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(CONTRA)MESTIÇAGEM NEGRA:
PELE CLARA, ANTI-COLORISMO E COMISSÕES DE
HETEROIDENTIFICAÇÃO RACIAL
Salvador
2021
1
(CONTRA)MESTIÇAGEM NEGRA:
PELE CLARA, ANTI-COLORISMO E COMISSÕES DE
HETEROIDENTIFICAÇÃO RACIAL
Salvador
2021
2
CDD: 305.8
______________________________________________________________________
3
(CONTRA)MESTIÇAGEM NEGRA:
PELE CLARA, ANTI-COLORISMO E COMISSÕES DE
HETEROIDENTIFICAÇÃO RACIAL
Banca Examinadora
Jacques d’Adesky__________________________________________________
Doutor em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (USP), São
Paulo
4
A
Mara e Paulo, meus pais, e minhas avós Maria e Joana, por construírem as minhas
possibilidades de ser, antes mesmo d’eu vir a ser.
Meu irmão Gabriel, que chegando ao mundo depois de mim, me ajuda a ser melhor.
A toda minha comunidade ancestral, Oxum Opará é o início de tudo,
não há fim no ciclo do Tempo.
5
AGRADECIMENTOS
A minha família que me deu tempo e espaço para que eu escrevesse esse trabalho durante a
pandemia do novo coronavírus, e por todo apoio que tive ao longo da minha vida;
Ao meu orientador, Milton Júlio, por encarar esse trabalho comigo e por se posicionar em
questões importantes, relativas às cotas raciais dentro do Programa;
Aos amigos que tornaram a experiência da Pós-Graduação mais feliz e menos dolorosa;
A Penildon, Pró-Reitor de Ensino de Graduação (PROGRAD), Karina e Ana Karina também
da PROGRAD, pelo acolhimento e incentivo à minha proposta de pesquisa. Ana Karina me
conduziu aos ambientes dos trabalhos da Comissão com muita gentileza.
Ao Programa de Bolsa Milton Santos, pelo financiamento da pesquisa;
Ao diretor, Lucas, e a coordenadora, Lilian, da escola onde leciono, pelo apoio essencial para
que eu conciliasse trabalho e Mestrado;
A Rafaela Magalhães, Naiaranize Pinheiro e Marcilene Garcia, professoras do IFBA, o
colégio que me formei no Ensino Médio, que me receberam em suas casas e acreditaram,
emprestaram livros, leram o trabalho e deram sugestões.
Aos meus interlocutores que dispuseram de tempo para me encontrar e conversar comigo;
A Sávio Roz pelo apoio, pela leitura dos meus textos, do meu slide de apresentação e pela
elaboração do card para divulgação do momento da minha Defesa;
A Talita Vidal, pela escuta, pelo apoio e pela fé depositada em mim;
Aos nossos ancestrais políticos e intelectuais negros, assim como as novas gerações, pelo
poder e pela força com as quais movem estruturas seculares de extermínio das nossas vidas e
espírito.
6
RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 25 Opinião: “pretos devem ter prioridade nas cotas raciais”, printscreen da
publicação em 2020.
Figura 26 Para quê servem os “pardos”? Printscreen da publicação em 2020.
Figura 27 Opinião: “pardos não sofrem preconceito”, printscreen da publicação em 2020.
Figura 28 Opinião: “pardos devem sair do direito às cotas”, printscreen da publicação em
2020.
Figura 29 Quem é pardo? Printscreen da publicação em 2020.
Figura 30 Qual o lugar dos pardos? Printscreen da publicação em 2020.
Figura 31 Diferentes contagens da população parda.
Figura 32 O significado do termo “pardo”, printscreen da publicação em 2020.
Figura 33 Quem deve ter direito às cotas, printscreen da publicação em 2020.
Figura 34 Taxa de maiores de 16 anos desempregados por cor ou raça em Salvador
(2010)
Figura 35 Taxa da população com renda menor que metade de um salário mínimo por cor
ou raça em Salvador (2010)
Figura 36 Taxa de analfabetismo por cor ou raça em Salvador (2010)
Figura 37 Gráfico do padrão de vitimização raça/cor e sexo das vítimas dos homicídios.
Figura 38 Printscreen da pesquisa no Google “mulher negra”.
Figura 39 Printscreen da pesquisa no Google “mulher mulata”.
Figura 40 Lightskin e brown skin.
Figura 41 Lightskin, brownskin e darkskin (1).
Figura 42 Lightskin, brownskin e darkskin (2).
Figura 43 Lightskin, brownskin e darkskin (3).
Figura 44 A Redenção de Cam (1985).
Figura 45 Não deixe sua cor passar em branco: responda com bom senso (censo).
Figura 46 Categorias raciais brasileiras (1).
Figura 47 Categorias raciais brasileiras (2).
Figura 48 Categorias raciais brasileiras (3).
11
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO........................................................................................... 14
6 ANTI-COLORISMO.................................................................................. 215
6.1 A HISTÓRIA DOS MULATOS E OS PROBLEMAS TEÓRICOS........... 215
6.2 OS MULATOS NA ÁFRICA DO SUL E MOÇAMBIQUE....................... 222
6.3 MISCIGENAÇÃO........................................................................................ 227
6.4 A CONSTITUIÇÃO DA POPULAÇAO NEGRA PELOS MOVIMENTOS
NEGROS...................................................................................................... 232
6.5 TORNAR-SE NEGRO................................................................................. 233
6.6 NEGROS DE PELE CLARA....................................................................... 240
6.7 IDENTIDADE E CAPITALISMO GLOBAL.............................................. 242
6.8 COLORISMO............................................................................................... 245
6.9 MESTIÇAGEM, DISPOSITIVO E ANTI-COLORISMO.......................... 251
REFERÊNCIAS...................................................................................................... 260
14
1 INTRODUÇÃO
Essa pesquisa se constrói em torno dos dilemas políticos dos “negros de pele clara”
(CARNEIRO, 2016). Queremos analisar como as dinâmicas de autodeclaração e
heteroidentificação estão sendo elaboradas pelos e para os indivíduos autodeclarados negros,
com pele clara, em Salvador. Para isso foi pesquisado o processo seletivo de estudantes na
Universidade Federal da Bahia (UFBA) no ano de 2020. Este processo representa um
momento importante das disputas que interessam a este trabalho de pesquisa. A experiência
de acompanhar os trabalhos da Comissão de Aferição da Veracidade da Autodeclaração
Étnico-racial da UFBA constitui esta etnografia, cujo pressuposto inicial é que a identidade
negra, das pessoas de pele clara, está situada num terreno conflituoso, em constante disputa.
Nesse sentido, interessa compreender as dimensões que alcançam essa identidade – a
autodeclaração e a heteroidentificação.
A discussão sobre mestiçagem, embranquecimento e democracia racial no país é
extensa, mesmo com vários aspectos a serem ainda explorados. Mesmo que tenha havido
miscigenação em todos os países que viveram regimes escravocratas, no Brasil, o
branqueamento conformou uma teoria peculiar, “jamais adotada na Europa ou nos Estados
Unidos” (SKIDMORE, 1976, p. 81). Portanto, esta pesquisa visa compreender uma
elaboração identitária que leva em consideração a mestiçagem, mas reivindica uma posição
dentro no tabuleiro racial que divide brancos e negros. Esse lugar não é o de “meio termo” ou
“não lugar”, é um posicionamento negro.
No momento dessa escrita, as Ciências Humanas e Sociais brasileiras já possuíam uma
vasta literatura sobre racismo, democracia racial e mestiçagem. Ainda assim não
identificamos uma produção consolidada sobre o colorismo. Esse é um conceito trabalhado
nos Estados Unidos, berço dessa produção, e aparece pela primeira vez em 1983 com Alice
Walker, em “In Search of Our Mothers’ Garden”, que ainda não está traduzido para o
português. No Brasil, o colorismo é amplamente discutido nas redes sociais e nas discussões
políticas acerca do lugar dos “negros de pele clara” ou “pardos” na população negra brasileira,
principalmente por movimentos sociais negros. Este trabalho objetiva contribuir para a
ampliação do debate sobre o colorismo no Brasil e especialmente em Salvador, cidade
considerada como a mais negra fora do continente africano. Fazemos isso a partir de uma
pesquisa etnográfica, realizada numa instituição pública de ensino superior na Bahia. O
colorismo é um tema importante para o debate público, principalmente quando se
problematiza a chamada democracia racial como uma falácia, e a existência histórica do
15
Autores como Maggie e Fry tendem a ver a “democracia racial” como parte
constituinte da formação social brasileira, como uma matriz cultural
periodicamente atualizada por políticas, discursos e crenças. [...] Eu tendo,
ao contrário, a analisar a “democracia racial” brasileira como uma ideologia
historicamente datada, materializada em práticas sociais, em políticas
estatais e em discursos literários e artísticos (p. 55).
Darcy Ribeiro, outro desses clássicos, em seu livro “Moinhos de Gastar Gente” (1995),
ao tratar sobre a mestiçagem, elabora assim esse dilema:
Para Gilberto Freyre, nos anos 1960, o Brasil já assistia a esse fenômeno de
perda de cor, cujo principal sintoma era a popularização do termo “moreno”.
No seu dizer, o crescente uso dessa palavra corresponderia não apenas a uma
transformação semântica, mas “a uma crescente tendência para considerar-se
moreno não só o branco moreno como outrora, mas o pardo, em vários graus
de morenidade, da clara a mais escura, por efeitos de mestiçagem, e o
próprio preto” (p. 33-34).
Hofbauer (2006) irá nos mostrar que Freyre pensava num ideal de mistura orientada
pelo embranquecimento. A metarraça, nesse sentido, seria miscigenada do ponto de vista
genético, porém clara no seu fenótipo.
Para Skidmore (1976), a miscigenação foi encarada como a solução do país para o
“problema negro”, forma de evitar uma guerra inter-racial diferente dos Estados Unidos, que
tentou isolar essa população. É útil lembrarmos, como faz D’Adesky (2002), que a “solução”
nacional não foi uma solução para a população negra:
Ou seja, levada a cabo pelo ideal do branqueamento, a miscigenação não foi uma forma
de “resolver o problema negro”, mas de eliminá-lo. Ainda que exista um conteúdo anti-racista
na mestiçagem, como argumenta Jacques D’Adesky (2001) em sua obra, no Brasil a sua
receptividade se dá pela sua negatividade:
É assim que o autor irá nos mostrar que, sendo uma prática consensualmente extensa na
nossa história, a mestiçagem também guarda o fundamento da democracia racial. Ela
esconderia um “racimo antinegro e antiindigena que jamais pode ser praticado ou falado
abertamente, sob pena de se romper um consenso” (Ibid., p. 73). D’Adesky (2001) apresenta a
mestiçagem como “alienação”1, cuja função seria “homogeneizar, unificar, padronizar ‘que
leva o brasileiro a supor e desejar que os negros desapareçam pelo branqueamento
progressivo’.” (p. 138). Giralda Seyferth (1995) vai nos dizer, por exemplo, que sob o
imperativo da “mistura das raças”, Silvio Romero irá condenar a imigração alemã no sul do
país:
1
“as expressões ‘limpeza de sangue’, ‘barriga limpa’, ‘cabelo bom’, ‘cor no ponto’ ilustram, entre os negros, o
desejo mixófilo que elege o tipo mestiço como o intermediário para se chegar ao ideal supremo que é tornar-se
branco. Mas, tal indiferenciação por meio da mistura, vista como libertadora e emancipadora, submete os negros
a efeitos destrutivos, na medida em que substituiu o desejo racial de ser reconhecido como igual pelo desejo
irracional de ser reconhecido numa inferioridade relativa. Assim, ela produz uma alienação caracterizada pela
exigência de despertencimento, com um discurso cuja retórica coercitiva explora desejos de semelhança e de
homogeneidade em relação ao tipo ideal” (D’ADESKY, 2001, p. 174).
18
Ou seja, esses movimentos estão dizendo que não há espaço dentro do discurso oficial
da nação, para que se elabore uma identidade negra e para que se combata o racismo
embutido na ideia de mestiçagem2. Eles estariam lutando contra uma “subtração
universalista” (D’ADESKY, 2001, p. 139) e pelo “pluralismo cultural” (Ibid., op. cit.), uma
das demandas inseridas nas políticas de reconhecimento.
Temos como superadas as falsas polêmicas de que “não existem raças humanas”, por
isso não aprofundaremos essas discussões aqui. Mesmo assim, lembramos brevemente, a
respeito disso, o que ensina Kabengele Munanga (2003). O autor explica que os avanços da
Genética Humana teriam descartado de uma vez por todas, qualquer fundamentação biológica
ou científica das classificações raciais para diferentes grupos humanos, feitas pelo menos
desde 16843. Apesar disso, “raça” continua tendo valor social e sociológico4 e por isso
2
“[...] afirmar a existência de um grupo negro ‘autônomo’ ia contra a construção analítica de Freyre, que
apostava na consolidação de uma ‘meta-raça’ que o autor via diretamente ligada à existência de um ‘etos’
(cultura) brasileiro próprio, concebido como uma espécie de totalidade orgânica, uma entidade coesa e
homogênea” (HOFBAUER, 2006, p. 252-253).
3
Sobre o primeiro registro do termo “raça” nas classificações humanas, ver Guimarães (2008).
4
“A partir dos anos 1980 e 1990, assumem maior visibilidade duas perspectivas no campo dos estudos raciais.
Como observa Costa (2002), a primeira delas, que guarda estreita relação com as pesquisas de Hasenbalg e
19
reivindicado no campo dos estudos étnicos-raciais. No Brasil, Guimarães (2008) nos mostra,
o termo “negro” não se referia apenas à população africana e afrodescendente, mas todos os
escravizados, inclusive indígenas, os “negros da terra” (p. 21)5. Essa “raça negra” conotava
assim, não apenas características físicas, mas status. Munanga (2003) irá dizer que a
formulação colonizadora sobre “raça” aponta diretamente para uma hierarquia na condição
humana, colocando no topo da escala evolutiva o homem europeu, e os demais povos na
condição de menos humanos, selvagens. “Raça”, portanto, guardará intimidade com racismo6.
Para o autor, a sociedade continua sendo organizada por critérios raciais. Nesse sentido,
reivindicando a “raça negra”, os movimentos negros não sobrelevam uma diferença
ontológica entre seres humanos negros e não negros. Ao contrário disso, estariam
denunciando a atualização do processo de racialização7. Também são os movimentos negros
que reivindicarão a formalização da coleta de dados relativos à cor ou raça em registros
médicos, por exemplo, ou em outros serviços públicos pelo Estado. Isso porque, formalmente,
dentro da nossa história de nação, “raça não importa”8. Ilustrando esse argumento, Skidmore
(1976) nos fala sobre o que aconteceu no censo de 1970:
[...] não se coletaram dados sobre raça. A comissão censitária tomou essa
decisão explicando que veriam de tal maneira as definições de categorias
raciais (e, especialmente, sua aplicação em casos individuais) que não seria
possível as recenseadores recolher dados fidedignos. [...] Na realidade, o
governo federal decidiu que a cor não era tão importante que justificasse
maiores esforços no sentido da coleta de dados mais exatos, pelo menos no
Silva, atém-se às investigações das assimetrias existentes no plano das relações raciais no Brasil, sem desprezar
outros elementos determinantes, tais como: classe, gênero, educação e espaço geográfico (HASENBALG, 1979;
1996; HASENBALG; VALLE SILVA, 1988). No caso da segunda perspectiva, raça transforma-se em uma
categoria primordial para o entendimento da dinâmica societária no Brasil que, por meio do modelo bipolar – a
ênfase nas desigualdades entre brancos e negros e no binômio racismo/anti-racismo –, se torna a chave
explicativa para as demais iniqüidades sociais (GUIMARÃES, 1999; HANCHARD, 1994; HENRIQUES, 2001;
WINANT, 1994). Cabe ressaltar que em ambas as visões o conceito de raça é concebido como fundamental para
a compreensão das disparidades sociais existentes no Brasil” (MAIO&SANTOS, 2008, p. 91).
5
João Reis (2000) fala que “crioulo” e “preto” eram os principais termos raciais na primeira metade do século
XIX, para designar respectivamente, negros brasileiros e africanos. Já na segunda metade do século XIX, “preto”
passa a abarcar ambos os grupos. Isso significa, para o autor, uma africanização desses crioulos, assim como
uma tendência, principalmente entre os trabalhadores de rua no final da escravidão, de uma convergência “em
torno de um reconhecimento de que eram todos – ou quase todos – negros ou tratados como tais” (p. 241).
6
“Racismo é palavra surgida na década de 1930, segundo Banton (1977), para identificar um tipo de doutrina
que, em essência, afirma que a raça determina a cultura” (SEYFERTH, 1995, p. 178). Ver também Hofbauer,
2006.
7
Guimarães define esse processo como o: “[...] fenômeno cultural que se utiliza de diferentes regras para traçar
filiação e pertença grupal, conforme o contexto histórico, demográfico e social, “... um sistema de marcas físicas
(percebidas como indeléveis e hereditárias), ao qual se associa uma ‘essência’, que consiste em valores morais,
intelectuais e culturais.” Nesse sistema, apesar da necessidade da ideia de ‘sangue’ como transmissor dessa
‘essência’, “...as regras de transmissão podem variar, amplamente, segundo os diferentes racialismos.”
(Guimarães, 1999: 28 apud RIOS, 2018, p. 221).
8
Ver mais Hofbauer (2006) que o interesse em eliminar essas concepções formais sobre “raças humanas” não é
particular do Brasil.
20
Apesar disso, como já sinalizamos, esse quadro de negação formal das diferenças raciais
começou a ser modificado no Brasil alguns anos antes, na década de 60, em função das ações
dos movimentos negros e dos estudos patrocinados pela UNESCO9. Através dessas pesquisas,
o pensamento social sobre as relações raciais no Brasil se transformou, “ficou patente que
quanto mais escuro fosse o brasileiro mais provável seria encontrá-lo no fundo da escala
sócio-econômica – e nisso coincidiam os diversos indicadores – renda, ocupação, educação”
(Ibid., p. 237). Zoninsein (2008) também constata a importâncias dessas pesquisas ao trazer
que:
9
Depois da II Guerra (1950) “a Columbia Unisersity e o governo da Bahia deram início, em conjunto, a um
projeto de pesquisa sobre as mudanças sociais naquele estado. No mesmo ano, o programa foi ampliado. A
UNESCO forneceu fundos para financiar pesquisa mais completa e minuciosa, principalmente de relações
raciais. Era parte de um estudo em larga escala das relações raciais no Brasil autorizado pela UNESCO na
presunção de que a experiência brasileira pudesse dar ao resto do mundo uma lição única de relações
‘harmoniosas’ entre as raças.” (SKIDMORE, 1976, p. 236).
10
Há uma crítica extensa, que esse trabalho busca trazer, sobre os descendentes indígenas que estariam
subsumidos nessa dualidade entre brancos e negros. Sobre isso, ver mais em Verán, 2010.
21
observar na nossa pesquisa, que alguns interlocutores irão criticar o termo e optar pela
categoria “preto” do Instituto. É importante mais uma vez intervir nessa discussão, como nos
lembra Zoninsein (2008), mostrando que existem outros grupos, como os indígenas e seus
descendentes, que estão frequentemente enquadrados enquanto pardos. Isso revela o
apagamento desse grupo na categoria. Adianto também que, nessa pesquisa, esses “caboclos”
não são nossos interlocutores diretos.
Piza e Rosemberg (2002) analisam que o “pardo”11 aparece nos censos brasileiros a
partir de 1872, compreendendo os filhos das misturas interraciais entre pretos e brancos. Lima
e Venâncio (1991), citados por Piza e Rosemberg (2002, p. 95), mostram que depois de 1871,
após a Lei do Ventre Livre, o número de pardos cresceu e o de brancos diminuiu, o que nos
leva a pensar sobre a relação entre cor/raça e a condição de liberdade/escravização. Já no
século XX, entre os anos de 1900 a 1920, não se incluiu cor na coleta de dados. O censo
seguinte, de 1940, voltou a incluir as cores branco, pardo, preto e amarelo, tal como o censo
de 1950 (Ibid., p. 95,96). Este último censo conceituava “pardos” como além daqueles filhos
de pretos e brancos, incluindo “índios e os que se declaram mulatos, caboclos, cafuzos, etc.”
(IBGE, 1956, p. xvii-xviii apud PIZA&ROSEMBERG, 2002, p. 96). Esse termo, pardo, que
aparece ao longo da história como um “saco de gatos”, para utilizar o termo de Schwarcz
(2012), pretende abarcar àqueles que não correspondem ao desenho estático do que é o negro,
nem as expectativas do grupo de prestígio, branco. Ou seja, pardos são aqueles que não são
pretos, mas também não são brancos. Para Piza e Rosemberg (2002), eles se constituem como
Weschenfelder e Silva (2018) nos falam sobre três momentos em que o termo pardo é
utilizado: para distanciar-se da escravidão, na medida em que “definir-se ou ser definido
como pardo evidencia uma relação com a liberdade” (p. 6-7); no enaltecimento da
“mestiçagem como identidade nacional, resultando na crença da democracia racial” (Ibid., op.
cit.) e na “rearticulação do movimento negro, no final da década de 1970” (Ibid., op. cit.)
onde o “deslocamento da categoria cor/raça parda, que agora em conjunto com os
autodeclarados pretos, passa a ser nomeada como população negra” (Ibid., op. cit.), isso “será
um dos elementos responsáveis pela contestação dessa suposta democracia” (Ibid., op. cit.). A
saída ou entrada da cor ou de determinadas categorias nos censos, reflete como as ideologias
11
Ver mais em Guimarães (2008) sobre o histórico do uso das categorias raciais pelos censos brasileiros.
22
Skidmore (1976) diz que existem três motivos para essa multiplicidade de termos
raciais (que chamará de “sistema multirracial”) existir no Brasil: o primeiro seria que “a
escassez crônica de mão-de-obra branca especializada e semi-especializada [poderia ter]
forçado os colonizadores europeus a legitimar a criação de uma categoria de homens livres de
23
cor, capazes de desempenhar certas tarefas” (Ibid., p. 58). O segundo motivo fala sobre
“fertilidade diferencial”, ou seja,
Por fim, o autor indica uma “relativa ausência de sectarismo no Brasil” (Ibid., p. 59).
Segundo ele, a escravidão no país foi nacional, diferente do caráter regional que teve nos
Estados Unidos. A tese do autor é de que “homens livres de cor, muito antes da abolição,
desempenhavam já importantes funções na economia, na política e nas artes. E essa inserção é
prova de que já existia um padrão multirracial de categorização racial que a permitiu” (Ibid.,
p. 60). Ou seja, existiriam mulatos exercendo funções livres em diferentes setores da
sociedade, e isso provaria um sistema racial complexo e de múltiplas classificações que o
tornasse possível. Wagley (1968), citado por Guimarães (2008), analisa esse fenômeno a
partir da América Latina12, identificando
Já Jacques D’Adesky (2001) indica que existem cinco tipos de sistemas classificatórios
operando no Brasil. Seriam eles:
12 Villar e Villar (2019) tratarão sobre esse sistema raça/classe em países da América Latina no contexto de
capitalismo global, nomeando-como como “pigmentocracia”. Segundo os autores, o termo terá origem em 1944
com o autor chileno Alejandro Lipschutz. Villar e Villar (2019) concordam com a noção de que um sistema
multirracial existe para garantir uma faixa intermediária entre o preto e o branco: “a hierarquia pigmentocrática
começa com pessoas brancas no nível superior, mestiços no nível médio e povos afro e indígenas no nível
inferior. Para Moore, esse conceito é a chave no pré-capitalismo e na formação do capitalismo moderno: no nível
concreto, a estruturação de classes de uma sociedade pigmentar-crática obedece a um sistema de classificação,
no qual linhagem e linhagem são confundidas com diferenciações fenotípicas: da pele, textura do cabelo,
formato dos lábios e nariz, entre outras características, padronizam tanto os comportamentos quanto o 'lugar'
social de cada um. A lógica racial que as sociedades pigmentocráticas encerram é uma forma de pensamento e
hierarquização dermo-fenotípica, a partir da cor da pele e da aparência do sujeito.” (tradução nossa, p. 41).
24
Dentre esses sistemas, poderíamos destacar aquele utilizado pelo IBGE, em combinação
com o sistema negro-branco, como os mais notáveis para o acesso as cotas raciais nos editais
de concursos públicos. Fazendo uma comparação com os Estados Unidos, o autor informará
os critérios mobilizados por esses sistemas:
Ou seja, para D’Adesky (2001), existe uma complexidade maior nos sistemas de
classificação racial brasileiros, ao levar em consideração diferentes variáveis. Nos Estados
Unidos13 essa classificação estaria fundamentalmente baseada em critérios de herança
genética. Esse sistema “multirracial” nos insere na discussão sobre branqueamento. Isso
porque toda essa complexidade pode ser compreendida como categorias furtivas à identidade
negra. As pessoas prefeririam a cor “branco sujo” ou “queimadinho de sol” do que uma
autodeclaração preta ou negra.
As teorias racistas que exerciam influência na sociedade estadunidense, por derivação
também inspiravam muitos brasileiros que alimentavam admiração pelos Estados Unidos. A
teoria da superioridade ariana, por exemplo, “era aceita como fato de determinismo histórico,
pela elite brasileira entra 1888 e 1914” (SKIDMORE, 1976, p. 69). Essa admiração pela
sociedade americana e a crença na superioridade europeia levou inclusive a um sentimento
antiportuguês, “como os mais atrasados dos europeus – decorrentes da imprevidência, da
indolência e da imoralidade.” (Ibid., op. cit.). Os nacionalistas ao mesmo tempo em que se
assustavam com essa crítica,
13
Ironizando sobre isso, Telles (2003) escreve que, “alegam que a regra de uma gota de sangue no Brasil, se
acaso existisse, seria revertida para significar que uma gota de sangue branco seria suficiente para evitar a
classificação de alguém como negro” (p. 110).
25
Skidmore (1976) nos conta que a teoria do branqueamento foi aceita pela maior parte da
elite brasileira entre 1889 e 191414 baseando-se “[...] na presunção da superioridade branca, às
vezes, pelo uso dos eufemismos raças ‘mais adiantadas’ e ‘menos adiantadas’ e pelo fato de
ficar em aberto a questão de ser a inferioridade inata” (Ibid., p. 81). Dessa forma, Seyferth
(1995) argumenta:
É sobre essa realidade de uma miscigenação extensa entre os povos, com repercussão
sobre os sistemas classificatórios, que os pesquisadores e movimentos negros irão se debruçar
para pensar raça e políticas afirmativas. Valle e Silva (1994), citados por Schwarcz (2012),
formulam o conceito de “raça social” para explicar as “discrepâncias entre cor atribuída e cor
autopercebida” (SCHWARCZ, 2012, p. 106). Essa é uma proposição que pretende resolver
esse espaço dialógico entre o “eu” e o “outro”. O argumento se alinha a perspectiva de Rios
14
O autor nos dá três explicações para o processo de branqueamento no Brasil até década de 70 ter sido tão bem
acolhido: as imigrações de brancos; a baixa de natalidade de negros; e o branqueamento da miscigenação pelos
pais brancos (SKIDMORE, 1976, p. 60).
26
15
Em reunião com Marcilene, ela narra que o termo foi sugerido por Lindinalva Barbosa durante uma reunião do
Coletivo Mahin Mulheres Negras, quando estava presente, além de Marcilene e Lindinalva, Vilma Reis, Zezé
Pacheco, Tânia Palma, Eva Bahia e Denize Ribeiro. A proposição de Lindinvalva Barbosa surgiu quando
Marcilene colocou para o grupo, a necessidade de pensar um nome para o seu projeto, que se remetesse a uma
elaboração Yorubá de nomeação e de Justiça.
27
16
CALDAS, F. Tranquilidade e acolhimento marcam primeira verificação de autodeclaração de cotas na UFBA.
Disponível em <http://www.edgardigital.ufba.br/?p=11316>.
17
O MNU aparece muitas vezes nesse trabalho, ainda que, recorrentemente, façamos menção a outras
organizações do movimento negro brasileiro. A importância do Movimento está registrada na história como
aquele que mudou a forma como se enfrentava politicamente a discriminação racial. Em plena Ditadura Militar,
a organização cria uma manifestação contra a prisão e tortura de jovens negros, no dia 7 de julho de 1978, que
agregou nomes importantes como Abdias do Nascimento e Lélia Gonzales, este também é o dia que funda a
organização.
18
Além do MNU-BA, outra organização, “A Frente Negra Baiana também via a educação como via de
mobilidade, ascensão e integração social, por isso ministrou cursos de alfabetização noturnos, cursos primários,
de música, de datilografia e de línguas” (BACELAR, 1996, p. 76 apud Ana Célia p. 195).
19
A autora cita “algumas ações sistemáticas e paralelas à educação oficial” (SILVA, A. C., 2017 p. 191-192)
empreendidas pelo Movimento Negro como: Publicação dos Cadernos Negros desde a década de 80, “propostas
de currículos pluriculturais implementados pelas entidades do Movimento Negro” (Ibid., op. cit.) , “escolas
comunitárias e escolas de blocos afros” (Ibid., op. cit.), “Pesquisas dos pesquisadores militantes universitários
sobre currículos pluriculturais, dissertações, teses e dissertações de questões raciais” (Ibid., op. cit.),
“Congressos, seminários e encontros sobre educação em entidades negras, Congresso de Pesquisadores Negros”
(Ibid., op. cit.), dentro outros exemplos..
28
20
“A legislação anti-racista procura combater a discriminação através de meios para os quais as vítimas só
podem apelas após tê-la sofrido, pedindo que os infratores sejam punidos. Este tipo de legislação já aparece em
1951, apesar de as leis mais eficazes terem surgido somente em 1988” (TELLES, 2003, p. 263).
21
Fazendo uma genealogia das políticas afirmativas no Brasil, Telles (2003) irá nos dizer que “um dos pontos de
partida da ação afirmativa federal, através do Ministério de Desenvolvimento Agrário, foi reconhecer e conceder
títulos de posse a todas as terras de quilombo, o que representa uma ruptura importante com o modelo norte-
americano, logo de início” (p. 274).
22
O autor narra nessa obra as estratégias que os movimentos negros fizeram para criminalizar o racismo, como
recorrer a organismos internacionais, reivindicar os direitos coletivos (difusos) e outros mecanismos
constitucionais.
29
O que nos faz pensar que, apesar dos esforços conjuntos dos movimentos negros, o
Estado não se empenhou no êxito dessas políticas. Por exemplo, “apesar de haver assinado,
em 1965, a Convenção 111 das Nações Unidas, que determina a promoção de minorias
étnicas e raciais no que concernem a empregos, ninguém esperava que tais políticas fossem de
fato implementadas.” (Ibid., p. 272). A Convenção não é a primeira iniciativa governamental
no sentido de políticas afirmativas. Telles (2003) irá nos mostrar que Getúlio Vargas já teria
criado políticas nesse sentido quando
[...] apoiou a ação afirmativa com a chamada “lei dos dois terços”, ao
estabelecer que pelo menos dois terços de todas as contratações feitas por
empresas em território brasileiro fossem de brasileiros natos. Dessa forma,
permitiu que os negros entrassem no mercado de trabalho industrializado,
formalmente dominado por trabalhadores imigrantes (Ibid., p. 284).
Ainda que antecedida por essas iniciativas, Telles (2003) considera que é na década de
80 que de fato começam a surgir tentativas de criar políticas públicas em benefício da
população negra. Nessa década
Outro marco da história dessas políticas para o Estado brasileiro, como já comentamos,
é a Constituição de 1988. Telles (2003) nos mostra que ela inclui leis antirracistas e
antissexistas23, expandiu direitos individuais e coletivos, fortaleceu o papel do judiciário, que
23
O autor chama atenção para dois Artigos: no Artigo 3 a Constituição “[...] afirma que a República Federativa
do Brasil, ‘fundamentalmente’, deve criar uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a
marginalização, reduzir as desigualdades social e regional e providenciar incentivos especiais de proteção à
30
por sua vez “se tornou um promotor estatal de direitos para membros da sociedade que tinham
pouco ou nenhum poder político” (Ibid., p.72). Quanto ao protagonismo político negro, a
década de 80 também foi marcante porque Abdias do Nascimento
Telles (2003) fala que, nesse mesmo ano, as ações afirmativas são discutidas no
“Seminário Internacional sobre Multiculturalismo e Racismo financiado pelo Ministério da
Justiça e sancionado pelo Presidente Cardoso” (p. 78) e há a criação “do Programa Nacional
de Direitos Humanos – PNDH, cujo objetivo em médio prazo era ‘desenvolver ações
afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas
de tecnologia de ponta’” (Ibid., p. 78). O PNDH é importante porque, com ele o movimento
negro conseguiu colocar o racismo no centro das preocupações do Movimento Nacional de
Direitos Humanos, que nasceu na década de 70 pelas mãos da classe média vítima da ditadura
mulher no mercado de trabalho” (TELLES, 2003, p. 284). O Artigo 5 (inciso 42) “tornou a prática de racismo
um crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão” (Ibid., p. 72).
31
Naquele momento, “alguns ativistas negros propuseram uma alternativa com humor,
mas ineficaz: contratar porteiros ou policiais, alegando que ‘eles nunca erram ao classificar
24
Para uma referência mais completa sobre a trajetória das políticas afirmativas no Brasil ver Tellles, 2003. Na
obra o autor também descreve as alianças, estratégias e arranjos antes, durante e após a Conferência.
25
Essas desigualdades no acesso ao ensino superior ou à classe média, por exemplo, desigualdades relacionadas
a recursos políticos e econômicos para os diferentes grupos, Telles (2003) irá nomear como “desigualdade
vertical”. Ela seria menor nos Estados Unidos do que no Brasil. Entretanto, em termos de relações pessoais de
amizade ou consaguinidade, o que o autor chama de “desigualdade horizontal”, no Brasil teria menor expressão.
32
negros’” (Ibid., p. 292). Esse tipo de “solução” é algo que se repetirá na fala dos nossos
interlocutores de pesquisa.
Apesar de suas controversas, a autodeclaração é o mecanismo mais valorizado para os
acessos de pessoas negras às políticas afirmativas. Do ponto de vista normativo, a Convenção
169 da Organização Internacional do Trabalho diz que a “persona se identifica a sí misma
como perteneciente a este grupo o pueblo; o bien el grupo se considera a sí mismo como
indígena o tribal de conformidad con las disposiciones del Convenio” (OIT, 2003, p. 8, apud
RIOS, 2018, p. 224). Este é, segundo Rios (2018), o “primeiro instrumento internacional que
reconhece o direito à autodeclaração” (OIT, 2003 apud RIOS, 2018, p. 224).
O marco jurídico é importante porque dentro dele os movimentos sociais negros irão
disputar a lisura do acesso às políticas de ações afirmativas para os sujeitos destinados, o que
implica uma relação entre a autodeclaração e política pública/Estado. Discutir o lugar dos
pardos é, portanto, discutir como esse processo de racialização incide sobre seus corpos. Ou
seja, independentemente dos seus sentimentos de pertença, para fins de políticas públicas, eles
estariam situados numa “cidadania de segunda classe” (GUIMARÃES, 1999, p. 239)? Isso
significa pensar como esses indivíduos “pardos” estão se autoavaliando e sendo
heteroclassificados dentro do sistema de cotas. Essa é uma questão importante, saber situar
esse grupo dentro do tabuleiro racial do Brasil é parte da luta pela garantia de direitos.
Nos Estados Unidos, segundo o estudo de Nogueira (2006), o fenótipo, mas também a
origem, são dados importantes para a definição de quem é negro. No Brasil, essa “origem”
não tem o mesmo valor, de forma que, negro aqui é quem apresenta essa marca. Ela será o
33
26 Embora o multiculturalismo seja um tema caro e defendido por intelectuais negros citados nesse trabalho,
como o próprio Stuart Hall e Jacques D’Adesky, a saída que apresenta para os grupos racializados não é
consensual. Sem entrarmos no mérito dessa discussão, pontuamos brevemente esse debate através de Villar e
Villar (2019). Segundo os autores, o multiculturalismo estaria dentro de uma lógica do capitalismo global que
despotencializa os grupos em função de um suposto reconhecimento identitário, dentro de uma estrutura que
simboliza o racismo. “A complexidade deste acordo — para além das posições subjetivas— nos leva a reavaliar
como o multiculturalismo — considerado como ‘a forma ideológica ideal deste capitalismo (global)’, mesmo
que seja um acordo multicultural e conceda os benefícios do reconhecimento parcial a grupos étnicos diferentes,
não basta concebê-lo em termos da reciprocidade que ele simula. Essa articulação sem pontos de ruptura, de
forte cunho burocrático, leva à despolitização, justamente, dessas etnias dentro dos Estados-nação ocidentais. A
discussão atual sobre multiculturalismo e multiculturalismo é pertinente, uma vez que debate diferentes aspectos
que se situam no interior da pergunta: É possível outra lógica multiculturalista e politização do
multiculturalismo? Neste espaço, consideramos que os novos racismos tecidos em torno da lógica
multiculturalista universal não são simplesmente uma série de racismo simbólico, mas a própria simbolização do
racismo. Consideremos que hoje não é possível manter o antigo apartheid, e que, principalmente devido à
dinâmica sociopolítica desses grupos diferenciados, ele não seria mais combatido apenas pelo simbolismo, ou,
como diria Scott, por discursos ocultos ou infra-política. Seria tolice pensar que, hoje, uma resistência ao
racismo violento ocorreria por meio de canções ou poemas. A multiplicidade étnica, vista em termos de
multiculturalismo, pode ser entendida como a face pública do racismo. Serve de justificativa para o sistema que
emerge das autoproclamações mais íntimas de inclusão de uma falsa consciência, sem a reparação que a história
mostra como necessária para aspirar à justiça social.” (VILLAR&VILLAR, 2019, p. 43, tradução nossa).
34
O conceito de “subproduto social” das cotas raciais abordado aqui deve ser
entendido em sua dupla constituição: a de cunho ideológico e a de
transferência de oportunidades. O somatório desses dois componentes
fortaleceu as oportunidades dos estudantes do ensino básico da escola
pública nessa década de ações afirmativas que se completou em 2011 (p.
17).
Avritzer e Gomes (2013) analisam que as ações afirmativas estariam subvertendo uma
tradição de inclusão da população negra pela via privada (miscigenação), “instituindo
políticas de acesso que incentivem a identidade racial e étnica” (Ibid., p.56). Para Paulo Neves
(2005), as políticas afirmativas embora falem sobre discriminação positiva, cidadania
diferencial e equidade, repercutem sobre a identidade quando, “em um processo dinâmico,
essas políticas, por sua vez, terão efeitos sobre o processo de construção das identidades, que
retroagirão sobre as próprias políticas de identidade” (Ibid., p. 87). Podemos pensar com isso,
que essas políticas alteram o tabuleiro racial do Brasil, não apenas dinamizando a relação
classe/raça, mas também a própria autodeclaração racial, ou seja, as proporções raciais do
país. A relação entre as políticas afirmativas e a reivindicação da identidade negra por parte
desses sujeitos “pardos” acrescenta suspeita a essa autodeclaração, pela própria plasticidade
da categoria. Apelida-se de “afroconveniente” aqueles pardos, por exemplo, que supostamente
passaram a denominarem-se negros em vistas das vagas para cotistas. O fato é que, para
Oliveira e Oliveira (1974) citado por Campos (2013), “o mestiço é o principal ‘Obstáculo
epistemológico’ para a compreensão das relacionais raciais no Brasil” (p. 82). Esse obstáculo,
27
Faço referência aos casos veiculados na mídia de fraudes nos sistemas de cotas de universidades públicas e
concursos para cargos públicos, como exemplo: “UFJF divulga resultado de sindicância que apurou denúncias de
fraude em cotas”, G1, 16/07/2018, <https://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noticia/ufjf-divulga-resultado-de-
sindicancia-que-apurou-denuncias-de-fraude-em-cotas.ghtml>.
35
segundo Campos (2013), foi transposto para a política através das ações afirmativas. Uma
controversa interessante é que, ao passo que os “pardos” configuram um desafio, também é a
saída para que se compreenda a extensão do racismo na sociedade brasileira. A questão que
está colocada também passa pela compreensão de que, na medida em que as políticas
afirmativas constituem as ações que tematizam a reparação, o incentivo à diversidade e a
positivação da negritude, sua potência está em mobilizar a adesão ao grupo. Isto é, indivíduos
negros que antes se pensavam a partir da ótica do branqueamento, passam a desenvolver
orgulho e a declararem-se negros.
O contexto que temos desenhado até aqui, e que inclui a expansão das políticas
afirmativas, o crescimento da população autodeclarada negra no Brasil e as crescentes
denúncias de fraudes28 no sistema de cotas, configura uma situação em que a autodeclaração
negra, desses indivíduos de pele clara, é colocada em suspenso.
Escolho tratar desse tema na Antropologia, disciplina que acumula uma vasta produção
acerca das questões identitárias e de relações étnico-raciais. Esse acúmulo, não podemos
deixar de mencionar, é, também, fruto do papel colonial que o campo desempenha. A
Antropologia reivindica para si a autoridade de falar sobre as identidades, os cultos, e os
costumes alheios, sob a rubrica da alteridade. Skidmore (1976) mostra que, sobre as Ciências
Sociais no Brasil, “a antropologia física foi das primeiras disciplinas reconhecidas [...] em
1876, [quando] um laboratório de fisiologia experimental foi fundado, em conexão com o
Museu Nacional, no Rio de Janeiro” (p. 73). Outro em 1893, com o Museu Paulista, e o
Museu Paraense em 1885 em Porto de Belém. Eles se ocupavam dos
28
Ainda que o tema mereça ampla discussão, conservamos aqui o termo “fraude” que aparece nas manchetes
jornalísticas a respeito dessas situações, a exemplo da matéria “A luta contra os fraudadores de cotas raciais nas
universidades públicas” da BBC, disponível em <https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/02/23/a-luta-
contra-os-fraudadores-de-cotas-raciais-nas-universidades-publicas.ghtml>.
36
Essa passagem nos faz pensar duas coisas. A primeira é que há algo em comum entre
“nativos e antropólogos”, que é, dentre muitas outras coisas, a capacidade compartilhada de
produzirem saber, se assim não fosse, não seria possível produzir as extensas dissertações que
a Antropologia tem escrito sobre “a cultura” dos diferentes povos. A questão é que, o
reconhecimento intelectual tem se dado apenas sobre um lado dessa relação. Observando a
produção intelectual de autores periféricos indígenas, negros, ou pertencentes a demais grupos
minoritários, entendemos a potência que reside em desestabilizar as posições tradicionais
acadêmicas. Esse é um modo importante de se produzir intertextualidade e multivocalidade
textual (encontros e trocas), em contraste a uma experiência de sobre-texto
(sobredeterminação, colonialismo) que tradicionalmente a Antropologia tem desenvolvido até
aqui. Eis a motivação que perseguimos.
29
A respeito do que tratamos nesse trabalho, Nina Rodrigues inclusive escreveu sobre os diferentes tipos de
mestiço. Para o autor, existiriam três subgrupos: “o tipo superior (inteiramente responsável, no qual, é lícito
presumir, incluir-se-ia o próprio Nina Rodrigues); b) os degenerados (alguns parcialmente responsáveis; o resto,
totalmente irresponsável; e c) os tipos instáveis socialmente, como os pretos e os índios, aos quais se podia
apenas atribuir ‘responsabilidade atenuada’ (responsabilidade atenuada como os menores)” (SKIDMORE, 1976,
p. 76).
37
Com isso, podemos apresentar como esse trabalho está organizado: o segundo capítulo e
o terceiro, os quais sucedem esta Introdução, são dedicados aos nossos interlocutores e
entrevistados autodeclarados negros, com pele clara, que são provocados a pensar sobre suas
trajetórias, em termos de um processo de racialização. Partimos do entendimento de que todos
aqueles que assim se declaram, negros, reivindicam para si uma trajetória racializada, ainda
que sejam elas múltiplas. Pois, “é preciso [...] entender que a identidade coletiva não
corresponde necessariamente a um modelo estanque em que os sujeitos estejam
preconcebidos” (SILVA, V., 2016, p. 157).
É compreensível a atenção que o termo “negro de pele clara” chama para si. Isso
porque, ele estaria configurando duas ideias inicialmente opostas: “negro” e “pele clara”.
Trabalhamos, portanto, nesses capítulos, com duas ideias de diferença: a primeira que diz
respeito a autodeclaração étnico racial do tipo negro-branco e a segunda que encara possíveis
desigualdades no interior da comunidade negra, do tipo pele preta ou pele clara. Essa segunda
ideia de diferença parece incorporar ou antecipar um processo de heteroidentificação. Já me
explico: ninguém se apresenta como “negro de pele clara”, e sim “negro”, apenas. A
especificidade da “pele clara” aparece quando o contexto solicita um complemento naquela
autodeclaração racial. Nesse sentido, embora a auto e a hetero-identificação, “negro e
branco”, se deem por critérios fenotípicos, operam em um espectro mais ou menos amplo para
os negros – comporta pretos, pardos e todos os outros termos correlatos que denotam
mestiçagem. O “negro de pele clara” está dentro desse grupo “negro”, e a “pele clara” só
interessa ser destacada quando, o que está em questão, são as diferenças dos negros de pele
preta e clara. Esse posicionar-se é um cálculo extremamente complexo e importante, assim
descrito por Guimarães (2008):
O “negro de pele clara” também nos indica outra coisa: ele estaria se retirando daquele
tão discutido lugar de meio, de trânsito ou “passabilidade”. Ele poderia se autodeclarar apenas
pardo, moreno, ou qualquer uma das mais de 135 cores que as pesquisas já registraram em
1976, ou as 143 cores da pesquisa da Pesquisa Mensal de Empregos (PME) em 198830. Ou
seja, o "negro de pele clara” é uma elaboração identitária que assume uma posição no
dualismo “negro-branco” e que, ao mesmo tempo, leva em consideração a mestiçagem.
No terceiro capítulo, conversando com pessoas autodeclaradas negras, com pele clara,
analiso a forma como essa identidade é elaborada por esses indivíduos na relação com o
outro. Observo nessa trajetória a relação com a família, amigos, com a própria Universidade,
com os movimentos negros e com os diferentes temas relacionados à identidade racial. Busco
compreender, em outras palavras, aquilo que Neusa Santos (1984) chamou de “tornar-se
negro”. Na medida em que a sociedade cria uma identidade negra como denotativa de
características, comportamentos e legado histórico indesejável, assumir-se negro não é um
processo automático. Segundo D’Adesky (2001),
[...] a negritude vai além da simples identificação racial. Ela não somente é
uma busca de identidade enquanto forma positiva de afirmação da
personalidade negra, mas também um argumento político diante de uma
relação de dominação. Ela serve aos militantes como vetor entre as
identidades pessoal e coletiva. As palavras de Aimé Cesaire assim resumem
a negritude: “(...) é o simples reconhecimento do fato de ser negro, a
aceitação desse fato, do nosso destinado de negro, da nossa história e da
nossa cultura” (p. 140).
30
Examinando essa Dissertação, Jacques D’Adesky (2021) indica algo que corresponde ao argumento
desenvolvido aqui: citando José Luis Petruccelli, D’Adesky aponta que, ao contrário da suposta incapacidade de
se determinar as classificações raciais no Brasil, em função dessa multiplicidade de termos, “um conjunto bem
pequeno de sete denominações acumula 97% das respostas, e dez delas conseguem cobrir 99% do conjunto”.
39
duas coisas são verdade no nosso processo de formação nacional e de relações sociais: a
mestiçagem e o racismo31.
Por fim, como nos antecipamos no início do texto, no quinto e no sexto capítulos,
tentamos propor uma contribuição teórica a respeito do “colorismo” desde o nosso contexto.
Pensamos, nesses capítulos, em responder as seguintes questões: os mestiços, população
produzida para ocupar, supostamente, um lugar de “meio”, está hoje em que posição da
estrutura social brasileira? Esse “meio” é um lugar racializado? Ainda se mantém verdadeiro
que pretos e pardos compartilham dos mesmos indicadores sociais? Se a democracia racial
brasileira é mentira, também é mentira que o Brasil é o paraíso dos mulatos? Essas questões
nos encaminham para pensar uma perspectiva contextualizada a respeito do colorismo. No
quinto capítulo tentamos desmembrar conteúdos internos ao colorismo e discuti-los, ponto a
ponto, enquanto no último capítulo, a ênfase está na aproximação entre o colorismo e o campo
teórico brasileiro sobre a miscigenação, tema que já acumula muitas produções. Fazemos isso
no intuito de propor um pensamento próprio, brasileiro, acerca das preocupações que o
colorismo tem trazido, enquanto um conceito que opera politica e teoricamente no campo das
relações raciais do país atualmente.
Como costuma ser, a primeira parte desse trabalho corresponde à busca pelas
referências bibliográficas que amparam a pesquisa e ampliam suas possibilidades
interpretativas - ou compreensivas. Revisitei os clássicos e foi muito interessante observar que
termos como “mestiço” são usados de forma dúbia. Às vezes irão tratar sobre aquelas pessoas
com fenótipo mestiço, quem possivelmente estaria inserido na categoria dos “pardos” do
IBGE. Às vezes irá se referir a pessoas com fenótipo branco, com ascendência familiar branca
e preta. Ou seja, “mestiço” pode se referir a um fenótipo, mas também a um genótipo, e nossa
atenção precisa estar aguçada para captar os contextos respectivos. A pesquisa bibliográfica
também buscou as atuais discussões sobre mestiçagem e colorismo. A respeito do último
tema, como já discutido, as pesquisas no Brasil são iniciais, de forma que encontrei esse
conteúdo em ambientes online menos formais, a exemplo dos textos de sites como Portal
Geledés e Blogueiras Negras, trocas em redes sociais como Facebook e Instagram, e vídeos
no Youtube. Falei anteriormente que o colorismo já é um tema de pesquisa consolidado nos
Estados Unidos, dessa forma, pude conhecer alguns trabalhos desenvolvidos naquele país.
31
Em comparação com os Estados Unidos, por exemplo, Edward Telles (2003) irá dizer que “os Estados Unidos
têm muito o que aprender sobre como não ser obcecado com a cor da pele, a partir das experiências do Brasil e
que isso não impede o racismo” (p. 282).
40
Quanto aos meus entrevistados, usei de pseudônimos para eles e para os membros da
Comissão de Aferição da UFBA, quando registrei suas ações e falas no processo etnográfico.
Esses nomes trazem à tona personalidades negras importantes da nossa história, ou irmãos
cujos corpos desapareceram, Amarildo, e cuja morte segue sem explicação, Marielle. Devo
ainda dizer que as falas dessas pessoas aparecem sempre destacadas pelo itálico.
Vamos à apresentação dos nossos interlocutores: Jaci, Davi e Elza eram, no momento
da entrevista, ex estudantes formados na graduação da UFBA. Além de “negros de pele
clara”, estudaram na Universidade num momento em que as comissões de heteroidentificação
ainda não existiam na seleção de alunos cotistas, julguei importante compor essas discussões
com esses estudantes de outras gerações. Eles eram pessoas que eu já mantinha uma relação
de proximidade anteriormente, o que me permitiu a abordagem nesse momento da pesquisa.
Entrevistei Jaci num shopping, próximo ao bairro de sua residência. Elza, por sua vez,
conversou comigo na casa de um amigo em comum, também próximo de sua moradia. Com
Davi, que é um amigo muito próximo, aproveitei um momento de visita em sua casa para
entrevista-lo. A professora Beatriz, com a qual tive uma conversa mais informal, também foi
estudante da UFBA. Ela se declara negra, com pele clara, e nossa conversa aconteceu em sua
casa, num momento em que falávamos sobre questões da pesquisa. Laudelina é graduanda na
UFBA, mas no momento em que ingressou, a Comissão ainda não estava instituída. Ela
também é alguém que se declara negra, com pele clara, e que eu tinha uma relação de
proximidade anteriormente, o que me permitiu o contato para a entrevista. Nossa conversa
aconteceu na própria Universidade, logo após suas aulas da manhã. Carlos e Marielle, “negros
de pele clara”, também estudantes de graduação da UFBA, não passaram pela Comissão. No
ano em que ingressaram na Universidade, as Comissões já existiam, mas, segundo me
contam, por terem uma formação de qualidade na educação básica, não optaram pelas cotas.
Os entrevistei na Biblioteca Pública dos Barris juntos, o que, como desenvolvo ao longo do
trabalho, influenciou as posições que ambos desenvolviam. Suas falas eram, em geral, no
sentido de encontrar similaridades e concordâncias entre suas experiências. Não conhecia
Carlos e Marielle antes de iniciar essa pesquisa, meu contato com eles se deu pelo intermédio
de uma amiga, com quem conversei sobre minha proposta de trabalho. Manoel e Chica, por
sua vez, são estudantes cotistas aprovados pela Comissão. Também não os conhecia, porém
Manoel foi alguém que, numa conversa em um grupo da UFBA do Facebook, se colocou
como estudante cotista negro, aprovado pela Comissão de 2019. Como estava pesquisando
esses assuntos nessa rede social, o vi, entrei em contato, e marcamos um momento presencial
na UFBA para conversarmos. Manoel me indicou Chica, sua amiga, que recebeu bem a
41
proposta do trabalho. Com Chica a entrevista aconteceu numa praça próxima à sua casa, no
bairro da Fazenda Grande do Retiro (Salvador). Dias é estudante de graduação n’uma
Universidade privada. Isso porque, tendo se candidatado às cotas raciais, foi reprovado pela
Comissão da UFBA. Eu sabia que contatar os estudantes reprovados pela Comissão não seria
fácil. O caminho que busquei foi o de procurar os nomes das listas dos indeferidos desse
processo seletivo, nas redes sociais do Facebook e Instagram. Nessa busca, consegui
encontrar poucas pessoas que tinham um nome ou sobrenome singular. Algumas delas não me
responderam, ou não quiseram conversar comigo. Dias aceitou, foi bastante solícito e me
recebeu em sua casa para a entrevista. Amarildo e Luís foram os membros da Comissão
entrevistados. Luís participou da banca no primeiro ano em que ela foi organizada para a
seleção de estudantes cotistas, e Amarildo participou no ano seguinte, quando essa pesquisa
aconteceu. Eles tiveram um papel importante nesse trabalho, na medida em que nos falaram
sobre os processos de heteroidentificação. Ambos têm uma relação com o Instituto Federal da
Bahia, onde cursei o Ensino Médio, o que me facilitou o contato. Luís é professor e Amarildo
ex-aluno. Conversar com Luís foi interessante porque, além do trabalho de
heteroidentificação, ele falou do lugar de um “negro de pele clara”. Luís me foi sugerido
como entrevistado pela professora Beatriz. Amarildo, por outro lado, era alguém que eu já
conhecia. Quando acompanhei o curso de treinamento dos membros da Comissão de 2020, o
vi dentre os integrantes e marcamos nossa entrevista. Conversei com Luís no próprio IFBA,
onde ele leciona e, Amarildo, na UFBA, onde ele trabalha e estuda.
A escolha dessas pessoas se deu por um “mapa de tipologias”32, que dentro da teoria
metodológica de Gaskell (2002), aparece como “seleção dos entrevistados”. Essa seleção não
se refere ao esforço de “retirar uma amostra” - “a amostragem carrega, inevitavelmente,
conotações dos levantamentos e pesquisa de opinião onde, a partir de uma amostra estatística
sistemática da população, os resultados podem ser generalizados dentro de limites específicos
de confiabilidade” (Ibid., p. 67). O “mapa” é uma seleção de entrevistados baseados em seus
grupos de pertencimento, suas vivências em Salvador, e sua relação com a UFBA como
estudantes ou membros da Banca. Tal como adverte Gaskell,
32
Proposta metodológica do professor Dr. Milton Júlio de Carvalho Filho, em reunião de orientação.
42
Observei que apesar de não ter sido uma reação unânime, houve, por parte dos meus
entrevistados, uma grande aprovação quanto à problemática do trabalho de pesquisa. Chica
por exemplo, me disse que não costuma participar de pesquisas quando é convidada, mas
achou muito interessante o tema. Como dissemos antes, eu não conhecia os estudantes mais
novos, os que tinham passado pela Comissão. Carlos, um dos meus entrevistados, me ajudou
nesse trabalho:
Carlos: Quando a gente conversou pela primeira vez que você pediu pra eu
ver pessoas que se identificavam como pessoas negras, de pele clara, eu
publiquei lá, eu fiz uma seleçãozinha e publiquei lá. [...] E aí eu fiz uma
postagem e eu percebi que as pessoas que se ofereceram pra falar sobre o
assunto eram pessoas do meu contexto acadêmico, sabe? Pessoas que se
reconheciam como negros de pele clara. E de pessoas que não militavam,
pessoas negras mais retintas até chegaram pra mim e mandaram
mensagem: “Isso existe? Pessoa negra de pele clara?”. E eu falei:
“existe!”. Sabe?
Por fim, percebo que não pude fazer uma escolha entre a análise de conteúdo (AC) ou
análise de discurso (AD) no tratamento dos dados das entrevistas, optei por ambos. Quando,
por exemplo, um entrevistado fala que “negros sofrem racismo” e ele mesmo se autodeclara
negro, tento observar como essa frase faz sentido em sua vida. Isso é uma prática de análise
discursiva:
De outra forma, também quero saber como os interlocutores dessa pesquisa significam
os termos “afrobege” e “afroconveniente”. Essas palavras que não estão no dicionário,
aparecem na linguagem corrente dessas pessoas. Nesse sentido, encontro subsídios dentro da
análise de conteúdo para tal investigação, entendendo que a AC é:
Falava lá atrás que eu me localizo explicitamente nesse texto, porque ele, em grande
medida, reflete a minha própria vida. Finalizo esse momento com uma passagem da obra
44
“Tornar-se negro” de Neusa Santos. “Tornar-se negro”, diga-se de passagem, é uma das bases
fundamentais dessa pesquisa, seja para pensar a trajetória de quem eu entrevisto, seja para
fazer a mim mesma uma pesquisadora:
INCIDENTE NA RAIZ33
Cuti
33
Contos Crespos. Disponível em <https://www.cuti.com.br/contoscrespos>.
46
Um dia conversava com Elza, minha amiga e uma das entrevistadas desse trabalho,
sobre o transe no Candomblé. Filha de Obaluaê, raspada34 há cinco anos, me corrigiu
imediatamente quando usei o termo “incorporação” nessa conversa. Elza me disse que
incorporar é uma ideia que compete a outras religiões, utilizada para se referir a entidades que
não são os Orixás. Incorporação, ela me explica, dá a ideia de que algo externo, alheio ao
indivíduo e que se liga ao corpo. O Orixá da sua cabeça não está fora, está na sua cabeça,
portanto ele não se incorpora, se manifesta35.
Existem muitos vocábulos possíveis para descrever o processo que estamos prestes a
narrar. A psicanalista Neusa Santos Souza (1983) nos fala sobre o “tornar-se negro” (nome da
sua obra) e apresenta o seu livro dessa forma:
34
Parte do ritual de iniciação no Candomblé.
35
Desde a ideia de possessão, transe, incorporação e manifestação, diferentes termos marcam essa presença dos
Orixás nos seus filhos. Lima (2015), ao trabalhar com alguns desses conceitos, irá nos falar que “o corpo é a
manifestação do Orum, na forma concreta e visível do homem no Àiyé, dividido em complexo interno e externo.
O complexo interno do corpo, os órgãos, sistemas e entranhas (Inu) são presididos por Exu, o Bará, o princípio
da individualização. O Inu está ligado ao ordenamento do fluxo vital, o pejo, o sangue que propicia os
batimentos cardíacos e a solidariedade dos sentidos com o mundo” (p. 26).
47
36
Temos como referência o trabalho citado nessa pesquisa, de Ferreira (2001), sobre a prática política que os
autodeclarados negros passam a ter, nos primeiros estágios dessa afirmação racial.
37
Essa régua parece se referir as heteroidentificações que acontecem fora de ambientes formais, como nas redes
sociais de Internet, e que expõe os envolvidos a situações constrangedoras, diferente do que ocorre, por exemplo,
nas comissões de heteroidentificação racial.
48
Inspirada em muitos trabalhos anteriores dos intelectuais negros brasileiros, “o negro desde
dentro” é a expectativa de trazer as histórias de pessoas autodeclaradas negras, levando a sério
os seus conflitos, as suas trajetórias e os seus sentimentos. É a necessidade de escrever sobre o
“negro-vida”, bem mais complicado que o “negro-tema”, como nos ensina Guerreiro Ramos
(1995). Se o chão do negro-tema é a unicidade da experiência, o quadrado cartesiano,
pensando de maneira afroperspectivista (NOGUERA, 2011), o plano de imanência do negro-
vida é a roda, cada um tem espaço para o seu próprio samba.
A imagem que segue, tirada do grupo “Mulheres Negras” do Facebook, nos introduz a
pensar o lugar de identidade dos negros com pele clara. Esse tipo de mensagem é
extremamente comum nas redes sociais da Internet, quando se discute raça.
Nesse texto, a autora narra suas características físicas e de seus familiares, pedindo ajuda para
os demais membros desse grupo, sobre o reconhecimento racial que lhe diz respeito. Nosso
intuito não é o de avaliar a identidade racial dessa autora, mas identificar primeiramente, a
importância que essas questões têm para os indivíduos que passam por esses processos de
“tornar-se” e, ao mesmo tempo, os critérios e as emoções que são reivindicados nesses
momentos. Veja,
49
A Internet é parte importante desse trabalho, é muito vasto o conteúdo que encontramos
nas redes sociais sobre as polêmicas da autodeclaração e da heteroidentificação negra, mais
adiante veremos também como ela é notória para a atual projeção que o tema “colorismo” tem
no Brasil.
Manoel nos conta que sua elaboração como pessoa negra surgiu após o ingresso na
UFBA em 2019. Nesse momento, tanto a atuação política dos grupos que teve contato, quanto
às aulas, têm um papel nisso. A professora de uma das disciplinas do seu curso de História lhe
fez refletir sobre à contra-universalidade do tempo para os diferentes povos, e isso incluía
debates que tratavam sobre racismo e relações de gênero e sexualidade.
Manoel já tinha um engajamento anterior com o movimento social, ele integrava uma
organização que debatia a pauta LGBTQI+ e classista. Mas esse engajamento anterior não
permitiu que avançasse no reconhecimento da sua identidade racial, somente na Universidade
Manoel teve contato com esse nível de reflexão. A Universidade é apontada pelos
movimentos sociais como um ambiente muitas vezes classista, racista e hostil. Nos últimos
anos de graduação (entre 2013 e 2017) lembro-me como cresceram a quantidade de cartazes
que convidavam estudantes para rodas de conversas, ou divulgavam grupos de apoio em torno
de problemáticas ligadas à saúde mental de estudantes na Universidade. Ainda assim, ou
justamente por isso, é um ambiente que colabora muitas vezes para que as pessoas
manifestem essa identidade negra e elaborem seu pertencimento.
38
Sobre a polêmica da escolha dos termos “preto” ou “negro” ver: VALENTIM, M. L. Negro ou preto? Eis a
questão. Disponível em <https://midianinja.org/editorninja/negro-ou-preto-eis-a-questao/>. CUTI (2010)
também irá nos trazer que “Na década de 60, a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos empregou a palavra
‘black’ cuja versão correta, no contexto social brasileiro, é “negro” e não preto como querem alguns. Ou seja,
51
Dias sintetizou o seguinte: se pardo é negro, e eu sou pardo, por consequência sou
também negro. Meu contato com ele, como tinha contado antes, se deu primeiramente por
uma rede social. Iniciamos conversa e então Dias pediu que o telefonasse. Na ligação ele me
falava com muita ansiedade como ser reprovado pela Comissão havia mexido
emocionalmente com ele e sua família, ele me perguntava como poderia resolver aquilo.
Aquilo era sua autodeclaração. Ele me falava que sempre que era provocado, desde criança, a
informar sua cor ou raça, respondia como sendo pardo. É algo, inclusive, que foi parte do seu
recurso para a banca que lhe reprovou.
Elza, ex-estudante da UFBA, também se afirmava parda. Sua elaboração racial veio a
partir da participação num cursinho preparatório negro, em 2008. A narrativa dessa trajetória
centraliza os “privilégios” que uma pele clara teria lhe dado.
Elza: Então, quando passei pelo processo [do cursinho] foi quando eu criei
a minha identidade, né. Consegui me identificar, falar “eu sou negra”, mas,
eu me sinto muito insegura porque o tempo todo eu ainda me vejo
bombardeada com relação a isso, principalmente porque assim, por mais
que eu saiba que eu sou afrodescendente, o meu tom de pele pode me dar
privilégios que pra outras pessoas não dão, porque as outras pessoas me
enxergam de forma diferente do que essas pessoas são, entendeu?
Elza irá nos dar um importante depoimento sobre seu cabelo crespo, e que é parte dessa
trajetória de autodeclaração negra. “Transição capilar” é o termo que corre na Internet para
nomear o processo pelo qual as pessoas deixarão de alisar o cabelo até que ele esteja em sua
forma natural (entendida como não alisada, o “natural” não impede outros procedimentos
químicos de mudança de cor, por exemplo). Vejamos o que diz Nilma Lino Gomes (2006):
este assumir a palavra ‘negro’ pelos próprios negros não é recente, nem tampouco local” (Quem tem medo da
palavra negro? p. 4).
52
Voltemos a Elza:
É como se a transição capilar apontasse para a consciência negra. Nilma Lino Gomes
(2006) nos indica como a manipulação do cabelo pode oferecer para as pessoas negras um
trânsito de categorias – repare que esse trânsito não acontece entre as categorias díspares
branco-negro, e sim entre àquelas que remetem, ambas, ao ser negro:
A transição capilar, impulsionada por essa experiência de cursinho negro engajado, foi o
divisor de águas para Elza. A história que sucede, fala sobre como o ingresso numa Instituição
Federal lhe foi opressora39. Essa experiência lhe desencadeou um quadro depressivo, e ao
39
Em 2008 quando ela prestou vestibular, o IFBA se chamava CEFET, e era um Centro Federal de Educação
Tecnológica. Quando eu estudava no IFBA e era colega de sala de Elza, desenvolvi uma pesquisa sob a
53
mesmo tempo serviu para reforçar aquele sentido de identidade que ela tinha começado a
(re)posicionar no cursinho. Embora todos os tópicos que arbitrariamente eu dividi, tenham
conexões entre si, essa foi a forma que consegui organizar o meu pensamento, e por isso
mesmo, essa experiência de opressão (racismo) falaremos mais adiante.
Voltando a transição capilar, esse é um processo muito potente na vida das pessoas que
passam por ela, particularmente mulheres, sendo um tema que se repete espontaneamente na
fala de outras entrevistadas. Laudelina, por exemplo, é outra mulher autodeclarada negra,
antes identificada como parda, que nos traz um relato importante sobre essas conexões que
temos falado sobre identidade-cabelo.
Veja, o cabelo é o mais importante fator que faz a ponte entre Laudelina e seu
reconhecimento, segundo ela, “principalmente [para] mulheres da minha cor assim, [o
critério mais importante] é a questão do cabelo”. Seu tornar-se marca de mais ou menos
2015, ano em que inicia a transição capilar e um ano depois do ingresso na UFBA. Durante a
graduação, Laudelina começou a participar de um grupo político de esquerda com atuação na
própria Universidade. Nesse grupo do movimento estudantil é que ela começa a ser provocada
sobre sua autodeclaração: “eu era questionada ‘olha, eu acho que você não é branca, não.
Vamos ler mais sobre isso, vamos ler feministas negras, vamos’...”. Jaci nos dá outra narrativa
sobre a importância da transição capilar nessa trajetória do descobrir-se negra:
O que me levou a questionar foi a transição capilar, por incrível que possa
parecer. [...] A minha transição capilar está fortemente ligada a minha
construção identitária e do reconhecimento enquanto mulher negra na
sociedade.
Laudelina nos falava que sua transição capilar começou quando ela quis dar uma
oportunidade para o seu cabelo. Voltando à minha própria história, eu também não comecei a
orientação da professora Naiaranize Pinheiro da Silva a respeito das políticas afirmativas na instituição. Nele,
mostramos como o perfil do antigo CEFET mudou. Essas antigas escolas técnicas “[...] nasceram como opção
àquela classe desfavorecida que não tinha acesso às universidades, mas com o passar do tempo tornaram-se cada
vez mais elitizadas pela demanda crescente de classes mais ‘afortunadas’ que viam no ensino técnico boas
oportunidades de emprego nas indústrias, a exemplo do Pólo Petroquímico de Camaçari–Bahia”
(RODRIGUES&SILVA, 2012, p.2). Ou seja, tal como as Universidades Federais, o IFBA também é esse lugar
onde classes desfavorecidas em menor proporção, convivem com a classe média, e cujas experiências de
opressão também se cruzam.
54
minha transição capilar em nome de uma afirmação negra, em 2012. O meu cabelo estava
muito fragilizado com os sucessivos processos químicos e térmicos que o submetia para alisá-
lo, desde os 14 anos. Essa fase foi extremamente dolorida. Lembro que odiava o meu cabelo,
me sentia feia e dizia diante do espelho “eu sou um monstro”. Meu cabelo estava caindo cada
vez mais, eu não tinha autoestima para cuidar de mim, e também não tinha dinheiro para
investir em cuidados que ele requeria. Quando parei de alisar, o fiz porque queria dar um
tempo para que meu cabelo crescesse, e então eu voltaria a alisar. Jaci também parou de alisar
por causa dos danos que esse processo estava lhe acarretando.
Essas histórias parecem alimentar a ideia de uma transição capilar e uma transição na
autodeclaração racial. Essas mulheres não se descobriram negras e então decidiram parar de
alisar o cabelo, os dois processos aconteceram simultaneamente. Dito isso, não posso
extrapolar as experiências de Jaci, Elza ou Laudelina, para falar sobre todas as outras. Elas
servem para informar que a transição, aparentemente situada dentro das preocupações
estéticas, é algo maior e profundamente complexo.
Chica, por sua vez, não narra um processo de transição capilar e foge a regra que se
manteve até aqui: a passagem de uma identificação parda para negra. Ela sempre se entendeu
como pessoa preta, e ainda assim, precisou reconhecer-se negra. Ou talvez, no seu caso,
podemos falar sobre um processo de reafirmar-se.
Sua compreensão como preta era algo que a mãe lhe educou a ter: “Rapaz... Eu lembro
que minha mãe sempre me dizia que o pardo é o... [...] Era algo como se pardo é o preto que
não quer ser”. Ou seja, Chica sempre se identificou como preta, e os conflitos que ela viveu
entre o Ensino Médio e a Universidade, foram os gatilhos para que se aprofundasse e
organizasse um sentido próprio sobre ser negra. Estou falando que, assim como os demais
entrevistados, que se identificando com pardos precisaram elaborar um pertencimento negro,
Chica, igualmente de pele clara, educada desde criança a identificar-se como preta, também
precisou passar. Tanto para o pardo, quanto para o preto, o ser negro é algo colado a essa
identificação visual de cor, mas é colado por traz: todo o seu conteúdo não está disposto para
a reflexão assim, de primeira, é por isso que Neusa Santos Souza (1983) fala sobre o tornar-se
negro, seja para sujeitos pretos ou pardos.
Como Chica, Carlos e Marielle são pessoas que se identificavam como pessoas pretas,
antes mesmo de elaborarem um “ser negro”. Diferente do que poderíamos supor, nenhum
deles é oriundo de famílias engajadas politicamente. As histórias de Carlos e Marielle
apresentaremos juntas, porque como mencionamos antes, entrevistei os dois ao mesmo tempo.
A fala de Carlos ressalta um argumento importante, o tornar-se negro não é uma escolha
aleatória ou arbitrária, envolve crises pessoais e muitos movimentos (de leitura ou de prática
política, por exemplo) que as pessoas fazem em direção a essa identificação:
Era algo que eu preferia evitar pensar, sabe? Eu nunca cheguei assim em
um momento: “Agora, esse dia eu vou tirar pra decidir como eu… Como
vou me enxergar… Como eu sou visto”. [...] Além da faculdade você
percebe na rua, sabe? Quando eu entro com meu amigo que é branco num
ônibus, não é pra ele que passam o olho às vezes, sabe? Então essas
questões do dia a dia também influenciaram bastante. Foi o fator vivência.
É como se a faculdade fosse uma teoria, sabe? Eu me encaixo como negro,
por ser e conviver, mas na rua é muito a prática também que a gente tem,
sabe? A discriminação que é presente. E isso me ajudou a me ler também
como uma pessoa que eu já tinha definido o que eu era, só não conseguia
enxergar isso.
Tem uma frase que minha mãe repete até hoje: “Vai pra onde toda
arrumada assim? Onde é que já se viu preto arrumado assim? Não sei o
quê” e várias outras coisas. Às vezes quando a gente é criança na inocência
né? A gente fala alguma coisa que tipo assim, às vezes a gente fala algumas
coisas que implique que a gente é clara e aí ela olha pra gente e fala: “onde
é que já se viu filho de preto ser branco? Você é preta”. Tipo como uma
forma de colocar a gente no nosso próprio lugar, sabe? E eu sempre me vi
como negra.
Preta e negra. Como os demais, Marielle precisou reencontrar a si mesma como pessoa
negra, de acordo com o que foi educada desde criança:
Mas minha presença nesses espaços mais abertos onde as pessoas falavam
das suas vivências me fez me identificar com as vivências delas e aí eu
comecei a ressignificar, entende? Medos que eu tenho e que eu achava que
eram universais, por exemplo, que eu percebo que não são. E eu passei a
prestar atenção dos meus amigos brancos que eu tinha na universidade
ainda e eu percebia que não eram. Por exemplo: entrar numa loja e ficar
com medo de sair sem comprar nada, tentar mostrar que não está roubando.
Eu achava que isso era algo universal, que todo mundo fazia isso, que era
normal, você vai entrar numa loja e as pessoas realmente vão pensar que
você vai roubar e eu nunca percebi que realmente meus amigos brancos não
passavam por isso. Entrar de mochila em lojas e perceber seguranças
olhando com mais atenção, eu achava que era normal, tinha que ser normal,
pois não era racismo, não tinha como ser racismo pois e não era negro, eu
era pardo.
Num país cuja imagem nacional se constrói com um discurso forjado da mistura das três
raças, que tem democracia racial como um mito levado a sério, para escamotear os crimes de
racismo desde a fundação desse país, não é difícil entender porque é tão comum que as
pessoas alcancem a questão racial relativamente tarde. Mesmo para pessoas que se lançam em
um engajamento político, costumam trilhar um percurso entre diferentes frentes de atuação,
como Manoel na pauta LGBTQI+ e classista, ou Davi com o movimento estudantil, até que
alcancem o discurso dos movimentos negros.
Como tinha dito anteriormente, para fins metodológicos, esse grupo de negros claros
que entrevistamos, é de estudantes, ex-estudantes da UFBA, e Dias, que se candidatou à vaga.
Não suponho que estar inserido na Universidade é parte indispensável para que o indivíduo
desenvolva àquilo que os movimentos sociais negros tendem a chamar de letramento racial.
A Universidade fez parte da jornada dessas pessoas e essa experiência repercute na elaboração
subjetiva que fazem de si, inclusive, ou especialmente, como pessoa negra. Assim como
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penso que a Universidade confere uma experiência importante para essa reflexão identitária,
percebo que o fator geracional também tem seu peso.
Pensar a identidade negra para mestiços ou pardos, ou a relação cabelo crespo-negritude
não são coisas novas. Mas existe uma conexão entre tudo isso e a Internet, a partir mais ou
menos, de 2014, que merece atenção. Vamos olhar para a história de Beatriz. Ela é uma
pessoa muito importante na minha formação. Sua carreira docente tem mais de 20 anos e esse
tornar-se negra, entretanto, é relativamente recente. Para ela, isso se associa ao exercício da
sua profissão:
Também, né? De ficar estudando, e lendo coisas e... Acho que a primeira
vez que eu comecei a reagir digamos assim, ao racismo, é aquela coisa da
casa, né? Todo mundo... Metade tem cabelo entre aspas bom, metade tem
cabelo ruim. Então chegou uma hora que eu disse: “meu cabelo é bom, meu
cabelo aguenta guanidina, hidróxido de sódio, tudo que é coisa que alisa,
prancha quente, prancha fria e o cabelo não cai... É ótimo! É muito forte,
saudável, então não pode ser questionado de cabelo ruim”. Isso é uma...
Digamos uma reação, né? Ao que eu ouvia dentro de casa.
Gabriela: A senhora já era professora?
Beatriz: Sim, já era professora. A vida toda eu sempre ouvi um monte de
coisas, principalmente em relação ao cabelo. [...] Tinha um amigo de meu
pai que era médico aqui em Salvador que ia lá em Mangabeira, que
chamava a gente das “holandesas”, porque eram cinco meninas, né? A
minha família, todas bem branquinhas, as bochechinhas, os cabelos
cacheados quando eram crianças, loiras, e eram “as holandesas” né? E eu
me lembro que eu era criança e achava o máximo. Ser chamada de “As
holandesas”...
Gabriela: A senhora era loira também quando era criança?
Beatriz: Era loira. Todo mundo era loira lá em casa, só tem uma que não
era loira, que nasceu mais morena desde cedo, né? A pele mais escura e o
cabelo mais crespo, e sofreu muito. [...] então, essas coisas todas dentro da
família, elas marcam, né? A construção de nossa identidade.
Ser alguém com mais de 40 anos, professora há mais de 20 anos de uma disciplina das
ciências humanas e doutora, não conferiu a Beatriz uma posição de estabilidade quanto a essa
elaboração racial: “Eu tenho clareza que nem tudo tá muito resolvido na minha cabeça até
hoje. [...] Acho que é um processo que me da uma tranquilidade também de não querer
cobrar das minhas alunas, você tem que ser isso, você tem que ser aquilo”. Com isso eu
quero falar que não foram apenas a formação acadêmica e os contatos políticos, nas
instituições de ensino que ela estudou e leciona, os responsáveis por esse torna-se negra: se
assim o fosse, teria acontecido antes. Apenas nesse contexto político é que Beatriz começa a
pensar mais detidamente sobre essas questões.
Faço uma pequena pausa nessa conversa com os meus interlocutores, para desfazer um
possível ruído de comunicação: sinto que a forma como dispus o texto até aqui, induz o erro.
59
Não quero dizer que a caminhada por essa descoberta de si, por essa (re)elaboração da
identidade, termine com o tornar-se negro. Primeiro porque “o que eu sou” sempre mudará,
segundo que, após esse tornar-se, ou mesmo junto a ele, surge outro conflito que não pode ser
encerrado pela vontade pessoal de quem participa dele: o conflito que envolve terceiros,
quanto ao reconhecimento da sua autodeclaração racial. Schucman (2018) nos dá uma
imagem bastante ilustrativa para o que estamos falando:
Manoel é oriundo de um casal inter-racial e criado pela sua mãe negra. Ela, de tez
escura, também se identifica desse modo. Ainda assim, Manoel nos apresenta um
contraditório: “Mas... Por exemplo, durante toda a minha vida, eu sempre fui coagido a
cortar meu cabelo, porque minha mãe acha feio.” Essa frase diz que diferente de uma
expectativa, qual seja, a de aceitação dos traços negroides do filho, a mãe que “tem o mesmo
cabelo” que o seu, alisa, e ensinou-o a alisar. No nosso encontro, observei que Manoel já
apresentava seus cabelos naturais, o que é alvo de críticas por parte da mãe. Essa experiência
de rejeição dos cabelos crespos passou de geração pra geração. É assim com sua avó, que
ainda alisa e sempre se preocupou em alisar o cabelo da sua filha, mãe de Manoel. Ele nos
60
deixa claro que, o fato da sua mãe se identificar como negra não vem necessariamente de um
lugar de politização sobre essa identidade:
Eu até já tentei, eu tento falar com minha mãe sobre essas coisas, uma vez a
gente tava no hospital aí eu tava falando: “mãe você já parou pra pensar
por que todos os médicos, maioria dos médicos são brancos? Por que todas
as suas colegas de trabalho são negras? Por que a maioria das pessoas que
pegam ônibus com você são negras?” Entende? Ai eu falava com ela sobre
o racismo estrutural e sobre todas essas coisas, mas, ela não deu muita bola
pra mim, infelizmente.
Será que Manoel está nos falando que, diferente dele, sua mãe não passou pelo processo
de tornar-se negra, ainda que ele próprio tenha uma pele mais clara? Vamos observar a
pesquisa de Rafaela Magalhães (2015) sobre a identidade racial dos albinos:
Aqui cabe ressaltar que quando cruzamos os dados dos albinos (as) que se
afirmam negros, predominantemente tem escolaridade ou cursando ou com
nível superior concluído. Possuem renda maior do que os que se consideram
brancos e tem mais tempo na associação. O que nos permite inferir que esses
albinos (as) passaram por um processo de entendimento, de que a raça, não
está necessariamente atrelada a cor e sim que faz parte de um universo
maior, de entendimento das história de vida, de herança familiar e do
reconhecimento de um identidade (p. 43).
Neusa Santos Souza (1983) nos fala que ninguém nasce negro, torna-se. O que parece ser
importante ressaltar aqui, é que esse tornar-se não está apenas para negros de pele clara ou,
como vimos, albinos, mas para todos aqueles racializados como negros, inclusive aqueles de
pele preta. Porque “ser negro é, além disto, tomar consciência do processo ideológico que,
através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o
aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece” (Ibid., p. 78). Ninguém pode nascer
adotando uma identidade construída para abarcar tudo o que é socialmente indesejável, a
feiura, a imoralidade, a ignorância ou a violência inata, por exemplo. Adotar essa identidade
negra só é possível depois que o indivíduo consegue acessar outra versão desse discurso, seja
num círculo familiar de consciência racial, num espaço religioso de matriz africana, de
educação, ou mesmo com a prática política dos movimentos negros. Ter acesso a essa
possibilidade positiva de se enxergar é o que cria caminhos para o tornar-se negro.
Ser negro é tomar posse desta consciência e criar uma nova consciência que
reassegure o respeito às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a
qualquer nível de exploração. Assim, ser negro não é uma condição dada, a
priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro. [...] A possibilidade de
construir uma identidade negra – tarefa eminentemente política – exige
como condição imprescindível, a contestação do modelo advindo das figuras
primeiras – pais ou substitutos – que lhe ensinam a ser uma caricatura do
61
Elza conta que cresceu com a ideia de ser “amarela”. Abro um parêntese aqui, para falar
que, quando eu disse lá atrás não identificar todos os entrevistados como negros, talvez tenha
incitado cada leitor a descobrir nas entrelinhas, quem são os não-negros dessa narrativa. Essa
parece ser uma ótima oportunidade de apontar para essa pessoa. Afinal, poderíamos pensar:
qual é o negro que vai ser chamado de amarelo? Eu não me apressaria tanto. Os resultados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo IBGE em 1976, nos
dão 135 categorias de cor (D’ADESKY, 2001), e a Pesquisa Mensal de Empregos (PME)
também realizada pelo Instituto, em 1988, nos apresentam 143 categorias, nesse sentido,
amarelo pode muito bem ser o “branco encardido” (SCHUCMAN, 2012) ou o “marrom
claro”, quem vai saber? Em Salvador, “sarará” e até “galego” são usados para referir-se a
pessoas negras, esse último termo alcança muitas vezes mulheres negras, de pele clara, com
cabelos descoloridos e loiros. A coisa de ser chamada de amarela vem desde a infância de
Elza, seus primos lhe chamavam assim:
“Ah, você não é tão negra assim”. Minha família mesmo, tipo, por eu ser do
Movimento Negro e tudo mais, esses meus primos que são mais escuros que
eu, “ah, você é a branca mais preta da família”, eles não me veem como
negra.
Elza fez como Manoel, levou para casa reflexões de raça que estavam lhe ocorrendo.
Isso alimentou um processo de transformação para sua mãe também, que passou a acolher a
autodeclarração negra para si – mesmo com a pele mais escura que a de Elza, ela não se
afirmava negra. Enquanto se colocar como pessoa negra, diante da família, não foi uma
questão polêmica para Manoel, para Elza foi. A “branca mais preta da família” ou a “negra
mais branca” como ela nos disse duas vezes, é o sinal, para nossa entrevistada, que: apesar de
não a reconhecerem negra, também não querem confrontar abertamente sua autodeclaração,
em função do seu conhecido engajamento político no movimento negro.
Essa é uma polêmica presente na vida de Davi também. Seus parentes, ele diz,
“entendem que eu sempre fui pardo e de repente eu viro negro? Como assim? Eu não mudei
de cor. Questionam como eu que não sou ‘tão escuro assim’ posso me declarar negro sendo
que existem pessoas mais retintas que se declaram pardas pro IBGE.” A família de Davi, por
parte de mãe e pai, se identifica como pardos, com exceção do seu pai, que tendo uma pele
62
“um pouco mais escura” que a de Davi, irá se identificar como negro. Quanto a sua mãe, que
tem a tez pouco mais escura que a dele, cabelos alisados e castanhos, a vejo como uma mulher
negra. Davi diz que ela se embranqueceu muito, e que isso faz com que não consiga
“estabelecer uma identidade racial pra ela”. Davi não conversa sobre esses assuntos com
seus pais, inclusive sua mãe não leva isso tão a sério. “[...] a gente nunca conversou sobre
isso de fato, mas ela acha que é coisa da juventude, coisa de jovem, pois na mente dela está
na moda se identificar como negro.”
A família de Laudelina é inter-racial. Sua mãe é branca, seu pai era “negro retinto”, e
sua irmã é negra também, com pele mais escura que a sua. Sua família não reconhece ambas
como negras, mesmo depois de Laudelina ter “assumido o cabelo”.
Dias diz que seu pai é negro e que sua mãe é amarela. Não por ela ser asiática ou
descendente desse povo, mas porque “ela é um branco pra amarelo”. É assim que as pessoas
frequentemente elaboram as categorias do IBGE.
Beatriz fala que se parece com seu pai, um filho de um casal inter-racial, enquanto sua
mãe, filha de uma indígena, “tem a pele clara, o cabelo bem preto, mas bem liso”.
Chica identifica seus pais como pretos, sua mãe tem a tez “um pouco mais escura” que
a dela, e sempre se identificou como preta. Apesar da pele clara, Carlos e Jaci não são filhos
de uma família nuclear inter-racial: os pais de ambos são “pretos” e suas respectivas mães,
“negra[s] não-retinta[s]”.
Os termos que intitulam essa seção são estereótipos direcionados as pessoas negras com
pele clara. Giralda Seyferth (1995) nos traz as seguintes definições:
Dialogando com tal definição de “estereótipo”, temos que esses termos, de conteúdo
racializado, servem para minar as bases pelas quais as pessoas negras, com pele clara, sentem-
se apoiadas por essa identidade racial. Eles surgem em um contexto recente, que não marca
mais do que seis ou sete anos, e aparece especialmente no conteúdo produzido nas redes
sociais da Internet. Sua intenção é colocar sob suspeita o pertencimento racial desses
membros mais claros da população negra. A questão é afirmar, ao anunciá-los desse modo,
que ocupando uma posição dúbia, esses mestiços poderão se aliar a um grupo ou outro, a
mercê do que lhe é conveniente naquela circunstância. Essa denúncia não é esvaziada,
sabemos que historicamente os negros transferem tributos à branquitude (NOGUEIRA, 1985),
por exemplo, pela via do casamento inter-racial. Embora os nomes “afrobege” ou
“afroconveniente” sejam novos, sua motivação, tornar embaraçoso o lugar dos “pardos” entre
os negros, é antiga.
O segmento dos mestiços, por outro lado, é descrito pelo termo "instável"
(como, aliás, é comum a outros autores do período). Trata-se,
fundamentalmente, da crença de que os mestiços não formam uma
verdadeira raça, ou não constituem uma raça fixa — e, conforme o tipo de
cruzamento, os indivíduos podem voltar ao tipo branco ou ao tipo negro
(SEYFERTH, 1995, p. 186).
Esses conflitos parecem uma ferida aberta que sempre volta a incomodar. Em 1995 Seyferth
já tratava sobre eles. Continuando esse texto, ela falará sobre algo presente nas falas dos
nossos entrevistados, através do termo “passabilidade”. Vejamos o que a autora diz: “O
raciocínio é circular, envolvendo o estereótipo e sua causa presumível — a inferioridade
racial — sobretudo quando se procura desqualificar os trânsfugas, os mestiços que podem
‘passar por brancos’” (p.186).
Dentre os tantos textos e vídeos que encontramos na Internet, acerca desses conflitos
entre a autodeclaração e a heteroidentificação negra, selecionei esse trecho que demonstra
bem o tom com o qual esse debate se dá hoje: “Alguns negros de pele retinta já criaram ranço,
outros chamam os não retintos de afro-beges, e tem até quem diga que negros de pele clara não
sejam negros” (AD JÚNIOR, 2018).
Como falamos antes, a inexistência de raças humanas do ponto de vista biológico ou
genético, faz com que esses critérios de definição sejam essencialmente sociais, mas também
estratégico: o “calculo da relação entre identidade e diferença, entre similaridade e alteridade,
é uma operação intrinsecamente política” (GILROY, 2007, p. 125).
Esse é um tema já tão popular, que encontramos o seu primeiro registro na literatura.
Essa obra, “Marrom e Amarelo” (2019), voltará para a nossa análise em breve. No trecho a
64
seguir, o autor narra sobre os conflitos que aconteciam dentro das Universidades ao aderirem
ao sistema de cotas raciais, isso em função da patrulha de cor que os alunos negros faziam
sobre os outros alunos cotistas:
[...] primeiro foram alguns alunos preto contra alunos pardos que, nos
critérios daqueles alunos pretos, não eram suficientemente pardos, eram
pardos de araque, como vinham sendo tachados pelos alunos pretos e pardos
escuros que se organizaram em núcleos de militância negra e passaram a
circular em patrulhas de averiguação fenotípica pelos campi de várias
universidades, pardos claros sem qualquer traço fenotípico que pudesse liga-
los ao grupo étnico dos negros, pardos que não tinham, segundo os
integrantes das patrulhas, a dimensão do que é viver mergulhado até o último
fio de cabelo na geografia inóspita da hierarquia racial no Brasil, pardos
afroconvenientes, moreninhos-cor-dócil, que resolveram posar de pretos da
gema pra pegar a brecha e surfar no benefício das cotas (SCOTT, 2019, p.
26).
Manoel já foi chamado de afrobege, ele e Chica acham que essa é uma forma de
“retirar” a identidade negra daqueles que assim são nomeados, uma forma pejorativa, de
ataque. Chica diz que é um termo pobre porque “não leva em consideração muita coisa”, as
várias dimensões sobre ser negro, “só foca no tom mesmo da pele” (Chica). Davi acha que os
termos “afrobege” e “afroconveniente” foram criados para denunciar pessoas “brancas que se
apropriam de forma descarada e desonesta da cultura negra”:
Entretanto, Davi fala que a militância está muito “aberta” hoje em dia, e com isso ele
quer dizer duas coisas: primeiro que muitas pessoas conseguem ter contato com o discurso
político dos movimentos sociais, e se incluírem nele, a partir da Internet. Em segundo lugar,
qualquer pessoa pode ter uma “formação política” pela Internet e fazer usos particulares e
enviesados de ferramentas ou discursos, propriamente políticos, através dessa mesma rede. É
que para Davi, o “afrobege” e o “afroconveniente” são termos oriundos do mundo virtual.
Isso permite que as ideias originais e legítimas, do seu ponto de vista, que criaram esses
termos, se desviem para outras interpretações impróprias, ao qualificar dessa forma, negros de
pele clara.
Para Davi, “afroconvenientes” são brancos que cometem apropriação cultural. Negros
de pele clara não estariam “roubando”, mas tomando posse de algo que já lhes pertencem:
“não precisa ser necessariamente um artista famoso utilizando da cultura negra pra ganhar
dinheiro, às vezes é uma pessoa realmente branca que coloca um dreadlook porque acha
legal, acha hoots, e não conhece nada da história”. Manoel nunca tinha ouvido falar no termo
“afroconveniente”: “eu imagino que seja uma pessoa que tenha traços negróides, mas que
tenha uma passabilidade no meio branco”.
Passabilidade40 é uma ideia interessante, embora não seja nova41, voltaremos a ela em
outro capítulo. Aqui, basta que a gente entenda que se trata de um termo utilizado entre
ativistas, para falar sobre a possibilidade de “passar por”: a possibilidade de uma pessoa
transgênero “passar por” uma pessoa cisgênero, por exemplo, ou, no caso da fala de Manoel,
de uma pessoa com traços negroides menos acentuados “passar por” branca. Encontramos a
seguinte definição de “passabilidade” pelo Youtuber Spartakus Santiago (2019):
Pessoas que por terem algumas características brancas não são vistas como
negras em alguns lugares, e por isso sofrerem menos racismo. Pessoas
negras de pele clara sofrem menos racismo porque tem passabilidade, ou
seja, algumas pessoas não percebem que ela é negra.
Essa suposta possibilidade de trânsito entre negros e brancos, que os mais claros
possuiriam, parece estar no foco dos conflitos que envolvem o grupo. Trago novamente AD
Júnior (2018), autor de um dos textos disponíveis na Internet, acerca dessas questões:
40
“Se nos Estados Unidos a identidade negra era definida pela afro-descendência, no Brasil ela era, e continua a
ser, definida pela cor da pele e outros traços físicos, sobretudo textura do cabelo. É por isso que um pardo claro
pode “se passar” por branco, especialmente se tem dinheiro, educação, prestígio político.”
(ALBUQUERQUE&FRAGA, 2006, p. 293).
41
Veja por exemplo o controverso debate que Gates Junior (2011) enfrenta sobre Chica da Silva: “Isso aponta
para um fato crucial na história de Chica. Não devemos ver o caso dela como o de uma mestiça que ‘passa por
branca’, que é a conclusão a que nós, americanos, em geral chegamos imediatamente. O caso era muito mais
complicado do que isso. Chica da Silva era, decididamente, africana, e não haveria roupas europeias ou
imitações de comportamento que mudassem tal fato. Mas ela não estava simplesmente tentando escondê-lo. Ela
estava fazendo algo radicalmente diferente: estava avançando na hierarquia de classes. Afinal, os portugueses de
classe baixa que enriqueciam faziam praticamente a mesma coisa: se podiam, abandonavam seus costumes rurais
e adotavam os da aristocracia. Nos Estados Unidos, em contraste, nenhum montante de dinheiro ou nenhum
comportamento transformaria um negro em ‘branco’, e essa é uma diferença fundamental entre as duas
sociedades.” (p. 32).
66
Eu não posso escolher quando e onde serei negro. E se essa frase lhe
embaraça, eu tenho um pedido para você: que tal abrir pro diálogo, sentar e
discutirmos o colorismo? Seria um avanço. Podemos ser mais honestos ou
continuar fingindo que o tom pele não faz diferença nenhuma na hora do
“vamo vê”!
Chica já havia tido contato com os termos, ela pensa que o “afroconveniente” não é,
necessariamente, uma pessoa negra de pele clara, mas o negro com projeção econômica,
política ou midiática que “pauta o assunto ‘ser negro’, o assunto ‘negritude’, quando convêm,
pra ter algum tipo de publicidade”. Essa posição se alinha em grande medida com a de
Laudelina, quando ela fala que é “muita afroconveniência” usar da sua condição de minoria
para “falar o que se quer” e ter isso legitimado: “eu sinto que as pessoas querem muito ser
negras só pra poder enfim, falar o que elas querem falar”. Laudelina nos deu três exemplos
do que representam pessoas ou atitudes afroconvenientes. O primeiro é de uma artista que, a
fim de agregar um público maior para suas músicas, manipula o discurso da sua “origem”
pobre e periférica, mesmo se apresentando hoje em dia como uma mulher branca. O segundo
é o de uma Deputada Federal negra retinta, que na ocasião do impeachment da então
presidente Dilma Rousself, teria afirmado “sou uma minoria e quero que Dilma saia”, mas,
segundo Laudelina, nunca se preocupou em atuar politicamente em favor de questões negras.
Por último, ela nos fala sobre um professor negro da própria UFBA, que teria sido “machista
e gordofóbico” com uma aluna, mas foi defendido “pelo movimento negro por ser negro”.
Temos aqui situações diferentes, onde pessoas negras e não negra usariam a raça em defesa
dos seus interesses particulares, ilustrando o que Laudelina chama de “afroconviência”.
Carlos conta que “afrobege” é o seu apelido na faculdade. Ele não sente que isso foi usado
para desautorizar seu posicionamento como negro, e sim para: “trocar termos que sempre
foram usados, tipo, nunca me chamaram de pardo na faculdade, nunca me identificaram
como pardo. Mas afrobeje é um termo que eles usam”. Para falar sobre a “afroconveniência”,
Marielle usou o mesmo exemplo da artista que Laudelina citou:
[Essa artista] É uma pessoa que não abraça a identidade negra, no sentido
de querer uma melhora pro seu povo, ou no sentido realmente de abraçar
verdadeiramente. No caso dela, por exemplo, é uma jogada comercial. Ela é
uma camaleoa e ela se adapta de acordo com a quantia de dinheiro que ela
vai ganhar. E tem gente que faz a mesma coisa, tipo, eu conheço pessoas
que eu leio como brancas. Me desculpe se não é, mas eu leio como brancas,
e realmente, quando chega na faculdade, quer militar, é estrela e tal. Muita
gente também, quando passa pela transição capilar, e aí por ter o cabelo
crespo, mas não ter a pele negra, diz que é negro. E isso pra mim é
afroconveniência, porque quando você vai numa loja no shopping, por
exemplo, você não é seguido e abordado, tratado da mesma forma que eu
sou, ou que você pode ser, sabe?
67
Jaci não é a favor do uso dos termos “afroconveniente” ou “afrobege”, porque eles
seriam “mais uma coisa que serve pra nos separar e pra, tipo assim, pra fazer uma confusão
identitária, né? Do que nós somos, e tal”. Olhar essas classificações de negros claros e
escuros, como algo que causa divisão interna na comunidade negra, é um assunto que
adentraremos depois. Nesse momento, é importante falar que esse argumento é popular entre
ativistas dos movimentos negros. Eles citam frequentemente a “Carta de Lynch” para falar de
uma estratégia colonial de dominação e divisão. Traremos sucintamente esse debate aqui,
através de Gilroy (2007):
42
Rapaz branco que foi exonerado do concurso público do INSS por fraudar o sistema de cotas para negros. Ver
<https://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noticia/2019/06/10/servidor-e-exonerado-do-inss-em-juiz-de-fora-por-
fraudar-sistema-de-cotas-em-concurso-publico.ghtml>.
43
Mulher branca que assumia identidade negra e cargo em instituição do movimento negro dos Estados Unidos,
até ser descoberta como branca. Ver <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-39413853>.
68
“afroconveniente” é legitimado pelos próprios entrevistados, que usam do termo para apontar
comportamentos ou pessoas que, para eles, merecem o título. De outro modo, Davi
testemunha o uso dentro da própria comunidade negra, contra seus membros mais claros. É
útil, para esse momento, algumas imagens que recolhi em redes sociais da Internet. Elas
mostram os contextos em que esses termos são reivindicados.
Fonte: Facebook.
Fonte: Facebook.
69
Figura 4 – Nem filho branco, nem filho afrobege. Printscreen da publicação em 2020.
Fonte: Twitter.
Fonte: Facebook.
70
Fonte: Instagram.
Esse perfil de Instagram postou essa mesma montagem de fotos duas vezes com as
seguintes legendas:
Fonte: Instagram.
Como os depoimentos e imagens mostram, esses diálogos sobre identidade racial têm se
dado em um contexto que envolve, frequentemente, hostilidade. Isso não é tão difícil de
72
2.4 PRIVILÉGIO
Manoel acha que ser negro de pele clara dá ao indivíduo aquela “passabilidade” da qual
falamos antes, e isso seria uma forma de privilégio. Já falamos anteriormente sobre os
processos de racialização, mas cabe aqui retomar um argumento. Ser negro significa ser
racializado como uma pessoa negra. Essa racialização tem origem histórica na forma como os
europeus classificaram indígenas (nomeados inicialmente como negros da terra), africanos, e
outros povos, como menos humanos ou não-humanos. Por isso, historicamente, a racialização
envolve um processo complexo que danifica a noção de ser humano, e, consequentemente,
lhes nega direitos. Neste sentido, ser negro na diáspora, e aqui estamos falando de Brasil,
passa por um testemunho pessoal e coletivo de sofrimento e falta de acesso a recursos:
racismo.
Ativistas, intelectuais, lideranças religiosas, e artistas negros, têm se esforçado em
avançar a narrativa, para compor a identidade racial para além do que falta, da violência, do
que se negou, ou seja, para além do racismo. É isso que Jurema Werneck (2008) nos convida
a fazer no célebre texto “Nossos passos vem de longe”. Nessa escrita, as Yabás45 aparecem
como referência sobre ser mulher negra, sobrepondo-se aos moldes que o racismo criou, como
o papel da mulata. Jurema Werneck (2008) não quer que a gente “deixe o racismo pra lá”. O
racismo é um fato que não dá para ser ignorado, seu convite é que pensemos em mais coisas
que nos definem, apesar dos pesares. É por isso que falar sobre privilégio para negros de pele
clara deve ser feito com cuidado. Como um indivíduo racializado pode ter privilégio, tendo
em mente que estar submetido à racialização é ter sua própria humanidade colocada em
suspenso? Manoel fala sobre privilégio através da história de uma amiga de uma amiga “que
se diz preta, mas tem cabelo liso”:
Ela fala de como na família dela é... As pessoas tomam isso como algo que
salvou entende? Como se ela ter nascido com o cabelo liso fosse melhor do
que se ela tivesse nascido com o cabelo crespo. [...] Ela, por ter o cabelo
liso, ela não vai sofrer o mesmo preconceito que uma pessoa que tem cabelo
44
Temos como referência principalmente a Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012, que institui sobre a reserva de
50% das vagas das Universidades e Institutos federais; e a Portaria Normativa nº 13, de 11 de maio de 2016 que
trata sobre cotas na pós-graduação.
45
Orixás femininos, divindades de religiões de matriz africana.
73
crespo. [...] Eu, por ter pele clara, eu não vou sofrer o mesmo preconceito
que a pessoa que tem pele preta, entende?
Observemos as bases pelas quais essa noção de privilégio se coloca na fala. Ser preto de
cabelo liso conferiria privilégio, tal como ser negro de pele clara, mas como isso repercute nos
indicadores sociais? Segundo o dicionário online Michaelis46 privilégio tem os seguintes
significados:
sm
1 Direito, vantagem ou imunidades especiais gozadas por uma ou mais
pessoas, em detrimento da maioria; regalia.
2 Oportunidade ou permissão dada a certas pessoas ou coisas com
exclusividade.
3 Riqueza ou posição econômica e social acessível a uma minoria.
4 Diploma que contém a concessão de um privilégio; patente.
5 Dom natural do corpo ou do espírito; talento.
6 JUR Posição de superioridade, amparada ou não por lei ou costumes,
decorrente da distribuição desigual do poder político ou econômico.
Num texto anterior, disponibilizado no site do Instituto Geledés, comecei a pensar sobre
isso. Esse texto antecedia uma parte da escrita desse trabalho. Dentre outros dados da
pesquisa, citei alguns indicadores sociais pra pensar o privilégio dos negros de pele clara:
O que isso nos faz pensar: ser negro e ter o cabelo liso em detrimento de um cabelo
crespo, ser negro e ter a pele clara (ou menos escura), não mobilizam uma condição estrutural
de privilégio. Esse é um ponto denso e extremamente importante para o que estamos tratando
nessa dissertação, porque “privilégio” é uma palavra corrente e moeda de troca na negociação
do “lugar de fala”. “Eu acredito que há necessidade de ela reconhecer os privilégios no
espaço que ela está”. É uma fala de Manoel sobre uma orientação de comportamento que
deve ser adotada por pessoas negras de pele clara. Ela é exemplar, porque é quase um mantra
direcionado para esse grupo. Quando eu trato essa frase como moeda de troca, é porque ela
46
Disponível em <https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/privilegio>.
74
funciona da seguinte forma: sendo eu, sujeito pardo, um negro menos legítimo, entrego a
minha declaração de privilégio para estabelecer uma posição menos desconfortável sobre
minha cor, livrando-me de qualquer possibilidade de acusação de “afroconveniência”. Não
serei “descoberto”, estou imediatamente desnudando a minha posição de vantagem.
Manoel entende que o lugar privilegiado dos negros de pele clara é relacional. Veja:
“[...] nas relações de um emprego ela vai ter um privilégio, mas se, por exemplo, se colocar
essa mesma pessoa, ao lado de pessoas brancas, ela vai ser a desprivilegiada daquele
espaço, entende?” Ou seja, comparados aos brancos, negros de pele clara e escura estão
“fora”, mas se a escolha do cargo estiver entre o mais claro ou o mais escuro, a vaga é do
mais claro. Apesar dessa conclusão, o discurso de Manoel se contradiz quando, ao pensar de
forma mais ampla sobre privilégio, ele começa a refletir sobre a sua própria condição:
Ouço e leio o tempo todo discursos em que pessoas negras falam sobre admitir seus
privilégios enquanto membros mais claros desse grupo. No texto do Portal Geledés, “O
colorismo e o privilégio que ninguém te deu” (2020), eu falo que o discurso sobre o colorismo
está formado em um regime de verdade. Eu quero dizer que, embora não tenhamos tradução
75
do livro de Alice Walker47, o conceito é reproduzido por todos os vídeos e textos que vi até
aqui, como sendo um sistema que beneficia os negros mais claros em detrimento dos mais
escuros. Para as pesquisas que pude acompanhar, realizadas nos/sobre os Estados Unidos
(HUNTER, 2007; MONTEIRO-FERREIRA, 2015), país de origem do termo, essa definição
de colorismo faz sentido. Estatisticamente, a desigualdade entre pretos e lightskin é expressiva
lá. Mas para o Brasil, o conceito foi acolhido sem nenhuma tradução que pensasse as reais
condições de semelhança ou desigualdade entre pretos e pardos aqui, ou em quais setores da
vida social essa suposta desigualdade se manifesta. Falaremos sobre isso em outro momento,
basta aqui que o leitor desse trabalho compreenda as minhas intenções. Eu queria ir um pouco
mais fundo na sentença que todo mundo repetiu. “Pensando sobre sua vida, meu entrevistado,
diga onde esse privilégio se manifesta”. É aí onde as contradições aparecem. Isso me importa
saber porque, eu, depois que comecei a me aproximar das narrativas de mulheres negras em
suas dimensões econômica, afetiva, psicológica e profissional-acadêmica, me identifiquei
com suas experiências. Vi que havia vivido ou ainda estava imersa, em tudo aquilo que elas
falavam sobre si, ou que traziam como reflexão aberta para toda a comunidade negra. Essas
narrativas, inclusive, fizeram com que a minha afirmação negra acontecesse de maneira
politicamente ativa no sentido da luta antirracista. Esse momento em que assumo a identidade
negra, e me torno politicamente engajada nas questões raciais, corresponde ao segundo e
terceiro estágio do processo de tornar-se negro, narrado por Ricardo Franklin Ferreira (2000).
Algum tempo depois de assumir essa autodeclaração, é que começo a me conectar com os
embates contra os negros mais claros. Embates que desvalidavam essa identidade pelas
supostas prerrogativas de privilégio que teriam.
47
In Search of Our Mothers’ Garden (1983), primeira vez que o conceito aparece.
48 “No entanto, a pele clara pode ser vista como uma desvantagem em relação à legitimidade ou autenticidade
étnica. Em muitas comunidades étnicas, as pessoas consideram os tons de pele mais escuros mais etnicamente
autênticos. Por exemplo, pessoas de pele clara e birracial freqüentemente relatam que se sentiram excluídas dos
seus grupos étnicos. Eles relatam as percepções de outras pessoas sobre sua identidade racial como uma fonte
76
Retomando a fala anterior de Manoel, é interessante perceber como ele supõe a melhor
aceitação dos negros de pele clara em determinados ambientes, e ao mesmo tempo não pensa
que ele mesmo seria bem recebido. Outro ponto é que, todo mundo irá reconhecer que quanto
mais brancos estiverem em um lugar, maior será o contraste entre eles e os não brancos. Se
isso é verdade, não pode ser verdade também que os ambientes brancos são mais toleráveis
aos negros claros, porque as duas afirmações se anulam.
Davi: O critério objetivo pra mim é simples: Se você conviveu com pessoas
brancas e você, pelo seu fenótipo, não conseguiu se encaixar naquilo. E
você percebe que é um fenótipo que te aproxima da negritude, isso pra mim
é suficiente pra te encaixar na categoria e negro.
Essa fala de Davi é muito ilustrativa. Mostra como essa experiência de negros num
meio branco é suficientemente clara para distinguir brancos de não-brancos. Recentemente
um crime tomou destaque nos principais jornais brasileiros: o motoboy Matheus Pires
Barbosa foi humilhado por um cliente branco em São Paulo
Fonte: EXTRA GLOBO. Motoboy humilhado em São Paulo ganha 1,4 milhão de seguidores, moto nova e
vaquinha chega a R$ 112 mil. 2020. Disponível <https://extra.globo.com/tv-e-lazer/treta-show/motoboy-
humilhado-em-sao-paulo-ganha-14-milhao-de-seguidores-moto-nova-vaquinha-chega-r-112-mil-
24575976.html>. Acessado em 20 set. 2020.
comum de conflito ou desconforto (Brunsma e Rockquemore 2001). A tarefa de "provar" que é um membro
legítimo ou autêntico de uma comunidade étnica é um fardo significativo para os de pele clara nas comunidades
latinas, afro-americanas e asiático-americanas. Para algumas pessoas de cor, a autenticidade é o meio pelo qual
as pessoas de pele mais escura recuperam o poder das pessoas de pele mais clara” (tradução nossa).
77
Essa história gerou uma enorme polêmica, porque embora o cliente fale, dentre outras
coisas, que Matheus tem inveja “disso aqui” apontando para a pele branca, o público não foi
consensual ao heteroclassificar Matheus como negro. A notícia foi propagada como caso de
racismo, mas teve quem dissesse que esse era um conflito de pureza racial, não racismo. A
minha intenção não é trazer uma posição sobre a classificação racial de Matheus, o ponto é
que, sendo ele negro ou não, na relação com o cliente branco de classe alta, foi discriminado
racialmente. Ou seja, mesmo tendo a pele clara e sendo identificado por algumas pessoas
como um homem branco, Matheus difere da branquitude que se quis legítima nessa ocasião,
isso nos faz pensar sobre a suposta “passabilidade” dos negros de pele clara entre brancos.
Dias: Olha, uma coisa que eu acho que é uma diferença de uma pessoa de
pele bem escura e de uma pessoa que não branco, mas uma pele um pouco
mais escura, mas tonalizada igual a minha, os pardos, eu acho que é essa
questão do preconceito entendeu? Que muitas vezes as pessoas não sofrem
tanto preconceito igual uma pessoa negra. Não tem olhares virados...
Dias é aquele rapaz que se declara como pardo e que foi reprovado pela Comissão. Ele
me confessa nunca ter sofrido “preconceito”, mas acredita estar suscetível a ele: sempre que
houver uma oportunidade para um cargo, por exemplo, e concorrer “uma pessoa da minha cor
e da cor da minha prima [branca], claro que vão escolher ela”. Dias reproduz uma ideia de
discriminação que não pôde exemplificar na sua própria vida.
Elza me dá um exemplo de como a experiência de negra de pele clara lhe conferiu
privilégio. O exemplo está no campo dos afetos. Ela conta de sair para o Carnaval de Salvador
com duas amigas: uma italiana branca e outra também de Salvador, preta. A preferência, no
momento da paquera, era para a mulher branca e em segundo lugar para Elza, enquanto a
amiga de pele preta não era requerida por ninguém. Somado a isso, ela nos traz outra
lembrança, durante o seu período de escolarização:
Na escola já passei pela situação de uma professora gostar mais de mim por
causa do meu tom de pele e me elogiar mais do que do outro colega que se
esforçava mais do que eu ou igual, sabe? “Ah, não gosto dele”, entendeu?
“Ah, ele pergunta demais”, já passei por isso. Sendo que eu também
perguntava demais.
Chica também fala sobre o privilégio que negros de pele clara teriam:
ser de favela e tal e coisa. Então eu acho que tem, acho que as coisas tem
que andar juntas. Não é só a cor, mas a identidade da pessoa enquanto
pobre, tal, também é muito relevante.
Chica entende existir uma condição de privilégio dos negros de pele clara em relação às
concepções sociais de estética e às oportunidades de trabalho. Ela fala também como piadas
racistas geralmente são direcionadas aos negros mais escuros. Sob pena de ser repetitiva, eu
conservo o uso da palavra privilégio em detrimento de sinônimos, como poderia ser a palavra
“vantagem”, porque “privilégio” tem um peso político que outros termos não alcançam. Para
que eu possa desenvolver um pensamento mais adiante sobre isso, preciso reproduzi-la nos
contextos em que são usadas pelos meus entrevistados.
Quando Chica se volta para si, não consegue sustentar a generalidade com a qual afirma
o “privilégio pardo”. Sobre a época da escola, ela fala o seguinte: às vezes as meninas negras
de pele clara eram escolhidas para um relacionamento. Não a própria Chica que era
“gordinha”, como se descrevia. As meninas precisavam ter outros atributos do padrão
estético, como um corpo magro. Assim também era para as meninas negras escuras, segundo
Chica, se elas tivessem esses outros atributos, seriam escolhidas. Quanto a isso, nossa
entrevistada ressalta uma diferença: quando as meninas negras escuras eram escolhidas,
geralmente não era para o namoro, mas para um encontro informal. Essas contradições
aparecem o tempo todo na fala dos nossos entrevistados:
Chica: Eu acho que é justamente, pelo fato que existe essa... Eu acho que é
“colorismo” que chama, né? Eu acho que existe, existe essa questão de ter
uma diferenciação do mais retinto pro menos retinto, mas é muito sutil em
relação ao racismo entre uma raça e outra mesmo, porque existe essas
diferenciações por causa da miscigenação, mas todos ainda fazem parte de
uma mesma identidade racial, que tá contrapondo com outra. Então eu acho
que essa diferenciação entre uma raça e outra é muito mais gritante, muito
mais latente do que essas diferenciações menores, então o fato de você ser
um pouco mais claro e de você gozar um pouco mais de privilégio por
chegar um pouco mais perto do ideal branco, não te faz isento de sofrer
racismo, porque você não deixou de ser negro, lido como negro, entende?
[...] Quando eu “pautei” a questão do “colorismo” e a questão do
privilegio que eu percebo, eu fiquei repetindo a questão do sutil, justamente
porque eu não percebi isso na minha vida. E porque eu sou muito rechaçada
quando eu digo que não acho que seja uma questão, digamos, relevante do
ponto de vista do debate racial. Porque eu acho que é justamente o que eu
falei, a dicotomia entre uma raça e outra é o que realmente importa. [...]
Mas, outra coisa também que eu tenho delicadeza em abordar é que assim,
pelo fato de eu não ter visto isso na minha vida e deu não ver nas pessoas
que eu conheço, eu penso “poxa eu posso tá olhando só pela minha bolha”.
Talvez num ponto de vista geral, realmente haja esse privilégio.
Figura 9 – (1) Comentários sobre o texto “O colorismo e o privilégio que ninguém te deu” no site do
Portal Geledés. Printscreen da publicação em 2020.
Figura 10 – (2) Comentários sobre o texto “O colorismo e o privilégio que ninguém te deu” no site do
Portal Geledés. Printscreen da publicação em 2020.
O fato de Chica, por exemplo, não reconhecer privilégio na vida dela e das pessoas
próximas, não anula o privilégio que Elza nos conta a partir da própria trajetória. O ponto, nos
parece, é que as experiências dessas pessoas negras às vezes foram pautadas em situações de
vantagem, às vezes não. Privilégio, portanto, não é a condição fundamental que estrutura a
vida de negros claros. Vejamos mais um exemplo sobre esse debate:
Davi: Eu vou pegar um exemplo bem bobo. Vou falar da questão da infância
novamente e dos menininhos que eram mais bonitinhos e que eram mais
feinhos. Eu não me encaixava no grupo da branquitude, dos meninos mais
bonitos da escola, entretanto eu não fazia parte dos mais feios também, isso
fazia com que eu tivesse um certo respeito maior entre os meninos que um
menino mais retinto não teria. Pensando nisso, na vida cotidiana, por
exemplo, eu moro num bairro de classe média baixa e eu ando aqui à noite,
venho do trabalho com roupa de trabalho e percebo que passam viaturas,
me olham um pouco mais, reduzem velocidade, mas não é a mesma cosia
que percebo com colegas que são mais retintos e que andam no mesmo
espaço que eu, embora estivessem tão bem vestidos ou mais bem vestidos do
que eu. Então a forma como eu sou observado (embora aqui no espaço onde
eu more eu não tenha sofrido nenhum tipo de violência pela polícia) faz com
que eu perceba o grupo que eu não me encaixo, embora não seja uma visão
tão violenta quanto a de pessoas mais retintas. Acredito que as pessoas que
são mais retintas ficam mais apreensivas, pois o olhar é muito mais
81
meticuloso, são vistos como marginais de forma muito mais fácil do que
como eu sou visto.
Essa não é uma situação igual para todos os negros de pele clara. Por exemplo, Caio é
um amigo meu. Conversamos sobre o meu trabalho e, informalmente, ele contou um pouco de
algumas experiências da sua vida que cabia pensarmos. Uma delas foi a memória de um
encontro que teve com seu primo numa rua do Centro de Salvador. O primo, descrito como
negro retinto, estava arrumado de forma a ir para o trabalho. Caio estava de passagem, sem
compromissos naquele dia, e com uma roupa mais informal. Caio é um negro com pele clara e
cabelos dreadlooks. A polícia encostou e Caio foi revistado, seu primo não. Eu era, durante o
Ensino Fundamental II em escola particular, uma das meninas “mais feias da sala”.
Periodicamente corria uma lista feita pelas meninas “mais bonitas” com vários critérios:
corpo, pernas, rosto, e perguntas mais gerais como: a mais bonita ou a mais feia, para que os
meninos votassem. Eu e outras meninas negras claras e escuras estávamos entre “as mais
feias”. Nenhuma menina branca estava nessa categoria. Davi não foi “o mais feio da sala”,
mas eu fui. A minha experiência ou a de Caio não desvalidam a de Davi, e vice-versa. Talvez
essa seja a grande potência da Antropologia nessa pesquisa: mostrar que existem matizes
dentro de constatações como racismo e privilégio (como informa o colorismo e as hierarquias
de cor no interior da população negra).
Por um lado, podemos investir nas entrevistas e nos indicadores sociais para mostrar
que a condição de vida de pretos e pardos é similar. Isso é uma descoberta que marca o final
da década de 70 e embase todas as metodologias de pesquisa que se preocuparam com os
indicadores sociais atravessados pela cor ou raça a partir daquela década
(WESCHENFELDER&SILVA, 2018). Figueiredo (2005) nos fala o seguinte:
Carlos chama esse privilégio dos negros claros de uma “uma discriminação reduzida”,
ele e Marielle classificam-no como sendo “mais sutil”.
Marielle percebe que houve situações de privilégio na sua vida. Como Elza, esse
privilégio se manifesta principalmente nas escolhas afetivas. Ela e Carlos são colegas de
classe na UFBA, e concordam que pessoas mais melaninadas são, na sua graduação, menos
ouvidas. Marielle fala que é privilegiada ainda por nunca ter sido abordada pela polícia,
mesmo sendo a abordagem policial, uma prática recorrente no seu bairro. Pergunto pra ela se
isso não teria mais relação com seu gênero, mas ela não concorda:
É interessante perceber como muitos deles, ao falarem sobre sua própria condição de
privilégio, problematizam o termo:
Carlos: [...] A pessoa mais retinta sofre preconceitos, a pessoa menos retinta
sofre preconceitos e são preconceitos diferenciados, preconceitos que
divergem em suas características, então colocar como sendo privilégio a
única diferença, é colocar que um é melhor socialmente visto do que o
outro, sendo que os dois são julgados. [...] São tirados tantos direitos que
quando esses direitos são menos retirados, chega a ser um privilégio, sabe?
2.5 O RACISMO
seguida em uma loja pelo segurança, e como recebeu, ao longo da vida, apelidos relacionados
ao seu cabelo e nariz. Para ela, no entanto, essas não são formas de sofrer racismo
“diretamente”:
Carlos também conta sobre comentários pejorativos contra seu cabelo crespo, e sobre
experiências que marcam muitos homens negros: o estigma do “marginal”:
Laudelina fala sobre críticas ao seu cabelo, vindas principalmente da sua família
materna, a qual ela sente uma ligação afetiva muito forte:
Ela reviveu essa experiência de “ser exótica” dentro de um relacionamento afetivo com
uma mulher descrita como “muito diferente” dela, por ser “branca e rica”. Esse
relacionamento levava Laudelina para os espaços de convívio da sua namorada, espaços
diferentes daqueles que ela já estava habituada, “ao ponto de alguém perguntar assim a ela
[sua namorada] ‘ah, onde é que você arranjou essa?’”. Comentamos anteriormente como o
85
cabelo de Laudelina foi central para o tornar-se negra. Usando isso, ela simula uma situação:
se, no mesmo episódio, estivesse de cabelo alisado, não seria exotificada: “Acho que ia ser
meio de igual pra igual, o tratamento, sabe?! Não teria esse tipo de comentário ‘onde é que
você arranjou essa? Quero uma dessa pra mim’. Eu acho que não faria esse tipo de
comentário”. Laudelina nos fala que foi a partir do momento em que assumiu o cabelo crespo
que “todas as coisas começaram a se manifestar”. Antes disso, sua experiência social era de
uma mulher branca e como branca (não parda ou mestiça, branca) ela se identificava. Ela nos
conta que não era, inclusive, uma identidade conflituosa. Laudelina não vivia confrontos
sobre essa identidade branca nem nos espaços mais brancos:
Embora Laudelina compartilhe conosco sobre essas situações de racismo, segundo ela, a
pele clara lhe protege de contextos de discriminação racial que envolvem violências físicas
mais graves. Manoel nos conta que, a experiência de racismo mais marcante, foi a rejeição da
mãe quanto ao seu cabelo crespo. Mais uma vez, aparece aqui o termo “sutil”. Ele marca a
fala dos meus entrevistados como sinônimo de uma condição de dubiedade. Anteriormente,
Chica usou o termo para falar sobre o “privilégio pardo”, aqui a ideia se repete para tratar de
racismo:
Manoel: [Quanto ao racismo sofrido pelos negros com pele clara] as outras
formas de racismo, elas são também sutis entende?[...] A estrutura não é
pra você perceber que o que a estrutura é, entende? Ninguém vai chegar na
sua cara e dizer, pelo menos normalmente: não vou te contratar porque eu
não gosto da sua cor de pele, do seu cabelo.
Sutil é um dado desse campo, que parece significar algo dúbio: é privilégio mas não é, é
racismo, mas não é. O sutil é uma tecnologia social pela qual o privilégio ou o racismo se
manifestam na vida desses negros-claros. Isso me lembra d’um texto de Ronald Glass (2012),
vejamos o que o autor fala e a relação que fazemos:
Elza fala sobre o racismo que viveu no IFBA, instituição que cursou Ensino Médio
Integrado ao Técnico em Química.
Elza: [...] Era uma coisa, sabe, Gabi… (pausa longa) traumatizante. Muito
traumatizante, de verdade. [...] Os conselhos de classe, as pessoas, na aula,
Gabriela, “ah, os cotistas estão atrasando a aula”, literalmente com essas
palavras, tipo, no meio da aula, sabe? [...] E ali, eu tive que ser ativista. [...]
Meu cabelo mesmo, foi uma situação que passei no banheiro feminino ali da
quadra, uma menina lá da sala, não sei se você conhece, ela é negra.[...] só
que a família dela tem uma certa condição financeira [...] só que ela é
negra da mente branca, por mais que ela diga “ah, sou negra”. [...] um belo
dia estava no banheiro, ela veio pra cima de mim por causa do meu cabelo,
porque eu tinha deixado de alisar o meu cabelo [...]aquilo me machucava
muito. Muito. Então, eu tinha que voltar pra [o cursinho preparatório
87
Quando eu pergunto sobre o racismo que Chica já passou, eu sinto mais fortemente o
tom que eu já tinha captado, nessa mesma parte da entrevista, com outros interlocutores. É um
tom de “qualquer coisa”. É um tom de quem fala algo como: “olha, não é nada demais, coisa
pouca”.
Chica: Poxa, é... Eu não tenho um... Eu não tenho relatos, assim, drásticos,
né? Como o pessoal fala de ser barrado em loja, ou de ser... Eu já fui
perseguida em loja, sobretudo em lojas de shopping pra bairros mais pro
lado lá, da Barra e tal e coisa. Esse tipo de coisa já rolou, mas... Eu não...
Digamos o racismo que eu sofri, assim, eu acho que seria mais de ordem...
Como é que eu posso dizer? Não seria tão ostensivo, seriam piadinhas aqui
e ali e a coisa do: “não, essa menina, ela não, não nega a raiz ao cabelo”...
Piadinhas com cabelo, estéticas né? Questão de ter a bunda grande, ai
associa a “não, ali deve ser boa de cama”, esse tipo de coisa. Então já sofri
racismo nesse sentido e aí, eu não consigo te lembrar de episódios
específicos que isso é uma recorrência... [...]
Gabriela: Você diz assim, na rua? De assédio de homens, por exemplo?
Chica: Assédio, sim, em relação a bunda, acontece direto. [...] Em mesas,
em amigos, isso é “pautado”, piadinhas nesse sentido, que eu me sinto
desconfortável, mas é como eu tô te falando, eu nunca fui vítima de racismo
ostensivo. [...] Eu chamo de ostensivo o racismo que seria digamos, gritante,
entendeu? Ser impedida de entrar em lugares por você não corresponder
àquela raça, ser impedida de, enfim, de fazer determinada coisa por ter
aquela raça, é claro que no ponto de vista institucional eu sou impedida de
fazer coisas por ser negra, mas não no sentido de alguém chegar pra mim e
dizer “você não pode porque é negra”. Entende? Mas por questões de
barreiras que você percebe que, porque a sociedade ela tem aquele
arcabouço do preconceito racial, entende? [...] Mas eu acho que eu também
tenho que levar em consideração que eu, particularmente, não sou uma
pessoa de muito convívio social e uma pessoa de estar em muitos lugares,
até pela situação socioeconômica. Não sou de tá em bar, de estar em festas,
enfim, de estar em shopping. Eu não acho rolê de shopping muito legal,
porque não dá pra comprar, eu não tenho dinheiro, então eu sou muito de
ficar em casa. Então a minha cara não está a tapa frequentemente, entende?
Quando Chica me diz que nunca passou pela experiência de, por exemplo, ser impedida
de entrar num lugar porque alguém lhe falou “você não pode porque é negra”. Eu fiquei me
perguntando quem, num país de suposta democracia racial, vai ser barrado porque alguém
disse “você não pode porque é negra”? Li um trabalho monográfico de Psicologia realizado
em Salvador, de uma pesquisadora chamada Lindiara Paranho Alves (2019). Essa pesquisa
investe nos discursos que jovens mulheres “pardas” fazem da sua identidade. Um desses
depoimentos me chamou atenção. Ágatha é uma jovem que relata ter sido expulsa de casa
88
pela mãe, depois que adotou os cabelos crespos naturais. Essa história faz Alves (2019)
chegue a seguinte conclusão:
O que permite tratar a experiência de uma pessoa expulsa de casa pela própria mãe, após
deixar de alisar o cabelo, como um respingo do racismo? Supondo que é verdadeira a hipótese
de que, a violência racial contra os mais claros ocorra mais dentro da casa do que na rua, por
que essa violência doméstica é “menos violenta” do que a que ocorre fora do lar? Penso que a
resposta dessas questões está na normativa social que informa não importar os sofrimentos
negros. Sendo os negros claros parte “ilegítima” do grupo, suas histórias têm ainda menos
validade. Quando esses negros claros não sentem a sua identidade validada, incorporam a
mensagem de que são negros em segundo lugar, cuja experiência de racismo, seja ela qual for,
é automaticamente transferida para o plano das coisas que não valem à pena falar. Da forma
como observo esse relato, ele reproduz a deseducação social da qual a população negra foi
submetida, para não validar as suas experiências como legítimas e deixar o racismo passar.
Volto à pesquisa de Lindiara Alves (2019) para mostrar o esforço que a pesquisadora precisa
fazer, para manter a ideia de que o racismo não marca o corpo dessas jovens entrevistadas:
Logo, “Ser preto não é só ter pele” pode não se aplicar ao cenário brasileiro
atualmente. E assim concordam as nossas colaboradoras de pesquisa em suas
narrativas de vida, de que a cor da pele clara lhes confere o privilégio e a
ausência do racismo em suas vidas em uma escala igual a de uma pessoa
retinta (retirando, obviamente, em alguns casos o racismo dentro de casa por
conta do cabelo crespo ou a hipersexualização do corpo de uma delas nas
ruas) removendo deste modo o sentimento de pertença racial de pessoa negra
das mesmas e conferindo-lhes um sentido de ausência de pertencimento
diante de sua identidade étnico-racial (p.32).
Talvez seja ainda mais grave pensar que, o debate sobre o colorismo, tal como tem sido
conduzido, reforça esse tipo de deseducação para os mais claros. Ensina-os, antes de falar
sobre as marcas do racismo na sua experiência, que eles devem admitir seus privilégios.
Venho insistindo que essas experiências negras não são uniformes, sejam elas entre mais
claros ou mais escuros. Veja o que Ferreira (2017) nos traz, ao refletir sobre
homossexualidade negra:
A partir disso o autor nos pergunta o seguinte: só o outro é diferente ou nós também
somos? Ser negro não é ter passado por todas as experiências de racismo que existem no
mundo.
Carlos: Não foram todas as lojas que eu entrei que eu fui seguido, mas eu já
fui [seguido], sabe? Enquanto que uma pessoa retinta a quantidade de lojas
que ela entra e ela é seguida é muito maior do que eu posso entrar e ser
seguido, pelo menos da forma que eu leio. E isso é uma forma de distinção
também, sabe? Essa questão do: “você não sofre o que eu sofro, ou não na
quantidade que eu sofro”.
Jaci: [...] racismo ele é estrutural e institucional, né? Então por exemplo, há
caminhos que a gente vai percorrer enquanto mulher negra, que não vai
permitir pra gente uma ascensão social rápida, então isso é racismo
institucional. Por exemplo: eu vim da educação e sou assistente social, são
dois campos de trabalho em que estão majoritariamente mulheres, e depois
mulheres negras, que estão ali num processo de feminização da pobreza e
não é uma coincidência que são lugares que pagam menos, né? Se a gente
for comparar as outras áreas onde os homens, por exemplo, estão
majoritariamente, né? Então o caminho que eu percorri nas Ciências
Sociais e não a uma graduação imperial como: Medicina, Direito e
Engenharias, perpassa pela questão de racismo institucional, né? É a
questão de, por exemplo: eu tenho 32 anos e não consigo me manter em
relacionamentos estáveis, né? Isso se dá também por uma questão racial.
Primeiro porque eu já sou preterida pelos homens brancos e, por mais até
que eu transite em alguns lugares de classe média, devido a uma certa
ascensão social que eu tenho, eu não vou ser escolhida por esses caras.
Sobretudo porque eu moro numa comunidade, né? Eu moro numa favela, e
há todo um preconceito de se morar ali e eu já vou afastar essas pessoas. Os
homens negros também… Eu acho que é ainda mais complexo. Primeiro, os
que ascendem socialmente, eles tendem a estarem em lugares sociais
também onde a gente pode ter majoritariamente mulheres brancas, então ele
vai acabar se relacionando, né? Eu acredito que ele vai preferir visitar uma
menina num condomínio desse que tá aqui na frente da gente, do que lá
onde eu vivo. Mais cômodo pra ele, né? Dá mais respaldo e status social pra
ele. E fora que o próprio movimento, dado a ancestralidade e a
historicidade de como a gente se formou na sociedade brasileira, a base de
muita violência, eles mesmos são muito… Eles não são… Como é que eu
posso dizer? Qual seria a melhor palavra? Estáveis! Você deve ter
experiências com homens negros e você percebe o quanto eles são instáveis.
E aí quanto mais você se aprimora, mais você se distancia desses amores,
quanto mais você é empoderada, quanto mais você sobe socialmente, né? E
aí intelectualmente, economicamente, então tudo isso te afasta de relações
amorosas estáveis. Tanto pelo machismo quanto pelo racismo, né? Que é
outra coisa também que a gente não pode dissociar. O machismo e o
racismo eles tão ali intimamente ligados contra as mulheres negras.
Essa é uma experiência contrastante com a fala de Marielle que nos diz não reconhecer,
na sua experiência pessoal, a solidão e o preterimento. Beatriz conta que antes de assumir o
cabelo crespo, não era parada em blitz com tanta frequência como é hoje. Mas, para ela, a pior
dessas experiências foi quando sua tia disse que sua “barriga era limpa” porque seu filho
nasceu branco.
91
Laudelina: Eu, por exemplo, eu tenho um amigo que ele mora no Engenho
Velho da Federação e qualquer espaço que ele for, ele vai ser lido como
branco, mas ele é o que as pessoas chamam de sarará. Então, embora ele
seja lido como branco em alguns lugares, ele não passa despercebido pela
polícia, ele não deixa de sofrer batida policial, ele não deixa de ter
problemas pra entrar no bairro dele em determinado horário. Eu acho que
são vários elementos que acabam formando essa identidade racial.
92
Nesse trecho, Munanga nos fala sobre a ambivalência da condição do mestiço, e explica
o caminho que eles tomam em direção à identidade negra, dada a compatibilidade de posições
entre pretos e “mulatos”. O limbo racial é, nesse sentido, uma zona que precisa ser analisada,
não só pelos indivíduos que se sentem nesse espaço social. Essa é uma questão relevante na
garantia de que as políticas afirmativas serão destinadas à população negra. Munanga, na
mesma introdução do livro “Mulato: negro-não-negro e/ou branco-não-branco”, reforça a
ideia de que “no plano social e político-ideológico, eles [os mestiços] não podem mais manter
e sustentar essa ambivalência resultada de sua natureza mestiça” (MUNANGA, 2002; REIS,
2002, p. 19).
2.7 O CONFRONTO
Essa parte do texto vai tratar dos embates entre esse grupo autodeclarado negro, de pele
clara, com outros negros, de pele preta, ligados, na maioria das vezes, a contextos de ativismo
político negro. É importante dizer que esse não é um debate novo. Barickman (2009) nos
lembra das controversas que envolveram a artista negra norte-americana Joséphine Baker no
Brasil entre 1929 e 1930: “o ‘Binóculo’ declarou em sua coluna na Gazeta de Notícias, que
Joséphine Baker guardava um ‘segredo’: ‘Jamais foi negra. É apenas uma mulata disfarçada,
muito bem disfarçada’” (p. 196). Outro registro, dessa vez da década de 70, são falas de Arani
Santana presentes no livro do Movimento Negro Unificado (1988) lançado em razão dos dez
anos de organização. Arani fazia parte do grupo NEGO, um grupo de teatro ligado a
Faculdade de Teatro da UFBA. Essa organização se tornou o primeiro núcleo do MNU na
Bahia, o depoimento que segue trata sobre os problemas internos do grupo NEGO:
Nos Estados Unidos, Hunter (2007) fala sobre como o presidente Obama teria sido
colocado sob críticas de “não ser um negro de verdade”:
Trago essas situações para demonstrar os antecedentes desse debate, e como ele
extrapola as fronteiras nacionais. Os Estados Unidos é um país especialmente importante para
essa pesquisa, com o qual farei algumas aproximações, porque é de lá que parte o conceito
“colorismo” - nos debruçaremos sobre ele mais adiante. Nesse sentido, sigo uma metodologia
recorrente no campo dos Estudos de Relações Raciais no Brasil, que é a comparação com o
contexto americano.
Elza vai nos contar sobre constrangimentos que viveu dentro de espaços dos
movimentos negros, em função da sua pele mais clara, qualificando isso como “preconceito
de cor”:
Essa narrativa me lembra da história de Luísa, mulher negra com pele clara, que Neusa Santos
Souza (1983) traz na sua obra:
Elza conta que a experiência se repetiu dentro do seu espaço religioso. Ela teria evitaria
reagir a essas situações para não ser deslegitimada ou ofendida.
Elza: Tem um filme, que, acho que esqueci agora o nome, acho que é
Atlântica, Atlântida negra, alguma coisa assim. Que retrata exatamente
como eu me sinto, acho que a maioria das pessoas do meu tom de pele se
sentem. Tipo assim, se eu não me engano, o filme é assim: são negros que
95
Elza fala que o racismo é tão cruel, fere tanto as pessoas, que quando alguém de pele
preta se depara com a autodeclaração negra de um indivíduo com pele clara, sente-se
revoltado: supostamente eles “não passam pela mesma situação”.
Elza: Do tipo, se eu insistisse, a pessoa ia dizer “não, você não sabe o que é
ser negro”. [...] É como se tipo, como se eu tivesse me apropriando da dor.
Tipo, assim… Afroconveniente. Entendeu? Então, tipo assim, na mente
dessas pessoas eu não sou negra porque eu não passo pelas mesmas
situações que elas, e realmente. [...] Em determinadas situações isso é
verdade mesmo.
Entrevistadora: Interessante. Entendi. Então assim, de alguma maneira você
compreende o que motivou essas pessoas, né? Que é uma experiência real
de dor, então você acha que esse tipo de questionamento é justo?
Elza: Em alguns quesitos, sim. Porque assim, por mais que essas pessoas
estejam expressando dor, algo inconsciente e bem superficial, há uma
classificação de dentro, ali dentro da identidade, negritude. É como se
tivesse concentrações variadas, entendeu? Um gradiente de concentração
do quão negro você é e quanto menos negro você for, mais privilégios você
vai ter. Então, eu não vou ser hipócrita de dizer que se eu for concorrer a
uma vaga de modelo, sei lá, com alguém da cor de Rafa [um amigo em
comum, de pele preta], que não vão... Muito provavelmente vão me optar
mesmo sabendo que eu também sou negra, mas eu sou menos negra, na
mente dessas pessoas. Então eu entendo esse sentido de essa revolta,
entende? Só que o que acontece, eles podem até me selecionar, mas em
momento nenhum eles vão me deixar acreditar que foi por outro motivo que
não esse. Em momento nenhum eles vão me tratar como eles tratariam uma
pessoa branca. Em momento nenhum vão deixar com que eu esqueça as
minhas reais origens, entendeu? Sou menos agressiva aos olhos.
Entrevistadora: Entendi.
Elza: E o que acontece? E aí, essas pessoas, elas não têm essa experiência,
elas não sabem disso. Então elas não conseguem perceber que é cruel
porque a gente não é aceito em lugar nenhum. A gente fica bem no limbo,
entende? Em momento nenhum deixaram eu esquecer disso, nos ambientes
brancos em que eu estive, entendeu? É muito cruel, porque tipo, a gente
sofre preconceito e racismo tanto de um lado quanto de outro.
Elza fala que foi “pega de surpresa” nessas circunstâncias, porque as pessoas que lhe
confrontaram tinham, algumas vezes, formação acadêmica e política dentro dos movimentos
negros, e despertavam nela uma expectativa de acolhimento quanto a sua autodeclaração:
“Esse lance do cabelo mesmo foi uma professora minha [do cursinho preparatório], uma
amiga minha. Virou pra mim e falou assim ‘você sabe, né? Que você é negra por causa do
seu cabelo’. Puts, ela é formada em sociologia, ela é negra. Ela é minha professora…”. Elza
96
avalia que essas disputas são politicamente contraproducentes, “é atirar no próprio pé”
(Elza), por dividir e enfraquecer a população negra. Carlos traz o mesmo argumento:
Dias também conta sobre situações de embate com uma colega de classe da
Universidade, ela não concordaria com sua autodeclaração negra. Para Dias, é possível que
sua colega já tenha sido vítima de racismo, e ao se autodeclarar negro como ela, mesmo nunca
tendo sofrido preconceito, faz com que se sinta “lesada”. Isso explicaria esse ato
“autodefensivo” contra sua autodeclaração. Nosso entrevistado “compra essa briga” pela
defesa do seu pertencimento racial como uma “prática educativa”: “É importante pras
50
“[...] todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo – há muita
gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro.
No litoral, do Maranhão o Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta,
ou vaga e remota, do africano. Na ternura, na mimica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos
sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de
vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava que nos embalou. Que nos deu de mamar.
Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as
primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma
coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira
sensação completa de homem. Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo” (FREYRE,
2003, p. 367).
97
pessoas aceitarem isso, entendeu? Porque se não, se as pessoas não brigarem, se as pessoas
não gritarem, nunca nada vai mudar, ela nunca vai mudar o entendimento dela, entendeu? Se
eu não tentar mostrar meu lado”. Nem todos tem a mesma reação:
Chica: [...] quando você vê certas coisas que você pensa que são consensos
gerais confrontados, você fica, nossa como assim, né? Você questiona isso?
Cê olha pra minha cara e cê acha que eu não sou negra? Entende? Foi mais
uma confusão assim. Uma surpresa, digamos assim, uma surpresa.
O consenso do qual ela se refere, vem de algo que começamos a desenvolver no início
desse trabalho. Trata-se de um esforço histórico que os movimentos sociais negros fazem em
educar as populações fenotipicamente parda e preta a assumirem essa identidade negra. Hoje,
quase 40 anos depois do surgimento Movimento Negro Unificado, Chica se depara com uma
dinâmica que a retira desse lugar de identidade. É um movimento contrário àquele. Dos
movimentos negros vem a politização da mestiçagem, mas também, em alguns momentos, as
suspeitas sobre a identidade dos negros mais claros. É como se duas forças opostas, para
dentro e para fora, incidissem sobre os “pardos”, partindo ambas do mesmo ponto.
51
acontecimento dentro da lógica do que se chama “linchamento virtual” e “cancelamento” ,
Davi diz que:
Davi afirma algo que concordo. Quem se lança a essa prática de “negrômetro” são, em
geral, pessoas muito novas – em idade e experiência política. Entendo que isso está ligado a
dois fatores: o primeiro é que, as gerações negras mais velhas da política, foram aquelas que
uniram esforços para constituir a população negra somando pardos e pretos. O segundo fator é
o que Ferreira (2000) narra como o segundo estágio do tornar-se negro, o momento em que o
indivíduo sai do estágio da submissão e começa a compreender seu pertencimento racial:
Dada a confusão característica desse estágio, brancos e negros claros talvez estejam
sendo colocados juntos, em um saco só. Davi completa seu relato:
51
Ver COLTRI, F. Cultura do cancelamento promove intolerância ao buscar justiça. Jornal da USP, 2020.
Disponível em <https://jornal.usp.br/atualidades/cultura-do-cancelamento-promove-intolerancia-ao-buscar-
justica/>.
99
Quando estava conversando com Elza, ela, que também é minha amiga, me devolveu
alguns questionamentos. Contei que também “comprava a briga” pela minha autodeclaração,
e às vezes me sentia impelida a justifica-la. Eu fazia isso logo no início do meu engajamento
político, era terapêutico de algum modo. Quanto mais falava, mais pensava. Então, mais
questões da minha própria história vinham à tona, e eu consiga explicá-las ou ressignificá-las
à luz das teorias negras engajadas. Por outro lado, o que eu fazia, partia dessa obrigação
implícita de ter que convencer. Esse contexto apela para o relato da dor. Ao decorrer dos anos,
lendo as minhas próprias emoções, percebi que o quanto estava me entristecendo. O racismo é
uma violência, fere, causa dor. “Lembrar o sofrimento dói, lembrar que ele pode nos
surpreender na próxima esquina dói mais ainda. Daí que tantos negros neguem, eles mesmos,
que o racismo existe e os atinge” (CUTI, 2010, p.8).
Davi: Como está ligado a uma relação de poder, eu posso estar muito
errado nessa avaliação, mas no meu ponto de vista, eu teria que contar as
misérias que passei por não me encaixar dentro da branquitude. E no meu
ponto de vista, as misérias que passei por não me encaixar na branquitude,
não se compara as misérias que uma pessoa retinta vai ter pra me falar que
ela passou, então eu vou perder nesse diálogo. Pois se for contabilizar quem
sofre mais pra ver quem ganha nesse diálogo, não tem jeito. Eu acho que
não é por aí, ou não é só por aí, porque entra a questão social também…
Por exemplo: eu passei por poucas revistas policiais desrespeitosas na
minha vida, passei por algumas, passei por poucas. Eu sei que das poucas
que passei, eu não passaria se fosse branco dos olhos claros, como os meus
amiguinhos mais bonitos da escola lá na infância. Então isso já me dá
certeza da minha identidade racial. É triste em saber que a violência
policial acaba por determinar uma identidade, mas acaba por fazer também
(sic). Entretanto, eu sei que passei pouco pelo fato de ter a pele clara, com
certeza. Eu não chamaria de privilégio, acho privilégio uma palavra forte,
mas eu deixei de sofrer algumas agressões. Privilégio quem tem é o branco
mesmo que não sofre nada disso, mas eu deixei de sofrer algumas agressões.
Em parte por causa disso, mas por uma parte pelo fato de eu não ter, desde
a minha infância, morado num lugar periférico. Então o fato deu ter morado
sempre numa área de classe média, classe média baixa, mas classe média, o
fato de eu andar sempre, entre aspas, bem vestido. Inclusive essa é uma
questão também que aponta pra minha identidade racial, porque mesmo no
período que eu andava mais “largado” na Universidade, eu sempre optei
por andar mais vestido com roupas sociais, é algo que estou revendo dos
últimos anos pra cá, fazia isso principalmente por pegar aulas à noite.
Então a vestimenta, o local onde moro, eu sei que tudo isso influencia em
não ter sofrido tantas agressões com certeza. [...]
Laudelina: [...] É... Nunca, nunca assim, tentei, é, falar que eu sofria mais
que todo mundo, nada disso. Nunca, nunca foi meu objetivo até porque eu
sei que tem situações que eu não vou passar, mas o fato é que eu achava que
as pessoas tavam deslegitimando minha identidade racial, entendeu? Por
conta da minha pele e isso, eu não achava justo, até hoje não acho... [...]
Obviamente que pessoas retintas vão passar por situações muito mais
bizarras e eu sei que eu não vou passar por as situações que eles vão
100
passar, mas também não acho que minha trajetória ou todo, sei lá, toda a
minha vida, minha identidade, tem que ser renegada por conta disso,
entendeu?
Entrevistadora: Entendi. E nesses momentos de questionamentos você já
precisou defender essa autodeclaração racial?
Laudelina: Eu sempre fui muito tímida em relação a isso. Muito tímida
mesmo. Eu me sinto desconfortável de me defender perto das pessoas
retintas. É algo que...
Entrevistadora: Mas por quê?
Laudelina: Porque eu acho que não tenho legitimidade, sabe, pra afirmar
uma identidade que, sei lá, que eu não vou passar por certas coisas que
essas pessoas provavelmente passaram ou vão passar, entendeu? Eu sei de
histórias muito bizarras de meninos negros, amigos meus que são retintos e
tal, e eu penso ‘porra, acho que isso nunca aconteceria comigo’, então, eu
sempre fui muito de ouvir, assim... Quando eu tô no espaço com essas
pessoas, assim, de mulheres negras, feminismo negro, sempre tento ouvir
mais do que falar, assim. Então, nunca fui muito de tentar provar que eu era
negra e tal, era coisa que eu sempre guardei pra mim e as pessoas mais
próximas a mim, que me identificam também dessa forma, porque eu falo
pra elas: “olha, eu sou negra e sou e acabou”. Mas quando tô no espaço
assim, sei lá, de militância, alguma coisa, eu fico meio na minha. [...] Eu
sentia muito, eu sempre me senti muito constrangida de estar perto dessas
pessoas porque meio que minha experiência virava nada perto do que as
pessoas colocavam, né?! Tipo assim, gente que sei lá, foi presa por um beck
ou alguma coisa assim, e eu, sei lá, a mulher só falou que o meu cabelo era
feio. Então, eu meio que achava que tinha uma, era uma coisa
desproporcional, então, eu não tinha muito a contribuir. [...]
Gabriel: [...] meu amigo chegou pra mim e falou… Eu não lembro muito
bem o contexto, só que eu deixei o cabelo crescer bastante porque eu queria
colocar dread. E aí eu cheguei no meu bairro pra ver amigos que estudaram
comigo no colégio que eu estudei, que eu me formei no meu bairro, São
Caetano, e eles me falaram: “tá na hora de cortar o cabelo, tem que cortar
o cabelo” e tal, “ mas branco é assim mesmo, quando entra na faculdade
quer mudar”. Aí eu falei: “mas eu não sou branco, eu sou negro” e ele fala:
“não, você não é negro, eu sou negro. Você é branco” e eu falar: “não
cara, eu me leio como negro, eu sou negro” e ele: “tá bom então, então
você é negro”. Então eu não consigo reconhecer qual foi a necessidade de
dizer isso e tal, é como uma questão de… Eu não sei se eu vou conseguir
externalizar com palavras, mas poderia ser um: “você não sofre o que eu
sofro”, sabe? “Por você ser menos retinto você não sofre o que eu sofro.
Então, por favor, não diga que você é isso, sabe?” E eu reconheço isso, eu
reconheci isso pelo menos nas falas que eu ouvi, e é algo que eu não posso
discutir porque eu não vivi o que a pessoa viveu, ninguém viveu o que a
outra viveu, sabe? E boa parte disso é pela consciência que eu tinha dito
que vai de pessoa pra pessoa, sabe? [...].
Conversando com Carlos e Marielle sobre esses assuntos, eu quis saber por que eles
achavam importante defender essa autodeclaração. A fala de Marielle é muito sensível: “É
importante pra manutenção dos nossos direitos, pra conquista dos nossos direitos, pra
manutenção da nossa humanidade, eu penso dessa forma”. Podemos falar que essa conquista
por direitos passa pelo indiscutível peso político que os pardos conferem à expressão
101
estatística da população negra no Brasil. Mas tem algo mais. O que Marielle nos traz é que
esse tornar-se negro é o mesmo processo de tornar-se gente. Compreender-se negro é restituir
ou construir, pela primeira vez, uma noção de pessoa:
Um novo Ideal de Ego que lhe configure um rosto próprio, que encarne seus
valores e interesses, que tenha como referência e perspectiva a História. Um
Ideal construído através da militância política, lugar privilegiado de
construção transformadora da História. Independente dos modos de
compreender o sentido da prática política, seu exercício é representado para
o negro como o meio de recuperar a auto-estima, de afirmar sua existência,
de marcar o seu lugar (SOUZA, N., 1983, p. 44).
“Neo neguinha solidão” é um termo que eu nunca tinha ouvido falar até começar essa
pesquisa - mas nunca devemos dar por encerrado a engenhosidade colonial de criar
caricaturas ridículas para pessoas negras. Quem me trouxe a expressão foi Jaci, que foi
apelidada dessa forma.
Trago falas de duas blogueiras autodeclaradas negras, de pele clara, sobre esses
confrontos no processo de reconhecimento identitário:
MIXTUS52
52
[Vários autores]. Poéticas Periféricas: novas vozes da poesia soteropolitana. 1ed. Galinha Pulando: Salvador,
2018. p.107
103
Pensando bem
Foda-se sua ideologia de democracia racial
Não sou pardo, nem mestiço, nem mulato
De minhas entranhas urram Zeferinas, Dandaras, Mahim, Zumbis.
Toda uma força de vida
Toda uma contribuição cultural
Um sonho de esperança que me mantém vivo
Meu punho é minha lança
Símbolo da resistência
Ah, pensando bem
Foda-se sua ideologia de democracia racial
Pardo e mestiço
Numa sociedade sem racismo
O mestiço é a mistura das raças
Que raça? A humana?
O mestiço é o fetiche dos brancos
Faz a mágica de misturar
A raça humana com ela própria.
Se não existe racismo
Porque falar do mestiço como uma espécie diferenciada?
Os outros, somos nós, dizia o cara pálida.
Marcos Paulo
104
O negro norte-americano lida com a condição de ser negro e ser americano, essa
“contradição” é o que DuBois (1970) examina como “dupla consciência”. O autor nos deu
uma chave ao descrever a encruzilhada ontológica desses homens e mulheres negros (as),
levando outros autores a investir nessa ideia. Gilroy (2001) utiliza isso para pensar o Atlântico
Negro e Ângela Figueiredo (2012) para falar sobre os negros da classe média brasileira,
vejamos:
Sugiro que esse recurso teórico é uma possibilidade para pensar aqueles pardos que se
identificam como negros, e aqueles negros que se identificam como pardos. Esse sujeito
desafricanizado e de pouca melanina, não é a imagem mentalmente formada quando ouvimos
a palavra “negro”. Ainda assim, é a população mais numérica desse grupo (pardos são maioria
em relação a pretos pelos dados do IBGE). Também não é “parda” a imagem que nos vem
como referência de pessoas brancas. Vou mostrar o que eu digo com uma pesquisa simples da
palavra “negros”53 na seção de “Imagens” do site de buscas da Google.
53
No Exame dessa Dissertação, Jacques D’Adesky (2021) sugeriu que a pesquisa incluísse termos que
traduzissem o “negro” em outras línguas, como o francês e o inglês. Nesse sentido, a busca seria respectivamente
pelos termos “noir” e “black”. Como sabemos, os resultados de busca do site da Google tem uma relação com o
local e o usuário que pesquisa, assim, não sendo termos usuais para as classificações raciais no Brasil, o
resultado da pesquisa no banco de imagens apontou para objetos, cores e animais, não sendo possível a
observação da diferença de percepção sobre “o negro” em outros idiomas/outras regiões do mundo, como era a
intenção de D’Adesky. Essa será uma questão desenvolvida e aprofundada para a publicação dessa Dissertação
no formato de um livro, tal como indicado pela Banca.
105
Fonte: Google.
Fonte: Google.
Nas imagens anteriores, o Google dispôs pessoas de pele preta para o resultado de
“negros”, assim como cartazes e desenhos gráficos com pessoas pretas, em união a brancas,
na representação do racismo. Nenhum pardo está nessas imagens, isso porque, os autênticos
representantes da diáspora no Brasil, aqueles com verdadeira “carga étnica” (termo usado por
Marielle anteriormente) seriam negros de pele preta. Essa também é a atitude ensinada pelos
discursos que temos analisado sobre o “colorismo”: o racismo é uma experiência preta e o
privilégio, parda. Vamos observar outras imagens de busca no Google sobre outros termos.
106
Figura 15 - Busca no Google Imagens: “jovens mortos pela polícia”, printscreen 2020.
Fonte: Google.
Fonte: Google.
Fonte: Google.
107
Quando a busca é sobre genocídio de jovens pela polícia, a principal denúncia que os
movimentos negros fazem contra o Estado atualmente, as cores das pessoas apresentadas pelo
Google tem um espectro maior. Os jovens são, na sua maioria, o que poderíamos classificar
como “pardos”, da mesma forma ocorre para as pessoas marcadas pelos estereótipos do
“traficante” e dos “pobres”. Quando o Estado brasileiro elaborou, lá atrás, a identidade
“mestiça” para o seu povo, colocou a miscigenação como o caminho do branqueamento, ela
extinguiria os pretos, esses sim, “negros de verdade”. O Brasil seria o “paraíso” dos mestiços,
a população autenticamente brasileira descrita por Darcy Ribeiro (1995). Dessa forma, esses
“pardos” precisam se debater entre o discurso oficial da mistura, que o celebra, e as marcas
dela no seu próprio fenótipo, ao passo que estão submetidos às mesmas posições marginais de
todos os negros. Por um lado, as mulheres claras tem espaço para sambar como Globelezas, as
pretas não. De outro, não são as protagonistas disputadas em um romance da novela. Essa é
uma situação de dupla consciência. O negro-vida-pardo é a população negra mais numérica,
cuja racialização se dá sem nomeá-lo negro, sem chamá-lo “preto”. Ele está fora do
estereótipo do ser negro de feições africanas. Campos (2013) analisa as fichas de coleta de
dados do IBGE, e argumenta que, estando “pardo” abaixo das opções “preto” e “branco”,
reforça a ideia de que só deve ser indicado quando aquele entrevistado não se situa em
nenhuma das opções anteriores.
É como sujeitos de “pele parda” que são descritos os indígenas avistados por Pero Vás
de Caminha na sua carta datada de 1500. Ainda hoje, descendentes indígenas ou “caboclos”
estão registrados como “pardos”, por isso mesmo o Amazonas é o estado com a maior
porcentagem dessa população.
Talvez já tenhamos deixado claro que “pardo” é uma categoria de cor/raça do IBGE que
convive com a identidade negra de alguns dos meus entrevistados e da minha. É como
“pardo(a)” que respondo aos questionários de cor ou raça quando sou solicitada, desde que
não haja a opção “negro(a)”. Esse é um tema extremamente polêmico. O trecho de Skidmore
(1976) nos mostra que muitos fatores informam cor, dentre eles a classe social e o que
poderíamos chamar de capital social e cultural (BOURDIEU, 2007). Nesse sentido, quanto
mais alta a classe social que o indivíduo ocupa, maior será o seu desejo e a possibilidade de
embranquecer e ser embranquecido. Pardo seria uma opção furtiva dessa identidade negra.
Jaci: Preta, eu sempre coloco preta, não coloco parda porque eu acho pardo
um termo apolítico. Eu acho que pardo nem deveria existir. Mas, como
existe essa questão do racismo à brasileira, a falsa democracia racial, ainda
se tem aquele termo ali pra poder acomodar algumas pessoas que ainda não
conseguem se enxergar enquanto pessoas negras, para além de uma questão
da cor da pele. Então até pra mim politicamente, me declarar como preta é
mais positivo do que parda. Não tenho dúvida, não faço confusão e não
tenho nenhum problema em me declarar enquanto preta.
Por outro lado, os atuais debates que o “colorismo” tem trazido, apelam para uma
investigação acurada sobre a condição de vida de negros claros e escuros, e por isso eu acho
fidedigno que, não tendo a pele preta, sinalize que sou parda. Como disse, esse é um tópico
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extremamente polêmico, e não há consenso a partir dos meus entrevistados, entre os quais
existirão aqueles que responderão ao IBGE como “pretos” e outros “pardos”.
Quando perguntei a Marielle e Carlos o que eles pensavam sobre as categorias “pardo”
e “mulato”, me trouxeram aquele velho dilema sobre a divisão interna:
consideração a mestiçagem. Quero dizer que se trata de uma elaboração que não ignora a
miscigenação, mas retira o controle branco do próprio discurso. Goldman (2015) me fez
pensar sobre isso ao escrever sobre a experiência dos novos Maias e dos afroindígenas em
Caravelas (Bahia):
Em consonância com o autor, Davi sintetiza a identidade negra da seguinte forma: “ser
negro é não se encaixar na branquitude por ter essas características que vieram dos nossos
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Eu entendo que a defesa hoje do que é negro de verdade, quando a gente faz
essa separação, de quem se predispõe a ser negrômetro, é pautada no nível
de sofrimento, e o discurso é esse: “assim é muito bom, mas na hora de
sofrer agressão policial ninguém quer, aí vocês não querem ser pretos”.
Assim, quando a gente pega dados sobre mortes por arma de fogo, o número
é muito equilibrado entre negros e pardos, mas entre brancos dá uma caída.
É claro que é uma questão problemática, pois tem que ver quem são esses
pardos e como são os pardos.
Chica define o seu pertencimento racial com base nas suas características físicas de
“cabelo crespo, nariz largo” e “tom da pele”. Jaci, por outro lado, soma o fenótipo à sua
história pra explicar “de onde vem essa identidade negra”:
Por conta da minha família, né? Meu pai é negro retinto, e por conta do
lugar social de onde eu venho, né? Eu vivo num quilombo urbano chamado
Beiru. Então a minha projeção social ali não foi por acaso, é dado a uma
ancestralidade. Se não fosse por isso, lá eu não estava.
Jaci: [...] se você for, por exemplo, numa balada topzeira branca, você, por
mais que seja menos escura e alise os cabelos, porque inclusive os cabelos
alisados eles são diferentes dos cabelos que são naturalmente lisos, você
percebe de longe a guanidina. O cabelo escovado quem já entrou nesse
processo sabe muito bem diferenciar por mais perfeito que aquela escova
progressiva seja, né? E eles sabem rapidamente nos diferenciar, né? De que
a gente não é um deles.
Cabe explicar que “4C” é uma forma de identificar o tipo de cabelo mais crespo.
Trouxemos uma imagem que explica visualmente esse tipo de classificação.
Fonte: AURELIANO, Bruna. Como identificar seu tipo de cacho. 2017. Disponível:
<http://www.bonecadeplatina.com.br/como-identificar-seu-tipo-de-cacho/>. Acessado em 25 set.
2020.
Schucman (2018), por exemplo, diz que “tanto o indivíduo quanto suas concepções de
realidade são constituídos nas relações interpessoais” (p. 44). Para indivíduos negros-pardos,
a dinâmica desse processo é de tal forma, que pode se alterar no curto espaço de tempo em
que alguém sai do bairro da Barra (bairro nobre e branco de Salvador) em direção à Vila
Brandão (comunidade negra e periférica da cidade), que fica à menos de cinco minutos de
distância. Vamos inventar um personagem fictício chamado Augusto. Ele é o garçom negro,
de pele clara, que atende aos clientes brancos do restaurante X do bairro da Pituba, bairro de
elite. Nesse ambiente, ele percebe a sua diferença: os clientes não se parecem com ele e as
únicas pessoas com características físicas semelhantes estão na posição de trabalhadores. À
noite Augusto retorna sua residência que fica no bairro do lado, dez minutos de ônibus para o
Nordeste de Amaralina, um bairro negro. Chegando lá, Augusto, entre pessoas mais escuras,
vira branco? Isso é trânsito racial?
O que não fica claro é se essa diferença de percepção é uma diferença de nomeação ou
de tratamento. Preciso ser mais clara: entre pessoas brancas, um negro de pele clara é
nitidamente um contraste não-branco. Já lemos muitos relatos nesse trabalho, principalmente
de Davi, sobre como entre brancos, definitivamente ele não se sente parte do conjunto. Entre
pessoas de pele preta, o pardo também será um contraste, e será nomeado como não-negro.
Elza: Porque assim, os brancos eles não vão olhar pra mim e vão dizer que
eu sou branca. E os negros vão olhar pra mim e enxergar em mim um
branco. Eles vão enxergar em mim o branco porque há diferença, o
contraste, então, eles vão direcionar pra mim.
O que acontece, porém, é que ser nomeado como branco ou não-negro, não é o mesmo
de ocupar esse lugar social. Assim como, não ser nomeado como negro, não é o mesmo de
não ser racializado. Eu poderia apostar que, em nenhuma situação de racismo que vivi, caso
114
esses agressores fossem confrontados, me nomeariam como negra. Acho até que eles se
defenderiam assim: “eu racista? Mas essa menina nem é negra, é moreninha...”. Com isso eu
quero dizer que também sinto que as pessoas, em locais de maioria preta, não vão me nomear
como negra. Apesar disso, nesses mesmos ambientes de maioria preta, nunca tive o privilégio
que um branco dispõe. O privilégio de ser vista como uma boa cliente, por exemplo, que não
irá roubar. Sejam em lojas populares de bairros ou em Shoppings, os olhares e o tratamento
dos outros me mantém no mesmo lugar social.
Sem querer encarar nesse trabalho o paradigma da corporeidade, é útil trazê-lo como
possibilidade reflexiva. A controversa entre o que se verbaliza e o que se percebe ou sente,
parece ser o dilema clássico entre corpo e mente. Vamos observar essa perspectiva trazida por
Csordas (2008):
Tornar o corpo negro, de pele clara, objeto de ciência, é tentar inteligir sobre ele as
leituras sociais tomadas por entrevistas, conteúdo on-line ou bibliografia clássica. Ouvir o que
os corpos mestiços-negros falam, é perceber seus manejos sociais, seja, por exemplo, a partir
do esforço de adequação estética, intimidações e inseguranças frente o espelho, ou emoções
de medo e inadequação em ambientes de poder. Eu visto essa pele e aprendi ao longo do
tempo que é necessário ouvir o corpo quando ele sinaliza desajustes, mesmo que a
racionalidade não tenha conseguido fazer a relação entre situação e subjetividade.
Considerando isso, chamo atenção para as experiências que têm sido qualificadas como
“trânsito racial” ou “passabilidade”. Se é muito violento para constituição da pessoa negra ser
definida pelo exato oposto de tudo que é bom (branco), é também muito perturbador pensar
que a identidade negra, de negros de pele clara, se estrutura levando em consideração o que
115
não é nem de um grupo e nem do outro, ou seja, nem preto, nem branco. Concordo quando
Schucman (2018) diz que
Essa “passabilidade” aponta para um privilégio que não cabe na definição das
experiências sociais negras de nenhum tipo. A situação para esses negros-pardos não é a de
pertencer a um grupo e outro, é de não ser acolhido entre brancos e, por vezes, também entre
negros.
Apesar do racismo, a intelectualidade negra já construiu um importante legado ao
recontar os grandes feitos ocultados das civilizações negras, ou construindo e disputando um
espaço, inclusive na consciência social e na mídia, da Beleza Negra, além de outros
empreendimentos que edificam a autoestima dos negros enquanto povo:
vidas que têm valor, como pessoas herdeiras de uma história legítima, dotadas de inteligência,
beleza e moral:
Davi: Quando estou no terreiro que frequento que é num bairro de maioria
negra, quando estou lá, eu sou lido como branco pela maioria das pessoas.
Quando estou em outros ambientes, a exemplo, ambiente profissional, que
também tem muitas pessoas negras, mas ainda assim conseguem fazer essa
leitura ao menos de que não sou branco, ninguém me categoriza como isso
não.
Gabriela: Então qual a diferença? Porque no início eu estava começando a
entender que a diferença era a quantidade de pessoas mais claras ou mais
pretas. Então no bairro do seu terreiro tem gente mais preta, então você se
sente menos preto, mas no seu trabalho tem muita gente preta também e
você não se sente menos preto.
Davi: No bairro do terreiro tem muita gente negra e muita gente preta.
Muita gente preta retinta e muita gente preta de pele clara. No trabalho, tem
gente preta retinta, gente preta de pele clara e tem muito branco, a presença
dos brancos faz esse contraste, é o que fazem perceber: “não, ele não é
branco, branco de verdade é aquele ali”.
Essa é uma narrativa muito parecida com a de Beatriz: “eu me entendo como mulher
negra num contexto de que eu não sou branca. Eu tenho claramente na minha cabeça que eu
não sou branca, digamos pura.” Essa coisa de ser um contraste entre brancos, Laudelina
chama de “bicho estranho do lugar”, é como ela se sente em ambientes de maioria branca ou
de negros retintos: “é como se eu não fosse negra o suficiente, entendeu? Assim, ‘eu posso ser
117
negra, mas eu não sou tão negra quanto eles’”. Entre negros de pele clara é onde encontra
seu espaço de pertencimento. Porém, a experiência de contraste nem sempre é o crivo mais
importante da identidade dessas pessoas. Por exemplo, o que reforça o sentimento de pertença
em Chica é morar em uma comunidade periférica. Ela pensa, inclusive, que com o seu
fenótipo, se vivesse em um meio de classe média, talvez não fosse tão estimulada a refletir
sobre seu pertencimento racial. Marielle nos traz de volta o quesito “vivência”, a depender
dele e do “modo como você aborda essa vivência” poderíamos medir a legitimidade daquela
autodeclaração.
Considerando que existirão pretos ricos e brancos pobres, considerando que a cor da
pele por si só não pode ser um critério, Marielle conclui que “a única coisa que une todos os
pretos pra mim é discriminação”. Então Dias, que nos diz nunca ter sofrido racismo não seria
negro para Marielle?
Marielle: Todo preto já sofreu… Todo preto PARDO, não branco, já sofreu
discriminação, agora em diferentes níveis né? Isso pra mim é o que une todo
mundo.
Gabriela: Se uma pessoa falar assim: “sou negra, mas nunca sofri
racismo.” Essa pessoa, por exemplo, não é negra?
Marielle: É, porque ela pode até ter passado, mas ela não percebeu. Pra
mim é isso. Por mais que a gente não seja chamado de macaco na rua, a
gente percebe o tratamento diferente. Eu não sei se você já percebeu, mas…
Quando Schucman (2018) diz que “não é a cor de ninguém que produz o sentimento do
racismo, mas sim a dominação racial” (p. 121), nos faz entender que a pele clara de uma
pessoa negra não a blinda do racismo, desde que sua leitura social seja racializada. Isso me
lembra da pesquisa que Schwartzman (2009) realizou entre cotistas na Universidade Estadual
do Rio de Janeiro:
118
Am I discriminated against?
If one agrees that the purpose of affirmative action is to compensate for
discrimination, one is left with the question of exactly who suffers
discrimination. Joana claims she is not discriminated against despite her
‘bad’ hair, but can we rely on her perception? As we have seen, there is a
difference of opinion between Antonio and policy designers about which
categories of people are discriminated against. Antonio distinguishes
between pardos and negros, thinking that only the latter suffer
discrimination. The proponents of the change in the law, based on social
scientific statistical research, see pardos as being enclosed within the negro
category, and suffering the same amount of discrimination. This disjuncture
between Antonio’s and policymakers’ perceptions is the result of two
methods by which people learn about discrimination: by directly observing
discriminatory processes or by deducing its existence from observation of
patterns in the outcomes of discrimination. Impersonal forms of
discrimination are more difficult to be perceived directly than the more
personal forms, where processes are more visible. Gabriel, an older student
who used to work as a teacher, and who is very politically engaged with the
negro cause, describes his experience with institutional discrimination the
following way: The thing [racism] is so hidden that the negro sometimes
doesn’t get offended. Sometimes he has to stop to analyse what happened so
that he notices that he is being discriminated against. [_] He doesn’t notice
this, as for example, when he looks for a job. I suffered this a lot. I was only
able to do well professionally when I went through exams to work in the
public sector. Because then there is no colour. You do the exams, get the
highest grade, get classified in the first place, and nobody can kick you out.
But in private schools, I never worked in private schools more than two
years. Always by chance, it happens by chance, the class got smaller [_] the
class always gets smaller, someone always takes my place.
Gabriel cannot observe the process of discrimination directly, but has to
deduce it through its effects. In what he calls his ‘ civil life ’ discrimination
becomes more directly visible (p. 241-242).54
54 Sou discriminado? Se alguém concorda que o propósito da ação afirmativa é compensar a discriminação, fica-
se com a questão de exatamente quem sofre discriminação. Joana afirma que não é discriminada apesar de seu
cabelo ‘ruim’, mas podemos confiar na percepção dela? Como vimos, há uma diferença de opinião entre Antonio
e os formuladores de políticas sobre quais categorias de pessoas são discriminadas. Antonio faz uma distinção
entre pardos e negros, pensando que só estes sofrem discriminação. Os proponentes da mudança da lei, com base
em pesquisas estatísticas científicas sociais, veem os pardos como incluídos na categoria do negro e sofrendo a
mesma discriminação. Esta disjunção entre as percepções de Antonio e dos formuladores de políticas é o
resultado de dois métodos pelos quais as pessoas aprendem sobre a discriminação: observando diretamente os
processos discriminatórios ou deduzindo sua existência a partir da observação de padrões nos resultados da
discriminação. As formas impessoais de discriminação são mais difíceis de serem percebidas diretamente do que
as formas mais pessoais, onde os processos são mais visíveis. Gabriel, um aluno mais velho que trabalhava como
professor e que é muito engajado politicamente com a causa negra, descreve sua experiência com a
discriminação institucional da seguinte forma: A coisa [racismo] é tão escondida que o negro às vezes não se
entende ofendido. Às vezes, ele tem que parar para analisar o que aconteceu para perceber que está sendo
discriminado. [_] Ele não percebe isso, como por exemplo, quando procura emprego. Eu sofri muito isso. Só
consegui me sair bem profissionalmente quando fiz provas para trabalhar no setor público. Porque então não há
cor. Você faz os exames, tira a nota mais alta, é classificado em primeiro lugar e ninguém pode expulsá-lo. Mas
em escolas particulares, nunca trabalhei em escolas particulares por mais de dois anos. Sempre por acaso,
acontece por acaso, a turma fica menor [_] a turma sempre fica menor, alguém sempre toma o meu lugar.
Gabriel não pode observar o processo de discriminação diretamente, mas deve deduzi-lo por meio de seus
efeitos. No que ele chama de discriminação de "vida civil", torna-se mais diretamente visível (tradução nossa).
119
Guimarães (2008) também nos traz uma contribuição muito importante nesse sentido:
Gabi de Oliveira é uma blogueira negra, de pele preta, que compartilhou um vídeo no
Youtube a respeito do “colorismo” em 2016. Destaco aqui algumas sentenças que ela declara a
respeito desses critérios de identidade/identificação:
Se você nunca notou sua negritude, se você nunca foi olhada torta por causa
da sua negritude, sinto muito, mas você não é negra! [...] Cabelo cacheado
não te faz negra, preconceito contra cabelo cacheado não é o mesmo que
racismo. [...] Se você já foi dita como mulata, morena escura, você pode se
reivindicar como negra, mas lembra, é necessário ter passado por alguma
situação (OLIVEIRA, G., 2016).
Carlos faz menção a um projeto fotográfico que usou a “Escala de Cores Pantone”55
para pensar semelhanças e diferenças entre pessoas de cores iguais:
Carlos: Então a questão é: a cor da pele, essas coisas, é sim um fator, mas
não o fundamental, é outras coisas que influenciam, como a questão da
discriminação que Marielle falou, que ajuda a identificar, que ajuda a se
perceber, [...] É um fator que se ajuda, que de alguma forma une todas… Ou
uma porcentagem gigantesca pelo menos.
A fala de Carlos de baseia na imagem a seguir. Se as duas mulheres têm a mesma cor e
ao mesmo tempo pertencem a grupos raciais distintos, outras coisas devem ser levadas em
consideração.
55
Ver <http://www.arcoirisge.com.br/o-que-e-a-escala-
pantone/#:~:text=Fundada%20em%201962%20em%20New,t%C3%AAxtil%2C%20de%20tintas%20e%20pl%
C3%A1sticos>.
120
Marielle mais uma vez nos traz uma fala muito sensível e que vai estar presente quando
mergulharmos cabeça pra tratar sobre colorismo. Diferenciar claros e escuros seria uma
estratégia de divisão interna para a população negra:
Fonte: Facebook.
122
Fonte: Facebook.
com a dúvida, sabe? Ao invés de crescer com uma identidade, como foi o
meu caso. Eu cresci com a influência de casa, junto com influências do meu
bairro, um dizendo um, outro dizendo outro, e só na faculdade que eu
realmente reconheci o que eu era. Mas até lá foi essa questão: comentários
de um lado, comentários de outro, porque não tem aquela unificação de
pensamento, e isso me deixou bastante confuso, até hoje me deixa, sabe. [...]
Ser deslegitimado significa perder um pertencimento racial que lhe resgata como ser
humano, e também supor sobre si mesmo, conduta imoral de oportunismo e desonestidade.
O que fazia Elza questionar a sua autodeclaração era perceber como suas experiências
de racismo, assim com as experiências de racismo dos seus conhecidos negros, de pele clara,
eram menos frequentes que as dos negros retintos. Para Dias, essa crise na autodeclaração
veio com a reprovação pela Comissão de Aferição da UFBA. Chica, por outro lado, ao ser
aprovada, conta que esse resultado não repercutiu sobre sua identidade. Ela trata essa situação
como um procedimento burocrático, formal. Dias submeteu um recurso à Comissão e foi
relendo várias vezes esse documento, ao longo do tempo, porque os argumentos lhe ajudavam
a reforçar o sentimento de pertença:
124
A bibliografia acerca dessas Comissões vai nos dizer que seu objetivo não é fornecer ou
desfazer uma identidade, mas garantir que os beneficiários para quem as cotas raciais foram
pensadas, sejam aqueles sujeitos cujo fenótipo lhe impõe ou poderia lhe colocar, em uma
condição de desvantagem social. É possível, então, que Dias continue se afirmando como
pardo, em nome de tudo que justifica, mas não seja reconhecido como alguém passível de
sofrer racismo. Identidade é uma coisa complexa, o trabalho da Comissão é colaborar para o
bom funcionamento de uma política pública.
Assim como Dias, nossos entrevistados têm diferentes estratégias para reforçar essa
autodeclaração no momento em que se sentem em crise. Elza por exemplo, conta o seguinte:
“lembro das dificuldades que eu enfrento na minha vida e que eu sei que eu enfrento porque
eu não sou branca”. Quando esse indivíduo questiona sua racialidade, precisa refazer a
trajetória que lhe conduziu à autodeclaração negra. O que inclui repensar, por exemplo, as
situações em que foi vítima de racismo. A cor da pele é o que, para Davi, o faz questionar sua
autodeclaração. “Eu realmente penso que não sou tão escuro assim, então será que eu sou
mesmo?”.
Davi: [...] Ainda é uma identidade frágil, esse é o entendimento que eu tenho
hoje, e eu posso ler três ou quatro livros amanhã e acabar achando que tem
que se criar uma nova identidade mesmo. Agora, a única certeza que eu
tenho é que eu não me encaixo na braquitude, a única certeza que eu tenho é
que independente do nome dado a minha identidade racial, ser negro ou
não, eu tenho uma responsabilidade da manutenção da minha
ancestralidade africana e eu sou herdeiro dessa ancestralidade, ponto.
Independente de eu ser considerado negro ou não. Acho que esse é um ponto
central na construção dessa identidade, a gente se entender a partir da
nossa história. E a minha ancestralidade que vem de África faz parte da
minha história.
“sou mestiço nas minhas origens, caboclo na minha cultura e cidadão frente
aos meus direitos”. A fórmula é tão simples que, à primeira vista, seu
conteúdo reivindicatório escapa ao observador. Qual é o sentido político de
se afirmar o óbvio? Não é notório que o Brasil é um país mestiço? Que a
Amazônia é a terra dos caboclos? Que a cidadania define o espaço dos
direitos? Pois, justamente, denuncia o Nação Mestiça, essas evidências estão
sendo destruídas. Dentro da nova engenharia das relações “étnico-raciais”, o
“mestiço não existe”. Ao afirmar cada vez mais na estatística nacional e nas
políticas públicas que pretos e pardos são negros, e que ser negro é ser
culturalmente afro-brasileiro, o caboclo se torna invisível. Ao redefinir o
acesso a direitos universais (educação, terra, saúde...) na base de critérios
diferenciais (etnia, cor, raça), a igualdade como princípio fundador da
cidadania se esgota. [...] O Nação Mestiça rompeu sua cooperação com o
movimento negro e criou um fórum mestiço, afirmando a realidade da
mestiçagem como processo, e a cultura cabocla como irredutível à cultura
afro-brasileira. [...] Foi justamente para denunciar o clima de “mestiçofobia”
que nasceu o Nação Mestiça. [...] Ora, para o pequeno grupo de amigos que
fundou o Nação Mestiça, o mestiço existe, sim, e a afirmação de que pardos
são negros não funciona, muito menos na Amazônia. De acordo com o
Censo 2000, o Amazonas é o estado mais pardo do Brasil, com 66,9% da
população (a média nacional de pardos é de 38,45%). Porém, o estado tem a
terceira menor população de cor preta (3,10%), depois de Santa Catarina
(2,65%) e do Paraná (2,84%). Os dados exprimem o argumento central do
movimento social: na Amazônia, os pardos são caboclos, mestiços oriundos
da mistura de brancos e índios. Por esse motivo, não podem ser considerados
negros (VERÁN, 2010, p. 21, 23, 27, 28).
O discurso do “Nação Mestiça”, junto com a reflexão que Lehmann (2017) faz sobre o
poder de nomear, nos faz pensar como as diferentes estratégias de classificação racial esteve e
se mantém como parte importante da formulação de políticas públicas. Ou seja, dar nome aos
bois é uma tarefa séria e remete-se a cálculos políticos históricos.
Carlos fala que, da mesma maneira que sua identidade negra está se construindo em
tempo relativamente recente, também são novos pra ele, os confrontos em relação a sua
autodeclaração. Esses debates têm lhe feito “crescer” e “amadurecer” em relação à
compreensão dessa identidade:
Carlos: Eu acho que essa questão não pode ser tirada de mim. Eu sou negro
de pele clara, e tudo que eu vou ouvir vai ser coisas que um negro de pele
clara vai ouvir. Então, essa questão de dúvida que gera, acho que são mais
126
os desafios, porque eu não vou deixar de ouvir que eu sou branco em algum
local. Cabe a mim entender que eu vou ouvir isso em alguns locais, e não
criar dúvidas na minha cabeça, e entender que assim como algumas pessoas
mais retintas sofrem coisas que eu não vou sofrer, [...] eu vou ser lido como
branco em alguns locais que uma pessoa mais retinta não vai ser. [...] Eu
tenho meus privilégios em certos locais por ser menos retinto, mas eu sofro
coisas também que ele não vai entender, sabe? Essa dúvida, por exemplo.
Uma coisa que me perseguiu por muito tempo. É uma coisa que ajudou por
muito tempo a enfraquecer minha identidade e é uma dificuldade social você
não conseguir se encaixar num local, você não se sentir à vontade pra ter
um local de fala, você achar que a pessoa tem um local de fala maior que o
seu, e essas questões de identidade foram o que me atrapalhou, me
atrapalhou dessa forma. [...]
Ser deslocado de um lugar para o outro, posições tão opostos entre si – ser negro e ser
branco – é, para Carneiro (2016), sintoma do racismo e, complementaríamos, nocivo para a
construção de uma identidade coletiva e politicamente engajada, como envolve o processo do
tornar-se negro (FERREIRA, 2001). A defesa que os nossos entrevistados fazem, pela sua
autodeclaração, tem a ver com o poder de nomear, e também, poderíamos acrescentar, com o
controle da própria imagem:
A experiência de ser negro de pele clara não parece ser, na maioria dos casos, a
experiência de acolhimento num grupo e noutro. É a experiência de desertar de ambos.
127
Quando Carlos ou alguns outros entrevistados narram não serem identificados como negros,
não é porque a branquitude assume-os como um dos seus, é que os negros de pele preta lhes
disseram não serem pretos o suficiente. De igual forma, quando muitos nos disseram que,
entre os brancos, tem clareza de serem diferentes, não é necessariamente porque se sentiram
acolhidos entre negros, e sim porque sofreram racismo. Pessoalmente entendo que, se ainda
restam dúvidas, aí está a diferença entre negros de pele clara e brancos: negros de pele clara
são pessoas racializadas e por isso mesmo não são pessoas que participam branquitude, ainda
que por ventura, sejam nomeadas como brancas em determinados contextos.
O testemunho da pesquisadora em seu próprio texto monográfico nos faz pensar que
uma certa “síndrome do impostor” sempre acompanha os negros de pele clara, é como se a
qualquer momento eles pudessem ser “descobertos” como não-negros “de verdade”. Essa é a
experiência de ser impelido constantemente a partir. Muitas dessas pessoas tentavam ocupar
um lugar incômodo mais perto da branquitude enquanto morenas ou pardas. Um dia elas
começaram a perceber que aquela posição era, no máximo, a de quase-alguém. Era uma
identidade que nunca se completaria, então desertam. Passaram a mergulhar na compreensão
dessa identidade negra e reivindicá-la para si. E aí são novamente impelidos a desertar porque
não são re-tintos, “duas mãos de tinta”. Não é que essa identidade nunca se complete também
entre negros. Como lugar de poder e hegemonia, a branquitude não permite multiplicidade de
discursos sobre ser branco. Por outro lado, o ser negro consegue comportar diferentes
experiências de racialização.
A narrativa de Jaci difere das demais por não nos remete a uma dúvida quanto a sua
própria autodeclaração. Nos momentos de embate, ela nos conta sobre a prática de “educar”:
retintas elas trazem, né? Que ela nunca teve dúvida de que era negra, mas
as não retintas sim. Mas isso não é culpa nossa, a gente não pode cair no
discurso neoliberal de culpabilização individual. Se nós, enquanto peles
menos escuras, tivemos essa dificuldade, não foi por culpa nossa né? Foi
dado por esse processo racial de democracia brasileira que dividiu,
sobretudo as mulheres, em brancas, mulatas e pretas.
Militantes mais velhos geralmente são aqueles que não entram em dilemas que
deslegitimam negros claros. Pensando em uma perspectiva histórica, isso faz muito sentido.
Foram essas gerações mais velhas que enfrentaram o auge do mito da Democracia Racial e
elaboraram as políticas afirmativas, afirmando que pretos e pardos têm lugar de pertencimento
negro na sociedade brasileira. As gerações mais novas são fruto desse empreendimento
político, mas também atravessadas por preocupações mais novas, trazidas pelo “colorismo”,
por exemplo. Recentemente um vídeo ao vivo e disponibilizado no Youtube56, foi gravado em
nome da editora Companhia das Letras e contou com as participações de Djamila Ribeiro,
Bianca Santana, Flávia Oliveira e Sueli Carneiro. Em um dado momento da conversa, o
assunto “colorismo” foi tocado. Sueli Carneiro inicia a fala da seguinte forma: “eu sou uma
mulher velha, então eu tenho posições antigas, né” (2020), ela fala que se incomoda com esse
assunto e qualifica-o como “um tiro no pé”. Carneiro aponta que pertence a geração que se
esforçou em constituir a categoria “negros” pela soma de pretos e pardos. Esse teria sido um
empreendimento de “engenharia política” (CARNEIRO, 2020) e “esforço acadêmico
extraordinário” (Ibid. op. cit.), envolvendo “uma vasta produção sobre desigualdades sociais
no Brasil” (Ibid. op. cit.). O “colorismo” faria com que os movimentos “retornassem aquele
ponto de crítica de partição” (Ibid. op. cit.). Na sua fala, Sueli Carneiro se coloca como
testemunha “dos prejuízos que essas partições” (Ibid. op. cit.) produziram contra a própria
população negra: “se a gente for insistir nessa diapasão eu quero saber o que a gente vai fazer
com aqueles corpos que estão no IML que são, na sua maioria, pardos também, aqueles
corpos de meninos negros assassinados” (Ibid. op. cit.). A escritora observa que o “colorismo”
é um tema muito presente entre as mulheres, o que lhe leva a suspeitar “que está sempre
eivado pelas disputas no mercado afetivo, e aceitar esses termos do debate é rebaixar a
problemática racial de toda a magnitude que ela tem, que está para além disso” (Ibid. op. cit.).
56
Ver Feminismos negros, com Sueli Carneiro, Bianca Santana e Djamila Ribeiro #JornadasAntirracistas.
Companhia das Letras, 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=2mmuyRXHHg0&t=26s>.
129
Não é que a diferença entre negros claros e escuros não fosse vista antes, já trouxemos
exemplos de como essa controversa é antiga. Mas só agora isso começar a ser elaborado com
um conceito acadêmico-político, o “colorismo”, com força mobilizadora de um grande debate
não só no Brasil. Retomando o tema dos movimentos negros, Laudelina conta sobre situações
que viveu no interior dessas organizações.
Laudelina: Eu acho que o debate não é feito da forma que deveria ser,
porque eu acho que se esse, né, esse Movimento Negro ou outros
movimentos relacionados à questão racial debatessem isso de forma, de uma
forma mais tranquila, mais acolhedora, mais amena, talvez, a gente
conseguisse acumular, aglutinar várias forças, né, pra enfrentar o racismo e
outras questões importantes, sabe?! Porque acho meio limitado colocar
apenas pessoas retintas como negras, entendeu?
[...] Sendo que existem milhões, milhões de formas de vivenciar a negritude.
Você provavelmente deve ter passado por algum, por alguma situação de
racismo que outras pessoas de pele clara passariam de outra forma e etc.,
sabe?! Eu achava que deveria ter um acolhimento e enfim, e tentar aglutinar
força mesmo...
Não podemos afirmar que essas falas refletem necessariamente todos os movimentos
negros. Como disse antes, existe uma diferença geracional. Sem querer falar sobre
organizações legítimas ou não, é importante considerar também que há hoje diversos grupos,
autointitulados coletivos ou organizações negras, que não necessariamente se vinculam aos
movimentos negros tradicionais e nem ao seu legado histórico.
Milton Santos (2000 apud Ribeiro, 2002) no ensina que existir é “condição para ver o mundo”
(p. 64). Nesse momento, tentaremos mostrar como os nossos entrevistados (re)elaboram sua
vida a partir dessa identidade negra.
Todo esse capítulo e o anterior, com ênfases distintas, tratam de um percurso sobre o
tornar-se negro, ou compreender-se, descobrir-se. Esse acontecimento é sempre
transformador, marca um antes e um depois. Verán (2010) chama isso de “conversão”:
“escolher implica um processo de conversão identitária que transforma a percepção de si
mesmo e do espaço social” (p. 34). Essas pessoas olham pra trás e ressignificam a vida. De
repente o bullyng da época da escola não é mais um assédio moral de qualquer ordem, é
racismo. O que Lehmann (2017) irá tratar como “etnicização de conflitos ou de consciência
dos excluídos” (p. 148). A situação de pobreza de origem não é mais infortúnio de família, é
consequência e parte do racismo estrutural: “A negritude aparece aqui como uma operação de
desintoxicação semântica e de constituição de um novo lugar de inteligibilidade da relação
consigo, com os outros e com o mundo” (MUNANGA, 2009, p. 53). Observe, essas pessoas
não querem apagar o passado de referencial branco: café-com-leite, não-branco, quase-
branco, moreno, pardo. Elas saem dessa condição de sombra, de quase-alguém, para uma
condição de ser negro, de assumir uma identidade completa, a partir da qual a sua biografia e
as memórias da sua família fazem sentido. Um senso moral, estético e intelectual é
reabilitado.
Essa transformação não implica que os caminhos que essas pessoas percorreram durante
essa pré-identidade negra mereçam ser ocultados. Por isso mesmo eu não quero falar sobre
reescrever a vida, a mudança é da ordem do reenquadramento dos sentidos. Antes, essas
narrativas estavam dentro de uma trajetória de vida sem valor (des-valorizada). Depois, a
131
retórica é engajada numa história de vida negra positivada, que poderá se reivindicar
afrodiaspórica, afrocentrada, antirracista ou simplesmente consciência negra.
Luiz Antônio Marcuschi (2008) define o texto como uma realização linguística, cujo
processo de formação pode ser inadequado. Num país racista como é o Brasil, cujos
indicadores sociais mostram clivagens inquestionáveis entre brancos e negros, educado pelo
valor da brancura, é de fato incoerente escrever uma história negra sem considerar a violência
racial, chamando-a de bullyng ou de preconceito de classe. É preciso repensar esse texto,
torna-lo adequado, retextualizar.
Para além das marcas do racismo, Marielle identifica o contato com a terra que
aprendeu a ter com a sua família, o autocuidado pelos banhos de ervas, e o uso dos “lenços de
amarração na cabeça”, como marcas dessa identidade negra. Ela e Carlos falam também da
culinária de suas casas e de referências musicais negras de suas famílias, como o samba e a
admiração por Jimi Hendrix. É que eles, assim outros entrevistados, me falaram de situações
tão difíceis que os fizeram enxergarem-se negros, que eu queria saber: existe algo mais que te
liga a essa identidade além da dor?
Carlos – [...] por mais que meu pai não milite, por mais que meu pai não
puxe esses assuntos ou deixar, sabe… Muitas vezes, motivado por aquele
assunto, tipo, “não vai mudar em nada, vai continuar assim”, eu percebo
que o meu pai, ele é ligado musicalmente muito no cenário negro. Meu pai
ama ouvir Lucky Dube, e tipo, o sonho era conhecer ele. Meu pai ama ouvir
corais nigerianos cantando. E tipo, passar pra mim, sabe? Grupos negros
americanos que cantavam… [...] e ele gosta disso, é algo que ele me
ensinou, passou pra mim esse gosto, sabe? Por mais que não seja uma
cultura negra nacional, cultural daqui, ainda assim é uma forma de
identificação de pertencimento mais ampla. Mas é uma coisa boa assim de
perceber. Foi algo… Falando agora, eu percebo que é algo que realmente
mais cedo eu poderia ter criado essa identidade em mim, mas não criou.
132
Gosto desses relatos espontâneos, que te provocam pensar enquanto fala, que ao
surgirem sem ensaio prévio, você se surpreende com a própria memória e descobre que tem
mais da sua história do que você já pensou. Voltando ao que eu falava antes, compreender,
tomar para si, elaborar por conta própria essa identidade negra, parece ser um acontecimento
feliz para essas pessoas. Também é transformador, “como diz Aimé Césaire, ser negro não é
tão somente uma questão de cor de pele, mas sim a aceitação desse fato, do tempo presente e
suas relações conflituosas, e também do futuro interpretado sob a luz do direito à diferença”
(D’ADESKY, 2001, p. 141).
Ser negro é ser atravessado por muitas armas raciais, tantas que desde que nascemos,
somos socialmente ensinados a rejeitar à negrura, associada à feiura, à criminalidade, pobreza
e a ignorância, se opondo a branquitude enquanto definição positiva de espiritualidade, moral
ou estética57. Falando sobre onde os meus pés pisam, compreender-me negra foi alívio,
completude e esperança.
Ao tornar-me negra, senti que pisava no chão com mais firmeza. É como se antes eu
engatinhasse com cautela, sem deixar que o chão sentisse o peso do meu corpo. Era o
momento em que o máximo que eu podia esperar, era que não surgisse alguém que risse do
meu cabelo ou dos meus traços de nariz e boca largos, como acontecia recorrentemente.
57
“[...] quero destacar alguns dados: em primeiro lugar, as ideias de “branco” e “negro” são anteriores à
formação de um discurso propriamente racial. Desde os primórdios das línguas indo-européias, o branco foi
associado ao bem, ao bonito, à inocência, ao puro, divino, enquanto o negro era representado como o
moralmente condenável, o mal, o diabólico. Na idade média, o grande paradigma de inclusão e exclusão era a
filiação religiosa, e não a cor de pele. A grande clivagem era traçada entre “Nós cristãos” e “eles, os
muçulmanos” (“mouros”). Usava-se a cor negra para denominar ou depreciar pessoas moralmente condenáveis
e, de uma forma mais genérica, todos os inimigos de fé: na Canção de Rolando, p.ex, os húngaros são chamados
de “pretos” (cf. Houfbauer 1999:50ss, 88). Mais tarde, de forma semelhante, muitos dos povos “descobertos”
pelos navegadores portugueses, seriam também chamados de “negros” (não apenas os africanos); nos primórdios
da colonização, p.ex, enquanto os indígenas foram vítimas de escravizações, eram frequentemente chamados
também de “negros” (usava-se ainda termos como “gentios”, “negros da terra”) esta mesma denominação era,
inclusive, muito comum nas cartas jesuíticas durante as primeiras décadas de sua missão (Ibid. 144ss.).”
(HOFBAUER, 2000, p. 8).
133
Eu não queria ser notada, porque se o fosse, era num contexto de ridicularização. Sentia
que a minha cor que não era branca, e também não era preta pra que eu fosse dita negra, era
uma cor suja. Eu não queria que a terra registrasse minhas pegadas, queria passar pelo mundo
sem deixar vestígios de que estive aqui, não valia a pena.
Carlos e Marielle nos trazem falas que corroboram para essa ideia de transformação:
Os relatos que seguem, de Manoel e Davi, nos mostram que existe uma dimensão de
transformação dessa identidade negra para dentro e para fora. Ou seja, é uma mudança da
percepção de si e do engajamento no mundo.
Manoel: Um debate que a gente fez na sala, um dos debates, um aluno falou
que ele nunca viu o racismo.[...] E aí um colega meu falou: existe uma
diferença entre ver e enxergar e eu acho que é essa diferença entende? É a
partir do momento que você toma consciência daquilo, você começa a
pensar sobre aquilo. Você começa a se perguntar o por que de determinadas
coisas, entende? E ai você pode enxergar, o por que aquilo acontece e ai
você estuda, e ai você se torna, se identifica como aquilo. Não se torna,
porque você já era, mas você se identifica como aquilo. Pensar sobre isso
me fez avaliar diversas outras coisas, não apenas em relação a raça, mas
por exemplo, a heterossexualidade e a heteronormatividade, entende? E a
partir do momento que você se identifica como negro, você já tem todo um
134
Davi não passou pela experiência de ser aferido numa Comissão de heteroidentificação,
mas pensando sobre possíveis critérios para esse processo seletivo: “embora isso me
prejudique, [eles] devam ser mais fechados em prol da população mais retinta mesmo”. Esse
argumento voltará mais tarde. Dias passou pela heteroidentificação e foi reprovado. Ele tem
críticas em relação à Comissão, porque acha que é um processo “muito subjetivo” ao se basear
“apenas” numa avaliação visual do candidato. Para nosso entrevistado, essa aferição deveria
ser feita por membros unicamente formados em áreas das Ciências Humanas, e especialmente
no campo dos Estudos de Relações Raciais no Brasil.
Para Dias, uma conversa com os candidatos que incluísse o tema do histórico familiar
poderia resolver essa subjetividade. O grande problema é que, como sabemos, a racialização
no Brasil não acontece pela “gota de sangue” como informa a regra da hipodescedência dos
Estados Unidos. Aqui o critério é fenotípico, estético, melanodérmico, pigmentocrático. A
opinião de Dias, no entanto, não é isolada. Santos e Maio (2008) mostram que o argumento
biológico da mistura sempre volta para as discussões sobre identidades raciais no Brasil:
Não é que, para Dias, a aparência seja um dado irrelevante. Ele elenca três fatores que
devem ser levados em consideração no momento da avaliação das Comissões: fenótipo,
histórico familiar e “vivência” que ele também chama de “cultura” – estaria incluso, por
exemplo, a experiência gastronômica e musical. Ao contrário disso, para Dias, a Comissão
“só olhou quem sofre racismo”.
A Democracia Racial pariu esse problema ao informar que raça não importa, porque
supostamente somos todos mestiços e se há discriminação, é de natureza de classe, contra
pobres ou contra “cara de pobre”, contra negros não. Quem nunca ouviu que “todo brasileiro
tem um pé na senzala”?
136
Falando ainda sobre a sua experiência de Comissão, Dias conta que estava muito
nervoso, mas “as pessoas me tranquilizaram e falaram tipo, as próprias pessoas que estavam
fazendo também falaram que eu me identificava, dizendo que eu fazia parte daquilo”. Muito
embora Dias nos conte que essa experiência tenha lhe dado motivos para nunca mais se
candidatar como cotista numa seleção futura, isso não repercute como negação da sua
autodeclaração parda, como aconteceu com Otelo. A conclusão da sua fala sobre esse
processo é: “não sei qual foi o erro da banca”. Jaci defende o papel das Comissões, embora
não tenha passado pela experiência:
Elas existem não para um problema negro e sim porque brancos são
fraudadores. O problema não está na gente, o problema não está em
pessoas negras não retintas, o problema não está em mulheres negras de
pele clara, ou mulheres negras de pele menos escura, né? Salvar esse
referencial pedagógico. O problema está porque branco é safado e frauda.
[...] A banca não existe pra dizer quem é mais ou quem é menos preto, a
banca existe pra identificar brancos fraudadores, a gente não pode perder
isso de vista. A banca ela não vai tá lá com um negrômetro, né? Com uma
paleta da Suvinil de cores, né? Ela vai tá lá pra identificar possíveis brancos
fraudadores.
Chica: Eu achei legal, tanto que eu vi umas duas pessoas que eram
claramente brancas, na minha vez, foi uma filinha assim, a gente sentou e
formou fila, e as pessoas, duas pessoas claramente brancas e eu pensei: se
não tivesse a banca da aferição, se fosse só como você se identifica, ia dar
137
B.O58, né? Ia tirar o lugar de uma pessoa que realmente tinha direito aquela
vaga...
58
B.O significa Boletim de Ocorrência, e é uma gíria utilizada para falar sobre um problema, nesse caso, pode
ser compreendido como “ia ocorrer um problema, uma fraude”.
138
Lucidez59
59
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=etJJv7LovBg&feature=youtu.be>.
60
No poema original disponível no Youtube, o termo original é “racismo” em troca de “genocídio”. Essa
correção, ainda não atualizada na página da Internet, me veio pela própria autora em conversa comigo.
139
Essa metáfora do monstro nos ensina que não tem escapatória pra um racismo que é
tão bem estruturado.
Aprendi recentemente que vivo no caos
Que é preciso estar lúcida do caos vivido e é necessário conhecer a nossa história não
contada Ter na mente o maior número de livros lidos
Contar em roda essas histórias e ouvir atenta
quem despertou pra lucidez muito antes de nós
acumular saberes para com sabedoria
providenciar que mesmo longe escutem nossa voz
e que essa voz seja de tal maneira articulada
que até quem não viveu ou não entenderia
seja tocado para não só se emocionar mas de tão desassossegado
querer se movimentar no dia a dia.
Finalmente estar minimamente organizado
Ao conduzir com lucidez o toda essa dor que a gente sente
Recomendo se benzer pra enfrentar o fim do ano
Que por vezes, sem notar, marca também o fim da gente
E me perguntam se o que falo é por amor à causa
E vê se eu aceito um amor que me dê tanta azia
Já não dá tempo de ler Ângela Davis,
provar que a terra é redonda e colocar amor em poesia
Aliás
"Ouça me bem amor
Preste atenção
O mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a pó"
Não ignore a dor
Tenha visão
Você não está sozinho
Vai encontrar mais gente no caminho
Pra dividir o banzo, a raiva e a dó
Eu falo de ilusão e da tristeza que invade
Porque entendo que clareza desta nocividade
É o que permite nos reconhecer na passividade
Pra resgatarmos todos juntos nossa humanidade
E reunirmos energia pra algum dia alterar a realidade.
Luciene Nascimento
140
4.1 CONTEXTO
61
Existe uma longa discussão teórica a respeito dos problemas do dualismo dessas categorias. Uma delas diz
respeito ao apagamento dos indígenas dentro dessa contradição. Sobre isso, reproduzimos um trecho do texto de
Verán (2010), a respeito do “Nação Mestiça”. Já falamos antes sobre essa organização: “Fosse negro um mero
agregado estatístico, não teria havido equívocos e conflitos. Mas diante da indissociação entre cor, origem e
cultura, os caboclos tornaram-se invisíveis. Mais uma vez, como veremos, a questão não é meramente
existencial: quando direitos fundamentais são definidos na base da identidade étnica, aceitar a invisibilidade é
um suicídio político. Consequentemente, tornar o caboclo visível vai ser uma das preocupações centrais do
Nação Mestiça” (p. 28).
141
Como incide diretamente sobre o mito da democracia racial, as políticas afirmativas não
se implementam sem polêmicas. Albuquerque e Walter (2006) falam que “os que são contra
dizem que as cotas só aumentarão o racismo, porque incentivarão as disputas entre negros e
brancos” (p. 305), como se essas políticas estivessem produzindo uma clivagem racial na
sociedade brasileira que por si só já não existisse. Ao contrário disso, continuam os autores:
62
Sobre a pesquisa ver mais em Santos e Maio (2008): “publicado em português em 2000 (PENA et al., 2000)
na revista mensal de divulgação científica Ciência Hoje da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC). Dois artigos diretamente relacionados, com apresentação dos resultados em pormenores para a
comunidade científica, apareceram no American Journal of Human Genetics (ALVES-SILVA et al., 2000;
CARVALHO-SILVA et al., 2001), bem como um mais recente no Proceedings of the National Academy of
Sciences (PARRA et al., 2003). A ampla repercussão que a pesquisa atingiu no Brasil se associa, sobretudo, ao
texto de Ciência Hoje” (p. 93).
143
63
Fazemos questão de demarcar que negros são numerosos nas Universidades como auxiliares da limpeza, da
construção civil e da segurança, quando o que queremos são também negros graduandos, mestrandos,
doutorandos e professores. Essa dissertação não é um panfleto político, mas é escrita por uma mulher negra
politicamente engajada.
64
Jeferson Bacelar tem uma longa pesquisa sobre a inserção social da população negra em Salvador no pós-
abolição. Ver BACELAR, J. O NEGRO EM SALVADOR: OS ATALHOS RACIAIS. R. História, São Paulo,
n. 129-131, ago./dez. 1993 a ago./dez. 1994.
144
Nessa pesquisa, Figueiredo (2012) irá estudar a classe média negra baiana. Não iremos
adentrar essa discussão, porém algo de suas reflexões nos importa, porque, como já vimos a
partir de Edward Telles (2003), o diploma universitário é uma das principais portas de entrada
para a classe média. O mesmo autor irá mostrar que a composição de negros na classe média
americana é maior que a brasileira, o que atribui a uma desigualdade vertical que seria menor
lá do que aqui: nos Estados Unidos os negros também teriam uma maior inserção no ensino
superior. Figueiredo (2012) faz outra comparação: enquanto a ascensão social da população
negra norte-americana se deu por uma “segregação racial rígida e da recusa dos brancos em
oferecer os serviços para a população negra” (p. 24), no Brasil essa ascensão “se efetiva, a
princípio, através da relação de subordinação com os brancos” (Ibid. op. cit.). Dessa forma,
podemos entender que, mesmo sendo numerosos na Bahia, a ascensão de alguns desses
negros (pretos e pardos) não será uma conquista do grupo, em função do fator econômico e da
estagnação (Bacelar 2001 apud Figueiredo 2012), representando apenas ganhos pontuais e
individuais. Além disso, justamente porque a população branca estava (está) na Bahia em
menor número, mestiços mais claros teriam ocupado espaços tidos como tradicionalmente
brancos, em outras regiões. Sobre isso, a autora faz uma observação importante:
[...] note-se que aqui falo de mestiços, e não de pretos ou negros, ou seja,
pessoas de ascendência negra, mas de características fenotípicas brancas;
aqueles que podem se mover na escala classificatória da cor no Brasil, no
sentido de tornarem-se menos negros ou socialmente brancos
(FIGUEIREDO, 2012, p. 23-24).
Essa “branquitude” do “mestiço claro” será pensada por Guerreiro Ramos em muitos
momentos da “Patologia do ‘Branco’ Brasileiro” (1995): “pois que o nosso branco é, do ponto
de vista antropológico, um mestiço, sendo, entre nós, pequena minoria o branco não portador
de sangue preto” (p. 231). Ocorreria que:
Observe que Guerreiro Ramos, um importante intelectual negro “de pele clara”65, estava
naquele momento, alegando uma patologia nas autodeclarações étnico-raciais “brancas”,
especialmente das regiões Norte e Nordeste do país, quando a população era incentivada a
embranquecer-se.
Diante desse quadro de desigualdade racial nacional e também baiano, Milton Santos já
apontava, em 1995, que “a questão do negro não pode mais ficar no Ministério da Cultura.
Não é uma questão de cultura. Tem que ser do Ministério da Justiça. A solução é pela via
política” (p. 140). É que o autor entendia que a população negra desfruta de uma “cidadania
mutilada”. A “verdadeira cidadania” seria aquela em que:
[...] cada qual é o igual de todos os outros, e a força do indivíduo, seja ele
quem for, iguala-se a força do Estado ou de outra qualquer forma de poder: a
cidadania define-se teoricamente por tranquilas políticas, de que se pode
efetivamente dispor, acima e além da corporeidade e da individualidade,
mas, na prática brasileira, ela se exerce em função da posição relativa de
cada um na esfera social (Ibid., p. 159).
Na medida em que o racismo no Brasil não é apenas simbólico, mas material, Anjos
(2005) dirá que os movimentos para desconstituí-lo não podem estar limitados a uma
“pedagogia (des)racial”, pois seu encaminho está dentro do “âmbito da ação política” (p.
235). Um marco importante dessa ação política é a Lei de Cotas (Lei nº 12.711) de 29 de
agosto de 2012, que institui no mínimo 50% das vagas dos cursos técnicos e de graduação aos
65
Joel Rufino (1995), em ocasião da introdução da obra de Guerreiro Ramos, “Introdução crítica à sociologia
brasileira”, disse que “Guerreiro não era preto retinto, pertencia àquela faixa de mestiços escuros em que a
“raça” é escolha do freguês. A sua foi ser negro” (p. 27).
146
O “novo projeto racial” estaria contrastando com um “velho projeto” (tradução nossa)
da “democracia racial”, que, por sua vez, substituiria um ainda mais antigo, o projeto do
branqueamento67. Como já dissemos na introdução desse trabalho, a Comissão de Aferição da
Autodeclaração Racial nos editais de processos seletivos para estudantes de graduação pretos
e pardos que estamos analisando, foi implementada na Universidade Federal da Bahia
(UFBA) desde 2019. Ela está instituída pela Portaria Normativa MPDG n. 4/2018 e pela
Portaria UFBA 169/2019. No edital68 consta também citação da sua constitucionalidade pelas
“leis nº 12.711/2012, 12.990/2017, e jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186 e Declaratória de Constitucionalidade nº
41- DF.ADC 41-DF)”. Como o próprio nome sugere, ela opera com o processo de
identificação racial69. Osório (2013) fala sobre três métodos de identificação:
66 “Simultaneamente, uma explicação da dinâmica racial e um esforço para reorganizar a estrutura social ao
longo de linhas raciais específicas”. Ele observa que os projetos raciais são "uma iniciativa discursiva ou
cultural, uma tentativa de significação racial e formação de identidade, por um lado; e uma iniciativa política,
uma tentativa de organização e redistribuição por outro”. O novo projeto racial do Brasil resulta de uma aliança
entre ativistas do movimento negro e pesquisadores das ciências sociais quantitativas, que estudaram a
desigualdade racial no Brasil (tradução nossa).
67
Apesar dessa posição, mostramos, nesse trabalho, que diferentes autores (HOUFBAUER, 2006; SKIDMORE,
1976) vão mostrar que a “democracia racial” será formulada com vistas no embranquecimento da população, de
forma a não ser dois projetos distintos.
68
Anexo complementar III – Edital 2020.1. Disponível em <https://ingresso.ufba.br/>.
69
Osório (2013) diz que “o método de identificação racial é o procedimento estabelecido para decidir acerca do
enquadramento dos indivíduos nos grupos definidos pelas categorias da classificação” (OSORIO, 2003).
147
do movimento negro. Dentre eles, existia uma grande quantidade de profissionais da Pró-
Reitoria de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil (PROAE UFBA) integrando a
Comissão. Duas pessoas tomaram o protagonismo nesse curso, Jurema, presidente da
Comissão, e Mirtes, professora da Universidade e membro de uma organização política negra,
que ministrou a formação dessa Comissão. Como dissemos, a organização do trabalho da
Comissão e a própria metodologia do curso de preparação se baseiam no método “Oju Axê”
criado por Marcilene Garcia. Ela presidiu a Comissão de heteroidentificação da UFBA para
graduação no ano anterior, 2019, ano de sua criação.
A legitimação desse processo é algo comum entre avaliadores e avaliados. Como
descreveremos ao longo desse texto, os candidatos, na maioria das vezes, defendem a
importância desse trabalho, assim como seus membros demonstram um comprometimento
profissional, ético e político muito fortes nesse processo. Luís, por exemplo, em defesa das
cotas fala que:
[...] se depender tão somente do sistema de ensino, nós saberemos que vai
continuar acumulando um monte de gente sem conseguir ingressar. Porque
serão ocupadas por aqueles que tiverem as melhores condições de acesso à
escolaridade, de alimentação, de moradia. Não precisa ser nenhuma
autoridade nisso pra... A gente vê isso nos perfis das escolas, a gente vê isso
quando a própria polícia agride por conta do cabelo, por conta da roupa
que utiliza, entendeu? E uma polícia negra. Então assim, eu insisto: tem que
continuar, tem que continuar até chegarmos numa situação que, socialmente
falando, as políticas de inclusão e de educação possam dar conta sem
precisar cotizar.
Amarildo foi aprovado pela Comissão de aferição do concurso público para técnicos
administrativos da UFBA e, já como servidor, se voluntariou a participar dessa Comissão de
2020 para estudantes, como membro avaliador. Ele fala sobre um sentimento de “dívida”:
outra. Veja, naquele contexto de pesquisa70, enegrecer não parecia ser uma opção assim tão
largamente praticada pela branquitude do país. No contexto das bancas, as crescentes
denúncias de fraudes no sistema de cotas raciais mostram que o bronzeamento é uma opção
para buscar aprovação nas comissões de heteroidentificação desses editais. Trazemos
novamente o “mito fundador”, do qual falava Chauí (2000), para compreender esse
fenômeno: “o corpo mestiço do/a brasileiro/a, mesmo aquele produzido mediante
bronzeamento artificial, não pode ser entendido fora do contexto do mito da democracia
racial” (GOMES, 2006, p. 331).
Na Internet, um termo popular para esses brancos pintados de preto é o “blackfishing”.
Oliveira (2019) explica que ele deriva de "‘catfishing’, que significa impostor, neste caso é a
prática de uma pessoa branca usar de elementos próprios da cultura negra”. A autora
classifica-o como um “fenômeno sociocomportamental” em que
Essa definição nos remete àquilo que nossos interlocutores falavam sobre a “afro
conveniência”. Esse termo é muito popular e volta na reflexão de Luís, que o define da
seguinte maneira:
70
Embora o livro tenha sido publicado em 2006, ele se baseia na tese de doutorado da autora, defendida
em 2002.
151
Figura 20 – Blackfishing.
Transitar entre raças parece mesmo ser parte daquelas prerrogativas raciais
hegemônicas, brancas. Retomando o argumento que começamos a esboçar a partir de Gomes
(2006), e trazendo para o contexto das bancas de aferição no Brasil, o bronzeamento parece
ser uma técnica de manipulação estética engatilhada pelo mito da democracia racial.
Desenvolvemos melhor essa ideia ao longo do texto, mas podemos adiantar aqui, a partir do
percurso teórico que já trilhamos, que o argumento da mistura genética foi repetido ao longo
da nossa história para omitir o racismo da nossa sociabilidade. É exatamente esse argumento
que minimiza retoricamente as diferenças raciais e pavimenta o percurso pelo qual sujeitos
brancos irão trilhar para montar um fenótipo negro. É dessa forma que, possivelmente, o
blackfishing (Estados Unidos) e o afroconveniente (Brasil) se diferenciam conceitualmente. O
primeiro termo irá se referir, por exemplo, à Rachel Dolezal, que alega uma
“transracialidade”71. O afroconveniente será alguém que se diz fruto da mistura de raças, e
cuja manipulação estética encontrará terreno já constituído, o de que a miscigenação
amorenou brancos e pretos. Ambos os termos denotam a mesma prática, mas seu modus
operandi responde as diferentes regras dos seus respectivos sistemas classificatórios. O
blackfishing ou o “transracial” irá admitir seu pertencimento racial com desejo ou sentimento
de pertença em outra raça, diferente da que lhe é socialmente determinada. Dentro de um
71
BBC NEWS. 'Ideia de raça é uma mentira': americana branca que se passou por negra se diz 'transracial'. 2017.
Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-39413853>.
152
experiências de racialização sejam as mesmas para todos os indivíduos, cabe nas nossas
reflexões o lugar da diferença, e não podemos afirmar que ser negro é a mesma coisa
independentemente dos seus pertencimentos de classe, dos seus variados tons de pele, ou dos
seus diferentes marcadores sociais. Afinal, “as distinções raciais não constituem,
necessariamente, a base unidimensional da exclusão. Um indivíduo pode ser excluído de uma
esfera social, ser incluído em outra e ainda parcialmente incluído em uma terceira” (TELLES,
2003, p. 319).
Os pardos aparecem durante o curso e em repetidas falas, como um problema. Um dos
membros, inclusive, disse que “o problema do pardo é móvel para o bem e para o mal”.
Mirtes apresentou no slide exemplos de fotos de pessoas que entrariam na categoria de “casos
difíceis”: Anitta, Shakira, Juliana Paes, Fabiana Cozza, Júlia Rocha (cantora e médica de
Minas Gerais), professora Edna Roland, Alicia Keys, Neymar, Camila Pitanga e Dira Paes.
Quando Mirtes lançou a pergunta para os membros, a respeito de Dira Paes, todos que
responderam, afirmaram “não negra”. Ela concordou satisfatoriamente: “Para mim é
indígena, coloquei de pegadinha”. Eu não entendi. Na medida em que a categorização
indígena se dá por critérios diferentes daqueles que servem para brancos e negros, o que
significaria dizer “para mim ela é indígena”? Perguntei. Seu olhar me dizia que a resposta era
muito óbvia: “Quero dizer que ela não é negra”. Um membro da banca reforçou a mesma
resposta: “ela não tem características de uma mulher negra”. Senti que a minha pergunta não
estava respondida. Dira nitidamente não é uma mulher branca e sobre isso, aparentemente,
Mirtes e os membros concordavam. Não deram a ela a heteroclassificação de branca, mas de
indígena. Porém, a identidade indígena não passa pelos mesmos critérios de fenótipo. Existem
indígenas de fenótipo branco e indígenas de fenótipo preto, por exemplo. Conversei com
Marcilene, ela “fez uma banca comigo” quando me recebeu em sua casa, me mostrou fotos
autorizadas de “casos difíceis” e perguntou minha opinião. Dira Paes apareceu entre essas
fotos e ela me disse sem dúvidas: “é uma mulher negra”. Marcilene explicou algo que me fez
muito sentido: na medida em que subimos o país, a composição de indígenas e descendentes
cresce. Nesse sentido, o cabelo liso, por exemplo, muitas vezes associado à brancura, estará
presente em pessoas negras. O problema, para Marcilene, é que “Salvador se comporta como
o centro da negritude do país”72. Com isso, a professora nos diz que as características
72
Isso não é atoa, “nenhum país do hemisfério Ocidental recebeu mais africanos do que o Brasil” (GATES
JUNIOR, 2011, p. 15), e dentre as principais cidades está Salvador. “Como cerca de 43% de todos os escravos
embarcados para as Américas acabaram no Brasil, hoje mais de 97 milhões de brasileiros, numa população total
de 190 milhões, têm um nível substancial de genes africanos e se identificam como pardos ou negros no censo
federal (entre cinco categorias: branca, preta, amarela, parda e indígena). Isso torna o Brasil o segundo país de
154
marcantes sobre ser negro em Salvador, são características que se querem basilar para a
aferição da negritude de todo o resto do país, e isso seria um erro.
Essa fala de Luís me remete à pesquisa de Jacques D’Adesky (2001), que analisava a
compreensão das pessoas a respeito das identidades étnico-raciais. Nesse estudo, a maior
parte dos entrevistados respondeu que “sarará”, “mulato” e “moreno” são, respectivamente,
“sarará mesmo”, “mulato mesmo” e “moreno mesmo”, apenas uma minoria identificou-os
como negros73. É que a pesquisa pretendia compreender se, para os brasileiros em geral, esses
fenótipos configuravam categorias raciais independentes, ou estariam dentro de outras como
“branca”, “indígena” ou “negra”.
Amarildo reflete sobre os “casos difíceis” através da ideia de “passabilidade”. Ele nos
fala o seguinte: mesmo que uma pessoa seja racializada em regiões mais branca do país, ao
não ser identificada como negra na Bahia, por exemplo, ela possui um trânsito racial que por
si só implica privilégio. Eis que surge novamente o nome de Anitta, a mesma artista que
Marielle, Laudelina e Jaci tinham citado para falar sobre “afroconveniência”:
população negra no mundo, depois da Nigéria, se usarmos as definições raciais empregadas nos Estados Unidos
(o Brasil, pode-se dizer, é geneticamente pardo, embora haja algumas áreas do país, como Porto Alegre, que são
esmagadoramente brancas). E um terço dos escravos brasileiros — cerca de 1,5 milhão — desembarcou no
Brasil pelo porto da Bahia” (Ibid., p. 16).
73
A porcentagem foi maior para os que responderam “negro” invés de “branco”, para o “sarará” e o “moreno”.
Ninguém classificou o “mulato” como “branco”.
155
Sua fala tenta abordar um aspecto parcial das diferenças classificatórias regionais. Essa
discussão já era feita nos estudos de relações raciais no Brasil antes mesmo das comissões de
heteroidentificaçao transporem essa problemática para o campo da política. Jacques
D’Adesky (2001), a esse respeito, diz que:
4.3 A HETEROIDENTIFICAÇÃO
Durante o curso, Mirtes citou uma página criada numa rede social da Internet, o
Facebook, chamada “Cara gente branca”. Eu já tinha visto essa página há alguns anos atrás,
quando foi criada (e ainda não tinha sido deletada). A página expunha fotos de pessoas que
seu(s) respectivo(s) autor(es) heteroidentificava(m) como brancas, apesar de cotistas. Ou seja,
a página pretendia denunciar possíveis fraudadores. A professora usa esse exemplo para dizer
como a hereoidentificação configura “uma questão ética e jurídica delicada”. A banca “serve
para operacionalizar acessos, direito, precisa da objetividade”, disse um membro presente. É
certo que, ainda que falemos sobre políticas públicas, as comissões também mobilizam
emocionalmente os envolvidos em diferentes níveis, porque fala sobre um processo de
reparação história para a comunidade negra. Por isso, Mirtes alerta: “vai ter momento que vai
dar raiva”, se referindo aos fraudadores. “A gente acha que depois da fala de abertura, eles
vão embora, mas não vão”. Então, a professora reforça, a fim de garantir essa “objetividade”:
se deve evitar estar em bancas que avaliarão pessoas conhecidas, assim como não se pode
manifestar qualquer reação como, o que poderia ser mais comum, “levantar as sobrancelhas”.
Os membros ironizam o fato de alguns candidatos se “fantasiarem de negros”, e
brincam sobre a necessidade de “trazer [levar] água micelar para tirar maquiagem”
(Jurema). Vamos nos aproximar com cuidado dessa fala. Essa manipulação estética que se
refere Jurema, e que começamos a discutir antes com o bronzeamento, é uma prática
recorrente na nossa história de relações raciais, para lá e para cá. Domingues (2002), por
exemplo, nos fala o seguinte:
156
Observemos agora esse registro trazido por Thales de Azevêdo (1955), cujo processo de
transformação da cor se constata pelo branqueamento e pela americanização:
Veja, o fenômeno social da mudança de cor no Brasil, historicamente, se deu por duas
vias: da palavra, onde uma diversidade de 135 cores apareceu no PNAD de 1976 e 143 cores
no PME de 1988, com categorias furtivas à autodeclaração negra; e através das tecnologias de
ordem estética. Nesse sentido, no Brasil, o bronzeamento ou o encrespamento dos cabelos no
contexto das bancas de verificação, estão inseridas em um conjunto de técnicas discursivo-
corporais que habitam o imaginário social brasileiro e apontam para fronteiras de cor
retoricamente fluidas. Essas fronteiras se movem no espaço comum constituído pela
mestiçagem, onde todos os brasileiros fariam parte. O gene mestiço poderia ser ativado
tirando a avó negra do armário ou tomando sol. Lembremos que o mesmo procedimento, às
avessas, era estimulado para o comportamento de brancos-mestiços e mulatos. Skidmore
(1976), por exemplo, usa isso para dizer que não devemos exagerar na afirmação de que a
regra da “gota de sangue” não tem aplicabilidade no Brasil:
Porque eu me via ali como aluno, como professor que defende a causa da
identidade negra e [tinham] outros professores que não [o] viam como
identitário, negro… Aí eu fique… Me deixou um pouco…
Talvez por ser esse negro com pele clara, mas também por ter se submetido a todo o
processo de formação e prática de trabalho adequado às atividades da Comissão, percebo em
Luís um grande cuidado na forma como fala sobre a heteroidentificação. Ele frisa, por
exemplo, em diferentes momentos da nossa conversa, compreender o trabalho da banca como
um “ato político”, uma forma de exercer “diretamente uma militância”, mesmo que ele não
esteja inserido em uma organização dos movimentos sociais. Pela forma como articula a fala,
percebo que isso se reflete no cuidado que teve com os candidatos:
Pra não mexer com essa aflição de pertencimento quando se tem. Porque
quando não tem ai é tranquilo. Mas quando se tem é duro, é cruel você se
ver pertencente a todas as possibilidades daquela cultura, daquela
identidade e vem um grupo e diz: “Não, você não é negro, você não é
158
A imagem que segue é de um suposto advogado de duas mulheres que teriam sido
reprovadas na Comissão como cotistas. Esse pronunciamento foi feito num grupo da UFBA
do Facebook. Embora o texto toque num fator importante, que são as diferenças entre o
contexto de Salvador e de outras localidades, não dá pra validar todas as suas informações.
Por exemplo, não há uma recomendação da banca para que pessoas de cabelo liso não sejam
aprovadas. Conversei com esse rapaz e ele me deu o contato de uma dessas moças.
Observando as fotos da sua rede social, lhe descreveria como uma mulher branca: cabelos
lisos e pretos, traços finos e pele branca. O advogado, no entanto, me disse que eram mulheres
de pele parda e pais negros. Possivelmente o argumento dele era de uma parditude genética.
Ou seja, pardo está denotando aqui, mais uma vez, uma herança genética mestiça, e não um
fenótipo mestiço racializado.
74
Diferentes referências trazem o exemplo de pessoas que teriam se declarado “pardo” por “não saber o
que responder” (SCHWARTZMAN, 2009; ROCHA, 2010).
159
Fonte: Facebook.
4.4 O AUTORRECONHECIMENTO
Mirtes chama atenção não só para os possíveis sentimentos “de raiva” contra os
fraudadores, mas também de afeição pelos candidatos negros. Isso porque, o momento da
banca pode ser uma ocasião emocionante. Ela descreve situações em que o(a) candidato(a)
disse ser a primeira vez em que se nomeou negro(a), ou de que era a primeira vez que essa
identidade “serviu pra alguma coisa”. Luís também falou sobre isso, alguns “alunos diziam
que eles não tinham muito tempo de falar sobre eles [...]. Alguns nem falavam absolutamente
nada, alguns ficavam nervosos, alguns choravam”.
Indo em outra direção, Mirtes conta sobre o recurso endereçado à Comissão por uma
candidata descrita como “loira de olhos claros, que disse sofrer racismo em Salvador”. Essa
candidata, chorando, teria explicado não ser da cidade, e que desejava sair de Salvador em
função do preconceito que estaria sofrendo. Esse preconceito, em sua opinião, deveria lhe dar
direito às cotas.
160
Como temos traçado, essa é uma discussão antiga. Vamos aos exemplos desse debate
nossa história política:
Santos e Maio (2008) continuam essa narrativa nos mostrando que, em ocasião da
aprovação da Lei estadual do Rio de Janeiro, sobre a reserva de vagas nas universidades para
pessoas negras,
A história que segue, fala sobre as ações judiciais movidas por alunos brancos e a
manipulação do argumento genético. É nesse sentido que José Roberto Pinto de Góes,
professor de história da UERJ, “e um crítico contundente da política de cotas adotada pela
instituição” (Ibid., p. 106), declara para aqueles candidatos cotistas:
Fonte: Facebook.
Fonte: Facebook.
162
Gates Junior (2011), em alguns incursos pela América Latina, vai escrever de uma
forma um tanto literária, a respeito das dinâmicas de autodeclaração e heteroidentificação
étnico-raciais de alguns desses países. No Brasil, e mais especificamente em Salvador, um dos
intelectuais que o pesquisador conversou foi o Vovô do Ilê. Vovô teria explicado a Gates
(2011) que “o Ilê Aiyê tem como missão preservar as formas tradicionais do candomblé e se
restringe a membros negros” (p. 28). Isso provocou o autor a querer saber como se determina
a identidade negra “no arco-íris de pardos e pretos que configuram o rosto do Brasil” (Ibid.,
op. cit.). Vovô riu
75
Gêmeos idênticos que, tendo submetido fotografia à comissão avaliadora da UnB, um foi considerado
negro e o outro não. Ver mais em <https://www.estadao.com.br/noticias/geral,para-unb-um-era-branco-e-outro-
negro-imp-
,951965#:~:text=H%C3%A1%20cinco%20anos%2C%20os%20irm%C3%A3os,do%20sistema%20de%20cotas
%20raciais.>.
163
Fonte: Facebook.
[...] você teve o avô, a avó, o bisavô negro ou retinto? Isso não importa, a
sua certidão veio dizendo que é parda? Isso não importa, é o seu fenótipo
que vai prevalecer aqui, é a sua fotografia ali, tirada na hora, sem nenhuma
alteração, nenhum Photoshop [...]. Acho que o critério é esse aí, que você
não é branco. Se você é pardo ou se você é preto a escala do colorismo não
entra: se é mais preto ou se é mais próximo do branco.
Ainda sobre o papel do fenótipo, pergunto a Luís o que é discutido na decisão dos
“casos difíceis”. Ele explicou usar “os critérios da antropometria, os mesmos que as teorias
raciais utilizaram”. Isso pode ser chocante ouvir, mas existe uma explicação. Esses teriam
sido “os mesmos critérios que racializaram, no sentido de desqualificar, e hoje são os
76
O comentário foi reforçado por Jurema, ao dizer que a banca “educa o outro e nos educa”. Carvalho (2005), a
respeito das experiências de cotas e comissões na UnB, disse uma vez que “O que espero da autodeclaração é
que ela se generalize especularmente, de modo a alcançar não somente os candidatos ao vestibular pelas cotas,
mas também a nós, acadêmicos brancos que nunca nos assumimos como tais” (p. 244).
164
mesmos que são utilizados para efetivar. Eu não vejo como ‘o racismo do racismo’ se é que
alguém fala sobre isso, entendeu? São os mesmos critérios”. Ou seja, se pelo fenótipo, as
teorias raciais tiraram conclusões sobre a inteligência, o comportamento moral ou sexual,
então é necessário que se resgate esse mesmo fenótipo em função do trabalho de “reparar”.
Duro não é o método, é o sistema.
Luís: Olha como o século XIX foi utilizado pra te colocar menos. E olha
como estamos usando os mesmos critérios pra dizer: “Olha como você é
belo”, “Olha como você é bela”, “Olha como a sua cor é bonita
independentemente… E você está ingressando por esta cor, não é por ser
coitado, é como dívida de reparação histórica nesse país que deixaram
milhões de pessoas antecedentes a você fora de um sistema de ensino, de
uma sociedade mais equânime”, entende?
Luís descreve que o que mais lhe chamava atenção eram traços físicos do rosto, mais do
que o cabelo, já que este seria um elemento mais facilmente mutável a conveniência de cada
um. Apesar disso, Luís ressalta que não se trata de uma avaliação que ficará medindo um
elemento estético ou outro, mas que irá lê-los em seu conjunto77. Amarildo disse, a exemplo
disso, que passaram “pessoas com a pele mais clara, mas com todos os outros traços
negroides”, assim como “perdem pessoas com pele mais escura, mas só que com todos os
outros traços que não o colocam na situação de pessoa negra”. No trecho que segue, Luís
fala sobre os cuidados que teve para que toda essa avaliação fenotípica acontecesse da forma
mais confortável possível para as duas partes:
Nunca estava olhando pra você e anotando sobre você pra não te deixar
constrangida. Então quando eu estava olhando pra você eu já estava
olhando pro outro aí já anotava o outro pra ele ou ela não se sentir como se
fosse uma vitrine, né? Uma vitrine que está te avaliando pra ver se você se
enquadra ou se não se enquadra… Essa é a sensação, mas, para evitar ao
máximo… Tinha ali uma presidente da mesa [que dizia]: “E aí, como é o
seu nome” então pra quebrar aquela tensão, porque há de fato uma
preocupação, sobretudo na primeira banca. Havia uma preocupação muito
grande dos alunos e nossa também.
77
Esse “conjunto” do qual se refere Luís, me remete a fala de D’Adesky (2001), segundo o qual, “mesmo
quando os sinais naturais, como a cor da pele, marcando o pertencimento a determinado grupo, são essenciais na
identificação, eles não são necessariamente determinantes na classificação racial, quando se observa que a
subjetividade dos sinais exteriores induz a uma multiplicidade de percepções que oscilam também em virtude de
critérios não raciais. Isso acontece, sobretudo, ressalta Oracy Nogueira, com os indivíduos com leves, porém
insofismáveis, traços negroides que são incorporados ao grupo branco, principalmente quando portadores de
atributos que implicam status médio ou elevado (riqueza, diploma de curso superior e outros)” (p. 136).
165
4.6 A CONTROVÉRSIA
Figura 25 – Opinião: “pretos devem ter prioridade nas cotas raciais”, printscreen da publicação em
2020.
Fonte: Facebook.
Dentre os diferentes homens e mulheres que estavam participando do curso, havia uma
mulher negra de pele clara, que chamaremos de Simone, com posição importante dentro de
uma organização nacional do movimento negro. Em um dado momento, quando esses
membros socializavam opiniões relativas aos temas da aula, Simone, que se autodeclarou
“mulher preta,” fez o seguinte comentário: os membros não deveriam “se culpabilizar” pelas
pessoas reprovadas, porque
[...] é uma questão de caráter da pessoa que não vivencia a negritude vinte e
quatro horas por dia. A banca não vai resolver os problemas das relações
raciais no Brasil. Se a pessoa tinha dúvida da negritude podia ir para ampla
concorrência. Mas existe uma aposta na brecha, no erro.
Jurema, falando sobre sua experiência na Comissão, cita o caso de pessoas que
confessam nunca terem se declarado negras antes. Isso, ela diz, não pode ser um critério de
166
avaliação porque “não se quer avaliar a consciência racial da pessoa”78 e sim o seu fenótipo.
Um membro presente pondera que essa falta de elaboração da identidade racial, por parte das
pessoas negras, é “produto do próprio racismo, não se pensar, mas quem tem dúvida não
deveria ir para ampla concorrência?”.
No final daquela experiência de treinamento, uma banca de simulação foi criada para
demonstrar o trabalho que ocorreria durante o processo seletivo. Nessa simulação, alguns
membros estariam na condição de avaliadores e outros na condição de candidatos. Simone se
voluntariou para essa banca na posição de candidata. É interessante observar como as pessoas
que se dispuseram para a experiência foram todas negras de pele clara e brancas, enquanto os
avaliadores voluntários eram negros de pele preta. Naquela simulação, Simone mudou a sua
autodeclaração de “preta” pra “parda”. Diferente do processo oficial em que os resultados são
divulgados nos portais da instituição, como o site do processo seletivo, a conclusão dessa
banca de treinamento foi dada verbalmente, ao fim daquela sessão. Simone foi um dos “casos
fáceis”. A decisão da comissão pela sua heteroclassificação negra foi dada depois de algumas
discussões, de forma a haver dissenso quanto a sua identificação. Um membro que estava
sentado numa fileira atrás de mim, e que assistia aquele treinamento, falou em voz baixa “na
minha banca ela não passaria”. Essa é uma situação muito curiosa, porque inicialmente
Simone reproduzia um jargão político que insinuava má fé daqueles que tinham dúvida sobre
sua autodeclaração mesmo pleiteando as cotas, até que ela própria que se autodeclarava
“mulher preta” mudou para “parda” e só teve seu pleito aprovado depois de muitas
considerações dos avaliadores.
Ainda que ativistas usem insistentemente o argumento de que “a polícia sabe reconhecer
quem é quem”, essa experiência é exemplar para nos dizer que o racismo é um fato notável
que, no entanto, não encerra a dimensão da controversa do nosso sistema classificatório. Essa
simulação ainda rendeu outra situação muito interessante. Outro membro, que chamaremos de
Lúcia, foi uma das pessoas que se candidataram a essa treinamento como avaliada. Ela se
declarou “parda” – o que me causou muita estranheza, porque quando a vi, não tive dúvidas
de que Lúcia era uma mulher branca e nem pensei que ela poderia discordar disso. A banca
reprovou Lúcia. Poderíamos descrevê-la como uma mulher de pele branca, sem traços
marcantes de nariz ou boca largos, e de cabelos cacheados pretos. Esse resultado lhe
78
Esse comentário nos remete ao caso da UnB narrado por Campos (2013): “Segundo o manual de inscrição do
vestibulando da UnB, ‘o candidato [à cota racial] deve ser preto ou pardo e se declarar como negro’. De um lado,
esse enunciado sugere que os beneficiários potenciais das cotas são ‘de fato’ pretos ou pardos, como o IBGE diz.
Por outro lado, o enunciado sugere que tal ‘condição’ não é suficiente para se candidatar às cotas, pois é
necessário ainda que o candidato se defina autonomamente como ‘negro’. Portanto, para a Universidade Federal
de Brasília, ser “negro” é uma escolha suplementar à condição factual de ser da cor ‘preta’ ou ‘parda’”.
167
traços finos. Ele nos conta que, dentro dessa lógica de diversidade racial, seu lugar na
Comissão era de um homem branco. “Aquilo me incomodou. É como se todo… Toda a luta,
embora eu não seja esse militante político, mas toda luta de construir e valorizar a cultura
negra e dizer: ‘ó, você não é negro. Mesmo você pertencendo, a gente não te credencia
como’”. Luís também vive esse dilema com seu companheiro, descrito como “sarará”: pele
clara, “os lábios grossos, o nariz grande, o cabelo bem baixinho”. Alguém que,
possivelmente, segundo nosso interlocutor, seria encarada como um “caso difícil”. Ao mesmo
tempo, ele nos diz, se seu companheiro intervisse na sua estética, alisando os cabelos, ou,
dentre outras coisas, “afilasse” seus traços, “ele [iria] se enquadrar imediatamente como
homem branco, entende?”. Esse é um argumento muito comum quando se avalia a raça de
uma pessoa de pele clara. “Só é negra por causa do cabelo”, foi o que Elza nos contou no
capítulo anterior. Mas, eu fico pensando: se formos levar esse debate ao seu limite, veremos
que os artifícios da estética para embranquecer não estão disponíveis apenas para as pessoas
de pele clara, e Michael Jackson é, nesse sentido, o melhor exemplo.
O lugar dos pardos ou mulatos sempre foi controverso. Donald Pierson, por exemplo, vê
na “mobilidade social de mestiços” (GUIMARÃES, 2008, p. 71), não na mestiçagem em si,
“à inexistência do preconceito de raça que, facultando a miscigenação, explicaria a ascensão
social dos mestiços” (Ibid., p. 71). É que Pierson, imbuído da concepção racial estadunidense,
tomou “mestiços embranquecidos” como negros, e disse que aqui não existiria um
preconceito racial e sim de cor (contra os pretos). (Ibid., p. 72). Ao contrário disso, temos
desde a década de 70, pardos e pretos somados na constituição da população negra brasileira
por três razões:
Fonte: Facebook.
Joaquina disse que, em sua opinião, “pretos devem ter preferência em relação aos
pardos” nas cotas, porque “os indicadores sociais de pardos são melhores”. Jurema aprovou
esse comentário: “Ótima questão Joaquina. Essa é uma discussão que os movimentos
precisam fazer, inclusive institucionalmente”. Nesse mesmo sentido, reproduziu uma pergunta
que eventualmente se direcionaria para a banca: “mas essa pessoa parda não está tirando a
vaga de uma pessoa preta?”. As imagens seguintes reproduzem essas questões:
Fonte: Facebook
170
Figura 28 – Opinião: “pardos devem sair do direito às cotas”, printscreen da publicação em 2020.
Fonte: Facebook
Fonte: Facebook.
Fonte: Facebook.
79
Notícia disponível em <https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/policia-investiga-assassinato-de-
jovem-ativista-no-interior/>.
172
Outra imagem, abaixo, foi coloca nos comentários do texto da Figura 29. Pesquisando
um pouco mais, a encontramos no site da organização “Nação Mestiça”80, já falamos sobre
ela antes.
A fala de Luís reproduz essa contradição. Olhando para sua própria trajetória, ele diz
que:
[...] as tensões, as humilhações, elas são mais atenuadas para o pardo que o
preto retinto. [...] sempre aquele que está mais próximo do fenótipo do
branco… Eu não quero usar a palavra indevida: “fácil” ou “difícil”, mas a
aceitação seria mais… Não sei se é pertinente… Seria mais… [a aceitação]
É possível, digamos assim.
Gabriela: Você percebe isso na sua vida, por exemplo?
Luís: Percebo, por exemplo, eu, não retinto, num processo seletivo,
possivelmente eu seria [aprovado]… e o retinto não. Entre eu e um branco,
o branco seria e eu não, entende? Eu não participei de muitos processos
seletivos, empresas privadas… Mas pela própria leitura que eu tenho da
minha infância, de: “ah, você não é filho do seu pai” - que tinha a pele
muito mais escura do que a minha, já demonstrava que se eu tivesse a pele
dele, fosse mais escuro, talvez se eu não passasse por onde eu passei, talvez
eu não ficasse tanto tempo assim. Ou ficaria em trabalhos subalternos, coisa
que eu nunca exerci. Porque mesmo meus pais tendo baixa escolaridade,
eles proporcionaram pra gente aquilo que eles não tiveram, que era
80
Disponível em <https://nacaomestica.org/blog4/?p=21587>.
173
educação. [...] E aí nesse aspecto, eu acho que se a minha pele fosse a pele
dos meus pais ou dos meus tios, seria um fator mais determinante a não ter
passado e ocupado espaços que eu ocupei na minha vida, que não foram
muitos, mas as oportunidades teriam sido menores? Acho que sim.
Aqui aparece a mesma medição de “mais e menos” que surgiu no capítulo anterior. Luís
passou por uma revista policial, mas não por dez. De forma figurada, absolutamente todas as
pessoas pretas passaram por dez? Se não, isso não estaria em função de outros marcadores,
além do próprio tom da pele? Nessa equação, o que venho chamando atenção é que o tom de
pele é um marcador de diferença, mas atribuir somente a ele toda desigualdade que pode
existir no interior das comunidades negras brasileiras, é omitir outros marcadores também
muito importantes, como o pertencimento de classe ou a identidade de gênero, por exemplo.
“Então na revista policial, de dez, eu só passei por uma. Certamente meu sobrinho que é
retinto, das dez, ele passou pelas dez. Então eu tenho essa consciência”. Já que nosso
interlocutor concordava com esse “privilégio pardo”, gostaria de saber sua opinião a respeito
das cotas e sua destinação para pretos e pardos.
Luís: Tenho uma colega que falo assim: “essa ideia da mestiçagem foi uma
desgraça pra sociedade brasileira, né?”. [...] Ao acentuar a questão da cor,
de mais claro ou menos claro, você acaba criando essa outra possibilidade
do privilégio dentro do grupo negroide. Então assim, eu não vejo essa
possibilidade de ter que criar uma cota dentro das cotas.
Gabriela: Mesmo tendo privilégio?
Luís: É porque se… Então eram só negros, pretos. Os pardos estão fora,
não precisa mais da cota. [...] E a gente vai deixar aí uma população
também enorme, pardos, em situação também de vulnerabilidade, de gênero,
de classe estariam fora.
Ou seja, talvez o que Luís esteja dizendo é que, embora existam vantagens dos negros
mais claros, em determinadas circunstâncias, isso não reflete num privilégio estrutural do
grupo. “Uma cota dentro da cota” seria para ele “uma reparação sem reparação”, e uma
forma de acirrar as relações no interior da comunidade negra. Como já tínhamos observado
antes, essa é uma questão polêmica. Vamos analisar o que fala Amarildo. Para ele, a
população parda não deveria estar inclusa como população negra:
Essa definição de negro, enquanto preto e pardo, ela é equivocada pra mim.
Posso até... Pode até existir o pardo né? O não branco por definição, o não
caucasiano, o não leucoderma. Mas atribuir a essa pessoa a questão da
negritude pra mim é uma falha legislativa.
Isso porque, ele nos explica, essa população teria “uma ‘passabilidade’ muito grande e
ele [o pardo] transita e desfruta de todo o privilégio que a ‘branquitude’ traz, então eu não
174
vejo por que eles serem classificados enquanto pessoas negras”. Amarildo entende que esse
foi um erro dos movimentos negros, em função do embranquecimento de algumas de suas
lideranças.81 Antes de achar essa fala estranha, precisamos entender com qual definição de
“pardo” Amarildo está trabalhando. Eu, por exemplo? Perguntei-lhe. Enfaticamente me
respondeu que não. Para Amarildo, eu sou uma “preta de pele clara”. Ele me explica que os
“negros de pele clara” de Sueli Carneiro (2016), não são pardos, pardo é outra coisa: são
mestiços cujo conjunto de marcas fenotípicas não lhes fazem negros (as). A cantora Anitta é
um exemplo que nos dá. Segundo Amarildo, a artista teria passado por tantas intervenções
estéticas, que lhe colocavam hoje nessa posição de uma pessoa parda (não negra,
embranquecida): “[...] Pra mim o pardo tem a pele mais enclarecida. Muito mais do que a
pessoa preta de pele clara, e tem outros traços fenotípicos que colocam ele na condição de
não negro”. Será que Anitta seria aprovada pela Comissão? “Na banca que eu estivesse
fazendo parte, não”, me respondeu Amarildo.
Talvez nosso interlocutor reivindique o termo “preto” e “preta de pele clara”, em
função de um debate já citado nesse trabalho: “o certo é preto ou negro”?82. Se diz, nessas
discussões, que o “preto” denota uma cor e carrega menos estigmas que o “negro”. Cuti
(2010) já enfrentava dilema parecido quando discutia a preferência do “afrodescendente” ou
“afro-brasileiro” invés do “negro”. O medo da palavra negro seria decorrente de que:
A fala de Amarildo foi muito elucidativa, porque me fez compreender o que estava em
questão na nossa conversa: não era um desacordo sobre quem atribuíamos negrura. Tínhamos
consenso de que Anitta, por exemplo, não seria uma pessoa negra. O que discutíamos era o
significado que ambos davam para a categoria “pardo”. Esse conteúdo era o mote da nossa
divergência. Como já dissemos, historicamente o “pardo” foi um “saco de gatos”
(SCHWARCZ, 2012) e continua sendo. Campos (2013) nos mostra que essa não é uma
81
Em 2008 Guimarães escrevia que “no caso dos intelectuais brasileiros, mestiços de pele clara em sua maioria,
a situação é ainda mais complexa, já que o movimento negro, em contradição com seus próprios critérios, tende
a trata-los como “brancos” (p. 59). As questões se repetem ou nunca se resolvem?
82
Com Cuti (2010) aprendemos que, seja os embates entre os usos de “negro” em detrimento de
“afrodescendente”, ou “preto” em troca de “negro”, esses problemas são de ordem política. “Enfim, o que existe
nesse aparente jogo semântico é a vontade e o empenho para se manter as coisas como elas estão nas relações
raciais no Brasil: branco discriminando como se fosse normal, negro anestesiado, com medo de reagir, e mestiço
fazendo o jogo da omissão, em busca das vantagens de se sentir branco” (p. 7).
175
categoria do cotidiano das pessoas, nossos interlocutores, por exemplo, se declaram “pardos”
para o Estado, e negros no seu dia-a-dia. As imagens que seguem, do grupo da UFBA, se
reportam às disputas pelo significado da categoria. Lembremos que essa não é uma discussão
qualquer, pois o pardo tem direito às cotas. Então quem é esse pardo?
Fonte: Facebook
Fonte: Facebook
176
Quanto ao acesso de negros de pele clara e preta às cotas, Amarildo discorda que haja
um mecanismo que lhes diferenciem. Entendendo que mesmo “sofrendo menos”, essa
população mais clara ainda vai ser racializada, ou, em suas palavras, “afetada pelo racismo”:
Apesar de me ver como “preta de pele clara”, nosso interlocutor considera que pessoas
do meu perfil têm privilégios raciais. O exemplo que me deu de primeira foi do “mercado do
amor”. É importante dizer que eu e Amarildo nos conhecemos no período do Ensino Médio.
Eu estava ingressando no Instituto Federal da Bahia (IFBA) no mesmo ano em que ele já
estava se formando. Não éramos tão próximos, mas compartilhamos de alguns ambientes
juntos, como veio a ser a UFBA. Conhecíamo-nos, mesmo não tendo aprofundado o vínculo
de amizade. Nesse sentido, tínhamos certa liberdade para tratar dessas questões, e para que ele
me tivesse como exemplos de seus pensamentos. Ainda assim o fez com muito cuidado.
Continuando a questão que levantou, Amarildo disse que eu nunca seria “preterida” como
“outras colegas mais retintas”. Discordei da sua fala e usei o exemplo de uma mulher de pele
preta que nós dois conhecemos: ela tem certa projeção profissional que lhe faz estar na mídia,
ao mesmo tempo em que lhe permite acessar determinados padrões de consumo. Em minha
opinião, hoje, ela não está mais submetida a humilhações referentes à sua aparência da mesma
forma que alguns anos atrás poderia estar, quando era uma mulher pobre e “anônima”. Ainda
assim, ela é uma mulher solteira que recorrentemente coloca sua posição, publicamente, nesse
debate sobre a “solidão da mulher negra”. Expliquei a Amarildo que atravessei toda a
adolescência sofrendo comentários sobre a minha aparência, no que se refere aos lábios
“muito grossos”, à cor “suja”, ou aos cabelos “duros”, por exemplo. Na medida em que a fase
da adolescência passou, essas experiências não foram mais tão comuns, mas também não
existia uma opinião compartilhada de que eu era “uma mulher bonita”. Isso começa a se
transformar na medida em que eu vou conquistando um lugar profissional, e acessando bens
de consumo que me permitem outra organização estética e outra posição social. Não quis,
com esse exemplo, apagar as desigualdades que podem existir entre mim, ou qualquer outra
mulher de pele clara, e uma mulher de pele escura. Quis dizer que as posições comparativas
de indivíduos negros precisam se dar mediante análises mais contextuais, e levando em
consideração outros marcadores, além do próprio tom de pele. Eu, de pele clara e ela, de pele
177
preta, conquistamos outra relação da sociedade em geral para com nossa própria aparência,
em função dos patamares profissionais que fomos alcançando, e, consequentemente também
outra posição nesse “mercado do amor”.
Como falei em outro momento, esse trabalho tem contado, em geral, com boa
receptividade. O apoio da Pró-Reitoria de Ensino de Graduação (PROGRAD) da UFBA foi
muito importante, me possibilitou acompanhar os trabalhos da Comissão. Não me foi
permitida a participação nas salas em que ocorriam as aferições, mas em todos os outros
momentos que descreveremos (recepção, acolhimento, fotografia e pesquisa voluntária) estive
presente. Quando cheguei, Ana Karina (membro da PROGRAD) me deu o crachá de fiscal.
Com ele eu conseguiria me misturar com os demais membros da equipe de apoio da
Comissão, e ter acesso aos ambientes que eu precisava circular para a pesquisa, além de me
engajar com o próprio trabalho que estava acontecendo ali. A ideia era muito boa. Na prática,
eu tentei desaparecer entre as pessoas, mas fui notada. Não deixei de pensar na experiência de
Diego Zenobi (2010) quando escreveu “O antropólogo como ‘espião’: das acusações públicas
à construção das perspectivas nativas”. Como eu pude achar que ninguém prestaria atenção
em mim? Uma pessoa estranha à Comissão, de olhos atentos e, mesmo procurando a maneira
mais discreta possível, tomando anotações do que estava acontecendo num contexto tão
delicado? É que existiam membros, naquele momento, que não estavam no curso de
preparação. Esses membros eram, principalmente, dos movimentos negros, e não do quadro
institucional da UFBA. Como o único contato que tive com a Comissão, antes daquele dia, foi
durante o treinamento, eu era completamente estranha para aqueles que não compareceram ao
curso. Somado a isso, o clima de tensão era muito nítido. Logo no início do turno da manhã,
uma funcionária me apontou um rapaz que suspeitava estar ali para causar algum tumulto ou
encontrar qualquer brecha que pudesse mobilizar um processo judicial. É que pela manhã, os
estudantes aferidos eram calouros, mas no turno da tarde, seriam aferidos estudantes que já
eram da Universidade, dos cursos do Bacharelado Interdisciplinar (BI) que migrariam para os
cursos de Progressão Linear (PL)83. O rapaz em questão só precisaria chegar às treze horas, já
que era um estudante do BI. Mas, estranhamente, estava no portão da instituição desde às sete
horas da manhã. Existiam motivos para desconfiar, ele estava visivelmente agitado. Além
83
Existem cotas raciais para estudantes do BI nos cursos de PL.
178
disso, todo o contexto nacional de fraudes e de tentativas políticas de deslegitimação das cotas
alimenta um clima de tensão. Acredito que minha presença só não virou uma acusação
pública de “espionagem”, como ocorreu com Diego Zenobi, porque outros membros me
reconheciam. Desde a minha participação como ouvinte no curso, apresentei-me como
pesquisadora. Num momento de intervalo entre os turnos da manhã e da tarde, quando estava
descansando, uma professora, membro da Comissão, passou por mim e rindo, falou: “o
pessoal estava lá falando, preocupado com você, eu falei que era a menina que estava fazendo
a pesquisa!”.
Nesse momento, os candidatos são recebidos em uma sala ampla, e todos os membros
da banca se apresentam. Cada um deles tem liberdade para comentar algo sobre o processo e
quem são. Antes dessas apresentações breves, falas mais longas são realizadas pela professora
Jurema, presidente da Comissão, e a professora Cássia Marciel, Pró-Reitora de Ações
Afirmativas e Assistência Estudantil da Universidade (PROAE), duas mulheres negras.
O conteúdo das falas da presidente da banca e de Cássia, pró-reitora, se refere ao modo
de classificação racial que a Comissão opera, o papel e a importância desse instrumento, e, de
maneia geral, uma defesa das políticas afirmativas. Quanto aos demais, suas falas geralmente
são de apresentações breves do nome e do seu lugar na Universidade ou em alguma
organização do movimento negro.
Jurema qualifica todo esse momento como “muito simpático. [...] para afastar a ideia
de tribunal racial”. No curso de formação, ela disse que essa é a ocasião em que os
candidatos se olham, se percebem. Por exemplo, em uma banca passada, ela conta, uma
menina branca, ao se perceber, sentou-se na última cadeira da sala do acolhimento. Observei
179
que isso acontecia mais fortemente entre os estudantes egressos do BI, ou seja, entre aqueles
que já eram da instituição. O clima entre os dois turnos era muito diferente. Pela manhã, entre
os calouros, poucos se conheciam e estavam calados, concentrados e sérios. Pela tarde, a
sensação era de que todos já se conheciam, conversavam muito entre si e riam, falavam alto,
tinha um clima de menor formalidade por parte dos estudantes. E aí é que pude presenciar
cenas de alunos negros, apontando outros estudantes que eles consideravam brancos, e
fazendo gestos de zombaria. Um deles comentou em alto e bom tom sobre outro candidato: “é
muita cara de pau!”.
Essa etapa é preenchida apenas com o relato dos meus interlocutores e do que foi
narrado no próprio curso de formação, observando que, não pude entrar nos ambientes das
salas em que essas bancas estavam acontecendo.
Depois do acolhimento, grupos de cerca de dez pessoas são encaminhados para
diferentes salas, onde estão acontecendo bancas simultâneas. A presidente, em geral, não fica
apenas em uma sala todo o tempo, mas circulando entre elas. Marcilene me fala que o
presidente tem um papel muito importante de garantir um padrão coerente de resultados. Por
exemplo, quando ela observa que “um caso difícil” entrou em uma determinada sala, ela se
direciona até lá para chamar atenção dos membros: “tinha um caso difícil aqui, vocês
perceberam?”. O resultado pode ser de aprovação ou reprovação, mas seu objetivo seria o de
garantir que, se aquele perfil foi aprovado ou reprovado, que isso se repita para as demais
pessoas, uma vez que deve haver semelhança de resultados. Luís conta um pouco dessa
experiência:
A gente fazia uma avaliação e aí Marcilene via alguém [que era um caso
difícil] e falava assim: “e aí?”. Não que ela tivesse tentando nos induzir.
Mas eram dois momentos: ou era o momento de testar o critério que a
banca estava tendo, coerência, porque ela já tem uma certa experiência. Ou
vinha no intuito de reforçar: “esse aluno ele não é pardo, ele não é preto”,
né? Mas em nenhum momento ela direcionou. Aí nesses casos ela: “gente,
vocês tem certeza disso? Leva para [o grupo mais amplo]… É um caso
difícil”. [...] Em algumas situações nem bem ela chegava, a gente já dizia
“Já temos aqui, temos dois casos difíceis”. Ela nem perguntava: “Leva
pra… leva pro grupão, leva pro grupão, lá a gente decide pra poder ganhar
tempo”.
Cada candidato entrega sua ficha já preenchida e o documento com foto para um
membro da banca e cola, na frente do apoio de braço da sua cadeira, uma folha que consta seu
180
nome. O presidente da banca lê o nome de cada candidato e lhe pergunta: “como você se
declarou para fins desta seleção?”. Enquanto isso, as fichas e os documentos dos candidatos
passam nas mãos de cada um dos membros, que preencherão como “aprovado” ou
“reprovado”. Quando essa definição não pode ser tomada rapidamente, ou seja, há dissenso
porque se trata de um “caso difícil”, a decisão é postergada para o final do dia, quando
poderão discutir, sem a presença de nenhum candidato, e com todos os outros membros das
demais bancas, a designação daqueles “casos difíceis”.
Tudo isso pode parecer mera formalidade, mas não é. Cada ato é desempenhado com
muita atenção, ao ponto de Luís dizer que “na verdade não é só uma análise do fenótipo”.
Veja, é sim a análise do fenótipo que é feita pela Comissão, mas o que nosso interlocutor está
dizendo é que esse fenótipo sempre se mostra em uma dada circunstância e num determinado
arranjo estético. Nesse sentido, outros fatores são levados em consideração. Por exemplo, o
contraste entre aquela aparência e a fotografia da carteira de identidade, é um dado relevante.
Outra coisa é a própria organização da sala:
Luís: A gente fica sempre pronto ali, e a posição que nós ficamos na sala
dispõe os alunos, os dez alunos numa posição semidiagonal, e ficamos assim
em várias posições, porque a depender da luminosidade, da escuridão...
Tinham lugares em que a menina ou rapaz ficava mais claro ou mais escuro,
mas não era o sol, entende? Aí a gente conseguia… Nós criamos alguns
tipos de código pra poder identificar, então alguma coisa no documento que
a gente passava já chamava atenção. Numa fotografia… Uma fotografia
muito antiga, uma fotografia recente, nós fomos criando, fomos aprendendo
ali formas de perceber se existia algum… Alguma auto determinação que
não batia com o que eles tinham colocado.
Depois da banca, os candidatos se encaminham para outra sala de espera, onde saem,
em duplas, para a sala de fotografia. Essas fotos são úteis tanto para o recurso, quanto para a
discussão no final do turno, dos “casos difíceis”: no momento em que o candidato escreve um
recurso contestando o indeferimento, é essa foto que será usada pela reavaliação da Comissão.
Ela também será utilizada para avaliação dos “casos difíceis”: as fotos dessas pessoas são
expostas em uma tela, ao final dos trabalhos de aferição, numa sala restrita aos membros de
todas as bancas que acontecem simultaneamente, para que os resultados daqueles candidatos
sejam dados por unanimidade.
Luís explica que a fotografia, registrada nesse processo, cria um documento do
candidato, substituindo, para aquele pleito, a foto do próprio documento oficial. Isso porque,
como nos explica, “[comparando com a fotografia do documento oficial] quase nunca são as
mesmas pessoas. Porque a foto é muito antiga, é criança e o cabelo estava de chapinha e
agora está cacheado, vice-versa, tomou sol…”.
Tendo ocorrido nos turnos da manhã e da tarde, observei que não se usou flash nas
câmeras. Todas as luzes da sala são acesas, os raios solares são parcialmente filtrados por um
papel fosco de cor marrom, que é colocado na metade horizontal das janelas. Existe uma
marcação no chão onde cada candidato deve se colocar. Fica posicionado do lado do rosto do
candidato um suporte transparente na parede, onde eles colocarão a ficha que os identifica
com nome e número de inscrição. Do fotógrafo ao candidato existe uma distância de cerca de
três metros, e as fotografias registram o rosto do candidato de frente e de perfil.
Depois das fotografias, o candidato é liberado para sair da instituição. Próximo à saída
se posiciona um grupo de estudantes da própria Universidade, assistidos pela PROAE, com
fardamento identificando a Pró-Reitoria. Eles abordam esses candidatos para participar da
pesquisa voluntária. Em geral existe uma boa adesão. As perguntas começam por uma coleta
de dados de identificação, como nome, curso de interesse, idade e autodeclaração racial, e
182
segue para questões como: é a primeira vez que participa de uma seleção como cotista? Como
se sentiu? A explicação (no momento do acolhimento) foi satisfatória? A explicação fez
refletir sobre pertencimentos raciais e racismo? Tem alguma sugestão? Em geral, percebi que
as pessoas respondem estar satisfeitas com a explicação do acolhimento e com todo o
processo, defendendo a necessidade das bancas. Uma estudante da UFBA, egressa do BI,
opinou que as cotas deveriam ser para “pessoas pretas mesmo, porque assim acabariam as
dúvidas” – dos “casos difíceis”.
A foto do candidato que teria entrado com recurso, tirada pela equipe de audiovisual da
Comissão, é enviada para os membros da banca que lhe avaliou, assim como o texto recursal.
Também nessa etapa, a decisão dos membros é unânime. Amarildo conta que, em geral, o
conteúdo desses recursos aponta para uma ancestralidade negra.
Acompanhar esse trabalho foi importante para essa pesquisa porque senti a exata
transposição, para as políticas públicas, de discussões que eu acessava através da retórica dos
movimentos negros ou das pessoas implicadas nessas questões de identidade racial. Foi
interessante perceber o esforço dos profissionais engajados nesse trabalho, em condensar e
resolver todos esses debates, de alcance complexo, no momento de decidir se aquele
indivíduo acessará ou não a vaga de cotista. Fico pessoalmente admirada com o nível de
organização e de comprometimento coletivo, mesmo com um trabalho que é relativamente
recente. Ao mesmo tempo em que percebo que muita coisa precisa ser debatida, vejo também
que muito já foi feito até aqui.
183
Como já trouxemos em outra parte desse trabalho, os censos oficiais têm registrado uma
crescente nas autodeclarações pretas e pardas brasileiras84. Nossos interlocutores, por
exemplo, passaram, a partir de um determinado momento da vida, a se autodeclararem negros
e negras. Ao tratar sobre os processos de surgimento, fortalecimento ou ampliação de
autodeclarações étnico-raciais, a partir de grupos tradicionais, Bartolomé (2006) nos apresenta
o conceito de etnogênese enquanto um “processo de construção de uma identificação
compartilhada, com base em uma tradição cultural preexistente ou construída que possa
sustentar a ação coletiva” (p. 43). Lehmann (2017) irá dizer que esse conceito não serve para
qualificar as experiências negras brasileiras, visto que, para ele, “não se trata nem de
redescoberta de identidade ancestral, nem de assumir identidade, senão de exigir dos outros o
reconhecimento que a cor da pele trouxe discriminação” (p. 149).
84 “Número de brasileiros que se declaram negros sobe 6% entre 2016 e 2017” Correio Braziliense, 27/04/2018.
Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2018/04/27/interna-
brasil,676652/qual-e-a-porcentagem-de-negros-na-populacao-do-brasil.shtml>.
184
Eriksen (1993) citado por Bartolomé (2006, p. 58), afirma, a respeito da experiência
com os Inuti, que muitas vezes é difícil o grupo perceber sua cultura de forma objetiva, ou
seja, perceber, por exemplo, que determinadas perdas de valores ou práticas constituem um
processo objetivo de dinâmica cultural, seja de hibridização, aculturação ou transformação de
185
qualquer ordem. Isso nos dá a possibilidade de pensar que a “descoberta” da identidade negra
por parte desses sujeitos, não necessariamente diz respeito a um processo artificial de
apropriação identitária, e sim que, tomando conhecimento das contradições raciais do país e
racionalizando suas próprias experiências pessoais, essas pessoas puderam trazer para a
consciência momentos de suas vidas que não passavam antes pelo crivo da reflexão.
Falando a respeito das comunidades aldeãs dos pastores e agricultores mesoamericanos
e andinos, Bartolomé (2006) conta que “a mútua identificação de uma série de coletividades,
ainda que linguística e culturalmente afins, resulta sempre da presença de uma organização
política unificadora” (Ibid., p. 43). Assim, a política de identidade desenvolvida pelo
movimento negro, sobretudo a partir do marco do Estatuto da Igualdade Racial (2010), é a
principal responsável por mais pessoas mestiças-negras estarem reivindicando lugar como
negros. Essa posição “negra de pele clara” informa que, em paralelo ao desafio que se
apresenta ao Estado, quanto ao reconhecimento das especificidades culturais e históricas do
grupo e suas demandas de reparação, existe uma questão difícil para a própria comunidade
negra: objetivar a marca85 dessa negritude, tendo a mestiçagem como um fato. Trata-se, nesse
sentido, de uma demanda por reconhecimento dentro de outra: pardos como negros e negros
como grupo que compõe o povo brasileiro, mas que não se dilui nele.
O privilégio pardo parece ser um consenso entre os nossos interlocutores, mostramos isso
anteriormente. Quando nos dedicamos a comparar esses discursos com a pesquisa virtual, isso
se repete. O privilégio é uma questão importante porque, conforme apontamos, “privilégio” se
opõe necessariamente a “racialização”:
Antes de mergulharmos nessas questões, é importante antecipar que a noção de raça de Neusa
Santos (1983) é útil para discutirmos esse tópico. A ideia presente na obra “Tornar-se negro” é
da raça enquanto “noção ideológica engendrada como critério social para distribuição de
85
Referimo-nos à velha distinção de Oracy Nogueira (1985), entre racismo de marca e de origem. Marca é, aqui,
equivalente aos traços fenotípicos.
186
posição na estrutura de classes” (p. 20). Essa concepção nos remete ao marxismo e nos
encaminha para o entendimento que assumimos de privilégio: uma posição estrutural de
prestígio e valor de um grupo social que se restringe à branquitude.
Figura 34 – Taxa de maiores de 16 anos desempregados por cor ou raça em Salvador (2010)
Figura 35 – Taxa da população com renda menor que metade de um salário mínimo por cor ou raça
em Salvador (2010)
É ilustrativa dessa prática os matrimônios inter-raciais constituídos por muitos homens negros
brasileiros após alcançarem posição de prestígio. Sueli Carneiro (1995) discute isso no texto
“Gênero, raça e ascensão social”, ele é uma resposta ao historiador negro Joel Rufino que
teria comparado mulheres negras ao Fusca e as brancas ao Monza. Carneiro (1995) vai dizer
que o abandono das suas companheiras negras representa um rompimento das relações desses
indivíduos negros com a sua comunidade de origem. O próprio formato das relações raciais
no país teria negado a sustentação de um sentimento/senso de aliança entre indivíduo -
comunidade negra. Neuza Santos (1983) também comenta essa desaliança nos seguintes
termos:
Giralda Seyferth (1995) nos faz pensar sobre tais questões a partir de dois ditados
populares que se remetem ao estigma na origem familiar dos indivíduos, e seus respectivos
esforços/imposições em escondê-la: "fulano tem um pé na cozinha"/ "na senzala" ou, ainda,
"[fulano] deve ser grato à Princesa Isabel" (p. 195). Esses ditados são exatamente sentenças
sociais que orientam o rompimento da solidariedade interna à comunidade negra, pelos
sujeitos que alcançam posições de destaque.
188
contradições dessa análise não passam despercebidas pela própria autora, ao dizer que “é
possível constatar no seio familiar de Ágatha o racismo se apresentando quando os traços de
negritude desta não são mais obnubilados, maquiados com a finalidade de responder a uma
estética branca” (Ibid., p. 44). No relato de Ágatha a seguir, aparecem questões que tratamos
no início desse trabalho, referentes aos danos na autoestima, decorrentes de humilhações da
sua feição:
[...] ter cabelo alisado pra mim foi importante, porque eu era assim vista
como a feia, a horrorosa, e quando eu alisei o cabelo as pessoas começaram
a dizer que eu era bonita. Então assim, pra mim alisar o cabelo foi bom
porque eu me sentia um lixo em relação a beleza, eu sempre me sentia uma
menina feia, horrorosa, ridícula. [...] Feia, feia, feia, feia, feia. Até uma vez
minha mãe me chamou de feia. Então eu tenho muito isso né. Então pra mim
foi importante, porque quando eu alisei o cabelo eu me senti bonita. Fui
aprendendo a me sentir bonita. Quando eu não estava com o cabelo escovado
o povo começava a dizer ‘Pô Ágatha você está desarrumada, desajeitada, não
tá bonita’. Aí quando eu alisava, escovava, pranchava, as meninas
começavam a me ver como bonita. Então pra mim foi importante porque na
época eu ia me sentir um lixo se eu não escovasse meu cabelo (Narrativa,
ÁGATHA, 2018 apud Alves, 2019, p. 48).
A pesquisa de Alves (2019) traz, num trecho desse diálogo com Ágatha, o sentimento de não-
pertença as categorias branco-negro reivindicadas pelos movimentos negros. A fala é de quem
não possuiria “vivências” de racismo tal como os outros negros, cuja comparação a
entrevistada faz com os pronunciamentos públicos que ela testemunhou em contextos
políticos da militância negra – ou seja, relatos de sofrimento e de racismo que militantes
negros abriram nesses espaços políticos. Essa dessemelhança se acentuaria na diferença entre
a vida desses negros da capital com a sua própria, que cresceu numa cidade pequena do
interior do estado: lá “todo mundo é igual” (Ibid., p. 56). Nossa literatura dá conta de explicar
que o racismo, o machismo e outras formas de violência e opressão, são mais comuns na
medida em que as relações de impessoalidade também são maiores. Nesse sentido, em cidades
grandes, onde pessoas convivem mesmo sem se conhecer, atos motivados pelos pressupostos
de raça ou gênero, por exemplo, poderão aparecer mais facilmente como formas de
estabelecer aquelas relações. A fala de Ágatha, no entanto, é o suficiente para que a autora
afirme que “o termo [negro] não contempla à construção identitária étnico-racial das jovens”
(Ibid., p. 56).
Diante dessas questões, nosso intuito não é confrontar o trabalho particular dessa
pesquisadora, ao contrário: toma-lo como exemplo diagnóstico dos discursos produzidos
sobre o “pardo” ou o “colorismo”. Por isso, tal pesquisa serve para questionarmos algo que se
190
estende para além do texto de Lindiara Alves: por quê, mediante descrições claras de
discriminação racial, não se enxerga Ágatha’s como vítimas do racismo? Essa jovem não irá
se identificar como negra, por perceber incompatibilidade entre sua experiência e daquelas
outras mulheres negras com as quais teve contato, com sua mudança para Salvador. Alves
(2019) comenta isso da seguinte forma: “o fato do termo negro ainda conter o sentido
associado à cor de pele preta, faz com a pessoa parda ou mestiça, não se sinta pertencente por
ter uma pele quase branca e gozar dos privilégios desta estética” (p. 58). Ou seja, a
formulação ainda cristalizada no imaginário social, de que pardos, mulatos ou morenos,
definem um lugar de identidade – como mostramos anteriormente com a pesquisa de Jacques
D’Adesky (2001), reforçam a ideia de que negros são pessoas de pele preta, e cuja experiência
social será necessariamente de grandes privações e violência. Essa imagem, além de apagar a
diversidade no interior das comunidades negras, também será um estereótipo racista,
observando que existem muitas formas de existências negras, inclusive entre classes altas e
posições de prestígio social.
Algo semelhante podemos observar na obra de Lia Schucman (2018) que trata sobre
família inter-raciais. Trazemos aqui dois exemplos trabalhados nesse texto. Um deles é da
família de Amanda, formada por um pai branco e uma mãe negra. Amanda teria dúvidas
quanto a sua autodeclaração, embora muitas vezes se refira a si mesma como morena.
Amanda relata que, em Portugal, sofreu racismo através da hiperssexualização do seu corpo,
mas no Brasil não teria sido vítima desse crime. Schucman (2018) não problematiza esse
relato e toma o discurso de que “nunca sofreu racismo” como verdade. Por outro lado, a
autora nos traz a história de Guilherme, um homem negro que também informou nunca ter
sofrido racismo, e que terá, na construção do argumento de Shucman, uma condução
diferente. Em um dado momento do encontro da pesquisadora com essa família (ele e sua
esposa branca), Guilherme se ausentou momentaneamente, e ela teve a oportunidade de
conversar a sós com sua esposa. Ela lhe disse que Guilherme sofria racismo “o tempo todo”
(Ibid., p. 290). Embora com Amanda a autora tome como verdade o seu “privilégio”, com
Guilherme dirá que, não assumir o racismo em sua experiência de vida é parte de uma
“estratégia psicológica para camuflar esse sofrimento” (Ibid., p. 116).
O que nos importa no trabalho de Alves (2019) e de Schucman (2018) é que um sistema de
verdade a respeito do “privilégio pardo” ou da ausência do racismo, se reproduz sem que isso
se cruze com nenhum crivo de criticidade. Esse é o mesmo movimento que percebemos com
nossos interlocutores, quando pude observar, inclusive, eles repensarem esse discurso no
decorrer dos nossos diálogos.
191
Enquanto isso, os indicadores sociais seguem mostrando “pardos” como maioria, junto aos
“pretos”, entre desempregados, analfabetos, pobres e assassinados. As experiências de
racismo relatadas por essas pessoas são automaticamente descartadas, em alguns dos
trabalhos citados nessa pesquisa, como sofrimentos menos legítimos ou como um racismo
menor. O trecho que segue, é de um texto disponibilizado na Internet, cujo conteúdo está
dentro desse contexto de acusações de negritudes postiças/ privilegiadas:
Confrontando essas verdades eternas sobre o privilégio pardo, o Relatório Final da CPI
sobre o assassinato de jovens (2016) irá mostrar, no que se refere ao estado da Bahia86 o
seguinte:
No tocante à violência letal, Cruz e Martins (2018) falam ainda sobre os muitos veículos de
informação que em 2013 “noticiaram uma determinação, dirigida ao Comando Geral de
Patrulhamento da região de Campinas/SP, que instruía a revista em pessoas ‘da cor parda e
negra’ em um bairro nobre da cidade” (p. 12). Trazemos também dados do Atlas da Violência
de 2019, segundo o qual:
Essa citação se refere ao gráfico abaixo, sobre o “padrão de vitimização dos homicídios
em relação à raça/cor e o sexo da vítima”:
86
Nesse Relatório, a lógica dos números permanece para os outros estados: dos homicídios no Piauí, no período
de 2014 até 27 de outubro de 2015, dos 447 homicídios de jovens na capital, 324 eram pardos, 64 brancos, 25
negros, 1 moreno, 22 amarelos, 5 indígenas e 6 não foram identificados; no Rio de Janeiro, nos anos de 2014 a
até outubro de 2015, foram registradas 4.807 mortes de jovens ente 10 e 29 anos de idade, 1.249 “negros”, 2.406
pardos, 2 amarelos, 944 brancos e 206 ignorados; na Paraíba, nos anos de 2014 e até setembro de 2015, o
número de casos de Crime Violento Letal Intencional (CVLI) chegou a 1.330, apurou-se 1.114 vítimas pardas,
50 pretas e 166 brancas. Em termos de mortes ocasionadas por ação policial, no Rio de Janeiro entre 2014 a
outubro de 2015, foram registradas 689 mortes de jovens com idade igual ou inferior a 29 anos, no que toca a cor
da pele, 187 eram negros, 349 eram pardos, 1 era amarelo, 92 eram brancos e 60 a cor da pele não foi informada;
no Acre, a Secretaria de Segurança Pública informou que, de 2007 a 2015, foram instaurados 14 inquéritos
policiais por “autos de resistência”, entre 18 e 30 anos, dos quais 11 eram pardos, 1 era negro e 2 não tiveram a
raça informada. No estado do Piauí, foi informado que a polícia foi responsável pela morte de 29 pessoas no
período de 2014 a 30 de agosto de 2015, sendo 14 pardas, 8 brancas, 1 negra, 1 indígena e 5 sem informação
sobre a raça, dos quais 26 eram homens e 3 eram mulheres. As vítimas com idade de até 29 anos totalizaram 16
casos (IPEA, 2019).
193
Figura 37 – Gráfico do padrão de vitimização raça/cor e sexo das vítimas dos homicídios
De alguma maneira, a ideia sobre o privilégio dos mulatos pode ser rastreada em “Casa
Grande e Senzala”, quando Freyre (2003) fala que
Ao mesmo tempo em que o autor fala sobre “mulatinhos criados em casa – muitos deles
futuros doutores, bacharéis e até padres” (Ibid., p. 397) também irá admitir preconceito contra
esses “mestiços” em função da “origem escrava” ou da cor:
É importante dizer que, na mesma página em que podemos ler sobre o privilégio desses
mulatos que se sentavam à mesa da casa grande, “saíam de carro com os senhores [e até]
acompanhando-os aos passeios como se fossem filhos” (p. 435), lemos também sobre os
“privilégios” de suas mães pretas, cujos filhos brancos do senhor pedir-lhe-iam a benção,
194
andavam de carro com os brancos e eram “tratadas como senhoras e até alforriadas” (p. 435-
436).
Conceição, Leite, Cruz e Carmo (2019) também irão falar que negros de pele clara “são
tolerados e possuem privilégios nesta sociedade” (p.5) de forma a sofrer um tipo de racismo
“mais brando” (Ibid., op. cit.), pois “a discriminação racial fica mais ‘delicada’ com o
‘clareamento’ da pele” (Ibid., op. cit., grifo nosso). Mesmo assim, as autoras vão admitir a
objetificação dos corpos desses indivíduos mais claros, sobre os quais “a tonalidade de pele
mais clara e os traços finos serão utilizados como objeto sexual, na considerada famosa
‘mulata exportação’” (Ibid., op. cit.). Aqui, a ideia de “privilégio” dita anteriormente, mais
uma vez se torna contraditória para as próprias autoras:
O racismo na vida das mulheres negras tende a determinar quais espaços elas
podem compor, a tonalidade da pele segrega e acarreta privilégios, dentro da
sociedade. Desde o processo de escravidão mulheres negras não retintas
possuíam “vantagens”, pois, historicamente as mulheres negras não possuem
privilégios, ainda que elas não tivessem a pele retinta ou prestassem serviços
braçais, estavam passivas a sofrer violência sexual (Ibid., p.7).
Do nosso ponto de vista, qualquer ideia que fale sobre privilégios para seres humanos
submetidos ao sistema de horror que foi a escravização, é absolutamente inadmissível. Mas
não é raro ouvir que mulheres escravizadas mais claras os detinham, ainda que se considere a
exploração sexual dos homens brancos da casa grande sobre os seus corpos. Sobre isso, Gates
Junior (2011) também nos explica que, a ideia de ter havido grandes proporções de
escravizados (principalmente mestiços) que conquistaram a liberdade no sistema escravagista,
é parte do imaginário social constituído pelo mito da democracia racial. Querendo saber sobre
as particularidades da colonização no Brasil, o autor conversou com o historiador João José
Reis que explicou: “os escravos libertados eram a exceção, e não a regra, em vista do número
imenso de escravos importados pelo Brasil” (GATES JUNIOR, 2011, p. 21). Lembremos que
o Brasil foi o país que mais recebeu africanos escravizados na América, também o último do
continente a abolir a escravidão.
195
Ana Cláudia Pacheco (2013) irá conversar com algumas mulheres negras em Salvador
para constituir sua pesquisa sobre “a solidão da mulher negra”. Uma delas assume no seu
texto, o pseudônimo de Zezé, assim descrita: “aos meus olhos, Zezé tem um aspecto físico da
chamada ‘mulata’. Sua pele é clara, seus cabelos são quimicamente cacheados, crespos, tem
um porte avantajado, cintura fina, quadris largos, empinados, traços finos e lábios sensuais”
(p. 245). Com tudo isso, a narrativa dessa mulher
Munanga (1999), citando o argumento de Abdias, nos fala que, ainda que o mulato seja
um meio termo entre a casa grande e a senzala, “não goza de um status social diferente do
negro” (p. 93). É que, mesmo desempenhando funções de aliança com o senhor de engenho,
estão hoje esmagados em uma “classe pobre e, portanto, constituem-se na maior vítima da
discriminação racial, devida à ambiguidade cor/classe, além de serem mais numerosos que
os ‘negros’" (Ibid., p. 93-94, grifo nosso). O autor continua seu argumento com a seguinte
questão:
Esse trecho também é importante porque quebra com a ideia de continuidade de privilégios ou
vantagens sociais que os mestiços, oriundos das famílias inter-raciais, teriam trazido como
herança escravocrata para os dias atuais. O “privilégio pardo”, nesse sentido, se parece mais
com um white noise88 insistindo que as desigualdades internas à população negra são maiores
do que realmente são, maiores que as discrepâncias entre esse grupo e o grupo branco. A
pesquisa nos indica que esse cenário se conforma, principalmente, a partir das fraudes brancas
87
Nesse exato momento a autora irá puxar uma nota explicativa para dizer que: “não significa dizer que no
Brasil não exista uma diferenciação de cor entre os chamados ‘pardos/mestiços e pretos’, entretanto a
classificação aqui utilizada, embora reconheça esta diferença, analisa tais categorias como pertencentes ao grupo
racial negro” (PACHECO, 2013, p. 245).
88
“termo não-técnico utilizado em referência a qualquer som de fundo que reprime outros ruídos do ambiente”
(FERREIRA&CAMINHA, 2017, p. 163).
196
A ideia de Juliana é a mesma que viemos desenvolvendo até aqui: “Ser negro de pele
clara não é ser menos negro, [...] a pigmentação rende experiências com racismo distintas das
experiências de negros de pele escura”. A racialização será diferente a partir do tom da pele e
também a partir de diferentes pertencimentos ou marcadores. Eugênio Junior (2018) traz
ainda outras falas de Nilma Lino Gomes (2005) presentes no texto “Alguns termos e
conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão”, que
dispõe os motivos que levaram ao agrupamento de pretos e pardos em uma única categoria.
Seu argumento, imbuído das aproximações dos indicadores sociais, termina com a afirmação
de que “o racismo no Brasil não faz distinção significativa entre pretos e pardos, como se
imagina no senso comum” (Gomes, 2005 apud Eugênio Junior, 2018).
5.3 AS MULATAS
negra”, por exemplo, parece ser uma dessas questões. As mulatas, mulheres pardas, em
função de supostos privilégios, não compartilhariam desse lugar de solidão afetiva que
mulheres retintas vivenciariam. Como exemplo disso, temos o estigma da “neo neguinha
solidão” que Jaci, uma das nossas interlocutoras, contou ter recebido. Esse termo, ela nos
explicou, deslegitimava sua autodeclaração e, ao mesmo tempo, seu lugar dentro dessa pauta
política. Nesse sentido, a minha proposta nesse momento do texto, é falar das mulatas de
outro lugar, da encruzilhada epistemológica entre gênero e colorismo. Esse é o momento,
talvez bastante pequeno em comparação ao resto do trabalho, em que focalizo a condição das
mulheres negras-pardas nessas discussões que temos tratado.
O artigo de Oliveira e Siqueira (2016) trata sobre as “Leituras pigmentocráticas acerca da
construção da história e notícia” e analisa algumas fotografias vinculadas a notícias recolhidas
na Internet. Elas mostram homens aprisionados em condições degradantes. Essas imagens me
fizeram perceber como pretos e pardos aparecem, indistintamente, na mídia de forma
criminalizada. Os estereótipos de “menor”, “traficante” ou “ladrão” estão para pretos e
pardos. Isso me estimulou a pesquisar alguns desses termos no banco de imagens do Google.
Em outro momento da pesquisa, essas imagens aparecem na discussão sobre os estereótipos
do “traficante” e do “pobre”. Aqui, eu volto com a mesma ideia para discutir mulheres negras
e mulatas. Essa questão também está inserida no artigo que escrevi junto com Jade Lôbo, “De
mulata fogosa à afrobege afroconveniente: uma interpelação contra-colonial a dupla
contradição racial sobre mulheres negras” (2020).
Fonte: Google.
198
Fonte: Google.
A análise que fazemos das imagens, no artigo, explicam por que o colorismo (informado pela
raça) converte a experiência social dessas mulheres em negras “de mentira”:
Inspirada no trabalho de Sonia Giacomini (2006), que fala sobre o curso de formação de
mulatas, Ângela Figueiredo (2005) irá dizer que “mulata” conforma uma categoria racial,
profissional, de gênero e de geração (p. 164). O estupro do homem branco89 contra mulheres
negras é ponto importante dessa reflexão, cuja romantização é frequentemente acusada nas
89
Tal como desenvolve Miskolsi (2013), é importante lembrar que essa miscigenação não tinha como
expectativa a mistura inter-racial de homens negros e mulheres brancas, “o desejo da nação era um ideal político
embranquecedor assentado no desejo heterossexual masculino” (p. 96).
199
obras de Gilberto Freyre. Isso é tão notável em “Casa Grande e Senzala” que Freyre (2003)
chega a falar sobre “casos no Brasil não só de predileção, mas de exclusivismo: homens
brancos que só gozam com negra” (p. 368). Munanga (1999) mostra que, considerando o
ditado popular "branca pra casar, negra pra trabalhar, mulata pra fornicar", a mulata, fruto da
exploração sexual do homem branco sobre a mulher preta escravizada, “tornou-se só objeto
de fornicação, enquanto a mulher negra continuou relegada à sua função original, ou seja, o
trabalho compulsório” (p. 91). O autor nos traz uma passagem de Abdias do Nascimento que
caminha no mesmo sentido:
Giralda Seyferth (1995) também discorre sobre a posição profissional da mulata, cujo “lugar
privilegiado é o dos espetáculos de rebolado para turista ver” (p. 198-199) e,
complementemos com Lélia Gonzales (1984), do "produto de exportação". Gonzales (1984)
fala sobre três estereótipos ligados as mulheres negras: a mucama, trabalhadora doméstica; a
mãe preta, ama de leite dos filhos brancos; e a mulata, esse papel de servidão sexual
comumente atribuído às mulheres negras de pele mais clara. Pinho (2004) nos mostra como a
literatura, a música e as artes, de modo geral, caracterizam a mulata pela “sensualidade bestial
da negra em modos ‘afinados’ pelo sangue branco” (p. 112). Isso colocaria a Bahia como “um
território livre para o safári sexual colonial” (Ibid., p. 113). Antônio Jonas Dias Filho, citado
por Pinho, demonstra como a própria propaganda do turismo em Salvador associaria o estado
da Bahia “à figura da mulher desnuda e mestiça, que se oferece entre a rebentação e os
coqueiros” (Ibid., p. 114). Osmundo Pinho (2004) nos dá exemplos dessa prática de turismo
sexual no estado:
que no Brasil chamaríamos de “negros de pele clara”? Separamos algumas imagens que
tratam das classificações de cor negra naquele país.
Fonte: <https://me.me/i/light-skin-vide-ic-brown-skin-17675144>.
Fontes: <https://www.quora.com/What-does-dark-skin-mean-What-qualifies-as-dark-skin-Is-tan-
Asian-skin-considered-dark>.
202
Fonte: <https://twitter.com/LadyTmissthang/status/653589101354967041/photo/1>.
Fonte: <http://thehoopgods.com/2016/12/15/team-light-skin-vs-team-dark-skin-vs-team-brown-skin/>.
Essas imagens, recolhidas em sites americanos, nos fazem refletir sobre algumas coisas.
A primeira: as fronteiras entre o que se compreende como light, brown ou darkskins não são
tão rígidas assim. Existe uma certa mobilidade entre os indivíduos negros por entre essas
203
classificações, assim como aqui. Em segundo lugar, poderíamos sugerir que algumas pessoas
identificadas por essas imagens como “lightskin” seriam possivelmente heteroclassificadas
aqui enquanto brancas. Isso é importante porque, tendo esses “lighskin” um fenótipo algumas
vezes branco, é fácil de imaginarmos que serão mais incluídos socialmente, e que seus
indicadores sociais serão consideravelmente melhores do que aqueles apresentados pela
população brown ou darkskin. Aqui, os “brownskin” são aqueles que, frequentemente
apontamos como negros de pele clara.
De fato, observando pesquisas estadunidenses que levam em consideração o colorismo,
a pele clara, diferente da realidade brasileira, parece repercutir numa vantagem estrutural para
essa parcela negra da população. Afinal, para ela será possível o fenômeno do passing, pelo
qual poderão esconder antepassados negros para “passarem por” brancos. É como se pessoas
como Sônia Braga, quem não temos como referência de mulher negra, fosse lá negra
“lightskin”. Se, também aqui, “Sônia’s Braga” fossem contabilizadas como negras,
certamente os indicadores sociais mostrariam uma vantagem estrutural dos negros de pele
clara ou pardos, frente à população preta.
“corre, efetivamente, uma morenização dos brasileiros, mas ela se faz tanto pela branquização
dos pretos, como pela negrização dos brancos” (Ibid., p. 224). A cor da pele sempre foi, para
nós, assunto sério. Roger Bastide e Florestan Fernandes (1959), por exemplo, vão falar o
seguinte: mesmo que o indivíduo negro fosse alforriado, poderia ser “considerado e tratado
como escravo” (p. 81). Nesse sentido:
Apesar disso, como nos mostra Santos e Maio (2008), o mito da democracia racial criou
a ideia de que o Brasil seria um país híbrido do ponto de vista cultural e racial, indicando “que
compartimentalizações precisas são pouco discerníveis” (p. 110-111). Os autores estão se
referindo a ampla aceitação que o “Retrato Molecular do Brasil” teve no país. Esse estudo,
que prova a extensão da mistura de gene entre a população autodeclarada branca, reforça,
através de “narrativas sobre a (bio)história da formação do povo brasileiro produzidas pela
genômica, [...] um imaginário social amplamente arraigado que vê na miscigenação um
elemento positivo e definidor da identidade do país enquanto nação” (Ibid., p. 110-111). Na
medida em que se constitui uma crença de que o povo brasileiro é de natureza mestiça,
morena, o fazer corporal dos brancos em contextos de fraudes, é um fazer arraigado na
tradição. Nilma Lino Gomes (2006) observou essas técnicas de fazer um corpo mestiço em
termos de uma “polissemia identitária”, onde há “um movimento ambíguo de
aproximação/afastamento das referências negras e africanas. [Isso] Muitas vezes se dá de
maneira difusa e se mistura com questões de moda e estilo” (p. 331).
No romance “Marrom e Amarelo” de Paul Scott (2019) o personagem principal,
Fredrik, é convidado a participar de uma comissão do Governo Federal que desenvolveria um
software para a seleção de candidatos autodeclarados negros para as vagas de cotas nas
Universidades públicas. O trecho que segue é da descrição que o personagem faz do contexto
universitário pós-implementação das cotas raciais:
Esse é um trecho que mostra, dentre outras coisas, a amplitude que essas questões têm
tomado, de forma a estar nos textos disponíveis em blogs e sites, nas comunidades virtuais
das redes sociais, na preocupação presente na fala dos nossos interlocutores, nos trabalhos da
Comissão e, inclusive, na literatura. Esse “fazer um corpo mestiço” pelos brancos, não é só
um ato de má fé, é um recurso do mito e, portanto, parte do dispositivo de poder que
desenvolveremos mais adiante.
5.6 TENSÕES
pele clara e retinta em trincheiras diferentes. Isso, sim, é um problema’”. Outro texto, o de
Gabriele da Silva (2020) no site do Portal Geledés, também é muito notório. Ele reproduz a
narrativa de uma estudante, Iraci, que já foi confrontada diversas vezes em sua autodecaração
negra:
O texto continua afirmando que, “assim como Iraci, muitas pessoas têm receio de se
autodeclararem negras”. A autora se coloca nessa discussão como alguém que também estaria
vivendo esses conflitos:
As situações de racismo que eu sofro podem não ser as mesmas que outras
pessoas de pele mais escura sofrem. Isso não significa que é mais brando,
mais fácil de lidar, que é menos doloroso. Às vezes, é até mais difícil, pra
gente identificar, pra perceber que várias situações que passamos, era
racismo. Nós não sofremos menos racismo, sofremos racismo de formas
diferentes.
Neste exemplo, a mulher mobiliza o poder de intersectar dos seus espaços de convívio e
dos seus círculos de afeto, a presença de uma mulher de pele clara. O faz porque se sente
207
ameaçada pelo status que essa pessoa teria. Citando o trabalho de Mason (2004), Margaret
Hunter (2007) nos dá o exemplo das comunidades mexicanas que vão observar os de pele
clara como “mais assimilados e menos identificados com a comunidade mexicana americana”
(Ibid., p. 244). A desconfiança levaria esses indivíduos a usar com mais frequência o
espanhol, “como forma de restabelecer sua identidade mexicana quando a pele clara lança
dúvidas sobre ela” (Jimenez 2004 apud Hunter 2007, p. 244, tradução nossa). Isso marca uma
tensão interna nos grupos racializados. Ainda que a dúvida sobre a autenticidade do
pertencimento racial seja algo que observamos inclusive na branquitude paulista, trazida pelo
trabalho de Lia Shucman (2012), essa mesma suspeita, dentro de grupos raciais
marginalizados parece ter um impacto ainda maior, seja porque se direcionam a indivíduos
que já estão submetidos ao racismo, seja porque acontece dentro de setores sociais cuja
fragmentação interna penaliza ainda mais as conquistas por direitos.
Essas tensões já estão desenhadas há muito tempo, mostramos isso a partir dos conflitos
internos do grupo NEGO, grupo que antecede o MNU na Bahia (MNU, 1988), e com o caso
de Joséphine Baker (BARICKMAN, 2009). No vídeo “Colorismo: Ser Negro” da vlogueira
Sá Ollebar, o colorimo é definido como “uma teoria de pigmentação que denuncia privilégios
dentro de uma negritude já bem resolvida” (CRUZ E MARTINS, 2018, p. 16). Mas,
“[...] por conta dele está sendo criada uma cultura de negação de identidade,
onde os negros de pele mais escura estão duvidando da negritude desses
negros de pele mais clara e infelizmente esses questionamentos quase, é...
eles não são feitos de forma saudável. Essa sensação de injustiça tem feito
com que negros de pele clara sejam chamados de afroconvenientes e
algumas vezes são rechaçados por isso. (...) É triste, porque está sendo feito
uma separação dentro do movimento, ao invés de ser feito um recorte.”
(Ibid., op. cit.).
A vlogueira Taya, em seu vídeo “Colorismo ou Pigmentocracia: EUA & BR”, cita a
“Carta de Lynch” para definir a divisão entre claros e escuros como uma estratégia de divisão
e dominação dos escravizados. Ela expõe ainda o caso de um homem pardo, que teria sido
preso após proferir insultos à cantora negra Ludmila. Para a vlogueira, esse seria um bom
exemplo de que a estratégia de divisão interna logrou sucesso (Ibid., p. 17). Lindiara Alves
(2019) vai dizer que:
Aos irmãos:
O racismo se agiganta quando transferimos a guerra para dentro do nosso
terreiro. Renuncio hoje ao papel de Dona Ivone Lara no musical “Dona
Ivone Lara – um sorriso negro” após ouvir muitos gritos de alerta – não os
ladridos raivosos. Aprendo diariamente no exercício da arte – e mais
recentemente no da academia, sempre com os meus mestres – que escuta é
lugar de reconhecimento da existência do Outro, é o espelho de nós.
Renuncio porque falar de racismo no Brasil virou papo de gente
“politicamente correta”. E eu sou o avesso. Minha humanidade dói fundo
porque muitas me atravessam. Muitos são os que gravam o meu corpo.
Todas são as minhas memórias.
Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o
anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar “branca” aos
olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor
jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar de existência. Ficar oca
por dentro. E virar pensamento por horas.
Renuncio porque vi a “guerra” sendo transferida mais uma vez para dentro
do nosso ilê (casa) e senti que a gente poderia ilustrar mais uma vez a página
dos jornais quando ‘eles’ transferem a responsabilidade pro lombo dos que
tanto chibataram. E seguem o castigo. E racismo vira coisa de nós, pretos. E
eles comemoram nossos farrapos na Casa Grande. E bebem, bebem e trepam
conosco. As mulatas.
Renuncio em memória a todas negras estupradas durante e após a escravidão
pelos donos e colonizadores brancos.
Renuncio porque sou negra. Porque tem sopro suficiente dizendo a hora e o
lugar de descer para seguir na luta. É minha escuta de lobo, de quilombola.
Renuncio pra seguir perseguindo o sol, de cabeça erguida feito o meu pai,
minha mãe (branca), meus avós, meus bisavós, tatas…
Ao lado de vocês, irmãos.
Renuncio porque a cor da pele de Dona Ivone Lara precisa agora, ainda, ser
a de outra artista, mais preta do que eu. Renuncio porque quero um dia
dançar ao lado de todo e qualquer irmão, toda e qualquer tom de pele
comemorando na praça a nossa liberdade.
Renuncio porque respeito a família de Dona Ivone Lara: Eliana, André, seu
pai e todos os parentes e amigos que cuidaram dela até os 97 anos e tem sido
duramente constrangidos por gente que se diz da luta mas ataca os iguais
perversamente. Renuncio pelo espírito de Dona Ivone que ainda faz a sua
passagem e precisa de paz.
90
Disponível <https://revistaforum.com.br/cultura/em-carta-fabiana-cozza-renuncia-papel-de-dona-ivone-lara-
no-teatro/>.
209
Renuncio porque quero que este episódio sirva para nos unir em torno de
uma mesa, cara a cara, para pensarmos juntos espaços de representatividade
para todos nós.
Renuncio porque quero que outras mulheres e homens de pele clara, feito eu,
também tenham o direito de serem respeitados como negros.
Renuncio porque tenho alma de artista e levo amor pras pessoas. Porque
acredito num mundo feito de gente e afeto.
Renuncio porque não tolero a injustiça, o desrespeito ao outro, o
linchamento público e gratuito das pessoas, descabido, vil, sem caráter,
desumano.
Renuncio em respeito à direção e produção do espetáculo que tanto me
abraçou, em respeito ao elenco que agora se forma e que, sensível a tudo,
lutou por seu espaço e precisa trabalhar e criar em silêncio.
Renuncio por amor aos meus amigos artistas, familiares, irmãos que a vida
me deu que também se entristecem, mas não se acovardam diante dos
covardes.
Renuncio porque sou livre feito um Tiê, porque cantarei hoje, aqui, lá e
sempre à senhora, Dama Dourada, minha amiga e amada Dona Ivone Lara.
Renuncio porque, como escreveu meu amado amigo Chico Cesar, “alma não
tem cor”. E a gente chega lá.
Fabiana Cozza
Jorge de Marighella não foi problematizada por nenhum grupo ou indivíduo ligado aos
movimentos negros: o problema na representação de Fabiana Cozza, portanto, não seria
apenas na incompatibilidade da cor, seria sua pele mais clara, num contexto em que essas
questões mobilizam os debates políticos com a força que verificamos na própria pesquisa.
A partir dos nossos interlocutores, pudemos compreender que o “afroconveniente” tem
um espectro amplo de significados: às vezes referindo-se aos negros de pele clara, que
supostamente estariam declarando-se negros em função das cotas raciais; às vezes aos negros
de pele escura ou clara, que manipulariam o discurso racial para interesses particulares; ou
mesmo a brancos que estariam fraudando as cotas raciais. Boyer (2015) analisa os usos de
categorias jurídicas por movimentos ou grupos, no sentido de ganhar espaço dentro do
Estado. Ele vai dizer que, na medida em que “antigos preconceitos não desaparecem”
(tradução nossa, p. 29), se transformam em “categorias de acusação” (tradução nossa, Ibid.,
op. cit.) para “se tornar padrões de avaliação” (tradução nossa, Ibid., op. cit.). Assim,
Eles são assim constituídos como padrões para medir a credibilidade das
metamorfoses da identidade: a falta de conformidade com os estereótipos do
índio ou do preto (cor da pele, roupas, práticas, etc.) abre caminho ao
questionamento da identidade indígena ou quilombola (Ibid., op. cit.,
tradução nossa).
91
São quatro estágios: submissão, impacto, militância e articulação (FERREIRA, R., 2000).
211
dirigida para brancos e para negros “com passabilidade”, ou “negros brancos”, os “afrobeges
afroconvenientes”. No terceiro estágio, após decidir tornar-se negro, o indivíduo começa a
reforçar o seu pertencimento, frequentemente pelos estereótipos do que é ser negro:
É provável que essa situação, neste estágio intermediário, explique por que é
comum o afro-descendente apegar-se de forma obsessiva a símbolos da nova
identidade em processo de constituição, a jargões verbais, a algumas
ideologias rígidas e a avaliações dicotômicas, do tipo “ou isto ou aquilo”
(Ibid., p. 80).
Uma questão a pensar é que, também esses negros de pele clara passarão por todos esses
estágios, e, na medida em que eles se percebem rejeitados pelo mundo branco, também irão se
perceber, a partir dos ânimos alimentados pelo colorismo, rejeitados pelo mundo negro.
Porém não haverá retorno, eles não tentarão se readmitir no mundo branco, e talvez essa
experiência seja exatamente a experiência de limbo (ou entre-lugar, como fala Weschenfelder
e Silva, 2018) que muitos dos nossos interlocutores testemunham. Ricardo Ferreira (2000)
define da seguinte maneira o quarto estágio:
[...] para Cross (1991), a “nova identidade” construída tem três funções
dinâmicas: defender e proteger a pessoa de agressões psicológicas; prover
um sentido de pertença e ancoradouro social e provar uma fundação, ou
ponto de partida, para transações com pessoas de culturas diferentes
daquelas referenciadas em matrizes africanas (p. 83).
O caminho do “negro de pele clara” parece ser mais embaraçoso para chegar até aí. Ele
precisará lutar contra a autorejeição, mas, ao mesmo tempo, precisará lutar contra o olhar
estereotipado do outro com o qual se identifica, o mundo negro. Seu trabalho é maior: se
percebe vítima do racismo, depois se surpreende com a caricatura de um “afrobege”, e, por
fim, precisa compreender que está lidando novamente com estereótipos do grupo que tinha
expectativas de lhe acolher. Já vi, dentro do discurso de ativistas ligados aos movimentos
negros, que os pardos autodeclarados negros negam, convenientemente, seus parentes
brancos. Ora, segundo o que Lia Schucman (2018) afirma sobre os filhos dessas famílias
212
inter-raciais, “a autoclassificação racial de cada sujeito está menos ligada à cor da pele e mais
ligada aos afetos e identificações que cada sujeito tem com os membros brancos e negros de
suas famílias” (p. 69). Não é estranho, portanto, que pessoas negras, dentro de famílias inter-
raciais, frequentemente vítimas de racismo pelos seus parentes brancos, rejeite-os.
5.7 PASSABILIDADE
Fonte: <https://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/conheca-tela-redencao-de-cam-de-1895-
destaque-em-mostra-no-mnba-22740416>.
Vejamos: a senhora é “a mãe preta” que falava Lélia Gonzales (1984), o pai é o branco
“puro”, o europeu. Isso é um consenso, a questão agora se coloca sobre a mãe e a criança. Um
americano olha para o quadro e vê três negros: vó, mãe e criança. Esse filho, no entanto, é um
indivíduo que pode esconder seus antepassados para efetuar o passing nos Estados Unidos,
seu fenótipo que é branco, como do pai, lhe permitiria (desde que fosse um segredo de
família). Já um brasileiro vê uma negra, a avó, uma mulata, a mãe, e dois brancos: o pai e a
criança. A “passabilidade” não faz o menor sentido: a criança no Brasil é, para todos os
efeitos, branca. Nas palavras de Oracy Nogueira (1985): “no Brasil, não teria sentido o
fenômeno do passing, pois que o indivíduo, sendo portador de traços ‘caucasoides’, será
213
considerado branco, ainda que se conheça sua ascendência negra ou o seu parentesco com
indivíduos negroides” (p. 80).
Conforme muitos autores irão mostrar, o passing no Brasil não se trata do trânsito que
um indivíduo teria em ser branco em algumas circunstâncias e negro em outras, passing seria
a capacidade de branquear conforme os diferentes graus de mistura. Para Domingues (2002),
Mas para Munanga (1999), se o passing no Brasil fosse assim tão fácil, “muitos entre
‘nós’ já teriam atravessado a fronteira” (p. 122). Ainda assim existe, para o autor, alguma
possibilidade de que isso se realize quando o grau da mestiçagem (cor mais clara) se associa
com certa condição socioeconômica. Esse é um tema controverso, muitos autores (TELLES,
2003; PINHO, 2004) e inclusive o próprio Kabengele Munanga (1999), irão falar como a
inserção dos negros em locais tradicionalmente brancos, reforçam o sentimento de pertença
racial negra, “demonstrando como a ascensão social muitas vezes intensifica o processo de
identificação racial e re-invenção estética de si” (PINHO, 2004, p. 117). Munanga (1999)
apresenta os exemplos de governadores do Rio Grande do Sul, do Espírito Santo e de Sergipe,
que foram considerados como negros, e inclusive vítimas de discriminação racial, quando, no
entanto eram “tipicamente mestiços” (p. 125).
Segundo o autor, Darcy Ribeiro usaria o argumento do passing para insinuar que o
racismo brasileiro seria “melhor” do que o estadunidense, por “não ter criado uma linha de
cor, e por permitir o passing, ou seja, a drenagem dos mestiços mais claros na categoria de
brancos” (p. 103-104). Assim como Oracy Nogueira (1985) e Kabengele Munanga (1999)
fazem em suas respectivas obras, compreendemos que esse tipo de comparação é repugnante.
Todas as formas de racismo são cruéis, ainda que cada uma tenha dinâmica própria, e cujas
particularidades precisam ser levadas em consideração pelas estratégias de desarticulação.
Nesse mesmo sentido, se comparar o melhor e o pior racismo é incompreensível, também o é
comparar as diferentes formas de racismo que sofrem negros de pele preta e clara, enquanto
hierarquias de danos.
Como veremos no capítulo seguinte, faz sentido falar sobre uma hierarquia de cor que
beneficia os mais claros nos Estados Unidos. Já na África do Sul, que também passou pelo
apartheid, os mestiços foram prejudicados no processo de abertura do regime. Se os mestiços
214
não ocupam o mesmo lugar nem nos Estados Unidos, nem na África do Sul, mesmo tendo,
ambos, passado pelo apartheid, será que podemos aplicar teorias estadunidenses sobre o
colorismo para o Brasil, que nunca experimentou um sistema de segregação formalizada sob o
mito de democracia racial? Devemos passar, nesse momento, a uma análise do colorismo a
partir das teorias sobre miscigenação que já foram largamente produzidas pelos estudos
étnico-raciais brasileiros, e, dessa maneira, tentarmos traduzir as preocupações desse conceito
para o nosso contexto.
215
6 ANTI-COLORISMO
Nesse momento, mostraremos que, apesar da literatura clássica falar sobre uma posição
intermediária dos mulatos na formação da sociedade brasileira, servindo como mote de
discursos sobre o colorismo ou o privilégio pardo, esses textos são imprecisos em suas
definições. Não são apenas os textos do século passado que terão conteúdos dúbios para
termos como “mulato” ou “mestiço”. Encontramos referências atuais que tratam, por
exemplo, “mulatos”, “pardos” e “negros” como grupos diferentes entre si. Cuti (2010) não só
fala de mestiços e negros como se fossem grupos distintos, como também faz uma
aproximação direta entre brancos e mestiços:
Nós, seres humanos, nos iludimos por várias razões quanto à auto-imagem
que cada um produz, pois quase sempre é uma idealização. Um branco ou
mestiço racista, em face de um negro, busca uma compensação para
qualquer de suas deficiências. Ancorar-se na ilusão racista é também um ato
de cobrir deficiências ou fragilidades pessoais. Mas, não é só. A razão
principal é ter vantagens em relação aos negros. Sempre que temos
necessidade de humilhar alguém queremos gritar que somos melhor que a
pessoa humilhada e ver essa falácia reconhecida socialmente. Um racista faz
isso se baseando em uma convicção. Em face de um negro, ele, branco ou
mestiço racista, quer ser Super Homem! (p. 3).
Isso me fez entender que, em primeiro lugar, dois argumentos de racialização estão operando
nesses textos, o fenotípico e o genético. Segundo, nem sempre o que se falou nessas leituras
clássicas sobre “os mulatos”, se referiam aos pardos-negros, às vezes estavam falando sobre
indivíduos socialmente brancos. Continuemos nossos exemplos com Oracy Nogueira (1985),
quando ele fala que o branqueamento nos Estados Unidos, pela miscigenação, “por mais
completo que seja, não implica em incorporação do mestiço ao grupo branco” (p. 80). Nesse
caso, o “mestiço” é alguém de aparência branca que provém de relações inter-raciais.
Encontramos na literatura de romance um demonstrativo disso que, em poucas palavras é uma
confusão. A obra em questão é “Marrom e Amarelo” de Paul Scott lançado em 2019. A
história gira em torno do personagem Fredrick, cuja família é descrita da seguinte forma: pai e
irmão são negros retintos, de cabelos crespos, e a mãe é branca de cabelos lisos e castanhos.
Fredrick é alguém de “pele bem clara, cabelo liso castanho bem claro puxando pro loiro [...]
considerado um branco” (SCOTT, 2019, p. 9). O autor opõe a descrição do personagem
principal a do irmão “considerado negro” como se quisesse ironizar ou estranhar essas
217
classificações raciais distintas entre os dois irmãos: “embora com o mesmo nariz adunco e
médio largo que o meu e a mesma boca de lábio superior fino e lábio inferior grosso que a
minha” (Ibid., op. cit.). O trecho que segue é um desabafo que o personagem faz a sua mãe:
[...] é esse negócio de ser negro, mãe, é que, às vezes, as pessoas estranham
isso d’eu me afirmar como negro, um negro pardo, ela observa, qual é o
drama, pergunta. O que eu tô querendo dizer é que mesmo que eu fale pras
pessoas que eu sou negro, isso é pouco, porque eu não entendo quase nada
do que é ser negro, falando em termos de cultura, se não fossem os
churrascos nos domingos que a gente passa, de vez em quando, na casa dos
primos do pai, nem o que é samba de verdade eu ia saber direito o que é...
(Ibid., p. 111).
Conseguimos perceber que, por mais que seja um assunto antigo e repetido, a
compreensão sobre os pertencimentos raciais de negros e brancos no Brasil não está resolvida
para o senso comum e até mesmo para indivíduos engajados academicamente. Na obra,
Fredrik é “considerado branco” porque o fenótipo é branco, mesmo assim ele elabora um ser-
negro-por-empatia, levando em consideração a feição que sente pela sua família negra.
Precisei buscar elementos adicionais para compreender a discussão que essa obra se propõe a
fazer. Eis que chego até a entrevista que Paul Scott (2020) concedeu ao canal do Youtube
“LiteraTamy”. Nessa entrevista, o autor, um homem facilmente identificado como branco,
fala que no Brasil quase não existem brancos, porque as pessoas são mestiças. Ele fala que
negros de pele clara passam por brancas, e que pessoas “mais pro norte” (em relação ao Rio
Grande do Sul), como no Rio de Janeiro, se dizem brancas e na verdade seriam mestiças.
Essas pessoas, segundo Scott (2020), se forem para o Sul do país e se afirmarem brancas em
determinadas regiões ou colônias alemãs, seriam atacadas e repreendidas. Nessa conversa, a
entrevistadora comenta que o “colorismo” atua na história do livro, o que o autor confirma.
Esse é um exemplo muito bom do tamanho das divergências no uso desses termos. Primeiro,
Paul Scott parece ignorar completamente que a leitura racial ocorre no Brasil sem se remeter
às misturas de sangue. Então Fredrick ou os brancos do Rio de Janeiro podem ser mestiços
geneticamente e, ao mesmo tempo, socialmente brancos no Brasil. Segundo, o colorismo não
se refere originalmente as distinções que operam entre mestiços brancos e pessoas negras,
mas entre negros de tonalidades de pele distintas.
Retomando a entrevista, o ponto de Paul Scott (2020) é que, se pessoas claras, mesmo
com cabelo “semi-liso ou liso”, nascem em uma família negra, “devem sim” se reconhecer
como negras, porque isso seria “importante pra identidade do país”, “pra força geral do povo
brasileiro, porque essa negação é uma espécie de submissão, de aceitação, de uma política
perversa, de uma ótica perversa de uma lite que não quer ver gente escura do lado” (SCOTT;
218
GHANNAM, 2020). O autor se diz negro pelo mesmo argumento, ele é oriundo de uma
família com pai negro e um irmão de pele escura, tal como a história do livro: “mesmo eu
tendo essa empatia (sic), mesmo assim eu não sofro o racismo que o meu irmão sofre. Eu
nunca vou entender o que é ser julgado à noite quando eu ando na rua, pela polícia” (SCOTT;
GHANNAM, 2020). Certamente o autor não tem a mesma experiência social que o irmão, já
que a racialização não lê intenção, e sim aparência. Entendi imediatamente que Scott é
Fredrick, um branco-negro-por-empatia.
Ainda sobre esse debate, vamos contrastar duas afirmações feitas por Antônio Sérgio
Guimarães em “Classes, raças e democracia” (2002) e “Preconceito racial: modos, temas e
tempos” (2008) respectivamente:
Thales de Azevedo nos anos de 1955. Esse momento do texto também mostra conteúdos
dúbios desses usos:
Segundo Thales de Azevedo92, a Bahia é o estado brasileiro que possui os índices mais
elevados de mestiçagem envolvendo a população preta no Brasil e, mesmo assim, ele nos traz
relatos que demonstram o preconceito racial na Bahia como parte da “tradição” do estado: “as
92
A obra também é importante por descrever o histórico das organizações negras na Bahia até a criação da
Frente Negra Brasileira.
220
pessôas conservadoras é que o transmitem às novas gerações" (Ibid., p. 180). Lemos, por
exemplo, sobre os preconceitos raciais contra as mulheres negras baianas no trabalho de Ana
Cláudia Pacheco (2013), a partir da citação de Osmundo Pinho:
[...] a Bahia agora é vista também como um território livre para o safári
sexual colonial [...]. A indústria que produz a Bahia como imagem e reduz a
cultura baiana a slogans, alimenta-se do mesmo solo que faz florescer outra
indústria, a do comércio sexual de mulheres e da prostituição ‘étnica’ em
Salvador (p.24-25).
Gates Junior (2011) falou que “o candomblé é a essência da cultura negra no Brasil. E
se a cultura negra brasileira tem uma capital, sem dúvida é a Bahia”93 (p.18). Apesar disso, a
capital tem sido marginalizada nas reflexões sobre os movimentos negros e sobre as
dinâmicas de relações (hierarquias) raciais no pós-abolição.
93
Sua descrição da Bahia é bem romântica: “os cheiros no ar, o modo como os homens caminham na rua, o jeito
como as mulheres andam, as formas de culto e suas crenças religiosas, os pratos que comem — tudo me lembrou
demais as coisas que eu tinha visto, cheirado e ouvido na Nigéria e em Angola, mas transplantadas para o outro
lado do oceano — semelhantes e familiares, mas diferentes: África, sim, mas com um toque do Novo Mundo,
uma África com variantes claras” (GATES JUNIOR, 2011, p. 19).
221
A ideia, muitas vezes, é que em outras regiões do país como o Sudeste e o Sul, dito
como as mais modernas e com maiores proporções de brancos, se justificaria o surgimento de
organizações negras, dada as relações de opressão que seriam mais evidentes lá, do que aqui.
Nessa perspectiva, se o Brasil é o paraíso dos mulatos, a Bahia é a capital. Dados sobre o
racismo contra a população negra nesse estado
Figueiredo (2012), citando Jeferson Bacelar (2001), vai dizer que, na cidade,
A autora considera que é possível afirmar uma maior "‘integração’ dos negros à
sociedade” (Ibid., p. 24) na Bahia, ainda que isso represente uma confirmação da hierarquia
racial, acomodando cada grupo em seus devidos lugares. Isso porque, essa “integração” não
estaria subvertendo a hierarquia, os negros estariam subordinados a elite local, legitimando
um arranjo desenhado desde a colonização (Ibid.). Essa ascensão, como já viemos discutindo,
se dá, segundo a autora, fundamentalmente através de estratégias individuais. Enquanto
grupo, isso só aconteceria para os negros-mestiços “na década de 50, período da instalação da
Petrobras e 70, início das atividades do Pólo Petroquímico de Camaçari” (Ibid., p. 71). Esse é
um período importante para o pensamento de Figueiredo (2012), que, nessa obra, irá pensar a
classe média negra baiana: nesse período “é a primeira vez que a classe média negra torna-se
simbolicamente importante” (Ibid., op. cit.).
222
O “mestiço” representaria aqui e lá, uma categoria móvel que apresenta muitas
possibilidades de uso: “em tecidos sociais marcados por uma forte, secular e diversificada
imigração, como é o caso [de Moçambique], a categoria [mestiço] revela-se demasiado
imprecisa” (Ibid., p. 25). O “mulato”, no entanto, restringiria um pouco mais esse espectro, ao
estar “representado como um (sub)produto cristão do Ocidente” (Ibid. ,p. 26). Essa é, para o
autor, a categoria que “melhor permite operacionalizar a noção de mestiçagem racial” (Ibid.,
p. 25). Gabriel Ribeiro (2012) demonstra que a referência ao “Brasil-mulato”94 constitui fonte
de “auto-orgulho” para os mulatos moçambicanos, inclusive, os romances de Jorge Amado
teriam alimentado a ideia de uma “sociedade moçambicana racialmente miscigenada [...] num
hipotético futuro pós-colonial” (Ibid., p. 27-28). A realidade, porém, é:
Isso estaria exemplificado por uma frase ouvida pelo autor em um dos cafés de Maputo,
2010: “Tu, com essa cor de pele [misto/mulato] foste director [do serviço público tal] com o
94
Miguel de Almeida (2012) mostra que a propaganda de um “colonialismo humanista, universalista,
multicultural e miscigenador” (p. 32) que teria funcionado no Brasil, serviu de propaganda para a presença
portuguesa no continente africano num período de descolonização. Outro autor, Tadei (2002), vai falar que,
apesar dessa propaganda portuguesa, de um colonialismo cordial, mediado pela miscigenação, no continente
africano ele não teria se dado do mesmo modo, assim como a miscigenação lá, não teria ocorrido com a mesma
expressão que teve no Brasil.
223
Machel, mas agora isso seria impossível. Tinhas de ser negro!” (Ibid., op. cit). O texto mostra
diferentes opiniões sobre a posição de cada grupo racial em Moçambique, a partir das
perspectivas dos brancos, mestiços e negros [pretos]. Para todos esses grupos, os brancos
dominavam o período colonial, porém, no que se refere ao pós-abolição, as opiniões serão
divergentes: ora informando a paridade ou “neutralidade” racial, ora o predomínio de brancos
e mestiços sobre negros e vice-versa. Falando um pouco sobre o lugar dos mestiços em
contextos mais recentes, o autor mostra que recaíram sobre eles o estereótipo de “não ter
bandeira”: filho do pai branco português e da mãe negra moçambicana. Além disso, estariam
submetidos a imagens relacionadas à criminalidade:
Isso permite ao autor concluir que “numa mesma sociedade, [coexistem] a tri/multi-
racialidade e a bi-racialidade” (cf. Bonilla-Silva, 2010 apud RIBEIRO, 2012, p. 38). A
analogia que fazemos com nossos interlocutores, é que eles também operam com pelo menos
dois sistemas classificatórios: negro-branco para o cotidiano da vida e para o exercício
político-ativista; e o sistema de cinco categorias do IBGE, no qual optarão, na maioria das
vezes, por declararem-se pardos.
Também em Moçambique, os mulatos teriam desempenhado funções destinadas aos
negros [pretos] e brancos, ao longo da história. Isso permitiu que, após a “saída abrupta” dos
224
Para as mulheres, isso parece se inverter. Mulheres mulatas estão mais próximas do
branco:
Por isso, quanto mais as “mulatas” são catalogadas como mulheres bonitas,
mais são rotuladas de “muito orgulhosas” ou “distantes”. Numa variante um
pouco mais elitista e agressiva, num convívio numa família negra de classe
média/alta em Maputo (2010) ouvi a expressão: “mulata é puta ou
secretária” (Ibid., op. cit.).
A música que segue me foi indicada por Zacarias Tsambe, amigo moçambicano em
conversa comigo sobre esse trabalho. Achei fantástica a forma como ela resume tudo isso que
tentei desenvolver com ajuda de Gabriel Ribeiro (2012), a respeito da sociedade tri ou
multirracial moçambicana:
225
Na África do Sul, por sua vez, os mestiços no pós-apartheid estiveram em uma posição
mais vulnerável do que outros grupos. Os pretos tiveram a condição de vida promovida com o
fim da segregação racial. Essa história é contada por Tilly (2013) no capítulo de uma obra que
pensa “Igualdade e Desigualdade”:
95
Disponível em <https://www.letras.mus.br/azagaia/caes-de-raca-part-guto/>.
226
rendimento dos brancos; o branco médio ganhava quase quinze vezes mais
do que o africano médio . Então o sistema começou a mudar. Depois de
1980 os asiáticos quase dobraram a sua posição relativa (subindo a 48,4% da
renda dos brancos), e os africanos finalmente começaram a ganhar tanto
quanto. Em contraste, a população dos mestiços (amplamente negligenciada
pela patronagem do ANC e frequentemente apoiando a oposição à
hegemonia ANC) não teve qualquer ganho relativo. Desde 1995 a
mobilidade dos africanos para categorias com um maior rendimento
continuou, então "em 2000 havia quase a mesma proporção de brancos e
negros no topo da pirâmide dos rendimentos" (SEEKINGS & NATTRASS,
2.005: 45 apud TILLY, 2013, p. 143).
6.3 MISCIGENAÇÃO
Como nos mostra Sansonse (2003), a democracia racial não foi só celebrada no Brasil,
foi também em outros países da América Latina, como Cuba, Porto Rico, Venezuela e
Colômbia (p. 20). Bastide e Florestan Fernandes (1959) analisam que, se os “mulatos claros”,
que são indivíduos socialmente brancos nessa obra, conseguiam alcançar mais facilmente
posições vantajosas, a mestiçagem em si não poderia ser tida como a causa dessa integração, e
sim o pertencimento branco desses indivíduos. A miscigenação, além disso, não seria
suficiente para afirmar sobre a inexistência de racismo no Brasil:
que o seu produto é, podre” (AZEVEDO, 1955, p. 193). Nina Rodrigues também não era um
otimista da mestiçagem:
Oliveira Vianna esboça uma explicação para o comportamento instável dos mulatos:
sim como dupla opressão racial e sexual, o mulato como símbolo eloquente
da exploração sexual da mulher escravizada pelo senhor branco (p. 29).
Como podemos verificar, a miscigenação não só estabelece uma contradição entre uma
valoração discursiva e um enquadramento social precarizado, como em diferentes partes do
mundo, estará submetida a tratativas diferentes. Isso é interessante porque, em algum
momento da pesquisa, pude ler um texto de uma filósofa muito popular atualmente, e com
grande projeção midiática, onde se dizia que o colorismo é um sistema mundial que garantiria
benefícios aos mestiços mais claros em todo o globo. Hitler (1922) no livro Mein Kampf
“além de decretar uma hierarquia das raças humanas, condena a mestiçagem das raças como
degenerescência e vergonha racial” (MUNANGA, 1999, p.45). Isso o levou a esterilizar
forçadamente, desde 1933, “todos os mestiços nascidos na Alemanha das relações entre
negros e brancos, em particular os mais de 900 atiradores senegaleses, magrebinos e
malgaches estabelecidos após a primeira guerra na margem esquerda do Reno” (Ibid., p. 45).
No Brasil, o mito dizia que a miscigenação dissolveria identidades raciais, pois o brasileiro
seria essencialmente um povo mestiço. Aqui, ela seria a solução do “problema negro”.
Mas, não é por isso - completa [Romero] - que o Brasil será uma nação de
"mulatos", porque na mestiçagem a seleção natural faz prevalecer, após
algumas gerações, o tipo racial mais numeroso, que no caso do Brasil é a
raça branca, graças à intensificação da imigração européia, ao fim do tráfico
negreiro, ao decréscimo da população negra após a abolição e ao extermínio
230
dos índios. Dentro de dois ou três séculos, a fusão entre as três raças será
talvez completa e o brasileiro típico, mestiço, bem caracterizado (Ibid.,
p.53).
Não há perigo de que o problema negro venha a surgir no Brasil. Antes que
pudesse surgir seria logo resolvido pelo amor. A miscigenação roubou o
elemento negro de sua importância numérica, diluindo-o na população
branca. Aqui o mulato, a começar da segunda geração, quer ser branco, e o
homem branco (com rara exceção), acolhe-o, estima-o e aceita-o no seu
meio (MUNANGA, 1999, p. 54).
Diferente do que aprenderíamos com Gilberto Freyre, os filhos mulatos desses senhores
de engenho brancos, também eram escravizados. Luís Gama, por exemplo, tão conhecido
advogado abolicionista brasileiro, foi vendido pelo próprio pai branco. Ainda assim,
observando que existiam mais mulatos livres nos Estados Unidos e no Brasil, Munanga
(1999) fala sobre uma preocupação desses homens brancos em libertar seus filhos. Esse
contexto vai fazer com que Munanga (1999), citando Degler, conclua que o lugar do mulato
era figurativo da adesão da sociedade ao branqueamento, cuja consequência seria a “redução
do descontentamento entre as raças” (p. 86). Outra perspectiva, trazida pelo autor através de
Marvin Harris, toca na função econômica desse grupo: ficar entre os brancos e os
escravizados nos postos que faltavam brancos disponíveis (Ibid., p. 87). Monteiro-Ferreira
(2015) vai dizer que o papel do mestiço era controlar os colonizados em nome do colonizador
(p. 9, tradução nossa). Eles eram, para Skidmore (1976), uma terceira casta social já bem
reconhecida no Brasil no final da abolição (p. 70). Contrariando essa proposição dos mulatos
enquanto uma “casta”, Roger Bastide e Florestan Fernandes (1959) vão afirmar que, mesmo
que alguns mulatos tenham sido selecionados entre os escravizados para desempenhar funções
de homens livres dentro dos interesses da casa grande, isso não alterava as posições de negros
e mulatos enquanto grupos abaixo da hierarquia colonial:
Essa proposta se insere diretamente naquilo que pensou Gilroy (2007): a nação tem
usado de dois artifícios para resolver essa “dupla consciência do negro” do qual falava Du
Bois, o “nacionalismo cultural” ou a própria miscigenação (p. 34). Lindiara Alves (2019), a
pesquisadora que escreveu em sua monografia sobre a identidade racial de jovens
autodeclaradas pardas em Salvador, levanta a seguinte questão:
Notemos que é um texto bem atual. Essas questões podem ser confusas, mas as trouxemos
como um diagnóstico do problema: pessoas negras-mestiças estão sendo pensadas,
atualmente, por uma perspectiva apressada e distorcida do colorismo. Como viemos
232
Telles (2003) e Pereira (2010) falam que, pelo menos desde os anos 30 com a Frente
Negra Brasileira, os movimentos negros se mobilizam para fazer do “negro” uma identidade
que articulasse um conjunto grande de categoriais raciais posicionadas entre o preto e o
branco. No entanto, é na década de 70, e particularmente com surgimento do Movimento
Negro Unificado (1978), que a “raça” será usada “como estratégia para lutar contra a
democracia racial” (PEREIRA, 2010, p. 101). O cartaz a seguir é retirado da obra
“Consciência Negra em Cartaz” (2001) de Nelson da Silva. Nessa obra, o autor dedica um
capítulo de ensaio visual com cartazes da década de 80 que articulavam campanhas educativas
dos movimentos negros naquele momento. A campa a seguir é um chamado para que pretos e
mestiços não neguem seu pertencimento racial nas pesquisas censitárias nacionais.
Figura 45 – Não deixe sua cor passar em branco: responda com bom senso (censo)
Fonte: SILVA, N. F. I. da. Consciência negra em cartaz. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
2001.
233
Segundo Milton Santos, ser negro no Brasil é ser alvo de “um olhar vesgo e ambíguo”
(SANTOS, 2002, apud RIBEIRO, 2012, p. 159). É que para o autor, há uma contradição entre
“consciência” e “realidade social do corpo” que aparecem através de uma cidadania
fragilizada (Ibid., p. 159). Esse espaço entre o pensamento e as desigualdades materiais está
preenchido pela ideologia do branqueamento. Roger Bastide e Florestan Fernandes (1959)
falam sobre o desejo de “passar por branco” como algo espontâneo dentro do “ajustamento
inter-racial” da ordem escravocrata-senhorial (p. 126-127). Pretos e pardos nutririam esse
234
desejo, e por isso, o tornar-se negro é um processo que está para ambos. Começamos essa
sessão com a citação que Domingues (2002) faz, da fala de um militante negro no jornal “O
Bandeirante”. A sua orientação para a população negra brasileira é de que:
Essa declaração reflete a ideologia racial brasileira que “leva os brasileiros a acreditar que as
distinções raciais não são importantes e a interpretar experiências de discriminação como
sendo resultantes das diferenças entre as classes sociais e não decorrentes da raça” (TELLES,
2003, p. 305). O pardo ou o mulato operariam nessa sociedade como “causa e consequência
de uma ideologia de miscigenação e não o resultado automático do processo biológico real da
mistura de raças” (Ibid., op. cit.). É que, como o autor vai nos mostrar, a miscigenação não
cria, por si só, seres de raças misturas. Nos Estados Unidos, por exemplo, mestiços são
simplesmente negros. Já no Brasil, eles seriam “valorizados no imaginário nacional como
sendo o brasileiro típico, embora sejam também, frequentemente marginalizados e, na
realidade, estejam mais próximos da condição dos negros do que dos brancos na estrutura de
classes do Brasil” (Ibid., op. cit.). Na medida em que essa compreensão da proximidade dos
pardos com os “negros” (pretos) vai se ampliando, verificamos o aumento da população
autodeclarada negra no país. Isso, segundo Adriana Beringuy, técnica do IBGE, em texto
jornalístico ao El País (ROSSE, 2015), não teria relação com o aumento da natalidade.
Segunda ela, a ênfase estaria sobre as autodeclarações. O texto em questão traz ainda a
opinião de Katia Regis, “coordenadora da primeira licenciatura do Brasil de estudos africanos
e afro-brasileiros” (Ibid.), segundo a qual esse aumento seria o reflexo da luta dos
movimentos negros e do acesso à educação. Essa mudança na percepção de si, o tornar-se
negro, não é algo estranho aos processos de construção identitária. Hall (2005) irá nos falar
que o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são
unificadas ao redor de um “eu” coerente:
cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos
identificar – ao menos temporariamente (p. 13).
negritude” (CUTI, 2010, p. 84) teria feito com que o movimento negro investisse em politicas
para positivar essa identidade negra, cuja criação da Fundação Palmares (2000) é um
exemplo. Rayza Nicácio (2020) conta no vídeo “Quando me reconheci como negra” sua
experiência no processo de auto identificação:
Eu lembro que na maior parte do tempo na minha vida, eu tentei ser uma
pessoa totalmente diferente de mim, e me inspirava em pessoas totalmente
opostas de mim. Tive muitos conflitos em relação ao meu cabelo, ao meu
tipo de corpo, não a cor da minha pele. Pra eu chegar aos conflitos da cor da
minha pele demorou um pouquinho, porque ninguém nunca falava sobre isso
comigo, sabe? A cor da minha pele era “aceita” e não era questionada. (...)
Ninguém nunca tinha conversado comigo sobre eu ser ou não negra, eu só
sabia que eu não era branca e que meu cabelo era crespo. Demorou muito
gente, para eu refletir sobre isso e muito mais ainda pra eu ter convicção
sobre o que falar e me assumir sim como uma mulher negra de pele clara.
Ao tratar sobre manejos clínicos de espaços psicoterápicos, Tavares (2019) reflete exatamente
sobre os problemas que envolvem esses “pardos”. Questões que se relacionam ao relato de
Nicácio (2020), na medida em que tocam no lugar da dúvida e da dificuldade em
compreender-se:
Eneida Reis (2002), ao escrever sobre o lugar de identidade dos mulatos, retrata a
ambiguidade dessa posição:
Por outro lado, a vlogueira Sá Ollebar em seu vídeo “Negro ou Pardo? Identidade
Racial (Caio Jout Jout)” cita Ângela Davis e Malaak Shabazz para afirmar a importância de
trilhar esse caminho na afirmação da identidade. Segundo Ollebar, Malaak teria visitado
recentemente o Brasil e disse que “enquanto não conseguirmos identificarmos nossa
negritude, não saberemos quem é o real opressor” (CRUZ&MARTINS, 2018, p. 17). Ricardo
Ferreira (2000) elabora essa trajetória de afirmação identitária através de quatro estágios.
Segundo o autor, no primeiro momento há uma “internalização inconsciente de estereótipos
negativos sobre ser negro” (p. 71) e, portanto, a negação desse pertencimento:
238
Essa é uma fase descrita pelo autor como dolorosa e aflitiva, porque o mundo simbólico
desse indivíduo negro, crente no discurso da democracia racial, estaria sendo desarticulado.
Para sair dessa situação, ele precisa reelaborar essas experiências a partir de outro
referencial que lhe ofereça acolhimento. Nesse segundo estágio ainda não há, segundo
Ricardo Ferreira (2001), uma “articulação da identidade com valores negros”, mas uma
decisão: tornar-se. Isso distingue radicalmente negros de pele clara de brancos que, em geral,
239
pulam de uma identificação enquanto brancos, direto para uma afirmação mestiça/negra. Do
ponto de largada, onde a pessoa decide por tornar-se, até o ponto de chegada, onde ela
encontra uma condição confortável da sua autodeclaração, o caminho é pedregoso.
A Consciência Negra informa que, “ao procurar fugir de si mesmos e imitar o branco,
os negros estão insultando a inteligência de quem os criou negros” (SILVA, N., 2001, p. 35).
Nesse sentido, o movimento teria três prioridades:
O trecho que segue é da “Carta de uma ex-mulata [Ângela Figueiredo] a Judith Butler”
(2005). Ele conclui o nosso pensamento: “Tudo isso demonstra o quão complexa é a realidade
e que a atribuição de um único significado à identificação racial na construção da
personalidade precisa ser matizada” (p. 173), ainda que “a identificação racial [tenha] um
peso maior para aqueles que reconstroem suas experiências destacando a cor/raça em suas
trajetórias” (Ibid., op. cit.). Nossa pesquisa se insere num conjunto amplo de estudos que
tentam compreender os dilemas das experiências negras que têm, como nos mostra Ângela
Figueiredo (2005), mais de um século (Ibid., op. cit.). Du Bois (1999, p. 54 apud
FIGUEIREDO, 2005), por exemplo, elaborou isso em termos de uma dupla consciência, “[...]
duas almas, dois pensamentos, dois esforços irreconciliados; dois ideais que se combatem em
um corpo escuro cuja força obstinada unicamente impede que se destroce” (Ibid., op. cit.).
Traduzindo para nosso contexto, esse negro-pardo por um lado é negro, e por outro é mestiço.
240
Sua opção é, frequentemente, não tentar equilibrar as duas formas, mas destruir uma delas:
abrir mão do ser negro, envolvido pela ideologia do branqueamento; ou de outro modo, abrir
mão do ser mestiço, cujo ditado popular que bem representa essa negativa é: “pardo é cor de
papel”.
Como temos mostrado, a inclusão dos pardos ou dos negros de pele clara no que
entendemos ser a população negra brasileira, se deu a partir da reivindicação dos próprios
movimentos negros do país, com inspiração nos movimentos negros americanos
(MUNANGA, 1999). Usando a história sobre o registro de nascimento da sua filha, Sueli
Carneiro (2016) escreve o texto “Negros de pele clara”. Ele me serviu como inspiração
pessoal, há alguns anos atrás, e volta com peso nesse trabalho. É fantástica a forma como
Carneiro consegue antecipar questões que só vão se agudizar algum tempo depois. Resistindo
a tentação de copiá-lo na íntegra aqui, apresento, em suas palavras, a conclusão que faz em
defesa da autodeclaração negra por parte desses indivíduos claros. Assumir a posição de
“negros”, seria uma forma de romper com o discurso fundacional brasileiro, o mito da
democracia racial, e compor trincheiras de luta contra o racismo:
[...] no sentido proposto por Isabelle Stengers para a noção de “reclaim”: não
simplesmente lamentar o que se perdeu na nostalgia de um retorno a um
tempo passado, mas sim recuperar e conquistar ao mesmo tempo, “tornar-se
capaz de habitar de novo as zonas de experiência devastadas” (Pignarre &
Stengers 2005:185 apud Goldman, 2015, p. 656).
descoloração dos cabelos fosse uma forma branquear, me lembrou de que muitos homens
negros, retintos inclusive, como ele, nas comunidades periféricas, descolorem os cabelos “no
estilo loiro pivete”. O “loiro pivete” é uma tonalidade muito clara do amarelo, quase branco,
que os jovens negros usam sem a menor intenção de se parecerem brancos, usam como forma
de brincar com as possibilidades de ser. Eu lembro que, quando era mais nova, antes do
debate sobre a valorização estética negra alcançar essa temperatura, pensava em descolorir
meus cabelos, e isso era motivo de muita zombaria. “Loiro não combina com pele morena”.
Depois de passar pela transição capilar e de ganhar confiança na presença dos meus cabelos
crespos naturais na minha organização estética, me permiti descolori-los. Era uma forma de
exercer autonomia sobre minha própria imagem, e autonomia significa, dentre outras coisas,
transformá-la a gosto próprio. Essa é uma experiência estética narrada por Nilma Lino Gomes
(2006) nos salões étnicos de Belo Horizonte: “o uso de diversas tonalidades de cabelo, a
feitura dos mais variados penteados, inclusive aqueles que tradicionalmente não são
‘permitidos’ socialmente às pessoas negras, são reivindicados e experimentados” (p. 148).
Essa narrativa que desenvolvo em torno dos cabelos descoloridos de Chica, ou dos meus
próprios, servem como ilustração de práticas que buscam “habitar de novo as zonas de
experiências devastadas”, compondo-as com a diversidade de cores e formas.
Na tese “Entre o ‘encardido’, o ‘branco’ e o ‘branquíssimo’: Raça, hierarquia e poder na
construção da branquitude paulistana” de Lia Schucman (2012), há uma discussão sobre as
hierarquias presentes entre a branquitude paulista, “a aparência física ligada a variação entre
cor da pele, cor das mucosas e traços físicos, que incluem cabelo, nariz e boca, apareceu nas
falas dos entrevistados e em conversas informais diretamente associada a uma ideia de origem
e ancestralidade” (p. 84). Esse trecho, dentre outras coisas, nos informa como existe uma
rígida observância das fronteiras da branquitude, o que nos levanta uma questão importante:
se nem mesmo os brancos com traços físicos de mestiçagem ou de lugares de origem como o
nordeste, são brancos “legítimos”, como supor que negros de pele clara serão incluídos nesse
espaço restrito?
A questão para Gilroy (2007) é que “não sendo mais um locus para a afirmação da
subjetividade ou da autonomia, a identidade se transforma [em um muro]” (p. 130). Não são
os sujeitos que escolheram fazer isso consigo mesmo, mas o capital que, simbolizando o
próprio racismo através da globalização (na invertida de um racismo simbólico), compõe a
identidade-mercadoria pela ignição: transforma-a em uma arma. No nosso entendimento, essa
perspectiva é hiper-dilatada dentro dos discursos que opõem negros-pretos a negros-pardos.
O problema nas deslegitimações que envolvem os negros de pele clara em meios negros
se insere exatamente nesse problema:
96 “Talvez um dos exemplos mais brutais da venda do valor de certas identidades, sejam àqueles artifícios
estéticos utilizados para branquear a pele. A lista que segue é de países que consumiriam essa ideia e seus
respectivos produtos: Mexico, Pakistan, Saudi Arabia, Jamaica, the Philippines, Japan, India, Tanzania, Senegal,
Nigeria, Uganda, Kenya, Ghana, and less so, but also USA” (Charles 2003; Chisholm apud HUNTER, 2007, p.
12, tradução nossa).
244
Essa obra é útil, sobretudo, para pensarmos que os conflitos da identidade, entre o que
se é e o que se espera ser, não são novos na diáspora negra:
Nesse sentido, a identidade seria “um recurso cujo poder depende do contexto nacional
ou regional” (SANSONE, 2003, p. 12), de forma que “hoje em dia, as identidades negra,
muçulmana e indígena já não podem ser percebidas independentemente da globalização”
(Ibid., p. 15). Vamos lembrar que, fatores internacionais – além das lutas histórias dos
movimentos negros brasileiros – foram decisivos para a mudança da política brasileira no
discurso e prática sobre as relações raciais. Por exemplo, pelo menos até a década de 50, a
intelectualidade brasileira se envaidecia do país ter resolvido “pelo amor” o problema racial,
“comparativamente melhor” do que os Estados Unidos, cuja via foi o apartheid. Porém, com
a abolição do sistema de segregação racial e a criação de leis de inclusão da população negra
na década de 70 nos Estados Unidos, esse discurso não tinha mais fundamento. Até porque,
no mesmo período, crescem os estudos no Brasil que irão denunciar o racismo na constituição
da nossa formação nacional. Além disso, o contexto também é marcado pela descolonização
de países asiáticos e africanos, e por isso, manter um discurso valorativo do branqueamento e
de omissão ao racismo, comprometeria as relações internacionais do Brasil com esses países
que já se impunham como nação (SKIDMORE, 1976).
Apesar disso, alguns autores conseguem visualizar um espaço aproveitado pelas
minorias dentro da globalização, para produzir enfrentamento. Sansone (2003), por exemplo,
mostra que dadas as trocas entre culturas locais, permitidas pelos avanços tecnológicos, “o
horizonte em que são construídas as estratégias de sobrevivência também se ampliou e se
internacionalizou” (p. 28-29). Além disso, como demonstra Margareth Hunter (2007), “a
globalização pode acabar sendo parte daquele lento e desigual, mas continuado,
descentramento do Ocidente” (tradução nossa, p. 97). É que, como disse Hall (2003), a
globalização é em si mesma contraditória: amplia um processo de homogeneização dada pela
“‘McDonald-ização’ ou ‘Nike-zação’ de tudo” (p. 45) e por outro lado, “vagarosa e
245
sutilmente” (Ibid., op. cit.) descentraliza “os modelos ocidentais, levando a uma disseminação
da diferença cultural em todo o globo” (Ibid., op. cit.). O Atlântico Negro, definido como um
espaço construído pela diáspora, “base desterritorializada, multíplice e antinacional para a
afinidade ou «identidade de paixões» entre diversas populações negras” (GILROY, 2007,
apud ALMEIDA, 2012, p. 34) teria se expandido, para o autor, pela própria globalização.
6.8 COLORISMO
Nesse texto, sua intenção era discutir a ascensão econômica dos mulatos na comunidade
negra americana. O trabalho é lançado em 2015 e a partir do ano seguinte, 2016, o colorismo
246
A ideia aqui, no entanto, não é a de que entre negros, quanto mais claro, mais
assimilado ao branco. Mas que, no interior da própria branquitude, traços que denotam
mestiçagem como cabelos cacheados, ou olhos pretos, afastam os brancos do ideal de
brancura. A pergunta que fizemos antes continua válida: se nem todos os bracos são brancos
legítimos, o que diremos de pardos-negros? No texto do Portal Geledés de Gabriele da Silva
(2020), há uma fala de Lia Schucman, segundo a qual existiriam distorções no conceito de
colorismo, porque “uma pessoa de pele mais clara pode ter mais oportunidades no mercado de
trabalho, e até mesmo no mercado afetivo. Mas isso é sobre oportunidades, e não sofrimento”
(SCHUCMAN, apud SILVA,G., 2020). A ideia é que os “processos de dominação” (Ibid.)
seriam os responsáveis pelo sofrimento, mas o colorismo estaria transferindo isso para a
quantidade de melanina da pele: “Ninguém sofre pela cor da pele, sofre no encontro com o
97
“Se você é negro, volte; se você é marrom, fique por aqui; se você é claro, está tudo bem” (tradução nossa).
247
98
"O que as mulheres negras estariam interessadas, eu acho, é uma conscientização maior por parte das mulheres
negras claras de que elas são capazes, muitas vezes inconscientemente, de infligir dor a elas; e que, a menos que
a questão do colorismo - na minha definição tratamento preconceituoso ou preferencial de pessoas da mesma
raça com base apenas em sua cor - seja abordado em nossas comunidades e, definitivamente, em nossas
‘irmandades’ negras, não podemos, como povo, progredir, pois o colorismo, como colonialismo, sexismo e
racismo, nos impede” (tradição nossa).
248
Margareth Hunter (2007), que reproduzo logo a seguir, e que me fez pensar: para qual
aparência esses privilégios se dispõem?
Esse trecho é muito importante, porque possivelmente os atores que para Hunter (2007)
“parecem brancos” de fato o são para nós. A autora está inserida num contexto em que a gota
de sangue negro racializa um indivíduo. Nesse sentido, o “lightskin” americano pode ser o
nosso branco aqui, ele não é sempre o marrom-claro/pardo que chamamos de negros de pele
clara.
Interessante observar que algumas pesquisas brasileiras mostram níveis de consciência
racial relativamente altos entre negros da classe média, possivelmente porque, estando em
pequeno número e sem poder mobilizar o argumento da discriminação de classe, sem veem
sofrendo preconceito num meio de maioria branca com médio/alto poder aquisitivo, como ele
próprio. Isso é o que Edward Telles (2003) chama de discriminação vertical. No Brasil,
muitas lideranças políticas e intelectuais negras também têm pele clara, aqui, ela não é sinal
imediato de baixa consciência racial. O colorismo, no entanto, coloca para as comunidades
racializadas, uma contradição fundamental: por um lado a cor clara é sinal de ilegitimidade,
inautenticidade e assimilação. Por outro, seria o motivo do sucesso desses indivíduos.
Quando falamos repetidamente sobre o mito da democracia racial para tratar do
colorismo, é porque consideramos que sua estrutura ainda não foi derrubada, existem
escombros dessa ideia que ainda abrigam argumentos e ideologias políticas que reaparecem
ao longo da história. Chauí (2000) define o mito “no sentido antropológico, no qual essa
narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram
caminhos para serem resolvidos no nível da realidade” (sem paginação). É isso que faz o
colorismo quando aumenta a lente para as desigualdades internas da população negra, e
minimiza os efeitos do racismo para o grupo em geral. Tal perspectiva nos ajuda a pensar
nessa relação com o passado, porque, sendo um mito fundacional, “impõe um vínculo interno
com o passado como origem, isto é, com um passado que não cessa nunca, que se conserva
perenemente presente e, por isso mesmo, não permite o trabalho da diferença temporal e da
compreensão do presente enquanto tal” (Ibid.). Aqui também vimos as marcas do colorismo
quando, se apegando à narrativa dos mestiços enquanto herdeiros bastardos dos senhores
249
brancos, deixam de observar, tal como argumenta Kabengele (1999), que essa é a população
que fundamentalmente ocupa as cadeias e as favelas das cidades. Chauí (2000) amarra, a
essas definições, outra concepção que vem da psicanálise: mito como “impulso à repetição de
algo imaginário, que cria um bloqueio à percepção da realidade e impede lidar com ela”
(Ibid.). O mito fundador “não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas
linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto
mais é a repetição de si mesmo” (Ibid.), e aqui o colorismo é novamente, o seu exemplo
perfeito. Levando em consideração o mito de democracia racial como um imaginário social
amplamente apropriado pela sociedade, o colorismo parece fazer muito sentido dentro dessa
lógica que admite, ainda que parcialmente, o legado de Gilberto Freyre. Com isso refiro-me a
ideias como a ausência de discriminação contra os pardos, e sua suposta colocação
privilegiada dentro da estrutura social, já suficientemente discutidas nesse trabalho.
Reler os clássicos foi uma tarefa interessante. Observei que muitas coisas que são ditas
hoje, em referência a esses autores, estão distorcidas, e que muitas das atuais questões já
foram respondidas há alguns anos. Parte do meu trabalho aqui é, precisamente, rearticular
essas respostas. Bastide e Fernandes (1959), por exemplo, na década de 50, elaboravam a
discriminação racial em dois níveis: da cor e da raça, algo muito semelhante com a pesquisa
de Hunter (2007) que acabamos de apresentar. Segundo eles, “o preconceito de côr e a
discriminação racial se completavam, como processos de preservação da ordem social
escravocrata” (BASTIDE&FERNANDES, 1959, p. 113). O preconceito de cor informava a
necessidade da conservação da família branca – que evitava casamentos inter-raciais ainda
que tolaressa o estupro. Informava também diferentes técnicas como o uso de chapéus que
impedissem que a cor fosse bronzeada, produzindo “efeitos que implicavam na defesa da
integridade social das ‘raças’ dominantes” (Ibid. op. cit). O preconceito de raça, por sua vez,
“produzia efeitos que asseguravam a continuidade da dominação senhoreal sôbre as ‘raças’
reduzidas à escravidão” (Ibid. op. cit).
250
Talvez a omissão que fala a autora, seja responsável pelo cenário de tensões que está
colocado pela ideologia do privilégio pardo, pelo colorismo, e pelas trocas de acusações de
“afroconviência”. O livro de Eneida Reis (2002) “Mulato: negro-não-negro e/ou branco-não-
branco” é uma obra importante, irá tratar sobre as dubiedades inseridas na posição racial do
“mulato”, esse texto, assim como o “Tornar-se negro” de Neusa Santos (1983), cuja
personagem principal é uma mulher mestiça-negra, são valiosos e negligenciados do nosso
pensamento. Na introdução da obra de Reis (2002), Kabengele Munanga comenta que ela
seria “o único livro do gênero que aponta as peripécias e dificuldades vividas pelos indivíduos
mestiços de brancos e negros, os pejorativamente chamados ‘Mulatos’, no processo de
construção de sua identidade coletiva e individual.” (p. 21). E mesmo assim, impopular.
251
Ângela Figueiredo (2012) faz defesa, a partir de Giddens, de que o pertencimento racial seja
levado em consideração junto com outros dos seus pertencimentos, interações ou escolhas:
Essa matização das experiências negras brasileiras nos ajudaria a pensar, de maneira
própria, o colorismo a partir do Brasil. Esse esforço é histórico e importante, vale a pena
pensar:
Vamos começar esse último momento do texto com uma imagem de Cuti (2010) sobre
o que é a colonização:
Um assaltante que invade a sua casa com armas possantes, mata familiares
seus, estupra, transmite doença, rouba seus pertencentes, faz você trabalhar
para ele, obedecer às suas ordens, esse assaltante pode, se ele for fisicamente
diferente de você, atribuir a essas diferenças a superioridade em relação a
você, acreditar nisso e fazer até você crer nos argumentos dele, e ele pode
também escrever livros e mais livros, produzir filmes e mais filmes, e
ensinar para gerações e gerações, por vários meios, que você é inferior e ele
é superior a você por conta das diferenças fenotípicas (p. 2).
Analisando que a mestiçagem não foi uma prática tão largamente desenvolvida nos
países africanos de colonização portuguesa, Tadei (2002) conclui que ela não deve ser tomada
como uma disposição própria do português em “misturar-se”, como queria Gilberto Freyre,
sua função estava engatilhada por uma estratégia de dominação. Tadei (2002) também
compreende a miscigenação como um dispositivo e defino-o como:
guinada para fora do círculo de controle começou a ser dada pela iniciativa das organizações
negras, onde:
O autor mostra que, além de “resolver o problema negro”, o mestiço serviu como a
mão-de-obra livre necessária para a manutenção de regime, cuja empregabilidade é mais uma
forma exemplar da gestão das relações raciais no país. Também a igreja viu nesse grupo um
modo de moralizar a raça, já que ele estaria num nível intermediário, abaixo do branco
(virtude), porém mais avançado que o negro (africano, mau). Pinho (2004) fala ainda que o
mestiço era uma forma de controlar os escravizados e evitar “a vingança” que tanto temia a
casa grande. Ele fazia isso tanto por representar uma fissura num ideal de fraternidade entre
negros escravizados, quanto exercendo funções próximas ao mundo branco, a de capitão do
mato, por exemplo. Eis um resumo do autor sobre esse dispositivo:
Nosso ponto é que, o colorismo estaria fazendo com que os avanços políticos negros
retrocedessem: coloca para dentro do discurso dos movimentos negros o mito da democracia
racial. É que, conforme já demonstramos longamente, colorismo e democracia racial têm algo
em comum: afirmar o privilégio mestiço. O colorismo toma o mito como fato. Esse
movimento retira (ou invalida, deslegitima) pessoas negras de pele clara da população negra,
colocando-as, mais uma vez, no limbo ou no vazio identitário estratégico do dispositivo:
o intento de manipular nossa identidade nacional, que está ainda sempre por
se fazer (Ibid., p.110).
O colorismo, que manobra a legitimidade dos negros de pele clara, é uma estratégia de
poder do dispositivo da mestiçagem. Os indivíduos que “tornam-se negros” constroem sua
identidade racial acionada por uma percepção de violação fundamental da dignidade, o
racismo, em seguida, são obrigados, em nome do colorismo, a redirecionar essa identidade
para uma compreensão e assimilação de privilégio: isso é um curto-circuito conceitual que
efetivamente não produz avanços políticos, mas neutraliza forças. Nossa proposição, que
estamos chamando aqui de anti-colorismo, é que esse conceito migre para outro lugar, aquele
que informa que a experiência social dos indivíduos é diversa, porque também são diversos os
marcadores de diferença, sejam eles de tonalidade, ou de pertencimento de classe, identidade
de gênero ou orientação sexual. Não existe razão para que se coloque, de modo tão
desproporcional, o colorismo como fator chave da diferença interna do grupo: o privilégio
pardo não ressoa em indicadores sociais concretos. Ao tornar-me negra, sinto que cumpri o
meu devir histórico trilhado por outras mulheres negras antes de mim. Nesse momento, estou
cumprindo outro: propor uma contribuição teórica que ajude a solucionar questões tensas
dentro do campo das nossas relações políticas.
O colorismo é comumente conhecido como o espectro de cor da população negra, que
dividiria internamente esse grupo politica e socialmente, promovendo uma gradação de
privilégios inversamente proporcional ao teor de melanina, e uma intensidade de
discriminação diretamente proporcional à quantidade desta. Seu conceito é transportado sem
ressalvas dos Estados Unidos pra cá. Aqui, aderido sem nenhum constrangimento, funciona
como subproduto do mito da democracia racial, que opera na criação da verdade absoluta
sobre os privilégios raciais acumulados pela população negra de pele clara, inclusive dentro
dos discursos de intelectuais dos movimentos sociais negros. Esse conceito retroalimenta o
mito da democracia racial ao concordar que houve inclusão de parcela dos negros à sociedade
brasileira, através de uma política privada de miscigenação, quando, na verdade, as vantagens
pontuais desse segmento negro só podem ser observadas levando em conta a
intersecsionalidade dos indivíduos e as configurações do contexto. A excelente receptividade
do conceito no país, nos faz pensar que seu uso tem uma funcionalidade. A experiência que
acumulamos nesse trabalho nos dá condições de propor que o colorismo é um expediente
racista, que agencia a mentalidade de senso comum sobre a inclusão dos pardos,
desafricanizados ou desenegrescidos pela condição de mestiços, na sociedade brasileira, ao
mesmo tempo em que controla essa população em posições de desvantagem econômica e
255
CONSIDERAÇÕES FINAIS
levantada pelo colorismo, se refere ao privilégio pardo, ele parece ser central para pensar a
posição desse grupo no benefício das políticas afirmativas e sua própria construção de
identidade. Isso porque, ao ser essencialmente oposto à experiência de racialização, deter
privilégio supõe ilegitimidade no pertencimento negro. Indicadores sociais, como citados na
Introdução desse trabalho, foram utilizados como o argumento principal para que pardos se
somassem aos pretos, na constituição da população negra brasileira desde a década de 70.
Recorremos novamente a eles na contra-argumentação dessa ideia de privilégio - entendido
aqui como uma posição de vantagem na estrutura social e que se restringe à branquitude.
Nossos interlocutores darão conta de mostrar que existem campos em que se manifestam
vantagens para os membros mais claros da população negra, como no mercado matrimonial
ou na grande mídia, sem que isso represente benefícios estruturais detectáveis pelos
indicadores sociais. Usamos, contudo, essas considerações finais, para reforçar a necessidade
de que novos estudos se desenvolvam na observação da extensão e dos modos em que essas
possíveis desigualdades entre pretos e pardos se manifestem no Brasil, assim como já existe
nos Estados Unidos uma extensa tradição de pesquisas que levam em consideração o
colorismo.
A perspectiva defendida nesse trabalho, que toma o nome de anti-colorismo, é a de que
o conceito seja uma ferramenta para pensar as diferentes formas de racialização no interior da
população negra, que acionará pertencimentos e características diversas, como a identidade de
gênero ou a orientação sexual, e cuja tonalidade da pele será um desses distintivos
importantes. Neste sentido, pensamos que esse trabalho, ao trazer as narrativas de pessoas
autodeclaradas negras, de pele clara, destacando as experiências de heteroidentificação que
são submetidos, seja informalmente nas suas vidas cotidianas, seja no acesso às políticas
afirmativas, colabora para a contextualização do colorismo e sua formulação conceitual a
partir de Salvador, a cidade mais negra fora do continente africano. Ela permite também uma
atualização nos estudos sobre mestiçagem no Brasil, levando em consideração o colorismo e
seus derivados.
Esse trabalho também se compromete em preencher uma lacuna já dita por outros
pesquisadores, a respeito das matizações das experiências negras, tradicionalmente tomadas
em sua relação com o Estado ou com o outro, o branco, em uma relação de desigualdade
(hierarquia de poder). Ainda que esse texto atualize problemáticas antigas, sobre os
significados da miscigenação no Brasil, foi interessante observar como algumas dessas
questões já estavam antecipadas na literatura clássica dos estudos étnico-raciais, mesmo que,
aparentemente, tenham caído no esquecimento.
259
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