornar-se negro” de Neusa Santos. “Tornar-se negro”, diga-se de passagem, é uma das bases
fundamentais dessa pesquisa, seja para pensar a trajetória de quem eu entrevisto, seja para
fazer a mim mesma uma pesquisadora:

Aqui esta experiência é a matéria prima. É ela quem transforma o que


poderia ser um mero exercício acadêmico, exigido como mais um requisito
da ascensão social, num anseio apaixonado de produção de conhecimento. É
ela que, articulada com experiências vividas por outros negros e negras,
transmutar-se-á num saber que - racional e emocionalmente – reivindico
como indispensável para negros e brancos, num processo real de libertação
(SOUZA, N.,1983, p. 18).
45

2 AUTODECLARAÇÃO RACIAL: A IDENTIDADE NEGRA SE MANIFESTA,


NÃO SE INCORPORA

INCIDENTE NA RAIZ33

Jussara pensa que é branca. Nunca lhe disseram o contrário. Nem o


cartório.
No cabelo crespo deu um jeito. Produto químico e fim! Ficou
esvoaçante e submetido diariamente a uma drástica auditoria no
couro cabeludo para evitar que as raízes pusessem as manguinhas de
fora. Qualquer indício, munia-se de pasta alisante, ferro e outros que
tais e...
O nariz, já não havia nenhuma esperança de eficácia no método de
prendê-lo com pregador de roupa durante horas por dia. A prática
materna não dera certo em sua infância. Pelo contrário, tinha-lhe
provocado algumas contusões de vasos sanguíneos. Agora, já moça,
suas narinas voavam mais livremente ao impulso da respiração.
Detestava tirar fotografias frontais. Preferia de perfil, uma forma
paliativa, enquanto sonhava e fazia economias para realizar
operação plástica.
E os lábios? Na tentativa de esconder-lhes a carnosidade, adquirira
um cacoete – já apontado por amigos e namorados (sempre brancos)
– de mantê-los dentro da boca.
Sobre a pele, naturalmente bronzeada, muito creme e pó para clarear.
Lá um dia, veio alguém com a notícia de “alisamento permanente”.
Era passar o produto nos cabelos uma só vez e pronto, livrava-se de
ficar de olho nas raízes. Um gringo qualquer inventara a tal fórmula.
Cobrava caro, mas garantia o serviço. Segundo diziam, a substância
alisava a nascente dos pêlos. Jussara deixou-se influenciar. Fez um
sacrifício nas economias, protelou o sonho da plástica e submeteu-se.
Com as queimaduras químicas na cabeça, foi internada às pressas,
depois de alguns espasmos e desmaios.
Na manhã seguinte, ao abrir com dificuldade os olhos, no leito de
hospital, um enfermeiro crioulo perguntou-lhe:
Tá melhor, nêga?
Ela desmaiou de novo.

Cuti

33
Contos Crespos. Disponível em <https://www.cuti.com.br/contoscrespos>.
46

Um dia conversava com Elza, minha amiga e uma das entrevistadas desse trabalho,
sobre o transe no Candomblé. Filha de Obaluaê, raspada34 há cinco anos, me corrigiu
imediatamente quando usei o termo “incorporação” nessa conversa. Elza me disse que
incorporar é uma ideia que compete a outras religiões, utilizada para se referir a entidades que
não são os Orixás. Incorporação, ela me explica, dá a ideia de que algo externo, alheio ao
indivíduo e que se liga ao corpo. O Orixá da sua cabeça não está fora, está na sua cabeça,
portanto ele não se incorpora, se manifesta35.
Existem muitos vocábulos possíveis para descrever o processo que estamos prestes a
narrar. A psicanalista Neusa Santos Souza (1983) nos fala sobre o “tornar-se negro” (nome da
sua obra) e apresenta o seu livro dessa forma:

Uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si


mesmo. Discurso que se faz muito mais significativo quanto mais
fundamentado no conhecimento concreto da realidade. Este livro representa
meu anseio e tentativa de elaborar um gênero de conhecimento que viabilize
a construção de um discurso do negro sobre o negro, no que tange à sua
emocionalidade (p. 17).

Seguindo a mesma linha, as psicólogas Tavares e Kuratani (2019), ao escreverem sobre


o “Manejo Clínico das Repercussões do Racismo entre Mulheres que se ‘Tornaram Negras’”
usam a expressão “tornar-se negro” como “metáfora para o processo de reconhecer os
diversos tipos de violência proporcionados pelo racismo e de busca por recriar uma nova
identidade enquanto pessoa negra” (Ibid., p. 4). O termo em questão aparece na Carta de
Ângela Figueredo (2005), “ex-mulata” à Judith Butler, quando a autora cita Patricia Hill
Collins: “tornar-se negra, portanto, descreve um processo de afirmação e de busca por uma
auto-definição, ou, como sugere Patricia Hill Collins, a busca pelo controle da imagem” (p.
165).
Podemos ainda falar sobre o desejo de resgatar ou recuperar essa identidade, ligada não
só a revalorização dos traços físicos naturais, quanto às histórias da família.

[...] a luta contra o racismo no Brasil produziu uma especial significação


para a palavra resgate. Quando se utiliza a expressão, quer-se dizer resgate
da cultura. Nesse sentido, a politização teria de passar, necessariamente, pela

34
Parte do ritual de iniciação no Candomblé.
35
Desde a ideia de possessão, transe, incorporação e manifestação, diferentes termos marcam essa presença dos
Orixás nos seus filhos. Lima (2015), ao trabalhar com alguns desses conceitos, irá nos falar que “o corpo é a
manifestação do Orum, na forma concreta e visível do homem no Àiyé, dividido em complexo interno e externo.
O complexo interno do corpo, os órgãos, sistemas e entranhas (Inu) são presididos por Exu, o Bará, o princípio
da individualização. O Inu está ligado ao ordenamento do fluxo vital, o pejo, o sangue que propicia os
batimentos cardíacos e a solidariedade dos sentidos com o mundo” (p. 26).
47

produção simbólica do protesto e também pelo resgate da produção


simbólica da arte da cultura (SILVA, N., 2001, p. 130).

Tornar-se, resgatar, descobrir-se, conscientizar-se (consciência negra), compreender-se,


são todos termos que cabem na ideia de manifestar um pertencimento racial que não nos
parece alheio às pessoas que o adotam. Ao contrário, essa raça é um referencial que sempre
organizou a vida dessas pessoas ao serem rejeitadas nas escolhas afetivas, discriminadas em
diferentes circunstâncias da vida, ou acolhidas em laços familiares negros, por exemplo.
Quando passam a autodeclararem-se negras, essas pessoas revisitam suas histórias de vida e
descobrem que existia um “x” da questão, que explica os comportamentos de terceiros e os
seus também. Esse “x” é de uma racialização negra. Veremos que esse “tornar-se” é
transformador, e realinha um olhar que essas pessoas lançam sobre a sociedade, sobre suas
relações mais próximas, e sobre si. O engajamento político ou a busca pelo Candomblé, por
exemplo, não parecem ser empreendimentos artificiais para atender a uma expectativa de
negrura. Esses esforços falam sobre um desejo de felicidade, completude, reencontro,
reparação, para si e para os irmãos36 que sofrem por uma mesma estrutura de hierarquia
racial.
Esse capítulo traz entrevistas com os estudantes da UFBA Manoel, Laudelina, Marielle
e Carlos; com os ex-estudantes da UFBA Jaci, Davi e Elza; com o estudante reprovado pela
Comissão de heteroidentificação da UFBA, Dias; e com a professora Beatriz, pesquisadora
das políticas afirmativas. Como havia dito antes, essas pessoas se autodeclaram negras, com
pele clara, embora eu não reconheça todas elas dessa forma. Dentre eles, existem aqueles que
eu heteroclassifico como pessoas brancas. Por que, então, as entrevistar? Por não querer
estabelecer um “negrômetro”, termo do campo para a “régua de cor” 37, que mede quem é
negro ou não. Também me sinto alvo desse fenômeno e por isso quis confrontar a mim
mesma, tal como a minha autodeclaração às vezes confronta outras pessoas. Como “raças
humanas” inexiste biologicamente, “nada autoriza a exata delimitação das raças”
(D’ADESKY, 2001, p. 133), ou seja, esse critério é social. Uma equação difícil que envolve o
mito da Democracia Racial, a amplitude da miscigenação, o colorismo, e as diferentes formas
de leitura racial que cada região do país organiza, é que tornam complexo esse cálculo de
classificação racial.

36
Temos como referência o trabalho citado nessa pesquisa, de Ferreira (2001), sobre a prática política que os
autodeclarados negros passam a ter, nos primeiros estágios dessa afirmação racial.
37
Essa régua parece se referir as heteroidentificações que acontecem fora de ambientes formais, como nas redes
sociais de Internet, e que expõe os envolvidos a situações constrangedoras, diferente do que ocorre, por exemplo,
nas comissões de heteroidentificação racial.
48

2.1 O NEGRO DESDE DENTRO

“Essa necessidade de busca de referências ancestrais africanas coloca-nos


diante de uma séria constatação: após anos de abolição, o negro e a negra
brasileiros continuam estrangeiros na sua própria terra. Por mais que já
tenhamos construído experiências culturais tipicamente brasileiras, elas não
são suficientes para a construção da nossa identidade conquanto grupo
étnico/racial. Precisamos nos reportar à África, como raiz da nossa
identidade.” (GOMES, 2006, p. 307)

Inspirada em muitos trabalhos anteriores dos intelectuais negros brasileiros, “o negro desde
dentro” é a expectativa de trazer as histórias de pessoas autodeclaradas negras, levando a sério
os seus conflitos, as suas trajetórias e os seus sentimentos. É a necessidade de escrever sobre o
“negro-vida”, bem mais complicado que o “negro-tema”, como nos ensina Guerreiro Ramos
(1995). Se o chão do negro-tema é a unicidade da experiência, o quadrado cartesiano,
pensando de maneira afroperspectivista (NOGUERA, 2011), o plano de imanência do negro-
vida é a roda, cada um tem espaço para o seu próprio samba.
A imagem que segue, tirada do grupo “Mulheres Negras” do Facebook, nos introduz a
pensar o lugar de identidade dos negros com pele clara. Esse tipo de mensagem é
extremamente comum nas redes sociais da Internet, quando se discute raça.

Figura 1 – Qual minha cor? Printscreen da publicação em 2020.

Fonte: Grupo “Mulheres Negras” do Facebook.

Nesse texto, a autora narra suas características físicas e de seus familiares, pedindo ajuda para
os demais membros desse grupo, sobre o reconhecimento racial que lhe diz respeito. Nosso
intuito não é o de avaliar a identidade racial dessa autora, mas identificar primeiramente, a
importância que essas questões têm para os indivíduos que passam por esses processos de
“tornar-se” e, ao mesmo tempo, os critérios e as emoções que são reivindicados nesses
momentos. Veja,
49

A descoberta de ser negra é mais que a constatação do óbvio (aliás, o óbvio é


aquela categoria que só aparece enquanto tal, depois do trabalho de se
descortinar muitos véus). Saber-se negra é viver a experiência de ter sido
massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida
a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também, é
sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-
se em suas potencialidades (SOUZA, N., 1983, p. 18).

A Internet é parte importante desse trabalho, é muito vasto o conteúdo que encontramos
nas redes sociais sobre as polêmicas da autodeclaração e da heteroidentificação negra, mais
adiante veremos também como ela é notória para a atual projeção que o tema “colorismo” tem
no Brasil.
Manoel nos conta que sua elaboração como pessoa negra surgiu após o ingresso na
UFBA em 2019. Nesse momento, tanto a atuação política dos grupos que teve contato, quanto
às aulas, têm um papel nisso. A professora de uma das disciplinas do seu curso de História lhe
fez refletir sobre à contra-universalidade do tempo para os diferentes povos, e isso incluía
debates que tratavam sobre racismo e relações de gênero e sexualidade.

Manoel: É porque assim, antes de entrar na universidade, era certo que eu


era pardo, entende? Isso é algo que a gente já sabe. Só que quando a gente
se pega pensando sobre a questão racial no Brasil a gente percebe que a
ideia do que é pardo é meio que um não lugar, tá ligado? Ai quando a gente
entra na Universidade a gente, pô, eu também sofro racismo tá ligado? Por
causa disso, por causa daquilo, então com todos os debates que eu fui
exposto dentro da Universidade eu pude me reconhecer como uma pessoa
negra, entende?

Manoel já tinha um engajamento anterior com o movimento social, ele integrava uma
organização que debatia a pauta LGBTQI+ e classista. Mas esse engajamento anterior não
permitiu que avançasse no reconhecimento da sua identidade racial, somente na Universidade
Manoel teve contato com esse nível de reflexão. A Universidade é apontada pelos
movimentos sociais como um ambiente muitas vezes classista, racista e hostil. Nos últimos
anos de graduação (entre 2013 e 2017) lembro-me como cresceram a quantidade de cartazes
que convidavam estudantes para rodas de conversas, ou divulgavam grupos de apoio em torno
de problemáticas ligadas à saúde mental de estudantes na Universidade. Ainda assim, ou
justamente por isso, é um ambiente que colabora muitas vezes para que as pessoas
manifestem essa identidade negra e elaborem seu pertencimento.

Manoel: Eu adoro aquelas postagens do Facebook que as pessoas fazem de


antes e depois da Universidade. É legal, entende? Porque você vê como as
pessoas, elas se libertam, entende? Elas se transformam realmente, porque a
50

Universidade é um espaço que transforma. A Universidade ela abriu muitas


portas na minha vida de, por exemplo, de eu botar minhas ideias, expor em
prática, do ser ouvido e assim por diante.

Como dissemos, a condição de alguém oriundo da classe trabalhadora, de origem pobre,


já era parte do seu engajamento político anterior a Universidade. Então por que será que a
questão racial não chegou antes para Manoel? Ele sugere alguma coisa ligada à falta de
instrução da sociedade ampla: “não há no senso comum, pardo como ser negro, entende?”.
Essa explicação faz sentido pra quem pôde compreender seu pertencimento racial na UFBA.
O senso comum, que ignora o pardo como ser negro, se contrapõe à ciência da Universidade,
que lhe possibilita um posicionamento de raça politicamente fundamentado. Essa não é uma
afirmação deslocada. Jacques D’Adesky (2001) nos fala sobre o branqueamento, essa
estratégia que retira os pardos como parte da população negra, como alienação. Alienação e
ignorância são lugares comuns para o que se afirma sobre o senso comum, ainda que a
alienação, dentro das possibilidades marxistas do uso do termo, possa ser parte da própria
estrutura universitária.
A noção de que o pardo, como sujeito não negro, é parte de uma estratégia de alienação,
condiz com o que Ângela Figueiredo (2005) nos aponta, a respeito do papel do Estado na
normatização da mestiçagem:

[...] é evidente a relação entre o discurso normativo do Estado que constrói


os sujeitos supostamente não racializados - os mestiços e mulatos brasileiros
-, ainda que a noção de mestiçagem seja, ela mesma, oriunda da crença na
existência de pelo menos duas raças (p. 154).

Manoel é um estudante cotista que foi aprovado pela Comissão da Verificação da


UFBA em 2019. Sua candidatura acontece pela identificação e autodeclaração como pardo.
Assim como Dias, estudante reprovado pela mesma Comissão, Manoel não assumia uma
identidade negra até o momento da banca de aferição.
Diferente do que acontece com as demais pessoas que pude conversar, e diferente
também do discurso estabelecido pelo movimento negro, que permite aos fenotipicamente
mestiços migrarem de uma identificação como pardos, morenos ou termos similares, para
uma identidade negra ou preta38, Dias não parece elaborar, até nossa entrevista, um
sentimento de pertença com relação à negritude.

38
Sobre a polêmica da escolha dos termos “preto” ou “negro” ver: VALENTIM, M. L. Negro ou preto? Eis a
questão. Disponível em <https://midianinja.org/editorninja/negro-ou-preto-eis-a-questao/>. CUTI (2010)
também irá nos trazer que “Na década de 60, a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos empregou a palavra
‘black’ cuja versão correta, no contexto social brasileiro, é “negro” e não preto como querem alguns. Ou seja,
51

Gabriela: Você se entende como negro também?


Dias: Olha, igual a classificação da UFBA mesmo, e até do IBGE, os pretos
e pardos, eles estão meio que juntos, entendeu... Então, é... De qualquer
forma, sim.

Dias sintetizou o seguinte: se pardo é negro, e eu sou pardo, por consequência sou
também negro. Meu contato com ele, como tinha contado antes, se deu primeiramente por
uma rede social. Iniciamos conversa e então Dias pediu que o telefonasse. Na ligação ele me
falava com muita ansiedade como ser reprovado pela Comissão havia mexido
emocionalmente com ele e sua família, ele me perguntava como poderia resolver aquilo.
Aquilo era sua autodeclaração. Ele me falava que sempre que era provocado, desde criança, a
informar sua cor ou raça, respondia como sendo pardo. É algo, inclusive, que foi parte do seu
recurso para a banca que lhe reprovou.
Elza, ex-estudante da UFBA, também se afirmava parda. Sua elaboração racial veio a
partir da participação num cursinho preparatório negro, em 2008. A narrativa dessa trajetória
centraliza os “privilégios” que uma pele clara teria lhe dado.

Elza: Então, quando passei pelo processo [do cursinho] foi quando eu criei
a minha identidade, né. Consegui me identificar, falar “eu sou negra”, mas,
eu me sinto muito insegura porque o tempo todo eu ainda me vejo
bombardeada com relação a isso, principalmente porque assim, por mais
que eu saiba que eu sou afrodescendente, o meu tom de pele pode me dar
privilégios que pra outras pessoas não dão, porque as outras pessoas me
enxergam de forma diferente do que essas pessoas são, entendeu?

Elza irá nos dar um importante depoimento sobre seu cabelo crespo, e que é parte dessa
trajetória de autodeclaração negra. “Transição capilar” é o termo que corre na Internet para
nomear o processo pelo qual as pessoas deixarão de alisar o cabelo até que ele esteja em sua
forma natural (entendida como não alisada, o “natural” não impede outros procedimentos
químicos de mudança de cor, por exemplo). Vejamos o que diz Nilma Lino Gomes (2006):

Para o negro, o estético é indissociável do político. A eficácia política desse


debate está não naquilo que ele aparenta ser, mas ao que ele nos remete. A
beleza negra nos leva ao enraizamento dos negros no seu grupo social e
racial. Ela coloca o negro e a negra no mesmo território do branco e da
branca, a saber, o da existência humana. A produção de um sentimento
diante de objetos que tocam a nossa sensibilidade faz parte da história de
todos os grupos étnicos/raciais e, por isso, a busca da beleza e o sentimento
do belo podem ser considerados como dados universais do humano (p. 148).

este assumir a palavra ‘negro’ pelos próprios negros não é recente, nem tampouco local” (Quem tem medo da
palavra negro? p. 4).
52

Voltemos a Elza:

Então assim, eu alisava o meu cabelo. E eu passei a alisar o meu cabelo


porque eu não sabia lidar com ele. Na época, eu dizia que meu cabelo era
ruim, e realmente, pra mim, ele era ruim. Nada o que eu queria que ele
fizesse, ele não ficava no lugar. Ele não… Sabe, eu era fã de Sandy e Junior,
e eu não conseguia me identificar igual a Sandy, sabe. Eu queria ser Sandy,
não conseguia ser Sandy, entendeu? E aquilo me incomodava muito, então,
eu achava que o meu cabelo era ruim de pentear, que meu cabelo era, enfim,
não aceitava ele. Eu alisei o meu cabelo e aí, quando eu alisei, eu fiquei nas
nuvens, entendeu? Tudo o que eu queria, acontecia. Só que aí, acho que na
metade do primeiro ano [no cursinho] [...] eu ia pras aulas e o pessoal
falava, falava, a questão da África, da diáspora africana, da Eva negra, num
sei o quê lá. [...] Até um dia em que entrou no assunto do cabelo, porque
minha mãe, ela tem o cabelo cacheado, mas ela não queria que eu tivesse o
cabelo cacheado, então era uma coisa que ela repetia [...]. Ela dizia assim:
“ah, se a minha filha nascer de cabelo duro, quando ela nascer, eu boto ela
no vaso e dou descarga”. E a gente ria disso, entende? E num belo dia na
aula, a gente falando sobre a questão do cabelo, da aceitação do que era
bonito, eu acho que tinha uma carranca ou a professora colocou alguma
foto de comparativo pra gente ver o que a gente achava bonito, o que a
gente achava feio, enfim. E aí, entrou-se nessa questão do questionamento
capilar, entendeu? E aí foi que eu comecei a me dar conta que eu estava me
machucando, que eu estava me mutilando, por algo que não precisava
disso[...] Então, eu acho que pra mim, aquilo foi quando realmente houve o
divisor de águas, entende?

É como se a transição capilar apontasse para a consciência negra. Nilma Lino Gomes
(2006) nos indica como a manipulação do cabelo pode oferecer para as pessoas negras um
trânsito de categorias – repare que esse trânsito não acontece entre as categorias díspares
branco-negro, e sim entre àquelas que remetem, ambas, ao ser negro:

[...] no critério de classificação racial brasileiro e no processo de


autoclassificação dos sujeitos, determinados penteados e estilos de cabelo
possibilitam à mulher e ao homem negros e mestiços manipularem a sua cor.
[...] uma mulher negra que alonga o cabelo pode facilmente passar de
“Negra” para a categoria “mulata”. E qual é o significado da mulata? Fruto
da mistura do negro com o branco, no imaginário social, a mulata é vista
como a mulher que traz no tom “bronzeado” ou “moreno” da pele e nos
contornos do corpo a marca da mestiçagem. A ascendência negra está
gravada na cor da sua pele e na textura do seu cabelo. No caso dos cabelos,
para compor a representação social da mulata, eles devem ser, de
preferência, longos e anelados e nunca muito crespos (p. 290).

A transição capilar, impulsionada por essa experiência de cursinho negro engajado, foi o
divisor de águas para Elza. A história que sucede, fala sobre como o ingresso numa Instituição
Federal lhe foi opressora39. Essa experiência lhe desencadeou um quadro depressivo, e ao

39
Em 2008 quando ela prestou vestibular, o IFBA se chamava CEFET, e era um Centro Federal de Educação
Tecnológica. Quando eu estudava no IFBA e era colega de sala de Elza, desenvolvi uma pesquisa sob a
53

mesmo tempo serviu para reforçar aquele sentido de identidade que ela tinha começado a
(re)posicionar no cursinho. Embora todos os tópicos que arbitrariamente eu dividi, tenham
conexões entre si, essa foi a forma que consegui organizar o meu pensamento, e por isso
mesmo, essa experiência de opressão (racismo) falaremos mais adiante.
Voltando a transição capilar, esse é um processo muito potente na vida das pessoas que
passam por ela, particularmente mulheres, sendo um tema que se repete espontaneamente na
fala de outras entrevistadas. Laudelina, por exemplo, é outra mulher autodeclarada negra,
antes identificada como parda, que nos traz um relato importante sobre essas conexões que
temos falado sobre identidade-cabelo.

Laudelina: Eu alisei o meu cabelo a vida toda e chegou um momento que eu


num sentia que eu era mais aquela pessoa que alisava o cabelo. Então, o
contato com o cabelo foi algo que realmente, despertou em mim isso de,
“olha, eu acho que você não é branca, acho que você também não é uma
negra retinta, mas você também não é branca”.

Veja, o cabelo é o mais importante fator que faz a ponte entre Laudelina e seu
reconhecimento, segundo ela, “principalmente [para] mulheres da minha cor assim, [o
critério mais importante] é a questão do cabelo”. Seu tornar-se marca de mais ou menos
2015, ano em que inicia a transição capilar e um ano depois do ingresso na UFBA. Durante a
graduação, Laudelina começou a participar de um grupo político de esquerda com atuação na
própria Universidade. Nesse grupo do movimento estudantil é que ela começa a ser provocada
sobre sua autodeclaração: “eu era questionada ‘olha, eu acho que você não é branca, não.
Vamos ler mais sobre isso, vamos ler feministas negras, vamos’...”. Jaci nos dá outra narrativa
sobre a importância da transição capilar nessa trajetória do descobrir-se negra:

O que me levou a questionar foi a transição capilar, por incrível que possa
parecer. [...] A minha transição capilar está fortemente ligada a minha
construção identitária e do reconhecimento enquanto mulher negra na
sociedade.

Laudelina nos falava que sua transição capilar começou quando ela quis dar uma
oportunidade para o seu cabelo. Voltando à minha própria história, eu também não comecei a

orientação da professora Naiaranize Pinheiro da Silva a respeito das políticas afirmativas na instituição. Nele,
mostramos como o perfil do antigo CEFET mudou. Essas antigas escolas técnicas “[...] nasceram como opção
àquela classe desfavorecida que não tinha acesso às universidades, mas com o passar do tempo tornaram-se cada
vez mais elitizadas pela demanda crescente de classes mais ‘afortunadas’ que viam no ensino técnico boas
oportunidades de emprego nas indústrias, a exemplo do Pólo Petroquímico de Camaçari–Bahia”
(RODRIGUES&SILVA, 2012, p.2). Ou seja, tal como as Universidades Federais, o IFBA também é esse lugar
onde classes desfavorecidas em menor proporção, convivem com a classe média, e cujas experiências de
opressão também se cruzam.
54

minha transição capilar em nome de uma afirmação negra, em 2012. O meu cabelo estava
muito fragilizado com os sucessivos processos químicos e térmicos que o submetia para alisá-
lo, desde os 14 anos. Essa fase foi extremamente dolorida. Lembro que odiava o meu cabelo,
me sentia feia e dizia diante do espelho “eu sou um monstro”. Meu cabelo estava caindo cada
vez mais, eu não tinha autoestima para cuidar de mim, e também não tinha dinheiro para
investir em cuidados que ele requeria. Quando parei de alisar, o fiz porque queria dar um
tempo para que meu cabelo crescesse, e então eu voltaria a alisar. Jaci também parou de alisar
por causa dos danos que esse processo estava lhe acarretando.

O processo de alisamento para mim era extremamente agressivo e chegou


uma época que eu fiquei com medo disso, eu passei a ter medo em relação a
minha saúde, em relação a isso e também era um custo financeiro muito
grande [...]E aí eu, tipo assim, eu quis dar essa oportunidade pra mim, de
me ver de uma outra forma, ter essa opção. [...] É… Aí eu pensei assim:
“não, será que eu não posso ser bonita também de uma outra forma, e que a
sociedade possa vir me aceitar assim, de uma forma inclusive mais sincera,
mais verdadeira, mais eu mesma?”.

Essas histórias parecem alimentar a ideia de uma transição capilar e uma transição na
autodeclaração racial. Essas mulheres não se descobriram negras e então decidiram parar de
alisar o cabelo, os dois processos aconteceram simultaneamente. Dito isso, não posso
extrapolar as experiências de Jaci, Elza ou Laudelina, para falar sobre todas as outras. Elas
servem para informar que a transição, aparentemente situada dentro das preocupações
estéticas, é algo maior e profundamente complexo.
Chica, por sua vez, não narra um processo de transição capilar e foge a regra que se
manteve até aqui: a passagem de uma identificação parda para negra. Ela sempre se entendeu
como pessoa preta, e ainda assim, precisou reconhecer-se negra. Ou talvez, no seu caso,
podemos falar sobre um processo de reafirmar-se.

Chica: Do ensino médio pra faculdade, quando eu comecei a, digamos,


refletir um pouco mais sobre relações sociais no Brasil e tal e coisa, tive
mais curiosidade em relação a isso e ai com conversas e tals, as pessoas não
costumavam me classificar tanto como uma pessoa negra. “Você é parda,
você é um pouco clarinha”, e tal e coisa, mas isso foi uma coisa externa a
mim, e que me fez questionar um pouco, mas que não o suficiente pra que eu
deixasse de me identificar com aquela identidade cultural, porque eu já
tinha o entendimento de que minha identidade racial não dependia somente
do meu tom de pele, mas tinha diversos outros traços, tanto fenotípicos
quanto, enfim, sociocultural, socioeconômicos que me classificavam
enquanto negra, entende?
55

Sua compreensão como preta era algo que a mãe lhe educou a ter: “Rapaz... Eu lembro
que minha mãe sempre me dizia que o pardo é o... [...] Era algo como se pardo é o preto que
não quer ser”. Ou seja, Chica sempre se identificou como preta, e os conflitos que ela viveu
entre o Ensino Médio e a Universidade, foram os gatilhos para que se aprofundasse e
organizasse um sentido próprio sobre ser negra. Estou falando que, assim como os demais
entrevistados, que se identificando com pardos precisaram elaborar um pertencimento negro,
Chica, igualmente de pele clara, educada desde criança a identificar-se como preta, também
precisou passar. Tanto para o pardo, quanto para o preto, o ser negro é algo colado a essa
identificação visual de cor, mas é colado por traz: todo o seu conteúdo não está disposto para
a reflexão assim, de primeira, é por isso que Neusa Santos Souza (1983) fala sobre o tornar-se
negro, seja para sujeitos pretos ou pardos.
Como Chica, Carlos e Marielle são pessoas que se identificavam como pessoas pretas,
antes mesmo de elaborarem um “ser negro”. Diferente do que poderíamos supor, nenhum
deles é oriundo de famílias engajadas politicamente. As histórias de Carlos e Marielle
apresentaremos juntas, porque como mencionamos antes, entrevistei os dois ao mesmo tempo.

Carlos: Eu comecei a me perceber como pessoa negra desde muito cedo, e


teve uma fase de “Ah não, vou alisar meu cabelo, num sei o quê”. E meu pai
falava: “você não vai alisar seu cabelo, seu cabelo é crespo, você é negro,
num sei o quê, você é meu filho, você é preto, nosso cabelo é crespo”. Então
do meu pai eu sempre tive muito forte essa coisa da identidade racial.
Porém… [...] pra amigos meus mais retintos eu posso não ser lido como
negro. Então essa consciência minha racial apesar de ter começado muito
cedo em casa, ela meio que ficou adormecida muito tempo, sabe?

Aqui se repete àquela experiência do indivíduo que se identifica como preto, e em


função dos confrontos o outro, precisa (re)fazer uma jornada pessoal pela compreensão dessa
racialidade. Ser preto ou pardo não é ser negro. Talvez essa seja a diferença entre Dias e os
demais entrevistados nesse trabalho. O estudante verbalizava essa identidade negra apenas
como consequência de um cálculo: pretos+pardos são negros. Com isso, não estou dizendo
que Dias não é negro, estou analisando os discursos e observando dados que destoam do
conjunto de depoimentos construídos aqui.

Carlos: Fica naquele limbo: “Onde eu posso me encaixar direito?” Porque


por eu não ser retinto e ser lido como pardo tem aquele local ali do limbo,
do pardo, sabe? Onde eu me encaixo? Onde eu me encaixo sem ser
rejeitado, na verdade. E isso começou a ser mais visto por mim, mais lido e
mais defendido quando eu entrei na faculdade mesmo, que ali eu tive um
contexto de pessoas até mais por ser… Por eu cursar Ciências Sociais que
querendo ou não eu vou tá presente com a militância negra, com a
militância de todos os tipos. É uma vivência que eu teria que explorar. [...]
56

E foi fundamental pra eu me reconhecer como um negro de vez, sabe? Poder


entrar na discussão sem me sentir ofendido ou sem ficar em dúvida do que
eu sou, foi depois da faculdade, desse processo. [...] A faculdade me ajudou
bastante, me ajudou a criar uma identidade assim mais fixa, como me
encaixar onde me encaixar, com quem eu posso me encaixar também.

A fala de Carlos ressalta um argumento importante, o tornar-se negro não é uma escolha
aleatória ou arbitrária, envolve crises pessoais e muitos movimentos (de leitura ou de prática
política, por exemplo) que as pessoas fazem em direção a essa identificação:

Era algo que eu preferia evitar pensar, sabe? Eu nunca cheguei assim em
um momento: “Agora, esse dia eu vou tirar pra decidir como eu… Como
vou me enxergar… Como eu sou visto”. [...] Além da faculdade você
percebe na rua, sabe? Quando eu entro com meu amigo que é branco num
ônibus, não é pra ele que passam o olho às vezes, sabe? Então essas
questões do dia a dia também influenciaram bastante. Foi o fator vivência.
É como se a faculdade fosse uma teoria, sabe? Eu me encaixo como negro,
por ser e conviver, mas na rua é muito a prática também que a gente tem,
sabe? A discriminação que é presente. E isso me ajudou a me ler também
como uma pessoa que eu já tinha definido o que eu era, só não conseguia
enxergar isso.

Marielle, amiga de Carlos, traz um depoimento semelhante:

Tem uma frase que minha mãe repete até hoje: “Vai pra onde toda
arrumada assim? Onde é que já se viu preto arrumado assim? Não sei o
quê” e várias outras coisas. Às vezes quando a gente é criança na inocência
né? A gente fala alguma coisa que tipo assim, às vezes a gente fala algumas
coisas que implique que a gente é clara e aí ela olha pra gente e fala: “onde
é que já se viu filho de preto ser branco? Você é preta”. Tipo como uma
forma de colocar a gente no nosso próprio lugar, sabe? E eu sempre me vi
como negra.

Preta e negra. Como os demais, Marielle precisou reencontrar a si mesma como pessoa
negra, de acordo com o que foi educada desde criança:

E na verdade eu nunca duvidei dessa identidade, as pessoas da rua que


duvidavam. E foi a partir daí que eu passei a ter essa dúvida. E até hoje...
Eu não sei as outras pessoas, mas até hoje eu tenho momentos de não saber
o quê que eu sou. De tipo: “ah, agora eu vou ser parda. Mas eu não sou
parda… Eu sou parda?”. Tipo isso. É… Tem lugares que eu sou tratada
como branca e tem lugares que eu sou tratada como negra.

Para Davi, a Universidade deu a possibilidade de conhecer diferentes frentes de atuação


política. O contato com organizações do movimento negro fez com se sentisse inquietado a
pensar um pouco mais sobre isso. Foi quando começou, em 2010, a estabelecer relação com
esses grupos:
57

[...] questões ligadas à racialidade, estava em formação ainda da minha


identidade racial e a princípio, pelo menos naquela época, não houve
questionamento, mas acolhimento para que essa identidade fosse
fortalecida. Eu não me reconhecia ainda como tal e fui acolhido, e a partir
daí comecei a ressignificar coisas que aconteciam na minha vida e que eu
não compreendia por quê. Eu via que pessoas negras retintas passavam por
coisas que eu passava, embora eu não fosse negro retinto, a forma como
acontecia era muito similar e eu percebi que os motivos eram muito
similares e isso me fez compreender, e me compreender como parte disso.

No início da graduação, ele não tinha preocupações relativas ao seu pertencimento


racial. Davi migrou de uma inserção no movimento estudantil, para uma inserção no
movimento negro.

Mas minha presença nesses espaços mais abertos onde as pessoas falavam
das suas vivências me fez me identificar com as vivências delas e aí eu
comecei a ressignificar, entende? Medos que eu tenho e que eu achava que
eram universais, por exemplo, que eu percebo que não são. E eu passei a
prestar atenção dos meus amigos brancos que eu tinha na universidade
ainda e eu percebia que não eram. Por exemplo: entrar numa loja e ficar
com medo de sair sem comprar nada, tentar mostrar que não está roubando.
Eu achava que isso era algo universal, que todo mundo fazia isso, que era
normal, você vai entrar numa loja e as pessoas realmente vão pensar que
você vai roubar e eu nunca percebi que realmente meus amigos brancos não
passavam por isso. Entrar de mochila em lojas e perceber seguranças
olhando com mais atenção, eu achava que era normal, tinha que ser normal,
pois não era racismo, não tinha como ser racismo pois e não era negro, eu
era pardo.

Num país cuja imagem nacional se constrói com um discurso forjado da mistura das três
raças, que tem democracia racial como um mito levado a sério, para escamotear os crimes de
racismo desde a fundação desse país, não é difícil entender porque é tão comum que as
pessoas alcancem a questão racial relativamente tarde. Mesmo para pessoas que se lançam em
um engajamento político, costumam trilhar um percurso entre diferentes frentes de atuação,
como Manoel na pauta LGBTQI+ e classista, ou Davi com o movimento estudantil, até que
alcancem o discurso dos movimentos negros.
Como tinha dito anteriormente, para fins metodológicos, esse grupo de negros claros
que entrevistamos, é de estudantes, ex-estudantes da UFBA, e Dias, que se candidatou à vaga.
Não suponho que estar inserido na Universidade é parte indispensável para que o indivíduo
desenvolva àquilo que os movimentos sociais negros tendem a chamar de letramento racial.
A Universidade fez parte da jornada dessas pessoas e essa experiência repercute na elaboração
subjetiva que fazem de si, inclusive, ou especialmente, como pessoa negra. Assim como
58

penso que a Universidade confere uma experiência importante para essa reflexão identitária,
percebo que o fator geracional também tem seu peso.
Pensar a identidade negra para mestiços ou pardos, ou a relação cabelo crespo-negritude
não são coisas novas. Mas existe uma conexão entre tudo isso e a Internet, a partir mais ou
menos, de 2014, que merece atenção. Vamos olhar para a história de Beatriz. Ela é uma
pessoa muito importante na minha formação. Sua carreira docente tem mais de 20 anos e esse
tornar-se negra, entretanto, é relativamente recente. Para ela, isso se associa ao exercício da
sua profissão:

Também, né? De ficar estudando, e lendo coisas e... Acho que a primeira
vez que eu comecei a reagir digamos assim, ao racismo, é aquela coisa da
casa, né? Todo mundo... Metade tem cabelo entre aspas bom, metade tem
cabelo ruim. Então chegou uma hora que eu disse: “meu cabelo é bom, meu
cabelo aguenta guanidina, hidróxido de sódio, tudo que é coisa que alisa,
prancha quente, prancha fria e o cabelo não cai... É ótimo! É muito forte,
saudável, então não pode ser questionado de cabelo ruim”. Isso é uma...
Digamos uma reação, né? Ao que eu ouvia dentro de casa.
Gabriela: A senhora já era professora?
Beatriz: Sim, já era professora. A vida toda eu sempre ouvi um monte de
coisas, principalmente em relação ao cabelo. [...] Tinha um amigo de meu
pai que era médico aqui em Salvador que ia lá em Mangabeira, que
chamava a gente das “holandesas”, porque eram cinco meninas, né? A
minha família, todas bem branquinhas, as bochechinhas, os cabelos
cacheados quando eram crianças, loiras, e eram “as holandesas” né? E eu
me lembro que eu era criança e achava o máximo. Ser chamada de “As
holandesas”...
Gabriela: A senhora era loira também quando era criança?
Beatriz: Era loira. Todo mundo era loira lá em casa, só tem uma que não
era loira, que nasceu mais morena desde cedo, né? A pele mais escura e o
cabelo mais crespo, e sofreu muito. [...] então, essas coisas todas dentro da
família, elas marcam, né? A construção de nossa identidade.

Ser alguém com mais de 40 anos, professora há mais de 20 anos de uma disciplina das
ciências humanas e doutora, não conferiu a Beatriz uma posição de estabilidade quanto a essa
elaboração racial: “Eu tenho clareza que nem tudo tá muito resolvido na minha cabeça até
hoje. [...] Acho que é um processo que me da uma tranquilidade também de não querer
cobrar das minhas alunas, você tem que ser isso, você tem que ser aquilo”. Com isso eu
quero falar que não foram apenas a formação acadêmica e os contatos políticos, nas
instituições de ensino que ela estudou e leciona, os responsáveis por esse torna-se negra: se
assim o fosse, teria acontecido antes. Apenas nesse contexto político é que Beatriz começa a
pensar mais detidamente sobre essas questões.
Faço uma pequena pausa nessa conversa com os meus interlocutores, para desfazer um
possível ruído de comunicação: sinto que a forma como dispus o texto até aqui, induz o erro.
59

Não quero dizer que a caminhada por essa descoberta de si, por essa (re)elaboração da
identidade, termine com o tornar-se negro. Primeiro porque “o que eu sou” sempre mudará,
segundo que, após esse tornar-se, ou mesmo junto a ele, surge outro conflito que não pode ser
encerrado pela vontade pessoal de quem participa dele: o conflito que envolve terceiros,
quanto ao reconhecimento da sua autodeclaração racial. Schucman (2018) nos dá uma
imagem bastante ilustrativa para o que estamos falando:

É um processo às vezes difícil de ser compreendido. Associo a ele algumas


imagens – o viver como um tipo especial de “peça de teatro”: uma grande
peça, o drama da vida, desenvolvida em torno de um texto sempre
inconcluso, um processo em que texto, desempenho, metas são construídos
simultaneamente ao viver, ao mesmo tempo em que o personagem também
se constrói. Não há possibilidade de ensaio. É um trajeto com avanços,
recuos e pequenas experimentações. Atua-se, constrói-se o personagem,
monta-se o enredo, dá-se direção. São todos processos simultâneos,
mantendo-se sempre o final em aberto para o drama continuar. Isto me
lembra uma frase de Guimarães Rosa – “o real não está na saída nem na
chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. Quando se
atravessa um rio a nado só é possível dispor-se a chegar à outra margem. A
trajetória só pode ser determinada de dentro, no meio da travessia. Ao entrar-
se em contato com a correnteza, com as pedras do leito, com as dificuldades
em manter-se o equilíbrio e a direção voltada para a margem contrária é que
a trajetória, certamente não linear como nossas abstrações, podem sugerir,
poderá ser efetivamente determinada. [...] Nesse processo, a experiência
psicológica encerra um caráter de construção permanente, em que as
especificidades das experiências pessoais determinam a maneira como o
indivíduo constrói suas referências de mundo, incluindo aquelas através das
quais ele pode reconhecer-se como um determinado indivíduo – sua
identidade. São referências em torno das quais ele organiza a si mesmo e sua
relação com o mundo, coletivamente compartilhadas, tanto no nível
consciente quanto inconsciente (p. 45/46).

2.2 SER NEGRO(A) PARA A FAMÍLIA

Manoel é oriundo de um casal inter-racial e criado pela sua mãe negra. Ela, de tez
escura, também se identifica desse modo. Ainda assim, Manoel nos apresenta um
contraditório: “Mas... Por exemplo, durante toda a minha vida, eu sempre fui coagido a
cortar meu cabelo, porque minha mãe acha feio.” Essa frase diz que diferente de uma
expectativa, qual seja, a de aceitação dos traços negroides do filho, a mãe que “tem o mesmo
cabelo” que o seu, alisa, e ensinou-o a alisar. No nosso encontro, observei que Manoel já
apresentava seus cabelos naturais, o que é alvo de críticas por parte da mãe. Essa experiência
de rejeição dos cabelos crespos passou de geração pra geração. É assim com sua avó, que
ainda alisa e sempre se preocupou em alisar o cabelo da sua filha, mãe de Manoel. Ele nos
60

deixa claro que, o fato da sua mãe se identificar como negra não vem necessariamente de um
lugar de politização sobre essa identidade:

Eu até já tentei, eu tento falar com minha mãe sobre essas coisas, uma vez a
gente tava no hospital aí eu tava falando: “mãe você já parou pra pensar
por que todos os médicos, maioria dos médicos são brancos? Por que todas
as suas colegas de trabalho são negras? Por que a maioria das pessoas que
pegam ônibus com você são negras?” Entende? Ai eu falava com ela sobre
o racismo estrutural e sobre todas essas coisas, mas, ela não deu muita bola
pra mim, infelizmente.

Será que Manoel está nos falando que, diferente dele, sua mãe não passou pelo processo
de tornar-se negra, ainda que ele próprio tenha uma pele mais clara? Vamos observar a
pesquisa de Rafaela Magalhães (2015) sobre a identidade racial dos albinos:

Aqui cabe ressaltar que quando cruzamos os dados dos albinos (as) que se
afirmam negros, predominantemente tem escolaridade ou cursando ou com
nível superior concluído. Possuem renda maior do que os que se consideram
brancos e tem mais tempo na associação. O que nos permite inferir que esses
albinos (as) passaram por um processo de entendimento, de que a raça, não
está necessariamente atrelada a cor e sim que faz parte de um universo
maior, de entendimento das história de vida, de herança familiar e do
reconhecimento de um identidade (p. 43).

Neusa Santos Souza (1983) nos fala que ninguém nasce negro, torna-se. O que parece ser
importante ressaltar aqui, é que esse tornar-se não está apenas para negros de pele clara ou,
como vimos, albinos, mas para todos aqueles racializados como negros, inclusive aqueles de
pele preta. Porque “ser negro é, além disto, tomar consciência do processo ideológico que,
através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o
aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece” (Ibid., p. 78). Ninguém pode nascer
adotando uma identidade construída para abarcar tudo o que é socialmente indesejável, a
feiura, a imoralidade, a ignorância ou a violência inata, por exemplo. Adotar essa identidade
negra só é possível depois que o indivíduo consegue acessar outra versão desse discurso, seja
num círculo familiar de consciência racial, num espaço religioso de matriz africana, de
educação, ou mesmo com a prática política dos movimentos negros. Ter acesso a essa
possibilidade positiva de se enxergar é o que cria caminhos para o tornar-se negro.

Ser negro é tomar posse desta consciência e criar uma nova consciência que
reassegure o respeito às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a
qualquer nível de exploração. Assim, ser negro não é uma condição dada, a
priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro. [...] A possibilidade de
construir uma identidade negra – tarefa eminentemente política – exige
como condição imprescindível, a contestação do modelo advindo das figuras
primeiras – pais ou substitutos – que lhe ensinam a ser uma caricatura do
61

branco. Rompendo como este modelo, o negro organiza as condição de


possibilidade que lhe permitirão ter um rosto próprio. A outra possibilidade
alternativa, possibilidade impossível, em última instância, frágil utopia que
reduz o negro a modelar-se segundo o figurino do branco, é aquela que, ao
lhe acenar com um ideal inalcançável, engendra no negro uma ferida
narcísica por não cumprir este ideal (Ibid., p. 78).

Elza conta que cresceu com a ideia de ser “amarela”. Abro um parêntese aqui, para falar
que, quando eu disse lá atrás não identificar todos os entrevistados como negros, talvez tenha
incitado cada leitor a descobrir nas entrelinhas, quem são os não-negros dessa narrativa. Essa
parece ser uma ótima oportunidade de apontar para essa pessoa. Afinal, poderíamos pensar:
qual é o negro que vai ser chamado de amarelo? Eu não me apressaria tanto. Os resultados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo IBGE em 1976, nos
dão 135 categorias de cor (D’ADESKY, 2001), e a Pesquisa Mensal de Empregos (PME)
também realizada pelo Instituto, em 1988, nos apresentam 143 categorias, nesse sentido,
amarelo pode muito bem ser o “branco encardido” (SCHUCMAN, 2012) ou o “marrom
claro”, quem vai saber? Em Salvador, “sarará” e até “galego” são usados para referir-se a
pessoas negras, esse último termo alcança muitas vezes mulheres negras, de pele clara, com
cabelos descoloridos e loiros. A coisa de ser chamada de amarela vem desde a infância de
Elza, seus primos lhe chamavam assim:

“Ah, você não é tão negra assim”. Minha família mesmo, tipo, por eu ser do
Movimento Negro e tudo mais, esses meus primos que são mais escuros que
eu, “ah, você é a branca mais preta da família”, eles não me veem como
negra.

Elza fez como Manoel, levou para casa reflexões de raça que estavam lhe ocorrendo.
Isso alimentou um processo de transformação para sua mãe também, que passou a acolher a
autodeclarração negra para si – mesmo com a pele mais escura que a de Elza, ela não se
afirmava negra. Enquanto se colocar como pessoa negra, diante da família, não foi uma
questão polêmica para Manoel, para Elza foi. A “branca mais preta da família” ou a “negra
mais branca” como ela nos disse duas vezes, é o sinal, para nossa entrevistada, que: apesar de
não a reconhecerem negra, também não querem confrontar abertamente sua autodeclaração,
em função do seu conhecido engajamento político no movimento negro.
Essa é uma polêmica presente na vida de Davi também. Seus parentes, ele diz,
“entendem que eu sempre fui pardo e de repente eu viro negro? Como assim? Eu não mudei
de cor. Questionam como eu que não sou ‘tão escuro assim’ posso me declarar negro sendo
que existem pessoas mais retintas que se declaram pardas pro IBGE.” A família de Davi, por
parte de mãe e pai, se identifica como pardos, com exceção do seu pai, que tendo uma pele
62

“um pouco mais escura” que a de Davi, irá se identificar como negro. Quanto a sua mãe, que
tem a tez pouco mais escura que a dele, cabelos alisados e castanhos, a vejo como uma mulher
negra. Davi diz que ela se embranqueceu muito, e que isso faz com que não consiga
“estabelecer uma identidade racial pra ela”. Davi não conversa sobre esses assuntos com
seus pais, inclusive sua mãe não leva isso tão a sério. “[...] a gente nunca conversou sobre
isso de fato, mas ela acha que é coisa da juventude, coisa de jovem, pois na mente dela está
na moda se identificar como negro.”
A família de Laudelina é inter-racial. Sua mãe é branca, seu pai era “negro retinto”, e
sua irmã é negra também, com pele mais escura que a sua. Sua família não reconhece ambas
como negras, mesmo depois de Laudelina ter “assumido o cabelo”.
Dias diz que seu pai é negro e que sua mãe é amarela. Não por ela ser asiática ou
descendente desse povo, mas porque “ela é um branco pra amarelo”. É assim que as pessoas
frequentemente elaboram as categorias do IBGE.
Beatriz fala que se parece com seu pai, um filho de um casal inter-racial, enquanto sua
mãe, filha de uma indígena, “tem a pele clara, o cabelo bem preto, mas bem liso”.
Chica identifica seus pais como pretos, sua mãe tem a tez “um pouco mais escura” que
a dela, e sempre se identificou como preta. Apesar da pele clara, Carlos e Jaci não são filhos
de uma família nuclear inter-racial: os pais de ambos são “pretos” e suas respectivas mães,
“negra[s] não-retinta[s]”.

2.3 O AFROBEGE OU AFROCONVENIENTE

Os termos que intitulam essa seção são estereótipos direcionados as pessoas negras com
pele clara. Giralda Seyferth (1995) nos traz as seguintes definições:

Existem muitas definições para o termo "estereótipo” nas Ciências Sociais,


mas quase todas afirmam que designa convicções ou opiniões preconcebidas
acerca de indivíduos ou grupos, e seus elementos mais óbvios são a
simplificação e a contradição. Trata-se, pois, de "cognição seletiva"
(segundo Preiswerk & Perrot 1975), que implica em escolha limitada de
características (físicas, mentais e de comportamento) e omissões — que
qualificam ou desqualificam grupos e indivíduos. De acordo com Epstein
(1978: 14) "os estereótipos servem para reforçar a nossa percepção dos
outros, mas por sua própria natureza eles também implicam numa definição
de nós mesmos", contendo, implicitamente, uma avaliação em dois sentidos.
Em grande parte, podem constituir uma avaliação negativa e reforçar,
assim, identidades étnicas negativas (p. 184).
63

Dialogando com tal definição de “estereótipo”, temos que esses termos, de conteúdo
racializado, servem para minar as bases pelas quais as pessoas negras, com pele clara, sentem-
se apoiadas por essa identidade racial. Eles surgem em um contexto recente, que não marca
mais do que seis ou sete anos, e aparece especialmente no conteúdo produzido nas redes
sociais da Internet. Sua intenção é colocar sob suspeita o pertencimento racial desses
membros mais claros da população negra. A questão é afirmar, ao anunciá-los desse modo,
que ocupando uma posição dúbia, esses mestiços poderão se aliar a um grupo ou outro, a
mercê do que lhe é conveniente naquela circunstância. Essa denúncia não é esvaziada,
sabemos que historicamente os negros transferem tributos à branquitude (NOGUEIRA, 1985),
por exemplo, pela via do casamento inter-racial. Embora os nomes “afrobege” ou
“afroconveniente” sejam novos, sua motivação, tornar embaraçoso o lugar dos “pardos” entre
os negros, é antiga.

O segmento dos mestiços, por outro lado, é descrito pelo termo "instável"
(como, aliás, é comum a outros autores do período). Trata-se,
fundamentalmente, da crença de que os mestiços não formam uma
verdadeira raça, ou não constituem uma raça fixa — e, conforme o tipo de
cruzamento, os indivíduos podem voltar ao tipo branco ou ao tipo negro
(SEYFERTH, 1995, p. 186).

Esses conflitos parecem uma ferida aberta que sempre volta a incomodar. Em 1995 Seyferth
já tratava sobre eles. Continuando esse texto, ela falará sobre algo presente nas falas dos
nossos entrevistados, através do termo “passabilidade”. Vejamos o que a autora diz: “O
raciocínio é circular, envolvendo o estereótipo e sua causa presumível — a inferioridade
racial — sobretudo quando se procura desqualificar os trânsfugas, os mestiços que podem
‘passar por brancos’” (p.186).
Dentre os tantos textos e vídeos que encontramos na Internet, acerca desses conflitos
entre a autodeclaração e a heteroidentificação negra, selecionei esse trecho que demonstra
bem o tom com o qual esse debate se dá hoje: “Alguns negros de pele retinta já criaram ranço,
outros chamam os não retintos de afro-beges, e tem até quem diga que negros de pele clara não
sejam negros” (AD JÚNIOR, 2018).
Como falamos antes, a inexistência de raças humanas do ponto de vista biológico ou
genético, faz com que esses critérios de definição sejam essencialmente sociais, mas também
estratégico: o “calculo da relação entre identidade e diferença, entre similaridade e alteridade,
é uma operação intrinsecamente política” (GILROY, 2007, p. 125).
Esse é um tema já tão popular, que encontramos o seu primeiro registro na literatura.
Essa obra, “Marrom e Amarelo” (2019), voltará para a nossa análise em breve. No trecho a
64

seguir, o autor narra sobre os conflitos que aconteciam dentro das Universidades ao aderirem
ao sistema de cotas raciais, isso em função da patrulha de cor que os alunos negros faziam
sobre os outros alunos cotistas:

[...] primeiro foram alguns alunos preto contra alunos pardos que, nos
critérios daqueles alunos pretos, não eram suficientemente pardos, eram
pardos de araque, como vinham sendo tachados pelos alunos pretos e pardos
escuros que se organizaram em núcleos de militância negra e passaram a
circular em patrulhas de averiguação fenotípica pelos campi de várias
universidades, pardos claros sem qualquer traço fenotípico que pudesse liga-
los ao grupo étnico dos negros, pardos que não tinham, segundo os
integrantes das patrulhas, a dimensão do que é viver mergulhado até o último
fio de cabelo na geografia inóspita da hierarquia racial no Brasil, pardos
afroconvenientes, moreninhos-cor-dócil, que resolveram posar de pretos da
gema pra pegar a brecha e surfar no benefício das cotas (SCOTT, 2019, p.
26).

Manoel já foi chamado de afrobege, ele e Chica acham que essa é uma forma de
“retirar” a identidade negra daqueles que assim são nomeados, uma forma pejorativa, de
ataque. Chica diz que é um termo pobre porque “não leva em consideração muita coisa”, as
várias dimensões sobre ser negro, “só foca no tom mesmo da pele” (Chica). Davi acha que os
termos “afrobege” e “afroconveniente” foram criados para denunciar pessoas “brancas que se
apropriam de forma descarada e desonesta da cultura negra”:

[...][ela] assume sua negritude em determinados espaços, e no espaço onde


é mais conveniente se embranquecer ela se embranquece. Acho um exemplo
formidável disso a pessoa que coloca trança, todo aquele aparato de
negritude pra fazer a entrevista para fazer parte do sistema de cotas, e no
primeiro dia da universidade está lá com seu cabelo muito bem alisado, ou
cortado, no caso dos homens.

Entretanto, Davi fala que a militância está muito “aberta” hoje em dia, e com isso ele
quer dizer duas coisas: primeiro que muitas pessoas conseguem ter contato com o discurso
político dos movimentos sociais, e se incluírem nele, a partir da Internet. Em segundo lugar,
qualquer pessoa pode ter uma “formação política” pela Internet e fazer usos particulares e
enviesados de ferramentas ou discursos, propriamente políticos, através dessa mesma rede. É
que para Davi, o “afrobege” e o “afroconveniente” são termos oriundos do mundo virtual.
Isso permite que as ideias originais e legítimas, do seu ponto de vista, que criaram esses
termos, se desviem para outras interpretações impróprias, ao qualificar dessa forma, negros de
pele clara.

[...] a identidade pessoal é parcialmente formada pela imagem que o


indivíduo faz de si próprio e pela imagem que os outros fazem dele. E na
65

medida em que a imagem de um grupo é depreciada, deformada e até mesmo


ignorada por outros grupos, essa distorção engendra um reconhecimento
desigual do indivíduo, por ser ele vítima, em nível individual, desse
menosprezo que atinge o grupo a que pertence (D’ADESKY, 2001, p. 208).

Para Davi, “afroconvenientes” são brancos que cometem apropriação cultural. Negros
de pele clara não estariam “roubando”, mas tomando posse de algo que já lhes pertencem:
“não precisa ser necessariamente um artista famoso utilizando da cultura negra pra ganhar
dinheiro, às vezes é uma pessoa realmente branca que coloca um dreadlook porque acha
legal, acha hoots, e não conhece nada da história”. Manoel nunca tinha ouvido falar no termo
“afroconveniente”: “eu imagino que seja uma pessoa que tenha traços negróides, mas que
tenha uma passabilidade no meio branco”.
Passabilidade40 é uma ideia interessante, embora não seja nova41, voltaremos a ela em
outro capítulo. Aqui, basta que a gente entenda que se trata de um termo utilizado entre
ativistas, para falar sobre a possibilidade de “passar por”: a possibilidade de uma pessoa
transgênero “passar por” uma pessoa cisgênero, por exemplo, ou, no caso da fala de Manoel,
de uma pessoa com traços negroides menos acentuados “passar por” branca. Encontramos a
seguinte definição de “passabilidade” pelo Youtuber Spartakus Santiago (2019):

Pessoas que por terem algumas características brancas não são vistas como
negras em alguns lugares, e por isso sofrerem menos racismo. Pessoas
negras de pele clara sofrem menos racismo porque tem passabilidade, ou
seja, algumas pessoas não percebem que ela é negra.

Essa suposta possibilidade de trânsito entre negros e brancos, que os mais claros
possuiriam, parece estar no foco dos conflitos que envolvem o grupo. Trago novamente AD
Júnior (2018), autor de um dos textos disponíveis na Internet, acerca dessas questões:

40
“Se nos Estados Unidos a identidade negra era definida pela afro-descendência, no Brasil ela era, e continua a
ser, definida pela cor da pele e outros traços físicos, sobretudo textura do cabelo. É por isso que um pardo claro
pode “se passar” por branco, especialmente se tem dinheiro, educação, prestígio político.”
(ALBUQUERQUE&FRAGA, 2006, p. 293).
41
Veja por exemplo o controverso debate que Gates Junior (2011) enfrenta sobre Chica da Silva: “Isso aponta
para um fato crucial na história de Chica. Não devemos ver o caso dela como o de uma mestiça que ‘passa por
branca’, que é a conclusão a que nós, americanos, em geral chegamos imediatamente. O caso era muito mais
complicado do que isso. Chica da Silva era, decididamente, africana, e não haveria roupas europeias ou
imitações de comportamento que mudassem tal fato. Mas ela não estava simplesmente tentando escondê-lo. Ela
estava fazendo algo radicalmente diferente: estava avançando na hierarquia de classes. Afinal, os portugueses de
classe baixa que enriqueciam faziam praticamente a mesma coisa: se podiam, abandonavam seus costumes rurais
e adotavam os da aristocracia. Nos Estados Unidos, em contraste, nenhum montante de dinheiro ou nenhum
comportamento transformaria um negro em ‘branco’, e essa é uma diferença fundamental entre as duas
sociedades.” (p. 32).
66

Eu não posso escolher quando e onde serei negro. E se essa frase lhe
embaraça, eu tenho um pedido para você: que tal abrir pro diálogo, sentar e
discutirmos o colorismo? Seria um avanço. Podemos ser mais honestos ou
continuar fingindo que o tom pele não faz diferença nenhuma na hora do
“vamo vê”!

Chica já havia tido contato com os termos, ela pensa que o “afroconveniente” não é,
necessariamente, uma pessoa negra de pele clara, mas o negro com projeção econômica,
política ou midiática que “pauta o assunto ‘ser negro’, o assunto ‘negritude’, quando convêm,
pra ter algum tipo de publicidade”. Essa posição se alinha em grande medida com a de
Laudelina, quando ela fala que é “muita afroconveniência” usar da sua condição de minoria
para “falar o que se quer” e ter isso legitimado: “eu sinto que as pessoas querem muito ser
negras só pra poder enfim, falar o que elas querem falar”. Laudelina nos deu três exemplos
do que representam pessoas ou atitudes afroconvenientes. O primeiro é de uma artista que, a
fim de agregar um público maior para suas músicas, manipula o discurso da sua “origem”
pobre e periférica, mesmo se apresentando hoje em dia como uma mulher branca. O segundo
é o de uma Deputada Federal negra retinta, que na ocasião do impeachment da então
presidente Dilma Rousself, teria afirmado “sou uma minoria e quero que Dilma saia”, mas,
segundo Laudelina, nunca se preocupou em atuar politicamente em favor de questões negras.
Por último, ela nos fala sobre um professor negro da própria UFBA, que teria sido “machista
e gordofóbico” com uma aluna, mas foi defendido “pelo movimento negro por ser negro”.
Temos aqui situações diferentes, onde pessoas negras e não negra usariam a raça em defesa
dos seus interesses particulares, ilustrando o que Laudelina chama de “afroconviência”.
Carlos conta que “afrobege” é o seu apelido na faculdade. Ele não sente que isso foi usado
para desautorizar seu posicionamento como negro, e sim para: “trocar termos que sempre
foram usados, tipo, nunca me chamaram de pardo na faculdade, nunca me identificaram
como pardo. Mas afrobeje é um termo que eles usam”. Para falar sobre a “afroconveniência”,
Marielle usou o mesmo exemplo da artista que Laudelina citou:

[Essa artista] É uma pessoa que não abraça a identidade negra, no sentido
de querer uma melhora pro seu povo, ou no sentido realmente de abraçar
verdadeiramente. No caso dela, por exemplo, é uma jogada comercial. Ela é
uma camaleoa e ela se adapta de acordo com a quantia de dinheiro que ela
vai ganhar. E tem gente que faz a mesma coisa, tipo, eu conheço pessoas
que eu leio como brancas. Me desculpe se não é, mas eu leio como brancas,
e realmente, quando chega na faculdade, quer militar, é estrela e tal. Muita
gente também, quando passa pela transição capilar, e aí por ter o cabelo
crespo, mas não ter a pele negra, diz que é negro. E isso pra mim é
afroconveniência, porque quando você vai numa loja no shopping, por
exemplo, você não é seguido e abordado, tratado da mesma forma que eu
sou, ou que você pode ser, sabe?
67

Jaci não é a favor do uso dos termos “afroconveniente” ou “afrobege”, porque eles
seriam “mais uma coisa que serve pra nos separar e pra, tipo assim, pra fazer uma confusão
identitária, né? Do que nós somos, e tal”. Olhar essas classificações de negros claros e
escuros, como algo que causa divisão interna na comunidade negra, é um assunto que
adentraremos depois. Nesse momento, é importante falar que esse argumento é popular entre
ativistas dos movimentos negros. Eles citam frequentemente a “Carta de Lynch” para falar de
uma estratégia colonial de dominação e divisão. Traremos sucintamente esse debate aqui,
através de Gilroy (2007):

Alguma coisa do espírito de nossos antepassados escravos precisa ser hoje


adotada, das entranhas do nosso ser, devemos cantar com eles: "Antes que eu
me tome escravo, serei enterrado na minha sepultura, irei embora com meu
Senhor e serei livre", Este espírito, esta força, esta sensação resistente de ser
alguém é o primeiro passo vital que o negro deve dar ao tratar de seu dilema.
Para superar este conflito trágico, será necessário que o negro encontre uma
nova auto-imagem. Os faraós tinham uma estratégia favorita e efetiva de
manter oprimidos os seus escravos: mantê-los brigando entre si. Mas quando
os escravos se unem, os Mares Vermelhos da história se abrem e os Egitos
da escravidão desmoronam. Martin Luther King, Jr., Where Do We Go From
Here: Chaos or Community? (Harper and Row, 1967, apud Ibid., p. 124).

Jaci entende que o “afroconveniente” e o “afrobege” também não servem para a


denúncia de pessoas brancas que manipulam um pertencimento racial em benefício próprio,
porque, pensando sobre os casos de Lucas Soares Fontes42 e Rachel Dolezal43, ela pergunta
retoricamente: “isso seria pra mim uma afroconveniência, mas até que ponto? Se essas
pessoas não são afro?”. Trago outro texto disponível na Internet, que tive a oportunidade de
ler, e que apresenta um termo cujo conteúdo é similar:

Afrodecandentes — como chama um amigo —, costumam ser pessoas


pardas (afrodescendentes) que desfrutam da “passabilidade” branca e até
mesmo brancas – na concepção brazuca -, que desfrutam de todos os
benefícios inerentes à branquitude, mas que tem a pachorra de se
apropriarem da identidade e da cultura negras por mera conveniência. Essas
pessoas tendem a corroborar a fantasia da “democracia racial” inventada
para isentar a elite branca de responsabilidades (DUARTE, 2015).

Com tudo isso, quero mostrar que o “afroconveniente” e o “afrobege” marcam


intenções dúbias. Veja que não há consenso sobre o que eles querem dizer. Por um lado, o

42
Rapaz branco que foi exonerado do concurso público do INSS por fraudar o sistema de cotas para negros. Ver
<https://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noticia/2019/06/10/servidor-e-exonerado-do-inss-em-juiz-de-fora-por-
fraudar-sistema-de-cotas-em-concurso-publico.ghtml>.
43
Mulher branca que assumia identidade negra e cargo em instituição do movimento negro dos Estados Unidos,
até ser descoberta como branca. Ver <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-39413853>.
68

“afroconveniente” é legitimado pelos próprios entrevistados, que usam do termo para apontar
comportamentos ou pessoas que, para eles, merecem o título. De outro modo, Davi
testemunha o uso dentro da própria comunidade negra, contra seus membros mais claros. É
útil, para esse momento, algumas imagens que recolhi em redes sociais da Internet. Elas
mostram os contextos em que esses termos são reivindicados.

Figura 2 – Disputas em torno do limite da cor, “negresco”. Printscreen da publicação em 2020.

Fonte: Facebook.

Figura 3 - Disputas em torno do limite da cor, “afrobege”. Printscreen da publicação em 2020.

Fonte: Facebook.
69

Figura 4 – Nem filho branco, nem filho afrobege. Printscreen da publicação em 2020.

Fonte: Twitter.

Figura 5 – Não tem opressão no termo “afrobege”. Printscreen da publicação em 2020.

Fonte: Facebook.
70

Figura 6 – Camila Pitanga, “blackfishing brasileira”.

Fonte: Instagram.

Esse perfil de Instagram postou essa mesma montagem de fotos duas vezes com as
seguintes legendas:

(1) Aviso importante sobre o sistema de cotas.

Atenção vestibulandos que usam ideologia política, ou, a questão de


representatividade para a sua autodeclaração racial. Nesse sentido,
mesmo em razão da sua ancestralidade e indentificacão social, um
tribunal racial de heteroidentificação de fenótipos pode não te
considerar, por exemplo, preto; como foi o meu caso em questão. Nesse
contexto, tenham muita atenção na sua leitura estética. Dentro de qual
étnia que as pessoas te vêem? Se você for pardo, ou, mestiço, não
adiantará nada você dizer que tens alguma descendência preta seja ela
direita, seja ela indireta. Pois, o constrangedor tribunal racial está ali
para avaliar as suas características físicas. Não adianta nada você se
preparar rigorosamente para o vestibular, obter um resultado bom, e se
tiver usado uma ação afirmativa que você não se encaixa; saiba que
você corre uma grande chance de perder a sua varga, ou ainda, pior se
acusador criminalmente por fraude. É pra vocês oportunistas que
pregam um bronzeado e usa-sem da apropriação cultural na hora de
passar por esse tribunal racial, que vocês tomem vergonha na cara e
reconheçam os seus privilégios nessa sociedade estruturalmente racista.
Além disso, fraude é crime.

(2) @caiapitanga a Blackfishing brasileira campeã da apropriação cultural


que a militância negra sempre dar biscoito. Na lista cabem outros
nomes como @rayzanicacion
que é vice campeã, a digital influencer que ficou milionária em cima da
pauta 'Negra'.
@caiapitanga lacrou muito em cima da pauta 'negra' fazendo diversos
comercias publicitários e participando de programas de televisão no
qual ela representava a mulher preta brasileira. Assim
como @caiapitanga tem muitos pretos de Taubaté por aí, que compram
a narrativa do preto oprimido de #WAKANDA. São pessoas pardas,
71

mestiças e brancas que compram a pauta da militância cirandeira e


ganham muita visibilidade e dinheiro em cima disso.

Figura 7 – Bege e begice. Printscreen da publicação em 2020.

Fonte: Instagram.

Esses conflitos estão presentes na Internet, na literatura, na arena política dos


movimentos sociais negros, para demonstrar que as questões de identidade e raça não são
coisa qualquer:

A linguagem distintiva da identidade aparece novamente quando as pessoas


buscam calcular como o pertencimento tácito a um grupo ou uma
comunidade pode ser transformado em estilos mais ativos de solidariedade,
quando elas debatem sobre o lugar em que se devem constituir as fronteiras
em torno de um grupo e como devem ser impostas - se de fato forem
necessárias. A identidade se torna uma questão de poder e autoridade quando
um grupo procura realizar a si próprio de uma forma política (GILROY,
2007, p. 125).

Como os depoimentos e imagens mostram, esses diálogos sobre identidade racial têm se
dado em um contexto que envolve, frequentemente, hostilidade. Isso não é tão difícil de
72

compreender, é nesse momento em que as políticas afirmativas estão se ampliando44 e fraudes


nesse sistema continuam a acontecer. Adentraremos esse assunto em outro momento.

2.4 PRIVILÉGIO

Manoel acha que ser negro de pele clara dá ao indivíduo aquela “passabilidade” da qual
falamos antes, e isso seria uma forma de privilégio. Já falamos anteriormente sobre os
processos de racialização, mas cabe aqui retomar um argumento. Ser negro significa ser
racializado como uma pessoa negra. Essa racialização tem origem histórica na forma como os
europeus classificaram indígenas (nomeados inicialmente como negros da terra), africanos, e
outros povos, como menos humanos ou não-humanos. Por isso, historicamente, a racialização
envolve um processo complexo que danifica a noção de ser humano, e, consequentemente,
lhes nega direitos. Neste sentido, ser negro na diáspora, e aqui estamos falando de Brasil,
passa por um testemunho pessoal e coletivo de sofrimento e falta de acesso a recursos:
racismo.
Ativistas, intelectuais, lideranças religiosas, e artistas negros, têm se esforçado em
avançar a narrativa, para compor a identidade racial para além do que falta, da violência, do
que se negou, ou seja, para além do racismo. É isso que Jurema Werneck (2008) nos convida
a fazer no célebre texto “Nossos passos vem de longe”. Nessa escrita, as Yabás45 aparecem
como referência sobre ser mulher negra, sobrepondo-se aos moldes que o racismo criou, como
o papel da mulata. Jurema Werneck (2008) não quer que a gente “deixe o racismo pra lá”. O
racismo é um fato que não dá para ser ignorado, seu convite é que pensemos em mais coisas
que nos definem, apesar dos pesares. É por isso que falar sobre privilégio para negros de pele
clara deve ser feito com cuidado. Como um indivíduo racializado pode ter privilégio, tendo
em mente que estar submetido à racialização é ter sua própria humanidade colocada em
suspenso? Manoel fala sobre privilégio através da história de uma amiga de uma amiga “que
se diz preta, mas tem cabelo liso”:

Ela fala de como na família dela é... As pessoas tomam isso como algo que
salvou entende? Como se ela ter nascido com o cabelo liso fosse melhor do
que se ela tivesse nascido com o cabelo crespo. [...] Ela, por ter o cabelo
liso, ela não vai sofrer o mesmo preconceito que uma pessoa que tem cabelo

44
Temos como referência principalmente a Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012, que institui sobre a reserva de
50% das vagas das Universidades e Institutos federais; e a Portaria Normativa nº 13, de 11 de maio de 2016 que
trata sobre cotas na pós-graduação.
45
Orixás femininos, divindades de religiões de matriz africana.
73

crespo. [...] Eu, por ter pele clara, eu não vou sofrer o mesmo preconceito
que a pessoa que tem pele preta, entende?

Observemos as bases pelas quais essa noção de privilégio se coloca na fala. Ser preto de
cabelo liso conferiria privilégio, tal como ser negro de pele clara, mas como isso repercute nos
indicadores sociais? Segundo o dicionário online Michaelis46 privilégio tem os seguintes
significados:

sm
1 Direito, vantagem ou imunidades especiais gozadas por uma ou mais
pessoas, em detrimento da maioria; regalia.
2 Oportunidade ou permissão dada a certas pessoas ou coisas com
exclusividade.
3 Riqueza ou posição econômica e social acessível a uma minoria.
4 Diploma que contém a concessão de um privilégio; patente.
5 Dom natural do corpo ou do espírito; talento.
6 JUR Posição de superioridade, amparada ou não por lei ou costumes,
decorrente da distribuição desigual do poder político ou econômico.

Num texto anterior, disponibilizado no site do Instituto Geledés, comecei a pensar sobre
isso. Esse texto antecedia uma parte da escrita desse trabalho. Dentre outros dados da
pesquisa, citei alguns indicadores sociais pra pensar o privilégio dos negros de pele clara:

Segundo o IBGE (2010) a taxa de desempregados no Brasil é de 8,85% para


pardos, 8,93% para pretos e 6% para brancos. No mesmo período o Instituto
registra que 45,47% dos pardos formam a população de baixa renda –
definida como àquela que possui uma renda menor que a metade de um
salário mínimo, os pretos são 41,10% dessa população e os brancos 23,53%.
A taxa de analfabetismo de pretos é 14%, 12,6% para pardos e 5,7% para
brancos. Entre 2007 e 2017 o Sistema de Informações sobre Mortalidade
registrou que dos homicídios que vitimizaram homens, 64,6% eram de
homens pardos (BACELAR, G.,2020).

O que isso nos faz pensar: ser negro e ter o cabelo liso em detrimento de um cabelo
crespo, ser negro e ter a pele clara (ou menos escura), não mobilizam uma condição estrutural
de privilégio. Esse é um ponto denso e extremamente importante para o que estamos tratando
nessa dissertação, porque “privilégio” é uma palavra corrente e moeda de troca na negociação
do “lugar de fala”. “Eu acredito que há necessidade de ela reconhecer os privilégios no
espaço que ela está”. É uma fala de Manoel sobre uma orientação de comportamento que
deve ser adotada por pessoas negras de pele clara. Ela é exemplar, porque é quase um mantra
direcionado para esse grupo. Quando eu trato essa frase como moeda de troca, é porque ela

46
Disponível em <https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/privilegio>.
74

funciona da seguinte forma: sendo eu, sujeito pardo, um negro menos legítimo, entrego a
minha declaração de privilégio para estabelecer uma posição menos desconfortável sobre
minha cor, livrando-me de qualquer possibilidade de acusação de “afroconveniência”. Não
serei “descoberto”, estou imediatamente desnudando a minha posição de vantagem.
Manoel entende que o lugar privilegiado dos negros de pele clara é relacional. Veja:
“[...] nas relações de um emprego ela vai ter um privilégio, mas se, por exemplo, se colocar
essa mesma pessoa, ao lado de pessoas brancas, ela vai ser a desprivilegiada daquele
espaço, entende?” Ou seja, comparados aos brancos, negros de pele clara e escura estão
“fora”, mas se a escolha do cargo estiver entre o mais claro ou o mais escuro, a vaga é do
mais claro. Apesar dessa conclusão, o discurso de Manoel se contradiz quando, ao pensar de
forma mais ampla sobre privilégio, ele começa a refletir sobre a sua própria condição:

Manoel: Então eu acho necessário, por exemplo, dependendo do espaço que


ela está, reconhecer esse privilégio, mas por exemplo, ela também tem uma
passabilidade de poder frequentar um espaço, dependendo da pessoa,
dependendo do fenótipo da pessoa, de poder frequentar um espaço, onde
pessoas brancas, majoritariamente frequentam, sem passar pelos mesmos
transtornos que uma pessoa negra passaria.
Gabriela: Entendi, você, por exemplo, conseguiria? Passar ou frequentar
esses lugares brancos sem transtorno?
Manoel: Depende do lugar.
Gabriela: Entendi, e isso, você já experimentou na sua vida? De, por
exemplo, frequentar ou passar por um lugar majoritariamente branco, sem
transtorno, você já experimentou isso?
Manoel: Depende também, porque, por exemplo, eu já estive em um espaço
onde a maioria era classe média, e eu não me sentia confortável naquele
espaço, entende? [...] mas isso também envolve outras questões como, por
exemplo, a forma como você se veste, entende? [...]Depende da imagem que
eu vou estar passando pras pessoas, se eu for em um local de classe média e
eu for de bermuda e sandália, eu não vou ser ouvido da mesma forma que eu
vou, se eu for padronizado, entende?
Gabriela: Uhum, então tá, se você for em um lugar, sei lá, um restaurante
caro e se você for mal arrumado, entre aspas, você não vai ser bem tratado.
Manoel: Eu acho que só por eu ir em um restaurante caro, independente da
minha roupa, eu já vou ser, já não vou ser mais tão bem tratado como uma
pessoa branca.

Ouço e leio o tempo todo discursos em que pessoas negras falam sobre admitir seus
privilégios enquanto membros mais claros desse grupo. No texto do Portal Geledés, “O
colorismo e o privilégio que ninguém te deu” (2020), eu falo que o discurso sobre o colorismo
está formado em um regime de verdade. Eu quero dizer que, embora não tenhamos tradução
75

do livro de Alice Walker47, o conceito é reproduzido por todos os vídeos e textos que vi até
aqui, como sendo um sistema que beneficia os negros mais claros em detrimento dos mais
escuros. Para as pesquisas que pude acompanhar, realizadas nos/sobre os Estados Unidos
(HUNTER, 2007; MONTEIRO-FERREIRA, 2015), país de origem do termo, essa definição
de colorismo faz sentido. Estatisticamente, a desigualdade entre pretos e lightskin é expressiva
lá. Mas para o Brasil, o conceito foi acolhido sem nenhuma tradução que pensasse as reais
condições de semelhança ou desigualdade entre pretos e pardos aqui, ou em quais setores da
vida social essa suposta desigualdade se manifesta. Falaremos sobre isso em outro momento,
basta aqui que o leitor desse trabalho compreenda as minhas intenções. Eu queria ir um pouco
mais fundo na sentença que todo mundo repetiu. “Pensando sobre sua vida, meu entrevistado,
diga onde esse privilégio se manifesta”. É aí onde as contradições aparecem. Isso me importa
saber porque, eu, depois que comecei a me aproximar das narrativas de mulheres negras em
suas dimensões econômica, afetiva, psicológica e profissional-acadêmica, me identifiquei
com suas experiências. Vi que havia vivido ou ainda estava imersa, em tudo aquilo que elas
falavam sobre si, ou que traziam como reflexão aberta para toda a comunidade negra. Essas
narrativas, inclusive, fizeram com que a minha afirmação negra acontecesse de maneira
politicamente ativa no sentido da luta antirracista. Esse momento em que assumo a identidade
negra, e me torno politicamente engajada nas questões raciais, corresponde ao segundo e
terceiro estágio do processo de tornar-se negro, narrado por Ricardo Franklin Ferreira (2000).
Algum tempo depois de assumir essa autodeclaração, é que começo a me conectar com os
embates contra os negros mais claros. Embates que desvalidavam essa identidade pelas
supostas prerrogativas de privilégio que teriam.

However, light skin may be viewed as a disadvantage with regard to ethnic


legitimacy or authenticity. In many ethnic communities, people view darker-
skin tones as more ethnically authentic. For example, light-skinned and
biracial people often report feeling left out or pushed out of co-ethnic
groups. They report other people’s perceptions of their racial identity as a
common source of conflict or discomfort (Brunsma and Rockquemore
2001). The task of ‘proving’ oneself to be a legitimate or authentic member
of an ethnic community is a significant burden for the light-skinned in
Latino, African American, and Asian American communities. For some
people of color, authenticity is the vehicle through which darker-skinned
people take back their power from lighter-skinned people (Hunter 2005 apud
HUNTER, 2007, p. 8).48

47
In Search of Our Mothers’ Garden (1983), primeira vez que o conceito aparece.
48 “No entanto, a pele clara pode ser vista como uma desvantagem em relação à legitimidade ou autenticidade
étnica. Em muitas comunidades étnicas, as pessoas consideram os tons de pele mais escuros mais etnicamente
autênticos. Por exemplo, pessoas de pele clara e birracial freqüentemente relatam que se sentiram excluídas dos
seus grupos étnicos. Eles relatam as percepções de outras pessoas sobre sua identidade racial como uma fonte
76

Retomando a fala anterior de Manoel, é interessante perceber como ele supõe a melhor
aceitação dos negros de pele clara em determinados ambientes, e ao mesmo tempo não pensa
que ele mesmo seria bem recebido. Outro ponto é que, todo mundo irá reconhecer que quanto
mais brancos estiverem em um lugar, maior será o contraste entre eles e os não brancos. Se
isso é verdade, não pode ser verdade também que os ambientes brancos são mais toleráveis
aos negros claros, porque as duas afirmações se anulam.

Davi: O critério objetivo pra mim é simples: Se você conviveu com pessoas
brancas e você, pelo seu fenótipo, não conseguiu se encaixar naquilo. E
você percebe que é um fenótipo que te aproxima da negritude, isso pra mim
é suficiente pra te encaixar na categoria e negro.

Essa fala de Davi é muito ilustrativa. Mostra como essa experiência de negros num
meio branco é suficientemente clara para distinguir brancos de não-brancos. Recentemente
um crime tomou destaque nos principais jornais brasileiros: o motoboy Matheus Pires
Barbosa foi humilhado por um cliente branco em São Paulo

Figura 8 – O caso de Matheus Pires, notícia do Extra Globo, 2020.

Fonte: EXTRA GLOBO. Motoboy humilhado em São Paulo ganha 1,4 milhão de seguidores, moto nova e
vaquinha chega a R$ 112 mil. 2020. Disponível <https://extra.globo.com/tv-e-lazer/treta-show/motoboy-
humilhado-em-sao-paulo-ganha-14-milhao-de-seguidores-moto-nova-vaquinha-chega-r-112-mil-
24575976.html>. Acessado em 20 set. 2020.

comum de conflito ou desconforto (Brunsma e Rockquemore 2001). A tarefa de "provar" que é um membro
legítimo ou autêntico de uma comunidade étnica é um fardo significativo para os de pele clara nas comunidades
latinas, afro-americanas e asiático-americanas. Para algumas pessoas de cor, a autenticidade é o meio pelo qual
as pessoas de pele mais escura recuperam o poder das pessoas de pele mais clara” (tradução nossa).
77

Essa história gerou uma enorme polêmica, porque embora o cliente fale, dentre outras
coisas, que Matheus tem inveja “disso aqui” apontando para a pele branca, o público não foi
consensual ao heteroclassificar Matheus como negro. A notícia foi propagada como caso de
racismo, mas teve quem dissesse que esse era um conflito de pureza racial, não racismo. A
minha intenção não é trazer uma posição sobre a classificação racial de Matheus, o ponto é
que, sendo ele negro ou não, na relação com o cliente branco de classe alta, foi discriminado
racialmente. Ou seja, mesmo tendo a pele clara e sendo identificado por algumas pessoas
como um homem branco, Matheus difere da branquitude que se quis legítima nessa ocasião,
isso nos faz pensar sobre a suposta “passabilidade” dos negros de pele clara entre brancos.

Dias: Olha, uma coisa que eu acho que é uma diferença de uma pessoa de
pele bem escura e de uma pessoa que não branco, mas uma pele um pouco
mais escura, mas tonalizada igual a minha, os pardos, eu acho que é essa
questão do preconceito entendeu? Que muitas vezes as pessoas não sofrem
tanto preconceito igual uma pessoa negra. Não tem olhares virados...

Dias é aquele rapaz que se declara como pardo e que foi reprovado pela Comissão. Ele
me confessa nunca ter sofrido “preconceito”, mas acredita estar suscetível a ele: sempre que
houver uma oportunidade para um cargo, por exemplo, e concorrer “uma pessoa da minha cor
e da cor da minha prima [branca], claro que vão escolher ela”. Dias reproduz uma ideia de
discriminação que não pôde exemplificar na sua própria vida.
Elza me dá um exemplo de como a experiência de negra de pele clara lhe conferiu
privilégio. O exemplo está no campo dos afetos. Ela conta de sair para o Carnaval de Salvador
com duas amigas: uma italiana branca e outra também de Salvador, preta. A preferência, no
momento da paquera, era para a mulher branca e em segundo lugar para Elza, enquanto a
amiga de pele preta não era requerida por ninguém. Somado a isso, ela nos traz outra
lembrança, durante o seu período de escolarização:

Na escola já passei pela situação de uma professora gostar mais de mim por
causa do meu tom de pele e me elogiar mais do que do outro colega que se
esforçava mais do que eu ou igual, sabe? “Ah, não gosto dele”, entendeu?
“Ah, ele pergunta demais”, já passei por isso. Sendo que eu também
perguntava demais.

Chica também fala sobre o privilégio que negros de pele clara teriam:

Eu acho que é o privilegio de ordem estética, a questão da autoestima,


porque como eu falei, você se aproxima mais de um padrão, né? Que tá pré-
estabelecido, quando você vai procurar emprego, por exemplo, eu acho que
tem essa diferenciação de uma pessoa que é muito escura. E não só o fato de
ser escura, como corresponder mais a uma identidade, como eu te falei, de
78

ser de favela e tal e coisa. Então eu acho que tem, acho que as coisas tem
que andar juntas. Não é só a cor, mas a identidade da pessoa enquanto
pobre, tal, também é muito relevante.

Chica entende existir uma condição de privilégio dos negros de pele clara em relação às
concepções sociais de estética e às oportunidades de trabalho. Ela fala também como piadas
racistas geralmente são direcionadas aos negros mais escuros. Sob pena de ser repetitiva, eu
conservo o uso da palavra privilégio em detrimento de sinônimos, como poderia ser a palavra
“vantagem”, porque “privilégio” tem um peso político que outros termos não alcançam. Para
que eu possa desenvolver um pensamento mais adiante sobre isso, preciso reproduzi-la nos
contextos em que são usadas pelos meus entrevistados.

Chica: Enfim, nas relações também no caso da escola, eu apesar de ser de


pele clara, eu também era preterida porque eu reunia outras coisas que não
eram, digamos, atraentes. Eu sempre fui uma menina muito gordinha na
época da escola e tal e coisa, então eram outras coisas que vão reunindo.
Gabriela: Entendi, mas na sua vida, você percebeu esse privilégio em quê,
por exemplo?
Chica: Na minha vida particularmente não, eu falo isso olhando no geral,
como você falou, entende?
Gabriela: Uhum.
Chica: Mas na minha vida, particularmente, eu não consigo lembrar agora
de nenhum caso em que eu tenha sentido ser um pouco mais privilegiada por
ter pele clara. Mas é como eu tô te falando, eu reconheço que eu possa ter
esse privilégio, talvez eu só não tenha percebido, entende? Mas, por
exemplo, eu lembro que como minha família ela é bem, digamos, misturada
[...]. Eu sou uma das mais claras, digamos assim, tem pessoas da minha cor,
tem pessoas mais escuras. Você ouvia por uma tia minha, que minha mãe
nem gosta muito, ela falou uma vez que foi bom o fato d’eu ter nascido mais
clara, que meu pai é mais retinto do que minha mãe, mas eu nasci mais
clara. Pelo fato deu ter nascido mais clara, porque limpou a barriga. [...]
Mas eu cheguei a ouvir isso, mas assim, em relação a ter uma vantagem por
ser mais clara, eu mesma assim, nunca senti que tive, entende?
[...]
Gabriela: Para pessoas de pele clara, por exemplo, você já viu uma
piadinha assim, direcionada pra eles?
Chica: Eu já ouvi, mas, assim, eu ouço mais pra pessoas retintas entende?
[...] Vejo pessoas da minha cor, por exemplo, da minha cor, da sua cor,
fazendo esse tipo de piadinha pra pessoas retintas, então você percebe que
há essa diferenciação entende?
[...]
Gabriela: E em relação, por exemplo, as meninas negras de pele clara da
sua escola? Elas eram escolhidas?
Chica: Sim, sim, mas quando elas correspondiam não só a isso. Quando elas
também correspondiam a outros, digamos, outros parâmetros estéticos.
Como por exemplo, ser mais magra tal e coisa.
79

Quando Chica se volta para si, não consegue sustentar a generalidade com a qual afirma
o “privilégio pardo”. Sobre a época da escola, ela fala o seguinte: às vezes as meninas negras
de pele clara eram escolhidas para um relacionamento. Não a própria Chica que era
“gordinha”, como se descrevia. As meninas precisavam ter outros atributos do padrão
estético, como um corpo magro. Assim também era para as meninas negras escuras, segundo
Chica, se elas tivessem esses outros atributos, seriam escolhidas. Quanto a isso, nossa
entrevistada ressalta uma diferença: quando as meninas negras escuras eram escolhidas,
geralmente não era para o namoro, mas para um encontro informal. Essas contradições
aparecem o tempo todo na fala dos nossos entrevistados:

Chica: Eu acho que é justamente, pelo fato que existe essa... Eu acho que é
“colorismo” que chama, né? Eu acho que existe, existe essa questão de ter
uma diferenciação do mais retinto pro menos retinto, mas é muito sutil em
relação ao racismo entre uma raça e outra mesmo, porque existe essas
diferenciações por causa da miscigenação, mas todos ainda fazem parte de
uma mesma identidade racial, que tá contrapondo com outra. Então eu acho
que essa diferenciação entre uma raça e outra é muito mais gritante, muito
mais latente do que essas diferenciações menores, então o fato de você ser
um pouco mais claro e de você gozar um pouco mais de privilégio por
chegar um pouco mais perto do ideal branco, não te faz isento de sofrer
racismo, porque você não deixou de ser negro, lido como negro, entende?
[...] Quando eu “pautei” a questão do “colorismo” e a questão do
privilegio que eu percebo, eu fiquei repetindo a questão do sutil, justamente
porque eu não percebi isso na minha vida. E porque eu sou muito rechaçada
quando eu digo que não acho que seja uma questão, digamos, relevante do
ponto de vista do debate racial. Porque eu acho que é justamente o que eu
falei, a dicotomia entre uma raça e outra é o que realmente importa. [...]
Mas, outra coisa também que eu tenho delicadeza em abordar é que assim,
pelo fato de eu não ter visto isso na minha vida e deu não ver nas pessoas
que eu conheço, eu penso “poxa eu posso tá olhando só pela minha bolha”.
Talvez num ponto de vista geral, realmente haja esse privilégio.

Trago, nesse momento, alguns comentários de leitores a respeito do texto “O colorismo


e o privilégio que ninguém te deu” (2020). Esses comentários foram feitos no próprio site em
que está disponível, o site do Instituto Geledés. Eles fazem coro à Chica, quando afirma ser
“rechaçada” quando se motiva a discutir a condição de pardos e pretos de outro lugar.
80

Figura 9 – (1) Comentários sobre o texto “O colorismo e o privilégio que ninguém te deu” no site do
Portal Geledés. Printscreen da publicação em 2020.

Fonte: Portal Geledés.

Figura 10 – (2) Comentários sobre o texto “O colorismo e o privilégio que ninguém te deu” no site do
Portal Geledés. Printscreen da publicação em 2020.

Fonte: Portal Geledés.

O fato de Chica, por exemplo, não reconhecer privilégio na vida dela e das pessoas
próximas, não anula o privilégio que Elza nos conta a partir da própria trajetória. O ponto, nos
parece, é que as experiências dessas pessoas negras às vezes foram pautadas em situações de
vantagem, às vezes não. Privilégio, portanto, não é a condição fundamental que estrutura a
vida de negros claros. Vejamos mais um exemplo sobre esse debate:

Davi: Eu vou pegar um exemplo bem bobo. Vou falar da questão da infância
novamente e dos menininhos que eram mais bonitinhos e que eram mais
feinhos. Eu não me encaixava no grupo da branquitude, dos meninos mais
bonitos da escola, entretanto eu não fazia parte dos mais feios também, isso
fazia com que eu tivesse um certo respeito maior entre os meninos que um
menino mais retinto não teria. Pensando nisso, na vida cotidiana, por
exemplo, eu moro num bairro de classe média baixa e eu ando aqui à noite,
venho do trabalho com roupa de trabalho e percebo que passam viaturas,
me olham um pouco mais, reduzem velocidade, mas não é a mesma cosia
que percebo com colegas que são mais retintos e que andam no mesmo
espaço que eu, embora estivessem tão bem vestidos ou mais bem vestidos do
que eu. Então a forma como eu sou observado (embora aqui no espaço onde
eu more eu não tenha sofrido nenhum tipo de violência pela polícia) faz com
que eu perceba o grupo que eu não me encaixo, embora não seja uma visão
tão violenta quanto a de pessoas mais retintas. Acredito que as pessoas que
são mais retintas ficam mais apreensivas, pois o olhar é muito mais
81

meticuloso, são vistos como marginais de forma muito mais fácil do que
como eu sou visto.

Essa não é uma situação igual para todos os negros de pele clara. Por exemplo, Caio é
um amigo meu. Conversamos sobre o meu trabalho e, informalmente, ele contou um pouco de
algumas experiências da sua vida que cabia pensarmos. Uma delas foi a memória de um
encontro que teve com seu primo numa rua do Centro de Salvador. O primo, descrito como
negro retinto, estava arrumado de forma a ir para o trabalho. Caio estava de passagem, sem
compromissos naquele dia, e com uma roupa mais informal. Caio é um negro com pele clara e
cabelos dreadlooks. A polícia encostou e Caio foi revistado, seu primo não. Eu era, durante o
Ensino Fundamental II em escola particular, uma das meninas “mais feias da sala”.
Periodicamente corria uma lista feita pelas meninas “mais bonitas” com vários critérios:
corpo, pernas, rosto, e perguntas mais gerais como: a mais bonita ou a mais feia, para que os
meninos votassem. Eu e outras meninas negras claras e escuras estávamos entre “as mais
feias”. Nenhuma menina branca estava nessa categoria. Davi não foi “o mais feio da sala”,
mas eu fui. A minha experiência ou a de Caio não desvalidam a de Davi, e vice-versa. Talvez
essa seja a grande potência da Antropologia nessa pesquisa: mostrar que existem matizes
dentro de constatações como racismo e privilégio (como informa o colorismo e as hierarquias
de cor no interior da população negra).
Por um lado, podemos investir nas entrevistas e nos indicadores sociais para mostrar
que a condição de vida de pretos e pardos é similar. Isso é uma descoberta que marca o final
da década de 70 e embase todas as metodologias de pesquisa que se preocuparam com os
indicadores sociais atravessados pela cor ou raça a partir daquela década
(WESCHENFELDER&SILVA, 2018). Figueiredo (2005) nos fala o seguinte:

Os movimentos sociais negros de um lado e de outro a abordagem de


pesquisadores como Hasenbalg (1979) que se empenharam em demonstrar
que independente da auto-classificação da cor e da diluição de categorias
polares como aquelas existentes nos Estados Unidos, os não-brancos,
categoria utilizada por Hasenbalg, estavam em condições inferior e
diametralmente oposta aos brancos nos indicadores de educação, renda e
escolaridade (FIGUEIREDO, 2005, p. 156).

A condição social de similaridade entre pretos e pardos é uma conclusão de mais de 40


anos que não resolve, por si só, os dilemas que estamos tratando aqui. A etnografia nos dá a
possibilidade de olhar por dentro as diferenças internas do grupo, captadas pelo cotidiano do
olhar, e verbalizadas por um senso comum que divide “negros” e “morenos”/pardos, ainda
que essas diferenças sejam mais ou menos invisíveis nos dados censitários. A etnografia nos
82

dá ainda a chance de problematizarmos mais uma assimilação apressada de um conceito


estadunidense para o contexto brasileiro, o colorismo, e, como sempre acaba sendo o trabalho
antropológico, nos ajuda a desmistificar o discurso único. Afinal “é preciso afastar-se de
algumas interpretações e entender que a identidade coletiva não corresponde necessariamente
a um modelo estanque em que os sujeitos estejam preconcebidos” (SILVA, V., 2016, p. 157).
Talvez o resultado de todo o trabalho de Antropologia seja o de complicar os discursos sobre
a realidade, até porque, intencionando escrever sobre a vida, sabemos o quanto ela extrapola a
política, a teoria, o dogma e a imagem. O grande prazer então, não está na surpresa final, mas
no percurso. Repito que o meu enquadramento aqui, está entre um grupo de pessoas negras.
Eu não quero trazer para cá, preocupações relativas às vivências de, por exemplo, pessoas
brancas que possuem outros marcadores sociais em desalinho às expectativas padrão.
Acredito que essas questões também são importantes e merecem ser tratadas. No entanto, eu
penso também que a concepção de pessoa, para indivíduos brancos, se dá por outra via, pela
universalidade, não da racialidade. Outras pesquisas talvez possam dar conta de fazer os
cruzamentos que estou fazendo aqui, levando em consideração diferentes pertencimentos
raciais, esse trabalho, no entanto, tem um limite desenhado em torno dos autodeclarados
negros. Por isso afirmo que, entre pessoas negras, ou seja, entre pessoas racializadas,
condições de vantagem/desvantagem obedecem às expectativas de diferentes marcadores
sociais em função de diversas configurações de contexto. Retomando a entrevista de Davi, ele
também terá críticas sobre o termo “privilégio”.

Davi: [Apensar de reconhecer, no trecho anterior, que negros retintos estão


mais vulneráveis à ação policial] Eu acredito que privilégio mesmo é eu
andar tranquilamente como outras pessoas brancas que moram também no
mesmo espaço que eu, e que olham o carro da polícia e pensam: “nossa,
que bom, a polícia está aqui”. Eu não consigo ter totalmente isso. Então
acho que, não é que não haja diferença, é porque eu acho privilégio uma
palavra pesada, pois privilégio pra mim é não passar em nenhum grau por
esse tipo de situação.

Carlos chama esse privilégio dos negros claros de uma “uma discriminação reduzida”,
ele e Marielle classificam-no como sendo “mais sutil”.

Marielle: Na verdade não sei se chama de privilégio… É um pouco dúbio,


não sei.
Carlos: É um castigo reduzido.
Marielle: É, um castigo reduzido. É como se ao invés da gente tomar
chicotada, a gente ajoelhasse no milho, não sei.
83

Marielle percebe que houve situações de privilégio na sua vida. Como Elza, esse
privilégio se manifesta principalmente nas escolhas afetivas. Ela e Carlos são colegas de
classe na UFBA, e concordam que pessoas mais melaninadas são, na sua graduação, menos
ouvidas. Marielle fala que é privilegiada ainda por nunca ter sido abordada pela polícia,
mesmo sendo a abordagem policial, uma prática recorrente no seu bairro. Pergunto pra ela se
isso não teria mais relação com seu gênero, mas ela não concorda:

Marielle: [...] tem mulher preta retinta que é chamada de mulher de


vagabunda, de que não prestam, dessas coisas, que é muito mais maltratada
pela polícia do que eu, por exemplo. Eu preciso me esforçar mais pra
chamar a atenção deles do que elas, sabe?
Gabriela: Entendi.
Carlos: Eu reconheço o privilégio por ter a pele menos retinta também
nesses setores, sabe? A passabilidade que um pardo tem é visível, sabe? O
fato de me lerem como branco, como eu falei, em alguns espaços é visível
que tem privilégios, sabe? De abordagem. Eu me reconheço como uma
pessoa negra, mas nunca fui abordado pela polícia, sendo que se você for
ver a porcentagem de jovens negros dos bairros, retintos, que foram
abordados pela polícia… Mas ao mesmo tempo, soube por terceiros que
sargento X estava de olho em mim quando eu passava de mochila, sabe?
Mas eu nunca fui abordado, sabe? Então essa é a diferença, ele não deixa
de olhar pra mim, mas ele nunca me abordou. Então é… Locais também de
visita, shopping centers, eu nunca fui abordado dentro de um shopping ou
alguma coisa, mesmo de mochila. Mas tem a questão dos olhares. [...]

É interessante perceber como muitos deles, ao falarem sobre sua própria condição de
privilégio, problematizam o termo:

Carlos: [...] A pessoa mais retinta sofre preconceitos, a pessoa menos retinta
sofre preconceitos e são preconceitos diferenciados, preconceitos que
divergem em suas características, então colocar como sendo privilégio a
única diferença, é colocar que um é melhor socialmente visto do que o
outro, sendo que os dois são julgados. [...] São tirados tantos direitos que
quando esses direitos são menos retirados, chega a ser um privilégio, sabe?

2.5 O RACISMO

[...] as dicotomias expressas entre as condições humana e objetificada, a


igualdade formal e a discriminação racial, a autoestima e o desprezo,
caracterizam as experiências do ser negro no Brasil enquanto processos
psicológicos, sociológicos, individuais e coletivos, que perpassam o projeto
político do grupo social (SILVA, V., 2016, p. 150).

O racismo é definido por Hasenbalg (1982) como “negação total ou parcial da


humanidade do negro e outros não-brancos” (p. 69). Sobre isso, Marielle nos conta como foi
84

seguida em uma loja pelo segurança, e como recebeu, ao longo da vida, apelidos relacionados
ao seu cabelo e nariz. Para ela, no entanto, essas não são formas de sofrer racismo
“diretamente”:

Gabriela: Mas isso é racismo também, né?


Marielle: É! É racismo!
Gabriela: Entendi.
Marielle: Mas é aquela coisa, né? A gente nunca, tipo… Eu nunca fui
chamada de macaca na rua, sabe? Mas a gente percebe muitas vezes a
diferença de tratamento. Tem uma senhora lá no interior que ela
simplesmente não respondia meus “bom dias” e “boa tardes”. E aí, depois,
minha mãe me explicou que é porque ela é racista, entendeu?

Carlos também conta sobre comentários pejorativos contra seu cabelo crespo, e sobre
experiências que marcam muitos homens negros: o estigma do “marginal”:

[...] Acho que o racismo mais presente assim, são os olhares


mesmo sabe? Tipo, entrar num ônibus e perceber alguém guardando
o celular, isso pra mim é uma coisa muito comum, mas que é algo
que, muitas vezes, por não ser visto, não ser algo nítido, sabe? Se é
um detalhezinho assim, ainda é racismo, sabe? Ainda é um
preconceito. E então essas questões eu presencio e eu percebo
diariamente, inclusive. Mas abordagens assim, mais diretas, como
comentários ao meu tom de pele e tal, eu nunca sofri. Já sofri
comentários em relação ao cabelo e tal, de falar: “não, você tem o
cabelo ruim”...

Laudelina fala sobre críticas ao seu cabelo, vindas principalmente da sua família
materna, a qual ela sente uma ligação afetiva muito forte:

Então, eu era uma pessoa negra no meio de várias pessoas


brancas. [...] eu tinha amigos brancos que tinha outras pessoas
brancas, então, eu acabava virando a coisa exótica... [...] Então, eu
acho que na família foi o mais difícil assim, né? Porque como é que
uma, um espaço em que você tem tanto apego, é o mesmo espaço que
vai te machucar e que vai te renegar e que vai falar que o seu cabelo
é feio, vai perguntar se você lava o cabelo, se você penteia o cabelo,
essas coisas. Eu acho que a família foi o mais, foi o mais difícil assim,
no início.

Ela reviveu essa experiência de “ser exótica” dentro de um relacionamento afetivo com
uma mulher descrita como “muito diferente” dela, por ser “branca e rica”. Esse
relacionamento levava Laudelina para os espaços de convívio da sua namorada, espaços
diferentes daqueles que ela já estava habituada, “ao ponto de alguém perguntar assim a ela
[sua namorada] ‘ah, onde é que você arranjou essa?’”. Comentamos anteriormente como o
85

cabelo de Laudelina foi central para o tornar-se negra. Usando isso, ela simula uma situação:
se, no mesmo episódio, estivesse de cabelo alisado, não seria exotificada: “Acho que ia ser
meio de igual pra igual, o tratamento, sabe?! Não teria esse tipo de comentário ‘onde é que
você arranjou essa? Quero uma dessa pra mim’. Eu acho que não faria esse tipo de
comentário”. Laudelina nos fala que foi a partir do momento em que assumiu o cabelo crespo
que “todas as coisas começaram a se manifestar”. Antes disso, sua experiência social era de
uma mulher branca e como branca (não parda ou mestiça, branca) ela se identificava. Ela nos
conta que não era, inclusive, uma identidade conflituosa. Laudelina não vivia confrontos
sobre essa identidade branca nem nos espaços mais brancos:

Não, nenhum conflito. Nenhum conflito. Tipo, eu lembro que eu


sempre gostei de pintar minha unha de escuro, e toda vez que eu ia
pintar, alguém falava assim: “ah, você é branquinha, pinta de escuro
mesmo, vai ficar lindo, vai ressair o tom da sua pele”. Eu achava,
deixava passar. [...] Anos depois, quando eu assumi e tal, que as
pessoas ainda faziam esse tipo de comentário, eu ficava tipo assim
“nossa, porque a pessoa tá falando que eu sou branca?”.

Embora Laudelina compartilhe conosco sobre essas situações de racismo, segundo ela, a
pele clara lhe protege de contextos de discriminação racial que envolvem violências físicas
mais graves. Manoel nos conta que, a experiência de racismo mais marcante, foi a rejeição da
mãe quanto ao seu cabelo crespo. Mais uma vez, aparece aqui o termo “sutil”. Ele marca a
fala dos meus entrevistados como sinônimo de uma condição de dubiedade. Anteriormente,
Chica usou o termo para falar sobre o “privilégio pardo”, aqui a ideia se repete para tratar de
racismo:

Manoel: [Quanto ao racismo sofrido pelos negros com pele clara] as outras
formas de racismo, elas são também sutis entende?[...] A estrutura não é
pra você perceber que o que a estrutura é, entende? Ninguém vai chegar na
sua cara e dizer, pelo menos normalmente: não vou te contratar porque eu
não gosto da sua cor de pele, do seu cabelo.

Sutil é um dado desse campo, que parece significar algo dúbio: é privilégio mas não é, é
racismo, mas não é. O sutil é uma tecnologia social pela qual o privilégio ou o racismo se
manifestam na vida desses negros-claros. Isso me lembra d’um texto de Ronald Glass (2012),
vejamos o que o autor fala e a relação que fazemos:

As relações interpessoais, tanto quanto a macrogeografia física e social,


facilitam o ganho inconsciente de pessoas pela ordem racial. Microagressões
costuradas em todo o tecido social são realizadas inconscientemente pelos
brancos e asseguram privilégios no nível micro--racial. Consideremos os
86

seguintes exemplos: andando numa calçada ou numa passarela de um


shopping center, uma mãe branca e sua filha pequena (ou um pai branco e
seu filho pequeno) se aproximam de um homem negro caminhando em
direção a elas vindo da direção oposta. Ao pegar a mão da filha, a mãe se
desvia ligeiramente da trajetória de interseção; ao pegar a mão do filho, o pai
continua sua trajetória original e força o homem negro a abrir caminho. Em
ambos os casos, os filhos são segurados inconscientemente pela aparente
ameaça e necessidade de cuidado, além do filho também gostar da confiança
demonstrada pelo domínio do pai sobre o espaço social. O homem negro
registra a cautela e a afirmação do privilégio, sentindo então o peso de
absorver outro pequeno assalto a sua dignidade (p. 893).

A “microagressão” registrada pelo pesquisador se refere à mão do pai ou da mãe


brancos, que segura o filho protegendo-o da “ameaça” do negro. Talvez isso possa ser
interpretado como uma adequação, na ordem do cotidiano, de uma violência ou de uma
estrutura de hierarquia racial. Trago essa escrita porque, quando meus interlocutores falam
sobre “racismo sutil”, é uma imagem como essa que me vem à cabeça. Ou seja, com “sutil”,
meus entrevistados estão dizendo que negros de pele clara não passam por cenas dramáticas
de racismo. Eles passariam por essas situações normalizadas pelo cotidiano, situações que não
se problematizam. Defendo a ideia de que esse racismo, da ordem do cotidiano da vida, não
pode ser visto como uma violência menor, ela é uma violência que se naturaliza nas relações
corriqueiras e se incorpora ao dia-a-dia dessas pessoas, lhes corroendo, aos poucos, esse senso
de valor próprio ou autoestima. É somente a partir da transformação do tornar-se negro, que
esse

[...] conjunto de agressões do dia a dia ganha visibilidade, no momento em


que o constrangimento individual se transforma em militância coletiva,
sintetizando a subjetividade em um ato de reconhecimento, uma identidade.
Por conseguinte, a luta social pela legitimidade de uma identidade negra dá-
se mediante a conversão do sofrimento em interesse – interesse no sentido de
direito social, e não de privilégio (FERREIRA, D., 2017, p. 159).

Elza fala sobre o racismo que viveu no IFBA, instituição que cursou Ensino Médio
Integrado ao Técnico em Química.

Elza: [...] Era uma coisa, sabe, Gabi… (pausa longa) traumatizante. Muito
traumatizante, de verdade. [...] Os conselhos de classe, as pessoas, na aula,
Gabriela, “ah, os cotistas estão atrasando a aula”, literalmente com essas
palavras, tipo, no meio da aula, sabe? [...] E ali, eu tive que ser ativista. [...]
Meu cabelo mesmo, foi uma situação que passei no banheiro feminino ali da
quadra, uma menina lá da sala, não sei se você conhece, ela é negra.[...] só
que a família dela tem uma certa condição financeira [...] só que ela é
negra da mente branca, por mais que ela diga “ah, sou negra”. [...] um belo
dia estava no banheiro, ela veio pra cima de mim por causa do meu cabelo,
porque eu tinha deixado de alisar o meu cabelo [...]aquilo me machucava
muito. Muito. Então, eu tinha que voltar pra [o cursinho preparatório
87

negro], implorava pra assistir as aulas [sobre questões raciais], porque eu


precisava reafirmar o meu psicológico, sabe, de que eu não tô louca, de que
eu tenho os meus, entende?

Quando eu pergunto sobre o racismo que Chica já passou, eu sinto mais fortemente o
tom que eu já tinha captado, nessa mesma parte da entrevista, com outros interlocutores. É um
tom de “qualquer coisa”. É um tom de quem fala algo como: “olha, não é nada demais, coisa
pouca”.

Chica: Poxa, é... Eu não tenho um... Eu não tenho relatos, assim, drásticos,
né? Como o pessoal fala de ser barrado em loja, ou de ser... Eu já fui
perseguida em loja, sobretudo em lojas de shopping pra bairros mais pro
lado lá, da Barra e tal e coisa. Esse tipo de coisa já rolou, mas... Eu não...
Digamos o racismo que eu sofri, assim, eu acho que seria mais de ordem...
Como é que eu posso dizer? Não seria tão ostensivo, seriam piadinhas aqui
e ali e a coisa do: “não, essa menina, ela não, não nega a raiz ao cabelo”...
Piadinhas com cabelo, estéticas né? Questão de ter a bunda grande, ai
associa a “não, ali deve ser boa de cama”, esse tipo de coisa. Então já sofri
racismo nesse sentido e aí, eu não consigo te lembrar de episódios
específicos que isso é uma recorrência... [...]
Gabriela: Você diz assim, na rua? De assédio de homens, por exemplo?
Chica: Assédio, sim, em relação a bunda, acontece direto. [...] Em mesas,
em amigos, isso é “pautado”, piadinhas nesse sentido, que eu me sinto
desconfortável, mas é como eu tô te falando, eu nunca fui vítima de racismo
ostensivo. [...] Eu chamo de ostensivo o racismo que seria digamos, gritante,
entendeu? Ser impedida de entrar em lugares por você não corresponder
àquela raça, ser impedida de, enfim, de fazer determinada coisa por ter
aquela raça, é claro que no ponto de vista institucional eu sou impedida de
fazer coisas por ser negra, mas não no sentido de alguém chegar pra mim e
dizer “você não pode porque é negra”. Entende? Mas por questões de
barreiras que você percebe que, porque a sociedade ela tem aquele
arcabouço do preconceito racial, entende? [...] Mas eu acho que eu também
tenho que levar em consideração que eu, particularmente, não sou uma
pessoa de muito convívio social e uma pessoa de estar em muitos lugares,
até pela situação socioeconômica. Não sou de tá em bar, de estar em festas,
enfim, de estar em shopping. Eu não acho rolê de shopping muito legal,
porque não dá pra comprar, eu não tenho dinheiro, então eu sou muito de
ficar em casa. Então a minha cara não está a tapa frequentemente, entende?

Quando Chica me diz que nunca passou pela experiência de, por exemplo, ser impedida
de entrar num lugar porque alguém lhe falou “você não pode porque é negra”. Eu fiquei me
perguntando quem, num país de suposta democracia racial, vai ser barrado porque alguém
disse “você não pode porque é negra”? Li um trabalho monográfico de Psicologia realizado
em Salvador, de uma pesquisadora chamada Lindiara Paranho Alves (2019). Essa pesquisa
investe nos discursos que jovens mulheres “pardas” fazem da sua identidade. Um desses
depoimentos me chamou atenção. Ágatha é uma jovem que relata ter sido expulsa de casa
88

pela mãe, depois que adotou os cabelos crespos naturais. Essa história faz Alves (2019)
chegue a seguinte conclusão:

Sendo assim, avistamos que a pessoa parda/miscigenada sofre também com


os respingos do racismo mesmo que este não seja em sua mais violenta
forma ou nas ruas, para a pessoa miscigenada geralmente, como no caso de
Ágatha, o racismo se encontra dentro do próprio contexto familiar (p.45).

O que permite tratar a experiência de uma pessoa expulsa de casa pela própria mãe, após
deixar de alisar o cabelo, como um respingo do racismo? Supondo que é verdadeira a hipótese
de que, a violência racial contra os mais claros ocorra mais dentro da casa do que na rua, por
que essa violência doméstica é “menos violenta” do que a que ocorre fora do lar? Penso que a
resposta dessas questões está na normativa social que informa não importar os sofrimentos
negros. Sendo os negros claros parte “ilegítima” do grupo, suas histórias têm ainda menos
validade. Quando esses negros claros não sentem a sua identidade validada, incorporam a
mensagem de que são negros em segundo lugar, cuja experiência de racismo, seja ela qual for,
é automaticamente transferida para o plano das coisas que não valem à pena falar. Da forma
como observo esse relato, ele reproduz a deseducação social da qual a população negra foi
submetida, para não validar as suas experiências como legítimas e deixar o racismo passar.
Volto à pesquisa de Lindiara Alves (2019) para mostrar o esforço que a pesquisadora precisa
fazer, para manter a ideia de que o racismo não marca o corpo dessas jovens entrevistadas:

Logo, “Ser preto não é só ter pele” pode não se aplicar ao cenário brasileiro
atualmente. E assim concordam as nossas colaboradoras de pesquisa em suas
narrativas de vida, de que a cor da pele clara lhes confere o privilégio e a
ausência do racismo em suas vidas em uma escala igual a de uma pessoa
retinta (retirando, obviamente, em alguns casos o racismo dentro de casa por
conta do cabelo crespo ou a hipersexualização do corpo de uma delas nas
ruas) removendo deste modo o sentimento de pertença racial de pessoa negra
das mesmas e conferindo-lhes um sentido de ausência de pertencimento
diante de sua identidade étnico-racial (p.32).

Talvez seja ainda mais grave pensar que, o debate sobre o colorismo, tal como tem sido
conduzido, reforça esse tipo de deseducação para os mais claros. Ensina-os, antes de falar
sobre as marcas do racismo na sua experiência, que eles devem admitir seus privilégios.
Venho insistindo que essas experiências negras não são uniformes, sejam elas entre mais
claros ou mais escuros. Veja o que Ferreira (2017) nos traz, ao refletir sobre
homossexualidade negra:

A identidade resultante dos choques de interesses dá força a um princípio de


alteridade que rasura a diversidade dentro de cada grupo étnico, já que ela é
89

construída a partir dos mesmos padrões de reconhecimento, e apenas o outro


campo de formação é visto como diferença (FERREIRA, D., p. 160).

A partir disso o autor nos pergunta o seguinte: só o outro é diferente ou nós também
somos? Ser negro não é ter passado por todas as experiências de racismo que existem no
mundo.

Carlos: Não foram todas as lojas que eu entrei que eu fui seguido, mas eu já
fui [seguido], sabe? Enquanto que uma pessoa retinta a quantidade de lojas
que ela entra e ela é seguida é muito maior do que eu posso entrar e ser
seguido, pelo menos da forma que eu leio. E isso é uma forma de distinção
também, sabe? Essa questão do: “você não sofre o que eu sofro, ou não na
quantidade que eu sofro”.

Projetemos alguns cenários possíveis: a condição financeira elevada pode blindar a


pessoa negra de algumas situações, como do trabalho infantil ou da fome, por exemplo. De
outras, sabemos que nem mesmo pertencer a uma classe alta desviará o negro do comentário
racista. Da mesma forma, podemos pensar sobre um tipo de corpo ou outro, que poderá eleger
uma mulher negra musa de carnaval, e ridicularizar a outra em rede nacional de televisão.
Trazendo aqui sobre o meu próprio processo de racialização, começo dizendo que vim de uma
família pobre. No entanto, graças à colocação do meu pai em um concurso público, essa
situação oscilou entre uma condição de pobreza e de classe média. Isso porque, fruto de uma
base econômica familiar inexistente, diversas situações faziam a minha família contrair
muitas dívidas e vivermos altos e baixos. Lembro que boa parte da minha infância passei com
meus pais vendendo lanches na praia. Às vezes eu não podia ficar com a minha vó e
acompanhava-os no trabalho de ambulantes, ou acompanhava minha mãe na casa das pessoas
para quem trabalhava como manicure. Tenho como muito próxima, uma amiga negra retinta,
cuja infância passou brincando sozinha nos pátios da Universidade enquanto a mãe estudava.
Penso que nenhuma das duas condições seja ideal, mas existe diferença. Eu tenha pele clara
(ou menos escura), mas uma condição financeira um pouco mais estabilizada, por parte da
família da minha amiga, permitiu que sua mãe acessasse o ensino superior. Meu pai se formou
na UFBA com 37 anos e minha mãe nunca frequentou a escola. Se permitirmos que o nível de
sofrimento, por si só, seja a baliza para o reconhecimento negro, precisaremos incluir outras
demandas que, inclusive, atravessam diferentes pertencimentos raciais. Não é nisso que as
Comissões de heteroidentificação se baseiam, e sim na leitura estética do candidato a fim de
analisar o fenótipo que é, ou pode ser, motivador da obstrução de acessos. Ou seja, se aquele
fenótipo racializa aquele indivíduo.
90

As entrevistas desenvolvidas aqui, às vezes foram o primeiro momento em que as


pessoas pensaram sobre determinados assuntos. Jaci começou me falando que sofreu racismo
a partir de quando assumiu seus cabelos naturais crespos, porém, ao decorrer das nossas
conversas, sua fala vai se transformando:

Jaci: [...] racismo ele é estrutural e institucional, né? Então por exemplo, há
caminhos que a gente vai percorrer enquanto mulher negra, que não vai
permitir pra gente uma ascensão social rápida, então isso é racismo
institucional. Por exemplo: eu vim da educação e sou assistente social, são
dois campos de trabalho em que estão majoritariamente mulheres, e depois
mulheres negras, que estão ali num processo de feminização da pobreza e
não é uma coincidência que são lugares que pagam menos, né? Se a gente
for comparar as outras áreas onde os homens, por exemplo, estão
majoritariamente, né? Então o caminho que eu percorri nas Ciências
Sociais e não a uma graduação imperial como: Medicina, Direito e
Engenharias, perpassa pela questão de racismo institucional, né? É a
questão de, por exemplo: eu tenho 32 anos e não consigo me manter em
relacionamentos estáveis, né? Isso se dá também por uma questão racial.
Primeiro porque eu já sou preterida pelos homens brancos e, por mais até
que eu transite em alguns lugares de classe média, devido a uma certa
ascensão social que eu tenho, eu não vou ser escolhida por esses caras.
Sobretudo porque eu moro numa comunidade, né? Eu moro numa favela, e
há todo um preconceito de se morar ali e eu já vou afastar essas pessoas. Os
homens negros também… Eu acho que é ainda mais complexo. Primeiro, os
que ascendem socialmente, eles tendem a estarem em lugares sociais
também onde a gente pode ter majoritariamente mulheres brancas, então ele
vai acabar se relacionando, né? Eu acredito que ele vai preferir visitar uma
menina num condomínio desse que tá aqui na frente da gente, do que lá
onde eu vivo. Mais cômodo pra ele, né? Dá mais respaldo e status social pra
ele. E fora que o próprio movimento, dado a ancestralidade e a
historicidade de como a gente se formou na sociedade brasileira, a base de
muita violência, eles mesmos são muito… Eles não são… Como é que eu
posso dizer? Qual seria a melhor palavra? Estáveis! Você deve ter
experiências com homens negros e você percebe o quanto eles são instáveis.
E aí quanto mais você se aprimora, mais você se distancia desses amores,
quanto mais você é empoderada, quanto mais você sobe socialmente, né? E
aí intelectualmente, economicamente, então tudo isso te afasta de relações
amorosas estáveis. Tanto pelo machismo quanto pelo racismo, né? Que é
outra coisa também que a gente não pode dissociar. O machismo e o
racismo eles tão ali intimamente ligados contra as mulheres negras.

Essa é uma experiência contrastante com a fala de Marielle que nos diz não reconhecer,
na sua experiência pessoal, a solidão e o preterimento. Beatriz conta que antes de assumir o
cabelo crespo, não era parada em blitz com tanta frequência como é hoje. Mas, para ela, a pior
dessas experiências foi quando sua tia disse que sua “barriga era limpa” porque seu filho
nasceu branco.
91

2.6 O LIMBO RACIAL

Manoel: Eu gosto muito desse conceito, porque é realmente isso, entende?


Qual é a identidade de ser pardo? Quando não está associado a negritude,
entende? É como se ser pardo fosse um não lugar. Eu acho que a questão do
pardo como não lugar, é você não ter um exemplo de identidade, entende?
Que você não tem um referencial, você não se sentir pertencente a uma
cultura.

Manoel contou que Chica já encarava o debate racial antes de ingressar na


Universidade, mas, na hora de marcar entre “pardo” ou “preto” na ficha da Comissão de
Aferição da UFBA, ficou nervosa. Não sabia o que responder. Isso me lembra do primeiro
momento em que estava contatando as pessoas dessa pesquisa. Uma delas foi uma mulher
autodeclarada negra, de pele clara, ativista, que chamaremos de Nic. Falei para Nic que, no
meu trabalho, eu pensava os processos de autodeclaração e heteroidentificação de negros de
pele clara, queria saber como essa identidade estava sendo elaborada e os desafios daqueles
que estavam na posição de avaliar esses fenótipos. Nic tinha sido aprovada pela Comissão de
Aferição da UFBA e ficaria feliz em ouvi-la. Logo nesse primeiro contato, Nic me deu uma
aula pelo chat de uma rede social da Internet sobre racismo. Ela pediu duas vezes para
explicar os objetivos do meu trabalho, mas, ainda assim, me informou que não estava
compreendo. É que para Nic, não havia “complicação”. Disse que negras são pessoas
identificadas como negras socialmente. Disse que a identificação pessoal não é suficiente e
que a polícia sabe quem é negro e quem não. O argumento da polícia é recorrente, ouviremos
ele novamente em capítulo posterior. Na perspectiva de Nic, não existe essa “coisa de limbo
racial, quem é preto sabe”. Se tudo é assim, tão fácil, por que, incansavelmente, os
movimentos negros têm insistido em educar pretos e pardos no sentido dessa consciência
racial? Pra quê lançar campanhas que datam cerca de 40 anos, a exemplo do “Não deixe sua
cor passar em branco” e do “Tenha bom senso (censo)”, no intuito de incentivar a população
fenotipicamente mestiça em direção à identidade racial negra? Não sugiro que a identidade
seja um túnel infinito de subjetividades, sugiro apenas que a negritude brasileira seja
complexa, atravessada por muitos movimentos da nossa história:

Laudelina: Eu, por exemplo, eu tenho um amigo que ele mora no Engenho
Velho da Federação e qualquer espaço que ele for, ele vai ser lido como
branco, mas ele é o que as pessoas chamam de sarará. Então, embora ele
seja lido como branco em alguns lugares, ele não passa despercebido pela
polícia, ele não deixa de sofrer batida policial, ele não deixa de ter
problemas pra entrar no bairro dele em determinado horário. Eu acho que
são vários elementos que acabam formando essa identidade racial.
92

Kabengele Munanga fala da condição de instabilidade dos mestiços na Introdução da


obra de Eneida Reis (2002), que trata sobre a dubiedade dos “mulatos” no campo da
Psicologia Social:

Aqui está o dilema da construção da identidade dos “Mulatos”.


Teoricamente, eles têm três opções: optar pela identidade de um dos pais (de
um dos grupos); construir a sua identidade mestiça; ficar perdidos sem
nenhuma opção. Mas a prática social tem demonstrado que mesmo se o
desejassem e o quisessem, os mestiços não seriam vistos totalmente como
brancos ou como negros. Ou seja, a opção pela identidade do “branco” não
lhes é totalmente franqueada, pois a mestiçagem constitui uma ameaça à
identidade daqueles que ainda acreditam na “pureza racial”. Não são raras as
situações de competição acirrada em que os indivíduos “mulatos” deixaram
de ser chamados de “doutores” para se tornarem “negrinhos” ou “negrinhas”
metidos(as). Também não são poucos os depoimentos de jovens mestiços
discriminados por negros em diversas situações. Construir a identidade
“mestiça” ou “Mulata” que incluiria “Um” e “Outro”, ou excluiria “Um” e
“outro”, é considerado por mestiços conscientes e politicamente
mobilizados, como uma aberração política e ideológica, pois supõe uma
atitude de indiferença e de neutralidade perante o processo de construção de
uma sociedade democrática, na qual o exercício da plena cidadania, a busca
da igualdade e o respeito das diferenças constituem tributos fundamentais. Já
que eles também são discriminados e excluídos, eles preferem adotar a
identidade do “negro”, não por descon-siderar sua ambivalência no plano
biológico ou por ignorar as representações que os dois grupos, branco e
negro, têm deles, mas por uma questão de solidariedade política com a maior
vítima da sociedade com a qual se identificam e são identificados. Sabe-se
que no Brasil, os “Mulatos” e os “Negros” não estão coletivamente no
comando da sociedade em todos os planos: político, econômico, intelectual,
etc (MUNANGA, 2002; REIS, 2002, p.20).

Nesse trecho, Munanga nos fala sobre a ambivalência da condição do mestiço, e explica
o caminho que eles tomam em direção à identidade negra, dada a compatibilidade de posições
entre pretos e “mulatos”. O limbo racial é, nesse sentido, uma zona que precisa ser analisada,
não só pelos indivíduos que se sentem nesse espaço social. Essa é uma questão relevante na
garantia de que as políticas afirmativas serão destinadas à população negra. Munanga, na
mesma introdução do livro “Mulato: negro-não-negro e/ou branco-não-branco”, reforça a
ideia de que “no plano social e político-ideológico, eles [os mestiços] não podem mais manter
e sustentar essa ambivalência resultada de sua natureza mestiça” (MUNANGA, 2002; REIS,
2002, p. 19).

2.7 O CONFRONTO

Numa primeira abordagem, o processo de identificação racial parece


fechado, exclusivo e unívoco. Na realidade, afirma-se extremamente
ambíguo, uma vez que supõe uma relação de intersubjetividade. Para ser
93

unívoca, a identificação necessitaria da coincidência e coerência da


autopercepção do indivíduo e da percepção do outro com uma única
categoria racial. Pois o que define a univocidade da identidade racial é a
evidência de que há uma necessária correspondência entre a autopercepção e
a percepção do outro, geralmente feita por inferência a partir da cor da pele,
dos traços do rosto, da textura dos cabelos, operação que é alargada pela
recorrência à escala social (D’ADESKY, 2001, p. 134).

Essa parte do texto vai tratar dos embates entre esse grupo autodeclarado negro, de pele
clara, com outros negros, de pele preta, ligados, na maioria das vezes, a contextos de ativismo
político negro. É importante dizer que esse não é um debate novo. Barickman (2009) nos
lembra das controversas que envolveram a artista negra norte-americana Joséphine Baker no
Brasil entre 1929 e 1930: “o ‘Binóculo’ declarou em sua coluna na Gazeta de Notícias, que
Joséphine Baker guardava um ‘segredo’: ‘Jamais foi negra. É apenas uma mulata disfarçada,
muito bem disfarçada’” (p. 196). Outro registro, dessa vez da década de 70, são falas de Arani
Santana presentes no livro do Movimento Negro Unificado (1988) lançado em razão dos dez
anos de organização. Arani fazia parte do grupo NEGO, um grupo de teatro ligado a
Faculdade de Teatro da UFBA. Essa organização se tornou o primeiro núcleo do MNU na
Bahia, o depoimento que segue trata sobre os problemas internos do grupo NEGO:

[...] o segundo fator de divergência do grupo, apontado por Arani Santana,


foi a questão da cor da pele. Os negros pardos eram discriminados.
Chamava-se de “negros de contrabando”, “negros mentirosos”. Arani
Santana diz que os negros bem escuros não sabiam explicar, mas rejeitavam
terrivelmente os negros de pele clara porque achavam que aquelas pessoas
passavam por brancas. Era só assumir o padrão. E as pessoas, geralmente,
tinham o cabelo alisado, conclui (p. 14).

Nos Estados Unidos, Hunter (2007) fala sobre como o presidente Obama teria sido
colocado sob críticas de “não ser um negro de verdade”:

Charges of ethnic illegitimacy are already at work in the 2008 US


presidential campaign. Political commentators have charged both Barack
Obama and Bill Richardson of not being ‘ethnic enough’. These charges
may seem inconsequential to the casual observer, but accusations of ethnic
illegitimacy can be quite significant. Major media outlets, such as Time
magazine and the Los Angeles Times, ran stories titled, ‘Is Obama Black
Enough?’ (Coates 2007) and “Obama Not “Black Enough”? (Huston 2007
apud Hunter, 2007, p.9).49

49 “Acusações de ilegitimidade étnica já estão em andamento nos EUA em 2008 na campanha


presidencial. Comentaristas políticos acusaram Barack Obama e Bill Richardson de não serem "étnicos o
suficiente". Essas acusações podem parecer irrelevantes para o observador casual, mas as acusações de
ilegitimidade étnica podem ser bastante significativas. Principais veículos de comunicação, como a revista Time
e o Los Angeles Times, publicou histórias intituladas ‘Obama é suficientemente negro?’ (Coates 2007) e
‘Obama não é negro o suficiente?” (tradução nossa).
94

Trago essas situações para demonstrar os antecedentes desse debate, e como ele
extrapola as fronteiras nacionais. Os Estados Unidos é um país especialmente importante para
essa pesquisa, com o qual farei algumas aproximações, porque é de lá que parte o conceito
“colorismo” - nos debruçaremos sobre ele mais adiante. Nesse sentido, sigo uma metodologia
recorrente no campo dos Estudos de Relações Raciais no Brasil, que é a comparação com o
contexto americano.
Elza vai nos contar sobre constrangimentos que viveu dentro de espaços dos
movimentos negros, em função da sua pele mais clara, qualificando isso como “preconceito
de cor”:

Tipo, dentro [do cursinho preparatório negro] mesmo, eu sofri intolerância


por conta da minha cor, racismo por conta da minha cor, dos meus colegas,
de alguns professores. Literalmente de dizer assim “você não vai participar
dessa brincadeira não porque ela não é negra de verdade”. Ou então,
porque tipo, teve uma situação que eu tinha um rendimento, por conta das
minhas notas, eu sempre ganhava prêmios, então, como eu conseguia, eu
tinha um rendimento constantemente bom, então acabava que nessas
premiações, a frequência que eu ganhava era muito grande e isso
incomodava alguns professores, porque diziam que estavam dando
privilégio a pessoa que era mais clara da turma, entendeu? Então, tipo
assim, passaram a não me deixar participar das coisas por causa disso,
sabe? Dizia assim: “ah, vamos dar lugar a outras pessoas”, entendeu? Por
causa do meu tom de pele.

Essa narrativa me lembra da história de Luísa, mulher negra com pele clara, que Neusa Santos
Souza (1983) traz na sua obra:

Nesta tentativa de realização – tão imperiosa quanto impossível – o Ego


lança mão de táticas diversas, cujo denominador comum se faz representar
por um redobrar permanente de esforços por uma potencialização obrigatória
de suas capacidades. [...] A curtição é a seguinte: é ser o mais em tudo: a
mais bonita, a mais inteligente, a mais sensual – a responsabilidade de ter
que ser, a exigência de ter que ser. Ser negra é ter que ser o mais.” (Luísa)
Ser o melhor! Na realidade, na fantasia, para se afirmar, para minimizar,
compensar o “defeito”, para ser aceito. Ser o melhor é a consigna a ser
introjetada, assimilada e reproduzida. Ser o melhor, dado unânime em todas
as histórias-de-vida [de outros participantes da pesquisa de Neusa Santos] (p.
39/40).

Elza conta que a experiência se repetiu dentro do seu espaço religioso. Ela teria evitaria
reagir a essas situações para não ser deslegitimada ou ofendida.

Elza: Tem um filme, que, acho que esqueci agora o nome, acho que é
Atlântica, Atlântida negra, alguma coisa assim. Que retrata exatamente
como eu me sinto, acho que a maioria das pessoas do meu tom de pele se
sentem. Tipo assim, se eu não me engano, o filme é assim: são negros que
95

tavam aqui no Brasil, conseguiram fugir, sequestraram navio para voltar


para África, só que eles já eram mestiços. E aí quando eles chegam na
África, eles não são identificados como negros pelos africanos, porque eles
já não eram da mesma tonalidade de pele. Então eles não foram aceitos lá e
eles não podiam voltar para o Brasil porque lá eles eram negros. Pra onde
eles vão?

Elza fala que o racismo é tão cruel, fere tanto as pessoas, que quando alguém de pele
preta se depara com a autodeclaração negra de um indivíduo com pele clara, sente-se
revoltado: supostamente eles “não passam pela mesma situação”.

Elza: Do tipo, se eu insistisse, a pessoa ia dizer “não, você não sabe o que é
ser negro”. [...] É como se tipo, como se eu tivesse me apropriando da dor.
Tipo, assim… Afroconveniente. Entendeu? Então, tipo assim, na mente
dessas pessoas eu não sou negra porque eu não passo pelas mesmas
situações que elas, e realmente. [...] Em determinadas situações isso é
verdade mesmo.
Entrevistadora: Interessante. Entendi. Então assim, de alguma maneira você
compreende o que motivou essas pessoas, né? Que é uma experiência real
de dor, então você acha que esse tipo de questionamento é justo?
Elza: Em alguns quesitos, sim. Porque assim, por mais que essas pessoas
estejam expressando dor, algo inconsciente e bem superficial, há uma
classificação de dentro, ali dentro da identidade, negritude. É como se
tivesse concentrações variadas, entendeu? Um gradiente de concentração
do quão negro você é e quanto menos negro você for, mais privilégios você
vai ter. Então, eu não vou ser hipócrita de dizer que se eu for concorrer a
uma vaga de modelo, sei lá, com alguém da cor de Rafa [um amigo em
comum, de pele preta], que não vão... Muito provavelmente vão me optar
mesmo sabendo que eu também sou negra, mas eu sou menos negra, na
mente dessas pessoas. Então eu entendo esse sentido de essa revolta,
entende? Só que o que acontece, eles podem até me selecionar, mas em
momento nenhum eles vão me deixar acreditar que foi por outro motivo que
não esse. Em momento nenhum eles vão me tratar como eles tratariam uma
pessoa branca. Em momento nenhum vão deixar com que eu esqueça as
minhas reais origens, entendeu? Sou menos agressiva aos olhos.
Entrevistadora: Entendi.
Elza: E o que acontece? E aí, essas pessoas, elas não têm essa experiência,
elas não sabem disso. Então elas não conseguem perceber que é cruel
porque a gente não é aceito em lugar nenhum. A gente fica bem no limbo,
entende? Em momento nenhum deixaram eu esquecer disso, nos ambientes
brancos em que eu estive, entendeu? É muito cruel, porque tipo, a gente
sofre preconceito e racismo tanto de um lado quanto de outro.

Elza fala que foi “pega de surpresa” nessas circunstâncias, porque as pessoas que lhe
confrontaram tinham, algumas vezes, formação acadêmica e política dentro dos movimentos
negros, e despertavam nela uma expectativa de acolhimento quanto a sua autodeclaração:
“Esse lance do cabelo mesmo foi uma professora minha [do cursinho preparatório], uma
amiga minha. Virou pra mim e falou assim ‘você sabe, né? Que você é negra por causa do
seu cabelo’. Puts, ela é formada em sociologia, ela é negra. Ela é minha professora…”. Elza
96

avalia que essas disputas são politicamente contraproducentes, “é atirar no próprio pé”
(Elza), por dividir e enfraquecer a população negra. Carlos traz o mesmo argumento:

No meu bairro já aconteceu d’eu me identificar, citar e falar do movimento


negro e tal, e amigos retintos falarem: “nossa, por que você tá falando isso
se você é branco?” E eu falar: “eu não sou branco” [respondem:] “Você é
branco, negro sou eu.” Sabe? E eu quis falar que essa identificação gera
uma divisão, sabe? Em vez de uma união, é como se fosse: “eu sou negro,
você não é. Porque eu sou retinto, você não é retinto. Eu não quero saber se
seu pai é negro, você não é”. E é essa leitura que eu percebo às vezes.
Percebi em conversas e percebo também em relação a assuntos e é muito
complicado, sabe? Quando uma pessoa chega pra mim e me lê como
branco, eu falo e tento mostrar o porquê eu não me leio como branco,
porque a pessoa não deveria me ler como branco. [...]

Nosso entrevistado explica o seguinte, considerando a extensão do Brasil e sua


diversidade regional, não há, em sua opinião, uma única forma de classificar racialmente os
indivíduos. Isso não quer dizer que as Comissões do sistema de cotas estariam desautorizadas
do trabalho de heteroidentificar – pelos motivos suficientemente explicados no início desse
trabalho, elas são necessárias para o combate às fraudes. O argumento de Carlos é sobre os
embaraços identitários que o mito da Democracia Racial criou no nosso país50:

A “democracia racial” seria uma espécie de falsa consciência, exercendo o


papel de impedir a alteração do padrão tradicional brasileiro de relações
raciais. Em lugar de promover a tolerância, a crença de que no Brasil não
haveria discriminação funcionaria como um dispositivo para que o problema
racial não fosse encarado (SANYOS&MAIO, 2008, p. 91).

Dias também conta sobre situações de embate com uma colega de classe da
Universidade, ela não concordaria com sua autodeclaração negra. Para Dias, é possível que
sua colega já tenha sido vítima de racismo, e ao se autodeclarar negro como ela, mesmo nunca
tendo sofrido preconceito, faz com que se sinta “lesada”. Isso explicaria esse ato
“autodefensivo” contra sua autodeclaração. Nosso entrevistado “compra essa briga” pela
defesa do seu pertencimento racial como uma “prática educativa”: “É importante pras

50
“[...] todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo – há muita
gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro.
No litoral, do Maranhão o Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta,
ou vaga e remota, do africano. Na ternura, na mimica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos
sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de
vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava que nos embalou. Que nos deu de mamar.
Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as
primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma
coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira
sensação completa de homem. Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo” (FREYRE,
2003, p. 367).
97

pessoas aceitarem isso, entendeu? Porque se não, se as pessoas não brigarem, se as pessoas
não gritarem, nunca nada vai mudar, ela nunca vai mudar o entendimento dela, entendeu? Se
eu não tentar mostrar meu lado”. Nem todos tem a mesma reação:

Chica: [...] quando você vê certas coisas que você pensa que são consensos
gerais confrontados, você fica, nossa como assim, né? Você questiona isso?
Cê olha pra minha cara e cê acha que eu não sou negra? Entende? Foi mais
uma confusão assim. Uma surpresa, digamos assim, uma surpresa.

O consenso do qual ela se refere, vem de algo que começamos a desenvolver no início
desse trabalho. Trata-se de um esforço histórico que os movimentos sociais negros fazem em
educar as populações fenotipicamente parda e preta a assumirem essa identidade negra. Hoje,
quase 40 anos depois do surgimento Movimento Negro Unificado, Chica se depara com uma
dinâmica que a retira desse lugar de identidade. É um movimento contrário àquele. Dos
movimentos negros vem a politização da mestiçagem, mas também, em alguns momentos, as
suspeitas sobre a identidade dos negros mais claros. É como se duas forças opostas, para
dentro e para fora, incidissem sobre os “pardos”, partindo ambas do mesmo ponto.

Chica: Acho que em alguns momentos, em algumas situações, eu posso ter


uma espécie de identidade periférica em relação aquele grupo geral, [...]
mas não sinto que seja uma coisa recorrente não. Se eu tiver em um rolê só
de retintos, vai aparecer vez ou outra, piadinhas do tipo “afrobege”,
principalmente quando eu, se eu tiver falando de algum tipo de vivência ou
de experiência minha que diga respeito a raça. E se eu tiver em um meio de
pessoas brancas, sobretudo brancas de classe média, classe média alta, eu
sou vista como negra. Digamos mais do que se eu tivesse num rolê com
retintos.

Nessa fala, o “afrobege” aparece como sintoma desses confrontos, no intuito de


desvalorizar as experiências racializadas dos negros de pele clara. Davi sofreu essa situação
pelas redes sociais da Internet, quando foi chamado de “branco mestiço”: “Eu fiquei sem
entender, pois dentro da minha experiência, eu sempre li a branquitude como uma identidade
excludente”. A questão de Davi é que “branco” é uma categoria fechada. “Pardo” pode ser
pensado como um termo que abarca a diversidade de tons e traços que não conseguiram
acessar o pertencimento racial branco. Muitas das dinâmicas políticas levadas adiante na
Internet, como esse caso de Davi, não envolvem pessoas necessariamente ligadas aos grupos
tradicionais dos movimentos negros. Quem questionou nosso entrevistado não é alguém
ligado a essas organizações, mas reivindica para si a posição de “militante”. Explicando esse
98

51
acontecimento dentro da lógica do que se chama “linchamento virtual” e “cancelamento” ,
Davi diz que:

[...] as pessoas em redes sociais gostam de dar uma de justiceiros e arrumar


gente pra perseguir. O que estava na moda era perseguir negro de pele
clara e servir de negrômetro pra determinar quem é negro e quem não é, e
perseguir quem fosse lido como falso negro. Eu fiz uma postagem sobre
pardo ser papel, e que a identidade correta era negra, e a pessoa se apoiou
nisso pra efetuar um ataque a minha identidade racial.

Davi afirma algo que concordo. Quem se lança a essa prática de “negrômetro” são, em
geral, pessoas muito novas – em idade e experiência política. Entendo que isso está ligado a
dois fatores: o primeiro é que, as gerações negras mais velhas da política, foram aquelas que
uniram esforços para constituir a população negra somando pardos e pretos. O segundo fator é
o que Ferreira (2000) narra como o segundo estágio do tornar-se negro, o momento em que o
indivíduo sai do estágio da submissão e começa a compreender seu pertencimento racial:

O estágio de impacto passa a desenvolver-se no indivíduo a partir do


momento da tomada de consciência da discriminação, sofrida ao longo da
vida, exercida pelo grupo de hegemonia branca. [...] As situações de
impacto, inicialmente, provocam reações intensas e de muita ansiedade. A
pessoa sente-se confusa, assustada, com sensação de anomia, sendo comum
a queda em um quadro depressivo. [...] Neste estágio, a pessoa vê-se
envolvida por uma grande gama de emoções: culpar, raiva e angústia
generalizada, que poderão tornar-se fatores favoráveis, por gerarem grande
energia para ação. A pessoa passa a dirigir sua revolta ao que ela atribui
como a “causa” dos problemas sofridos anteriormente – as pessoas brancas e
todo o seu mundo branco (FERREIRA, R., p. 77/78/79).

Dada a confusão característica desse estágio, brancos e negros claros talvez estejam
sendo colocados juntos, em um saco só. Davi completa seu relato:

Eu sou uma pessoa muito flexível então eu conseguiria agora, se você me


dissesse que, a partir de muitos estudos que você fez sobre a questão racial,
e que a partir desses estudos você entende que eu não pertenço a identidade
negra, eu ia conseguir muito bem absorver isso. Mas outra coisa é você
olhar pra minha cara e me dizer que sou branco, isso é a única coisa que eu
sempre tive certeza de não ser, pois nunca fiz parte desse grupo. É um grupo
que eu sempre fui ensinado a querer fazer parte, durante boa parte da
minha vida, e nunca consegui ser inserido. Então é uma certeza muito
grande, eu não sou branco.

51
Ver COLTRI, F. Cultura do cancelamento promove intolerância ao buscar justiça. Jornal da USP, 2020.
Disponível em <https://jornal.usp.br/atualidades/cultura-do-cancelamento-promove-intolerancia-ao-buscar-
justica/>.
99

Quando estava conversando com Elza, ela, que também é minha amiga, me devolveu
alguns questionamentos. Contei que também “comprava a briga” pela minha autodeclaração,
e às vezes me sentia impelida a justifica-la. Eu fazia isso logo no início do meu engajamento
político, era terapêutico de algum modo. Quanto mais falava, mais pensava. Então, mais
questões da minha própria história vinham à tona, e eu consiga explicá-las ou ressignificá-las
à luz das teorias negras engajadas. Por outro lado, o que eu fazia, partia dessa obrigação
implícita de ter que convencer. Esse contexto apela para o relato da dor. Ao decorrer dos anos,
lendo as minhas próprias emoções, percebi que o quanto estava me entristecendo. O racismo é
uma violência, fere, causa dor. “Lembrar o sofrimento dói, lembrar que ele pode nos
surpreender na próxima esquina dói mais ainda. Daí que tantos negros neguem, eles mesmos,
que o racismo existe e os atinge” (CUTI, 2010, p.8).

Davi: Como está ligado a uma relação de poder, eu posso estar muito
errado nessa avaliação, mas no meu ponto de vista, eu teria que contar as
misérias que passei por não me encaixar dentro da branquitude. E no meu
ponto de vista, as misérias que passei por não me encaixar na branquitude,
não se compara as misérias que uma pessoa retinta vai ter pra me falar que
ela passou, então eu vou perder nesse diálogo. Pois se for contabilizar quem
sofre mais pra ver quem ganha nesse diálogo, não tem jeito. Eu acho que
não é por aí, ou não é só por aí, porque entra a questão social também…
Por exemplo: eu passei por poucas revistas policiais desrespeitosas na
minha vida, passei por algumas, passei por poucas. Eu sei que das poucas
que passei, eu não passaria se fosse branco dos olhos claros, como os meus
amiguinhos mais bonitos da escola lá na infância. Então isso já me dá
certeza da minha identidade racial. É triste em saber que a violência
policial acaba por determinar uma identidade, mas acaba por fazer também
(sic). Entretanto, eu sei que passei pouco pelo fato de ter a pele clara, com
certeza. Eu não chamaria de privilégio, acho privilégio uma palavra forte,
mas eu deixei de sofrer algumas agressões. Privilégio quem tem é o branco
mesmo que não sofre nada disso, mas eu deixei de sofrer algumas agressões.
Em parte por causa disso, mas por uma parte pelo fato de eu não ter, desde
a minha infância, morado num lugar periférico. Então o fato deu ter morado
sempre numa área de classe média, classe média baixa, mas classe média, o
fato de eu andar sempre, entre aspas, bem vestido. Inclusive essa é uma
questão também que aponta pra minha identidade racial, porque mesmo no
período que eu andava mais “largado” na Universidade, eu sempre optei
por andar mais vestido com roupas sociais, é algo que estou revendo dos
últimos anos pra cá, fazia isso principalmente por pegar aulas à noite.
Então a vestimenta, o local onde moro, eu sei que tudo isso influencia em
não ter sofrido tantas agressões com certeza. [...]

Laudelina: [...] É... Nunca, nunca assim, tentei, é, falar que eu sofria mais
que todo mundo, nada disso. Nunca, nunca foi meu objetivo até porque eu
sei que tem situações que eu não vou passar, mas o fato é que eu achava que
as pessoas tavam deslegitimando minha identidade racial, entendeu? Por
conta da minha pele e isso, eu não achava justo, até hoje não acho... [...]
Obviamente que pessoas retintas vão passar por situações muito mais
bizarras e eu sei que eu não vou passar por as situações que eles vão
100

passar, mas também não acho que minha trajetória ou todo, sei lá, toda a
minha vida, minha identidade, tem que ser renegada por conta disso,
entendeu?
Entrevistadora: Entendi. E nesses momentos de questionamentos você já
precisou defender essa autodeclaração racial?
Laudelina: Eu sempre fui muito tímida em relação a isso. Muito tímida
mesmo. Eu me sinto desconfortável de me defender perto das pessoas
retintas. É algo que...
Entrevistadora: Mas por quê?
Laudelina: Porque eu acho que não tenho legitimidade, sabe, pra afirmar
uma identidade que, sei lá, que eu não vou passar por certas coisas que
essas pessoas provavelmente passaram ou vão passar, entendeu? Eu sei de
histórias muito bizarras de meninos negros, amigos meus que são retintos e
tal, e eu penso ‘porra, acho que isso nunca aconteceria comigo’, então, eu
sempre fui muito de ouvir, assim... Quando eu tô no espaço com essas
pessoas, assim, de mulheres negras, feminismo negro, sempre tento ouvir
mais do que falar, assim. Então, nunca fui muito de tentar provar que eu era
negra e tal, era coisa que eu sempre guardei pra mim e as pessoas mais
próximas a mim, que me identificam também dessa forma, porque eu falo
pra elas: “olha, eu sou negra e sou e acabou”. Mas quando tô no espaço
assim, sei lá, de militância, alguma coisa, eu fico meio na minha. [...] Eu
sentia muito, eu sempre me senti muito constrangida de estar perto dessas
pessoas porque meio que minha experiência virava nada perto do que as
pessoas colocavam, né?! Tipo assim, gente que sei lá, foi presa por um beck
ou alguma coisa assim, e eu, sei lá, a mulher só falou que o meu cabelo era
feio. Então, eu meio que achava que tinha uma, era uma coisa
desproporcional, então, eu não tinha muito a contribuir. [...]

Gabriel: [...] meu amigo chegou pra mim e falou… Eu não lembro muito
bem o contexto, só que eu deixei o cabelo crescer bastante porque eu queria
colocar dread. E aí eu cheguei no meu bairro pra ver amigos que estudaram
comigo no colégio que eu estudei, que eu me formei no meu bairro, São
Caetano, e eles me falaram: “tá na hora de cortar o cabelo, tem que cortar
o cabelo” e tal, “ mas branco é assim mesmo, quando entra na faculdade
quer mudar”. Aí eu falei: “mas eu não sou branco, eu sou negro” e ele fala:
“não, você não é negro, eu sou negro. Você é branco” e eu falar: “não
cara, eu me leio como negro, eu sou negro” e ele: “tá bom então, então
você é negro”. Então eu não consigo reconhecer qual foi a necessidade de
dizer isso e tal, é como uma questão de… Eu não sei se eu vou conseguir
externalizar com palavras, mas poderia ser um: “você não sofre o que eu
sofro”, sabe? “Por você ser menos retinto você não sofre o que eu sofro.
Então, por favor, não diga que você é isso, sabe?” E eu reconheço isso, eu
reconheci isso pelo menos nas falas que eu ouvi, e é algo que eu não posso
discutir porque eu não vivi o que a pessoa viveu, ninguém viveu o que a
outra viveu, sabe? E boa parte disso é pela consciência que eu tinha dito
que vai de pessoa pra pessoa, sabe? [...].

Conversando com Carlos e Marielle sobre esses assuntos, eu quis saber por que eles
achavam importante defender essa autodeclaração. A fala de Marielle é muito sensível: “É
importante pra manutenção dos nossos direitos, pra conquista dos nossos direitos, pra
manutenção da nossa humanidade, eu penso dessa forma”. Podemos falar que essa conquista
por direitos passa pelo indiscutível peso político que os pardos conferem à expressão
101

estatística da população negra no Brasil. Mas tem algo mais. O que Marielle nos traz é que
esse tornar-se negro é o mesmo processo de tornar-se gente. Compreender-se negro é restituir
ou construir, pela primeira vez, uma noção de pessoa:

Um novo Ideal de Ego que lhe configure um rosto próprio, que encarne seus
valores e interesses, que tenha como referência e perspectiva a História. Um
Ideal construído através da militância política, lugar privilegiado de
construção transformadora da História. Independente dos modos de
compreender o sentido da prática política, seu exercício é representado para
o negro como o meio de recuperar a auto-estima, de afirmar sua existência,
de marcar o seu lugar (SOUZA, N., 1983, p. 44).

“Neo neguinha solidão” é um termo que eu nunca tinha ouvido falar até começar essa
pesquisa - mas nunca devemos dar por encerrado a engenhosidade colonial de criar
caricaturas ridículas para pessoas negras. Quem me trouxe a expressão foi Jaci, que foi
apelidada dessa forma.

Gabriela: Neo neguinha solidão?!


Jaci: É, que discute a solidão da mulher negra, como se pelo fato de eu ser
uma mulher preta não retinta, eu não tivesse propriedade para discutir a
solidão da mulher negra, porque a solidão da mulher negra não me
atingiria. Quando na verdade atinge, né?

Trago falas de duas blogueiras autodeclaradas negras, de pele clara, sobre esses
confrontos no processo de reconhecimento identitário:

“Nunca vi negra mais branca” (NICÁCIO, RAYZA, 2020).


“Essa menina nem é negra, é oportunista, o que essa menina quer falar de
racismo?” (NERI, NATALY 2016).

Esses conflitos que envolvem a desautorização da autodeclaração negra, dos membros


mais claros do grupo, extrapolam as fronteiras nacionais, como vimos na ocasião da
campanha presidencial de Obama. “Para Cardoso de Oliveira (1976, p. 4, 5, 38), a identidade
‘surge por oposição’, ‘não se afirma isoladamente’: trata-se da ‘afirmação de nós diante dos
outros’, que se realiza como ‘representação de si’” (HOUFBAUER, 2006, p. 235). Essa
dinâmica política nos encaminha para pensar, no capítulo posterior, sobre essa relação entre
autodeclaração e heteroclassificação, ou seja, nos leva a analisar o lugar do outro dentro da
própria elaboração de pertencimento racial.
102

3 DE DENTRO E DE FORA: A AUTODECLARAÇÃO E A


HETEROCLASSIFICAÇÃO

MIXTUS52

Desejei o fútil e o banal durante anos


Acumulei muitas coisas
Masturbei-me na intenção de um sonho
Lá longe queria até ganhar na mega sena
Entretido no colorido arco-íres da televisão
Letárgico, esperava por mais um episódio da vida
De uma história que não era a minha
Assistia o mundo e vivia comigo
Sem saber quem eu era
Esperei e esperava por um tempo que só piorava
Apatia, simpatia e fé... Nada deu certo
No olho do furacão
Tentei refletir com meus princípios filosóficos
Quem sou eu dentro disso tudo?
Um mestiço
É uma mistura de enguiço com feitiço
Nada sabe sobre si
Pois não tem identidade
Vagueia sem passado
Outrora... Fruto do estupro da branquitude
Agora... Projeto da indústria cultural
A identidade do mestiço é nacional
RG, CPF, título de eleitor, carteira de trabalho
Dinheiro no banco, cartão de crédito, salário.
Time de futebol, hino nacional.
Um mestiço... tá colado com quem?
Descolado do mundo
Um mestiço não tem passado
Ancestralidade, história ou tradição.
O mestiço. Foi forjado pelo estado nação.
Classificado racialmente por indefinição
O mestiço é alguém que não é.
Num país miscigenado
Os descendentes de mulas são mulatos.
Os descendentes de leopardos são pardos.
Mas não são negros
Porque ser negro não lhe confere nenhum privilégio.
Todos querem ser mestiços
Somos todos miscigenados
No país onde não se tem brancos
Os brancos são privilegiados.

52
[Vários autores]. Poéticas Periféricas: novas vozes da poesia soteropolitana. 1ed. Galinha Pulando: Salvador,
2018. p.107
103

Pensando bem
Foda-se sua ideologia de democracia racial
Não sou pardo, nem mestiço, nem mulato
De minhas entranhas urram Zeferinas, Dandaras, Mahim, Zumbis.
Toda uma força de vida
Toda uma contribuição cultural
Um sonho de esperança que me mantém vivo
Meu punho é minha lança
Símbolo da resistência
Ah, pensando bem
Foda-se sua ideologia de democracia racial
Pardo e mestiço
Numa sociedade sem racismo
O mestiço é a mistura das raças
Que raça? A humana?
O mestiço é o fetiche dos brancos
Faz a mágica de misturar
A raça humana com ela própria.
Se não existe racismo
Porque falar do mestiço como uma espécie diferenciada?
Os outros, somos nós, dizia o cara pálida.

Marcos Paulo
104

3.1 O PARDO OU O NEGRO-VIDA DESAFRICANIZADO

O negro norte-americano lida com a condição de ser negro e ser americano, essa
“contradição” é o que DuBois (1970) examina como “dupla consciência”. O autor nos deu
uma chave ao descrever a encruzilhada ontológica desses homens e mulheres negros (as),
levando outros autores a investir nessa ideia. Gilroy (2001) utiliza isso para pensar o Atlântico
Negro e Ângela Figueiredo (2012) para falar sobre os negros da classe média brasileira,
vejamos:

O material derivado das entrevistas demonstra que se há uma dupla


consciência para os entrevistados, ela não se revela em termos de
nacionalidade (ser negro e/ou brasileiro), já que todos os entrevistados se
consideram brasileiros, mas essa dupla consciência se manifesta no ser negro
e membro de classe média, uma vez que a maioria das representações sobre
os negros e sobre a cultura afro-brasileira se refere aos negros de classe
baixa, restando pouco espaço para ser ao mesmo tempo negro e de classe
média (p. 174).

Sugiro que esse recurso teórico é uma possibilidade para pensar aqueles pardos que se
identificam como negros, e aqueles negros que se identificam como pardos. Esse sujeito
desafricanizado e de pouca melanina, não é a imagem mentalmente formada quando ouvimos
a palavra “negro”. Ainda assim, é a população mais numérica desse grupo (pardos são maioria
em relação a pretos pelos dados do IBGE). Também não é “parda” a imagem que nos vem
como referência de pessoas brancas. Vou mostrar o que eu digo com uma pesquisa simples da
palavra “negros”53 na seção de “Imagens” do site de buscas da Google.

53
No Exame dessa Dissertação, Jacques D’Adesky (2021) sugeriu que a pesquisa incluísse termos que
traduzissem o “negro” em outras línguas, como o francês e o inglês. Nesse sentido, a busca seria respectivamente
pelos termos “noir” e “black”. Como sabemos, os resultados de busca do site da Google tem uma relação com o
local e o usuário que pesquisa, assim, não sendo termos usuais para as classificações raciais no Brasil, o
resultado da pesquisa no banco de imagens apontou para objetos, cores e animais, não sendo possível a
observação da diferença de percepção sobre “o negro” em outros idiomas/outras regiões do mundo, como era a
intenção de D’Adesky. Essa será uma questão desenvolvida e aprofundada para a publicação dessa Dissertação
no formato de um livro, tal como indicado pela Banca.
105

Figura 13 – Busca no Google Imagens: “negros”, printscreen 2020.

Fonte: Google.

Figura 14 – Busca no Google Imagens: “racismo”, Printscreen 2020.

Fonte: Google.

Nas imagens anteriores, o Google dispôs pessoas de pele preta para o resultado de
“negros”, assim como cartazes e desenhos gráficos com pessoas pretas, em união a brancas,
na representação do racismo. Nenhum pardo está nessas imagens, isso porque, os autênticos
representantes da diáspora no Brasil, aqueles com verdadeira “carga étnica” (termo usado por
Marielle anteriormente) seriam negros de pele preta. Essa também é a atitude ensinada pelos
discursos que temos analisado sobre o “colorismo”: o racismo é uma experiência preta e o
privilégio, parda. Vamos observar outras imagens de busca no Google sobre outros termos.
106

Figura 15 - Busca no Google Imagens: “jovens mortos pela polícia”, printscreen 2020.

Fonte: Google.

Figura 16 - Busca no Google Imagens: “traficante”, printscreen 2020.

Fonte: Google.

Figura 17 - Busca no Google Imagens: “pobres”, printscreen 2020.

Fonte: Google.
107

Quando a busca é sobre genocídio de jovens pela polícia, a principal denúncia que os
movimentos negros fazem contra o Estado atualmente, as cores das pessoas apresentadas pelo
Google tem um espectro maior. Os jovens são, na sua maioria, o que poderíamos classificar
como “pardos”, da mesma forma ocorre para as pessoas marcadas pelos estereótipos do
“traficante” e dos “pobres”. Quando o Estado brasileiro elaborou, lá atrás, a identidade
“mestiça” para o seu povo, colocou a miscigenação como o caminho do branqueamento, ela
extinguiria os pretos, esses sim, “negros de verdade”. O Brasil seria o “paraíso” dos mestiços,
a população autenticamente brasileira descrita por Darcy Ribeiro (1995). Dessa forma, esses
“pardos” precisam se debater entre o discurso oficial da mistura, que o celebra, e as marcas
dela no seu próprio fenótipo, ao passo que estão submetidos às mesmas posições marginais de
todos os negros. Por um lado, as mulheres claras tem espaço para sambar como Globelezas, as
pretas não. De outro, não são as protagonistas disputadas em um romance da novela. Essa é
uma situação de dupla consciência. O negro-vida-pardo é a população negra mais numérica,
cuja racialização se dá sem nomeá-lo negro, sem chamá-lo “preto”. Ele está fora do
estereótipo do ser negro de feições africanas. Campos (2013) analisa as fichas de coleta de
dados do IBGE, e argumenta que, estando “pardo” abaixo das opções “preto” e “branco”,
reforça a ideia de que só deve ser indicado quando aquele entrevistado não se situa em
nenhuma das opções anteriores.

Segundo o padre Rafael Bluteau, autor do Vocabulário Portuguez & Latino,


publicado em 1720, pardo significa a “cor entre branco e preto, própria do
pardal, de onde parece ter vindo o nome”. Constam ainda alguns adágios
portugueses que ilustram o pardo como cor escura: “maio pardo, junho
claro”, “de noite todos os gatos são pardos” (Bluteau, vol. 6, 1720, p. 265).
Na edição de 1789, atualizada por António Morais da Silva e renomeada
como Diccionario da língua portuguesa, acrescenta-se além da designação
“cor entre branco e preto, como a do pardal”, “homem pardo, mulato” (1789,
pp. 159). O Dicionário da Língua Brasileira de 1832, publicado por Luiz
Maria da Silva Pinto, designa o adjetivo pardo como de “cor entre branco e
preto, mulato” e o substantivo pardo como o “macho da onça ou leopardo”
(Pinto, 1832, pp. 788). Já o Diccionário da Língua Portugueza, de 1783, de
Bernardo Baccelar, aponta somente “animal cinzento” (1783, pp. 464).
Destaca-se a associação do pardo com o mulato tanto no Dicionário de 1789
quanto no de 1832. Para o verbete “mulato”, o padre Bluteau, chama a
atenção para o canto 10, oitava 100, de Camões, onde consta a seguinte
passagem: “todas da gente vaga, e baça, donde diz, quiere dezir, que la gente
dessas partes es de color ni branca, ni negra, que em Portugal llamamos
pardo, o amulatado, porque se llaman mulatos los hijos de negro y blanco, a
los quales de essa mescla de padres que da esse color dudoso, o neutral entre
los dos malistimo sin duia , porque hasta alli sea malo, el ser neutral, cosa
aborrecible” (Bluteau, v. 5, 1720, pp. 628 apud
WESCHENFELDER&SILVA, 2018, p. 310).
108

É como sujeitos de “pele parda” que são descritos os indígenas avistados por Pero Vás
de Caminha na sua carta datada de 1500. Ainda hoje, descendentes indígenas ou “caboclos”
estão registrados como “pardos”, por isso mesmo o Amazonas é o estado com a maior
porcentagem dessa população.

No alvorecer no séc. XX, o Brasil exibia um complexo sistema de


classificação racial de natureza pluralista ou multirracial, em contraste com o
sistema rigidamente birracial da América do Norte. O meio milhão de
escravos libertados em 1888 ingressou, assim, numa estrutura complexa, que
já incluía homens livres de cor (de todas as tonalidades). A cor da pele, a
textura do cabelo, e outros sinais físicos visíveis determinavam a categoria
racial em que a pessoa era posta por aqueles que ficavam conhecendo. A
reação do observador podia ser também influenciada pela aparente riqueza
ou provável status social da pessoa julgada, então, pelas suas roupas e pelos
seus amigos. Donde o cínico adágio brasileiro: “dinheiro branqueia” – se
bem que isso, na prática, só se aplicasse a mulatos disfarçados. A soma total
das características físicas (o fenótipo) era o fator determinante, embora sua
aplicação pudesse variar de região para região, conforme a área e o
observador. O Brasil não teve nunca, pelo menos desde o fim da Colônia,
um sistema birracial rígido. Havia sempre uma categoria mediana (os
chamados mulatos ou mestiços). A observância estrita da endogamia com
base na cor, santificada por lei nos Estados Unidos na década de 90, jamais
existiu no Brasil (SKIDMORE, 1976, p. 55).

Talvez já tenhamos deixado claro que “pardo” é uma categoria de cor/raça do IBGE que
convive com a identidade negra de alguns dos meus entrevistados e da minha. É como
“pardo(a)” que respondo aos questionários de cor ou raça quando sou solicitada, desde que
não haja a opção “negro(a)”. Esse é um tema extremamente polêmico. O trecho de Skidmore
(1976) nos mostra que muitos fatores informam cor, dentre eles a classe social e o que
poderíamos chamar de capital social e cultural (BOURDIEU, 2007). Nesse sentido, quanto
mais alta a classe social que o indivíduo ocupa, maior será o seu desejo e a possibilidade de
embranquecer e ser embranquecido. Pardo seria uma opção furtiva dessa identidade negra.

Jaci: Preta, eu sempre coloco preta, não coloco parda porque eu acho pardo
um termo apolítico. Eu acho que pardo nem deveria existir. Mas, como
existe essa questão do racismo à brasileira, a falsa democracia racial, ainda
se tem aquele termo ali pra poder acomodar algumas pessoas que ainda não
conseguem se enxergar enquanto pessoas negras, para além de uma questão
da cor da pele. Então até pra mim politicamente, me declarar como preta é
mais positivo do que parda. Não tenho dúvida, não faço confusão e não
tenho nenhum problema em me declarar enquanto preta.

Por outro lado, os atuais debates que o “colorismo” tem trazido, apelam para uma
investigação acurada sobre a condição de vida de negros claros e escuros, e por isso eu acho
fidedigno que, não tendo a pele preta, sinalize que sou parda. Como disse, esse é um tópico
109

extremamente polêmico, e não há consenso a partir dos meus entrevistados, entre os quais
existirão aqueles que responderão ao IBGE como “pretos” e outros “pardos”.

Gabriela: O que você acha dessa categoria pardo? Ou mulato?


Elza: Eu não gosto de nenhum dos dois. Nem por conta da origem da
palavra, [...] Nem o quanto ela representa na sociedade. De forma, tipo, a
questão psicológica, a questão política, a questão... Primeiro, tanto o pardo
teve a questão do pardal, dos pombos, são animais que transmitem muitas
doenças, como a relação do próprio significado de mula, né?! Da questão
do animal mesmo, que é um cruzamento de duas espécies diferentes que
geram um ser que é infértil e sem função, digamos assim, e que ainda é
inferior aos outros que deram origem a ele. E, no nosso contexto humano,
né?! A questão de mulata referencia-se muito àquele estereótipo da mulher
sexualmente estereotipada, que é vendido no exterior, entendeu?! Então, eu
não gosto de nenhum dos dois. Eu sei que de acordo com as classificações
demográficas, eu seria parda, mas eu não gosto de nem um dos dois.

Laudelina assinala “pardo”, ainda que reconheça os problemas dessa categoria:

Laudelina: [...] acho que pardo se encaixa em algumas situações, mas


mesmo assim, eu acho meio problemático. Mas são termos que eu não gosto
assim, mas como eu não sou uma negra retinta, né... Então, eu acho que
colocar preto ficaria meio, assim... Não seria tão verdadeiro.

Quando perguntei a Marielle e Carlos o que eles pensavam sobre as categorias “pardo”
e “mulato”, me trouxeram aquele velho dilema sobre a divisão interna:

Marielle: Eu acho que essa categorização ela só reflete o que sempre


existiu, que é essa divisão. É… Eu não… Eu odeio dizer isso, que é natural,
porque não é natural. Mas sempre houve essa distinção não só no
movimento, mas na sociedade mesmo, de que negros de pele clara são mais
bem aceitos, de cabelo melhor são mais bem aceitos do que negros de pele
retinta.

Indo na contramão de outras experiências, Marielle não se descobre negra ao ganhar a


Universidade ou o espaço público. Saindo de casa, ela se percebeu não-preta. “[...] eu só fui
perceber que outras pessoas não me viam como preta quando eu fui lidar com outros setores
da sociedade que não no seio familiar. Ou seja, as pessoas me viam na rua e me chamavam
de morena, moreninha, cor de jambo, sabe?”. Esse é também é o caso de Chica, que responde
“preto(a)” para o IBGE: “eu tive conflitos em relação a minha identidade negra foi de uns
tempos pra cá, mas desde novinha eu fui vista assim, eu era mais clarinha, tal e coisa, mas
nunca me desqualificaram enquanto negra”.
É nítido em falas como a de Jaci anteriormente, uma postura crítica à categoria “pardo”
enquanto um termo vazio e desmobilizador. Penso que nossos demais entrevistados, ao
declarem-se pardos-negros, fazem um discurso de pertencimento racial levando em
110

consideração a mestiçagem. Quero dizer que se trata de uma elaboração que não ignora a
miscigenação, mas retira o controle branco do próprio discurso. Goldman (2015) me fez
pensar sobre isso ao escrever sobre a experiência dos novos Maias e dos afroindígenas em
Caravelas (Bahia):

É nesse sentido que o conceito de afroindígena é criado em Caravelas a


partir dos mesmos procedimentos utilizados para criar qualquer obra de arte,
ou seja, a partir dessa técnica que os artistas chamam de “reaproveitamento”
ou “ressuscitamento”, técnica que opera por meio da reatualização de
virtualidades reprimidas pela história. Uma árvore derrubada ou uma dança
esquecida preservam potências vitais que o artista e o militante podem
desencadear. Trata-se, assim, de uma espécie de bricolage das experiências
históricas vividas de diferentes maneiras pelos membros do grupo como
afros e como indígenas, ou seja, como dominados. Do mesmo modo que na
“madeira morta” uma nova vida pode ser encontrada, nas experiências de
resistência à dominação uma nova força pode sempre ser despertada. Se para
os Maia do México contemporâneo, como mostrou Pedro Pitarch (2013), a
coexistência de narrativas indígenas e europeias é um modo de não permitir
a incorporação da lógica europeia na própria narrativa indígena, no caso de
Caravelas tudo se passa como se fosse a articulação das narrativas afro e
indígena que produz esse efeito de evitar a incorporação da lógica
dominante, o que não significa que aquilo que os Maia obtêm a partir de uma
evitação rigorosa de qualquer mistura seja feito pelos afroindígenas
simplesmente “misturando” as coisas (p. 653).

Os novos Maias do México, os afroindígenas de Caravelas e os negros de pele clara ou


negros-pardos da nossa pesquisa, fazem uma elaboração de identidade avessa a perspectiva
dos “protobrasileiros” de Darcy Ribeiro (1995).

3.2 O QUE COMPÕE ESSA IDENTIDADE NEGRA?

É dentro dessa perspectiva conflituosa e antagônica que podemos propor


uma definição do negro como sendo qualquer pessoa de origem ou
ascendência africana suscetível de ser discriminada por não corresponder,
parcial ou totalmente, aos padrões estéticos ocidentais e cuja projeção social
de uma imagem inferior ou depreciativa representa a negação do
reconhecimento igualitário, fonte de uma exclusão e de uma opressão
fundamentadas na dupla denegação dos valores da identidade grupal e das
heranças cultural e histórica. [...] Assim, essa definição aponta o negro como
vítima de uma dupla denegação. A primeira é alicerçada na desvalorização
racial, considerado na sua aparência externa. É rejeitado por não se
enquadrar, parcial ou totalmente, no ideal estético dominante. Nesse sentido,
o negro pode ser tanto o mulato, o sarará, o tição, quanto o jambo, o moreno,
todos, em grau variado, vítimas desse tipo de discriminação (D’ADESKY,
2001, p. 144-145).

Em consonância com o autor, Davi sintetiza a identidade negra da seguinte forma: “ser
negro é não se encaixar na branquitude por ter essas características que vieram dos nossos
111

ancestrais de África”. Essa é uma elaboração de pertencimento, lembremos, que parte de


alguém autodeclarado negro com tez clara, é uma definição que lhe cabe, lhe comporta. Ele
continua essa história retomando temas que tratamos anteriormente e que se relacionam com
“privilégio” e “racismo”:

Eu entendo que a defesa hoje do que é negro de verdade, quando a gente faz
essa separação, de quem se predispõe a ser negrômetro, é pautada no nível
de sofrimento, e o discurso é esse: “assim é muito bom, mas na hora de
sofrer agressão policial ninguém quer, aí vocês não querem ser pretos”.
Assim, quando a gente pega dados sobre mortes por arma de fogo, o número
é muito equilibrado entre negros e pardos, mas entre brancos dá uma caída.
É claro que é uma questão problemática, pois tem que ver quem são esses
pardos e como são os pardos.

Chica define o seu pertencimento racial com base nas suas características físicas de
“cabelo crespo, nariz largo” e “tom da pele”. Jaci, por outro lado, soma o fenótipo à sua
história pra explicar “de onde vem essa identidade negra”:

Por conta da minha família, né? Meu pai é negro retinto, e por conta do
lugar social de onde eu venho, né? Eu vivo num quilombo urbano chamado
Beiru. Então a minha projeção social ali não foi por acaso, é dado a uma
ancestralidade. Se não fosse por isso, lá eu não estava.

Jaci alinha as características fenotípicas a outros elementos, por exemplo, o


pertencimento a uma classe social desfavorecida. Ela tem o cuidado de nos explicar que,
mesmo que existam brancos pobres, estatisticamente a expressão de pessoas negras se dará
nas classes sociais mais baixas, nas profissões mais desvalorizadas e nos bairros periféricos.
Ela reforça a ideia de que, mesmo de pele clara, negros, entre pessoas brancas, será um
contraste:

Jaci: [...] se você for, por exemplo, numa balada topzeira branca, você, por
mais que seja menos escura e alise os cabelos, porque inclusive os cabelos
alisados eles são diferentes dos cabelos que são naturalmente lisos, você
percebe de longe a guanidina. O cabelo escovado quem já entrou nesse
processo sabe muito bem diferenciar por mais perfeito que aquela escova
progressiva seja, né? E eles sabem rapidamente nos diferenciar, né? De que
a gente não é um deles.

No seu bairro e trabalho, Jaci é “menos preta”, já “nos espaços acadêmicos e de


militância, é preta!”. O que diferencia um lugar do outro, em sua opinião, não é a experiência
do contraste que estamos falando, é o “acesso ao conhecimento”:
112

Acho que os lugares onde existe mais possibilidade de conhecimento, esse


espaço é mais desconstruído, então ele tem uma facilidade de me reconhecer
enquanto tal. E os espaços que estão mais afastados assim de conhecimento,
de acesso - porque tudo é conhecimento né, de certos conhecimentos desse
âmbito racial, eles têm uma… Eu me passo por branquinha. Inclusive eu já
estive no elevador do trabalho e dois operários, acho que eles eram da
manutenção do elevador, eles elogiaram meu cabelo, inclusive de uma
forma bem racista, né? Eles elogiaram meu cabelo, eles disseram assim:
“ah, seu cabelo é massa, porque tem uns cabelos black que Deus que me
perdoe, são feios, são mal cuidados”. Aí veio na minha mente: “ele deve
estar se referindo aos cabelos 4C” que as pessoas acham que todo cabelo
crespo, cacheado é igual. E no final, pra acabar de tudo ele disse assim:
“porque é difícil ver pessoas assim branquinhas que nem você de cabelo
assim”.

Cabe explicar que “4C” é uma forma de identificar o tipo de cabelo mais crespo.
Trouxemos uma imagem que explica visualmente esse tipo de classificação.

Figura 11 – Tipos de cabelo do 1A ao 4C.

Fonte: AURELIANO, Bruna. Como identificar seu tipo de cacho. 2017. Disponível:
<http://www.bonecadeplatina.com.br/como-identificar-seu-tipo-de-cacho/>. Acessado em 25 set.
2020.

É interessante observar como todos os meus entrevistados responderam afirmativamente


quando lhes perguntei se existiam espaços em que se sentiam mais negros e menos negros.
Davi, por exemplo, fala o seguinte:

Quando eu ainda fazia parte da Universidade, os grupos de militância que


eu fazia parte, eu fazia parte do movimento negro, era muito bem acolhido.
Bom, como a minha identidade era bem reforçada lá dentro, então me sentia
mais pertencente àquele grupo, principalmente quando íamos juntos decidir
coisas maiores, relacionadas ao movimento estudantil, como decidir greve e
esse tipo de coisa, porque íamos juntos como movimento negro num espaço
majoritariamente branco. Então eu conseguia ter essa dupla afirmação: era
113

a afirmação do grupo me acolhendo, e, segundo, eu verificando as pessoas


que estavam presentes [os brancos] e não faziam parte do grupo, e eu via
pessoas que eram diferentes de mim, que eram muito brancas e isso dava a
segunda afirmação. Agora, o espaço em que me sinto menos negro? Quando
estou, por exemplo, no espaço de maioria negra onde as pessoas são
retintas mesmo. Eu olho e penso: “não, eu também sou diferente dessas
pessoas aqui”, e aí eu me sinto menos, penso: “talvez essa não seja também
a minha identidade”.

Que toda identidade é relacional, todo mundo sabe,

Pode-se perceber uma convergência nas abordagens dos teóricos da


etnicidade: há um certo consenso em abordar a identidade étnica como um
fenômeno “relacional”, “situacional” e “processual”, não como uma
“entidade em si” (viés primordialista) (HOFBAUER, 2006, p. 235).

Schucman (2018), por exemplo, diz que “tanto o indivíduo quanto suas concepções de
realidade são constituídos nas relações interpessoais” (p. 44). Para indivíduos negros-pardos,
a dinâmica desse processo é de tal forma, que pode se alterar no curto espaço de tempo em
que alguém sai do bairro da Barra (bairro nobre e branco de Salvador) em direção à Vila
Brandão (comunidade negra e periférica da cidade), que fica à menos de cinco minutos de
distância. Vamos inventar um personagem fictício chamado Augusto. Ele é o garçom negro,
de pele clara, que atende aos clientes brancos do restaurante X do bairro da Pituba, bairro de
elite. Nesse ambiente, ele percebe a sua diferença: os clientes não se parecem com ele e as
únicas pessoas com características físicas semelhantes estão na posição de trabalhadores. À
noite Augusto retorna sua residência que fica no bairro do lado, dez minutos de ônibus para o
Nordeste de Amaralina, um bairro negro. Chegando lá, Augusto, entre pessoas mais escuras,
vira branco? Isso é trânsito racial?
O que não fica claro é se essa diferença de percepção é uma diferença de nomeação ou
de tratamento. Preciso ser mais clara: entre pessoas brancas, um negro de pele clara é
nitidamente um contraste não-branco. Já lemos muitos relatos nesse trabalho, principalmente
de Davi, sobre como entre brancos, definitivamente ele não se sente parte do conjunto. Entre
pessoas de pele preta, o pardo também será um contraste, e será nomeado como não-negro.

Elza: Porque assim, os brancos eles não vão olhar pra mim e vão dizer que
eu sou branca. E os negros vão olhar pra mim e enxergar em mim um
branco. Eles vão enxergar em mim o branco porque há diferença, o
contraste, então, eles vão direcionar pra mim.

O que acontece, porém, é que ser nomeado como branco ou não-negro, não é o mesmo
de ocupar esse lugar social. Assim como, não ser nomeado como negro, não é o mesmo de
não ser racializado. Eu poderia apostar que, em nenhuma situação de racismo que vivi, caso
114

esses agressores fossem confrontados, me nomeariam como negra. Acho até que eles se
defenderiam assim: “eu racista? Mas essa menina nem é negra, é moreninha...”. Com isso eu
quero dizer que também sinto que as pessoas, em locais de maioria preta, não vão me nomear
como negra. Apesar disso, nesses mesmos ambientes de maioria preta, nunca tive o privilégio
que um branco dispõe. O privilégio de ser vista como uma boa cliente, por exemplo, que não
irá roubar. Sejam em lojas populares de bairros ou em Shoppings, os olhares e o tratamento
dos outros me mantém no mesmo lugar social.
Sem querer encarar nesse trabalho o paradigma da corporeidade, é útil trazê-lo como
possibilidade reflexiva. A controversa entre o que se verbaliza e o que se percebe ou sente,
parece ser o dilema clássico entre corpo e mente. Vamos observar essa perspectiva trazida por
Csordas (2008):

Essa abordagem da corporeidade parte da premissa metodológica de que o


corpo não é um objeto a ser estudado em relação à cultura, mas é o sujeito da
cultura; em outras palavras, a base existencial da cultura. [...] Quando o
corpo é reconhecido pelo que ele é em termos vivenciais, não como um
objeto mas como um sujeito, a distinção mente-corpo se torna muito mais
incerta (p. 102,142).

Tornar o corpo negro, de pele clara, objeto de ciência, é tentar inteligir sobre ele as
leituras sociais tomadas por entrevistas, conteúdo on-line ou bibliografia clássica. Ouvir o que
os corpos mestiços-negros falam, é perceber seus manejos sociais, seja, por exemplo, a partir
do esforço de adequação estética, intimidações e inseguranças frente o espelho, ou emoções
de medo e inadequação em ambientes de poder. Eu visto essa pele e aprendi ao longo do
tempo que é necessário ouvir o corpo quando ele sinaliza desajustes, mesmo que a
racionalidade não tenha conseguido fazer a relação entre situação e subjetividade.

[...] o corpo é um ponto de partida produtivo para analisar a cultura e o


sujeito. [...] uma análise da percepção (o pré-objetivo) e da prática (o
habitus) fundada no corpo leva ao colapso da distinção convencional entre
sujeito e objeto. Esse colapso nos permite investigar como os objetos
culturais (incluindo sujeitos) são constituídos ou objetificados, não nos
processos de ontogênese e socialização de crianças, mas no fluxo e na
indeterminação em curso da vida cultural adulta (CSORDAS, 2008, p.
145/146).

Considerando isso, chamo atenção para as experiências que têm sido qualificadas como
“trânsito racial” ou “passabilidade”. Se é muito violento para constituição da pessoa negra ser
definida pelo exato oposto de tudo que é bom (branco), é também muito perturbador pensar
que a identidade negra, de negros de pele clara, se estrutura levando em consideração o que
115

não é nem de um grupo e nem do outro, ou seja, nem preto, nem branco. Concordo quando
Schucman (2018) diz que

[...] é importante dizer que esta possibilidade de se classificar de modos


distintos em diferentes situações e relações não é permitido a todos os
sujeitos em nossa sociedade, uma vez que nosso racismo é de marca, é
fenotípico. Assim, no corpo estão inscritos significados racializantes: ele está
imerso em um campo de significados construído por uma ideologia racista.
Portanto, ao ser percebido socialmente, esse corpo emerge do campo
ideológico marcado, investido e fabricado por significados inscritos na sua
própria corporeidade. Trata-se de uma heterogeneidade que corresponde a
uma escala de valores raciais, segundo a qual alguns sinais/marcas físicas
balizam uma hierarquia que vai do branco ao preto, cujo status/valor é
distribuído de maneira desigual entre os sujeitos (p. 87).

Essa “passabilidade” aponta para um privilégio que não cabe na definição das
experiências sociais negras de nenhum tipo. A situação para esses negros-pardos não é a de
pertencer a um grupo e outro, é de não ser acolhido entre brancos e, por vezes, também entre
negros.
Apesar do racismo, a intelectualidade negra já construiu um importante legado ao
recontar os grandes feitos ocultados das civilizações negras, ou construindo e disputando um
espaço, inclusive na consciência social e na mídia, da Beleza Negra, além de outros
empreendimentos que edificam a autoestima dos negros enquanto povo:

A identidade não se reduz somente a uma representação do individuo a


distingui-lo de outros e, ao mesmo tempo, indicando uma semelhança sua
em relação a determinado grupo de referência, porém, mais do que isso – e o
que é decisivo para o desenvolvimento da identidade do afro-descendente
em uma comunidade hegemônica de valores “brancos” – a identidade é uma
referência em torno da qual a pessoa se constitui. Adicionando-se a visão de
Gadamer (1993), para o qual a cultura é o meio universal da experiência,
significando ser o indivíduo por ela constituído, pode-se assumir serem as
qualidades “negritude” e “africanidade” aspectos constitutivos e essenciais
das construções simbólicas do homem brasileiro, incluindo sua identidade,
independente de seu aspecto físico. A visão deformada de tais qualidades,
criada pelo europeu colonizador, que veio legitimar historicamente a
dominação e o genocídio, direto ou indireto, dos indivíduos considerados
“diferentes”, não-brancos, determina dificuldades para o desenvolvimento da
identidades dos brasileiros afro-descendentes, além de efeitos nocivos nos
relacionamentos pessoais, por terem suas construções simbólicas articuladas
em torno de referência de identidade associadas a inferioridade e a outros
valores vistos socialmente como negativos (SCHUCMAN, 2018, p. 47).

É dentro desse espaço, da negritude, da consciência negra, ou de outros movimentos


políticos e intelectuais, que negros de pele clara e preta reconstroem sua humanidade, como
116

vidas que têm valor, como pessoas herdeiras de uma história legítima, dotadas de inteligência,
beleza e moral:

[a resposta de Steve Biko para a pergunta sobre o significado do slogan


“Negro é lindo” para os princípios da Consciência Negra] “Acho que a
intenção é de que esse slogan sirva, e ele está servindo para um aspecto
muito importante em nossa tentativa de alcançar a humanidade. A gente está
enfrentando as raízes mais profundas da opinião do negro sobre si mesmo.
Quando a gente diz: “negro é lindo”, o que na verdade a gente está dizendo
para ele é: “Cara, você está bem do jeito que você é, comece a olhar para si
mesmo como ser humano”, agora, na vida africana especialmente, isso tem
também certas conotações; as conotações sobre o modo como as mulheres se
preparam para serem vistas pela sociedade, em outras palavras, o modo
como sonham, o modo como se maquiam, etc., que tende a ser uma negação
do seu verdadeiro estado e, de certo modo, uma fuga de sua cor. Elas usam
cremes para clarear a pele, usam coisas para alisar o cabelo, etc. acho que de
certo modo elas acreditam que seu estado natural, que é um estado negro,
não é sinônimo de beleza. Assim, só podem chegar perto da beleza se a pele
delas for a mais clara possível, se os lábios ficarem bem vermelhos e as
unhas bem cor-de-rosa. De modo que em um certo sentido a expressão
“Negro é lindo” desafia precisamente essa crença que faz com que alguém
negue a si mesmo” (Biko apud Silva, N., 2001, p. 41).

Se negros-pardos não são negros legítimos, isso, ao contrário de privilégio, é a realocação


para o “não-lugar”/limbo daqueles sujeitos que foram, anteriormente, resgatados do
isolamento pelos discursos coletivos (FIGUEIREDO, 2005).

Davi: Quando estou no terreiro que frequento que é num bairro de maioria
negra, quando estou lá, eu sou lido como branco pela maioria das pessoas.
Quando estou em outros ambientes, a exemplo, ambiente profissional, que
também tem muitas pessoas negras, mas ainda assim conseguem fazer essa
leitura ao menos de que não sou branco, ninguém me categoriza como isso
não.
Gabriela: Então qual a diferença? Porque no início eu estava começando a
entender que a diferença era a quantidade de pessoas mais claras ou mais
pretas. Então no bairro do seu terreiro tem gente mais preta, então você se
sente menos preto, mas no seu trabalho tem muita gente preta também e
você não se sente menos preto.
Davi: No bairro do terreiro tem muita gente negra e muita gente preta.
Muita gente preta retinta e muita gente preta de pele clara. No trabalho, tem
gente preta retinta, gente preta de pele clara e tem muito branco, a presença
dos brancos faz esse contraste, é o que fazem perceber: “não, ele não é
branco, branco de verdade é aquele ali”.

Essa é uma narrativa muito parecida com a de Beatriz: “eu me entendo como mulher
negra num contexto de que eu não sou branca. Eu tenho claramente na minha cabeça que eu
não sou branca, digamos pura.” Essa coisa de ser um contraste entre brancos, Laudelina
chama de “bicho estranho do lugar”, é como ela se sente em ambientes de maioria branca ou
de negros retintos: “é como se eu não fosse negra o suficiente, entendeu? Assim, ‘eu posso ser
117

negra, mas eu não sou tão negra quanto eles’”. Entre negros de pele clara é onde encontra
seu espaço de pertencimento. Porém, a experiência de contraste nem sempre é o crivo mais
importante da identidade dessas pessoas. Por exemplo, o que reforça o sentimento de pertença
em Chica é morar em uma comunidade periférica. Ela pensa, inclusive, que com o seu
fenótipo, se vivesse em um meio de classe média, talvez não fosse tão estimulada a refletir
sobre seu pertencimento racial. Marielle nos traz de volta o quesito “vivência”, a depender
dele e do “modo como você aborda essa vivência” poderíamos medir a legitimidade daquela
autodeclaração.

Carlos: É… como Marielle falou, eu creio que não seja só características


físicas ou cor da pele, porque sou negro na faculdade e três quilômetros de
distância, no meu bairro, as pessoas me leem como branco, sabe? É mais
uma questão de vivência, de consciência, de você se identificar como sendo
pertencente a um movimento, a uma história, a entender seu papel social. E
aí, depois disso, vai se criando uma consciência, uma necessidade de se
identificar como sendo negro, ou se for branco, dependendo da
afroconveniência. Mas é uma mistura, sabe?
Gabriela: Então no caso, por exemplo, de uma pessoa negra, esse
identidade depende da aparência dela, do contexto dela, da trajetória de
vida dela, é isso né? Mais ou menos o que vocês dizem?
Marielle: É o conjunto. Porque também tem toda carga cultural, étnica e
tudo mais que uma pessoa preta, uma pessoa parda não tem a mesma carga
étnica de ancestralidade que uma pessoa branca tem, que uma pessoa
indígena também tem, são diferentes.

Considerando que existirão pretos ricos e brancos pobres, considerando que a cor da
pele por si só não pode ser um critério, Marielle conclui que “a única coisa que une todos os
pretos pra mim é discriminação”. Então Dias, que nos diz nunca ter sofrido racismo não seria
negro para Marielle?

Marielle: Todo preto já sofreu… Todo preto PARDO, não branco, já sofreu
discriminação, agora em diferentes níveis né? Isso pra mim é o que une todo
mundo.
Gabriela: Se uma pessoa falar assim: “sou negra, mas nunca sofri
racismo.” Essa pessoa, por exemplo, não é negra?
Marielle: É, porque ela pode até ter passado, mas ela não percebeu. Pra
mim é isso. Por mais que a gente não seja chamado de macaco na rua, a
gente percebe o tratamento diferente. Eu não sei se você já percebeu, mas…

Quando Schucman (2018) diz que “não é a cor de ninguém que produz o sentimento do
racismo, mas sim a dominação racial” (p. 121), nos faz entender que a pele clara de uma
pessoa negra não a blinda do racismo, desde que sua leitura social seja racializada. Isso me
lembra da pesquisa que Schwartzman (2009) realizou entre cotistas na Universidade Estadual
do Rio de Janeiro:
118

Am I discriminated against?
If one agrees that the purpose of affirmative action is to compensate for
discrimination, one is left with the question of exactly who suffers
discrimination. Joana claims she is not discriminated against despite her
‘bad’ hair, but can we rely on her perception? As we have seen, there is a
difference of opinion between Antonio and policy designers about which
categories of people are discriminated against. Antonio distinguishes
between pardos and negros, thinking that only the latter suffer
discrimination. The proponents of the change in the law, based on social
scientific statistical research, see pardos as being enclosed within the negro
category, and suffering the same amount of discrimination. This disjuncture
between Antonio’s and policymakers’ perceptions is the result of two
methods by which people learn about discrimination: by directly observing
discriminatory processes or by deducing its existence from observation of
patterns in the outcomes of discrimination. Impersonal forms of
discrimination are more difficult to be perceived directly than the more
personal forms, where processes are more visible. Gabriel, an older student
who used to work as a teacher, and who is very politically engaged with the
negro cause, describes his experience with institutional discrimination the
following way: The thing [racism] is so hidden that the negro sometimes
doesn’t get offended. Sometimes he has to stop to analyse what happened so
that he notices that he is being discriminated against. [_] He doesn’t notice
this, as for example, when he looks for a job. I suffered this a lot. I was only
able to do well professionally when I went through exams to work in the
public sector. Because then there is no colour. You do the exams, get the
highest grade, get classified in the first place, and nobody can kick you out.
But in private schools, I never worked in private schools more than two
years. Always by chance, it happens by chance, the class got smaller [_] the
class always gets smaller, someone always takes my place.
Gabriel cannot observe the process of discrimination directly, but has to
deduce it through its effects. In what he calls his ‘ civil life ’ discrimination
becomes more directly visible (p. 241-242).54

54 Sou discriminado? Se alguém concorda que o propósito da ação afirmativa é compensar a discriminação, fica-
se com a questão de exatamente quem sofre discriminação. Joana afirma que não é discriminada apesar de seu
cabelo ‘ruim’, mas podemos confiar na percepção dela? Como vimos, há uma diferença de opinião entre Antonio
e os formuladores de políticas sobre quais categorias de pessoas são discriminadas. Antonio faz uma distinção
entre pardos e negros, pensando que só estes sofrem discriminação. Os proponentes da mudança da lei, com base
em pesquisas estatísticas científicas sociais, veem os pardos como incluídos na categoria do negro e sofrendo a
mesma discriminação. Esta disjunção entre as percepções de Antonio e dos formuladores de políticas é o
resultado de dois métodos pelos quais as pessoas aprendem sobre a discriminação: observando diretamente os
processos discriminatórios ou deduzindo sua existência a partir da observação de padrões nos resultados da
discriminação. As formas impessoais de discriminação são mais difíceis de serem percebidas diretamente do que
as formas mais pessoais, onde os processos são mais visíveis. Gabriel, um aluno mais velho que trabalhava como
professor e que é muito engajado politicamente com a causa negra, descreve sua experiência com a
discriminação institucional da seguinte forma: A coisa [racismo] é tão escondida que o negro às vezes não se
entende ofendido. Às vezes, ele tem que parar para analisar o que aconteceu para perceber que está sendo
discriminado. [_] Ele não percebe isso, como por exemplo, quando procura emprego. Eu sofri muito isso. Só
consegui me sair bem profissionalmente quando fiz provas para trabalhar no setor público. Porque então não há
cor. Você faz os exames, tira a nota mais alta, é classificado em primeiro lugar e ninguém pode expulsá-lo. Mas
em escolas particulares, nunca trabalhei em escolas particulares por mais de dois anos. Sempre por acaso,
acontece por acaso, a turma fica menor [_] a turma sempre fica menor, alguém sempre toma o meu lugar.
Gabriel não pode observar o processo de discriminação diretamente, mas deve deduzi-lo por meio de seus
efeitos. No que ele chama de discriminação de "vida civil", torna-se mais diretamente visível (tradução nossa).
119

Guimarães (2008) também nos traz uma contribuição muito importante nesse sentido:

Podemos falar em preconceito, quando aqueles que o sofrem não o sentem?


A pergunta pode parecer uma contradição em termos, mas não é. Aquilo que
as ciências sociais definem objetivamente como discriminação, ou a
manifestação do preconceito em comportamentos, muitas vezes pode ser
considerado um procedimento normal e esperado. Numa sociedade de castas,
por exemplo, os escravos ou castas inferiores gozam de certos privilégios
negativos em sua interação com senhores ou castas altas; do mesmo modo
que, numa sociedade de classes muito hierarquizada, as classes baixas são
tratadas de forma a deixar clara sua posição de inferiores. Tais
comportamentos são sancionados socialmente e considerados aceitáveis.
Entretanto, o que é natural nessas sociedades seria inaceitável e considerado
preconceituoso e racista numa sociedade democrática, igualitária e
individualista (p. 63).

Gabi de Oliveira é uma blogueira negra, de pele preta, que compartilhou um vídeo no
Youtube a respeito do “colorismo” em 2016. Destaco aqui algumas sentenças que ela declara a
respeito desses critérios de identidade/identificação:

Se você nunca notou sua negritude, se você nunca foi olhada torta por causa
da sua negritude, sinto muito, mas você não é negra! [...] Cabelo cacheado
não te faz negra, preconceito contra cabelo cacheado não é o mesmo que
racismo. [...] Se você já foi dita como mulata, morena escura, você pode se
reivindicar como negra, mas lembra, é necessário ter passado por alguma
situação (OLIVEIRA, G., 2016).

Carlos faz menção a um projeto fotográfico que usou a “Escala de Cores Pantone”55
para pensar semelhanças e diferenças entre pessoas de cores iguais:

Carlos: Então a questão é: a cor da pele, essas coisas, é sim um fator, mas
não o fundamental, é outras coisas que influenciam, como a questão da
discriminação que Marielle falou, que ajuda a identificar, que ajuda a se
perceber, [...] É um fator que se ajuda, que de alguma forma une todas… Ou
uma porcentagem gigantesca pelo menos.

A fala de Carlos de baseia na imagem a seguir. Se as duas mulheres têm a mesma cor e
ao mesmo tempo pertencem a grupos raciais distintos, outras coisas devem ser levadas em
consideração.

55
Ver <http://www.arcoirisge.com.br/o-que-e-a-escala-
pantone/#:~:text=Fundada%20em%201962%20em%20New,t%C3%AAxtil%2C%20de%20tintas%20e%20pl%
C3%A1sticos>.
120

Figura 12 – Duas mulheres da mesma cor: uma é branca outra é negra.

Fonte: HEBREU, Anderson. Negros claros VS Negros retintos, Colorismo, Afro-conveniência e o


"Lynch'amento". 2019. <http://www.noticiario-periferico.com/2019/09/artigo-negros-claros-vs-
negros-retintos_8.html>. Acesso em 25 set. 2020.

Marielle mais uma vez nos traz uma fala muito sensível e que vai estar presente quando
mergulharmos cabeça pra tratar sobre colorismo. Diferenciar claros e escuros seria uma
estratégia de divisão interna para a população negra:

Marielle: [...] você percebe que a supremacia branca ela se protege


bastante, brancos eles se protegem bastante e é uma coisa que a gente
precisa aprender também, a ter bastidores e a proteger os nossos. A gente
não se encaixa nesses espaços porque a gente é sempre mestiço, mulato, é
sempre misturado, café com leite...
Carlos: Branco demais pra ser negro...
Marielle: Branco demais pra ser negro e claro demais… E preto demais pra
ser branco.

Já que estamos tentando entender as principais experiências desse pertencimento racial,


precisaremos tratar de um elemento que se destaca nessa dinâmica, a dimensão da
controversa.

Gabriela: As pessoas negras te reconhecem como negra?


Marielle: Há controvérsias.
Gabriela: E como é que fica isso? Porque é importante que te reconheça,
mas nem sempre te reconhece, e como é que a gente resolve isso?[...]
Marielle: É por isso que eu digo que o conflito nunca vai embora, no meu
caso. Porque eu reconheço que o grupo precisa reconhecer e quando o
121

grupo entra em controvérsia a controvérsia chega a mim, entendeu? É um


sofrimento que não tem fim. (risos)
Gabriela: Entendi.
Marielle: Tipo isso. E você Carlos, o quê que você acha?
Carlos: A pessoa não vai deixar de ser negra porque pessoas negras, no
caso mais retintas, não reconhecem ela como negra. E se a pessoa não
reconhece ela como negra por ela ser menos retinta, não é uma falha da
pessoa menos retinta, sabe? É uma falha de como a educação racial se deu,
de como a leitura racial é feita [...] é um papel dela [da pessoa negra com
pele clara] tentar levar esse assunto, ou pelo menos levar essa causa pro
movimento, pras discussões, pra pôr em prática o que ela pensa, o que ela
vive pra mostrar: “sim, eu sou negro também, por tal e tal motivo”, e ouvir
o porquê a pessoa não te considera negra, tentar entender o porquê a
pessoa não te considera negra. [...]

3.3 O CONFLITO INTERNO

Nesse momento, lidamos com as repercussões pessoais que os confrontos entre


autodeclaração e heteroidentificação levam para os atores dessa pesquisa.

Figura 18 – (1) Pretos, brancos ou pardos? Printscreen da publicação em 2020.

Fonte: Facebook.
122

Figura 19 – (2) Pretos, brancos ou pardos? Printscreen da publicação em 2020.

Fonte: Facebook.

Como temos repetido, compreendemos a identidade como esse caminho aberto,

[...] um constructo que reflete um processo em constante transformação,


cujas mudanças vêm sempre associadas a mudanças de referências e as
novas construções de realidade por parte dos indivíduos, determinadas por
sua participação em certos processos provocadores de impacto existencial
(SCHUCMAN, 2018, p. 46).

Os “conflitos internos” conformam momentos de recuo. Kobena Mercer (1990) citado


por Hall (2005) nos fala que “a identidade somente se torna uma questão quando está em
crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da
dúvida e da incerteza” (p. 43). Esses conflitos jogam os mestiços-negros de uma ponta pra
outra de uma relação de natureza assimétrica, que envolvem brancos e negros.

Marielle: Eu pelo menos me sinto assim, sempre que alguém questiona


minha identidade eu me sinto bem perdida. Aquela indecisão bate de novo
de “ah, eu não sou negra, mas também não sou branca, o quê que eu
sou?”, tipo isso. Eu me sinto muito perdida, sempre, sempre que acontece. E
é um sentimento que não vai embora, pelo menos não na minha vida.
Carlos: Eu também. Eu me sinto deslocado porque já é complicado, como
Marielle falou: até hoje tem momentos que ela sente a dúvida, ela se sente
confusa em relação a como se encaixar, e quando você recebe comentários
né? Percebe isso de forma externalizada. De forma concreta é mais
complicado ainda, porque como é que eu vou de encontro àquela pessoa se
eu vivo num país que não me permite, dependendo dos locais que eu vou, me
dar uma característica exata? Se eu for pra um país europeu, se eu for para
um país onde 80, 90% da população é branca e o resto é estrangeiro, ou
pessoas nascidas lá de primeira geração, eu vou ser lido como negro. Na
faculdade eu sou lido como negro, no meu bairro dependendo do lugar que
você perguntar, eu vou ser lido como branco, sabe? [...] A pessoa cresce
123

com a dúvida, sabe? Ao invés de crescer com uma identidade, como foi o
meu caso. Eu cresci com a influência de casa, junto com influências do meu
bairro, um dizendo um, outro dizendo outro, e só na faculdade que eu
realmente reconheci o que eu era. Mas até lá foi essa questão: comentários
de um lado, comentários de outro, porque não tem aquela unificação de
pensamento, e isso me deixou bastante confuso, até hoje me deixa, sabe. [...]

Esses sujeitos estão constantemente se repensando, refazendo essa autodeclaração:


avançam em direção a uma identidade negra e regridem para um limbo. “A palavra ‘negro’,
ao traduzir o humano, existencializa-o, demonstra que os indivíduos e grupos se fazem na
prática social” (CUTI, 2010, p.7). Tal como nos fala Cuti (2012), tornar-se negro é a
reconstituição da humanidade, é também, muitas vezes, a solução psicológico para conflitos
que o indivíduo sofre e não compreende.

Ante a ideologia do branqueamento, a negritude se apresenta como uma


tentativa de passar do negativo ao positivo, valorizando as heranças culturais
de origem africana e a imagem do grupo como elemento substancial na
ordem de referencia étnica. Enquanto discurso dos militantes negros, ela
sustenta uma linguagem que reivindica que a salvação do negro não está na
busca da assimilação dos valores do branco, mas sim na retomada de si
mesmo, isto é, na sua afirmação cultural, moral, física e intelectual, na
crença de que ele é sujeito de uma história e de uma civilização fecunda,
digna de respeito (D’ADESKY, 2001, p. 139).

Ser deslegitimado significa perder um pertencimento racial que lhe resgata como ser
humano, e também supor sobre si mesmo, conduta imoral de oportunismo e desonestidade.

Laudelina: Ah, ficava em crise, total. Assim, com medo disso de


afroconveniência. [...] “Poxa, será que eu tô viajando? Será que eu sou
negra mesmo?” E é uma coisa que até hoje nunca, não vou dizer que
passou, não assim, de ficar de boa, porque até hoje eu sou questionada
assim. [...] Então, eu sempre fico muito, não é uma questão muito bem
resolvida em mim...

Elza: [...] Sempre que as pessoas me perguntam “você se identifica negra,


afrodescendente?”, eu sempre me pergunto “como eu me identifico?”.

O que fazia Elza questionar a sua autodeclaração era perceber como suas experiências
de racismo, assim com as experiências de racismo dos seus conhecidos negros, de pele clara,
eram menos frequentes que as dos negros retintos. Para Dias, essa crise na autodeclaração
veio com a reprovação pela Comissão de Aferição da UFBA. Chica, por outro lado, ao ser
aprovada, conta que esse resultado não repercutiu sobre sua identidade. Ela trata essa situação
como um procedimento burocrático, formal. Dias submeteu um recurso à Comissão e foi
relendo várias vezes esse documento, ao longo do tempo, porque os argumentos lhe ajudavam
a reforçar o sentimento de pertença:
124

Foi muito impactante, entendeu? Mas se sempre me declarei assim na vida


toda, por que que agora, [...] eu vou parar de me autodeclarar assim? Não
faz sentido eu parar, entendeu? [...] mas eu não vou mentir que eu pensei,
tipo assim, será que eu sou mesmo? Será que eu tô querendo ocupar uma
vaga que não é minha? Mas depois eu vi que tipo assim, é onde eu me
encaixo. É o jeito que eu me identifico, entendeu?

A bibliografia acerca dessas Comissões vai nos dizer que seu objetivo não é fornecer ou
desfazer uma identidade, mas garantir que os beneficiários para quem as cotas raciais foram
pensadas, sejam aqueles sujeitos cujo fenótipo lhe impõe ou poderia lhe colocar, em uma
condição de desvantagem social. É possível, então, que Dias continue se afirmando como
pardo, em nome de tudo que justifica, mas não seja reconhecido como alguém passível de
sofrer racismo. Identidade é uma coisa complexa, o trabalho da Comissão é colaborar para o
bom funcionamento de uma política pública.
Assim como Dias, nossos entrevistados têm diferentes estratégias para reforçar essa
autodeclaração no momento em que se sentem em crise. Elza por exemplo, conta o seguinte:
“lembro das dificuldades que eu enfrento na minha vida e que eu sei que eu enfrento porque
eu não sou branca”. Quando esse indivíduo questiona sua racialidade, precisa refazer a
trajetória que lhe conduziu à autodeclaração negra. O que inclui repensar, por exemplo, as
situações em que foi vítima de racismo. A cor da pele é o que, para Davi, o faz questionar sua
autodeclaração. “Eu realmente penso que não sou tão escuro assim, então será que eu sou
mesmo?”.

Davi: [...] Ainda é uma identidade frágil, esse é o entendimento que eu tenho
hoje, e eu posso ler três ou quatro livros amanhã e acabar achando que tem
que se criar uma nova identidade mesmo. Agora, a única certeza que eu
tenho é que eu não me encaixo na braquitude, a única certeza que eu tenho é
que independente do nome dado a minha identidade racial, ser negro ou
não, eu tenho uma responsabilidade da manutenção da minha
ancestralidade africana e eu sou herdeiro dessa ancestralidade, ponto.
Independente de eu ser considerado negro ou não. Acho que esse é um ponto
central na construção dessa identidade, a gente se entender a partir da
nossa história. E a minha ancestralidade que vem de África faz parte da
minha história.

Sugiro que as dúvidas sobre essas auto/heteroclassificações raciais e a produção dessas


incertezas podem conduzir a interpretações diversas e, inclusive, contraditórias aos próprios
interesses dos movimentos negros. Conheçamos um pouco da organização política chamada
“Nação Mestiça”:

Em 2001, nasce nos subúrbios de Manaus o movimento social Nação


Mestiça. O discurso do movimento pode ser resumido por uma fórmula:
125

“sou mestiço nas minhas origens, caboclo na minha cultura e cidadão frente
aos meus direitos”. A fórmula é tão simples que, à primeira vista, seu
conteúdo reivindicatório escapa ao observador. Qual é o sentido político de
se afirmar o óbvio? Não é notório que o Brasil é um país mestiço? Que a
Amazônia é a terra dos caboclos? Que a cidadania define o espaço dos
direitos? Pois, justamente, denuncia o Nação Mestiça, essas evidências estão
sendo destruídas. Dentro da nova engenharia das relações “étnico-raciais”, o
“mestiço não existe”. Ao afirmar cada vez mais na estatística nacional e nas
políticas públicas que pretos e pardos são negros, e que ser negro é ser
culturalmente afro-brasileiro, o caboclo se torna invisível. Ao redefinir o
acesso a direitos universais (educação, terra, saúde...) na base de critérios
diferenciais (etnia, cor, raça), a igualdade como princípio fundador da
cidadania se esgota. [...] O Nação Mestiça rompeu sua cooperação com o
movimento negro e criou um fórum mestiço, afirmando a realidade da
mestiçagem como processo, e a cultura cabocla como irredutível à cultura
afro-brasileira. [...] Foi justamente para denunciar o clima de “mestiçofobia”
que nasceu o Nação Mestiça. [...] Ora, para o pequeno grupo de amigos que
fundou o Nação Mestiça, o mestiço existe, sim, e a afirmação de que pardos
são negros não funciona, muito menos na Amazônia. De acordo com o
Censo 2000, o Amazonas é o estado mais pardo do Brasil, com 66,9% da
população (a média nacional de pardos é de 38,45%). Porém, o estado tem a
terceira menor população de cor preta (3,10%), depois de Santa Catarina
(2,65%) e do Paraná (2,84%). Os dados exprimem o argumento central do
movimento social: na Amazônia, os pardos são caboclos, mestiços oriundos
da mistura de brancos e índios. Por esse motivo, não podem ser considerados
negros (VERÁN, 2010, p. 21, 23, 27, 28).

O discurso do “Nação Mestiça”, junto com a reflexão que Lehmann (2017) faz sobre o
poder de nomear, nos faz pensar como as diferentes estratégias de classificação racial esteve e
se mantém como parte importante da formulação de políticas públicas. Ou seja, dar nome aos
bois é uma tarefa séria e remete-se a cálculos políticos históricos.

O poder de nomear é um instrumento nas mãos da cultura hegemônica e os


movimentos sociais existem para questionar esse poder. O aparelho do
Estado pode prover recursos e oportunidades, seus funcionários podem
evitar comportamentos arrogantes ou condescendentes; a burocracia pode
aplicar modelos objetivos, calibrados, justos e transparentes, mas que sempre
acabarão em classificação e categorização de populações subalternas. E isso
reproduz, de alguma maneira, uma relação de dominação frente à população
alvo de projetos de desenvolvimento e de ativismo não governamental
(LEHMANN, 2017, p. 187).

Carlos fala que, da mesma maneira que sua identidade negra está se construindo em
tempo relativamente recente, também são novos pra ele, os confrontos em relação a sua
autodeclaração. Esses debates têm lhe feito “crescer” e “amadurecer” em relação à
compreensão dessa identidade:

Carlos: Eu acho que essa questão não pode ser tirada de mim. Eu sou negro
de pele clara, e tudo que eu vou ouvir vai ser coisas que um negro de pele
clara vai ouvir. Então, essa questão de dúvida que gera, acho que são mais
126

os desafios, porque eu não vou deixar de ouvir que eu sou branco em algum
local. Cabe a mim entender que eu vou ouvir isso em alguns locais, e não
criar dúvidas na minha cabeça, e entender que assim como algumas pessoas
mais retintas sofrem coisas que eu não vou sofrer, [...] eu vou ser lido como
branco em alguns locais que uma pessoa mais retinta não vai ser. [...] Eu
tenho meus privilégios em certos locais por ser menos retinto, mas eu sofro
coisas também que ele não vai entender, sabe? Essa dúvida, por exemplo.
Uma coisa que me perseguiu por muito tempo. É uma coisa que ajudou por
muito tempo a enfraquecer minha identidade e é uma dificuldade social você
não conseguir se encaixar num local, você não se sentir à vontade pra ter
um local de fala, você achar que a pessoa tem um local de fala maior que o
seu, e essas questões de identidade foram o que me atrapalhou, me
atrapalhou dessa forma. [...]

A fala de Carlos reforça o que tratávamos antes, sobre desmistificar, através de


experiências negras concretas, o discurso único sobre ser negro.

Uma das características do racismo é a maneira pela qual ele aprisiona o


outro em imagens fixas e estereotipadas, enquanto reserva para os
racialmente hegemônicos o privilégio de serem representados em sua
diversidade [...] Afinal, negro e japonês são todos iguais, não é? Brancos
não. São individualidades, são múltiplos, complexos e assim devem ser
representados. Isso é demarcado também no nível fenotípico em que é
valorizada a diversidade da branquitude: morenos de cabelos castanhos ou
pretos, loiros, ruivos, são diferentes matizes da branquitude que estão
perfeitamente incluídos no interior da racialidade branca, mesmo quando
apresentam alto grau de morenice, como ocorre com alguns descendentes de
espanhóis, italianos ou portugueses que, nem por isso, deixam de ser
considerados ou de se sentirem brancos. A branquitude é, portanto, diversa e
multicromática. No entanto, a negritude padece de toda sorte de indagações.
(CARNEIRO, 2016, p. 1).

Ser deslocado de um lugar para o outro, posições tão opostos entre si – ser negro e ser
branco – é, para Carneiro (2016), sintoma do racismo e, complementaríamos, nocivo para a
construção de uma identidade coletiva e politicamente engajada, como envolve o processo do
tornar-se negro (FERREIRA, 2001). A defesa que os nossos entrevistados fazem, pela sua
autodeclaração, tem a ver com o poder de nomear, e também, poderíamos acrescentar, com o
controle da própria imagem:

Mas, afinal, o que é uma imagem? As imagens são representações de si


construídas pela sociedade através de seus discursos que nos constituem
como sujeitos. Contudo, Patricia Hill Collins reivindica que é preciso
assumir o controle da imagem, pois somente assim será possível a
construção de uma auto-definição ou de uma auto-imagem positiva
(FIGUEIREDO, 2005, p. 166).

A experiência de ser negro de pele clara não parece ser, na maioria dos casos, a
experiência de acolhimento num grupo e noutro. É a experiência de desertar de ambos.
127

Quando Carlos ou alguns outros entrevistados narram não serem identificados como negros,
não é porque a branquitude assume-os como um dos seus, é que os negros de pele preta lhes
disseram não serem pretos o suficiente. De igual forma, quando muitos nos disseram que,
entre os brancos, tem clareza de serem diferentes, não é necessariamente porque se sentiram
acolhidos entre negros, e sim porque sofreram racismo. Pessoalmente entendo que, se ainda
restam dúvidas, aí está a diferença entre negros de pele clara e brancos: negros de pele clara
são pessoas racializadas e por isso mesmo não são pessoas que participam branquitude, ainda
que por ventura, sejam nomeadas como brancas em determinados contextos.

Aqui, a título de vivência, trago (discente) o conflito pessoal. Após um


encontro com a história do Brasil que me foi negada na escola, consciente do
processo de construção racial brasileiro, passei a me autodeclarar enquanto
negra, e não mais como parda, por saber que não era uma mulher branca. No
entanto, mediante ser lida socialmente como “branquinha” ou “clarinha” em
alguns ambientes, em outros ser identificada enquanto parda e quase nunca
como mulher negra, gozando dos privilégios sociais da pele clara e dos
traços finos, fui impelida a refletir acerca da minha autodeclaração. Diante
deste conflito de dissonância entre o que me identificava e o olhar do outro,
principalmente se era uma pessoa preta retinta (se aquele que faz parte do
grupo me rejeita, como posso fazer parte?), passei a me autodeclarar
enquanto mulher parda (ALVES, 2019, p. 26/27).

O testemunho da pesquisadora em seu próprio texto monográfico nos faz pensar que
uma certa “síndrome do impostor” sempre acompanha os negros de pele clara, é como se a
qualquer momento eles pudessem ser “descobertos” como não-negros “de verdade”. Essa é a
experiência de ser impelido constantemente a partir. Muitas dessas pessoas tentavam ocupar
um lugar incômodo mais perto da branquitude enquanto morenas ou pardas. Um dia elas
começaram a perceber que aquela posição era, no máximo, a de quase-alguém. Era uma
identidade que nunca se completaria, então desertam. Passaram a mergulhar na compreensão
dessa identidade negra e reivindicá-la para si. E aí são novamente impelidos a desertar porque
não são re-tintos, “duas mãos de tinta”. Não é que essa identidade nunca se complete também
entre negros. Como lugar de poder e hegemonia, a branquitude não permite multiplicidade de
discursos sobre ser branco. Por outro lado, o ser negro consegue comportar diferentes
experiências de racialização.
A narrativa de Jaci difere das demais por não nos remete a uma dúvida quanto a sua
própria autodeclaração. Nos momentos de embate, ela nos conta sobre a prática de “educar”:

Eu me sinto validada e encorajada a explicar o porque desse… O porque


dessas perguntas, e o por que dessas dúvidas, né? Uma oportunidade que eu
tenho de desconstruir algo que não está devidamente desconstruído na
sociedade. [...] tem essa coisa também que as retinta, as mulheres negras
128

retintas elas trazem, né? Que ela nunca teve dúvida de que era negra, mas
as não retintas sim. Mas isso não é culpa nossa, a gente não pode cair no
discurso neoliberal de culpabilização individual. Se nós, enquanto peles
menos escuras, tivemos essa dificuldade, não foi por culpa nossa né? Foi
dado por esse processo racial de democracia brasileira que dividiu,
sobretudo as mulheres, em brancas, mulatas e pretas.

3.4 MOVIMENTOS NEGROS

Militantes mais velhos geralmente são aqueles que não entram em dilemas que
deslegitimam negros claros. Pensando em uma perspectiva histórica, isso faz muito sentido.
Foram essas gerações mais velhas que enfrentaram o auge do mito da Democracia Racial e
elaboraram as políticas afirmativas, afirmando que pretos e pardos têm lugar de pertencimento
negro na sociedade brasileira. As gerações mais novas são fruto desse empreendimento
político, mas também atravessadas por preocupações mais novas, trazidas pelo “colorismo”,
por exemplo. Recentemente um vídeo ao vivo e disponibilizado no Youtube56, foi gravado em
nome da editora Companhia das Letras e contou com as participações de Djamila Ribeiro,
Bianca Santana, Flávia Oliveira e Sueli Carneiro. Em um dado momento da conversa, o
assunto “colorismo” foi tocado. Sueli Carneiro inicia a fala da seguinte forma: “eu sou uma
mulher velha, então eu tenho posições antigas, né” (2020), ela fala que se incomoda com esse
assunto e qualifica-o como “um tiro no pé”. Carneiro aponta que pertence a geração que se
esforçou em constituir a categoria “negros” pela soma de pretos e pardos. Esse teria sido um
empreendimento de “engenharia política” (CARNEIRO, 2020) e “esforço acadêmico
extraordinário” (Ibid. op. cit.), envolvendo “uma vasta produção sobre desigualdades sociais
no Brasil” (Ibid. op. cit.). O “colorismo” faria com que os movimentos “retornassem aquele
ponto de crítica de partição” (Ibid. op. cit.). Na sua fala, Sueli Carneiro se coloca como
testemunha “dos prejuízos que essas partições” (Ibid. op. cit.) produziram contra a própria
população negra: “se a gente for insistir nessa diapasão eu quero saber o que a gente vai fazer
com aqueles corpos que estão no IML que são, na sua maioria, pardos também, aqueles
corpos de meninos negros assassinados” (Ibid. op. cit.). A escritora observa que o “colorismo”
é um tema muito presente entre as mulheres, o que lhe leva a suspeitar “que está sempre
eivado pelas disputas no mercado afetivo, e aceitar esses termos do debate é rebaixar a
problemática racial de toda a magnitude que ela tem, que está para além disso” (Ibid. op. cit.).

56
Ver Feminismos negros, com Sueli Carneiro, Bianca Santana e Djamila Ribeiro #JornadasAntirracistas.
Companhia das Letras, 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=2mmuyRXHHg0&t=26s>.
129

Não é que a diferença entre negros claros e escuros não fosse vista antes, já trouxemos
exemplos de como essa controversa é antiga. Mas só agora isso começar a ser elaborado com
um conceito acadêmico-político, o “colorismo”, com força mobilizadora de um grande debate
não só no Brasil. Retomando o tema dos movimentos negros, Laudelina conta sobre situações
que viveu no interior dessas organizações.
Laudelina: Eu acho que o debate não é feito da forma que deveria ser,
porque eu acho que se esse, né, esse Movimento Negro ou outros
movimentos relacionados à questão racial debatessem isso de forma, de uma
forma mais tranquila, mais acolhedora, mais amena, talvez, a gente
conseguisse acumular, aglutinar várias forças, né, pra enfrentar o racismo e
outras questões importantes, sabe?! Porque acho meio limitado colocar
apenas pessoas retintas como negras, entendeu?
[...] Sendo que existem milhões, milhões de formas de vivenciar a negritude.
Você provavelmente deve ter passado por algum, por alguma situação de
racismo que outras pessoas de pele clara passariam de outra forma e etc.,
sabe?! Eu achava que deveria ter um acolhimento e enfim, e tentar aglutinar
força mesmo...

Não podemos afirmar que essas falas refletem necessariamente todos os movimentos
negros. Como disse antes, existe uma diferença geracional. Sem querer falar sobre
organizações legítimas ou não, é importante considerar também que há hoje diversos grupos,
autointitulados coletivos ou organizações negras, que não necessariamente se vinculam aos
movimentos negros tradicionais e nem ao seu legado histórico.

3.5 RETEXTUALIZANDO A VIDA

Milton Santos (2000 apud Ribeiro, 2002) no ensina que existir é “condição para ver o mundo”
(p. 64). Nesse momento, tentaremos mostrar como os nossos entrevistados (re)elaboram sua
vida a partir dessa identidade negra.

A existência do homem pode ser vista como uma contínua tentativa de


“instalar-se” de maneira segura em seu mundo e, simultaneamente, articular-
se com suas constantes transformações. Ele tem de buscar uma ordem
significativa entre suas experiências de vida para este processo se dar.
Quando afirmo “buscar uma ordem significativa” refiro-me ao fato de cada
indivíduo desenvolver um conhecimento hermeneuticamente construído, isto
é, um mundo simbólico, com o qual organiza sua experiência pessoal por
meio de construções sobre o real em que são articuladas suas referências de
mundo e de si mesmo – seus conceitos, crenças, ideias, atribuições sobre si e
sobre seu ambiente físico e social. Esse processo permite ao individuo
identificar os objetos em sua especificidade, reconhecer a si mesmo e aos
outros como indivíduos e organizar suas ações em seu contexto de vida. Em
outras palavras, é como se o homem construísse “teorias pessoais” ou
“mapas” sobre seu espaço físico, social e sobre si mesmo, passando tais
130

“teorias” a de lhe servirem de “guias” de referência para que possa localizar-


se em sua existência e relacionar-se dentro de seu grupo social de maneira
relativamente segura, vindo a favorecer a realização de seus projetos de vida,
no âmbito individual e coletivo (SCHUCMAN, 2018, p. 44).

Todo esse capítulo e o anterior, com ênfases distintas, tratam de um percurso sobre o
tornar-se negro, ou compreender-se, descobrir-se. Esse acontecimento é sempre
transformador, marca um antes e um depois. Verán (2010) chama isso de “conversão”:
“escolher implica um processo de conversão identitária que transforma a percepção de si
mesmo e do espaço social” (p. 34). Essas pessoas olham pra trás e ressignificam a vida. De
repente o bullyng da época da escola não é mais um assédio moral de qualquer ordem, é
racismo. O que Lehmann (2017) irá tratar como “etnicização de conflitos ou de consciência
dos excluídos” (p. 148). A situação de pobreza de origem não é mais infortúnio de família, é
consequência e parte do racismo estrutural: “A negritude aparece aqui como uma operação de
desintoxicação semântica e de constituição de um novo lugar de inteligibilidade da relação
consigo, com os outros e com o mundo” (MUNANGA, 2009, p. 53). Observe, essas pessoas
não querem apagar o passado de referencial branco: café-com-leite, não-branco, quase-
branco, moreno, pardo. Elas saem dessa condição de sombra, de quase-alguém, para uma
condição de ser negro, de assumir uma identidade completa, a partir da qual a sua biografia e
as memórias da sua família fazem sentido. Um senso moral, estético e intelectual é
reabilitado.

Era tempo de buscar outros caminhos. A situação do negro reclama uma


ruptura, e não um compromisso. Ela passará pela revolta, compreendendo
que a verdadeira solução dos problemas consiste não em macaquear o
branco, mas em lutar para quebrar as barreiras sociais que o impedem de
ingressar na categoria dos homens. Assiste-se agora a uma mudança de
termos. Abandonada a assimilação, a liberação do negro deve efetuar-se pela
reconquista de si e de uma dignidade autônoma. O esforço para alcançar o
branco exigia total autorrejeição; negar o europeu será o prelúdio
indispensável à retomada. É preciso desembaraçar-se dessa imagem
acusatória e destruidora, atacar de frente a opressão, já que é impossível
contorna-la. Aceitando-se, o negro afirma-se cultural, moral, física e
psiquicamente. Ele se reivindica com paixão, a mesma que o fazia admirar e
assimilar o branco. Ele assumirá a cor negada e verá nela traços de beleza e
de feiúra como qualquer ser humano “normal” (MUNANGA, 2009, p. 43).

Essa transformação não implica que os caminhos que essas pessoas percorreram durante
essa pré-identidade negra mereçam ser ocultados. Por isso mesmo eu não quero falar sobre
reescrever a vida, a mudança é da ordem do reenquadramento dos sentidos. Antes, essas
narrativas estavam dentro de uma trajetória de vida sem valor (des-valorizada). Depois, a
131

retórica é engajada numa história de vida negra positivada, que poderá se reivindicar
afrodiaspórica, afrocentrada, antirracista ou simplesmente consciência negra.
Luiz Antônio Marcuschi (2008) define o texto como uma realização linguística, cujo
processo de formação pode ser inadequado. Num país racista como é o Brasil, cujos
indicadores sociais mostram clivagens inquestionáveis entre brancos e negros, educado pelo
valor da brancura, é de fato incoerente escrever uma história negra sem considerar a violência
racial, chamando-a de bullyng ou de preconceito de classe. É preciso repensar esse texto,
torna-lo adequado, retextualizar.

Jaci: [Sobre o processo de tornar-se negra] Mudou tudo radicalmente. A


minha percepção de mundo, a minha relação com as pessoas, é… A relação
de não reproduzir mais certos preconceitos. E aí você começa a entrar em
outras áreas também, tipo a questão da… Parece que uma coisa vai
puxando a outra, a questão da gordofobia, a questão LGBT, porque é uma
série de opressões. Então parece que o contexto vai puxando para que você
se torne uma pessoa melhor em relação a outros contextos também, né? Se
você reivindica esse lugar de que você quer ser respeitada a partir da sua
identidade, da forma como você é, você também tem que ser assim com
outras pessoas, né? E que não necessariamente essa diferença vai se dar
pelo cabelo, vai se dar de outras formas também: em relação a sexualidade,
em relação a questão corporal. Então eu me percebi em muito discurso
gordofóbico que eu tenho que desconstruir, eu me percebi em alguns
discursos transfóbicos, e aí desconstruí também, e tudo vai a partir disso aí.

Para além das marcas do racismo, Marielle identifica o contato com a terra que
aprendeu a ter com a sua família, o autocuidado pelos banhos de ervas, e o uso dos “lenços de
amarração na cabeça”, como marcas dessa identidade negra. Ela e Carlos falam também da
culinária de suas casas e de referências musicais negras de suas famílias, como o samba e a
admiração por Jimi Hendrix. É que eles, assim outros entrevistados, me falaram de situações
tão difíceis que os fizeram enxergarem-se negros, que eu queria saber: existe algo mais que te
liga a essa identidade além da dor?

Carlos – [...] por mais que meu pai não milite, por mais que meu pai não
puxe esses assuntos ou deixar, sabe… Muitas vezes, motivado por aquele
assunto, tipo, “não vai mudar em nada, vai continuar assim”, eu percebo
que o meu pai, ele é ligado musicalmente muito no cenário negro. Meu pai
ama ouvir Lucky Dube, e tipo, o sonho era conhecer ele. Meu pai ama ouvir
corais nigerianos cantando. E tipo, passar pra mim, sabe? Grupos negros
americanos que cantavam… [...] e ele gosta disso, é algo que ele me
ensinou, passou pra mim esse gosto, sabe? Por mais que não seja uma
cultura negra nacional, cultural daqui, ainda assim é uma forma de
identificação de pertencimento mais ampla. Mas é uma coisa boa assim de
perceber. Foi algo… Falando agora, eu percebo que é algo que realmente
mais cedo eu poderia ter criado essa identidade em mim, mas não criou.
132

Gosto desses relatos espontâneos, que te provocam pensar enquanto fala, que ao
surgirem sem ensaio prévio, você se surpreende com a própria memória e descobre que tem
mais da sua história do que você já pensou. Voltando ao que eu falava antes, compreender,
tomar para si, elaborar por conta própria essa identidade negra, parece ser um acontecimento
feliz para essas pessoas. Também é transformador, “como diz Aimé Césaire, ser negro não é
tão somente uma questão de cor de pele, mas sim a aceitação desse fato, do tempo presente e
suas relações conflituosas, e também do futuro interpretado sob a luz do direito à diferença”
(D’ADESKY, 2001, p. 141).
Ser negro é ser atravessado por muitas armas raciais, tantas que desde que nascemos,
somos socialmente ensinados a rejeitar à negrura, associada à feiura, à criminalidade, pobreza
e a ignorância, se opondo a branquitude enquanto definição positiva de espiritualidade, moral
ou estética57. Falando sobre onde os meus pés pisam, compreender-me negra foi alívio,
completude e esperança.

A Consciência Negra questiona o condicionamento psicológico como grande


entrave à organização política. Ela, como método de análise, é, ao mesmo
tempo, de uma crueza e de uma sinceridade fanoniana. E, talvez por isso, ela
seja tão atual, já que não se ocupa, necessariamente, do racismo explícito, e
sim do que ele é capaz de introjetar em um certo conjunto de indivíduos,
algo pouco pesquisado em termos de militância. Observar essa crise
existencial que afeta a todos os negros, até mesmo militantes, constitui-se na
pedra de toque da Consciência Negra (SILVA, N., 2001 p. 37).

Ao tornar-me negra, senti que pisava no chão com mais firmeza. É como se antes eu
engatinhasse com cautela, sem deixar que o chão sentisse o peso do meu corpo. Era o
momento em que o máximo que eu podia esperar, era que não surgisse alguém que risse do
meu cabelo ou dos meus traços de nariz e boca largos, como acontecia recorrentemente.

[...] autodesvalorização e conformismo, atitude fóbica, submissa e


contemporizadora são experiências vividas por nossos entrevistados,
humilhados, intimidados e decepcionados consigo próprios por não

57
“[...] quero destacar alguns dados: em primeiro lugar, as ideias de “branco” e “negro” são anteriores à
formação de um discurso propriamente racial. Desde os primórdios das línguas indo-européias, o branco foi
associado ao bem, ao bonito, à inocência, ao puro, divino, enquanto o negro era representado como o
moralmente condenável, o mal, o diabólico. Na idade média, o grande paradigma de inclusão e exclusão era a
filiação religiosa, e não a cor de pele. A grande clivagem era traçada entre “Nós cristãos” e “eles, os
muçulmanos” (“mouros”). Usava-se a cor negra para denominar ou depreciar pessoas moralmente condenáveis
e, de uma forma mais genérica, todos os inimigos de fé: na Canção de Rolando, p.ex, os húngaros são chamados
de “pretos” (cf. Houfbauer 1999:50ss, 88). Mais tarde, de forma semelhante, muitos dos povos “descobertos”
pelos navegadores portugueses, seriam também chamados de “negros” (não apenas os africanos); nos primórdios
da colonização, p.ex, enquanto os indígenas foram vítimas de escravizações, eram frequentemente chamados
também de “negros” (usava-se ainda termos como “gentios”, “negros da terra”) esta mesma denominação era,
inclusive, muito comum nas cartas jesuíticas durante as primeiras décadas de sua missão (Ibid. 144ss.).”
(HOFBAUER, 2000, p. 8).
133

responderem às expectativas que se impõem a si mesmos, por não possuírem


um Ideal realizável pelo Ego (SOUZA, N., 1983, p. 41).

Eu não queria ser notada, porque se o fosse, era num contexto de ridicularização. Sentia
que a minha cor que não era branca, e também não era preta pra que eu fosse dita negra, era
uma cor suja. Eu não queria que a terra registrasse minhas pegadas, queria passar pelo mundo
sem deixar vestígios de que estive aqui, não valia a pena.

O sujo está associado ao negro: à cor, ao homem e à mulher negros. A


linguagem gestual, oral e escrita institucionaliza o sentido depreciativo do
significante negro: o “Aurélio”, por exemplo – para citar apenas um dos
nossos mais conceituados dicionários – vincula ao verbete NEGRO os
atributos sujo, sujeira, entre dez outros de caráter pejorativo. [...] o negro é o
outro do belo (SOUZA, N., 1983, p. 29).

Carlos e Marielle nos trazem falas que corroboram para essa ideia de transformação:

Marielle: [...] a partir do momento que eu me identifico como pessoa negra,


eu posso descobrir diversas perspectivas que me foram negadas o tempo
todo por pessoas me dizendo que eu era branca, sabe?
Carlos: Foi bastante isso que Marielle falou também, abriu portas pra a
partir do momento que, reafirmando minha identidade, eu me encontro, eu
me reconheço como uma pessoa negra e eu encontro por quem lutar, pelo
que lutar e procurar de que forma lutar por isso, sabe? [...]

Essas falas soam como paráfrases para a definição de Consciência Negra:

A Consciência Negra é, em essência, a percepção pelo homem negro da


necessidade de juntar suas forças com seus irmãos em torno da causa de sua
atuação – a negritude de sua pele – e de agir como grupo, a fim de se libertar
das correntes que os prendem a uma servidão perpétua (SILVA, N., 2001, p.
35).

Os relatos que seguem, de Manoel e Davi, nos mostram que existe uma dimensão de
transformação dessa identidade negra para dentro e para fora. Ou seja, é uma mudança da
percepção de si e do engajamento no mundo.

Manoel: Um debate que a gente fez na sala, um dos debates, um aluno falou
que ele nunca viu o racismo.[...] E aí um colega meu falou: existe uma
diferença entre ver e enxergar e eu acho que é essa diferença entende? É a
partir do momento que você toma consciência daquilo, você começa a
pensar sobre aquilo. Você começa a se perguntar o por que de determinadas
coisas, entende? E ai você pode enxergar, o por que aquilo acontece e ai
você estuda, e ai você se torna, se identifica como aquilo. Não se torna,
porque você já era, mas você se identifica como aquilo. Pensar sobre isso
me fez avaliar diversas outras coisas, não apenas em relação a raça, mas
por exemplo, a heterossexualidade e a heteronormatividade, entende? E a
partir do momento que você se identifica como negro, você já tem todo um
134

mundo de possibilidade entende? Do seu ser, das suas potencialidades,


entende? Você não precisa mais alisar o cabelo.

Davi: [...] Modificou mais a vida pessoal, eu comecei a entender que eu


tinha uma responsabilidade tanto em manter relações por uma questão de
manutenção da linhagem e dos traços que vieram de África, e por isso eu
tinha que manter relações com pessoas negras. Assim como me senti
responsável em manter relações afetivas independente de serem amorosas
ou não com pessoas negras. Além disso, a própria questão religiosa, eu
passei por um período em que eu estava me reinventando, então eu estava
em busca também de um lugar para me tratar espiritualmente. [...]

3.6 A EXPERIÊNCIA DE AFERIÇÃO DA AUTODECLARAÇÃO

Davi não passou pela experiência de ser aferido numa Comissão de heteroidentificação,
mas pensando sobre possíveis critérios para esse processo seletivo: “embora isso me
prejudique, [eles] devam ser mais fechados em prol da população mais retinta mesmo”. Esse
argumento voltará mais tarde. Dias passou pela heteroidentificação e foi reprovado. Ele tem
críticas em relação à Comissão, porque acha que é um processo “muito subjetivo” ao se basear
“apenas” numa avaliação visual do candidato. Para nosso entrevistado, essa aferição deveria
ser feita por membros unicamente formados em áreas das Ciências Humanas, e especialmente
no campo dos Estudos de Relações Raciais no Brasil.

[...] Teve lá, tipo, professores de matemática. O quê que um professor de


matemática entende? Do nada, assim, dá pra avaliar, se eu vou olhar pra
você, se você é branco ou não? Entendeu? Eu acho que deveriam ter
pessoas mais especializadas na área com mais estudo e tal, pra poder julgar
isso.

Para Dias, uma conversa com os candidatos que incluísse o tema do histórico familiar
poderia resolver essa subjetividade. O grande problema é que, como sabemos, a racialização
no Brasil não acontece pela “gota de sangue” como informa a regra da hipodescedência dos
Estados Unidos. Aqui o critério é fenotípico, estético, melanodérmico, pigmentocrático. A
opinião de Dias, no entanto, não é isolada. Santos e Maio (2008) mostram que o argumento
biológico da mistura sempre volta para as discussões sobre identidades raciais no Brasil:

[...] o historiador Manolo Florentino, ao findar um texto sobre Gilberto


Freyre, que considera um interlocutor oculto na discussão sobre cotas,
afirmou: “um conselho aos ‘brancos’ que forem reprovados em concursos
públicos sob a égide das cotas: munidos de Retrato molecular do Brasil,
reivindiquem as vagas dos negros” (FLORENTINO, 2002, p. 4-5). Em uma
escala ainda mais abrangente, percebe-se a emergência de associações (como
“nossa mestiçagem tem um teste de DNA”) que colocam os resultados da
135

pesquisa genética como elementos questionadores da própria idéia de


implementação de cotas raciais no Brasil (p. 106/107).

Não é que, para Dias, a aparência seja um dado irrelevante. Ele elenca três fatores que
devem ser levados em consideração no momento da avaliação das Comissões: fenótipo,
histórico familiar e “vivência” que ele também chama de “cultura” – estaria incluso, por
exemplo, a experiência gastronômica e musical. Ao contrário disso, para Dias, a Comissão
“só olhou quem sofre racismo”.

Por exemplo, eu não sofri preconceito, mas só porque eu não sofro


preconceito não quer dizer que eu não faço parte daquela identidade, agora,
e pra mim, eles tão fazendo essa seleção entendeu? De pessoas que sofreram
ou não, ou podem sofrer preconceito na sociedade. [...]

Já falamos que identificar as experiências de racismo compõe e impulsiona o


reconhecimento da identidade negra, porque ser negro é ser racializado, com todas as
implicações que isso tem. Rocha (2010) traz a narrativa de Otelo, estudante de Geografia que,
assim como Dias, carrega desde muito cedo a identificação de “pardo”. A história é que, no
momento em que sentiu necessidade de sair dessa posição de “limbo”, Otelo escolheu a
identidade branca:

Ao realizar a inscrição do vestibular, Otelo se identificou como pardo e disse


que até o ano de 2008 se identificava dessa forma. Ao iniciar o curso de
graduação, foi indicado por um amigo para a seleção de um projeto que
destinava oitenta bolsas para estudantes cotistas. Nesse ambiente, o
estudante leu Abdias do Nascimento e as críticas à democracia racial
brasileira. Ele relata que, nesse período, foi “tratado com muita indiferença”
no programa, devido ao seu tom de pele, e, a partir da sua experiência nesse
projeto, passou a negar a categoria intermediária. Todavia, como acredita
que nunca seria aceito como negro, decidiu se identificar como branco:
“Antes eu falava com facilidade: eu sou pardo! Depois que descobri que esse
pardo é algo tão mentiroso, tão falso... Eu deixei o pardo e assumi o branco,
mas assumi o branco exatamente nesse conflito de que se você assumir o
branco você vai ter que agir de acordo com os comportamentos do branco,
que é o branco europeu. Você pode assumir que sou branco e agir de forma
dos três povos se unindo. Você pode ser branco de forma de não ser europeu
e de não ser norte-americano? É isso aí que estou agora. Não sou mais pardo,
sou branco mesmo. [...] Eu só me considero como branco porque foi
construído na minha cabeça... Porque eu não sou aceito como africano, se eu
pudesse ser aceito como africano, eu me identificaria como africano” (p. 80).

A Democracia Racial pariu esse problema ao informar que raça não importa, porque
supostamente somos todos mestiços e se há discriminação, é de natureza de classe, contra
pobres ou contra “cara de pobre”, contra negros não. Quem nunca ouviu que “todo brasileiro
tem um pé na senzala”?
136

Falando ainda sobre a sua experiência de Comissão, Dias conta que estava muito
nervoso, mas “as pessoas me tranquilizaram e falaram tipo, as próprias pessoas que estavam
fazendo também falaram que eu me identificava, dizendo que eu fazia parte daquilo”. Muito
embora Dias nos conte que essa experiência tenha lhe dado motivos para nunca mais se
candidatar como cotista numa seleção futura, isso não repercute como negação da sua
autodeclaração parda, como aconteceu com Otelo. A conclusão da sua fala sobre esse
processo é: “não sei qual foi o erro da banca”. Jaci defende o papel das Comissões, embora
não tenha passado pela experiência:

Elas existem não para um problema negro e sim porque brancos são
fraudadores. O problema não está na gente, o problema não está em
pessoas negras não retintas, o problema não está em mulheres negras de
pele clara, ou mulheres negras de pele menos escura, né? Salvar esse
referencial pedagógico. O problema está porque branco é safado e frauda.
[...] A banca não existe pra dizer quem é mais ou quem é menos preto, a
banca existe pra identificar brancos fraudadores, a gente não pode perder
isso de vista. A banca ela não vai tá lá com um negrômetro, né? Com uma
paleta da Suvinil de cores, né? Ela vai tá lá pra identificar possíveis brancos
fraudadores.

Chica, aprovada pela Comissão, descreve a sua experiência de heteroidentificação como


“engraçada”. Isso porque foi um momento muito tranquilo, ela se sentia segura de que as
cotas raciais eram do seu direito, “mas no momento mesmo de sentar na frente da banca de
aferição e escrever pardo ou preto eu fiquei... Eu boto o quê agora?”. Como já tínhamos
contado, Chica aprendeu com a mãe a se nomear como “preta”. “Mas no momento mesmo deu
botar a cartinha, eu pensei - não por uma questão de crise de identidade minha, mas de como
as pessoas me veem. Será que se eu botar preta, sendo que talvez eu corresponda a
identidade parda, eles não deixem eu passar?”. No final das contas, Chica marcou “preto(a)”,
“depois eu fiquei: meu Deus eu não vou passar, porque eu botei preta, era pra eu ter botado
parda, que pra eles eu sou parda. [...] Mas como eu tô te falando, não foi de uma ordem mais
profunda, foi a questão da burocracia mesmo”. Ela acha muito positivo a existência da
Comissão no processo seletivo como forma de garantir que o acesso a esse direito, às políticas
afirmativas, aconteça com lisura.

Chica: Eu achei legal, tanto que eu vi umas duas pessoas que eram
claramente brancas, na minha vez, foi uma filinha assim, a gente sentou e
formou fila, e as pessoas, duas pessoas claramente brancas e eu pensei: se
não tivesse a banca da aferição, se fosse só como você se identifica, ia dar
137

B.O58, né? Ia tirar o lugar de uma pessoa que realmente tinha direito aquela
vaga...

Ao observarmos a forma como esse processo de heteroclassificação repercute ou não


sobre as elaborações individuais que os nossos entrevistados fazem, sobre a própria
racialidade, nos encaminhamos para o outro momento da pesquisa, aquele que em que
ouvimos os membros dessas Comissões e acompanhamos o seu trabalho. Nessa próxima
etapa, nos aproximamos de quem avalia, não de quem é avaliado, tentando completar aquilo
que traçamos na apresentação desse trabalho: a compreensão da dinâmica de autodeclaração e
heteroclassificação racial.

58
B.O significa Boletim de Ocorrência, e é uma gíria utilizada para falar sobre um problema, nesse caso, pode
ser compreendido como “ia ocorrer um problema, uma fraude”.
138

4 HETEROCLASSIFICAÇÃO RACIAL: NEGROS DE PELE CLARA E/OU


FRAUDADORES

Lucidez59

Quando me perguntam se estou bem, digo: estou bem


dividida entre saber, me alimentar e lamentar.
Sinto uma saudade estranha de saber um pouco menos
ser aquele humano médio que passa sem se importar.
O caminho da consciência é lugar de desassossego,
E hoje a mais banal notícia já me tira do lugar
e a mente perturbada busca pelo aconchego
Lendo de Sueli Carneiro à Morena Mariah
A quem importa informar existência de Kush
e que a filosofia grega descende da africana
A quem importa estudar cosmovisão yorubá
e refletir Revolução Haitiana
Qualquer pessoa preta que se abre à consciência
Resguarda um certo respeito
por qualquer preto que enlouqueceu
É vital estar ciente que a verdade estraga a ideia de normal que a vida te ofereceu
Você começa a respeitar o torpor de quem bebe, de quem fuma, de quem chora, e quem
sente demais
E aos pouquinhos apreende da vivência que a loucura é de quem espera que a cura vem
junto omissão e paciência
quando entende que sua cor te faz parte da base de um sistema que sem base não tinha
se erguido
compreende a inocência de esperar que os instrumentos do opressor vão ajudar a
libertar o oprimido
Existe uma barreira após cada obstáculo
e sobre essa armadilha Aza Njeri vai dizer:
O genocídio60 é como um monstro grande, cheio de tentáculos,
e a certa altura um deles atinge você
Tem um tentáculo pra preta de roupa mais cara
Tem um que ataca o crespo e a pele retinta dela
Tem um tentáculo que enrosca o corpo todo da negra de pele clara e atravessa o peito
grande dela O racismo tem tentáculo pra negra idosa: atravessada pela ideia de que aguenta
tudo.
Tem um tentáculo pro negro, que é porteiro, segurança e que por ter que trabalhar
desde cedo não teve estudo
Tem tentáculo pro preto ama estudar: não performa sua revolta, então parece
afeminado
Tem pra aquele que vivendo intensamente sua revolta já acorda e espera ser
exterminado.
Tem o tentáculo pra negra que faz sua faxina
Tem pra aquela que já tá fazendo seu mestrado

59
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=etJJv7LovBg&feature=youtu.be>.
60
No poema original disponível no Youtube, o termo original é “racismo” em troca de “genocídio”. Essa
correção, ainda não atualizada na página da Internet, me veio pela própria autora em conversa comigo.
139

Essa metáfora do monstro nos ensina que não tem escapatória pra um racismo que é
tão bem estruturado.
Aprendi recentemente que vivo no caos
Que é preciso estar lúcida do caos vivido e é necessário conhecer a nossa história não
contada Ter na mente o maior número de livros lidos
Contar em roda essas histórias e ouvir atenta
quem despertou pra lucidez muito antes de nós
acumular saberes para com sabedoria
providenciar que mesmo longe escutem nossa voz
e que essa voz seja de tal maneira articulada
que até quem não viveu ou não entenderia
seja tocado para não só se emocionar mas de tão desassossegado
querer se movimentar no dia a dia.
Finalmente estar minimamente organizado
Ao conduzir com lucidez o toda essa dor que a gente sente
Recomendo se benzer pra enfrentar o fim do ano
Que por vezes, sem notar, marca também o fim da gente
E me perguntam se o que falo é por amor à causa
E vê se eu aceito um amor que me dê tanta azia
Já não dá tempo de ler Ângela Davis,
provar que a terra é redonda e colocar amor em poesia
Aliás
"Ouça me bem amor
Preste atenção
O mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a pó"
Não ignore a dor
Tenha visão
Você não está sozinho
Vai encontrar mais gente no caminho
Pra dividir o banzo, a raiva e a dó
Eu falo de ilusão e da tristeza que invade
Porque entendo que clareza desta nocividade
É o que permite nos reconhecer na passividade
Pra resgatarmos todos juntos nossa humanidade
E reunirmos energia pra algum dia alterar a realidade.

Luciene Nascimento
140

4.1 CONTEXTO

Abordamos brevemente, na Introdução desse trabalho, a trajetória das políticas


afirmativas no Brasil e o momento em que as comissões de heteroidentificação da
autodeclaração étnico racial foram/estão sendo demandadas pelos movimentos sociais negros.
Retomamos um pouco dessas discussões aqui, para que possamos estender a etnografia,
iniciada desde os capítulos anteriores, com a Comissão de Aferição da Veracidade da
Autodeclaração Étnico-Racial da UFBA e com as entrevistas de alguns dos seus respectivos
membros. Nesse capítulo, também procuramos inserir conversas e registros que obtivemos a
partir de um processo etnográfico virtual, com um grupo da UFBA no Facebook, rede social
da Internet. Eles irão trazer as perspectivas pessoais, de diferentes membros dessa
comunidade virtual (algumas vezes também estudantes da Universidade), sobre as cotas
raciais, os trabalhos da Comissão e os modos de classificação étnico-raciais. Trouxemos esses
registros virtuais, de uma comunidade com alguns milhares de participantes, para mostrar que
o tema das cotas, da heteroidentificação, e do lugar do “pardo” ou do “negro de pele clara”,
está mais ou menos diluído em um senso comum, sem se restringir àqueles indivíduos ligados
à atividade política ou de pesquisa no campo dos estudos étnico-raciais brasileiros. Essas
questões parecem mobilizar um posicionamento de toda a comunidade e afeta os próprios
rumos dos trabalhos da Comissão.
Compreendemos que os dados apresentados nesse capítulo mantém nexo explicativo
com os conteúdos desenvolvidos nos capítulos anteriores: ancestralidade, experiências de
racismo, confrontos sobre a autodeclaração, colorismo, estereótipos ligados ao “afrobege” e
acusações sobre “afroconveniência” e privilégio, todos temas debatidos anteriormente, que
voltam como elementos definidores da tarefa de heteroidentificar. Esse trabalho está se
consolidando porque é relativamente recente. Como nos fala Ângela Figueiredo (2005), “a
conquista de direitos e o empoderamento de pessoas negras somente ocorreu após os anos
1970, com a desarticulação da celebração da mestiçagem e do uso de termos identitários
branco-negro61 no modelo político bipolar” (p. 156).

61
Existe uma longa discussão teórica a respeito dos problemas do dualismo dessas categorias. Uma delas diz
respeito ao apagamento dos indígenas dentro dessa contradição. Sobre isso, reproduzimos um trecho do texto de
Verán (2010), a respeito do “Nação Mestiça”. Já falamos antes sobre essa organização: “Fosse negro um mero
agregado estatístico, não teria havido equívocos e conflitos. Mas diante da indissociação entre cor, origem e
cultura, os caboclos tornaram-se invisíveis. Mais uma vez, como veremos, a questão não é meramente
existencial: quando direitos fundamentais são definidos na base da identidade étnica, aceitar a invisibilidade é
um suicídio político. Consequentemente, tornar o caboclo visível vai ser uma das preocupações centrais do
Nação Mestiça” (p. 28).
141

Surgidas a partir do reconhecimento do racismo e da existência de grupos étnico-raciais


para além da brasilidade, as políticas afirmativas marcam um momento decisivo da
desarticulação que fala Figueiredo (2005). Lembremos que, por muitos anos, a miscigenação,
com vistas no processo de branqueamento, foi o único fundamento de uma perspectiva de
inclusão da população negra na sociedade brasileira. Por exemplo, um militante negro
escreveu em um jornal da “imprensa branca”, a respeito da “Segunda Abolição”, que seria
necessário:

[...] os negros se espelharem nas ações políticas dos brancos: “Seguir os


brancos nas suas conquistas e iniciativas felizes [...] será o marco inicial da
segunda redempção dos negros [...]. Salientamos que a sua liberdade não
foram elles [negros] que conseguiram. As tentativas que emprehenderam
mal lograram desastrosamente. E da mão do branco que odiavam receberam
a liberdade dos seus sonhos!” (Folha da Manhã, São Paulo, 12/1/1930 apud
DOMINGUES, 2002, p. 574)

Como incide diretamente sobre o mito da democracia racial, as políticas afirmativas não
se implementam sem polêmicas. Albuquerque e Walter (2006) falam que “os que são contra
dizem que as cotas só aumentarão o racismo, porque incentivarão as disputas entre negros e
brancos” (p. 305), como se essas políticas estivessem produzindo uma clivagem racial na
sociedade brasileira que por si só já não existisse. Ao contrário disso, continuam os autores:

Trata-se de reverter — e não inverter — este quadro. Não se trata de uma


coisa contra o branco, até porque o branco pobre é também contemplado em
muitas propostas de cotas. A ideia é, simplesmente, de oferecer oportunidade
para todos. Essa é a obrigação dos governos, e deve ser o objetivo das
sociedades (Ibid., p. 305).

Temos o mito da democracia racial como um discurso politicamente intencionado, não


como mera fábula ou mentira. Tomado em seus sentidos antropológico e psicanalítico, Chauí
(2000) trata-o como um mito fundador que é, ao mesmo tempo, “repertório inicial de
representações da realidade” (p. 5). Seu poder simbólico ou representacional é tão poderoso
que:

[...] em cada momento da formação histórica, esses elementos são


reorganizados tanto do ponto de vista de sua hierarquia interna (isto é, qual o
elemento principal que comanda os outros) como da ampliação de seu
sentido (isto é, novos elementos vêm se acrescentar ao significado
primitivo). Assim, as ideologias, que necessariamente acompanham o
movimento histórico da formação, alimentam-se das representações
produzidas pela fundação, atualizando-as para adequá-las à nova quadra
histórica. É exatamente por isso que, sob novas roupagens, o mito pode
repetir-se indefinidamente (Ibid., p. 5-6).
142

O mito opera aqui tanto para negar as identidades étnico-raciais em nome da


nacionalidade, quanto para reivindicá-la mestiça e, portanto, passível de ser mobilizada por
qualquer brasileiro, independente da sua aparência. A fraude no sistema de cotas raciais por
sujeitos brancos passa pela atualização do mito, do qual fala Chauí (2000). Se antes a tônica
estava em desconstituir as cotas, denunciado a suposta racialização que ela estaria criando,
hoje, a fim de fraudá-la, a crítica se formata para legitimar o ingresso de brancos em vagas de
pessoas negras. Sobre isso, cabe lembrar que o estudo “Retrato molecular do Brasil”62 foi
muito bem recebido em diferentes círculos do país, como irá nos mostrar Santos e Maio
(2008). A pesquisa se baseava na investigação genética de duzentos homens autoclassificados
brancos de quatro macrorregiões do país (Norte, Nordeste, Sul e Sudeste). Elio Gaspari (2000,
p. 14 apud Maio e Santos, 2008), um articulista da Folha de S. Paulo, referiu-se ao trabalho
como “um artigo fenomenal, [...] uma verdadeira aula, motivo de orgulho para a ciência
brasileira. [...] É a comprovação científica daquilo que Gilberto Freyre formulou em termos
sociológicos” (Ibid. op. cit.). Falando sobre a magnitude da mestiçagem no Brasil, disse
ainda: “Há mais gente com um pé na cozinha do que com os dois na sala” (Ibid. op. cit.),
expressão inclusive utilizada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso quando em
campanha em meados da década de 1990. “Retrato Molecular do Brasil” teria provado que,
mesmo entre a população brasileira autodeclarada branca, existiam consideráveis misturas
genéticas, inclusive de povos africanos. Dessa forma, a pesquisa se configura como um
argumento científico, geneticista, que comprova como foi ampla a miscigenação no país,
fundamento do mito da democracia racial. Para destacar a importância do movimento negro
em demarcar uma crítica contundente a esse trabalho, Maio e Santos (2008) citam a reação de
Athayde Motta à publicação:

[...] a pesquisa dos geneticistas (utilizando alta tecnologia) seria um


“simulacro de suporte científico” para o mito da democracia racial. E mais,
os resultados dariam margem a “possibilidades quase infinitas de
manipulação”, incluindo “injetar sangue no moribundo mito da democracia
racial” (MOTTA, 2000a; 2000b, 2002) ou mesmo virar “uma campanha pró-
democracia racial […] um discurso político-ideológico cuja função

62
Sobre a pesquisa ver mais em Santos e Maio (2008): “publicado em português em 2000 (PENA et al., 2000)
na revista mensal de divulgação científica Ciência Hoje da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC). Dois artigos diretamente relacionados, com apresentação dos resultados em pormenores para a
comunidade científica, apareceram no American Journal of Human Genetics (ALVES-SILVA et al., 2000;
CARVALHO-SILVA et al., 2001), bem como um mais recente no Proceedings of the National Academy of
Sciences (PARRA et al., 2003). A ampla repercussão que a pesquisa atingiu no Brasil se associa, sobretudo, ao
texto de Ciência Hoje” (p. 93).
143

primordial é manter o estado de desigualdades raciais no Brasil” (MOTTA,


2003 apud Maio e Santos, 2008, p. 87).

Sendo a Universidade ocupada por uma representação da elite, os movimentos negros


encararam os discursos contrários às cotas como formas de manter negros e negras fora desse
ambiente nas posições de estudantes e professores63, afinal, como nos fala Bastide (1959), em
um país miscigenado foi importante zelar pela brancura para não ser confundido com um
mestiço, mantendo os círculos da elite branca fechados aos negros.

O que definia socialmente a noção de "raça", no entanto, êra o sentimento de


comunhão dentro de um sistema de graduação social, de prestígio e de
valores culturais. Daí a preocupação dos brancos: evitar o acesso dos negros
e dos mestiços, tanto quanto possível, ao núcleo lega1 da família patriarcal;
impedir tôda espécie de equiparação com o negro, em qualquer esfera da
vida social. Os atributos propriamente raciais contavam como decorrência.
Por isso, para êles as "raças" negras se se compunham de indivíduos que se
caracterizavam duplamente: pela condição de escravo e pela côr da pele. De
outro lado, é preciso considerar que êstes dois elementos se confundiam
completamente na representação social da personalidade-status do negro e
do mulato. Negro equivalia a "indivíduo privado de autonomia e liberdade";
escravo correspondia (em particular do século XVIII em diante), a
"indivíduo de côr". Daí a dupla proibição, que pesava sôbre o negro e o
mulato: o acesso a papéis sociais que pressupunham regalias e direitos lhes
era simultâneamente vedado pela "condição social" e pela "côr". Em
situações concretas, uma pessoa de côr tanto podia ser tratada como escravo
por ser notória a sua posição real, quanto por causa de passar por "negro",
sendo irrelevante para os brancos que assim procedessem que ela fôsse um
liberto ou um homem livre (p. 114).

Acontece que, é justamente esse antecedente histórico e o processo de atualização do


racismo, que farão com que a população negra esteja liderando os piores indicadores sociais,
entre os quais os brancos terão resultado mais satisfatórios. Parafraseando Florestan
Fernandes (2008), a igualdade perante Deus não impediu a escravidão no Império e na
Colônia, da mesma maneira hoje, a igualdade perante a Lei só garante a hegemonia do
homem branco. No que concerne a Salvador64, Ângela Figueiredo (2012) irá mostrar que
mesmo saltando aos olhos o expressivo número de negros, esse contingente

[...] não se traduz numa melhor distribuição racial na estrutura ocupacional e


tampouco significa uma maior participação dos negros na classe média

63
Fazemos questão de demarcar que negros são numerosos nas Universidades como auxiliares da limpeza, da
construção civil e da segurança, quando o que queremos são também negros graduandos, mestrandos,
doutorandos e professores. Essa dissertação não é um panfleto político, mas é escrita por uma mulher negra
politicamente engajada.
64
Jeferson Bacelar tem uma longa pesquisa sobre a inserção social da população negra em Salvador no pós-
abolição. Ver BACELAR, J. O NEGRO EM SALVADOR: OS ATALHOS RACIAIS. R. História, São Paulo,
n. 129-131, ago./dez. 1993 a ago./dez. 1994.
144

soteropolitana. Também no que se refere à participação na política, a


população negra tem, de fato, estado à margem do poder e das decisões
políticas. Uma pesquisa pioneira sobre a participação dos negros na política
(OLIVEIRA, 1996) destaca o pequeno percentual de negros em cargos
eletivos (p. 18-19).

Nessa pesquisa, Figueiredo (2012) irá estudar a classe média negra baiana. Não iremos
adentrar essa discussão, porém algo de suas reflexões nos importa, porque, como já vimos a
partir de Edward Telles (2003), o diploma universitário é uma das principais portas de entrada
para a classe média. O mesmo autor irá mostrar que a composição de negros na classe média
americana é maior que a brasileira, o que atribui a uma desigualdade vertical que seria menor
lá do que aqui: nos Estados Unidos os negros também teriam uma maior inserção no ensino
superior. Figueiredo (2012) faz outra comparação: enquanto a ascensão social da população
negra norte-americana se deu por uma “segregação racial rígida e da recusa dos brancos em
oferecer os serviços para a população negra” (p. 24), no Brasil essa ascensão “se efetiva, a
princípio, através da relação de subordinação com os brancos” (Ibid. op. cit.). Dessa forma,
podemos entender que, mesmo sendo numerosos na Bahia, a ascensão de alguns desses
negros (pretos e pardos) não será uma conquista do grupo, em função do fator econômico e da
estagnação (Bacelar 2001 apud Figueiredo 2012), representando apenas ganhos pontuais e
individuais. Além disso, justamente porque a população branca estava (está) na Bahia em
menor número, mestiços mais claros teriam ocupado espaços tidos como tradicionalmente
brancos, em outras regiões. Sobre isso, a autora faz uma observação importante:

[...] note-se que aqui falo de mestiços, e não de pretos ou negros, ou seja,
pessoas de ascendência negra, mas de características fenotípicas brancas;
aqueles que podem se mover na escala classificatória da cor no Brasil, no
sentido de tornarem-se menos negros ou socialmente brancos
(FIGUEIREDO, 2012, p. 23-24).

Essa “branquitude” do “mestiço claro” será pensada por Guerreiro Ramos em muitos
momentos da “Patologia do ‘Branco’ Brasileiro” (1995): “pois que o nosso branco é, do ponto
de vista antropológico, um mestiço, sendo, entre nós, pequena minoria o branco não portador
de sangue preto” (p. 231). Ocorreria que:

A massa pigmentada, preponderante desde o início de nossa formação,


absorveu, pela miscigenação e pela capilaridade social, grande parte do
contingente branco, que, inicialmente, podia considerar-se isento de sangue
negro. O que, nos dias de hoje, resta de brancos puros em nosso meio é uma
quota relativamente pequena. O Brasil é, pois, do ponto de vista étnico, um
país de mestiços (Ibid., op. cit.).
145

Observe que Guerreiro Ramos, um importante intelectual negro “de pele clara”65, estava
naquele momento, alegando uma patologia nas autodeclarações étnico-raciais “brancas”,
especialmente das regiões Norte e Nordeste do país, quando a população era incentivada a
embranquecer-se.
Diante desse quadro de desigualdade racial nacional e também baiano, Milton Santos já
apontava, em 1995, que “a questão do negro não pode mais ficar no Ministério da Cultura.
Não é uma questão de cultura. Tem que ser do Ministério da Justiça. A solução é pela via
política” (p. 140). É que o autor entendia que a população negra desfruta de uma “cidadania
mutilada”. A “verdadeira cidadania” seria aquela em que:

[...] cada qual é o igual de todos os outros, e a força do indivíduo, seja ele
quem for, iguala-se a força do Estado ou de outra qualquer forma de poder: a
cidadania define-se teoricamente por tranquilas políticas, de que se pode
efetivamente dispor, acima e além da corporeidade e da individualidade,
mas, na prática brasileira, ela se exerce em função da posição relativa de
cada um na esfera social (Ibid., p. 159).

As políticas afirmativas, ao reconhecerem essa cidadania diferencial, revertem para aqueles


desfavorecidos o incentivo de alcançar uma posição historicamente garantida para as classes
abastadas, em concursos de cargos públicos e nas Universidades. A “posição relativa” que é
beneficiada, nesse caso, é daqueles grupos racialmente excluídos. Como ainda irá nos dizer
Milton Santos (2002), ao contrário do que se alega a respeito do Brasil não ter uma “linha de
cor”, essa linha no país estaria inscrita nos próprios corpos.

Em si mesma, essa distinção [Brasil x Estados Unidos] é pouco mais do que


alegórica, pois não podemos aqui inventar essa famosa linha de cor. Mas a
verdade é que, no caso brasileiro, o corpo da pessoa também se impõe como
uma marca visível e é frequente privilegiar a aparência como condição
primeira de objetivação e de julgamento, criando uma linha demarcatória,
que identifica e separa, a despeito das pretensões de individualidade e de
cidadania do outro. Então, a própria subjetividade e a dos demais esbarram
no dado ostensivo da corporeidade, cuja avaliação, no entanto, é
preconceituosa (p. 159-160).

Na medida em que o racismo no Brasil não é apenas simbólico, mas material, Anjos
(2005) dirá que os movimentos para desconstituí-lo não podem estar limitados a uma
“pedagogia (des)racial”, pois seu encaminho está dentro do “âmbito da ação política” (p.
235). Um marco importante dessa ação política é a Lei de Cotas (Lei nº 12.711) de 29 de
agosto de 2012, que institui no mínimo 50% das vagas dos cursos técnicos e de graduação aos

65
Joel Rufino (1995), em ocasião da introdução da obra de Guerreiro Ramos, “Introdução crítica à sociologia
brasileira”, disse que “Guerreiro não era preto retinto, pertencia àquela faixa de mestiços escuros em que a
“raça” é escolha do freguês. A sua foi ser negro” (p. 27).
146

estudantes de escolas públicas em todas as Universidades e Institutos Federais. Schwartzman


(2009), tratando sobre a implementação das cotas raciais na Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ, primeira universidade a adotar as cotas para negros), coloca essa “ação
política” como parte de um “novo projeto racial” (tradução nossa), cujo marco seria a década
de 70. Winant, citado por Schwartzman (2009), define esse novo projeto como:

[...] “simultaneously an explanation of racial dynamics and an effort to


reorganize the social structure along particular racial lines”. He notes that
racial projects are “both a discursive or cultural initiative, an attempt at racial
signification and identity formation on the one hand; and a political
initiative, an attempt at organization and redistribution on the other”.
Brazil’s new racial Project results from an allegiance between black
movement activists and quantitative social scientists that studied racial
inequality in Brazil.(p. 224-225)66

O “novo projeto racial” estaria contrastando com um “velho projeto” (tradução nossa)
da “democracia racial”, que, por sua vez, substituiria um ainda mais antigo, o projeto do
branqueamento67. Como já dissemos na introdução desse trabalho, a Comissão de Aferição da
Autodeclaração Racial nos editais de processos seletivos para estudantes de graduação pretos
e pardos que estamos analisando, foi implementada na Universidade Federal da Bahia
(UFBA) desde 2019. Ela está instituída pela Portaria Normativa MPDG n. 4/2018 e pela
Portaria UFBA 169/2019. No edital68 consta também citação da sua constitucionalidade pelas
“leis nº 12.711/2012, 12.990/2017, e jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186 e Declaratória de Constitucionalidade nº
41- DF.ADC 41-DF)”. Como o próprio nome sugere, ela opera com o processo de
identificação racial69. Osório (2013) fala sobre três métodos de identificação:

O primeiro é a autoatribuição, no qual o próprio sujeito da classificação


escolhe seu grupo. O segundo é a heteroatribuição, no qual outra pessoa
define o grupo do sujeito. O terceiro método é a identificação de grandes
grupos populacionais dos quais provieram os ancestrais por intermédio de
análise genética (p. 91-92).

66 “Simultaneamente, uma explicação da dinâmica racial e um esforço para reorganizar a estrutura social ao
longo de linhas raciais específicas”. Ele observa que os projetos raciais são "uma iniciativa discursiva ou
cultural, uma tentativa de significação racial e formação de identidade, por um lado; e uma iniciativa política,
uma tentativa de organização e redistribuição por outro”. O novo projeto racial do Brasil resulta de uma aliança
entre ativistas do movimento negro e pesquisadores das ciências sociais quantitativas, que estudaram a
desigualdade racial no Brasil (tradução nossa).
67
Apesar dessa posição, mostramos, nesse trabalho, que diferentes autores (HOUFBAUER, 2006; SKIDMORE,
1976) vão mostrar que a “democracia racial” será formulada com vistas no embranquecimento da população, de
forma a não ser dois projetos distintos.
68
Anexo complementar III – Edital 2020.1. Disponível em <https://ingresso.ufba.br/>.
69
Osório (2013) diz que “o método de identificação racial é o procedimento estabelecido para decidir acerca do
enquadramento dos indivíduos nos grupos definidos pelas categorias da classificação” (OSORIO, 2003).
147

A Comissão opera com a autoatribuição ou autodeclaração, e com a heteroclassificação


ou heteroatribução. A parte polêmica desse trabalho se refere ao fato de que, enquanto “é
razoável esperar convergência entre os dois primeiros [autoatribuição e heteroatribuição]
quando os sujeitos da classificação se apresentam de forma próxima ao estereótipo de um
grupo” (Ibid., p.92), a divergência acontece quando os avaliados estão “na fronteira entre dois
grupos” (Ibid., op. cit.). Nesse último caso, como veremos, temos os nossos “casos difíceis”.
O trabalho da Comissão constituída se divide em duas fases: a fase de treinamento e
formação, e a fase da aferição. Pudemos acompanhar ambas. O curso de formação era um
momento anterior ao próprio processo seletivo, reunindo os seus membros, sob orientação da
presidência da Comissão. Nesse curso se falava sobre as leis que baseiam as cotas raciais e as
próprias bancas de aferição, assim como as normativas institucionais da UFBA. Nele também
se fala sobre as identidades e classificações étnico-raciais no Brasil e a metodologia “Ojú
Axê” que, conforme comentamos anteriormente, é o que conduz os trabalhos da Comissão da
UFBA e que foi elaborado pela professora e socióloga Marcilene García. Com todos esses
conteúdos, o curso tem como objetivo alinhar as práticas de todos os membros com relação às
expectativas do trabalho.
Acompanhamos esse processo no início do primeiro semestre do ano de 2020. Esse
curso foi aberto com a fala da então presidente, Jurema, autora sobre pós-abolicionismo,
mulher negra, e, dentre outras coisas, professora da UFBA. Sua apresentação abordou de
forma breve a regulamentação desse trabalho dentro da Universidade, sua importância e seus
objetivos. O discurso também tinha a intenção de acolher e explicar os motivos pelos quais
aqueles membros estavam ali. “Você que foi convidado pra estar aqui, não se assuste”
brincou Jurema, disse que a comissão deveria refletir a diversidade da sociedade em termos de
componentes brancos, negros, negros de pele clara, LGBT dentre outros grupos. Em
entrevista, Luís, professor de uma instituição pública e ex-membro da Comissão do ano de
2019, também falou sobre isso. Segundo ele, existe uma diversidade pluriétnica nas bancas e
esse fato, “em termos de estímulo, de valorização, de autoestima, é bacana”. Amarildo,
servidor e estudante da UFBA, também apresentado anteriormente, membro da Comissão do
ano de 2020, avalia essa diversidade de maneira igualmente positiva. Ela permitiria, pra nosso
entrevistado, que a aferição não fosse enviesada, mas construída democraticamente.
Percebemos que os membros da Comissão que estavam presentes – vinte e quatro pessoas
contando com a presidente da Comissão, Jurema, e também a professora do curso, Mirtes -
eram professores e técnicos administrativos da Universidade, além de uma liderança política
148

do movimento negro. Dentre eles, existia uma grande quantidade de profissionais da Pró-
Reitoria de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil (PROAE UFBA) integrando a
Comissão. Duas pessoas tomaram o protagonismo nesse curso, Jurema, presidente da
Comissão, e Mirtes, professora da Universidade e membro de uma organização política negra,
que ministrou a formação dessa Comissão. Como dissemos, a organização do trabalho da
Comissão e a própria metodologia do curso de preparação se baseiam no método “Oju Axê”
criado por Marcilene Garcia. Ela presidiu a Comissão de heteroidentificação da UFBA para
graduação no ano anterior, 2019, ano de sua criação.
A legitimação desse processo é algo comum entre avaliadores e avaliados. Como
descreveremos ao longo desse texto, os candidatos, na maioria das vezes, defendem a
importância desse trabalho, assim como seus membros demonstram um comprometimento
profissional, ético e político muito fortes nesse processo. Luís, por exemplo, em defesa das
cotas fala que:

[...] se depender tão somente do sistema de ensino, nós saberemos que vai
continuar acumulando um monte de gente sem conseguir ingressar. Porque
serão ocupadas por aqueles que tiverem as melhores condições de acesso à
escolaridade, de alimentação, de moradia. Não precisa ser nenhuma
autoridade nisso pra... A gente vê isso nos perfis das escolas, a gente vê isso
quando a própria polícia agride por conta do cabelo, por conta da roupa
que utiliza, entendeu? E uma polícia negra. Então assim, eu insisto: tem que
continuar, tem que continuar até chegarmos numa situação que, socialmente
falando, as políticas de inclusão e de educação possam dar conta sem
precisar cotizar.

Amarildo foi aprovado pela Comissão de aferição do concurso público para técnicos
administrativos da UFBA e, já como servidor, se voluntariou a participar dessa Comissão de
2020 para estudantes, como membro avaliador. Ele fala sobre um sentimento de “dívida”:

Amarildo: Enquanto indivíduo, de fazer parte desse processo que eu


acredito. Que eu acho que as questões afirmativas, elas têm que se
fortalecer, né... E existirem, né, não eternamente, mas enquanto o Estado
não conseguir recuperar todo...
Gabriela: Toda a dívida histórica, né?
Amarildo: [...] tem um amigo meu, um professor né, professor do estado,
inclusive. Ele tem uma fala maravilhosa que ele fez, nos colocando né, o que
seria, se eu pudesse colocar toda a escravidão em um ano, ai ele fala, que
dia 4 de fevereiro seria o dia que começou a escravidão e a escravidão
acaba, tipo em dezembro, quer dizer, se você faz uma proporção de toda a
história, todos os quinhentos anos, é de mais de trezentos de escravidão, né?
E quinhentos de Brasil, como a população negra ela foi prejudicada por
esse processo, você consegue trazer isso proporcionalmente pra um ano,
então você vai ver que a dívida histórica ela existe. E ela tá muito longe de
149

ser solucionada. Então, portanto, é importante que essas políticas, elas se


fortaleçam, pelo menos enquanto essa reparação não acontece.

Parafraseando Amarildo, o seu papel seria o de “garantir o direito. O direito de quem é


de direito”. Esse é o momento em que “a Universidade tá caminhando por uma trilha que é
de justamente de fazer valer a lei, né?”. Momento em que pessoas negras estão conquistando
“todos os privilégios que a Universidade pode lhe proporcionar”.

4.2 É TUDO A MESMA COISA? CASOS DIFÍCEIS, BLACKFISHING,


AFROCONVENIENTES E FRAUDADORES

Ocupou grande parte do curso de formação, a preocupação com os “casos difíceis”,


termo criado por Marcilene para designar os “pardos” ou pessoas que estão no entre lugar de
negros e brancos. Aquelas pessoas em relação às quais seria possível perguntar: é negro(a) ou
branco(a)? A respeito disso, Mirtes cita novamente o trabalho de Marcilene sobre as “bancas
de inverno, de verão, do Nordeste, do Sul...”. É que se faz necessário contextualizar as
comissões. Dados relativos à estação do ano, à característica interiorana ou litorânea da
cidade, nordestina ou sulista, influenciam na organização estética dos candidatos que irão se
apresentar. Eles poderão estar mais ou menos bronzeados, por exemplo.
O bronzeamento é uma prática interessante e em relação a isso, Barickman (2009)
explica que, sendo uma moda que começou nos Estados Unidos, quando chegou ao Brasil “os
frequentadores de Copacabana e Ipanema tiveram de ajustar suas noções de cor e raça; e,
nesse ajuste, tiveram, no mínimo, de aceitar que uma tez ‘marrom-escur[a]’ não era
necessariamente incompatível com o status e a identidade como branco” (p. 189). O autor cita
ainda trechos da matéria de um jornal de Florianópolis, “O Estado”, que, no início da década
de 30, teria dito que as mulheres da “alta sociedade” na praia queriam “ficar com a epiderme
da cor de Joséphine Becker” (Ibid., p. 195). Nilma Lino Gomes (2006) nos dá dois caminhos
possíveis para compreendermos essa prática:

[...] como a manifestação de uma variação individual, uma modificação


voluntária, que permite uma aproximação do “outro”, a partir de critérios
essenciais da diferença, e como a assimilação de uma lógica de mestiçagem,
que remete ao questionamento da supremacia branca (p. 328).

A autora se aproxima dessa segunda perspectiva na medida em que compreende que o


corpo bronzeado/mestiço se afastará do “padrão negro” (Ibid., p. 330). Essa é uma boa pista
para analisarmos o bronzeamento no contexto das bancas de aferição, ainda que a tônica seja
150

outra. Veja, naquele contexto de pesquisa70, enegrecer não parecia ser uma opção assim tão
largamente praticada pela branquitude do país. No contexto das bancas, as crescentes
denúncias de fraudes no sistema de cotas raciais mostram que o bronzeamento é uma opção
para buscar aprovação nas comissões de heteroidentificação desses editais. Trazemos
novamente o “mito fundador”, do qual falava Chauí (2000), para compreender esse
fenômeno: “o corpo mestiço do/a brasileiro/a, mesmo aquele produzido mediante
bronzeamento artificial, não pode ser entendido fora do contexto do mito da democracia
racial” (GOMES, 2006, p. 331).
Na Internet, um termo popular para esses brancos pintados de preto é o “blackfishing”.
Oliveira (2019) explica que ele deriva de "‘catfishing’, que significa impostor, neste caso é a
prática de uma pessoa branca usar de elementos próprios da cultura negra”. A autora
classifica-o como um “fenômeno sociocomportamental” em que

[...] as pessoas usam características étnicas com intuito de tirar proveito


pessoal dessa identificação, algo que vem se tornando cada vez mais comum
nos últimos anos pelo crescimento da representatividade negra nos debates
raciais. [...] Além dos cabelos, estilos e trejeitos, as pessoas chegam ao ponto
de usarem várias camadas de bronzeadores até adquirirem um tom de pele
negro, o famoso moreno claro (OLIVEIRA, T., 2019).

Essa definição nos remete àquilo que nossos interlocutores falavam sobre a “afro
conveniência”. Esse termo é muito popular e volta na reflexão de Luís, que o define da
seguinte maneira:

Eu vou me aproximar desse pertencimento africano em determinados


contextos. Ora eu vou me africanizar, ora eu não vou me africanizar. Então
assim: “para uma cota eu me africanizo, depois eu me desafricanizo, já
passei”. Aí depois que você chega lá em Medicina, em Direito, em
Sociologia ou qualquer outro curso diz assim: “poxa, cotista como?”,
porque ela estava africanizada, ou ele.

A imagem seguinte é retirada do texto de Oliveira (2019) e ilustra o que é a prática do


“blackfishing”:

70
Embora o livro tenha sido publicado em 2006, ele se baseia na tese de doutorado da autora, defendida
em 2002.
151

Figura 20 – Blackfishing.

Fonte: OLIVEIRA, T. O que é o blackfishing?. Alma Preta. 2019. Disponível em


<https://www.almapreta.com/editorias/o-quilombo/o-que-e-o-blackfishing>. Acesso em 27 de junho
de 2020.

Transitar entre raças parece mesmo ser parte daquelas prerrogativas raciais
hegemônicas, brancas. Retomando o argumento que começamos a esboçar a partir de Gomes
(2006), e trazendo para o contexto das bancas de aferição no Brasil, o bronzeamento parece
ser uma técnica de manipulação estética engatilhada pelo mito da democracia racial.
Desenvolvemos melhor essa ideia ao longo do texto, mas podemos adiantar aqui, a partir do
percurso teórico que já trilhamos, que o argumento da mistura genética foi repetido ao longo
da nossa história para omitir o racismo da nossa sociabilidade. É exatamente esse argumento
que minimiza retoricamente as diferenças raciais e pavimenta o percurso pelo qual sujeitos
brancos irão trilhar para montar um fenótipo negro. É dessa forma que, possivelmente, o
blackfishing (Estados Unidos) e o afroconveniente (Brasil) se diferenciam conceitualmente. O
primeiro termo irá se referir, por exemplo, à Rachel Dolezal, que alega uma
“transracialidade”71. O afroconveniente será alguém que se diz fruto da mistura de raças, e
cuja manipulação estética encontrará terreno já constituído, o de que a miscigenação
amorenou brancos e pretos. Ambos os termos denotam a mesma prática, mas seu modus
operandi responde as diferentes regras dos seus respectivos sistemas classificatórios. O
blackfishing ou o “transracial” irá admitir seu pertencimento racial com desejo ou sentimento
de pertença em outra raça, diferente da que lhe é socialmente determinada. Dentro de um

71
BBC NEWS. 'Ideia de raça é uma mentira': americana branca que se passou por negra se diz 'transracial'. 2017.
Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-39413853>.
152

sistema classificatório explicitamente rígido, o blackfishing aponta para trânsfugas que


reconhecem, de maneira prévia, lugares sociais estabelecidos racialmente.
De outro modo, no Brasil, os afroconvenientes tomarão para si um sistema
classificatório retoricamente dúbio, e uma prática de mestiçagem largamente constituída. Da
perspectiva de quem frauda, eles não serão brancos que se sentem negros ou que os querem
ser, mas brancos geneticamente mestiços, cuja manipulação fenotípica alegará parte de sua
natureza. Quando entrevistamos Dias, no capítulo anterior, ele disse que apesar dos seus
traços finos e cabelos lisos, de nunca ter sofrido racismo, e de nunca ter sequer se percebido
negro, sua pele clara não era “branca” e seu avô e pai eram homens negros. Dias, lembremos,
não foi aprovado na Comissão da UFBA e nos falou que seu “histórico familiar” tinha que ser
considerado. Ele não se sente um branco querendo ser negro, mas um pardo cuja mistura é de
sua natureza.
Retomando nossa etnografia, a decisão da Comissão sobre a heteroclassificação dos
candidatos é sempre unânime, a fim de evitar que votos divergentes – como seria num
esquema de votação majoritária - sejam usados como argumento de um recurso judicial.
Nesse sentido, os “casos difíceis” precisam ser, repetidas vezes, reavaliados pelos membros,
até que se tenha só uma posição de todo o grupo. Jurema diz que os “casos difíceis” são os
“pardos mais claros”. E que a dificuldade seria “imaginar a capacidade de trânsito dessas
pessoas”, pois elas conseguiriam “permear dois lugares”. Ou seja, um problema de
“passabilidade” nos termos do campo. Conforme já dissemos, essa ideia de “trânsito” racial
deve ser tomada com cuidado. Na medida em que negros de pele clara, ou pardos, são
indivíduos racializados, terão capacidade de “passar por”, ou seja, “serem brancos” em
alguma circunstância? Vejamos, Oracy Nogueira (1985) nos traz a experiência de uma
funcionária fenotipicamente branca, que conhecera nos anos em que esteve nos Estados
Unidos. A história é que durante o apartheid, ela teria escondido um antepassado negro para
conseguir emprego. Passado algum tempo, acreditando na competência que havia
desempenhado na função, resolveu contar a verdade para o seu chefe. Ela foi imediatamente
despedida: um critério de origem lhe fez vítima do racismo. Oracy Nogueira (1985) qualificou
essa experiência como “passing”, termo estadunidense que pode ser traduzido pela ideia de
“passabilidade”. Nessa história, uma funcionária de fenótipo branco “passou por” branca. No
Brasil, segundo o autor, essa é uma ideia que não faz sentido, porque passar por branco é o
mesmo que ser.
Tomamos essas discussões sobre “passabilidade” ou “passing”, tentando responder à
suposta capacidade de trânsito dos negros-claros. Isso, no entanto, não quer dizer que as
153

experiências de racialização sejam as mesmas para todos os indivíduos, cabe nas nossas
reflexões o lugar da diferença, e não podemos afirmar que ser negro é a mesma coisa
independentemente dos seus pertencimentos de classe, dos seus variados tons de pele, ou dos
seus diferentes marcadores sociais. Afinal, “as distinções raciais não constituem,
necessariamente, a base unidimensional da exclusão. Um indivíduo pode ser excluído de uma
esfera social, ser incluído em outra e ainda parcialmente incluído em uma terceira” (TELLES,
2003, p. 319).
Os pardos aparecem durante o curso e em repetidas falas, como um problema. Um dos
membros, inclusive, disse que “o problema do pardo é móvel para o bem e para o mal”.
Mirtes apresentou no slide exemplos de fotos de pessoas que entrariam na categoria de “casos
difíceis”: Anitta, Shakira, Juliana Paes, Fabiana Cozza, Júlia Rocha (cantora e médica de
Minas Gerais), professora Edna Roland, Alicia Keys, Neymar, Camila Pitanga e Dira Paes.
Quando Mirtes lançou a pergunta para os membros, a respeito de Dira Paes, todos que
responderam, afirmaram “não negra”. Ela concordou satisfatoriamente: “Para mim é
indígena, coloquei de pegadinha”. Eu não entendi. Na medida em que a categorização
indígena se dá por critérios diferentes daqueles que servem para brancos e negros, o que
significaria dizer “para mim ela é indígena”? Perguntei. Seu olhar me dizia que a resposta era
muito óbvia: “Quero dizer que ela não é negra”. Um membro da banca reforçou a mesma
resposta: “ela não tem características de uma mulher negra”. Senti que a minha pergunta não
estava respondida. Dira nitidamente não é uma mulher branca e sobre isso, aparentemente,
Mirtes e os membros concordavam. Não deram a ela a heteroclassificação de branca, mas de
indígena. Porém, a identidade indígena não passa pelos mesmos critérios de fenótipo. Existem
indígenas de fenótipo branco e indígenas de fenótipo preto, por exemplo. Conversei com
Marcilene, ela “fez uma banca comigo” quando me recebeu em sua casa, me mostrou fotos
autorizadas de “casos difíceis” e perguntou minha opinião. Dira Paes apareceu entre essas
fotos e ela me disse sem dúvidas: “é uma mulher negra”. Marcilene explicou algo que me fez
muito sentido: na medida em que subimos o país, a composição de indígenas e descendentes
cresce. Nesse sentido, o cabelo liso, por exemplo, muitas vezes associado à brancura, estará
presente em pessoas negras. O problema, para Marcilene, é que “Salvador se comporta como
o centro da negritude do país”72. Com isso, a professora nos diz que as características

72
Isso não é atoa, “nenhum país do hemisfério Ocidental recebeu mais africanos do que o Brasil” (GATES
JUNIOR, 2011, p. 15), e dentre as principais cidades está Salvador. “Como cerca de 43% de todos os escravos
embarcados para as Américas acabaram no Brasil, hoje mais de 97 milhões de brasileiros, numa população total
de 190 milhões, têm um nível substancial de genes africanos e se identificam como pardos ou negros no censo
federal (entre cinco categorias: branca, preta, amarela, parda e indígena). Isso torna o Brasil o segundo país de
154

marcantes sobre ser negro em Salvador, são características que se querem basilar para a
aferição da negritude de todo o resto do país, e isso seria um erro.

Gabriela: Uma pessoa como eu era um caso difícil?


Luís: Não. Eu te diria que você é uma mulher parda. Não é difícil, mas
tinham casos difíceis assim que a gente considera como “sarará”, que tem a
pele meio amarelada, mas o cabelo crespo. Eu consigo identificar, eu
consigo rapidamente, mas eu tinha colegas que não conseguiam e achavam
que eram brancos. Aí tinham alunos ou alunas com cabelo alisado, alunos
ou alunas com a pele bronzeada, maquiada. Então são muitas, eu não
imaginava que tinham tantas estratégias e artimanhas pra convencer esse
enegrecimento naquele instante. Então era mais importante para aquele
jovem… Ele talvez não estivesse tão interessado com a questão racial, ele
queria ingressar pelas cotas na Universidade Federal, entendeu? Porque
um sujeito ou a menina que vinha, que tinha não só esse pertencimento, mas
o fenótipo, estava tranquilo.

Essa fala de Luís me remete à pesquisa de Jacques D’Adesky (2001), que analisava a
compreensão das pessoas a respeito das identidades étnico-raciais. Nesse estudo, a maior
parte dos entrevistados respondeu que “sarará”, “mulato” e “moreno” são, respectivamente,
“sarará mesmo”, “mulato mesmo” e “moreno mesmo”, apenas uma minoria identificou-os
como negros73. É que a pesquisa pretendia compreender se, para os brasileiros em geral, esses
fenótipos configuravam categorias raciais independentes, ou estariam dentro de outras como
“branca”, “indígena” ou “negra”.
Amarildo reflete sobre os “casos difíceis” através da ideia de “passabilidade”. Ele nos
fala o seguinte: mesmo que uma pessoa seja racializada em regiões mais branca do país, ao
não ser identificada como negra na Bahia, por exemplo, ela possui um trânsito racial que por
si só implica privilégio. Eis que surge novamente o nome de Anitta, a mesma artista que
Marielle, Laudelina e Jaci tinham citado para falar sobre “afroconveniência”:

Amarildo: O fato dela [Anitta] ser reconhecida enquanto pessoa de pele


mais escura no Rio Grande do Sul, lá no Rio Grande do Sul, ainda assim ela
vai ser tratada de forma diferente, do que uma pessoa retinta no Rio Grande
do Sul, você entende o que eu quero dizer? [...] existe uma aceitação maior
com relação a ela por ser mais clara, mas não ser considerada branca lá,
ainda assim, ela vai desfrutar de vários privilégios, que não, que vão ser
negados pra uma pessoa de pele mais retinta nesse mesmo lugar.

população negra no mundo, depois da Nigéria, se usarmos as definições raciais empregadas nos Estados Unidos
(o Brasil, pode-se dizer, é geneticamente pardo, embora haja algumas áreas do país, como Porto Alegre, que são
esmagadoramente brancas). E um terço dos escravos brasileiros — cerca de 1,5 milhão — desembarcou no
Brasil pelo porto da Bahia” (Ibid., p. 16).
73
A porcentagem foi maior para os que responderam “negro” invés de “branco”, para o “sarará” e o “moreno”.
Ninguém classificou o “mulato” como “branco”.
155

Sua fala tenta abordar um aspecto parcial das diferenças classificatórias regionais. Essa
discussão já era feita nos estudos de relações raciais no Brasil antes mesmo das comissões de
heteroidentificaçao transporem essa problemática para o campo da política. Jacques
D’Adesky (2001), a esse respeito, diz que:

[...] as diferenças culturais existentes entre as populações de diversos


espaços geográficos e, às vezes, espalhadas numa mesma região permitem-
nos observar as variações no processo de identificação racial e afirmar que
os critérios e categorias raciais definidos não são de uso universal entre as
sociedades. Assim, um mesmo indivíduo pode ser percebido e classificado
racialmente de modo diferente de um país para outro, de uma região para
outra ou até de um quarteirão para outro, dentro de uma mesma cidade (p.
134).

4.3 A HETEROIDENTIFICAÇÃO

Durante o curso, Mirtes citou uma página criada numa rede social da Internet, o
Facebook, chamada “Cara gente branca”. Eu já tinha visto essa página há alguns anos atrás,
quando foi criada (e ainda não tinha sido deletada). A página expunha fotos de pessoas que
seu(s) respectivo(s) autor(es) heteroidentificava(m) como brancas, apesar de cotistas. Ou seja,
a página pretendia denunciar possíveis fraudadores. A professora usa esse exemplo para dizer
como a hereoidentificação configura “uma questão ética e jurídica delicada”. A banca “serve
para operacionalizar acessos, direito, precisa da objetividade”, disse um membro presente. É
certo que, ainda que falemos sobre políticas públicas, as comissões também mobilizam
emocionalmente os envolvidos em diferentes níveis, porque fala sobre um processo de
reparação história para a comunidade negra. Por isso, Mirtes alerta: “vai ter momento que vai
dar raiva”, se referindo aos fraudadores. “A gente acha que depois da fala de abertura, eles
vão embora, mas não vão”. Então, a professora reforça, a fim de garantir essa “objetividade”:
se deve evitar estar em bancas que avaliarão pessoas conhecidas, assim como não se pode
manifestar qualquer reação como, o que poderia ser mais comum, “levantar as sobrancelhas”.
Os membros ironizam o fato de alguns candidatos se “fantasiarem de negros”, e
brincam sobre a necessidade de “trazer [levar] água micelar para tirar maquiagem”
(Jurema). Vamos nos aproximar com cuidado dessa fala. Essa manipulação estética que se
refere Jurema, e que começamos a discutir antes com o bronzeamento, é uma prática
recorrente na nossa história de relações raciais, para lá e para cá. Domingues (2002), por
exemplo, nos fala o seguinte:
156

[...] o “branqueamento estético” não se restringia ao alisamento dos cabelos,


atingia a principal marca definidora de raça no Brasil: a cor da pele. Alguns
produtos prometiam a proeza de transformar negro em branco mediante a
despigmentação, ou seja, através do “clareamento” da pele:
Attenção. Milagre!...
Outra grande descoberta deste século, é o creme líquido. Milagre. Dispensa
o uso de pó de arroz... Formula Scientifica allemã para tratamen toda pelle.
Clarea e amacia a cu tis (O Clarim D'Alvorada, São Paulo, 28/9/1930 apud
Domingues, 2002, p. 580).

Observemos agora esse registro trazido por Thales de Azevêdo (1955), cujo processo de
transformação da cor se constata pelo branqueamento e pela americanização:

Por influência de livros e de filmes cinematográficos norte-americanos, ou


vê-se às vezes falar em colored. Uma profissional morena diz que sabe que é
colored; um diário local também descreveu com esse termo um político
mestiço. Um escritor baiano assim resume, em livro recente, os problemas
de semântica relacionados com a caracterização dos tipos físicos locais: "O
preto claro se chama de mulato, mulato claro é moreno, sarará passou a
louro. Pardo ninguém sabe o que seja. Branco fino se diz daquele cujas
origens e aspeto não dão margem a que se desconfie de mestiçagem. E os
que são brancos mestiços não gostam nada de mostrar retratos dos avós" (p.
36).

Veja, o fenômeno social da mudança de cor no Brasil, historicamente, se deu por duas
vias: da palavra, onde uma diversidade de 135 cores apareceu no PNAD de 1976 e 143 cores
no PME de 1988, com categorias furtivas à autodeclaração negra; e através das tecnologias de
ordem estética. Nesse sentido, no Brasil, o bronzeamento ou o encrespamento dos cabelos no
contexto das bancas de verificação, estão inseridas em um conjunto de técnicas discursivo-
corporais que habitam o imaginário social brasileiro e apontam para fronteiras de cor
retoricamente fluidas. Essas fronteiras se movem no espaço comum constituído pela
mestiçagem, onde todos os brasileiros fariam parte. O gene mestiço poderia ser ativado
tirando a avó negra do armário ou tomando sol. Lembremos que o mesmo procedimento, às
avessas, era estimulado para o comportamento de brancos-mestiços e mulatos. Skidmore
(1976), por exemplo, usa isso para dizer que não devemos exagerar na afirmação de que a
regra da “gota de sangue” não tem aplicabilidade no Brasil:

[...] os mestiços – em ascensão social – davam-se a grande trabalho para


esconder os seus antecedentes fenotípicos. Tal comportamento sugere que
um mulato, a quem os traços fenotípicos tinham permitido o desejado acesso
social, podia sentir-se ainda suficientemente inseguro para temer que a sua
vivência na sociedade pudesse ficar ameaçada por uma redefinição de status
com base nas raízes familiares. [...] Os limites sociais da sua mobilidade
dependiam sem dúvida da aparência (quanto mais “negroide”, menos móvel)
e do grau de “brancura” cultural (educação, maneiras, riqueza) que era capaz
de atingir. A bem-sucedida aplicação desse sistema multirracial exigiu dos
157

brasileiros uma apurada sensibilidade a categorias raciais e às nuanças da sua


aplicação (p. 56).

A mestiçagem constituiu um discurso permissivo para que pessoas brancas se movam


entre os dois lados da fronteira birracial, como algo próprio da brasilidade. Vimos que a
mobilidade nessas fronteiras de cor também foi estimulada para a população negra como sinal
de higiene, boa educação e obediência à norma, o que, no entanto, não implicou na
participação desses negros na branquitude.
Mauss (1974), ao escrever sobre “técnicas corporais”, trata o corpo como “o primeiro e
o mais natural instrumento do homem” (p. 217). É dessa forma que ele nos introduz a pensar
sobre fazer o corpo, a prática que incorpora a sociedade. Tratando de uma ideia que
desenvolvemos no capítulo anterior, a respeito do “manifestar” ou “incorporar” a identidade,
diferente dos negros de pele clara que manifestam uma autodeclaração, o ato de fraudar as
comissões de heteroidentificação racial pelo enegrecimento da imagem, é uma incorporação
da mestiçagem. É o corpo branco, e não o mestiço, que está submetido ao fazer corporal de
fronteira.
Retomando a nossa etnografia, é interessante perceber que, para além das possíveis
reações de simpatia ou antipatia em relação aos candidatos, das quais falava Jurema e Mirtes,
o trabalho de heteroidentificar repercute nas próprias elaborações subjetivas dos avaliadores.
Refletindo sobre como foi racialmente posicionado entre seus pares na Comissão, e na relação
com os candidatos, Luís conta que saiu de lá “muito mexido”:

Porque eu me via ali como aluno, como professor que defende a causa da
identidade negra e [tinham] outros professores que não [o] viam como
identitário, negro… Aí eu fique… Me deixou um pouco…

Talvez por ser esse negro com pele clara, mas também por ter se submetido a todo o
processo de formação e prática de trabalho adequado às atividades da Comissão, percebo em
Luís um grande cuidado na forma como fala sobre a heteroidentificação. Ele frisa, por
exemplo, em diferentes momentos da nossa conversa, compreender o trabalho da banca como
um “ato político”, uma forma de exercer “diretamente uma militância”, mesmo que ele não
esteja inserido em uma organização dos movimentos sociais. Pela forma como articula a fala,
percebo que isso se reflete no cuidado que teve com os candidatos:

Pra não mexer com essa aflição de pertencimento quando se tem. Porque
quando não tem ai é tranquilo. Mas quando se tem é duro, é cruel você se
ver pertencente a todas as possibilidades daquela cultura, daquela
identidade e vem um grupo e diz: “Não, você não é negro, você não é
158

pardo”. E aí abri brechas pra várias interpretações porque lida com a


questão da subjetividade.

Como já trouxemos na Introdução desse trabalho, as bancas de aferição não pretendem


validar ou desautorizar elaborações individuais sobre a identidade dos candidatos, mas aferir o
fenótipo de acordo com os objetivos das políticas afirmativas. É isso que Amarildo se refere
quando diz não ser possível alegar necessariamente “má fé”74 daqueles não-negros que
pleiteiam as cotas.

Amarildo: [...] porque o primeiro passo pra se passar, pra participar da


seleção enquanto candidato negro é a autodeclaração. Então se você se
autodeclara, é como você se enxerga, então eu não posso dizer que isso é
má fé. [...] Agora, a Universidade enquanto instituição que
obrigatoriamente tem que zelar pelo, a garantia do direito, do que é de
direito, nós que compomos a banca pra isso, e se a pessoa se autodeclarou,
mas ainda assim ela não for pertencente aquele grupo, ele infelizmente vai
ser excluído, né? Do certame, vai ser excluído do processo.

A imagem que segue é de um suposto advogado de duas mulheres que teriam sido
reprovadas na Comissão como cotistas. Esse pronunciamento foi feito num grupo da UFBA
do Facebook. Embora o texto toque num fator importante, que são as diferenças entre o
contexto de Salvador e de outras localidades, não dá pra validar todas as suas informações.
Por exemplo, não há uma recomendação da banca para que pessoas de cabelo liso não sejam
aprovadas. Conversei com esse rapaz e ele me deu o contato de uma dessas moças.
Observando as fotos da sua rede social, lhe descreveria como uma mulher branca: cabelos
lisos e pretos, traços finos e pele branca. O advogado, no entanto, me disse que eram mulheres
de pele parda e pais negros. Possivelmente o argumento dele era de uma parditude genética.
Ou seja, pardo está denotando aqui, mais uma vez, uma herança genética mestiça, e não um
fenótipo mestiço racializado.

74
Diferentes referências trazem o exemplo de pessoas que teriam se declarado “pardo” por “não saber o
que responder” (SCHWARTZMAN, 2009; ROCHA, 2010).
159

Figura 21 – Advogado critica a Comissão de heteroclassificação da UFBA, printscreen da publicação


em 2020.

Fonte: Facebook.

4.4 O AUTORRECONHECIMENTO

Mirtes chama atenção não só para os possíveis sentimentos “de raiva” contra os
fraudadores, mas também de afeição pelos candidatos negros. Isso porque, o momento da
banca pode ser uma ocasião emocionante. Ela descreve situações em que o(a) candidato(a)
disse ser a primeira vez em que se nomeou negro(a), ou de que era a primeira vez que essa
identidade “serviu pra alguma coisa”. Luís também falou sobre isso, alguns “alunos diziam
que eles não tinham muito tempo de falar sobre eles [...]. Alguns nem falavam absolutamente
nada, alguns ficavam nervosos, alguns choravam”.
Indo em outra direção, Mirtes conta sobre o recurso endereçado à Comissão por uma
candidata descrita como “loira de olhos claros, que disse sofrer racismo em Salvador”. Essa
candidata, chorando, teria explicado não ser da cidade, e que desejava sair de Salvador em
função do preconceito que estaria sofrendo. Esse preconceito, em sua opinião, deveria lhe dar
direito às cotas.
160

4.5 O FENÓTIPO E O GENÓTIPO

Como temos traçado, essa é uma discussão antiga. Vamos aos exemplos desse debate
nossa história política:

O então ministro do Desenvolvimento Agrário do governo


Fernando Henrique Cardoso (FHC), Raul Jungmann (2001, p. 6), em
uma defesa do programa federal de ação afirmativa, declarou que caso
haja dúvidas quanto a um dado indivíduo ser ou não negro, “pode ser
submetido a exames”. (SANTOS&MAIO, 2008, p. 110)

Santos e Maio (2008) continuam essa narrativa nos mostrando que, em ocasião da
aprovação da Lei estadual do Rio de Janeiro, sobre a reserva de vagas nas universidades para
pessoas negras,

O então secretário de Ciência e Tecnologia do Estado,


Wanderley de Souza, que é um cientista da área da biomedicina,
afirmou que “minha principal dificuldade é saber o que é negro e
pardo no Brasil”. Para resolver a questão, Souza afirmou que criaria
uma comissão para regulamentar a lei, que incluiria especialistas em
genética, antropólogos e militantes do movimento negro (Ibid., p.
107).

A história que segue, fala sobre as ações judiciais movidas por alunos brancos e a
manipulação do argumento genético. É nesse sentido que José Roberto Pinto de Góes,
professor de história da UERJ, “e um crítico contundente da política de cotas adotada pela
instituição” (Ibid., p. 106), declara para aqueles candidatos cotistas:

Se você for candidato ao próximo vestibular da UERJ, declare-


se negro ou pardo, está no seu direito. Você não estará mentindo.
Você pode não saber, mas você também é meio africano. Todos
somos crias da África, seja qual for a cor de nossa pele (GÓES, 2003,
p. 7 apud Santos e Maio, 2006, p. 110).

Perceba que essa mesma “recomendação” aparece no grupo da UFBA:


161

Figura 22 – (1) Opinião: “todos os afrodescendentes merecem as cotas”, printscreen da publicação


em 2020.

Fonte: Facebook.

Na próxima imagem, observamos exatamente a mesma linguagem geneticista para falar


sobre identidades raciais. Aqui, numa clara demonstração de contestação, a Comissão é
apontada como um “Tribunal Racial”. Sua defesa é a de que todos os descendentes dos povos
escravizados deveriam receber direito à reparação, sem compreender que essa reparação,
reivindicada pelas políticas afirmativas, está atrelada ao fenótipo negro. Negros enfrentam
barreiras raciais de superação da pobreza que brancos pobres não estão submetidos.

Figura 23 - (2) Opinião: “todos os afrodescendentes merecem as cotas”, printscreen da publicação em


2020.

Fonte: Facebook.
162

Gates Junior (2011), em alguns incursos pela América Latina, vai escrever de uma
forma um tanto literária, a respeito das dinâmicas de autodeclaração e heteroidentificação
étnico-raciais de alguns desses países. No Brasil, e mais especificamente em Salvador, um dos
intelectuais que o pesquisador conversou foi o Vovô do Ilê. Vovô teria explicado a Gates
(2011) que “o Ilê Aiyê tem como missão preservar as formas tradicionais do candomblé e se
restringe a membros negros” (p. 28). Isso provocou o autor a querer saber como se determina
a identidade negra “no arco-íris de pardos e pretos que configuram o rosto do Brasil” (Ibid.,
op. cit.). Vovô riu

[...] e respondeu que compete aos candidatos se autoidentificar. J. Lorand


Matory me informou que “o teste original de ingresso no Ilê Aiyê consistia
em arranhar a pele do candidato com a unha. O candidato só era admitido se
a pele ficasse cor de cinza”. De bom humor, “Vovô” acrescentou: “Nós
sabemos a diferença”. Fiquei com a impressão de que a definição de afro-
brasileiro de “Vovô” era muito cosmopolita: se alguém diz que é negro,
negro passa a ser (Ibid., p. 28).

Se fosse nos Estados Unidos, o autor comenta, “uma enorme percentagem da


população, demonstrada por seu DNA, quase com certeza atenderia aos requisitos da lei
americana sobre hipodescendência, reafirmada pela Corte Suprema em 1986” (Ibid., p. 28).
Esse debate entre fenótipo e sangue é uma questão que aparece no curso de formação que
acompanhamos. Em um dado momento da aula, um membro branco, que chamaremos de
Joaquina, pede a fala e cita o caso dos irmãos gêmeos da UnB75. O faz para defender que
outros dados além do fenótipo precisam ser levados em consideração na hora da
heteroidentificação. O fenótipo, ela diz, pode ser construído (manipulado). Esse comentário
abre uma seção de discussões interessante entre os membros. Uma professora negra contesta:
“o racismo não é subjetivo, numa abordagem policial você não traz sua genética, o racismo
não pergunta com o quê eu trabalho. O racismo é objetivo”. Encontrei essa mesma discussão
no grupo da UFBA. O contexto é de uma jovem que tinha dúvidas sobre sua autodeclaração,
porque sua família seria “muito misturada”. A resposta que podemos ver na imagem a seguir,
reflete algo que já tínhamos discutido no capítulo anterior, a respeito da objetividade do
racismo, e de como ele é uma experiência marcante e fundamental para a autoatribuição e
para a heteroclassificação racial.

75
Gêmeos idênticos que, tendo submetido fotografia à comissão avaliadora da UnB, um foi considerado
negro e o outro não. Ver mais em <https://www.estadao.com.br/noticias/geral,para-unb-um-era-branco-e-outro-
negro-imp-
,951965#:~:text=H%C3%A1%20cinco%20anos%2C%20os%20irm%C3%A3os,do%20sistema%20de%20cotas
%20raciais.>.
163

Figura 24 – “Como saber se você é negro”, printscreen da publicação em 2020.

Fonte: Facebook.

Veja, na medida em que as comissões não pretendem interferir nos processos


individuais e subjetividades de cada candidato, o seu trabalho será calcular como cada
fenótipo se insere num sistema de poder que demarca lugares sociais pela aparência/raça. Ou
seja, o racismo é um elemento desse cálculo. No meio desses debates, outro membro indicou
que o método criado pela professora Marcilene Garcia foi produzido, dentre outras coisas,
para criar “múltiplos processos educativos”76. E completa: “a polícia não entrevista, toma
uma decisão ali com o que tem”.
Luís também deu destaque ao papel do fenótipo no processo classificatório. Ele citou
Marcilene sobre “o racismo de marca e o racismo de origem”, e seguiu explicando que se o
racismo se dá a partir da aparência, “então nós vamos utilizar desse mesmo mecanismo para a
identificação: a aparência, o fenótipo”. Nesse sentido, não cabe “outros critérios” de
identificação, do qual falava Joaquina:

[...] você teve o avô, a avó, o bisavô negro ou retinto? Isso não importa, a
sua certidão veio dizendo que é parda? Isso não importa, é o seu fenótipo
que vai prevalecer aqui, é a sua fotografia ali, tirada na hora, sem nenhuma
alteração, nenhum Photoshop [...]. Acho que o critério é esse aí, que você
não é branco. Se você é pardo ou se você é preto a escala do colorismo não
entra: se é mais preto ou se é mais próximo do branco.

Ainda sobre o papel do fenótipo, pergunto a Luís o que é discutido na decisão dos
“casos difíceis”. Ele explicou usar “os critérios da antropometria, os mesmos que as teorias
raciais utilizaram”. Isso pode ser chocante ouvir, mas existe uma explicação. Esses teriam
sido “os mesmos critérios que racializaram, no sentido de desqualificar, e hoje são os

76
O comentário foi reforçado por Jurema, ao dizer que a banca “educa o outro e nos educa”. Carvalho (2005), a
respeito das experiências de cotas e comissões na UnB, disse uma vez que “O que espero da autodeclaração é
que ela se generalize especularmente, de modo a alcançar não somente os candidatos ao vestibular pelas cotas,
mas também a nós, acadêmicos brancos que nunca nos assumimos como tais” (p. 244).
164

mesmos que são utilizados para efetivar. Eu não vejo como ‘o racismo do racismo’ se é que
alguém fala sobre isso, entendeu? São os mesmos critérios”. Ou seja, se pelo fenótipo, as
teorias raciais tiraram conclusões sobre a inteligência, o comportamento moral ou sexual,
então é necessário que se resgate esse mesmo fenótipo em função do trabalho de “reparar”.
Duro não é o método, é o sistema.

Luís: Olha como o século XIX foi utilizado pra te colocar menos. E olha
como estamos usando os mesmos critérios pra dizer: “Olha como você é
belo”, “Olha como você é bela”, “Olha como a sua cor é bonita
independentemente… E você está ingressando por esta cor, não é por ser
coitado, é como dívida de reparação histórica nesse país que deixaram
milhões de pessoas antecedentes a você fora de um sistema de ensino, de
uma sociedade mais equânime”, entende?

Luís descreve que o que mais lhe chamava atenção eram traços físicos do rosto, mais do
que o cabelo, já que este seria um elemento mais facilmente mutável a conveniência de cada
um. Apesar disso, Luís ressalta que não se trata de uma avaliação que ficará medindo um
elemento estético ou outro, mas que irá lê-los em seu conjunto77. Amarildo disse, a exemplo
disso, que passaram “pessoas com a pele mais clara, mas com todos os outros traços
negroides”, assim como “perdem pessoas com pele mais escura, mas só que com todos os
outros traços que não o colocam na situação de pessoa negra”. No trecho que segue, Luís
fala sobre os cuidados que teve para que toda essa avaliação fenotípica acontecesse da forma
mais confortável possível para as duas partes:

Nunca estava olhando pra você e anotando sobre você pra não te deixar
constrangida. Então quando eu estava olhando pra você eu já estava
olhando pro outro aí já anotava o outro pra ele ou ela não se sentir como se
fosse uma vitrine, né? Uma vitrine que está te avaliando pra ver se você se
enquadra ou se não se enquadra… Essa é a sensação, mas, para evitar ao
máximo… Tinha ali uma presidente da mesa [que dizia]: “E aí, como é o
seu nome” então pra quebrar aquela tensão, porque há de fato uma
preocupação, sobretudo na primeira banca. Havia uma preocupação muito
grande dos alunos e nossa também.

77
Esse “conjunto” do qual se refere Luís, me remete a fala de D’Adesky (2001), segundo o qual, “mesmo
quando os sinais naturais, como a cor da pele, marcando o pertencimento a determinado grupo, são essenciais na
identificação, eles não são necessariamente determinantes na classificação racial, quando se observa que a
subjetividade dos sinais exteriores induz a uma multiplicidade de percepções que oscilam também em virtude de
critérios não raciais. Isso acontece, sobretudo, ressalta Oracy Nogueira, com os indivíduos com leves, porém
insofismáveis, traços negroides que são incorporados ao grupo branco, principalmente quando portadores de
atributos que implicam status médio ou elevado (riqueza, diploma de curso superior e outros)” (p. 136).
165

4.6 A CONTROVÉRSIA

Figura 25 – Opinião: “pretos devem ter prioridade nas cotas raciais”, printscreen da publicação em
2020.

Fonte: Facebook.

Dentre os diferentes homens e mulheres que estavam participando do curso, havia uma
mulher negra de pele clara, que chamaremos de Simone, com posição importante dentro de
uma organização nacional do movimento negro. Em um dado momento, quando esses
membros socializavam opiniões relativas aos temas da aula, Simone, que se autodeclarou
“mulher preta,” fez o seguinte comentário: os membros não deveriam “se culpabilizar” pelas
pessoas reprovadas, porque

[...] é uma questão de caráter da pessoa que não vivencia a negritude vinte e
quatro horas por dia. A banca não vai resolver os problemas das relações
raciais no Brasil. Se a pessoa tinha dúvida da negritude podia ir para ampla
concorrência. Mas existe uma aposta na brecha, no erro.

Jurema, falando sobre sua experiência na Comissão, cita o caso de pessoas que
confessam nunca terem se declarado negras antes. Isso, ela diz, não pode ser um critério de
166

avaliação porque “não se quer avaliar a consciência racial da pessoa”78 e sim o seu fenótipo.
Um membro presente pondera que essa falta de elaboração da identidade racial, por parte das
pessoas negras, é “produto do próprio racismo, não se pensar, mas quem tem dúvida não
deveria ir para ampla concorrência?”.
No final daquela experiência de treinamento, uma banca de simulação foi criada para
demonstrar o trabalho que ocorreria durante o processo seletivo. Nessa simulação, alguns
membros estariam na condição de avaliadores e outros na condição de candidatos. Simone se
voluntariou para essa banca na posição de candidata. É interessante observar como as pessoas
que se dispuseram para a experiência foram todas negras de pele clara e brancas, enquanto os
avaliadores voluntários eram negros de pele preta. Naquela simulação, Simone mudou a sua
autodeclaração de “preta” pra “parda”. Diferente do processo oficial em que os resultados são
divulgados nos portais da instituição, como o site do processo seletivo, a conclusão dessa
banca de treinamento foi dada verbalmente, ao fim daquela sessão. Simone foi um dos “casos
fáceis”. A decisão da comissão pela sua heteroclassificação negra foi dada depois de algumas
discussões, de forma a haver dissenso quanto a sua identificação. Um membro que estava
sentado numa fileira atrás de mim, e que assistia aquele treinamento, falou em voz baixa “na
minha banca ela não passaria”. Essa é uma situação muito curiosa, porque inicialmente
Simone reproduzia um jargão político que insinuava má fé daqueles que tinham dúvida sobre
sua autodeclaração mesmo pleiteando as cotas, até que ela própria que se autodeclarava
“mulher preta” mudou para “parda” e só teve seu pleito aprovado depois de muitas
considerações dos avaliadores.
Ainda que ativistas usem insistentemente o argumento de que “a polícia sabe reconhecer
quem é quem”, essa experiência é exemplar para nos dizer que o racismo é um fato notável
que, no entanto, não encerra a dimensão da controversa do nosso sistema classificatório. Essa
simulação ainda rendeu outra situação muito interessante. Outro membro, que chamaremos de
Lúcia, foi uma das pessoas que se candidataram a essa treinamento como avaliada. Ela se
declarou “parda” – o que me causou muita estranheza, porque quando a vi, não tive dúvidas
de que Lúcia era uma mulher branca e nem pensei que ela poderia discordar disso. A banca
reprovou Lúcia. Poderíamos descrevê-la como uma mulher de pele branca, sem traços
marcantes de nariz ou boca largos, e de cabelos cacheados pretos. Esse resultado lhe

78
Esse comentário nos remete ao caso da UnB narrado por Campos (2013): “Segundo o manual de inscrição do
vestibulando da UnB, ‘o candidato [à cota racial] deve ser preto ou pardo e se declarar como negro’. De um lado,
esse enunciado sugere que os beneficiários potenciais das cotas são ‘de fato’ pretos ou pardos, como o IBGE diz.
Por outro lado, o enunciado sugere que tal ‘condição’ não é suficiente para se candidatar às cotas, pois é
necessário ainda que o candidato se defina autonomamente como ‘negro’. Portanto, para a Universidade Federal
de Brasília, ser “negro” é uma escolha suplementar à condição factual de ser da cor ‘preta’ ou ‘parda’”.
167

surpreendeu, e, demonstrando aborrecimento, sentenciou: “então teremos que admitir que


nem todo pardo é negro!”. Mirtes brincou com o resultado da banca: “só passou negão do Ilê!
Negro que risca!”. Parece que, convenientemente ou não, algumas pessoas brancas
embaralham as coisas pra dissimular sua brancura. O pardo denota historicamente um
indivíduo miscigenado. Assim sendo, talvez toda a população brasileira seja parda. Acontece
que, como já sabemos exaustivamente, a racialização no Brasil não obedece a critérios
genéticos, e sim fenotípicos. Nesse sentido, brancos são aqueles de fenótipo branco, pretos
igualmente, e pardos, do mesmo modo, pessoas de fenótipo característico dessa miscigenação,
não branco. É exatamente por isso que são racializados e compartilham de indicadores sociais
tão preocupantes quanto os da população preta. Joaquina, outro membro que já foi
apresentado, também ficou bastante aborrecida com o resultado da banca de simulação, que
lhe identificou branca apesar da sua autodeclaração parda. Joaquina foi a mesma pessoa que
disse, lá atrás, ser necessário a Comissão utilizar outros critérios, além do fenotípico, para a
heteroclassificação. Ela, assim como Lúcia, são mulheres que identifiquei rapidamente como
brancas. Joaquina tem a pele branca, de traços finos e cabelos lisos e pretos. Seu argumento
caminhou no mesmo sentido de Lúcia, visivelmente indignada, disse que “então teremos que
assumir que nem todos os pardos entrarão”. Jurema respondeu a isso explicando que “pardo
é não-branco”. E, aparentemente, todos os demais haviam concordado com a sentença de
Lúcia.
O Estatuto da Igualdade Racial e os próprios editais de seleção da UFBA compreendem
pardos como negros e legitimam as políticas afirmativas para eles e os pretos. A questão aqui
não é que a Comissão descumpra essa decisão. Como pudemos demonstrar no capítulo
anterior, pessoas pardas também foram aprovadas. O ponto é que, diferentes significados da
categoria “pardo” estavam operando nessa situação: um significado que denota mistura
genética, e outro que denota fenótipo não branco (e não preto). Pensamos que confundir essas
duas dimensões seja um grande problema. É que isso enfraquece o lugar dos “pardos” como
parte da população negra brasileira. Joaquina, por exemplo, por não ter sido aprovada nessa
simulação, se tomou como exemplo para afirmar que nem todos os pardos seriam aprovados.
É curioso como, mesmo uma mera simulação, causou tantas reações emocionais entre os
envolvidos. Lúcia, por exemplo, que teria ficado contrariada nesse processo, disse que
“jamais se candidataria como cotista a um concurso” e mesmo assim queria ter sido
“aprovada” como negra nesse treinamento, por quê?
Essas questões também afetaram Luís, que foi membro da Comissão no ano anterior.
Identifico-o como um homem pardo, de pele marrom-clara, de cabelos pretos e cacheados, e
168

traços finos. Ele nos conta que, dentro dessa lógica de diversidade racial, seu lugar na
Comissão era de um homem branco. “Aquilo me incomodou. É como se todo… Toda a luta,
embora eu não seja esse militante político, mas toda luta de construir e valorizar a cultura
negra e dizer: ‘ó, você não é negro. Mesmo você pertencendo, a gente não te credencia
como’”. Luís também vive esse dilema com seu companheiro, descrito como “sarará”: pele
clara, “os lábios grossos, o nariz grande, o cabelo bem baixinho”. Alguém que,
possivelmente, segundo nosso interlocutor, seria encarada como um “caso difícil”. Ao mesmo
tempo, ele nos diz, se seu companheiro intervisse na sua estética, alisando os cabelos, ou,
dentre outras coisas, “afilasse” seus traços, “ele [iria] se enquadrar imediatamente como
homem branco, entende?”. Esse é um argumento muito comum quando se avalia a raça de
uma pessoa de pele clara. “Só é negra por causa do cabelo”, foi o que Elza nos contou no
capítulo anterior. Mas, eu fico pensando: se formos levar esse debate ao seu limite, veremos
que os artifícios da estética para embranquecer não estão disponíveis apenas para as pessoas
de pele clara, e Michael Jackson é, nesse sentido, o melhor exemplo.

4.7 PARA ONDE CAMINHA A IDEOLOGIA DO PRIVILÉGIO PARDO

O lugar dos pardos ou mulatos sempre foi controverso. Donald Pierson, por exemplo, vê
na “mobilidade social de mestiços” (GUIMARÃES, 2008, p. 71), não na mestiçagem em si,
“à inexistência do preconceito de raça que, facultando a miscigenação, explicaria a ascensão
social dos mestiços” (Ibid., p. 71). É que Pierson, imbuído da concepção racial estadunidense,
tomou “mestiços embranquecidos” como negros, e disse que aqui não existiria um
preconceito racial e sim de cor (contra os pretos). (Ibid., p. 72). Ao contrário disso, temos
desde a década de 70, pardos e pretos somados na constituição da população negra brasileira
por três razões:

i. A usual proximidade dos indicadores sociais dessas duas populações, tal


como já descrito por uma vasta literatura que trata do tema das relações
raciais;
ii. Esta aproximação só se torna compreensível pelo fato de que os pardos,
tal como pretos, são identificados e discriminados no interior da sociedade,
sendo, portanto, sujeitos às mesmas barreiras à sua realização
socioeconômica;
iii. Existência de uma perspectiva política, no movimento negro, de
entendimento de que os diversos matizes comportam uma unidade comum
(PAIXÃO, ROSSETTO, MONTOVANELE&CARVANO, 2010, p. 28).
169

Segundo a opinião de um membro do grupo da UFBA, incluir os pardos na contagem


populacional de negros, foi simplesmente uma estratégia política:

Figura 26 – Para quê servem os “pardos”? Printscreen da publicação em 2020.

Fonte: Facebook.

Joaquina disse que, em sua opinião, “pretos devem ter preferência em relação aos
pardos” nas cotas, porque “os indicadores sociais de pardos são melhores”. Jurema aprovou
esse comentário: “Ótima questão Joaquina. Essa é uma discussão que os movimentos
precisam fazer, inclusive institucionalmente”. Nesse mesmo sentido, reproduziu uma pergunta
que eventualmente se direcionaria para a banca: “mas essa pessoa parda não está tirando a
vaga de uma pessoa preta?”. As imagens seguintes reproduzem essas questões:

Figura 27 – Opinião: “pardos não sofrem preconceito”, printscreen da publicação em 2020.

Fonte: Facebook
170

Figura 28 – Opinião: “pardos devem sair do direito às cotas”, printscreen da publicação em 2020.

Fonte: Facebook

Joaquina, insistindo na sua autodeclaração negra, completa: “Sou racializada de outra


maneira, diferente das pessoas pretas”. Isso é exatamente o que fragiliza o lugar dos negros
com pele clara. Pessoas negras com pele clara não podem responder pelos brancos que
dissimulam sua brancura. Pardos e brancos não são iguais. Ambos podem ser mestiços
geneticamente, mas um tem um fenótipo branco e o outro, fenótipo não-branco. O trecho a
seguir, do texto de Duarte (2015), ilustra como os debates têm incluído brancos e negros de
pele clara no mesmo saco:

Desde a polêmica acerca de Rachel Dolezal – a mitômana branca que


fez cosplay de negra por 10 anos -, a desconfiança de ativistas negros com os
dos irmãos de alta passabilidade só tem aumentado. Esses não-brancos-nem-
tão-negros, por sua vez, tem intensificado o debate sobre colorismo, muitas
vezes, ignorando o fato de que o termo foi criado por feministas norte-
americanas negras para debater os privilégios de pessoas negras pouco
negroides no sistema de supremacia branca. Ou seja, acabam traduzindo um
conceito pensado para uma sociedade segregadora para a nossa que ainda
acredita na comunhão das raças.
Se para pardos e negros com passabilidade autodeclarar-se negro é,
frequentemente, parte de uma trajetória de resistência. Já para pretos e
negros sem passabilidade… a posição política ocupada nesta sociedade
racista é (hétero) declarada desde o nascimento. Então nada mais justo que
os direitos dos nunca puderam disfarçar sua negritude sejam
assegurados. Até porque as cotas foram criadas para empretecer os espaços
de poder, algo que mal ou bem nunca foi totalmente descartado aos negros-
quase-brancos — Nilo Peçanha chegou até à presidir nossa República.
Então, se o maior conflito da sua negritude é ser percebido como tal, lembre-
se de que nem todos têm esse privilégio.
171

As próximas imagens, do grupo da UFBA no Facebook, se referem ao caso de Pedro


Henrique Santos Cruz Souza, ativista dos Direitos Humanos, que vivia no interior da Bahia e
foi assassinado em dezembro de 201879. Ela é sintomática para demonstrar como o debate é
manipulado por discurso de diferentes orientações ideológicas. Nelas, dentre outras coisas, se
questiona como esses conflitos em torno da categoria “pardo” são contraditórios, ora
apontando para a inclusão, ora para a exclusão desse grupo na população negra brasileira.

Figura 29 – Quem é pardo? Printscreen da publicação em 2020.

Fonte: Facebook.

Figura 30 – Qual o lugar dos pardos? Printscreen da publicação em 2020.

Fonte: Facebook.

79
Notícia disponível em <https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/policia-investiga-assassinato-de-
jovem-ativista-no-interior/>.
172

Outra imagem, abaixo, foi coloca nos comentários do texto da Figura 29. Pesquisando
um pouco mais, a encontramos no site da organização “Nação Mestiça”80, já falamos sobre
ela antes.

Figura 31 – Diferentes contagens da população parda.

Fonte: “Como pardo é usado nas estatísticas”. Disponível <https://nacaomestica.org/blog4/?p=21587>.


Acessado em 05 de outubro de 2020.

A fala de Luís reproduz essa contradição. Olhando para sua própria trajetória, ele diz
que:

[...] as tensões, as humilhações, elas são mais atenuadas para o pardo que o
preto retinto. [...] sempre aquele que está mais próximo do fenótipo do
branco… Eu não quero usar a palavra indevida: “fácil” ou “difícil”, mas a
aceitação seria mais… Não sei se é pertinente… Seria mais… [a aceitação]
É possível, digamos assim.
Gabriela: Você percebe isso na sua vida, por exemplo?
Luís: Percebo, por exemplo, eu, não retinto, num processo seletivo,
possivelmente eu seria [aprovado]… e o retinto não. Entre eu e um branco,
o branco seria e eu não, entende? Eu não participei de muitos processos
seletivos, empresas privadas… Mas pela própria leitura que eu tenho da
minha infância, de: “ah, você não é filho do seu pai” - que tinha a pele
muito mais escura do que a minha, já demonstrava que se eu tivesse a pele
dele, fosse mais escuro, talvez se eu não passasse por onde eu passei, talvez
eu não ficasse tanto tempo assim. Ou ficaria em trabalhos subalternos, coisa
que eu nunca exerci. Porque mesmo meus pais tendo baixa escolaridade,
eles proporcionaram pra gente aquilo que eles não tiveram, que era

80
Disponível em <https://nacaomestica.org/blog4/?p=21587>.
173

educação. [...] E aí nesse aspecto, eu acho que se a minha pele fosse a pele
dos meus pais ou dos meus tios, seria um fator mais determinante a não ter
passado e ocupado espaços que eu ocupei na minha vida, que não foram
muitos, mas as oportunidades teriam sido menores? Acho que sim.

Aqui aparece a mesma medição de “mais e menos” que surgiu no capítulo anterior. Luís
passou por uma revista policial, mas não por dez. De forma figurada, absolutamente todas as
pessoas pretas passaram por dez? Se não, isso não estaria em função de outros marcadores,
além do próprio tom da pele? Nessa equação, o que venho chamando atenção é que o tom de
pele é um marcador de diferença, mas atribuir somente a ele toda desigualdade que pode
existir no interior das comunidades negras brasileiras, é omitir outros marcadores também
muito importantes, como o pertencimento de classe ou a identidade de gênero, por exemplo.
“Então na revista policial, de dez, eu só passei por uma. Certamente meu sobrinho que é
retinto, das dez, ele passou pelas dez. Então eu tenho essa consciência”. Já que nosso
interlocutor concordava com esse “privilégio pardo”, gostaria de saber sua opinião a respeito
das cotas e sua destinação para pretos e pardos.

Luís: Tenho uma colega que falo assim: “essa ideia da mestiçagem foi uma
desgraça pra sociedade brasileira, né?”. [...] Ao acentuar a questão da cor,
de mais claro ou menos claro, você acaba criando essa outra possibilidade
do privilégio dentro do grupo negroide. Então assim, eu não vejo essa
possibilidade de ter que criar uma cota dentro das cotas.
Gabriela: Mesmo tendo privilégio?
Luís: É porque se… Então eram só negros, pretos. Os pardos estão fora,
não precisa mais da cota. [...] E a gente vai deixar aí uma população
também enorme, pardos, em situação também de vulnerabilidade, de gênero,
de classe estariam fora.

Ou seja, talvez o que Luís esteja dizendo é que, embora existam vantagens dos negros
mais claros, em determinadas circunstâncias, isso não reflete num privilégio estrutural do
grupo. “Uma cota dentro da cota” seria para ele “uma reparação sem reparação”, e uma
forma de acirrar as relações no interior da comunidade negra. Como já tínhamos observado
antes, essa é uma questão polêmica. Vamos analisar o que fala Amarildo. Para ele, a
população parda não deveria estar inclusa como população negra:

Essa definição de negro, enquanto preto e pardo, ela é equivocada pra mim.
Posso até... Pode até existir o pardo né? O não branco por definição, o não
caucasiano, o não leucoderma. Mas atribuir a essa pessoa a questão da
negritude pra mim é uma falha legislativa.

Isso porque, ele nos explica, essa população teria “uma ‘passabilidade’ muito grande e
ele [o pardo] transita e desfruta de todo o privilégio que a ‘branquitude’ traz, então eu não
174

vejo por que eles serem classificados enquanto pessoas negras”. Amarildo entende que esse
foi um erro dos movimentos negros, em função do embranquecimento de algumas de suas
lideranças.81 Antes de achar essa fala estranha, precisamos entender com qual definição de
“pardo” Amarildo está trabalhando. Eu, por exemplo? Perguntei-lhe. Enfaticamente me
respondeu que não. Para Amarildo, eu sou uma “preta de pele clara”. Ele me explica que os
“negros de pele clara” de Sueli Carneiro (2016), não são pardos, pardo é outra coisa: são
mestiços cujo conjunto de marcas fenotípicas não lhes fazem negros (as). A cantora Anitta é
um exemplo que nos dá. Segundo Amarildo, a artista teria passado por tantas intervenções
estéticas, que lhe colocavam hoje nessa posição de uma pessoa parda (não negra,
embranquecida): “[...] Pra mim o pardo tem a pele mais enclarecida. Muito mais do que a
pessoa preta de pele clara, e tem outros traços fenotípicos que colocam ele na condição de
não negro”. Será que Anitta seria aprovada pela Comissão? “Na banca que eu estivesse
fazendo parte, não”, me respondeu Amarildo.
Talvez nosso interlocutor reivindique o termo “preto” e “preta de pele clara”, em
função de um debate já citado nesse trabalho: “o certo é preto ou negro”?82. Se diz, nessas
discussões, que o “preto” denota uma cor e carrega menos estigmas que o “negro”. Cuti
(2010) já enfrentava dilema parecido quando discutia a preferência do “afrodescendente” ou
“afro-brasileiro” invés do “negro”. O medo da palavra negro seria decorrente de que:

Usada em diversos contextos para demarcar significados negativos ela foi


também utilizada pelo racismo para caracterizar a suposta inferioridade dos
africanos de pele escura. Os povos que foram ficando mais claros durante o
longo período histórico da humanidade guerrearam contra os mais escuros. É
dessa passagem que remonta esse uso da cor para estigmatizar (CUTI, 2010,
p. 4-5).

A fala de Amarildo foi muito elucidativa, porque me fez compreender o que estava em
questão na nossa conversa: não era um desacordo sobre quem atribuíamos negrura. Tínhamos
consenso de que Anitta, por exemplo, não seria uma pessoa negra. O que discutíamos era o
significado que ambos davam para a categoria “pardo”. Esse conteúdo era o mote da nossa
divergência. Como já dissemos, historicamente o “pardo” foi um “saco de gatos”
(SCHWARCZ, 2012) e continua sendo. Campos (2013) nos mostra que essa não é uma
81
Em 2008 Guimarães escrevia que “no caso dos intelectuais brasileiros, mestiços de pele clara em sua maioria,
a situação é ainda mais complexa, já que o movimento negro, em contradição com seus próprios critérios, tende
a trata-los como “brancos” (p. 59). As questões se repetem ou nunca se resolvem?
82
Com Cuti (2010) aprendemos que, seja os embates entre os usos de “negro” em detrimento de
“afrodescendente”, ou “preto” em troca de “negro”, esses problemas são de ordem política. “Enfim, o que existe
nesse aparente jogo semântico é a vontade e o empenho para se manter as coisas como elas estão nas relações
raciais no Brasil: branco discriminando como se fosse normal, negro anestesiado, com medo de reagir, e mestiço
fazendo o jogo da omissão, em busca das vantagens de se sentir branco” (p. 7).
175

categoria do cotidiano das pessoas, nossos interlocutores, por exemplo, se declaram “pardos”
para o Estado, e negros no seu dia-a-dia. As imagens que seguem, do grupo da UFBA, se
reportam às disputas pelo significado da categoria. Lembremos que essa não é uma discussão
qualquer, pois o pardo tem direito às cotas. Então quem é esse pardo?

Figura 32 – O significado do termo “pardo”, printscreen da publicação em 2020.

Fonte: Facebook

Figura 33 – Quem deve ter direito às cotas, printscreen da publicação em 2020.

Fonte: Facebook
176

Quanto ao acesso de negros de pele clara e preta às cotas, Amarildo discorda que haja
um mecanismo que lhes diferenciem. Entendendo que mesmo “sofrendo menos”, essa
população mais clara ainda vai ser racializada, ou, em suas palavras, “afetada pelo racismo”:

Então, se eu colocar cota dentro da cota, eu meio que tô querendo justificar


a política através dessa questão de merecimento, pessoas retintas, entre
aspas, merecem mais por sofrerem mais, teoricamente... Aí eu já discordo, a
cota deveria ser pra pessoa preta, pronto! Independente, e se eu reconheço
como preta, então a cota é pra você.

Apesar de me ver como “preta de pele clara”, nosso interlocutor considera que pessoas
do meu perfil têm privilégios raciais. O exemplo que me deu de primeira foi do “mercado do
amor”. É importante dizer que eu e Amarildo nos conhecemos no período do Ensino Médio.
Eu estava ingressando no Instituto Federal da Bahia (IFBA) no mesmo ano em que ele já
estava se formando. Não éramos tão próximos, mas compartilhamos de alguns ambientes
juntos, como veio a ser a UFBA. Conhecíamo-nos, mesmo não tendo aprofundado o vínculo
de amizade. Nesse sentido, tínhamos certa liberdade para tratar dessas questões, e para que ele
me tivesse como exemplos de seus pensamentos. Ainda assim o fez com muito cuidado.
Continuando a questão que levantou, Amarildo disse que eu nunca seria “preterida” como
“outras colegas mais retintas”. Discordei da sua fala e usei o exemplo de uma mulher de pele
preta que nós dois conhecemos: ela tem certa projeção profissional que lhe faz estar na mídia,
ao mesmo tempo em que lhe permite acessar determinados padrões de consumo. Em minha
opinião, hoje, ela não está mais submetida a humilhações referentes à sua aparência da mesma
forma que alguns anos atrás poderia estar, quando era uma mulher pobre e “anônima”. Ainda
assim, ela é uma mulher solteira que recorrentemente coloca sua posição, publicamente, nesse
debate sobre a “solidão da mulher negra”. Expliquei a Amarildo que atravessei toda a
adolescência sofrendo comentários sobre a minha aparência, no que se refere aos lábios
“muito grossos”, à cor “suja”, ou aos cabelos “duros”, por exemplo. Na medida em que a fase
da adolescência passou, essas experiências não foram mais tão comuns, mas também não
existia uma opinião compartilhada de que eu era “uma mulher bonita”. Isso começa a se
transformar na medida em que eu vou conquistando um lugar profissional, e acessando bens
de consumo que me permitem outra organização estética e outra posição social. Não quis,
com esse exemplo, apagar as desigualdades que podem existir entre mim, ou qualquer outra
mulher de pele clara, e uma mulher de pele escura. Quis dizer que as posições comparativas
de indivíduos negros precisam se dar mediante análises mais contextuais, e levando em
consideração outros marcadores, além do próprio tom de pele. Eu, de pele clara e ela, de pele
177

preta, conquistamos outra relação da sociedade em geral para com nossa própria aparência,
em função dos patamares profissionais que fomos alcançando, e, consequentemente também
outra posição nesse “mercado do amor”.

4.8 “OJÚ AXÊ: OLHOS DA E PARA JUSTIÇA”

Como falei em outro momento, esse trabalho tem contado, em geral, com boa
receptividade. O apoio da Pró-Reitoria de Ensino de Graduação (PROGRAD) da UFBA foi
muito importante, me possibilitou acompanhar os trabalhos da Comissão. Não me foi
permitida a participação nas salas em que ocorriam as aferições, mas em todos os outros
momentos que descreveremos (recepção, acolhimento, fotografia e pesquisa voluntária) estive
presente. Quando cheguei, Ana Karina (membro da PROGRAD) me deu o crachá de fiscal.
Com ele eu conseguiria me misturar com os demais membros da equipe de apoio da
Comissão, e ter acesso aos ambientes que eu precisava circular para a pesquisa, além de me
engajar com o próprio trabalho que estava acontecendo ali. A ideia era muito boa. Na prática,
eu tentei desaparecer entre as pessoas, mas fui notada. Não deixei de pensar na experiência de
Diego Zenobi (2010) quando escreveu “O antropólogo como ‘espião’: das acusações públicas
à construção das perspectivas nativas”. Como eu pude achar que ninguém prestaria atenção
em mim? Uma pessoa estranha à Comissão, de olhos atentos e, mesmo procurando a maneira
mais discreta possível, tomando anotações do que estava acontecendo num contexto tão
delicado? É que existiam membros, naquele momento, que não estavam no curso de
preparação. Esses membros eram, principalmente, dos movimentos negros, e não do quadro
institucional da UFBA. Como o único contato que tive com a Comissão, antes daquele dia, foi
durante o treinamento, eu era completamente estranha para aqueles que não compareceram ao
curso. Somado a isso, o clima de tensão era muito nítido. Logo no início do turno da manhã,
uma funcionária me apontou um rapaz que suspeitava estar ali para causar algum tumulto ou
encontrar qualquer brecha que pudesse mobilizar um processo judicial. É que pela manhã, os
estudantes aferidos eram calouros, mas no turno da tarde, seriam aferidos estudantes que já
eram da Universidade, dos cursos do Bacharelado Interdisciplinar (BI) que migrariam para os
cursos de Progressão Linear (PL)83. O rapaz em questão só precisaria chegar às treze horas, já
que era um estudante do BI. Mas, estranhamente, estava no portão da instituição desde às sete
horas da manhã. Existiam motivos para desconfiar, ele estava visivelmente agitado. Além

83
Existem cotas raciais para estudantes do BI nos cursos de PL.
178

disso, todo o contexto nacional de fraudes e de tentativas políticas de deslegitimação das cotas
alimenta um clima de tensão. Acredito que minha presença só não virou uma acusação
pública de “espionagem”, como ocorreu com Diego Zenobi, porque outros membros me
reconheciam. Desde a minha participação como ouvinte no curso, apresentei-me como
pesquisadora. Num momento de intervalo entre os turnos da manhã e da tarde, quando estava
descansando, uma professora, membro da Comissão, passou por mim e rindo, falou: “o
pessoal estava lá falando, preocupado com você, eu falei que era a menina que estava fazendo
a pesquisa!”.

“OJÚ AXÊ”: RECEPÇÃO

Essa é a primeira etapa do processo. Os candidatos chegam ao local no horário


divulgado previamente no site da UFBA, organizado de acordo com os cursos. O local foi um
pavilhão de aulas, da própria Universidade, reservado para a Comissão. Ao chegarem, os
candidatos recebem documentos que deverão assinar e preencher, e aguardam sentados, até
que todos tenham resolvido o preenchimento dessa papelada e encaminhem-se juntos para a
etapa de acolhimento.

“OJÚ AXÊ”: ACOLHIMENTO

Nesse momento, os candidatos são recebidos em uma sala ampla, e todos os membros
da banca se apresentam. Cada um deles tem liberdade para comentar algo sobre o processo e
quem são. Antes dessas apresentações breves, falas mais longas são realizadas pela professora
Jurema, presidente da Comissão, e a professora Cássia Marciel, Pró-Reitora de Ações
Afirmativas e Assistência Estudantil da Universidade (PROAE), duas mulheres negras.
O conteúdo das falas da presidente da banca e de Cássia, pró-reitora, se refere ao modo
de classificação racial que a Comissão opera, o papel e a importância desse instrumento, e, de
maneia geral, uma defesa das políticas afirmativas. Quanto aos demais, suas falas geralmente
são de apresentações breves do nome e do seu lugar na Universidade ou em alguma
organização do movimento negro.
Jurema qualifica todo esse momento como “muito simpático. [...] para afastar a ideia
de tribunal racial”. No curso de formação, ela disse que essa é a ocasião em que os
candidatos se olham, se percebem. Por exemplo, em uma banca passada, ela conta, uma
menina branca, ao se perceber, sentou-se na última cadeira da sala do acolhimento. Observei
179

que isso acontecia mais fortemente entre os estudantes egressos do BI, ou seja, entre aqueles
que já eram da instituição. O clima entre os dois turnos era muito diferente. Pela manhã, entre
os calouros, poucos se conheciam e estavam calados, concentrados e sérios. Pela tarde, a
sensação era de que todos já se conheciam, conversavam muito entre si e riam, falavam alto,
tinha um clima de menor formalidade por parte dos estudantes. E aí é que pude presenciar
cenas de alunos negros, apontando outros estudantes que eles consideravam brancos, e
fazendo gestos de zombaria. Um deles comentou em alto e bom tom sobre outro candidato: “é
muita cara de pau!”.

“OJÚ AXÊ”: BANCA E FILMAGEM

Essa etapa é preenchida apenas com o relato dos meus interlocutores e do que foi
narrado no próprio curso de formação, observando que, não pude entrar nos ambientes das
salas em que essas bancas estavam acontecendo.
Depois do acolhimento, grupos de cerca de dez pessoas são encaminhados para
diferentes salas, onde estão acontecendo bancas simultâneas. A presidente, em geral, não fica
apenas em uma sala todo o tempo, mas circulando entre elas. Marcilene me fala que o
presidente tem um papel muito importante de garantir um padrão coerente de resultados. Por
exemplo, quando ela observa que “um caso difícil” entrou em uma determinada sala, ela se
direciona até lá para chamar atenção dos membros: “tinha um caso difícil aqui, vocês
perceberam?”. O resultado pode ser de aprovação ou reprovação, mas seu objetivo seria o de
garantir que, se aquele perfil foi aprovado ou reprovado, que isso se repita para as demais
pessoas, uma vez que deve haver semelhança de resultados. Luís conta um pouco dessa
experiência:

A gente fazia uma avaliação e aí Marcilene via alguém [que era um caso
difícil] e falava assim: “e aí?”. Não que ela tivesse tentando nos induzir.
Mas eram dois momentos: ou era o momento de testar o critério que a
banca estava tendo, coerência, porque ela já tem uma certa experiência. Ou
vinha no intuito de reforçar: “esse aluno ele não é pardo, ele não é preto”,
né? Mas em nenhum momento ela direcionou. Aí nesses casos ela: “gente,
vocês tem certeza disso? Leva para [o grupo mais amplo]… É um caso
difícil”. [...] Em algumas situações nem bem ela chegava, a gente já dizia
“Já temos aqui, temos dois casos difíceis”. Ela nem perguntava: “Leva
pra… leva pro grupão, leva pro grupão, lá a gente decide pra poder ganhar
tempo”.

Cada candidato entrega sua ficha já preenchida e o documento com foto para um
membro da banca e cola, na frente do apoio de braço da sua cadeira, uma folha que consta seu
180

nome. O presidente da banca lê o nome de cada candidato e lhe pergunta: “como você se
declarou para fins desta seleção?”. Enquanto isso, as fichas e os documentos dos candidatos
passam nas mãos de cada um dos membros, que preencherão como “aprovado” ou
“reprovado”. Quando essa definição não pode ser tomada rapidamente, ou seja, há dissenso
porque se trata de um “caso difícil”, a decisão é postergada para o final do dia, quando
poderão discutir, sem a presença de nenhum candidato, e com todos os outros membros das
demais bancas, a designação daqueles “casos difíceis”.
Tudo isso pode parecer mera formalidade, mas não é. Cada ato é desempenhado com
muita atenção, ao ponto de Luís dizer que “na verdade não é só uma análise do fenótipo”.
Veja, é sim a análise do fenótipo que é feita pela Comissão, mas o que nosso interlocutor está
dizendo é que esse fenótipo sempre se mostra em uma dada circunstância e num determinado
arranjo estético. Nesse sentido, outros fatores são levados em consideração. Por exemplo, o
contraste entre aquela aparência e a fotografia da carteira de identidade, é um dado relevante.
Outra coisa é a própria organização da sala:

Luís: A gente fica sempre pronto ali, e a posição que nós ficamos na sala
dispõe os alunos, os dez alunos numa posição semidiagonal, e ficamos assim
em várias posições, porque a depender da luminosidade, da escuridão...
Tinham lugares em que a menina ou rapaz ficava mais claro ou mais escuro,
mas não era o sol, entende? Aí a gente conseguia… Nós criamos alguns
tipos de código pra poder identificar, então alguma coisa no documento que
a gente passava já chamava atenção. Numa fotografia… Uma fotografia
muito antiga, uma fotografia recente, nós fomos criando, fomos aprendendo
ali formas de perceber se existia algum… Alguma auto determinação que
não batia com o que eles tinham colocado.

No final de cada banca, o presidente pergunta como os candidatos se sentiram,


convidando aqueles que querem falar, a comentar sobre o processo. Falar não é obrigatório.
Todo esse momento da banca é filmado. Luís conta que os próprios candidatos se percebem e
se avaliem nesse decorrer. “Alguns falam pra poder justificar porque que eles estão ali,
porque não se veem como homens nem como mulheres nem pardos nem pretos totalmente,
entende?”. Essa é uma experiência diversa. Nosso interlocutor continua narrando outras
reações que aparecem nesse momento. Às vezes todos aplaudem, às vezes:

[...] você vê que agradece, que isso é importantíssimo é… Que imaginava


que parecia um tribunal de inquisição, que iria perguntar tanta coisa da
vida dos pais, mas que não. É uma avaliação super-rápida. E que não os
deixa constrangidos, acho que a grande preocupação é essa: um
constrangimento. Tanto para aquele que não se enquadra, quanto para
aquele que se enquadra e que se incomoda com aquilo ali, ele não precisava
passar por aquilo. Realmente eu acho que essas cotas, elas tendem a acabar
181

de fato, mas no momento em que o sistema de ensino, de inclusão, ele


funcione, né? Então assim, enquanto isso não der conta, essas cotas são
importantes para promover essa reparação, promover essa possibilidade de
ingresso do aluno pardo ou preto e pobre a uma universidade de qualidade,
entendeu?

“OJÚ AXÊ”: FOTO DE FRENTE E DE PERFIL

Depois da banca, os candidatos se encaminham para outra sala de espera, onde saem,
em duplas, para a sala de fotografia. Essas fotos são úteis tanto para o recurso, quanto para a
discussão no final do turno, dos “casos difíceis”: no momento em que o candidato escreve um
recurso contestando o indeferimento, é essa foto que será usada pela reavaliação da Comissão.
Ela também será utilizada para avaliação dos “casos difíceis”: as fotos dessas pessoas são
expostas em uma tela, ao final dos trabalhos de aferição, numa sala restrita aos membros de
todas as bancas que acontecem simultaneamente, para que os resultados daqueles candidatos
sejam dados por unanimidade.
Luís explica que a fotografia, registrada nesse processo, cria um documento do
candidato, substituindo, para aquele pleito, a foto do próprio documento oficial. Isso porque,
como nos explica, “[comparando com a fotografia do documento oficial] quase nunca são as
mesmas pessoas. Porque a foto é muito antiga, é criança e o cabelo estava de chapinha e
agora está cacheado, vice-versa, tomou sol…”.
Tendo ocorrido nos turnos da manhã e da tarde, observei que não se usou flash nas
câmeras. Todas as luzes da sala são acesas, os raios solares são parcialmente filtrados por um
papel fosco de cor marrom, que é colocado na metade horizontal das janelas. Existe uma
marcação no chão onde cada candidato deve se colocar. Fica posicionado do lado do rosto do
candidato um suporte transparente na parede, onde eles colocarão a ficha que os identifica
com nome e número de inscrição. Do fotógrafo ao candidato existe uma distância de cerca de
três metros, e as fotografias registram o rosto do candidato de frente e de perfil.

“OJÚ AXÊ”: PESQUISA VOLUNTÁRIA

Depois das fotografias, o candidato é liberado para sair da instituição. Próximo à saída
se posiciona um grupo de estudantes da própria Universidade, assistidos pela PROAE, com
fardamento identificando a Pró-Reitoria. Eles abordam esses candidatos para participar da
pesquisa voluntária. Em geral existe uma boa adesão. As perguntas começam por uma coleta
de dados de identificação, como nome, curso de interesse, idade e autodeclaração racial, e
182

segue para questões como: é a primeira vez que participa de uma seleção como cotista? Como
se sentiu? A explicação (no momento do acolhimento) foi satisfatória? A explicação fez
refletir sobre pertencimentos raciais e racismo? Tem alguma sugestão? Em geral, percebi que
as pessoas respondem estar satisfeitas com a explicação do acolhimento e com todo o
processo, defendendo a necessidade das bancas. Uma estudante da UFBA, egressa do BI,
opinou que as cotas deveriam ser para “pessoas pretas mesmo, porque assim acabariam as
dúvidas” – dos “casos difíceis”.

“OJÚ AXÊ”: RECURSO

A foto do candidato que teria entrado com recurso, tirada pela equipe de audiovisual da
Comissão, é enviada para os membros da banca que lhe avaliou, assim como o texto recursal.
Também nessa etapa, a decisão dos membros é unânime. Amarildo conta que, em geral, o
conteúdo desses recursos aponta para uma ancestralidade negra.

Acompanhar esse trabalho foi importante para essa pesquisa porque senti a exata
transposição, para as políticas públicas, de discussões que eu acessava através da retórica dos
movimentos negros ou das pessoas implicadas nessas questões de identidade racial. Foi
interessante perceber o esforço dos profissionais engajados nesse trabalho, em condensar e
resolver todos esses debates, de alcance complexo, no momento de decidir se aquele
indivíduo acessará ou não a vaga de cotista. Fico pessoalmente admirada com o nível de
organização e de comprometimento coletivo, mesmo com um trabalho que é relativamente
recente. Ao mesmo tempo em que percebo que muita coisa precisa ser debatida, vejo também
que muito já foi feito até aqui.
183

5 O COLORISMO PONTO A PONTO

Conforme apresentamos na Introdução desse trabalho, a pesquisa se forma pela


etnografia com a Comissão de heteroclassificação da UFBA, as entrevistas com seus
membros, com os candidatos que se submeteram à Comissão, e com os estudantes e ex-
estudantes da Universidade. Ela é constituída também pela etnografia virtual e a pesquisa
bibliográfica, essa última realizada não só com o intuito de colaborar teoricamente com as
interpretações do texto, mas servir também como um objeto de pesquisa, onde observamos os
diferentes usos de termos como “mestiços” e “pardos”, desde os clássicos até produções mais
atuais. Falamos também que, a fim de organizar o nosso pensamento, cada capítulo teve
ênfases temáticas diferentes, correspondentes aos seus diferentes métodos de pesquisa. Nesse
capítulo e no capítulo seguinte, conteúdos das entrevistas e do processo etnográfico com a
Comissão, voltam à tona, em função de uma ênfase conceitual acerca do colorismo, questão
que atravessou esse trabalho desde o seu princípio, e cuja etnografia virtual e a pesquisa
bibliográfica serão os seus alicerces principais. Aqui, a nossa preocupação será desmembrar
os conteúdos internos ao colorismo e analisa-lo ponto a ponto, colocando-o em perspectiva
com o acúmulo produzido pelo campo dos estudos étnico-raciais brasileiros.

5.1 NEGROS DE PELE CLARA ESTÃO FAZENDO ETNOGÊNESE?

Como já trouxemos em outra parte desse trabalho, os censos oficiais têm registrado uma
crescente nas autodeclarações pretas e pardas brasileiras84. Nossos interlocutores, por
exemplo, passaram, a partir de um determinado momento da vida, a se autodeclararem negros
e negras. Ao tratar sobre os processos de surgimento, fortalecimento ou ampliação de
autodeclarações étnico-raciais, a partir de grupos tradicionais, Bartolomé (2006) nos apresenta
o conceito de etnogênese enquanto um “processo de construção de uma identificação
compartilhada, com base em uma tradição cultural preexistente ou construída que possa
sustentar a ação coletiva” (p. 43). Lehmann (2017) irá dizer que esse conceito não serve para
qualificar as experiências negras brasileiras, visto que, para ele, “não se trata nem de
redescoberta de identidade ancestral, nem de assumir identidade, senão de exigir dos outros o
reconhecimento que a cor da pele trouxe discriminação” (p. 149).

84 “Número de brasileiros que se declaram negros sobe 6% entre 2016 e 2017” Correio Braziliense, 27/04/2018.
Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2018/04/27/interna-
brasil,676652/qual-e-a-porcentagem-de-negros-na-populacao-do-brasil.shtml>.
184

As políticas afirmativas, como já dissemos, promoveram alterações no tabuleiro racial


do Brasil, não só dinamizando a relação classe/raça, mas também as próprias autodeclarações
raciais, ou seja, as proporções raciais do país. A ligação entre as políticas afirmativas e a
reivindicação da identidade negra, por parte desses sujeitos “pardos”, sugere
“afroconveniência” por, supostamente, estar engajada apenas no acesso às cotas, por exemplo.
O “afroconveniente” seria uma denúncia ao caráter instrumental do “tornar-se negro”. A esse
respeito, Bartomolé (2006) nos explica que:

Como em outros casos, esses processos de emergência identitária não são


alheios as legislações que garantem direitos especiais às comunidades
nativas, mas o fato de que estas não tenham se manifestado antes como tal,
não deriva de sua não-existência, mas de sua estigmatização. Entretanto, a
construção ou a reconstrução das identidades orientadas para certos fins e,
por conseguinte, suscetível de ser qualificada como instrumental não se
esgota nesta qualificação. Afinal, pressupõe processos sociais de extrema
complexidade que nos obriga a tentar entender as ideologias da ocultação e
as do afloramento (p. 50).

O movimento que as políticas afirmativas fazem, em positivar a identidade negra,


permite organizar um espaço no mercado de trabalho e nas instituições educacionais, para que
novas pessoas sintam segurança em afirmar-se racialmente. Isso aconteceu com Manoel, por
exemplo, que só elaborou esse pertencimento negro a partir do ingresso na Universidade.
Quando Bartolomé (2006) fala sobre as populações nativas, e mais especificamente, a
população indígena, nos informa como esse processo de etnogênese melhora a relação do
grupo com o Estado, no sentido de torná-lo numericamente maior e mais potente, fortalecendo
as pautas compartilhadas. Se pensarmos a população “parda” numérica e politicamente fora
da população negra, Salvador não será a cidade mais negra fora da África, e o Brasil também
não será tão negro assim.

Recuperar uma identificação estigmatizada pela discriminação social não é


um processo pessoal ou social simples, isento de conflitos existenciais. Não
se trata de um romantismo nostálgico, do qual só se esperam resultados
gratificantes, mas da adoção deliberada de uma condição tradicionalmente
subalterna, à qual se pretende imprimir uma nova dignidade. Isto pressupõe
uma atitude contestatória e de desafio diante da sociedade majoritária em
que gestou o preconceito (Ibid., p. 58).

Eriksen (1993) citado por Bartolomé (2006, p. 58), afirma, a respeito da experiência
com os Inuti, que muitas vezes é difícil o grupo perceber sua cultura de forma objetiva, ou
seja, perceber, por exemplo, que determinadas perdas de valores ou práticas constituem um
processo objetivo de dinâmica cultural, seja de hibridização, aculturação ou transformação de
185

qualquer ordem. Isso nos dá a possibilidade de pensar que a “descoberta” da identidade negra
por parte desses sujeitos, não necessariamente diz respeito a um processo artificial de
apropriação identitária, e sim que, tomando conhecimento das contradições raciais do país e
racionalizando suas próprias experiências pessoais, essas pessoas puderam trazer para a
consciência momentos de suas vidas que não passavam antes pelo crivo da reflexão.
Falando a respeito das comunidades aldeãs dos pastores e agricultores mesoamericanos
e andinos, Bartolomé (2006) conta que “a mútua identificação de uma série de coletividades,
ainda que linguística e culturalmente afins, resulta sempre da presença de uma organização
política unificadora” (Ibid., p. 43). Assim, a política de identidade desenvolvida pelo
movimento negro, sobretudo a partir do marco do Estatuto da Igualdade Racial (2010), é a
principal responsável por mais pessoas mestiças-negras estarem reivindicando lugar como
negros. Essa posição “negra de pele clara” informa que, em paralelo ao desafio que se
apresenta ao Estado, quanto ao reconhecimento das especificidades culturais e históricas do
grupo e suas demandas de reparação, existe uma questão difícil para a própria comunidade
negra: objetivar a marca85 dessa negritude, tendo a mestiçagem como um fato. Trata-se, nesse
sentido, de uma demanda por reconhecimento dentro de outra: pardos como negros e negros
como grupo que compõe o povo brasileiro, mas que não se dilui nele.

5.2 PRIVILÉGIO PARDO E RACISMO

O privilégio pardo parece ser um consenso entre os nossos interlocutores, mostramos isso
anteriormente. Quando nos dedicamos a comparar esses discursos com a pesquisa virtual, isso
se repete. O privilégio é uma questão importante porque, conforme apontamos, “privilégio” se
opõe necessariamente a “racialização”:

[...] há uma complexidade envolvendo o processo de “tornar-se negro” na


sociedade brasileira. A violência é a pedra de toque, o núcleo central do
processo identificatório dos negros. Ser negro é ser violentado de forma
constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a
de encarnar o corpo e os ideais de ego do sujeito branco e de recusar, negar e
anular a presença do corpo negro (GOMES, 2006, p. 168).

Antes de mergulharmos nessas questões, é importante antecipar que a noção de raça de Neusa
Santos (1983) é útil para discutirmos esse tópico. A ideia presente na obra “Tornar-se negro” é
da raça enquanto “noção ideológica engendrada como critério social para distribuição de

85
Referimo-nos à velha distinção de Oracy Nogueira (1985), entre racismo de marca e de origem. Marca é, aqui,
equivalente aos traços fenotípicos.
186

posição na estrutura de classes” (p. 20). Essa concepção nos remete ao marxismo e nos
encaminha para o entendimento que assumimos de privilégio: uma posição estrutural de
prestígio e valor de um grupo social que se restringe à branquitude.

Figura 34 – Taxa de maiores de 16 anos desempregados por cor ou raça em Salvador (2010)

Fonte: <http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?ibge/censo/cnv/desemprbr.def> Acesso em 05 de


março de 2021.

Figura 35 – Taxa da população com renda menor que metade de um salário mínimo por cor ou raça
em Salvador (2010)

Fonte: <http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?ibge/censo/cnv/pobrezabr.def>. Acesso em 05 de


março de 2021.

Figura 36 – Taxa de analfabetismo por cor ou raça em Salvador (2010)

Fonte: <http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?ibge/censo/cnv/alfbr.def>. Acesso em 05 de março


de 2021.
187

Observando os indicadores sociais de pretos e pardos, notamos que as suas semelhanças


demarcam uma condição equiparada naquilo que Neusa Santos (1983) chamou de “posição na
estrutura de classes”. Ainda que alguns negros (pretos e pardos) tenham alcançado lugar de
prestígio, esses ganhos não parecem refletir o grupo, isso porque:

[Os negros em posição de destaque] Enquanto exceção, “confirmava a


regra”, já que seu êxito não trazia como consequência uma reavaliação das
condições de possibilidade do negro enquanto grupo, nem uma mudança de
sua posição na ordem social vigente. Como exceção, perdia a cor: “deixa de
ser ‘preto’ ou ‘mulato’ para muitos efeitos sociais, sendo encarado como
‘uma figura importante’, ou ‘um grande homem’”... Vê-se, assim, compelido
a desfigurar-se material e moralmente. Tem de submeter-se, previamente, ao
“figurino do branco”. E, se isso não bastasse, precisa conformar-se aos
papéis sociais ambíguos do “cavalheiro por exceção”, em todas as
circunstâncias sujeito a dar provas ultraconvincentes de sua capacidade de
ser, de pensar e de agir como equivalente moral do “branco”. Em suma,
condena-se a negar-se duplamente, como indivíduo e como parte de um
estoque racial, para poder afirmar-se socialmente (Ibid., p. 23).

É ilustrativa dessa prática os matrimônios inter-raciais constituídos por muitos homens negros
brasileiros após alcançarem posição de prestígio. Sueli Carneiro (1995) discute isso no texto
“Gênero, raça e ascensão social”, ele é uma resposta ao historiador negro Joel Rufino que
teria comparado mulheres negras ao Fusca e as brancas ao Monza. Carneiro (1995) vai dizer
que o abandono das suas companheiras negras representa um rompimento das relações desses
indivíduos negros com a sua comunidade de origem. O próprio formato das relações raciais
no país teria negado a sustentação de um sentimento/senso de aliança entre indivíduo -
comunidade negra. Neuza Santos (1983) também comenta essa desaliança nos seguintes
termos:

A inexistência de barreiras de cor e de segregação racial – baluartes da


democracia racial – associada à ideologia do embranquecimento, resultava
num crescente desestímulo à solidariedade do negro que percebia seu grupo
de origem como referência negativa, lugar de onde teria que escapar para
realizar, individualmente, as expectativas de mobilidade vertical ascendente
(p. 22).

Giralda Seyferth (1995) nos faz pensar sobre tais questões a partir de dois ditados
populares que se remetem ao estigma na origem familiar dos indivíduos, e seus respectivos
esforços/imposições em escondê-la: "fulano tem um pé na cozinha"/ "na senzala" ou, ainda,
"[fulano] deve ser grato à Princesa Isabel" (p. 195). Esses ditados são exatamente sentenças
sociais que orientam o rompimento da solidariedade interna à comunidade negra, pelos
sujeitos que alcançam posições de destaque.
188

A literatura é cheia de exemplos onde discriminações raciais foram proferidas contra os


membros mais claros do grupo negro brasileiro, não só em função dessa origem, mas do seu
próprio fenótipo. Nessa mesma obra, Seyferth (1995) fala sobre “uma jovem que a maioria dos
brasileiros não hesitaria em classificar como ‘mulata’, filha de importante político negro,
empresário bem sucedido, rico” (p. 194) que teria sofrido insultos racistas dentro do
condomínio onde morava. Para a autora, esse episódio

[...] contraria os dois argumentos mais recorrentes do mito da democracia


racial, pois nem a miscigenação consentida e muito menos a ascensão social
(e a riqueza) tem o poder de atenuar ou anular preconceitos arraigados. Na
lógica perversa do "paternalismo racial", o negro rico está fora de lugar.
Além disso, também são frequentes outras formas de alusão aos estigmas
raciais, que apontam para a discriminação daqueles que pretendem "passar
por brancos" e são "traídos" pelo "cabelo ruim", pelo "nariz de crioulo", pela
"beiçola" ou pela "canela fina"! (p. 194)

Mesmo os “elogios” endereçados a esse grupo são frequentemente acompanhados de estigmas


(GOFFMAN, 1988). Por exemplo, “inteligência e ambição são, usualmente, qualidades
atribuídas aos mulatos” (SEYFERTH, 1988, p. 198), mas também “falta de brio,
agressividade, arrogância, boçalidade, insolência, pretensão de ser branco, inveja,
atrevimento, irresponsabilidade, preguiça, falsidade e assim por diante” (Ibid., p. 198-199). É
como se “inteligência” ou “ambição” fossem qualidades que, nesses sujeitos, estariam
deformadas em função da sua racialidade. É dessa forma que autora conclui que “a existência
dos mestiços não anula a polaridade da oposição com base na raça, implícita na distância
hierárquica imaginada entre brancos e negros” (Ibid., p. 201). Em sentido oposto, a pesquisa
de Lindiara Alves (2019) irá tratar sobre o lugar de identidade de jovens que se autodeclaram
pardas, assumindo o pressuposto de que “elas não se autodeclaram negras por uma
consciência de não sofrerem racismo, vivência diária de pessoas pretas” (p. 37). Trazemos
algumas falas dessas interlocutoras de pesquisa aqui: Ágatha é uma jovem que aparece no
texto relatando situações de preconceito oriundas da sua própria mãe, quando assumiu seus
cabelos crespos, além de situações de hipersexualização na sua cidade natal e em Salvador. A
mãe de Ágatha é alguém que se reconhece como branca e que, ao ver a filha passar pelo
processo de transição capilar, teria expulsando-a de casa. Essa história, nitidamente marcada
por violências raciais, é parte da reflexão da autora que, ao mesmo tempo, nega a pertinência
de um pertencimento negro: “mais uma vez é constatado como as pessoas miscigenadas, os
mestiços ou pardos, alcançaram nesse processo de embranquecimento da população esse
privilégio simbólico por estarem próximos da branquitude” (ALVES, 2019, p. 38). As
189

contradições dessa análise não passam despercebidas pela própria autora, ao dizer que “é
possível constatar no seio familiar de Ágatha o racismo se apresentando quando os traços de
negritude desta não são mais obnubilados, maquiados com a finalidade de responder a uma
estética branca” (Ibid., p. 44). No relato de Ágatha a seguir, aparecem questões que tratamos
no início desse trabalho, referentes aos danos na autoestima, decorrentes de humilhações da
sua feição:

[...] ter cabelo alisado pra mim foi importante, porque eu era assim vista
como a feia, a horrorosa, e quando eu alisei o cabelo as pessoas começaram
a dizer que eu era bonita. Então assim, pra mim alisar o cabelo foi bom
porque eu me sentia um lixo em relação a beleza, eu sempre me sentia uma
menina feia, horrorosa, ridícula. [...] Feia, feia, feia, feia, feia. Até uma vez
minha mãe me chamou de feia. Então eu tenho muito isso né. Então pra mim
foi importante, porque quando eu alisei o cabelo eu me senti bonita. Fui
aprendendo a me sentir bonita. Quando eu não estava com o cabelo escovado
o povo começava a dizer ‘Pô Ágatha você está desarrumada, desajeitada, não
tá bonita’. Aí quando eu alisava, escovava, pranchava, as meninas
começavam a me ver como bonita. Então pra mim foi importante porque na
época eu ia me sentir um lixo se eu não escovasse meu cabelo (Narrativa,
ÁGATHA, 2018 apud Alves, 2019, p. 48).

A pesquisa de Alves (2019) traz, num trecho desse diálogo com Ágatha, o sentimento de não-
pertença as categorias branco-negro reivindicadas pelos movimentos negros. A fala é de quem
não possuiria “vivências” de racismo tal como os outros negros, cuja comparação a
entrevistada faz com os pronunciamentos públicos que ela testemunhou em contextos
políticos da militância negra – ou seja, relatos de sofrimento e de racismo que militantes
negros abriram nesses espaços políticos. Essa dessemelhança se acentuaria na diferença entre
a vida desses negros da capital com a sua própria, que cresceu numa cidade pequena do
interior do estado: lá “todo mundo é igual” (Ibid., p. 56). Nossa literatura dá conta de explicar
que o racismo, o machismo e outras formas de violência e opressão, são mais comuns na
medida em que as relações de impessoalidade também são maiores. Nesse sentido, em cidades
grandes, onde pessoas convivem mesmo sem se conhecer, atos motivados pelos pressupostos
de raça ou gênero, por exemplo, poderão aparecer mais facilmente como formas de
estabelecer aquelas relações. A fala de Ágatha, no entanto, é o suficiente para que a autora
afirme que “o termo [negro] não contempla à construção identitária étnico-racial das jovens”
(Ibid., p. 56).
Diante dessas questões, nosso intuito não é confrontar o trabalho particular dessa
pesquisadora, ao contrário: toma-lo como exemplo diagnóstico dos discursos produzidos
sobre o “pardo” ou o “colorismo”. Por isso, tal pesquisa serve para questionarmos algo que se
190

estende para além do texto de Lindiara Alves: por quê, mediante descrições claras de
discriminação racial, não se enxerga Ágatha’s como vítimas do racismo? Essa jovem não irá
se identificar como negra, por perceber incompatibilidade entre sua experiência e daquelas
outras mulheres negras com as quais teve contato, com sua mudança para Salvador. Alves
(2019) comenta isso da seguinte forma: “o fato do termo negro ainda conter o sentido
associado à cor de pele preta, faz com a pessoa parda ou mestiça, não se sinta pertencente por
ter uma pele quase branca e gozar dos privilégios desta estética” (p. 58). Ou seja, a
formulação ainda cristalizada no imaginário social, de que pardos, mulatos ou morenos,
definem um lugar de identidade – como mostramos anteriormente com a pesquisa de Jacques
D’Adesky (2001), reforçam a ideia de que negros são pessoas de pele preta, e cuja experiência
social será necessariamente de grandes privações e violência. Essa imagem, além de apagar a
diversidade no interior das comunidades negras, também será um estereótipo racista,
observando que existem muitas formas de existências negras, inclusive entre classes altas e
posições de prestígio social.
Algo semelhante podemos observar na obra de Lia Schucman (2018) que trata sobre
família inter-raciais. Trazemos aqui dois exemplos trabalhados nesse texto. Um deles é da
família de Amanda, formada por um pai branco e uma mãe negra. Amanda teria dúvidas
quanto a sua autodeclaração, embora muitas vezes se refira a si mesma como morena.
Amanda relata que, em Portugal, sofreu racismo através da hiperssexualização do seu corpo,
mas no Brasil não teria sido vítima desse crime. Schucman (2018) não problematiza esse
relato e toma o discurso de que “nunca sofreu racismo” como verdade. Por outro lado, a
autora nos traz a história de Guilherme, um homem negro que também informou nunca ter
sofrido racismo, e que terá, na construção do argumento de Shucman, uma condução
diferente. Em um dado momento do encontro da pesquisadora com essa família (ele e sua
esposa branca), Guilherme se ausentou momentaneamente, e ela teve a oportunidade de
conversar a sós com sua esposa. Ela lhe disse que Guilherme sofria racismo “o tempo todo”
(Ibid., p. 290). Embora com Amanda a autora tome como verdade o seu “privilégio”, com
Guilherme dirá que, não assumir o racismo em sua experiência de vida é parte de uma
“estratégia psicológica para camuflar esse sofrimento” (Ibid., p. 116).
O que nos importa no trabalho de Alves (2019) e de Schucman (2018) é que um sistema de
verdade a respeito do “privilégio pardo” ou da ausência do racismo, se reproduz sem que isso
se cruze com nenhum crivo de criticidade. Esse é o mesmo movimento que percebemos com
nossos interlocutores, quando pude observar, inclusive, eles repensarem esse discurso no
decorrer dos nossos diálogos.
191

Enquanto isso, os indicadores sociais seguem mostrando “pardos” como maioria, junto aos
“pretos”, entre desempregados, analfabetos, pobres e assassinados. As experiências de
racismo relatadas por essas pessoas são automaticamente descartadas, em alguns dos
trabalhos citados nessa pesquisa, como sofrimentos menos legítimos ou como um racismo
menor. O trecho que segue, é de um texto disponibilizado na Internet, cujo conteúdo está
dentro desse contexto de acusações de negritudes postiças/ privilegiadas:

Os não retintos estão na ponta por vários motivos, desde o empoderamento


financeiro até pequenas e bobinhas vantagens na sociedade. Muitos negros
de pele clara vêm de famílias que têm um pouco (um pouco) mais de
condições financeiras ou quando não, têm o privilégio de ser lido como a cor
mais desejada que vai encontrar -mesmo que com dificuldades -, um
centímetro a menos de obstáculos em alguns espaços o que lhe garante maior
possibilidade de mobilidade social. O erro é quando eles não reconhecem
esses privilégios (AD JUNIOR, 2018).

Falando sobre o colorismo, Ad Junior (2018) continua:

No colorismo, os negros retintos sentem uma angústia tremenda. Eles sabem


que mesmo depois de passar pelo processo do empoderamento, o colorismo
sempre estará ali, para nos lembrar que enfrentaremos outro desafio: O
problema de ser apagado e desautorizado o tempo todo. E se nenhum retinto
lhe contou isso, fique sabendo, é assim que nos sentimos o tempo todo (AD
JUNIOR, 2018).

Mas quem apaga e desumaniza indivíduos negros: o colorismo ou o próprio racismo?


Schwartzman (2009) nos dá pistas importantes para a compreensão dessas questões. Ela nos
mostra que, através dos métodos quantitativos, os pesquisadores puderam concluir que pretos
e pardos são igualmente discriminados no trabalho e no sistema de educação. Entretanto,
pretos seriam mais discriminados do que pardos no mercado de casamentos e segregação
residencial, o que implica dizer que “pardos sofrem formas impessoais semelhantes de
discriminação [...] que os pretos, mas sofrem menos discriminações interpessoais (como o
casamento)” (p. 244, tradução nossa). Nesse sentido, a autora completa que:

[...] como os processos interpessoais de discriminação é mais fácil de


perceber, isso significa que pode ser mais difícil perceber discriminação
contra pardos. Entrevistas com estudantes e pesquisas de opinião sugerem
que a maioria dos brasileiros não acredita que os pardos sejam discriminados
ou merecem ação afirmativa baseada em raça (p. 245, tradução nossa).
192

Confrontando essas verdades eternas sobre o privilégio pardo, o Relatório Final da CPI
sobre o assassinato de jovens (2016) irá mostrar, no que se refere ao estado da Bahia86 o
seguinte:

A Secretaria de Segurança Pública do estado informou que, no período de


janeiro de 2014 a setembro de 2015, foram registrados 4.925 homicídios
dolosos de vítimas com até 29 anos de idade. No que diz respeito ao recorte
racial, identificou-se 864 negros, 3.479 pardos, 6 amarelos, 159 brancos, 3
vermelhos, 18 de raça ignorada e 396 não tiveram a raça informada.

No tocante à violência letal, Cruz e Martins (2018) falam ainda sobre os muitos veículos de
informação que em 2013 “noticiaram uma determinação, dirigida ao Comando Geral de
Patrulhamento da região de Campinas/SP, que instruía a revista em pessoas ‘da cor parda e
negra’ em um bairro nobre da cidade” (p. 12). Trazemos também dados do Atlas da Violência
de 2019, segundo o qual:

Nota-se que enquanto os homicídios de homens e mulheres brancas estão


sub-representados em relação às suas participações nas populações, a
proporção de homicídio de pardos (64,6%) entre os homens, supera a
participação de 46,2% da população de homens pardos, em relação à
população masculina.

Essa citação se refere ao gráfico abaixo, sobre o “padrão de vitimização dos homicídios
em relação à raça/cor e o sexo da vítima”:

86
Nesse Relatório, a lógica dos números permanece para os outros estados: dos homicídios no Piauí, no período
de 2014 até 27 de outubro de 2015, dos 447 homicídios de jovens na capital, 324 eram pardos, 64 brancos, 25
negros, 1 moreno, 22 amarelos, 5 indígenas e 6 não foram identificados; no Rio de Janeiro, nos anos de 2014 a
até outubro de 2015, foram registradas 4.807 mortes de jovens ente 10 e 29 anos de idade, 1.249 “negros”, 2.406
pardos, 2 amarelos, 944 brancos e 206 ignorados; na Paraíba, nos anos de 2014 e até setembro de 2015, o
número de casos de Crime Violento Letal Intencional (CVLI) chegou a 1.330, apurou-se 1.114 vítimas pardas,
50 pretas e 166 brancas. Em termos de mortes ocasionadas por ação policial, no Rio de Janeiro entre 2014 a
outubro de 2015, foram registradas 689 mortes de jovens com idade igual ou inferior a 29 anos, no que toca a cor
da pele, 187 eram negros, 349 eram pardos, 1 era amarelo, 92 eram brancos e 60 a cor da pele não foi informada;
no Acre, a Secretaria de Segurança Pública informou que, de 2007 a 2015, foram instaurados 14 inquéritos
policiais por “autos de resistência”, entre 18 e 30 anos, dos quais 11 eram pardos, 1 era negro e 2 não tiveram a
raça informada. No estado do Piauí, foi informado que a polícia foi responsável pela morte de 29 pessoas no
período de 2014 a 30 de agosto de 2015, sendo 14 pardas, 8 brancas, 1 negra, 1 indígena e 5 sem informação
sobre a raça, dos quais 26 eram homens e 3 eram mulheres. As vítimas com idade de até 29 anos totalizaram 16
casos (IPEA, 2019).
193

Figura 37 – Gráfico do padrão de vitimização raça/cor e sexo das vítimas dos homicídios

Fonte: IPEA, 2019.

De alguma maneira, a ideia sobre o privilégio dos mulatos pode ser rastreada em “Casa
Grande e Senzala”, quando Freyre (2003) fala que

[...] no Brasil, muita cria e mulatinho, filho ilegítimo do senhor, aprendeu a


ler e a escrever mais depressa que os meninos brancos, distanciando-se deles
e habilitando-se aos estudos superiores. As tradições rurais estão cheias de
casos desses: de crias que subiram, social e economicamente, pela instrução
bem aproveitada, enquanto os meninos brancos só deram, depois de grandes,
para lidar com cavalos e galos de briga (p. 537).

Ao mesmo tempo em que o autor fala sobre “mulatinhos criados em casa – muitos deles
futuros doutores, bacharéis e até padres” (Ibid., p. 397) também irá admitir preconceito contra
esses “mestiços” em função da “origem escrava” ou da cor:

[...] sob a pressão desses preconceitos, desenvolveu-se em muito mestiço,


evidente complexo de inferioridade que mesmo no Brasil, país tão favorável
ao mulato, se observa em manifestações diversas. Uma delas, o enfático
arrivismo dos mulatos, quando em situação superior de cultura, de poder ou
de riqueza (Ibid., p. 537).

É importante dizer que, na mesma página em que podemos ler sobre o privilégio desses
mulatos que se sentavam à mesa da casa grande, “saíam de carro com os senhores [e até]
acompanhando-os aos passeios como se fossem filhos” (p. 435), lemos também sobre os
“privilégios” de suas mães pretas, cujos filhos brancos do senhor pedir-lhe-iam a benção,
194

andavam de carro com os brancos e eram “tratadas como senhoras e até alforriadas” (p. 435-
436).
Conceição, Leite, Cruz e Carmo (2019) também irão falar que negros de pele clara “são
tolerados e possuem privilégios nesta sociedade” (p.5) de forma a sofrer um tipo de racismo
“mais brando” (Ibid., op. cit.), pois “a discriminação racial fica mais ‘delicada’ com o
‘clareamento’ da pele” (Ibid., op. cit., grifo nosso). Mesmo assim, as autoras vão admitir a
objetificação dos corpos desses indivíduos mais claros, sobre os quais “a tonalidade de pele
mais clara e os traços finos serão utilizados como objeto sexual, na considerada famosa
‘mulata exportação’” (Ibid., op. cit.). Aqui, a ideia de “privilégio” dita anteriormente, mais
uma vez se torna contraditória para as próprias autoras:

O racismo na vida das mulheres negras tende a determinar quais espaços elas
podem compor, a tonalidade da pele segrega e acarreta privilégios, dentro da
sociedade. Desde o processo de escravidão mulheres negras não retintas
possuíam “vantagens”, pois, historicamente as mulheres negras não possuem
privilégios, ainda que elas não tivessem a pele retinta ou prestassem serviços
braçais, estavam passivas a sofrer violência sexual (Ibid., p.7).

Gomes (2006) também nos fala algo desse período de escravização:

[...] um escravo de cabelo alisado ou anelado e pele clara era comprado, no


mercado, por um preço superior em relação ao seu companheiro de cabelo
crespo e pele escura. Essa hierarquização foi, aos poucos, sendo introjetada
pelos próprios negros e, mesmo após a abolição, muitos continuaram
considerando os sujeitos do seu grupo étnico/racial que apresentavam pele
escura e cabelo crespo como menos atrativos, menos inteligentes e menos
dignos (p. 289).

Do nosso ponto de vista, qualquer ideia que fale sobre privilégios para seres humanos
submetidos ao sistema de horror que foi a escravização, é absolutamente inadmissível. Mas
não é raro ouvir que mulheres escravizadas mais claras os detinham, ainda que se considere a
exploração sexual dos homens brancos da casa grande sobre os seus corpos. Sobre isso, Gates
Junior (2011) também nos explica que, a ideia de ter havido grandes proporções de
escravizados (principalmente mestiços) que conquistaram a liberdade no sistema escravagista,
é parte do imaginário social constituído pelo mito da democracia racial. Querendo saber sobre
as particularidades da colonização no Brasil, o autor conversou com o historiador João José
Reis que explicou: “os escravos libertados eram a exceção, e não a regra, em vista do número
imenso de escravos importados pelo Brasil” (GATES JUNIOR, 2011, p. 21). Lembremos que
o Brasil foi o país que mais recebeu africanos escravizados na América, também o último do
continente a abolir a escravidão.
195

Ana Cláudia Pacheco (2013) irá conversar com algumas mulheres negras em Salvador
para constituir sua pesquisa sobre “a solidão da mulher negra”. Uma delas assume no seu
texto, o pseudônimo de Zezé, assim descrita: “aos meus olhos, Zezé tem um aspecto físico da
chamada ‘mulata’. Sua pele é clara, seus cabelos são quimicamente cacheados, crespos, tem
um porte avantajado, cintura fina, quadris largos, empinados, traços finos e lábios sensuais”
(p. 245). Com tudo isso, a narrativa dessa mulher

[...] desfaz alguns discursos presentes no meio acadêmico de que o “mulato”


não seria discriminado enquanto um grupo racial negro. No contexto em que
Zezé viveu e estudou, em São Paulo, a experiência da discriminação racial
foi real, mesmo ela tendo uma pele clara (Ibid. op. cit.)87.

Munanga (1999), citando o argumento de Abdias, nos fala que, ainda que o mulato seja
um meio termo entre a casa grande e a senzala, “não goza de um status social diferente do
negro” (p. 93). É que, mesmo desempenhando funções de aliança com o senhor de engenho,
estão hoje esmagados em uma “classe pobre e, portanto, constituem-se na maior vítima da
discriminação racial, devida à ambiguidade cor/classe, além de serem mais numerosos que
os ‘negros’" (Ibid., p. 93-94, grifo nosso). O autor continua seu argumento com a seguinte
questão:

[...] os mestiços constituem, pela sua importância numérica, a categoria


social mais excluída e mais discriminada? Basta olhar a cor das vítimas do
Carandiru, de Vigário Geral e da Favela de Diadema para nos convencermos
disso. Esses mestiços de hoje constituem a população que mais cresce
demograficamente, não são mais filhos naturais dos senhores de engenhos
que, segundo estudos anteriores, se beneficiaram de alguma proteção de seus
pais. Eles ocupam cada vez mais a posição subalterna do negro, conjugando
o critério da cor com o critério econômico (Ibid., p. 107).

Esse trecho também é importante porque quebra com a ideia de continuidade de privilégios ou
vantagens sociais que os mestiços, oriundos das famílias inter-raciais, teriam trazido como
herança escravocrata para os dias atuais. O “privilégio pardo”, nesse sentido, se parece mais
com um white noise88 insistindo que as desigualdades internas à população negra são maiores
do que realmente são, maiores que as discrepâncias entre esse grupo e o grupo branco. A
pesquisa nos indica que esse cenário se conforma, principalmente, a partir das fraudes brancas

87
Nesse exato momento a autora irá puxar uma nota explicativa para dizer que: “não significa dizer que no
Brasil não exista uma diferenciação de cor entre os chamados ‘pardos/mestiços e pretos’, entretanto a
classificação aqui utilizada, embora reconheça esta diferença, analisa tais categorias como pertencentes ao grupo
racial negro” (PACHECO, 2013, p. 245).
88
“termo não-técnico utilizado em referência a qualquer som de fundo que reprime outros ruídos do ambiente”
(FERREIRA&CAMINHA, 2017, p. 163).
196

ao sistema de cotas, e dessas práticas de “transracialidade” ou “blackfishing”, cometidas, é


bom reforçar, por sujeitos brancos.
Eugênio Junior (2018) num texto para o site “Alma Preta” faz uma pergunta
essencialmente contraditória, mas muito representativa para pensar o “privilégio pardo”:
“Ainda que pessoas pretas com a pele mais clara tenham mais privilégios do que quem tem,
pele retinta, elas são aceitas dentro da lógica branca?”. O “privilégio” nessa frase é
pressuposto, a pergunta é sobre a paridade racial que esses mais claros teriam ou não com os
brancos. Isso é exemplar. Da perspectiva dessa pesquisa, o privilégio é o mesmo que desfrutar
das prerrogativas raciais hegemônicas: se um grupo não participa dela, não há privilégio,
mesmo que haja vantagens pontuais e circunstanciais. Contraditoriamente, o autor nos dá
como resposta a fala da jornalista Juliana Gonçalces, segundo a qual:

Se o racismo é algo estrutural e se todos os negros padecem dele, ao mesmo


tempo em que o privilégio é algo também que diz respeito à branquitude - o
que não é negociável, pois é estático e fixo -, eu não posso dizer que essa
vantagem circunstancial, que talvez uma pessoa de pele clara tenha, seja um
privilégio que o aproxima da branquitude.

A ideia de Juliana é a mesma que viemos desenvolvendo até aqui: “Ser negro de pele
clara não é ser menos negro, [...] a pigmentação rende experiências com racismo distintas das
experiências de negros de pele escura”. A racialização será diferente a partir do tom da pele e
também a partir de diferentes pertencimentos ou marcadores. Eugênio Junior (2018) traz
ainda outras falas de Nilma Lino Gomes (2005) presentes no texto “Alguns termos e
conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão”, que
dispõe os motivos que levaram ao agrupamento de pretos e pardos em uma única categoria.
Seu argumento, imbuído das aproximações dos indicadores sociais, termina com a afirmação
de que “o racismo no Brasil não faz distinção significativa entre pretos e pardos, como se
imagina no senso comum” (Gomes, 2005 apud Eugênio Junior, 2018).

5.3 AS MULATAS

Já são bem conhecidos os empreendimentos teóricos que pensam mulheres negras a


partir do que poderíamos nomear como encruzilhada epistemológica de raça e gênero. Com o
tempo, as modificações trazidas pelo colorismo para o campo político das relações raciais - ou
hierarquias, como ensina Ângela Figueiredo (2005) - progressivamente tem sequestrado as
“mulatas” do conjunto de pautas que importam às mulheres negras. A “solidão da mulher
197

negra”, por exemplo, parece ser uma dessas questões. As mulatas, mulheres pardas, em
função de supostos privilégios, não compartilhariam desse lugar de solidão afetiva que
mulheres retintas vivenciariam. Como exemplo disso, temos o estigma da “neo neguinha
solidão” que Jaci, uma das nossas interlocutoras, contou ter recebido. Esse termo, ela nos
explicou, deslegitimava sua autodeclaração e, ao mesmo tempo, seu lugar dentro dessa pauta
política. Nesse sentido, a minha proposta nesse momento do texto, é falar das mulatas de
outro lugar, da encruzilhada epistemológica entre gênero e colorismo. Esse é o momento,
talvez bastante pequeno em comparação ao resto do trabalho, em que focalizo a condição das
mulheres negras-pardas nessas discussões que temos tratado.
O artigo de Oliveira e Siqueira (2016) trata sobre as “Leituras pigmentocráticas acerca da
construção da história e notícia” e analisa algumas fotografias vinculadas a notícias recolhidas
na Internet. Elas mostram homens aprisionados em condições degradantes. Essas imagens me
fizeram perceber como pretos e pardos aparecem, indistintamente, na mídia de forma
criminalizada. Os estereótipos de “menor”, “traficante” ou “ladrão” estão para pretos e
pardos. Isso me estimulou a pesquisar alguns desses termos no banco de imagens do Google.
Em outro momento da pesquisa, essas imagens aparecem na discussão sobre os estereótipos
do “traficante” e do “pobre”. Aqui, eu volto com a mesma ideia para discutir mulheres negras
e mulatas. Essa questão também está inserida no artigo que escrevi junto com Jade Lôbo, “De
mulata fogosa à afrobege afroconveniente: uma interpelação contra-colonial a dupla
contradição racial sobre mulheres negras” (2020).

Figura 38 – Printscreen da pesquisa no Google “mulher negra”

Fonte: Google.
198

Figura 39 - Printscreen da pesquisa no Google “mulher mulata”

Fonte: Google.

A análise que fazemos das imagens, no artigo, explicam por que o colorismo (informado pela
raça) converte a experiência social dessas mulheres em negras “de mentira”:

Observemos que, fruto de uma luta histórica dos movimentos de mulheres


negras, essas imagens [Figura 38] irão refletir dignidade e enfrentamento
político. Por exemplo, algumas dessas mulheres estarão com o rosto
levantado e semblante tranquilo em demonstração de orgulho. Outras estarão
com olhar firme para nós, espectadores, enquanto uma delas impõe a mão
levantada em sinal de “basta”. [...] Quando, no entanto, procuramos na
mesma plataforma pelo termo “mulher mulata” [Figura 39], observamos que
não só a tonalidade clareia (ainda que sejam negras), como também as
imagens se tornarão mais sugestivas para o sexo. Temos diante disso, que as
mulatas estão arranjadas em uma posição racial duplamente contraditória. O
discurso oficial da nação coloca-lhes como autenticamente brasileiras, tão
brasileiras que são “produto de exportação nacional”. Não são africanas e
nem europeias, mas fazem a ponte entre os dois continentes, a exata cor do
pecado. [...] São indivíduos racializados sem o serem oficialmente, afinal,
mulatas também são as “protobrasileiras” da qual se referia Darcy Ribeiro.
Essas mulheres estão, literalmente, de saia justa. Não servem para casar, mas
servem para f… São racializadas, mas tem lugar garantido na hora do samba
na televisão. Puxando o fio do colorismo - e da sua intenção implícita em
informar um “privilégio pardo”, em torno das mulatas cria-se a ideia de que
elas serão, supostamente, mais representadas na mídia ou terão mais inserção
social, mesmo que não se questione o modo ou a qualidade dessa inserção.
Isso ganhará o nome de privilégio (RODRIGUES&LOBO, 2020, p. 14-15).

Inspirada no trabalho de Sonia Giacomini (2006), que fala sobre o curso de formação de
mulatas, Ângela Figueiredo (2005) irá dizer que “mulata” conforma uma categoria racial,
profissional, de gênero e de geração (p. 164). O estupro do homem branco89 contra mulheres
negras é ponto importante dessa reflexão, cuja romantização é frequentemente acusada nas

89
Tal como desenvolve Miskolsi (2013), é importante lembrar que essa miscigenação não tinha como
expectativa a mistura inter-racial de homens negros e mulheres brancas, “o desejo da nação era um ideal político
embranquecedor assentado no desejo heterossexual masculino” (p. 96).
199

obras de Gilberto Freyre. Isso é tão notável em “Casa Grande e Senzala” que Freyre (2003)
chega a falar sobre “casos no Brasil não só de predileção, mas de exclusivismo: homens
brancos que só gozam com negra” (p. 368). Munanga (1999) mostra que, considerando o
ditado popular "branca pra casar, negra pra trabalhar, mulata pra fornicar", a mulata, fruto da
exploração sexual do homem branco sobre a mulher preta escravizada, “tornou-se só objeto
de fornicação, enquanto a mulher negra continuou relegada à sua função original, ou seja, o
trabalho compulsório” (p. 91). O autor nos traz uma passagem de Abdias do Nascimento que
caminha no mesmo sentido:

"Para sintetizar os dois polos da avaliação corrente sobre a mulata, podemos


dizer que, de positivo, são reconhecidas suas habilidades culinárias, via de
regra, sua higiene, sua resistência física ao trabalho, sua sensualidade
irresistível, seus artifícios de sedução, a que sabe recorrer, quando canta,
dança e se enfeita. Já a soma de seus defeitos é constituída por sua falta de
moralidade, por sua irresponsabilidade, por ela ser muito pródiga sempre"
(NASCIMENTO, A. apud MUNANGA, 1999, p. 92).

Os militantes negros não deixam de lembrar as dimensões de violências que envolveram


a mestiçagem. Cruz e Martins (2018), por exemplo, reproduzem um trecho do vídeo intitulado
“Negro ou pardo? Identificação Racial” da vlogueira Sá Ollebar, onde ela diz que:

“(...) a miscigenação é originária de estupros de mulheres negras e indígenas.


O homem branco destruiu todas as nossas tentativas de resgatar nossas
origens, precisamos reconstruí-la, saber quem somos, de onde viemos e para
onde vamos nesse sistema racista” (p. 7).

Embora o estupro fosse uma prática presente no cotidiano do contexto colonial, o


casamento com essas mulheres negras não era bem recebido. Como nos mostram Bastide e
Fernandes (1959):

O casamento de um indivíduo de “nobre sangue” com uma mulata podia ser


encarado por seus parentes como uma “injúria”, que lhes causava “um geral
luto de sentimento”, e o marido se julgava com o direito de romper os laços
matrimoniais com a mulher legítima, desde que suspeitasse, com
fundamentos positivos, de sua "pureza de sangue” (p. 85).

Analisando os romances “Gabriela, Cravo e Canela” e “Tenda dos Milagres”, de Jorge


Amado, Pacheco (2013) vai mostrar que

A ela [a mulata ou a Gabriela] não é permitido ser esposa ou mãe, pois é o


símbolo da liberalidade sexual. Ela não é respeitada nem como mulher nem
como indivíduo. Sua função é atrair os homens, ser explorada por eles e em
troca explorá-los para obter o que quer através do sexo (BROOKSHAW,
1983, p. 142 apud PACHECO, 2013, p. 60).
200

Giralda Seyferth (1995) também discorre sobre a posição profissional da mulata, cujo “lugar
privilegiado é o dos espetáculos de rebolado para turista ver” (p. 198-199) e,
complementemos com Lélia Gonzales (1984), do "produto de exportação". Gonzales (1984)
fala sobre três estereótipos ligados as mulheres negras: a mucama, trabalhadora doméstica; a
mãe preta, ama de leite dos filhos brancos; e a mulata, esse papel de servidão sexual
comumente atribuído às mulheres negras de pele mais clara. Pinho (2004) nos mostra como a
literatura, a música e as artes, de modo geral, caracterizam a mulata pela “sensualidade bestial
da negra em modos ‘afinados’ pelo sangue branco” (p. 112). Isso colocaria a Bahia como “um
território livre para o safári sexual colonial” (Ibid., p. 113). Antônio Jonas Dias Filho, citado
por Pinho, demonstra como a própria propaganda do turismo em Salvador associaria o estado
da Bahia “à figura da mulher desnuda e mestiça, que se oferece entre a rebentação e os
coqueiros” (Ibid., p. 114). Osmundo Pinho (2004) nos dá exemplos dessa prática de turismo
sexual no estado:

Os alemães, por exemplo, chegam a pagar, por um pacote de quinze dias, o


equivalente a 10 mil marcos para conhecer e namorar mulheres baianas,
preferencialmente “negras ou mulatas”, que apresentam características
daquelas que lhes foram mostradas em books, vídeos ou catálogos. Nesse
caso também os pré-requisitos exigidos para as mulatas do Sargentelli fazem
parte do contrato, só que em Salvador, esse estereótipo racial recai sobre as
mulheres denominadas no circuito “morenas-jambo” (Ibid., p. 113-114).

O colorismo, entretanto, estaria penalizando a pauta política dessas mulheres “mulatas”, ao


insinuar falta de legitimidade negra. Elas seriam negras ilegítimas que acenariam para a
traição. Sugiro que o colorismo, aliado a uma interpretação liberal do slogan
“representatividade importa”, tenda a ser usado numa disputa acirrada pela pequena brecha
que o mercado começa a abrir para negros e negras. Ao classificar negruras legítimas ou
falsas, ele divide a população negra por um valor, deixando às mulatas, literalmente, em saia
justa...

5.4 LIGHTSKIN, BROWNSKIN E DARKSKIN

Quando os estadunidenses falam sobre “lighskin”, traduzimos para o português como


“pele clara”. Nossa tradução é de que o termo significa “negros de pele clara”. Mas será que a
versão portuguesa da expressão traduz também a ideia? Considerando que a racialização nos
Estados Unidos obedece a critérios genéticos, negros “lightskin” têm a mesma cor daqueles
201

que no Brasil chamaríamos de “negros de pele clara”? Separamos algumas imagens que
tratam das classificações de cor negra naquele país.

Figura 40 – Lightskin e brownskin

Fonte: <https://me.me/i/light-skin-vide-ic-brown-skin-17675144>.

Figura 41 – Lightskin, brownskin e darkskin (1)

Fontes: <https://www.quora.com/What-does-dark-skin-mean-What-qualifies-as-dark-skin-Is-tan-
Asian-skin-considered-dark>.
202

Figura 42 - Lightskin, brownskin e darkskin (2).

Fonte: <https://twitter.com/LadyTmissthang/status/653589101354967041/photo/1>.

Figura 43 - Lightskin, brownskin e darkskin (3)

Fonte: <http://thehoopgods.com/2016/12/15/team-light-skin-vs-team-dark-skin-vs-team-brown-skin/>.

Essas imagens, recolhidas em sites americanos, nos fazem refletir sobre algumas coisas.
A primeira: as fronteiras entre o que se compreende como light, brown ou darkskins não são
tão rígidas assim. Existe uma certa mobilidade entre os indivíduos negros por entre essas
203

classificações, assim como aqui. Em segundo lugar, poderíamos sugerir que algumas pessoas
identificadas por essas imagens como “lightskin” seriam possivelmente heteroclassificadas
aqui enquanto brancas. Isso é importante porque, tendo esses “lighskin” um fenótipo algumas
vezes branco, é fácil de imaginarmos que serão mais incluídos socialmente, e que seus
indicadores sociais serão consideravelmente melhores do que aqueles apresentados pela
população brown ou darkskin. Aqui, os “brownskin” são aqueles que, frequentemente
apontamos como negros de pele clara.
De fato, observando pesquisas estadunidenses que levam em consideração o colorismo,
a pele clara, diferente da realidade brasileira, parece repercutir numa vantagem estrutural para
essa parcela negra da população. Afinal, para ela será possível o fenômeno do passing, pelo
qual poderão esconder antepassados negros para “passarem por” brancos. É como se pessoas
como Sônia Braga, quem não temos como referência de mulher negra, fosse lá negra
“lightskin”. Se, também aqui, “Sônia’s Braga” fossem contabilizadas como negras,
certamente os indicadores sociais mostrariam uma vantagem estrutural dos negros de pele
clara ou pardos, frente à população preta.

5.5 MANIPULAÇÃO ESTÉTICA

Precisaremos, de início, diferenciar a transformação estética que as pessoas negras


experimentam no processo de “tornar-se negro”, com a manipulação estética produzida pelos
sujeitos brancos.
Weschenfelder e Silva (2018), ao analisar os textos produzidos por mulheres que
“tornaram-se negras” no site Blogueiras Negras, mostram que essas pessoas associam “a sua
transformação a um renascimento” (p. 20) onde existiria “um ponto de virada”, um “antes e
depois de sua afirmação como negra” (p. 20). Esse “tornar-se” é acompanhado de uma
mudança estética que se dá, por exemplo, interrompendo uma prática de alisamento dos
cabelos ou o uso de maquiagens mais claras no rosto. Tal transformação não trata de um jogo
ou de uma manipulação estética, mas de um cuidado de si, de quem se desobriga a aplicar
produtos químicos pesados ou tratamentos físicos agressivos nos cabelos para sentir-se bem,
esse é o tipo de discurso que encontramos na fala de Jaci, por exemplo.
Tal como viemos traçando, existe “em todo o Brasil, uma expectativa assimilacionista,
que leva os brasileiros a supor e desejar que os negros desapareçam pela branquização
progressiva” (RIBEIRO, D., 1995, p. 224). Seguindo a lógica da democracia racial, segundo a
qual os morenos representariam uma metarraça, Darcy Ribeiro (1995) complementa que
204

“corre, efetivamente, uma morenização dos brasileiros, mas ela se faz tanto pela branquização
dos pretos, como pela negrização dos brancos” (Ibid., p. 224). A cor da pele sempre foi, para
nós, assunto sério. Roger Bastide e Florestan Fernandes (1959), por exemplo, vão falar o
seguinte: mesmo que o indivíduo negro fosse alforriado, poderia ser “considerado e tratado
como escravo” (p. 81). Nesse sentido:

“O distintivo da nobreza, da superioridade social e moral é, segundo as


idéias do tempo, o ter a pele branca, provir de sangue europeu, não ter
mescla com as raças inferiores, principalmente a negra”. A cor foi, por.tanto,
selecionada como a marca: racial que serviria para identificar os negros e os
mestiços. Ela passou a ser um símbolo de posição social, um ponto de
referência imediatamente visível e inelutável; através do qual se poderia
presumir a situação de indivíduos isolados, como socius e como pessoa,
tanto quanto definir o destino de uma "raça" (Ibid., p. 82).

Apesar disso, como nos mostra Santos e Maio (2008), o mito da democracia racial criou
a ideia de que o Brasil seria um país híbrido do ponto de vista cultural e racial, indicando “que
compartimentalizações precisas são pouco discerníveis” (p. 110-111). Os autores estão se
referindo a ampla aceitação que o “Retrato Molecular do Brasil” teve no país. Esse estudo,
que prova a extensão da mistura de gene entre a população autodeclarada branca, reforça,
através de “narrativas sobre a (bio)história da formação do povo brasileiro produzidas pela
genômica, [...] um imaginário social amplamente arraigado que vê na miscigenação um
elemento positivo e definidor da identidade do país enquanto nação” (Ibid., p. 110-111). Na
medida em que se constitui uma crença de que o povo brasileiro é de natureza mestiça,
morena, o fazer corporal dos brancos em contextos de fraudes, é um fazer arraigado na
tradição. Nilma Lino Gomes (2006) observou essas técnicas de fazer um corpo mestiço em
termos de uma “polissemia identitária”, onde há “um movimento ambíguo de
aproximação/afastamento das referências negras e africanas. [Isso] Muitas vezes se dá de
maneira difusa e se mistura com questões de moda e estilo” (p. 331).
No romance “Marrom e Amarelo” de Paul Scott (2019) o personagem principal,
Fredrik, é convidado a participar de uma comissão do Governo Federal que desenvolveria um
software para a seleção de candidatos autodeclarados negros para as vagas de cotas nas
Universidades públicas. O trecho que segue é da descrição que o personagem faz do contexto
universitário pós-implementação das cotas raciais:

[...] E também os alunos pretos e alunos pardos contra os alunos que se


diziam pardos claros, mas nem pardos claros eram porque eram brancos na
avaliação dos núcleos de militância negra, brancos safados que, aproveitando
a exclusividade do critério de autodeclaração racial, pegando umas sessões
205

em câmara de bronzeamento, aplicando autobronzeador spray na pele,


pintando a pele, fazendo permanente no cabelo, preenchimento labial,
alegavam ser negros, ou, sem recorrer a qualquer artifício, deixando que a
pele clara continuasse clara, juravam ser de comunidade negra, netos de
negros, bisnetos de negros, apesar da pele branca, branca de doer, expressão
consagrada por uma redação intitulada branca de doer escrita por uma aluna
do ensino médio, de pele retinta, do Complexo da Maré no Rio de Janeiro e
publicada na revista Setor X da Biblioteca de Manguinhos e depois
republicada no espaço dum colunista d’O Globo no início daquele ano,
alunos que os alunos negros das patrulhas acusavam de brancos fraudadores,
gente criminosa que estava além da afroconveniência dos pardos claros caras
de pau, gente que só podia estar querendo detonar pra sempre o sistema de
cotas raciais implantado, a duras penas, no século XXI no Brasil (p. 26).

Esse é um trecho que mostra, dentre outras coisas, a amplitude que essas questões têm
tomado, de forma a estar nos textos disponíveis em blogs e sites, nas comunidades virtuais
das redes sociais, na preocupação presente na fala dos nossos interlocutores, nos trabalhos da
Comissão e, inclusive, na literatura. Esse “fazer um corpo mestiço” pelos brancos, não é só
um ato de má fé, é um recurso do mito e, portanto, parte do dispositivo de poder que
desenvolveremos mais adiante.

5.6 TENSÕES

Diferente do que somos levados a acreditar, também nos Estados Unidos o


pertencimento racial não ocorre sem dissensos. O exemplo que Edward Telles (2003) nos dá,
é muito interessante:

Em Massachusetts, houve um caso famoso em que dois irmãos não


conseguiram ingressar no Corpo de Bombeiros de Boston, mas se
candidataram novamente, desta vez como negros, alegando que haviam
descoberto uma tataravó que era “negra de pele clara”, e foram contratados.
Em outro caso, no estado de Washington, alegações de “fraude racial”
levaram patrões a investigar seus empregados e a requerer documentação
para confirmar a autoidentificação nas categorias beneficiadas pela ação
afirmativa. O resultado da investigação foi que 2,5% dos empregados
haviam mudado seu status racial (p. 291).

Já demonstramos o tamanho dessas controversas em diferentes momentos desse


trabalho. Voltamos, nessa ocasião, com as disputadas deflagradas pelo colorismo.
Encontramos no texto de Eugênio Junior (2018), disponível no site Alma Preta, o relato de
Juliana Gonçalves, jornalista e militante do movimento negro, que reflete sobre os riscos que
esse debate coloca para o “silenciamento de negros retintos” e “destituição da identidade
negra dos mais claros”. Segundo Juliana, “‘quando a gente percebe que há tentativa de
hierarquizar dores, isso se transforma, na maioria das vezes, em tentativa de colocar negros de
206

pele clara e retinta em trincheiras diferentes. Isso, sim, é um problema’”. Outro texto, o de
Gabriele da Silva (2020) no site do Portal Geledés, também é muito notório. Ele reproduz a
narrativa de uma estudante, Iraci, que já foi confrontada diversas vezes em sua autodecaração
negra:

“Eu nunca quis roubar o protagonismo de ninguém, eu sei dos meus


privilégios” [Íraci Falavina]. [...] A estudante possui traços fenotípicos
negros, como o cabelo crespo, o nariz e os lábios. Porém, costuma ser
chamada de “Afrobege”, pelo tom da sua pele. Sua identidade racial já foi
questionada e negada, deixando Iraci insegura sobre sua própria identidade.
A estudante de Jornalismo relata que se sente sempre receosa ao participar
de debates raciais, como se alguém fosse acusá-la de ser indigna daqueles
espaços. “Eu não tô tentando roubar o lugar de ninguém, eu tô tentando
achar o meu lugar. Tô tentando me estabelecer”.

O texto continua afirmando que, “assim como Iraci, muitas pessoas têm receio de se
autodeclararem negras”. A autora se coloca nessa discussão como alguém que também estaria
vivendo esses conflitos:

As situações de racismo que eu sofro podem não ser as mesmas que outras
pessoas de pele mais escura sofrem. Isso não significa que é mais brando,
mais fácil de lidar, que é menos doloroso. Às vezes, é até mais difícil, pra
gente identificar, pra perceber que várias situações que passamos, era
racismo. Nós não sofremos menos racismo, sofremos racismo de formas
diferentes.

Sua conclusão é importante e merece nossa atenção: “O problema no atual debate do


colorismo é que ele gera constrangimento, insegurança e mais dores. O colorismo é um debate
que gera silêncio”. Nataly Neri (2016), no vídeo “Colorismo, ser negro e os 3 mitos da mulher
negra”, fala sobre ataques que teria sofrido do público: “essa menina nem é negra, é
oportunista, o que essa menina quer falar de racismo?”. Na pesquisa sobre o colorismo nos
Estados Unidos, Margareth Hunter (2007) vai trazer a fala de uma mulher negra retinta como
ilustrativa desses conflitos:

Em termos de relacionamento mulher - mulher, acho que a cor afeta a forma


como tratamos cada uma. Tipo, se você é mais clara e eu acho que você é
melhor quista, eu acho que os caras querem você, então eu não vou tratá-la
bem. Aproveito todas as oportunidades para ignorá-la, ou não lhe contar
algo, ou mantê-la fora do meu pequeno grupo de amigos, porque realmente
me sinto ameaçada, então eu quero te punir porque você está numa posição
melhor que eu (tradução nossa, Hunter 2005, 72 apud Hunter 2007, p. 243).

Neste exemplo, a mulher mobiliza o poder de intersectar dos seus espaços de convívio e
dos seus círculos de afeto, a presença de uma mulher de pele clara. O faz porque se sente
207

ameaçada pelo status que essa pessoa teria. Citando o trabalho de Mason (2004), Margaret
Hunter (2007) nos dá o exemplo das comunidades mexicanas que vão observar os de pele
clara como “mais assimilados e menos identificados com a comunidade mexicana americana”
(Ibid., p. 244). A desconfiança levaria esses indivíduos a usar com mais frequência o
espanhol, “como forma de restabelecer sua identidade mexicana quando a pele clara lança
dúvidas sobre ela” (Jimenez 2004 apud Hunter 2007, p. 244, tradução nossa). Isso marca uma
tensão interna nos grupos racializados. Ainda que a dúvida sobre a autenticidade do
pertencimento racial seja algo que observamos inclusive na branquitude paulista, trazida pelo
trabalho de Lia Shucman (2012), essa mesma suspeita, dentro de grupos raciais
marginalizados parece ter um impacto ainda maior, seja porque se direcionam a indivíduos
que já estão submetidos ao racismo, seja porque acontece dentro de setores sociais cuja
fragmentação interna penaliza ainda mais as conquistas por direitos.
Essas tensões já estão desenhadas há muito tempo, mostramos isso a partir dos conflitos
internos do grupo NEGO, grupo que antecede o MNU na Bahia (MNU, 1988), e com o caso
de Joséphine Baker (BARICKMAN, 2009). No vídeo “Colorismo: Ser Negro” da vlogueira
Sá Ollebar, o colorimo é definido como “uma teoria de pigmentação que denuncia privilégios
dentro de uma negritude já bem resolvida” (CRUZ E MARTINS, 2018, p. 16). Mas,

“[...] por conta dele está sendo criada uma cultura de negação de identidade,
onde os negros de pele mais escura estão duvidando da negritude desses
negros de pele mais clara e infelizmente esses questionamentos quase, é...
eles não são feitos de forma saudável. Essa sensação de injustiça tem feito
com que negros de pele clara sejam chamados de afroconvenientes e
algumas vezes são rechaçados por isso. (...) É triste, porque está sendo feito
uma separação dentro do movimento, ao invés de ser feito um recorte.”
(Ibid., op. cit.).

A vlogueira Taya, em seu vídeo “Colorismo ou Pigmentocracia: EUA & BR”, cita a
“Carta de Lynch” para definir a divisão entre claros e escuros como uma estratégia de divisão
e dominação dos escravizados. Ela expõe ainda o caso de um homem pardo, que teria sido
preso após proferir insultos à cantora negra Ludmila. Para a vlogueira, esse seria um bom
exemplo de que a estratégia de divisão interna logrou sucesso (Ibid., p. 17). Lindiara Alves
(2019) vai dizer que:

O sujeito “pardo” que se autodeclare negro baseado no Estatuto de Igualdade


Racial de 2010 ou diante do conhecimento de toda construção racial
brasileira e de sua descendência direta, ainda assim a depender de sua cor de
pele pode ser olhado com desconfiança por outros como um “impostor” (p.
26).
208

A polêmica que envolveu recentemente a cantora Fabiana Cozza é um termômetro desse


debate. Sucintamente, a história é que ela teria sido convidada pela família da sambista Ivone
Lara para representa-la no teatro. Isso correspondia, inclusive, ao desejo da própria sambista.
O convite repercutiu na Internet de forma que Fabiana sofreu duras críticas daqueles que
apontavam a dessemelhança entre a cor clara de Fabiana e a de Dona Ivone Lara. Fabiana
desistiu de participar da peça, escrevendo publicamente uma carta90 de conteúdo muito
sensível:

Aos irmãos:
O racismo se agiganta quando transferimos a guerra para dentro do nosso
terreiro. Renuncio hoje ao papel de Dona Ivone Lara no musical “Dona
Ivone Lara – um sorriso negro” após ouvir muitos gritos de alerta – não os
ladridos raivosos. Aprendo diariamente no exercício da arte – e mais
recentemente no da academia, sempre com os meus mestres – que escuta é
lugar de reconhecimento da existência do Outro, é o espelho de nós.
Renuncio porque falar de racismo no Brasil virou papo de gente
“politicamente correta”. E eu sou o avesso. Minha humanidade dói fundo
porque muitas me atravessam. Muitos são os que gravam o meu corpo.
Todas são as minhas memórias.
Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o
anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar “branca” aos
olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor
jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar de existência. Ficar oca
por dentro. E virar pensamento por horas.
Renuncio porque vi a “guerra” sendo transferida mais uma vez para dentro
do nosso ilê (casa) e senti que a gente poderia ilustrar mais uma vez a página
dos jornais quando ‘eles’ transferem a responsabilidade pro lombo dos que
tanto chibataram. E seguem o castigo. E racismo vira coisa de nós, pretos. E
eles comemoram nossos farrapos na Casa Grande. E bebem, bebem e trepam
conosco. As mulatas.
Renuncio em memória a todas negras estupradas durante e após a escravidão
pelos donos e colonizadores brancos.
Renuncio porque sou negra. Porque tem sopro suficiente dizendo a hora e o
lugar de descer para seguir na luta. É minha escuta de lobo, de quilombola.
Renuncio pra seguir perseguindo o sol, de cabeça erguida feito o meu pai,
minha mãe (branca), meus avós, meus bisavós, tatas…
Ao lado de vocês, irmãos.
Renuncio porque a cor da pele de Dona Ivone Lara precisa agora, ainda, ser
a de outra artista, mais preta do que eu. Renuncio porque quero um dia
dançar ao lado de todo e qualquer irmão, toda e qualquer tom de pele
comemorando na praça a nossa liberdade.
Renuncio porque respeito a família de Dona Ivone Lara: Eliana, André, seu
pai e todos os parentes e amigos que cuidaram dela até os 97 anos e tem sido
duramente constrangidos por gente que se diz da luta mas ataca os iguais
perversamente. Renuncio pelo espírito de Dona Ivone que ainda faz a sua
passagem e precisa de paz.

90
Disponível <https://revistaforum.com.br/cultura/em-carta-fabiana-cozza-renuncia-papel-de-dona-ivone-lara-
no-teatro/>.
209

Renuncio porque quero que este episódio sirva para nos unir em torno de
uma mesa, cara a cara, para pensarmos juntos espaços de representatividade
para todos nós.
Renuncio porque quero que outras mulheres e homens de pele clara, feito eu,
também tenham o direito de serem respeitados como negros.
Renuncio porque tenho alma de artista e levo amor pras pessoas. Porque
acredito num mundo feito de gente e afeto.
Renuncio porque não tolero a injustiça, o desrespeito ao outro, o
linchamento público e gratuito das pessoas, descabido, vil, sem caráter,
desumano.
Renuncio em respeito à direção e produção do espetáculo que tanto me
abraçou, em respeito ao elenco que agora se forma e que, sensível a tudo,
lutou por seu espaço e precisa trabalhar e criar em silêncio.
Renuncio por amor aos meus amigos artistas, familiares, irmãos que a vida
me deu que também se entristecem, mas não se acovardam diante dos
covardes.
Renuncio porque sou livre feito um Tiê, porque cantarei hoje, aqui, lá e
sempre à senhora, Dama Dourada, minha amiga e amada Dona Ivone Lara.
Renuncio porque, como escreveu meu amado amigo Chico Cesar, “alma não
tem cor”. E a gente chega lá.
Fabiana Cozza

Em entrevista ao programa de televisão “Rede Tv” (2019), num vídeo disponibilizado


no Youtube, Fabiana cita a campanha do movimento negro da década de 80/90, “não deixe sua
cor passar em branco”, como ilustrativo do esforço político do movimento negro na
conformação da população negra brasileira em sua unidade. Ela desenha em poucas palavras
questões que temos debatido desde o princípio desse trabalho: qual seria o lugar de pessoas
como ela, que, em função das mobilizações do próprio movimento passaram num
determinado momento da vida, a se definirem como negras? Ela pede que “os irmãos” tenham
cuidado ao se referir a indivíduos negros de pele clara, que passaram por esse processo de
“tornar-se”, e que hoje precisam enfrentar situações que lhes deslocam dessa posição: “[...]a
gente precisa tomar cuidado porque a gente fere o outro, e agora falando pessoalmente, eu fui
ferida, não profissionalmente [...], mas afetivamente”. Sua fala é de quem admite a pertinência
das questões levantadas sobre o “colorismo”: “mas a gente precisa[ria] conversar para que as
vozes maiores que querem nos calar, não nos calem”, fazendo referência àquela estratégia de
“separar para conquistar”: “eu dou um recado para os meus irmãos negros, passe a escutar as
pessoas antes de se manifestar de uma forma desrespeitosa”. Outra discussão, com menor
repercussão, foi feita a partir da representação do artista Seu Jorge no filme sobre a vida de
Carlos Marighella no cinema. Foi levantado, não pelo movimento negro, que Seu Jorge era
muito escuro para representar Marighella, sempre referido como um homem mulato. O texto
de Silvana Souza (2019) para o Correio Braziliense, fala que teria surgido nas redes sociais,
até mesmo uma certidão de óbito definindo o militando como branco. A representação de Seu
210

Jorge de Marighella não foi problematizada por nenhum grupo ou indivíduo ligado aos
movimentos negros: o problema na representação de Fabiana Cozza, portanto, não seria
apenas na incompatibilidade da cor, seria sua pele mais clara, num contexto em que essas
questões mobilizam os debates políticos com a força que verificamos na própria pesquisa.
A partir dos nossos interlocutores, pudemos compreender que o “afroconveniente” tem
um espectro amplo de significados: às vezes referindo-se aos negros de pele clara, que
supostamente estariam declarando-se negros em função das cotas raciais; às vezes aos negros
de pele escura ou clara, que manipulariam o discurso racial para interesses particulares; ou
mesmo a brancos que estariam fraudando as cotas raciais. Boyer (2015) analisa os usos de
categorias jurídicas por movimentos ou grupos, no sentido de ganhar espaço dentro do
Estado. Ele vai dizer que, na medida em que “antigos preconceitos não desaparecem”
(tradução nossa, p. 29), se transformam em “categorias de acusação” (tradução nossa, Ibid.,
op. cit.) para “se tornar padrões de avaliação” (tradução nossa, Ibid., op. cit.). Assim,

Eles são assim constituídos como padrões para medir a credibilidade das
metamorfoses da identidade: a falta de conformidade com os estereótipos do
índio ou do preto (cor da pele, roupas, práticas, etc.) abre caminho ao
questionamento da identidade indígena ou quilombola (Ibid., op. cit.,
tradução nossa).

De forma semelhante, na medida em que o mito da democracia racial cristalizou os


negros como rostos de pele preta, os negros de pele clara foram postos fora dessa imagem que
não permite variações de tons e, portanto, vulneráveis às acusações de ilegitimidade que faz o
“afroconveniente”. Parafraseando Antônio Sérgio Guimarães (2002), ao falar sobre
estereótipos raciais, o afrobege ou o afroconveniente, direcionado aos negros de pele clara,
são instrumentos de humilhação, cuja “eficácia reside justamente em demarcar o afastamento
do insultador em relação ao insultado” (p. 173), e que remete o negro claro ao lugar do
ilegítimo, falso, postiço.
Considerando que essas acusações partem, sobretudo de gerações mais jovens ligadas
aos movimentos negros, tomamo-las como manifestação do segundo estágio do
desenvolvimento da identidade, descrita por Ricardo Ferreira (2000)91. Nesse estágio, “a
pessoa passa a dirigir sua revolta ao que ela atribui como a ‘causa’ dos problemas sofridos
anteriormente” (p. 79), para Ferreira (2000), seriam “as pessoas brancas e todo o seu mundo
branco” (p. 81). Na medida em que o colorismo vai opor as experiências desses indivíduos
negros àqueles que supostamente detêm privilégio na experiência racial, sua revolta será

91
São quatro estágios: submissão, impacto, militância e articulação (FERREIRA, R., 2000).
211

dirigida para brancos e para negros “com passabilidade”, ou “negros brancos”, os “afrobeges
afroconvenientes”. No terceiro estágio, após decidir tornar-se negro, o indivíduo começa a
reforçar o seu pertencimento, frequentemente pelos estereótipos do que é ser negro:

É provável que essa situação, neste estágio intermediário, explique por que é
comum o afro-descendente apegar-se de forma obsessiva a símbolos da nova
identidade em processo de constituição, a jargões verbais, a algumas
ideologias rígidas e a avaliações dicotômicas, do tipo “ou isto ou aquilo”
(Ibid., p. 80).

Não há diálogo com o “outro”, o branco ou o “afrobege”. Funciona mais ou menos


assim: negro é preto, o branco é o opressor e o afrobege está próximo a ele.

Envolvido na transformação da identidade antiga e, simultaneamente, na


busca das características básicas daquele que quer se tornar, o indivíduo
passa a julgar os outros afro-descendentes em conformidade com seus
padrões “idealizados”, desenvolvendo uma forma tendenciosa e extremada
de atacar pessoas que aparentemente demonstram valores antigos e a de
afirmar os novos de uma forma estereotipada (Ibid. op. cit.).

Uma questão a pensar é que, também esses negros de pele clara passarão por todos esses
estágios, e, na medida em que eles se percebem rejeitados pelo mundo branco, também irão se
perceber, a partir dos ânimos alimentados pelo colorismo, rejeitados pelo mundo negro.
Porém não haverá retorno, eles não tentarão se readmitir no mundo branco, e talvez essa
experiência seja exatamente a experiência de limbo (ou entre-lugar, como fala Weschenfelder
e Silva, 2018) que muitos dos nossos interlocutores testemunham. Ricardo Ferreira (2000)
define da seguinte maneira o quarto estágio:

[...] para Cross (1991), a “nova identidade” construída tem três funções
dinâmicas: defender e proteger a pessoa de agressões psicológicas; prover
um sentido de pertença e ancoradouro social e provar uma fundação, ou
ponto de partida, para transações com pessoas de culturas diferentes
daquelas referenciadas em matrizes africanas (p. 83).

O caminho do “negro de pele clara” parece ser mais embaraçoso para chegar até aí. Ele
precisará lutar contra a autorejeição, mas, ao mesmo tempo, precisará lutar contra o olhar
estereotipado do outro com o qual se identifica, o mundo negro. Seu trabalho é maior: se
percebe vítima do racismo, depois se surpreende com a caricatura de um “afrobege”, e, por
fim, precisa compreender que está lidando novamente com estereótipos do grupo que tinha
expectativas de lhe acolher. Já vi, dentro do discurso de ativistas ligados aos movimentos
negros, que os pardos autodeclarados negros negam, convenientemente, seus parentes
brancos. Ora, segundo o que Lia Schucman (2018) afirma sobre os filhos dessas famílias
212

inter-raciais, “a autoclassificação racial de cada sujeito está menos ligada à cor da pele e mais
ligada aos afetos e identificações que cada sujeito tem com os membros brancos e negros de
suas famílias” (p. 69). Não é estranho, portanto, que pessoas negras, dentro de famílias inter-
raciais, frequentemente vítimas de racismo pelos seus parentes brancos, rejeite-os.

5.7 PASSABILIDADE

“A Redenção de Cam” (1895) é frequentemente observada sob o prisma da ideologia do


branqueamento. Está correto. Mas, traduzindo esse quadro para as nossas preocupações,
perguntamos: quem afinal, no quadro da Redenção, tem passabilidade? Ou talvez outra
questão: quem é o quê no cenário?

Figura 44 – A Redenção de Cam (1985)

Fonte: <https://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/conheca-tela-redencao-de-cam-de-1895-
destaque-em-mostra-no-mnba-22740416>.

Vejamos: a senhora é “a mãe preta” que falava Lélia Gonzales (1984), o pai é o branco
“puro”, o europeu. Isso é um consenso, a questão agora se coloca sobre a mãe e a criança. Um
americano olha para o quadro e vê três negros: vó, mãe e criança. Esse filho, no entanto, é um
indivíduo que pode esconder seus antepassados para efetuar o passing nos Estados Unidos,
seu fenótipo que é branco, como do pai, lhe permitiria (desde que fosse um segredo de
família). Já um brasileiro vê uma negra, a avó, uma mulata, a mãe, e dois brancos: o pai e a
criança. A “passabilidade” não faz o menor sentido: a criança no Brasil é, para todos os
efeitos, branca. Nas palavras de Oracy Nogueira (1985): “no Brasil, não teria sentido o
fenômeno do passing, pois que o indivíduo, sendo portador de traços ‘caucasoides’, será
213

considerado branco, ainda que se conheça sua ascendência negra ou o seu parentesco com
indivíduos negroides” (p. 80).
Conforme muitos autores irão mostrar, o passing no Brasil não se trata do trânsito que
um indivíduo teria em ser branco em algumas circunstâncias e negro em outras, passing seria
a capacidade de branquear conforme os diferentes graus de mistura. Para Domingues (2002),

O que se chama a arianização do habitante do Brasil é um fato de observação


diária. Já com 1/8 de sangue negro, a aparência africana se apaga por
completo: é o fenômeno do passing, dos Estados Unidos. E assim na cruza
continua de nossa vida, desde a época colonial, o negro desaparece aos
poucos, dissolvendo-se até a falsa aparência de ariano puro (Prado, 1944:167
apud DOMINGUES, 2002, p. 580).

Mas para Munanga (1999), se o passing no Brasil fosse assim tão fácil, “muitos entre
‘nós’ já teriam atravessado a fronteira” (p. 122). Ainda assim existe, para o autor, alguma
possibilidade de que isso se realize quando o grau da mestiçagem (cor mais clara) se associa
com certa condição socioeconômica. Esse é um tema controverso, muitos autores (TELLES,
2003; PINHO, 2004) e inclusive o próprio Kabengele Munanga (1999), irão falar como a
inserção dos negros em locais tradicionalmente brancos, reforçam o sentimento de pertença
racial negra, “demonstrando como a ascensão social muitas vezes intensifica o processo de
identificação racial e re-invenção estética de si” (PINHO, 2004, p. 117). Munanga (1999)
apresenta os exemplos de governadores do Rio Grande do Sul, do Espírito Santo e de Sergipe,
que foram considerados como negros, e inclusive vítimas de discriminação racial, quando, no
entanto eram “tipicamente mestiços” (p. 125).
Segundo o autor, Darcy Ribeiro usaria o argumento do passing para insinuar que o
racismo brasileiro seria “melhor” do que o estadunidense, por “não ter criado uma linha de
cor, e por permitir o passing, ou seja, a drenagem dos mestiços mais claros na categoria de
brancos” (p. 103-104). Assim como Oracy Nogueira (1985) e Kabengele Munanga (1999)
fazem em suas respectivas obras, compreendemos que esse tipo de comparação é repugnante.
Todas as formas de racismo são cruéis, ainda que cada uma tenha dinâmica própria, e cujas
particularidades precisam ser levadas em consideração pelas estratégias de desarticulação.
Nesse mesmo sentido, se comparar o melhor e o pior racismo é incompreensível, também o é
comparar as diferentes formas de racismo que sofrem negros de pele preta e clara, enquanto
hierarquias de danos.
Como veremos no capítulo seguinte, faz sentido falar sobre uma hierarquia de cor que
beneficia os mais claros nos Estados Unidos. Já na África do Sul, que também passou pelo
apartheid, os mestiços foram prejudicados no processo de abertura do regime. Se os mestiços
214

não ocupam o mesmo lugar nem nos Estados Unidos, nem na África do Sul, mesmo tendo,
ambos, passado pelo apartheid, será que podemos aplicar teorias estadunidenses sobre o
colorismo para o Brasil, que nunca experimentou um sistema de segregação formalizada sob o
mito de democracia racial? Devemos passar, nesse momento, a uma análise do colorismo a
partir das teorias sobre miscigenação que já foram largamente produzidas pelos estudos
étnico-raciais brasileiros, e, dessa maneira, tentarmos traduzir as preocupações desse conceito
para o nosso contexto.
215

6 ANTI-COLORISMO

Conforme apresentamos antes, esse capítulo continua a discussão anterior, no que se


refere às preocupações centrais sobre o colorismo. Aqui também a etnografia virtual e a
pesquisa bibliográfica serão os seus alicerces principais, ainda que outros dados de campo
oriundos das entrevistas e da etnografia com a Comissão de Aferição da Autodeclaração
Étnico-Racial da UFBA também estejam presentes. Nesse capítulo, aproximaremos os
estudos sobre mestiçagem no Brasil do colorismo. Nossa questão é que, na medida em que o
colorismo foi pensado para falar sobre uma sociedade com experiência de apartheid, o que ele
poderá nos informar sobre uma sociedade sem experiência de segregação racial formalizada,
sob o mito de democracia racial?

6.1 A HISTÓRIA DOS MULATOS E OS PROBLEMAS TEÓRICOS

Nesse momento, mostraremos que, apesar da literatura clássica falar sobre uma posição
intermediária dos mulatos na formação da sociedade brasileira, servindo como mote de
discursos sobre o colorismo ou o privilégio pardo, esses textos são imprecisos em suas
definições. Não são apenas os textos do século passado que terão conteúdos dúbios para
termos como “mulato” ou “mestiço”. Encontramos referências atuais que tratam, por
exemplo, “mulatos”, “pardos” e “negros” como grupos diferentes entre si. Cuti (2010) não só
fala de mestiços e negros como se fossem grupos distintos, como também faz uma
aproximação direta entre brancos e mestiços:

Nós, seres humanos, nos iludimos por várias razões quanto à auto-imagem
que cada um produz, pois quase sempre é uma idealização. Um branco ou
mestiço racista, em face de um negro, busca uma compensação para
qualquer de suas deficiências. Ancorar-se na ilusão racista é também um ato
de cobrir deficiências ou fragilidades pessoais. Mas, não é só. A razão
principal é ter vantagens em relação aos negros. Sempre que temos
necessidade de humilhar alguém queremos gritar que somos melhor que a
pessoa humilhada e ver essa falácia reconhecida socialmente. Um racista faz
isso se baseando em uma convicção. Em face de um negro, ele, branco ou
mestiço racista, quer ser Super Homem! (p. 3).

[...] A capacidade de resistência pressupõe um discurso de resistência que, na


conquista do espaço devido, ouse tematizar o racismo enquanto conflito
humano consequente, pois a arte negro-brasileira, quando atua no imaginário
geral da população brasileira, liberta não apenas o negro das garras do
racismo silencioso, mas também o branco e o mestiço naquilo que têm ou
ainda lhes resta de se imaginarem “Super Homem” (Ibid., p. 9).
216

As divergências são enormes, elas se referem a diferentes formas como se operam as


categorias raciais e que se concebe a mestiçagem. Daí verificamos, por exemplo, que
enquanto Darcy Ribeiro (1995) e Gilberto Freyre (2003) falam que as uniões inter-raciais no
Brasil não eram crime nem pecado, Roger Bastide e Florestan Fernandes (1959) irão mostrar,
através de vários exemplos, que “o casamento inter-racial não era desejável, a não ser pela
família negra. A família branca o proibia.” (p. 225).
Esse tópico da pesquisa não foi pensado anteriormente, ele surge justamente no
processo de leitura. Como esse trabalho analisa o pertencimento negro de indivíduos de pele
clara, toda a minha leitura bibliográfica foi feita no esforço de pensar a imagem dos sujeitos
que estavam sendo descritos nos textos. Muitas vezes eu começava com a imagem de uma
pessoa negra de pele clara como eu, e só depois entendia que o “mestiço claro” na verdade
tinha uma aparência branca. Comecemos a exemplicar esse argumento: Giralda Seyferth
(1995) fala que a ausência de preconceito seria explicativa para a integração de mestiços
claros. Mas... mestiços claros são pardos ou brancos? Vamos a essa passagem do texto:

A ausência de preconceito serve como explicação para a mestiçagem, a


suavidade do regime escravista brasileiro, a aceitação de elementos das
culturas negras e indígenas como parte integrante da "cultura nacional",
enfim, o "milagre" da democracia racial que pode anular as barreiras de cor
(para usar uma expressão consagrada em muitos estudos sobre as relações
raciais no Brasil), permitindo a mobilidade social ascendente, sobretudo para
os mestiços mais claros (p. 190).

Isso me fez entender que, em primeiro lugar, dois argumentos de racialização estão operando
nesses textos, o fenotípico e o genético. Segundo, nem sempre o que se falou nessas leituras
clássicas sobre “os mulatos”, se referiam aos pardos-negros, às vezes estavam falando sobre
indivíduos socialmente brancos. Continuemos nossos exemplos com Oracy Nogueira (1985),
quando ele fala que o branqueamento nos Estados Unidos, pela miscigenação, “por mais
completo que seja, não implica em incorporação do mestiço ao grupo branco” (p. 80). Nesse
caso, o “mestiço” é alguém de aparência branca que provém de relações inter-raciais.
Encontramos na literatura de romance um demonstrativo disso que, em poucas palavras é uma
confusão. A obra em questão é “Marrom e Amarelo” de Paul Scott lançado em 2019. A
história gira em torno do personagem Fredrick, cuja família é descrita da seguinte forma: pai e
irmão são negros retintos, de cabelos crespos, e a mãe é branca de cabelos lisos e castanhos.
Fredrick é alguém de “pele bem clara, cabelo liso castanho bem claro puxando pro loiro [...]
considerado um branco” (SCOTT, 2019, p. 9). O autor opõe a descrição do personagem
principal a do irmão “considerado negro” como se quisesse ironizar ou estranhar essas
217

classificações raciais distintas entre os dois irmãos: “embora com o mesmo nariz adunco e
médio largo que o meu e a mesma boca de lábio superior fino e lábio inferior grosso que a
minha” (Ibid., op. cit.). O trecho que segue é um desabafo que o personagem faz a sua mãe:

[...] é esse negócio de ser negro, mãe, é que, às vezes, as pessoas estranham
isso d’eu me afirmar como negro, um negro pardo, ela observa, qual é o
drama, pergunta. O que eu tô querendo dizer é que mesmo que eu fale pras
pessoas que eu sou negro, isso é pouco, porque eu não entendo quase nada
do que é ser negro, falando em termos de cultura, se não fossem os
churrascos nos domingos que a gente passa, de vez em quando, na casa dos
primos do pai, nem o que é samba de verdade eu ia saber direito o que é...
(Ibid., p. 111).

Conseguimos perceber que, por mais que seja um assunto antigo e repetido, a
compreensão sobre os pertencimentos raciais de negros e brancos no Brasil não está resolvida
para o senso comum e até mesmo para indivíduos engajados academicamente. Na obra,
Fredrik é “considerado branco” porque o fenótipo é branco, mesmo assim ele elabora um ser-
negro-por-empatia, levando em consideração a feição que sente pela sua família negra.
Precisei buscar elementos adicionais para compreender a discussão que essa obra se propõe a
fazer. Eis que chego até a entrevista que Paul Scott (2020) concedeu ao canal do Youtube
“LiteraTamy”. Nessa entrevista, o autor, um homem facilmente identificado como branco,
fala que no Brasil quase não existem brancos, porque as pessoas são mestiças. Ele fala que
negros de pele clara passam por brancas, e que pessoas “mais pro norte” (em relação ao Rio
Grande do Sul), como no Rio de Janeiro, se dizem brancas e na verdade seriam mestiças.
Essas pessoas, segundo Scott (2020), se forem para o Sul do país e se afirmarem brancas em
determinadas regiões ou colônias alemãs, seriam atacadas e repreendidas. Nessa conversa, a
entrevistadora comenta que o “colorismo” atua na história do livro, o que o autor confirma.
Esse é um exemplo muito bom do tamanho das divergências no uso desses termos. Primeiro,
Paul Scott parece ignorar completamente que a leitura racial ocorre no Brasil sem se remeter
às misturas de sangue. Então Fredrick ou os brancos do Rio de Janeiro podem ser mestiços
geneticamente e, ao mesmo tempo, socialmente brancos no Brasil. Segundo, o colorismo não
se refere originalmente as distinções que operam entre mestiços brancos e pessoas negras,
mas entre negros de tonalidades de pele distintas.
Retomando a entrevista, o ponto de Paul Scott (2020) é que, se pessoas claras, mesmo
com cabelo “semi-liso ou liso”, nascem em uma família negra, “devem sim” se reconhecer
como negras, porque isso seria “importante pra identidade do país”, “pra força geral do povo
brasileiro, porque essa negação é uma espécie de submissão, de aceitação, de uma política
perversa, de uma ótica perversa de uma lite que não quer ver gente escura do lado” (SCOTT;
218

GHANNAM, 2020). O autor se diz negro pelo mesmo argumento, ele é oriundo de uma
família com pai negro e um irmão de pele escura, tal como a história do livro: “mesmo eu
tendo essa empatia (sic), mesmo assim eu não sofro o racismo que o meu irmão sofre. Eu
nunca vou entender o que é ser julgado à noite quando eu ando na rua, pela polícia” (SCOTT;
GHANNAM, 2020). Certamente o autor não tem a mesma experiência social que o irmão, já
que a racialização não lê intenção, e sim aparência. Entendi imediatamente que Scott é
Fredrick, um branco-negro-por-empatia.
Ainda sobre esse debate, vamos contrastar duas afirmações feitas por Antônio Sérgio
Guimarães em “Classes, raças e democracia” (2002) e “Preconceito racial: modos, temas e
tempos” (2008) respectivamente:

(1) [...] a impermeabilidade da estrutura social brasileira à mobilidade dos


afrodescendentes de traços negroides (mas não dos mais claros, que
podiam se classificar como “brancos”) foi, certamente, se não o estímulo
maior, ao menos a grande justificativa para que se formasse um
movimento social negro com o objetivo de educar e integrar socialmente
os negros (Fernandes, 1965 apud Guimarães, 2002, p. 91).

(2) [...] eram fatos estabelecidos, já em 1935, pelo menos entre os


intelectuais modernistas e regionalistas, que: [...] ( c) os mestiços se
incorporavam lenta mas progressivamente à sociedade e à cultura
nacionais [...] (p. 70)

Ou os mestiços se incorporam à sociedade ou eles estão sendo interditados, certo? Essas


duas afirmações só não anulam uma a outra porque estão se referendo a concepções distintas
sobre mestiçagem ou afrodescendência. Nosso destaque aqui é para o erro que essas leituras
podem nos induzir. Com a segunda afirmação, podemos colocar, no mesmo bojo, quase toda a
população brasileira de tez branca ou preta, oriunda de relações inter-raciais. Uma leitura de
senso comum entenderia que mestiços são os pardos, já que brancos são brancos, pretos são
pretos, e pardos são os “misturados”. É somente com o desenvolvimento da leitura, e com a
própria comparação dela com outras referências do mesmo autor, que podemos completar o
entendimento sobre o uso desse termo. Mestiços claros são aqueles de aparência branca, e,
grande parte daqueles que consideraríamos pardos, possivelmente são aqueles cujos traços
negroides lhe interditam mobilidade, o que fala o primeiro trecho. Isso tudo, no entanto, não
está dito de primeira, um “afrodescendente mais claro” pode ser alguém socialmente branco
num referencial teórico, e noutro, se remeter a um fenótipo mestiço-pardo. Segue uma
descrição longa de categorias raciais definidas pelos interlocutores baianos no trabalho de
219

Thales de Azevedo nos anos de 1955. Esse momento do texto também mostra conteúdos
dúbios desses usos:

Brancos são, de modo geral, os indivíduos de fenotipo caucasoide; as


pessôas mais alvas, de olhos claros, de cabelos igualmente claros e finos são,
muitas vezes, ·chamadas de brancos finos por não apresentarem indícios de
mistura com tipos de côr. Pode ser chamados de brancos tambem os ricos ou
pessôas de status elevado, seja qual fôr o seu aspeto: quem ouvisse uma
pessôa humilde qualquer, uma empregada doméstica ou um trabalhador
rural, branco ou preto, referir-se a "meu branco", dificilmente poderia
convencer-se de que o termo estaria sendo aplicado a um mestiço bastante
escuro. Os mestiços de côr clara, branqueados ou "brancos na côr", são
chamados de brancos da terra ou brancos da Bahia quando ocupam uma
posição social importante e não se quer chamá-los mulatos, o que, em muitos
casos, se evita por delicadeza. [...] Pretos são os indivíduos que têm as
características físicas do negro africano, particularmente a pele muito escura,
"côr de carvão", os cabelos encarapinhados, o nariz chato e os lábios muito
espêssos. Mas a expressão "negro" é considerada indelicada e por vezes
ofensiva, desde os tempos coloniais (p. 25-27). [...] Entretanto "nigrinha",
uma forma peculiar do mesmo diminutivo, tem sentido pejorativo e
injurioso, sendo aplicado a um jóvem de côr que tem má reputação moral.
Nos primeiros tempos do período colonial chamavam-se "negros" aos
indígenas que habitavam o país antes da sua descoberta pelos portuguêses.
Pardo e mestiço· são empregados mais ou menos como sinônimos de
mulato, isto é de descendentes do cruzamento entre europeu e africano. As
variedades desses tipos, segundo a intensidade de sua côr e tipo do cabelo,
tinham antigamente designações próprias, hoje em desuso. Fala-se em
mulato claro e mulato escuro segundo a predominância daqueles caratéres:
os primeiros, quando têm o cabelo mais parecido com o dos brancos, são
também chamados "caboverdes" ou "roxos". Uma moça com poucos traços
de mestiçagem é "uma rôxinha" ou ainda uma "cabrocha". O mestiço de côr
trigueira, cabelos levemente crespos e traços fisionômicos brancoides é
"moreno", sobretudo se fôr das classes mais altas. [...] E poderia ter
acrescentado, "morenas côr de canela" ou "côr de jambo". [...] A expressão
"morena" tem, ademais, um sentido romântico, indicativo de um tipo
feminino de pele levemente pigmentada e traços de beleza física que tornam
aquelas mulheres "tão resquesitadas e preferidas de muitos", diz um
informante. [...] Os indígenas e os descendentes do cruzamento destes com
brancos são ordinariamente indicados como cabôclos, porém esta expressão
não é muito importante hoje na Bahia devido a raridade relativa desses tipos
na cidade. O albino negroide e o mulato ruivo, de cabelo vermelho ou
alourado, são conhecidos como sararás. A exata designação desses vários
tipos sempre constituiu uma dificuldade para os antropologistas e para as
pessôas encarregadas da identificação de escolares, militares, criminosos (p.
28-32)

Segundo Thales de Azevedo92, a Bahia é o estado brasileiro que possui os índices mais
elevados de mestiçagem envolvendo a população preta no Brasil e, mesmo assim, ele nos traz
relatos que demonstram o preconceito racial na Bahia como parte da “tradição” do estado: “as
92
A obra também é importante por descrever o histórico das organizações negras na Bahia até a criação da
Frente Negra Brasileira.
220

pessôas conservadoras é que o transmitem às novas gerações" (Ibid., p. 180). Lemos, por
exemplo, sobre os preconceitos raciais contra as mulheres negras baianas no trabalho de Ana
Cláudia Pacheco (2013), a partir da citação de Osmundo Pinho:

[...] a Bahia agora é vista também como um território livre para o safári
sexual colonial [...]. A indústria que produz a Bahia como imagem e reduz a
cultura baiana a slogans, alimenta-se do mesmo solo que faz florescer outra
indústria, a do comércio sexual de mulheres e da prostituição ‘étnica’ em
Salvador (p.24-25).

Trouxemos no capítulo anterior, a fala da professora Marcilene Garcia, segundo a qual


Salvador, “Roma negra brasileira” (FIGUEIREDO, 2012), se comportaria como centro da
negritude do país. Essa fala se remete ao fato de que, tendo uma maioria negra, conserva
traços que remetem aos povos africanos trazidos até aqui na condição de escravizados, como a
pele preta ou os cabelos crespos. Ocorre que, em outras regiões do país, influenciados pela
própria geografia e pela interação com os outros grupos, como os indígenas, essa negrura irá
se apresentar de outras formas. Os cabelos lisos, por exemplo, não são apenas oriundos da
Europa, presentes algumas vezes no fenótipo de afroindígenas. Como nos ensina Ângela
Figueiredo (2012), considerando a grande proporção de negros em Salvador, a forte presença
das religiões de matriz africana e de outras manifestações populares negras,

Salvador tem historicamente se constituído como um lugar privilegiado e


determinante na construção simbólica da tradição afro-brasileira e da
identidade negra, em que aparece como a matriz, de onde emana a força da
cultura negra no Brasil (SANSONE, 1995; CHAGAS, 2001 apud
FIGUEIREDO, 2012, p. 18).

Gates Junior (2011) falou que “o candomblé é a essência da cultura negra no Brasil. E
se a cultura negra brasileira tem uma capital, sem dúvida é a Bahia”93 (p.18). Apesar disso, a
capital tem sido marginalizada nas reflexões sobre os movimentos negros e sobre as
dinâmicas de relações (hierarquias) raciais no pós-abolição.

Isso se deve, em grande parte, à perspectiva de diversos autores que


acreditavam que as relações raciais na Bahia eram efetivamente distintas das
que aconteciam no resto do país, uma vez que as consideravam mais amenas.
Thales de Azevedo (1996), por exemplo, considera Salvador como um caso
exemplar de um caldeirão “etno euro-africano brasileiro”, já que a sociedade
baiana tenderia a anular os antagonismos de cor e de classe a partir do

93
Sua descrição da Bahia é bem romântica: “os cheiros no ar, o modo como os homens caminham na rua, o jeito
como as mulheres andam, as formas de culto e suas crenças religiosas, os pratos que comem — tudo me lembrou
demais as coisas que eu tinha visto, cheirado e ouvido na Nigéria e em Angola, mas transplantadas para o outro
lado do oceano — semelhantes e familiares, mas diferentes: África, sim, mas com um toque do Novo Mundo,
uma África com variantes claras” (GATES JUNIOR, 2011, p. 19).
221

processo de acomodação recíproca e através da existência do homem cordial,


cujo protótipo é o homem baiano (cf. HOLANDA, 1936 apud
FIGUEIREDO, 2012, p. 18).

A ideia, muitas vezes, é que em outras regiões do país como o Sudeste e o Sul, dito
como as mais modernas e com maiores proporções de brancos, se justificaria o surgimento de
organizações negras, dada as relações de opressão que seriam mais evidentes lá, do que aqui.
Nessa perspectiva, se o Brasil é o paraíso dos mulatos, a Bahia é a capital. Dados sobre o
racismo contra a população negra nesse estado

[...] parecem surpreender uma parcela significativa de brasileiros que ainda


acreditam que, na Bahia, a dinâmica racial é diferente da que ocorre em
outros estados. Isso se deve, efetivamente, à construção simbólica sobre os
negros que foi produzida, prioritariamente, em Salvador, e que contou, em
grande parte, com a contribuição dos estudiosos das relações raciais (Ibid., p.
18-19).

Figueiredo (2012), citando Jeferson Bacelar (2001), vai dizer que, na cidade,

[...] os pardos exerciam atividades que requeriam alguma especialização e


escolarização − alguns eram professores e conquistaram posições no serviço
público; outros tinham posições de destaque na estiva, além de avançarem na
hierarquia militar. Pertencer ao serviço público, mesmo nas posições
subalternas, já denotava alguma forma de prestígio, indicando, no mínimo,
as boas relações com os donos do poder político [...] na medida que a
inserção se dava pelo clientelismo e apadrinhamento (BACELAR, 2001, p.
78 apud FIGUEIREDO, 2012, p. 19).

A autora considera que é possível afirmar uma maior "‘integração’ dos negros à
sociedade” (Ibid., p. 24) na Bahia, ainda que isso represente uma confirmação da hierarquia
racial, acomodando cada grupo em seus devidos lugares. Isso porque, essa “integração” não
estaria subvertendo a hierarquia, os negros estariam subordinados a elite local, legitimando
um arranjo desenhado desde a colonização (Ibid.). Essa ascensão, como já viemos discutindo,
se dá, segundo a autora, fundamentalmente através de estratégias individuais. Enquanto
grupo, isso só aconteceria para os negros-mestiços “na década de 50, período da instalação da
Petrobras e 70, início das atividades do Pólo Petroquímico de Camaçari” (Ibid., p. 71). Esse é
um período importante para o pensamento de Figueiredo (2012), que, nessa obra, irá pensar a
classe média negra baiana: nesse período “é a primeira vez que a classe média negra torna-se
simbolicamente importante” (Ibid., op. cit.).
222

6.2 OS MULATOS NA ÁFRICA DO SUL E MOÇAMBIQUE

“É pena seres mulato!” é a frase endereçada a um escritor e acadêmico moçambicano,


em seu país, num contexto em que lhe apontavam como o melhor indicado “para o exercício
de determinado cargo público” (RIBEIRO, G., 2012, p. 23). Acontece que: “‘Eh pá!, não tens
a cor necessária...’, lamentou-se alguém com importante cargo político” (Ibid., op. cit.).
Assim como “a terceira casta” dos mulatos que existiria no Brasil, o autor fala que:

No pensamento de senso comum moçambicano, entre a categorização dos


negros (o extremo endógeno) e a categorização dos brancos (o extremo
exógeno), reconhece-se a existência de um segmento mestiço autónomo em
relação aos dois primeiros, uma espécie de fronteira. A predominância de tal
representação social pode ser interpretada como sintoma de uma sociedade
aberta ao mundo, mas que se demarca desse mundo pela delimitação
simbólica das fronteiras da mestiçagem (Ibid., p. 24-25).

O “mestiço” representaria aqui e lá, uma categoria móvel que apresenta muitas
possibilidades de uso: “em tecidos sociais marcados por uma forte, secular e diversificada
imigração, como é o caso [de Moçambique], a categoria [mestiço] revela-se demasiado
imprecisa” (Ibid., p. 25). O “mulato”, no entanto, restringiria um pouco mais esse espectro, ao
estar “representado como um (sub)produto cristão do Ocidente” (Ibid. ,p. 26). Essa é, para o
autor, a categoria que “melhor permite operacionalizar a noção de mestiçagem racial” (Ibid.,
p. 25). Gabriel Ribeiro (2012) demonstra que a referência ao “Brasil-mulato”94 constitui fonte
de “auto-orgulho” para os mulatos moçambicanos, inclusive, os romances de Jorge Amado
teriam alimentado a ideia de uma “sociedade moçambicana racialmente miscigenada [...] num
hipotético futuro pós-colonial” (Ibid., p. 27-28). A realidade, porém, é:

Se a diversidade racial ao nível da acção governativa ainda assim se manteve


equilibrada na primeira década pós-colonial, tem vindo a transformar-se
após a morte do primeiro presidente de Moçambique independente, Samora
Machel, em 1986, sendo progressivamente mais ostensiva a tentação de
domínio racial da maioria negra sobre as minorias raciais (mestiços,
“indianos” ou brancos). (Ibid., p. 28).

Isso estaria exemplificado por uma frase ouvida pelo autor em um dos cafés de Maputo,
2010: “Tu, com essa cor de pele [misto/mulato] foste director [do serviço público tal] com o

94
Miguel de Almeida (2012) mostra que a propaganda de um “colonialismo humanista, universalista,
multicultural e miscigenador” (p. 32) que teria funcionado no Brasil, serviu de propaganda para a presença
portuguesa no continente africano num período de descolonização. Outro autor, Tadei (2002), vai falar que,
apesar dessa propaganda portuguesa, de um colonialismo cordial, mediado pela miscigenação, no continente
africano ele não teria se dado do mesmo modo, assim como a miscigenação lá, não teria ocorrido com a mesma
expressão que teve no Brasil.
223

Machel, mas agora isso seria impossível. Tinhas de ser negro!” (Ibid., op. cit). O texto mostra
diferentes opiniões sobre a posição de cada grupo racial em Moçambique, a partir das
perspectivas dos brancos, mestiços e negros [pretos]. Para todos esses grupos, os brancos
dominavam o período colonial, porém, no que se refere ao pós-abolição, as opiniões serão
divergentes: ora informando a paridade ou “neutralidade” racial, ora o predomínio de brancos
e mestiços sobre negros e vice-versa. Falando um pouco sobre o lugar dos mestiços em
contextos mais recentes, o autor mostra que recaíram sobre eles o estereótipo de “não ter
bandeira”: filho do pai branco português e da mãe negra moçambicana. Além disso, estariam
submetidos a imagens relacionadas à criminalidade:

No pós-guerra, nos anos noventa, os problemas associados à criminalidade


urbana assumiram proporções sem precedentes. É próprio da dinâmica das
sociedades encontrar bodes expiatórios que permitam domesticar as
ansiedades depressivas. Por aí se explica a progressiva associação
representativa do “mulato” a esse novo incómodo da vida social: a
criminalidade. Agora talvez perdesse algum sentido referenciar o “mulato”,
nos discursos do senso comum dos negros, por “não ter bandeira”, mas,
sobretudo por ser “mecânico ou ladrão”, no geral “ladrão de automóveis”,
numa altura em que a economia e a urbanidade se reanimavam. É usual os
grupos maioritários estigmatizarem um ou outro grupo minoritário (sendo a
cor da pele e/ou a religião praticada atributos “facilitadores”) com o
propósito de exorcizarem males sociais particularmente sensíveis (Ibid., p.
36).

Ocorre algo interessante em Moçambique, e é muito semelhante com o que temos


observado aqui:

[...] à medida que descemos na hierarquia social, crescem as possibilidades


de indivíduos que se autoclassificam como negros designarem o conjunto de
minorias raciais como “brancos”, incluindo numa única categoria europeus,
indianos, chineses, árabes, mestiços/”mulatos”. Ainda que o façam com a
consciência de que “eles” são todos “brancos”, mas “brancos diferentes entre
eles” (Ibid., p. 37).

Isso permite ao autor concluir que “numa mesma sociedade, [coexistem] a tri/multi-
racialidade e a bi-racialidade” (cf. Bonilla-Silva, 2010 apud RIBEIRO, 2012, p. 38). A
analogia que fazemos com nossos interlocutores, é que eles também operam com pelo menos
dois sistemas classificatórios: negro-branco para o cotidiano da vida e para o exercício
político-ativista; e o sistema de cinco categorias do IBGE, no qual optarão, na maioria das
vezes, por declararem-se pardos.
Também em Moçambique, os mulatos teriam desempenhado funções destinadas aos
negros [pretos] e brancos, ao longo da história. Isso permitiu que, após a “saída abrupta” dos
224

colonizadores, esse segmento da população se destacasse no setor técnico-profissional urbano.


O mulato apresentar-se-ia “como herdeiro ‘profissional’ do colono branco, ‘o pai dele’ como
alguns dizem” (Ibid., p. 39).

A tese dominante que circula entre os negros em Moçambique sobre os


“mulatos” não encaixa neste padrão, podendo ser caracterizada por esta
ideia-tipo: “Os mulatos não são tão ricos como a elite negra que governa,
nem tão ricos como alguns brancos estrangeiros ou indianos, mas também
não são tão pobres como a maioria dos negros, e comportam-se de forma
ambígua entre uns e outros e, quando se destacam naquilo que lhes é
peculiar, é pela negativa”. É isso que designo por “efeito classe média”
(Ibid., p. 41).

Esse lugar intermediário se configurava a partir da tutela que o pai branco


desempenhava por esses filhos mulatos: mantinham-nos afastados pela matriz africana, mas
não rompia relações com eles. Aqui, como lá, o mulato seria um “malandro”, um
“espertalhão”:

Precisamente por essa proximidade (do mulato com o negro), na versão


negativa o “mulato” é tido como o instigador e líder dos maus
comportamentos dos negros. Numa entrevista foi dito que: Se nós os três
(eu, entrevistador mulato, o meu guia e entrevistado negros) fôssemos juntos
a Maputo (estávamos na Matola, num bairro pobre) era natural que a polícia
nos pedisse a identificação porque sabe que ali há malandragem [referindo-
se ao autor, um mulato].
Noutra entrevista:
As pessoas (negras) sabem que quando alguém da família arranjou um
amigo mulato lamentam a sorte. As pessoas têm na cabeça que o mulato tem
tudo o que é mau na cabeça dele. É como se fosse a junção dos males das
duas raças (negra e branca). (Ibid., p. 45).

Para as mulheres, isso parece se inverter. Mulheres mulatas estão mais próximas do
branco:

Por isso, quanto mais as “mulatas” são catalogadas como mulheres bonitas,
mais são rotuladas de “muito orgulhosas” ou “distantes”. Numa variante um
pouco mais elitista e agressiva, num convívio numa família negra de classe
média/alta em Maputo (2010) ouvi a expressão: “mulata é puta ou
secretária” (Ibid., op. cit.).

A música que segue me foi indicada por Zacarias Tsambe, amigo moçambicano em
conversa comigo sobre esse trabalho. Achei fantástica a forma como ela resume tudo isso que
tentei desenvolver com ajuda de Gabriel Ribeiro (2012), a respeito da sociedade tri ou
multirracial moçambicana:
225

Cães de Raça (Azagaia part. Guto) 95


Eu sou mulato né? Sou mulato sem bandeira
Desde a guerra colonial que não tenho trincheira
Pai branco intelectual, mãe preta lavadeira
Quis ser igual a ele, mas sem esquecer minha parteira
Quis ser progressista, chamaram-me exclusivista
Quando pedi ao fascista Salazar que me chamasse português
Que eu até era benfiquista, bebia vinho do porto e até era racista
[...] Quem disse que a minha vida é só boémia
Na tuga o assimilado, português de segunda
Na terra condenado à mecânico ou prostituta
Ninguém vence a minha luta
Se a mulata arranja job dizem que deu a fruta
E quem convence que é má conduta de um mulato que acelera carros
Não é minha culpa
Não é minha culpa do look que trago em mim
De dia odeiam-me
De noite amam-me
Vamos duma vez acabar com as farsas
Mulato é o ódio e o amor e as raças
Eu sou um cão de raça
Aqui só passa a minha raça
Aqui só passa a minha raça
Cadela de raça
[...] Eu sou preto da sanzala a morar numa favela
Sou dono da terra sem nunca ter mandado nela
[...] Expulsei colonos, mas nunca o colonialismo
Vi a merda, baixei a tampa e não puxei o autoclismo
Por isso é que a minha casa cheira mal
Preto explora preto, cheira a tempo colonial
Mas essa guerra vem do tempo tribal
Traí pretos com os brancos do litoral
E os brancos no litoral fixaram a capital
Puseram os filhos mulatos mais próximos do capital
Por isso pretos como eu que não podem ter a cor igual
Batem-se para ao menos terem a cor do capital
[...] Nos bhai é tudo irmão
Nosso vida é fazer negócio, nosso política é alcorão
[...] Monhé empresário, moçambicano de raiz
Nós fazer funcionar economia deste país
[...]

Na África do Sul, por sua vez, os mestiços no pós-apartheid estiveram em uma posição
mais vulnerável do que outros grupos. Os pretos tiveram a condição de vida promovida com o
fim da segregação racial. Essa história é contada por Tilly (2013) no capítulo de uma obra que
pensa “Igualdade e Desigualdade”:

A instauração do apartheid de 1948 em diante, não afetou muito a posição


da população mestiça, mas prejudicou claramente os asiáticos e os africanos;
por volta de 1970, a renda per capita dos africanos ·caiu a 6,8% do

95
Disponível em <https://www.letras.mus.br/azagaia/caes-de-raca-part-guto/>.
226

rendimento dos brancos; o branco médio ganhava quase quinze vezes mais
do que o africano médio . Então o sistema começou a mudar. Depois de
1980 os asiáticos quase dobraram a sua posição relativa (subindo a 48,4% da
renda dos brancos), e os africanos finalmente começaram a ganhar tanto
quanto. Em contraste, a população dos mestiços (amplamente negligenciada
pela patronagem do ANC e frequentemente apoiando a oposição à
hegemonia ANC) não teve qualquer ganho relativo. Desde 1995 a
mobilidade dos africanos para categorias com um maior rendimento
continuou, então "em 2000 havia quase a mesma proporção de brancos e
negros no topo da pirâmide dos rendimentos" (SEEKINGS & NATTRASS,
2.005: 45 apud TILLY, 2013, p. 143).

Considerando que a quantidade de negros sul-africanos é muito maior do que a de


brancos no país, estarem ambos na mesma proporção das maiores rendas, é ainda um forte
indicador de desigualdade em favor dos brancos. O ponto forte do trabalho de Tilly (2013) é,
dentre outras coisas, mostrar como o pós-apartheid permitiu a mobilidade dos negros em
detrimento dos mestiços:

Enquanto a coalização contra o apartheid colocou lado a lado africanos e


mestiços, o programa de ações afirmativas do Estado sob a liderança do
ANC em benefício da população "anteriormente oprimida" geralmente se
referia apenas aos africanos (UNG, 2000: 202). As reformas no âmbito dos
cargos civis retiraram vários oficiais asiáticos que ocupavam posições
burocráticas de baixo escalão (QOHSON, 2004: 2.H). Abe Williams, o
ministro do bem-estar social da Província de Western Cape, que era mestiço,
reclamou: Mas vocês veem que o que está acontecendo com os mestiços é
que eles estão sentindo o ônus da ação afirmativa recair sobre eles. Quando
eles lutaram contra o apartheid, eram considerados parte da luta contra o
apartheid. Mas agora que o apartheid já está fora do caminho, eles não estão
sendo beneficiados pelo novo sistema, porque mais uma vez dizem a eles
"você não é negro" . E isso é de partir o coração (UNG, 2000: 203 apud
TILLY, 2013, p. 143).

Traçamos aqui um paralelo com o que apresentamos no capítulo anterior, falas de


alguns membros da comunidade virtual da UFBA, que diziam que os pardos teriam servido
para uma estratégia política dos movimentos negros e que agora estavam sendo pensados fora
da população negra. Como temos dito, isso não representa todo o pensamento e ação política
dos movimentos negros, muito menos as gerações mais velhas dessas organizações, embora
sejam tensões reais e presentes no cenário atual.
Essa pequena passagem da nossa pesquisa, ao pensar a mestiçagem em alguns países
africanos, nos ajuda a deslocar, ainda que limitadamente, aquela velha tradição, que repetimos
aqui, de comparar as relações raciais do Brasil com os Estados Unidos. Ao mesmo tempo,
contribui para uma matização desses discursos sobre a mestiçagem pelo mundo.
227

6.3 MISCIGENAÇÃO

Como nos mostra Sansonse (2003), a democracia racial não foi só celebrada no Brasil,
foi também em outros países da América Latina, como Cuba, Porto Rico, Venezuela e
Colômbia (p. 20). Bastide e Florestan Fernandes (1959) analisam que, se os “mulatos claros”,
que são indivíduos socialmente brancos nessa obra, conseguiam alcançar mais facilmente
posições vantajosas, a mestiçagem em si não poderia ser tida como a causa dessa integração, e
sim o pertencimento branco desses indivíduos. A miscigenação, além disso, não seria
suficiente para afirmar sobre a inexistência de racismo no Brasil:

A tendência a defini-la [a mestiçagem] como índice da ausência de


preconceitos, por parte dos colonizadores portuguêses e de seus
descendentes considerados brancos, não encontra uma comprovação
analítica consistente. Seja porque a miscigenação se desenrolou em um plano
meramente material e sexual, como foi apontado acima; seja porque só
excepcionalmente ela se associou a efeitos que implicavam na aceitação de
alguns mestiços de brancos e negros como brancos. Isto ocorria apenas nos
casos em que a mistura racial era acompanhada, seguida ou reforçada por
duas condições, a primeira das quais determinante: a aquisição de status na
camada senhoreal; e a herança atenuada de caracteres físicos das "raças
negras" (BASTIDE&FERNANDES, 1959, p. 129-130).

Para Abdias do Nascimento (2017), a miscigenação era uma forma de genocídio da


população negra, uma vez que foi orientada pela ideologia do branqueamento. Munanga
(1999) define a mestiçagem como um “fenômeno universal” (p. 17) onda há “uma troca ou
um fluxo de genes de intensidade e duração variáveis entre populações mais ou menos
contrastadas biologicamente” (Ibid., op. cit.). Contudo, ele destaca, na forma como a
concebemos, ela irá se referir a “categorias cognitivas largamente herdadas da história da
colonização, apesar da nossa percepção da diferença situar-se no campo do visível” (Ibid.,
p.18). Ou seja, seu conteúdo é social e não biológico. No Brasil, a miscigenação está dita de
maneira muito controvérsia na nossa história de formação. Munanga (1999) nos traz o
exemplo de Daniel Leseallier, “um dos que propuseram a abolição gradual da escravidão”
(Ibid., p. 27) e que “recomendava a extinção do comércio de mulheres negras, visto que os
mulatos constituíam uma raça bastarda e viciosa, juntando aos vícios de sua origem negra a
insolência e a preguiça provocadas pelo orgulho de sua origem branca” (Ibid, op. cit.).
Segundo Kabengele Munanga (1999), levado ao extremo, essa perspectiva apontava para a
inferioridade dos mulatos frente a brancos e negros [pretos], levando em consideração que os
dois últimos seriam formados por sangue puro. A ideia é que “o africano era bôa coisa mas
228

que o seu produto é, podre” (AZEVEDO, 1955, p. 193). Nina Rodrigues também não era um
otimista da mestiçagem:

Para ele, o mestiço, traço de união entre raças, é quase sempre um


desequilibrado, um decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens
e sem a atitude intelectual dos ancestrais superiores. Apesar da fecundidade,
que por acaso possuía, o mestiço apresenta caso de hibridez moral
extraordinária: espírito às vezes fulgurante, às vezes frágil, irrequieto e
inconstante; seu vigor mental e sua capacidade de generalização e abstração
repousam sobre uma moralidade rudimentar herdada do automatismo
impulsivo das raças inferiores. Na luta sem trégua pela vida que envolve
todos os povos e na qual a seleção natural conserva os mais aptos
hereditariamente, o mestiço é um intruso. Surgiu de repente, sem caracteres
próprios, oscilando entre influxos opostos de legados discordes. Sua
instabilidade vem de sua tendência em regredir às matrizes originais
(Rodrigues, apud Munanga, 1999, p. 57-58).

Oliveira Vianna esboça uma explicação para o comportamento instável dos mulatos:

Essa tentativa do mestiço em ter uma posição específica na sociedade é


provisória e ilusória, porque o branco superior, de classe alta, o repele. E
como por sua vez ele foge dos negros e índios das classes inferiores, acaba
numa situação social indefinida e torna-se um desclassificado permanente na
sociedade colonial. "Daí a sua psicologia estranha e paradoxal. Essa
humilhação social, a que o meio submete, fere-o. Debaixo dessa ofensa
constante, a sua irritabilidade se aviva, a sua sensibilidade se apura; crescem-
lhe por igual a prevenção, a desconfiança, a animosidade, o rancor. Fica, a
princípio, irritável, melindroso, susceptível. Torna-se, depois, arrogante,
atrevido, insolente. Acaba agressivo, sarcástico, truculento, rebelde (Ibid., p.
65).

Por outro lado, teóricos do branqueamento tinham esperanças de que a miscigenação


evoluísse a raça. Skidmore (1976) mostra que o branqueamento pretendia eliminar não só
“negros” [pretos], mas também mestiços, os dois processos estavam atrelados: “em virtude
desse processo de redução étnica, é lógico esperar que no curso de mais um século os métis
tenham desaparecido do Brasil. Isso coincidirá com a extinção paralela da raça negra em
nosso meio” (p. 82-83). Para Munanga (1999), esses mestiços ocupavam uma posição
intermediária na sociedade e conquistavam progressivamente direitos. Veja que essa
afirmação é muito diferente daquela que faziam teóricos da democracia racial, segundo os
quais os mulatos eram exemplos perfeitos da inexistência de barreiras de cor no Brasil. A
proposição de Munanga (1999) é que esses mestiços-negros estavam em uma situação
duplamente opressora:

Visto dentro desse contexto colonial, a mestiçagem deveria ser enlarada


primeiramente não como um sinal de integração e de harmonia social, mas
229

sim como dupla opressão racial e sexual, o mulato como símbolo eloquente
da exploração sexual da mulher escravizada pelo senhor branco (p. 29).

Essa passagem é muito importante, porque lendo apressadamente os estudos das


relações raciais no Brasil e os clássicos da nossa formação social, chegamos à conclusão
simplória e distorcida de que mestiços-negros ocuparam indistintamente posições mais
vantajosas, quando na verdade, essa história é bem mais complexa. Nos contextos de
colonização francesa, a miscigenação configurava uma ameaça ao “sistema maniqueísta
branco/negro - mestre/escravo” (Ibid., op. cit) porque perturbaria os limites de cor,
reivindicados por essas ideologias de castas francesas. Nesse sentido,

[..] nas ilhas francesas, preparou-se gradativamente uma política de exclusão


e discriminação dos mulatos que pode ser ilustrada por um certo número de
projetos jurídicos, entre os quais o famoso código negro de 1685. [...] Ao
impor uma multa ao colono que vivia em concubinagem e ao confiscar-lhe a
mulher e os filhos nascidos de uma união ilegítima, o código esperava
desencorajar a exploração sexual das escravas. [...] Além dos entraves às
uniões inter-raciais, o legislador esforçava-se em manter os mulatos numa
situação de inferioridade. Por isso os manteve na escravidão, graças a
revivescência de uma antiga lei romana ("partus sequitur ventrem"), segundo
a qual os mulatos provindos de mãe escrava deviam normalmente guardar o
mesmo estatuto da mãe (Ibid., p. 31-32).

Como podemos verificar, a miscigenação não só estabelece uma contradição entre uma
valoração discursiva e um enquadramento social precarizado, como em diferentes partes do
mundo, estará submetida a tratativas diferentes. Isso é interessante porque, em algum
momento da pesquisa, pude ler um texto de uma filósofa muito popular atualmente, e com
grande projeção midiática, onde se dizia que o colorismo é um sistema mundial que garantiria
benefícios aos mestiços mais claros em todo o globo. Hitler (1922) no livro Mein Kampf
“além de decretar uma hierarquia das raças humanas, condena a mestiçagem das raças como
degenerescência e vergonha racial” (MUNANGA, 1999, p.45). Isso o levou a esterilizar
forçadamente, desde 1933, “todos os mestiços nascidos na Alemanha das relações entre
negros e brancos, em particular os mais de 900 atiradores senegaleses, magrebinos e
malgaches estabelecidos após a primeira guerra na margem esquerda do Reno” (Ibid., p. 45).
No Brasil, o mito dizia que a miscigenação dissolveria identidades raciais, pois o brasileiro
seria essencialmente um povo mestiço. Aqui, ela seria a solução do “problema negro”.

Mas, não é por isso - completa [Romero] - que o Brasil será uma nação de
"mulatos", porque na mestiçagem a seleção natural faz prevalecer, após
algumas gerações, o tipo racial mais numeroso, que no caso do Brasil é a
raça branca, graças à intensificação da imigração européia, ao fim do tráfico
negreiro, ao decréscimo da população negra após a abolição e ao extermínio
230

dos índios. Dentro de dois ou três séculos, a fusão entre as três raças será
talvez completa e o brasileiro típico, mestiço, bem caracterizado (Ibid.,
p.53).

Dessa forma, Munanga (1999) argumenta na mesma linha de Bastide e Fernandes


(1959), que não era a miscigenação, em si, a fonte de vaidade brasileira, mas seu caráter
intermediário, sua potencialidade em conduzir o Brasil a uma nação branca (p. 53). Quando,
por exemplo, Oliveira Viana compara a situação brasileira à americana, coloca-nos em
vantagem:

Não há perigo de que o problema negro venha a surgir no Brasil. Antes que
pudesse surgir seria logo resolvido pelo amor. A miscigenação roubou o
elemento negro de sua importância numérica, diluindo-o na população
branca. Aqui o mulato, a começar da segunda geração, quer ser branco, e o
homem branco (com rara exceção), acolhe-o, estima-o e aceita-o no seu
meio (MUNANGA, 1999, p. 54).

Diferente do que aprenderíamos com Gilberto Freyre, os filhos mulatos desses senhores
de engenho brancos, também eram escravizados. Luís Gama, por exemplo, tão conhecido
advogado abolicionista brasileiro, foi vendido pelo próprio pai branco. Ainda assim,
observando que existiam mais mulatos livres nos Estados Unidos e no Brasil, Munanga
(1999) fala sobre uma preocupação desses homens brancos em libertar seus filhos. Esse
contexto vai fazer com que Munanga (1999), citando Degler, conclua que o lugar do mulato
era figurativo da adesão da sociedade ao branqueamento, cuja consequência seria a “redução
do descontentamento entre as raças” (p. 86). Outra perspectiva, trazida pelo autor através de
Marvin Harris, toca na função econômica desse grupo: ficar entre os brancos e os
escravizados nos postos que faltavam brancos disponíveis (Ibid., p. 87). Monteiro-Ferreira
(2015) vai dizer que o papel do mestiço era controlar os colonizados em nome do colonizador
(p. 9, tradução nossa). Eles eram, para Skidmore (1976), uma terceira casta social já bem
reconhecida no Brasil no final da abolição (p. 70). Contrariando essa proposição dos mulatos
enquanto uma “casta”, Roger Bastide e Florestan Fernandes (1959) vão afirmar que, mesmo
que alguns mulatos tenham sido selecionados entre os escravizados para desempenhar funções
de homens livres dentro dos interesses da casa grande, isso não alterava as posições de negros
e mulatos enquanto grupos abaixo da hierarquia colonial:

A manumissão, sob qualquer das modalidades em que era praticada na


ordem social escravocrata, em geral não fazia senão transformar o escravo
em dependente social do senhor e de sua família (ou do "branco" da camada
dominante), seja diretamente como agregado, seja indiretamente como
camarada. E é visível que ela se realizava como um processo de
231

peneiramento social, cuja função consistia em selecionar, na população


escrava, personalidades aptas para o exercício de papéis sociais que não
poderiam ser preenchidos de outra maneira. [...] Do ponto de vista das
relações raciais, o statu quo permanecia inalterável (p. 123-124).

Em documento do III Congresso do MNU (1982), onde se apresenta a tese “sexismo e


racismo”, está reforçada a ideia de que, embora alguns mestiços tenham ocupado posições
próximas à casa grande, o fez de maneira subordinada, sem ferir a hierarquia racial: “os
mestiços, como posições intermediárias, são apresentados como provas de que o sistema
social é aberto, mesmo que atuem em conformidades com os interesses da raça e da classe que
majoritariamente detém o poder” (MNU, 1988, p. 31). Embora os avanços políticos dos
movimentos negros desarticulem o mito da democracia racial, não podemos pensar que esse é
um assunto encerrado, inclusive para a ciência. Há 20 anos era publicado o estudo “Retrato
Molecular do Brasil” que pode ser interpretado, segundo Santos e Maio (2008), “como uma
proposta de sociabilidade mediada pela genômica” (p. 110). A ideia seria que,
conscientizando os brasileiros autodeclarados brancos do seu

[...] DNA mitocondrial ameríndio e africano, valorizariam mais a


diversidade genética de seu próprio país e construiriam uma sociedade mais
justa e harmônica, os geneticistas sugerem parâmetros de identidade e meios
de transformação das relações sociais mediados pela biologia, mais
especificamente pela genômica (Ibid. op. cit.).

Essa proposta se insere diretamente naquilo que pensou Gilroy (2007): a nação tem
usado de dois artifícios para resolver essa “dupla consciência do negro” do qual falava Du
Bois, o “nacionalismo cultural” ou a própria miscigenação (p. 34). Lindiara Alves (2019), a
pesquisadora que escreveu em sua monografia sobre a identidade racial de jovens
autodeclaradas pardas em Salvador, levanta a seguinte questão:

Perguntamo-nos porque não propor que ao invés de tentarmos encaixar as


pessoas pardas/mestiças em um dos lados do binarismo branco/preto, não
criemos um lugar de existência e resistência, com suas vivências peculiares,
suas disparidades, sofrimentos e privilégios a partir de seu lugar de fala e
expressões de sentidos e sentimentos? [...] Como criar um sentimento de
pertença a um grupo se a pessoa não tem as mesmas vivências e sentidos
[comparado com os pretos]? Como enquadrar essa identidade em um
binarismo? Como reduzir essa pessoa miscigenada com suas vivências e
experiências peculiares a um subgrupo dentro de outra raça/etnia, sem levar
em conta seu pertencimento racial e a construção de sua identidade? (p. 35).

Notemos que é um texto bem atual. Essas questões podem ser confusas, mas as trouxemos
como um diagnóstico do problema: pessoas negras-mestiças estão sendo pensadas,
atualmente, por uma perspectiva apressada e distorcida do colorismo. Como viemos
232

discutindo, na medida em que privilégio se opõe à racialização, a autodeclaração negra desses


indivíduos mais claros, é colocada em questão.

6.4 A CONSTITUIÇÃO DA POPULAÇAO NEGRA PELOS MOVIMENTOS


NEGROS

Telles (2003) e Pereira (2010) falam que, pelo menos desde os anos 30 com a Frente
Negra Brasileira, os movimentos negros se mobilizam para fazer do “negro” uma identidade
que articulasse um conjunto grande de categoriais raciais posicionadas entre o preto e o
branco. No entanto, é na década de 70, e particularmente com surgimento do Movimento
Negro Unificado (1978), que a “raça” será usada “como estratégia para lutar contra a
democracia racial” (PEREIRA, 2010, p. 101). O cartaz a seguir é retirado da obra
“Consciência Negra em Cartaz” (2001) de Nelson da Silva. Nessa obra, o autor dedica um
capítulo de ensaio visual com cartazes da década de 80 que articulavam campanhas educativas
dos movimentos negros naquele momento. A campa a seguir é um chamado para que pretos e
mestiços não neguem seu pertencimento racial nas pesquisas censitárias nacionais.

Figura 45 – Não deixe sua cor passar em branco: responda com bom senso (censo)

Fonte: SILVA, N. F. I. da. Consciência negra em cartaz. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
2001.
233

Um documento de “formação dos quadros” do MNU, disponível no livro organizado


pelo movimento em 1988, em razão dos dez anos da organização, fala sobre a necessidade do
negro brasileiro “recuperar a memória” (p. 52), considerando que:

[...] em nosso país, a elite dominante sempre desenvolveu esforços para


evitar ou impedir que o negro brasileiro, após a chamada Abolição da
Escravatura (1888), pudesse se identificar e ativamente assumir suas raízes
étnicas, históricas e culturais, com esta operação tentando seccioná-lo do seu
tronco familiar africano (MNU, 1988, p. 52).

Essa memória deveria ser parte fundamental na construção de “destinos e no futuro da


Nação negro-africana, perseverando a nossa condição de edificadores deste país e de cidadãos
genuínos do Brasil” (Ibid., p. 53). Ainda nesse livro, no documento do MNU para o III
Congresso Nacional (1982), consta que, foi a partir dos estudos de Nelson do Vale Silva e
Carlos Hasenbalg que pretos e pardos passaram a constituir, pela soma, uma única categoria:
“a designação ‘negros’, ‘pardos’, e ‘mulatos’ refere-se ao tratamento dispensado ao item cor,
pelo IBGE. Para nós do Movimento Negro Unificado, os negros, e seus descendentes
constituem em uma só raça e um único povo” (Ibid., p. 24). Antes mesmo do surgimento do
MNU, Guimarães (2002) mostra que o Teatro Experimental do Negro (TEN) já tinha como
orientação política incluir mulatos e pardos como negros, o que tornava essa população
maioria numérica no país ou, como diria Guerreiro Ramos (1995), o próprio povo brasileiro.
Dentro da pesquisa sobre os cabelos crespos e salões étnicos de Belo Horizonte, Nilma Lino
Gomes (2006) levanta uma questão que poderia ser, nos dias de hoje, novamente posta:

[...] o fato de mulheres consideradas socialmente ‘morenas’ aparecerem,


hoje, em revistas étnicas ou em propagandas de produtos étnicos,
identificando-se e sendo identificadas como “negras” significa alguma
mudança no campo das relações raciais. Não tem sido uma luta do
movimento negro a inclusão de pretos e pardos na categoria negro? (p. 270)

6.5 TORNAR-SE NEGRO

Segundo Milton Santos, ser negro no Brasil é ser alvo de “um olhar vesgo e ambíguo”
(SANTOS, 2002, apud RIBEIRO, 2012, p. 159). É que para o autor, há uma contradição entre
“consciência” e “realidade social do corpo” que aparecem através de uma cidadania
fragilizada (Ibid., p. 159). Esse espaço entre o pensamento e as desigualdades materiais está
preenchido pela ideologia do branqueamento. Roger Bastide e Florestan Fernandes (1959)
falam sobre o desejo de “passar por branco” como algo espontâneo dentro do “ajustamento
inter-racial” da ordem escravocrata-senhorial (p. 126-127). Pretos e pardos nutririam esse
234

desejo, e por isso, o tornar-se negro é um processo que está para ambos. Começamos essa
sessão com a citação que Domingues (2002) faz, da fala de um militante negro no jornal “O
Bandeirante”. A sua orientação para a população negra brasileira é de que:

O que devemos fazer é [...] o seguinte:


Não pretendemos perpetuar a nossa raça, mas, sim, infiltramo-nos no seio da
raça privilegiada — a branca, pois, repetimos, não somos africanos, mas
puramente brasileiros (O Bandeirante, São Paulo, 9/1918:3 apud
DOMINGUES, 2002, p. 564).

Essa declaração reflete a ideologia racial brasileira que “leva os brasileiros a acreditar que as
distinções raciais não são importantes e a interpretar experiências de discriminação como
sendo resultantes das diferenças entre as classes sociais e não decorrentes da raça” (TELLES,
2003, p. 305). O pardo ou o mulato operariam nessa sociedade como “causa e consequência
de uma ideologia de miscigenação e não o resultado automático do processo biológico real da
mistura de raças” (Ibid., op. cit.). É que, como o autor vai nos mostrar, a miscigenação não
cria, por si só, seres de raças misturas. Nos Estados Unidos, por exemplo, mestiços são
simplesmente negros. Já no Brasil, eles seriam “valorizados no imaginário nacional como
sendo o brasileiro típico, embora sejam também, frequentemente marginalizados e, na
realidade, estejam mais próximos da condição dos negros do que dos brancos na estrutura de
classes do Brasil” (Ibid., op. cit.). Na medida em que essa compreensão da proximidade dos
pardos com os “negros” (pretos) vai se ampliando, verificamos o aumento da população
autodeclarada negra no país. Isso, segundo Adriana Beringuy, técnica do IBGE, em texto
jornalístico ao El País (ROSSE, 2015), não teria relação com o aumento da natalidade.
Segunda ela, a ênfase estaria sobre as autodeclarações. O texto em questão traz ainda a
opinião de Katia Regis, “coordenadora da primeira licenciatura do Brasil de estudos africanos
e afro-brasileiros” (Ibid.), segundo a qual esse aumento seria o reflexo da luta dos
movimentos negros e do acesso à educação. Essa mudança na percepção de si, o tornar-se
negro, não é algo estranho aos processos de construção identitária. Hall (2005) irá nos falar
que o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são
unificadas ao redor de um “eu” coerente:

Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a


morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos
ou uma confortadora narrativa do eu” (veja Hall, 1990). A identidade
plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés
disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural
se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e
235

cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos
identificar – ao menos temporariamente (p. 13).

O que acontece, portanto, é que progressivamente, as pessoas vão abandonando as mais


de 135 ou 143 cores que já falamos, em função daquelas categorias do IBGE, e das que são
reivindicadas pelos movimentos negros. Sansone (2003) observa esse fenômeno na Bahia,
particularmente entre os mais jovens, associando-o ao “maior acesso à televisão e à educação
de massa” (p. 83), como também ao “orgulho negro” (Ibid., p. 84). Os termos abaixo foram
retirados do apêndice da obra de Gates Júnior (2011). Eles, por sua vez, foram extraídos do
artigo de Cristina Grillo (1995), publicado na Folha de S. Paulo.

Figura 46 – Categorias raciais brasileiras (1)

Fonte: Gates Junior, 2011.


236

Figura 47 – Categorias raciais brasileiras (2)

Fonte: Gates Junior, 2011.

Figura 48 – Categorias raciais brasileiras (3)

Fonte: Gates Junior, 2011.

Kabengele Munanga (1999) chama esse conjunto de categorias como “magia


cromática” (p. 121) que não-brancos usariam para “esquecer e/ou substituir a concreta
realidade [...] na qual o dominado se refugia para aproximar-se simbolicamente, o mais
possível, dos símbolos criados pelo dominador" (Ibid., op. cit). Para Cuti (2010), esses termos
são mecanismos psicológicos para atenuar danos sofridos pelo racismo. “A vergonha da
237

negritude” (CUTI, 2010, p. 84) teria feito com que o movimento negro investisse em politicas
para positivar essa identidade negra, cuja criação da Fundação Palmares (2000) é um
exemplo. Rayza Nicácio (2020) conta no vídeo “Quando me reconheci como negra” sua
experiência no processo de auto identificação:

Eu lembro que na maior parte do tempo na minha vida, eu tentei ser uma
pessoa totalmente diferente de mim, e me inspirava em pessoas totalmente
opostas de mim. Tive muitos conflitos em relação ao meu cabelo, ao meu
tipo de corpo, não a cor da minha pele. Pra eu chegar aos conflitos da cor da
minha pele demorou um pouquinho, porque ninguém nunca falava sobre isso
comigo, sabe? A cor da minha pele era “aceita” e não era questionada. (...)
Ninguém nunca tinha conversado comigo sobre eu ser ou não negra, eu só
sabia que eu não era branca e que meu cabelo era crespo. Demorou muito
gente, para eu refletir sobre isso e muito mais ainda pra eu ter convicção
sobre o que falar e me assumir sim como uma mulher negra de pele clara.

Ao tratar sobre manejos clínicos de espaços psicoterápicos, Tavares (2019) reflete exatamente
sobre os problemas que envolvem esses “pardos”. Questões que se relacionam ao relato de
Nicácio (2020), na medida em que tocam no lugar da dúvida e da dificuldade em
compreender-se:

[...] especialmente entre os negros de pele clara, aquele que busca o


atendimento pode não se reconhecer como negro, ou não relacionar o
racismo às suas crenças disfuncionais, ou ainda não confiar na capacidade do
terapeuta de compreender suas questões e manejá-las caso este seja negro (p.
6).

Eneida Reis (2002), ao escrever sobre o lugar de identidade dos mulatos, retrata a
ambiguidade dessa posição:

De alguma forma, o lugar do mulato quase sempre é o do “não pode”.


Diferente do negro, que não vive tal ambiguidade, é igual a este, muitas
vezes, visto como pobre, burro, sujo e não digno de confiança. Isto, em vez
de eliminar a mencionada ambiguidade, torna-a maior (p. 35).

Por outro lado, a vlogueira Sá Ollebar em seu vídeo “Negro ou Pardo? Identidade
Racial (Caio Jout Jout)” cita Ângela Davis e Malaak Shabazz para afirmar a importância de
trilhar esse caminho na afirmação da identidade. Segundo Ollebar, Malaak teria visitado
recentemente o Brasil e disse que “enquanto não conseguirmos identificarmos nossa
negritude, não saberemos quem é o real opressor” (CRUZ&MARTINS, 2018, p. 17). Ricardo
Ferreira (2000) elabora essa trajetória de afirmação identitária através de quatro estágios.
Segundo o autor, no primeiro momento há uma “internalização inconsciente de estereótipos
negativos sobre ser negro” (p. 71) e, portanto, a negação desse pertencimento:
238

Na visão de Helms (1993b), para a pessoa deste estágio permanecer com um


baixo grau de angústia, ela precisa manter a ficção de não terem as questões
etno-raciais nenhuma relação com sua maneira de viver, mas de ser a
mobilidade social determinada, fundamentalmente, pelo esforço e pelas
habilidades pessoais (Ibid., op. cit.).

Por isso, é perfeitamente compreensível que experiências passadas sejam descritas


inicialmente como, por exemplo, “preconceito de classe”, até serem reelaboradas como
racismo. Essa reelaboração aconteceria no segundo estágio, o estágio do impacto, quando o
indivíduo toma gradualmente “consciência da desvalorização à qual está submetido,
[podendo] iniciar um movimento na direção de uma transformação” (Ibid., p. 109). Sobre
isso, acredito pessoalmente que, embora o segundo estágio seja um momento particularmente
importante, o impacto não se encerra nessa fase. Conversando com militantes negros mais
velhos, percebo como “pequenos impactos” aparecem por quase toda a vida. Acontece sempre
de perceberem determinados comportamentos ou padrões de pensamento assimilados à lógica
branca. Durante “o impacto” acontece uma desintegração da noção de identidade que o
indivíduo sustentava anteriormente, é uma experiência de choque:

[...] como sugere Helms (1993c), não há um conjunto de experiências


comuns, determinantes do momento de mudança, descrito aqui no estágio de
impacto. São situações absolutamente idiossincráticas que geralmente
determinam uma sensação de despedaçamento da identidade. Na maioria das
vezes, a situação de impacto não é determinada por um único fato, mas sim,
pelo efeito cumulativo de uma sucessão de pequenos episódios vividos pela
pessoa, levando-a a tomar consciência da rejeição progressivamente.
Deparando-se com a realidade de não poder ser verdadeiramente branco, o
indivíduo é forçado a focalizar-se em aspectos de sua identidade que o inclui
no grupo discriminado, o dos afro-descendentes (Ibid., p. 77).

Essa é uma fase descrita pelo autor como dolorosa e aflitiva, porque o mundo simbólico
desse indivíduo negro, crente no discurso da democracia racial, estaria sendo desarticulado.

As situações de impacto, inicialmente, provocam reações intensas e de muita


ansiedade. A pessoa sente-se confusa, assustada, com sensação de anomia,
sendo comum a queda em um quadro depressivo. É uma experiência aflitiva,
pois seus valores e visão de mundo não permitem mais um posicionar-se na
realidade com segurança (Ibid., p. 79).

Para sair dessa situação, ele precisa reelaborar essas experiências a partir de outro
referencial que lhe ofereça acolhimento. Nesse segundo estágio ainda não há, segundo
Ricardo Ferreira (2001), uma “articulação da identidade com valores negros”, mas uma
decisão: tornar-se. Isso distingue radicalmente negros de pele clara de brancos que, em geral,
239

pulam de uma identificação enquanto brancos, direto para uma afirmação mestiça/negra. Do
ponto de largada, onde a pessoa decide por tornar-se, até o ponto de chegada, onde ela
encontra uma condição confortável da sua autodeclaração, o caminho é pedregoso.
A Consciência Negra informa que, “ao procurar fugir de si mesmos e imitar o branco,
os negros estão insultando a inteligência de quem os criou negros” (SILVA, N., 2001, p. 35).
Nesse sentido, o movimento teria três prioridades:

a) a responsabilidade do negro que consistia em não subestimar o legado


deixado por contribuições passadas de ativistas negros, nítida definição dos
objetivos políticos e a compreensão do processo de cooptação promovido
pelo regime do apartheid; b) a união teria, necessariamente, de corresponder
ao desenvolvimento do espírito solidário entre a população negra; c) a
estratégia deveria ressuscitar a verdadeira política de libertação e orientar o
povo a apoiar seus líderes na prisão ou no exílio e unificar uma luta
traduzida em movimento popular e em combate ao tribalismo (Ibid., p. 35-
36).

A integração dos “pardos” como parte da população negra, atenderia especificamente a


segunda dessas prioridades. O Movimento de Consciência Negra inaugura assim, uma forma
de celebrar a negritude, essencial para que esses indivíduos participem de uma “luta
libertadora que libera a mente e o coração” (hooks, 2014, p. 8):

Em uma cultura de dominação e antiintimidade, devemos lutar diariamente


por permanecer em contato com nós mesmos e com os nossos corpos, uns
com os outros. Especialmente as mulheres negras e os homens negros, já que
são nossos corpos os que freqüentemente são desmerecidos, menosprezados,
humilhados e mutilados em uma ideologia que aliena (Ibid., op. cit.).

O trecho que segue é da “Carta de uma ex-mulata [Ângela Figueiredo] a Judith Butler”
(2005). Ele conclui o nosso pensamento: “Tudo isso demonstra o quão complexa é a realidade
e que a atribuição de um único significado à identificação racial na construção da
personalidade precisa ser matizada” (p. 173), ainda que “a identificação racial [tenha] um
peso maior para aqueles que reconstroem suas experiências destacando a cor/raça em suas
trajetórias” (Ibid., op. cit.). Nossa pesquisa se insere num conjunto amplo de estudos que
tentam compreender os dilemas das experiências negras que têm, como nos mostra Ângela
Figueiredo (2005), mais de um século (Ibid., op. cit.). Du Bois (1999, p. 54 apud
FIGUEIREDO, 2005), por exemplo, elaborou isso em termos de uma dupla consciência, “[...]
duas almas, dois pensamentos, dois esforços irreconciliados; dois ideais que se combatem em
um corpo escuro cuja força obstinada unicamente impede que se destroce” (Ibid., op. cit.).
Traduzindo para nosso contexto, esse negro-pardo por um lado é negro, e por outro é mestiço.
240

Sua opção é, frequentemente, não tentar equilibrar as duas formas, mas destruir uma delas:
abrir mão do ser negro, envolvido pela ideologia do branqueamento; ou de outro modo, abrir
mão do ser mestiço, cujo ditado popular que bem representa essa negativa é: “pardo é cor de
papel”.

6.6 NEGROS DE PELE CLARA

Como temos mostrado, a inclusão dos pardos ou dos negros de pele clara no que
entendemos ser a população negra brasileira, se deu a partir da reivindicação dos próprios
movimentos negros do país, com inspiração nos movimentos negros americanos
(MUNANGA, 1999). Usando a história sobre o registro de nascimento da sua filha, Sueli
Carneiro (2016) escreve o texto “Negros de pele clara”. Ele me serviu como inspiração
pessoal, há alguns anos atrás, e volta com peso nesse trabalho. É fantástica a forma como
Carneiro consegue antecipar questões que só vão se agudizar algum tempo depois. Resistindo
a tentação de copiá-lo na íntegra aqui, apresento, em suas palavras, a conclusão que faz em
defesa da autodeclaração negra por parte desses indivíduos claros. Assumir a posição de
“negros”, seria uma forma de romper com o discurso fundacional brasileiro, o mito da
democracia racial, e compor trincheiras de luta contra o racismo:

A fuga da negritude tem sido a medida da consciência de sua rejeição social


e o desembarque dela sempre foi incentivado e visto com bons olhos pelo
conjunto da sociedade. Cada negro claro ou escuro que celebra
sua mestiçagem ou suposta morenidade contra a sua identidade negra tem
aceitação garantida. O mesmo ocorre com aquele que afirma que o problema
é somente de classe e não de raça. Esses são os discursos politicamente
corretos de nossa sociedade. São os discursos que o branco brasileiro nos
ensinou, gosta de ouvir e que o negro que tem juízo obedece e repete. Mas as
coisas estão mudando… (CARNEIRO, 2016)

Na medida em que me aproximei da perspectiva da contramestiçagem e da identidade


afroindígena, refleti como também os negros de pele clara elaboram um lugar que retira o
controle branco. Analisando textos no site Blogueiras Negras, Weschenfelder e Silva (2018)
vão mostrar como as mulheres negras buscam se afastar completamente de qualquer
perspectiva de mestiçagem. A valorização da identidade negra acontece pela negação da
“pardização” que, desse ponto de vista, reafirmaria um lugar de fronteira
(WESCHENFELDER&SILVA, 2018, p. 21). Retirar o controle branco do enunciado de si é
ser amefricano (GONZALES, 1988). Interpretando isso através das teorias de identidades
voltadas para a diáspora, Gilroy (2007) irá apresenta-las como uma “tendência não-nacional”
241

(p. 157) que, em função de “relatos anti-essencialistas de formação de identidade como um


processo” (Ibid., op. cit.), oferecem uma alternativa tanto à “natureza” como destino
inevitável e ontológico, quanto à “cultura” homogênea da nação.
Goldman (2015) expõe “a ideia de ‘linha cruzada’ presente em praticamente todas as
religiões de matriz africana no Brasil” (p. 653) que permitiria “pensar um espaço de
agenciamento de diferenças enquanto diferenças, sem a necessidade de pressupor nenhum
tipo de síntese ou fusão” (Ibid., op. cit.). A defesa é de que as diferenças as são por elas
mesmas, e “nada têm a ver com uma lógica da assimilação, mas sim com a da organização de
forças, que envolve a modulação analógica (contra a escolha digital) dos fluxos e de seus
cortes, bem como o estabelecimento de conexões e disjunções” (Ibid., op. cit.). Isso quer dizer
que, ao declarem-se negros “de pele clara”, esses indivíduos enunciam um pertencimento
racializado informado pela mestiçagem. São justamente os traços físicos visíveis dessa
miscigenação que os racializa, não o contrário. Eles não se sentem meio brancos e meio
negros, sentem-se negros. O relacionamento com a família branca, ou a tonalidade de pele, o
cabelo mais ou menos liso, localizam-nos socialmente em uma condição particular, com
trajetórias que não correspondem exatamente ao estereótipo do “ser negro”. Indicam uma
racialização que se dá mediante uma configuração própria de lugar. Traçamos um paralelo
com o que Goldman (2015) discorre sobre a vingança tupinambá, a partir da “cura de um
território doente de sangue” (p. 656). Essa cura reclama “‘retomadas’ das terras, da cultura, da
vida”, entendida aqui

[...] no sentido proposto por Isabelle Stengers para a noção de “reclaim”: não
simplesmente lamentar o que se perdeu na nostalgia de um retorno a um
tempo passado, mas sim recuperar e conquistar ao mesmo tempo, “tornar-se
capaz de habitar de novo as zonas de experiência devastadas” (Pignarre &
Stengers 2005:185 apud Goldman, 2015, p. 656).

Percebemos que essa elaboração negra de si se dá de forma autônoma e criativa,


justamente nessa “zona de experiência devastada” por muitos anos de genocídio e mito de
democracia racial. A estética é um dos campos onde essas tentativas florescem. Chica, nossa
entrevistada, assim como eu, tem os cabelos parcialmente descoloridos com aspectos do loiro.
Quando conversei com uma pesquisadora importante do campo dos estudos étnico-raciais, ela
me disse que eu deveria pensar sobre isso, percebendo que muitas mulheres negras de
Salvador possuem os cabelos descoloridos: isso não seria – me pergunta – uma forma de
branqueamento? Não senti que fosse o caso, mas resolvi pensar melhor. Conversei sobre isso
com um amigo negro que está fora desse circuito acadêmico. Ele não concordava que a
242

descoloração dos cabelos fosse uma forma branquear, me lembrou de que muitos homens
negros, retintos inclusive, como ele, nas comunidades periféricas, descolorem os cabelos “no
estilo loiro pivete”. O “loiro pivete” é uma tonalidade muito clara do amarelo, quase branco,
que os jovens negros usam sem a menor intenção de se parecerem brancos, usam como forma
de brincar com as possibilidades de ser. Eu lembro que, quando era mais nova, antes do
debate sobre a valorização estética negra alcançar essa temperatura, pensava em descolorir
meus cabelos, e isso era motivo de muita zombaria. “Loiro não combina com pele morena”.
Depois de passar pela transição capilar e de ganhar confiança na presença dos meus cabelos
crespos naturais na minha organização estética, me permiti descolori-los. Era uma forma de
exercer autonomia sobre minha própria imagem, e autonomia significa, dentre outras coisas,
transformá-la a gosto próprio. Essa é uma experiência estética narrada por Nilma Lino Gomes
(2006) nos salões étnicos de Belo Horizonte: “o uso de diversas tonalidades de cabelo, a
feitura dos mais variados penteados, inclusive aqueles que tradicionalmente não são
‘permitidos’ socialmente às pessoas negras, são reivindicados e experimentados” (p. 148).
Essa narrativa que desenvolvo em torno dos cabelos descoloridos de Chica, ou dos meus
próprios, servem como ilustração de práticas que buscam “habitar de novo as zonas de
experiências devastadas”, compondo-as com a diversidade de cores e formas.
Na tese “Entre o ‘encardido’, o ‘branco’ e o ‘branquíssimo’: Raça, hierarquia e poder na
construção da branquitude paulistana” de Lia Schucman (2012), há uma discussão sobre as
hierarquias presentes entre a branquitude paulista, “a aparência física ligada a variação entre
cor da pele, cor das mucosas e traços físicos, que incluem cabelo, nariz e boca, apareceu nas
falas dos entrevistados e em conversas informais diretamente associada a uma ideia de origem
e ancestralidade” (p. 84). Esse trecho, dentre outras coisas, nos informa como existe uma
rígida observância das fronteiras da branquitude, o que nos levanta uma questão importante:
se nem mesmo os brancos com traços físicos de mestiçagem ou de lugares de origem como o
nordeste, são brancos “legítimos”, como supor que negros de pele clara serão incluídos nesse
espaço restrito?

6.7 IDENTIDADE E CAPITALISMO GLOBAL

A globalização é, para Milton Santos (2003), meio técnico-científico-informacional da


atual fase de expansão do sistema capitalista. Adotando essa definição, de um instrumento do
capital, analisamos os efeitos da globalização sobre ou a partir das políticas de identidade.
Gilroy (2007) nos fala que
243

A identidade tem sido mesmo conduzida para dentro das entranhas do


comércio pós-moderno, onde o objetivo do marketing planetário promove
não apenas a direcionamento de objetos e serviços, as identidades de
consumidores específicos, como também a ideia de que absolutamente
qualquer produto pode ser saturado de identidade. Qualquer mercadoria é
passível de ser "rotulada" em moldes que instigam uma identificação e
tentam conduzir a identidade (p. 123-124).

A “identidade”, para o autor, seria um meio de ancorar ansiedades num contexto de


desindustrialização e de “padrões em larga escala de reconstrução planetária” (Ibid., p. 113)
chamada de globalização. No momento em que a identidade se vende96, como qualquer outro
produto, se tornou

[...] elemento étnico no vocabulário distintivo empregado para expressar os


dilemas geopolíticos da Era Moderna tardia. Neste sentido, a identidade
deixa de ser um processo continuo de construção do eu e de interação social.
Em vez disso, torna-se uma coisa a ser possuída e ostentada (Ibid., p. 129-
130).

A questão para Gilroy (2007) é que “não sendo mais um locus para a afirmação da
subjetividade ou da autonomia, a identidade se transforma [em um muro]” (p. 130). Não são
os sujeitos que escolheram fazer isso consigo mesmo, mas o capital que, simbolizando o
próprio racismo através da globalização (na invertida de um racismo simbólico), compõe a
identidade-mercadoria pela ignição: transforma-a em uma arma. No nosso entendimento, essa
perspectiva é hiper-dilatada dentro dos discursos que opõem negros-pretos a negros-pardos.

Quando as identidades nacionais e étnicas são representadas e projetadas


como puras, o contato com a diferença as ameaça com a diluição, e
compromete suas purezas sobrevalorizadas com a possibilidade crônica de
contaminação. O cruzamento como mistura e movimento deve ser assim
resistido a todo custo (Ibid., p. 132).

O problema nas deslegitimações que envolvem os negros de pele clara em meios negros
se insere exatamente nesse problema:

Pessoas diferentes são certamente odiadas e temidas, mas a antipatia


oportuna contra elas não é nada se comparada com os ódios voltados contra
a ameaça maior representada por aquele que é meio-diferente e em parte
familiar. Ter-se misturado é ter sido partidário de uma grande traição.

96 “Talvez um dos exemplos mais brutais da venda do valor de certas identidades, sejam àqueles artifícios
estéticos utilizados para branquear a pele. A lista que segue é de países que consumiriam essa ideia e seus
respectivos produtos: Mexico, Pakistan, Saudi Arabia, Jamaica, the Philippines, Japan, India, Tanzania, Senegal,
Nigeria, Uganda, Kenya, Ghana, and less so, but also USA” (Charles 2003; Chisholm apud HUNTER, 2007, p.
12, tradução nossa).
244

Qualquer traço desconcertante de hibridez deve ser amputado as zonas


ordenadas e desbranqueadas de uma cultura pura impossível (Ibid., op. cit.).

Essa obra é útil, sobretudo, para pensarmos que os conflitos da identidade, entre o que
se é e o que se espera ser, não são novos na diáspora negra:

Imagine-se um cenário em que sementes similares - mas não exatamente


idênticas - se enraizam em diferentes lugares. Plantas da mesma espécie
raramente são absolutamente indistinguíveis. A natureza nem sempre produz
clones intercambiáveis. Solos, nutrientes, predadores, pragas e polinização
variam juntamente com o clima imprevisível. As estações mudam. Também
mudam os climas, que podem ser definidos com base em diversas escalas:
micro, macro, bem como mezzo (Ibid., p. 154).

Nesse sentido, a identidade seria “um recurso cujo poder depende do contexto nacional
ou regional” (SANSONE, 2003, p. 12), de forma que “hoje em dia, as identidades negra,
muçulmana e indígena já não podem ser percebidas independentemente da globalização”
(Ibid., p. 15). Vamos lembrar que, fatores internacionais – além das lutas histórias dos
movimentos negros brasileiros – foram decisivos para a mudança da política brasileira no
discurso e prática sobre as relações raciais. Por exemplo, pelo menos até a década de 50, a
intelectualidade brasileira se envaidecia do país ter resolvido “pelo amor” o problema racial,
“comparativamente melhor” do que os Estados Unidos, cuja via foi o apartheid. Porém, com
a abolição do sistema de segregação racial e a criação de leis de inclusão da população negra
na década de 70 nos Estados Unidos, esse discurso não tinha mais fundamento. Até porque,
no mesmo período, crescem os estudos no Brasil que irão denunciar o racismo na constituição
da nossa formação nacional. Além disso, o contexto também é marcado pela descolonização
de países asiáticos e africanos, e por isso, manter um discurso valorativo do branqueamento e
de omissão ao racismo, comprometeria as relações internacionais do Brasil com esses países
que já se impunham como nação (SKIDMORE, 1976).
Apesar disso, alguns autores conseguem visualizar um espaço aproveitado pelas
minorias dentro da globalização, para produzir enfrentamento. Sansone (2003), por exemplo,
mostra que dadas as trocas entre culturas locais, permitidas pelos avanços tecnológicos, “o
horizonte em que são construídas as estratégias de sobrevivência também se ampliou e se
internacionalizou” (p. 28-29). Além disso, como demonstra Margareth Hunter (2007), “a
globalização pode acabar sendo parte daquele lento e desigual, mas continuado,
descentramento do Ocidente” (tradução nossa, p. 97). É que, como disse Hall (2003), a
globalização é em si mesma contraditória: amplia um processo de homogeneização dada pela
“‘McDonald-ização’ ou ‘Nike-zação’ de tudo” (p. 45) e por outro lado, “vagarosa e
245

sutilmente” (Ibid., op. cit.) descentraliza “os modelos ocidentais, levando a uma disseminação
da diferença cultural em todo o globo” (Ibid., op. cit.). O Atlântico Negro, definido como um
espaço construído pela diáspora, “base desterritorializada, multíplice e antinacional para a
afinidade ou «identidade de paixões» entre diversas populações negras” (GILROY, 2007,
apud ALMEIDA, 2012, p. 34) teria se expandido, para o autor, pela própria globalização.

6.8 COLORISMO

A obra “Redescutindo a mestiçagem no Brasil” de Kabengele Munanga (1999) é onde,


possivelmente, o termo “colorismo” aparece pela primeira vez no Brasil. Nesse momento, o
autor elabora a ideia como uma “ideologia colorista”:

A ideologia colorista construída na segunda metade do século XVIII em


relação aos não brancos deu origem a um "subracismo" das pessoas de cor,
que deveria ser denominado de "racismo derivado", na medida em que se
trata de uma interiorização e de um reflexo do racismo original, o racismo
branco. É toda uma cascata de menosprezo que se instalou, indo do mais
claro ao mais sombrio, descendo toda a graduação das nuanças que
acabamos de descrever (p. 37).

Essa “traição do mestiço” que quer se diferenciar do “negro” para aproximar-se do


branco seria, para o autor, consequência da colonização que “deixou em aluvião uma filosofia
das etnias que o tempo, com todos os transtornos, ainda não chegou a corroer” (Ibid., op. cit.).
Depois disso, o colorismo aparentemente não foi uma questão que mobilizasse tanto o
interesse da academia ou mesmo do campo político. Ele volta para o debate acadêmico com o
artigo “Os perigos dos Negros Brancos: cultura mulata, classe e beleza eugênica no pós-
emancipação (EUA, 1900-1920)” de Giovana Nascimento (2015):

Esse processo foi diretamente influenciado pelas políticas eugênicas e pelos


valores da supremacia branca, que estimularam o colorismo negro, um
sistema de hierarquização dos sujeitos com base na cor mais clara ou escura
(Du Bois, 1903). Para entender tal sistema, cabe ressaltar que durante os
anos da Reconstrução, muitos mulatos tornaram-se figuras dotadas de
prestígio e influência política no país. Conhecidos como “novos negros”, tais
personagens integravam um segmento que se autoproclamava “aristocracia
da cor”. Uma sociedade de classes à parte nos Estados Unidos, uma
“estrutura social paralela” (Kronus, 1971, p.4) a qual Du Bois nomeou como
o “décimo talentoso” da raça negra (Du Bois, 1903 apud Nascimento, 2015,
p. 157).

Nesse texto, sua intenção era discutir a ascensão econômica dos mulatos na comunidade
negra americana. O trabalho é lançado em 2015 e a partir do ano seguinte, 2016, o colorismo
246

começa a ser amplamente discutido na Internet. Retomamos aqui o trabalho de psicologia


social daquela jovem pesquisadora, Lindiara Alves (2019), que também vai usar do colorismo
para pensar a identidade parda das suas entrevistadas: “o conceito de colorismo considera que
quanto mais pigmentada a cor de pele de uma pessoa mais ela será identificada enquanto
negra e consequentemente mais racismo sofrerá” (p. 8).
O conceito, como já dissemos, surge na década de 80 com Alice Walker e abre um vasto
campo de pesquisas nos Estados Unidos. Num texto disponível em um site americano,
encontrei uma frase que representaria bem essa situação por lá: “If you're black, get back; if
you're brown, stick around; If you're light, you're alright”97 (HILL, 2010). Ela nos faz lembrar
imediatamente do seu correlato no Brasil: brancas para casar, mulatas para fornicar e pretas
para trabalhar. Sobre essas hierarquias, Lia Shucman (2012) fala algo muito semelhante ao
que concernem as escalas que existiriam no interior da branquitude paulista:

Pensando ainda sobre o fenótipo como fronteira da branquitude, as falas


citadas neste tópico demonstram dois aspectos muito importantes para o
entendimento da ideologia do branqueamento e do discurso sobre a
mestiçagem no Brasil. Sobre a primeira, percebemos que como qualquer
ideologia, ela afeta a todos, brancos, negros, mulheres, homens. No universo
branco, o que parece é que nossa sociedade se apropriou dos significados
compartilhados sobre superioridade e pureza racial e, desta forma,
desenvolveu um sistema hierárquico silencioso e camuflado de atribuição de
status social que desvaloriza as pessoas na proporção direta em que elas se
afastam do modelo ideal de brancura, representado aqui nos depoimentos
dos sujeitos como: tom de pele muito claro, cabelos lisos e loiros, traços,
olhos claros e ascendência norte-europeia (p. 87).

A ideia aqui, no entanto, não é a de que entre negros, quanto mais claro, mais
assimilado ao branco. Mas que, no interior da própria branquitude, traços que denotam
mestiçagem como cabelos cacheados, ou olhos pretos, afastam os brancos do ideal de
brancura. A pergunta que fizemos antes continua válida: se nem todos os bracos são brancos
legítimos, o que diremos de pardos-negros? No texto do Portal Geledés de Gabriele da Silva
(2020), há uma fala de Lia Schucman, segundo a qual existiriam distorções no conceito de
colorismo, porque “uma pessoa de pele mais clara pode ter mais oportunidades no mercado de
trabalho, e até mesmo no mercado afetivo. Mas isso é sobre oportunidades, e não sofrimento”
(SCHUCMAN, apud SILVA,G., 2020). A ideia é que os “processos de dominação” (Ibid.)
seriam os responsáveis pelo sofrimento, mas o colorismo estaria transferindo isso para a
quantidade de melanina da pele: “Ninguém sofre pela cor da pele, sofre no encontro com o

97
“Se você é negro, volte; se você é marrom, fique por aqui; se você é claro, está tudo bem” (tradução nossa).
247

racista” (Ibid.). O trecho a seguir, reproduz um momento em que o “colorismo” aparece na


obra Alice Walker, onde o conceito é formulado pela primeira vez:

"What black women would be interested in, I think, is a consciously


heightened awareness on the part of light black women that they are capable,
often quite unconsciously, of inflicting pain upon them; and that unless the
question of Colorism - in my definition, prejudicial or preferential treatment
of same race people based solely on their color - is addressed in our
communities and definitely in our black ‘sisterhoods’ we cannot, as a people,
progress. For colorism, like colonialism, sexism, and racism, impedes us" 98
(Walker, 1983, p.291 apud MONTEIRO-FERREIRA, 2015, p. 1).

Monteiro-Ferreira (2015) discutirá o colorismo como uma “falácia”. O seu argumento é


que o termo “racismo” estaria progressivamente caindo em desuso na medida em que aponta
para uma “profunda inadequação moral” (p. 2, tradução nossa) e é “intrinsecamente mau”
(Ibid, op. cit., tradução nossa). Nesse momento, termos como “colorismo” estariam ganhando
popularidade “no discurso público e acadêmico, como formas e meios politicamente corretos
para abafar marcadores de hierarquias sociais produzidas por uma autodeterminação social”
(Ballard, 2002, p. 2 apud Monteiro-Ferreira, 2015, p. 2, tradução nossa).
Hunter (2007) explica que nos Estados Unidos “os sistemas de discriminação racial
operam em pelo menos dois níveis: raça e cor” (p. 238, tradução nossa). O primeiro deles
estaria se dando no “nível de categoria racial (por exemplo, preto, asiático, latino, etc.).
Independentemente de aparência física, os afro-americanos de todos os tons de pele estão
sujeitos a certos tipos de discriminação” (Ibid, op. cit., tradução nossa). Nesse nível, o
racismo “é sistêmico e tem conseqüências ideológicas e materiais (Bonilla-Silva 2006; 2000
apud Hunter, 2007, p. 238, tradução nossa)”. O segundo nível corresponderia ao colorismo,
em que “a intensidade dessa discriminação, a frequência e os resultados dela diferem
dramaticamente pelo tom de pele” (Ibid, op. cit., tradução nossa). Nesse nível, o que importa
são desigualdades interiores aos grupos afroamericanos. A diferença de intensidade,
frequência e resultados da discriminação se baseiam no fato de que, nos Estados Unidos,
existem elites de pele clara consolidadas, ocupando “posições poderosas na economia,
governo e setores educacionais” (Ibid., p. 240, tradução nossa). Há uma passagem do texto de

98
"O que as mulheres negras estariam interessadas, eu acho, é uma conscientização maior por parte das mulheres
negras claras de que elas são capazes, muitas vezes inconscientemente, de infligir dor a elas; e que, a menos que
a questão do colorismo - na minha definição tratamento preconceituoso ou preferencial de pessoas da mesma
raça com base apenas em sua cor - seja abordado em nossas comunidades e, definitivamente, em nossas
‘irmandades’ negras, não podemos, como povo, progredir, pois o colorismo, como colonialismo, sexismo e
racismo, nos impede” (tradição nossa).
248

Margareth Hunter (2007), que reproduzo logo a seguir, e que me fez pensar: para qual
aparência esses privilégios se dispõem?

Incorporado nas sobras das estruturas coloniais, é o valor forte e duradouro


da estética branca (por exemplo, cabelos claros, cabelos lisos, olhos claros,
nariz estreito e pele clara). Isso é evidente na cultura popular latino-
americana, por exemplo, nas telenovelas, onde quase todos os atores
parecem brancos, a menos que sejam empregadas domésticas e marrom-
claro (Jones 2004 apud HUNTER, 2007, p. 240).

Esse trecho é muito importante, porque possivelmente os atores que para Hunter (2007)
“parecem brancos” de fato o são para nós. A autora está inserida num contexto em que a gota
de sangue negro racializa um indivíduo. Nesse sentido, o “lightskin” americano pode ser o
nosso branco aqui, ele não é sempre o marrom-claro/pardo que chamamos de negros de pele
clara.
Interessante observar que algumas pesquisas brasileiras mostram níveis de consciência
racial relativamente altos entre negros da classe média, possivelmente porque, estando em
pequeno número e sem poder mobilizar o argumento da discriminação de classe, sem veem
sofrendo preconceito num meio de maioria branca com médio/alto poder aquisitivo, como ele
próprio. Isso é o que Edward Telles (2003) chama de discriminação vertical. No Brasil,
muitas lideranças políticas e intelectuais negras também têm pele clara, aqui, ela não é sinal
imediato de baixa consciência racial. O colorismo, no entanto, coloca para as comunidades
racializadas, uma contradição fundamental: por um lado a cor clara é sinal de ilegitimidade,
inautenticidade e assimilação. Por outro, seria o motivo do sucesso desses indivíduos.
Quando falamos repetidamente sobre o mito da democracia racial para tratar do
colorismo, é porque consideramos que sua estrutura ainda não foi derrubada, existem
escombros dessa ideia que ainda abrigam argumentos e ideologias políticas que reaparecem
ao longo da história. Chauí (2000) define o mito “no sentido antropológico, no qual essa
narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram
caminhos para serem resolvidos no nível da realidade” (sem paginação). É isso que faz o
colorismo quando aumenta a lente para as desigualdades internas da população negra, e
minimiza os efeitos do racismo para o grupo em geral. Tal perspectiva nos ajuda a pensar
nessa relação com o passado, porque, sendo um mito fundacional, “impõe um vínculo interno
com o passado como origem, isto é, com um passado que não cessa nunca, que se conserva
perenemente presente e, por isso mesmo, não permite o trabalho da diferença temporal e da
compreensão do presente enquanto tal” (Ibid.). Aqui também vimos as marcas do colorismo
quando, se apegando à narrativa dos mestiços enquanto herdeiros bastardos dos senhores
249

brancos, deixam de observar, tal como argumenta Kabengele (1999), que essa é a população
que fundamentalmente ocupa as cadeias e as favelas das cidades. Chauí (2000) amarra, a
essas definições, outra concepção que vem da psicanálise: mito como “impulso à repetição de
algo imaginário, que cria um bloqueio à percepção da realidade e impede lidar com ela”
(Ibid.). O mito fundador “não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas
linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto
mais é a repetição de si mesmo” (Ibid.), e aqui o colorismo é novamente, o seu exemplo
perfeito. Levando em consideração o mito de democracia racial como um imaginário social
amplamente apropriado pela sociedade, o colorismo parece fazer muito sentido dentro dessa
lógica que admite, ainda que parcialmente, o legado de Gilberto Freyre. Com isso refiro-me a
ideias como a ausência de discriminação contra os pardos, e sua suposta colocação
privilegiada dentro da estrutura social, já suficientemente discutidas nesse trabalho.

Ao que parece, a identidade nacional brasileira se constituiu com base na


exaltação da mistura, da miscigenação, do hibridismo cultural. E esta
celebração à mistura implica não só a postura que o Estado mantém com os
cidadãos, mas também a forma como as classes populares a incorporaram
em suas práticas. Isto não significa dizer que não haja contradições nesse
postulado; provavelmente, a crença no valor atribuído à mistura tenha se
disseminado mais nas camadas populares do que na elite. Esta, sim, conhece
bem a importância dos casamentos endogâmicos de cor e de classe nas
estratégias de manutenção e de reprodução do poder político e econômico
(FIGUEIREDO, 2012, p. 172).

Reler os clássicos foi uma tarefa interessante. Observei que muitas coisas que são ditas
hoje, em referência a esses autores, estão distorcidas, e que muitas das atuais questões já
foram respondidas há alguns anos. Parte do meu trabalho aqui é, precisamente, rearticular
essas respostas. Bastide e Fernandes (1959), por exemplo, na década de 50, elaboravam a
discriminação racial em dois níveis: da cor e da raça, algo muito semelhante com a pesquisa
de Hunter (2007) que acabamos de apresentar. Segundo eles, “o preconceito de côr e a
discriminação racial se completavam, como processos de preservação da ordem social
escravocrata” (BASTIDE&FERNANDES, 1959, p. 113). O preconceito de cor informava a
necessidade da conservação da família branca – que evitava casamentos inter-raciais ainda
que tolaressa o estupro. Informava também diferentes técnicas como o uso de chapéus que
impedissem que a cor fosse bronzeada, produzindo “efeitos que implicavam na defesa da
integridade social das ‘raças’ dominantes” (Ibid. op. cit). O preconceito de raça, por sua vez,
“produzia efeitos que asseguravam a continuidade da dominação senhoreal sôbre as ‘raças’
reduzidas à escravidão” (Ibid. op. cit).
250

Quando nos referimos às diferenças internas à população negra, lembramos


imediatamente da carta de William Lynch de 1712. Esse é um texto muito citado pelos
movimentos negros para ilustrar a estratégia de “dividir para conquistar”:

Pegue uma pequena e simples lista de diferenças e pense sobre elas. Na


primeira linha da minha lista está “Idade”, mas isso só porque começa com a
letra “A” [age, idade em inglês]. A segunda linha, coloquei “Cor” ou
“Nuances”. Há ainda, “inteligência”, “tamanho”, “sexo”, “tamanho da
plantação”, “status da plantação”, “atitude do dono”, “se mora no vale ou no
morro”, “Leste ou Oeste”, “norte ou sul”, se tem “cabelo liso ou crespo”, se
é “alto ou baixo”.
Agora que você tem uma lista de diferenças, eu darei umas instruções, mas
antes, eu devo assegurar que a desconfiança é mais forte do que a confiança,
e que a inveja é mais forte do que a adulação, o respeito e a admiração.
Não se esqueçam que vocês devem colocar o velho negro contra o jovem
negro. E o jovem negro contra o velho negro. Vocês devem jogar o negro de
pele escura contra o de pele clara. E o de pele clara contra o de pele
escura. O homem negro contra a mulher negra.

Monteiro-Ferreira (2015) comenta que essa carta é um bom exemplo de como “a


ideologia da supremacia branca foi martelada nas psiques das populações colonizadas e
escravizadas” (p. 9, tradução nossa). Quando Ângela Figueiredo (2005) conversa com Judith
Butler a respeito das identidades Queer, nos mostra, por outro lado, que um senso de unidade
é mais importante do que uma reivindicação difusa por direitos. Essa unidade política não é
ontológica:

[...] a busca pela unidade em torno da definição de cultura negra, e mesmo


da categoria negro, é uma doce ilusão. Mesmo assim, continua-se retratando
as relações raciais no Brasil de modo uniforme, e poucos têm manifestado
curiosidade para entender as especificidades que caracterizariam a
experiência negra em diferentes regiões, cidades, ou mesmo as diferenças
internas à categoria negra (p. 168).

Talvez a omissão que fala a autora, seja responsável pelo cenário de tensões que está
colocado pela ideologia do privilégio pardo, pelo colorismo, e pelas trocas de acusações de
“afroconviência”. O livro de Eneida Reis (2002) “Mulato: negro-não-negro e/ou branco-não-
branco” é uma obra importante, irá tratar sobre as dubiedades inseridas na posição racial do
“mulato”, esse texto, assim como o “Tornar-se negro” de Neusa Santos (1983), cuja
personagem principal é uma mulher mestiça-negra, são valiosos e negligenciados do nosso
pensamento. Na introdução da obra de Reis (2002), Kabengele Munanga comenta que ela
seria “o único livro do gênero que aponta as peripécias e dificuldades vividas pelos indivíduos
mestiços de brancos e negros, os pejorativamente chamados ‘Mulatos’, no processo de
construção de sua identidade coletiva e individual.” (p. 21). E mesmo assim, impopular.
251

Ângela Figueiredo (2012) faz defesa, a partir de Giddens, de que o pertencimento racial seja
levado em consideração junto com outros dos seus pertencimentos, interações ou escolhas:

De fato, o debate sobre as relações raciais no Brasil tem deixado à margem a


discussão sobre a constituição dos indivíduos nas sociedades modernas. Ao
contrário, como o diálogo é, na maioria das vezes, estabelecido com a
tradição, há uma tendência a priorizar o coletivo, a experiência coletiva dos
negros na sociedade brasileira. Como ensina Giddens (2002), uma das
características da modernidade tardia é a complexa variedade de opções que
os indivíduos encontram na conformação dos estilos de vida, em oposição às
escolhas estruturadas presentes nas sociedades tradicionais. [...] Se levada ao
extremo, a argumentação de Giddens faz concluir que a importância da
identificação étnico/racial na construção da autoidentidade reflexiva na
modernidade tardia resulta de mais uma dentre tantas outras escolhas (p.
170).

Essa matização das experiências negras brasileiras nos ajudaria a pensar, de maneira
própria, o colorismo a partir do Brasil. Esse esforço é histórico e importante, vale a pena
pensar:

A questão central que nos ocorre, sobre a nossa interpretação de nós


próprios, nesses chamados 500 anos de Brasil, é a seguinte: é possível opor
uma história do Brasil a uma história europeia do Brasil, um pensamento
brasileiro em lugar de um pensamento europeu ou norte-americano do
Brasil, ainda que conduzido aqui pelos bravos brazilianistas brasileiros?
(SANTOS, M., apud RIBEIRO, 2002, p. 51).

6.9 MESTIÇAGEM, DISPOSITIVO E ANTI-COLORISMO

Vamos começar esse último momento do texto com uma imagem de Cuti (2010) sobre
o que é a colonização:

Um assaltante que invade a sua casa com armas possantes, mata familiares
seus, estupra, transmite doença, rouba seus pertencentes, faz você trabalhar
para ele, obedecer às suas ordens, esse assaltante pode, se ele for fisicamente
diferente de você, atribuir a essas diferenças a superioridade em relação a
você, acreditar nisso e fazer até você crer nos argumentos dele, e ele pode
também escrever livros e mais livros, produzir filmes e mais filmes, e
ensinar para gerações e gerações, por vários meios, que você é inferior e ele
é superior a você por conta das diferenças fenotípicas (p. 2).

Weschenfelder e Silva (2018) falam que, sendo a principal característica brasileira, “a


mestiçagem funciona como uma engrenagem que produz verdades e formas de condução da
população” (p 311). Os autores chamam essa engrenagem de dispositivo. Eles falam que esse
processo de tornar-se negro ou “dar cor aos homens” seria constituído “por regimes de
252

verdade” (Ibid., p. 312), cujos “significados estão postos na epistemologização da raça e do


corpo-espécie da população” (Ibid., op. cit):

Em diversas publicações, as blogueiras relatam que foram educadas para se


perceberem como mulatas, mestiças, morenas, mas nunca como negras. Isso
é entendido como algo extremamente negativo, como uma recusa do direito
de afirmação da descendência africana. De modo geral, a crítica à
mestiçagem está presente também nas produções académicas e nas
mobilizações negras, que denunciam o discurso da democracia racial e seus
efeitos perversos para a população afrodescendente, uma vez que amorteceu
qualquer luta antirracista. A blogueira Shirlene Marques sintetiza o que
entendeu após ler sobre o tema: Eis que as respostas chegaram: a
denominação de uma pele morena, no Brasil, é usada para camuflar a
pertença à raça negra, de ter o sangue negro no corpo. Essa possibilidade
discursiva faz parte do contexto atual, mas está diretamente vinculada às
mudanças ocorridas a partir do final da década de 1970 (Ibid., p. 321).

Analisando que a mestiçagem não foi uma prática tão largamente desenvolvida nos
países africanos de colonização portuguesa, Tadei (2002) conclui que ela não deve ser tomada
como uma disposição própria do português em “misturar-se”, como queria Gilberto Freyre,
sua função estava engatilhada por uma estratégia de dominação. Tadei (2002) também
compreende a miscigenação como um dispositivo e defino-o como:

[...] um tipo de formação que, em determinado momento histórico, tem como


função principal responder a uma urgência. Parafraseando Foucault,
podemos dizer que o dispositivo pode se manifestar como programa de uma
instituição ou, ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar
uma prática que permanece muda até então. Pode ainda funcionar como
reinterpretação dessa prática, dando-lhe acesso a um novo campo de
racionalidade (p. 3).

Na forma de um dispositivo de poder, a miscigenação atuaria sobre a identidade


nacional, domesticando as diferenças raciais e “gerando subjetividades dóceis, mal
delimitadas e manipuláveis” (Ibid., op. cit.). Seu alcance é extenso, se comporta como
“estrutura elementar presente em tudo o que tem sido produzido sobre nosso país e nossa
identidade nacional em termos discursivos” (Ibid., op. cit.). Osmundo Pinho (2004), dentre
muitos autores, mostrou isso, quando afirmou sobre a funcionalidade do mito da democracia
racial em desmobilizar os componentes étnicos da nação: “a síntese freyreana, como um
instrumento de conversão ideológica, favoreceu a imobilidade – bem descrita nas estatísticas
raciais – exatamente ao tentar demonstrar a modernização pela mestiçagem” (p. 100). Na
medida em que se produz o mestiço como “um objeto indeterminado, incapaz de propor-se
como um sujeito” (Ibid., p. 104), sua posição é útil para o controle social de uma “estratégia
de bio-poder característica das formações sociais latino-americanas” (Ibid., op. cit.). A
253

guinada para fora do círculo de controle começou a ser dada pela iniciativa das organizações
negras, onde:

[...] a emergência de novos sujeitos sociais afrodescendentes que,


reflexivamente, passaram a produzir suas próprias interpretações sobre si e
sobre a história das relações raciais em Salvador, deslocando formas
cristalizadas de representação para a raça e para o gênero (Ibid., op. cit..)

O autor mostra que, além de “resolver o problema negro”, o mestiço serviu como a
mão-de-obra livre necessária para a manutenção de regime, cuja empregabilidade é mais uma
forma exemplar da gestão das relações raciais no país. Também a igreja viu nesse grupo um
modo de moralizar a raça, já que ele estaria num nível intermediário, abaixo do branco
(virtude), porém mais avançado que o negro (africano, mau). Pinho (2004) fala ainda que o
mestiço era uma forma de controlar os escravizados e evitar “a vingança” que tanto temia a
casa grande. Ele fazia isso tanto por representar uma fissura num ideal de fraternidade entre
negros escravizados, quanto exercendo funções próximas ao mundo branco, a de capitão do
mato, por exemplo. Eis um resumo do autor sobre esse dispositivo:

O dispositivo de mestiçagem apresenta as seguintes características: ele incita


à mistura étnica; coloca a sexualidade num plano estratégico, ou seja, como
o veículo capaz de promover a confraternização das etnias; dilui a identidade
nacional, ao apostar num amálgama capaz de unir os vários elementos que
compõem nossa nacionalidade, porém, manobra essa identidade em
construção para determinadas direções, conforme a conjuntura de cada
período de nossa História; coloca-nos numa busca insistente pela nossa
identidade nacional, impedindo um envolvimento maior com a própria
nacionalidade por parte dos brasileiros; ele é, ainda, produtor de
subjetividades dóceis e mal delimitadas, uma vez que promove a mistura
étnica apagando as origens, apagando o passado e suas contradições,
voltando-se para o futuro e deshistorizando as raízes históricas individuais e
nacionais (Ibid., p. 105).

Nosso ponto é que, o colorismo estaria fazendo com que os avanços políticos negros
retrocedessem: coloca para dentro do discurso dos movimentos negros o mito da democracia
racial. É que, conforme já demonstramos longamente, colorismo e democracia racial têm algo
em comum: afirmar o privilégio mestiço. O colorismo toma o mito como fato. Esse
movimento retira (ou invalida, deslegitima) pessoas negras de pele clara da população negra,
colocando-as, mais uma vez, no limbo ou no vazio identitário estratégico do dispositivo:

O nosso vazio identitário é agenciado por várias estratégias de poder, que o


direcionam para determinados pontos que interessam ao projeto de país que
está em jogo em cada momento de nossa História, isto é, o vazio identitário é
um produto do dispositivo de mestiçagem, que por sua vez é agenciado com
254

o intento de manipular nossa identidade nacional, que está ainda sempre por
se fazer (Ibid., p.110).

O colorismo, que manobra a legitimidade dos negros de pele clara, é uma estratégia de
poder do dispositivo da mestiçagem. Os indivíduos que “tornam-se negros” constroem sua
identidade racial acionada por uma percepção de violação fundamental da dignidade, o
racismo, em seguida, são obrigados, em nome do colorismo, a redirecionar essa identidade
para uma compreensão e assimilação de privilégio: isso é um curto-circuito conceitual que
efetivamente não produz avanços políticos, mas neutraliza forças. Nossa proposição, que
estamos chamando aqui de anti-colorismo, é que esse conceito migre para outro lugar, aquele
que informa que a experiência social dos indivíduos é diversa, porque também são diversos os
marcadores de diferença, sejam eles de tonalidade, ou de pertencimento de classe, identidade
de gênero ou orientação sexual. Não existe razão para que se coloque, de modo tão
desproporcional, o colorismo como fator chave da diferença interna do grupo: o privilégio
pardo não ressoa em indicadores sociais concretos. Ao tornar-me negra, sinto que cumpri o
meu devir histórico trilhado por outras mulheres negras antes de mim. Nesse momento, estou
cumprindo outro: propor uma contribuição teórica que ajude a solucionar questões tensas
dentro do campo das nossas relações políticas.
O colorismo é comumente conhecido como o espectro de cor da população negra, que
dividiria internamente esse grupo politica e socialmente, promovendo uma gradação de
privilégios inversamente proporcional ao teor de melanina, e uma intensidade de
discriminação diretamente proporcional à quantidade desta. Seu conceito é transportado sem
ressalvas dos Estados Unidos pra cá. Aqui, aderido sem nenhum constrangimento, funciona
como subproduto do mito da democracia racial, que opera na criação da verdade absoluta
sobre os privilégios raciais acumulados pela população negra de pele clara, inclusive dentro
dos discursos de intelectuais dos movimentos sociais negros. Esse conceito retroalimenta o
mito da democracia racial ao concordar que houve inclusão de parcela dos negros à sociedade
brasileira, através de uma política privada de miscigenação, quando, na verdade, as vantagens
pontuais desse segmento negro só podem ser observadas levando em conta a
intersecsionalidade dos indivíduos e as configurações do contexto. A excelente receptividade
do conceito no país, nos faz pensar que seu uso tem uma funcionalidade. A experiência que
acumulamos nesse trabalho nos dá condições de propor que o colorismo é um expediente
racista, que agencia a mentalidade de senso comum sobre a inclusão dos pardos,
desafricanizados ou desenegrescidos pela condição de mestiços, na sociedade brasileira, ao
mesmo tempo em que controla essa população em posições de desvantagem econômica e
255

margalização social. Isso reforça o pacto civilizatório e fundacional da sociedade brasileira, o


mito da democracia das raças, sem necessariamente empreender esforços políticos reais para o
fim das barreiras raciais no país. O colorismo é, portanto, uma estratégia de poder inserida no
dispositivo da mestiçagem, um instrumento que permite que o Estado desracialize a
população negra de pele clara, sem desracializa-la de fato. Desta forma, o colorismo é um
conceito-chave apropriado para as funções do Estado brasileiro, que nos ajuda a entender a
sua atual fase de gestão das relações raciais no país. Ele confunde o próprio movimento negro,
oferecendo vantagem ao Estado, na medida em que alegará a ineficiência das políticas
afirmativas em determinar os indivíduos negros, uma vez que parte deles teriam
“passabilidade”. Essa vantagem aparece também na proposta de que a população parda, pela
sua suposta condição de privilégio, saia do cálculo populacional negro, ou seja, saia do
público alvo das políticas afirmativas. E com isso, o movimento negro perderia a expressão
numérica importante que os pardos dão para a contagem dos negros no país, e cuja força é
afirmar que a maioria da população brasileira é negra, o que faz da reparação histórica uma
urgência e uma emergência. Não é coincidência que, no mesmo momento em que o debate
racial está se ampliando, constrangendo grandes empresas a aceita-lo, inclusive na grande
mídia, e que mais pessoas estão assumindo esse pertencimento racial, o colorismo surja para
dividir esses esforços. O colorismo não precisa, dentro da nossa compreensão, ser apropriado,
mas abolido, em nome de uma perspectiva que estamos apontando como anti-colorismo, e que
cobre combate ao racismo para retintos e pardos, não apenas no nível da retórica, mas de
políticas públicas concretas, retornando e honrando esforços ancestrais na constituição da
população negra brasileira em sua unidade.
256

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pretendi, com esse trabalho, responder às questões que envolvem a autodeclaração de


indivíduos negros de pele clara, em função da relação entre heteroclassificação e
autodeclaração a racial. Assim, a pesquisa foi desenvolvida através de uma etnografia com a
Comissão de Aferição da Autodeclaração Étnico-Racial da Universidade Federal da Bahia e
entrevistas com seus membros, candidatos submetidos à aferição e estudantes da
Universidade. Esse trabalho também foi composto pela pesquisa bibliográfica e pela
etnografia virtual, essa última feita a fim de responder como os temas de pesquisa estão sendo
apropriadas por uma comunidade mais ampla do que os grupos acadêmicos e políticos.
Percebemos que, embora essa pesquisa tente abarcar questões de identidade, relações
étnico-raciais e políticas afirmativas, não foi suficientemente ampla para atender a uma
discussão sobre políticas públicas que colaborariam para a contextualização dos trabalhos das
Comissões de heteroidentificação racial. Do ponto de vista metodológico, uma parte
importante desse trabalho, que diz respeito à observação do próprio momento da aferição pela
Comissão, não foi possível ser realizada, pois não houve permissão da Pró-Reitoria de Ensino
de Graduação da UFBA responsável pelo processo. Entendemos que esse trabalho atravessa
questões políticas e jurídicas delicadas, de forma que a minha inserção nos ambientes em que
pude acompanhar a Comissão, precisou se dar de maneira cuidadosa, com rigorosidade de
atenção. Observei, com bastante satisfação, que a proposta desse trabalho foi bem acolhida
entre aqueles a quem foi apresentada, de forma a contar com a disponibilidade e abertura para
as conversas com meus interlocutores. De outro modo, entre os candidatos desclassificados
por essa Comissão, esse contato foi mais difícil. A dificuldade, primeiro, foi encontra-los e tê-
los disponíveis para falar sobre o assunto, entendendo todo o incômodo que perpassa essa
situação e da qual Dias, um dos nossos entrevistados, pôde narrar.
Observamos dos nossos interlocutores autodeclarados negros, com pele clara, e também
dos membros da banca, através das entrevistas que nos concederam, ou dentro do próprio
processo etnográfico, posições divergentes sobre a operacionalização de temas como a
mestiçagem e a própria definição do “pardo”. O que reflete, em algum nível, as divergências
que circulam no senso comum sobre essas definições. Isso me parece reforçar ainda mais a
necessidade das Comissões, uma vez que, uma de suas funções é, citando novamente a fala de
um dos seus membros, “produzir múltiplos processos educativos”. Lembremos que esses
problemas são seculares, frutos de uma concepção de sociedade racialmente democrática e de
identidade mestiça, sem racismos.
257

É interessante perceber como o racismo é uma experiência quase sempre reivindicada


como prova de negrura por parte dos nossos interlocutores, uma percepção que aciona um
sentimento de pertencimento negro. Através desses relatos, também foi possível entender uma
confusão comum e muito necessária de ser socialmente debatida: a que se dá entre a
autodeclaração racial e a identidade. Na correção desse trabalho, meu orientador, Doutor
Milton Júlio, disse que eu estava tratando a “identidade” como uma palavra, quando ela é um
conceito muito extenso e caro dentro das Ciências Sociais. Percebi imediatamente que, até
então, em algum nível, eu também estava reproduzindo essa confusão. É que entre a
autodeclaração racial, para fins de políticas públicas, e a formulação que o indivíduo constrói
sobre quem ele é, sobre os grupos que se identifica culturalmente, moralmente, afetivamente,
assim como outros elementos que podem compor a formulação identitária, existe uma
diferença. Isso dá conta de resolver, por exemplo, as lacunas existentes entre a fala de Dias,
reprovado pela Comissão, e a construção racial negra compreendida politica e teoricamente
no campo das relações raciais do país, que dizem respeito, primeiramente, a um fenótipo
racializado.
Pressupus, acertadamente, que essas autodeclarações encontram um contexto
conflituoso e, diante dos relatos representados nesse texto, pudemos observar como todos
esses entrevistados estiveram diante de situações que contestavam sua autodeclaração. Tentei
demonstrar como essas questões ultrapassam a esfera pessoal e aparecem como preocupações
de consolidação/ajustes de uma política pública, as cotas raciais. É nesse sentido que pudemos
analisar, na fala dos entrevistados e na etnografia com a Comissão, preocupações ligadas aos
pardos em dois níveis: (1) pardos são negros de verdade? E (2) pardos são tão negros quanto
os pretos para que tenham igual acesso às cotas? “Colorismo” e “passabilidade”, por exemplo,
aparecem nos dois “lados” desse trabalho. Ou, como temos demonstrado, os trabalhos da
Comissão condensam as duas esferas (auto/heteroidentificação): eles são efetuados por
pessoas com diferentes pertencimentos raciais e marcadores sociais, analisando candidatos
com a mesma diversidade.
Com base nas pretensões iniciais desse trabalho, vemos que o colorismo atravessa toda
a pesquisa e aparece como dado de campo dos diferentes métodos utilizados: entrevistas,
etnografia e pesquisa bibliográfica. Sua definição se refere a um racismo diferencial no
interior da população negra e, apesar de não ser um conceito tradicional, dentro dos estudos
étnico-raciais, aparece como chave conceitual para pensar questões como identidades raciais e
racismos. Outro termo que surge com o campo é “passabilidade”, que deriva do colorismo e
informa a possibilidade de trânsito racial dos “negros de pele clara”. Uma questão importante,
258

levantada pelo colorismo, se refere ao privilégio pardo, ele parece ser central para pensar a
posição desse grupo no benefício das políticas afirmativas e sua própria construção de
identidade. Isso porque, ao ser essencialmente oposto à experiência de racialização, deter
privilégio supõe ilegitimidade no pertencimento negro. Indicadores sociais, como citados na
Introdução desse trabalho, foram utilizados como o argumento principal para que pardos se
somassem aos pretos, na constituição da população negra brasileira desde a década de 70.
Recorremos novamente a eles na contra-argumentação dessa ideia de privilégio - entendido
aqui como uma posição de vantagem na estrutura social e que se restringe à branquitude.
Nossos interlocutores darão conta de mostrar que existem campos em que se manifestam
vantagens para os membros mais claros da população negra, como no mercado matrimonial
ou na grande mídia, sem que isso represente benefícios estruturais detectáveis pelos
indicadores sociais. Usamos, contudo, essas considerações finais, para reforçar a necessidade
de que novos estudos se desenvolvam na observação da extensão e dos modos em que essas
possíveis desigualdades entre pretos e pardos se manifestem no Brasil, assim como já existe
nos Estados Unidos uma extensa tradição de pesquisas que levam em consideração o
colorismo.
A perspectiva defendida nesse trabalho, que toma o nome de anti-colorismo, é a de que
o conceito seja uma ferramenta para pensar as diferentes formas de racialização no interior da
população negra, que acionará pertencimentos e características diversas, como a identidade de
gênero ou a orientação sexual, e cuja tonalidade da pele será um desses distintivos
importantes. Neste sentido, pensamos que esse trabalho, ao trazer as narrativas de pessoas
autodeclaradas negras, de pele clara, destacando as experiências de heteroidentificação que
são submetidos, seja informalmente nas suas vidas cotidianas, seja no acesso às políticas
afirmativas, colabora para a contextualização do colorismo e sua formulação conceitual a
partir de Salvador, a cidade mais negra fora do continente africano. Ela permite também uma
atualização nos estudos sobre mestiçagem no Brasil, levando em consideração o colorismo e
seus derivados.
Esse trabalho também se compromete em preencher uma lacuna já dita por outros
pesquisadores, a respeito das matizações das experiências negras, tradicionalmente tomadas
em sua relação com o Estado ou com o outro, o branco, em uma relação de desigualdade
(hierarquia de poder). Ainda que esse texto atualize problemáticas antigas, sobre os
significados da miscigenação no Brasil, foi interessante observar como algumas dessas
questões já estavam antecipadas na literatura clássica dos estudos étnico-raciais, mesmo que,
aparentemente, tenham caído no esquecimento.
259

Finalmente, em vias de finalização, compartilho o quanto há de realização pessoal no


desenvolvimento dessa pesquisa: responder às suas questões me esclareceram, a nível pessoal,
coisas que inquietavam a minha própria formulação identitária. Não tomo essas discussões
como questões encerradas, mas começo a visualizar construções polissêmicas sobre elas, que
significam para mim, diversas possibilidades discursivas de produção de entendimento e
avanços políticos para a comunidade negra, comprometida historicamente com o fim do
racismo em todas as suas manifestações e formatos. Como disse em momento anterior, tornar-
me negra foi cumprir um devir histórico, essa pesquisa é uma parte complementar desse
movimento pessoal em direção a uma consciência negra: contribuir para o fortalecimento de
nossas bases teóricas, apenas um dos pilares da luta antirracista. É com respeito ao legado
ético, intelectual e político negro, ancestral, que lutou em agregar a população preta e mestiça-
negra em sua unidade política, que dedico todo o esforço que esse trabalho solicitou.
260

Referências

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