Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
CURSO DE DIREITO
MIRELA DAMACENA
Araputanga, MT
2021
2
MIRELA DAMACENA
Araputanga, MT
2021
3
MIRELA DAMACENA
Este Trabalho de Conclusão de Curso foi julgado adequado para obtenção do grau de
Bacharel em Direito e aprovado em sua forma final pela Coordenação do Curso de Direito, da
Faculdade Católica Rainha da Paz de Araputanga/MT.
COMISSÃO EXAMINADORA
Mirela Damacena 1
Edson Benedito Rondon Filho2
RESUMO
O presente artigo pretende demonstrar como as instituições que integram o sistema punitivo brasileiro atuam,
tornando-o seletivo, deslegitimando seu discurso garantista, sob a perspectiva da teoria do labelling approach.
Para tanto se faz necessário entender que o sistema penal visto como ferramenta para a solução da criminalidade
não passa de uma ideia simplista. Ele funciona como um filtro para a manutenção da organização social,
privilegiando as classes elitizadas e perseguindo as classes baixas. Seu objetivo nunca foi suprimir as práticas
delituosas e sim estabelecer uma forma de gerir as ilicitudes criadas pela lei, operando o social de cima. Segundo
esta teoria, o crime é uma construção social, na qual a sociedade irá criar suas regras e selecionar quais
indivíduos deverão ser responsabilizados. Assim, é a reação da sociedade frente a uma determinada conduta que
a configura como criminosa. Para aportar tais observações, utilizou-se uma abordagem qualitativa de pesquisa
subsidiado por pesquisa bibliográfica e pelo método compreensivo.
Palavras-chave: Sistema penal brasileiro. Política criminal. Seletividade. Estigmatização. Labelling Approach.
ABSTRACT
This article intends to demonstrate how the institutions that make up the Brazilian punitive system act, making it
selective, delegitimizing its guaranteeist discourse, from the perspective of the labelling approach theory.
Therefore, it is necessary to understand that the penal system seen as a tool for solving crime is just a simplistic
idea. It works as a filter for the maintenance of social organization, privileging the elite classes and persecuting
the lower classes. Its objective was never to suppress criminal practices, but to establish a way to manage the
illegalities created by the law, operating the social from above. According to this theory, crime is a social
construction, in which society will create its rules and select which individuals should be held responsible. Thus,
it is society's reaction to a certain conduct that makes it criminal. To provide such observations, a qualitative
research approach was used, supported by bibliographical research and by the comprehensive method.
Keywords: Brazilian penal system. Criminal policy. Selectivity. Stigmatization. Labelling Approach.
1
Acadêmica do curso de Direito da Faculdade Católica Rainha da Paz (FCARP), Araputanga, Mato Grosso.
Artigo apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso.
2
Pós-Doutorado junto ao Departamento de Letras Modernas do Instituto de Biociências, Letras e Ciências
Exatas da Universidade Estadual Júlio Mesquita Filho (IBILCE/UNESP), na modalidade III (PD-III) (2020).
Doutor em Sociologia pelo PPGS/UFRGS, na linha de Violência, Criminalização, Cidadania e Direito com
estágio doutoral (sanduíche) junto ao Centre de Recherche Sociologique sur le Droit et les Institutions Pénales
(CESDIP) / França (2013). Mestre em Educação (IE/ UFMT - 2008). Especialista em Inteligência de Segurança
Pública pela FAECC - UFMT (2008). Especialista em Gestão de Segurança Pública pela FAECC- UFMT
(2003). Bacharel em Ciências Sociais (UFMT - 2010). Bacharel em Direito pela UFMT (2001). Graduado no
Curso de Formação de Oficiais pela Academia de Polícia Militar do Estado de Goiás (1994). Docente
colaborador do Mestrado em Sociologia do PPGS/ UFMT. Membro do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania
(GPVC) da UFRGS. Membro do Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais e Educação (GPMSE) do Instituto
de Educação (IE) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Membro do Núcleo Interinstitucional de
Estudos da Violência e Cidadania (NIEVCI) da UFMT. Sócio Fundador do Instituto Brasileiro de Segurança
Pública (IBSP). Associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Associado do Instituto Histórico e
Geográfico de Mato Grosso (IHGMT). Professor do curso de Direito da Faculdade Católica Rainha da Paz
(FCARP).
5
1 INTRODUÇÃO
Esse quadro nos conduz às seguintes questões: Qual a relação da Teoria do Labelling
Approach com a lógica punitiva moderna e a legitimidade do sistema penal? Como atua o
sistema penal brasileiro? Ocorre a seletividade penal no sistema punitivo brasileiro?
Logo, cumpre à presente pesquisa demonstrar como as instituições que integram o
sistema punitivo brasileiro atua, tornando-o seletivo, deslegitimando seu discurso garantista,
sob a perspectiva da teoria do labelling approach, contribuindo para o enriquecimento do
debate acadêmico e busca de propostas viáveis para transformação dessa realidade.
A abordagem da pesquisa é qualitativa, pois, “preocupa-se, com aspectos da realidade
que não podem ser quantificados, centrando-se na compreensão e explicação da dinâmica das
relações sociais”, tendo por característica o empirismo e a subjetividade. Os pesquisadores
que adotam esta abordagem são contrários à ideia de um modelo único de pesquisa a ser
utilizado para todas ciências (GERHARDT; SILVEIRA, 2009, p. 32). A coleta de dados se
funda na pesquisa bibliográfica que abrange toda a bibliografia já publicada disponível sobre
o tema a ser tratado, com o objetivo de deixar o pesquisador em contato direito com tudo o
que já foi explanado sobre o assunto (MARCONI; LAKATOS, 2018). O método de análise é
o compreensivo que busca uma profunda compreensão do fenômeno observado. Neste
método, lança-se mão de uma análise da realidade a partir de tipos ideais, “que representam
esquemas conceituais, nos quais são exacerbadas certas características do fenômeno concreto,
para permitir a comparação com a realidade empírica de modo mais objetivo e científico”
(TOMAZETTE, 2021, p. 01)
O artigo está estruturado em 03 (três) seções. A primeira seção abordará sobre a lógica
punitiva moderna, o sistema penal brasileiro e sua legitimidade, esmiuçando sobre os órgãos
que compõem esse sistema e demonstrando a falácia no discurso apresentado por ele para
justificar sua violência institucionalizada.
A segunda seção está destinada a tratar sobre a Política Criminal, sua definição,
aplicação e sua importância no enfrentamento da criminalidade.
A terceira e última seção cuida do tema central deste artigo ao abordar sobre a
seletividade do sistema penal e a Teoria do Labelling Appoach, demonstrando que tal
seletividade opera através de duas fases de criminalização (primária e secundária), realizadas
pelas instâncias formais de controle, que selecionam indivíduos das classes mais baixas,
conferindo a eles rótulos e estigmas.
7
Essa ânsia por uma punição mais rigorosa é observada em países fortemente atingidos
pela desigualdade, precarização de trabalho, desemprego, dificuldade de acesso aos serviços
básicos, onde ainda não houve uma total consolidação da democracia, ou esta ainda se faz de
forma precária, o que reverbera na ineficiência das instituições (KILDUFF, 2010).
Essa é a realidade observada no Brasil, que devido a sua herança histórica marcada por
sua subordinação econômica ante as grandes economias mundiais e pelo enriquecimento em
3
Em uma perspectiva jurídica, pode-se conceituar minoria como grupo de vulneráveis que sofrem dominação,
discriminação e/ou intolerância em detrimento a um grupo de maior poder, conforme Carmo (2016).
8
Essa violência institucionalizada como meio de punição, utilizada pelo Estado para
concretizar seu monopólio, tendo como principal ferramenta o Direito Penal, se mostra
essencial para estruturar a ordem cívica e política, punindo o indivíduo que atua de modo
desviante e atenta contra o modelo social estabelecido, restando claro o desrespeito às
garantias constitucionais.
Ademais, observa-se que o sistema penal desempenha cada vez mais um papel
simbólico e ilusório, vez que não tem condições de cumprir com as demandas que lhe são
impostas. Lança-se mão de mudanças legislativas que inflam o sistema, aumentando
desproporcionalmente o número de penas e o encarceramento, para dar a falsa impressão de
que o Estado está agindo, sem se preocupar com sua eficácia instrumental (SANTOS, 2014).
Para Pastana (2012) são os mecanismos econômicos e políticos os responsáveis por
determinar os processos de criminalização e penalização, com o objetivo de defender os
interesses da classe dominante, valendo-se do encarceramento, mesmo que em contrapartida
não haja a diminuição dos índices da criminalidade. Segundo a autora, o encarceramento das
classes populares, em sua grande maioria por crimes contra o patrimônio e comércio de
entorpecentes, é a forma que o Estado opera para desviar a atenção dos crimes contra a ordem
econômica e financeira praticada pela elite política.
Entende-se, pois, que o sistema penal não é uno e indivisível, e sim um agrupamento
de órgãos que atuam formalmente e que se dividem em seguimentos que operam a
criminalização ou que convergem em sua produção. Batista (2007) afirma que estas
instituições atuam em diferentes estágios, sendo as mais relevantes no estudo da atividade
punitiva estatal a instituições policial, judiciária e penitenciária ou executória.
O poder legislativo se ocupa da criminalização primária, pois irá eleger qual bem
jurídico será tutelado e quais condutas serão tipificas como ilícito penal. Apresenta um caráter
programático que anuncia um dever-ser (ANDRADE, 2003), assim, deve estar inserido no
centro no sistema punitivo.
A polícia cuida da segurança pública tutelando direitos individuais, tais como direito a
vida, a liberdade e a propriedade. Desempenha um papel preventivo e um repressivo frente à
criminalidade, visando preservar e restaurar a ordem jurídica4 e a paz social5 (SILVA, 2006).
Segundo aponta Lazzarini (1999), a atividade desempenhada é que qualifica a polícia
como sendo preventiva ou repressiva. Cabe à polícia militar estadual a atividade preventiva,
atuando ostensivamente a fim de evitar a criminalidade, conforme disposto no artigo 144, §
5º, primeira parte, da Constituição Federal de 1988 (CF/88), in verbis: “Às polícias militares
cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública”. A atividade repressiva é
exercida pela polícia judiciária, que desempenha seu papel voltado à persecução penal, nos
ditames das normas processuais penais, apurando os ilícitos cometidos, nos termos no art.
144, § 4º, da CF/88, in verbis: “Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de
carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a
apuração de infrações penais, exceto as militares” (BRASIL, 1988).
Após colhidos os elementos e convicção sobre a materialidade e autoria delitiva pela
polícia judiciária, o inquérito policial é remetido ao Ministério Público, que é o ente
incumbido de movimentar a ação penal pública, e, responsável também pela defesa da ordem
jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, como
preceitua os arts. 127 e 129, da CF/88 (BRASIL, 1988).
4
Segundo Castro (1967, p. 111) “A ordem jurídica, portanto, compõe-se de princípios gerais implícitos e de
disposições particulares, de regras, de normas, de conceitos, oficiais, ou oficializados, dependentes entre si,
como partes solidárias de um todo específico. Como ordem é a reta disposição das coisas, conservando cada qual
o lugar que lhe compete, também é chamada sistema jurídico, porque é sempre conjunto organizado,
sistematização; não um amontoado de disposições”.
5
Nas palavras de Marcondes (2017): “Paz social é a aplicação filosófica e sociológica para a definição do
conceito vital de paz, podendo ser classificada como a convivência harmônica entre pessoas, mesmo com as
inúmeras diferenças presentes em uma comunidade miscigenada. [...] um governo que tem seus alicerces
fundados no conceito de paz social, é aquele que exerce o poder de forma bilateral, comedida e respeitando os
direitos dos cidadãos”.
10
Oferecida a denúncia pelo ente ministerial (art. 24, do Código de Processo Penal),
poderá esta ser recebida pelo juízo, iniciando um procedimento previsto no Código de
Processo Penal, assegurando o devido processo legal, respeitando o contraditório e a ampla
defesa, que poderá culminar em uma sentença criminal condenatória. A execução da pena
imposta pelo magistrado, independente do regime instituído, obedecerá a Lei de Execução
Penal (BATISTA, 2007).
Importante mencionar também o controle social informal exercido pelo público, que
operacionaliza seu próprio sistema, fundado em valores e normas que decorrem da
socialização e que julgam a conduta de cada indivíduo como aceitável ou não.
O sistema punitivo pode agir com cunho político, seja naquilo que não é tipificado
como crime ou naquilo que não é perseguido concretamente pelo Estado. Por óbvio, é
inimaginável que o Estado apresente tamanha efetividade a ponto de punir todos os delitos
existentes, como também foge da realidade uma sociedade sem nenhum desvio (LEMOS,
2015). Também se vale da norma penal no intuito de dissuadir comportamentos desviantes,
tidos como delituosos, como uma forma de prevenção. Ocorre que o indivíduo não deixa de
praticar o crime por saber que existem normas proibitivas, ele simplesmente comete porquê
tem ou não motivação para tanto. Acreditar na legitimidade das leis penais como prevenção
da criminalidade é um mito, uma utopia, vez que os legisladores atuam a serviço dos grupos
econômicos que os patrocinam (QUEIROZ, 2008).
Para Durkheim (1999), ainda que os criminosos deixassem de praticar atos típicos,
ilícitos e culpáveis, ou seja, penalmente recrimináveis, ainda assim o crime não desapareceria,
ele simplesmente mudaria de forma. Os mesmos fatores que esgotariam as fontes da
criminalidade, tratariam de abrir novas portas para novos delitos.
Logo, a crença depositada no sistema penal como solução e no fim da impunidade
como remédio, não passa de uma ideia simplista que nega ser o sistema punitivo uma
ferramenta incontestavelmente política. Um mero filtro com a função estrutural para a
organização social. Se assim não fosse como explicar a cifra oculta dos crimes econômicos 6
em comparação aos índices exorbitantes aos crimes das classes sociais mais baixas.
Privilegia-se as classes poderosas e perseguem as classes baixas e perigosas. O objetivo nunca
6
Diferente da cifra negra da criminalidade, que se refere a parcela de crimes que, apesar de ocorrerem com
frequência, não chegam ao conhecimento dos órgãos de persecução penal, a cifra dourada diz respeito à crimes
socioeconômicos onde o índice de criminalidade destoa do conhecido pelo Estado, devido a fatores de ordem
social e de natureza jurídico-formal (CARDOSO, 2016). Segundo Cabette (2007), a cifra dourada representa os
crimes cometidos pela classe privilegiada, como é o caso do crime de colarinho branco, praticados pelo poder
político e econômico em proveito próprio e em prejuízo da sociedade. O registro de tais crimes raramente
acontece, impossibilitando sua punição. Os crimes que compõe a cifra dourada são aqueles contra o meio
ambiente, o sistema econômico e financeiro, a ordem tributária, entre outros.
11
foi suprimir as práticas delituosas e sim estabelecer uma forma de gerir as ilicitudes criadas
pela lei, operando o social de cima (LEMOS, 2015).
7
Expressão em latim que significa primeira razão. “O Direito Penal só deve ser aplicado quando estritamente
necessário, de modo que a sua intervenção fica condicionada ao fracasso das demais esferas de controle,
observando apenas os casos de relevante lesão ou perigo de lesão ao bem juridicamente tutelado” (CUNHA,
2019, p. 77). Assim, utilizar o Direito Penal como prima ratio, é utilizá-lo como primeira opção.
8
Sob a ótica Marxista, trata-se das relações de distribuição oriundas das relações de produção. Marx, quando se
referia às classes sociais as distinguiam em três grandes classes, sendo elas a dos trabalhadores assalariados, a
dos capitalistas e a dos proprietários fundiários, conforme os ensinamentos de Haddad (1997).
12
Zaffaroni (2001) afirma que a atuação do sistema penal em nada se assemelha com o
que é trazido nos discursos jurídicos-penais. O autor aponta que a criação das normas se
baseia em uma realidade inexistente e que os órgãos que deveriam colocar em prática esta
normatização, atuam de forma completamente distinta, pois “os órgãos do sistema penal
exercem seu poder para controlar um marco social cujo signo é a morte em massa” (p. 13).
Tal afirmação está diretamente ligada a forma como o sistema punitivo se
operacionaliza, fundado em altos níveis de violência. O Estado usa de violência
(institucionalizada) para combater a violência praticada pelo delinquente, justificando sua
legitimidade no dever de punir uma agressão que é proibida pelo ordenamento jurídico.
Assim, a pena e o crime se assemelham por serem uma manifestação de violência.
Conforme descrito por Streck (1999) deve haver uma rediscussão sobre a legitimidade
do direito penal9 como ferramenta do sistema punitivo, adaptando-o ao modelo proposto pelo
Estado Democrático de Direito, como sendo a ultima ratio10, além de descriminalizar
inúmeras condutas que são incompatíveis a este modelo. Deve-se abandonar o formato de
punição massiva como condição de legitimidade, reservando seus poderes para os delitos que
verdadeiramente atingem os valores da sociedade, visando a redução das desigualdades.
O sistema punitivo deve buscar fundamento nos direitos e garantias constitucionais,
primando pelo princípio da dignidade da pessoa humana, para que aqueles que cometem um
delito sejam punidos de forma justa e não discriminatória.
3 POLÍTICA CRIMINAL
A política criminal é uma disciplina que oferece aos poderes públicos as opções
científicas concretas mais adequadas para controle do crime, de tal forma a servir de
ponte eficaz entre o direito penal e a criminologia, facilitando a recepção das
investigações empíricas e sua eventual transformação em preceitos normativos.
Assim, a criminologia fornece o substrato empírico do sistema, seu fundamento
científico. A política criminal, por seu turno, incumbe-se de transformar a
experiência criminológica em opções e estratégias concretas assumíveis pelo
legislador e pelos poderes públicos.
Pode ser definida ainda como sendo um conjunto de princípios e recomendações para
a reforma ou transformação da legislação penal e dos órgãos que integram o sistema punitivo,
encarregados de sua aplicação. Ela se desdobra nas diversas etapas que compõe o sistema
punitivo, assim, “poderemos falar em política de segurança pública (ênfase na instituição
policial), política judiciaria (ênfase na instituição judicial) e política penitenciaria (ênfase na
instituição prisional)” (BATISTA, 2007, p. 34).
A política criminal teve sua perspectiva ampliada nas últimas décadas, passando a
abarcar não apenas as questões atinentes à repressão da criminalidade, mas também os
procedimentos e as estratégias utilizadas pela sociedade no combate do fenômeno criminal,
bem como, procedimento de reparação e mediação. Cabe, pois, a política criminal, discutir a
legitimidade (ou não) da intervenção penal e os limites de sua aplicação, propondo estratégias
para o enfrentamento da criminalidade (HAUSER, 2010).
A aplicação em concreto das políticas criminais dependerá das questões por ela
tratada, seja com ênfase na segurança pública e prevenção de crimes, seja no processo de
criminalização e suas consequências. Dessa forma, poderá adotar um viés mais repressivo ou,
até mesmo, um viés mais humanitário, se preocupando, por exemplo, com a ressocialização
do criminoso (VERAS, 2016).
Hauser (2010), ao mencionar Alessandro Baratta, afirma que o instrumento menos
adequado a ser utilizado pela política criminal é o Direito Penal, devido a violência estrutural
resultante desta forma de controle. Deve-se, para tanto, se valer de outros instrumentos para o
enfrentamento do crime, como o uso da política social voltada para sua prevenção e controle.
No Brasil, questões relacionadas à política criminal parecem não ser prioridade. A
população se vê em meio a índices de criminalidade que aumentam exponencialmente, e para
tanto, são lhes apresentadas medidas penais, para que tenham a ilusória sensação de
tranquilidade. O que acontece em verdade é que o Direito Penal se tornou valiosa ferramenta
para o legislador, com efeito eleitoreiro, assumindo uma função representativa, que destoa da
14
Da mesma forma, percebe-se que, por trás de funções declaradas do sistema penal
de manutenção da paz social, ou da tutela de bens jurídicos eleitos socialmente,
existe uma função sua não declarada, qual seja a de sustentar a hegemonia de um
setor social sobre o outro. Constata-se, portanto, uma falsidade no discurso do
controle penal.
poder punitivo desempenhado pelo Estado, com o objetivo de proteger a sociedade do crime
(KILDUFF, 2010).
Outrossim, o sistema penal cria e mantém uma profunda desigualdade social, pois
representa apenas uma parte dos interesses coletivos, a dos privilegiados socialmente. Esse
sistema de controle social punitivo é incapaz de prevenir o crime. Não há promoção à justiça
quando o sistema se torna seletivo, perseguindo apenas determinados grupos sociais (SOUZA,
2016).
Como bem apontam Chai e Costa (2016, p. 86) a respeito do sistema penal:
O sistema penal está intimamente ligado ao universo do sistema social, que influencia
diretamente o senso comum, como por exemplo, através da mídia, estereotipando o indivíduo
delinquente.
Ademais, o indivíduo que é levado a cárcere privado devido a suposto desvio de
conduta, sofrerá marcas pelo tempo em razão de sua liberdade cerceada e, em maior escala,
sofrerá com os julgamentos impiedosos de uma sociedade elitista. Desse modo, encerra-se a
pena privativa de liberdade e inicia-se uma luta na tentativa de ressocialização em meio aos
preconceitos e etiquetamentos, como bem demonstra a Teoria do Labelling Approach
(BEZERRA; HAAS; LEITE, 2016).
Resumidamente, o crime é definido não pela conduta desviante do agente, mas sim
pelo que as instâncias de controle assim o definem. Tais tipificações atribuídas pelo Estado,
visa o controle social, marginalizando uma parcela da sociedade que atrapalham o progresso.
Assim, nem todos os crimes sofrem punição estatal, mas somente parte deles que são
cometidos pela classe social mais baixa.
As evidências de que o Direito Penal tutela com mais rigor o patrimônio privado,
ainda que o objeto do crime apresente valor ínfimo, do que o direito à vida ou à integridade
física, buscando coibir com mais tenacidade as condutas praticadas por aqueles que já são
socialmente excluídos estão nas disposições normativas penais. Basta a mera comparação
entre a pena prevista no crime de furto simples (art. 155, caput, do Código Penal) com a pena
prevista no crime de lesão corporal (art. 129, caput, do Código Penal). Aquele prevê uma
pena de 01 (um) a 04 (quatro) anos de reclusão e multa, enquanto este prevê pena de 03 (três)
meses a 01 (ano) de detenção (BRASIL, 1940). Assim, pune-se com maior rigor o indivíduo
que furta três embalagens de desodorante de um mercado, do que aquele que ofende a
integridade corporal de outrem.
Conforme aponta Zaffaroni e Pierangeli (2011, p.61):
como um membro da sociedade. Tal teoria analisa as situações onde este indivíduo passa a ser
considerado um desviante. Este desvio e a criminalidade passam a ser consideradas uma
etiqueta (SILVA, 2015).
11
Segundo Viana (2015, p. 167), a Escola de Chicago “[...] deriva da explosão urbana na cidade de Chicago e da
criação do primeiro departamento de sociologia do mundo na Universidade de Chicago. [...] Dentro da
perspectiva da Escola de Chicago, a compreensão do crime sistematiza-se a partir da observação de que a gênese
delitiva relacionava-se diretamente com o conglomerado urbano que, muitas vezes, estruturava-se de modo
desordenado e radial, o que favorecia a decomposição da solidariedade das estruturas sociais. Não por outra
razão, seus teóricos desenvolviam uma “sociologia da grande cidade””.
12
Para Goumma (2012, p. 10), “a criminologia tradicional estuda as causas do crime e as formas de prevenção.
Ela enfatiza que simplesmente pelo fato de existirem normas, sendo estas compostas por um consenso de toda a
sociedade, comportamentos destoantes de tais normas devem ser punidos. Concentra-se em estudar apenas os
fatores que levaram o indivíduo a comentar tal conduta ilícita, e não se importa com possíveis soluções para tal
prática”.
18
Surge, neste contexto, o termo “desvio social”, que se refere a ação desviada daquilo
que é tido como correto numa dada comunidade. Este desvio e a criminalidade passam a ser
considerados como uma etiqueta, atribuídos aos indivíduos marginalizados, que após
delinquirem, são excluídos do grupo social, tornando-se vítima do preconceito dentro do
sistema penal e fora dele (BEZERRA; HAAS; LEITE, 2016).
Ainda conforme descrito por Araújo, a teoria do etiquetamento coloca em três níveis o
problema da definição da criminalidade, sendo eles, “a investigação do processo de definição
da conduta desviada, a atribuição do status de criminoso e o impacto desta na identidade
desviante” (2010, p.79).
Segundo esta teoria, o crime é uma construção social, na qual a sociedade irá criar suas
regras e selecionar quais indivíduos deverão ser responsabilizados. Assim, é a reação da
sociedade frente a uma determinada conduta que a configura como criminosa. A seletividade
irá criminalizar preferencialmente o indivíduo que já possui algum fator estigmatizante
(LIMA, 2016).
A forma como a sociedade e as instituições reagem frente a uma conduta desviante
independe da natureza do delito. O etiquetamento é um reflexo direto de uma sociedade
controladora que seleciona o que e quem será punido, em benefício de interesses próprios,
estigmatizando indivíduos e contribuindo para o aumento da desigualdade social.
Os indivíduos que ingressam no sistema penal dificilmente conseguem se
ressocializar, “pois se encontram inseridos em cadeias de adversidades e acumulação de
desvantagens” (CARDOSO, 2016, p.27). O etiquetamento irá trazer dificuldades para que o
desviante se reinsira na sociedade, fazendo com que volte a delinquir.
A grande questão aqui levantada é por que certas condutas são consideradas crimes em
detrimento a outras e por que determinadas pessoas são tidas como criminosas e outras não.
Observa-se um processo de criminalização que se dá a partir do estereótipo do criminoso. Não
é o comportamento em si do indivíduo que irá caracterizá-lo como desviante ou normal, mas
somente o modo como este comportamento é interpretado. O crime só é crime, porque alguém
assim determinou (SOUZA, 2016).
19
A forma desigual na qual opera o sistema punitivo na busca pelo controle social,
perpetuando a desigualdade substancial entre os indivíduos, definindo-os como desviantes, se
manifesta mediante uma dupla seleção, que se materializa em dois níveis distintos, um
abstrato e outro concreto (OLIVEIRA; CONTIJO, 2017).
A seleção de quais bens jurídicos serão tutelados pelo Estado e quais condutas deverão
ser criminalizadas se dá de forma abstrata. É nesse momento que opera a criminalização
primária, onde o legislador irá decidir quais tipos penais irão integrar o ordenamento jurídico.
Trata-se de um conteúdo programático que dependerá de outras instâncias para sua efetivação.
É nessa fase que se inicia o processo seletivo que é contrário ao discurso legitimador da
função da lei, que, em tese, deveria representar os interesses da sociedade na busca de um
bem comum (COSTA, 2017). Ocorre que, o legislador, quando da elaboração da lei penal,
baseia-se em suas concepções e interesses pessoais, deixando de priorizar o que de fato
importa para que haja uma sociedade harmônica e igualitária.
Basta uma rápida análise nos dados disponíveis no site do Infopen, referentes a dezembro de
2019, onde 66,69% (sessenta e seis vírgula sessenta e nove porcento) dos encarcerados eram
pretos ou pardos e aproximadamente 50% (cinquenta porcento) não haviam concluído o
ensino fundamental (DEPEN, 2020).
Face ao exposto, resta evidente que os indivíduos comumente atingidos pelo sistema
penal são aqueles socialmente vulneráveis, não por estarem mais propensos a delinquirem,
mas sim por terem maiores chances de serem etiquetados pelas agências de controle.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
do delinquente, bem como os estigmas por ele carregado. Para a labelling, a sociedade e as
instituições que compõe o sistema punitivo são a base do processo de criminalização. São eles
que escolhem quais condutas devem ser punidas e quais indivíduos serão responsabilizados
por atos desviantes. É a reação social que faz com que uma determinada conduta passe a ser
definida como crime.
Conclui-se que, o sistema penal é uma ferramenta valiosa para o Estado, com o
objetivo de gerenciar a miséria e excluir da sociedade os marginalizados para a manutenção
do poder dos elitizados, sem se preocupar com as consequências que o rótulo e o estigma
trarão para a vida do desviante.
23
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BATISTA, Nilo. Instrução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro,
Revan, 2007.
BEZERRA, Edson Alves; HAAS, Rosangela Londero; LEITE, Caio Fernando Gianini.
Labelling Approuch ou a Teoria do Etiquetamento. 2016. Disponível em:
<http://site.ajes.edu.br/encontro/arquivos/20160821080928.pdf>. Acesso em: 26 set. 2020.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial. vol. 1. 26. ed.
São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
COSTA, Aélia Camila Alves. O mito do direito penal igualitário: uma análise da
seletividade do sistema criminal brasileiro. 2017. 60 f. Monografia (Bacharelado em
Direito) – Fundação Universidade Federal de Rondônia, Cacoal, 2017. Disponível em:
<https://www.ri.unir.br/jspui/bitstream/123456789/2264/1/A%c3%89LIA%20CAMILA
%20ALVES%20DA%20COSTA.pdf>. Acesso em: 27 ago. 2021.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 7. ed. Salvador:
JusPODIVM, 2019.
DURKHEIM, Émili. As regras do método sociológico. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
1999.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 27.
ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999 – e-book.
25
HADDAD, Fernando. Trabalho e classes sociais. Tempo Social. Rev. Sociol. USP, São
Paulo, p. 97-123, out. 1997. Disponível em:
<https://www.scielo.br/j/ts/a/WBXRd49XQvz4YKq5b3tFXWz/?format=pdf&lang=pt>.
Acesso em: 30 ago. 2021.
HAUSER, Ester Eliana. Política Criminal. 2010. 104 f. UNIJUÍ – Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, DEJ – Departamento de Estudos Jurídicos. Rio
Grande do Sul, 2010. Disponível em:
<https://bibliodigital.unijui.edu.br:8443/xmlui/bitstream/handle/123456789/2752/Pol
%C3%ADtica%20Criminal.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 24 ago. 2021.
KAZMIERCZAK, Luiz Fernando. Sistema penal como espelho social. Anais do XIX
Encontro Nacional do CONPEDI, Fortaleza, p. 995-1008, jun. 2010. Disponível em:
<http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3307.pdf >
Acesso em: 28 jul. 2021.
LEMOS, Clécio. Seletividade estrutural: Sistema punitivo e seu cerne político. Rev.
Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, vol. 3, n. 1, maio. 2015. Disponível em:
<https://revistas.unilasalle.edu.br/index.php/redes/article/view/2102/1351>. Acesso em: 26
set. 2020.
26
LIMA, Ana Claudia. Seletividade do sistema penal brasileiro: uma análise da sua
estruturação social e política. 2016. 79 f. Monografia (Bacharelado em Direito) – Escola de
Direito da Faculdade Meridional, Passo Fundo, 2016. Disponível em:
<https://www.imed.edu.br/Uploads/AlumniReunions/ANA%>. Acesso em: 27 ago. 2021.
MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Técnicas de pesquisa. 8. ed. São
Paulo: Atlas, 2018.
MARTINELLI. João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schimitt de. Lições fundamentais de
direito penal: parte geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: parte geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris,
2008.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 8. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2020 – e-book.
27
SILVA, Margarida Bittencourt; MARTINS, Leonardo Pereira; SANTOS, Nivaldo dos, et. al.
Estado Democrático de Direito e legitimidade do direito de punir. IX Encontro Latino
Americano de Iniciação Científica e V Encontro Latino Americano de Pós-Graduação,
Universidade do Vale do Paraíba, São José dos Campos, p. 801-804. 2007. Disponível em:
<https://biblioteca.univap.br/dados/INIC/cd/inic/IC6%20anais/IC6-51.PDF>. Acesso em: 04
ago. 2021.
SILVA, Raíssa Zago Leite de. Labelling Approach: o etiquetamento social relacionado à
seletividade do sistema penal e ao ciclo da criminalização. Rev. Liberdades, Brasil, n. 18,
p.101-109, jan/abr. 2015. Disponível em: <
http://revistaliberdades.org.br/_upload/pdf/23/Liberdades18_Artigo5.pdf>. Acesso em: 25 set.
2020.
SOUZA, Kelly Ribeiro Felix de. O sistema penal como instrumento de controle social: o
papel da pena privativa de liberdade. Criminologias e política criminal. Organização
CONPEDI/UFMG/ FUMEC/Dom Helder Câmara; coordenadores: Gustavo Noronha de
Avila, Marilia Montenegro Pessoa De Mello, Tulio Lima Vianna. Florianópolis, CONPEDI,
p. 389-405. 2015. Disponível em:
<http://conpedi.danilolr.info/publicacoes/66fsl345/z4c7xib8/g3Z6XbDQrfUyUgMA.pdf>.
Acesso em: 04 ago. 2021.
SOUZA, Thais Diniz Coelho de. Seletividade racial do sistema penal brasileiro: origem,
mecanismos de manutenção e sua relação com a vulnerabilidade por culpabilidade.
Cadernos do CEAS, Salvador, n. 238, p. 611-626. 2016. Disponível em:
<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4302225/mod_resource/content/1/Seletividade
%20racial%20do%20sistema%20penal%20brasileiro.pdf>. Acesso em: 26 set. 2020.
VERAS, Rayanna Pala. Política criminal e criminologia humanista. 2016. 192 f. Tese
(Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.
Disponível em: <http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/
doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/Ryanna-Pala-Veras-Pol
%C3%ADtica-criminal-criminologia-humanista.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2021.