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ANAIS
FORTALEZA
JULHO 2018
2
HISTÓRIA PÚBLICA E
DEMOCRACIA
ANAIS
Universidade Federal do
Ceará 24 a 27 de julho de 2018
Apoio:
3
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 7
Palestras
Ensino de História da África e História Pública: uma perspectiva comparada 9
Idalina Maria Almeida de Feitas
Cultura e política nas narrativas de Alejo Carpentier: poética da história e debate 23
latinoamericanista
Nuno Gonçalves Pereira
Artigos
Mundos do trabalho e trabalho nos engenhos de cachaça artesanal no município de Alcântaras 36
Adelina Lopes Guimarão e Telma Bessa Sales
Fazeres educativos em DST/AIDS: experiências e perspectivas das mulheres de Guiné-Bissau 50
estudantes da UNILAB
Adriana Nívia Girão Lima
Os Intelectuais do Instituto do Ceará e a contribuição documental para a História, a Memória e 64
o Esquecimento dos Povos Nativos
Ana Alice Miranda Menescal
“Campo” e “Cidade”: perspectivas entre o ficar e sair de jovens da comunidade d eCurrais II – 81
Ce
André Victor da Silva Oliveira
Formação de Professores para o ensino de História Afro-Brasileira: perspectivas de aplicação 97
da Lei 10.639/2003 na Educação Básica
Antonia Valdenia de Araújo
A participação indígena na formação social do Ceará Colonial: um debate sobre Ensino de 106
História e Historiografia
Antonio Edgley Furtado Sousa e Raimundo Nonato Rodrigues de Souza
Entre a economia e a distinção: a crise econômica e social brasileira nas publicidades da 116
Revista Veja (1979-1989)
Beneângelo Soares Chagas
Dançando coco no Cariri cearense: trânsitos migratórios e fluxos culturais 126
Camila Mota Farias
Fake News, Memes e o Ensino de História 135
Cicero Anderson de Almeida Bezerra
Fé e transformação social: a contribuição da Igreja Católica cearense para a consolidação do 146
Partido dos Trabalhadoes (1982-1986)
Ciro Alcântara de Araújo e Ilka Alcântara de Araújo
A Seca e a Peste: adoecimentos e saúde pública no Ceará durante a seca de 1877-1879 155
Daniel dos Santos Carneiro
Vislumbrando estrelas: estudo sobre a Tradição Oral e Memória na Ordem de Penitentes 165
Irmãos da Cruz de Barbalha
David de Lima Damasceno
História, Memória e Abolição: a construção histórica do município de Redenção/Ce nos 177
arquivos particulares de Ladeísse Silveira
Ester Araújo Lima da Silva, Leonardo da Silva Leal e Willian Franco de Almeida
Apresentando Christopher Dawson para brasileiros 187
Francisca Jaquelini de Souza Viração
Um terceiro olho desvenda Cronos: Júlio de Mesquita Filho e “O roteiro da Revolução” 196
Francisco Adriano Leal Macêdo e Marylu Alves de Oliveira
Ofício de Professor no final do século XIX: queixas e vigilância 210
Francisco Júlio Sousa Ferreira
A cidade, a terra e o jogo social: a atuação de intendentes e outros funcionários da Intendência 221
de Natal na gestão e no uso do patrimônio fundiário municipal
Gabriela Fernandes de Siqueira
5
“Eu sou ela, Lilith, concubina da escuridão, primeira criminosa e auxiliadora dos demônios”: o 235
imaginário da bruxa no Martelo das Feiticeiras (século XV)
Gabrielle Abreu dos Santos e Gleudson Passos Cardoso
“O jangadeiro das Letras cearense”: Domingos Olímpio, o escritor, a obra e os espaços de 245
escrita
Igor Emanoel Ramos Barroso
A Meruoca indígena na escrita da História do Ceará (séculos XVII e XVIII) 259
Jaiana Kelly Rodrigues Alcântara e Mariana Albuquerque Dantas
Incursões pelos Sertões: Naturalistas, Escravos e Indígenas no Piauí e no Maranhão do final 273
do século XVIII
Janayne de Moura Ferreira e Mairton Celestino da Silva
Entre o Sagrado e o Profano: um olhar sobre a Festa de Santa Maçalina em São Mateus do 285
Maranhão na contemporaneidade
Jean Carlos Silva Cunha
Pesquisa em base de dados: analisando perspectivas do Ensino de História Indígena 299
Joilson Silva de Sousa
A historiografia sobre a Seca no Ceará: sujeitos, fontes e abordagens 311
Kércia Andressa Vitoriano Gonçalves, Welligton Costa Borges e Francisco Gleison da
Costa Monteiro
Os resíduos medievais culturais e literários nos poemas de Patativa do Assaré 323
Larissa Araújo Almeida
“A história ao ar livre”. Monumentos estatuários e o Ensino de História em Praça Pública 333
Liesly Oliveira Barbosa
Das vassouras aos ramos: estudo das práticas curativas e médicas do medievo para a 346
modernidade
Maria Deiziane Lino e Tito Barros Leal
“A escrita da História”: Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil 356
Maria Isadora Leite Lima e Sônia Menezes
“Pelas várzeas do Rio Jaguaribe”: a empresa União Cearense e a construção de um Ceará 366
moderno
Maria Leopoldina Dantas Máximo e Ana Isabel Ribeiro Parente Cortez Reis
Ocupação e distribuição de sesmarias nos rios Groaíras, Jacurutu e Macaco no século XVIII 381
Maria Malena Paiva Mesquita e Raimundo Nonato Rodrigues de Souza
História Local e Memória: a Ditadura Militar e suas implicações no interior cearense 392
Maria Terla Silva Carneiro dos Santos
A resistência solidária dos trabalhadores portuários de Fortaleza (1912-1933) 402
Nágila Maia de M. Galvão
A abordagem da Lei 1.645 de 2008 no livro didático: por que aplica-la de forma efetiva no 416
ensino básico?
Paulo Ênio de Sousa Melo e Mariana Albuquerque Dantas
Biblioteca do Seminário da Prainha: um olhar sobre o livro e a leitura no Ceará provincial 429
(1864-1889)
Rafaela Gomes Lima
Cristianismo e as artes liberais 439
Raimundo Yuri Gomes Avelino e Francisca Jaquelini De Souza Viração
Os Flagelados e a Hospedaria Getúlio Vargas: fome, doenças, saques e revolta (1943-1960). 449
Renata Felipe Monteiro
De Jorge Amado a Nelson Pereira dos Santos: identidade nacional e miscigenação na literatura 458
e no cinema brasileiro (1960-1980).
Romario de Moura Rocha e Fábio Leonardo Castelo Branco Brito
A ficção histórica de José Eduardo Agualsa: possibilidades na compreensão da história 473
angolana
Welligton Costa Borges e Kércia Andressa Vitoriano Goncalves e Fábio Leonardo
Castelo Branco Brito
6
Intelectuais subalternos e o poder: uma análisedas das trajetórias de Mário Pinto de Andrade e 484
de Amílcar Cabral nas lutas de libertação nacional em Angola e Guiné-Bissau nos anos de
1960-1970.
Wendel Damasceno Oliveira
7
APRESENTAÇÃO
Atenciosamente,
Diretoria ANPUH-CE gestão 2016-2018.
9
PALESTRA
Ensino de História da África e História Pública: uma perspectiva comparada.
1
Universidade Internacional da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira Campus dos Malês/Bahia.
2
Como salienta Rusen, a narrativa é a face material da consciência histórica. Neste contexto, a narrativa é
entendida como a forma usual da produção historiográfica, que pode emanar de escolas diversas. Pela análise de
uma narrativa histórica ganha-se acesso ao modo como seu autor concebe o passado e utiliza as suas fontes, bem
como aos tipos de significância e sentidos de mudança que atribuí à história. In Significados do Pensamento de
Jorn Rusen para investigações na área da educação histórica. SCHUMIDT, Maria Auxiliadora, BARCA, Isabel,
GARCIA, Tania. Curitiba: ed. UFPR, 2011. pp.12
10
civilização dos “indígenas”3. No caso das colônias portuguesas em África, apesar de ser
utilizada como instrumento de segregação e dominação, a educação foi mecanismo central
dos movimentos de luta anticolonial. No decorrer dos processos de independência, tornar-se-
ia ferramenta de construção de identidades nacionais, e, nesse contexto, o ensino de História
seria essencial.
Tem-se como objetivo nesse texto, por meio da experiência do Ensino de História em
Moçambique, promover uma reflexão acerca de manuais escolares produzidos pós
reformulação na década de 1990 pelo governo moçambicano, em articulação com narrativas
de práticas docentes de dois professores de história4. As narrativas expõem experiências de
ensino, o que por sua vez nos permite tanto a análise das estruturas de ensino, quanto
provocar primeiras reflexões em torno de temas em comum com os saberes ensinados no
Brasil produzidos pelos manuais escolares e percebidos na prática docente.
Em Moçambique a educação pode ser descrita em três momentos: educação
tradicional, colonial e pós-independência. Destinada aos “indígenas”, esses compunham
grande parte da população, o ensino passou a ser condição para a elevação à categoria de
assimilados (africano civilizado):
“o ensino indígena tem por fim conduzir gradualmente o indígena da vida selvagem
para a vida civilizada, formar-lhe a consciência de cidadão português e prepará-lo
para a luta da vida, tornando-o mais útil à sociedade e à si próprio”7.
3
Estatuto dos indígenas portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique. José Carlos Ney Ferreira e
Vasco Soares da Veiga, Lisboa, 1957.
4
Entrevistas com professores moçambicanos Cecília Avelino e Noé José na cidade de Maputo, Moçambique,
2015.
5
Estatuto dos indígenas portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique. José Carlos Ney Ferreira e
Vasco Soares da Veiga, Lisboa, 1957.pp.13
6
Idem.
7
Biblioteca Nacional de Moçambique. Organização do ensino indígena na colónia de Moçambique. Governo
Geral de Lourenço Marques. Referência: CDU37–37-316/R 1316, pp. 5-6.
14
“O livro cumpre o seu valor como instrumento de reflexão para uma historicidade
do pensamento político moçambicano/africano, mantendo a actualidade de tópicos
sobre a constituição da moçambicanidade, da libertação e da emancipação dos
moçambicanos no quadro do sistema-mundo(...)A Colecção “Nosso Chão”
preparou a terra, trouxe o adubo, as alfaias, a “previsão metereológica” cabendo,
pois, ao leitor encontrar a forma mais engenhosa de fazer medrar as riquezas de
Modlane, como figura histórica e sobretudo como ensaísta, nos propõe outras
colheitas de novos saberes a desvendar...”10
8
A Frente de Libertação de Moçambique, FRELIMO, é um partido político oficialmente fundado em 25 de
Junho de 1962, com o objetivo de lutar pela independência de Moçambique do domínio colonial português.
9
BASÍLIO, Guilherme. O estado e a escola na construção da identidade política moçambicana. Tese de
Doutorado em Educação-Currículo, São Paulo: PUC, 2010.
10
MODLANE, Eduardo. Lutar por Moçambique, Maputo: Colecção Nosso Chão, 1995. Pósfácio de
Alexandrino José, pp. 172-173.
15
11
A Universidade Pedagógica é uma instituição pública de ensino superior, mantida pelo governo de
Moçambique. Como universidade, foi a primeira e é a única pública totalmente vocacionada para a formação de
professores no país.
12
Entrevista Cecília Avelino.
13
Idem.
14
Idem.
16
Tomando por base a sua prática o professor também afirma “fazer os cruzamentos de
outras fontes, de acordo com as abordagens dos livros”, relata que os manuais não
aprofundam muito e alerta que há muito trabalho de pesquisa que precisa ser realizado a
“partir da própria Àfrica”, utiliza as obras do historiador Joseph Ki Zerbo em suas aulas e
destaca a importância da pesquisa histórica e da historiografia na produção dos saberes
ensinados em História. Ainda sobre os manuais didáticos, os relatos informam que o governo
distribui até a 7° classe, levando muitos professores a utilizarem materiais e manuais variados,
não necessariamente da mesma coleção ou editora, podem ser vários tipos de livros. Porém
mesmo com a escassez nesses níveis de ensino de manuais didáticos, os mesmos quando
disponíveis são seguidos nas aulas, os docentes julgam o livro uma base importante e
acrescenta o uso de “textos de apoio”.
Em relação à conteúdos que façam alguma menção ao Brasil, o professor destaca que
na 9° classe se fala sobre o Brasil na dinâmica do “comércio triangular”, realça a narrativa do
continente africano como fonte de mão de obra escrava para as Américas e inclui o Brasil.
Nos manuais pesquisados podemos perceber o que sobressai na fala do professor:
15
Entrevista Noé José.
16
Idem.
17
Na 11° e 12° classes, segundo ele, volta-se a se falar mais sobre a escravatura, o que
na sua experiência estabelece conexão com o tema das relações raciais, tema complexo e
cheio de nuances no contexto africano, ele diz que “o moçambicano conhece muito o
Brasil”18. José Noé retoma a questão da escravidão para falar do Brasil, sobretudo quando
ressalta os Prazos no conteúdo de História, em dois manuais diferentes encontramos as
seguintes definições para a dinâmica portuguesa no contexto colonial em África:
A questão dos Prazos é abordada pela historiografia com ênfase nos estudos africanos
e destaca que o Conselho Ultramarino era instituição que tutelava o processo de concessão de
terras sesmariadas no Brasil e que a legislação pensada para o Prazos em Moçambique adotou
as mesmas normas legais20.
Compreende-se o “ensinado” como um espaço-tempo composto por múltiplas forças 21.
Nesse sentido vale destacar que aliado aos professores, a dinâmica de produção didática
adquire lugar de valor nesse processo, assim como a historiografia produzida em espaços
17
Livro História 9° classe – Salvador Agostinho Sumbane, Capítulo – Formação do Sistema Capitalista Mundial
(séculos XV – XVIII), 2008, Texto Editores Ltda. pp. 19
18
Entrevista Noé José.
19
Livro História 12° classe – Carlos Musa – Capítulo - Os estados de Moçambique e a Penetração Mercantil
Estrangeira, 2008, Texto Editores, Ltda. pp. 59; Livro História de Moçambique, de África e Universal. Manual
de Preparação para o Ensino Superior. 10° à 12° classes, Dionísio Calisto Recama, Plural editores, 2006.
20
RODRIGUES, Eugênia. As donas de prazos do Zambeze. Políticas imperiais e estratégias locais. In
RODRIGUES, Eugénia, Portugueses e Africanos nos Rios de Sena. Os prazos da Coroa nos séculos XVII e
XVIII, Universidade Nova de Lisboa, Dissertação de Doutoramento em História, 2002.
21
AZEVEDO, Patrícia. A produção de sentido na História Ensinada e sua relação constitutiva com o tempo-
espaço. In Pesquisa em Ensino de História. Rio de Janeiro: Mauad, 2014.
18
22
Entrevista Cecília Avelino.
19
23
SOUZA, Marina de Mello. Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de História da África. In Revista
História Hoje, v. 1, p 17-28, 2012.
24
Entrevista Noé José.
25
BASÍLIO, Guilherme. O estado e a escola na construção da identidade política moçambicana. Tese de
Doutorado em Educação-Currículo, São Paulo: PUC, 2010.
20
Referências Bibliográficas
ALENCASTRO, Luis Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul
séculos XVI e XVII. Cia das Letras, 2000.
AZEVEDO, Patrícia. A produção de sentido na História Ensinada e sua relação constitutiva
com o tempo-espaço. In Pesquisa em Ensino de História. Rio de Janeiro: Mauad, 2014.
BASÍLIO, Guilherme. Os saberes locais e o novo currículo do ensino básico. Moçambique:
Universidade Pedagógica de Moçambique; São Paulo: PUC-SP, 2006. Dissertação.
BENOT, Yves. Ideologias das independências africanas. Luanda: INALD, 1968. Volumes I e
II.
BOAVIDA, Américo. Angola: cinco séculos de exploração portuguêsa. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1967.
BOXER, Charles. O Império Marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Cia das Letras,
2002.
BRUNSWIC, Etienne e HAJJAR, Habib. Planificação do desenvolvimento dos livros
escolares para o ensino primário na África: relatório de um seminário do IIPE. Paris:
IIPE/UNESCO, 1992. Disponível em:
http://unesdoc.unesco.org/images/0009/000919/091900poro.pdf.
21
PALESTRA
Cultura e política nas narrativas de Alejo Carpentier:
poética da história e debate latinoamericanista.
As ideias que, sucintamente, apresentarei aqui são parte dos resultados da tese de
doutorado “LAS CRÓNICAS DE LA REALIDAD MARAVILLOSA: LA ESTÉTICA DE
LA HISTÓRIA EN LAS NOVELAS DE ALEJO CARPENTIER”, defendida junto ao
programa de estudos latino-americanos da Unam, sob orientação da Dra. Begoña Pulido
Herráez.
A referida tese buscou percorrer, os romances históricos de Alejo Carpentier, tentando
identificar as transformações e permanências das idéias de revolução e América latina nessas
obras. Ao problematizar as transformações e as contradições entre as diferentes concepções de
história que regem as composições dos romances históricos de Carpentier nos guiamos pelas
seguintes questões: Seria possível agrupar sob um único conceito de romance histórico essas
obras? Como se apresenta em cada uma delas a visão do autor sobre a cultura latino-
americana e qual a relação desta com a ação política? Quais as articulações que essas
narrativas estabelecem entre os tempos passado/presente/futuro e qual o lugar da revolução
como conceito modulador dessas articulações?
1
Doutor em Estudos Latino-americanos pela UNAM e professor da UFRB. A presente pesquisa contou com o
apoio financeiro do Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología da República dos Estados Unidos Mexicanos e
com a colaboração dos colegas do colegiado de história da UFRB que possibilitaram minha licença integral para
a realização da mesma: a ambos, minha gratidão.
24
A tese central que viemos desenvolvendo, nestes últimos anos em que nos debruçamos
sobre os romances históricos de Alejo Carpentier, poderia ser resumida da seguinte maneira:
existe uma solução de continuidade radical entre as representações da história que definem
estética e politicamente os romances históricos “O reino deste mundo” e “A consagração da
primavera”.
Posicionando-nos contra a visão teleológica, tão difundida por uma parcela importante
da extensa fortuna crítica do autor, que insiste na leitura que atribui aos anos de formação do
jovem Carpentier uma revolta embrionária que teria dado origem ao personagem
mundialmente conhecido do intelectual-embaixador da revolução cubana, viemos insistindo
na necessidade de historicizar a produção literária deste autor; procurando relacionar em cada
um de seus romances históricos: o tempo de escritura, o tempo da narrativa e o tempo utópico.
Para isso nos foram de fundamental importância a consulta de seu epistolário, a análise de
suas crônicas jornalísticas e a leitura minuciosa dos intelectuais que lhe eram
contemporâneos.
A idéia de revolução, central nos romances históricos de Alejo Carpentier por
estabelecer o salto hermenêutico que articula a estória particular narrada nos romances a uma
série de generalizações que permitiram a esse intelectual cubano intervir no debate
latinoamericanista do século XX, sofreu, ao longo das três décadas que separam a escritura
dos romances em questão, uma alteração qualitativa que, na nossa compreensão, de forma
alguma pode ser compreendida enquanto alteração quantitativa.
Enquanto no primeiro romance, O reino deste mundo, a revolução é pensada como um
processo de desdobramento das potencialidades da cultura que se caracteriza por manter em
aberto o horizonte de expectativas; no segundo caso, a revolução é representada como um
processo eminentemente político de instauração de uma nova forma social conduzida por uma
vanguarda política que anseia controlar o espaço de experiência e as dinâmicas culturais.
Essa passagem da idéia de revolução enquanto processo cultural conduzido por uma
eticidade à idéia de um processo político conduzido por uma moralidade; não pode, a nosso
ver, ser interpretada como um progresso, uma evolução, um aperfeiçoamento ou uma
clarificação do sistema conceitual e das motivações poéticas e políticas que levaram Alejo
Carpentier a manter sua eleição inicial pelo romance histórico como gênero adequado à
expressão de suas proposições latinoamericanistas.
Em nossa opinião – e essa é a tese que tentaremos demonstrar brevemente aqui –a
diferença substancial entre essas duas compreensões da idéia de revolução alteram
25
romance, essa tradição é a responsável por manter viva a dimensão utópica da existência, de
tornar visível no tempo presente aquilo que só existe como esperança, projeto, expectativa e
memória de um tempo futuro.
Nesse sentido, é que afirmamos que o latinoamericanismo de Carpentier em O reino
deste mundo parte de uma particularidade – o vodu é na realidade um círculo cultural estreito
e, razoavelmente, fechado no interior da totalidade cultural latino-americana e o processo
revolucionário haitiano se diferencia dos demais processos de independências latino-
americanas pela radicalidade com que enfrentou os temas da escravidão e do racismo
colonialista.
A trajetória do personagem Ti Noel é inversa ao processo que acostumamos a designar
como mestiçagem cultural e que serviu de base a mais de um dos tantos projetos de estado-
nação das nascentes republicas hispano-americanas. A iniciação de Ti Noel no universo da
santería haitiana e o abandono de sua cosmovisão mestiça lhe levam a assumir um
compromisso político com a causa revolucionária. Sua reinserção identitária na tradição afro-
americana é indissociável de seu engajamento na luta revolucionária e o ápice de sua
decepção com o mundo mestiço se dá quando durante o processo revolucionário Ti Noel se
depara com a república dos mulatos.
Já em A consagração da primavera, a cultura afro-americana surge quando a bailarina
Vera, de origem russa, decide utilizar dançarinos afroamericanos no seu projeto de montagem
do ballet de Stravinski sobre as origens míticas da nação eslava. Através desses dançarinos,
Alejo Carpentier define uma dupla relação entre a cultura e a revolução: do ponto de vista
estético eles revolucionam o ballet com seus movimentos corporais e, do ponto de vista
político, por manterem laços orgânicos com os grupos urbanos que mantinham viva a luta
clandestina contra a ditadura de Fulgêncio Batista; laços esses que terminam por arrasar o
sonho apolítico de Vera e lhe arrastar definitivamente pelos caminhos da revolução.
Sem dúvidas, nesses dois casos, ao contrário do romance O reino deste mundo, se
pode perceber um elogio do fenômeno da mestiçagem. Seja pela postura vanguardista de
utilizar dançarinos da santería com o intuito de aportar inovações estéticas e revolucionar
uma arte tradicional como o ballet, ou pelo vanguardismo da atuação política destes
personagens expondo-se a todos os riscos que essa decisão implicava.
Nos dois casos, ao contrário de Ti Noel, a trajetória dos personagens negros segue um
movimento que parte da cultura afro-cubana em direção ao universo da arte e dos grupos
universitários de contestação política: a sua constituição enquanto sujeitos históricos
27
pode extrair os elementos necessários para lograr seus próprios avanços e superações – de
maneira muito similar às propostas folcloristas e vanguardistas que Carpentier rechaçara em
sua denúncia dos artifícios surrealistas na década de 40.
No primeiro caso, encontramos a formulação de que a originalidade latino-americana
residiria na diversidade de experiências que permitiram a Carpentier, questionar o discurso
hegemônico que identificava as independências históricas como realização revolucionária e
utilizar o romance histórico para reinterpretar o passado e forjar um conceito de revolução. No
segundo caso, encontramos a formulação de que a originalidade latino-americana residiria na
realização de uma série de fusões culturais que terminariam por oferecer novas perspectivas
ao desenvolvimento da arte e da política sem, necessariamente, ter em consideração as lógicas
culturais intrínsecas a essas visões mágicas de mundo.
Paradoxalmente, à dissolução do maravilhoso corresponde o surgimento de uma
leitura unidimensional da história, convertida em narração que devora a alteridade e descrê de
sua potencialidade revolucionária. Seguindo a argumentação de Padura, defendemos que esse
movimento, que críticos tão importantes como o venezuelano Alexis Marques e tantos outros
definiram como sendo “la evolución filosófica de Carpentier”, era na verdade expressão
literária de uma guinada de orientação política radical no pensamento de Carpentier que ao
integrar-se tardiamente ao grupo que levara a cabo a revolução de 59 assumia para si uma
Nossa leitura de A consagração da primavera nos levou a concluir que nesse romance
o tempo histórico está organizado de maneira linear e progressista. Toda a tessitura das
memórias dos personagens, intrínsecas ao enredo, se revelam como artifícios literários
insuficientes para ocultar o sentido unidirecional e unidimensional que a história assume nesse
romance.
Os personagens protagonistas se deslocam no tempo e no espaço ao ritmo de um
metarrelato que concatena a série de revoluções retratadas na novela e que tem por desfecho e
ápice a própria revolução cubana. Existe uma ideia de história universal que funciona como
metarrelato ao determinar o sentido particular de cada acontecimento na trama e,
progressivamente, eliminar e homogeneizar a multiplicidade temporal que, em O reino deste
mundo, Carpentier demonstrara, magistralmente, ser uma característica singular do processo
histórico latino-americano.
Para concluir nossa breve comparação da poética da história nestes dois romances
gostaríamos de afirmar que nos dois casos algo se manteve intacto e resistiu à passagem do
tempo: a ideia de que o romance histórico se utiliza da interpretação do passado enquanto
recurso de expressão de uma tomada de posição política no tempo presente da escritura.
As diferenças que apontamos no caso dos romances aqui abordados, não devem
ocultar o fato de que, nos dois casos, a descrição dos acontecimentos históricos obedecia a um
sistema hermenêutico mais amplo que determinava o lugar e o sentido de cada acontecimento
dentro da narrativa literária. Esse procedimento foi o que permitiu a Alejo Carpentier extrair
dos sucessos particulares que narrava suas proposições gerais sobre latinoamérica.
Retomando os termos de Koselleck, podemos afirmar que enquanto em O reino deste
mundo o efeito pretendido pela representação literária da história era forjar um novo horizonte
de expectativas desde a reconstituição de um determinado espaço de experiência; no caso de A
consagração da primavera, Carpentier buscou tornar familiar uma nova e inusitada
experiência e utilizou a reconstrução literária da história como uma ferramenta que tornava
visível as possíveis sementes, origens e antecedentes dessa experiência.
Possivelmente, uma das dificuldades de Carpentier em encontrar soluções narrativas
adequadas ao tema que se propôs em A consagração da primavera, consistia na proximidade
temporal dos acontecimentos que elegera e na proximidade entre esses acontecimentos e sua
própria biografia; ainda mais problemático parece ter sido o fato de ter que reavaliar o
passado recente desde a perspectiva de um desenlace até pouco tempo inesperado para muitos,
inclusive para ele mesmo: a vitória revolucionária de 59 e a adesão ao socialismo em 61.
31
Este mito, aunque reforzado en los años 60 y 70 del siglo XX, como parte de una
legitimación discursiva de un poder revolucionario que se imaginaba eterno, surgió
en las últimas décadas del siglo XIX, dentro de la mentalidad de algunos caudillos
separatistas de la primera guerra (1868-1878), como Máximo Gómez y Antonio
Maceo, y, con especial fuerza retórica, dentro de la obra intelectual y política del
joven José Martí. Estos tres líderes independentistas organizaron una nueva guerra
en Cuba, la de 1885, en buena medida con el argumento de que la anterior, la de los
Diez Años, había sido frustrada por el Pacto de Zanjón, una transacción entre las
tropas rebeldes y el ejército colonial español que, en 1878, ofreció a los cubanos
amnistía y olvido del pasado, representación en las Cortes, derecho a constituir
partidos y ampliación de las libertades públicas. Martí, con su legendaria
elocuencia, dirá que en el Zanjón España asesinó la revolución cubana. (Rojas,
2006:61)
elaborar seu novo romance histórico utilizando uma hermenêutica do passado muito distinta a
que utilizara na arquitetura de O reino deste mundo.
A expectativa de uma revolução vitoriosa estava fora do horizonte compartilhado por
vários intelectuais cubanos remanescentes das intensas primeiras décadas do século XX,
inclusive para os integrantes da velha guarda do comunismo cubano. A frustração que se
sucedeu à queda de Gerardo Machado em 33 se agravaria com a ascensão de Fulgencio
Batista e o futuro parecia tão sombrio e previsível como nas décadas anteriores. Assim, a
vitória de 59 foi vivida por esses homens como uma nova experiência.
A supressão da distância entre horizonte e experiência ou, dizendo em outros termos,
entre utopia e história; apresentava aos intelectuais que vivenciavam essa nova situação o
desafio de abandonar a visão cíclica do tempo e reconstruir a imagem do tempo histórico.
Essa tarefa, no caso específico do romance histórico de Alejo Carpentier implicaria a
substituição de uma visão trágica da história por uma visão épica, fundada sobre uma
concepção teleológica do processo histórico. Passava-se assim do mito da revolução
inconclusa ao mito da revolução acabada.
A consagração da primavera, juntamente com Esse sol do mundo moral (de Cintio
Vitier) e Chover sobre o molhado (de Lisandro Otero) foram tentativas de construir respostas
intelectuais a essa situação. Parte importante dessas respostas consistia em introduzir a ideia
de progresso na representação do passado latino-americano. Talvez aí encontremos um último
vestígio do que, três décadas antes, havia sido o real maravilhoso de Carpentier: transformar
um fato insólito (a ascensão ao poder dos guerrilheiros da Sierra Maestra) na culminação
lógica e necessária de um longo processo. Ainda mais complexa era a tarefa se pensarmos que
no lapso de tempo de um piscar de olhos a revolução nacionalista se assumira marxista-
leninista. Certamente não foi por casualidade que Carpentier decidiu concluir seu romance
com a vitória cubana da praia Girón: se realizava, assim, o telos, a promessa e a finalidade de
uma história concebida como evolução lógica de suas próprias origens.
A política cultural da revolução prevalecia assim sobre a cultura política
revolucionária. Ironicamente, Alejo Carpentier segue sendo mais reconhecido como o autor
de O reino deste mundo do que como o autor de A consagração da primavera – talvez o
pessimismo crítico e a fé romântica expressas na poética da história daquele romance nos
ajudem a repensar os caminhos que trilhamos até esses tempos de realismo político, inércia
cultural e apatia social. Pessimismo e fé, beleza e desespero, como na iluminação final de Ti
Noel:
34
Ti Noel comprendió obscuramente que aquel repudio de los gansos era un castigo a
su cobardía. Mackandal se había disfrazado de animal, durante años, para servir a
los hombres, no para desertar del terreno de los hombres. En aquel momento;
vuelto a la condición humana, el anciano tuvo un supremo instante de lucidez. Vivió,
en el espacio de un púlpito, los momentos capitales de su vida; volvió a ver los
héroes que le habían revelado la fuerza y la abundancia de sus lejanos antepasados
del África, haciéndole creer en las posibles germinaciones del porvenir. Un
cansancio cósmico, de planeta cargado de piedras, caía sobre sus hombros
descarnados por tantos golpes, sudores y rebeldías. Ti Noel había gastado su
herencia y, a pesar de haber llegado a la última miseria, dejaba la misma herencia
recibida. Era un cuerpo de carne transcurrida. Y comprendía, ahora, que el hombre
nunca sabe para quién padece y espera. Padece y espera y trabaja para gentes que
nunca conocerá, y que a su vez padecerán y esperarán y trabajarán para otros que
tampoco serán felices, pues el hombre ansía siempre una felicidad situada más allá
de la porción que le es otorgada. Pero la grandeza del hombre está precisamente en
querer mejorar lo que es. En imponerse Tareas. En el Reino de los Cielos no hay
grandeza que conquistar, puesto que allá todo es jerarquía establecida, incógnita
despejada, existir sin término, imposibilidad de sacrificio, reposo y deleite. Por ello,
agobiado de penas y Tareas, hermoso dentro de su miseria, capaz de amar en medio
de las plagas, el hombre sólo puede hallar su grandeza, su máxima medida en El
Reino de este Mundo. (Carpentier, 2004: 196-197)
Bibliografia
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35
VITIER, Cintio. Ese sol del mundo moral: para una historia de la eticidad cubana. México:
Siglo XXI Editores, 1975.
36
Resumo: Esta produção objetiva-se abordar sobre o Mundo do Trabalho, e de forma mais
específica o trabalho nos engenhos de cachaça artesanal no município de Alcântaras,
localizado na região Norte do Estado do Ceará, tendo como base as experiências de
trabalhadores de engenhos, resgatadas nas memórias desses sujeitos por meio da metodologia
da história oral afim de conferir visibilidade aos trabalhadores através da análise das suas
ações enquanto sujeitos ativos na História por meio da escuta de suas memórias, analisando
seus hábitos, costumes, relações familiares, sua interação com o ambiente que ocupa, seu
convívio com os patrões e colegas de trabalho, as visões de mundo, o seu próprio fazer-se
histórico, o trabalho em si na fabricação da cachaça artesanal, e também ter um olhar voltado
para além dos muros dessas mini fábricas.
Palavras chave: Trabalho. Memória. Engenhos.
No que diz respeito aos limites cronológicos ocorreu uma ampliação nos anos 1990
com relação aos períodos precedentes. Por um lado, acabou a “divisão de
trabalho” informal entre historiadores e cientistas sociais, que deixava para estes
últimos tudo que dizia respeito ao pós-1945 ou, na melhor das hipóteses, ao pós-
1964. (BATALHA, 2006: 90)
Por meio desses avanços, percebemos que os estudos sobre trabalho ganharam forma e
força, e muitos foram os desafios enfrentados para que alcançassem seu devido espaço, pois, o
objeto, na sua maioria está voltado para aqueles indivíduos de classes inferiores, os
trabalhadores. Não só os trabalhadores da cidade, do ambiente fabril, dos movimentos
sindicais tiveram participação nessas pesquisas, as vivências como já foram tratadas aqui,
também apresenta uma parcela de importância para a pesquisa, é necessário hoje estudarmos
também o que acontece para além dos muros do ambiente de trabalho.
A respeito desse questionamento de desenvolver estudos com as vivências dos
trabalhadores (FENELON: 92 apud SALES, 2008:150-151) reafirma dizendo que:
Através desse olhar voltado para o que está intrínseco ao trabalhador, podemos ter
acesso as emoções, sua religiosidade, costumes, medos, as lutas enfrentadas por essas pessoas
em busca de uma vida digna através do trabalho, responsável pelo seu sustento e de sua
família, que afetam majoritariamente o seu comportamento frente as tarefas dentro do
ambiente de trabalho, e por meio desse contato torna-se possível elaborarmos pesquisas
enriquecedoras e com uma variabilidade de questionamentos e analises.
Voltando para a questão da trajetória da história do trabalho no Brasil, além do avanço
no período estudado pelos historiadores que marcam desde as duas últimas décadas do século
XIX, tornando-se um “um campo legítimo para as suas análises”, também houve um avanço
considerável no âmbito geográfico, como podemos perceber na escrita de Claudio Batalha.
Segundo ele:
38
Para que essa produção alcançasse toda essa proporção devemos enfatizar a
importância da constituição do Grupo de Trabalho (GT) “Mundos do Trabalho” na esfera da
Associação Nacional de História (ANPUH) em 1990, primeiro no Rio Grande do Sul e
posteriormente no âmbito nacional, que deu abertura para a consolidação das discussões sobre
a história do trabalho que até esse período era considerada inexistente.
Foi a partir desse marco que as produções sobre a História do trabalho tomaram corpo
e disseminaram-se no mundo acadêmico através dos encontros regionais e nacionais,
proporcionando então grandes produções. (BATALHA,2006:91) apresenta essa questão ao
evidenciar que “o sucesso dessa iniciativa, em parte, pode ser verificado pelo poder de atração
dos simpósios temáticos promovidos pelo GT nos encontros da ANPUH e pela presença
crescente neles de jovens pesquisadores. ”
Diante desses grandes avanços, é que nos dias de hoje, dispomos de um grande
número de produções acadêmicas, mas muitos foram os desafios enfrentados para se chegar
até aqui. Segundo (MELLO e SALES ,2017:50)
Para nós que chegamos ao século XXI, importa beber ainda, de uma fonte
inesgotável: dos ensinamentos e reflexões de estudiosos que marcaram a
historiografia contemporânea do trabalho na esteira de E.P.Thompson, Eric
Hobsbawn e David Montgomery, entre outros. [...] acreditamos que seus escritos
nos aproximam dos desafios da construção do conhecimento a partir das
experiências dos sujeitos sociais e seus respectivos processos constituintes.
Partindo para a produção de pesquisas sobre esse campo, muitas dificuldades ainda
nos cercam, tornando difícil, mas não impossível continuarmos trilhando e dando sucessão as
escritas sobre essa classe trabalhadora e aos seus ofícios, o trabalho.
MELLO; SALES (2016:51), nos traz o que seria essencial para essas produções
referentes as fontes e os cruzamentos das mesmas, além de práticas metodológicas: “para a
história do trabalho torna-se essencial uma pratica metodológica que permita a intercessão de
diferentes disciplinas e fontes para expandir e aprofundar as múltiplas formas pelos quais os
trabalhadores interagem e influenciem a sociedade mais ampla”.
Temos, portanto, o dever de continuar abraçando as pesquisas sobre o trabalho e os
indivíduos que dele fazem parte. Aos poucos daremos cada vez mais visibilidade as suas
39
O estudo sobre o Mundo do Trabalho, não pode ser estudado separadamente seja no
Ceará, no Brasil ou no mundo, é relevante haver um dinamismo entre todos os espaços onde o
trabalho se faz presente. (MELLO; SALES,2014:123) discutem essa importância, e
apresentam que a ausência desse dinamismo causa um entrave, mas que aos poucos se
evoluem, portanto, “[...] seria o diálogo, sempre necessário, entre os próprios historiadores no
Nordeste e entre estes e os do centro sul do País, contemplando também a américa Latina.
EUA e Europa, que sabemos, também produzem ricos estudos nesse campo. ”
As lacunas existentes quanto a produção a respeito do trabalho, carregam
questionamentos importantes devido ao próprio aspecto do local analisado. De modo geral o
homem do Nordeste é considerado uma grande figura que sobrevive a grandes períodos de
estiagem, de dificuldades e incertezas de dias melhores, mas que nunca lhes falta a esperança
e a força de trabalho, buscando em meio a tantos embates, formas de adaptação para superar
tantos obstáculos, ou seja, o trabalho sempre estará presente seja ele qual for.
Quanto a essas indagações o Ceará do século XIX apresentou produções referentes ao
setor industrial como a realizada por Thomas Pompeu de Sousa Brasil, em 1863, onde o
mesmo aponta a indústria fabril cearense e seus respectivos setores, que eram quatro:
“escravista, criadora, pastoril e fabril. ” Ainda falando sobre a produção de Thomas Pompeu,
o mesmo
A busca das narrativas dos trabalhadores está intimamente ligada ao ato da escuta, da
conversa, com esses protagonistas sociais, por meio da oralidade. Através desses discursos
podem ser realizados os questionamentos dos ditos e das ausências na fala dos trabalhadores,
seus gestos, suas formas únicas de relatar o vivido, que não podem mais voltar. Tornando se
novos objetos de pesquisas, assim como diz (THOMPSON,1998:27), “a história oral pode
41
resultar não apenas numa mudança de enfoque, mas também na abertura de novas áreas
importantes de investigação. ”
Portanto, a história oral e suas evidencias “é de particular valor para os historiadores
da vida operária preocupado com o processo de trabalho propriamente dito não simplesmente
sua tecnologia [...], mas, a experiência de trabalho e as relações sócias que desta resultam. ”
(THOMPSON,1998:114)
Não será de imediato que o interesse por estudar a história do trabalho alcançará
grandes números de produção no Ceará, esse aumento acontece aos poucos, na medida em
que historiadores ou pesquisadores de outras áreas percebam a importância existente nessa
prática do trabalho e dos indivíduos que o pratica, pois ainda está muito enraizado questões
que tornam essas pesquisas entediantes, como apenas trabalhar com o sindicalismo, por
exemplo.
Será através da consciência em buscar trabalhar as experiências daqueles que foram
oprimidos por tanto tempo, que não tem nenhuma representatividade em sua cidade, estado ou
país, entendendo que o mesmo é um agente social ativo de grande importância para a
economia, um ser transformado da história cultural e social de determinado espaço, que essas
produções alcançarão quantidades significativas, objetivamos inserir os trabalhadores da
cidade de Alcântaras nessa dinâmica importante para a construção da nossa sociedade.
Produzir a respeito dos engenhos de cachaça artesanal também não se torna uma tarefa
fácil, contemplando do que foi apresentado no fragmento acima, onde devemos levar em
conta que essa dificuldade não se relaciona a não querer produzir sobre.
É importante considerar o contexto e sobre quem estamos pesquisando, onde os
interesses, sejam eles financeiros ou políticos, por parte daqueles que se assumem superiores,
estão acima de tudo e de todos, e as documentações quando existem há uma proteção para
com elas, ou lhes são dados um fim, em busca de não deixar rastros e até mesmo por serem
consideradas irrelevantes.
42
É por meio desses desafios que nós historiadores nos tornamos “investigadores”,
passamos a valorizar o ato da escuta, e o desejo instigante de encontrar a luz em lugares
sombrios onde em sua maioria se encontram aqueles que buscam no trabalho um meio de
possibilitar a sobrevivência de suas famílias. Por isso se faz tão importante o contato com os
trabalhadores e conhecermos suas vivências, seus costumes e hábitos, buscando assim como
(HOGGART, 1973, apud SALES, 2008:153) “[...]ver além dos hábitos, aquilo que os hábitos
representam[...] as verdadeiras raízes da vida. ”
A partir do conhecimento dessas verdadeiras raízes da vida dos trabalhadores é
necessário inseri-los no campo da visibilidade tirando-os da condição obscura de meros
indivíduos desconsiderados pela história geral e de suas localidades, e que a partir do fio
condutor da memória podemos ter acesso a uma vastidão de reflexões e questionamentos.
A respeito desse viés da memória dos trabalhadores, (THOMPSON, 2002:114 apud,
SÁ, 2008: 6) lembra que a “vivência oral é de particular valor para o historiador da vida
operaria preocupado com o processo de trabalho propriamente dito(...) a experiência de
trabalho e as relações sociais que dela resultam. ”
Elencando esses desafios encontrados por nós pesquisadores, também se faz presente
nessa escrita a dificuldade de se encontrar produções especificas a respeito do trabalho nos
engenhos de cachaça artesanal. São muitas as pesquisas que trazem questionamentos sobre as
etapas da produção da cachaça, o saber fazer essa bebida, sua importância econômica e
turística, a sua posição de patrimônio cultural e histórico do país, os balanços dessa produção,
enfim são muitas as abordagens sobre o tema, porém sobre o trabalho em si é bastante
reduzido.
Todas essas produções envolvendo a produção de cachaça artesanal, não abordam as
vivências dos trabalhadores, tornando difícil utilizá-las nesse capítulo, pois trataremos aqui de
uma forma mais geral das narrativas destiladas sobre esse trabalho, como ele pode ser
entendido e as questões mais especificas serão realizadas no decorrer dos embriagantes
capítulos dessa produção. Diante desses fatos, serão utilizadas as produções que tratam de
outro tipo de produto, que também é fabricado no engenho, tendo uma pequena diferença
apenas nas etapas dos processos de fabricação, que são os engenhos de rapadura, por meio
deles poderemos interligar o trabalho no engenho de cachaça e da rapadura, podendo ser
produzidos no mesmo espaço.
O primeiro espaço em que começa o trabalho é nos canaviais, durante todo o período
do inverno a cana é preparada para quando o verão chegar a moagem ser iniciada. No período
chuvoso o imenso verde das canas é de encher os olhos de tanta beleza, com o passar dos
43
Esse componente era de trabalho familiar era um dos fatores que compunham a
sobrevivência da família de um morador. Aos ganhos do engenho, muito pequenos,
eram associados determinados complementos, entre os quais se sobressaia o
roçado. Todos os moradores tinham permissão de utilizar durante alguns meses do
ano, uma parcela de terra do sitio, para plantar e colher feijão, milho, ou outra
cultura breve. (SÁ, 2007:109)
3
José Rafael de Souza, 79 anos, aposentado. Ex-trabalhador do engenho de cachaça do Sítio Bom-Fim,
pertencente ao município de Alcântaras. Entrevista realizada no dia 09/05/2017.
4
Biscate segundo o seu José Rafael é o que hoje conhecemos como um bico, ou seja, não é seu trabalho de todo
dia, é apenas um complemento.
44
5
SÁ, Maria Yacê Carleial Feijó de. Os homens que faziam o Tupinambá moer: Experiência e trabalho em
engenhos de rapadura no Cariri – 1945-1980. Dissertação (mestrado em História). Fortaleza: Universidade
Federal do Ceará/Centro de Humanidades/Programa de Pós-Graduação em História Social, 2007.
http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/3390/1/2007_dis_mycfsa.pdf
6
São comumente chamados na roça para designar as flores, ou na verdade, uma inflorescência podendo ser
denominado também por flecha ou bandeira, anunciando a planta atingiu a maturidade sexual e, portanto, está
pronta para a reprodução sexuada.
45
saber fazer a cachaça. Essa forma de seleção dos trabalhadores, se assemelha a outros
trabalhos realizados no sertão como por exemplo o da extração de carnaúba.
MELLO e SALES (2016:59) evidencia no trabalho com a carnaúba esses requisitos
para tornar-se um trabalhador, apontando que:
O Senhor José Rafael em sua narrativa, aponta um exemplo acontecido com ele sobre
fazer dois trabalhos ao mesmo tempo, o que era comum, referente a isso relata que “[...] eu
pelo menos eu moía e destilava quando era minha, aí eu podia me esforçar e trabalhar e fazer
as duas coisas, mais sempre num dá certo[...]”. Inferimos então, que esse tipo de prática
muitas vezes estava relacionado a carência para pagar mais trabalhadores, e por fim um só
trabalhador realizava serviço por dois.
Essa carência em contratar outros trabalhadores estava relacionada também a forma
que esses trabalhadores eram pagos, como já abordamos aqui não existia salário, o sistema
utilizado era a diária assim chamado pelos trabalhadores, que é referente ao dia de serviço.
Portanto terminado o dia o trabalhador recebia seu pagamento independente do trabalho ser
mais exaustivo ou não. Mais uma vez esse tipo de sistema também era utilizado na produção
de rapadura. Em sua dissertação de mestrado (SÁ, 2008:184-185) também comunga dessa
informação, o trabalho exercido com pagamento por diária. Ela nos informa que “a
46
4.“A luta é muito grande e num é todo mundo que aguenta, precisa do caboco ter muita
coragem [...]”7
Que o trabalho no engenho não era moleza, parece bem claro. A respeito dessa
condição era designado ao homem o título de coragem, “o homem tinha que ter coragem para
trabalhar no engenho”, que na realidade faz muito sentido. Para poder preparar a cana, cortar,
conduzir até o engenho, moer, destilar, retirar o bagaço necessitava grande força de trabalho.
Mais uma vez essa qualidade de corajoso era iniciada quando o menino ainda era
criança, afinal todos os componentes da família deveriam trabalhar de alguma forma para
ajudar nas despesas de casa. Em seu projeto de pesquisa, (GUIMARÃES,2016: 8) ao
trabalhar com os trabalhadores rurais, enfatiza suas condições de trabalho iniciadas desde
muito cedo, e apresenta um trecho da narrativa de seu entrevistado, o mesmo relata que “[...]
quando as crianças nasciam os dentes, já eram colocados para trabalhar, carregando lenha,
tirando capim ou indo para a roça, porque não tinha outra coisa para fazer [...]” “[...] eu custei
a crescer de tanto trabalhar no roçado do papai, com 7 anos eu e todos os meus irmãos
também iam trabalhar.”
Ainda sobre essa condição da coragem do homem, o senhor Francisco Ximenes,
trabalhador e responsável por ajudar a introduzir um engenho no Sitio Bom-Fim, no
município de Alcântaras, em sua narrativa menciona essa condição de dureza do trabalho no
engenho, segundo o mesmo:
[...] A luta é muito grande e num é todo mundo que aguenta, precisa do caboco ter
muita coragem, passava a noite trabalhando, eu trabalhei muito chega ficava com a
roupa toda molhada de suor, porque a gente só se banha depois que termina de
tirar a cachaça.
Através das narrativas, das experiências de vida desses trabalhadores, percebemos que
estes eram condicionados a um cotidiano de trabalho duro, de muita labuta, condições
precárias, e de muita dificuldade, mas em meio a tanta pobreza, apresentavam uma riqueza
abundante de experiências comuns, que contrastavam com outras narrativas para além do
trabalho no engenho de cachaça artesanal, entretanto, estavam nutridos de vontade de viver e
sobreviver.
Como a cana de açúcar era moída durante o dia e colocada para fermentar durante 48
horas, e só depois disso poderia ser destilada, todo esse trabalho acontecia de forma lenta e
7
Trecho da entrevista realizada com Francisco Ximenes Guimaraes, 82 anos, no dia 29 de maio de 2017
48
por isso o trabalho se estendia por toda a madrugada, sendo que o destilador só poderia deixar
o engenho depois que toda o caldo fermentado se transformasse em cachaça.
Não se pode deixar de enfatizar o sofrimento desses trabalhadores frente a rotina de
trabalho, começando já na madrugada, onde deveriam estar sempre atentos a desempenhar
suas funções afim de obterem uma boa produção, principalmente aqueles que destilavam a
cachaça.
A respeito desse processo Maria Yacê apresenta essa condição de sofrimento dos
trabalhadores que também acontecia na produção de rapadura, expondo que:
Quando a última cana do dia era moída, havia ainda uma boa quantidade de caldo
para cozinhar e mel grosso para caixear, o que representava mais três ou quatro
horas de intensa atividade no engenho. “Desse jeito o cabra sofria muito nesse
tempo. E não era só aqui não, em todo canto era desse jeito aí”, afirmou o Sr. José
Pindó. ” (SÁ, 2008:7)
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MELLO, William J.; SALES, Telma Bessa. História Oralidade e os Mundos do Trabalho:
Notas sobre trabalhadores da carnaúba no Ceará - Passado e Presente. In: Revista eletrônica
49
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, analisamos as experiências femininas ligadas à saúde das mulheres de
Guiné-Bissau estudantes da UNILAB, relacionando educação com o tema: AIDS/SIDA. Foi
na coletividade que percebemos a importância do projeto, que emergiu de uma aproximação
com as estudantes, entendendo os posicionamentos, comportamentos e suas realidades.
Guiné-Bissau é o país que tem a segunda maior demanda de estudantes na universidade, e a
pesquisa realizou-se num recorte de 95 estudantes guineenses dos campi do Ceará, das quais
10 (dez) dispuseram depoimentos bastante contundentes. Neste sentido interessava-nos saber,
deste grupo em foco, suas práticas educativas e o grau de conhecimento sobre DST/AIDS –
Doenças Sexualmente Transmissíveis e HIV – Vírus da Imunodeficiência Humana.
O vírus da AIDS apavorou e ainda apavora o mundo desde seu surgimento.
Atualmente, ainda se questiona sobre sua temporalidade. Não podemos dizer que ele apareceu
de forma instantânea. Ele pode ter estado em espaços isolados e ter se proliferado. É fato que
os casos iniciais foram identificados na transição do final da década de setenta para início da
década de oitenta. Inicialmente era desconhecida a causa da síndrome pois, só em 1984,
pesquisadores franceses e americanos isolaram o vírus. (CARDOSO, 1989: 26). O vírus da
imunodeficiência humana – VIH é um retrovírus causador da AIDS. Ao adentrar o organismo
1
*Bacharela em Humanidades (UNILAB), graduanda em Licenciatura em História (UNILAB). Integra o Grupo
Interdisciplinar Marxista (DGP/GIM/UNILAB). Bolsista do Programa Pulsar de Tutoria
(PROGRAD/UNILAB). E-mail: adriananivia@yahoo.com.br.
51
humano, age dentro das células do sistema imunológico, exatamente naquelas que comandam
a resposta específica de defesa do corpo diante de agentes como vírus e bactérias. Esse agente
se multiplica por meio do DNA, replicando-se e espalhando-se pela corrente sanguínea. Uma
vez afetadas pelo vírus, as células do sistema imunológico do indivíduo funcionam com
menor eficiência, retardando a capacidade do organismo em Combater doenças comuns
(FRANCO, 2010, p. 12). Ao destruir a capacidade imunológica da pessoa, o vírus a torna
suscetível ao aparecimento, no organismo, de outros vírus e bactérias causadores de outras
doenças. De acordo com Franco, a educação corporal é um exercício fundamental para a
prevenção e saúde, precisamente na fase assintomática, onde a pessoa é reconhecida como
sorologicamente positiva para o VIH. A doença é identificada na fase em que os sintomas se
manifestam e é tratada com medicamentos antirretrovirais de forma que inibam a reprodução
do vírus.
Em Guiné-Bissau, a incidência de VIH perpassa mais de 30 mil pessoas, a maior parte
adulta. O país começou a apresentar casos de infecção em 1985-1986, segundo dados do
documento do Conjunto dos Países membros da comunidade de Língua Oficial Portuguesa –
CPLP e da ONUSIDA – Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o VIH/SIDA (2010).
Em 1989, através de um sistema nacional de monitoramento “Sentinela”, um programa
baseado num estudo feito com mulheres grávidas entre 15 e 49 anos. Em 2009 este programa
atingiu 20 localidades urbanas e rurais, sendo o primeiro estudo que englobou todas as regiões
de Guiné-Bissau, e o único, desde 2005 a trabalhar com a incidência de HIV em um recorte
considerável da população. Guiné-Bissau é um país localizado da Costa Ocidental da África,
com uma população em torno de 1,5 milhões de habitantes, cuja capital é Bissau. Sua recente
independência é datada de 24 de setembro de 1974. Possui uma densa população jovem, com
a faixa etária de até 25 anos. As mulheres representam a maioria, com 51%, com alta taxa de
fecundidade. Administrativamente, o país se divide em oito regiões: Bafatá, Biombo, Bolama,
Bijagós,
Cacheu, Gabú, Oio, Quínara e Tombari. A pesar dos esforços administrativos em
relação às necessidades e ao acesso à saúde, mais de 40% da população vive a uma distância
superior a 5 km das áreas sanitárias, restringindo assim, o acesso. As regiões detectadas com
maior incidência de HIV em 2009 foram Gabú e Bafatá, entre mulheres de 15 a 30 anos. O
país apresenta a necessidade de programas de apoio, tanto na educação preventiva, como no
tratamento, embora o que já fora realizado tenha uma relevância significativa.
Adiante, no desenvolvimento do 2º tópico, que vem falar sobre a influência do
contexto social englobando as questões de gênero, sexualidade, cultura e AIDS/SIDA, dados
52
envolvendo questões como gênero, sexualidade, saúde, religião e até política. Nesse contexto,
as jovens apresentam uma consciência sobre AIDS através de um processo dialético, de
acordo com os relatos de suas experiências construídas historicamente, perpassando sua
trajetória desde suas vivências no país de origem, intercalando-se com a fase de transição para
o Brasil, até sua realidade atual.
guineenses retrataram justamente essa questão, o posicionamento das mulheres para além do
condicionamento, a visão real da mulher e suas atitudes frente a uma realidade que as locava
num espaço crítico, de vitimização.
Relembrando Mary Del Priore (1994) novamente, nos seus apontamentos sobre a
mulher e a historiografia, ela traduz a emancipação feminina após década de 70 em
contraposição ao status depreciativo da mulher, dado até então pela historiografia, onde a
mulher era condicionada ao determinismo vitimista, ao poder dominador que as subjugava.
Del Priore (1994, p. 13) considera que “a história da mulher é, antes de tudo, uma história de
complementaridades sexuais, onde se interpretam práticas sociais, discursos e representações
do universo feminino como uma trama, intriga e teia”. Nas entrevistas, as guineenses
retrataram bem esse posicionamento, falando do seu comportamento em relação à AIDS para
além do preconceito, do adoecimento e da mistificação, transpondo seus fazeres educativos às
suas vivências e suas relações sociais. Isso revela a importância da pesquisa oral nesse estudo.
Franco (2010, p. 74) releva essa questão em seu estudo “A Face Pobre da AIDS”:
Falar sobre AIDS na comunidade familiar é muito muito fechado. Porque é tipo
um tabu, pois na nossa realidade você não pode falar sobre relações sexuais,
diferente daqui. Tem o medo da família, dos mais velhos... é uma coisa muito
fechada, muito “sagrada”, mas existem várias ONG’s nacionais e internacionais
que trabalham nessa área de prevenção e sempre estão nas escolas, nos seminários,
para saber como os jovens devem se prevenir, quais são os métodos que devem usar
para não pegar esse vírus de AIDS. E havia muita massa de participação dos jovens
nos seminários... muito interessante... e sempre quando acaba o seminário eles
fazem uma dinâmica sobre a prática, falam sobre exame HIV. É um trabalho de
sensibilização dos jovens para participarem. E também tem o trabalho de porta a
porta com agentes de saúde.
55
Eu sinto falta sim, de informação, sobre como a pessoa pode prevenir AIDS, e
também todas as doenças sexualmente transmissíveis. Na UNILAB, têm muitas
pessoas de diferentes nacionalidades, e aqui todo mundo se cruza, brasileiro com
guineense, guineense com angolano, e assim vai… e têm relações entre si. Eu acho
que devia ter mais informações sobre as doenças sexualmente transmissíveis,
propagar o uso de camisinha constante. Pelo menos em cada trimestre, aqui na
universidade, deveria ter um debate sobre prevenção ao HIV, sobre adoecimento, e
sobre outras doenças sexualmente transmissíveis. Se tivéssemos isso no nosso
ambiente, seria mais fácil tratar dessas questões sobre AIDS, teríamos um espaço
mais aberto para a gente dizer o que sente o que pensa o que sabe e buscar mais
conhecimento, isso nos daria mais confiança (A.B, 2016).
Mary Del Priore, em seu estudo sobre o corpo feminino, no qual fala da ciência
médica entre os séculos XVI e XVIII, pontua bem como se enraizou a questão do preconceito
sobre a natureza feminina, vindo já de séculos antes de Cristo, em que a mulher era
unicamente objeto de reprodução, excluindo-a de qualquer outra função social. A estrutura
feminina estava formada em parir, procriar, ser mãe, frágil e submissa. Basicamente a mulher
era reconhecida pelo que “tinha entre as pernas”, e não pelo que era por dentro. Hoje, apesar
do avanço da tecnologia e da abertura de campo para o trabalho, a mulher não deixou de ser
rotulada e remetida a uma estrutura determinista e patriarcal. O período pós-revolução
industrial contribuiu para a mudança das condições de trabalho da mulher, mas essa foi uma
concepção equivocada de emancipação, pois limitou a mulher a dois campos. O trabalho nas
indústrias tirava a mulher do ambiente familiar do trabalho doméstico, porém ela ficava
limitada entre dois campos. O que seria uma possível emancipação, seria a mulher poder
participar de todos os campos de trabalho, formais e informais, e inserir-se nas lutas sociais de
modo que sua identidade não tivesse mais um caráter unitário. Esse é mais um ponto em que
este trabalho vem expor diversas manifestações femininas para além do conceito “mulher”
contextualizadas tão comumente entre casa e trabalho. Um dos direcionamentos dessa
pesquisa foi ter uma visão da mulher para além do “movimento histórico como uma resultante
da relação dos sexos, modulado pelo conflito latente entre a mulher/natureza e o
homem/cultura” (MICHELET, 1859), embora, concomitantemente, este estudo revele em
várias considerações estes traços. Considerando, novamente, o depoimento do guineense Id,
ressaltamos a questão do conservadorismo e da cultura:
Sobre essa questão, deve-se ressaltar que em África tem a predominância de várias
etnias atreladas “culturalmente” à religião. Por exemplo, quem é Balantu, Mancaine,
Manjaco… tende a ser cristão. E quem é Fula, Mandiga, Nalu, Susu e Beafada tende a ser
muçulmano. Nessas etnias vinculadas ao islamismo acontece muito mais o processo de
circuncisão. Sobre esse aspecto, é importante considerar o que é religião e o que é cultura.
Seguindo essa linha de análise, o estudante T.M pontuou questões como os ritos de iniciação,
no caso do Fanado, um processo de ensinamento comportamental do que é “ser mulher”,
59
relativo aos cuidados do corpo, à menstruação, etc. O que pudemos interpretar é que, não
necessariamente, esse ritual tenha a obrigatoriedade da circuncisão. O fanado é um ato
cultural ligado a algumas etnias, e esse processo é desenvolvido tanto nos grupos étnicos onde
predomina o cristianismo, como nos seguidores do islamismo. No caso de “algumas” etnias
que seguem a religião islã, estas possuem características peculiares do ritual, onde acontece a
circuncisão (a mutilação genital). Enquanto os Balantas fazem o Fanado para iniciar a mulher,
através de um minucioso processo de aprendizado, os Fulas realizam a circuncisão feminina
para que a mulher tenha a condição da “pureza”. Em considerações anteriores, pontuamos
bem essa questão, ao falar do processo histórico-cultural de construção da imagem da mulher
subjugada ao campo da reprodução, ao ambiente familiar. Ora, se a mulher é restrita a um
espaço no qual sua função é a procriação, ela tende a atender somente os anseios do marido.
No caso da circuncisão, o ato de corte do clitóris é feito para que a mulher não tenha mais
desejo pelos homens e a necessidade do prazer sexual. O que se pode entender, segundo o
depoimento do jovem T.M, é que, em algumas etnias, o casamento, a formação familiar é
condicionada à realização dessas práticas. Daí surge a justificativa religiosa para esse ato, pois
o islamismo defende muito a pureza da mulher, mas o Alcorão, que é o livro sagrado do Islã,
não prega a circuncisão feminina. Portanto, o que percebemos é que há uma prática
incorporada “culturalmente”, que se justifica através de uma sustentação religiosa. Um
exemplo que podemos citar é o do catolicismo. Nele, existem muitas práticas que não são
bíblicas, mas a religião católica sustenta essas práticas. Identificamos, então, que as religiões
monoteístas são espiritualmente machistas, permitindo que o homem se aproprie de algumas
coisas que não estão claras, para satisfazer as suas vontades.
Guiné-Bissau é um país que depende muito da força produtiva feminina, porém, o
Estado não resguarda as necessidades das mulheres, bem como os seus direitos fundamentais.
A submissão feminina e a subjugação do gênero as expõem às injustiças sociais como a
violência, a exploração sexual; muitas vezes são forçadas a casarem e a ocorrência de
gravidez entre as jovens é relevante. Diante da população masculina, as mulheres têm mais
dificuldades quanto à acessibilidade à saúde, o que caracteriza a distinção de gênero e a
desigualdade. De certo, sobre todas essas condições, podemos considerar o fator da
mistificação da AIDS/SIDA, em que o problema não é só a precariedade do atendimento em
saúde, mas toda uma questão cultural que permeia uma camada da população jovem feminina
de Guiné-Bissau. “A AIDS é coisa do demônio”, frase de uma aluna guineense, que se dispôs
a falar em uma conversa aberta sobre o tema no pátio da universidade. De acordo com as
colegas guineenses, elas tinham acesso ao trabalho básico, com agentes de saúde em postos, e
60
De acordo com essa visão, nesse estudo, não nos privamos em momento algum, de
quaisquer oportunidades que pudessem revelar o universo cognitivo das vivências das
estudantes. O trabalho desenvolvido não foi só uma busca de informações, mas uma troca de
saberes, e através dessa simbiose construiu a pesquisa. A visão da AIDS entre lugares nos
permitiu adentrar nesse espaço de pluralidade. Estivemos em diversos ambientes como as
reuniões da Associação dos Estudantes Guineenses da UNILAB, nos ensaios para as
apresentações culturais da universidade, em seus lares, em sala de aula, na rua, em
acampamentos de férias, enfim, tudo isso nos propiciou não só uma apreensão de saberes, mas
de valores que nos identificaram com o nosso objeto de pesquisa, construídos na prática
educativa. Nessa perspectiva, percebemos que a comunicação entre as culturas deve se
desenvolver num espaço que tenha como base o respeito às individualidades e, sobretudo, que
não promova a distinção. Para que isso aconteça, faz-se necessário o reconhecimento de
pontos em comum nos grupos, sendo esse o primeiro passo para a construção de relações
sociais harmoniosas baseadas nos princípios da interculturalidade, ou seja, num mecanismo
interativo que promova práticas democráticas e de inclusão. Respaldamo-nos, então, na obra
“Direitos humanos, educação e interculturalidade”: as tensões entre igualdade e diferença”, a
qual reforça que o mais importante é “articular políticas de igualdade com políticas de
identidade” (CANDAU, 2010, p.51). Contudo, através da interculturalidade, cuja base
consiste no desenvolvimento dinâmico e constante de relações, fomos nos legitimando em um
movimento de aprendizado, numa troca de saberes correlacionados no campo saúde-doença.
Para entender a AIDS como um fato social é necessário que o processo educativo não
dependa somente de uma manifestação individual e do reconhecimento do problema, pois
62
muitos dos fatores que a constituem, como a prevenção, a educação, e o adoecimento atuam
em campo coletivo, refletindo na forma de ser e estar no mundo.
Relacionando esses apontamentos com o estudo de Teresa Cunha e Inês Reis
(MUNANGA, Kabengele, 2010, Educação e Diversidade Cultural, p. 44) sobre direitos
humanos e educação, salientamos a importância de um processo educativo que possa romper
as barreiras distintivas como classes, gênero e sexo, promovendo uma realização igualitária. A
sobreposição da dignidade humana diante dos problemas promoveria um estado de paz, em
que, na diversidade dos indivíduos e seus sentimentos não houvesse uma separação entre o ser
e o saber, e a resolução dos conflitos se deslocaria do campo das ideias para o da realidade.
REFERÊNCIAS
CANDAU, Vera Maria. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões
entre igualdade e diferença. Rio de Janeiro: Revista Brasileira de Educação, 2008.
CARDOSO, Luiz Cláudio. AIDS: E AGORA? São Paulo: Scipione, 1989. CPLP –
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – Documentos e textos. In: Epidemia de HIV
nos Países de Língua Oficial Portuguesa. Portugal/ Brasil: UNAIDS, 2010.
FRANCO, Roberto Kennedy Gomes. A Face pobre da AIDS. Tese (Doutorado)-
Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em
Educação Brasileira, Fortaleza (CE), 26/08/2010.
MARX, Karl Heinrich. ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista – Ebook. Rocket
Edition: 1999.
MARTINS, José de Souza. As Hesitações do Moderno e as Contradições da Modernidade
no Brasil. In: A Sociabilidade do Homem Simples. São Paulo: Contexto, 2013.
MUNANGA, Kabengele. Cadernos Penesb: Discussões sobre o Negro na
Contemporaneidade e suas Demandas. In: Educação e Diversidade Cultural. Niterói, RJ:
Editora da UFF, 2010.
PINTO, Teresinha Cristina Reis. Educação Preventiva – AIDS. São Paulo: Instituto José Luís
e Rosa Sundermann, 2009.
PRIORE, Mary Del. História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.
SOIHET, Rachel. Domínios da História. In: História das Mulheres. Rio de Janeiro: Campus,
1997.
THOMPSON, Paul. A Voz do Passado – História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992
64
1
Doutora em História e Cultura do Brasil – Universidade de Lisboa; Mestra em Filosofia – Universidade
Estadual do Ceará; Especialista em Estudos Clássicos – Universidade Federal do Ceará; Licenciada em História
– Universidade Federal do Ceará. E-mail: ana.alice.menescal@gmail.com
65
2
Vide, por exemplo, CARVALHO, Alfredo. Diário de Mathias Beck. Revista Trimestral do Instituto do Ceará,
Fortaleza, v.1, Tomo XVII, Anno XVII, 325-405, 1903, p. III. No referido texto, Alfredo Carvalho, sócio do
IAHGP e colaborador da Revista do Instituto do Ceará, expõe o método escolhido para realizar a tradução do
texto buscando ser o mais “fiel” possível ao texto original, tendo em vista a necessidade de futuros
investigadores em acessar as informações de forma mais próxima possível à escrita e vivência do tempo do
texto.
3
Para conhecer a biografia do Dr. Guilherme Studart (Barão de Studart), cf.: Revista do Instituto do Ceará,
Fortaleza, Tomo Especial, dedicado ao Barão de Studart, Anno LII, 1938; e, Revista do Instituto do Ceará,
Fortaleza, Tomo Especial, 1º Centenário de nascimento do Barão de Studart, Anno LXX, 1956.
4
É importante lembrar que àquela época o historiador era uma espécie de compilador de documentos. Na
concepção que tinham de si próprios, não era parte de seus atributos o questionamento das fontes documentais
ou a interpretação dos documentos; apenas a exposição pretensamente imparcial e objetiva do material para
conhecimento da sociedade. No discurso e na prática dos historiadores do Instituto do Ceará assim deveria ser
exercida a função.
5
Cf. AMARAL, Eduardo Lúcio Guilherme. Correspondência cordial: Capistrano de Abreu e Guilherme
Studart. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria de Cultura, 2003. (Coleção Outras Histórias), p. 96.
66
ressaltando a importância de seu contributo para os estudos históricos atinentes à terra natal e
o destaque do Ceará frente aos outros estados da região (AMARAL, 2003:111). Lembremos
que a maior parte do acervo documental do Instituto do Ceará corresponde à compilação de
documentos realizada por Studart ao longo dos anos em que esteve à frente da produção e
publicação da Revista do Instituto do Ceará.
Para grande parte da historiografia oitocentista, a validação dos documentos se dá
quando estes são considerados oficiais pelas entidades ou instituições responsáveis por lhes
atribuir valor, legitimando os registros escritos de um fato. Esse modo de entender e validar a
documentação traz a perspectiva de verdade histórica, norte dos intelectuais do Instituto do
Ceará, entretanto, essa ideia cai por terra, quando compreendemos que as supostas
objetividade e neutralidade determinantes daquela produção dizem respeito apenas à ideologia
da época6. Portanto, as conclusões às quais chegavam a partir da leitura de manuscritos
condiziam apenas com uma possibilidade de compreensão da mensagem contida no texto do
documento.
Sobre a impossibilidade do homem ser neutro e objetivo, Ricoeur, com Hans-Georg
Gadamer, afirma:
não podemos nos abstrair do devir histórico, situar-nos longe dele, para que o
passado se torne, para nós, um objeto...Somos sempre situados na
história...Pretendo dizer que nossa consciência é determinada por um devir
histórico real, de tal forma que ela não possui a liberdade de situar-se em face do
passado. (GADAMER apud Ricoeur, 1990:40)
O historiador conta uma história, narra; apenas não inventando os dados de suas
histórias. Consultando arquivos, compila uma série de textos, leituras e imagens
deixadas pelas gerações passadas, que, no entanto, são reescritos e revistos a partir
dos problemas do presente e de novos pressupostos, o que termina transformando
6
Cf. RICOEUR, Paul. Interpretações e Ideologias. Rio de Janeiro: F. Alves, 1990; a mesma postura pode ser
verificada em História e Memória de Jacques Le Goff, especialmente no capítulo intitulado
“Documento/monumento” (São Paulo: Unicamp, 1994); conferir também RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa.
São Paulo: Papirus, 1997, t. 3.
7
Importa ressaltar a época em que a produção desses intelectuais foi pensada. Diante disto, a ideologia
construída por eles deve ser compreendida a partir de seu universo cultural. Não há propriamente uma má
intenção na atitude assumida por aqueles historiadores. A reflexão aqui exposta leva isso em conta. Nossa
intenção é, portanto, apresentar uma chave interpretativa capaz de oferecer subsídios teóricos para compreensão
dos nossos documentos.
67
plantando as sementes que possibilitaram muito do mister do historiador pós 1930. Além
disso, em certos casos, a criação das universidades esteve vinculada ao empenho de sócios
dos Institutos, às discussões realizadas dentro das agremiações, ou em nome destas, como no
caso do Ceará.
Sobre as transformações conceituais dentro da produção historiográfica do Instituto,
recorremos a Koselleck que, referindo-se à Hayden White, afirma que “toda a história está
indissoluvelmente ligada às suas representações historiográficas. Desse ponto de vista, cada
texto historiográfico alcançaria, junto aos demais gêneros literários, sua correspondente cota
no sistema de comunicação cultural” (KOSELLECK, 2004:41).
Segundo a afirmação acima, o registro escrito das experiências vividas, isto é, a
historiografia de uma sociedade, pode ser determinante para o conhecimento de sua cultura e
de suas experiências. As análises iniciais tendo por objeto os povos indígenas no Ceará
parecem muito vinculadas às teorias europeias do século XIX, especialmente em razão de
serem fruto das pesquisas e estudos realizados pelos membros do Instituto do Ceará e,
obviamente, estarem cercadas de imagens europeizadas, quer pela influência teórica, quer
pelo imaginário criado em torno dos povos nativos, a partir da leitura de cronistas europeus de
séculos anteriores.
Compreendemos que as análises expostas pela intelectualidade cearense dizem
respeito à cultura de feição europeia da época e foram determinantes para caracterizar a
condição social, política e cultural dos povos indígenas do Ceará no século XIX e as
posteriores. Obviamente, estamos a nos referir à construção cultural de uma sociedade
constituída como civilizada a partir da presença de europeus no século XVI. Portanto, do fim
do século XIX ao princípio do XX, o que se tem por cultura no Ceará e no Brasil é a
concepção da sociedade brasileira baseada em inúmeros elementos culturais europeus, no
intuito de estabelecer a nacionalidade e a identidade do povo com a sua história.
Lembramos, ainda, que a fundação do Instituto do Ceará se dá quando os povos
indígenas da região já tinham sido considerados oficialmente extintos, de acordo com as
informações de Cunha Figueiredo Júnior, Presidente da Província, em relatório datado de 9 de
outubro de 186311. Assim, acontece no Ceará a junção entre o documento oficial e a
necessidade ideológico-cultural de promover a civilização da região, uma vez que o discurso
evolucionista em voga na Europa colocava a questão racial como explicação da defasagem do
11
Cf. Relatório apresentado à Assembléa Legislativa Provincial do Ceará pelo Excellentissimo SenhorJosé
Bento da Cunha Figueiredo Júnior, por occasião da installação da mesma Assembléa no dia 9 de outubro de
1863. Ceará: Typographia Cearense, 1883, p. 19-20.
69
Brasil em relação ao velho mundo. Era mais fácil lidar com uma sociedade sem o elemento
“selvagem”, ainda que miscigenada, como reconheciam os intelectuais do Instituto do Ceará,
do que conviver com a diversidade racial evidente na qual os indígenas ainda não eram
considerados extintos ou mesmo assimilados.
12
Sobre memória coletiva, conferir, além de Maurice Halbwachs, Marc Bloch e Michel Pollak, NORA, Pierre.
Mémoire Collective. In: LE GOFF, Jacques (org.). La Nouvelle Histoire. Paris: CEPFL, 1978.
13
Período abrangido pela tese intitulada Indígenas e Intelectuais: a questão indígena no Instituto do Ceará (1887-
1938), defendida em 2016, na Universidade de Lisboa, que deu origem ao presente artigo.
70
14
Diversos autores já trataram a questão, conferir, por exemplo: PINHEIRO, Francisco José. Os Povos nativos
do Ceará (uma síntese possível). In: CHAVES, Gilmar (org.). Ceará de corpo e alma: um olhar
contemporâneo de 53 autores sobre a terra da luz. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Fortaleza, CE: Instituto
do Ceará (Histórico, Geográfico e Antropológico), 2002; LEITE, Maria Amélia. O Cearense é um povo
caboclo? In: CHAVES, Gilmar (org.). Ceará de corpo e alma: um olhar contemporâneo de 53 autores sobre
a terra da luz. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Fortaleza, CE: Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico e
Antropológico), 2002; VALLE, Carlos Guilherme Octaviano do. Aldeamentos indígenas no Ceará do século
XIX: revendo argumentos históricos sobre o desaparecimento étnico. In: PALITOT, Estêvão Martins (org.). Na
mata do sabiá: contribuições sobre a presença indígena no Ceará. Fortaleza: Secult/Museu do
Ceará/IMOPEC, 2009; GOMES, Alexandre Oliveira. A saga de Amanay, o Algodão, e dos índios da Porangaba.
In: PALITOT, Estêvão Martins (org.). Na mata do sabiá: contribuições sobre a presença indígena no Ceará.
Fortaleza: Secult/Museu do Ceará/IMOPEC, 2009; PORTO ALEGRE, Sylvia. De ignorados a reconhecidos: a
“virada” dos povos indígenas no Ceará. In: PINHEIRO, Joceny (org.). Ceará terra da luz, terra dos índios:
história, presença, perspectiva. Fortaleza: Ministério Público Federal. 6ª Câmara de Coordenação e Revisão.
FUNAI; IPHAN/4ª Superintendência Regional, 2002.
71
norte15 ficava muito distante dos grandes centros da nação; suas terras não despertavam
grande interesse, não havendo nenhum aspecto físico, social ou econômico que desse relevo
ao lugar; portanto, era conveniente para a elite local encontrar meios de inserir o Ceará na
história do Brasil, abrindo brechas para destacar a província diante do restante do império.
Deste modo, acreditamos que a intelectualidade cearense tenha encontrado os meios a partir
de sua produção, ou seja, aspectos da cultura letrada teriam o potencial necessário para
realizar os anseios de parte da sociedade cearense. Assim, a história produzida pelo Instituto,
especialmente através do Barão de Studart, criou uma imagem da população do Ceará e para
esta mesma população. E o recurso associado ao estabelecimento da memória foi o
esquecimento.
O esquecimento ou amnésia, como referida por Le Goff, não consiste apenas na
perturbação da personalidade do indivíduo, mas pode dizer respeito à perda ou à falta de
elementos determinantes da memória coletiva de sociedades, de nações inteiras, acarretando
alterações identitárias (LE GOFF, 1996:425). Ou seja, o esquecimento – voluntário ou
involuntário - determina os caminhos da memória e da identidade coletiva de um grupo social
e neste sentido a produção histórica pode vir a ser compreendida como um importante
instrumento de poder, manipulando dados e fatos de tal modo a provocar alterações muitas
vezes difíceis de serem contornadas.
Sendo as agremiações de intelectuais lugares tanto de história, quanto de memória e
esquecimento, para os letrados do Instituto do Ceará, bem como para qualquer outro grupo
social detentor de algum tipo de poder sobre a sociedade em geral, o controle da memória e
do esquecimento é de suma importância para a afirmação social-comunitária. Como sustentou
Le Goff:
15
Referimo-nos aqui à região norte, porque era sob a divisão Norte e Sul que se compreendia o território
brasileiro no período tratado.
16
Idem, p. 426.
72
Sendo assim, a formação do homem e de sua identidade dependem da relação por ele
mantida com os valores da sociedade ou do grupo em que está inserido, bem como daqueles
que constrói para si, partindo da experiência de vida. Por esse viés se explica a subjetividade
17
O pensamento de Le Goff a propósito da manipulação da memória e do esquecimento, coincide com o de
Marc Augé, quando este se refere ao relativismo cultural. Apesar da argumentação distante, ambos tratam do
poder que determinado grupo pode exercer sobre outro. (Cf. LE GOFF, 1996 e AUGÉ, 2001).
18
Lembramos, uma vez mais, que após a instauração da República, a atuação do Instituto do Ceará permaneceu
na mesma linha de interesse, posto que a condição do Ceará diante da nação e seu governo continua a mesma, ou
seja, de pouco ou nenhum destaque.
73
humana, pois o indivíduo, apesar de ter sua parcela de individualidade, está sempre tão
envolvido com a sociedade da qual faz parte, que características determinantes de sua
essência estarão identificadas com a vivência em grupo e não consigo mesmo.
E, se é da junção das diversas memórias que se constrói a identidade coletiva, bem
como a ipseidade, naturalmente ambas serão originadas também do esquecimento. Afinal,
memória e esquecimento estão lado a lado na conformação da história de toda a humanidade,
determinando escolhas, caminhos, ideologias, etc. Para Catroga (2009:19), as duas se exigem
reciprocamente e, “se a vida é impossível sem a primeira, nem que seja ao nível da sua acção
como proto-memória ou como habitus, ela seria igualmente impossível sem o esquecimento”.
O esquecimento termina por fazer parte, de certa forma, da memória, pois, como bem definiu
Fernando Catroga, ele é a presença da ausência (CATROGA, 2009:16). Portanto, a toda
memória atrela-se um esquecimento, pois memória e esquecimento são escolhas, algumas
vezes inconscientes, outras não.
Quando nos referimos à atuação dos Institutos no fim do século XIX e início do XX, e
à memória e o esquecimento vinculados a eles, isto é, se nos referimos à fundação da História
e de sua escrita, é porque são evidentes alguns aspectos determinantes para a compreensão
político-ideológica dos intelectuais e dessa história oficial fundada em benefício das
“sociedades imaginárias” criadas a partir do desejo positivo de evolução, desenvolvimento e
destaque intelectual. Destarte, na construção da memória e do esquecimento fundadores da
identidade cearense, bem como da identidade nacional (se pensarmos no IHGB), encontram-
se mescladas história e ficção, sendo as marcas do tempo bastante claras, pois os intelectuais
buscavam fundar a história de modo a ressaltar características positivas dos grupos sociais
retratados. Esse entendimento da construção da memória e do esquecimento é semelhante à
definição daquele paradigma a que Paolo Rossi chamou artista da memória, sendo este “o
intérprete da realidade do universo e do seu destino, o possuidor da ‘chave universal’ que está
escondida e assim deve permanecer para os mortais comuns” (Rossi, 2010:18).
Aqui se evidencia a questão do poder de quem determina a memória e o esquecimento
adstrito a algo, pois o artista da memória limita ou expande o acesso ao conhecimento. É por
isso que quem primeiro domina o saber tem em suas mãos o poder de transformar, conduzir,
fundar. E se, a seu modo, memória e esquecimento seguem lado a lado, como iguais em
importância e em reciprocidade, pois são interdependentes, até certo ponto a memória tende a
se sobrepor, pois o esquecido que constrói é realmente relegado ao olvido. É como sustenta
Catroga (2009:20): “a memória (subjectiva e/ou colectiva) tende a olvidar-se do esquecido
que constrói”. E esta termina por ser uma das formas de surgimento das identidades coletivas,
74
19
Ressaltemos o vocabulário, a alimentação, o comportamento, entre outros aspectos tão arraigados e por isso
mesmo indissociáveis do ser cearense.
20
Relembramos que a primeira Instituição a fazer frente à produção historiográfica do Instituto do Ceará foi a
Universidade Federal do Ceará.
75
Esse processo de redução ou extinção, como seria o mais correto, dos índios tidos
como nocivos à paz que se desejava implantar na Capitania, deve ser considerado
como um dos meios menos cruéis de limpar das terras cearenses o vandalismo
selvagem, porém não o mais aconselhável em sua extensão social. Era sobretudo
hostil e desumano e além disso nada produzia em benefício dos fins politicamente
declarados, pois, o índio, tanto lá quanto cá, teria a mesma disposição arredia de
integração ao convívio disciplinar. Os maiores reflexos, então, de rebeldia nativa,
consistia na presunção legítima de posse da gleba, prerrogativa da qual só a morte
seria capaz de afastar os indígenas do sagrado direito de expulsar os invasores
brancos. (ARAGÃO, s/d:134)
21
Cf. ARAGÃO, s/d:186.
22
CRUZ FILHO. Historia do Ceará - resumo didactico. São Paulo: Comp. Melhoramentos de S. Paulo, 1931.
77
23
Idem, p. 40.
24
GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Ceará. Fortaleza: Editora A. Batista Fontenele, 1953.
78
Adiante, referindo-se aos nativos após o término da rebelião de 1713, Studart Filho
sentencia:
REFERÊNCIAS:
ARAGÃO, Raimundo Batista. História do Ceará. Fortaleza: Imprensa Oficial, s/d.
BLOCH, Marc. Memória coletiva, tradição e costume: a propósito de um livro recente. In:
BLOCH, Marc. História e Historiadores: textos reunidos por Étienne Bloch. Lisboa:
Editorial Teorema, 1998.
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembranças dos velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1971.
80
CATROGA, Fernando. Os passos do homem como restolho do tempo: memória e fim do fim
da história. Coimbra: Edições Almedina, 2009.
CRUZ FILHO. Historia do Ceará - resumo didactico. São Paulo: Comp. Melhoramentos de
S. Paulo, 1931.
KOSELLECK, Reinhart. Historia de lós conceptos y conceptos de historia. Ayer, nº 53, 27-
45, 2004.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4. ed. Campinas, SP: Editora UNICAMP, 1996
(Coleção Repertórios).
NORA, Pierre. Mémoire Collective. In: LE GOFF, Jacques (org.). La Nouvelle Histoire.
Paris: CEPFL, 1978.
RODRIGUES, José Honório. A pesquisa histórica no Brasil. 3. ed. São Paulo: Companhia
Editora Nacional; MEC, 1978. (Coleção Brasiliana).
ROSSI, Paolo. O passado, a memória, o esquecimento – seis ensaios dahistória das ideias.
São Paulo: UNESP, 2010.
CAMPO” E “CIDADE”:
PERSPECTIVAS ENTRE O FICAR E SAIR DE JOVENS DA COMUNIDADE DE
CURRAIS II – CE.
RESUMO: Este trabalho teve como objetivo analisar a visão de jovens da Comunidade de
Currais II – Ceará, sobre o espaço onde vivem, seus anseios e perspectivas para o futuro.
Tendo em vista que muitos dos entrevistados não veem o “campo” como um espaço onde
possam realizar seus sonhos, busquei – a partir das minhas leituras em diálogo com as
respostas de seus interlocutores – desmistificar os conceitos atribuídos para o “campo” e para
a “cidade” e como esses termos estão envolvidos, ainda hoje, no processo de decisão do
jovem entre o ficar e sair de sua localidade de origem. Por isso o fator principal deste estudo
foi buscar uma compreensão dos fatores que influenciam e levam os jovens da comunidade,
filhos de familiares da região, a tomarem suas decisões pessoais que, direta ou indiretamente,
não estão ligadas ao “campo” e associadas à lógica do trabalho como perspectiva de um
futuro melhor.
PALAVRAS-CHAVE: Juventude. Campo. Cidade.
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa surgiu a partir do meu incômodo em relação ao que muitas pessoas
pensam sobre o “campo” e principalmente às noções pejorativas que a ele são atribuídas. Com
questionamentos e dúvidas iniciais procurei me dedicar a essa temática em busca de respostas
acerca deste descontentamento, pois, assim como muitas pessoas, eu também me encontrava
diante de um pensamento formulado que não incluía o meio rural como espaço que pudesse
estabelecer um futuro promissor. Diante da minha inquietação, resolvi oficializar o meu
objeto de estudo: os jovens da comunidade rural de Currais II. E por que jovens? Porque é
nessa faixa etária que começa a se estabelecer uma personalidade, conceitos sobre a
sociedade, além de ser um período de transição entre a vida adolescente para a adulta, com
momentos de grandes escolhas, principalmente de cobranças sobre o seu futuro. E foi partir
destes anseios que pude verificar como se configura o processo de decisão dos jovens
entrevistados diante do ficar ou sair de sua localidade. Mas a questão central é: o que
influencia estes jovens e quais os motivos de tomarem tal decisão?
A categoria “jovem” já é complexa por si só e a sua vinculação ao “campo” a torna
ainda bem mais estereotipada, pois no que se refere ao mundo rural, a juventude ainda
permanece numa situação de invisibilidade decorrente de uma visão muitas vezes equivocada
1
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). Bacharel em Humanidades
e licenciando em História.
82
que tem dificultado a compreensão da sua complexa inserção num mundo culturalmente
globalizado (CARNEIRO, 1998). Vale ressaltar que o termo “juventude rural” muitas vezes é
reduzido apenas ao trabalho agrícola e não evidencia o “campo” como um espaço heterogêneo
com múltiplas possibilidades e é por isso que há muitos equívocos em relação ao que se pensa
sobre esse ambiente.
Seguindo este contexto, a presente discussão buscou analisar as falas de cada
entrevistado, pois cada um possui um contexto social diferenciado. Foram essas diferenças de
idade, pensamentos, sentimentos e de sonhos que eu quis buscar para esta pesquisa. É por isso
que CASTRO (2005) em sua tese procura desmistificar essa categoria:
ameaçadas de incêndio, é a cidade como algo autônomo, seguindo seu próprio caminho”
(WILLIAMS, 1988:70). Então a lógica da “cidade” foi comparada com a do “campo”, e se
tornando o seu oposto. E é por isso, que o “campo” foi associado como lugar do passado e do
atraso, como um refúgio da “cidade”, e esses mitos tinham suas bases fundadas numa
realidade aparente: a relação com o feudalismo.
Devemos observar que a ideia que se tem tanto de “cidade” quanto de “campo”, está
associada com o tempo e o contexto em que é produzida. Em determinados séculos vemos a
“cidade” associada à riqueza, enquanto que em outros ela é associada à marginalidade, caos e
insegurança, sendo que em outros tempos, era associada à ideia de evolução, desenvolvimento
tecnológico e progresso. A complexidade e graus de intensidade que as relações campo-
cidade e rural-urbano assumiram ao longo da história, em contextos espaciais diferenciados,
levaram a formulação de abordagens variadas, já que em cada período histórico, lugares e
sociedades diferentes, se consolidou distintos modos de integração entre esses espaços. Pois o
“rural e urbano denotam processos e sua identificação perpassa a compreensão de que são,
também, fenômenos. ” (WHITACKER, 2010: 90).
Por isso para desconstruir os mitos, é fundamental não se limitar apenas a uma
dicotomia construída, mas sim ao processo como um todo, acerca de como tais concepções
foram sendo construídas, pois as relações entre “campo” e “cidade” possuem uma ampla
variedade de fatores que devem ser pensadas em termos de estrutura, forma, conteúdo e sua
função regional, além do período histórico em que é formulado tais conceitos e suas possíveis
interpretações.
(até 1950), fazendo com que exaltasse a ideia de que a vida urbana seria a ideal e propicia ao
progresso:
2
No ano de 2017 e no período até a conclusão deste trabalho (13/07/2017), a escola Dr. Brunilo Jacó de Castro e
Silva da Comunidade de Currais II é utilizada apenas para projetos educacionais do Governo, como por
exemplo: O Mais Educação do Governo Federal.
3
Pequenos estabelecimentos de vendas que em sua maioria vendem bebidas alcoólicas e uma variedade de
produtos importantes para o dia-a-dia. Se torna uma opção mais acessível quando não se pode ir a um
supermercado.
4
De acordo com os moradores e agricultores de Currais II, as chuvas mais significativas iniciam-se em
dezembro de cada ano e vão até fevereiro, mas se “o inverno for bom” pode estender-se até junho ou julho, mas
com uma menor intensidade.
88
panorama do que é possível encontrar na comunidade de Currais II, verificar em que meio os
jovens analisados a seguir estão inseridos, e dessa maneira levantar questionamentos, opiniões
e críticas acerca dos entrevistados diante do espaço onde vivem, ou seja, dentro de um
contexto social.
O que nos interessa aqui é justamente perceber como essa categoria, "irredutível a
uma definição estável e concreta" (Levi & Schmitt, 1996), é afetada pelas mudanças
e crises recentes do mundo rural e como essa realidade é reelaborada na
formulação dos projetos individuais e familiares em contextos sociais e econômicos
distintos. (CARNEIRO, 1998).
89
As entrevistas em torno dessa temática ocorreram no ano de 2017. No total foram seis
entrevistados com a faixa etária de 16 a 21 anos, todos residentes da comunidade de Currais II
e de famílias que sempre residiram na localidade. Cada um deles concedeu duas
entrevistas/conversas sobre suas perspectivas de “campo” e “cidade”, a sua relação com a
comunidade e sonhos individuais, mas que também inclui uma preocupação com o coletivo
familiar. As entrevistas consistiram em três etapas. 1) Identificação do entrevistado e
trajetória pessoal, 2) Percepções sobre a comunidade e 3) Percepções sobre projetos futuros.
As entrevistas concedidas mostraram a visão dos próprios jovens sobre Currais II,
onde eles ressaltaram suas visões e críticas, tendo uma ideia de “invisibilidade” sempre
presente em relação ao trabalho no “campo” e da própria comunidade em si, fazendo com que
esses fatores sejam cruciais para as suas decisões futuras. A jovem entrevistada Nayra
Hevily5, estudante do ensino médio e que possui 16 anos destaca seu ponto de vista sobre a
comunidade:
“É uma localidade que falta muito para se desenvolver, porque eu acho que a
comunidade é muito “esquecida”, porque falta mais olhares para que ela possa se
desenvolver e se inteirar mais com Redenção (centro) e eu acho que falta muita
estrutura ainda, falta também a questão dos gestores terem um olhar diferente, não
só para cá, mas também para as outras comunidades vizinhas que também precisam
dessa atenção. (...)”
Outra entrevistada, Erika Maria6, que faz faculdade de Administração e que possui 20
anos responde:
“A comunidade é calma, não tem variedades de emprego, muitas vezes a gente tem
que sair para a cidade, até para comprar algo ou vender também, devido os
moradores daqui serem poucos. A saúde também é algo difícil, pois não tem
hospital, só postos de saúde que muitas vezes não tem materiais de procedimentos,
medicamentos ou consultas disponíveis para a comunidade e por isso que para você
ter algum atendimento médico, tem que ir até a cidade.”
5
Entrevista concedida no dia 21 de abril de 2017, por Nayra Hevily de Oliveira Silva.
6
Entrevista concedida no dia 22 de abril de 2017 por Erika Maria da Silva Pinheiro.
7
Entrevista concedida no dia 25 de abril de 2017 por Lucivânia Rodrigues de Sousa Lima.
90
Continuando na mesma sequência das perguntas Erika Maria, define bem seus
objetivos e ressalta os motivos de ficar e os de sair da comunidade:
A partir das entrevistas o que pude perceber é que um dos principais motivos de
alguns jovens de Currais II quererem sair da comunidade é o fator “oportunidades” que logo
vem ligado a “formação” e também “futuro”. Esses fatores destacados são comuns em seus
8
Entrevista concedida no dia 1 de maio de 2017 por Sérgio Henrique da Silva Pinheiro.
9
Entrevista concedida no dia 25 de abril de 2017 por Maria Raquel Pereira da Silva.
91
discursos, pois há uma preocupação não só deles, mas da família em querer conquistar tais
objetivos. Quando perguntada sobre quais eram as oportunidades de trabalho que Currais II
oferecia, Nayra Hevily respondeu:
E nesse mesmo contexto responde Marcos Daniel10: “Aqui em Currais II não tem
muitas oportunidades de trabalho, só a roça e a agricultura. Eu aproveito essas oportunidades
na agricultura enquanto eu não arrumo outro emprego, mas não é algo que eu me vejo
trabalhando futuramente”.
É notório que na fala dos entrevistados, Currais II tem sim oportunidades de trabalho,
mas não é o que eles almejam, pois aproveitam alguns trabalhos querendo apenas que seja
algo provisório, pois acham que essas oportunidades oferecidas pela comunidade não se
encaixam em suas metas para o futuro, já que estão inseridos em uma realidade que é notada
as dificuldades em permanecer na agricultura, além de outros tipos de trabalho, e que buscam
desviar desse tipo de “problema”, tendo como exemplo disso a experiências de vida de seus
próprios familiares. Diante do exposto, reafirma-se, por um lado, há necessidade de uma
análise focalizada e aproximada das dinâmicas dos jovens na questão de quererem sair ou
permanecer na comunidade, uma vez que são processos que levam em conta várias
particularidades dos atores envolvidos, pois como CARNEIRO (1998) designa, existe entre os
jovens uma formulação de projetos individuais que influenciam suas escolhas, que se traduz
na realização de uma carreira profissional e principalmente na busca de uma autonomia
maior.
busca dos jovens por acesso a um mundo de oportunidades, relativizando a noção de que o
fenômeno migratório se relacione apenas a uma questão “monetizada”, de acesso à renda. Por
fim a terceira abordagem trata-se das questões acerca da pluriatividade de pensamentos e
metas como mecanismo de perspectivas para um futuro, buscando uma realidade bem
diferente da que seus pais tiveram.
De acordo com os entrevistados é notada a dificuldade que estes jovens encontram no
acesso à terra (agricultura), pois há um desestímulo para a continuidade da vida no “campo”,
pois existe uma ansiedade em busca da independência financeira através do trabalho o que, na
maioria dos casos, não acontece quando eles trabalham em conjunto com seus pais em suas
propriedades. Como a agricultura é a principal fonte de renda da comunidade de Currais II,
existem vários fatores que acrescentam a dificuldade de muitos jovens em continuar em sua
terra, pois no âmbito agrícola existe uma falta de conhecimento técnico, desconhecimento de
projetos voltados para a agricultura e outras áreas, além de que todo conhecimento agrário
advém do que é repassado pelos pais. O conteúdo da escola, em geral, é direcionado apenas
para a realidade urbana, além disso, falta assistência técnica para orientação dos mesmos, falta
de crédito para iniciarem alguma atividade, entre outros fatores que interferem fortemente no
interesse em permanecer no “campo”.
Apesar do peso dos fatores estruturais, as decisões sobre a migração são tomadas
por indivíduos, que variam na avaliação de fatores de atração ou de expulsão.
Ademais, na decisão de migrar, provavelmente os fatores de expulsão são
anteriores aos de atração, na medida em que os indivíduos fazem um balanço entre
a situação vivida e a expectativa sobre a nova situação. Dependendo de como se
examina a questão, os estudos sobre a migração de jovens focalizam ora os
atrativos no novo ambiente ora os aspectos vistos como negativos no local de
origem. Entre os ‘ruralistas’ predominam as análises que apontam antes os fatores
de expulsão do que os de atração, como causas da migração. (BRUMER, 2007:3).
Os fatores que levam o jovem de Currais II a ficar ou sair da comunidade são muitos,
mas um dos principais motivos que eles levam em consideração é a opinião da família, pois é
a partir do contexto familiar que muitas vezes eles evidenciam a necessidade de saírem ou
não. E seguindo essa ideia foi feita a seguinte pergunta: “Há algum incentivo de seus pais para
você ficar ou sair da comunidade? Qual é o sonho dos seus pais para você?”. E nessa ordem
de perguntas Erika Maria responde:
“Eu tenho mais incentivo dos meus pais para ficar na comunidade. Mas na verdade
como aqui é difícil de conseguir um emprego, querendo ou não se eu fosse
trabalhar na minha área que é administração, aqui não tem muita oportunidade
para essas coisas, então eu teria que sair, mas se fosse da preferência do meus pais,
eles queriam que eu trabalhasse aqui, pois eu ficaria perto deles. O sonho dos meus
93
pais com certeza é que eu estude muito, consiga um emprego, seja independente e
viva bem.”
Cada entrevistado quando perguntado sobre seu “sonho” responde algo referente à
profissão, onde cada um se mostrou interessado em uma área para uma atuação futura, como,
por exemplo, no âmbito da: Psicologia, Administração, Educação Física, Direito e no ramo
empresarial. Quando foi perguntada sobre seu sonho e em seguida se era possível realiza-lo
no espaço/comunidade onde vive, Maria Raquel13 responde com toda clareza:
“Meu sonho é montar um salão para as minhas clientes e também montar uma
empresa de aniversário. É possível realizar esse meu objetivo na comunidade sim,
mas com muita dificuldade, porque aqui a quantidade de clientes é pouca e não tem
um espaço adequado para a construção desse meu sonho. Por isso que às vezes eu
acho que se eu me mudasse para a cidade eu teria um lucro maior. ”
Mostrando seu ponto de vista Sérgio Henrique também relata seus desejos e as
alternativas para que se possa realiza-los: “Meu sonho é se formar e conseguir um bom
11
Entrevista concedida no dia 15 de maio de 2017 por Sérgio Henrique da Silva Pinheiro.
12
Entrevista concedida no dia 20 de maio de 2017 por Lucivânia Rodrigues de Sousa Lima.
13
Entrevista concedida no dia 21 de maio de 2017 por Maria Raquel Pereira da Silva.
94
emprego. Aqui na comunidade não tem como eu levar adiante meu sonho, porque existe
muita dificuldade de conseguir um emprego principalmente na área que eu quero futuramente
atuar que é na parte da Educação Física”. A jovem entrevistada Erika Maria 14, reforça o seu
ponto de vista destacando vários aspectos para o seu futuro:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa teve como questão norteadora o estudo da uma “juventude rural”, termo
este descrito pelas autoras CASTRO (2005) e CARNEIRO (1998) em seus trabalhos
14
Entrevista concedida no dia 14 de maio de 2017 por Erika Maria da Silva Pinheiro.
95
REFERÊNCIAS
BAENINGER, R. Redistribuição espacial da população e urbanização: mudanças e
tendências recentes. In: GONÇALVES, M.F.; BRANDÃO, C.A.; GALVÃO, A.C. (Orgs).
Regiões e cidades, cidades nas regiões: o desafio urbano regional. São Paulo: Editora
UNESP, 2003. p. 271-288.
96
Além dos problemas de base teórica, percebe-se que não há um comprometimento por
parte dos órgãos educacionais no sentido de garantir a formação continuada para os
professores do ensino básico. Também, faltam recursos e materiais didáticos que abordem o
tema dentro das perspectivas atuais e que sirvam de subsídio para o professor realizar um bom
trabalho. De acordo com Guimarães,
temática afro-brasileira nas escolas. Uma delas, e talvez a mais significativa, é a falta de
programas de formação continuada que possibilitem aos professores uma apropriação acerca
da temática e das metodologias e recursos que podem ser empregados para explora-la.
Segundo Silva e Guimarães
Assim, é possível afirmar que a formação inicial dos professores também é deficiente,
no que diz respeito ao processo de profissionalização docente e, especificamente em relação à
temática afro-brasileira. A principal dificuldade resulta da elaboração do currículo acadêmico,
do qual a citada temática só passou a constar a partir da última década.
Vários são os fatores que podem explicar tal fenômeno. Por exemplo, a falta de
interesse por conteúdos relacionados à história da África era uma situação recorrente até o
início da segunda metade do século XX. Não se pode negar que houve, após esse período, um
processo de ressignificação da história da África e dos afro-brasileiros. Atualmente é possível
encontrar diversos trabalhos, sejam dissertações, artigos, teses ou livros que abordam a
temática. Ou seja, observa-se um crescimento significativo da produção acadêmica nesta área.
Apesar disso, a formação docente ainda é bastante incipiente. Algumas universidades
oferecem a disciplina de história afro-brasileira como optativa, o que contribui para se colocar
à margem do sistema educacional a importância da luta dos movimentos negros por espaço no
ambiente escolar e acadêmico, pela valorização de suas práticas e representações culturais,
afirmação das identidades e combate ao racismo. Para Alberti ― O racismo está entre as
questões ditas ― sensíveis ou ― controversas, por isso ignoradas ou evitadas em sala de aula.
Essa questão pode ser enfrentada a partir da desconstrução da imagem do negro como
escravo. (ALBERTI, 2013: 36). A partir da formação docente é possível um ensino que
vislumbre uma mudança de mentalidade possibilitando ao professor abordar questões até
então silenciadas devido à formulação de ideias preconceituosas e estereotipadas.
O problema da formação inicial repercute para além dos muros das universidades,
chegando às escolas, espaço onde a lei 10.639 deve ter uma atuação mais significativa.
Algumas escolas até dispõem de um bom acervo historiográfico acerca da história do negro
no Brasil, abordando principalmente as representações culturais, os vários papéis que os afro-
brasileiros desempenharam e desempenham na construção do país. Porém, estas obras não
10
outra abordam a temática, porém acredito que os conteúdos de história afro-brasileira devem
estar definidos de forma mais significativa tanto no currículo como no livro didático.
Todos os respondentes afirmaram que a lei é aplicada em suas respectivas escolas não
só pelo fato de se tratar de uma lei, mas porque as instituições se preocupam com o combate
ao racismo e com a importância dos negros na sociedade brasileira. De acordo com as
respostas todas as escolas, além da abordagem cotidiana do assunto, desenvolvem projetos
que visam à integração das referidas temáticas no currículo escolar.
Quando indagados acerca da formação voltada para o ensino de história afro-
brasileira, se a Secretaria Estadual da Educação e a Coordenadoria Regional oferecem essas
formações, se eles já participaram de algum curso de formação sobre a Lei 10.639/2003,
ofertada pelo Estado, e se têm conhecimento de algum plano estadual de educação elaborado
com o objetivo de promover as formações, todos os respondentes afirmaram que não existe
um compromisso por parte do estado em ofertar as formações, tendo cada um deles
participado apenas de uma formação, e que os professores acabam buscando se qualificar por
conta própria.
Todos afirmaram que para que a Lei 10.639/2003 seja plenamente aplicada nas escolas
estaduais do Ceará faltam recursos como, materiais didáticos adequados, formação docente
continuada, até porque trabalhar o assunto não é simplesmente reproduzir o que está no livro
didático, tem que se ter todo um cuidado sobre o que se vai ensinar e de que forma o assunto
vai ser abordado, de modo a não se repetir ou reforçar estereótipos. Segundo os respondentes,
falta iniciativa por parte do estado em tratar essas questões, em perceber a importância do
combate ao racismo e a outras formas de preconceito, e em promover um ensino de qualidade.
Apontaram ainda, a deficiência da formação inicial uma vez que as licenciaturas não trazem
nos currículos um amplo debate que possibilite ao formando se apropriar do assunto de modo
adequado, principalmente nos cursos que não fazem parte das ciências humanas nos quais os
professores sentem maior dificuldade em abordar os temas. E ainda, falta fortalecer o vínculo
entre escolas e universidades de modo que as discussões ocorridas no ambiente acadêmico
possam chegar à educação básica.
Sobre a forma como o Livro Didático trata da história e cultura afro-brasileira, os
docentes apontaram equívocos conceituais, questões ainda bastante pontuais, ou seja, sem um
aprofundamento acerca dos temas, períodos inteiros sem referência alguma aos africanos e
afro-brasileiros, e a permanência de conteúdos já existentes antes da aprovação da lei, que só
valorizavam as questões voltadas para o passado colonial escravista.
10
Uma professora mencionou que os livros têm passado por um processo de mudanças,
porém ainda há muito a ser respondido para que o ensino da história afro-brasileira de fato
contemple as demandas expressas na lei. Um professor afirmou que os livros são analisados
pelo Programa Nacional do Livro Didático e que de uma maneira mais profunda ou mais
superficial devem abordar a temática, cabendo ao professor escolher a obra que melhor
englobe o assunto.
A última pergunta considerou a necessidade e importância da formação continuada em
ensino de História afro-brasileira para a educação. Todos os docentes afirmaram que a
formação é essencial, pois capacita os profissionais a trabalharem com questões que ainda não
dominam completamente. Afirmaram ainda que é papel do estado ofertar formações na área, e
se existem programas de formação que contemplam outras áreas e conteúdo, também deve
haver para o ensino de história da África, ou o estado estará negando a importância da
temática e o seu próprio papel no cumprimento da lei.
Segundo a análise de um professor geralmente os docentes ficam presos ao cotidiano
escolar, o que torna um pouco difícil a busca por novos métodos de ensino. As formações são
uma oportunidade de se quebrar essas barreiras uma vez que promovem a integração entre
diversos professores, análises de teorias diversas acerca do ensino de História, e uma maior
aproximação com as universidades em parceria com a Secretaria da Educação do Estado.
Considerações finais
Dessa forma, pode-se concluir que a aplicação da lei 10.639/03 no ensino básico ainda
está muito aquém do esperado, principalmente pela comunidade negra. É necessário, porém,
se ter todo um cuidado para, a partir dos discursos não anular um trabalho que vem sendo
desempenhado por diversos professores na última década, que pode ser observado a partir do
contato que as escolas estabelecem entre si. Ou seja, é comum que um professor venha a ter
conhecimento sobre o trabalho do outro.
Portanto, não é nenhum exagero afirmar que a temática da história afro-brasileira é
trabalhada nas unidades de ensino básico, pelo menos em boa parte delas. O que se questiona
aqui é a falta de uma proposta ou de propostas por parte do Estado, que promovam
discussões, trocas de experiências, construções de novos elementos que possam ser
incorporados ao tema, de novos recursos e métodos a serem utilizados nas aulas.
O que se percebe é que este é um tema já bastante explorado em se tratando da
necessidade de incluí-lo no ensino básico de forma mais rigorosa, com a desconstrução de
estereótipos e preconceitos, e que possa de fato, contribuir para um reconhecimento da
10
presença africana no Brasil a partir do resgate de valores durante muito tempo negligenciados
pela historiografia oficial.
Para que haja um reconhecimento das questões raciais e do racismo como elementos
que relegaram os negros a uma posição considerada inferior na sociedade brasileira, é
necessário que toda essa problemática seja amplamente discutida nos espaços escolares
conforme estabelecem as Diretrizes Curriculares. De acordo com Abreu e Mattos, ―As
―Diretrizes‖ trazem para o âmbito da escola, pela primeira vez, a importante discussão das
relações raciais no Brasil e o combate ao racismo, tantas vezes silenciado ou desqualificado
pelas avaliações de que o Brasil é uma democracia racial‖. (ABREU E MATTOS, 2008: 9).
Portanto, ainda há muito a ser realizado para que de fato a temática seja incorporada
amplamente aos currículos escolares. E não tem como haver êxito nessa proposta sem que o
professor disponha de meios para discuti-la com seus alunos. Ou seja, todo esse conjunto de
ideias deve passar, inevitavelmente pelo processo de formação docente.
REFERÊNCIAS
FONTES:
QUESTIONÁRIO APLICADO AOS (ÀS) PROFESSORES (AS)
1. Você tem conhecimento da Lei 10.639/2003? Sim ( ) Não ( )
2. Você considera esta lei importante?
Sim ( ) Não ( ) Porque?
3. Em sua opinião, a referida lei é aplicada nas escolas estaduais do Ceará? Sim ( )
Não ( ) Porque?
4. O ensino de História afro-brasileira é abordado na sua escola?
Sim ( ) Não ( ) Porque?
5. A Secretaria Estadual da Educação e/ou a Crede da sua região oferecem formações
para o ensino de História afro-brasileira?
Sim ( ) Não ( ) Comente a respeito.
6. Você já participou de algum curso de formação sobre a Lei 10.639/2003, ofertada pelo
Estado? Sim ( ) Não ( ) Comente a respeito.
7. Você tem conhecimento de algum plano estadual de educação elaborado com o
objetivo de promover formações voltadas para o ensino de História afro-brasileira?
Sim ( ) Não ( ) Comente a respeito.
8. O que você acha que falta para que a Lei 10.639/2003 seja plenamente aplicada nas
escolas estaduais do Ceará?
9. Você considera que o Livro Didático trata da história e cultura afro-brasileira de forma
adequada?
Sim ( ) Não ( ) Comente a respeito.
10. Você considera que a formação continuada em ensino de História afro-brasileira seja
necessária e/ou importante para a educação?
Sim ( ) Não ( ) Porque?
10
TERMO DE COMPROMISSO
Este questionário destina-se a professores da rede estadual do Ceará, efetivos e/ou
temporários que se disponham de forma exclusivamente voluntária a respondê-lo. O mesmo
será utilizado como fonte para elaboração de um artigo acerca da formação de professores
voltada para o ensino de História afro-brasileira nas escolas estaduais do Ceará, que será
apresentado no XVI Encontro Estadual de História do Ceará, promovido pela Universidade
Federal do Ceará. Adianto que embora alguns dados sejam requisitados, os respondentes não
serão identificados. O referido trabalho poderá ser consultado após publicação nos anais do
evento.
1. Qual sua formação acadêmica?
2. Atualmente, qual a disciplina que você leciona?
3. Você leciona em quais turmas?
4. Qual seu vínculo com o estado?
BIBLIOGRAFIA:
ABREU, M; MATTOS, H. M. Em torno das Diretrizes curriculares nacionais para a educação
das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro- brasileira e africana: uma
conversa com historiadores. Estudos Históricos, Rio de janeiro, v. 21, n. 41, p. 5-20, jan./jun.
2008.
ALBERTI, Verena. Algumas estratégias para o ensino de história e cultura Afro- Brasileira
In: PEREIRA, Amílcar Araújo; MONTEIRO, Ana Maria. (Orgs). Ensino de história e
culturas Afro-Brasileira e Indígenas. Rio de Janeiro: Pallas, 2013 p.27-55.
FERNANDES, J. R. O. Ensino de História e Diversidade Cultural: Desafios e Possibilidades.
Cad. Cedes, Campinas, vol. 25, n. 67, p. 378-388, set./dez. 2005.
FONSECA, Selva. Didática e prática de ensino de história: Experiências, reflexões e
aprendizados. Campinas, SP: Papirus, 2003. (Coleção Magistério: Formação e Trabalho
Pedagógico).
SILVA, M; FONSECA, S. G. Ensinar História no século XXI: em busca do tempo entendido.
— 4ª ed. — Campinas: Papirus, 2012.
10
Resumo: Olhar para o Ceará Colonial, é paralelamente, encarar uma realidade de violência
institucionalizada, pois as relações entre os fazendeiros, coroa portuguesa e as populações
indígenas desse espaço foram marcadas por conflitos e imposições. No entanto não podemos
cometer o erro de achar que os indígenas foram agentes passivos nesse processo, muito pelo
contrário, os grupos étnicos tentaram dentro de suas possibilidades, resistir a essa violência e
protagonizarem também a formação social do Ceará. Juntamente com essa abordagem, o
presente artigo procura compreender como essas questões chegam as salas de aula do ensino
básico, suas possibilidades e perspectivas.
Palavras-chave: Ceará Colonial. Indígenas. Ensino.
Não é difícil na nossa prática docente e no próprio caminhar do nosso cotidiano nos
depararmos com situações que reforçam os estereótipos construídos e reproduzidos em torno
dos povos indígenas. Tais situações que posteriormente serão exemplificadas fazem-nos
pensar na nossa condição de professores de História e também em qual História chegou e está
chegando em sala de aula. Partindo dessas questões em especial, a presente pesquisa pretende
analisar a presença e atuação dos grupos indígenas no Ceará colonial e concomitante perceber
como essa abordagem chega em sala de aula.
Faz-se necessário destacar nesse primeiro momento que a proposta desta pesquisa se
encontra em estágio incipiente e que, como requer o trabalho da nova historiografia a qual nos
comprometemos, a bibliografia aqui usada precisa ser relida e trilida, deve-se estimular ainda
mais o trabalho de campo com as fontes para que assim novas problematizações surjam nesse
processo. A nova historiografia mencionada em linhas anteriores diz respeito a uma série de
estudos e novas abordagens em torno da temática indígena que ganharam força no Brasil a
partir das últimas décadas do século XX e que servem de base para esta escrita.
Entender uma sociedade especifica, um espaço determinado geograficamente em um
recorte temporal estabelecido não é uma das tarefas mais fáceis, muito pelo contrário, mas é
esse o nosso oficio enquanto historiadores. Dessa maneira é válido destacar que toda e
1
Autor, Graduando do Curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual Vale do Acaraú,
edgley_furtado@hotmail.com
2
Orientador, Professor da Disciplina de História do Ceará I do Curso de História da Universidade Estadual Vale
do Acaraú, raisouza2013@hotmail.com
10
3
COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812- 1820) –
Teresina - EDUFPI, 2015. p. 31
10
de encontro ao estudo dos autores que também tratam desse recorte e das fontes que serão
aqui problematizadas, produzidas no período em questão.
Como já mencionado nos parágrafos introdutórios dessa pesquisa, parte do objeto de
estudo consiste em relatos produzidos por viajantes que passaram por essas terras hoje
compreendida como Ceará e que deixaram registros sobre economia, terra, populações
nativas, seca, política etc. Como a tentativa aqui é fugir da visão objetiva, crua e superficial da
História, buscaremos traçar uma análise dos discursos presentes nessas fontes. Dessa maneira,
procuraremos entender a representação simbólica construída em torno desse Ceará colonial.
É importante entendermos nesse primeiro momento a sociedade da capitania cearense
e como tal estava organizada nesse território, sobre isso nos diz Pinheiro:
Aqui se constituiu uma parcela que representava por volta de 10% da população,
que eram os fazendeiros, criadores de gado que detinham praticamente o monopólio
da terra (...). Na outra ponta, estava uma parcela quase equivalente composta de
escravos, inicialmente predominantemente de origem indígena e, posteriormente
(...) com africano e seus descendentes. O terceiro grupo social, composto por
despossuídos. 4
Essas informações, que são essenciais para compreendermos este espaço estão
presentes, em grande maioria, nos documentos produzidos pela coroa e também nos relatos
que serão aqui tratados.
Como já mencionado, a constituição das primeiras vilas aconteceu tardiamente na
capitania, esse provavelmente é um dos principais motivos para que a visão de atraso fosse
tão associada ao Ceará durante o período colonial. Constata-se isso a partir dos escritos
produzidos, que de maneira geral, indicavam que a região era um local de miséria e perigo
eminente, não só produzidos pelos fenômenos naturais como a seca, mas também pelos
decadentes habitantes que aqui viviam, especialmente os indígenas.
O relato de Henry Koster vai de encontro a este discurso de um espaço miserável. Sua
principal obra intitulada “Viagens ao Nordeste do Brasil” 5 se configuram como um tesouro
para entendemos essas construções discursivas do Ceará colonial. Koster foi um comerciante
inglês que viajou o nordeste do Brasil nos primeiros anos do século XIX e que passou pelo
Ceará mais precisamente em 1810. Seus escritos sobre tudo que viu e viveu em terras
nordestinas foram publicados em forma de livro no ano de 1816, intitulado “Travels in
4
4 PINHEIRO. Francisco José. “Um perfil da formação social cearense.” In: Notas sobre a formação social do
Ceará (1680-1820). Fortaleza: Fundação Ana Lima, 2008. p. 21
5
5 KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro / São Paulo / Fortaleza. ABC, 2003.
10
Brazil”. O acesso ao conteúdo presente no relato só chegou até nós em 1940 com a tradução
obra para o português realizada por Câmara Cascudo.
Koster constrói uma imagem de Ceará a partir de suas vivências e é válido destacar
que essa construção faz parte de uma seleção do mesmo e de seus interesses. “Pobreza de solo
em que esta vila está situada”6 é como define Koster a respeito da localização da Vila de
Fortaleza, que apesar de possuir prédios públicos recém construídos e uma tentativa por parte
do governo local de “limpar” o espaço, ainda assim está inserida em um semiárido severo, que
deixa em primeiro plano a imagem dos flagelados e da desolação provocada pelas constates
secas que acometem o território.
A respeito da violência presente neste território tanto o relato de Koster como os
demais a serem apresentados enfatizam os grupos sociais como um dos principais motivos
para a situação. Os ricos fazendeiros e criadores de gado do Ceará dominavam de fato o
controle sobre o território, tendo mais influência inclusive que a própria coroa portuguesa. O
uso da força era o principal instrumento utilizado por estes, principalmente em relação aos
povos nativos que, na tentativa de resistirem a ocupação de suas terras, eram maltratados e
mortos. Situação esta que nem o governo tinha controle, visto que até mesmo representantes
oficias da coroa tinham medo destes senhores, o que acabava por abrir caminho para a
impunidade e a ausência quase que total de políticas públicas.
Esse cenário de violência é evidenciado também por Pinheiro em seu clássico “Notas
sobre a formação social do Ceará (1690 - 1820)” que no primeiro capitulo faz um apanhado
da estrutura social do Ceará e também destaca a violência cometida pelos grupos senhoriais
contra indígenas. Para ele, a violência deve ser encarada como um elemento constitutivo da
ocupação portuguesa na capitania, visto que a “constituição do espaço cearense sob o domínio
português foi marcada pelo conflito entre os povos indígenas e os colonos na disputa pelo
território da capitania”7
Em relação ao descaso por parte do poder real e a impunidade que se firmava no
território cearense, Koster faz uma descrição de como essa realidade estava presente na
sociedade da capitania, quando trata a respeito da justiça ele relata “Um inocente é punido se
interessar a um rico fazendeiro enquanto um assassino escapará se tiver a proteção de um
patrão poderoso”8. O relato complementa o que foi apresentado anteriormente por Pinheiro,
sobre o jogo de forças presente no sertão.
6
6 KOSTER, 2003. p. 173.
7
PINHEIRO, 2008, p. 22
8
KOSTER, 2003, p. 177.
11
A prática de expulsão dos indígenas de seus locais também era justificada como uma
“limpeza de terra”. Essas informações encontram-se, em grande maioria, nas cartas de
sesmarias que eram enviadas para o rei solicitando o direito formal da terra ocupada. A
própria conquista ou não de uma posse de sesmaria estava ligada a atuação desse sesmeiro nos
conflitos exitosos contra os nativos.
Obviamente muito mais poderia ser aqui analisado no que diz respeito ao espaço
social cearense do período colonial. Porém, como já mencionado no tópico introdutório, está é
uma pesquisa em estágio inicial e que nesse momento tem por objetivo apresentar um
panorama geral do discurso construído a respeito do Ceará colonial e da atuação das
populações indígenas nesse espaço.
9
COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812- 1820) –
Teresina - EDUFPI, 2015. p. 31
11
conviviam na capitania. Por conta da falta de produção no período em questão por parte dos
próprios índios, muitas dessas perguntas continuam sem informações concretas para nós, mas
é possível dimensionarmos a presença indígena no Ceará precisamente a partir da primeira
formação dos aldeamentos compreendidos entre os séculos XVI e XVIII.
No decorrer desses três séculos, nove aldeamentos foram constituídos nesse território,
estes objetivavam a reunião do maior número de nativos que estivesses “espalhados” pelos
arredores da aldeia, para passarem por um processo de domação, catequização e alienação. O
quadro abaixo nos apresenta justamente o nome desses aldeamentos construídos no território,
as áreas de referência que norteiam nossa localização espacial do estado e os grupos que
compunham essas aldeias.
Fonte: DANTAS, Beatriz, et. Al. “Os povos indígenas no Nordeste brasileiro: um esboço
histórico. In: CUNHA, Manuela C. da. História dos Índios no Brasil. p. 446.
Esses dados são essenciais para já, nesse primeiro momento de abordagem sobre os
povos indígenas especificamente, percebermos as diversas etnias presentes no estado do
Ceará durante o período colonial e que passaram por processos de “invisibilização”, medida
essa que fazia parte do projeto português de domínio do território.
Retomando ao relatório de Koster, é valido fazer uma ressalva pois seu relato se
configura como um dos mais importantes escritos a respeito dos indígenas do Ceará nesse
período em estudo, colonial. É preciso cautela nesse momento, pois mesmo sendo um
documento de alta relevância, ele não deixa de ser um processo de seleção de alguém, para
alguém, de uma ótica especifica e de com interesses de quem o escreve.
Koster se detém mais aos aspectos do cotidiano dos indígenas, por essa questão em
uma parte dos seus relatos ele menciona que há muito o que se dizer de bem dos indígenas,
que eram povos dóceis e que raramente se envolviam em conflitos sangrentos entre si.
11
Segundo Koster mesmo vivendo agora em aldeamentos coletivos, alguns grupos “conservam
em segredo seus ritos bárbaros, prestando adoração ao maracá”.
Esse relato também precisa ser problematizado, o uso do termo barbáros no relato
pode ser compreendido a partir da constatação do lugar de fala de Koster, ele é um europeu
em terras cearenses, muito provavelmente já aporta nesse território com seus preconceitos
estabelecidos acerca dos nativos e para a época, de fato tinha-se a ideia de que os indígenas
eram bárbaros, por mais que pra gente hoje pareça tão obvio que a História não é dessa forma,
ou pelo menos não deve ser.
Nessa pequena fala de Koster mencionada anteriormente é possível perceber que,
mesmo diante das situações de violência, imposição e controle nas aldeias, algumas medidas
eram tomadas pelos grupos para burlar esse sistema, como a prática de seus ritos mesmo sob
proibição. Ou seja, em momento algum a atuação indígena deve ser entendida como algo
passivo, eles atuavam conforme seus interesses dentro das possiblidades que lhes cabiam.
Apoiada nessa nova historiografia, esta pesquisa tenta demonstrar justamente a
participação efetiva dos indígenas na construção do Estado Nacional, especificamente no
período colonial.
O relato de Koster também nos dá uma dimensão do posicionamento desses indígenas
frente as imposições dos senhores fazendeiros. Pelo contrário do que pensamos a respeito
desses povos, estes tentavam a todo custo fugir da submissão imposta, rejeitando muitas vezes
um tratamento formal com os fazendeiros. Em outro trecho do seu relato isso fica explicito:
Um indígena nunca está disposto a chamar o patrão, que o haja alugado, por
senhor, embora de uso comum dos brancos entre si quando fala, e por todos os
homens libres da região. (...) recusam dar por cortesia o que outrora lhe seria
exigido pela lei.10
10
KOSTER, 2003, p. 178
11
11
PINHEIRO, 2008, p. 18
11
reconhecem como indígenas, muito provavelmente esse número já deu outro salto nos últimos
7 anos pois cada vez mais os grupos estão se posicionando e reivindicando seu espaço.
Trazendo essa discussão para nossa realidade, a nível de Ceará, é nítido a importância
dessa temática, não só pelo histórico das cidades cearenses que possuem sua origem vinculada
a história indígena (inclusive nos próprios nomes, a exemplo as cidades da região noroeste do
estado: Reriutaba, Guaraciaba do Norte, Camocim, Jericoacoara), como também pela
presença de indígenas hoje no cenário político-social do Estado. Mais uma vez torna-se
necessário a apresentação de um quadro, dessa vez dos grupos indígenas presentes no estado
reconhecidos pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e de como anda seus processos
administrativos de reconhecimento do espaço físico.
Fonte: http://www.socioambiental.org/
É valido, portanto, todas as tentativas de inserir essa discussão atual dentro das salas
de aula, nas escolas de ensino infantil, fundamental e médio. Nas palavras de Giovani José da
Silva Apreender a respeito dessa riquíssima diversidade étnico e cultural constitui um desafio
permanente para professores e estudantes da educação básica no Brasil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Ceará colonial e a atuação indígena nesse espaço devem ser entendidos por nós
como uma importante fonte de pesquisa. As diversas fontes como relatos, inventários,
documentos governamentais nos oferecem informações relevantes para o nosso trabalho, mas
antes de tudo é preciso perceber os ditos e não ditos nas entrelinhas, é lá que a maioria desses
grupos étnicos se posicionam.
Portanto não podemos entender essas considerações como uma conclusão, longe disso,
esse estudo incipiente abre portas para percebermos a atuação indígena no âmbito do
11
cotidiano, religioso, político, econômico e cultural e quem sabe servir como objeto de estudo
posteriormente.
Os indígenas foram e continuam sendo protagonistas de sua própria história e a forte
presença desses agentes no Ceará reforça ainda mais a importância de os conhecermos
melhor, a partir de suas próprias vivencias de vida e manifestações culturais.
Os relatos de Koster foram fundamentais para entendermos o Ceará colonial, mais
especificamente no início do século XIX. Uma gama de informações não pôde ser trazida a
está escrita por motivos de limitações, mas “Viagens ao Nordeste do Brasil” se configura uma
potente fonte histórica que precisa ser lida e relida, para que percebamos ainda mais a fala dos
indígenas nas entrelinhas.
A dimensão histórico-social que Pinheiro nos apresenta é fundamental para a
compreensão desse espaço que ora é representado como espaço de miséria, ora como espaço
de riquezas naturais, contraste que de fato merecem problematização.
A breve apresentação em torno do ensino busca refletir sobre como todas essas
discussões presentes em sala de aula de universidades e em publicações acadêmicas estão
chegando, se é que chegam no ensino básico.
A proposta é uma provocação para que os leitores dessa escrita encerrem essas últimas
linhas repensando na forma como vemos os indígenas do passado e como os encaramos hoje,
como eles estão presentes nos livros didáticos e como devem ser percebidos a partir de agora.
REFERÊNCIAS
FONTES
Tabela - Aldeamentos no Ceará Colonial disponível em DANTAS, Beatriz, et. Al. “Os povos
indígenas no Nordeste brasileiro: um esboço histórico. In: CUNHA, Manuela C. da. História
dos Índios no Brasil.
Tabela - Povos Indígenas no Ceará disponível em http://www.socioambiental.org
BIBLIOGRAFIA
COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no
Ceará (1812-1820) – Teresina - EDUFPI, 2015.
PINHEIRO. Francisco José. “Um perfil da formação social cearense.” In: Notas sobre a
formação social do Ceará (1680-1820). Fortaleza: Fundação Ana Lima, 2008.
KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro / São Paulo / Fortaleza.
ABC, 2003.
11
1
2
11
3
Veja. 19 de março de 1986. P. 78. Acervo do NUDOC (UFC).
11
a grande maioria), mas os maiores espaços e as cores mais vibrantes são para o “Chevette 84.
Preparado para vencer”, para o “Ford Del Rey Scala 84. O máximo de requinte para quem
vive na era da tecnologia” e até para a rede de supermercados Carrefour, onde um saco de
compras sobrecarregado de alimentos diversos informa que “este ainda é o melhor pacote
contra a inflação.” Esse embate de realidades, essa contradição latente entre as notícias sobre
a pobreza e os anúncios com a pujança pode ser, de início, compreendido porque o discurso
publicitário é “livre de contratos enunciativos que o obriguem a ser ‘fiel aos fatos’ ou a
‘transmitir informações’...[e também] não possui o poder de definição da realidade de outros
gêneros, como o jornalismo, por exemplo” (GASTALDO, 2012: 20). Entretanto, essa
diferença de tons entre as notícias e as publicidades ocorre porque estas últimas apresentam,
quase via de regra, “um mundo sem conflitos, sem problemas que não sejam resolvidos
imediatamente (por intermédio do produto, é claro), uma espécie de ‘mundo ideal’”
(GASTALDO, 2012: 24). Acreditamos, todavia, que além de um mundo ideal e de muitas
mercadorias, a publicidade pode nos dizer ainda mais. Bem mais.
A publicidade pode nos dizer bastante sobre a cultura de uma época, por exemplo.
Portanto, ela, a publicidade, enquanto fonte de pesquisa ou mesmo como objeto de estudo,
pode ser de grande valia para historiadores, antropólogos e sociólogos, dentre outros.
Obviamente, esse pressuposto parte da premissa de que a função do discurso publicitário está
para além da venda de mercadorias e serviços ou da promoção de marcas e de lojas. Significa
acreditar que a publicidade informa e revela maneiras de ser e estar na sociedade: seus
anúncios expressam imaginários sociais, valores morais, anseios e expectativas de uma época.
Nesta premissa de que as publicidades têm muito a nos dizer, a depender das questões
que na análise a elas lançarmos, faz-se necessário perceber e problematizar, à guisa de
exemplo, por que, em uma revista Manchete do final da década de 1960, lia-se em um
anúncio “Na câmara de torturas o TV Philips 550 resistiu a tudo”, ou por que razão o sabão
Odd fazia “guerrilhas contra a sujeira”, e ainda, talvez bem mais, por que as toalhas Artex
afirmavam com tanta ênfase que “Artex continua sua política: contra a tradição e a favor da
família” (CARTOCE, 2017: 1). Claro está que, nessas publicidades, há uma ressignificação
de termos e expressões que, naquele tempo, eram parte de todo um imaginário social4
4
Ele [o imaginário social] se traduz como sistema de ideias, de signos e de associações indissoluvelmente ligado
aos modos de comportamento e de comunicação. E a análise dos imaginários sociais ganha novos possíveis
quando se começa a cotejá-los com os interesses sociais, com as estratégias de grupo, a autoridade do discurso, a
sua eficácia em termos de uma dominação simbólica, enfim, com as relações entre poder e representação.”
CAPELATO, Maria Helena R., Eliana R. F. Representação política: O reconhecimento de um conceito na
historiografia brasileira. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir. (Orgs) Representações:
contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas/SP: Papirus Editora, 2000, p. 229
12
marcado por torturas, repressão às guerrilhas e da busca por uma suposta defesa aos valores
da família. O que dizer, também, da marca de roupas Le Mazelle, que em 1968 anunciou,
igualmente na Manchete: “Não espalhem...Le Mazelle está preparando um golpe de estado na
moda brasileira com sua linha 68.” Anos de ditadura, anos pós-golpe...O uso da expressão em
um anúncio de revista de grande tiragem e de circulação nacional é revelador de pelo menos
uma marca: a palavra golpe, apesar do governo ditatorial e dos seus esforços repressivos por
intermédio de uma forte censura institucionalizada e moral para promover a expressão
revolução, estava mais presente no cotidiano do que os militares poderiam querer. E os
publicitários e a agência que fizeram circular esse anúncio sabiam bem disso.
Não se trata de afirmar se os publicitários estavam ou não coligados com os interesses
dos ditadores brasileiros. Isso não é, para nós, a maior questão. Porque já é lugar-comum entre
comunicólogos e historiadores da publicidade que a maior parte das grandes agências
nacionais enriqueceu às custas das vultosas contas governamentais, e que a publicidade
brasileira tornou-se competitiva mundialmente exatamente no período ditatorial brasileiro
(ARRUDA, 2004: 161). Ao estudar os ideais otimistas propagados pela ditadura militar
brasileira à época do chamado “milagre econômico”, Carlos Fico aponta uma das
especificidades da propaganda governamental do período (FICO, 1997: 118),
É nesse contexto que se entende melhor a opção pela propaganda diferenciada, que
não usava sinais típicos do poder e da política, nem queria parecer oficial ou
doutrinária. Mais ainda, é também em função dessa busca de um discurso
construtor da história que se compreende a utilização do “material histórico” a que
se aludiu: para sublinhar o caráter pretensamente fundamentador e notável da
época em que se vivia era necessário lançar mão de imagens, palavras e gestos que
estivessem enraizados na própria “memória nacional”. Foi o que se fez.
Foi aí que palavras como “amor”, “união”, “solidariedade”, entre outras, passaram a
compor o panteão dos “valores nacionais”. Tudo, supostamente, pelo “Brasil grande”, o
Brasil, “um país que vai para frente” (FICO, 1997: 129).
Muitos outros casos poderiam ser para cá trazidos. O que deve ficar claro é que, tanto
de um lado quanto de outro, ditadura ou oposição, havia a mobilização, via propaganda ou
publicidade, de valores, de expectativas, no limite de expressões que naqueles tempos
estavam em maior voga no cotidiano, nos diferentes âmbitos da cultura. E disto tudo se pode
valer o historiador para problematizar e compreender as disputas travadas cotidianamente,
para as quais a publicidade é uma interessante via de acesso.
12
que ela dedica a maior parte dos seus esforços” (SILVA, 2010: 117). Assim sendo, esse
reverberar do cotidiano está tanto nos anúncios da Manchete da década de 1960, onde
palavras como “guerrilha”, “família” e “tradição” e expressões como “câmara de torturas”,
quanto na Veja dos anos 1980, anos de predomínio dos termos “crise”, “inflação”, e mais
ainda de “economia”. Portanto, a publicidade nos dá indícios dessas idéias que, nas páginas
passadas das revistas, passavam também naqueles cotidianos.
Mas não olvidemos: a publicidade é também fragmento, é traço e apenas parte de todo
um sistema que tem na produção e no consumo de mercadorias a sua chave- mestra. A
publicidade é, em instância isolada, um meio que levará ao fim máximo do capitalismo: o
consumo de mercadorias. Acerca dessa função da publicidade na sociedade capitalista, o
antropólogo Everardo Rocha, em “Magia e Capitalismo” (ROCHA, 2010: 31), aponta que,
A publicidade retrata, por meio dos símbolos que manipula, uma série de
representações sociais sacralizando momentos do cotidiano. Sua presença contrasta
fortemente com a mentalidade científica e racional da nossa sociedade, pois nela
acreditamos que os animais possam conversar conosco ou que os objetos adquiram
vida. Aí, nesse jogo de representações, o cotidiano se faz vivo, se faz sensação,
emoção, mágica. O discurso publicitário fala sobre o mundo, sua ideologia é uma
forma básica de controle social, categoriza e ordena o universo. Hierarquiza e
classifica produtos e grupos sociais. Faz do consumo um projeto de vida.
Para além de um jogo que opera com símbolos do dia-a-dia do qual fala Everardo, é
preciso enfatizar o aspecto cotidiano da publicidade: ela está no outdoor da avenida, nos
carros que por esta circulam; na televisão, dentro dos programas e entre estes; em cartazes,
jornais e, bem evidentes e menos efêmeros, nas revistas. Nas revistas Veja com as quais
trabalhamos, é imprescindível destacar, a sua presença tem quantidade demasiado superior se
comparada a algumas outras revistas da época5.
Naquelas páginas tão repletas de anúncios, a mercadoria é apresentada sempre como
solução para algo, como que destinada verdadeiramente a um objetivo mais específico dentre
os tantos possíveis: para os que desejassem economizar naqueles tempos de arrocho salarial e
de crise dos combustíveis (NAPOLITANO, 1998: 90-91) “O perfil da economia. Chevette
Hatch 15 km/litro”6, o “FIAT 147 CL. Quanto mais você anda, mais economia você faz”7 ou
5
À guisa de comparação de quantidade dos anúncios, analisamos alguns números de duas concorrentes da Veja
no período aqui estudado, a também semanal Isto é (1976, Editora Três) e a quinzenal Visão (1952-1993, Editora
Vision). Inicialmente, escolhemos os meses de agosto e outubro de 1983. Nestes meses, enquanto as páginas de
Veja apresentaram em média entre 68 e 79 anúncios, a Visão expôs entre 13 a 19 anúncios. A Isto é, por sua vez,
veiculou em suas páginas uma média de 24 a 32 anúncios publicitários.
6
Veja. 18 de junho de 1980. P. 30 e 31. Acervo do NUDOC (UFC).
7
Veja. 25 de novembro de 1981. P. 59. Acervo do NUDOC (UFC
12
quem sabe o “Fusca. Dinheiro aplicado, dinheiro recuperado”8; para aqueles que buscassem
se distinguir através do consumo de certas mercadorias 9 finas, havia desde os “Cigarros St.
Moritz. Uma classe a mais”10 ao“Passat 80. Mais do que um carro, você está conquistando
uma posição”11, passando pelo “Cartão Diners Club. Ter é poder”12; e se tinha ainda uns
poucos lugares variados para quem desejasse as novidades tecnológicas daquela década, como
o “Gol 88. A tecnologia está em alta”13, ou o “Televisor Sharp. Tecnologia é domínio”14,
entre outros. Quer se buscasse tecnologia, mas principalmente distinção ou economia, nas
páginas de Veja variadas soluções se via!
É que, ressaltemos, no sistema publicitário, se vendem soluções, se anunciam
mercadorias, se apresentam estilos de vida. Na publicidade, tudo é mágica. E essa magia se
faz em um sistema onde o grande mágico é a mercadoria. Raymond Williams, em “Cultura e
materialismo” (2011), analisa a formação de uma publicidade enquanto sistema a partir do
caso londrino, com anúncios rústicos se transformando pouco a pouco em refinadas
produções, ao passo que os esparsos investimentos iniciais em publicidade avançam para
vultosas cifras de um sistema bastante complexo e organizado. Salienta Williams que
podemos entender a publicidade como “um sistema mágico organizado para vender pessoas
numa determinada cultura” (WILLIAMS, 2011: 250). Isto é, ao passo que anuncia
mercadorias, a publicidade também propaga estilos de vida. Estes, por sua vez, serão
pretendidos por aqueles que compram a mercadoria, mas que implicitamente estão buscando
aquele estilo de vida prometido. O fracasso perene dessa conquista é o que possibilita o êxito
da publicidade, mas também é o que impulsiona a sua constante renovação. Nos anúncios, é
preciso um incessante lidar com as sensibilidades, com desejos cotidianos, que mudam com o
passar do tempo. Mudam tanto que o “Ford Landau. O carro do presidente”15, que em 1979
foi anunciado por um anúncio da Veja como objeto de desejo, não é mais tão desejado assim.
8
Veja. 14 de fevereiro de 1979. P. 63. Acervo do NUDOC (UFC).
9
BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: Sociologia.
São Paulo: Ática, 1983, p. 82-121. Bourdieu analisa o jogo de poder – especialmente na esfera cultural, em que
as práticas de aquisição interferem até mesmo nos significados das obras e das artes. Ele constata que, nas
sociedades modernas, como a nobreza de sangue não é plenamente reconhecida, o consumo é o lugar
privilegiado de manifestação das distinções e de sua comunicação. De acordo com ele, se, por um lado, essas
sociedades são pautadas pela necessidade de divulgação, na medida em que precisam ampliar o mercado de
bens, por outro lado reforçam a lógica da distinção, contrapondo, aos efeitos massificadores, signos recriados de
diferenciação para os seguimentos hegemônicos. Quanto a estilo de vida, Bourdieu define por esse conjunto de
preferências distintivas pelo qual as classes mais altas marcam sua posição perante as demais.
10
Veja. 18 de junho de 1980. P. 119. Acervo do NUDOC (UFC).
11
Veja. 23 de janeiro de 1980. P. 8 e 9. Acervo do NUDOC (UFC).
12
Veja. 21 de setembro de 1988. P. 20 26. Acervo do NUDOC (UFC).
13
Veja. 3 de fevereiro de 1988. P. 51 e 52. Acervo do NUDOC (UFC).
14
Veja. 1 de junho de 1988. P. 6. Acervo do NUDOC (UFC).
15
Veja. 4 de julho de 1979. P. 28 e 29. Acervo do NUDOC (UFC).
12
Nem mesmo o “Ford Escort 86. Um carro chamado desejo. A síntese de todos os desejos”16.
É porque a publicidade, como os objetos no tempo, muda. Porque para anunciar essas
mudanças não só dos objetos, mas também do tempo, ela precisa mudar.
Alerta-nos Everardo Rocha, antropólogo brasileiro já aqui citado, que “os anúncios
publicitários podem ser tomados como mitos, como narrativas de modelos ideais do cotidiano,
como uma ideologia do estilo de vida das classes dominantes” (ROCHA, 2010: 178).
Responsável no capitalismo por fazer a passagem de um produto fabricado em séries iguais às
centenas e milhões, para o universo da pessoalidade e da personalidade; e criadora de
características humanas às mercadorias, no intuito de atiçar o desejo pelo consumo desta,
acreditamos que as publicidades podem até ser destinadas, primordialmente, às classes
dominantes, todavia pensamos que o seu diálogo tem interlocutores mais variados, mais
diversos no corpo da sociedade. Pois ela precisa captar as oportunidades do tempo, da cultura,
expressas no cotidiano pelos mais variados sujeitos e grupos. Somente assim a publicidade
conseguirá efetivamente comunicar e, ainda que não venda a mercadoria que anuncia, dirá
algo sobre aquele tempo para todos os que as lerem, antes ou depois.
Eis a nossa pretensão e o caminho que estamos trilhando: dizer algo sobre o Brasil
daqueles anos de crise a partir das publicidades impressas da revista Veja, aquelas páginas tão
repletas de objetos. Porque a publicidade, “esse resquício (i)material da existência dos objetos
e das vivências que lhes atravessam, também é, em muitos casos, sua única forma de
permanência palpável e visual. Ela, assim como todos os outros objetos, é denúncia do
tempo” (SILVA, 2010: 119).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A embalagem do sistema: a publicidde no
capitalismo brasileiro. Bauru, SP: Edusc, 2004, (Coleção Ciências Sociais).
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto
Alegre, RS: Zouk, 2008.
CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir. (Orgs) Representações: contribuição a
um debate transdisciplinar. Campinas/SP: Papirus Editora, 2000.
CARTOCE, Rachel Elisa. O milagre anunciado: publicidade e a Ditadura Militar
Brasileira (1968-1973). Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017.
16
Veja. 22 de janeiro de 1986. P. 54 e 55. Acervo do NUDOC (UFC).
12
Resumo: O Cariri, situado no sertão do Estado do Ceará, possui fronteira com diversos outros
estados, como Pernambuco, Piauí, Paraíba e configurou-se historicamente como uma região
com forte influência de trânsitos migratórios de romeiros e de sertanejos na sua formação
política, econômica e cultural. Estas migrações foram iniciadas no século XVIII e movidas
pela busca de melhores condições de vida, assim como por questões religiosas. A partir deste
dado, temos que a dança do Coco, brincadeira de origens afro- indígena encontrada no
nordeste brasileiro, é realizada atualmente no Cariri, sobretudo, por grupos de mulheres
agricultoras que, ao experimentarem o dançar, evocam memórias, histórias e práticas culturais
reveladoras de fortes influências e conexões com as formas de brincar Coco dos estados
fronteiriços. Assim, neste trabalho iremos explorar estes fluxos culturais, por meio do
cruzamento de entrevistas com a leitura de folcloristas, estas circulações culturais podem ser
percebidas nas letras de músicas, em nomenclaturas da prática cultural ou no dançar. Desta
forma, estas equivalências se dão em decorrência dos movimentos de sujeitos em migrações
que proporcionam encontros, trocas e novas formas de experimentação e recriação do Coco,
mostrando a dinamicidade da cultura que por meio de interações sociais passa por variações e
transformações, sendo reinventada.
Palavras-chave: Dança do Coco. Trânsitos migratórios. Fluxos culturais.
1
Mestra em História pela Universidade Estadual do Ceará e Doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará (PPGS-UECE) com bolsa CAPES,
camilamotafarias@gmail.com.
2
Com relação à métrica existem os Cocos de embolada, em quadras, de dez pés, de rima, de roda e tombado.
Com relação à música encontram-se os Cocos de ganzá e o de zambê. Com relação ao local praticado temos os
Cocos de praia, de usina, de sertão e pé de serra. Com relação à coreografia identificam-se os Cocos de roda, de
sapateado, de filas, de parelhas e o solto.
3
Os instrumentos, normalmente, utilizados na dança do Coco são o caixão, o zambê e o ganzá. Entretanto, nos
grupos estudados aparece a presença do pandeiro, do bumbo, do triângulo e, até, de instrumentos de corda como
o violão.
4
A umbigada é o ato dos dançadores encostarem seus umbigos, pode ser simulado, em sinal de desafio.
12
batuque; dança, com passos de sapateado e batidas de palmas; poesia, através das letras
cantadas.
Os Cocos no Ceará podem ser encontrados em diversas regiões 5. Percebe-se que, neste
Estado, a dança se localiza majoritariamente em áreas litorâneas, sendo realizada,
especialmente, por homens, com exceção do Cariri, situado no sertão cearense. Então, a
escolha do Cariri para este estudo relaciona-se às particularidades da prática na região, desde
a localização no Estado – o sertão – aos sujeitos que emergem – as mulheres – e às suas
poéticas.
As mulheres integrantes desses grupos são, em sua maioria, agricultoras ou
profissionais autônomas que possuem de 40 a 80 anos. Nos grupos assumem as funções de
“Coquista, Tiradora, ou Mestra de Coco”6 e de “Dançadeiras”7. Cada grupo possui uma
trajetória particular e formas específicas de dançar/cantar.
No local estudado, identificamos a existência de quatro grupos de Coco femininos, são
eles: A gente do Coco da Batateira (1979) 8; Amigas do saber (2000); Coco Frei Damião
(2003) e Coco da SCAN (2011). A pesquisa centra-se, portanto, nos municípios de Juazeiro
do Norte e do Crato, tendo em vista que foram neles que identificamos os sujeitos produtores
da dança do Coco. As cidades estão localizadas, respectivamente, a 540 e a 529 quilômetros
da capital cearenses e correspondem à Região Metropolitana do Cariri9, criada pela Lei
Complementar Estadual n. 78, sancionada em 29 de junho de 2009.10
O Cariri é uma das quatorze regiões11 que compõe o Estado do Ceará. Seu nome
deriva dos Kariris, grupo indígena que habitou o território antes de sua colonização. A região
faz fronteira com outros Estados – ao sul com Pernambuco, ao oeste com Piauí e ao leste com
a Paraíba –, inclusive: “Por ser território fronteiriço, sua formação política, econômica,
histórica e cultural deve muito a fluxos migratórios que datam do século XVIII, quando se
iniciou sua colonização” (SEMEÃO, 2014, p. 1).
5
Iguape, Caetanos de Cima, Fortaleza, Trairi, Balbino, Aracati, Majorlândia, Canoa Quebrada, Quixaba, Pecém,
Almofala e Cariri.
6
As nomenclaturas Coquista, Tiradora ou Mestra são utilizadas para caracterizar aquela responsável por cantar o
Coco e conduzir/organizar a brincadeira.
7
São aquelas que dançam.
8
A Data em parênteses corresponde ao ano de fundação do grupo
9
A Região Metropolitana do Cariri é composta por Juazeiro do Norte, Crato, Barbalha, chamado de triângulo
caririense, e mais seis cidades: Caririaçu, Farias Brito, Jardim, Missão Velha, Nova Olinda e Santana do Cariri.
10
Informações disponíveis no Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável: Território Cidadania do
Cariri, realizado pelo Instituto Agropolos do Ceará em 2010.
11
O Ceará é composto pelas regiões: Cariri, Centro Sul, Grande Fortaleza, Litoral Leste, Litoral Norte, Litoral
Oeste/Vale do Curu, Maciço de Baturité, Serra da Ibiapaba, Sertão Central, Sertão de Canidé, Sertão de Crateús,
Sertão dos Inhamuns, Sertão de Sobral e Vale do Jaguaribe. (O Povo, Fortaleza, 3 out. 2015, s/p).
12
Segundo o historiador Carlos Rafael Dias (2014), durante o século XIX o Cariri
destacou-se no plano estadual e nacional por sua participação em diversos eventos, como os
movimentos emancipacionistas liberais e republicanos ocorridos em Pernambuco, a
Revolução de 1817 e a Confederação do Equador, em 1824, destacando nomes como os de
Bárbara de Alencar e de Tristão Gonçalves. Além do movimento liderado pelo político militar
Joaquim Pinto Madeira, em 1831, que se desenvolveu como uma insurreição absolutista em
decorrência da abdicação do Imperador Dom Pedro I ao trono brasileiro. A região, também,
tornou-se conhecida pelos acontecimentos de cunho religiosos, como o milagre de Juazeiro do
Norte, ocorrido em 1889, protagonizado por Padre Cícero Romão Batista e pela Beata Maria
de Araújo, e como o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, ocorrido no século XX, liderado
pelo Beato José Lourenço.
O Cariri é uma região mística e de significativa dinâmica cultural, é palco de diversos
grupos de cultura popular, como bandas Cabaçais, grupos de Reisado, Maneiro Pau, Coco,
entre outros.
Temos que a dança do Coco, brincadeira de origens afro-indígena encontrada no
nordeste brasileiro, é realizada atualmente no Cariri, sobretudo, porgrupos de mulheres
agricultoras que, ao experimentarem o dançar, evocam memórias, histórias e práticas culturais
reveladoras de fortes influências e conexões com as formas de brincar Coco dos estados
fronteiriços. Assim, neste trabalho iremos explorar estes fluxos culturais, por meio do
cruzamento de entrevistas com a leitura de folcloristas, estas circulações culturais podem ser
percebidas nas letras de músicas, em nomenclaturas da prática cultural ou no dançar.
Sobre as origens dos Cocos no Cariri não há considerações realizadas na obra de
Figueiredo Filho (1962), o folclorista indica que a dança está ligada às raízes étnicas da
região, considerando-a como um gênero de louvação, em justificativa de que suas letras
faziam saudações à terra “dadivosa” que seria o Cariri, sendo cântico-dança, conforme
sugeriu Mário de Andrade (2002). Porém, de modo geral, o cratense acredita que os folguedos
da região provam que a mesma não foi colonizada pelo norte do Ceará, pois: “Todos os
folguedos difundidos no sul do Ceará, encontram, no entanto, similares em Alagoas, Sergipe,
Pernambuco e Bahia, e isso com raízes multisseculares” (FILHO, op. cit., p. 15). A suposição
é justificada tendo como base a pesquisa do historiador Pe. Antônio Gomes de Araújo que
anotou a presença de mais de quatrocentas famílias de origem baiana e mais de duzentas de
origem sergipana, além da ligação forte com Pernambuco devido aos fluxos migratórios.
Identificamos uma pequena nota na obra de Alceu Araújo (1964, p. 240) sugerindo
que a dança praticada no sul do Ceará: “É de nítida influência alagoana, dos romeiros da Terra
12
dos Marechais que se dirigiram a Juazeiro do Norte [...] Na exibição que presenciamos em
Juazeiro do Norte em junho de 1962, o único instrumento usado era um idiofônio 12 – um
ganzá”.
O autor percebe uma influência alagoana no Coco praticado em Juazeiro do Norte,
mas não aponta fontes, ou uma comparação entre ambos, para mostrar os elementos
identificados que possuiriam em comum as práticas realizadas nos dois locais. Entretanto,
através das narrativas realizadas, da pesquisa desenvolvida e de uma revisão bibliográfica,
podemos inferir que há ligações e há elementos que dialogam entre os Cocos caririenses e os
Cocos alagoanos, pernambucanos, paraibanos e potiguares.
Uma primeira consideração que pode juntar-se a de Araújo (op. cit.) é, por exemplo, a
existência de um coquista alagoano que migrou para Juazeiro do Norte e é a referência dos
Cocos “do outro tempo” no município, “tio Dunízio”. Além dele, entre as atuais dançadeiras,
Mestras e tocadores, temos sujeitos que migraram de Pernambuco – como Mestra Edite e
Terezinha – e de Alagoas – como Maria das Dores e Expedito. A dançadeira Maria das Dores
narrou, inclusive, que conheceu a prática no Sítio Baixa Dantas, local que foi moradia de
romeiros migrantes de várias regiões do Nordeste, como Paraíba, Alagoas e Pernambuco. A
migração de romeiros e de sertanejos que buscavam melhores condições de vida para o Cariri
por conta do ambiente religioso criado em torno do Padre Cícero e por conta da prosperidade
da terra, foram fundamentais na urbanização das cidades, em especial de Juazeiro do Norte e
do Crato, e estes migrantes levam consigo seus saberes e suas práticas culturais.
Assim, observamos semelhanças com relação aos Cocos realizados no Cariri e nestes
demais Estados – na música, no dançar e nas nomenclaturas utilizadas para representar seus
elementos constituintes. Porém, é importante pontuarmos que estas equivalências se dão em
decorrência dos movimentos dos sujeitos, como as migrações que citamos, que proporcionam
encontros, trocas, que produzem trânsitos e circulações culturais (APPADURAI, 1996).
Identificamos correspondências em diversos versos de Cocos, ou até quadras
completas, cantados no Cariri com relação a versos cantados em outros Estados. Nos Cocos
de Cabedeu, zona costeira da Paraíba, coletados e registrados por Altimar Pimentel (1978)
mapeamos dez correspondências13. Seguem alguns exemplos, enquanto na Paraíba cantava-se:
12
São os instrumentos que produzem o som através de sua vibração, por exemplo, pelo atrito ou pela agitação,
como o reco-reco e o ganzá.
13
Estas correspondências foram identificadas através da leitura da obra do autor e da escuta sensível
(NAPOLITANO, 2008) das músicas de Coco cantadas pelos grupos estudos. Optamos por selecionar três trechos
de músicas citadas por Pimentel e compará-las com as músicas cantadas atualmente no Cariri para ilustrar a
nossa observação, os mesmos foram enumerados em algarismos romanos para facilitar a compreensão
13
I
Aplantei, mas não nasceu,
carrapicho em meu vestido,
A coisa que eu mais odeio
É homem casado enxerido (ibidem, p.62)
II
Menina, se queres, vamo,
Não se ponha a maginá,
Quem magina cria medo,
Quem tem medo não vai lá. (ibidem, p. 50)
III
Já te quis, não quero mais,
Já te dei o desengano:
Que me importa que tu morras
No sereno cochilando (Ibidem, p. 55).
I
Já plantei e semeei (ô mulher)
Carrapicho nas estrada (ô mulher)
Ô coisa pra eu achar feio (ô mulher)
É mulher arrupiada (ô mulher)15
II
Menina se quer ir vamos
Não se ponha a imaginar
Quem imagina cria medo
Quem tem medo não vai lá16
III
Linda flor, linda flor (coro)
Eu já te quis, não quero mais
Linda flor, linda flor (coro)
Eu já te dei o desengano
Linda flor, linda flor (coro)
Só não quero que tu morra Linda flor,
linda flor (coro)
Ôi, no sereno cochilando17
Percebe-se que os versos possuem a mesma ideia central, porém alguns outros versos
foram inseridos, ou palavras modificadas, algumas apenas possuem variação na pronúncia.
14
Marcamos em itálico os termos modificados. É interessante pontuar que muitos desses versos são cantados não
apenas por um grupo da região, mas por outros grupos de Cocos da região, ou até de outras práticas das culturas
populares. Em trabalho de campo realizado em novembro de 2014 presenciamos e registramos em nosso diário
de campo grupos de Maneiro Pau cantando, em Juazeiro do Norte, versos que estão em letras de Cocos da
região. Revelando dimensões da cultura popular como a apropriação, adaptação, recriação e a circulação.
15
NANINHA. O farol incendiou (faixa 13). In: NANINHA. Lagoando Mar – os Cocos de dona Naninha. Crato:
Pindoretama Record’s, 2013. 1 CD. (grifos nossos).
16
A GENTE DO COCO DA BATATEIRA. Paraíba (faixa 3). In: A GENTE DO COCO DA BATATEIRA.
Barra do Dia. Crato: Pindodoretama Record’s, 2013. 1 CD. (grifos nossos).
17
AMIGAS DO SABER. Linda flor (faixa 2). In: AMIGAS DO SABER. Grupo Cultural Amigas do Saber.
Crato: s/g, 2012. 1 CD. (grifos nossos).
13
Observemos, por exemplo, nas letras I que ambas possuem versos correspondentes, entretanto
ocorreu uma adaptação e uma recriação da letra que revelam modificações em posições de
gênero que representam, antes “homem casado enxeridas” e, na música de Mestra Naninha,
“mulher arrupiada”. Esta modificação identificada pode possuir relação com o
desenvolvimento do Coco no Cariri, seu contexto e sua apropriação, marcado pela emergência
da figura feminina. Outras similaridades foram identificadas com relação aos Cocos coletados
por Mário de Andrade no Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco (2002a).
No dançar mapeamos que nomenclaturas usadas pelos sujeitos desta pesquisa, como
“Coco travessão”, “Coco de roda”, “toadas ou toeiras”, “trupé ou tropel”, são encontradas nos
Cocos de outros Estados, principalmente de Alagoas e da Paraíba. Estas nomenclaturas não
são utilizadas nos Cocos da zona costeira do Ceará, com exceção da “Coco de roda”.
O “Coco de roda” e o “Coco travessão” caracterizam modalidades da dança, citadas
por Mestra Maria da Santa como típicas de antigamente. Os “Cocos de roda” são comuns nos
Estados da Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Alagoas (PIMENTEL, op. cit.;
ANDRADE, op. cit.; VILELA, op. cit., entre outros). Porém, verificamos o “Coco travessão”
apenas em Alagoas (VILELA, op. cit.).
A dança neste “outro tempo” era desenvolvida através do passo da umbigada. “Seu”
Expedito18 afirma que: “O Coco antigamente era o Coco umbigada, era muito agressivo, era
homem com mulher” (Expedito José da Silva, Crato – CE, 13 nov. 2014). Como abordamos a
umbigada era/é passo característico dos Cocos em outros Estados do Nordeste (ANDRADE,
2002; PIMENTEL, op. cit.).
A palavra “trupé” ou “tropel”, utilizadas por algumas brincantes do Cariri para nomear
o que outros grupos do Estado do Ceará chamam de sapateado dos Cocos, é típica dos Cocos
Alagoanos e Pernambucanos.
No caso do Coco Alagoano localizo o trupé como um dos fundamentos mas, mais
que isso, sua função percussiva. Quero chamar atenção para o fato de que, no Coco
Alagoano, o trupé tem uma intenção não só coreográfica mas também percussiva,
um dançarino de Coco Alagoano é dançarino e percussionista ao mesmo tempo19.
utilizadas para referenciar as músicas de Coco cantadas pelo grupo A gente do Coco da
Batateira, esta nomenclatura usada com relação aos Cocos detectamos, apenas, na obra do
cantor alagoano Jacinto Silva que se consagrou em Pernambuco como cantor de Forró e de
Coco sincopado.20
Esta paisagem composta por movimentos de aproximações e de distinções entre os
Cocos de diversos lugares onde são dançados – Ceará, Paraiba, Pernambuco, Alagoas, Rio
Grande do Norte, e mesmo entre localidades dentro do Ceará, como o litoral e o sertão –
atravessa territórios e temporalidades. Independente da origem da prática cultural ela é
ressignificada e possui uma poética própria a cada lugar/época/sujeitos.
Destarte, os Cocos – suas origens e seus saberes/fazeres diversos –, enquanto práticas
das culturas populares que se constituem em trânsitos culturais, revelam elementos que se
tangenciam em conformações rizomáticas. Compreendemos uma figuração da realidade como
rizoma através de Gilles Deluze e de Félix Guattari (1995). Os autores concebem o rizoma
como um labirinto, sem fim e nem começo, sem centro e periferia, sendo uma estrutura de
passagem:
Ele não é o Uno que se torna dois, nem mesmo que se tornaria diretamente três,
quatro ou cinco etc. Ele não é um múltiplo que deriva do Uno, nem ao qual o Uno
se acrescentaria (n+1). Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de
direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual
ele cresce e transborda (p. 31).
20
20 Modalidade da música dos Cocos que se assemelha a um trava-língua, com emboladas aceleradas e o
recurso do trava-língua com pique de embolada, caracteriza-se por explorar o tempo da música, introduzindo
divisões e quebras no canto para alongar ou comprimir a métrica. Cf. Disponível em:
<http://www.pulaomuro.blogspot.com.br/2013/08/o-coco-sincopado-de-jacinto-silva.html> Acessos em: 1 ago.
2018.
13
Cocos e das culturas populares – são marcadas por processos de trocas, de diálogos, por
encontros que constroem uma coesão dinâmica, tendo em vista que o dançar e as culturas
estão sempre em movimentos, da mesma maneira que o rizoma é um sistema aberto.
Portanto, os Cocos no Cariri estão em processos de transformações por movimentos
que podem trazer novos passos para o dançar/cantar por meio de variações e transformações
como as que surgem em decorrência das apropriações das mulheres dos processos criativos
desta dança, sejam como Mestras ou como dançadeiras, produzindo outras poéticas e vias de
invenções das culturas populares.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Mário de. Os Cocos. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.
ARAÚJO, Alceu Maynard. Folclore Nacional – danças. recreação. música. 3. ed. São
Paulo: Martins Fontes, v. 2, 2004.
ARAUJO, Ridalvo Felix de. Na batida do corpo, na pisada do cantá: inscrições poéticas
no coco cearense e candombe mineiro. 2013. 149 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de
Pós-Graduação em Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais, Minas Gerais,
2013.
BARROSO, Oswald. O coco de praia em Majorlândia. In: CARIRY, Rosemberg;
BARROSO, Oswald (Orgs.). Cultura insubmissa: estudos e reportagens. Fortaleza:
Secretaria de Cultura e Desporto, 1982.
CARVALHO, Gilmar de. Artes da Tradição: mestres do povo. Fortaleza: Exp.
Gráfica/LEO-UFC/UECE, 2005.
CATENACCI, Vivian. Cultura Popular - entre a tradição e a transformação. São Paulo
em perspectiva, São Paulo, v.15, n.2, p. 28-35, 2001.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo:
Editora 34, v.1, 1995.
DIAS, Carlos Rafael. Da flor da terra aos guerreiros cariris: representações e identidades
do Cariri cearense (1855-1980). 2014. 169 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, 2014.
FIGUEIREDO FILHO, José Alves de. O Folclore no Cariri. Fortaleza: Imprensa
Universitária do Ceará, 1962.
NAPOLITANO, Marcos. A história depois do papel. In. PRISKY, Carla Bassanezi. Fontes
históricas. São Paulo: Contexto, 2008, p. 235-289.
PIMENTEL, Altimar de Alencar. O Coco Praieiro – Uma Dança de Umbigada. João
Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1978.
SEMEÃO, Jane. Os intelectuais do Instituto Cultural do Cariri e sua atuação na
(re)invenção do Cariri Cearense (1953-1970). In: Encontro Estatual de História, 12., 2014,
13
São Leopoldo. Anais do XII Encontro Estadual de História ANPUH/RS, São Leopoldo: s/n,
2014. p. 1-15.
VILELA, José Aloísio. O Coco de Alagoas: origem, evolução, dança e modalidades.
Maceió: Museu Théo Brandão, 1980.
13
RESUMO: Nos anos 2000, a internet parece ter atingido o seu recorde com um número cada
vez maior de usuários no Brasil e no mundo. O mundo inteiro está ao alcance de nossas mãos
através de equipamentos eletrônicos que transmitem informações a todo instante. Refletir
sobre as mudanças provocadas pela introdução dessa tecnologia no nosso cotidiano através de
CERTEAU em sua obra a Invenção do Cotidiano é de grande relevância na atualidade. Tudo
está a um clique de distância. Nos aparelhos de celular e smartphones, nos aplicativos e
grupos aos quais pertencemos, de forma privada temos acesso uma infinidade de vídeos,
notícias urgentes, conteúdos e comentários fazendo juízo de valor sobre os mais diversos
assuntos em tempo real, inclusive com transmissões ao vivo. Mas, não podemos esquecer que
quem divulga tem sempre uma intenção. Para atingir cada vez um público maior, a todo
instante notícias são criadas, tragédias são anunciadas, escândalos são abafados, biografias
são manipuladas e o jornalismo parece ter a pretensão de assumir as rédeas da história,
transformando o jornalista no historiador e o fato histórico numa criação sua. A escola não
pode ignorar o fato de crianças e jovens terem acesso diariamente a todo esse conteúdo que
circula nas redes sociais e nos meios de comunicação em suas casas ou outros espaços através
dos equipamentos transmissores e receptadores de dados conectados à internet. Os conteúdos
que circulam diariamente nas redes sociais impactam no dia-a-dia da sala de aula.
Especialmente quando se trata do uso da liberdade de expressão para difundir discursos de
ódio, bullying, o racismo, a homofobia, a xenofobia ou qualquer outro tipo de preconceito
através de memes ou outros recursos virtuais. As aulas de história são um espaço bastante
oportuno para promover o debate necessário sobre essas questões e tantas outras,
considerando que se trata de uma disciplina escolar de caráter reflexivo, conectada com os
acontecimentos não só do passado, mas também atuais, propiciando um ambiente de
discussão no qual os sujeitos se reconheçam enquanto sujeitos participantes e protagonistas
dos processos. Trata-se, portanto de utilizar o potencial dessas inovações de maneira eficiente
e didática, a favor da educação e do ensino de história reflexão constante sobre o ato de
aprender e a produção da informação e do conhecimento.
Palavras-Chaves: Fake News. Memes. Ensino de História.
INTRODUÇÃO
A comunicação sempre foi uma necessidade do ser humano desde os tempos mais
remotos. Com o passar do tempo, trocar informações, registrar fatos, expressar ideias e
emoções se tornaram fatores que contribuíram para a evolução das formas de se comunicar,
aperfeiçoando assim a capacidade de se relacionar entre os indivíduos.
A medida que foram surgindo novos meios que oportunizaram atingir distâncias cada
vez mais maiores num espaço de tempo cada vez menor, as possibilidades de se comunicar se
1
Licenciado em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Especialista em Gestão Escolar pela
Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestrando em Ensino Profissional de História pela Universidade
Regional do Cariri – URCA. Email: candbez@hotmail.com
13
algo comprometedor sobre alguém que possa lhe favorecer de alguma forma. É a lei da oferta
e da procura. É o comércio da notícia onde se vende aquilo que se quer comprar como real. E
se não é, pode ser produzida levianamente, de modo a satisfazer as exigências do mercado,
que ouso chamar de “mercado de notícias.”
Há dois tipos de valor que são (...) importantes a esse respeito. Um tipo é o que
pode ser chamado de "valor simbólico": O valor que as formas simbólicas possuem
em virtude das maneiras como elas são apreciadas pelas pessoas que as produzem e
as recebem, em virtude das maneiras como elas são apreciadas ou denunciadas,
queridas ou desprezadas por esses indivíduos. Um segundo tipo de valor é o "valor
econômico", que pode ser entendido como o valor que as formas simbólicas
adquirem em virtude de serem trocadas num mercado. (THOMPSON, 1995, p.23)
Muitas vezes nesse jogo de manipulação e alienação a qual as mídias sociais nos
expõe, abrimos mão de valores morais e agimos de maneira antiética, irresponsável,
desrespeitosa e até criminosa, distorcendo fatos e camuflando a verdade sobre os mesmos. A
informação e a notícia deixam de ser o relato do ocorrido, para se tornar um produto com
finalidade, valor econômico e fim mercadológico. Em meio a todo esse cenário, às vezes é
difícil saber o que é verdadeiro ou não.
Para KUNCZIK, (2001) o indivíduo se depara diante de duas atitudes éticas; a ética de
responsabilidade e ética de valores absolutos. Na ética de valores absolutos, o autor destaca
que o indivíduo não assume a responsabilidade pelas próprias atitudes, mas frisa que “os
valores absolutos nada tem a ver com a irresponsabilidade, assim como a ética da
responsabilidade nada tem a ver com a falta de valores”.
2
A informação foi encontrada em diversos artigos de revistas online, sites e blogs sobre a história cultural das
Fake News.
13
tarefas em todas as dimensões, além de capacitar professores e alunos por meio da criação de
redes sociais e comunidades virtuais.
Os conteúdos que circulam diariamente nas redes sociais impactam no dai-a- dia da
sala de aula. Especialmente quando se trata do uso da liberdade de expressão para difundir
discursos de ódio, bullying, o desrespeito pelas lutas históricas dos povos indígenas, africanos
e quilombolas, racismo, homofobia, xenofobia ou qualquer outro tipo de preconceito. Aquilo
que é aprendido de ruim nas redes sociais acaba muitas vezes sendo vivenciado na prática
dentro do ambiente escolar.
No que tange as Fake News, mesmo com todas as ferramentas de pesquisa disponíveis
para se detectar informações suspeitas ou infundadas, as notícias falsas tendem a prosperar
porque o usuário tem adotado uma postura passiva e acrítica diante dos fatos. O conformismo
parece ter sido a marca da sociedade contemporânea e talvez por isso nos últimos tempos,
tenha aumentado a quantidade de notícias falsas, as famosas Fake News.
As aulas de história parecem ser um espaço bastante oportuno para promover o debate
necessário sobre essas questões e tantas outras, considerando que se trata de uma disciplina
escolar de caráter reflexivo, que está conectada com os acontecimentos não só do passado,
mas também do presente, propiciando um ambiente de discussão no qual os sujeitos se
reconheçam enquanto sujeitos participantes e protagonistas dos processos. Em outras
palavras,
A história ensinada serve para ajudar a criar identidades, mas serve principalmente
para que as pessoas reconheçam-se como sujeitos, como parte também de um
coletivo, conheçam suas possibilidades e limitações de ação na história. Desta
forma, serve também para questionar identidades inventadas (...) (CERRI, 1999,
p.6)
Nem tudo que circula diariamente nas redes sociais pode ser aproveitado de maneira
positiva, mas sempre se pode utilizar alguma coisa com um fim pedagógico na sala de aula e
no ambiente escolar. Quando postamos na rede as fotos de um evento realizado na escola, por
exemplo, estamos estimulando os jovens a frequentarem tais ambientes no intuito de
compartilharem suas experiências no processo educativo.
Trata-se, portanto de utilizar o potencial dessas inovações de maneira eficiente e
didática, a favor da educação e do ensino de história, buscando inserir novos recursos,
visando mudanças de paradigmas, a reflexão constante sobre o ato de aprender e a produção
da informação e do conhecimento.
14
Diante dessa problemática, podemos dizer que a imagem é uma representação e como
tal pode ser produzida de maneira intencional, podendo ser fabricada, manipulada com fins e
objetivos específicos. Temos um papel frente a essa realidade diagnosticada que é o de
analisar criticamente essas imagens e questionar suas utilizações.
14
Produzir linguagem significa produzir discursos. Significa dizer alguma coisa para
alguém, de uma determinada forma, num determinado contexto histórico. Isso
significa que as escolhas feitas ao dizer, ao produzir um discurso, não são
aleatórias — ainda que possam ser inconscientes —, mas decorrentes das condições
em que esse discurso é realizado. Quer dizer: quando se interage verbalmente com
alguém, o discurso se organiza a partir dos conhecimentos que se acredita que o
interlocutor possua sobre o assunto, do que se supõe serem suas opiniões e
convicções, simpatias e antipatias, da relação de afinidade e do grau de
familiaridade que se tem, da posição social e hierárquica que se ocupa em relação
a ele e vice-versa. (PCNs, 1999, p.22)
produzem conteúdos que circulam nesses ambientes virtuais. É necessário refletir sobre essa
forma de comunicação, investigando as suas intenções e questionando essa lógica cotidiana
que se apresenta como tal.
O professor de história precisa assumir o seu papel social que é também o de
historiador, pesquisador e cientista. Transformar suas aulas de história em oportunidades de
reflexão constante sobre os discursos tem se apresentado como um desafio, frente o aumento
significativo dos discursos fascistas, racistas, homofóbicos, sexistas, xenófobos e de todas as
formas de intolerância que ganham força na mídia na atualidade.
Em muitos casos, os próprios professores ou alunos, viram memes que passam a ser
compartilhados em grupos de WhatsApp no próprio universo escolar e fora dele. Geralmente
essas iniciativas visam provocar o riso em quem aprecia, mas na prática essas atitudes acabam
ridicularizando, humilhando e desrespeitando aqueles que são vítimas.
Pelo fato de incomodar, os memes não podem passar despercebidos. Sua reprodução
causa desconforto. Precisamos questionar como temos nos comportado diante da reprodução
desses valores que permeiam o universo dos memes.
Outro desafio que se coloca para os professores é o de conseguir inserir os alunos em
um contexto de questionamento sobre informações prévias, recuperando os personagens
históricos. É fundamental verificar o nível de linguagem, a construção da ironia e as
diferenças existentes entre o sarcasmo e o humor expresso. Em virtude disso, os memes tem
se apresentado como objetos de debate constante, que devem ser discutidos nas aulas de
história.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O jornalismo sério, investigativo e imparcial cumpre um papel importante na
sociedade contemporânea por checar as informações e servir de mediador entre o cidadão e os
acontecimentos do cotidiano. Muitas vezes, na ânsia de sair na vanguarda, a preocupação com
a velocidade em produzir um conteúdo mais ágil pode acabar com essa credibilidade.
A informação precisa sempre está baseada na ética e na responsabilidade. Seja no
meio jornalístico ou acadêmico. Numa sociedade tecnológica, o educador assume um papel
fundamental como mediador das aprendizagens a medida que traz para dentro da sala de aula
o debate, tornando esse espaço propício para a reflexão e a mudança de paradigmas frente aos
desafios impostos pela realidade.
Cabe ao professor analisar cuidadosamente os materiais encontrados e colocados a
disposição dos seus alunos nas redes virtuais, compreendendo que os mesmos mecanismos
14
que permitem a proliferação das notícias falsas podem ser desmascarados com idêntica
rapidez.
É papel do professor/historiador analisar a fundo as informações que compartilha em
suas redes sociais próprias e os conteúdos que compartilha seja através de seus espaços de
interação virtuais ou na sala de aula, bem como utilizar aquilo que circula na internet com um
objetivo pedagógico e não apenas como passatempo, promovendo o debate necessário acerca
de determinadas posturas e posicionamentos.
Nos últimos anos temos visto aumentar as manifestações de todo tipo de preconceito e
ódio das redes sociais. Em nome da liberdade de expressão, internautas, usuários e grupos
intolerantes tem destilado veneno na rede e conquistado discípulos. A ignorância e a
intolerância precisam ser combatidas.
Merece a nossa atenção constante a questão dos memes sempre utilizarem imagens de
personagens de atores e atrizes de novelas, filmes e seriados contemporâneos, políticos e
personagens históricos para repassarem valores. A simbologia que esses personagens reiteram
é relevante, uma vez que se produzem falas, comportamentos, atitudes que se tornaram
sistemáticas e que passaram a construir significados na sociedade num determinado momento
histórico.
Em relação a isso, percebe-se que esses personagens integram o imaginário e ideário,
permeado de ideologias, representando classes, demonstrando poder e hegemonia de
determinados grupos em detrimento de outros.
A produção de memes deve promover uma reflexão sobre o uso da imagem, a
construção linguística, o conhecimento prévio, entre outros aspectos que são relevantes ao
conhecimento do aluno e sua consciência crítica sobre o uso das linguagens. O professor não
pode deixar de reconhecer que os memes, disputam as memórias do que é de fato
conhecimento histórico construído e sistematizado ao longo dos processos históricos.
Mas, se os memes interferem nas aulas, sobretudo nas de história, isso de algum modo
pode ser utilizado a favor delas. Essa nova forma de se comunicar e transmitir informações,
dependendo da abordagem que for dada pode render bons debates e aulas de história que
assegurem na prática o cumprimento do seu caráter questionador.
A disciplina de história é campo fértil para uma ação relevante sobre discussões do
presente e na formação de cidadãos autônomos, valorizando as marcas deixadas pelos homens
e que permitem uma interpretação dos seus atos cotidianos que possibilitaram a construção da
sociedade da sua época e os efeitos produzidos nas sociedades que os sucederam.
14
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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São Paulo, 12 de março de 2017. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2017/03/1865611-cientistas-buscam-estrategia s-para-
lutar-contra-fake-news.shtml> Acesso em: 21 abril. 2018
BLACKMORE, Susan. Memes and “temes”. 2008. [Vídeo]. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=yx-SCfY2iU4. Acesso em: 01/05/2018
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14
1
Autor: Mestre em História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), e-mail: cyru_@hotmail.com
2
Coautora: Mestranda em Saúde Pública pela Universidade Federal do Ceará (UFC-2019), e-mail:
ilkalcantara@yahoo.com.br
14
que não acompanhavam a elevação do custo de vida. A iniciativa partiu do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Bernardo quando comunicou a justiça do trabalho que não aceitava os
índices do governo.
Os sindicalistas do ABC deram início a uma jornada de greves que instigou vários
movimentos sociais por todo o Brasil. A mobilização impulsionou segmentos dos
trabalhadores para a discussão sobre a formação de um partido que representasse a classe
trabalhadora, uma possibilidade descortinada pela reforma partidária de 1979. Embora o
grande impulso para a formação do PT tenha sido o movimento sindical, outros sujeitos
sociais aderiram a proposta de criação desse partido. Eu diria mesmo que onde o “novo
sindicalismo” não teve uma influência mais presente, os grupos ligados à Igreja Católica e a
esquerda política tiveram uma importância muito maior. Líderes comunitários ligados as
Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), vinculados a Teologia da Libertação, parlamentares
de esquerda do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), intelectuais, membros de diversas
organizações de esquerda, militantes de diversos movimentos populares viram no PT a
viabilidade de participação na política institucional.
Para Keck (2010), o Partido dos Trabalhadores é um elemento raro na política
brasileira, pois no jogo político tradicional de interesses das elites, esse partido foi composto
em meio a organizações independentes e cada vez mais representativas que precisavam ser
institucionalizadas. Foi um movimento de “baixo para cima”. Keck caracteriza-o como uma
anomalia, um partido que não pertenceu ao establishment durante o período de transição do
regime militar para a democracia. O PT quebrou essa lógica de governo-oposição, conchavos
tradicionais e clientelismo político quando tomou para si, inicialmente, uma postura
isolacionista, se formalizou em 1980, participou das eleições em 1982 e não integrou o
Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo Neves. Assim, tomou para si a “lógica da diferença”
na política brasileira, identificando-se como uma agremiação fora do círculo governo-
oposição. A condição “anormal” e a “lógica da diferença” possibilitaram ao PT ser uma
alternativa ao poder, um partido que faria a mudança, primeiramente atuando no interior da
sociedade para, posteriormente, mudar a estrutura do poder estabelecido.
Nesse sentido, Meneguello (1989) destacou que a ligação do partido com os
movimentos sociais e a participação das bases nos processos decisórios garantiu o processo de
democracia interna. Os Núcleos de Base foram importantes e funcionavam como uma ponte
entre a sociedade e a agremiação, além de servir como um centro de educação política e
espaço de debate entre militantes. Os núcleos do PT não foram herança das células
comunistas, nem das seções socialistas.
14
Ainda é preciso trabalhar muito sobre a relação do partido com a Igreja Católica e
os movimentos sociais a ela vinculados, bem como sobre as diversas organizações
de esquerda que decidiram trabalhar no interior do PT. Sobretudo, faltam estudos
sobre o crescimento do partido fora de São Paulo, em especial durante a segunda
metade dos anos 80, quando passou a ganhar adeptos em âmbito nacional (KECK,
2010: p. 07-08).
Nos anos 1990 sugiram muitas pesquisas abordando a diversidade regional do Partido
dos Trabalhadores. Trabalhos como o de Petit (1996), Borges (1998), Azevedo (1996), mas
ainda é preciso estudar muito sobre a diversidade regional dessa agremiação. Para
entendermos o que ocorreu no Ceará, traçamos um recorte temporal de fundação entre 1980 a
1982, em que o PT apareceu como um conjunto de movimentos sem muita organicidade, um
conjunto núcleosde base com grande autonomia. Entre 1982 e 1986 ocorreu o período de
consolidação e que abordaremos mais adiante.
A década de 1980 foi um momento de ascensão política das massas, onde o partido
conseguiu absorver grande quantidade de força social. No Ceará, a fundação do PT teve uma
influência muito maior dos militantes ligados as Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) e da
esquerda revolucionária. O período de formação só foi superado a partir de 1982, após a
primeira experiência eleitoral. No intervalo entre 1982 e 1986 foram desenvolvidas a lutas dos
sem-terra através do MST, a luta pela reforma agrária com apoio de segmentos da Igreja
Católica, ocorreu a maior campanha de massas do Brasil que foram as Diretas Já, a campanha
pela Assembleia Nacional Constituinte, foi fundada a CUT, greves gerais, o partido
conquistou uma vitória eleitoral triunfante após eleger Maria Luiza Fontenele a prefeitura de
Fortaleza, a primeira prefeitura petista de uma capital no país, portanto houve uma força de
ascensão das massas que permitiu ao PT absorver boa parte dessa força social.
A esquerda tradicional orientada pela matriz marxista-leninista ou com forte vínculo
com a União soviética teve seu raio de ação delimitado, ofuscado pela presença do PT que até
então se autoproclamava como “nova esquerda”.
14
Para Garcia (1986), a novidade entre as esquerdas daquele momento era a crítica ao
marxismo-leninismo, com uma proposta de “esquerda social” baseada em tendências
anticapitalistas que se ergueram nos movimentos sociais, especialmente do movimento
operário e sindical. Essas tendências eram uma resposta à crise dos partidos comunistas no
final da década de 1970 e início dos anos 1980. Após a reordenação teórica, grupos como o
Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e
diversas tendências trotskistas contribuíram para a organização da sociedade civil em
oposição ao regime militar. O PT surgiu como o resultado da crítica à atuação dos partidos
comunistas e das experiências fundamentadas no “socialismo real”, mesmo recebendo setores
egressos da luta armada e de organizações marxistas que combateram o regime militar.
Então, foi num mosaico de organizações e disposições que a esquerda e segmentos da
Igreja Católica uniram-se em um projeto político partidário. No Ceará, a atividade do novo
sindicalismo não teve tanta importância como em São Paulo, visto que a esquerda radical
modificou seu corpo teórico e buscou fortalecer-se no meio popular. Por conseguinte, os
segmentos da Igreja católica atuavam no intuito de instruir os fiéis politicamente e trazê-los
para o centro do debate político. As CEB’s foram a grande ferramenta de ação dos católicos.
Os versos acima foram escritos pelo potiguar Crispiniano Neto, em 1981. O cordel
intitulado “A construção do partido de todos os trabalhadores” teve um caráter convidativo a
causa petista. O folheto de cordel não pertence aos gêneros políticos tradicionais, embora seja
frequentemente usado pelas agremiações políticas. Nele é mobilizado elementos da memória
discursiva para legitimar um discurso e construir subjetividades políticas.
Usamos esse cordel como uma forma de ler, interpretar, representar o tempo e uma
realidade concreta. Ele possui regras de elaboração e carrega uma semelhança com os fatos
vividos, de criar o real através da narrativa. Ele é ficcional, porém menciona o real através de
várias formas, desde negá-lo ou reafirmá-lo. Ele interpreta o presente, reflete sobre o passado
e lança uma imagem do futuro através de uma narrativa baseada no verossímil. É uma
15
expressão da experiência social e da invenção desse social, se tornando uma fonte histórica
das relações sociais.
Portanto, há um cruzamento nítido entre religião e política quando o autor descreve
“Que só o povo reinando existe o reino de Deus”. Nota-se o intuito de colocar “o povo” como
sujeito central no cenário político. Esse “novo sujeito” organizou-se através de “práticas
reivindicativas”, ou seja, por intermédio dos movimentos por moradia, contra a elevação do
custo de vida e desemprego, por mais saúde, educação, transporte coletivo, etc. Assim, Doimo
ao analisar os movimentos populares, em fins dos anos 1970 a meados de 1980, afirmou que
os movimentos organizados pela população:
A principal forma de organização dos católicos se dava por meio das CEB’s. Por isso,
a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) publicou uma série de estudos sobre a
formatação das comunidades eclesiais que estavam divididas em regiões episcopais com seus
conselhos regionais. A seção responsável pelo Ceará é Regional Nordeste I. Essa teve como
presidente Dom Aloísio Lorscheider e sua primeira Assembleia Geral realizou-se, na Diocese
de Limoeiro do Norte, em novembro de 1980. Sua abrangência era de nove Dioceses:
Fortaleza (Arquidiocese), Crato, Crateús, Iguatu, Itapipoca, Limoeiro do Norte, Quixadá,
Tianguá e Sobral.
As CEB’S foram fundamentais no processo de organização da sociedade civil. Elas
possuíam encontros para praticar a religiosidade, viver na “comunhão” e debater os problemas
conjunturais do cotidiano. O grande tema que aflorou nesses debates foi a posse e uso da
terra, sendo que a Regional Nordeste I se posicionou frente aos graves contrastes sociais no
sertão cearense. A pastoral da terra foi uma prioridade da Igreja durante a década de 1980.
Os trabalhadores rurais, habituados com as relações de submissão e violência
predominantes no sertão cearense, encontraram na religiosidade uma alternativa
organizacional que os uniram para além do campo espiritual e que pôde articular a identidade
do homem em torno de um projeto político, social, econômico e religioso. Foi por meio da
religiosidade que vários camponeses ingressaram no espaço político. Para Leonardo Boff:
cativa; emerge a libertação como estratégia dos próprios pobres que confiam em si
mesmos e em seus instrumentos de luta como os sindicatos independentes,
organizações camponesas, associação de bairros, grupos de ação e reflexão,
partidos populares, comunidades eclesiais de base (BOFF, 1986: p.17).
O Partido dos Trabalhadores encontrou muitas dificuldades para estruturar-se por que
além de cumprir sua tarefa partidária de educar e organizar as massas, ele se colocava em
oposição ao tradicionalismo político. O partido não conseguiu eleger políticos no Ceará.
Segundo Paulo Mamede, candidato a deputado estadual:
O PT não tinha estrutura para participar de uma eleição daquele porte. Lançar
candidatos a vereador, deputado estadual, federal, senador e governador era barra.
Mas o mundo é dos loucos. O PT lança chapa própria, “de cabo a rabo”. Américo
Barreira era o governador, Manuel Fonseca o vice, William Montenegro o senador.
Conseguimos ainda nomes para deputados estadual e federal, Gilvan foi candidato
a deputado federal. Eu deputado estadual. O partido obteve cerca de 10 mil votos,
não elegeu ninguém mas conseguimos o registro. O PT era um partido legal.
(ROCHA, 1996, p.14)
O trecho descrito por Paulo Mamede é muito revelador, pois os principais candidatos
do partido, governador e senador, eram da esquerda política. Esse fato nos leva a crer que
nessas eleições os católicos tiveram uma liderança limitada, porém primordial. Quatro anos
depois, em 1986, os católicos engrossaram as fileiras do partido.
Segundo o coordenador estadual das CEB’s, havia uma estimativa de 3.500 a 4.000
CEB’s no Ceará em meados da década 1980, sendo significativas em “Crateús(700), Itapipoca
(612), Iguatu (700) e Limoeiro do Norte (200) ” (O POVO, 21 de junho de 1986, p.12).
Haviam CEB’s espalhadas por todo o território cearense e que suas lideranças formaram
muitas associações, consequentemente combatiam, juntamente com a esquerda, o
sindicalismo vinculado ao governo dos “coronéis”.
O Caderno Pastoral n. 51, publicado em agosto de 1986, intitulado “Diretrizes da ação
pastoral da Igreja que está no Ceará”, evidencia a presença de dois modelos no interior da
Igreja. Primeiro, um modelo majoritário que atenta para a salvação eterna do indivíduo, sem
contemplar profundamente uma transformação da sociedade e suas contradições sociais. É um
modelo orientado para o individualismo cristão e seu princípio de honestidade, sua fé é
devocionista, fazendo uma leitura individualista dos mandamentos de Deus e da Igreja. O
segundo é o minoritário que almejava a construção de uma nova sociedade, dentro de uma
perspectiva comunitária, marcada por uma tendência “sócio-crítico-profético-transformadora”
no processo histórico da vida cristã. A Regional Nordeste I priorizou, através desse
documento, o modelo designado como minoritário de Igreja, cujo objetivo era evangelizar os
mais pobres, entendidos como oprimidos.
No entendimento dos progressistas da Igreja, a concentração de terras estaria em
oposição ao “plano divino” para a sociedade. Por isso, ela assumiu a responsabilidade de
15
“despertar a consciência dos lavradores para a conquista dos seus direitos e a participação nos
sindicatos, partidos políticos e movimentos populares”. Para chegar a esse fim, os católicos
teriam que “coordenar e divulgar experiências da pastoral da terra, vivências nas dioceses,
criar a mística da terra através dos seminários, encontros e publicações, apoiar autênticas
organizações dos trabalhadores” (CNBB- REGIONAL NORDESTE, 1986, p. 23 e 24).
A Igreja fortaleceu a oposição ao regime militar por meio dos seus documentos, com
críticas às injustiças sociais, a concentração de terras e a pobreza. A Igreja não possuía um
partido, nem candidatos oficiais e seu discurso era muito difuso com relação aos partidos
políticos. Isso seria uma escolha individualizada, onde o sujeito analisaria qual a melhor
agremiação e candidato. Mas, o discurso oposicionista e as críticas aos problemas estruturais
aproximavam parte dos fiéis ao Partido dos Trabalhadores, principalmente aqueles orientados
pela Teologia da Libertação.
Os segmentos progressistas da Igreja mostraram sua força quando lançaram a
candidatura de Padre Haroldo Coelho ao governo do Estado. Ele atingiu a quantidade de
68.044 votos ficando em terceiro lugar. Em segundo, com 807.315 votos, o “coronel” Adauto
Bezerra. O governador eleito foi Tasso Jereissati (PMDB) com 1.407.693 votos. A grande
conquista do PT foi eleger dois deputados estaduais João Alfredo Telles deMelo e José Ilário
Gonçalves Marques. Ambos advogados que atuavam junto aos sindicatos dos trabalhadores
rurais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A origem e consolidação do Partido dos Trabalhadores no Ceará ocorreu devido a
metamorfoses políticas e econômicas que ofereceram condições para viabilidade eleitoral de
determinados segmentos da classe trabalhadora, destacamos tal confirmação quando o regime
militar passou pela abertura política e segmentos da sociedade civil organizada buscaram
meios de representação. Isso foi uma resposta as diversas crises daquele momento como as
crises econômicas, das esquerdas, sindicalismo agregado ao estado, a política tradicionalista
dos militares, a maior expressividade dos católicos progressistas por meio das Comunidades
Eclesiais de Base e a “politização” dos camponeses contra a indústria da seca.
REFERÊNCIAS
FONTES:
Bispos desmentem invasão de terras no Ceará. O Povo. Fortaleza. 21 de junho de 1986q.
p.12.
15
CNBB- REGIONAL NORDESTE 1. Diretrizes da ação pastoral da Igreja que está no Ceará.
Fortaleza, [s.l.:s.n.] (Cadernos Pastorais, n.51).
CNBB- REGIONAL NORDESTE I. Cartilha de Educação Política. Fortaleza, 1981
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ROCHA, Gilvan. Vermelho é a cor da esperança: textos socialistas. Fortaleza: Expressão
Gráfica Ltda, 1996c.
15
1
Discente do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Humanidades pela Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-brasileira UNILAB.
2
NOGUEIRA. Paulinho. Revista do Instituto do Ceará. ANO III – TOMO III- 1889 – 1º TRIMESTRE DE
1889. P.8
15
entre dezembro e junho, sendo que as chuvas que ocorrem entre dezembro e janeiro são
consideradas chuvas de pré-estação, as quais ocorrem principalmente no Cariri, influenciados
pela frente fria que se posiciona na Bahia, sul do Maranhão e Piauí no mesmo período.3
A partir do trecho citado, percebe-se que de fato, mesmo com o advento da seca, a
varíola não estava caracterizada de forma epidêmica! Porém como apresentado, algumas
questões foram cruciais para que no segundo ano de seca tal moléstia tomasse forma
3
http://www.funceme.br/produtos/script/chuvas/Grafico_chuvas_postos_pluviometricos/totalchuvas/index.htm
4
TEÓFILO, Rodolfo. História da seca do Ceará (1877-1880). [1883]. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa,
1922..P.11
5
Ibidem. TEÓFILO. 1922. P.99
15
A comissão de engenheiros
As obras públicas com trabalhos para retirantes não estavam restritas à capital. Dentre
os melhoramentos e obras feitas na província pelos socorros públicos, Sobral foi “agraciada”
com obra de açude e cadeia Pública. Em todos os locais da província foram estabelecidas
obras, pois o caos gerado pelo corte de socorros públicos para o interior so aumentou os danos
na capital:
6
TEÓFILO, Rodolfo. História da seca do Ceará (1877-1880). [1883]. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa,
1922. P. 140-141
7
TOLEDO, Júnior Antônio Carlos de Castro. Pragas e Epidemias: Histórias de doenças infecciosas. – Belo
Horizonte: Folium, 2006. 152 p.
15
não havendo relatos do acometimento da população pela varíola anterior à era Cristã, achados
de lesões cicatriciais em múmias indicam a doença em três múmias entre 1580 e 1100 a.C.
outra teoria defendida em 1767 pelo médico Howell 8 com base no Atharva Veda9 acreditava
que a Varíola existia há séculos na Índia. Tal Teoria foi questionada pelo Historiador e
antropólogo Sir Nicholas o qual afirmou que a masurika (Varíola) só viria a ser descrita na
medicina indiana no Século VI, sendo defendida por Nicholas a teoria de que a varíola foi
introduzida na Índia no primeiro milênio antes de Cristo por mercadores egípcios.
No que diz respeito à expansão da varíola no mundo, entre os séculos XI e XIX, ela
atingiu toda a Europa com exceção da Rússia, sendo que em relação a tal peste:
Desta forma, compreende-se que “A varíola era, portanto, importante problema de saúde
pública na Europa, [...] em alguns locais, a criança só era considerada membro da família e
só recebia seu direito de herança e o nome da família após sobreviver à varíola”11
Após causar danos em diversas parte do mundo, no Ceará, desde o início da segunda
metade do século XIX que a varíola já aparecia de forma esporádica, sendo a transmissão de
pessoa para pessoa, através do convívio e pelas vias respiratórias, não sendo transmitida
através de animais.
8
Médico da British East Índia Company.
9
Livro Sagrado do Hinduísmo.
10
TOLEDO, Júnior Antônio Carlos de Castro. Pragas e Epidemias: Histórias de doenças infecciosas. – Belo
Horizonte: Folium, 2006. 152 p. 20
11
Ibidem. TOLLEDO, 2006. P.22
12
Idem..
15
A população de Fortaleza podia-se calcular em 130 mil pessoas das quaes 110 mil
eram retirantes, que acossados[...] Desta grande massa de famintos noventa e cinco
por cento não eram vacinados. Nunca em parte alguma do mundo um morbus
encontrou terreno mais apto a sua germinação e desenvolvimento[...] dessa
multidão que alem de não ter a imunidade[...] vivia na mais completa infracção dos
mais rudimentares preceitos dehygiene. [...] imagine-se uma população da qual
apenas em cem mil pessoas existiam cinco mil preservadas pela vaccina.14
13
http://www.fiocruz.br/biosseguranca/Bis/infantil/bioterrorismo.htm
14
TEÓFILO, Rodolfo: Varíola e vacinação no Ceará. [1904]. Ed. fac-sim. Fortaleza: Fundação Waldemar
Alcântara, 1997. P.6-7.
15
Ibidem. TEÓFILO, 1997.P.8
16
Outra moléstia também muito comum no período foi a tísica, nome popular para a
tuberculose. Pensando etimologicamente, o termo deriva do grego phthiso, que significa
decair, definhar. Ao logo do tempo também foi denominada como “peste branca” e “mal do
peito”. Não se sabe especificamente as origens, mas acredita-se que remota de oito mil anos, e
a forma de contágio deu-se a partir do contato com auroques uma espécie de boi que foi
extinto no século XVII, os quais estariam contaminados com a espécie da tuberculose bovina,
a Mycobacterium bovis.
Apesar de ter se manifestado de forma endêmica e epidêmica entre a população
brasileira a tuberculose foi encontrada no período pré-colombiano 18, especialmente na forma
óssea, porém, pode atingir pulmões, rins, pele e intestinos dentre outros órgãos. Na forma
óssea, a doença acomete a coluna em cerca de 50% dos casos, resultando na perda de um
corpo vertebral, causando dentre outros aspectos desvio da coluna que varia de 30 a 35º. O
16
Ibidem. TEOFILO, 1997. Pp.11
17
TEÓFILO, Rodolfo: História da seca do Ceará (1877-1880). [1883]. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa,
1922P.111
18
GURGEL, Cristina: Doenças e curas: O Brasil nos primeiros séculos. 1. Ed. 2º reimpressão. – São: Contexto,
2011. P.43
16
termo tuberculose como conhecemos teve origem em 1839 por Schoenlein baseado no nome
da em 1860 por Sylvius à lesão nodular, o tubérculo encontrado em pulmões de doentes.19
19
Ibidem. Gurgel, 2011. P.44.
20
TEÓFILO, Rodolfo. História da seca do Ceará (1877-1880). [1883]. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa,
1922.(P.113-114.)
21
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996
16
22
Relatórios da Santa Casa do Ceará. Maio de 1877, pelo vice provedor José Francisco da Silva
Albano, P. 6.
23
TEÓFILO, Rodolfo. História da seca do Ceará (1877-1880). [1883]. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa,
1922..( P 125-126.)
24
24 Ibidem. 20. CHALHOUB, 1996.
16
Tais condições levavam a um aumento da mortalidade se não por doenças, por fome.
Segundo Teófilo, ao final do ano de 1878 38 pessoas foram mortes exclusivamente por fome.
E ao se imaginar as possibilidades daqueles que não entraram nas estatísticas, que morreram à
beira nas estradas pode ser alarmante. A população decrescia, mais dizimada pela forme e
seus efeitos que pelas moléstias, quase todas devidas ou a insuficiência alimentar ou a má
qualidade da mesma.26
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25
TEÓFILO, Rodolfo. História da seca do Ceará (1877-1880). [1883]. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa,
1922.( P.132)
26
Ibidem, TEÓFILO, 1922.. P. 137.
16
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16
Vislumbrando Estrelas
Vislumbrar, segundo o dicionário Aurélio (FERREIRA, 2010:2165), quer dizer, em
seu segundo verbete: “conhecer imperfeitamente”, seguido de “lançar luz frouxa” e “começar
a aparecer, a surgir, entrever-se; apontar”. Esta é a definição que mais se aproxima do que de
fato alcançamos com a pesquisa e a produção do vídeo, por tratar de assunto presente há mais
de 160 anos, transmitido oralmente e transferido por gerações.
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Graduado do Curso de Publicidade da Universidade Federal do Ceará, e-mail: daviddamascenoo@gmail.com.
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Introdução
As ordens de penitentes — manifestação religiosa secular de grande adesão no
nordeste brasileiro, com origem datada do século XIX. Conforme Carvalho, A., "há
referências na literatura de que as Ordens de Penitentes no Cariri cearense remontam a pelo
menos a 1850" (2011:27) — possuem forte suporte da tradição oral para transmissão de sua
história. Por isso, aliamos à análise bibliográfica os conceitos de oralidade de Zumthor e de
história oral de Thompson para compreender as facetas do fenômeno que é perpetuado e
mantido vivo até hoje.
Joaquim Mulato e Antônio de Amélia são as duas vozes que costuram a narrativa do
vídeo e nos dão margem para contrapor passado e presente na criação deste documento
audiovisual, ao mesmo tempo histórico e etnográfico.
Por meio de entrevistas, semiestruturadas e de histórias de vida, registrou-se a voz e
parte da vida desses dois homens. O primeiro ingressou na Ordem aos dezesseis anos e o
segundo aos dez. Os dois têm em comum o título de decurião, como são chamados os líderes
da irmandade. Joaquim assumiu a chefia da Ordem entre os anos de 1940-2009 e Antônio de
Amélia de 2013-atualmente.
Mulato foi entrevistado em 2003, por Gilmar de Carvalho e Wellington de Oliveira.
Antônio, por mim, em junho de 2017. Quatorze anos entre os dois registros. Contrapostos e
entrecruzados, na narrativa criada, buscando evidenciar as particularidades presentes nos
discursos e as transformações sucedidas no tempo decorrido.
Partindo desse discurso que nos faz viajar entre passado e presente/presente e passado
percebemos que antes dele ser a imitação concreta da história nos serve mais como filtro
desta, permitindo conhecer o que mais interessa, pensando sua salvaguarda. Segundo
Williams (1989:23-25 apud ANTONACCI, 2002:194), “está em jogo algo mais que
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aritmética e, evidentemente, algo mais que história. (...) O que é necessário investigar, nestes
casos, não é a veracidade histórica, e sim a perspectiva histórica".
A narrativa do vídeo parte da preocupação de Mulato para com o fim dessa tradição.
Ele acreditava que com a sua morte a Ordem teria grande chance de ser extinta, tanto por
conta da pouca adesão de membros mais jovens como pela falta de capacidade de
memorização dos membros. O que impediria a manutenção dessa religião persistida na
memória. Em sua fala ele diz: "Quem sabe, sabe. Se eu morrer, e Severino, acabou os
penitentes aqui. Porque não tem um que tenha a memória. Daí nós já tamo já na pindura. Eu
to com 83”.
As ordens de penitentes encontram-se onde o cordel estava antes do espírito vivo
presente na voz ter sido roubado pelas palavras transmitidas ao papel. Suas histórias, orações,
devoções e benditos estão gravados e perpetuados na memória imaterial, como por muito
tempo permaneceram as canções de gesta — conjunto de poemas surgidos na aurora da
literatura francesa, entre os séculos XI e XII (ZUMTHOR, 1992).
Além da necessidade de arquivar, para preservar e compartilhar, essa manifestação que
guarda em seu cerne fragmentos do processo colonizatório sofrido pelo Brasil, é importante,
também, dar voz aos membros dessa irmandade. Observou-se a partir da revisão bibliográfica
a ausência, em todos os estudos, da presença massiva da voz do penitente.
Os estudos aos quais me refiro são: Artimanhas da história, ANTONACCI, 2002;
Entre cantos e açoites: memórias, narrativas e políticas públicas de patrimônio que envolvem
os penitentes da cidade Barbalha-CE, MACHADO, 2014; Os Penitentes do Genezaré e o
poder público do município de Assaré – CE (2005 aos dias atuais): diálogos e sensibilidades,
OLIVEIRA, 2013; Sob o signo da fé e da mística: um estudo das Irmandades de Penitentes no
Cariri cearense, CARVALHO, A., 2011.
Ainda há outras obras, transferidas para meios digitais (filmes e fotografias) e
impressos (monografias, dissertações, artigos e livros), aqui divididas em: filmes — "Ordem
dos Penitentes" (2002) e "Penitentes" (2013) —, fotografias — Ana Cristina Riente (RJ); Guy
Veloso (PA) e Tiago Santana (CE) —, artigos — O penitente Joaquim Mulato, de Barbalha
publicado no Jornal do Cariri (1999); Joaquim Mulato. Penitência e arte publicado no Diário
do Nordeste (2003) e Joaquim Mulato: Santeiro Penitente publicado na Cariri Revista (2012)
—, livros — Artes da Tradição - Mestres do Povo (2005) e Sob o signo da fé e da mística
(2011) — e programas de tevê — “SBT Repórter – Auto Flagelo” (exibido em 02/08/2010).
Esses trabalhos prestam sua contribuição para o resguardo dessa história mas são
insuficientes para divulgar e preservar o repertório do grupo, por tanto, faz-se necessário a
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produção de novos e atuais trabalhos sobre essas irmandades, além de projetos que
possibilitem a manutenção e salvaguarda dessa memória.
Metodologia
Para o desenvolvimento deste trabalho processou-se dois tipos de metodologias. A
primeira foi utilizada para a construção do relatório e a segunda para a realização do vídeo.
Ambas de natureza qualitativa.
Num primeiro momento, de construção do relatório e início da pesquisa, a
metodologia utilizada foi a pesquisa exploratória, a partir da análise do material bibliográfico,
de arquivos de periódicos e jornais, fotografias e vídeos.
Acrescida, posteriormente, da pesquisa de campo onde realizou-se coleta de dados por
meio de entrevistas — semiestruturadas e de histórias de vidas — através de gravação de
áudio e de imagens. Para tanto, Thompson (1992) foi utilizado como provedor dos conceitos
de história oral e Zumthor (1998) como referencial teórico para entender os conceitos de
tradição oral que permeiam essa irmandade e tornar mais compreensível os resultados obtidos
nesta fase.
Durante a realização do vídeo fez-se a captação das imagens em Barbalha e no Sítio
Cabeceiras. Seguido da decupagem do material obtido nas filmagens: separando e
catalogando todas as imagens feitas, possibilitando a agilidade na terceira parte desta etapa, a
montagem, quando foi produzido o roteiro de edição, seguido da edição.
Não há, para este trabalho, técnica mais adequada do que a história oral. De certo que
a maior parte da história a ser contada está contida nas reminiscências de quem a viveu e vive.
No entanto, pelos textos obtidos a partir das entrevistas realizadas com Joaquim Mulato
(2003) e Antônio de Amélia (2017) notou-se em suas falas alguns denominadores em comum
— palavras, frases e histórias semelhantes —, índice do processo de transmissão oral, que
apresenta também, um "tipo de memória, sempre em recuo, mas prestes a intervir para fazer
ressoar a língua, quase à revelia do sujeito que a teria como que aprendido de cor"
(DRAGONETTI, R. Le Jeu de saint Nicolas de Jean Bodel. apud ZUMTHOR, 1993, p. 21).
Por isso fez-se necessário a investigação de algumas histórias, pois as falas obtidas nos
apontaram a debilidade da memória e sua falta de precisão. Notava-se ausência de algumas
informações necessárias para o entendimento de determinados aspectos e, também, histórias
que após verificação determinavam-se incoerentes com os processos históricos. Por tanto,
nessa fase pós coleta de dados também tivemos como suporte a bibliografia existente.
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Penitentes
Frei Ibiapina veio naquela época, desde 1800.. pra 700.. por aí assim. Ele
descobriu o Caldas, fez casa de caridade no Crato, fez casa de caridade na
Barbalha. Fez o cemitério da Macaúba, fez o de São Raimundo, desceu, fez aquele
ali. [...] Aí ele deixou essa irmandade, essa religião. Foi estendida aqui e na Bahia.
Foi Frei Ibiapina que deixou, tudo ele deixou, ensinou como é que o homem andava
com a cruz, ensinou como fazia, trazia os cachos feitos de recife, Frei Ibiapina.
Nós deixamos de se cortar faz tempo. faz tempo. Ah... evolução como é que diz, as
coisas vão mudando né. O bispo disse que num era bom se cortar não, porque não..
Se cortar no cemitério né bom não, se fosse noutro canto.. Mas no cemitério ele
disse que era contaminado, ora, no hospital, tem infeção hospitalar, e no cemitério.
É certo, o doutor também disse que não. É bem verdade, esse negocio de se cortar é
um pouco meio complicado. Hoje. Porque hoje tá tudo contaminado, porque assim,
no passado se cortava e num tinha nada. [...] Agora eu tenho pra mim que continua
o grupo de penitentes entrando com pouco bendito. Se não se acabar é com pouco
bendito.
Antepassado
Diferente da crença de Joaquim Mulato, a história da penitência no nordeste brasileiro
vem de tempos anteriores a passagem de Padre Ibiapina pela região. De acordo com os
estudos de Carvalho, A. (2011:27-28), “as Ordens de Penitentes no Cariri cearense remontam
a pelo menos a 1850, portanto em época anterior ao Padre Ibiapina, que pregou e fundou
Casas de Caridade no Nordeste a partir do final de 1855”.
A presença dos missionários das Santas Missões pelo sertão — grupo de jesuítas,
carmelitas, franciscanos, oratorianos, capuchinhos, dentre outros — está fortemente ligada ao
início da prática penitencial no Nordeste. É com eles que é levado ao imaginário do sertanejo
a ideia de salvação por meio da mortificação corporal e penitência, seja ela qual for, conforme
diz Silva (2011).
Além dessas missões existiam missionários que percorriam o sertão pregando sob o
auxílio de textos de catequese como Missão Abreviada. Texto que traz passagens de antigas
escrituras e instruções aos fiéis de como se remir de suas culpas e livrar-se do pecado por
meio da mortificação corporal.
bom se cortar não”. Foi possível chegar a essa conclusão, também, por meio de relatos do
vigário de Barbalha, Padre Alencar. O pároco contou-me existir um grande respeito por parte
dos penitentes para com os conselhos de seus membros e os preceitos da Igreja.
A forte relação com a Igreja Católica vem desde a fundação dessas irmandades. Nos é
possível inferir que a organização das irmandades penitentes faz alusão às ordens
franciscanas, iniciadas no século XI (ZUMTHOR, 1993). Há em comum nessas duas ordens
além da prática da penitência, o canto de benditos — histórias sagradas ou biográficas
cantadas em versos ritmados.
Remontam ainda à outras práticas medievais. Trazem-nos à memória os flagelantes
públicos, indivíduos que se açoitavam em praça pública na Europa do século XIII, com ápice
da prática no século XIV, em decorrência da peste negra. Os flagelantes acreditavam serem
aplacados pela ira Divina com a prática da penitência e martírio, como foi observado no texto
de Carvalho, A. (2011).
“A salvação é garantida pelas práticas penitenciais onde cânticos, orações e sofrimento
físico fazem parte do ritual desses grupos" (CARVALHO, A. 2011:21). A penitência também
é meio de reatualizar a vida de Cristo. Segundo Joaquim Mulato, “Ele foi o maior penitente
que existiu, morreu sem nenhum pecado para salvar a humanidade”.
Pergaminhos Vivos
Os penitentes são como uma obra secular. Daqueles livros ao qual a página onde
consta a data da primeira impressão de tão amarelada e seca se desfez. Enxergamos os
penitentes como pergaminhos vivos. Homens que inscreveram em seus corpos parte da
história da penitência no Brasil e são, hoje, os documentos mais importantes a serem
consultados para compartilhá-la.
A História Oral como metodologia é "capaz de dar voz a segmentos sociais sem acesso
à produção de documentos escritos e cuja cultura e cotidiano se desenvolvem,
preferencialmente, através da oralidade" (ATAIDE, 2000:70). Por meio dessa técnica
aproximamos pesquisador e pesquisado, criando uma conscientização em ambas as partes do
entendimento do objeto como parte crucial à pesquisa.
Percebemos hoje uma mudança no quadro do arquivamento dessa história, antes
preservada apenas na memória dos membros da irmandade. Com o interesse partindo da
academia, da mídia, da fotografia e do cinema, tem sido feita a transferência dessa memória
para monografias, dissertações e teses, ensaios e filmes, programas de tevês e editoriais.
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os abacurabwenge, eram responsáveis por lembrar das listas dos reis e das rainhas-
mães, os abateekerezi, os acontecimentos mais importantes de cada reinado, os
abasizi, preservavam os panegíricos aos reis e os abiiru, os segredos da dinastia.
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Thompson conclui, afirmando e validando nossa escolha por esse método, que práticas
como essa de testemunho grupal ou mesmo individual podiam preservar por séculos alguns
padrões, inclusive arcaísmos, e que continuariam perpetuados mesmo que não mais fossem
compreendidos, e que, "tradições desse tipo assemelha-se a documentos legais, ou livros
sagrados”.
O contato com dois, dos mais antigos, membros da Ordem dos Irmãos da Cruz, em
diferentes épocas, nos permitiu perceber que a prática dessa tradição oral preservou certas
diferenças entre suas falas, algo de fácil percepção se visualizarmos o bendito de Santo
Antônio. Cantado de forma, ligeiramente, diferente entre os dois decuriões.
Observando as três primeiras estrofes do bendito cantado por Joaquim Mulato (I) e
Antônio de Amélia (II) podemos perceber os pontos supracitados.
(I)
Santo Antônio de Lisboa, amoroso
imperador Vai livrar teu pai da morte
Que vai morrer inocente
Que vai morrer inocente
(II)
Santo Antônio de Lisboa
Amoroso amparador
Que no dia 29 dos castigos nos
livrou Que no dia 29 dos castigos
nos livrou Antônio tava na Itália
Celebrando o seu sermão
Desceu um anjinho do céu e a ele foi a
visão Desceu um anjinho do céu e a ele foi a
visão Socorre o Antônio
Nesse mesmo continente
Vai livrar teu pai da morte que vai morrer
inocente Vai livrar teu pai da morte que vai
morrer inocente
VÍDEO-DOCUMENTO-ETNOGRÁFICO
Decido categorizar o filme "Irmãos da Cruz" como um vídeo-documento- etnográfico
por entendê-lo como a junção de todas essas categorias, citá-lo por alguma dela em separado,
não o descaracteriza nem mesmo o diminui, apenas o fragmenta. Em "Irmãos da Cruz" são os
homens que fizeram a história e detém o poder de contá-la que a contam. São eles, inscritos
no filme, que escrevem o documento, registrando suas memórias, salvando-as e
resguardando-as do esquecimento.
O processo de criação deste vídeo-documento começa a partir de uma pesquisa. A
impossibilidade de um roteiro de filmagem tornou-se um ponto positivo na produção, pois, a
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ida a campo sem uma ideia pré-determinada do que deveria vir a ser o vídeo fez com que o
desenho do filme surgisse no contato com a história que seria contada. Um work in progress
desde o começo da leitura bibliográfica que serviu de suporte para a viagem à Barbalha, a
conversa com Antônio de Amélia e a posterior criação do roteiro de edição do filme.
Dessa forma, a captação das imagens do vídeo seguiu de acordo com a conclusão de
Rabinger, conforme pontuado em seu livro Directing the documentary, "a filmagem deverá
ser preferencialmente a coleta de “evidências” para relações e suposições básicas
identificadas anteriormente" (RABINGER, 1998, p. 113 apud PUCCINI, 2009).
O documentário é uma carta escrita pelo realizador aos espectadores. Um mundo
possível imaginado, uma transfiguração do real na tela filmada,
"Irmãos da Cruz" é uma carta escrita com as palavras dos personagens dessa história
organizadas pelas minhas mãos, jovem pesquisador, o qual vos escreve esta outra carta. Na
escrita videográfica foi-me confiado o papel de montador de palavras, do qual o vídeo resulta
como colagem dos discursos dos dois decuriões. Foi neste ponto onde minha atenção ficou
focada, pois, eu tinha como tarefa contar a história que me transmitiram, a partir da
organização das palavras que me foram contadas. Levando em conta a dificuldade de fazer
isso sem provocar outras histórias, visto que
Na articulação dos planos existe uma mão oculta que fascina a reflexão
desconstrutiva contemporânea e que pode também produzir enunciados ou sentido,
interagindo ativamente com o modo do sujeito-da-câmera ser na tomada (...) A mão
oculta que articula os planos, alguns chamam montagem. (RAMOS, 2008:86)
O vídeo toma forma como extensão, apêndice, corpo fora do corpo, ou suporte, da
memória. No entanto, assim como ela, a ele, só é possível registrar fragmentos de
reminiscências que constroem uma memória coletiva e plural.
Argumento
A partir de uma fala de Joaquim Mulato iniciamos a pesquisa para este trabalho.
"Quem sabe, sabe.. se eu morrer, e Severino, acabou os penitentes aqui. Porque não tem um
que tenha a memória. Daí nós já tamo, já, na pindura. Eu to com 83". As especulações de
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Joaquim são feitas em 2003, seis anos antes de sua morte. O vídeo foi desenvolvido oito anos
após a morte de Mulato, buscando compreender através do entrecruzamento das vozes do
presente e do passado, o processo sofrido pela manifestação religiosa secular.
Ancorados na entrevista concedida em 2003 por Joaquim Mulato, voltamos ao Sítio
Cabeceiras, região onde vive parte da irmandade, para ouvir a voz do presente, representada
pelo atual decurião da Ordem, Antônio de Amélia. Através do enlaçamento das duas vozes,
criou-se um panorama de avaliação e contraposição de passado e presente, tentando
compreender os processos vividos após o falecimento de Joaquim, evidenciando a resistência
por parte da irmandade e a importância da preservação dessa memória coletiva, para sua
manutenção e perpetuação.
Considerações Finais
Segundo os pensamentos explicitados por Zumthor, em A Letra e a Voz, observamos
que os penitentes preservam características inerentes à fé popular, presentes nessas camadas
desde a Baixa Idade Média. Por exemplo, os ensinamentos e rituais transmitidos de boca ao
ouvido.
Nessa época, e ainda hoje, em grupos como os Irmãos da Cruz, a voz se identifica ao
espírito. Segundo Zumthor (1993), a autoridade está no verbo proferido pela voz daqueles que
detém o conhecimento, logo, a verdade. E dessa forma, perpetuavam-na por meio de seus
discursos. Assim como acontece entre os Irmãos da Cruz.
Foi pela voz que essa tradição foi transmitida durante todos esses anos, até há pouco
tempo, antes de surgir interesse por parte do homem letrado em contá-la. É por ser vivificada
na voz que acreditamos no vídeo como suporte ideal para transmitir essa tradição e, assim
como foi feita por mais de um século, quem as conte sejam as vozes dos homens que a vivem.
Neste trabalho onde o objeto é sujeito e o objetivo é espalhar uma voz, o pesquisador é,
também, um método para tornar isso possível.
Acesso ao vídeo: https://youtu.be/GtvEfgWFsm8
REFERÊNCIAS
ANTONACCI, M. A., Artimanhas da história. In: Proj. História, São paulo, (24), jun.
2002. Revista Eletrônica da PUC-SP Disponível em:
<https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/10618>. Acesso em 24 de maio, 2017.
ATAIDE, Y. D. Bandeira de. ALGUNS USOS DA HISTÓRIA ORAL: CONTRIBUIÇÃO
PARA O ESTUDO DE GÊNERO, ETNIAS E GRUPOS EXCLUÍDOS. In: Anais do II
Encontro de História Oral do Nordeste, Salvador: Editora da UNEB, 2000.
17
CARVALHO, Anna Christina Farias de. Sob o signo da fé e da mística: um estudo das
Irmandades de Penitentes no Cariri cearense. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011.
CARVALHO, Gilmar de (org.). Onze vezes Joaseiro: Tributo a Ralph Della Cava.
Fortaleza: Expressão Gráfica, 2011. Madeira Matriz. Cultura e Memória. São Paulo:
Annablume, 1998.
DOS ANJOS, Moacir; FARIAS, Agnaldo. Catálogo da Bienal Internacional de São Paulo,
2010. "Penitentes, dos Ritos de Sangue à Fascinação do Fim do Mundo". Disponível em:
https://issuu.com/guyveloso/docs/penitentes_-_cat logo_v11_issu Acesso em 25 de maio,
2017.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da língua portuguesa. 5. ed. Curitiba:
Positivo, 2010.
MACHADO, Jana Rafaella Maia. Entre cantos e açoites: memórias, narrativas e políticas
públicas de patrimônio que envolvem os penitentes da cidade Barbalha-CE. Rio de janeiro:
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2014.
OLIVEIRA, Cícero da Silva. Os Penitentes do Genezaré e o poder público do município de
Assaré – CE (2005 aos dias atuais): diálogos e sensibilidades. In: XXVII Simpósio Nacional
de História - ANPUH, Natal, julho de 2013. Anais eletrônicos. Disponível em:
www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364844456_ARQUIVO_ArtigoSNH.pdf
Acesso em 12 de jun. 2017.
SILVA, L. R. da, Canudos e Caldeirão: Missões Abreviadas. In: XXVI Simpósio Nacional de
História – ANPUH, São Paulo, julho de 2011. Anais eletrônicos, São Paulo, 2011. Disponível
em:<www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300847429_ARQUIVO_CanudoseCaldeir
ao- Missoesabreviadas.pdf>. Acesso em 24 de jun. 2017.
THOMPSON, Paul. A Voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a "literatura" medieval. São Paulo: Companhia das Letras,
1993.
1
INTRODUÇÃO
A cidade de Redenção-CE, anteriormente conhecida como Villa Nossa Senhora da
Conceição de Acarape, está situada na região do Maciço de Baturité, a 55 km de distância da
capital Fortaleza, e se destaca historicamente no cenário cearense por seu pioneirismo na
libertação de 116 cativos que permaneciam sob o regime escravista (SILVA, 2016:05), cinco
anos antes da promulgação da Lei Áurea, oficializada em 25 de maio de 1888.
A libertação dos cativos constitui-se rapidamente em marco fundante da narrativa
histórica oficial, ensejando a construção de um imaginário social, com características de mito
fundador, que orienta e molda a trajetória histórica do lugar, implicando na alteração do seu
nome para Redenção, em 1889, e em esforço de perpetuação de uma memória glorificadora,
evidenciada em uma série de lugares de celebração desta memória, a exemplo dos museus e
da salvaguarda de objetos simbólicos a este passado e, além disso, os monumentos históricos
que buscam acionar esta memória social como o Busto da Princesa Isabel, o Painel Negra
Nua, o monumento Vicente Mulato e o Obelisco.
*
Bacharela em Humanidades e Graduanda do Curso de Licenciatura em História pela Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, e-mail: esteraraujo67@gmail.com
**
Bacharel em Humanidades e Graduando do Curso de Licenciatura em História pela Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, e-mail: leoleal@aluno.unilab.edu.br
***
Bacharel em Humanidades e Graduando do Curso de Licenciatura em História pela Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, e-mail: willianalmeidamk@gmail.com
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grande parte dos municípios situados no Maciço de Baturité estão intrinsecamente ligados a
topônimos referentes a termos de origem indígena. “A região foi habitada por índios tapuias
(potyguaras, jenipapo e kanindé), sendo conhecida como Vila dos Índios. Assim, Acarape é
uma palavra indígena” (BARBOSA, 2011:19).
Neste sentido, a Villa de Acarape destacou-se no cenário econômico cearense deste
período através da produção de aguardente seguida da produção de cana-deaçúcar, o que
justificava também a necessidade do emprego de mão-de-obra escrava para a sustentação da
sua economia. Portanto, segundo Russo, em dezembro de 1882, os abolicionistas Gil Ferreira
Gomes, Antonio da Silva Ramos, Henrique Pinheiro Teixeira, Gomes Carneiro, Pe. Luís
Bezerra da Rocha e Deocleciano Ribeiro de Menezes formaram a Sociedade Redentora
Acarapense que “debatiam os problemas escravistas” (SILVEIRA, s/d: 02).
Assim, em menos de um mês, o movimento “Nesta terra não há mais escravos”, que
projetou a dimensão local e histórica da Villa de Acarape, atraiu atenção de outros
abolicionistas como General Antônio Tibúrcio, José Liberato Barroso, José do Patrocínio,
João Cordeiro, Padre José Silveira Guerra e Justiniano de Serpa, abolicionistas que vieram
assistir ao ato de alforria dos escravos que restaram. O ato ocorreu na igreja matriz. Um
evento que contou com grande parte da população local e a Vila Acarape passou a chamar-se
Redenção. No ato oficial a Câmara registrou o telegrama para o Imperador D. Pedro II
anunciando que não há mais escravos no município de Acarape.
Com a decadência dos engenhos, a população também entrou em crise e a economia
local desmoronou. As novas fontes de renda vieram por outros comércios. O declínio das
indústrias do açúcar e engenhos foi tanta a ponto que os “proprietários [...] desceram tanto na
escala de pobreza enquanto seus agregados caíram para o nível da miséria” (RUSSO,
2004:30). A incapacidade de manter escravos reforçou o estímulo para a libertação. As novas
fontes de renda vieram por outros comércios como tecido, mercearias e agricultura.
Foi de fato um momento histórico, mas há quem questione essa realidade. “Até a
década de sessenta, em Redenção, a escravidão apenas havia mudado de forma, pois
continuou a existir em condições praticamente análogas à extinta, na forma da lei antiga da
abolição” (RUSSO, 2004:54-55). Os recentes escravos libertos não tinham bens, terras ou
trabalho. Necessitavam sobreviver assim como os fazendeiros e empresários precisavam de
trabalhadores.
Redenção preserva a história local com seus locais turísticos e seus documentos. No
centro da cidade há um busto da Princesa Isabel, construído em homenagem ao
cinquentenário da abolição na cidade assim como a Praça Obelisco e seu monumento no
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centro. O grande Painel Negra Nua em frente à UNILAB. O Museu Senzala Negro Liberto é
um dos pontos que mais chama atenção. Além de museu, é um engenho com mercadinho
local que vendem a cachaça Douradinha, envelhecida 30 anos em tonéis de bálsamo. O museu
em si foi criado em 2003, mas o local composto por casa-grande, senzala, canavial e moageira
são construções de 1873 da família Muniz Rodrigues. Possui boas condições de preservação,
é uma importante atração turística e local histórico abrigando vários documentos como cartas
cédulas, jornais, uma cópia do documento de libertação dos escravos de 1883, e utensílios de
tortura usados no período escravocrata como gargantilhas, algemas, chicotes, focinheiras,
pregos e martelos. É frequente a visita dos estudantes da UNILAB das áreas de humanas.
A imagem de Redenção como cidade libertadora possibilitou que fosse escolhida para
a instalação da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia AfroBrasileira
(UNILAB) em 2010 durante o governo Lula. Diferentemente das outras faculdades e
universidades, a UNILAB acolhe estudantes de outros países cujo português seja a língua
oficial. A grade curricular da instituição também oferece modos de estudos diferenciados dos
comuns, reforçando nos estudos sobre África e Ásia. Redenção cresceu bastante desde a
universidade. Sua história local contribuiu para o desenvolvimento de trabalhos acadêmicos
visando a história do município. “A primeira cidade a libertar os escravos [...] precisa ser
reconhecida não só como um grande acontecimento histórico nacional, mas, como o ato
humanitário superlativo, brilhante e sublime de um povo no campo dos direitos humanos”
(RUSSO, 2004:43).
se que por seis gestões consecutivas seus serviços foram solicitados. Nesta perspectiva, a
mesma informou ainda que nos horários livres, “como não encontrou o passado nos livros, foi
atrás dele saindo a campo para conversar com os mais antigos, e resgatar com eles a memória
que está se perdendo” (JORNAL DIÁRIO DO NORDESTE, 2006:01).
Desse modo, Nascimento e Santos (2007) em seu artigo “História, Memória e
Esquecimento: implicações políticas”, traçam um panorama geral acerca dos respectivos
conceitos, ressaltando que a história quer ser memória na medida que faz um intermédio entre
passado e presente fazendo uma crítica a memória. Ou seja, a memória não é lembrança,
outrossim, uma dinâmica do que deve ser lembrado e esquecido para dar significado a
determinados acontecimentos. As autoras ressaltam ainda que, este esquecimento não é uma
falha da memória, e sim, faz parte deste papel de entender porque as pessoas não querem
lembrar de determinados fatos. O esquecimento funciona como alternativa que em muitos
casos as pessoas aderem como um dinamismo selecionável do que é importante e o que não é,
depende muito de cada pessoa.
Já para Pollak (1992) a “memória parece ser um fenômeno individual, algo
relativamente íntimo, próprio da pessoa” (POLLAK, 1992:211), porém, Maurice Halbwachs,
desde os anos 20-30, mencionava que para além da classificação de um fenômeno individual a
memória deve ser entendida como “um fenômeno coletivo e social”, que está sujeito a
mudanças de acordo com a sociedade (POLLAK, 1992:211).
Desta maneira, após o falecimento da Sra. Ladeísse Silveira um grupo de estudantes
juntamente com um professor da UNILAB iniciou uma série de negociações com a família da
mesma e, sua irmã Evenisse Silveira concordou em doar parte da coleção da irmã para a
Universidade, resultando assim, na primeira edição do Projeto de Extensão “Tratamento e
catalogação da Coleção particular de Ladeísse Silveira para montagem de arquivo público
de pesquisa documental”, sob a coordenação e orientação do Prof. Robério Américo do
Carmo Souza e que tem como escopo principal “a organização de um arquivo público virtual
que subsidie ações de educação sobre cultura e história da Região do Maciço de Baturité”
(PROJETO DE EXTENSÃO, 2016:05).
A seleção do material que compõe o acervo teve inicio na residência da Sra. Ladeísse
Silveira, em maio de 2016, onde a equipe do projeto trabalhava apenas quatro horas semanal
cujas atividades aconteceram sob o acompanhamento da Sra. Evenisse Silveira e findadas em
dezembro de 2016. É importante frisar que, após a doação do acervo a UNILAB, uma das
dificuldades enfrentadas é a falta de espaço adequado para abrigar o material doado e permitir
o seu correto manuseio. Assim, “na falta de um lugar mais adequado o acervo foi abrigado (e
18
Cumprindo com a finalidade de dar acesso a estratégia utilizada atende dois objetivos,
o primeiro segundo Silva (2005) “a digitalização pode promover uma redução no manuseio
dos documentos originais, mas ainda não é um meio reconhecido para a preservação”
(SILVA, 2005:31), e segundo a facilidade na visualização dos documentos, pois qualquer
18
sujeito que possua um aparelho de telefonia celular terá acesso ou mesmo com o uso de um
projetor de imagens em sala de aula.
Nesse sentido, estimular aos professores da Rede Pública de Ensino da região do
Maciço de Baturité, para o uso dos documentos históricos do acervo como recurso didático no
Ensino de História, contextualizando aspectos da cultura regional, nessa perspectiva estão
sendo ofertadas oficinas de “Uso de Fontes Documentais em Sala de Aula: Documentos
Textuais; Documentos Imagéticos e a Cidade como Fonte. Que segundo Neto:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após realizarmos uma análise da Coleção Particular da Sra. Ladeísse Silveira que se
deu no contexto de tratamento e catalogação de seu acervo para a montagem de um arquivo
público de pesquisa documental através do Núcleo de Documentação Cultural (NUDOC),
observamos um número significativo de documentos manuscritos e impressos que ressaltam o
pioneirismo da cidade de Redenção quanto à abolição da escravidão e a construção de uma
“Sociedade Redentora” no pós-abolição.
Diante da documentação analisada selecionamos o respectivo material que reporta ao
pioneirismo da cidade a fim de problematizarmos esta memória oficial que se constrói a partir
do marco da abolição. Portanto, é a partir deste pleito de construção histórica que iniciamos o
processo de formação de professores da rede pública municipal de Acarape utilizando os
diferentes suportes textuais e imagéticos que serviram como recurso didático nas oficinas que
busca dialogar, também, com o imaginário da cidade, a exemplo, os monumentos históricos,
os espaços de memória como o Museu Memorial da Liberdade, Museu Senzala Negro Liberto
e as produções arquitetônicas entre os municípios de Redenção e Acarape.
18
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, Maria Paula Nascimento; SANTOS, Myrian Sepúlveda Dos. História, memória e
esquecimento: implicações políticas. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 79, p. 95-111,
2007.
BARBOSA, Anna E. M.; SOBRINHO, José H. F.; MOURA, Marisa R. – Descobrindo e
construindo Redenção. Edições Demócrito Rocha. Fortaleza. 2011.
BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Como fazer análise diplomática e análise tipológica de
documento de arquivo. Arquivo do Estado, 2002.
BRASIL, Senado Federal. Constituição da república federativa do Brasil. Brasília: Senado
Federal, Centro Gráfico, 1988.
Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso às informações.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011- 2014/2011/lei/l12527.htm
Acesso em 20 Jul. 2018.
INVENTÁRIO do Fundo Ladeísse Silveira: Projeto Tratamento e Catalogação da Coleção
Particular Ladeísse Silveira. Pibeac/Proex. Instituto de Humanidades e Letras. Universidade
da Integração Internacional da Lusofonia Afrobrasileira, Redenção, Ceará, 2018.
NETO, André de Faria Pereira. O uso de documentos escritos no ensino de história:
premissas e bases para uma didática construtivista. História & Ensino, v. 7, p. 143-165, 2002.
POLLAK, Michael. “Memória e identidade social”. In: Estudos Históricos, 5 (10). Rio de
Janeiro, 1992.
Projeto de Criação e Implantação do Núcleo de Documentação Cultural Ladeísse Silveira.
Redenção. 2017.
Projeto de Extensão Tratamento e catalogação da coleção particular de Ladeísse Silveira
para montagem de arquivo público de pesquisa documental. Redenção. 2016.
RUSSO, Maria H.; SILVA, Francisco. R. – Redenção: Palco dos primeiros abolicionistas do
Brasil, Berço da educadora dos redencionistas. Ed. Uva. Sobral. 2004.
SILVA, Ester Araújo Lima da. Narrativas pós-abolicionistas: a história escrita dos
monumentos históricos. / Ester Araújo Lima da Silva. Redenção, 2016.
SILVA, Rubens Ribeiro Gonçalves da. Manual de digitalização de acervos: textos, mapas e
imagens fixas / Rubens Ribeiro Gonçalves da Silva. - Salvador : EDUFBA, 2005. 56 p.
SILVEIRA, Maria Ladeísse. A Abolição da Escravatura em Redenção. Redenção. p. 01 -
07.
18
RESUMO: A presente produção tem por objetivo apresentar a obra do historiador galês do
início do século XX Christopher Dawson, mas que só na última década do século XXI suas
obras vêm sendo publicadas no Brasil pela editora É realizações, que são A formação da
cristandade, A divisão da cristandade, Dinâmicas da História do Mundo, Progresso e
Religião, Criação do Ocidente, Inquéritos sobre religião e cultura e recentemente publicado
O Julgamento das nações. O que Dawson pode contribuir para os estudos em cultura e
religião para a historiografia brasileira? O que seus conceitos e sua importância da religião na
história humana tem para ajudar os atuais historiadores da religião no Brasil hoje? Dawson é
um historiador da cultura e da religião. A partir da análise de suas obras proponho
conhecermos como o historiador galês produz seu conceito de história e como faz suas
análises da cultura e da religião, e qual sua função na história.
PALAVRAS-CHAVE: Dawson. Religião. História.
Introdução
Ele é um historiador anglicano convertido ao catolicismo que nutriu correspondência
com intelectuais católicos ingleses do porte de J. R. R. Tolkien, além disso foi professor de
estudos em catolicismo romano na universidade de Harvard e membro da academia britânica.
Porém um quase completo desconhecido pela academia brasileira, suas obras só recentemente
(2010) foram publicadas no Brasil pela É realizações. Quais os motivos para tamanho
desconhecimento não é o objetivo deste trabalho, mas o que este ilustre, jogado no ostracismo
intelectual no nosso país, tem a nos dizer enquanto historiadores da religião, em especial o
cristianismo.
1
Doutoranda em História Social pelo Dinter URCA/UFF, aluna pesquisadora do Grupo de Pesquisas Companhia
das Índias da UFF, professora da Universidade Regional do Cariri e das Faculdades Integradas do Ceará em
Iguatu no Ceará. jackhistory@gmail.com
1
The nature and destiny of Man (1920), The Passing of Industrialism (1920), Cycle of
Civilizations (1922), The Ages of Gods (1928), Progress and Religion (1929), Christianity
and the New Age (1931), The Making of Europe (1932), The mordern dilema (1932), The
spirit of the Oxford Movement (1933), Enquiries into Religion and Culture (1933), Medieval
Religion and Other Essays (1934), Religion and the Modern State (1935), Beyond Politics
(1939), Judgment of the nations (1942), Religion and Culture (1948), Religion and the rise of
western culture (1950), Medieval Essays (1954), Dynamics of World History (1956), The
Movement of World Revolution (1959), The historic reality of christian culture (1960), The
crisis of western education (1961), The dividing of Christedom (1965), The formation of
Christedom (1967). Além de duas obras póstumas The Gods of Revolution (1972), Religion
and World History (1975).
Dawson nasce e passa pela infância durante a Era Vitoriana em uma pequena cidade
do interior do País de Gales, portanto em um ambiente rural. Em sua juventude ele vê o fim
desta Era com o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914 ele tinha 25 anos, casa-se em
1916 e só aos 31 anos publica pela primeira vez, 12 anos depois que decidiu ser um
historiador da cultura. Portanto o mundo que formou sua visão intelectual é um mundo de
transição.
E os impactos negativos da Primeira Guerra Mundial fará toda uma geração de
intelectuais pensarem sobre a “modernidade”, como por exemplo, uma série de distopias
produzidas pela literatura. Só durante o período em que Dawson publica seu primeiro livro até
o último são publicados Nós (1924) - Evgueny Zamiatin; O Processo (1925) - Franz Kafka;
Admirável Mundo Novo (1931) - Aldous Huxley; A Revolução dos Bichos (1945) - George
Orwell; 1984 (1949) - George Orwell; Eu, Robô (1950) - Isaac Asimov; Farenheit 451
(1953) - Ray Bradbury; O Senhor das Moscas (1954) - William Golding; Laranja Mecânica
(1962) - Anthony Burgess; O Caçador de Andróides (1968) - Philip K. Dick; Além da
adaptação cinematográfica de A Guerra dos Mundos (1953) de H. G. Wells.
E não apenas um futuro não tão promissor é construído na literatura, mas também um
retorno ao apreço dos valores anteriores ao “mundo moderno” como em C. S. Lewis e J. R. R.
Tolkien. Ambos os autores ambientaram suas principais obras, “As Crônicas de Nárnia” e “O
Senhor dos Anéis” respectivamente, na Idade Média. Além disso, Dawson pertence a uma
geração de intelectuais ingleses convertidos ou encantados com o catolicismo e a tradição
ocidental, representados prioritariamente por G. K. Chesterton e T. S. Elliot.
Neste aspecto, Dawson parece concordar com o que C.S. Lewis aborda em Abolição
do Homem, ensaio de 1943. Lewis analisa como o “progresso” criou uma ilusão: a ideia que o
1
homem dominou a natureza. Lewis, que escreveu este ensaio em um contexto de guerra e
aparente vitória do nazismo e comunismos, também alertou para as ideologias que afirmavam
ter algo errado com a natureza humana, seja racial (nazismo), seja social (comunismo). Pois
quem definisse o tal erro seria, na verdade, o ditador da humanidade. Dawson, portanto,
pertence a toda uma geração de intelectuais britânicos que temiam que o rompimento total
com a tradição, na verdade destruísse a humanidade. Lewis afirmou:
Todas estas características fazem o homem, que havia decidido ser um historiador da
cultura pensar o significado desta modernidade. Suas primeiras obras foram: The nature and
destiny of Man (1920), The Passing of Industrialism (1920). Para entender melhor esta
cultura, que parecia em decadência, Dawson buscará compreender a formação das
civilizações, fará um diálogo vivo e profundo com Edward Gibbon e A Queda de Roma;
Marx e sua dialética da história; Spengler e os ciclos de civilização; Toynbee e sua filosofia
da História; até se encontrar no conceito de cultura de T.S. Elliot.
Suas três obras seguintes Cycle of Civilizations (1922), The Ages of Gods (1928),
Progress and Religion (1929), refletirá este processo intelectual. A primeira delas publicada
no Brasil foi Progress and Religion (1929), cujo título foi traduzido literalmente para
Progresso e Religião, publicado pela É Realizações em 2012. Apesar de ser a obra mais antiga
de Dawson publicado no Brasil, dois outros livros foram publicados primeiro em 2010:
Dynamics of World History (1956), como Dinâmicas da História do Mundo e The formation
of Christedom (1967), como A Formação da Cristandade. Desta feita o leitor brasileiro teve o
primeiro contato com o autor através de uma obra que representa o seu apogeu como teórico,
Dinâmicas da História do Mundo.
Em “Progresso e Religião”, Dawson critica fortemente a ideia positivista de progresso,
que seria a passagem de um estágio teológico para o positivo. Para Dawson esse pensamento
hegemônico foi transmitido como o único possível, o que não corresponderia à realidade dos
fatos. O cientista social ao analisar a realidade como um físico ou matemático faria análises
incompletas e incompatíveis com a sociedade estudada, já que o objeto de pesquisas são seres
humanos e não átomos.
1
Filósofos e cientistas dos séculos XVIII e XIX viam o universo do ponto de vista do
físico, como um sistema mecânico, uma ordem fechada governada pela lei da
matemática, em vez de manifestações de um espírito vivo. E os historiadores do
século XVIII eram igualmente limitados em sua visão. Eles concentravam sua
atenção em fatos e em eventos e acumulavam pilhas de detalhes, sem prestarem
atenção ao espírito conformador, único que pode dar significado a circunstâncias
materiais. Eles viam a história como a sequencia de eventos isolados e não como
um processo de vida. (DAWSON, 2012: 80)
Por trás da unidade cultural de toda grande civilização há uma unidade espiritual
em virtude de algumas sínteses que harmonizam o mundo interior da aspiração
espiritual com o mundo exterior da atividade social. Essa síntese se expressa
naquilo que podemos chamar de religião-cultura, tal como a que prevaleceu na
Europa Ocidental durante a Idade Média, quando a civilização, em todas as suas
manifestações, estava indissoluvelmente imersa em uma grande religião social.
Nessas culturas, tão opostas às nossa, sentimos que a vida está internamente
unificada e que o mesmo espírito se expressa tanto no trabalho instintivo do artesão
inculto quanto na realização do artista e do escritor. Uma vez que se dê uma síntese
desse tipo, ela domina a civilização por séculos, e compreendê-la constitui a chave
da história de toda uma era global. (...) Mesmo quando a síntese em que a religião-
cultura está baseada não mais expressa uma relação viva entre o mundo interior e o
exterior – entre a consciência individual e a realidade -, a sociedade ainda luta
para mantê-la e forçar as novas e rebeldes condições a se encaixar nas categorias
da antiga religião-cultura. (...) Há a sensação dolorosa de tensão na manutenção da
19
Destes, a É realizações publicou Religion and the rise of western culture (1950), com o
título de “Criação do Ocidente, religião e civilização medieval” em 2016, e Judgment of the
nations (1942), com o título de “O Julgamento das nações” neste ano de 2018. A editora que
vem publicando obras de Dawson desde 2010, não publica as obras de forma cronológica,
mas aqui não cabe fazer um julgamento, já que as questões editoriais têm suas próprias
especificidades.
Nesta fase de sua produção, Dawson já não apenas se mostra um historiador que
acredita ser a religião social e a sociedade religiosa, ele prova. “Criação do Ocidente” (1950)
já foi uma obra escrita 4 nos depois que o autor assumiu as Gifford Lectures na Universidade
de Edimburbo. As Gifford Lectures foi fundada por Adam Lord Gifford no século XIX para a
promoção da teologia natural e o conhecimento de Deus. Para se ter uma noção da qualidade
das Lectures, Hannah Arentd, Henri Bergson, Noam Choonsky, Paul Tillich, Rudolf Bultman,
Karl Barth, Carl Sagan, Jonh Dewey, Michel Polanyi, Jaroslav Pelikan, Raymond Aron e
Alister McGrath já foram palestrantes, nomes de grande importância para a história e teologia.
Dawson está no ápice de sua produção e chegando na sua maturidade intelectual.
Depois de mostrar a importância da religião como formadora da sociedade, Dawson agora
deixa de ser mais “sociólogo” e começa a se tornar mais “historiador”, ou seja, enfim buscará
a especificidade do cristianismo. E afirmará em “Criação do Ocidente” de 1950 que
especificidade é esta, que para ele é o fato do cristianismo ser uma religião baseada em fatos.
A religião do transcendente que se transformou em imanente é uma experiência religiosa
única no tronco religioso judaico-cristão, e para o mesmo, isto criará visões, valores e
instituições muito específicas se comparadas com outras civilizações, Dawson diz:
Faz dezoito anos que escrevi: “Entre as civilizações do mundo, por que somente a
Europa foi continuamente perturbada e transformada por uma espécie de energia
indomável de agitação espiritual, cuja dinâmica interna não se sujeita às imutáveis
leis da tradição social que sempre governaram as culturas orientais? Creio que a
resposta seria: porque seu ideal religioso nunca esteve ligado à adoração de uma
perfeição intemporal e imutável, mas apresenta-se como um espírito que busca se
incorporar à humanidade, mudando, porém a face do mundo. No Ocidente, o poder
espiritual, não foi imobilizado e cristalizado em uma ordem social sagrada, como
ocorreu no Estado confuciano, na China, e no sistema de castas da Índia. Aqui, ele
adquiriu liberdade e autonomia social e, consequentemente, sua atividade não ficou
confinada à esfera religiosa, e seus efeitos se disseminaram sobre todos os aspectos
da vida social e intelectual. (DAWSON, 2016: 37 - 38).
Poucos anos depois em Dynamics of World History (1956), aqui publicado em 2010,
Dawson, em sua obra mais teórica, afirmará ser o cristianismo não apenas uma religião
histórica. Mas que para fazer história do cristianismo é preciso respeitar e aceitar o fato que os
19
cristãos creem na sua historicidade. Ou seja, se historiador do cristianismo não pode duvidar
que Cristo nasceu, viveu, morreu. Milagres, curas, o nascimento virginal e ressurreição não
cabe ao historiador defender ou atacar, já que não fazem parte da imanência. O historiador
deve então se preocupar como essas crenças foram vividas e no que elas influenciaram o
Ocidente. Interessante como esta afirmação se aproxima de Apologia da História de Marc
Bloch, escrito em 1944:
Pois, diferentemente de outros tipos de cultura, ela sempre esperou muito de sua
memória. [Tudo a levava a isso: tanto a herança cristã como a herança antiga. Os
gregos e os latinos, nossos primeiros mestres, eram povos historiógrafos. O
cristianismo é uma religião de historiador. Outros sistemas religiosos fundaram
suas crenças e seus ritos sobre uma mitologia praticamente exterior ao tempo
humano; como Livros sagrados, os cristãos têm livros de história, e suas liturgias
comemoram, com os episódios da vida terrestre de um Deus, os faustos da Igreja e
dos santos. Histórico, o cristianismo o é ainda de outra maneira, talvez mais
profunda: colocado entre a Queda e o Juízo, o destino da humanidade afigura-se, a
seus olhos, uma longa aventura, da qual cada vida individual, cada "peregrinação"
particular, apresenta, por sua vez, o reflexo; é nessa duração, portanto dentro da
história, que se desenrola, eixo central de toda meditação cristã, o grande drama do
Pecado e da Redenção. Nossa arte, nossos monumentos literários estão carregados
dos ecos do passado, nossos homens de ação trazem incessantemente na boca suas
lições, reais ou supostas. (BLOCH, 2002: 42).
Considerações finais
Dawson foi corajoso ao contrariar toda uma geração que desprezava a religião, ao
afirmar o quanto a religião forjou civilizações inteiras, o mundo não é tão “laico” assim, na
verdade o império do laicato cultural é uma novidade do século XIX. Nossa geração foi criada
a pensar que a razão é autônoma, que a religião é inferior e que ela representa atraso e não
avanço. Em Dawson vemos justamente o contrário. O que o historiador da religião ganha ao
ler Dawson? Em especial o historiador do cristianismo? Creio que uma referência mais do que
erudita sobre o papel da religião e do cristianismo na formação das instituições do mundo
ocidental.
19
Além disso, Dawson também nos ajuda a explicar a dita era da “pósverdade”. Se para
o historiador galês o fim das civilizações coincidiu com o fim ou mudanças na religião, a
“pós-verdade” também pode ser explicada pelo paulatino abandono das crenças no homem
que não condenou a mentira, mas que afirmou ser ele mesmo a verdade. A civilização
ocidental caminha a passos largos para a superação do cristianismo? Estaria o que entendemos
por valores ocidentais chegando ao fim? A escrita historiográfica não permite escatologias,
mas permite afirmar, que segundo Dawson, já que o Ocidente nasceu cristão, ele morrerá se
deixar de ser, e uma nova civilização surgirá.
E por isso este historiador se torna atualíssimo, por que ele ajuda a compreender
melhor a atual onda reacionária na política ocidental. Não é apenas uma disputa ideológica
direita x esquerda, nem somente os velhos racismos e xenofobias vindo à tona em momentos
de crise econômica. É também o medo da morte, e que morte? De todo um estilo de vida, que
para Dawson foi forjado por uma cultura religiosa: o cristianismo, cuja “religião” do
progresso tanto advogou a necessidade de superar. Assim, se vivo fosse, o historiador católico
diria que a atual crise civilizatóriaque passa a Europa não é culpa dos refugiados, e nem serão
eles os responsáveis pelo fim da Europa, mas ela própria.
O Dawson católico acreditava que a restauração da unidade cristã, mantida pelo
respeito às duas tradições, seria a salvação da cristandade frente ao paganismo, e o
historiador, na salvação da Europa de seu declínio civilizacional. Este é Christopher Dawson,
erudito, brilhante, cristão, com a capacidade de dialogar em uma mesma frase com Max
Weber e Confúcio. Historiador que tem muito a contribuir com a historiografia do
cristianismo no Brasil, apesar de quase 50 anos de publicação de sua última obra, mesmo
sendo um historiador datado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro, Zahar,
2002.
DAWSON. Christopher. A divisão da cristandade. São Paulo, É realizações, 2014.
. A formação da cristandade. São Paulo, É realizações, 2014.
. Criação do Ocidente. São Paulo, É realizações 2016.
. Dinâmicas da história do mundo. São Paulo, É realizações, 2010.
. Inquéritos sobre religião e cultura. São Paulo, é realizações 2017.
. Progresso e religião. São Paulo, É realizações, 2012.
19
LEWIS, C.S. A abolição do homem. Rio de Janeiro, Thomas Nelson Brasil, 2017
1
RESUMO: Este artigo é parte constitutiva da pesquisa de graduação que toma a trajetória do
intelectual paulista Júlio de Mesquita Filho, a pretexto de pensar aspectos do imaginário
político brasileiro que moveu esse representante da elite paulista entre os anos de 1932 e
1964. Já situado na parte final do recorte temporal estabelecido, o texto que segue deseja
problematizar mais uma das perspectivas de época em torno do golpe militar de 1964 e seus
desdobramentos. Buscamos traçar considerações sobre o lugar dos que se entendiam como a
elite nacional, de posições políticas demarcadas em torno do espectro liberal-conservador,
tomando como fonte um editorial do jornal O Estado de São Paulo publicado em 12 de abril
de 1964 pelo proprietário e diretor do periódico, Júlio de Mesquita Filho. Pretendemos,
também, mapear a extensão da participação de setores intelectuais como sujeitos envolvidos
de maneira direta no golpe civil militar. Serão feitas referências a autores tais como Jorge
Ferreira, Marcelo Ridenti e Carlos Fico para refletir sobre a dinâmica da política brasileira do
período do golpe e a transição para a ditadura militar. Teoricamente, o argumento se
desenvolverá em torno de Arno Mayer e Reinhart Koselleck.
PALAVRAS-CHAVE: Golpe militar. Política. Intelectuais.
*
Graduando em História pela Universidade Federal do Piauí – Campus Senador Helvídio Nunes de Barros,
cursando presentemente o 8º período do curso. E-mail: adrianocpf@hotmail.com
**
É doutora em História Social pela Universidade Federal do Ceará (2016). Pesquisa as seguintes temáticas:
Cultura Política, Anticomunismo, Partidos Políticos, PTB, Trabalhismo e Trabalho. É professora efetiva da
Universidade Federal do Piauí. Orientadora deste trabalho. E-mail: marylu.oliveira@gmail.com
1
A historiadora brasileira Angela de Castro Gomes argumentou que as novas abordagens da historiografia
depois da década de 1980 lançou novos objetos e fundou novas interpretações da História do Brasil. Um
exemplo dessa tendência é a história intelectual, ou história das teorias e dos sistemas de pensamento que
manejavam a visão de mundo de sujeitos que se propuseram pensar a realidade nacional. Ver: GOMES, Angela
19
de Castro. Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980: notas para debate. In: Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, n.34, jul-dez, 2004. pp. 157-186.
2
Para elencar uma bibliografia sobre este tema, podemos citar os estudos empreendidos pelas historiadoras
Tânia Regina de Lucca e Maria Stella Bresciani, respectivamente: Ver: BRESCIANI, Maria Stella Martins. O
charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna entre intérpretes do Brasil. São Paulo: Editora
UNESP, 2007. DE LUCA, Tania Regina. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1999.
3
SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Projetos para o Brasil. São Paulo: Companhia das letras; Publifolha,
2000.
4
Monografia que está sendo produzida por mim no âmbito da Universidade Federal do Piauí, cujo título
provisório é: Nação como retórica: a construção da ideia de Brasil por Júlio de Mesquita Filho (1932-1964).
5
GOMES, Angela de Castro. Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980: notas para debate. In:
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.34, jul-dez, 2004. p. 161.
19
figura de Vargas décadas antes, esforçando-se em atribuir à sua imagem os ares do ditador
que fora até 1945. Os correligionários do partido buscavam articular a ideia de que a
metamorfose de Getúlio de ditador para democrata – por vezes alinhado à esquerda – era uma
fachada populista de manipulação. Em 1954, o suicídio de Vargas sacudia a firmeza de Carlos
Lacerda – “o demolidor de presidentes” – e seu partido. Quando o PSD e o PTB formaram
uma coalizão, frustraram a UDN por várias vezes consecutivas. O partido conservador passou
a enxergar a aliança que chamavam de “getulismo e populismo” como causa de grande parte
dos atrasos do país, passando a desprezar e odiar a situação, ressoando em críticas “mal
humoradas”.8
A crescente votação em grupos políticos à esquerda mobilizou novamente o
anticomunismo. Na perspectiva do espectro liberal-conservador direitista da União
Democrática Nacional, uma atitude se fazia necessária. Como pode ser lido no fragmento do
livro Incidente em Antares que serve de epígrafe para esse texto – escrito por Erico Veríssimo
já na década de 1970 –, as mistificações anticomunistas ecoavam pela sociedade brasileira. 9 O
trabalhismo e a reforma agrária, projetos políticos que representavam Jango, eram vistos
como a soleira da porta para o comunismo. É nesse terreno que o argumento construído em
torno da “defesa da legalidade” culminaria no golpe militar de 1964, bem como adentraria
mais de duas décadas, sempre alimentando essa ideia – que a certa altura passou a justificar a
tortura e a morte de brasileiros como “mal menor”.
No livro de Mesquita Filho intitulado Política e cultura,10 publicado em 1969, figura a
transcrição do editorial já referido. O título “roteiro da revolução” encontra um significado
forte no contexto da época. A palavra “roteiro” implica um plano que manteria os
desdobramentos da conspiração contra o presidente seguindo por trilhos pré-estabelecidos;
“revolução”, por sua vez, é um termo de legitimidade que na década de sessenta, segundo os
estudos desenvolvidos por Marcelo Ridente, encontrava envolto em um grande misticismo
romântico. A Revolução com R maiúsculo estava fincada no imaginário coletivo, não sendo
exclusividade nem dos espectros políticos de direita ou de esquerda. Era apenas palpável que
muitos consideravam causas pelas quais estavam dispostos a pagar um alto preço. Ridente
escreve que “(...) talvez os anos 1960 tenham sido o momento da história republicana mais
marcado pela convergência revolucionária entre política, cultura, vida pública e privada,
8
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Introdução à História dos Partidos Políticos brasileiros. 2 ed. Belo Horizonte:
UFGM, 1999. p. 83.
9
VERÍSSIMO, Erico. Incidente em Antares. São Paulo: Companhia das letras, 2006. p. 107.
10
MESQUITA FILHO, Júlio de. Política e cultura. São Paulo: Martins Editora, 1969.
20
passar do tempo, o seu papel na revolução agora era o de pensador cuidadoso por trás da ação.
Emprestava seus saberes às forças armadas.
Analisando o documento, em primeiro momento, um pensamento se faz presente – a
introdução desse escrito afirma que “a responsabilidade que pesa sobre as forças armadas é
enorme”.16 Essa responsabilidade atestada por Mesquita Filho aos militares aparece seguido
de referências a diversas ocasiões em que o exército havia agido como poder moderador,
especialmente apologético ao “belo movimento que derrubou a ditadura em 1945 e da queda
de Getúlio de 1954”.17 É nesse momento que se faz presente sua preocupação para o que
chama de “imprudências que redundaram em fracasso”, já que anteriormente o exército teria
entregado precipitadamente o poder a homens que tiveram seus espíritos formados em tempos
de ditadura. O personagem dirá que uma atitude planejada e prudente se faz necessária, como
se desejasse perscrutar o futuro e fornecer-lhe um plano a prova de falhas, um diagnóstico e
receita de intervenções que “no máximo três anos terá voltado o Brasil a um estado de perfeita
saúde política e social”.18
Segue, nesse tom de planejamento, o roteiro. A respeito da junta militar, ela se
constituiria em três militares que fariam as vezes do executivo. Tudo isso seria ancorado na
legitimidade constitucional, fundamentada na constituição de 1946 “para acalmar os espíritos”
e a partir disso promover a inadiável obra de saneamento”. 19 O chamado de “Poder Executivo
revolucionário” promoveria, de dentro dos limites da constituição, uma “reestruturação
administrativa e moral do Estado Brasileiro”. Não é definido, contudo, quais seriam esses
limites e até onde era aceitável o esgarçamento da constituição em nome do governo
“revolucionário”. Uma vez sob a bandeira da legalidade, as forças armadas desempenhariam o
seu papel, posto como quase sagrado, de restaurar a moralidade, o que deveria ser feito,
segundo Mesquita Filho, com prudência.
Essa prudência consistia, principalmente, em “evitar violências desnecessárias”.20
Dado o tom da aquiescência apenas parcial nesse trecho da carta/artigo, aparentemente “as
forças armadas” planejavam proceder uma derrubada total dos tribunais imediatamente após a
então nomeada “revolução”. O “saneamento” dessas instituições era urgente e necessário para
que as sombras que tanto diziam combater pudessem ser substituídas pelos faróis do Estado
autocrático que estava por dominar o país. O desafio que parece ter havido foi a não
16
Idem, ibidem. p. 120.
17
Ibid.
18
Ibid.
19
Ibid.
20
Ibid. p. 122.
20
existência uma fórmula para se fazer isso; em outras palavras, os conspiradores não tinham
controle sobre quaisquer das contingências vindouras. Júlio de Mesquita Filho afirmara que o
processo que levaria à queda de João Goulart já havia tido sua ignição, mas não existia um
roteiro prévio. Essa previsão que desejava dar conta do futuro, começara a ser discutida pelo
menos desde de 1962 e nem sempre encontrava unanimidade. 21 A consulta de intelectuais e
homens ligados à imprensa – como aqui apresentamos Mesquita Filho –, parece ter sido parte
do conjunto de ações que compôs o golpe de 1º de abril de 1964.
Júlio de Mesquita Filho pregara prudência. Não sabemos se ele ou outro dos ideólogos
e teóricos que ajudariam compor o quadro burocrático que cobriria o futuro governo ditatorial
com a bandeira da legalidade. Até hoje, os desdobramentos mais sutis desse período muitas
vezes permanecem velados por causa do alto grau de complexidade posta ao lado de uma
renitente insistência em modelos explicativos. Carlos Fico faz uma prolífica discussão em
torno dessa problemática; segundo este autor, pouquíssima atenção é dada aos
acontecimentos.22 Nesse caso, por exemplo, vemos o eco de como “1964 buscou construir
suportes jurídicos e aliou estratégias de legalização do regime às práticas de censura aos
meios de comunicação, de cassação arbitrária de mandatos parlamentares e dos direitos
políticos”,23 consultando intelectuais e pessoas em evidência na política nacional. Essas
dinâmicas são lampejos de processos subterrâneos, contudo não menos importantes. Uma
sugestão dada por Júlio de Mesquita Filho na referida carta pode ajudar a compreender como
esse processo se desdobrou. Ele defendia a criação de um “Conselho Nacional” que pudesse
ser consultado pela junta militar. Assim teria sido pensado tal conselho:
[...] Outra medida que julgo de grande interesse seria a criação de um Conselho
Nacional que acolhesse em seus quadros figuras de grande projeção. Este novo
organismo poderia ter apenas caráter consultivo ou deliberativo, ou os dois
simultaneamente. [...] A sua presença no organismo estatal viria reforçar
sensivelmente o prestígio do governo revolucionário, pois com ele julgo que estaria
completada a estrutura jurídico-política do País”.24
21
Para Reinhart Koselleck, a relação dos sujeitos históricos com as temporalidades em que habitam não é a
mesma para todos os indivíduos, ao mesmo tempo que propõe o estudo da própria historicidade da categoria
tempo. Ver: KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.
Tradução: Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006. pp.
09-15.
22
FICO, Carlos. Ditadura militar brasileira: aproximações teóricas e historiográficas. Revista Tempo e
Argumento, Florianópolis, v. 9, n. 20, p. 05 ‐ 74. jan./abr. 2017. pp. 35-38.
23
MONTENEGRO, Antonio Torres. História e memória de lutas políticas. In: MONTENEGRO, Antonio
Torres; RODEGHERO, Carla S.; ARAÚJO, Maria Paula. (Org.) Marcas da memória: história oral da anistia no
Brasil. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012.
24
MESQUITA FILHO, Júlio de. Política e cultura. São Paulo: Martins Editora, 1969. p. 127.
20
Os conselhos que Mesquita Filho apresentaria aos militares nessa carta, que é tornada
pública após a deposição de João Goulart, defendem fortemente a restauração da legalidade,
segundo os moldes da democracia por ele pensado. Não concebia mais que o país continuasse
a se afastar dos seus projetos e, dessa vez, com o espaço muito mais limitado para
negociações do que acontecera na década de 1930 e a sua penetração no terreno público. O
“liberal” fazia aposta alta no exército para que o mando de campo das elites ameaçadas fosse
devolvido, numa posição paradoxal: era revolucionário em nome, inserindo-se como tal para
se autolegitimar, mas o futuro utópico correspondia, também, a um passado nostálgico. O
reacionário – ou uma vontade de retorno – e o revolucionário disputavam espaço em um
mesmo indivíduo, o que, em última análise, era um mesmo significante. O indivíduo, como
escreveu Norbert Elias, pensara uma sociedade ao seu modo, mas que deviria dissonante dos
seus desejos. É nesse ponto que a força das tradições se fazem presentes, demonstrando força
de reação, quase seguindo as leis Newtonianas de “igual força e sentido contrário”. Tal
fenômeno é análogo ao apresentado por Arno Mayer sobre a permanência do antigo regime na
europa, com papel ativo da aristocracia e dos intelectuais.25
25
MAYER, Arno J. A força da tradição: a persistência do antigo regime (1848-1914). São Paulo: Companhia
das letras, 1987. p. 269.
26
AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. p. 60.
27
O primeiro exílio de Júlio de Mesquita Filho foi em 1932, por ocasião de sua participação na chamada
“Revolução constitucionalista”; o segundo seria motivado por sua oposição ao “Estado-Novo”, se prolongando
entre 1938 e 1943.
28
MESQUITA FILHO, Júlio de. Política e cultura. São Paulo: Martins Editora, 1969. p. 127.
20
Mesquita Filho seguia uma tradição de passado que na primeira República sujeitos
como Monteiro Lobato e o seu próprio pai tinham trilhado – a de compor políticas que tinham
lastro numa construção de um país grandioso, expurgando-lhe “as pragas” que o levava à
menoridade no concerto das nações.29 Evidências de sua saudade do “liberalismo excludente”
da primeira República, na qual vivera até seus quarenta anos, aparece no texto do derradeiro
tópico de sua proposta de “Revolução”. Aí entra o seu projeto liberal, construção de um país
em que a “iniciativa privada” daria as cartas; ao mesmo tempo, combateria qualquer vestígio
de filosofias que remetesse ao socialismo. Caberia ao Estado brasileiro
29
DE LUCA, Tania Regina. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Fundação Editora
da UNESP, 1999.
30
MESQUITA FILHO, Júlio de. Política e cultura. São Paulo: Martins Editora, 1969. p. 126.
31
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução: Wilma
Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006. p. 15.
32
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: companhia das letras, 2006.
p. 21-22.
20
33
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 369.
34
INSTITUIÇÕES em frangalhos. O Estado de São Paulo. 13 dez 1968.
35
FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, e pôs fim ao
regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: São Paulo, 2014. p. 373.
20
36
VERÍSSIMO, Erico. Incidente em Antares. São Paulo: Companhia das letras, 2006. p. 141.
37
INSTITUIÇÕES em frangalhos. O Estado de São Paulo. 13 dez 1968, p. 3.
20
seus argumentos, acreditavam dizer, como lembrou Michel Foucault sobre os intelectuais, a
muda verdade de todos.
Esses enunciados pretendiam ditar ações, regimes políticos e moralização na
sociedade; imaginavam projeções que mostraram ser, reiteradamente, um caminho de
inteligibilidade íngreme. De fato, a intelectualidade que aqui temos pensado através de Júlio
de Mesquita Filho, tinha idiossincrasias clássicas, como seus projetos aparentemente a prova
de falhas e certeiros, mas que costumavam ficar no pretérito imperfeito – e quando não,
ficavam restrita a uma ínfima parcela do “povo brasileiro” por quem desejavam falar. Esse
fenômeno social que envolve as elites, aristocráticas no modo de pensar e abastadas no modo
de viver, está envolto de um misticismo identitário-regionalista, veladamente antidemocrático
– pelo menos no curto prazo. Os conceitos sob os quais desejavam conformar o mundo eram
a-históricos, uma vez que não havia nenhuma preocupação em relação à dimensão humana da
história.
As “forças incorpóreas”, meros princípios abstratos que não encontravam ressonância
em realidades maiores, representavam a distância que há entre o direito constitucional e o
direito costumeiro, teorias e uma práticas absolutamente descoladas entre si. Sergio Buarque
de Holanda define essa atitude curvada ao cientificismo sem lastro como uma separação
“irremediável” desse tipo de razão e a vida, sendo aquele usado apenas “para vestir seus
interesses”. As buscas de construção de uma intelectualidade de elite eram fundamentadas por
tautologias em que o próprio argumento se legitimava de maneira automática. Em meio a esse
enunciado intelectual, se fazia presente uma militância pelo “Brasil do futuro”, cuja
concretização fazia necessário o sacrifício de gerações inteiras – principalmente aquelas
distante dos “centros de saber” de onde esses discursos intelectuais se enunciavam.
Como escreveu Friedrich Nietzsche, aqueles conceitos que possuem história vivida e
lastro de significância entre os homens e mulheres que habitam o mundo, “esquivam-se à
definição”, acrescentando que “só o que não tem história é definível”. Pois bem, o liberalismo
conservador que moveu os engajamentos de Júlio de Mesquita Filho, intelectual e
sujeitocidadão brasileiro, enfrenta o mundo em sua complexa profusão, muito mais amplo do
que costuma admitir um pensador inspirado pelo positivismo. Por outro lado, os problemas
que envolvem a lentidão na construção da cidadania no Brasil, permite que os poderes sejam
embebidos por uma linguagem que não responde aos anseios da maioria. Esse fenômeno nos
remete ao que disse João Ubaldo Ribeiro em Viva o povo brasileiro, em referência de como
os heróis brasileiros são criados de maneira aberrante, escondidos sob uma névoa de sangue.
20
REFERÊNCIAS
FONTES:
INSTITUIÇÕES em frangalhos. O Estado de São Paulo. 13 dez 1968, p. 3.
MESQUITA FILHO, Júlio de. Roteiro da Revolução. In: Política e cultura.
São Paulo: Martins Editora, 1969. p. 120-127.
BIBLIOGRAFIA:
AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos,
2009.
BRESCIANI, Maria Stella Martins. O charme da ciência e a sedução da objetividade:
Oliveira Vianna entre intérpretes do Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2007.
DE LUCA, Tania Regina. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1999.
FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, e
pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: São Paulo,
2014.
FICO, Carlos. Ditadura militar brasileira: aproximações teóricas e historiográficas. Revista
Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 9, n. 20, p. 05 ‐ 74. jan./abr. 2017.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2005.
GOMES, Angela de Castro. Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980: notas
para debate. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.34, jul-dez, 2004. p. 161.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.
Tradução: Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed.
PUC-Rio, 2006.
MAYER, Arno. A força da tradição: a persistência do antigo regime (1848-1914). São
Paulo: Companhia das letras, 1987.
20
Este lugar social citado por (CERTEAU, 2015) refere-se a seguinte pergunta: De onde
escreve o historiador? A que grupo pertence ele? Esses dois questionamentos nos dizem muito
sobre a forma de pensamento e qual o propósito do historiador ao escrever sobre um
determinado assunto. Obviamente, por estar em um contexto (lugar social) o pesquisador será
influenciado por suas vivências.
“Entre muitos outros, esses traços remetem o ‘estatuto de uma ciência’ a uma
situação social que é o seu não-dito”. É, pois, impossível analisar o discurso
histórico independentemente da instituição em função da qual ele se organiza
silenciosamente; ou sonhar com uma renovação da disciplina, assegurada pela
única e exclusiva modificação de seus conceitos, sem que intervenha uma
transformação das situações assentadas”. (CERTEAU, 2015: 55).
Dessa forma, partimos das análises de (CERTEAU, 2015) para entender o processo de
operação historiográfica extremamente necessário à escrita da história.
21
organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por papel exorcizar-
lhes os poderes e os perigos, refrear-lhe o acontecimento aleatório, disfarçar a sua pesada e
temível materialidade”. (FOUCAULT, 1971:02).
Num primeiro caso, na comarca de Pereiro em 1866 foi feita uma queixa contra a
professora Maria Ignácia Franco do Nascimento, “Esta era viúva e foi acusada de manter
relações ilícitas com o Capitão da Guarda Nacional dessa Vila e de ter rejeitado uma criança.
O conselho diretor resolveu removê-la do cargo de professora. A mesma enviou, entretanto,
documentos com o objetivo de combater as acusações”. (CEARÁ, 2010: 478).
Entre 1858 – 1859 na localidade de Assaré foi feita uma queixa contra o professor
primário de Acaraú Jozé Sisnando Baptista Xenofonte.
Existe na documentação uma cópia das cartas enviadas pelo professor a jovem Maria
Bella.
1
A informação sobre a existência de documentos anexados às representações é feita ao final de cada descrição
processual no livro “Guia de fontes para a história da Instrução Pública no Ceará 1833 – 1889”.
21
qualquer circunstância, quem quer que seja, finalmente, não pode falar do que quer
que seja”. (FOUCAULT, 1971: 3).
“E com isso não há com que, manifesta (ou esconde) o desejo; é também aquilo que
é objeto do desejo; porque – e isso a história desde sempre o ensinou – o discurso
não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas
aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos
assenhorearmo-nos”. (FOUCAULT, 1971: 3).
quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas as maneiras de
empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante. (CERTEAU,
2012: 39).
Nesse sentido, sobre o ofício de professor no século XIX, é possível perceber que
haviam intensas relações de poder, em algumas situações os professores entravam em
discordância com o Estado por questões profissionais, com a Igreja Católica por questões
morais e religiosas e com os pais por questões pedagógicas e entre as diferentes camadas
sociais que compunham o contexto histórico educacional no período supracitado. Essa ideia
não encerra de maneira simplista o cotidiano estudado 2 , mas, nos permite visualizar com
maior clareza os conflitos sociais existentes entre professores, sociedade, Estado e Família.
Fica evidenciado, portanto, que existiam e ainda existem, de acordo com cada
contexto, maneiras específicas de fazer e agir no cotidiano3. Maneiras complexas de compor
as práticas comportamentais, e cabe ao historiador tomar os detalhes dessas formas de
representação ou “Artes de Fazer” e analisar tais práticas comportamentais.
Essas práticas cotidianas estão latentes, a partir da análise das fontes selecionadas para
este estudo. Dessa forma, podemos perceber que algumas situações são muito singulares e que
por assim se apresentarem merecem destaque neste trabalho: Sexo e gênero, conduta moral e
ética e conflitos sociais são as principais características identificadas no referido contexto e
que, deverão der discutidas na dissertação de mestrado em andamento.
A partir da análise de Certeau sobre cotidiano e suas inúmeras maneiras de fazer-se, é
possível identificar algumas situações que são de suma importância para a complementaridade
deste estudo. Se a sociedade é um campo complexo de relações e para Certeau, tais relações
nem sempre são providas de análise e entendimento devemos, portanto, voltar nosso olhar
2
O cotidiano para (CERTEAU 2012) pode ser entendido como um conjunto de práticas que individualizam as
ações do sujeito, tornando-as específicas “Artes de fazer”.
3
Para (CERTEAU, 2012) algumas dessas práticas podem não ter uma lógica aparente.
21
para aquilo que se refere às práticas mais cotidianas, aqueles eventos relacionados ao fatos
mais simples e, que, no entanto, nos revelam muito sobre as formas de comportamento de
determinado contexto histórico.
Sob a ótica de Certeau, as práticas cotidianas revelam-se em atos ou situações muito
simples, como cozinhar, ler, estudar, dar aulas, etc., essas práticas cotidianas desvelam
aspectos importantes do contexto histórico relacionado. Esse campo de abordagem nos remete
à chamada micro história, justamente, por que a intenção desde estudo é tentar analisar o
cotidiano do professor no século XIX, os conflitos envolvidos no ofício de ensinar. Nesse
sentido, ainda de acordo com (CERTEAU, 2012), existe uma espécie de microfísica do poder.
Saber analisar e compreender essas relações de poder é de fundamental importância para o
entendimento da temática em questão.
Tais práticas sociais, obviamente são providas de intencionalidades e, podem ser
espontâneas, singulares ou orquestradas, nesse sentido devem ser entendidos dentro de seus
respectivos contextos históricos.
Dentro dessas práticas cotidianas podemos citar a queixa feita contra o professor
Ildefonso Pereira Camapum em 1866 em Saboeiro/Assaré.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sabemos, portanto, que era proibido, ao professor exercer qualquer outra atividade
além de ensinar. O regimento moral e ético da época, também, impunha inúmeras proibições,
assim sendo, podemos perceber algumas práticas de resistência por parte dos professores –
possuir um segundo emprego, manter um relacionamento amoroso com uma aluna, ministrar
uma aula embriagado, se exceder no castigo físico de um aluno, não aplicar as avaliações na
data correta e a abandonar a sala de aula - são apenas algumas situações descritas nos
documentos da época. Analisar essas fontes é de fundamental importância para que possamos
contribuir, minimamente, para o entendimento da construção histórica do papel social do
professor. Pretendemos além, de entender a construção desse papel social, construir uma
dissertação que contemple três campos principais: Primeiro, relacionar as fontes primárias aos
teóricos listados no início do texto e construir uma relação coerente entre fontes primárias e
teoria. Em segundo lugar, problematizar os processos movidos contra os professores e
entender o cotidiano desse profissional no Ceará do século XIX e, finalmente, mapear as
principais práticas pedagógicas relacionadas ao ensino de História e entender a influência
dessas práticas no ofício do professor cearense do final do século XIX.
REFERÊNCIAS
FONTES PRIMÁRIAS:
LEIS.
PROCESSOS.
Código de referência do Arquivo público do Ceará: BR APEC, IP. CO, QX. 1/11 – Queixa
contra a professora Maria Ignácia Franco do Nascimento - Comarca de Pereiro, 1866.
Código de referência do Arquivo público do Ceará: BR APEC, IP. CO, QX -1/ 3 - Queixa
contra o professor primário de Acaraú Jozé Sisnando Baptista Xenofonte – Comarca de
Assaré, 1859.
Código de referência do Arquivo público do Ceará: BR APEC, IP. CO, QX – 1/ 5 - Queixa
contra a professora Joanna Henriqueta de Almeida. – Comarca de Jardim, 1859.
Código de referência do Arquivo público do Ceará: BR APEC, IP. CO, QX – 1/ 12 - Queixa
feita contra o professor Ildefonso Pereira Camapum. Localidade de Saboeiro/Assaré. 1866
Código de referência do Arquivo público do Ceará: BR APEC, IP. CO, QX. – 1/ 18- Queixa
contra o professor José Thomaz de Araújo. Comarca de Lavras, 1868.
Código de referência do Arquivo público do Ceará: BR APEC, IP. CO, QX. –1/ 27 Queixa
contra o professor primário Balduino de Almeida Cabral. 1872, na localidade de Mulungu.
Código de referência do Arquivo público do Ceará: BR APEC, IP. CO, QX – 1/ 11 Queixa
contra o professor Enoch Rodrigues Campelo, feita por Zeferino Calasancio Lopes Pinheiro,
Bernardo Beserra de Menezes e Manoel Lopes do Nascimento. Localidade de Riacho do
Sangue, 1869.
BIBLIOGRAFIA:
BLOCH, Marc Leopold Benjamim. Apologia da História, ou O ofício do Historiador. Rio
de Janeiro: Zahar, 2001.
BRAGA de Olinda, Erlinda Maria. Tinta, papel e palmatória (A escola no Ceará do Século
XIX). (Coleção “Outras Histórias”, 2004). Fortaleza-governo de estado Ceará - Museu do
Ceará.
BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo. UNESP, 2002. CABRAL, Magali. A
palavra e o objeto. (Coleção “Outras Histórias”, 2004). Fortaleza-governo de estado Ceará -
Museu do Ceará.
CARVALHO, José Murilo. A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras,1990.
CEARÁ, Secretaria da Cultura. Arquivo público. Guia de Fontes para a História da
Instrução Pública da Província do Ceará (1833- 1889) – Fortaleza: SECULT, 2010.
CERTEAU, Michel de. A escrita da História. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
. A invenção do cotidiano: 1. Artes de Fazer; 18º Ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2012.
DOCUMENTOS. Revista do Arquivo Público do Ceará: História e Educação. N° 2.
Fortaleza. Arquivo Público do Estado do Ceará, 2006.
FOUCAULT, Michel. L’ordre du discours, Leçon inugurale ao collège de France prononcée
le 2 décembre. 1970. Éditions Gllimard, Paris, 1971.
22
Como se pode inferir com base no fragmento do boletim transcrito no jornal que
publicava os atos oficiais do novo governo, periódico criado por Pedro Velho, o discurso dos
grupos que assumiram o poder era de otimismo, com várias promessas de transformação.
Com a República, ressaltava a redação do A Republica, os privilégios característicos do
governo imperial não mais existiriam. Com a República, a harmonia social reinaria, os
direitos e as liberdades de todos seriam resguardados, o povo brasileiro teria espaço nesse
governo novo, eis a promessa que guiava o discurso republicano norte-rio-grandense.
1 A ascensão do grupo familiar Albuquerque Maranhão não ocorreu de forma imediata após a implantação da
República, consolidando-se apenas a partir de 1895. Ver: BUENO, Almir de Carvalho. Visões de República:
ideias e práticas políticas no Rio Grande do Norte (1880-1895). Natal: Editora da UFRN, 2002.
22
Contudo, boa parte dessas promessas ficou reduzida ao campo do discurso. Os governos
estadual e municipal atuaram nas primeiras décadas do século XX na política de
modernização da capital norte-rio-grandense fomentando um processo de desapropriação em
massa, legitimando a relocação de retirantes e sujeitos considerados indesejados das zonas
urbanas. Na cidade que enfrentava um processo de remodelação nem todas as liberdades
estariam garantidas. No governo que começava a enraizar-se no Rio Grande do Norte, nem
todos teriam seus direitos resguardados, os privilégios de poucos ainda seriam prioridade.
No manifesto republicado divulgado em 21 de novembro de 1889, Pedro Velho
ressaltou que o governo seria representante dos direitos do povo, asseverando que os “erros e
desmandos do passado, a desigualdade e os privilégios, que traziam a vergonha pública e o
rebaixamento da dignidade cívica, cedeu o passo a uma vida nova, de horizontes largos, de
abundâncias e glórias, livres todos e todos iguais” (MARANHÃO apud Cascudo, 1965: 279).
O chefe do executivo estadual era categórico: “o Govêrno atual é do Povo e pelo Povo!”
(MARANHÃO apud Cascudo, 1965: 279). Os trechos citados do documento elaborado
alguns dias após o advento do governo republicano pode demonstrar como os organizadores
do Partido Republicano no Rio Grande do Norte desejavam divulgar o novo sistema político,
fazer propaganda, diminuir o número de insatisfeitos com as mudanças que o 15 de novembro
de 1889 prometia instaurar. Todavia, com o passar dos anos, os ideais otimistas do
republicanismo do tempo da propaganda foram, em grande medida, afastados pelas práticas
dos governos republicanos.
Câmara Cascudo ajudou a construir a imagem de um Pedro Velho que, além de
poderoso e memorável, era também honesto:
Pedro Velho velava sobre essa honestidade que era atributo funcional da chefia
política. Êle próprio, dono do Estado, filho de homem rico, deixou uma herança que
envergonharia o mais desinteressado dos homens contemporâneos. Quando casava
uma filha, dava-se por feliz podendo presenteá-la com um conto de réis, trocado em
notinhas novas, para as futuras despesas miúdas. Por hábito ou temendo o Chefe,
todos os delegados de sua política temiam a transgressão disciplinar no terreno dos
dinheiros públicos. Não posso nem devo revelar sua intervenção fulminante, serena,
implacável, definitiva, quando algum amigo sucumbia à tentação financeira das
rendas municipais ou compra fictícia de propriedades. Fibras das velhas árvores...
sem poda e sentidos de aclimatação... (MARANHÃO apud Cascudo, 1965: 40).
2 Com o Código Civil elaborado em 2002, novos aforamentos para chãos urbanos foram proibidos. Entretanto,
em algumas cidades do Brasil esses aforamentos continuam existindo, pois as enfiteuses já existentes
continuaram sendo reguladas pelo Código de 1916. O aforamento de terrenos de marinha não foi proibido em
2002, sendo regulado por legislação específica. Em Natal, atualmente as pessoas pagam a taxa denominada
laudêmio ao transferir terrenos localizados em terras que, em tempos longínquos, constituíram o rossio da
Câmara. O pagamento do foro caiu em desuso, mas o instituto permanece, uma vez que a taxa de transferência
ainda é paga à Prefeitura, detentora do domínio direto das terras aforadas.
3 Para mais informações sobre esse modelo de apropriação, ver: AMORIM, Edgar Carlos de. Teoria e prática da
enfiteuse. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1986. p.1; SIQUEIRA, Gabriela Fernandes de. A regularização do
instituto do aforamento urbano em Natal e em Cidade Nova. In: _ . Por uma “Cidade Nova”: apropriação e
uso do solo urbano no terceiro bairro de Natal (1901-1929). Dissertação (Mestrado em História). Programa de
Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, 2014..+0
22
4 O artigo 5º do Decreto n.08 de 1890, que estabeleceu o Conselho de Intendência de Natal, dava ao governador
o direito de dissolver, no intuito de zelar pelo bem público do município, esse conselho, o que demonstra a
grande interferência do poder estadual no governo municipal, ver: RIO GRANDE DO NORTE. Decreto n.08, de
16 de janeiro de 1890. Decretos do Governo do Estado (1889-1891). Natal: Typ. da Empreza gráfica de Renaud
& Cia, 1896.
5
Moura também aparece como criador nas listas do Almanak Laemmert entre 1909-1929, ver: ALMANAK
Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro (Almanak Laemmert). Rio de Janeiro, 1909-1929.
Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=313394&pasta=ano%20190&pesq=>.
Acesso em: 04 maio 2018.
6 Essas informações foram encontradas em: A REPUBLICA, Natal, 18 mar. 1909; A REPUBLICA, Natal, 14
maio 1909; A REPUBLICA, Natal, 21 dez. 1909.
7
Em junho de 1900 o governo pagou a quantia de 107.000 réis para Moura pelo fornecimento de 25 quilos de
“semente de maniçoba para serem distribuídos gratuitamente aos agricultores da zona do agreste”. Em março de
1910, ao longo do segundo mandato de Alberto, o governo estadual pagou 716.260 réis para Joaquim Teixeira de
Moura pelas “despexas realizadas com a construção dos poços de propriedade do Estado, sitos às ruas Jundiahy,
Assú e Avenida 8”, ver: GOVERNO do Estado. A Republica, Natal, 06 jun. 1900; PARTE Official. A Republica,
Natal, 31 mar. 1910.
22
poder municipal lançou “as vistas para os terrenos doados ao município por D. João VI” 8.
Moura fazia referência às antigas terras do rossio, doadas pela Coroa às câmaras municipais
ainda no período colonial. Essas terras constituíram o patrimônio do poder municipal desde a
colônia e permaneceram, agora pertencendo à Intendência, no período republicano. O
presidente da Intendência ressaltou que, antes dessa intervenção de sua gestão em 1903, eram
raros os proprietários que possuíam a documentação regularizada de seus aforamentos e
pagavam os foros anuais à Intendência, contribuindo para a receita anual do poder municipal
com a quantia de apenas um conto de réis (1:000.000). Diante desse quadro de
irregularidades, Moura argumentou que:
Tabela 01 - Tabela contendo número de cartas aforadas por Joaquim Manoel Teixeira
de Moura entre 1904-191912.
Bairro Quantidade Área por bairro Área total aforada
Cidade Nova 2 59.202,65 m²
Cidade Alta 8 4.353,4 m² 527.190,92 m²
Ribeira 0 0
Subúrbio 9 13 463.634,87 m²
Fonte: Elaborada pela autora com base nas cartas de aforamento.
Joaquim Moura era foreiro de uma área de 527.190,92 m². Entre esses terrenos
concedidos em enfiteuse, tem-se destaque para um lote de 216.499m² concedido pela
Intendência de Natal em setembro de 1912 e localizado na região suburbana. Trata-se, pois,
de um expressivo latifúndio, demonstrando como o discurso de Quincas Moura não se tornou
prática efetiva. Em janeiro 1904, quando Alberto Maranhão era o governador do Rio Grande
do Norte, Moura recebeu em enfiteuse um lote de 58.265 m² no bairro Cidade Nova. Para ter
acesso ao domínio útil desse terreno, o presidente da Intendência deveria pagar, conforme
estipulado pela Resolução n.81, o valor de 83.265 réis anuais14. Contudo, a carta de
aforamento registrou como valor de foro a quantia de 8.000 réis15. A quantia registrada na
11
Idem.
12
Expressar em números a participação do presidente da Intendência de Natal no mercado de terras da capital é
tarefa difícil. Muitas das cartas de aforamento que listam Quincas Moura como enfiteuta foram desmembradas
em outras. Todavia, ao longo desse processo, ocorreu alteração na área do terreno original, que foi ampliada
consideravelmente, o que dificulta o processo de descontar as áreas já contabilizadas antes do desmembramento,
podendo causar alteração nos números aproximados contidos na tabela destacada.
13
Vale ressaltar que Moura foi listado em 18 cartas de aforamento para a região suburbana de Natal. Contudo,
para a contagem da área de domínio útil de cada enfiteuta é preciso fazer o desconto de áreas que possam ser
contadas mais de uma vez. Sendo assim, se um terreno foi desmembrado em dois outros e, posteriormente,
novamente em dois outros, somente se deve contar a área original, já que, apesar dos desmembramentos, trata-se
do mesmo terreno. É preciso ainda ter cuidado para contabilizar as incorporações de áreas, efetivadas ao longo
de alguns desmembramentos.
14
Segundo a Resolução n.81, os foros de terrenos municipais nas áreas urbanas continuariam a ser cobrados à
razão de cinco réis por metro quadrado, entretanto esse cálculo seria efetuado para um terreno de até 5.000m². O
que excedesse de 5.000m² até 10.000m² seria calculado na razão de dois réis e o que ultrapasse os 10.000m² seria
cobrado na razão de um réis. Ver: A REPUBLICA, Natal, 15 set. 1903.
15
NATAL. Prefeitura Municipal do Natal. Carta de aforamento n.12, de 30 de janeiro de 1904. Natal: s.d.
22
carta era mais de dez vezes inferior ao que deveria ser cobrado segundo resolução
implementada em setembro de 1903, quando Joaquim Moura já era presidente da Intendência.
Os exemplos destacados demonstram como o presidente do executivo municipal aproveitava
sua posição privilegiada para aforar terrenos de dimensões expressivos nas zonas urbanas e
suburbanas da capital, pagando foros simbólicos.
O relatório de Moura sobre a gestão de 1911 a 1913 também ressaltou um problema
que foi apontado em algumas matérias do A Republica: a questão da falta de edificações. Os
habitantes aforavam terrenos, mas não cumpriam a cláusula da edificação, ocasionando um
problema considerável, já que o aumento populacional não era acompanhado pelo aumento de
moradias. Moura, enquanto presidente da Intendência, tinha papel importante na organização
das mesas eleitorais e, como os editais publicados no A Republica destacavam, também
indicava os mesários que participavam das eleições 16. Nota-se que, ocupando o cargo de
intendente, Moura fortalecia suas relações com a rede de parentela dos Albuquerque
Maranhão, e, enquanto comerciante, também beneficiava seus negócios, além de ter forte
atuação nas eleições para variados cargos. O Diário do Natal constantemente denunciava as
ligações diretas entre os Albuquerque Maranhão e Quincas Moura, e sugeria que o então
presidente da municipalidade desviava verbas para empregá-las em interesse particular, como
destacou a matéria pulicada em 09 de janeiro de 1912:
Não sei porque cargas a Intendencia triplicou os impostos para o corrente anno.
Quaes os melhoramentos feitos por essa grandíssima [...] nesta cidade? Onde estão
as suas obras? Nos cercados dos magnates? Nas terras do Senegal?
Responda o Quincas Manuel
Ou algum seu agregado
Os cobres da Intendencia?[...]17.
Quincas Moura também possuía o domínio útil de terrenos no bairro Cidade Nova, em
um deles construiu a propriedade denominada Senegal18. Na matéria citada, o autor criticou o
aumento dos impostos e sugeriu que eles estavam sendo desviados para custear a construção
de propriedades do presidente da Intendência e de seus agregados, já que não se conseguia
observar na urbe natalense melhoramentos que justificassem o referido aumento. Moura
16
Conforme destacado em edital publicado em junho de 1904, em que Joaquim Manoel Teixeira indicou os
mesários para a eleição de deputado federal. Entre os nomes indicados constavam os de Manuel Dantas,
Francisco Cascudo, Theodósio Paiva e Fortunato Aranha, que também atuaram como intendentes na capital. Em
1906 o próprio Joaquim Manoel assinou um edital a respeito da eleição estadual desse ano colocando-se como
mesário, ver: EDITAES. A Republica, Natal, 11 jun. 1904; EDITAES. A Republica, Natal, 27 out. 1906.
17
NETTO. De meu canto. Diário do Natal, 09 de jan. 1912.
18
Além das matérias do Diário citando tal propriedade, a mesma também foi mencionada por Alberto Maranhão
em carta enviada a Câmara Cascudo, e em matéria do A Republica, ver: CASCUDO, Câmara. História da
Cidade do Natal. Natal: Editora da UFRN, 1980. p.333-334; A REPUBLICA, Natal, 19 jun. 1913.
22
19
GOVERNO do Estado. A Republica, Natal, 09 maio 1904.
20
Ver: INTENDENCIA Municipal. A Republica, Natal, 02 jan. 1905.
21
Também citado como intendente em resoluções de 1918. Após a morte do intendente Virgilio de Miranda,
foram abertas eleições para a vaga de intendente, por isso Carvalho não iniciou o mandato em 1917, mas apenas
em 1918. Ver: A REPUBLICA, Natal, 02 abr. 1918; A REPUBLICA, Natal, 28 dez. 1918.
23
latifúndios em Natal. Tem-se destaque para as terras de Alberto Roselli, que apareceu como
enfiteuta em 8 cartas de aforamento, reunindo uma área de mais de 800.000m², que abarcaria
mais de 6.000 lotes destinados aos aforamentos gratuitos e a mais de 118 campos de futebol
no padrão atual da FIFA22. Já Arthur Mangabeira, que atuou como fiscal da Intendência,
parece ter seguido a estratégia de solicitar e adquirir vários terrenos com dimensões menores,
somando um patrimônio fundiário de mais de 500.000 m² divididos em 29 lotes. Felinto
Elysio Maciel recebeu em enfiteuse 53 lotes, todavia seu patrimônio fundiário era inferior ao
do fiscal Paschoal Romano Sobrinho, foreiro de apenas 3 terrenos. Os membros da
Intendência utilizavam estratégias diferenciadas no mercado de terras. Alguns preferiam
solicitar vários lotes visando lucrar do ponto de vista econômico, construindo casas para
alugar ou transacionando para indivíduos fora da rede de parentela dominante por valores
expressivos economicamente. Já outros optavam por ter seus nomes citados em poucos editais
de solicitação, evitando críticas do jornal oposicionista, sustentando a imagem de funcionários
comprometidos com os ideais republicanos do tempo da propagada, e mantendo a
governabilidade por meio de uma gestão que estivesse voltada para benefício da população,
ainda que apenas na aparência. Todavia, quantidade não significava restrição de área.
Conforme pode ser verificado na tabela, alguns membros da Intendência solicitavam dois ou
três terrenos, mas possuíam um patrimônio fundiário bem mais expressivo do que outros que
solicitavam mais de 10.
Esses são apenas alguns exemplos, em trabalho em andamento será demonstrado em
estudos de casos como muitos intendentes não pagavam os foros devidos e não respeitavam as
regras que as resoluções estipulavam para aforamentos concedidos em áreas urbanas e nos
subúrbios23. Muitos governadores e seus familiares também foram beneficiados com essa
política de concessão de terras em enfiteuse ainda na gestão de Joaquim Moura. Vários
membros da família Albuquerque Maranhão conseguiram adquirir o domínio útil de terras da
22
Conforme estipulado pela Resolução n.92, o lote destinado aos aforamentos gratuitos deveria ter no mínimo
140 m² (7M x 20 m). Ou seja, 140 m² indicava a menor unidade de moradia legalmente reconhecida pela
Intendência de Natal. Para fins de comparação com a atualidade, pode-se utilizar como parâmetro a área do
campo de futebol dos estádios de futebol que, de acordo com a Federação Internacional de Futebol e da
Confederação Brasileira de Futebol, é de 7.140 m² (105 m x 68 m), ver: A REPUBLICA, Natal, 14 maio-14 jun.
1904; PROJETO gramados: CBF padroniza campos em 105 x 68. Disponível em: <
http://www.cbf.com.br/noticias/campeonato-brasileiro/projeto-gramados-cbf-padroniza-campos-em-105-x-
68#.WYyTkNKGN1t>. Acesso em: 10 ago. 2017.
23
Essa discussão será aprofundada na tese Terra e poder: apropriação e uso do patrimônio fundiário da capital
do Rio Grande do Norte e seu impacto na formação e reestruturação das redes de poder locais (1903-1929). A
referida tese encontra-se em fase de desenvolvimento.
23
compreender que não era necessário que os intendentes solicitassem aos fiscais que não
reprovassem suas petições de aforamento pelo fato de seus terrenos serem bem mais extensos
do que a lei permitia. Também não era preciso pedir para a Intendência não revogar
aforamentos de enfiteutas que não pagavam os foros anuais e alienavam constantemente as
terras aforadas. Essas concessões eram realizadas porque faziam sentido, porque esses
indivíduos partilhavam, ou aspiravam partilhar, um mesmo habitus, estavam inseridos em um
jogo, já tinham internalizado o senso de jogo. Essas relações, essa política de terras, era um
jogo nesse espaço social, e, para os partícipes desse jogo, fazia sentido praticar determinados
atos, concessões específicas, não lucrar apenas economicamente.
Considerações Finais
Os homens que integravam a Intendência de Natal no recorte estudado não recebiam
salários por essa atividade, devendo conciliar suas profissões com o exercício do executivo e
do legislativo municipal, o que afastava desses cargos indivíduos que não possuíam posições
privilegiadas na sociedade, com renda capaz de sustentar a família ao longo do mandato.
Mesmo sem receber salário, integrando a Intendência esses homens poderiam conquistar
diferentes tipos de capitais, já que, em seus cargos, legislavam sobre as mais diversas
atividades, podendo criar leis que beneficiassem seus negócios diretamente, como fixando um
preço vantajoso de uma determinada mercadoria, mandando calçar ou fazer outro tipo de
beneficiação na rua de seu estabelecimento, decidindo sobre o local de implementação de
equipamentos urbanos, como uma determinada linha de bonde que valorizasse sua
propriedade ou atendesse o seu comércio, firmando contratos que beneficiassem amigos e
parentes, entre outras medidas que garantissem vantagens aos seus negócios e às suas
posições políticas.
Nesse sentido a política de concessão de terras municipais em enfiteuse tinha papel
fundamental. Certamente muitos intendentes e demais funcionários da municipalidade
deveriam ter conhecimento que várias petições de solicitação de enfiteuse que aprovavam
estavam indo de encontro às resoluções que regulamentavam o aforamento. Todavia,
conforme elucidado, não seria vantajoso para esses indivíduos questionar ou negar tais
petições, pois o mercado de terras integrava um jogo social, e esses membros da Intendência
faziam parte desse jogo, partilhavam ou aspiravam partilhar o mesmo habitus compartilhado
pela rede de parentela que dominava a política local. Intendentes, secretários e fiscais da
municipalidade negligenciavam as leis locais, participando de um jogo social que visava
fortalecer os grupos influentes em prejuízo do patrimônio público.
23
Referências Bibliográficas
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1986.
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BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2011.
BUENO, Almir de Carvalho. Visões de República: ideias e práticas políticas no Rio Grande
do Norte (1880-1895). Natal: Editora da UFRN, 2002.
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Edições do Val Ltda, 1965.
LYRA, Tavares de. História do Rio Grande do Norte. Natal: Editora da UFRN, 2008.
SANTOS, Renato Marinho Brandão. Natal, outra cidade!: o papel da Intendência municipal
no desenvolvimento de uma nova ordem urbana (1904-1929). Dissertação (Mestrado em
História). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN), Natal, 2012.
SIQUEIRA, Gabriela Fernandes de. Por uma “Cidade Nova”: apropriação e uso do solo
urbano no terceiro bairro de Natal (1901-1929). Dissertação (Mestrado em História).
Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), Natal, 2014.
2
RESUMO: As práticas mágicas existem desde a mais remota Antiguidade, e seus praticantes
poderiam ser homens e mulheres, e desde o início da Inquisição, as acusações de bruxaria era
destinada a ambos os sexos. Porém, em um certo momento essa prática passou a ser dirigida
apenas às mulheres, as Filhas de Eva, pecadoras por excelência. O Martelo das Feiticeiras,
manual inquisitorial, em seus capítulos, apresenta as argumentações necessárias para provar
que o intelecto, a moral e o espírito de uma mulher era inferior. Nas seguintes argumentações,
é possível verificar o repertório de leitura dos inquisidores Heinrich Kramer e James
Sprenger, para a elaboração do documento canônico responsável pela caça às bruxas, como as
bulas papais Ad extirpanda e Summis Desiderante affectibus, além dos livros bíblicos do
Antigo Testamento.
PALAVRAS-CHAVE: Bruxaria. Inquisição. Caça às bruxas.
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, é apresentado algumas reflexões e questionamentos acerca do
imaginário da bruxa retratado no Martelo das Feiticeiras, documento canônico escrito entre
1484 e 1487, e os repertórios de leituras que os inquisidores Heinrich Kramer e James
Sprenger tiveram para a elaboração do manual de caça às bruxas.
O imaginário sobre a feitiçaria e a magia existem na maioria das sociedades desde os
tempos mais antigos, e ele faz referência a uma história de criação e uso de imagens de uma
sociedade na sua forma de agir e pensar, de forma única e complexa, e de acordo com o seu
território e local social. (LE GOFF, 2005). E as representações são influenciadas pelas crenças
e concepções folclóricas, e seu significado só se faz presente aos termos de compreensão do
papel dos criadores da documentação que temos acesso, pois os padrões de representações nos
escritos devem partir dos agentes responsáveis pela confecção de tais escritos e das
informações propiciadas pelos mesmos. (MORÁS, 2001).
Devido a influência da tradição cristã, por meio de um processo de transformação e
demonização gradual dos ritos pagãos, a feitiçaria foi se modificando até se tornar na bruxaria
diabólica. (RUSSEL, 1993).
Segundo Simone de Beauvoir, “as religiões forjadas pelos homens refletem essa
vontade de domínio: buscaram argumentos nas lendas de Eva, de Pandora, puseram a filosofia
e a teologia a serviço de seus desígnios” (BEAUVOIR, 1967), é possível observar o poder
que o homem teve na história, tanto na questão de escrita sobre as mulheres, como na
composição de documentos que compuseram um imaginário sobre essa figura feminina.
Para compreender as motivações dos inquisidores ao elaborar o Malleus Maleficarum,
é necessária recorrer às suas fontes e seu repertório de leitura na tentativa de compreender as
razões para a publicação de um manual responsável pelo momento mais sanguinário da caça
às bruxas (e das mulheres). O artigo em questão terá um foco maior na primeira parte do
manual inquisitorial: Das Três Condições Necessárias Para Bruxaria: O Diabo, A Bruxa e a
Permissão de Deus Todo-Poderoso, onde apresentava a argumentação para provar a
existência da bruxa e seus malefícios, e o suposto intelecto inferior da mulher em relação ao
do homem, trazendo à tona, as questões relacionadas à formação da primeira mulher, Eva,
vinda de um osso curvo.
23
apoio das autoridades seculares, há o massacre dos heréticos, “os inimigos de Deus, os
agentes de Satã.” (IDEM, 2002, P. 50).
Por conta do pânico generalizado, agora, o diabólico e o Mal invade o mundo por
completo. Apesar das Sagradas Escrituras designarem que os praticantes das magias poderiam
ser homens e mulheres: “O homem ou mulher que pratica a necromancia ou adivinhação, é
réu de morte. Será apedrejado, e o seu sangue cairá sobre ele.” (Lv. Cap. 20, v. 27), a vítima e
seguidora, por excelência, é a mulher. Pois a mulher é mais predestinada ao mal do que o
homem (NOGUEIRA, 2002) e “Qualquer maldade é um nada diante da maldade da mulher:
caia sobre ela a sorte dos pecadores.” (Ec. cap. 25, v. 18).
Com tanto poder nas mãos, a necessidade de justificativa para os acontecimentos
escatológicos e o mito de Eva, a primeira pecadora, à disposição, a Igreja Católica encontrou
alguém para culpar pela morte dos animais, aos desastres naturais, à problemas de fertilidade
dos homens e do solo: a mulher. E a sua alta posição na sociedade, lhes deu o espaço que
precisavam para a difusão, segundo Dalarun:
Uma vez mais, há que partir dos homens, daqueles que, nesta idade feudal, detêm o
monopólio do saber e da escrita, os clérigos; e muito particularmente dos mais
letrados de entre eles, os mais influentes, os mais prolixos. Monges ou prelados
seculares, têm a obrigação de pensar a humanidade, a sociedade e a Igreja, de as
orientar no plano da salvação, de atribuir também às mulheres o seu lugar nesta
divina economia. (DALARUN, 1993, P. 29).
rival de Deus, tal poder não poderia ser associado à uma figura feminina, e apesar de não
descartar a sodomia e relações homossexuais, o Diabo se deitava mais vezes com mulheres.
Segundo Aragão, as feiticeiras e as bruxas são mulheres à mercê do Diabo, a quem se
entregam de corpo e alma em troca de poderes. As funções satânicas, às vezes, são exercidas
por homens, mas “como deixámos provado, á ultima evidencia, as mulheres são muito mais
faceis de catechizar, ou hypnotisar pelo demonio, por nervosas, ou levianas.” (ARAGÃO,
1990, P. 38).
A misoginia da caça às bruxas é composta por três tradições. A tradição literária
clássica, onde os papéis femininos nas peças gregas e romanas eram de clara subserviência
aos homens, sem ocupar papeis de poder, e quando os ocupam, é de forma maligna, como a
feiticeira Circe e a assassina de crianças Medéia. Apesar das religiões politeístas possuírem
deusas femininas e relações com o sagrado feminino, mesmo ainda, as mulheres apresentam
papeis sociais de submissão ao homem.
A tradição hebraica apagou as deidades femininas e colocou as mulheres em posições
inferiores mais que as outras tradições. A tradição dualista, que vê o mundo como uma eterna
luta entre o Bem (o espírito) e o Mal (a carne), condena a carnalidade do ser humano, mas
atuando ao lado da tradição hebraica, o mal da carne, a luxúria, foi direcionada apenas às
mulheres, por serem as filhas de Eva, a primeira pecadora, e trazerem consigo o pecado no
sangue.
No começo da Idade Moderna intensificou-se a caça às bruxas, e a mulher foi
identificada como um agente de Satã, pela Igreja e pela a sociedade em geral, e o medo da
mulher foi integrado e manipulado pelo cristianismo.
Tendo em vista a solicitude [pelo rebanho] que nos foi confiado, nos propomos a
extirpar do meio do povo cristão a cizânia da depravação herética, que em nosso
tempo, se espalhou amplamente, semeando a licenciosidade em nome do Inimigo
dos homens, tanto mais intensa quanto perniciosamente, à medida que
negligenciarmos como ela causa a ruína dos princípios católicos. Desejosos, pois,
que os filhos da Igreja e os defensores da fé ortodoxa se ergam e conosco se
oponham aos artífices dessa perversidade, infra nós decretamos determinadas leis,
com o fito de extirpar a praga herética, e [determinamos que] venham a ser
observadas por vós e pelos fiéis defensores da Fé, com diligente cuidado.1
[...] são assim chamadas pela negrura de sua culpa, que dizer, seus atos são mais
malignos que os de quaisquer outros malfeitores [...] elas incitam e confundem os
elementos com a ajuda do Demônio, causando terríveis temporais de granizo e
outras tempestades. E mais: enfeitiçam a mente dos homens, levando-os à loucura,
ao ódio insano e à lascívia desregrada. (KRAMER, SPRENGER, P. 74, 2015)
1
Bula papal Ad Extirpanda, 1252.
24
As sanções e decretos estabelecidos pela Inquisição ficaram mais severos, agora que
toda bruxaria envolvia pacto com o Diabo. A figura da bruxa em si também mudou, agora, ela
não era mais uma mulher possuída ou tentada como vítima a compactuar com o Diabo, e sim
uma mulher, que utilizando do seu livre arbítrio dado por Deus, compactua com o Diabo, uma
vez e sua alma está perdida para sempre, e a sua execução é uma forma de salva-la.
(RUSSEL, 1993) A feitiçaria agora seria condenada como um crime de lesa-majestade, ou
seja, um crime cometido diretamente contra Deus e o seu Rei. O Sínodo de Paris, 829, usou
citações da Bíblia como o Levíticos e Êxodo, e declarou que como as Sagradas Escrituras
declaram a morte da feiticeira, o rei possuía o direito de castiga-la, porém, apenas, se ela
tivesse realizado pactos com o Diabo, pois as bruxas são usadas como instrumentos para a
destruição e profanação das obras do Criador.
Entretanto, as bruxas não devem ser condenadas por serem instrumentos do Diabo, e
sim pelo prazer de servir ao Demônio, pois apesar do pacto realizado, ainda possuem o livre
arbítrio dado por Deus, e os poderes do mal não podem modifica-lo. Por isso, condenada
serão aquelas que permanecerem submissas ao Diabo por livre e espontânea vontade.
(KRAMER, SPRENGER, 2015). Porém, ao analisar essa passagem, é possível verificar o
argumento arbitrário dos inquisidores. Segundo Russel, os processos inquisitoriais eram
feitos, na maioria das vezes, para acusar e culpabilizar mais do que para provar inocência, os
inquisidores eram instruídos a procurar respostas com exames, torturas e ameaças, e por meio
do medo, eram capazes de descobrir a bruxaria onde ela existia ou não. (RUSSEL, 1993).
A arbitrariedade também é presente a respeito da representação da mulher no próprio
manual. Como seria possível dizer se a mulher estava sendo um instrumento do Diabo ou
servindo-o de livre e espontânea vontade se, na Questão VI, a palavra “mulher” é apresentada
como sinônimo de lascívia da carne, são ditas como as mais impressionáveis e possuem a
tendência a cair em tentação mais que os homens, pois a sua origem é uma costela recurva e
por isso possui um caráter desviante?
O Antigo Testamento tem muito a dizer sobre os malefícios das mulheres, por conta
de Eva, a primeira pecadora que condenou toda a raça humana à dor e ao trabalho. Porém, no
Novo Testamento, o Eva é substituído por Ava (Ave Maria), uma mulher mais digna, a mãe, a
virgem. (KRAMER, SPRENGER, 2015). Entretanto, apesar da mudança de perspectiva sobre
a mulher nas Sagradas Escrituras, a presença de uma mulher pura e santificada aumentou
ainda mais o abismo entre o ideal e o repudiado, numa tentativa de definir as duas opções
viáveis para ser mulher: a bruxa ou a virgem. (RUSSEL, 1993).
24
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho propõe uma abordagem elucidativa em torno das questões sobre a
estigmatização da mulher dentro do contexto do século XV. Por meio do Martelo das
Feiticeiras foi possível obter um direcionamento sobre a violência cometida em torno de uma
política institucional de julgamento, proporcionada legitimamente pela Igreja Católica e por
todos àqueles que estiveram envolvidos socialmente. É importante perceber que ela é o
principal agente repressor acerca das mulheres, mas não o único, pois a própria sociedade em
si, possuía uma vasta trajetória de práticas de hostilidade, exclusão social, discriminação
sexual e dentre outros diversos tipos de violências contra a mulher em variados contextos.
Os procedimentos inquisitoriais expressados ao longo do medievo traduzem como foi
exercido poder institucional propagado pela Igreja e a sua influência dentro da sociedade. Os
documentos canônicos, as bulas papais e as consideradas escrituras sagradas sendo elas: os
livros bíblicos do Velho Testamento instrumentalizam essa forte repressão contra as mulheres
e todas as demais manifestações presentes na sociedade, que de alguma forma se enquadrava
como práticas de bruxaria ou heresia à crença divina vigente. A cultura letrada exerce papel
importantíssimo na aplicação e na discussão dos métodos repressivos proporcionados pela
Igreja, é nela que que os manuais e leituras se sustentam, afim de se readequar a cada caso de
insurgência contra a fé cristã.
Observar as percepções acerca da representação também é de muita importância para
conseguir visualizar o contexto do imaginário da bruxa no século XV. E a principal
representação é a da mulher nas sociedades do século XV, através de um longo processo de
estigmatização já presente na antiguidade, o ódio a mulher na sociedade vai ganhando força e
sendo fundamentado mediante a doutrina cristã. Porém, é preciso enfatizar que esta
caraterística de aversão contra a figura da mulher na sociedade não é de exclusividade do
medievo, nem mesmo das religiões providas pelo tronco das religiões abraâmicas.
REFERENCIAIS
FONTES:
Documento Canônico:
Summis Desiderantes affectibus, Papa Inocêncio VIII, 1484 (Supressão da bruxaria ao longo
do rio Reno, ou seja, Europa de norte a sul)
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Livro Eclesiásticos, Bíblia Sagrada. Antigo Testamento. (aprox.) 1500 a.C.
Livro Êxodo, Bíblia Sagrada. Antigo Testamento. (aprox.) 1500 a.C.
Livro Levíticos, Bíblia Sagrada. Antigo Testamento. (aprox.) 1500 a.C.
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Maleficarum. Encontro de Iniciação Científica – ETIC. ISSN: 21-76-8498, Vol. 9, n. 9,
2013.
24
1. INTRODUÇÃO
O universo literário do início do século XX, se mostra rico quando nos apoiamos num
romance específico para através da literatura entender como uma obra pode ser objeto de
representação de uma série de elementos que perpassam o processo de sua fabricação.
LuziaHomem (1903) romance do cearense Domingos Olímpio nos possibilitou analisar como
os instrumentos de divulgação literária vão ganhando forma no ambiente letrado do Rio de
Janeiro pós proclamação da república.
Deste modo, buscamos a partir da escrita de Luzia-Homem e da biografia do autor
Domingos Olímpio, compreender o ambiente literário quando da publicação do romance em
1903, salientando os espaços de escrita frequentados pelo escritor, e como eles influenciaram
sua produção intelectual, como crônicas, artigos e romances. Ou seja, como livro de um
escritor sem tanta tradição literária e inserido nos círculos nobres da sociedade carioca, mas
que ingressou tardiamente no mundo das letras, foi recepcionado pelos seus pares numa
sociedade desejosa de
*Mestrando em História Cultural pelo Programa de Mestrado Acadêmico em História (MAHIS) da
Universidade Estadual do Ceará-UECE. E-mail: ramos_22@outlook.com.br
24
1
Sobral localiza-se na Zona Noroeste do Ceará, a 225 km de Fortaleza. Até meados do século XIX Sobral
acumulava uma riqueza advinda especialmente da criação de gado e comércio de seus derivados, depois do
algodão, sendo importante rota de entroncamento comercial para o Piauí e Maranhão, de modo que sua riqueza a
situava em posição privilegiada em relação a Fortaleza, capital. Autônoma economicamente durante esse
período, sem ligação direta com a capital, seu adensamento populacional superou aquela cidade. Foi somente no
final do século XIX e início do século XX que Fortaleza consegue uma hegemonia econômica.
2
O período que vai de 1841 a 1864 representa uma se importante para a consolidação da monarquia no Brasil.
As rebeliões regenciais da Bahia, Pará e Maranhão estavam debeladas com a ajuda do barão de Caxias, que se
transformou numa espécie de herói local. Nesse mesmo momento, o Gabinete da Maioridade anistiou os
“rebeldes” que se entregaram às autoridades e, assim, o término das rebeliões separatistas foi celebrado como um
novo começo, acima das possíveis divisões partidárias. SCHWARCZ, Lilia M; STARLING, Heloisa M. Brasil:
uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. 2015, p. 271.
3
Domingos Olympio (sic) Braga Cavalcanti, filho de Antonio Raymundo de Holanda Cavalcanti e Rita de Cassi
[sic] Pinto Braga (Rita de Cassia Cavalcanti depois do matrimônio), nasceu em Sobral, Estado do Ceará, a 18 de
24
grande escritor, mas acima de tudo no que seria supostamente o exemplar fiel do
intelectual sobralense (MELO, 2013, p. 53).
O mais interessante é que o jovem Domingos Olímpio ainda era um acadêmico vindo
do Recife, onde conheceu alguns intelectuais engajados na causa abolicionista. A escravidão
foi uma temática abordada e importante na sua produção literária. A circulação nesses espaços
de transmissão de valores positivistas, republicanos e abolicionistas foi sem dúvida um traço
que facilitou a circulação do autor de “Luzia-Homem” em cargos públicos na cidade de
Sobral, Pará e no Rio de Janeiro.
4
A Academia Francesa, criada em 1871, com a participação de “cearenses ilustres”, como Capistrano de Abreu
e Thomás Pompeu Sobrinho. Participaram ainda Tristão de Alencar Araripe Jr., João Lopes Ferreira Junior,
Antonio José de Melo, Domingos Olímpio entre outros. A Academia Francesa deixou de se reunir em 1875.
24
As mudanças com a relação à valorização da cultura e da arte podem ser vistas com a
fundação do Teatro Apolo, [sic] em 1872, sendo Domingos Olímpio um dos idealizadores do
projeto desse espaço de manifestações das mais variadas natureza e de textos do autor de
“Luzia-Homem”. A necessidade de expor suas ideias e interpretações sobre seu tempo lhe
ensejou a ideia de construir juntamente com a “União Sobralense 5” um local que fosse digno
de falar sobre literatura, arte, ciência, poesia e política.
Assim sendo, os espaços de sociabilidade do autor vão tornando-se claros, com a
inserção de Domingos Olímpio numa espécie de fraternidade de intelectuais, comerciantes e
políticos da cidade de Sobral e de Fortaleza.
Porém, o que é o espaço literário? Como os intelectuais absorvem a ideia de escrever?
Tentar responder essas perguntas é sem dúvida uma empreitada consideravelmente difícil.
Discutir o espaço literário como elemento modificador no desenvolvimento social e
intelectual de um escritor e de sua escrita, como cerne de uma transcendência que ultrapassa o
mero desejo interior de ser intelectual, para revelar a intimidade do espírito humano em forma
de palavras.
A escrita como parte essencial na produção de uma lógica narrativa é, portanto, um
elemento definidor da constituição do escritor. Maurice Blanchot em O espaço literário
(1987) traduz o ato de escrever:
5
A União Sobralense foi fundada na década de setenta do século XIX, em Sobral. Seu objetivo era incentivar e
valorizar uma cultura letrada na cidade a partir de um conjunto de iniciativas econômicas como a construção do
Teatro São João, esse desejo partiu do próprio grupo de intelectuais criadores da instituição. JÚNIOR, Agenor
Soares Silva. Cidades Sagradas: da “Roma cearense” à “Jerusalém Sertaneja”, a igreja católica e o
desenvolvimento urbano no Ceará (1870-1920), Sobral. Ecoa. 2016.
25
A necessidade de escrever está ligada à abordagem desse ponto onde nada pode ser
feito das palavras, donde se projeta a ilusão de que, se for mantido o contato com
esse momento, mas voltando ao mundo da possibilidade, “tudo” poderá ser feito,
“tudo” poderá ser dito. Essa necessidade deve ser reprimida e contida. Se não o
for, torna-se tão ampla que não há mais lugar nem espaço para que se realize. Só se
começa a escrever quando, momentaneamente, por um ardil, por um salto feliz ou
pela distração da vida, consegue-se driblar esse impulso que a conduta ulterior da
obra deve despertar e apaziguar de modo incessante, abrigar e afastar, dominar e
sofrer sua força indomável. Movimento tão difícil e tão perigoso que todo escritor e
todo artista se surpreende, de cada vez, por tê-lo realizado sem naufragar. E que
muitos soçobram silenciosamente, ninguém que tenha encarado o risco de frente
pode duvidar disso. Não são os recursos criativos que falam, se bem que, de todas
as maneiras, sejam insuficientes, mas o mundo que, sob esse impulso, se furta: o
tempo perde então o seu poder de decisão: nada mais pode realmente começar
(BLANCHOT, 1987, p. 46).
A necessidade de escrever para o autor não pode se conectar ao mundo de que tudo
pode ser dito a todo momento, só se escreve pelo impulso da fascinação que a vida exerce
sobre o escritor e suas paixões. Porém, essa tarefa para o literato não é fácil de ser realizada,
pois, pela dor ou felicidade se lança à escrita para satisfazer sua necessidade, e como
havíamos falado anteriormente, o tempo perde sua capacidade de alterar a dinâmica do ato de
escrever. Portanto, Domingos Olímpio escreve pela dor, pela ausência do tempo que passou e
pelo desejo de perenizar sua própria vivência.
25
Ele (Castro Alves) aparecia de calças de enfiar e camisola preta, pois lhe morrera,
havia pouco, pessoa de sua família. Trazia a pena atrás da orelha e, na mão uma
folha de papel; filiava um cigarro, e recitava com a voz, que era um veludo sonoro,
uma estrofe lapidar, acabada de construir; assim tivemos as primazias da “Visão
dos Mártires”, recitada dias depois numa tempestuosa sessão solene do “Grêmio
Jurídico”. Pouco preocupado com meus estudos, porque eu apenas necessitava de
uma pouca de retórica, tinturas de Algebra e noções preliminares de Geometria,
atirei-me à leitura de romances: devorava todos os que passavam ao meu alcance;
romances estrangeiros; li-os de um fôlego, noite e dia, desde os grandes, os
enormes romances intermináveis de Alexandre Dumas pai, e de Eugène Sue. O
infinito Rocambole de Ponso du Terrali, as sinistras histórias de Paul Feval, as
páginas de bronze de Vitor Hugo, os belos livros de G. Dias, e de Paulo de Kork,
grande crime-literário numa quadra de exarcebados melindres religiosos e
escrúpulo de moral, na qual se liam esses livros canalhas às escondidas (LIRA,
1977, p.18).
6
A União Sobralense foi fundada na década de setenta do século XIX, em Sobral. Seu objetivo era incentivar e
valorizar a cultura letrada na cidade a partir de um conjunto de iniciativas econômicas, como a construção do
Teatro São João 1880, esse desejo partiu do próprio grupo de intelectuais criadores da instituição.
25
7
Para Antonio Vitorino, Modernidade é um ideal, um desejo não concreto que se impõe em relação à
substituição do “tradicional” em prol do “novo”. Ver. FILHO, Antonio Vitorino Farias. Cidade e Modernidade.
Ipu-CE: versos e reversos de uma cidade nas primeiras décadas do século XX. Recife: Tese (Doutorado em
História) – UFPE. 2013, p. 9.
8
Sobre essas correntes ideológicas do século XIX. Ver: CARDOSO, Gleudson Passos. Práticas letradas e a
construção do mito civilizador: “Luzes”, seca abolicionismo em Fortaleza (1860-1930). Fortaleza: Ed UECE.
2016.
25
máquina pública. Seus interesses eram distintos, causando contendas entre os escritores e seus
projetos:
Os dois projetos literários, buscaram dentro de suas matrizes literárias modelos que se
contrapunham, favorecendo a pobreza estética das obras naturalistas. Portanto, a elite letrada
da sociedade brasileira no século XIX, se aliou ao poder das classes abastadas para
confeccionar visões críticas sobre o Império, negligenciando o complexo arranjo social que a
sociedade brasileira possuía.
Destarte, a representação sistemática de Domingos Olímpio sobre a Sobral de 1878,
mostra que o autor interagia com as correntes estéticas de sua época. A própria valorização do
falar do homem do sertão é um aspecto que veio com a particularidade da relação entre o
lugar do qual se procurava abordar homens e mulheres do campo, com seus costumes e
crenças. Neste sentido, o Regionalismo ganha força na produção literária brasileira no final do
século XIX e início do XX, contribuindo para o sentimento de pertencimento a terra natal.
Com a relação há escrita do romance não sabemos ao certo se o mesmo foi publicado
em forma de folhetim, mas algumas informações indicam que não. Luzia-Homem teria
chegado ao público carioca em formato de livro impresso, dadas as condições de circulação
de obras pela cidade do Rio de Janeiro e pelo baixo número de leitores, publicar uma obra que
não fosse nos jornais e em forma de romance-folhetim, foi um feito diferenciador que afetou a
leitura sobre o romance, possibilitando compreender a articulação de Domingos Olímpio para
com o embrionário mercado editorial naquele início de século XX.
Sobre o romance Luzia-Homem o próprio Domingos Olímpio em sua autobiografia
citada no livro do padre João Mendes Lira (1977), faz referência à produção do romance e
outras produções como contos e os motivos de fazê-los:
Naquela época em que Camilo Castelo Branco era considerado um escritor, eu não
ousei publicar as minhas produções. Mais tarde procurando acolhida nos jornais de
Belém e do Rio, iniciei os artigos políticos, os folhetins, os contos e a crônica.
E então surgiu a composição de “Luzia-Homem”, espelhando o resultado das
observações que se operavam insensivelmente no meu espírito, com os erros, os
25
O texto acima datado de 1906, ano de sua morte e três anos depois da publicação de
seu romance. Domingos Olímpio fala-nos de momentos no Pará onde começou a escrever
seus contos e crônicas, como podemos observar foi apenas no Rio de Janeiro, que entraria de
vez no círculo letrado brasileiro com uma participação como escritor me jornais da época.
Para ele, seu romance trouxe através de suas páginas a interpretação trágica de sua juventude,
pois, como num teatro da vida real pôde encenar e relembrar os momentos narrados naquela
história.
Além do mais, Luzia-Homem foi citada em alguns jornais do Rio de Janeiro quando
da sua publicação em 1903:
No gênero, porém, o melhor livro do anno, foi, acho eu, a Luzia-Homem, (Rio de
Janeiro) de um provinciano-carioca, o Sr. Domingos Olympio. E´do Ceará o autor
e da vida cearense a interessante narrativa. O novo romancista, bastante conhecido
no norte do Brazil e aqui como jornalista, entra tarde na vida literaria, perdôe-me
elle a indiscrição, com mais de cinquenta annos. Mas, salvo talvez uns laivos de
espiritualismo romantico, o seu romance é, melhor que o de um jovem, com as
inexperiencias e os excessos da juventude o de um espírito em plena madureza. A
narrativa, acaso tanto ou quanto sobrecarregada de descrições, quase todas bellas
aliás, de digressões e de dialogos, igualmente bem feitos, mas que porventura
lucrariam em ser encurtados, podia, sem prejuizo do mérito livro, ser menos longa.
Mas, repito, é interessante, e deixa-nos com a sensação de um quadro exacto e
perfeito da terra e da vida cearense, a certeza de que ha no Sr. Domingos Olympio
um romancista de valor, um escritor, uma imaginação de poeta, que apenas tardou
em manifestar-se no livro. E´, preciso, porém, para confirmar este juizo, que outros
lhe sucedam9
Numa coluna literária na revista “Kosmos” de 1904, assinada por José Verissimo:
“Vida Literaria ano Passado”, um dos mais importantes escritores brasileiros da época e
membro da Academia Brasileira de Letras comenta sobre os principais romances publicados
no ano anterior no Rio de Janeiro, fazendo referência à obra de Domingos Olímpio,
LuziaHomem, diz ser do gênero o melhor livro do ano de 1903. Outro ponto que o autor
pontua é com relação à tardia inserção do escritor cearense na vida literária, com mais de
cinquenta anos. No entanto, para José Verissimo o romance do cearense era melhor do que o
de um jovem escritor, inexperiente e com pouca maturidade literária.
9
Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Revista Kosmos, Rio de Janeiro 14 de janeiro de 1904, p. 12
25
Domingos Olympio, cuja produção intellectual foi, é e sempre será bem acolhida,
acaba de dar á luz da publicidade de um livro, um romance, emfim uma dessas
belíssimas obras que registram uma épocha.
Luzia-Homem – eis como se intitula esse trabalho primoroso, essa excellente
produção – uma obra que todos devem possuir – pois que reune neste momento,
talvez, toda a idéia da litteratura [..].
O Luzia-Homem tem seenas que comovem há ocasiões em que sentimos o coração
apertar-se – tentamos fechar os olhos á escuridão do horror que nos arripía a
espinha – mas uma luz muito clara, de um brilho muito intenso vem devastar essa
escuridão : - é a prosa de Domingos Olympio sempre deliciosa, sempre doce,
sempre suave, monopolizada pelo seu espirito de homem de lettras que é.
Eis o que é Luzia-Homem de Domingos Olympio – uma obra completa, um trabalho
de muito valor e além d´isto – um écho desse grito horrível do cearense quando se
esforce soffrendo as calamidades da secca10
10
Hemeroteca da Biblioteca Nacional. O Fluminense, Rio de Janeiro 24 de março de 1903, p. 1.
25
residente no Rio11”. Portanto, o romance alçava voares maiores com sua tradução para duas
línguas estrangeiras, circulando entre o pequeno mercado editorial do Rio de Janeiro e entre
as camadas ricas de países como França e Espanha.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste cenário de intensa insatisfação com o sistema político republicano, é que
Domingos Olímpio lançou Luzia-Homem. É lógico de se pensar que o autor fazia parte do
grupo de intelectuais herdeiros de uma geração que lutou pelo republicanismo e pela abolição
da escravidão, mas que viu seus sonhos frustrados diante da indiferença com que seriam
tratados pela administração pública do Estado republicano.
Assim sendo, Luzia-Homem permanece até hoje como uma das principais obras do
Naturalismo-Regionalismo brasileiro do século XX. Deixou à posteridade uma visão amarga,
mas crítica de um sertão e de uma população que em meio a Grande Seca de 1877-79, soube
resistir à tamanha calamidade e as ações dos grupos dominantes. Portanto, como uma escrita
dura e crítica Domingos Olímpio lançou para o cenário intelectual do Rio de Janeiro uma obra
que marcava uma narrativa em declínio, o naturalismo estava perdendo força e mesmo assim,
Luzia-Homem foi um marco para se analisar as questões que circulam com a publicação de
romances sobre o sertão, seca e a vida no campo.
REFERÊNCIAS
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Dissertação (Mestrado em Letras) – UFC, 2008.
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Sobral. CE: Imprensa Universitária. Fundação Vale do Acaraú. 2015, p.54.
CARDOSO, Gleudson Passos. Práticas letradas e a construção do mito civilizador:
“luzes”, seca e abolicionismo em Fortaleza (1860-1930). Fortaleza, ed UECE. 2016.
COUTINHO, Afrânio; COUTINHO, Eduardo de Faria. A literatura no Brasil. São Paulo: 7°
edição. São Paulo, 2004.
FILHO, Antonio Vitorino Farias. Cidade e Modernidade. Ipu-CE: versos e reversos de uma
cidade nas primeiras décadas do século XX. Recife: Tese (Doutorado em História) – UFPE.
2013.
LIRA, Padre João Mendes. A vida e a obra de Domingos Olympio. Sobral- Ceará, 1977.
MAURICE, Blanchot. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
11
Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Pharol, Rio de Janeiro 15 de maio de 1903, p. 1
25
RESUMO: Esta pesquisa busca analisar a presença indígena na Serra da Meruoca, localizada
na região Norte do estado do Ceará, e a importância desse espaço na constituição da história
da capitania no período colonial. Dessa forma, o ponto de partida da investigação é a
historiografia produzida sobre a região no século XX. Percebemos que grande parte das
pesquisas sobre a história colonial da região Norte se concentram na Serra da Ibiapaba, as
produções que tratam do Ceará colonial, de um modo geral, raramente citam a Meruoca, e os
trabalhos que tratam especificamente da Serra não são especificos ao período colonial. A
partir de uma análise crítica dessa produção documental, a presente investigação tem a
intenção de demonstrar a importância da presença indígena na formação do espaço da Serra
da Meruoca e da Ribeira do Acaraú.
PALAVRAS-CHAVE: Serra da Meruoca. Índios. Historiografia.
1
Trecho da Carta do Padre Ascenso Gago (1693) in: História religiosa de Meruoca. Sobral. Fundação Vale do
Acaraú- UVA-1979. p. 24.
26
2
As Ribeiras do Acaraú compreendidas pelos rios: Mundaú, Aracatiaçú, Aracati Mirim, Coreaú e Acaraú,
localizadas na zona norte da capitania do Ceará, constituem uma imensa área de terras lavadas por águas fluviais
e lacustres, propícias para o desenvolvimento da agricultura e do pastoreio. Para mais informações veja:
SOUZA, Raimundo Nonato Rodrigues de. “Minha riqueza é fruto do meu trabalho”: negros de cabedais no
Sertão do Acaraú (1709-1822). Fortaleza: Tese (Doutorado)- Universidade Federal do Ceará/ Programa de Pós-
Graduação em História Social, 2015.
3
Foi o primeiro capitão-mor após a saída dos holandeses do Ceará, suas ações iniciais foram no sentido de
construir uma capela em louvor a Nossa Senhora da Assunção, nome pelo qual aliás passou a ser denominado o
forte flamengo de Schoonenborch. Para mais informações veja: AMORIM, J Terto de [org]. O Siará na rota
dos Neerlandeses. Utrecht, 2012.
26
era ocupado pela administração lusa, que era considerado espaço de barbárie, onde habitavam
os índios bravos” (ALMEIDA, 2010: 32).
Uma questão primordial a ser discutida são os interesses coloniais e objetivos que
estão em jogo no final do século XVII. “Havia uma preocupação por parte da Coroa com a
afirmação de seus domínios coloniais, diante da ameaça estrangeira, e com a expansão das
fronteiras em direção aos sertões” (DANTAS, 2010: 30), sendo o final do século XVII para
Capitania do Ceará, marcado pela falta de sacerdotes e igrejas. O próprio governador da
capitania, Pedro Lelou, “escreve a respeito da necessidade de uma igreja matriz e de
sacerdotes na capitania do Ceará” (STUDART, 1921: 43).
Devido à ausência de sacerdotes na Capitania do Ceará no final do século XVII, de um
modo geral, podemos pensar nas dificuldades e na falta de sacerdotes nos interiores desta
capitania. Pensando a ausência de missionários na Meruoca e na Ribeira do Acaraú, os quais
eram destinados a “apaziguar” os índios no contexto da própria expansão dos domínios do
Império português, então pode-se afirmar que havia uma frouxidão religiosa na Capitania do
Ceará no período em análise e, consequentemente, uma ausência missionária na Serra da
Meruoca. O próprio Império Português estava alheio às necessidades de sua colônia, às
necessidades da Capitania do Ceará. Sobre o século XVII:
No início do século XVIII, a Junta das Missões autorizou a guerra justa contra
alguns grupos indígenas (Tapuias, Paiacus, Icós e Cariris). Membros desses grupos
foram acusados de ter matado vaqueiros nas capitanias de Ceará e Rio Grande.
Para combater a “voracidade” dos índios, o governador de Pernambuco entregou
ao mestre de campo Manuel Álvares de Morais Navarro, pertencente ao terço dos
Paulistas, o comando da expedição. (FERREIRA, 2013: 32).
Abriam-se lutas entre indígenas e colonos por ocasião de serem incorporadas trechos
do sertão cearense ao patrimônio da coroa portuguesa: “de 1703 à 1706 uniram-se Icós,
Cariús, Cariris e Cratiús para assaltar os moradores do alto sertão. Em 1712, levantam-se os
Canindés e Jenipapos”. (STUDART,1963: 14.) Podemos dizer que o povoamento dos sertões
da Ribeira do Acaraú por colonos portugueses e, em especifico a área da Serra da Meruoca,
26
não ocorreu sem conflitos e alianças com as populações indígenas que já as habitavam ou que
para ali foram reduzidas em aldeias.
E foi nesse contexto belicoso, no início do século XVIII, que houve a formação do
aldeamento da Serra da Meruoca e o envio de um missionário específico para catequizar os
nativos da Ribeira do Acaraú. Segundo Carlos Studart Filho no documento Dados para uma
história eclesiástica do Ceará (1603-1750), em que apresenta nomes de missionários que
foram responsáveis por estarem em contato com os índios:
Para dar largas à sua vocação de apóstolo, chegava também ao Ceará, nestes
começos de séculos, o Pe. José Teixeira de Miranda, filho de José Novais Sampaio e
natural da Vila de Alfarela, Arcebispado de Braga. Internando-se pelos agrestes
Sertões da Capitania em busca de prosélitos, pacificou e aldeou os índios Arariú,
para os quais, esclarece o Barão de Studart, construiu uma igreja na Serra da
Meruoca. Numerosos conversos do Pe. Teixeira de Miranda e por êle capitaneados,
incorporaram-se, em 1712, à tropa sob o comando do coronel José de Lemos,
ajudando-o a fazer levantar um sitio que os nativos revoltados haviam postos nos
moradores da Ribeira do Acaraú. Em 1712 e 1714, foi, assevera-nos o Barão de
Studart, o mais poderoso fator de apaziguamento dos índios rebelados contra os
moradores da Ribeira do Acaraú. Faleceu em 1725, ainda no desempenho de seu
benemérito ministério (STUDART, 1957: 30-51).
O referido padre chegou à Serra da Meruoca, onde ajudou os índios Reriús a construir
a defesa contra os primeiros moradores da Ribeira do Acaraú, que pouco a pouco tentavam se
apossar das terras férteis da serra. Nesse sentido, a compreensão da formação do aldeamento
na Serra da Meruoca, como já afirmado anteriormente, é possível a partir do povoamento da
região da Ribeira do Acaraú por colonos, à medida que a ocupação da Ribeira do Acaraú
efetivava-se, a Serra da Meruoca era vista como um espaço a ser ocupado também.
Esse documento, bem mais amplo que o trecho apresentado, ao referenciar uma série
de padres que começaram a desenvolver atividades missionárias no Ceará, insere a Serra da
Meruoca em um contexto colonial missionário. Além do exemplo de José Teixeira de
Miranda missionário da Meruoca, temos outros missionários que eram enviados para a região
das Ribeiras do Acaraú, com o intuito de catequisar os nativos. É o caso do Padre José Borges
Novais que foi o primeiro missionário dos índios Tremembés na costa Norte da capitania,
onde construiu em 1712 uma igreja em invocação a nossa senhora da Conceição.
Em outros espaços distantes da Ribeira do Acaraú foi enviado o Pe. João da Costa
que ficou responsável por desenvolver trabalhos com os índios Paiacú no Sítio
Araré, localizado na ribeira do Jaguaribe; Félix de Azevedo Faria, missionário da
Igreja Nossa Senhora dos Prazeres de Caucaia, Padre Antônio Caldas Lobato,
residia na Ribeira do Jaguaribe, no povoado de São João, era missionário dos
índios da vizinhança, especialmente do Grei Jenipapo, o ramo da tribo Paiacú
(STUDART, 1957: 14).
26
Era portanto desta forma que estava configurado os interiores do Ceará indígena no
contexto das missões, sendo as áreas de envio de missionários mais próximas da região da
Ribeira do Acaraú no início do XVIII, as atuais cidades de Almofala e de Meruoca. Segundo
Padre Sadoc, a tropa do Padre Miranda tinha por cabo o Coronel José de Lemos, possuidor de
terras na Ribeira do Acaraú pelas sesmarias que conseguira a 20 de setembro de 1705 e de
janeiro de 1708: “José de Lemos recebe sesmaria na ribeira do Acaraú, medindo quatro léguas
de terra de comprido e uma de largo”. (ARAÚJO, 1974: 93.) Vale destacar que em 1708, anos
antes da formação do aldeamento missionário na Serra da Meruoca, colonos já requeriam as
terras da Serra em sesmarias. Um exemplo é Felix da Cunha Linhares que: “obtém sesmaria
nas margens do riacho cachoeira, o qual vem do boqueirão da Serra da Meruoca, medindo
légua e meia de comprido pelo dito riacho acima, com meia de largo para cada banda,
pegando na confrontação da Serra da Tucunduba”4
Desse modo, o estudo do aldeamento da Serra da Meruoca passa pela análise da
construção desse espaço através das relações que foram mantidas dos grupos indígenas com a
população não indígena que passara a ocupar a área por meio da doação de sesmarias
concedidas e da fundação da povoação de Meruoca. A chegada e a estadia do missionário na
Serra da Meruoca estavam relacionadas ao processo de colonização portuguesa, à concessão
de sesmarias e à formação de aldeamentos. O objetivo era integrar o espaço ou a região numa
lógica de expansão territorial, na qual o espaço deveria ser dominado como uma garantia de
pertencer ao império Português.
De acordo com Sadoc (1979: 40) “no ano de 1724, houve a chegada do primeiro casal
de brancos, com a intenção de fixar residência na atual região da cidade de Meruoca, sendo o
Cel. Sebastião de Sá, casado com Cosma Ribeiro Franca” tendo sido o doador de um terreno
para a construção da igreja.
Ele mantinha relações com a índia Madalena Saraiva, com a qual teve duas filhas
naturais. O coronel era filho de Leonardo de Sá, que chegou na Ribeira do Acaraú
no final do século XVII, considerado um dos primeiros povoadores desta ribeira.
Uma informação importante é que este era missionário leigo efez um trabalho de
catequese entre os indígenas, proporcionando a difusão da devoção à N. Senhora
da Conceição. Vale informar que Nossa Senhora da Conceição é a padroeira da
cidade de Meruoca até os dias atuais. Leonardo de Sá era pernambucano, serviu
inicialmente no forte, na praça da companhia, chefiada pelo capitão Domingos
Gonçalves Freire e pelo Capitão Francisco Nogueira, sendo o primeiro missionário
leigo da região da Ribeira do Acaraú. (Sadoc, 1979: 40).
4
Ibidem. p.89.
26
A partir da interpretação de padre Sadoc sobre esta petição infere-se que Leonardo de
Sá procurou trazer ao grêmio da igreja os tapuias da região da Ribeira do Acaraú, que tinham
seu reduto e principal concentração na Serra da Meruoca. Leonardo Sá, ao mesmo tempo em
que era um católico praticante, não deixou de lado seus interesses em adquirir terras e
expandir seus domínios, fazendo um trabalho de catequese entre os indígenas.
A Região da Serra da Meruoca, como demostrado, teve sua área ocupada tempos antes
da chegada do primeiro missionário em 1712, e do primeiro casal de brancos em 1724.
Encontramos ainda o território da Serra requerido por sesmeiros anos antes da chegada do
primeiro casal de brancos que fixaram morada na região, sendo Manuel Fernandes de
Carvalho proprietário de quatro sesmarias, a primeira, junto ao seu irmão, o alferes João
Fernandes Neto, em 1716, na serra da Meruoca, “entre um posso de água por nome Goyreguá,
e por entre as duas serras do boqueirão que corre emparelhado com o boqueirão da
Morohoqua” (SOUZA, 2015: 113).
Entendemos que a colonização da área, a passagem de sesmeiros vindos de
Pernambuco e índios, confere à Serra da Meruoca particularidades no processo colonial
cearense. É necessário levar em conta que a redução dos índios em aldeias ocorreu com mais
intensidade por conta dos conflitos que aconteciam no interior da Capitania do Ceará, mais
especificamente na ribeira do Acaraú. Além da instalação do Aldeamento na Serra da
Meruoca, este era um período em que a terra era requerida por sesmeiros, encontramos, como
demostrado anteriormente a requisição das terras da Serra da Meruoca em um período anterior
a formação do aldeamento e a chegada do primeiro missionário, José Teixeira de Miranda. É
importante destacar que esses sesmeiros raramente viviam ou visitavam suas terras na
Meruoca, desempenhando suas funções militares na região da Ribeira do Acaraú, e deixando
5
Documentação histórica pernambucana- Sesmarias- Vol.1-Recife-1954, p.80 in: ARAÚJO, Francisco Sadoc
de. História religiosa de Meruoca. Sobral. Fundação Vale do Acaraú- UVA-1979. p.32.
26
a administração de suas fazendas e lavouras sob o cuidado dos moradores e agregados. Isso
demostra que o processo de formação territorial do atual espaço da cidade de Meruoca,
ocorreu a partir do contato de variados sujeitos históricos.
A história local
O estudo sobre a formação histórica e territorial da Serra da Meruoca é de fundamental
importância para se compreender a dinâmica de colonização da região norte do estado do
Ceará. No entanto, grande parte das pesquisas sobre a história colonial da região Norte se
concentram na Serra da Ibiapaba e na Ribeira do Acaraú. As produções que tratam do Ceará
colonial, de um modo geral, raramente citam a Meruoca. Já os trabalhos que tratam
especificamente sobre a Serra compreendem longos períodos de tempo não sendo específicos
sobre o período colonial. Essas são algumas das problemáticas relacionadas à produção
historiográfica da Meruoca indígena. Para compreender essa escrita da história, é necessário
analisar a produção e os textos de alguns dos pesquisadores que escreveram sobre a região,
sendo importante, compreender a ocupação das terras da Serra da Meruoca antes da chegada
dos não índios, bem como as relações estabelecidas entre os povos que já habitavam a região,
constituíam famílias e desempenhavam atividades no território.
O aldeamento e a presença indígena da Serra da Meruoca constituem-se como um
enigma para a historiografia cearense, pois são raras as produções que se dedicam ao estudo
sobre a ocupação da serra. A historiografia de autores como Padre Sadoc, que escreve
especificamente sobre a Serra em estudo, José Tupinambá da Frota 6 que escreve sobre a atual
região de Sobral, Antônio Bezerra 7, Carlos Studart Filho8, Guilherme Studart9, Dr. Thebérge10
que escrevem sobre o Ceará de modo geral, trazem de fato uma gama de informações
referentes aos Tapuias do Ceará, aos índios da região norte. No entanto, esses estudos
raramente são específicos sobre a Serra da Meruoca e o próprio aldeamento formado na
região no início do XVIII. Além disso, nas produções historiográficas, a Serra da Meruoca
sempre figura como um espaço indígena secundário da Serra da Ibiapaba e da Ribeira do
Acaraú, devido à reunião dos índios da Meruoca à missão da Ibiapaba no final do século XVII
e início do século XVIII. Além desta justificativa para a relação entre esses três espaços,
6
Ver: FROTA, D. José Tupinambá da. História de Sobral. Fortaleza: IOCE, 1995.
7
Ver: BEZERRA, Antônio. Notas de Viagem. Imprensa Universitária do Ceará. Fortaleza 1965[1884].
8
Ver: STUDART FILHO, Carlos. Aborígenes no Ceará. Fortaleza: Editora do Instituto do Ceará, 1965.
9
Ver: STUDART, Guilherme. Notas para a história do Ceará. Brasília: Senado Federal, Conselho editorial,
2004.
10
Ver: THÉBERGE, Dr. P. Esboço histórico sobre a província do Ceará. Tomo I. Fortaleza: Fundação
Waldemar Alcântara, 2001; Esboço histórico sobre a província do Ceará. Tomo II. Fortaleza: Fundação
Waldemar Alcântara, 2001.
26
Padre Sadoc de Araújo e José Tupinambá da Frota, por possuírem uma vinculação
com a igreja, conseguiram, a partir de fontes eclesiásticas locais, ter acesso a um
acervo importante e pouco trabalhado por historiadores, estes dois sacerdotes
dedicaram-se à investigação sobre as regiões ligadas ao sertão da Ribeira do
Acaraú.
Então podemos perceber uma escrita da história das diferentes cidades da região Norte
do estado do Ceará, articulada com questões religiosas especificas. Nas palavras do Bispo de
Sobral no ano de 1980, o livro História Religiosa de Meruoca “ajudaria a recordar um
‘passado glorioso’ através de um sacerdote que põe seu talento e seriedade de pesquisador a
‘serviço da igreja’”. (ARAÚJO, 1979: 18) Além de um trabalho prestado para a Igreja, Sadoc
escreveu dezenas de artigos na imprensa de Fortaleza e Sobral e vários estudos sobre
11
Dentre essas obras destacamos: ARAÚJO, Francisco Sadoc. História Religiosa de Guaraciaba do Norte.
Imprensa Oficial do Ceará (IOCE). Fortaleza:1988. Raízes portuguesas do Vale do Acaraú. Fortaleza: Gráfica
editorial cearense LTDA, 1991;Padre Ibiapina: peregrino da caridade. São Paulo: Paulinas, 1996.
26
Outra obra de Padre Sadoc que traz informações relativas a Ribeira do Acaraú, a Serra
da Meruoca e as regiões circunvizinhas é “Cronologia Sobralense”, constituída de cinco
volumes, nos quais o autor discorre detalhadamente, em ordem cronológica, sobre fatos
ocorridos entre o século XVII e meados do século XX. No trabalho, há a utilização de fontes
27
Esta é uma reflexão do historiador e padre Francisco Sadoc de Araújo que no século
XX não estava isolado na argumentação de civilização dos indígenas diante do contato com o
homem branco. Nesse trecho o padre aponta uma informação importante, que refere-se ao tipo
de regime de trabalho ao qual os índios das Ribeiras do Acaraú foram submetidos, ao terem
contato com os brancos. No entanto o padre, apresenta este contato com uma passividade,
para podermos perceber que esse regime de trabalho foi intenso na região, será possível
identificar , no ano de 1788, na Serra da Meruoca, uma relevante quantidade de moradores,
agregados e rendeiros, devido uma fragmentação intensa noterritório, pois, “estará dividida
em 110 sítios, nos quais os proprietários destas terras reuniam estes trabalhadores na
Meruoca, enquanto desenvolviam suas atividades políticas no Sertão da Ribeira do Acaraú”
(FROTA, 1974).
Nos diversos âmbitos, historiografia, literatura e nos próprios pronunciamentos das
autoridades, se decretava a morte do Ceará indígena. As referências sobre os indígenas na
história cearense faziam menção ao índio do passado, que no processo colonial desempenhava
um papel secundário. Sadoc vem demonstrar em sua escrita uma passividade do indígena no
contato com os posseiros, menciona uma civilização e a agregação destes índios sem nenhum
tipo de resistência cultural e até mesmo física. Porém, um contraponto importante a ser
destacado e analisado é que, quando Sadoc trata dos Tapuias Rerius da Serra da Meruoca,
apresenta-os como índios resistentes às investidas coloniais. Afirma que “a Serra da Beruoca,
como se grafava primitivamente, foi um dos redutos dos tapuias que mais custou a ceder às
investidas dos colonizadores” (ARAÚJO, 1979: 20).
É surpreendente, e muitas vezes intrigante, o papel que a Meruoca ocupa nas
produções existentes. Figura na historiografia e na documentação como uma espécie de
“periferia”, um “espaço de passagem” entre os “espaços principais” (Ribeira do Acaraú e
Serra da Ibiapaba). No entanto, como demostrado, o fato desta ser um território de passagem,
27
não a faz um espaço menos importante que os outros, apesar da concentração missionária na
Serra da Ibiapaba e a concentração de capitães mores e ouvidores no curato do Acaraú.
Entendemos a Serra da Meruoca como um espaço importante nas trocas culturais entre os
índios, e na divisão territorial da região norte do estado do Ceará.
Todo o trabalho historiográfico não somente da sobre a Serra da Meruoca, a Ribeira
do Acaraú e regiões vizinhas, seguira caminhos parecidos. A história volta-se para o casal de
brancos que fixam morada, estabelecem laços, procriam, expandem a família, expandem os
domínios territoriais, doam terras para o patrimônio da Igreja, agregam trabalhadores e dão
consequentemente origem aos sítios, povoações, e a posteriori ao núcleo urbano de um
município ou cidade. No entanto, isto ocorre porque “uma parte da historiografia oficial
tendeu a retratar o sertão no período da colonização como um espaço vazio, que estivesse
esperando a chegada dos colonizadores” (PIRES,2002:27).
Ao analisar a produção escrita do século XX relativa à Serra da Meruoca,
especialmente as produções de Pe. Sadoc e dos historiadores do Ceará, pode-se inferir que
grande parte das ideias sobre a escrita da História estava voltada para os fatos e a utilização
das fontes como comprovação de uma verdade:
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2010.
ARAGÃO, Mario Henriques. Meruoca 300 anos de história. IOM, 1999.
ARARIPE, Tristão de Alencar. História da Província do Ceará: Desde os tempos primitivos
até 1680. 2º Ed. Fortaleza: Tipografia Minerva, 1958.
ARAÚJO, Francisco Sadoc de. Cronologia Sobralense (1604-1800). Fortaleza: Gráfica
Editorial Cearense, 1974.
Francisco Sadoc de. História religiosa de Meruoca. Sobral. Fundação Vale do
Acaraú- UVA-1979.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Uma introdução à história. 4º ed. São Paulo: Editora
brasiliense, 1984.
Carta do Padre Ascenso Gago (1693) in: História religiosa de Meruoca. Sobral. Fundação
Vale do Acaraú- UVA-1979.
FERREIRA, Josetalmo Virginio. Conflitos jurisdicionais no sertão do Ceará (1650 –
1750). Dissertação (Mestrado)- Universidade Federal de Pernambuco/ Programa de
PósGraduação em História, Recife, 2013.
FROTA, Luciara S. de Aragão (Org.). Estudo do Remanejamento da Pecuária na Zona
Norte do Estado do Ceará. Fortaleza: SUDEC, 1974.
MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia à vila de índios: vassalagem e
identidade no Ceará colonial – século XVIIII. Tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.
PIRES, Maria Idalina da Cruz. “Guerra dos Bárbaros”: resistência indígena e conflitos no
Nordeste colonial. Recife: UFPE, 2002.
SOUZA, Raimundo Nonato Rodrigues de. “Minha riqueza é fruto do meu trabalho”:
negros de cabedais no Sertão do Acaraú (1709-1822). Fortaleza: Tese (Doutorado)-
Universidade Federal do Ceará/ Programa de Pós- Graduação em História Social, 2015.
STUDART, Barão de. Documentos para a história do Brasil e especialmente a do Ceará. In:
Revista do Instituto do Ceará – RIC, Fortaleza, t. XXXV, 1921. (Coleção Studart)
STUDART FILHO, Carlos Filho. Dados para uma história eclesiástica do Ceará (1603-1750).
Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, tomo 71, 1957.
Carlos. A rebelião de 1713. Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, tomo 77, v.
77, 1963.
2
RESUMO: Na esteira do Iluminismo, o século XVIII foi marcado por uma série de reformas
que culminariam em efervescências cientificas no continente europeu. As principais potências
europeias passaram a investir nas “viagens filosóficas”, cuja finalidade era conhecer a fundo a
natureza de suas colônias. Seguindo as pegadas deixadas por dois destes agentes coloniais no
Sertão do Piauí e Maranhão – o padre Joaquim José Pereira e o bacharel em Direito Civil e
Filosofia Vicente Jorge Dias Cabral – este artigo busca fazer reflexões acerca do modus
operandi da administração portuguesa, assim como desejamos apurar o olhar para o lugar do
Indígena e dos escravizados e os seus respectivos espaços (ou ausência deles) nos enunciados
dos viajantes. Para auxiliar nas discussões teóricas e historiográficas, serão citados autores
tais como Edgardo Pérez Morales, Manuel Hespanha e Heather Flyyn Holler.
PALAVRAS-CHAVE: Viajantes. Indígenas. Escravos.
Introdução
As discussões e ponderações sobre a relação que Portugal mantinha com o Brasil no
período colonial não parecem se esgotar. Todos os anos nos deparamos com questões até
então não abordadas, ou abordadas muito anteriormente e postas de lado, mas que nesse
momento adquirem sentindo e importância para a historiografia brasileira. Os estudos sobre
como a administração de Portugal refletia em suas colônias não cessam, e a cada dia que
passa abordagens da historiografia recente surgem para complementar a ideia de que o
governo português era descentralizado, sendo assim, os funcionários do rei serviam como
extensões de seus braços e garantiam um forte elo entre as diversas partes do império
Ultramarino (HESPANHA, 2001). Uma das maneiras mais significativas de manter a relação
entre o império português e suas colônias foram as expedições cientificas, forjadas sob bases
iluministas e com o intuito de conhecer a natureza e suas potencialidades. Muitos autores
contemporâneos estão convictos de que a preocupação com o avanço cientifico só se deu no
inicio do século XIX com a abertura dos portos brasileiros, e dessa forma, ingleses, franceses,
* Graduanda em História pela Universidade Federal do Piauí – CSHNB. Membra do Núcleo de pesquisa e
documentação em História – NUPEDOCH. E-mail: jany.ferre@gmail.com
**
Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2016), é professor da Universidade Federal do
Piauí. Atualmente pesquisa o Estado do Maranhão e Piauí durante os séculos XVII e XVIII, com enfoque
analítico para as redes de hierarquias, os costumes e os conflitos/negociações envolvendo africanos, indígenas e
os mais diversos mestiços - livres e escravizados - com agentes coloniais, bandeirantes, viajantes, missionários
enviados pela Coroa - que adentravam naqueles sertões. Orientador dessa pesquisa.
27
Vandelli continua enfatizando que para se ter um Jardim Botânico adequado, seria
imprescindível ter nele espécies de todos os continentes, e que para isso seria necessário sair à
procura de materiais, dando ênfase ao ponto de que a grandes potências como Alemanha,
França e Suécia já o estavam fazendo, e além do mais, já eram capazes de reconhecer uma
grande quantidade de plantas originarias de suas conquistas na América. Inclusive já se
utilizavam desse conhecimento para obter lucros. Aparentemente, essa seria a maneira mais
eficaz de prender a atenção do governo português e levá-lo a enxergar a oportunidade de
expandir o setor econômico, ao mesmo tempo em que o aspecto intelectual.
Por quanto, com o conhecimento Botanico adquirido nos mais celebres Jardins, tem
os Inglezes, e Francezes examinado, e reconhecido a maior parte das plantas que
nascem nas suas conquistas da America, e tem tirado immensa utilidade, e cada vez
poderão tirar maior lucro. Muito me dilataria eu se quizesse referir todas; algumas
das quaes saõ da America meridional.
Basta que se saiba, que muitas dellas uteis a Economia, às Artes, e ao Commercio
se dão felizmente, e que saõ rarissimas as plantas da America Septentrional, que
aqui se não dão bem, e de huma parte dellas pôde servir de prova o Jardim de Mr.
de Wisme (Ibidem).
O saber, pois somente o nome das plantas não é ser botânico, o verdadeiro
Botânico deve saber além disso a parte mais dificultosa, e interessante, que é
conhecer as suas propriedades, usos econômicos, e medicinais; saber a sua
vegetação, modo de multiplicar as mais úteis, os terrenos mais convenientes para
isso, e o modo de os fertilizar ( VANDELLI, 1778).
27
1
Ibidem.
27
filósofos naturalistas terem desenvolvido uma boa relação com os desenhos e as pinturas, já
que nem sempre se faz possível levar consigo um especialista na área. Portanto, o autor do
manual deixa explicito que os naturalistas carregam em seu trabalho a obrigação de deslizar
por muitas áreas do conhecimento, sendo impossível prosseguir sem o domínio dessas
múltiplas habilidades.
(...) computar o número de seus habitantes, se forem povos civilizados, e entre estes
que se aplicam a agricultura, quais ao comércio , quais as letras , quais as armas,
indicando miudamente o estado de cada uma destas bases da sociedade: se a
agricultura está aumentada, ou enfraquecida, se o comércio dá ao Estado o maior
interesse possível ; os gêneros que entram nele, se são os mais interessantes, e os
que podem servir a isso, ignorado muitas vezes pelos seus possuidores; examinar os
edifícios públicos e particulares ; a estrutura dos templos, das casas, a sua
arquitetura, barbar ou polida, as matérias de que se servem para a sua construção ,
e as suas comodidades : a polícia e o costume dos povos ; o modo de fazer as suas
núpcias, festas, jogos , funerais, até as últimas funções sepulturais, dependente tudo
da religião dominante ou da antiga superstição dos povos (Ibidem:52).
Em sua extensão, Vandelli pede aos viajantes que apresentem muita atenção a
fisionomia dos povos, seus hábitos mais notáveis, “fazendo se for possível nos lugares
povoados o catálogo dos vivos e mortos, se passam uma vida casta, ou dissoluta, servindo-se
igualmente da monogamia, ou poligamia; se as mulheres são fecundas, ou estéreis” (Ibidem)
Os detalhes são tantos que chegam a impressionar, de tanta atenção que é dada a minúcias que
seria pouco provável de imaginarmos tal valor cedido a preocupação em desvelar a maneira
como as mães educam seus filhos, quais as suas vestimentas e o tecido do qual foram
fabricados, como estes povos moem seus grãos, os sucos que preparam, as frutas, os vinhos,
se vivem da caça ou da pesca, ou de ambos, assim como os instrumentos utilizados para estes
fins, não se abstendo de anotar e desenhar o material do qual eram feitos. “Como são as dos
barcos, em que navegam, as mercadorias, as suas armas, os instrumentos musicais, ou de
guerra. A isto se reduz o que o naturalista é a mão do conhecimento físico e moral dos
povos”2
Vandelli tinha praticidade quando o assunto era adquirir mais espécies para o seu
herbário, logo, nenhum tipo de planta seria dispensável, quando “achada alguma planta, isto
se deve entender do mais rasteiro musgo até a maior árvore, deve a recolher e pôr-lhe o nome
da Arte”3. As plantas deveriam ser classificadas seguindo ordem, gênero e espécie, mas caso
fosse encontrada uma nova espécie “como hão de ser infinitas do Brasil”, então, deveriam
formar um novo gênero ou espécie utilizando-se das prudentes cautelas indicadas por Linneo.
2
Ibidem
3
Ibidem, 59
27
Careceriam ser anotadas a sua utilidade tanto nos usos domésticos quanto nas artes, fazendo
experiências a fim de descobrir se dariam fios ou se úteis a produção de tinta. Com a
aspiração de contrair a maior quantidade de informações possíveis, Vandelli recomenda uma
aproximação dos viajantes com os indígenas. Essa relação seria essencial no processo de
colhimento e nomeação das plantas.
Os índios como são os mais inteligentes práticos daquele continente, são também os
melhores Mestres para nos ensinarem os nomes das plantas, e o seu uso
principalmente das que se podem extrair cores, e das que servem nas doenças
próprias daquela parte da América, onde eles morarem. As plantas devem ser
recolhidas com a sua flor, folhas, tronco e raiz, das árvores basta que se recolha
algum pequeno ramo com a frutificação, e será melhor que tenham flor. Recolhidas
assim as plantas, devem ser imprensadas pela imprensa portátil4
que outrora se tornou responsável pelo Horto Botânico do Maranhão, mas queixava-se por
não ter tanto tempo para se aventurar em análises que ele chamava de dignas de serem
estudadas. Ao receber o aviso de sua expedição, Dias Cabral teve a oportunidade de adentrar
o sertão e se aprofundar em seus estudos. Os seus diários, assim como os de Pereira foram
unidos em um único tomo para serem enviados para Portugal, esse tomo fora intitulado
“Memória sobre as produções nativas”, e traz como memória inicial a “Memória sobre os
nitros naturaes, sal de Glauber, Quina, mais produções nativas”, nesta memória, encontra-se
o discurso Preliminar e história sobre o clima da Capitania do Maranhão e do Piauí em geral,
origem das serranias dos seus sertões, os testes sobre as propriedades salinas das rochas e a
propriedade do seu clima para a nitrificação das terras, assim como o método econômico de as
fabricar (PEREIRA, 1799).
A segunda Memória trás descrições sobre o cotidiano dos viajantes, os locais pelos
quais passaram, o tempo que permaneceram e rasas descrições sobre a paisagem. Dentre as
cidades ou vilas estão Santa Maria do Icatú, Aldeias Altas, Oeiras, Várzea do Salitre, Valença,
Piracuruca, Campo Maior, Sambambaia, Marvão, Barra, Jerumenha e Parnaguá. O terceiro
diário segue analisando a paisagem com mais profundidade, registrando os produtos naturais
existentes, as matas, os animais, as aves, os olhos d’água e os escólios de cada localidade, e
na página final encontra-se um mapa que resume o que encontraram em cada cidade. O quarto
diário não ocupa tantas páginas, mas diz respeito as drogas encontradas na região, destacando
a Quina quina. Encontrar a quina no Brasil poderia ser muito lucrativo para a coroa
portuguesa, já que até aquele momento, quem dominava o comércio da quina eram os
espanhóis. “Na terra do Pará e Maranhão nasce uma árvore cuja casca só difere da verdadeira
quina em ser um pouco mais aromática. Deveriam se reiterar, e repetir sobre este ponto
experiências, e ver se esta pode substituir a que se faz uso na medicina”5
5
Ibidem
28
A utilidade da quina se dava em especial para dar fim as febres intermitentes que
assolavam as colônias de clima tropical, e essa começou a ser utilizada ainda no século XVII
pelos jesuítas, e só passou a ser receitada pelos médicos muito depois. No entanto, a quina
não se reduzia a um só tipo, mas haviam inúmeras espécies por várias partes das colônias
tanto portuguesas quanto espanholas. Eram feitos estudos, experimentos em todas as partes
para descobrir quais eram mais eficazes, as mais aromáticas e as que poderiam ser
transplantadas para o Museu da Ajuda em Portugal e os demais herbários pelo mundo. Pereira
e Cabral descrevem a região onde é encontrada a quina na freguesia de São José do Piauí e as
características dessa planta: as folhas, frutos, flores, cascas, cheiro, cor, tamanho e formas. Os
expedicionários se propõe a analisar as virtudes dessa planta para área medicinal, dentre elas
está a antifebril, e segue contando um caso de um homem de quarenta e três anos que após
uma longa cavalgadura se pôs enfermo com uma febre continua, “as extremidades frias a vista
espantada, a língua áspera como uma lixa, a fala balbuciante...”(PEREIRA, 1803), tiveram de
mutilar as partes com gangrena, e nas demais que começavam a se infectar aplicou-se a quina
quina tanto externamente quanto internamente, e só então uma maior infecção foi remediada6.
São muitas as descrições de que se havia encontrado tais plantas em diversos pontos
do Piauí. Sobre a fazenda de “Lagoa”, por exemplo, traz a seguinte descrição: “nesta fazenda
se fizerao as operações pertinentes (...). Aqui se acha abundancia de quina quina pihauience
do qual lugar se tirarão...” os remédios supracitados. “Nas planícies deste sertão de Iguará,
acham se várias montanhas, que mais parecem da Segunda Ordem que primitivas cobertas de
pedras lumalizadas (?) a que chamam quartzo...”, apresentando quase uma descrição densa e
formando uma imagem das planícies piauienses. A fauna, por sua vez, não é esquecida,
dizendo existir “animais cavallar e vacum, onças, antas, javalis, crocodilos”. As propriedades
de cura de outros produtos naturais são catalogadas com rigor, tal como o Sal de Glauber
“(...)muito útil para lançar as áreas dos rins e bexiga, serve para febres intermitentes(...)” e o
Angico Vermelho do qual “(...) Faz-se este lambedor composto de quatro libras de água, bem
classificado a que se ajusta a quatro onças desta goma depois de dissolvida n`agoa e
coada(...)”7
Considerações finais
A partir das experiências dos viajantes, fossem eles missionários, curiosos, filósofos
ou cientistas naturalistas, construía-se uma paisagem da terra que recebera o nome de Brasil.
6
Ibidem
7
Ibidem
28
Planicies
Nas planícies deste sertão do Iguará, acham-se varias montanhas que mais parecem
de segunda Ordem que primitivas cobertas de pedras lumializadas, a que eu chamo
quartzo ferruginoso, porque calsinado com o nosso sal de vidro e com mais ferro,
pezadas e irregulares, umas soltas e muitas cravadas, na sua base argiloza se
agrega da mesma natureza.
Matas
O mesmo observei nas matas que cercão a vársea do rio, cujas terras humosas
cobrem os óxidos, ou saes metálicos cujas matas constam de palmeiras e unhas de
gato.
Animaes
Cavallar, vacum, onças, antas, javalis, crocodilos.
Escolio
Pareceria cousa duvidosa, mas não impossível que apodrecendo as substancias
vegetaes e animaes nos lugares sombrios das matas desta varsea do salitre, não
houvesse criação e abundancia de salitre (PEREIRA, 1803).
Nesse pequeno trecho do Diário de memórias de Vicente Jorge Dias Cabral, bacharel e
viajante naturalista, nos deparamos com a descrição minuciosa da planície da Várzea do
Salitre, e a partir dessa minúscula amostra formamos uma imagem na mente. É justamente
essa imagem particularizada que podemos denominar de paisagem. “Antes de poder ser um
repouso para os sentidos, a paisagem é obra da mente. Compõe-se tanto de camadas de
lembranças quanto de extratos de rochas” (SCHAMA, 1996) Apesar de não ter se quer posto
os pés nesse território, o conhecemos e os reconheceríamos se o víssemos. Dessa mesma
maneira fluía a circulação de saberes pelos continentes. A experiência dos viajantes
naturalistas não se limitava apenas a descrição, também tinha a ver com experiência sensorial
e corporal, de modo que houvesse uma conexão real entre o viajante e a natureza, gerando um
conhecimento profundo sobre esse mundo natural. Essa conexão se dava de maneira tão forte
que através das descrições e diários dos viajantes naturalistas era possível conhecer o mundo.
Sem sair de seu gabinete ou país de origem, muitos estudiosos de botânica conheciam as
espécies da fauna e flora e cumpriam a tarefa/sonho de catalogar o mundo colonial
(MORALES, 2006: 97).
28
REFERÊNCIAS
Fontes manuscritas:
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Capitania do Piauhÿ. 1801. AHU. Maranhão. Caixa 127, doc. 9555.
. Documentos diversos. AHU. Maranhão. Caixa 128, doc. 9574.
. Documentos diversos. AHU. Maranhão. Caixa 128, doc. 9595.
. Documentos diversos. AHU. Maranhão. Caixa 125, doc. 9471.
PEREIRA, Joaquim José. Memória que contém a descripção e problemática da longitude e
latitude do sertão da capitania geral de São Luiz do Maranhão. RIHGB, v. 20, pp. 165-169,
1904.
. Memória sobre a extrema fome e triste situação em que se achava o sertão da Ribeira
do Apody. RIHGB, v. 20, pp. 175-185, 1857.
. Memória sobre nitros naturais, sal de Glauber, Quina e mais produções inventadas na
capitania do Piauí e Maranhão. 1803. AHU, Maranhão, Cx.127, doc.9556.
. Observações deste diário ou Memória sobre as Produções naturaes. 1799. AHU,
Maranhão, Cx.127, doc. 9556.
. Memoria ou addendo, á continuação do Diário em credito da quina quina do Piauhÿ.
1801. AHU. Maranhão. Caixa 127, doc. 9555.
28
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(Maestría en Estudios de la Cultura. Mención en Políticas Culturales). Universidad Andina
Simón Bolívar, Sede Ecuador. Área de Letras.
ROLLER, Heather Flynn. Expedições coloniais de coleta e a busca por oportunidades no
sertão amazônico, c. 1750-1800. Rev. Hist. (São Paulo) [online].2013, n.168, pp.201-243.
ISSN 0034-8309. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.v0i168p201-243.
28
1 - INTRODUÇÃO
A religiosidade popular, pode se expressar de várias maneiras, transitando entre dois
polos: o profano e o sagrado. Fomentando vivências e atitudes que não conseguimos
visualizar em outras esferas do cotidiano. É capaz de proporcionar um momento ímpar de
sociabilidade, além de fazer um resgate às tradições e a um momento histórico que apesar de
passado é revivido e ressignificado através dos ritos e festas que periodicamente são
realizados (JURKEVIKS, 2005).
O que propomos com esse trabalho, é a análise das relações entre sagrado e profano
dentro das festas religiosas populares e para tal iremos focar na festividade de Santa Maçalina,
que acontece na comunidade Timbaúba, no Munícipio de São Mateus do Maranhão. O
trabalho procurou compreender as mudanças ocasionadas na dinâmica sociocultural da
comunidade Timbaúba a partir da evolução do festejo. Para este fim o trabalho se fundamenta
sob a perspectiva da história cultural, que dentro das modalidades historiográficas existentes,
vem a ser a mais adequada ao tipo de estudo a ser realizado.
A festa aqui estudada e as relações entre sagrado e profano, bem como os conflitos
existentes a partir da convivência desses dois opostos perfaz a estrutura desse trabalho e irá
fornecer uma compreensão melhor sobre as relações existentes no campo das religiosidades
* Graduado em História pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. Mestrando em Ensino de História
pela Universidade Regional do Cariri – URCA. E-mail: cunhajean25@gmail.com
28
populares nos fazendo refletir sobre os vários aspectos que podem ser percebidos dentro das
vivências da festividade, um momento construído pela comunidade que participa, mas que
pode tomar direções diferentes daquelas que eram vividas no seu início, demonstrando assim
que a história é fluída e movida através das atitudes de quem a constrói.
Com o passar do tempo essa fé híbrida foi ganhando terreno e passou a prevalecer em
toda a colônia, formando dessa forma um catolicismo bastante peculiar, com diferenças
marcantes do catolicismo que era vivenciado na Europa. De acordo com Souza (2009)
práticas pagãs eram sincretizadas no catolicismo europeu medieval, mas quando essas práticas
foram inseridas no Brasil, já não eram mais tão utilizadas na Europa, permanecendo aqui um
sincretismo dotado agora por outras ressignificações, uma herança do catolicismo
28
Uma das expressões mais típicas desse catolicismo foram as confrarias organizadas
pelos leigos. Entre elas existiam as irmandades e ordens terceiras que se
diferenciavam das primeiras por estarem subordinadas às ordens religiosas.
Podiam reunir membros de diferentes origens sociais, estabelecendo solidariedades
verticais, mas também servir com associações de classe, profissão, nacionalidade e
“cor”. [...] As festas organizadas pelas irmandades em homenagem aos santos
padroeiros ou outros de devoção, eram o momento máximo da vida dessas
associações (ABREU, 1994: 184).
Essa postura adotada pelas confrarias contribuía para a manutenção do bem estar
social no momento em que proporcionava a convivência dos diferentes setores sociais. Além
de se cumprir um papel religioso de louvor ao santo, cumpria-se também um papel social
através da mistura de classes e do seu convívio, é claro, que a estratificação social não sofria
alterações, tão pouco a consciência dela. E essa convivência de extremos exemplifica de certa
maneira a concepção de Ginzburg sobre circularidade cultural. Nesse contexto a circularidade
cultural, conceito trabalhado por Ginzburg em sua obra “o Queijo e os Vermes”, defende a
influência mútua ente cultura popular e cultura hegemônica, o que foi demonstrado pela
citação acima através da presença de membros da elite nas manifestações populares. O que
deixa um pouco de lado a dicotomia popular x erudito.
Outra característica que deve ser salientada é quanto a postura dos representantes
institucionais da fé, no que se refere ao caldeirão cultural que era vivenciado durante as festas.
Ao que se percebe, a Igreja no início da colonização ou pelo menos até o século XIX
mantinha uma postura de tolerar tais práticas e por vezes até de inseri-las dentro da liturgia
oficial, muito disso deve-se pela fragilidade institucional no que tange a fiscalização e
28
higienização das práticas sincréticas. Logo, eram evidentes ainda nessa fase de evangelização,
transformar ou de certa maneira tentar moldar algumas práticas sincréticas, mas permitindo a
manutenção de outras, seguindo um dito popular que expressaria isso “se não há como
vencêlos, junte-se a eles”. Quanto a isso Laura de Mello e Souza ao citar Antonil nos coloca
que:
Antonil será talvez um dos primeiros a perceber como era importante, em termos de
controle social e ideológico, deixar aflorarem manifestações sincréticas. “Negar-
lhes totalmente os seus folguedos, que são o único alívio do seu cativeiro, é querê-
los desconsolados e melancólicos, de pouca vida e saúde. Portanto, não lhe
estranhem os senhores o criarem seus reis, cantar e bailar por algumas horas
honestamente em alguns dias do ano, e o alegremse inocentemente à tarde depois de
terem feito pela manhã suas festas de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito e
do orago da Capela do Engenho...” diria Antonil (SOUZA, 2009: 127).
Nesse contexto as festas possuem um caráter unificador, uma vez que unem em um
mesmo espaço, elementos do sagrado e do profano, fazendo dessa forma um entrelaçamento
de práticas e vivências que transforma e reifica a ideia de sagrado. Observa-se que dentro
28
dessas festas havia espaços para todos, fomentando gestos de sociabilidade, fraternidade e
solidariedade, raramente vistos em outras ocasiões.
De maneira geral é possível ver que o eterno contraponto entre a religião oficial e a
religiosidade popular não se fazem de maneira tão acirrada e que cada uma das vertentes se
confluem e tentam conviver, em certos casos, de maneira harmoniosa.
Quanto a convivência entre profano e sagrado é possível percebe-la em quase todos os
momentos da festividade popular e são sempre marcadas por momentos de lazer e diversão.
Quanto a isso Martha Abreu ressalta:
[...] essas festas costumavam confundir as práticas sagradas com as profanas, tanto
nas comemorações externas como nas que eram realizadas dentro das igrejas. Além
das missas com músicas mundanas, sermões, Te-Déum, novenas e procissões, eram
partes importantes as danças, coretos, fogos de artifício e barracas de comida e
bebidas. Na maioria delas a população escrava e/ou negra não perdia a
oportunidade para realizar seus “batuques” (ABREU, 1996: 9).
marcada ainda de muitos sincretismos. A festa que vamos relatar aqui vem a ser um dos
muitos exemplos pelo país a fora de como pessoas de vida simples se transformam em ícones
de devoção popular e conseguem arregimentar multidões em torno de seu culto, e mais, como
se deram essas relações com o sagrado e que consequentemente irão refletir no profano.
Não se sabe bem ao certo em que ano Maçalina nasceu, nem como chegou até a
comunidade Timbaúba, no município de São Mateus do Maranhão. O que os mais velhos
contam é que Maçalina era descendente de escravos e que vivia para ajudar as pessoas que
moravam na comunidade. De acordo com Dona Raimunda Nonata de 69 anos, moradora da
comunidade há muitos anos e que ouvia as histórias de seus pais, Maçalina era uma preta
velha, que brincava tambor de crioula e era também parteira, conhecedora dos remédios
caseiros, e que sempre fazia uso das plantas para ajudar quem precisasse.
A devoção à Santa Maçalina, como muitas outras, inicia-se a partir da sua morte,
momento que se evidenciou, segundo a crença popular os primeiros milagres e peregrinações
ao seu túmulo. De acordo com os moradores da comunidade, Maçalina quando estava idosa
sofreu um acidente e morreu, alguns disseram que quando foi buscar lenha seu coração teria
parado e ela veio a falecer à beira da estrada, outros falam que ao ir buscar lenha, uma
manada de bois a pisoteara causando a sua morte. Ao ser encontrada morta, seus restos
mortais foram enterrados à beira da estrada em que foi encontrada. Ali enterrada, fizeram-se
as orações para encomendar sua alma e segundo a tradição católica acenderam-se velas em
seu túmulo.
Após esses acontecimentos, seu túmulo foi muito visitado pelas pessoas da
comunidade que a conheciam, e tinham muita estima por ela. Muitas iam para rezar e outros
faziam promessas em nome da sua alma, mas ainda era uma devoção muito particular e
bastante local. O corpo de Maçalina foi enterrado, como já fora dito, no lugar onde fora
encontrado, que era a beira de uma estrada por onde passavam os bois que vinham do interior
do país para o Maranhão, era a famosa estrada da boiada.
Em uma dessas passagens, ao sentir o cheiro das velas queimando, os bois se
assustaram e se espalharam pelo campo, causando preocupação no boiadeiro que os estava
conduzindo. Segundo os entrevistados eram mais de 2000 cabeças de gado, e o boiadeiro iria
demorar muito tempo para reuni-las novamente, preocupado com a situação e em desespero,
ele percebe que existia um túmulo na beira da estrada por onde os bois passavam, ao se
informar sobre o túmulo e sobre a fama de milagreira que Maçalina tinha, resolve fazer uma
promessa em nome dela, onde segundo as fontes, ele prometeu que se conseguisse reunir todo
o gado mandaria erguer uma casinha sobre o seu tumulo, para que fossem feitas suas
29
Eu alcancei quatro barracões de festa, quatro, e eram seis aonde tinha o do Antero
Boueres [...] com alto falante em cima dum podarqueiro que enchia o interior de
voz bonita, de música bonita de oferecimento de tudo de bom pra esta alma
milagrosa, era uma festa de romaria[...] quando dava de noite depois da reza tinha
um silencio e aí começava depois que terminava o silencia da reza, das alvoradas
de músicos que vinha de Coroatá e aí tinha a festa (RAIMUNDA NONATA, 2014).
[...] aqui tudo era barraca, começava dia 21 a primeira noite, você podia vir que
você via cada barraca lotada de pessoas, som que você não sabia distinguir qual
era música dessa barraca aqui, dessa aqui , da outra e da outra mais, quando
chegava no dia 26, mesmo sem as festas de dança lá no barracão, mas o pessoal
botava nas barracas e nego dançava e bebia e emendava até o dia 1º (SOCORRO,
2014).
tem uma ordem cronológica que indique quando o barracão foi construído, mas como a
maioria dos entrevistados diz, que quando nasceram o barracão já existia, então podemos
supor que essa estrutura, já havia muito antes do Sr. Sebastião Coelho comprar as terras.
No Barracão aconteciam as festas dançantes e segundo os relatos ele ocupou um
espaço privilegiado na disseminação da cultura local, pois vinham artistas se apresentar e
existia ainda uma forma de circularidade cultural entre a elite e as massas populares. Dentre
os artistas que animavam as festas, é unanime a presença de um cantor conhecido como Bibiu
Balaiada, que já era tradição nas festas da santa.
Havia também certas regras sociais que deveriam ser respeitadas. Apesar de estarem
no mesmo espaço alguns setores sociais não se misturavam. Exemplo disso, como nos foi
relatado, era a existência de uma divisória feita de palha no meio do salão de festa. De um
lado ficavam as “mulheres de bem” e suas famílias e o do outro ficavam as meretrizes, ou
mulheres solteiras de “vida livre”.
[...] Na época era peitori, que você levava suas filhas, sua família e você olhava o
baile, tinha uma parede bem no meio, a outra eles falavam que eram de mulheres
que não podiam se misturar com as casadas e a s moças [...] era uma parede bem
alta, que ninguém via, e a outra de família, a gente chegava cruzava o braço no
peitori, olhava as pessoa dançar, era de lamparina, aqueles petromax, nessa época
não tinha energia, era só no petromax mesmo (SOCORRO, 2014).
será novamente vendida, dessa vez para o Coronel Sales, que ao comprar decide não querer
mais a manutenção da festa e resolve, além disso, expulsar as famílias que ali moravam a
muitos anos.
Diante dessa ameaça dupla, a de acabar com o festejo e a de perder as terras, a
comunidade resolve agir, pedindo ajuda ao poder público, que intervém através do INCRA na
compra das terras, para a comunidade. Em 1994 sai o decreto da compra do povoado pelo
INCRA e em 1995 é entregue a comunidade a emissão provisória de posse, que dava o direito
das famílias de permanecerem em suas terras. Porém durante uma década, de 1995-2005, a
comunidade não adquiriu a posse do festejo, e sua organização ficou ainda sob a
responsabilidade indireta dos antigos donos, nesse caso representados pela segunda esposa do
Sr. Sebastião Coelho.
A partir de então, mesmo com a posse da terra garantida em lei, a comunidade
permanece refém de outros posseiros que oriundos da cidade de Santa Inês – MA, vão agora
administrar a festa de Santa Maçalina. É justamente nesse período que se intensificam os
conflitos dentro da comunidade. A festa vai continuar nos moldes que sempre aconteceu, no
entanto haverá uma exploração maior daqueles que participam dela, principalmente no que
tange a festa profana. Serão cobradas mais taxas para se montar as barracas, a comunidade vai
ser constantemente ameaçada através das armas, que garantem agora a manutenção da ordem
estabelecida.
[...] Tinha muito policiamento aqui dentro, muitas pessoas armadas [...] a própria
polícia era do lado deles e pessoas particulares deles, seguranças particulares,
amedrontando a própria comunidade, foram dez anos de sofrimento [...] mesmo
assim não houve afastamento das pessoas (JOEDSON, 2014).
Alguns fatos não nos foram relatados dessa época por uma questão de medo, alguns
silêncios são mantidos no que se refere aos detalhes desse conflito. A morte de um romeiro é
a lembrança mais citada pelos entrevistados, ao fazerem memória desse período. Um
momento que chocou a comunidade e que fez com que muitas práticas perdessem o seu
sentido original. O mistério ali foi quebrado, pois houve um desnorteamento do sentido real
de realizar o festejo. O que antes era um ambiente de alegria e diversão se transformava em
um ambiente de medo e insegurança.
[...] a gente só ia pra igreja e voltava, fechava as portas [...] quando terminava as
novenas, todo mundo ia embora, a maioria das pessoas aqui da Timbaúba, eles não
iam pras novenas na época que surgiu esse outro povo de Santa Inês que festejaram
esses 10 anos, foi muito pouco as pessoas e eu fui, todo ano eu ia rezar, porque eu
29
achava assim, onde é que está minha fé? Eu não vou pra festa, eu não vou rezar pra
pistoleiro, eu não vou rezar pra A nem B, eu to rezando, fazendo a minha parte, já
que eu nasci e me criei aqui, eu tenho fé na imagem, na alma e em Deus em
primeiro lugar [...] (SOCORRO, 2014).
resolve romper com essa tradição e prioriza somente a festa religiosa através das novenas.
Quanto a isso Pe Luís, que acompanhou esse processo diz:
[...] não fomos nós a procura, foram eles que procuraram, porque naquela época,
aquela mudança, derrubando o galpão e etc. eles queriam virar a página, não ter
mais nada a ver com esse passado e naquela época eles chamavam de sofrido, de
opressão, de exploração, então por isso também o padre brasileiro não foi mais
procurado (PE. LUIGI CARAMASCHI, 2014).
Esse momento chega em 2008, quando ocorre a derrubada do Barracão, que é de certa
maneira o símbolo da festa profana, isso acontece devido à prisão de um dos moradores da
comunidade pela polícia militar, por porte de armas, justamente uma forma de se defender,
devido as ameaças que vinham sofrendo. Com a prisão desse membro, a comunidade reage de
forma violenta, através da derrubada do barracão de festas. Essa ação simboliza o rompimento
da comunidade com a festa e com os moldes com que vinha acontecendo nos últimos anos.
A derrubada do Barracão simbolizou o rompimento do sagrado com o profano e
representou na vida da comunidade o início de uma nova forma de celebrar e conviver. Vejo
que este rompimento se fez necessário por vários motivos, mas o principal deles seria
justamente a liberdade. Liberdade que a comunidade queria para celebrar a sua maneira, por
mais que se tivesse o peso da instituição oficial, que nesse caso específico, ajudou a
comunidade a reencontrar o seu caminho. O importante naquele momento era não se perder o
mistério da devoção a Santa Maçalina e isso não se perdeu, continuou acontecendo sempre. A
festa nos moldes que vinha acontecendo já havia perdido todo o sentido de existir para a
comunidade, portanto não fazia mais parte do mistério ali celebrado. Só servia para lembrar
os momentos difíceis que foram vividos e ainda agir como comercio da fé, para o
enriquecimento de alguns.
Ao contrário de muitas outras festas religiosas populares, a sacralização da festa de
Santa Maçalina, não ocorreu por meio de imposição, embora os conflitos tenham ajudado pra
que isso acontecesse, foi uma decisão da própria comunidade e não uma imposição da
instituição oficial, embora se tenha tido uma influência e uma negociação por parte da
Paróquia para que houvesse certo respeito a algumas normas da Igreja.
Desta forma a sacralização da festa de Santa Maçalina e a forma como ela aconteceu,
se torna específico e diferente no que tange à outras festas de santos populares, de um olhar
mais tolerante se conseguirmos perceber os efeitos de tal ação, por um lado a festa de romaria
acabou, a multidão de pessoas que vinham e faziam a fama da festa também foram embora e o
29
que restou foi a pura e simples fé da comunidade que ainda celebra e festeja os milagres de
Santa Maçalina, preservando sua história e mantendo viva suas tradições.
4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
O universo das religiosidades populares ainda tem muito a nos revelar sobre as
práticas e vivencias daqueles que participam delas, toda uma estrutura cultural e ideológica se
mantém em ressonância dentro dessas práticas, o que nos propomos aqui foi pegar uma dessas
relações como a convivência entre sagrado e profano e problematiza-la. A festa de Santa
Maçalina foi o nosso exemplo para discutir essa relação que é bastante observada nas festas
populares Brasil afora, que embora seja específico em cada caso, encontramos muitas
semelhanças principalmente em suas estruturas e relações.
Ao analisarmos as festas populares em específico a de Santa Maçalina, podemos
compreender o quão valioso é para esse povo a dimensão da ação do sagrado, que se
manifesta através das várias ações misteriosas entendidas como milagres. Passamos a
compreender seu modo de vida, e sua enorme capacidade de viver a sua fé mesmo sob
ameaça, e mesmo não tendo mais o prestígio ou fama da grande festa, consegue permanecer
fiel ao mistério que é celebrado ano após ano, fazendo de suas vidas um eterno celebrar,
trazendo de volta o momento único em suas vidas que é o prazer de se encontrar e se dedicar
ao culto de alguém que representa algo de importante e sagrado pra sua comunidade. Desta
maneira é que devemos enxergar as festas religiosas populares, momentos autênticos da fé
popular.
REFERÊNCIAS
ENTREVISTAS:
Raimunda Nonata. Entrevista concedida a Jean Carlos Silva Cunha. São Mateus do
Maranhão, 2014.
Socorro. Entrevista concedida a Jean Carlos Silva Cunha. São Mateus do Maranhão, 2014. Pe
Luigi Caramaschi. Entrevista concedida a Jean Carlos Silva Cunha. São Mateus do Maranhão,
2014.
Joedson. Entrevista concedida a Jean Carlos Silva Cunha. São Mateus do Maranhão, 2014.
BIBLIOGRAFIA:
ABREU, Martha Campos. “O Império do Divino”: Festas Religiosas e Cultura Popular no
Rio de Janeiro 1830 -1900. Unicamp, Campinas –SP, 1996.
. Festas Religiosas no Rio de Janeiro: perpectivas de controle e tolerância no
século XIX. Estudos Históricos, vol. 7, n. 14, p.183-203. Rio de Janeiro, 1994.
29
RESUMO: Realizamos uma investigação tendo como princípio a definição do objeto que
servira de guia, na busca do que se pretende averiguar. Portanto, a elaboração do Estado da
Questão (EQ), contribui para a descoberta e/ou redefinição dos caminhos de pesquisa.
Destarte, o objeto desse escrito foi elaborado pelo EQ tendo por alvo os saberes docentes
ligados a temática indígena. A pesquisa de caráter bibliográfico, teve como fundamento
teórico-metodológico, os escritos de Minayo (2015), Nóbrega-Therrien (2010), artigos
científicos da Associação Nacional de História – ANPUH e Associação Nacional de
Pósgraduação e Pesquisa em Educação – ANPED. A pesquisa realizada evidencia a
especificidade do objeto de estudo, sendo neste mapeamento, foram escolhidos descritores
que pudessem apresentar as categorias de pesquisa. Enaltecemos a importância do EQ, por
auxiliar pesquisadores no planejamento de investigações, sendo sinalizadores do aspecto de
originalidade necessário as pesquisas nas diversas áreas do conhecimento.
PALAVRAS-CHAVE: Estado da questão. Bases de dados. História e Cultura Indígena.
Introdução
A construção do Estado da Questão sobre a temática de pesquisa que envolve o ensino
de História e a Educação para as Relações Étnico-Raciais buscou relação com os professores
de História, seus saberes e práticas com a Temática Indígena brasileira, que constitui interesse
de nossa investigação. Este trabalho, é oriundo de pesquisa dissertativa realizada no Programa
de Pós-graduação em Educação, na Universidade Estadual do Ceará no período de 2015 a
2017, que tem por título: “Temática Indígena na Escola: saberes experienciais de docentes em
história na rede pública municipal de Fortaleza-CE” que pretendeu compreender como ocorre
a constituição dos saberes que mobilizam as práticas de docentes em História em uma escola
pública municipal da cidade de Fortaleza/Ceará, no tocante à temática indígena brasileira,
tendo por marco a Lei 11.645/2008, que torna obrigatório o estudo da História e Cultura Afro-
Brasileira e Indígena no contexto da educação básica, prescrito na Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDBEN) e comemora neste ano 10 anos desde sua promulgação.
Acreditamos que a realização de um Estado da Questão proporciona ao pesquisador
uma visão extensa das pesquisas e estudos sobre sua área de interesse, pois, corroborando
com Silveira (2012), ao se realizar um rigoroso levantamento bibliográfico em diversos
bancos de dados e sites de pesquisas, é possível a elaboração de um “inventário” sobre o que
* Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Ceará; Colégio Estadual Rui Barbosa;
joilsondesousa@hotmail.com.
30
Metodologia Empregada
Buscamos mapear pesquisas voltadas à temática Indígena após a promulgação da lei
30
1
Tomamos como marco o ano de promulgação da lei 11.645/08 criado em 10 de março de 2008, que torna
obrigatório o ensino da História e cultura indígena nas escolas do país, acreditando que as discussões sobre a
temática se intensificaram no meio acadêmico após a lei supracitada.
30
2009 Caxambu-MG 9 -
2010 Caxambu-MG 13 1
2011 Natal-RN 30 -
2013 Goiânia-GO 18 -
2015 Florianópolis-SC 29 1
Resultados de pesquisa
Escritos Acadêmicos no portal da ANPUH.
A análise da base de dados do site da ANPUH nacional apontou para a possibilidade
de uma análise referente à matéria Indígena nas edições de 2011, 2013, 2015. Pois a data de
criação do Grupo de Trabalho “Índios na História” aconteceu no evento do ano de 2009,
considerando as edições bienais do evento acadêmico, contabilizam-se três edições de um dos
mais importantes eventos acadêmicos de profissionais formados em História em todo o país.
Nos eventos de 2011 e 2013, dos 76 trabalhos que totalizaram as duas edições, não
foram encontrados trabalhos pertinentes ao nosso tema. Aspectos relacionados à matéria
Indígena e ao ensino de História foram encontrados em todos os trabalhos, porém, não tinham
relação com a tese de pesquisa de nosso projeto. Pesquisas relacionadas a outros assuntos
foram observados como: ensino de História na licenciatura Indígena, Etnias Indígenas
específicas como Guarany, Xerentes, Kaiabi, Tapuia, Índios no período republicano, políticas
de saúde nas comunidades Indígenas, Serviço de proteção aos Índios, Indígenas imigrantes,
movimentos Indígenas e relações políticas, Aldeamentos Indígenas, aspectos antropológicos,
30
a qual tem uma boa parcela de seus alunos Indígenas da etnia Xipava e Curuaia, justificativa
contundente para a escola trabalhar a valorização do multiculturalismo. O objetivo de
pesquisa inicial foi a identificação do estudo da prática docente e as dificuldades na
implementação da lei 11.645/08, assim como as representações dos docentes sobre os
Indígenas locais.
O trabalho de Jesus (2015) e Brighenti (2015) trazem propostas semelhantes em uma
observação documental e as ações de implementação nos currículos na expectativa de
mudanças estruturais. O Trabalho de Brighenti (2015) relata em uma de suas propostas o
aprofundamento nas inter-relações de saberes que transitam no universo escolar, pretendendo
que as mudanças não se limitem apenas à legislação educacional vigente, mas na
transformação de centros de ensino em lugares de múltiplos saberes.
O trabalho de Carmo (2015) tem como foco de estudo as experiências de professores
em diversos municípios da Bahia, para implementação das leis 10.639/03 e 11.645/08, que
trabalham as temáticas Afro-Brasileiras e Indígenas com objetivo de mapear as estratégias,
práticas e fazeres para a criação de novas metodologias, temas e atividades, a estarem
presentes na formação continuada, e na reestruturação dos processos de ensino e
aprendizagem nas escolas da Educação Básica.
As investigações aqui descritas, portanto, se configuram importantes para o
conhecimento da produção já existente, mostrando o cenário de pesquisas sobre o tema
Indígena na atualidade. O que reforça a importância de nossa pesquisa diante da tão evidente
escassez de pesquisas sobre a temática em foco.
para as relações étnico-raciais: refletindo sobre suas tensões, sentidos e propostas”. O referido
trabalho traz uma análise sobre as experiências de educar para as relações étnicoraciais na
sociedade brasileira. A autora analisa projetos que alcançaram expressividade no Prêmio
Educar para a Igualdade Racial, organizado pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho
e Desigualdades – CEERT. Logo, buscamos compreender a relação que a autora faz no que se
refere às concepções de escola, diversidade e cultura, nas experiências vividas por
professores.
Todos os demais trabalhos estão ligados exclusivamente à questão étnica negra, dentro
de perspectivas de currículo universitário – racismo – livro didático – ensino religioso –
práticas pedagógicas dentro de comunidades quilombolas – políticas públicas relacionadas às
cotas raciais.
Durante a 34ª edição em 2011, com o título “Educação e Justiça Social”, dos trinta
trabalhos apresentados, o que nos fez perceber um crescimento quantitativo expressivo do
número de textos aprovados no evento, nenhum tinha relação com nossa proposta de pesquisa.
No entanto, nos chamou a atenção um trabalho que trata da questão Indígena cujo título é:
“Identidades/Diferenças Indígenas nas teias de um currículo universitário”. Contudo, como o
próprio título diz e ainda após a leitura do resumo do mesmo, fica clara a perspectiva voltada
para alunos Indígenas e cotistas em uma universidade pública sobre suas percepções em torno
do currículo universitário.
A 35ª edição da reunião anual da ANPED: “Educação, Cultura, Pesquisa e Projetos de
Desenvolvimento: o Brasil do século XXI” teve apenas um trabalho que apresentou relação
com a perspectiva proposta por nós acerca da temática Indígena, em relação aos vinte e dois
trabalhos apresentados neste evento no GT-21. O trabalho “Os conceitos de Multiculturalismo
e Interculturalidade e a Ressignificação do Currículo”, de José Licínio Backes (2012), faz um
levantamento de 52 trabalhos apresentados no GT-21 da ANPED, na tentativa de identificar
como estão sendo abordados os conceitos de Multiculturalismo e Interculturalidade e como
seu uso contribui para a ressignificação do currículo. Logo, este trabalho contribui para nossa
perspectiva, principalmente no que diz respeito ao conceito de Interculturalidade e os
objetivos pretendidos em relação ao currículo.
Outro trabalho próximo à perspectiva de nosso estudo foi: “Saberes tradicionais e as
possibilidades de seu trânsito para os espaços escolares”. Contudo, mesmo relacionado à
cultura Indígena, aos saberes e ao ensino escolar, o referido texto traz análises da Educação
Escolar Indígena, perspectiva essa que acontece dentro de comunidades Indígenas Guarani e
kaiowá. As demais propostas estavam relacionadas à cultura Afro-Brasileira e Africana.
30
Considerações Finais
A temática indígena e os saberes e práticas sobre o cotidiano escolar, desponta para a
compreensão de duas variantes. Em primeiro, a temática indígena a ser ensinada nas “escolas
diferenciadas” (termo atribuído pelo MEC), inseridas nas comunidades Indígenas em várias
regiões do país, o que não é o nosso foco de estudo, pois as mesmas possuem legislação
diferente das ofertadas pelas escolas de ensino regular (escolas não indígenas), e há muito
tempo valorizam a História e cultura de sua própria etnia nas escolas inseridas em várias
30
REFERÊNCIAS
BRASIL, Presidência da República. Lei nº. 11.645, de 10 de Março de 2008. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm>. Acesso em: 1
mai. 2014.
MINAYO, Maria Cecília de Sousa; DESLANDES, Suely Ferreira; GOMES, Romeu.
Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 34 ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
NÓBREGA-THERRIEN, Sílvia Maria; THERRIEN, Jacques. O Estado da Questão: aportes
teóricos-metodológicos e relatos de sua produção em trabalhos científicos. In: FARIAS,
Isabel Maria Sabino de; NUNES, João Batista Carvalho; NÓBREGA-THERRIEN, Sílvia
Maria. Pesquisa Científica para Iniciantes: caminhando no labirinto. Fortaleza: EdUECE,
2010.
REUNIÃO NACIONAL DA ANPED, 32., 2009, Caxambu. Anais... Caxambu, (MG):
ANPED, 2009. Dispoível em: <http://32reuniao.anped.org.br/trabalho_gt_21.html>. Acesso
em: 10 jun. 2017.
REUNIÃO NACIONAL DA ANPED, 33., 2010, Caxambu. Anais... Caxambu, (MG):
ANPED, 2010. Disponível em: <http://33reuniao.anped.org.br/internas/ver/trabalhos-gt21>
Acesso em: 10 jun. 2017.
31
REUNIÃO NACIONAL DA ANPED, 34., 2011, Natal. Anais... Natal, (RN): ANPED, 2011.
Disponível em: <http://34reuniao.anped.org.br/index.php>. Acesso em: 10 jun. 2017.
REUNIÃO NACIONAL DA ANPED, 35., 2012, Porto de Galinhas. Anais... Porto de
Galinhas, (PE): ANPED, 2012. Disponível em: <http://35reuniao.anped.org.br/trabalhos/133-
gt21>. Acesso em: 10 jun. 2017.
REUNIÃO NACIONAL DA ANPED, 36., 2013, Goiânia. Anais... Goiânia, (GO): ANPED,
2013. Disponível em: <http://36reuniao.anped.org.br/trabalhos/179-trabalhos-gt21-educacao-
e-relacoes-etnico-raciais>. Acesso em: 20 jun. 2017.
REUNIÃO NACIONAL DA ANPED, 37., 2015, Florianópolis. Anais... Florianópolis, (SC):
ANPED, 2015. Disponível em: <http://37reuniao.anped.org.br/trabalhos/>.Acesso em: 10 jun.
2017.
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 28., 2015, Florianópolis. Anais... Florianópolis,
(SC): ANPUH, 2015. Disponível em: <http://www.snh2015.anpuh.org/simposio/public>.
Acesso em: 11 nov. 2015.
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 27., 2013, Florianópolis. Anais... Florianópolis,
(SC): ANPUH, 2015. Disponível em: <http://www.snh2013.anpuh.org/simposio/public>
Acesso em: 11 nov. 2015.
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 26., 2013, Florianópolis. Anais... Florianópolis,
(SC): ANPUH, 2015. Disponível em: <http://www.snh2011.anpuh.org/simposio/public>.
Acesso em: 11 nov. 2015.
3
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo a análise de obras recentes que retratam a
seca no Ceará, partindo da perspectiva de que a seca é um fenômeno climático e social. O
trabalho abrange uma análise conceitual sobre os estudos da seca, com ênfase nos sujeitos
retirantes e nas migrações. Também procura ampliar as discursões sobre as abordagens
teóricas que foram dadas nessas pesquisas que, a partir do tema do trabalho e das migrações,
tem em suas análises a História Social Inglesa como ponto nodal de suas problemáticas, cuja
análise procura centrar nos sujeitos da classe menos favorecida da sociedade, aqueles que
estavam à margem da história.
PALAVRAS-CHAVE: Historiografia. Seca. Imigrantes.
* Graduanda em História pela Universidade Federal do Piauí – CSHNB e aluna veiculada ao Programa de
Educação Tutorial, PET conexão de saberes: cidade, saúde e justiça.
**
Graduando em História pela Universidade Federal do Piauí – CSHNB e aluno veiculado ao Programa de
Educação Tutorial, PET conexão de saberes: cidade, saúde e justiça.
***
Professor Doutor, ligado ao departamento de História da Universidade Federal do Piauí – CSHNB.
31
os migrantes, a priori dependiam das “esmolas” dadas pelas comissões, porém, essas mesmas
comissões eram as responsáveis por direcionar os flagelados da seca para trabalhos de obras
públicas, apresentados pelo autor como sendo de caráter explorativo e abusivo.
Na perspectiva abordada, os imigrantes recrutados para construírem obras públicas,
contribuía para o desenvolvimento da nação, ou seja, conflito entre modernidade e pobreza.
Afinal, utilizar-se de milhares de pessoas, pobres, sem esperanças, desprovidas de subsídios
básicos para sobrevivência, como meio de aproveitamento, economia e lucros, já que seria
inevitável dispor de recursos para o acolhimento dos pobres. A mudança de rotina, o
deslocamento de seus locais de origem, interferiam diretamente na vida daqueles indivíduos,
sendo a fome o elemento principal de mudança de vida. A quantidade de retirantes nos
períodos de seca era numerosos e isso interferia também na vida e rotina de cidades, nesse
sentido os imigrantes eram vistos como um problema e algo que deveria ser combatido pelos
órgãos públicos.
A visão que se tinha sobre os retirantes era de medo e insegurança, pois, em algumas
cidades e fazendas, havia relatos de furtos e saques por onde os imigrantes passavam. A
exemplo dito, na tese no autor Tyrone Apollo, é apresentado que em Quixeramobim, em
1877, foram relatados casos de grupos armados furtando locais, passando por todos os
obstáculos para tentar saciar sua fome. Nesse sentido o medo tornava-se inevitável dentro
desse contexto de barbárie, onde, decorrente disto as ações caridosas, não consistiam na
bondade das pessoas, mas ajudavam os flagelados, simplesmente pelo receio de saques e
violência. Sendo assim, o autor afirma que diversas pequenas obras eram propostas aos
imigrantes, para que pudessem dar-lhes ocupação por um curto período.
Não somente nas fazendas, as medidas foram utilizadas em cidades, sobretudo as de
litoral, local de refúgio bastante procurado pelos retirantes, por isso, as construções e obras
oferecidas aos retirantes tornava-se a medida mais urgente, na tentativa de evitar aglomerados
e badernas na distribuição das ajudas advindas das comissões de socorros. Para além da
caridade, essas medidas tornaram-se uma forma de controle daqueles indivíduos, ou seja, o
trabalho como forma de ajuda, surgiu não somente para suprir as necessidades dos retirantes,
mas como forma de crescimento e melhoramento das cidades. Entretanto, segundo o autor,
somente as cidades não eram suficientes para recrutar os milhares de flagelados, por isso,
tornou-se necessário levar os retirantes para trabalharem em grandes obras como estradas de
ferro, reformas de portos, construção de açudes, entre outras obras, pois, na mesma medida
que retirava os retirantes dos grandes centros, crescia a mão de obra para construção das obras
públicas.
31
Ou seja, a mudança de visão por parte dos retirantes tornava-se inevitável, pois
estavam a todo momento lidando com diferentes dimensões de aprendizado, na qual eram
preenchidos nos períodos de seca. No entanto essa visão que se tinha dos retirantes, como
sendo flagelados, uma população fadada a estancar-se nos períodos de seca, sendo incapazes
de conseguir sustentar-se nos períodos de penúria, eram tidos também como uma população,
que através da fome eram levados a barbárie, indo diretamente contra a civilização elitista
urbana. O imaginário que desqualificava aquela parcela da sociedade, afirma o autor, que
ficou impregnado no pensamento das pessoas na época, sendo necessário justificar os diversos
mecanismos de controle aplicado sobre os retirantes na época.
É importante salientar que tal visão, pode ter moldado o modo como a construção
histórica dos indivíduos se constituiu, como sendo frágeis e incapazes. Esse olhar
influenciava, até mesmo o pensamento sobre os movimentos sociais de revolta desenvolvido
pelo grupo, havendo essa contraposição entre trabalhadores urbanos e trabalhadores rurais.
Podemos citar, nesse sentido o pensamento de Eric Hobsbawn que identificava como sendo
31
movimento pré-políticos aqueles que ainda não haviam encontrado uma língua específica para
expressar seus pensamentos em relação ao mundo. isto é, o pensamento político dos
camponeses não haviam aflorado a ponto de formações de grupos de protestos políticos, ou
pelo menos não eram muitos, mas, segundo o autor José de Souza Martins (1986), somente na
década de 1950, com a aparição de ligas camponesas e com a atuação do PCB, como também
de alguns setores da igreja, que uma maioria de camponeses começou interessar-se pela
política.
Tornou-se importante problematizar, se os flagelados da seca possuíam consciência de
classe, ou, como demostram alguns estudos da historiografia, seriam apenas sujeitos, que
através da fome, eram levados a cometer violência pela barbárie. Nessa perspectiva, o autor E.
P. Thompson, na sua renomeada obra, afirma que consciência de classe operaria não é
determinada de uma hora para outra, ela se constituiu e participou ativamente desse fazer-se.
Sobre concepção de classe explica:
Não vejo a classe como estrutura, nem mesmo como uma categoria, mas como algo
que ocorre efetivamente e cuja ocorrência pode ser demonstrada nas relações
humanas (...) a noção de classe traz consigo a noção de relação histórica (...) A
classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiencias comuns
(herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses
diferem (e geralmente se opõem dos seus). (THOMPSON, 1987: 9-10)
A segregação e a escolha do gênero eram feitas conforme as condições que o trabalho exigia,
como por exemplo na obra de Baturité só eram aceitos homens, solteiros ou que tivessem
família em pequeno número.
Para além dos conflitos, as obras públicas eram locais de solidariedade e união,
sobretudo pelos retirantes, pois a solidariedade legitimava-se como forma de superar as
situações difíceis enfrentadas pelos mesmos. Os retirantes enfrentavam dificuldades
compartilhadas, como o baixo salário, falta de comida, água e roupas, situação degradante
vivenciada em conjunto, por esse motivo os conflitos tornavam-se inevitáveis. O autor Tyrone
nos dá um exemplo:
Segundo o autor era algo possível que a formação dos laços solidários, dava-se
diretamente pelo compartilhamento de dificuldades, principalmente na construção da estrada
de ferro de Baturité, pois o cotidiano do local era repleto de castigos, dificuldades, os
trabalhos em condições degradantes, fome e doenças, ou seja, muitas das ações de revoltas se
davam por momento de fúria e ódio, por serem obrigados a passarem pela situação de
desgaste e sofrimento. Para o autor, se faz importante relatar que muitos desses sentimentos
eram alimentados em conversas paralelas entre os próprios trabalhadores, normalmente depois
de terem passado por alguma situação ruim, como trabalho pesado ou reclamações, pois, os
engenheiros eram constantemente acusados de opressores.
O compartilhamento dessas dificuldades, os laços de solidariedade construídos pelos
retirantes, afirma o autor, que eram preciosos, sendo usado como meio para lidar com a
opressão e serviam também como meio de reinvindicação, a exemplo disto relata o autor que:
As jornadas de trabalho naquela grande obra ao que parece deram motivos para
serem forjadas estreitas relações entre parceiros de trabalho que construíam às
vezes amizades consolidadas ao longo da vida. Afinal de contas, daquela turma que
se engajou nos trabalhos do prolongamento de Baturité ao menos dezesseis homens
31
Isto é, para além das alianças em revoltas, muitos dos trabalhadores se encontravam,
posteriormente em outras obras para novamente trabalharem juntos. Os laços poderiam ser
cultivados por longos anos, até porque, ao serem assolados pela seca novamente, muitos
retirantes saiam a busca de socorros e consequentemente instalavam-se em obras públicas. Já
que essa medida se constitui como um meio de afastar os retirantes das grandes cidades,
sendo uma medida de controle, como também em forma de lucros a partir dos trabalhos
braçais dos mesmos.
Nesse sentido, o que se pode perceber nessa vertente abordada é que a migração não
era um elemento neutro, em que sujeitos saiam a vagar sem destino. Pelo contrário, o que o
autor Tyrone pode nos mostrar é que os retirantes eram sujeitos pensantes e que, a sua
maneira, lutavam pela subsistência diária, não eram simples fantoches nas mãos das
comissões de socorros, mas não se conformavam com os maus tratos e opressões. A seu
modo, adquiriam experiências novas. Tornaram-se sujeitos acarretados de estereótipos,
principalmente relacionados a seca, como também tomados como bárbaros e incivilizados.
Porém, sua consciência estava presente em suas ações. Consciência essa que, posteriormente,
servi-lhes como revolta contra os mandos e desmandos de superiores.
A perspectiva abordada pela autora Kênia Sousa Rios, em seu livro Isolamento e
Poder: Fortaleza e os campos de concentração na Seca de 1932, demonstram uma visão da
seca baseada no surgimento dos campos de concentração em Fortaleza, que para além de uma
cidade de sol, cores e beleza, escondia-se escuridão de sofrimento. Ao decorrer da pesquisa, é
relatado que muitos imigrantes buscavam abrigo em cidades grandes, como já relatado
anteriormente, entretanto, assim como em outras cidades, os retirantes que chegavam a
Fortaleza eram marginalizados. Nesse sentido, durante a seca de 1932, havia o desejo de
afastar os flagelados dos grandes centros, sendo assim foram criados centros de isolamentos
para os retirantes. O governo construiu sete campos de concentração para isolar os sertanejos,
sendo eles construídos em pontos estratégicos, para garantir o afastamento de uma maior
quantidade de imigrantes.
Pode-se perceber que em todas as vertentes já abordadas os retirantes são
marginalizados, tidos como bárbaros e miseráveis. Levados para trabalhos árduos pelas
comissões de socorros nas obras públicas ou isolados em campos de concentração, essas
medidas se constituíram como meios de afastar essas multidões pobres e famintas dos grandes
centros e das elites locais. Pois, os mesmos configuravam-se como sujeitos bárbaros e
31
próximo as estradas de ferro, alguns retirantes conseguiam chegar até o grande centro de
Fortaleza onde os ricos residiam e passeavam.
Na concepção da autora Kênia Sousa, após a suspensão da distribuição de passagens
do sertão para Fortaleza, não configurou-se como meio de diminuição da chegada dos
flagelados a cidade, pois os vagões de trens continuavam chegar lotados de imigrantes, sendo
muitos deles despejados próximos ao litoral da cidade, onde muitos construíam seus sobrados
por ali mesmo, configurando-se como fato para surgimento das favelas na cidade de
Fortaleza. A presença dos retirantes, para além de mãos de obras, foram responsáveis pelo
aumento da marginalidade e prostituição na cidade, fato esse que contribuía para a
desvalorização de imóveis por um período longo. Como já afirmado, os campos de
concentração e o engajamento nas obras públicas, foram meios utilizados para o afastamento
dos retirantes, o isolamento dos tais da elite local. Sobre esse fato a autora firma que:
A fixação dos retirantes nas proximidades dos trilhos foi se alargando por toda a
extensão da linha férrea dando origem a uma das maiores favelas de Fortaleza: a
favela do trilho, que corta a cidade, em um “estirão”, de uma ponta a outra. Nesse
movimento, os retirantes deixaram de ser flagelados e passaram a ser favelados.
(RIOS, 2014: 31)
Porém, para além da ajuda advinda do governo através das obras públicas e das
comissões de socorros, na percepção da autora, a elite da sociedade de Fortaleza, também se
empenhavam em ajudar os flagelados da seca. Com discurso de caridade, a elite local
organizava evento para que se conseguisse arrecadar ajuda em prol dos retirantes. No período
de carnaval, a população de Fortaleza se esbaldava nas festas luxuosas da cidade, porém
sofriam críticas por parte da igreja católica, na qual refutava que enquanto muitos sertanejos
sofriam com as calamidades da seca no sertão, a elite se divertia nas luxuosas festas
carnavalescas, regadas a luxo e requinte. Enquanto a elite divertia-se, os cristãos
conservadores da igreja rezavam pelas pobres almas flageladas pela seca e em luto.
No entanto, segundo a autora, os foliões divertiam-se despreocupados, divertiam-se no
requinte da festa, pois também cumpriam com seus deveres humanistas de caridade, ou seja, a
caridade vinha por parte de quem divertia-se durante as festividades, quanto dos que rezavam
para os flagelados da seca. Pois, muitos desses grupos publicavam nos jornais suas obras
caridosas, sendo um meio utilizado até mesmo para crescimento político.
Algo importante relatado pela autora, está presente no exemplo no carnaval de 1916.
Constituiu-se como período da grande seca, que desde 1915 assolava o Ceará. Nesse sentido,
os jornais locais publicavam protestos para que não houvesse a comemoração na cidade. Em
32
meio ao embate, surgiu a proposta de que houvesse sim a festividade, mas que tudo que fora
arrecadado fossem doados em forma de ajuda aos flagelados da seca. Por esse motivo a elite
podia divertir-se sem nenhum ressentimento e esbaldar-se nas luxuosas festas, ou seja,
utilizaram-se do discurso de uma caridade invertida para justificar a participação das
festividades. A burguesia local, legitimavam sua participação nas festividades durante a seca,
com discurso de que estavam cumprindo seu dever humanista de caridade.
Os jornais locais, era dito pela autora, como um meio de propagar os feitos da elite em
forma de caridade, pois publicavam e propagavam os bailes luxuosos em prol dos flagelados
com o mesmo empenho que publicavam sobre os bailes carnavalescos. Eram organizados
bingos, torneios esportivos, festas dançantes, entre outras, que segundo a autora,
constituíamse como meio de ajuda aos retirantes.
No entanto, cabe problematizar que esses meios de caridade utilizados pela elite, como
também pelos cristãos, constituíram-se como meio de controle dos retirantes, na tentava de
transforma-lhes em “civilizados”. A caridade na época era utilizada como meio de controle e
isolamentos dos indivíduos, todas as práticas utilizadas pela elite e cristão visavam manter
controle sobre as ações dos retirantes, para que diminuísse os saques, prostituições e protestos
dos mesmos. Como já relatado, os retirantes eram vistos como bárbaros, marginalizados e não
civilizados, um grupo de pobres homens que não conseguiam nem mesmo os subsídios
básicos para sobrevivência.
Pode-se observar, através das perspectivas abordadas, que a visão constituída sobre os
retirantes da seca está ligada diretamente à pobreza, barbárie, miséria e marginalidade. A
multiplicidade de usos da seca é transformada em usos e práticas de caridade e ajuda. As
formas pela qual os retirantes são tratados demonstram o pensamento humanístico que se
tinha na época. Porém, cabe ressaltar que para além do discurso de caridade e pensamento
humanista, a elite local e o governo se utilizavam desses meios para isolar os retirantes e
afasta-los dos grandes centros. Os imigrantes, constituíam-se como forma de desvalorização
dos espaços, pois retirantes acabou tornando-se sinônimo de sofrimento e pobreza. As práticas
de isolamento, acabou por ser uma pratica recorrente da elite cearense, pois, de maneira
rigorosa ou não o aprisionamento dos indivíduos que incomodavam era uma prática de grande
recorrência, sejam eles com discursos explícitos ou encobertos pelo discurso de caridade.
O afastamento dos retirantes, através do engajamento nas obras públicas, para além de
uma maneira de restrição, constituiu-se como forma de crescimento de cidades, pois, a mão de
obra dos retirantes contribuiu para construção de grandes obras públicas dentro do Estado do
Ceará, a exemplo, como já fora dito, está a estrada de ferro de Baturité e a ferrovia de Sobral.
32
O isolamento nos campos de concentração foi uma das abordagens utilizadas para o
entendimento da visão que se tinha sobre os retirantes. Afastar-lhes dos centros, impedido de
saírem do sertão, com restrições de passagens, como também os prenderem nos campos, foi
uma das medidas utilizadas também pelo governo e sociedade. Porém, cabe ressaltar que os
retirantes eram sujeitos pensantes, que protestavam e reivindicavam seus direitos, a exemplo
os subsídios básicos para conseguirem trabalhar, como água, comida e vestimentas.
Tornou-se perceptível como essas medidas de isolamento foram cobertas pelo discurso
de caridade presente na época. A caridade das elites, eram publicadas em jornais, como forma
de propagarem esse discurso e sendo também utilizados como reforço de discursos político,
sendo ela um elemento motivador e legitimador da ordem social. Através da filantropia
legitimava-se o discurso humanista de ajuda e solidariedade, como também sendo utilizada
como meio de restrição dos retirantes e tentativas de “afastar-lhe” aquele povo da barbárie e
“trazer-lhes” a civilização, mantendo assim a boa ordem social. Preocupação essa recorrentes
entre as elites de Fortaleza, na qual se legitimavam pelo discurso de poder e ordem. Sendo a
caridade um laço que entrelaçavam os fios da sociedade, constituindo-se como um meio
organizador das relações entre pobres e ricos, legitimando e naturalizando a pobreza, através
da ordem social.
Em todos os autores e trabalhos abordados, pode-se perceber que o uso dos indivíduos
marginalizados, constituiu-se como método extraído da História Social Ingressa, que via nos
grupos marginalizados um meio para se entender a sociedade. Ou seja, a partir do momento
que os autores observaram a sociedade cearense, por meio da vida dos retirantes, escreviam
uma História vista de baixo, uma escrita utilizando sujeitas excluídos da sociedade. Sujeitos
que não tiveram voz, mas participaram da construção de sociedades, contribuindo socialmente
e culturalmente para a história daquele local abordado. Nesse sentido, tornou-se perceptíveis
que as abordagens dos sujeitos demonstrados, utilizaram fontes diferentes, mas seus métodos
de análise foram os mesmos.
REFERÊNCIAS
BARBOZA, Edson Holanda Lima. A hidra cearense: rotas de retirantes e escravizados entre
o Ceará e as fronteiras do Norte (1877-1884). Doutorado em História Social. São Paulo:
PUCSP, 2013.
CANDIDO, Tyrone Apollo Pontes. Proletários das Secas: Arranjos e Desarranjos nas
Fronteiras Do Trabalho (1877-1919). Doutoramento em História Social. Fortaleza: UFC,
2014.
32
RESUMO: A literatura brasileira, assim como a origem de seu povo, é bastante diversa.
Independentemente do nível de uma sociedade, as criações artísticas da atualidade estão
permeadas por um legado cultural da história humana, ocorrido através dos tempos e
encontrando-se presentes nos mais diversos tipos de literatura. No Brasil existe uma Literatura
Popular permeada de elementos memoriais, cristalizados, que traz à tona uma cultura e
folclore do povo. A Idade Média é destacada como enfoque por ser um rico período,
impregnado pelas mais diversas formas e conteúdo de escrita, aproximando-se do popular, da
música, trazendo as grandes cantigas trovadorescas – líricas ou satíricas – além de ser
conceituada como um berço cultural e literário tão encantador que segue, através dos tempos,
influenciando a humanidade. Os trovadores foram os principais alicerces e precursores para a
futura Literatura de Cordel, principalmente na vasta região nordestina do Brasil, onde criou
raízes e imortalizou-se no imaginário dos poetas cordelistas e cantadores repentistas. Dentre
estes artistas, destaco um humilde poeta e agricultor, Antônio Gonçalves da Silva, mais
conhecido por seu apelido, Patativa do Assaré. Já que a cultura e literatura nordestina são tão
peculiares e vastas, existirão resíduos medievais nas poesias “patativanas”? À luz da Teoria
da Residualidade, método investigativo desenvolvido pelo professor e poeta, Roberto Pontes,
serão verificados alguns dos vastos resíduos que permaneceram na poesia de Patativa,
delimitada na obra Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador nordestino, seu maior
sucesso editorial.
Palavras-chave: Teoria da Residualidade. Patativa do Assaré. Poesia medieval.
INTRODUÇÃO
A literatura pode ser definida como a arte de compor prosa, verso e também como um
conjunto de trabalhos literários de uma determinada época ou de um país. Em busca de um
conceito mais amplo, o crítico e sociólogo Cândido (2004), diz que a literatura também pode
ser considerada como
1
Mestranda em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC) – larissassa@hotmail.com
32
comunicativo de sentido. Sendo assim, essa relação comunicativa tem relação direta com a
mentalidade2 da comunidade que o produziu, basta observar os elementos devidamente
cristalizados3 nessa sociedade. Assim, no Brasil, existe uma Literatura Popular permeada de
elementos memoriais, cristalizados, que traz à tona uma cultura e folclore do povo. Diante
deste cenário, é evidenciada neste artigo a Literatura Popular, em especial, do Nordeste
brasileiro, uma temática que apesar de pouco abordada durante a formação do curso de Letras
no Brasil, afirma-se cada vez mais abrangente, instigante e, principalmente, como marca da
cultura de um povo tão especial quanto o nordestino.
O conjunto de formas simples da arte verbal do povo é definido como Literatura
Popular, que traz legados, reminiscências, resíduos dos povos das épocas antigas, trazendo à
tona uma indiscutível influência do passado na história presente. No nordeste brasileiro, não
foi diferente. Além disso, os legados culturais são responsáveis por contribuírem para a
formação cultural e literária dos povos contemporâneos em qualquer lugar do mundo.
Considerando-se que o Brasil foi “descoberto” na era medieval, a enorme bagagem trazida
pelos portugueses foi, sem dúvidas, a cultura. Aportaram, neste país, trovadores e artistas
populares que trouxeram em sua bagagem cultural o que alguns consideravam ser as origens
da Literatura Popular, porém, a Literatura desenvolveu temáticas próprias e hoje ultrapassa
um século de história e tradição oral. Ademais, os trovadores foram os principais alicerces e
precursores para a futura Literatura de Cordel, principalmente na vasta região nordestina do
Brasil, onde, a partir da capital baiana, dos portos marítimos e adentrando no interior dos
estados, criou raízes e imortalizou-se no imaginário dos poetas cordelistas e cantadores
repentistas. Dentre estes artistas, destaco um humilde agricultor Antônio Gonçalves da Silva 4,
mais conhecido por seu apelido, Patativa do Assaré, em uma belíssima referência a um
pássaro cantador que habita na região de Assaré, Ceará.
2
Conceito relacionado à Teoria da Residualidade, diz respeito ao que permanece no povo, um conjunto de
manifestações psíquicas e intelectuais presentes na memória.
3
Outro conceito da referida Teoria, relacionado ao que está na mentalidade dos povos e que virou tradição.
4
Nascido dia 5 de março de 1909, foi um poeta popular, repentista, cantador e compositor. Sua perda parcial da
visão, aos dois anos de idade, nunca foi impedimento. Seus livros, traduzidos em vários idiomas, já chegaram a
ser tema de estudos na Sobornne, na disciplina de Literatura Popular Universal. Faleceu em oito de julho de
2002, no mesmo município em que nascera, Assaré.
32
5
Cruzamento entre indivíduos, mentalidades, culturas diferentes na variedade ou espécie formando um todo
novo.
6
A Teoria da Residualidade, formulada pelo Prof. Dr. Roberto Pontes, é registrada junto à Pró-Reitoria de
Pesquisa e pós Graduação da Universidade Federal do Ceará e ao Conselho Nacional de Pesquisa – CNPq.
7
Poeta, ensaísta, escritor e professor do Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará. Integrou
o Grupo SIN de Literatura.
8
PONTES, Roberto. Poesia insubmissa afrobrasilusa: estudo da obra de José Gomes Ferreira, Carlos Drummond
de Andrade e Agostinho Neto. Edições UFC, Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1999.
9
RAMOS, Guerreiro. Introdução à cultura. Rio de Janeiro: Cruzada da Boa Imprensa, 1939.
10
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
11
WILLIAMS, 1979, p.125
32
muito própria, sua alma, sua história e seus valores. Patativa do Assaré, considerado um dos
principais trovadores nordestinos, poeta de origem humilde e pouco escolarizado, revelou e
divulgou a poesia de cordel para o mundo através da sua poética marcada por traços de
oralidade, sendo um verdadeiro artesão da palavra falada numa linguagem matuta e
impregnada dos resíduos medievais. Este poeta sertanejo conseguiu descrever, liricamente, o
“prazê12 e o sofrimento” da vida no campo, denunciar as desigualdades sociais e a corrupção,
enaltecer valores como honradez, lealdade e disposição para o trabalho, dentre outras
temáticas populares, sempre de modo simples e, simultaneamente, profundo.
O que impulsionou a realização deste artigo foi perceber a grandeza e importância da
poética cordelista de Patativa, uma vez que notada a semelhança com a época medieval,
através de seus resíduos culturais e literários, inseridos nos estudos de Literatura Comparada e
Popular em verso. Sua poesia será evidenciada por meio de pesquisa bibliográfica, destacando
para a sociedade, em especial, ao povo brasileiro, a significância e importância de uma
literatura vinda do povo e para o povo. Ainda que muitos os artistas mereçam tal destaque no
meio acadêmico, o poeta de Assaré, doutor13 em várias universidades, traduz a simplicidade
em versos e faz brilhar os olhos de quem o lê. O foco deste artigo está em investigar, com
base na Teoria da Residualidade, quais resíduos culturais e literários da mentalidade medieval
se encontram presentes nas poesias deste matuto cearense. A referida teoria parte do
pressuposto de que assim como na natureza nada se perde, tudo se transforma, então, na
Literatura, nada é original, tudo é residual:
12
Escrito à semelhança da forma utilizada por Patativa do Assaré em seus textos, aproximando-se da forma oral
do falar nordestino não culto.
13
Em referência aos títulos de Doutor Honoris Causa recebidos pela Universidade Regional do Cariri (URCA),
Universidade Estadual do Ceará (UECE), Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade Federal de
Sergipe (UFS) e Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN).
32
Mal de amor
14
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São
Paulo: EDUC, 2000.
32
Ainda há, na Idade Média, uma forte ligação do homem com a religião, na qual o
Teocentrismo predominava (Deus no centro do universo). Deve ser ressaltado também que a
arte medieval é essencialmente alegórica, ou seja, procura representar simbolicamente valores
abstratos – a majestade de Deus e autoridades terrenas que o representam, a verdade revelada,
os dogmas, os símbolos religiosos. Muito dessa forte tradição religiosa que é vista em canções
de amor e amigo, em roga ou agradecimento a Deus ou ao divino, identificamos também nas
poesias de Patativa, o que podemos definir como parte de um ciclo15 religioso.
Outra observação interessante em relação à poesia “patativana” está relacionada ao
protesto que é feito através dos seus textos, assemelhando-se a um modo poético medieval de
origem provençal, o sirventês. O próprio autor da Teoria da Residualidade, Pontes, realizou
um breve estudo16 sobre o sirventês como modo poético na obra de Patativa. A princípio, este
modo consistia numa cantiga elaborada por um sirven (servo) em honra do seu senhor. Com o
tempo, passou a versar a polêmica pessoal, o protesto, assumindo caráter satírico e
moralizante. A investigação sobre a poesia matuta buscará identificar e relacionar
características residuais medievais. Nas poesias17 Meu Protesto (2008, p. 164), A terra é
naturá (2008, p. 154) e No terreiro da choupana (2008, p. 124), encontraremos um tom de
protesto com assuntos que versam desde a defesa de um animal indefeso (o jumento)
passando pelo desabafo de um agricultor apelando para ter um pedaço de “terra pra trabaiá”.
No livro selecionando para este artigo, Cante lá que eu canto cá, verifica-se que há
pouco mais de 100 poesias, todas selecionadas e ordenadas pelo próprio autor, de acordo com
a sua apresentação, feita por Francisco Salatiel de Alencar (2008, p. 09). É possível que nem
todas possam ser analisadas de acordo com a Teoria da Residualidade, por isso se faz
necessário um estudo mais aprofundado, averiguando quais serão exploradas e,
posteriormente, comparadas com a escrita da época medieval. Comparar é um procedimento
15
Ainda que os cordelistas escrevam sobre qualquer assunto, há alguns temas que, de tão frequentes, dão
fundamento aos ciclos. A classificação desses temas é muito polêmica, havendo até discordâncias entre os
pesquisadores de Literatura Popular.
16
PONTES, Roberto. “O sirventês como modo poético na obra de Patativa do Assaré”. In PONTES, Roberto;
MARTINS, Elizabeth Dias (org.). Anais [do] VII Encontro Internacional de Estudos Medievais – Idade Média:
permanência, atualização, residualidade. Fortaleza / Rio de Janeiro: UFC / ABREM, 2009
17
Todas inseridas no livro Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador nordestino (2008).
32
que faz parte da estrutura do pensamento do homem e da organização da cultura. Por isso,
valer-se da comparação é hábito generalizado em diferentes áreas do saber humano.
Pode-se dizer, então que a literatura comparada compara não pelo procedimento
em si, mas porque, como recurso analítico e interpretativo, a comparação
possibilita a esse tipo de estudo literário uma exploração adequada de seus campos
de trabalho e ao alcance dos objetivos a que se propõe.” “Em síntese, a
comparação, mesmo nos estudos comparados, é um meio, não um fim.
(CARVALHAL, 1986, p. 7).
através de uma poesia que veio do povo simples, humilde, e retorna para o povo da mesma
forma. Enfim, acredita-se que os resíduos medievais literários e culturais presentes nas
poesias “patativanas” irão contribuir ainda mais para a construção do diversificado legado
cultural brasileiro, em especial, o cearense.
3. OBJETIVOS
Este artigo destaca-se pelo intuito de investigar os resíduos pertencentes à cultura e
literatura medieval nas poesias do livro Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador
nordestino, de Patativa de Assaré, ressaltando a importância da Literatura Popular brasileira.
Como objetivos específicos listamos: analisar as semelhanças entre a cultura medieval
europeia e a nordestina de acordo com a Teoria da Residualidade na obra de Patativa do
Assaré; evidenciar a mentalidade medieval presente em elementos regionais nas poesias
selecionadas de Patativa; comparar características apresentadas na literatura medieval com as
poesias “patativanas” utilizando conceitos da residualidade; ressaltar a importância da
literatura de folhetos, suas concepções, temáticas, ciclos e características da Literatura
Popular em verso dentro da obra de Patativa do Assaré.
4. METODOLOGIA
Para alcançar os objetivos pretendidos neste artigo, foi realizada uma pesquisa
bibliográfica, consultando várias literaturas relativas ao assunto em estudo, como textos
acadêmicos, dissertações, teses e monografias, além de leitura de artigos voltados para a
Residualidade, revistas e periódicos publicados, disponíveis na internet, possibilitando a
fundamentação deste trabalho dentro da abordagem teórica qualitativa, que possui um caráter
exploratório.
A abordagem qualitativa visa o levantamento de dados coletados, neste caso, as
poesias de Patativa do Assaré do livro Cante lá que eu canto cá. Pode-se partir do princípio
de que a pesquisa qualitativa é aquela que trabalha predominantemente com dados
qualitativos, isto é, a informação coletada pelo pesquisador não é expressa em números. Logo,
de acordo com esse amplo conceito, segundo Tesch (1990), os dados qualitativos incluem
também informações não expressas em palavras, tais como pinturas, fotografias, desenhos,
filmes, vídeo tapes e até mesmo trilhas sonoras. Algumas das poesias deste livro estão
gravadas em um LP, Poemas e canções (1979), também existem documentários e vídeos do
autor recitando seus textos mais importantes, ambos poderão ser utilizados para contribuição
desta pesquisa.
33
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Era Medieval deixou seu legado em diversas áreas da vida do homem moderno. O
resíduo medieval na literatura de cordel é encontrado não apenas no poeta de Assaré, mas
também na prosa e mesmo na literatura de transmissão oral. Portanto, faz-se necessário um
aprofundamento deste estudo, detalhando outros modos operacionais da referida Teoria na
poesia deste grande mestre popular cearense. A Teoria da Residualidade fornece uma visão de
mundo bastante ampla e, associada à riquíssima literatura poética de Patativa do Assaré,
evidencia a necessidade de ser estudada com maior profundidade.
REFERÊNCIAS
ABREU, Márcia de. Histórias de cordéis e folhetos, Editora Mercado de Letras. 1999.
33
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 6ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
CÂNDIDO, Antônio. O direito à literatura e outros ensaios. Coimbra: Angelus Novus,
2004.
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 1986.
LAJOLO, Marisa. O que é literatura. São Paulo: Brasiliense, 1981 (Col. Primeiros Passos).
LAKATOS, E.M., MARCONI, M. de A. Fundamentos de metodologia científica. 3ª ed.
São Paulo: Atlas, 1991.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. Ed.
São Paulo: Cortez, 2010.
Revista Historiador Especial Número 01. Ano 03. Julho de 2010. Disponível em:
http://www.historialivre.com/revistahistoriador Acesso em 03 out. 2017.
TESCH, Renata. Qualitative research: analysis types and software tools. Basingstoke: The
Falmer Press, 1990.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e
Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000.
. A literatura e a formação do homem. São Paulo. Ciência e Cultura, 1972.
33
“A HISTÓRIA AO AR LIVRE”.
Monumentos estatuários e o Ensino de História em Praça Pública.
RESUMO: O presente trabalho propõe analisar o ensino de História a partir dos monumentos
estatuários erigidos nas praças de Fortaleza. A possibilidade de interpretação dessas novas
fontes pelos historiadores também estimulou o alargamento das fontes nas pesquisas
escolares. Diante dessa nova perspectiva, a legislação educacional brasileira, mediante os
PCNs, destaca a necessidade de se trabalhar com os diversos tipos de documentos em sala de
aula. Cabe, portanto, neste trabalho, analisar as intencionalidades presentes na construção dos
monumentos estatuários, destacando a finalidade educativa e através desta perceber como a
legislação brasileira propõe os trabalhos escolares a partir dos monumentos estatuários em
aulas de História e como os professores e alunos percebem a importância desta metodologia
de trabalho.
PALAVRAS CHAVE: Ensino de História. Monumentos estatuário. Legislação Educacional.
2
Jornal Libertador de 08 de Abril de 1888.
3
Jornal Libertador de 08 de Abril de 1888.
33
Como já foi mencionado anteriormente, a partir do século XIX surge uma nova atitude
em relação à celebração da memória, que se difunde pela necessidade de formar uma
identidade nacional. A partir deste novo pensamento se faz necessário exaltar a memória dos
grandes heróis e seus grandes feitos e isto deve ocorrer em espaços de socialização e grande
circulação, como as praças.
As finalidades de criação de um monumento podem ser as mais variadas e, dentre elas,
podemos citar: adornar, educar, comemorar fatos históricos e celebrar memórias individuais
ou coletivas. As primeiras esculturas erigidas em praças de Fortaleza foram postas para
embelezar a principal praça da cidade. Tendo, portanto,a função de adorno.
No tocante aos diferentes usos dos monumentos, a função educativa passa a ter grande
importância para os idealizadores dos monumentos. Segundo Catroga (2005, p. 107):
Assim sendo, as homenagens dedicadas aos heróis nacionais são utilizadas como um
instrumento de educação e patriotismo. A função educativa dos monumentos pode ser
percebida tanto no momento de sua elaboração, quando é destacada pelos idealizadores a
necessidade de celebrar a memória para as pessoas de sua época, como nas utilizações e
interpretações realizadas na posteridade, quando os mais variados setores da sociedade se
utilizam da memória já instituída para discutir a história local.
Cabe, portanto, uma análise minuciosa dos monumentos com os quais se pretende
trabalhar, pois a pesquisa dos documentos relativos à criação dos monumentos pode
esclarecer muito de seus significados. Vale destacar que:
A moral religiosa foi substituída pelo civismo, sendo que os conteúdos patrióticos
não deveriam ficar restritos ao âmbito específico da sala de aula. Desenvolveram-
se, nas escolas, práticas e rituais como festas e desfiles cívicos, eventos
comemorativos, celebrações de culto aos símbolos da Pátria, que deveriam envolver
o conjunto da escola demarcando o ritmo do cotidiano escolar.7
Ainda segundo os PCN´s, nas primeiras décadas do século XX, não houve mudanças
significativas no campo metodológico; porém, com o desenvolvimento das propostas
escolanovistas, na década de trinta, outras atividades passaram a ser desenvolvidas em
substituição aos processos de memorização dos conteúdos, tais como: aulas de campo, visitas
a museus, realização de maquetes etc. Essa abertura a novos espaços da memória foi
fundamental para os estudos voltados para o patrimônio.
O movimento escolanovista se desenvolve no Brasil a partir da influência da
pedagogia norte-americana, principalmente a partir das ideias do filósofo John Dewey. Nesta
proposta, a educação é uma necessidade social, nela as pessoas devem ser aperfeiçoadas para
que se afirme o prosseguimento na sociedade, ou seja, para que possam ampliar seus
conhecimentos e ideias. A escolanovista propunha a substituição das disciplinas de História e
Geografia pelos Estudos Sociais, especialmente no ensino elementar. Ainda na década de
trinta, com a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública e da Reforma Francisco
Campos, nome da primeira reforma educacional de caráter nacional, o Estado centralizou seu
poder e o controle sobre o ensino. A educação teve papel importante, pois era usada como
aparelho de dominação do Estado e formadora do sentimento de patriotismo e de bons
cidadãos. Durante o Estado Novo, o Ministro Capanema reformou o ensino secundário: o
mesmo foi dividido em três cursos: o primário, com duração de quatro anos; o ginasial, com a
mesma duração; e o clássico ou científico, com duração de três anos. A formação docente
também passou a ser estruturada a partir das faculdades de Filosofia, Ciências e Letras,
6
BRASIL. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história, geografia /
Secretaria de Educação fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997, p. 20.
7
Idem, p. 21.
33
criadas nos primeiros anos da década de trinta. Nesse contexto, a História tinha como tarefa
enfatizar o ensino patriótico. E para tanto, esta matéria teve sua carga horária ampliada e a
História Geral e a História do Brasil passaram a ser áreas distintas, sendo privilegiada a
História brasileira.
No pós-guerra, a disciplina de História passou a ser fundamental na formação de
cidadãos conscientes de seu papel na sociedade e para tanto foram dedicados novos estudos
para a elaboração da organização curricular e de materiais didáticos. Nas décadas de 50 e 60
se inicia o processo de substituição da disciplina de História e Geografia pelos Estudos
Sociais, projeto que se concretiza posteriormente durante a ditadura militar, com a Lei n.
5.692/71. A tentativa era esvaziar o caráter político e formador de consciência da disciplina e
valorizar o caráter nacionalista e ufanista defendido e controlado pelo regime militar.
Somente durante o processo de redemocratização, na década de 80, é que a História
passou a ser novamente uma disciplina curricular das escolas. Este processo foi fruto das
discussões que estavam centradas nos debates historiográficos e a partir deles surgem novas
abordagens e temáticas para o ensino de História. Portanto, a educação patrimonialsó pode ser
entendida se analisada a partir dos estudos das novas abordagens históricas que surgiram a
partir desse período.
8
Brasil. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história, geografia / Secretaria
de Educação fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997, p. 33
9
Brasil. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história, geografia / Secretaria
de Educação fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997, p. 33.
33
alunos possam saber interpretar a escrita da história, assim como saber ler e interpretar
charges, músicas, filmes, monumentos, e demais testemunhos que possam ser trabalhados em
sala de aula ou em aulas de campo.
Dentre os objetivos de história para o primeiro ciclo tratados na lei é destacado ainda a
necessidade do aluno “identificar alguns documentos históricos e fontes de informações
discernindo algumas de suas funções”10. Neste caso, podemos perceber que não cabe apenas
ao aluno conhecer e conseguir ler o documento, mas também perceber qual a função do
mesmo.
No primeiro ciclo, os eixos temáticos trabalhados são o da História local e o da
História do cotidiano. Ambos são aspectos mais próximos do convívio dos alunos e, portanto,
possibilitam a este realizar, através da observação, comparações para compreender as relações
sociais, econômicas, políticas e culturais do seu tempo, percebendo nele a influência de outras
épocas e outros atores sociais. Em relação ao segundo ciclo, os PCN´s destacam que:
Além disso, os PCN’s fazem referência à necessidade do professor criar para os alunos
situações que estimulem a aprendizagem, para que os mesmos se sintam motivados a
comparar as diversas fontes documentais que devem ser trabalhadas com os alunos no
momento da construção do conhecimento. É neste momento que os alunos podem expressar
suas opiniões a respeito do assunto e criar diferentes explicações para os acontecimentos
estudados, possibilitando assim ao aluno investigar documentos diversos e lançar hipóteses a
respeito de suas interpretações a partir dos dados. Em relação aos objetivos do segundo ciclo,
destacamos em relação ao trabalho com os monumentos a necessidade do aluno “utilizar
diferentes fontes de informação para leituras críticas”12.
A lei destinada ao terceiro e quarto ciclo de ensino também inicia com um breve
histórico da legislação educacional no Brasil. A lei apresenta a área de História como
fundamental para o aluno entender a realidade em que está inserido. Isto se realiza a partir da
análise dos atos de indivíduos e grupos do passado a partir dos estudos de âmbito mais restrito
10
Brasil. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história, geografia / Secretaria
de Educação fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997, p. 40.
11
Brasil. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história, geografia / Secretaria
de Educação fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997, p. 45.
12
Idem, p. 46
34
como no caso do local, até chegar ao mais amplo, relativo à escala mundial. Para realizar esta
análise a lei propõe o trabalho com diferentes fontes e documentos, permitindo-nos destacar a
importância das diferentes linguagens para o ensino de História.
Nessa fase inicial, de caracterização da área de História, a lei não menciona
especificamente os monumentos estatuários como documentos, porém ela o fará
posteriormente em vários momentos quando tratar dos tipos de documentos que podem ser
utilizados pelo professor.
Ademais, nos PCN’s afirma-se que não se aprende história apenas na sala de aula.
Atualmente, temos acesso a uma série de informações em tempo quase que instantâneo nos
mais diversos setores da sociedade em que vivemos e é a partir desses diversos contatos que
temos os primeiros contatos com a História. A partir da observação do meio e do cotidiano
dos ciclos sociais aos quais estão inseridos e dos quais eles não participam, os alunos
percebem vivências variadas, mudanças e permanências nos costumes. A esse somatório de
informações se acrescentam aquelas construídas e adquiridas em sala de aula. Estes
conhecimentos escolares somados aos já apreendidos pelos alunos modificam o senso comum
ou ampliar conteúdos. É, portanto,papel do professor orientar os alunos nesse processo de
aquisição dos conhecimentos escolares e ressignificação dos já aprendidos.
Quanto aos objetivos gerais da História, a lei referente ao terceiro e quarto ciclo de
ensino não difere em relação ao nível de primeiro e segundo, modificando apenas a escrita do
texto, pois destaca a necessidade de “dominar procedimentos de pesquisa escolar e de
produção de texto, aprendendo a observar e colher informações de diferentes paisagens e
registros escritos, iconográficos, sonoros e materiais” 13.
Outro objetivo que não aparecia no ciclo anterior e pode auxiliar nos trabalhos com os
monumentos é o que se refere ao fato da necessidade do aluno “compreender que as histórias
individuais são partes integrantes de histórias coletivas”14. Esse objetivo da lei é
fundamental na justificativa da educação patrimonial por meio do estudo das estátuas, pois é a
partir da análise das mesmas que compreendemos o contexto histórico no qual o indivíduo
celebrado está inserido.
Quanto aos objetivos específicos do terceiro e quarto ciclo do ensino fundamental
destacamos que a lei propõe que ao final de cada um deles, o aluno seja capaz de utilizar
fontes históricas em suas pesquisas escolares. Vale destacar que nesse tópico não é
13
Idem, p. 43.
14
Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: história / Secretaria de
Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1998, p. 43.
34
explicitado que tipo de fontes o aluno deve utilizar, porém no decorrer da lei encontramos a
menção em relação à utilização de fontes variadas e dentre elas o trabalho com os
monumentos estatuários.
Outro tópico da lei que aborda a questão do trabalho com diversas fontes e dentre elas
os monumentos estatuários é intitulado “Orientações e métodos didáticos”. Neste as situações
didáticas propostas pela lei representam as novas teorias da História. Segundo tais teorias tudo
que é produzido pelo homem pode ser considerado objeto de análise histórica, porém a
utilização dessas fontes em sala de aula requer que o professor conheça e trabalhe com
algumas abordagens específicas para o trabalho com cada tipo de fonte selecionada. Outro
ponto a ser destacado é a necessidade de confrontar fontes diversas para obter uma maior
quantidade de informações, sejam elas complementares ou divergentes. Vale destacar que o
documento deve ser analisado a partir do contexto em que foi criado para evitar assim os
anacronismos.
Os parâmetros referentes ao último nível da educação básica são apresentados de
forma mais objetiva, diferentemente, pois, dos níveis anteriores. Os PCN’s do ensino médio
dedicam a área da História apenas algumas páginas, enquanto os dos níveis anteriores são
abordados em forma de pequenos livros. Isto deve estar relacionado ao fato de se acreditar
que os professores já tenham tido contato com a lei dos níveis anteriores.
A apresentação da parte referente à História é precedida pelo debate a cerca da área
onde a mesma esta inserida, ou seja, as Ciências Humanas e suas tecnologias. Assim como
nos PCN’s dos níveis anteriores a lei inicia a discussão do tema a partir de um histórico da
legislação e da educação brasileira, em relação às disciplinas trabalhadas na área. Esse tópico
assim como a parte referente à História é introduzido pela imagem de alunos analisando um
monumento histórico, o que destaca mais uma vez, a importância dos estudos da história a
partir dos monumentos, e, dentre estes, as estátuas, pois nas duas imagens os alunos observam
bustos.
As imagens que ilustram a lei nesse nível de ensino são complementadas por pequenos
textos e, assim, este fato o difere dos níveis anteriores, nos quais são apresentadas apenas
figuras. O texto que complementa a imagem apresentada no início da área dos conhecimentos
de História reforça a importância dos monumentos no ensino desta disciplina. Segundo a lei,
“proporcionar aos alunos o contato ativo e crítico com as praças, edifícios públicos e
monumentos é excelente oportunidade para o desenvolvimento de uma aprendizagem
34
Ao comparar este tópico com os objetivos propostos nos parâmetros dos outros níveis
de ensino, compreendemos que a lei dedica uma maior atenção à análise dos diferentes tipos
de documentos históricos e dentre eles, em especial os lugares de memória, portanto, é
fundamental para o professor tomar conhecimento da lei e desenvolver trabalhos que
envolvam os diversos tipos de fonte e dentre elas os monumentos estatuários em seus
programas de ensino. Como já mencionado, as aulas de campo proporcionam aos alunos uma
maior interação com o objeto de estudo, o que o estimula a construir o conhecimento.
A letra da Lei, portanto, fornece a educação um caminho a seguir, mas não assegura o
cumprimento da mesma nos espaços escolares. Sendo assim, cabe aos professores
15
Brasil, Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares Nacionais: ensino médio /
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnologia. – Brasília: MEC; SEMTEC, 2002, p. 298.
16
Idem, p. 305.
17
Brasil, Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares Nacionais: ensino médio /
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnologia. – Brasília: MEC; SEMTEC, 2002, p. 307.
34
proporcionar aos alunos uma educação crítica que promova a efetivação dos processos de
ensino-aprendizagem, permitindo então aos alunos o seu desenvolvimento intelectual e
pessoal.
Pesquisar, analisar e estimular o processo de ensino-aprendizagem parte do trabalho
do professor, mas só se realiza plenamente se for percebido pelo aluno como algo importante
e necessário para o seu crescimento intelectual e pessoal. Propiciar aos alunos maneiras mais
interessantes de construir o conhecimento são fundamentais para o sucesso do processo de
desenvolvimento intelectual.
Na perspectiva da educação patrimonial, o Monumento Tibúrcio, assim como outros
monumentos históricos de Fortaleza, apresentam-se como fontes históricas importantes para a
construção do processo de ensino-aprendizagem. Pois, ao estabelecer as relações entre as
fontes que envolvem o objeto de estudo o aluno é motivado a interpretá-los, e a partir deles, a
construir o próprio conhecimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Ceará, 1962.
BENEDITO, Francisco. Caminhando por Fortaleza. Destack – Gráfica e Editora, Fortaleza,
1999.
BARBOSA, Liesly Oliveira. A Memória moldada no bronze. O monomento Tiburcio e a
evocação do passado / Liesly Oliveira Barbosa. – Fortaleza, 2006.
BRASIL. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história,
geografia / Secretaria de Educação fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:
terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: introdução aos parâmetros curriculares
nacionais / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1998.
BRASIL, Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares Nacionais:
ensino médio / Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnologia. –
Brasília: MEC; SEMTEC, 2002.
CAMPELO, Glauco. Patrimônio e Cidade, cidade e patrimônio. In: Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro. pp. 117-125.
CATROGA, Fernando. Nação, mito e rito: religião civil e comemoracionismo (EUA, França
e Portugal) / Fernando Catroga. – Fortaleza: Edições NUDOC / Museu do Ceará, 2005.
CUNHA, Maria Noélia Rodrigues da (1990). Praças de Fortaleza. Fortaleza: Prefeitura
Municipal de Fortaleza / Imprensa Oficial do Ceará.
34
RESUMO: No presente artigo nos propomos a refletir sobre a bruxaria, feitiçaria e medicina
popular, bem como a ideia de certa similitude entre as tradicionais benzedeiras e as antigas
bruxas medievais. Sabemos que durante muito tempo estas mulheres, a saber, as benzedeiras
foram tratadas de maneira marginalizadas com a alegação de que seu conhecimento era
informal e, portanto não digno de reconhecimento na sociedade. Porém, se tem nestas
mulheres há muito tempo um ponto de refúgio e alívio para várias doenças e enfermidades, ou
seja, as benzedeiras sempre tiveram um espaço de ação seja na comunidade em que vive nos
bairros ou até mesmo na cidade. Propomos-nos analisar como está ideia da similitude entre
benzedeira e bruxa se propaga, de que maneira se fundamentam a existência de tal ligação e
quais aspectos permeiam estes dois universos.
Palavras chaves: Bruxas. Benzedeiras. Medicina Popular.
INTRODUÇÃO
Dentro do processo de racionalização do mundo, encontramos muitas lacunas a se
pensar, ou seja, o processo de racionalização do mundo nem sempre trouxe clara distinção
entre o mundo sobrenatural, e o conceito de religião. Para tal, emergiram de tal mescla
figuras mitológicas e lendárias como, bruxas, feiticeiras, mulheres que por vezes não era o
que de fato se pronunciava sobre elas. Em tal contexto, pretende-se aqui compreender um
pouco tal conjunto a fim de melhor perceber a diferenciação entre a figura das benzedeiras de
hoje e a ideia de certa similitude entre essas e as antigas bruxas medievais.
1
Graduanda de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA, Bolsista do programa de Educação
Tutorial – História UVA. E-mail: deiziane_maria.lino@hotmail.com
2
Professor adjunto do curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú (Sobral-CE) e líder do Grupo
de Estudos em Residualidade Antigo-Medieval (GERAM-UVA), inscrito no Diretório de Grupos de Pesquisa do
CNPq desde 2016. Presidente da ANPUH-Ceará (Biênio 2016-2018) e Vice-Presidente do SINDIUVA (Biênio
2017-2018). E-mail: titobarrosleal78@gmail.com
34
medieval acreditavam claramente na bruxaria e tinha ela como uma explicação para vários
dos problemas e desastres que vinham a lhes acontecer.
Era uma sociedade que acreditava no sobrenatural, no poder das forças das trevas
e na ação de satã e de seus demônios no mundo. Acreditava também na bruxaria,
que era uma explicação conveniente tanto para as catástrofes naturais súbitas
(fome, epidemias, tempestades, enchentes, destruição de safras e animais) quanto
para problemas familiares recorrentes, tais como impotência, infertilidade, crianças
natimortas e mortalidade infantil. Estes últimos itens explicam por que as parteiras
eram tão frequentemente o alvo das acusações de bruxaria. (RICHARDS,
1998:82)
De acordo com a citação acima a bruxaria vem a ser uma das grandes causas para os
problemas cotidianos do período medievo, o que era pensado e vivido pelos homens da época
tinha muitas das vezes seu surgimento no sobrenatural, principalmente quando se referia a
mortes repentinas, já que os trabalhos dos bruxos medievos eram de mão dupla servia tanto
para construir como para destruir.
Nessa perspectiva, entende-se que o processo histórico da imagem criada da bruxa
medieval emerge de épocas muito distantes dos processos de modernidades. Gilson Xavier
argumenta: “sua imagem é, na realidade, uma construção histórica multifacetada; um
imbricamento de tendências que se estereotiparam em vários momentos históricos”
(XAVIER, 2016: p.123) Corroborando com está assertiva de Xavier e segundo Ellis (1995)
citada por Câmara (2006, p. 224) as mudanças em torno da imagem da bruxa começaram de
forma gradual e aparentemente bem-intencionada. Aos poucos, a medicina tradicional dos
antepassados passou a ser considerada bruxaria pelos que professavam a fé em Cristo,
subestimando, sobrepujando e rebatizando antigos saberes. As pessoas que faziam uso dos
vetustos conhecimentos pré-cristãos como filtros e poções passaram a ser implacavelmente
perseguidas. E com o Cristianismo cada vez mais preponderante, intolerante e imponente,
tornava-se inviável que a mulheres continuassem a agir como sempre haviam agido; não se
aceitava mais que seguissem remediando a vida.
Desse modo, se criar ao longo dos tempos diversos discursos sobre a imagem da
bruxa, ou seja, no século XIX teremos um discurso romantizado, assim como também
teremos um discurso eclesiástico propagado pela cristandade contra todas as práticas pagãs.
Cabendo aqui ressaltar que dentro do contexto medievo a bruxaria era de todo modo para o
discurso cristão, realizado apartir de pactos com o Diabo, desta forma e dentro de tal discurso
o pacto era uma renuncia ao cristianismo, ou seja, “a bruxaria satânica era assim a imagem
refletida, inversa e abrangente do cristianismo, uma fé alternativa” (RICHARDS, 1988: 82)
34
Salienta que o que Richards traz como fé alternativa vem ao encontro do que
procuramos situar neste estudo, já que em meio a tal processo, as práticas curativas, a saber, a
prática da benzedura também se situa neste discurso de uma prática alternativa de cura. Mas é
plausível ressaltar que estamos falando de dois contextos diferentes, um medievo, e um
contemporâneo. Desse modo, busca-se compreender inicialmente, aspectos de tal presença
dentro do contexto medievo, e em seguinda abordar com estas práticas curativas chegam ao
período colonial brasileiro, relacionado às diferentes relações entre os povos indígenas,
africanos, português, que até os dias atuais é possível perceber traços e expressões variadas
destas culturas nas benzedeiras.
Neste sentido, nota-se um discurso religioso repressor da bruxaria, ou de sua crença,
ligada, normalmente, ao mal e a figura do demônio, a figura da bruxa vai se conectando ao da
mulher, da sua sexualidade, do feminino. Para tanto Richards vai falar das orgias sexuais “ As
orgias sexuais indiscriminadas eram parte integrante de seus rituais. Isto reflete diretamente o medo
milenar do sexo no cristianismo, e também destaca a desconfiança e o desagrado em relação ás
mulheres como parte integrante da cultura medieval” (RICHARDS, 1988: 84)
Percebe-se, portanto que no momento histórico que acima nos referimos à bruxaria era
ligada a todas as formas antigas de crenças populares e magia erudita. O que se quer dizer é
que a imagem do feminino, e neste caso, cita-se a figura da bruxa e da benzedeira, que está
em todo caso associada à mulher, foi historicamente determinada pelo universo masculino,
patriarcal e violento, pois, dentro deste universo era desonroso para a sociedade masculina
que a mulher, por si só, tivesse a capacidade de curar, ou realizar algo referente ao mundo
sobrenatural.
Contudo, estas mulheres tornaram-se alvo de perseguições e discussões freqüentes,
tida com empoderada, e com grande conhecimento empírico, e de seu potencial curador na
idade média, era inaceitável e desonroso para a sociedade patriarcal da época que a mulher
pudesse manipular a natureza cristalizada nas plantas em prol da cura do outro. Assim os
saberes pagãos eram considerados perigosos já que se acreditava que o poder de curar
também poderia levar ao de matar, assim já dizia o autor Peter Burke.
Desta forma estas mulheres iam sendo consideradas ameaça tanto social como
religiosa, pois para além do fator social, elas estariam colocando em risco o incipiente saber
médico masculino, que estava sendo criado, em paralelo com a ascensão do cristianismo, que
no período medievo, legitimava-se como a religião oficial do mundo civilizado. Em relação
ao fator social de condenação destas mulheres chamamos atenção para uma questão a da
sexualidade, pois como bem vem dizer Richards, um dos grandes medos a ser temido pelo
34
cristianismo era o sexo, no entanto a mulher era vista como a grande detentora da sexualidade
selvagem. O trabalho o martelo das bruxas de Kramer e Speenger, citado no livro de Jeffrey
Richards traz justamente o sexo como este impulso para a bruxaria: “Toda bruxaria advém do
desejo carnal, que é insaciável nas mulheres” (RICHARDS, 1988: 83).
A ascensão histórica do Cristianismo no período medievo logo relaciona à mulher a
desobediência, neste sentido tudo aquilo que ia contra os dogmas e as regras da Igreja era
preciso ser eliminado, se as mulheres eram vistas com desconfiança pelo Cristianismo, por
suas maneiras de agir em meio à sociedade, e por serem diferentes estas precisaria ser
expurgada, eliminadas, pois, de todo modo era as grandes causadoras do mal. Não
esqueçamos que estamos falando de um período onde o discurso era totalmente patriarcal e
sexista, de um período onde qualquer intriga ou deslizes em suas vidas particulares, em seus
trabalhos ou relações sociais era motivo para a tal acusações.
Para tanto Richards vai complementar dizendo que está visão da mulher como um ser
ruim, demoníaco, era comum na realidade medieval “oficial”. O gênero feminino era tido
como inferioridade, e se mantinha a todo o momento um repúdio ao feminino, uma
inferioridade perpetuamente decretada por causa do pecado original de sua ancestral Eva,
descrita em Gênesis, em que a mulher se deixar seduzir pela força do mal (demônio) para
posteriormente, leva o homem ao pecado. Deste modo a mulher vem a ser a inimiga, fonte do
pecado e dotada de malícia, lascívia, assim sendo vai sofrendo as pressões sociais da época,
sendo perseguidas, oprimidas, rejeitadas, torturadas, punidas e lançadas vivas em suas
fogueiras até a sua morte. Vale ressaltar que para tais extremos havia o Tribunal do Santo
Ofício, instituição essa que se amparava em leis e manuais vindos da Igreja católica e que
defendiam seus interesses. Outra grande marca dolorosa na história é a caça as bruxas dos
séculos XVI E XVII em que se dar um grande extermínio de pessoas acusadas de práticas de
bruxaria.
Com a missão de impedir o avanço do protestantismo e garantir o maior controle da
Igreja sobre a conduta moral e religiosa dos fieis, a Inquisição perseguia e condenava os que
manifestavam simpatia, ou fossem acusados de feitiçaria ou crime de carne. Para tanto quem
colocasse em dúvida os dogmas da igreja era pego pelas garras dos Inquisidores. Tal
inquisição foi responsável por um dos períodos de maior intolerância e repressão da Igreja,
um dos marcos mais sangrento e doloroso contra a humanidade registrado na história.
O que resistiu mais a que se estabelecesse o novo Deus não foram os antigos deuses
pagãos, mais certas práticas ligadas à magia ou a àquilo que o cristianismo chamará
de superstições: culto das árvores, culto das fontes; [...] Convém, contudo, não
esquecê-las. Trata-se de crenças, e às vezes de práticas (LE GOFF, 2017: 21)
Percebe-se assim, portanto que mesmo na Idade Média, e apesar de todo o cuidado da
Igreja com a manutenção do seu domínio, muitas manifestações populares fugiam ao seu
controle religioso. Neste cenário social de imponência, suntuosidade e exuberância da Igreja
Católica, única instituição católica da Europa, surge um amplo movimento de contestação e
35
O repúdio apresentado aos indígenas gera certas determinações e persistência por parte
dos jesuítas em combater certo canibalismo, para isto e já nos primeiros anos da colonização,
os pajés serão os alvos principais dos padres missionários. Aqui está outro ponto em que o
olhar demonológico dos jesuítas vai se intensificar sobre os nativos, as práticas mágico-
religiosas dos gentios, cujos protagonistas principais eram os pajés, era de todo modo a
grande figura indígena. Carlos Alberto Miranda vai dizer “O pajé era um misto de profeta e
médico que estabelecia o contato entre o mundo dos homens e dos espíritos.” (MIRANDA,
2004: 196).
Podemos assim dizer que os jesuítas foram os primeiros a trazerem a arte médica para
as terras brasileiras, no entanto com o passar do tempo, foram surgindo os demais
profissionais que exerceram a medicina no Brasil colonial, foram, predominantemente, os
físicos, os cirurgiões, barbeiros, boticários, que aqui chegam com as expedições. Por outro
lado já temos aqui aqueles que praticavam a cura por outros meio, ou seja, curandeiros,
benzedeiras, que tinham um meio próprio de controlar suas enfermidades. Entretanto a
inquisição e o ensino dogmático dos jesuítas criaram sérios obstáculos aos avanços dos novos
conhecimentos científicos, vários foram os fatores das dificuldades médicas no Brasil
colonial, podemos citar: a inexistência de profissionais na área, desinteresse dos portugueses
em vim para o Brasil e principalmente a proibição do ensino superior na colônia. A presença
de médicos na colônia se deve em muitos casos ao Santo Ofício que os obrigou a virem para o
Brasil, de todo modo, se viu antes da emergência da clínica e do ensino especializado, nessas
terras a possível cura para os males através das ações do curandeiro e práticos de parcos
conhecimentos.
Somente após a chegada da Família Real e sua corte no ano de 1808 é que se terá a
institucionalização do saber Médico no Brasil. Já no ano de 1808 duas escolas de cirurgia será
construída em solo brasileiro, uma na Bahia e outra no Rio de Janeiro. Mais tarde e já no ano
de 1832 chega às faculdades de Medicina. No entanto antes do estudo oficial da arte da cura,
35
já existia nos séculos anteriores diversas outras formas e personagens que a seu modo buscava
tratar o doente e as doenças. Para tanto quando os primeiros profissionais da saúde chegam
ao Brasil se deparam com os curandeiros, aquém os mesmos vão dizer que não estavam
habilitados para o exercício da prática médica. No entanto, as críticas acerca da ação de cura
dos curandeiros não se relacionam aos religiosos, recaindo, principalmente sobre os
“empíricos”. Que em grosso modo, esses eram homens e mulheres que praticavam suas curas
baseadas em suas experiências com ervas, e orações. E como bem ressaltar Ana Carolina
Viotti, no período colonial terá uma existência de uma medicina plural e heterogênea, onde
temos: o mito de empirismo e o conhecimento acadêmico, a utilização de materiais diversos
em prol da cura, desde excrementos a simpatias, se referindo as prescrições de plantas nativas
para sana as enfermidades. (VIOTTI, Ana Carolina, 2012: 12-15).
Em torno das práticas terapêuticas da época surgiram muitos relatos, aguçando o
imaginário em diversas épocas diferentes. O confronto que se estabeleceu entre a medicina
científica versus a medicina “rústica” e empírica herdada de gerações passadas, pelas muitas
mulheres que detinham o uso deste conhecimento, aflorar nossa imaginação até os dias atuais.
É plausível apontar que o imaginário da mulher como portadora do mal, como a detentora de
conhecimentos, referente à bruxaria, tem data marcada na história, se constituindo como um
dos marcos mais marcantes da História, denominada História Medieval. (CÂMARA, 2016:
221-230). As ações destas mulheres eram resultado de um discurso normatizador, oriundo das
tradições portuguesas e européias transplantadas para a colônia. Em uma trajetória de
múltiplas fases, os papeis desempenhados, assim como suas ações principalmente no caso das
mulheres pobres poderiam caracterizar um modo de resistência, no qual sua sobrevivência
estava em jogo, devida ás circunstâncias do contexto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Gilson Xavier. Das vassouras aos Ramos: o arquétipo das benzedeiras nas
antigas bruxas medievais. Mandrágora, V.21. n.21, 2015, p. 119 – 133. Disponível em:
https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/MA/article/viewFile/5125/4853
CÂMARA, Yls Rabelo. Das bruxas medievais ás benzedeiras atuais: A oralidade como
manutenção da memória na arte de curar – pesquisa Exploratória. Revista do GT de
literatura oral e popular da ANPOLL, BOITATÁ, Londrina, n. 22, jul – dez 2016.
35
MIRANDA, Carlos Alberto Cunha, A arte de curar nos tempos da colônia: Limite e
espaços da cura. Recife: Fundação de cultura cidade do Recife, 2004, 487p.
SOUZA, Laura de Melo. O Diabo na Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia de
Letras, 2005.
VIOTTI, Ana Carolina, As práticas e os saberes médicos no Brasil Colonial (1677 – 1808)
– Franca: [s.n], 2012.
35
“A ESCRITA DA HISTÓRIA”:
GUIA POLITICAMENTE INCORRETO DA HISTÓRIA DO BRASIL.
Resumo: A partir da História Pública que tem se configurado como um amplo espaço de
discursão e debate acerca dos usos das narrativas populares de passado, procuramos colocar
em perspectiva reflexões quanto aos abusos e apropriações da Historiografia, frente às novas e
crescentes demandas por História pelo público leigo, demanda que é suprida por profissionais
sem formação, como é o caso do jornalista Leandro Narloch em sua obra Guia Politicamente
Incorreto da História Brasil, que ao tecer sua narrativa do passado desconsidera processos
históricos, sob uma visão factual, repleta de anacronismos e preconceitos, deixando claro seu
objetivo em detratar e desconstruir o que ele chama de “historiografia politicamente correta”.
Nesse sentindo, torna-se fundamental compreender como tal narrativa é construída.
Palavras-chave: Guia Politicamente Incorreto. História Pública. Abuso da História.
Introdução
A História Pública tem movimentado discussões surpreendentes sobre o alcance,
divulgação e a produção de historiadores como também de não historiadores; como é o caso
da obra Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil (2009), do jornalista Leandro
Narloch. Ao expressar claramente sua rejeição quanto à produção acadêmica, Narloch ressalta
que sua obra tem o objetivo de reunir histórias que vão diretamente contra o que ele chama de
“historiografia politicamente correta” e ainda “enfurecer um bom numero de cidadãos”
(NARLOCH, 2009, p. 25).
Nesse sentido, torna-se fundamental analisar como é construída tal narrativa, a fim de
problematizar o papel social e a responsabilidade na escrita dessa história produzida, haja
vista que, na contemporaneidade vivenciamos o que Malerba (2014) chama de “entusiasmo
pela história viva”. Para tanto, realizaremos um estudo sobre as fontes e informações que o
autor traz em seu livro, destacando escolhas historiográficas, utilização e abordagem das
fontes.
É nítido no trabalho de Narloch, apresentado no prefácio do livro, que seu objetivo é
investir contra o trabalho dos historiadores, de professores, livros didáticos, considerados por
Graduanda do Curso de Historia da Universidade Regional do Cariri – URCA/CE. Bolsista de Iniciação
Científica – PIBIC (CNPq). isadora77ll@gmail.com.
Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É professora adjunta da Universidade
Regional do Cariri URCA. sonia.meneses@gmail.com.
35
ele militantes, e propor uma narrativa da História que longe de problematizar os processos
históricos, afasta-se do rigor da pesquisa Historiográfica.
Promover discussões sobre a obra de Narloch significa pensar ainda, em como a
História e a Historiografia estão sendo apropriadas no tempo presente, e como os discursos
sobre memória, lembrança e esquecimento são apresentados. Antoon De Baets em seu artigo
A theory of the abuse of History, é enfático ao escrever que “é a história que pode sofrer
abuso, não o passado”, a escrita do passado influencia o presente, o futuro e a formação da
consciência histórica, por isso a importância do rigor científico e metodológico da pesquisa,
pois o abuso da História sempre provoca danos.
Embora a prática seja muito anterior, muitos autores já mostraram como o conceito
de “história pública” surgiu com a grande crise de empregos da década de 1970
nos Estados Unidos, quando o historiador Robert Kelley, entre outros, procurou
conceituar esse fenômeno do surgimento (ou da criação!) de carreiras ou de um
potencial mercado de trabalho alternativos à carreira acadêmica para
historiadores que não conseguiam ingressar nos postos das universidade.
(MALERBA, 2014, p)
O termo História Pública, abrange ainda muitos outros panoramas “se constituindo
num campo marcadamente abrangente, difuso e mutante” (MALERBA, 2014, p. 28);
apresentando-se de formas variadas à medida que este se manifesta nos diversos cenários
nacionais. Como aponta Jurandir Malerba ao ressaltar as palavras de Jill Liddington e Simon
Ditchfield
Nesta “era Harry Potter”, a rentabilidade dos livros que entretêm supera em muito
a qualidade dos livros que educam, com base na profecia autorrealizável de uma
35
indústria editorial guiada pela oferta, indústria essa determinada a demonstrar que
há pouca demanda do público por estudos sérios. Essa mentalidade de mercado de
massa atinge o seu pico durante grandes aniversários, quando o impacto intelectual
de livros produzidos por especialistas acadêmicos é superado pelo apelo comercial
de livros escritos por jornalistas. Sobrecapas encantadoras alardeando um livro de
importância exagerada muitas vezes disfarçam a decepção de títulos errados,
simplesmente se acrescentando “A verdadeira estória” (FAUSZ 2007, p. 576-581
apud MALERBA, 2014, p. 36).
Seguindo a fórmula sob a qual o termo public history (com suas diversas traduções)
se consagrou, tendemos em um primeiro momento a compreender a história pública
como uma prática eminentemente voltada àquela “divulgação histórica” a que
aludimos; e, de fato, a produção de matérias para circulação e consumo de uma
audiência mais ampla que nossos pares acadêmicos consiste em uma das
modalidades mais nobres. Entretanto, os sentidos atribuídos à história pública
contemplam também os engajamentos (muitas vezes conflituosos, mas ainda assim
instigantes) entre o historiador e a produção acadêmica, de um lado, e os diletantes
e seus trabalhos que respondem a demandas próximas e imediatas de outro.
(MAUAD, ALMEIDA, SANTHIAGO, 2011, p 12)
bondade, só virtudes dos considerados vilões. Alguém poderá dizer que se trata do
mesmo esforço dos historiadores militantes, só que na direção oposta. É verdade.
Quer dizer, mais ou menos. Este livro não quer ser um falso estudo acadêmico,
como o daqueles estudiosos, e sim uma provocação. Uma pequena coletânea de
pesquisas históricas sérias, irritantes e desagradáveis, escolhidas com o objetivo de
enfurecer um bom número de cidadãos. (NARLOCH, 2009, p. 25)
Esses discursos preconceituosos sobre o passado, “não são fruto de análise, mas de
juízos de valor metodologicamente mal conduzidos, ao produzir obras de cunho histórico que
só servem para deslegitimar a historiografia” (SANTHIAGO, 2011. p.29-30). A escrita do
passado influencia o presente e nossa perspectiva de futuro, promover uma cultura
negacionista, que desconsidera processos históricos, pluralidades temporais, etc. significa ir
contra os debates e políticas de inclusão, por exemplo.
36
O que importa nelas não é contar ou explicar a história, mas impor um conjunto de
preceitos morais a partir do que se considera (moralmente) certo e errado, ou
(politicamente) correto ou incorreto. Narloch, provavelmente sem consciência
disso, retoma uma modalidade de escrita histórica antiga, anterior à construção da
história como ciência no século XIX, baseada na escrita rápida, alegórica e
normativa, garimpando na historiografia episódios picarescos que corroborem suas
36
Nesse sentido, ao utilizar um bom número de fontes historiográficas, vemos uma falta
de preocupação com o rigor metodológico da pesquisa, essencial para o desenvolvimento de
um trabalho ético e responsável na escrita da História.
Chegamos então a um ponto crucial para este trabalho, a escrita da História. Que nos
remonta a um questionamento importantíssimo: Quais os impactos desta produção para a
historiografia e para a formação da consciência histórica? Para nos auxiliar nessa análise e
reflexão recorremos então ao historiador Antoon De Baets que escreve sobre algo que esta
intimamente ligada a produções como a de Narloch, o abuso da História.
Escreve De Baets. Aos:
Fica evidente, que a História mais do que uma construção discursiva, reflexão e
problematização sobre o passado, tem papel importante na construção de nossas relações com
o outro, sobre nossa memória, posicionamento e engajamento político social, na naturalização
ou não de preconceitos, na legitimação dos direitos e deveres de cada sujeito social, etc. Indo
ao encontro a de nossa forma de ser e estar no mundo.
Quando analisamos a construção da narrativa do índio colonial apresentada por
Narloch, por exemplo, destaca-se em seu discurso o preconceito eurocêntrico no tratamento
do tema. Nesse caso, a historiografia é utilizada para legitimar uma narrativa da história que
em nada se aproxima da reflexão proposta pela obra dos autores citados por ele. Nessa
perspectiva, De Baets escreve ainda que:
Ainda sobre a escrita da História e como as discursões que a envolvem são caras para
a análise crítica, somos levados as palavras do historiador Antoine Prost em seu livro Doze
lições sobre a história, em que o autor escreve:
O historiador não exige que as pessoas acreditem em sua palavra, sob o pretexto de
ser um profissional conhecedor de seu ofício - embora esse seja o caso em geral -,
mas fornece ao leitor a possibilidade de verificar suas afirmações; o “método
estritamente científico a utilizar na exposição” (PROST, 2008, p, 55)
Considerações finais
Neste artigo nos propusemos colocar em perspectiva o tema da escrita e do abuso da
História sob às luzes da História Pública, que tem se consolidado como uma área de reflexão e
debate acerca das apropriações e usos do passado feitos com, para e pelo público. Tomando
como exemplo a obra do jornalista Leandro Narloch (2009), intitulada Guia Politicamente
Incorreto da História do Brasil, em que o autor tece sua narrativa ao se apropriar da
historiografia disponível, com vistas legitimar sua própria abordagem da História, marcada
por distorções, preconceitos em muitos sentidos, anacrônica. Destaca-se ainda a falta de
responsabilidade social na produção de informações sobre o passado.
Nessa ótica, nossas reflexões foram estimuladas pelos historiadores brasileiros
Jurandir Malerba (2014), Ana Maria Mauad, Juniele Rabêlo e Ricardo Santhiago (2016); pela
historiadora britânica Jill Liddington (2011), pelo historiador belga Antoon De Baets (2013) e
ainda pelo historiador francês Antoine Prost (2008).
Desse modo, somos chamados a partir da discursão proposta por esses autores a nos
debruçarmos sobre a análise e problematização em torno da nova conjuntura, em que a
demanda do público por História, tem gerado narrativas populares do passado, que a exemplo
do Guia refletem claramente o despreparo, abuso e desleixo para com a Historiografia; ao
desenvolver narrativas que não buscam problematizar, pelo contrário, intentam contra o
36
Referências
DE BAETS, Antoon. Uma teoria do abuso da História. Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 33, nº 65, p. 17-60. 2013.
MALERBA, Jurandir, Acadêmicos na berlinda ou como cada um escreve a História?:
uma reflexão sobre o embate entre historiadores acadêmicos e não acadêmicos no Brasil
à luz dos debates sobre Public History. Hist. Historiogr. Ouro Preto, 2014.
NARLOCH, Leandro. Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil. Editora Leya,
São Paulo, 2009.
PROST, Antoine. Doze lições sobre a história, Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2008.
SANTHIAGO, Ricardo. Duas palavras, muitos significados: Alguns comentários sobre a
história pública no Brasil. In: MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele Rabêlo de;
SANTHIAGO, Ricardo. (Org.) História pública no Brasil: Sentidos e itinerários. São
Paulo/SP: Letra e voz, 2011.
36
Resumo: Este artigo visa analisar as relações sociais, jogos de poder e interesses em torno da
proposta de uma linha de carros puxada a cavalos entre as vilas de Icó e Aracati no Ceará, sob
a justificativa de melhorar o transporte de pessoas e de mercadorias, do interior da província
ao litoral pela chamada Estrada Geral do Jaguaribe, discutido entre 1857 a 1861. Baseado nas
discussões acerca dos projetos oriundo do ideário progressista/ modernizador, que tornaram-
se a principal discussão sobre o interior do território cearense, na segunda metade do século
XIX.
Palavras chave: Sociedade União Cearense. Pedro Théberge. Modernidade.
Introdução
Na segunda metade do século XIX, projetos de cunho modernizadores tornaram-se a
principal discussão sobre o interior do território cearense. Influenciados pela cultura europeia,
e forjada com ideais iluministas e cientificistas, esses projetos tinham como principal
objetivo, atender a nova concepção do tempo positivista da modernidade, que via no futuro
um tempo onde as coisas evoluiriam. Assim, o futuro era sinônimo de progresso, e só seria
alcançado, a partir da superação da natureza (KOSELLECK, 2006).
A construção de estradas para interligar o território nacional Brasileiro, era um dos
principais projetos desse período; o interior cearense no ideário modernista, precisava ser
dotado de uma modernidade como os outros espaços brasileiros. Como explica Ana Isabel C.
Reis, “os ritmos desse progresso foram colocados em função da agilidade com que as tarefas
politicas do império brasileiro pudessem alcançar as mais longínquas regiões do território”
(REIS, 2017: p. 125), assim, as estradas eram projetadas visando à centralização
administrativa do país.
Nessa mesma perspectiva, acreditava-se que as estradas cearenses, facilitariam a
movimentação no interior território, demostrando uma maior efetivação do “poder” do
homem sobre a natureza e o espaço. Surgia ai, além de uma nova concepção de tempo, uma
nova concepção também do espaço. O relatório provincial do Ceará de 1867, demostrava uma
preocupação em dominar estes conceitos; para eles, as estradas eram traçadas “segundo as
regras da arte moderna da fadiga dos viajantes, encurta as distancias, poupa o tempo” 1. Essas
estradas ainda contribuíam, para a circulação de produtos e da economia entre os centos
urbanos cearenses.
Localizados, assim como as estradas, em locais estratégicos esses centros urbanos
auxiliavam no domínio territorial, uma vez que “a articulação eficiente do território – da
Nação, da região e ou da cidade – seria formulada como uma questão-chave para a
estruturação da economia e da sociedade” (DANTAS, FERREIRA, & SIMONINI, 2011: p.
87). É nessa perspectiva que surgem trabalhos cartográficos 2, que visavam contribuir para a
formação de um Estado territorial no Ceará, e garantir uma consciência e um domínio do
território cearense.
Nesse artigo, destacamos para analise a proposta de uma linha de carros puxada a
cavalos entre as vilas de Icó e Aracati, sob a justificativa de melhorar o transporte de pessoas
e de mercadorias do interior da província ao litoral, pela Estrada Geral do Jaguaribe. Projeto
proposto por Pedro Théberge ao presidente da província do Ceará, e discutido entre 1857 a
1861, como um dos projetos modernizadores que surgiram no decorrer do século XIX. Assim,
a partir da analise em torno da Sociedade União Cearense3, objetiva-se compreender as
relações sociais, jogos de poder, interesses e conflitos em torno dos envolvidos nesse projeto,
oriundo do ideário progressista/ modernizador.
1
Relatorio de presidente de provincia, 1867, p.25.
2
Ver mais em: MÁXIMO, Maria Leopoldina D. & REIS, Ana Isabel R. P. C. A Cartografia de Pedro Théberge:
Modernização do Espaço Territorial do Ceará no Século XIX. Anais do I Seminário Nacional de História dos
Sertões e II Colóquio de História Social dos Sertões, 2018.
3
A proposta da Sociedade União Cearense, aparece pela primeira vez no relatório de presidente da província do
Ceará em 1857, no qual recebeu da “assembléa o privilegio por 20 anos” para incorporar a empresa, - tempo que
nos anos seguinte diminuiu para três – no ano de 1858 o Jornal Pedro II publicou o “Protecto D´estatutos da
Companhia União Cearense”, em que Pedro Théberge apresentou a empresa e buscou acionistas, entretanto, o
projeto nunca passou de uma proposta.
36
Abrir estradas boas perduráveis entre os pontos principaes da província, não como
se tem usado ate hoje, por curiosos ou afilhados a quem se quer favorecer; mas sim
debaixo da direção de engenheiros, ou pessoas habilitadas nesse genero de
construcçoes todo especial [grifo meu]. 5
Desta forma, elas deveriam ser mais que algo obsoleto, feito de qualquer forma, elas
deveriam, ser feita por pessoas profissionais e seguir ‘as regras da arte moderna’; as estradas
eram assim, “concebidas numa ideia de controle da natureza através do domínio do espaço e
do tempo” (REIS, 2018: p. 69), onde diminuir as distancias figurativa e literalmente fazia
parte dos objetivos do governo imperial, de se fazer presente até mesmo nos lugares mais
afastados.
Nessa compreensão, era necessário conhecer e dominar o território, o que contribuía
diretamente para efetivação do poder sobre o espaço, desta forma, “dominar o território
significava, entre outras coisas, diminuir distancias para que o poder pudesse circular com
mais facilidade” (RAMOS, 2012: p.108). Assim, as estradas possuíam outro objetivo,
centralizar o poder imperial a partir da unidade territorial procurando facilitar as tarefas
politicas do governo, o que por sua vez, contribuiria para a construção da nação brasileira que
estava em curso naquele momento.
Gostaríamos de destacar aqui, a estrada geral do Jaguaribe, que “partia de Aracati,
principal porto da Capitania, descia o rio Jaguaribe, passava em Russas e Icó e seguindo o rio
Salgado ultrapassava a chapada do Araripe para alcançar os sertões do Pernambuco em
direção à Bahia” (JUCÁ NETO, 2007: p. 241); essa estrada configurava-se, como a mais
importante ligação entre o interior e o porto cearense, uma vez que, levava e trazia toda a
produção dos cetros urbanos à margem do Rio Jaguaribe.
4
Relatório de presidente de província, 1850, p.25.
5
Diário do Pernambuco, 07/01/1861, p. 02.
36
As ribeiras dos rios cearenses eram vistas como localidades propicias para a
construção de estradas. Segundo Studart Filho, “cada rio e riacho possuiu, desde cedo, a sua
estrada de ribeira, desenrolando-se ora por uma, ora pela outra margem, da foz às cabeceiras”
(STUDART FILHO, 1937: p.29), essas estradas eram localizadas em pontos estratégicos ao
longo território, demostrando que o espaço havia sido conquistado e dominado; como explica
Regis Lopes, “o predomínio da natureza correspondia à falta de poder publico” (RAMOS,
2012: p.103), assim, estas estradas garantiam a penetração no território e a circulação da
economia.
Mas, se na segunda metade do século XIX os projetos voltaram-se para a estrada em
linha reta, que deixava de lado a necessidade de seguirem o curso dos rios, com o intuito de
“conseguir brevidade nas viagens pelos caminhos do território cearense” (REIS, 2017: p.124)
através da superação da natureza, por outro lado, surgiram discursos como o de Pedro
Théberge, que em seu artigo publicado em 1861, se mostra contra esses projetos:
Julgo dificílimo, para não dizer quasé impossível, no estado presente da provincia,
nem mesmo daqui á muito tempo, abrir estas estradas, com suficiencia de permitir
em transito facil e commodo aos productores do centro, a não seguir-se as margens
de algum grande rio [grifo meu]6
Para ele, não fazia sentido, deixar de lado uma estrada que “a natureza ministrou”7,
por uma mais dispendiosa. Como explica Ana Isabel C. Reis, “o relevo acidentado alterava o
comprimento da estrada” (REIS, 2017: p.131) assim, os carros perdiam velocidade ao passar
pelo que Pedro Théberge denominou de ‘estradas ingratas’. Pedro Théberge, ao usar como
exemplo a estrada de Crato para Icó explica, “ninguém transita por ella; um único carro se
atreveu a segui-la, para nunca mais”8. Théberge não foi o único a considerar essa estrada
como ineficiente, existia uma discussão em torno da construção da estrada e o melhoramento
da que existia na ribeira do Rio Salgado. 9
Contudo, os projetos em tornos das estradas, estavam inexoravelmente associados ao
poder sobre espaço. Essas estradas definiam de certo modo, o rumo do comercio cearense e
dessa maneira, o poder econômico dos centros urbanos, assim, estavam envolvidos nesses
projetos, jogos de poder e interesses da elite dessas localidades.
6
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
7
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
8
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
9
Ver mais em: REIS, Ana Isabel R.P.C. O Sertão em Linha Reta: Tempo e Espaço na Produção do Ceará
Moderno. In: CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes & NEVES, Frederico de Castro. (orgs). Capitulos de historia
social dos sertões. Fortaleza, CE: Plebeu Gabinete de Leitura Editorial, 2017, p. 124-139.
37
Pela a Estrada Geral do Rio Jaguaribe, percorria parte do comercio do sertão cearense,
o Rio correspondia à metade do estado, ocupando uma área de 72.000 km ligando o Ceará a
outras províncias do norte. As cidades que ocupavam as margens do rio Jaguaribe eram
banhadas por um forte poder econômico, uma vez que, o processo de construção dessas vilas
estava associado à “constituição dos fluxos das boiadas no sertão nordestino” (JUCÁ NETO,
2007: p.43), com o objetivo de estabelecer um maior controle sobre o espaço e circulação da
economia. Nesse sentido, destacamos para analise as vilas de Icó e Aracati.
Do sertão ao litoral
Diretamente associada à economia pecuarista cearense e aos caminhos das boiadas,
essas vilas sugiram a partir da necessidade de “homens e animais careciam naturalmente de
repouso e de alimento. Quebrando a monotonia daquellas ermas estradas setecentistas,
surgiram assim ranchos, vendas e bodegas, primeiras manifestações de muitos hodiernos
povoados sertanejos” (STUDART FILHO, 1937: p.34), e como uma forma de o governo
colonial se fazer presente no sertão cearense.
Nesse processo, são criadas vilas como Icó (1736) e Aracati (1748), que se
configuravam como centros econômicos no território cearense por dois principais motivos;
primeiro, elas se encontravam na ribeira do rio Jaguaribe, principal estrada que interligava o
interior cearense, ao porto de Aracati, onde chegava mercadorias que seriam levadas e
comercializadas nas cidades sertanejas cearenses, que no processo inverso, levava
mercadorias desses lugares para o porto que as escoavam. Esse processo, fazia de Aracati “a
mais opulenta da capitania, de mais população dentro da villa, e aonde se acham cazas de
sobrado; o que é devido a ser o ponto de embarque das produções dos algodões e solas do seo
termo.”10
Já a vila de Icó, era o centro econômico, e ponto de intersecção entre as cidades do
interior e o porto de Aracati. Descendo pelo o rio Salgado até a Chapada do Araripe, fazia
conexão com o Crato que a considerava o “interposto comercial do cariri” 11, e pelo rio São
Francisco, conectava-se com Piauí e Pernambuco; essa maior proximidade, possibilitava aos
“fazendeiros localizados nas proximidades do Icó uma vantagem sobre os demais da
Capitania do Ceará” (JUCÁ NETO, 2007: p. 245), esses produtos, passando por Icó, voltavam
10
PAULET, Antonio José da Silva. Descripção Geográfica Abreviada da Capitania do Ceará. 1898, p.13.
11
O Araripe, 16 de outubro de 1858, p. 01.
37
mais uma vez para Aracati, que era “o porto de desembarque dos gêneros, que de Pernambuco
vem para este lado da capitania” 12.
Em segundo lugar, ambas tinham papeis importantes na produção das charqueadas,
que no século XIX se configurava como parte importante da economia cearense. No Icó,
comercializava-se uma parte das boiadas que eram carneadas no litoral charqueador, esse
novo tratamento das carnes, possibilitou uma mudança do fluxo comercial na província
(JUCÁ NETO, 2007).
Segundo Silva Paulet, Icó se configurava como o “termo mais povoado e civilizado da
comarca e a villa de muito comércio, em proporção das mais villas”, isso ocorria segundo ele,
devido a “produção dos gados nas duas margens do Jaguaribe” 13, esses gados, eram levados
até Aracati que salgavam e comercializavam, essas carnes, desta maneira, as charqueadas “são
explicadas como a alternativa econômica para o baixo rendimento da comercialização do boi
em pé, [...] e, ainda, como uma solução prática dos fazendeiros do litoral aracatiense
concorrerem com os da ribeira do Icó (JUCÁ NETO, 2007: p.179).
Assim, essas duas vilas, se configuram como os principais núcleos cearenses, uma vez
que até a segunda metade do século XIX, “somente eles até então haviam desenvolvido
funções terciárias, de caráter urbano, no Ceará” (JUCÁ NETO, 2007: p.45). Desta forma, é
possível perceber que a criação dessas vilas, ou a relação que as duas possuíam não foi
aleatória, eram filhas de um projeto mais amplo, que envolvia desde sua criação, as relações
com a província cearense e suas circunvizinhas.
Assim, a cartografia, que “sempre esteve atrelado ao poder, seja para delimitar e
administrar a extensão dos territórios dominados seja para fins de estratégia” (DANTAS,
FERREIRA, & SIMONINI, 2011: p. 89), representava essas localidades nos mapas imperiais,
com o intuito de representar ideias, projetos e interesses sobre o território, reunindo em suas
folhas um tempo e um espaço.
É nesta pespectiva que a Carta chorographica Província do Ceará com a divisão
ecclesiastica, e indicação da civil judiciária até hoje, de Pedro Théberge, apresenta o rio
Jaguaribe com um maior destaque em comparação aos outros rios da província, ressaltando a
importância que o rio teve na economia e politica cearense, mas também, os seus próprios
interesses como morador de uma vila Jaguaribana e ainda, como defensor de seu próprio
projeto, a Sociedade União Cearense.
12
PAULET, Antonio José da Silva. Descripção Geográfica Abreviada da Capitania do Ceará. 1898, p. 13-14.
13
PAULET, Op. Cit, p. 27.
37
Pedro Théberge
Pedro Franklin Théberge era natural de Marcé, França, tendo nascido em 1811. Ainda
em Marcé, sob a vigilância do seu tio, fez seus primeiros estudos, mudou-se para Paris onde
estudou letras, formando-se em 28 de julho de 1832 na Universidade de Paris. Em 3 de julho
de 1837 Pedro Théberge se formou em medicina na mesma faculdade, e nesse mesmo ano
veio para o Brasil com sua esposa, D. Maria Angélica Elyza Théberge. Desembarcou em
Recife, Pernambuco onde clinicou deste ano até 1845. Pedro Théberge abriu o Colégio do
Espirito Santo, que, aos moldes europeus, era destinado às mulheres daquela província,
entretanto, em 1845, com dificuldades financeiras, precisou fechar o colégio, e veio para a
cidade de Fortaleza na província do Ceará, e segundo a revista da academia cearense14, com o:
14
Em 1889 publicou uma bibliografia sobre o mesmo.
15
Traços Biographicos do Dr. Pedro F. Théberge. In: Revista da Academia Cearense, 1898: p. 230.
16
Traços Biographicos do Dr. Pedro F. Théberge. In: Revista da Academia Cearense, 1898: p. 230.
17
O jornal Diário de Pernambuco postou uma carta vinda de Icó que avisava a população de Pernambuco a sua
morte, “não era mão homem e seu modo de proceder aqui foi sempre viver bem com todos os bons, pelo que
viveu e morreu pobre, deixando apenas à sua família, composta por mulher e 3 filhos, um homem honrado”
(Diário de Pernambuco, 27/01/1864, p. 02).
18
Henrique Théberge, herdou do seu pai o gosto pela terra, história e engenharia, estudou na escola militar do rio
de janeiro e formou-se em agronomia, participou como tenente da guerra Paraguai, foi engenheiro da estrada de
ferro de Baturité e da estrada de ferro de Paulo Afonso na Bahia, trabalhou como bibliotecário, sendo um dos
fundadores da academia cearense de letras e depois de aposentado foi gerente da companhia de ferro- carril.
37
19
Mapa disponível na Biblioteca Nacional Digital no seguinte link:
http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=13605.
20
Diário do Pernambuco, 26/04/1861, p. 08.
21
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
22
Pedro II, 07/04/1858, p. 02.
37
Esse trecho do estatuto apresenta dois objetivos importantes, o primeiro, é as vilas que
o transporte interligaria. Como explicado anteriormente, as vilas de Aracati e Icó, se
configuravam como principais núcleos urbanos no território cearense. Esse forte poder
econômico, provinha da sua localização privilegiada as margens do Rio Jaguaribe e da estrada
geral do Jaguaribe que as cortava. Sobre a escolha das cidades de Aracati e Icó Pedro
Théberge explica:
Icó collocada no centro dos sertões empório commercio de todo o interior, não só
desta província, como das suas circumvisinhas; cidade grande, rica, muito
commerciante, populosa, e maravilhosamente collocada para ainda augmentar
prodigiosamente seu commercio; Aracati, porto do mar, o mais importante da
provincia, e o mais frequentado pelas embarcações de cabotagem. [grifo meu]23
23
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
24
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
25
Entre as cidades de Aracati e Icó seriam construídos 18 cercados, protegidos por 36 guardas e haveria 2
Armazéns principais, um em Icó e outro em Aracati. Fonte: Diário do Pernambuco, 26/05/1858, p. 01.
37
Fig. 1: Possível rota da empresa união cearense, ligando as cidades de Aracati e Icó26.
Se por um lado, o Brasil da segunda metade do século XIX tinha como objetivo a
criação de indústrias no território nacional, o Ceará ainda não tinha despertado para esse
processo. Como podemos perceber na carta anônima, enviada da província do Ceará para o
Correio Mercantil em 1857:
Toda a tendência da nossa época é para o industrialismo; essa idéa tem sido tão
repetida por toda parte e por todos os meios de publicidade que poucas pessoas
deve, desconhecer. Entretanto o espirito de empreza e de associação, que é de
26
Fonte: Mapa elaborado pela autora a partir das informações contidas na Carta chorographica da Província do
Ceará com divisão eclesiástica e indicação da civil judiciária até hoje, elaborada por Pedro Théberge. 1861.
Fonte: Mapa disponível na Biblioteca Nacional Digital no seguinte link:
http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=13605 e o Mapa das Estradas Coloniais do Ceará
– 1817. Fonte: JUCÁ NETO, Clovis Ramiro. A Urbanização do Ceará Setecentista: As vilas de Nossa Senhora
da Expectação do Icó e de Santa Cruz do Aracati. Salvador: UFBA, 2007.
37
27
Correio Mercantil, 03/12/1857, p. 02.
28
Correio Mercantil, 03/12/1857, p. 02.
29
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
30
Correio Mercantil, 03/12/1857, p. 02.
31
Relatório de presidente de província, 1858, p. 22.
32
Relatório de presidente de província, 1858, p. 22.
37
que facilitasse o escoamento desses produtos33 para o porto de fortaleza, para eles “a
regularidade de suas viagens animaria a producção, pela certesa de que todos os productos
virão faciomente ao mercado”34 (figura 2).
Fig. 1: Possível rota da empresa união cearense, ligando as cidades de Fortaleza e Baturité 35.
Esta ideia, nunca foi salientada por Théberge, que acreditava que “centralizar na
fortaleza todo o commercio da provincia, e uma verdadeira loucura” 36. Para conseguir a
hegemonia esperada da capital cearense, o governo provincial, decretou medidas que
dificultaria o embarque e desembarque no porto aracatiense, tirando a sua alfandega,
impedindo assim, a entrada direta de navios estrangeiros. Pedro Théberge escreve
ironicamente no seu artigo ao jornal Diário de Pernambuco, eles queriam “um porto para
justificar o nome de porto, como se quis um simulacro de fortaleza para justificar o nome da
33
Sobre estes produtos, “Baturité se destacavam com a produção do café, muito embora produzisse também
algodão” (REIS, 2015: p. 37).
34
Relatório de presidente de província, 1858, p. 22.
35
Fonte: Mapa elaborado pela autora a partir das informações contidas na Carta chorographica da Província do
Ceará com divisão eclesiástica e indicação da civil judiciária até hoje, elaborada por Pedro Théberge. 1861.
Fonte: Mapa disponível na Biblioteca Nacional Digital no seguinte link:
http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=13605 e o Mapa das Estradas Coloniais do Ceará
– 1817. Fonte: JUCÁ NETO, Clovis Ramiro. A Urbanização do Ceará Setecentista: As vilas de Nossa Senhora
da Expectação do Icó e de Santa Cruz do Aracati. Salvador: UFBA, 2007.
36
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
37
capital; assignaturas estas que arruínam o interior para lisonjear a basofia e fanfarronice dos
habitantes da capital”37, para Théberge, o porto natural da província do Ceará era Aracati.
Em 1860, ao completar os três anos cedidos pela província para a implementação da
Sociedade por Théberge, o relatório provincial anuncia, que a associação não ocorreria,
afirmando que “a falta de capitaes na provincia e ainda mais a ausência de todo o espirito de
associação forão talvez os embaraços que suffocarão a idéa tão vantagosa do empresário” 38, e
abrindo para outro empresário, o privilegio para a implementação desta empresa. Em 1861,
Pedro Théberge, afirma que “sem profundos estudos sobre a matéria e conhecimentos
perfeitos das localidades, nada se fará com proveito neste sentindo” 39, explicando que, o prazo
de três anos lhe cedido era curto para a implementação de uma Sociedade como a proposta
por ele.
Considerações finais
Os projetos desenvolvidos durante o século XIX cumpriam um papel social e político,
dentro da nação brasileira, seja com o objetivo de modernizar os espaços brasileiros e
possibilitar a centralização administrativa do país, seja para auxiliar a economia dos centros
urbanos. Tais projetos envolviam uma serie de relações sociais e o estudo destes possibilita-
nos compreender o período de sua produção, e as pessoas envolvidas nela.
As estradas atendiam o objetivo desses projetos, e foram implementadas em locais
estratégicos procurando interligar todo o território nacional, possibilitando que o governo
imperial se fizesse presente em todos os lugares do vasto império brasileiro, demostrando
domínio do espaço e do território. Essas estradas apresentavam um caráter de modernidade e
progresso para o interior do território brasileiro, que necessitava ser tão ‘grandioso’ como os
demais espaços brasileiros.
A Sociedade União Cearense desenvolvida por Pedro Théberge, procurava aproveitar
o espaço cearense, e usar a natureza do território ao favor do melhoramento do “commercio,
que sempre procura suas melhorias”, assim, o comercio “desprezaria estas dispendiosas
estradas por aquella que a natureza ministrou” 40; com uma visão modernizadora pautada em
moldes científicos, a empresa buscava melhorar o transporte de mercadorias do interior
cearense e do porto de Aracati. Ganhando atenção do governo imperial, uma vez que ela não
só melhoraria o funcionamento do transporte cearense, mas também, trazia para o interior
37
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
38
Relatório de presidente de província, 1860, p. 28.
39
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
40
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
37
brasileiro um caráter de modernidade. Desta forma, não é a toa que Théberge ao falar da
empresa, sempre chama atenção para a diminuição do tempo ‘gasto’ durante as viagens, uma
vez que a sua brevidade era fundamental.
A natureza por sua vez, deveria ser utilizada a favor dos homens, entretanto, para que
isso acontecesse era necessário conhecer o território cearense, assim, Pedro Théberge
procurou representar na Carta chorographica Província do Ceará com a divisão
ecclesiastica, e indicação da civil judiciária até hoje o território cearense atualizado,
mostrando suas particularidades, dando ênfase a organização territorial do espaço e a natureza
da província, tornando perceptível a atenção com as serras que circunscrevem o território
cearense, e ainda as que estão dentro desse espaço, como também, os rios que fazem parte
deste entorno.
Assim, Pedro Théberge em seus projetos, apresenta o fato, informando sobre o
território, e a fabula, procurando convencer sobre a modernização do território cearense, que
estava diretamente ligada aos seus interesses. Demostrando que os projetos desenvolvidos no
Ceará no século XIX, longe de ser aleatórios, faziam parte de uma trama de poder, que
colocava em jogo interesses e relações de poder das pessoas envolvidas na sua configuração.
REFERÊNCIAS
Fontes:
Mapas: Carta chorographica da Província do Ceará com divisão eclesiástica e indicação da
civil judiciária até hoje, elaborada por Pedro Théberge em 1861. Disponível em:
http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=13605.
Periódicos: Correio Mercantil (1830-1839), Jornal Diário de Pernambuco (1860-1869), O
Araripe (1850-1869), Pedro II (1840-1889).
Relatórios dos presidentes da Província do Ceará (1844-1889). Disponível em
http://www.crl.edu/brazil/Provincial/cear%C3%A1.
Traços Biographicos do Dr. Pedro F. Théberge. In: Revista da Academia Cearense, 1898.
THÉBERGE, Pedro F. Duas Palavras Sobre as Seccas do Ceará. In: Jornal Diário de
Pernambuco, 1861.
THÉBERGE, Pedro F. Esboço Histórico Sobre a Província do Ceará. In: Revista do
Instituto do Ceará, 1969.
PAULET, Antonio José da Silva. Descripção Geográfica Abreviada da Capitania do Ceará.
In: Revista do Instituto do Ceará, 1898.
38
Bibliografia:
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de Candido Mendes e o “Nordeste” Brasileiro do Século XIX. R. B. Estudos Urbanos E
Regionais, v. 13, 2011.
FURTADO, Júnia Ferreira. O Mapa que Inventou o Brasil. 1. Ed. Rio de Janeiro, São Paulo:
Versal, Odebrecht, v. 1. 452, 2013.
GUIMARÂES, Manoel Luís Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico
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HARLEY, B. Mapas, saber e poder. Confins, n.5, p.1-24, 24 abr. 2009.
JOLY, Fernand. A Cartografia. 10 ed. Campinas: Papirus, 1990.
JUCÁ NETO, Clovis Ramiro. A Urbanização do Ceará Setecentista: As vilas de Nossa
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KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.
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MÁXIMO, Maria Leopoldina D. & REIS, Ana Isabel R. P. C. A Cartografia de Pedro
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2018.
RAMOS, Francisco Régis Lopes. O fato e a fábula: O Ceará na escrita da História.
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REIS, Ana Isabel R. P. C. O Espaço a Serviço do Tempo: A Estrada De Ferro De Baturité E
A Invenção Do Ceará. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-
Graduação em História Social, Fortaleza, 2015.
STUDART FILHO, Carlos. Vias de Communicação do Ceará Colonial. In: Revista do
Instituto do Ceará, Fortaleza, 1937.
38
*Graduanda em História, Bolsista BIC/FUNCAP da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UEVA, e-mail:
maria.lisieux1@gmail.com.
**Prof. Dr. Raimundo Nonato Rodrigues Souza, Curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú –
UEVA.
38
(...) o estatuto de 1375 tinha pois, sua origem, uma série de questões que
impulsionaram a Monarquia à regulamentação do aproveitamento das terras: a
escassez de cereais, pelo abandono das lavouras; a carência de mão-de-obra; o
encarecimento dos gêneros e a elevação dos salários rurais; falta de gado para a
lavoura; o desenvolvimento da criação de gado em detrimento da agricultura; altos
preços dos arrendamentos; aumento dos ociosos, vadios e pedintes.(FERLINI,
1988:164-165.)
No Brasil, ele foi aplicado a partir do reinado de D. João III, junto com a criação das
capitanias hereditárias. No entanto, a adoção do sistema sesmarial requereu mudanças em
suas funções. Era preciso que este estivesse de acordo com as condições das terras, clima, e
administração desenvolvida em terras brasílicas, que se diferenciavam muito das previstas
para Portugal. “As terras desaproveitadas, eram virgens, o termo sesmeiro, antes designador
do funcionário que doava a terra, no Brasil passou a nomear o titular da doação”(FERLINI,
1988:165), e o objetivo de doação das terras não estava mais em produzir alimentos de
subsistência ou repovoamento, mas estava em viabilizar a conquista, a proteção de território e
a colonização.
Caminhando para isto, podemos citar dois pontos que serviram como fatores do
aumento da concessão de sesmarias, o primeiro vem a ser o combate aos índios, que pode ser
percebido desde o início da colonização portuguesa, mas que tem agudização a partir da
entrada pelos sertões, e o outro foi expansão da pecuária do litoral em direção ao sertão.
Rafael Ricarte defende a tese11 que a ocupação do território do Ceará como produto da
concessão de sesmarias para a produção pastoril, também teve como aporte o combate aos
povos indígenas, no sentido de que as concessões se davam também como pagamento dos
serviços prestados na guerra contra os índios.
Compreender a dinâmica e o crescimento da pecuária como fator econômico das
capitanias do nordeste se faz importante na medida que esta estava ligada a conquista, e
consequentemente a ocupação da terra. E apesar da importância econômica observada sobre a
pecuária nos século XVII e XVIII, “inicialmente, esta assumiu um papel de atividade de apoio
aos engenhos de açúcar, como importante fornecedora de alimentação, transporte e força
1
Nessa comunicação temos como base as ideia defendidas por Rafael Ricarte em sua tese, esta busca analisar a
formação de uma elite conquistadora na Capitania do Siará Grande entre os anos de 1679 e 1720, percebendo o
surgimento desta sociedade a partir da dinâmica de conquista da terra, dentro de uma contexto de “afirmação dos
dominios” portugueses, levando em consideração movimentos economicos e politicos para isso. Tal processo
propoem uma defesa do territorio, e em meio a estas relações percebe-se as teias de poderes locais construidas
através das sesmarias concedidas pela participação na guerra justa contra os gentios, perfazendo uma politica de
combate que foi institucionalizada. Assim, o autor a hipótese de que “a efetiva conquista dos sertões e das
ribeiras do Siará Grande foi parte integrante da política lusitana em um contexto de redefinições de hegemonias
imperiais na Europa e nas áreas coloniais e se utilizou da concessão de mercê – tais como: patentes militares,
títulos distintivos, cargos administrativos e, principalmente, sesmarias – como a forma de “recrutamento” de seus
agentes coloniais.”(SILVA, 2016:9)
38
no ano de 1712, todavia esta só começa a aparecer nos registros paroquiais a partir do ano de
1734.22 Um ano antes, em 1733, Antônio Rodrigues Magalhães em cerimonia de batismo de
Margarida, filha do Sargento Mor João Pinto de Mesquita e de sua irmã Tereza de Oliveiras.
A cerimonia acontecia na Fazenda Macacos aos sete dias de dezembro do dito ano.
Diante disso, podemos levantar a hipótese de que a ocupação dos rios, Groaíras,
Jacurutu e Macaco, aconteceu em consonância com o movimento de distribuição e ocupação
de terras da Ribeira do Acaraú, no inicio do século XVIII, no entanto, poucos requerentes
aparecem como ocupantes do território da capitania do Ceará, e além dos pedidos nas ribeiras
do Acaraú, também pedem sesmarias em outras ribeiras. Isso caracteriza uma variável dos
pedidos de sesmarias, o absenteísmo. Temos a presença também das prescrições, terras que
estão sendo solicitadas novamente, pois estavam devolutas.
Referente ao território das margens dos rios com que trabalhamos, encontramos um
número maior de solicitações entre os anos de 1717 a 1743. Os solicitantes, em sua maioria
residiam na ribeira do Acaraú ou em outros locais da Capitania do Ceará. Os locais em que as
sesmarias eram solicitadas descreviam espaços com presença de água, seja nas margens dos
rios ou próximos a poços e riachos. Na petição de Domingo Machado Freire, ele,
Pede 3 léguas de terras, sendo 2 entre uma e outra data, no mesmo rio da Corairas,
começando das testadas dele suplicante, para cima, ou das testadas da data de seus
irmãos para baixo, conforme melhor conta tiver, e uma légua nas ilhargas das datas
dos ditos irmãos, onde chamam Riacho do Batoque. Diz que tem uma data de terras
passada a ele e ao defunto seu irmão, Miguel Machado Freire, de 4 léguas, no
riacho das Grorairas, e entre esta e outra que também pediu o seu dito irmão
defunto e seu irmão José Machado Freire, de 6 léguas, no mesmo riacho chamado
S, Jorge, supõem ficar algumas terras devolutas. 33
2
Na obra de Pe. Sadoc Araújo, Cronologia Sobralense-Volume 1, podemos ter acesso a registros de muitos
acontecimentos datados em Livros de Batismos, Casamentos e cartas que o autor imprime na sua obra como
intuito de escrever a História da Civilização Sobralense. Esta, nos serve também como fonte para pensarmos esta
formação da sociedade cearense. Podmos conferir tais informações nas páginas 70, 147 de ARAÚJO, Francisco
Sadoc de (Pe.). Cronologia Sobralense – Seculos XVII e XVIII (1604-1800). 2. Ed. Volume I/ Fortaleza:
Edições ECOA ,2015.
3
Descrição de território encontrado em uma solicitação de sesmaria nos livros transcritos por Thomas Pompeu
Sobrinho, no livro as Sesmarias Cearenses de 1979. Obs: a visualização das páginas estão prejudicadas por
conta da digitalização das folhas do documentos, devido a isso, não foi possível disponibilizar a página onde se
encontra o documento.
38
Pedem uma légua de terra de mais do que têm pedido pelo riacho que mete no poço
chamado Gogoarasuí, e 1-1/2 légua do que tem pedido para a banda dos morros, e
os do Capitão Rodrigo da Costa, e assim mais algumas sobras que ficam por pedir
na sua mesma data no riacho das Gorabiras por ele abaixo. Dizem que tem uma
data de terras no rio Camocim e lhe ficaram fora algumas terras. (Ver datas n.104,
vol.110) Foi registrada em 22 de junho de 1727.55
Pede 3 léguas de terra de comprido e uma de largo, no riacho dos Bois, pegando
estas a demarcar-se no lugar chamado Gangorra, légua e meia para baixo, com
uma de largo, meia para cada banda. Possui sitio no riacho das Guarabiras,
chamado S. Damião, doado por seu tio, Domingos Machado Freire, no qual
desagua um riacho por nome dos Bois, que deseja haver por data de sesmaria.66
Todas as petições fazem menção ao rio Groaíras e os morros que tem ao seu entorno,
demonstrando que os conquistadores apresentam um certo conhecimento dos caminhos da
região, seguindo a identificação a partir de nomes de morros, riachos e rios, demonstrando a
inicial ocupação a partir do rio Acaraú.
João Gonçalves Melo e Manoel Mendes Franco, no ano de 1724, ao solicitar sesmaria
no rio Acaraú, informam que existem quatro léguas de terras devolutas no Jacurutu há mais de
doze anos sem haver presença de ocupação. No ano de 1734, Manuel Dias Pereira, residente
4
Idem.
5
Idem.
6
Idem.
38
da capitania de Pernambuco, faz pedido de três léguas de terras no Jacurutu, iniciando de onde
acaba o Acaraú. O sesmeiro também informa que entre os rios Groaíras e Jacurutu se
encontram terras prescritas, sendo assim, não ocupadas ou povoadas por 25 anos. A partir
disso, percebemos que havia uma quantidade de terras no Jacurutu já solicitadas, mas em uma
situação de abandono em um período de mais de duas décadas.
No ano de 1735, João Ferreira Chaves descobre no rio do Macaco, um local com
águas e bons pastos para criar gado. No ano seguinte faz pedido de três léguas no dito riacho
do Macaco, e faz observação que nas proximidades das terras de Félix Coelho de Morais,
encontrou mais pastos para criação de gado. Em 1738, João Ferreira Chaves pede três léguas
de terras na Serra do Tamanduá na nascente do Riacho Batoque, e afirma ter um sítio, por
nome Santo Antônio nas proximidades do rio Macaco.
No ano de 1738, Ana Gonçalves Vieira, esposa do dito proprietário do sítio Santo
Antônio pede sesmaria de três léguas no Riacho do Batoque, das testadas das terras de seu
marido até as do Santa Tereza, e afirma que já tem no sítio Santo Antônio uma sorte de
currais e de casas. A partir das petições de terras podemos perceber o avanço do conquistador
e da ocupação por meio da fixação de currais e casas no decorrer dos período de 1720 em
diante. Se analisarmos a distribuição de terras nas proximidades dos rios nas primeiras
décadas do século XVIII, entendemos que não há um movimento de grande ocupação,
existem uma certa quantidade de de terras que se encontram prescritas nas região.
Quando o colono recebesse a concessão para ocupar a terra, ele ficava obrigado a
ocupá-la, e em um período de cinco anos, demarcar a área, ocupar e explorar, e se caso não
realizasse a ocupação e exploração, ela era passada a outro requerente. Era comum que o
sesmeiro realizasse a demarcação da terra, ocupasse e depois realiza-se a solicitação,
legalizando sua situação com a coroa. Nesse sentido, muitas terras foram solicitadas, mas não
ocupadas. Os solicitantes, na maioria das vezes não tinham residência no Ceará, podendo
colocar apenas como ocupante, um vaqueiro. Muitas das terras não ocupadas voltavam para a
coroa como desaproveitas e eram colocadas mais uma vez disponíveis a concessão.
Os interessados em obter a concessão das sesmarias usavam como justificativa os
serviços prestados a coroa no combate contra os “gentios” para alegar o direito de obter com
facilidade as sesmarias. Neste movimento de conflitos sobre a posse da terra muitos colonos
construíram grandes patrimônios através da obtenção de grandes porções de terras.
Nas solicitações de sesmarias das regiões dos rios Groaíras, Jacurutu e Macaco, não se
encontra como justificativa de solicitação da terra o combate ao “gentio”, mas sim o uso da
terra para a criação de gado. Mas acreditamos que isso não exclui a possibilidade de ter
38
havido estes conflitos entre índios e não indios, pois existem muitos materiais e possibilidades
de fontes e sobre a região da Ribeira do Acaraú para serem problematizadas e estudadas.
De modo geral, as produções da historiografia brasileira cearense, podemos citar o
nome de Francisco Pinheiro, Ligio Maia e Rafael Ricarte como exemplo, apontam para uma
releitura sobre a organização social, econômica e também política do Ceará no período de
ocupação, como um produto da violência institucionalizada, cultural e social, na medida que
havia um sistema de colonização que empregava, com violência, a evangelização, a adaptação
do índio aos costumes europeus civilizados, um “discurso construído da indistinta “barbárie”
acerca dos grupos indígenas, funciona como um claro exemplo da violência
generalizada”(MAIA,2010:83). O projeto colonizador português levou a escravização e morte
de uma grande parcela das populações indígenas brasileiras.
Quanto àqueles que traziam o interesse por comercializar a terra e fazer solicitação
desta, é imprescindível apontar que o combate aos povos indígenas e a pecuária, tendo como
justificativa a posse, deu a esses indivíduos a possibilidade de construir e fazer crescer um
poderio econômico, e desta posição, estabelecer redes de poder, as usando para a obtenção de
novos espaços, sejam esses materiais, políticos ou sociais em uma sociedade que estava sendo
edificada. Sobre a construção da elite da capitania do Ceará com relação a posse das terra
através das sesmarias, Ricardo Ricarte diz que,
Assim, cabe destacar que nesta tese entende-se por elite o grupo de sujeitos que
efetivamente participaram do processo de conquista territorial da Capitania do
Siará Grande, receberam sesmarias por esses combates aos indígenas e
constituíram espaços de poder territorial, político e econômico na referida
capitania, chegando ao ponto de interferirem diretamente na organização
administrativa, econômica e jurídica do Siará Grande(...) (SILVA,2016:127)
uma sociedade sertaneja “conquistada” pelos caminhos das águas e também das serras, assim
como constantes conflitos pela terra – é preciso ter em mente que essas “achamentos” de
terras e solicitações se davam de modo amigável. Para tanto, chegamos ao consenso de que a
ocupação e distribuição dessas terras das regiões dos rios a que nos referimos nesta produção
aconteceram de maneira profunda com a expansão e estabelecimento da pecuária trazida do
litoral.
REFERÊNCIAS
FONTES:
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ARAÚJO, F. Francisco de (Pe.) Cronologia Sobralense – Séculos XVII e XVIII – 1604-
1800.2. ed. Volume I. Fortaleza: Edições ECOA, 2015.
MACEDO, Nertan. O Clã de Santa Quitéria. Rio de Janeiro: Editora Renes. 1980.
MAPA 01: BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO ACARAÚ.
BIBLIOGRAFIA:
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das capitanias do Norte (século XVII-XIX). Revista do Instituto de Estudo Brasileiros,
Brasil, n. 58,p. 51-77, jun. 2014. DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i58p51-
77.
ARAÚJO, Francisco Sadoc de (Pe.). Cronologia Sobralense – Seculos XVII e XVIII (1604-
1800). 2. Ed. Volume I/ Fortaleza: Edições ECOA ,2015.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
CARDOSO, Ciro Flamarion. VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de
metodologia. Rio de Janeiro, Campus, 1997.
CORTEZ, Ana Isabel Parente. Os caminhos sertão à dentro: Vias abertas por nativos e
estradas de ribeiras no Ceará no século XVII. Revista Latino-Americana de História, Rio
Grande do Sul. v.2, n. 8, p.141-169, Outubro de 2013.
CARVALHO, Reinaldo Forte. Nas jurisdições do império: espaço e poder na capitania do
Ceará no século XVII. 27. 2013. Natal- RN. Anais do Simpósio Nacional de História:
conhecimento Histórico e diálogo social. 2013.
FERLINI, Vera. Terra, trabalho e poder: o mundo dos engenhos no Nordeste colonial.
Bauru, SP: EDUSC, 2003.
GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d’El Rey: tropas militares e poder no Ceará
setecentista. 2009. 273 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2009.
MACEDO, Nertan. O Clã de Santa Quitéria. Rio de Janeiro: Editora Renes. 1980.
39
RESUMO: Tendo em vista o atual cenário político brasileiro, marcado pela consolidação de
um golpe parlamentar, trazendo à tona discussões acerca do período da ditadura civil-militar,
esta escrita objetivou registrar as memórias de moradores da cidade de Pentecoste/CE acerca
desse período da nossa história, e descrever de que forma esse momento foi percebido por
eles, desvelando, assim, aspectos da história local. A pesquisa, de natureza qualitativa,
desenvolveu-se no primeiro semestre de 2018, por intermédio da metodologia da História
Oral e pesquisa bibliográfica. Como fundamentação teórico-metodológica, recorremos aos
escritos de Farias (2007); Ricoeur (2007); Thompson (1998); Portelli (1997); Le Goff (1994);
Bosi (1994); Pierre Nora (1993), entre outros. Consideramos, a partir do que foi pesquisado,
que os pequenos municípios brasileiros, a exemplo de Pentecoste, no Ceará, viveram um
“mundo à parte” no tocante às atrocidades cometidas pela ditadura civil-militar.
PALAVRAS-CHAVE: Ditadura Militar. Memória. História Oral.
1. INTRODUÇÃO
No âmbito das revisões acadêmicas e dos debates acerca da ditadura civil-militar no
Brasil (1964-1985), haja vista que muitos documentos ainda não estão totalmente disponíveis,
o que demanda dos pesquisadores e da sociedade brasileira acompanhamento dos novos fatos
que vão surgindo, esta escrita teve como objetivo, registrar as memórias de moradores da
cidade de Pentecoste/CE, acerca do período histórico mencionado, e descrever de que forma
esse momento foi percebido por eles, desvelando, assim, aspectos da história local.
Considerando-se que os relatos de experiências individuais ou coletivas acrescentam
significado à história, optamos pela história oral como metodologia de pesquisa por
concordarmos que tal procedimento abre espaço para que pessoas anônimas ganhem sentido
social, de maneira que sua memória documentada possa ser objeto de estudo de diversas
áreas. Assim, os sujeitos investigados foram moradores da cidade de Pentecoste/CE que
vivenciaram o período da ditadura civil-militar, totalizando seis participantes (dois do sexo
masculino e quatro do sexo feminino), cujos relatos foram gravados em áudio, com a devida
aprovação. Para atender a uma dimensão ética, utilizamos o Termo de Consentimento Livre
Esclarecido (TCLE), na obtenção do consentimento de publicação das informações coletadas
1
SEDUC/CE. E-mail: terlasilvacs@gmail.com
39
nas entrevistas e, optamos pela preservação de suas identidades recorrendo a nomes comuns
de moradores da respectiva cidade, como Antônio, Francisco, Maria, Francisca, Raimunda e
Benedita2.
Ao recorrermos à abordagem qualitativa, selecionamos a história oral como
metodologia de pesquisa posto que, assumimos com Thompson (1998), a ideia de que a
história oral é uma história que propicia diferentes diálogos. Em suas palavras, a história oral
“lança a vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação [...] traz a
história para dentro da comunidade e extrai a história de dentro da comunidade”. (1998: 44-
45). Portanto, pode ser compreendida também como relatos a respeito de fatos não registrados
por outra documentação ou, ainda, como uma complementação a registros considerados não
suficientes para o que se deseja investigar.
No que diz respeito à memória, julgamos importante esclarecer que partimos da
premissa defendida por Pierre Nora (1993: 19) de que:
A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está
em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento,
inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e
manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações.
2
Selecionamos, entre os moradores entrevistados, uma funcionária pública aposentada (SEDUC); três
funcionários aposentados (DNOCS); um integrante da família “Nunes” e um integrante da família “Gomes da
Silva”.
39
[...] no dia primeiro de maio de 1964, eu era menina, estudando na escola Tabelião
José Ribeiro Guimarães [...] de tarde, nós alunos, com fardamento completo, todos
em fila em frente à praça da matriz, pra homenagear os militares. (Entrevista
realizada em 22/01/2018).
[...] a professora chegou na classe e disse que no dia 1º de maio, feriado, ia ter um
bocado de autoridade em Pentecoste e que nós alunos deveríamos estar fardados,
às duas horas da tarde, na praça da matriz (em frente a Igreja N. Sra. Da
Conceição). Que essas autoridades iriam prestar uma homenagem porque o
exército brasileiro tinha feito uma coisa muito boa e não tinha deixado que o nosso
país caísse nas mãos dos comunistas [...] eu ainda me lembro, ela se benzendo em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo na hora que falou o nome “comunismo”
[...]. (Entrevista realizada em 22/01/2018).
Tais memórias são reveladoras para a discussão travada nesta tessitura e são vivências
que permitem compreender aspectos da história local, inserida no contexto da ditadura civil-
39
Naquele tempo o que eu lembro é que se os “Gomes da Silva”, que era quem
mandava, soubessem que você não votava neles, você perdia o emprego. Naquela
época não era como agora que é tudo através de concurso, então era tudo
arranjado por eles. Eles arranjavam emprego pras pessoas, mas todo mundo tinha
que votar nos candidatos deles. Mesmo o seu pai ou sua mãe, se não fosse eleitor
deles, eles já davam as costas pra você. O Zé Gomes, que era quem arranjava os
contratos do estado na época, ele arranjava pra todo mundo, menos pra mim. E eu
acho que era só porque o papai era do outro lado, não votava neles. (BENEDITA,
entrevistada em 23/01/2018).
Também o Sr. Francisco confirma que havia um autoritarismo local muito grande por
parte dos “Gomes da Silva”
Eu votava nos candidatos do Zé Gomes. Fui cabo eleitoral dele muito tempo. Na
minha casa tinha reunião política e tudo. Trabalhei foi muito tempo, fazia o que ele
mandava: ia atrás de eleitor, de título. Na época eu pensava que era a coisa mais
certa a fazer. (Entrevista realizada em 20/01/2018)
Aqui tinha um chefe político (o Zé Gomes), que era prefeito, delegado, padre, era
tudo. Todo mundo tinha medo dele. Minha família era contra, era da UDN antes da
“revolução”. Por conta dessas questões políticas, eu não tinha o direito nem de
botar meus filhos na escola. Eu e a Carmelita, que também era do outro lado, fomos
na escola Tabelião, falamos com a diretora, na época era a Odília Feijó, e ela
disse: ‘não posso arranjar minha filha, só se você for falar com o Zé Gomes’. Aí eu
ainda fui falar com ele. A Carmelita foi comigo, e foi ela quem iniciou a conversa
dizendo que precisava matricular os filhos na escola Tabelião. Ele simplesmente
disse não. Não foi grosseiro, mas também não deixou a gente matricular nossos
filhos lá. Aí eu botei um na escola Francisco Sá, que era do DNOCS, outro foi
estudar lá no Posto Agrícola, outro foi para o Círculo Operário que não tinha nada
a ver com política. E assim foi. (Entrevista realizada em 29/01/2018).
do ensino recebido dos outros, que a memória individual toma posse de si mesma”. Esse
aspecto é pertinente para entendermos a relação entre essas memórias, notando as
particularidades e, sobretudo, o que sobressai delas. De outro modo, “a memória por meio da
história oral pode devolver as pessoas que fizeram e viveram a história, um lugar fundamental
mediante suas próprias palavras”, conforme sugerido por Thompson (1998: 56).
Seguindo as trilhas da história local chegamos ao ano de 1971, momento no qual a
administração municipal passa às mãos do Antonio Braga de Azevedo. Este se mantém no
poder apenas por dois anos, devido o ato institucional n.º 11, de 14 de agosto de 1969 (Brasil,
1969), que tinha o interesse de igualar os mandatos dos prefeitos e dos governadores. Dessa
forma, consoante os escritos de (VASCONCELOS, apud ALMEIDA, 2008) o ato
institucional n.º 11, de 14 de agosto de 1969, alterou a data da posse dos prefeitos, vice-
prefeitos e vereadores; bem como a duração de seus mandatos, sob a alegação de ser
dispendioso realizarem-se eleições de dois em dois anos. Em seguida, ao fim de seu mandato,
nas eleições de 1972, elegeu-se para prefeito de Pentecoste, José Gomes da Silva.
O uso da violência não é algo novo na história do Brasil, nem do Ceará. Ao contrario,
nosso passado é permeado de lutas, atentados, assassínios. Violência não só dos setores
dominantes, mas também dos dominados. Na década de 1970, principalmente, a tortura,
prática cruel e desumana, largamente empregada pelos órgãos policiais contra os cidadãos
comuns para extrair confissões de suspeitos, tornou-se uma política de Estado a nortear a
repressão contra os envolvidos em quaisquer atividades políticas de oposição ao regime.
Em face desse cenário de violência em âmbito nacional e, até mesmo em âmbito
estadual, haja vista as evidências de práticas de torturas e violência no Estado cearense, as
narrativas dos sujeitos investigados nos dão indicativos para presumir que a política de
Pentecoste esteve inserida num contexto marcado por práticas oligárquicas, autoritária, mas
sem registro do uso da violência em virtude das manifestações de opositores à ditadura civil-
militar. Consideramos, a partir do que foi pesquisado, que os pequenos municípios brasileiros,
a exemplo de Pentecoste, no Ceará, viveram um “mundo à parte” no tocante às atrocidades
cometidas pela ditadura civil-militar. O relato da D. Maria confirma essa vertente
Aqui em Pentecoste não teve essa “esquerda” que a gente houve falar que teve no
Brasil na época da ditadura. Teve uma esquerda, mas uma esquerda no sentido de
oposição local. Quem era perseguido, era por questões políticas locais, não porque
fosse “comunista”. (Entrevista realizada em 22/01/2018).
Também compartilha da mesma opinião o Sr. Antônio, quando diz “ aqui não teve vítima
da ditadura, até porque nós (tanto a UDN, quanto o PSD) ficamos do lado dela, apoiando o governo”.
(Entrevista realizada em 19/01/2018).
Considerando-se que a população não tinha acesso fácil aos meios de comunicação,
que eram restritos às elites, entendemos que tal aspecto contribui para o contexto de
desinformação, associado ao fato de que as pessoas tinham medo das conversas de calçadas,
pois o clima local era de muito disse-me-disse. O depoimento da D. Benedita confirma essa
versão
Eu não tomei conhecimento de nada desse período. Na época eu não ouvia nenhum
comentário sobre nada do que acontecia no Brasil. Pra mim não mudou nada.
Passou em brancas nuvens esse período, não fosse pela política local que era com o
Zé Gomes mandando, teria sido como qualquer outro período. (Entrevista realizada
em 23/01/2018).
Nesse momento, a cidade passava por conflitos políticos que mostravam para a
população a força da cultura oligárquica como variante das práticas políticas observadas no
interior do estado. Isso denota uma situação singular do Estado ditatorial do Brasil, visto que
a política dos coronéis, ou ainda, todas aquelas práticas de caráter oligárquico, que já foram
40
por nós apresentadas, só ganharam espaço devido à nova forma de organização político-
eleitoral (eleições indiretas), assegurada pela força do governo federal.
Em 1974, a força política da família “Gomes da Silva” estava consolidada. Raimundo
Gomes da Silva elegeu-se deputado federal pela primeira vez, depois de vários mandatos na
Câmara Estadual (1950, 1954, 1958, 1962, 1966 e 1970); sua irmã Maria Zélia Mota, elegeu-
se deputada estadual, e na prefeitura estava o outro irmão, José Gomes da Silva. A década de
1970 assinalou o auge do domínio político dessa família.
Face ao material encontrado, acreditamos que essas experiências e vivências precisam
ser registradas, haja vista o nosso entendimento em Freitas (2006: 79) de que “a História Oral
possibilita novas versões da História ao dar voz aos múltiplos e diferentes narradores”;
contudo, é válido lembrar, também, o que Alessandro Portelli (1997: 31) nos ensinou: “[...]
Fontes orais contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que
acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em mente que o trabalho com o conceito de memória requer a atenção acerca da
distância temporal existente entre o ato de relembrar, narrar determinada experiência e a
própria experiência vivida pelo entrevistado no passado, essa pesquisa objetivou registrar as
memórias de moradores da cidade de Pentecoste/CE acerca do período da ditadura civil-
militar, e descrever de que forma esse momento histórico foi percebido por eles, desvelando,
assim, aspectos da história local.
A partir da análise das narrativas, percebemos a política da cidade com características
oligárquicas, autoritária, mas sem registro do uso da violência em virtude de manifestações de
opositores à ditadura civil-militar. Consideramos, também, que pequenos municípios
brasileiros, a exemplo de Pentecoste, viveram um “mundo à parte” no tocante às atrocidades
cometidas pela ditadura civil-militar.
Tendo em vista que a década de 1970 foi o período mais repressor, uma vez que a
tortura tornou-se uma política de Estado a nortear a repressão contra os envolvidos em
quaisquer atividades políticas de oposição ao regime, concluímos, com base nos depoimentos,
que em Pentecoste não houve vítimas da ditadura civil-militar, e sim dos governantes locais.
Considerando-se que as memórias possuem histórias particulares, entretanto,
envolvidas em um contexto social, histórico e político, entendemos que estas e outras
histórias necessitam serem investigadas, analisadas e compreendidas pelo historiador de
forma a ampliar as discussões.
40
REFERÊNCIAS
ALMEIDA,Viviane Prado. A cidade de Sobral no contexto da Ditadura Militar no Ceará
(1963-1970). Revista Homem, Espaço e Tempo. Centro de Ciências Humanas da
Universidade Estadual Vale do Acaraú/UVA. Ano II, número 1, março de 2008.
ARAÚJO, Maria Paula Nascimento; SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. História, memória e
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2007: 95-111.
BONAVIDES, Aníbal. Diário de um preso político. Fortaleza: Gráfica O POVO, 1986.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. S ã o P a u l o: Companhia das
Letras, 1994.
BRASIL. Ato Institucional nº 11, de 14 de Agosto de 1969. Publicação Original. Disponível
em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/atoins/1960-1969/atoinstitucional-11-14-agosto-
1969-363939-publicacaooriginal-1-pe.html. Acessado em 03 de fev. de 2018.
2
DIÁRIO DO CEARÁ. Segunda reforma dos Estatutos da ‘Deus e Mar’. Número e página (rasurados)
15/10/1927. pp. 3-6.
40
não entrou no embate direto contra os patrões ou contra as relações de exploração do trabalho,
mas sim como ferramenta de luta contra a miséria vigente (LUCA, 1990).
A Sociedade Deus e Mar possibilitou, como estratégia de luta, manter os trabalhadores
em uma relação de proximidade com os patrões e políticos, tendo em vista melhor negociação
de pequenos benefícios e favores imediatos. Já para os patrões e os políticos, a inserção na
Associação era uma maneira de amenizar as insatisfações mais emergenciais dos
trabalhadores e moldá-los para evitar condutas de desordens que fugissem do controle e da
ordem vigente estabelecida.
Assim como a Associação Deus e Mar, o STPC buscaram controlar a vida dos
trabalhadores do porto de Fortaleza, e também, o sistema de contratação da mão de obra e
prestação de serviços às empresas de navegação. Para isso prezavam pela força do trabalho
disciplinado de modo a atender a demanda no sistema de carga e descarga de mercadorias e
passageiros no porto.
Considerando-se que os sindicatos no Brasil, de um modo geral, foram mais
combativos em relação às lutas por melhores condições aos trabalhadores entre os anos de
1919-1922, durante os anos que se seguiram, o anarcossindicalismo foi progressivamente
perdendo suas forças. A categoria dos trabalhadores portuários era uma das mais numerosas
que buscaram o apoio da LCT, contando por volta de 1000 associados somados da Deus e
União, do STPC, sem contar com sócios do Sindicato dos Trabalhadores das obras do Porto,
que também possuía um número significativo de associados (SAMIS, 2013:36-37).
Na contramão do anarquismo, o STPC foi se tornando mais a combativo e atuante ao
longo dos anos de 1920, vindo posteriormente a alinhar-se ao discurso da Igreja Católica e da
LCT. Com a fundação a Legião Cearense do Trabalho (1931) que cooptou vários sindicatos e
associações, inclusive o STPC que em grande medida já colocava em prática muitos valores
defendido pelos legionários, como a disciplina, a moralidade e o valor do trabalho para
dignificar o homem, o movimento reivindicatório dos portuários conseguiu estreitar o diálogo
com os contratadores e as empresas de navegação.
A Igreja Católica, se inseriu de maneira mais explicita no movimento dos portuários,
defendendo a disciplina e a ordem entre os trabalhadores como maneira de provar a
maturidade e a capacidade de discutir e negociar melhores condições de trabalho, sem a
ameaçar fugir as rédeas Católica. A implementação da Ação Católica, foi realizada desde o
final do século XIX para fazer frente as ideias socialistas e comunistas, os quais colocavam
por terra valores e crenças da Igreja. A postura do cataclismo foi de intermediador das tensões
40
3
O sindicalismo amarelo defendia que a greve deveria ser vista como último recurso, a ser empregado apenas
depois de esgotadas outras formas de pressão e negociação, o recurso a intermediários, como advogados,
políticos e autoridades, era visto como um meio lícito de auxiliar o sindicato no encaminhamento de suas
reivindicações, e não raro figuravam entre seus projetos a participação eleitoral e a constituição de partidos
operários. Sustentados pela ideia de as conquistas deveriam ser consolidadas por meio de leis e a defesa da
função arbitral do Estado nas relações de trabalho.
40
Dentro dessa mesma linha de controle e poder exercido pela diretoria do sindicato,
também no ano de 1925, foi determinado que os trabalhadores não poderia trabalhar “despido
meio corpo”, por questões morais5. Manteve as ações mutualistas, bem como o alinhamento
com figuras políticas da cidade, e a ênfase na construção do diálogo e da negociação com os
patrões, delegando a greve um caráter secundário nas estratégias de lutas dos portuários
(PARENTE, 1999: 86)
No início dos anos de 1930, o STPC se aproximou da LCT, da ação social da Igreja
Católica e das ordens governamentais sobre o sindicalismo6 e, através do diálogo com estas
entidades, o sindicato conseguiu vitórias significativas em relação aos sistemas de contratação
e de pagamento da mão de obra, bem como da carga horária para os trabalhadores
sindicalizados.
Vital Félix de Souza foi um dos fundadores e presidente do STPC por vários mandatos
e teve forte atuação na LCT. Inicialmente foi carroceiro, e devido à sua boa conduta, acabou
tornando-se um protegido da Família Diogo, ligada ao comércio e a indústria local. Passou a
ser marítimo e foi um dos fundadores do Sindicato dos Trabalhadores do Porto.
Em entrevista concedida ao pesquisador Josênio Parente, em 09 de fevereiro de 1983,
Vital, afirmou que na época da fundação do sindicato, não havia legislação para defender os
trabalhadores, e que os patrões e capatazes não foram a favor da criação do mesmo. Mas,
segundo ele, recebeu o apoio da única associação forte entre os marítimos, a Associação Deus
e Mar, que via na criação do sindicato uma forma de fortalecer as lutas em prol de melhoras
nas relações de trabalho e nos serviços portuários. Vital, também afirmou que a questão
sindical era apoiada pelos ingleses que aportavam rotineiramente no porto de Fortaleza, e
alegavam que o sindicalismo e a conquista de leis trabalhistas seriam um avanço para os
portuários cearenses (PARENTE, 1999: 84)
Na fala de Vital Félix, pode ser percebido que a fundação do sindicato foi pensando
diante da necessidade de fortalecer o movimento de lutas dos trabalhadores portuários.
Inicialmente ele possuía uma caráter notadamente mutualista, mas os debates sobre o papel
diferenciando do sindicato em relação as reivindicações dos trabalhadores foi sendo
amadurecido e o diálogo com outras categorias e principalmente com as ideias que chegavam
6
O Decreto 19.770 de 1931 regulamentou o sindicalismo e não escondia sua ação desmobilizadora das antigas
lideranças sindicais, orientando-se no sentido de decapitar politicamente uma boa parcela das lideranças mais
aguerridas e resistentes. (Decreto- lei 1.371, de 23/IV/1939, art. 5§2 e 3).
40
via Porto, corroboraram para que o STPC buscasse mudanças mais efetivas nas relações de
trabalho. O Sindicato agregou essas ações às lutas reivindicatórias e de resistência contra a
exploração sofrida pelos portuários a construída. Assim, o STPC colocou o fortalecimento da
categoria partir das práticas mutualistas, e a construção das negociações contratadores da mão
de obra como sendo os dois pilares de sustentação das suas lutas.
Segundo Parente, durante os anos de 1925 e 1926, as ações do sindicato tornaram-se
mais intensos o diálogos com outras associações, objetivando ter maior força e participação
política. Nesse mesmo período colocou de maneira mais efetiva e combativa na busca por
melhorar as condições de vida dos trabalhadores. Em 1927, o sindicato aliou-se de maneira
mais ativa a Federação Operária Cearense, fundada em 1925, e que foi precursora da Legião
Cearense do Trabalho (PARENTE, 1999: 84).
Os membros da diretoria do STPC, vinham durantes os anos que antecederam a
Revolução de 1930 e da Fundação da LCT, passando por um processo de mudanças nas
estratégias de atuação sindical, tendo o objetivo conseguir conquistas para os trabalhadores
para além dos benefícios de caráter mutualistas. A aliança com a LCT em 1931, fortaleceu
mais o poder de Vital Felix de Souza, dentro do sindicato.
Analisando o processo de fortalecimento da sociedade Deus e Mar (Deus e União) e
do STPC, torna-se fundamental lançar mão da produção de Richard Hoggart, o qual pensou a
cultura inserida na vida real e não a parte. Ao realizar o estudo sobre as classes trabalhadoras
e as mudanças e adequações dos costumes, linguagem, etc., afirmou que os trabalhadores
acabam por desenvolver um senso de resistência, a resistência do dia a dia (COSTA, 2012: 160).
Não se trata de uma força de resistência passiva, mas antes de algo que, se bem
inconsciente, pode ser considerado como positivo. As classes proletárias possuem
um elevado grau de faculdade natural de resistirem à mudança, adaptando ou
assimilando, nas novidades aquilo que lhes interessa, e desprezando o resto
(HOGGART, 1973: 40)
O autor dota as classes operárias de uma ação protagonista natural no dia a dia para
lidar e escolher as informações e ações que são consideradas para as mesmas positivas,
mesmo que haja a tentativa de influência das camadas mais poderosas, que buscavam ditar
normas e condutas, que corroboram para a construção da ideia de grupo. Fazendo uso da
teoria da construção da coletividade entre os trabalhadores e o processo de identificação de
quem seriam os adversários (inimigos) e de quem seriam os aliados. Definindo que “Eles”
seriam os patrões, podendo ser entidades privadas ou elementos públicos, e “Nós” seriam os
trabalhadores explorados.
40
Hoggart foi importante para o desenvolvimento da ideia central desta tese, tendo em
vista que para analisar o processo de compreender-se dos trabalhadores portuários, enquanto
coletividade, diante da necessidade de identificar quem eram os portuários e contra quem eles
deveriam lutar, nesse sentido, o sindicato e a associação exerceu importante papel, ao
auxiliarem no processo de identificação do “Nós” e “Eles” (HOGGART, 1973:87)
Tanto a diretoria da Deus e União e do STPC, mantiveram intenso diálogo com a
LCT, seguiram as diretrizes legionárias, que prezavam pela manutenção da ordem e da boa
conduta dos trabalhadores, e o sindicato dos portuários, foi moldando suas ações de acordo
com o que era definido pela legião7.
7
O LEGIONÁRIO. Legião cearense do trabalho – Boletim nº 1 (Janeiro). 04/03/1933 Nº 01. p. 2.
8
O LEGIONÁRIO. Legião cearense do trabalho – Boletim nº 1 (Janeiro). 04/03/1933 Nº 01. p. 2.
40
resistência, visto que esses trabalhadores tiveram contanto com diferentes ideias sociais e com
diferentes categorias de trabalhadores da cidade. Diante disso, perceberam que, através da
expansão da solidariedade entre os portuários e outras categorias, conseguiram vitórias
coletivas. Como no caso da greve da Light, empresa que fornecia energia para Fortaleza, os
portuários se colocaram como apoiadores do movimento grevista e enviaram apoio material
para as famílias dos trabalhadores em greve.9
Ao analisar as ações estratégicas do STPC, torna-se indispensável entender o conceito
de resistência, e dialogar com outros autores no objetivo de amadurecê-lo e então
compreender o modo de resistência vivido pelos trabalhadores portuários de Fortaleza.
Nesse sentindo, William Mello, desenvolve o conceito de solidariedade ocupacional
para tratar sobre a resistência desenvolvida pelos trabalhadores portuários de Nova York.
Pensando que esse tipo de solidariedade surgiu como reflexo dos interesses compartilhados, a
partir das condições gerais do processo de trabalho do porto, do emprego informal sem
vínculo com um único empregador, das condições de trabalho brutais e perigosas, da falta de
mobilidade ocupacional, que aliada a compreensão que eles faziam parte da camada mais
baixa da classe trabalhadora, corroboraram para conquista e fortalecimento do processo de
reconhcer-se enquanto grupo.
9
ATAS DE ASSEMBLEIAS DO SINDICATO DOS TRABALHADORES DO PORTO DO CEARÁ.
22/09/1929.
41
(atitudes veladas e silenciosas) do dia a dia utilizadas para burlar o sistema de trabalho e de
exploram que estavam inseridos.
James Scott trata sobre as resistências cotidianas a partir das condições limitadas
desses trabalhadores, os quais temem as retaliações e reações dos seus patrões. Sendo as
resistências cotidianas, “as armas comuns dos homens sem poder”, que não produzem
manchetes de jornais, grandes mobilizações, e não chama atenção social, tendo em vista que
são prioritariamente construída com micro atos, para manter a segurança do anonimato
(SCOTT, 2002: 20). O autor segue afirmando que essas ações se dão majoritariamente a nível
individual, de caráter informal, são o que ele denominou de resistências silenciadas.
No caso de Scott, ao analisar os camponeses de Sedako, compreende que as ações de
resistência, como o boicote e o roubo de grãos se intensificaram a medida que as máquinas
foram sendo introduzidas na atividade do campo, modificando toda a dinâmica de
organização do trabalho e agravando a situação de pobreza dos camponeses, levando as
resistências rotineiras (SCOTT, 2002: 22). Nesse sentindo, as resistências cotidianas foram
fundamentais para diminuir a velocidade com que as máquinas foram sendo implementadas
na produção dos grãos de arroz, considerando essas ações válidas e importantes, mesmo que
não tenha tido inicialmente um caráter político, nem tenham tido um caráter radical e aberto.
Dessa feita, a resistência não precisa de etiquetas pré-planejadas, pois a resistência
pode possuir “diversas faces”: individual, coletiva, formal, informal, pública, anônima,
desafiam o sistema de dominação ou que objetivam ganhos marginais (SCOTT, 2002: 29-31).
O mais importante a ser destacado é que as formas de resistências cotidianas servem para o
processo de mobilização dos trabalhadores e transformações que podem ser vistas a logo
prazo, ou seja, a percepção de entendê-las dentro de um processo histórico, consideradas
como “armas duráveis”.
Utilizando da análise de James Scott para compreender as ações dos os portuários do
STPC, mas tomando as devidas precauções, posto que Scott analisou os trabalhadores
camponeses e aqui estudo os portuários, os quais possuem uma dinâmica de trabalho, inserção
e percepção da economia completamente diferente, bem como para esse autor as resistências
cotidianas, não são institucionalizadas. Percebo, a partir das ações informais e dissimuladas,
que os trabalhadores portuários, apesar de se organizarem na Deus e Mar e no STPC, muitas
vezes estavam preocupadas com ganhos imediatos, e utilizando as formas cotidianas de
resistência para fugir do combate direto e consequentemente das ações repressivas.
No entanto, esses trabalhadores também construíram momentos de embates diretos,
tiveram a visibilidade diante da sociedade, tornando público suas necessidades e
41
reivindicações nas páginas dos jornais, tal como os trabalhadores de Nova York fizeram.
Nesse sentindo, os portuários não adotaram somente a resistência passiva, com micro atos,
com caráter informal e individual. Eles foram além, não diminuindo a importância das ações
de resistência cotidianas apresentadas pelos camponeses, mas no sentido de sair da limitada
percepção de luta individual, conseguiram se organizar para conquistar os interesses comuns
fortalecidos pelas ações de resistência, que ganharam o caráter de formalidade como
estratégia política e social.
Concordo com James Scott, no sentido de que as forças cotidianas de resistência são
fundamentais para as lutas e conquistas dos trabalhadores, que buscaram fugir do desgaste
com os patrões e empresas de contratação, mas no sentido de processo, ou seja, “armas
cotidianas duráveis”, que foram modificando a maneira de agir e resistir dos trabalhadores
portuários de Fortaleza. Os quais, atuaram intensamente utilizando as estratégias das
sociedades beneficentes de auxílio mútuo, implementaram mecanismos de luta mais diretos
para conquistar benefícios, não somente matérias, mas de mudanças no processo de
organização, contratação da mão de obra e de pagamento, atuando na luta reivindicativa, na
tentativa de controlar do mercado de trabalho e a beneficência.
A ação beneficente se assemelha ao que Mello, afirmou ser solidariedade ocupacional,
dentro do processo de resistência, que surgiu da ação coletiva e corroborou para processo de
autoconhecer dos trabalhadores inseridos nas disputas por poder econômico, político e social.
Mesmo diante do que foi apresentado em relação às ações dos anarquistas para
convencer os trabalhadores da associação Deus e Mar e do STPC de que o Sindicato de
Resistência era uma importante ferramenta de luta, seja através das páginas dos jornais, da
aproximação dos sindicatos e associações, seja através das reuniões, das assembleias,
incentivando a fundação de escolas para os trabalhadores e seus familiares, etc. as instituições
que representavam a maioria dos portuários da capital cearense, principalmente o STPC,
optaram pela tríade acima citada (beneficência + resistência + controle do mercado de
trabalho).
Dessa maneira, apesar da diretoria STPC afirmar ser de resistência, nas suas atitudes
do dia a dia se acumulavam a beneficência. Dessa mistura, surge o que chamo de Resistência
Solidária, na qual os trabalhadores buscaram mecanismos para melhorar suas condições de
vida e de trabalho, através da união dos trabalhadores sob a égide da Associação Deus e Mar,
Deus e União e no sindicato, tendo o auxílio mútuo o objetivo de promover melhorias
imediatas, a as ações reivindicativas conquistar vitórias e espaços no âmbito das mudanças
materiais e estruturais, principalmente, no que tange a sistemática de contratação e pagamento
41
anarquistas, mas também não se limitaram ao associativos. Dessa maneira, construíram suas
ações fundamentados na resistência solidária, que aliou a busca pelo controle do processo de
contratação da mão de obra, somadas as práticas de auxílio mútuo, desenvolveram ações de
resistência mais explicita, com a participação e apoio a greves e também construíram alianças
políticas, para negociar pautas reivindicatórias.
Os portuários buscaram o apoio não somente de indivíduos ligados aos partidos
políticos da cidade, como já foi abordado no capítulo 1 e 2 desta tese, mas também teceram
laços com elementos ligados ao catolicismo, para isso buscaram adequar se ao modelo de
moral proferido pela Igreja Romana. Aderiram ao movimento da Legião Cearense do
Trabalho (LCT), que teve destaque nas lutas dos trabalhadores do Ceará no início dos anos de
1930, período em que as atenções do governo Vargas estavam voltadas para a questões das
leis do trabalho, dos sindicatos e dos trabalhadores.
Os homens fazem a história, são sujeitos de transformação através das experiências e
lutas do dia a dia, buscam compreender-se e muitas vezes modificar as condições de vidas nas
quais estão inseridos, num constante processo de fazer-se. A partir das experiências e
vivências que os faz traçar objetivos e lutar para atingi-los, e assim a história é feita. A
história pode ser feita por homens ricos, que detém poderes políticos, econômicos, mas
também por homens pobres e trabalhadores. Sendo que me ocupo nessa pesquisa, exatamente
no fazer-se dos homens trabalhadores, com o objetivo de compreender suas ações no dia a dia,
suas experiências e os objetivos que traçaram e que serviram como combustível para que eles
interferissem na construção da história.
Uma importante discussão que devo enfrentar nesse momento está relacionada a
questão da consciência dos trabalhadores portuários de Fortaleza (1912-1933), analisando os a
partir da concepção thompsoniana de experiência e consciência de classe, inseridos num
processo de fazer-Se (THOMPSON, 2001: 10).
Esse processo de fazer-se é muito importante para a compreensão do movimento dos
trabalhadores do Porto de Fortaleza, no sentido de analisar as suas ações mesmo anterior à
fundação da Sociedade Deus e Mar, e perceber que nos primeiros anos do período
republicano, movimentações políticas e sociais já eram articuladas, como na greve dos
catraieiros em 1903-1904. Após essa greve, os trabalhadores do porto destacaram-se, como
sendo uma categoria que buscava se unir e lutar por melhores condições de vida. Chegando a
1912, ano em que foi fundada a Deus e Mar, associação que só fortaleceu de um modo geral a
aliança entre os portuários, a qual veio a ganhar como aliado o Sindicato dos Trabalhadores
do Porto do Ceará(1922). Então porque os portuários fundaram um sindicato e não
41
Referências Bibliográficas
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Novo. Rio do Janeiro: Civilização brasiliense, 2012. p. 41.
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HOGGART, Richard. As utilizações da cultura: aspectos da vida da classe trabalhadora,
com especiais referências a publicações divertimentos. Coleção Questões. Editorial Presença,
1973.
41
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Prefeitura Municipal de Santos, SP, 1995.
THOMPSON, E. P. As Peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora
da Unicamp, 2001.
41
INTRODUÇÃO
Nos últimos 30 anos por meios de diversas pesquisas acadêmicas em todo o país é
possível apresentar novas abordagens historiográficas quando nos referimos aos povos
indígenas em vários momentos na História do Brasil. Pesquisas mostram que desde o século
XVI ao XXI os povos nativos resistem de diversas formas perante as dominações portuguesas
e do homem moderno respectivamente. Tudo isso fazendo cair por terra as elaborações
simplistas que estão presentes nos diversos materiais didáticos do Brasil que desde os idos do
século XIX apresentavam que os povos nativos estavam em vias de desaparecimento em todas
as regiões do país e, que o permanente contato com culturas diferentes, estes povos se
aculturavam e perdiam sua identidade.
Nessas perspectivas, como o último Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE)1 nos mostrou que os povos indígenas só aumentam movidos
por uma emergência de identidades étnicas. É visível que eles estão lutando por espaço,
Graduando do Curso Superior Licenciatura em História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA. E-
mail: pnsousa_100@hotmail.com
Orientadora, professora da UFRPE. E-mail: m_adantas@yahoo.com.br
1
Censo 2010: população indígena é de 896,9 mil, tem 305 etnias e fala 274 idiomas. No Censo 2010, o IBGE
aprimorou a investigação sobre a população indígena no país, investigando o pertencimento étnico e
introduzindo critérios de identificação internacionalmente reconhecidos, como a língua falada no domicílio e a
localização geográfica. Foram coletadas informações tanto da população residente nas terras indígenas
(fossem indígenas declarados ou não) quanto indígenas declarados fora delas. Para mais informações vide;
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICAS. (Brasil). Censo, 2010.
Disponívelem:<https://censo2010.ibge.gov.br/noticiascenso?busca=1&id=3&idnoticia=2194&t=censo-2010-
poblacao-indigena-896-9-mil-tem-305-etnias-fala-274&view=noticia>Acesso em:< 28/04/2018>.
41
2
MONTEIRO, John Manuel. Os negros da Terra: Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo, São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.
41
3
BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. História Indígena e Cultura Afro-Brasileira e Indígena.
Brasília – DF, 2008.
41
nacional, nos quais os povos nativos sejam reconhecidos pelas suas ações políticas diante da
formação do Estado colonial e imperial e, por conseguinte Republicano. A intenção das novas
propostas teóricas e metodológicas para escrita da História se concentra na premissa de
reescrever uma história onde os povos nativos sejam reconhecidos enquanto sujeitos
históricos tão importantes como os portugueses são retratados nos livros didáticos.
Os novos estudos trazem novos documentos e formas interpretativas que apresentam
como ocorreu as formas de resistência dos povos indígenas em diferentes tempos e espaços.
Ao contrário do que desde os idos do século XIX apresentavam que os povos nativos estavam
em vias de desaparecimento em todas as regiões do país e, que o permanente contato com
culturas diferentes, estes povos se aculturavam e perdiam sua identidade.
Atualmente as participações dos povos indígenas na política, nas lutas pelas
demarcações de suas terras, e nos sistemas judiciários de todo o país demonstram que eles
estão presentes lutando pela visibilidade e seus direitos diferenciados. Segundo Maria Regina
Celestino de Almeida4, os povos indígenas no período colonial mantinham sua resistência
hora sendo amigos com relações flexíveis ou por vezes movidos por seus interesses próprios
eram hostis e expulsavam os portugueses de suas terras tradicionais. As capitanias hereditárias
criadas em 1534 algumas tiveram sucesso e prosperidade, a exemplo de Pernambuco e Rio de
Janeiro pela boa relação constante dos portugueses com os povos indígenas enquanto que as
demais sucumbiram pela a resistência dos povos indígenas.
No Ceará, segundo Lígio Maia, os povos nativos presentes na Serra da Ibiapaba
“Piragiba, notadamente líder Tabajara, aliou-se com os Potiguara contra os portugueses” 5.
Frequentemente se pensa que os povos indígenas não se aliavam com os seus grupos
inimigos, mas, existe contradições quanto a estas ideias, como à exemplo do texto citado. Os
povos indígenas em diversas regiões do Brasil realizaram movimentações políticas amigáveis
ou não para afugentar os colonizadores quando estes nãos os beneficiavam em suas decisões
estabelecidas pelos pactos de contato.
As evidências destes estudos sugerem uma variedade de fatores relativos as diferentes
formas encontradas para a resistência dos povos indígenas. De modo geral, concorda-se com
Paulo Sérgio Barros:
4
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. O lugar dos índios na história do Brasil: dos bastidores ao palco.
In: ALMEIDA, Maria Regina Celestino de, (Autora). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. p.14-28.
5
MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeias à vila de índios: Vassalagem e Identidades no
Ceará colonial – Século XVIII. 2010. 409 f. Tese (Doutorado), Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia, Programa de Pós-graduação em História, Niterói, 2010. p.57-58.
42
6
BARROS, Paulo Sérgio. Confrontos invisíveis: Colonialismo e Resistência Indígena no Ceará. São Paulo:
Annablume; Fortaleza: Secult, 2002. p.84.
7
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
8
BARTH, Fredrick. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: LASK, Tomke (org). O guru, o iniciador e outras
variações antropológicas. Rio de Janeiro: contracapa,2000.p.25-67.
42
segundo Barth, as distinções étnicas não dependem de uma ausência de interação, muito pelo
contrário, é preciso a constante relação com outros grupos étnicos para a manutenção de suas
próprias identificações subjetivas, onde cada indivíduo que decide como se posicionar no
mundo mantendo e reelaborando suas fronteiras étnicas com um identificador social comum
ao grupo.
Além disso, desde os anos de 1920 Max Weber 9 chama atenção para o sentimento de
pertencimento ao grupo étnico, pela comunhão étnica ou pela crença na procedência comum
pertinente ao grupo. É necessário se compreender que as análises relativas as identidades
étnicas devem partir de uma compreensão história no sentido de compreender que elas
mudam. Os agentes históricos tomam decisões próprias por meio de políticas elaboradas pelo
próprio grupo para a configuração de suas identidades dependendo de qual relação estejam
estabelecendo em um tempo e espaço social.
É importante mencionar que os povos indígenas sofreram com a reunião em pequenos
espaços de terras comandados pelos jesuítas, mas, nessa perspectiva é mais importante ainda,
analisar as formas encontradas por esses sujeitos para sobreviver dentro das políticas que
estavam disponíveis dentro dos aldeamentos. Então, essa nova postura de estudos culturais
embasados de um cunho histórico e antropológico para análises dos processos vivenciados
por cada indivíduo é importante para que se compreenda as elaborações e reelaborações que
os povos nativos usaram para resistir dentro das dominações estabelecidas em todo o país. E,
além disso, apresentar que os povos nativos resistiram formando também um Brasil tão
diverso em sua cultura.
Segundo Maria Regina Celestino de Almeida os povos indígenas foram cruciais para a
manutenção da colonização do Brasil. Não tem como não os reconhece-los como
fundamentais na formação do Brasil. Por muitas vezes os povos indígenas auxiliaram no
9
WEBER, Max. Relações comunitárias étnicas. In: Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia
compreensiva, Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 1999. p.267-277.
10
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. A atuação dos indígenas na História do Brasil: Revisões
historiográficas. Revista Brasileira de História, vol. 37, n. 75, p.25.
42
processo de colonização e por outras eles resistiram não aceitando à relação como o homem
branco em diferentes regiões do país, a exemplo na colonização do Estado de Pernambuco,
Rio Grande do Norte, Ceará, Rio de Janeiro e em São Paulo. As novas pesquisas apresentadas
no século XXI evidenciam essas posturas de movimentação dos povos nativos segundo os
seus interesses que foram fundamentais para a formação dos espaços coloniais e pós-
coloniais.
Portanto, devemos partir desses novos aportes teóricos para apresentar uma história
inclusiva dos povos indígenas pelos livros didáticos que é o principal suporte para o professor
trabalhar as novas questões relacionadas à temática indígena em sala de aula. A intenção é
incluir estes assuntos para o debate melhorando o ensino de história e a quebra de estereótipos
sobre os indígenas, existentes no senso comum e na educação básica.
Pois, o livro didático apresenta os debates e conteúdo que irão orientar o professor na
sua prática em sala de aula, independentemente se teve uma boa ou má formação. 11 As novas
discussões sobre o ensino de História, mediado pelos livros didáticos produzidos por
pesquisadores que buscam se adequar ao “mercado editorial” de acordo com as normas do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), 12 reconhece que o livro didático se apresenta
como um dos principais produtos de consumo para a educação básica brasileira. Assim,
formando jovens e adultos que seguem um material adequado ao currículo oficial de ensino
brasileiro que, por sua vez, obedece a um projeto político.13
O estudo do ensino de História e a análise de livros didáticos vêm se desenvolvendo
nos últimos anos centrados no debate sobre a participação de variados agentes históricos, tal
como vêm sendo apresentados nas pesquisas atualmente. O livro didático, em especial, pode
ser um guia para a construção desses novos conhecimentos na educação básica. Para
compreender as propostas da produção historiográfica mais recente, são utilizados alguns
termos como os de “mercado editorial” e “processo de produção de livros didáticos”, termos
11
Bittencourt, Circe Maria Fernandes. Livro didático e saber escolar (1810-1910). Belo Horizonte: Autêntica,
239 p. 2008.
12
Gelbcke, Juliana. OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; COSTA, Aryana (Orgs.). Para que(m) se avalia?
Livros Didáticos e Avaliações (Brasil, Chile, Espanha, Japão, México e Portugal). Natal: EDUFRN, 2014. 164 p.
In: Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 11, n. 2, 2016. p.527.
13
CAVALCANTI, Erinaldo. Livro didático: Produção, Possibilidades e desafios para o ensino de história.
Revista História Hoje, v. 5, nº 9, 2016. p.266.
42
utilizados pelos pesquisadores Circe Maria Fernandes Bittencourt 14, Kazumi Munakata15 e
Margarida Maria Dias de Oliveira16.
Existem muitos mecanismos que avaliam a produção dos livros que serão
disponibilizados pelas Secretarias de Educação das diversas cidades do Brasil, dispondo como
os conteúdos no campo da História devem ser apresentados na educação básica. Os
mecanismos são apresentados pelo Estado, que utiliza os instrumentos que regulamentam a
produção didática como a BNCC, a LDB, e principalmente os PNLs. No entanto, apesar de
todo o debate historiográfico atual em torno da temática indígena, nos livros didáticos ainda
persistem representações estereotipadas e lacunas de informações. Sobre o descompasso entre
produção acadêmica e os conteúdos apresentados nos livros didáticos, Marieta Ferreira e
Renato Franco afirmam que:
O problema do livro didático tem raízes muito mais profundas do que a simples
defesa ou condenação de obras isoladas. Um dos principais desafios está
justamente em fazer esse tipo de livro acompanhar as reinterpretações do passado
feitas pelos historiadores acadêmicos. O constante diálogo entre passado e
presente, inerente a qualquer reflexão histórica, deve também ser estendido aos
livros didáticos, sob pena de termos grandes hiatos entre o que se discute na
academia e o que se ensina nas escolas do país.17
Logo, estamos diante de um dos principais problemas que existem dentro da produção
didática atualmente, a aplicação dos debates referentes ao protagonismo das populações
indígenas na História e o seu reconhecimento na atualidade. Ao mesmo tempo em que na
academia se discutem novas teorias sobre a escrita, o ensino e a produção da História, em sala
de aula encontramos professores ensinando conteúdos defasados. As questões sobre esse
descompasso passam pela qualificação e formação continuada do professor, além de incentivo
e reconhecimento do seu ofício, pela estrutura oferecida pelo Estado, bem como pelo material
didático que é trabalhado em sala de aula. Além disso, são centrais à problemática as leis que
regulamentam o ensino básico e que sofreram duras reformas, que não contaram com a
opinião de pesquisadores, profissionais e gestores da área.
Nesse contexto, o livro de didático é produzido por empresas que, muitas vezes estão
mais interessadas no mercado editorial que, não obstante, também passa por mudanças.
14
BITTENCOURT, Circe. Livro didático e saber escolar (1810 – 1910). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2008.
15
MUNAKATA, Kazumi. O livro didático como mercadoria. Pro-Posições . São Paulo, v. 23, n. 3, p. 51-66,
Set-Dez. 2012.
16
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias; Costa, Aryana (Org.) Para que(m) se avalia? Livros Didáticos e
Avaliações (Brasil, Chile, Espanha, Japão, México e Portugal) Natal: Ed. UFRN, 2014. 164p.
17
FERREIRA, Marieta de Moraes; FRANCO, Renato. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 21, nº 41, p. 79-
93, janeiro-junho, 2008.
42
18
NOBRE, Felipe Nunes. A lei 11.645/2008 e o lugar destino aos indígenas em livros didáticos de História.
Revista Historiar, vol.9, nº.17, 2017. p.31. Disponível em <http://www.uvanet.br/historiar/index.php/1/index>
Acesso em: 12/12/2017.
19
PILLETI, Nelson ; PILLETI, Claudiano; TREMONTE, Thiago. Coleção História e Vida Integrada. 6º ao 9º
ano. 5. Ed. São Paulo: Ática, 2012. p. 34.
42
20
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História para populações indígenas. Em Aberto, Brasília,
ano 14, n.63, jul./set. 1994.
21
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: Cientistas, Instituições e questão racial no Brasil (1870-
1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
42
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nessa perspectiva, para que não se ensine somente imagens estereotipadas sobre estas
populações que era vista em vias de desaparecimentos, mas que nos últimos anos os números
e pesquisas acadêmicas tem contrariado os dados excludentes. É importante repensar o papel
do Estado para com os povos indígenas e as formas de ensino que este aplica referente a Lei
11.645 de 2008 em uma sociedade que está vivenciando constantes golpes contra os direitos
conquistados.
Nota-se que o grande esforço que se elabora para aplicação da Lei na educação básica
parte dos pesquisadores e professores formadores sobre o protagonismo indígena na História.
São inúmeros textos, artigos, livros e monografias que apresentam os povos indígenas numa
nova perspectiva apontando para seu protagonismo junto a formação do Estado. É importante
este movimento que vem se desenvolvendo por novas perspectivas para que após dez anos de
publicação da lei na LDB se estabeleça as prescrições estabelecida pela Lei 11.645 de 2008.
Não negamos que é uma batalha complexa que ainda exige muita sensibilidade do
Estado e professores para que se tenham um ensino de qualidade e inclusivo. Apesar do
esforço de inúmeros pesquisadores, ainda há pouca pesquisa sobre a inserção da temática
indígena no ensino básico.
Também reiteramos que a partir da publicação da Constituição de 1988 iniciou um
processo que está se afirmando, de forma lenta e gradual, em reconhecer os povos indígenas
na formação do Brasil. Esperamos que venha se realizar todas as prescrições apontadas na lei.
Logo, também para o ensino, a Lei 11.645 de 2008 foi de extrema importância para se
expandir as possibilidades de se repensar o papel dos povos indígena, mas também,
reconhecer o papel do Estado para com todos os brasileiros em suas múltiplas formas de
expressões culturais.
Portanto, professores e demais profissionais levemos esta luta adiante para que todos
os agentes socias tenham seu papel reconhecido na história. Desta forma, esperamos que o
país seja um lugar onde se possa viver de forma justa, sem preconceitos aos povos nativos que
tanto sofreram e ainda sofrem, onde estes são esporadicamente alvos de ataques as suas terras
tradicionais, que muitas das vezes, até mesmo suas vidas são levadas pelos conflitos entre
políticos, posseiros e fazendeiros de Norte a Sul do Brasil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
42
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iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: contracapa,2000.p.25-67.
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Autêntica Editora, 2008.
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42
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para o ensino a partir da Lei 11.645/2008. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2013.
Introdução
A instalação do Seminário Episcopal do Ceará - mais conhecido como Seminário da
Prainha - em Fortaleza no ano de 1864, é um marco cultural e intelectual da cidade e da
Província/Estado, já que a Instituição seria responsável pela formação dos jovens, pela
irradiação de um ideário de fundo teológico e espiritual, bem como na difusão dos signos da
modernidade no Ceará de então.
A historiografia mais recente considera que, embora o Seminário tenha surgido como
um forte vetor no plano da educação, oferecendo também uma formação de nível considerado
superior, se alinhava ao conservadorismo, afirmando o combate ao pensamento liberal que
alcançava inclusive os membros do próprio clero. (JUCÁ, 2014)
Esse foi, de fato, o motivo maior da instalação do Seminário no Ceará, pois as
autoridades eclesiásticas postulavam formas concretas de conter o avanço da laicização, como
se observa no presente estudo:
Visando essa formação mais rígida para os padres cearenses o Bispo de Ceará, Dom
Luís Antônio dos Santos (1817-1891), entregou aos padres lazaristas a missão educacional do
Seminário, visto seu conhecimento sobre a pedagogia e os métodos de trabalho desta ordem,
por ter tido parte de sua formação no Seminário do Caraça em Minas Gerais, um dos polos de
irradiação das ideias romanizadoras no Brasil1, sob a supervisão dos lazaristas.
Enquanto Instituição de grande significado para a História do Ceará, o Seminário da
Prainha tem sido objeto de vários estudos que ressaltam questões históricas, religiosas ou
educacionais. Aqui se pretende abordar uma dimensão de relevo para a historiografia
cearense, qual seja, a formação de sua Biblioteca. O estudo da Biblioteca do Seminário da
Prainha permite dimensionar um campo mais alargado de analise na História Social do Livro
e da Leitura, face à temática das obras, o circuito do livro, que abrange a produção, a
circulação e a leitura dos mesmos (DARNTON, 2010), o que inclui também a possibilidade
de análise acerca das relações comerciais entre Fortaleza e determinadas praças da Europa,
observando a vinda dos livros do Velho Mundo, além das relações entre o Seminário e os
agentes locais do livro como os tipógrafos, encadernadores e livreiros.
Compreende-se o estudo das bibliotecas inserido no amplo leque de possibilidades da
História do Livro e da Leitura e, em alguma medida, em diálogo com os campos da História
Intelectual e da História Social das Ideias. As pesquisas nesse campo de estudos abordam as
dimensões relacionadas à produção e circulação do livro, bem como às práticas de leitura. No
que concerne à História do Livro,
(...) Pode-se estender e ampliar o campo de muitas maneiras, mas de modo geral ele
trata de livros desde a época de Gutenberg, sendo uma área de pesquisa que se
desenvolveu com tanta rapidez nos últimos anos que é provável que conquiste um
lugar ao lado de campos como a história da ciência e a história da arte, no elenco
das disciplinas acadêmicas. (DARNTON, 2010, p. 122)
1
O processo de Romanização teve início na segunda metade do século XIX, atingindo seu auge na década de
1870. Portanto, a formação do Seminário do Ceará está inserida nesse contexto. Cf. PINHEIRO, Francisco José.
O Processo de Romanização no Ceará. In: SOUZA, Simone(Coord.). História do Ceará. – Fortaleza: Fundação
Demócrito Rocha, 1995.
43
A Biblioteca
O presente artigo trata-se de uma apresentação geral da pesquisa de doutorado que tem
como foco a Biblioteca do Seminário da Prainha em Fortaleza, se debruçando sobre as obras
de seu acervo, observando o circuito percorrido até sua chegada na Instituição e aos aspectos
relacionados ao uso desses livros nos cursos ministrados. Também busca observar a função
dos livros na difusão do conhecimento e do dogma católico no Ceará da segunda metade do
oitocentos.
O recorte temporal da pesquisa tem início em 1864, ano de fundação do Seminário
Diocesano por Dom Luís Antônio dos Santos (1817-1891). A autorização para a fundação de
um Seminário em terras cearenses, veio em 1860 quando da nomeação do primeiro Bispo do
Ceará pelo Papa Pio IX, seis anos depois da criação da Diocese2.
No entanto, como mencionado, apenas quatro anos depois de autorizada a criação é
que se dá o funcionamento do Seminário, visando a formação de padres no contexto da
romanização da Igreja Católica, processo esse caracterizado pela intensa propagação das
ideias do ultramontanismo3. Pode-se dizer que o Ceará “(...) não ofereceu resistência, pelo
menos declarada, ao processo de Romanização da Igreja Católica. Muito pelo contrário,
muitos de seus membros, que compunham a elite cearense, até anteviram nele a possibilidade
de efetivação de muitas aspirações, principalmente no campo político e educacional.”
(FILHO, 2012, p. 52). Nessa perspectiva, os padres lazaristas, conhecidos pela austeridade de
suas práticas foram os escolhidos por Dom Luís para assumir o Seminário
2
A diocese do Ceará foi criada em junho de 1854 através da assinatura, pelo Papa Pio IX da Bula Pro Animarum
Salute, fazendo assim com que a igreja cearense se desligasse, ao menos administrativamente da Sé de Olinda.
Cf. LIMA, Francisco. O Seminário da Prainha. – Fortaleza: BNB, 1982.
3
“Profundamente romano, caracterizou-se pela intensificação da tendência de centralização de poder nas mãos
do papa, pela uniformidade doutrinal cada vez mais acentuada e dirigida, tendo o ponto alto na definição
dogmática da infabilidade pontifícia, pela convergência de esforços e pela supervalorização da moralização dos
costumes, deixando em plano inferior um ensino e um conhecimento mais ligado a vida, pela ‘espiritualização’
do clero interiormente enclausurado nas questões de Igreja e desligado dos problemas sociais e políticos.”
LUSTOSA, Oscar F. Reformistas na Igreja do Brasil – Império, São Paulo, Boletim nº 17, 1977. Apud:
OLIVEIRA, Lúcia Helena Moreira de Medeiros. O projeto romanizador no final do século XIX: a expansão
das instituições escolares confessionais. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.40, p. 145-163, dez.2010. p.
148
43
Queria o Sr. D. Luiz o seu Seminário dirigido por Religiosos como o eram os de
Mariana e de S. Paulo – Alumno e particular Amigo dos Padres da Congregação da
Missão, foi para os Filhos de S. Vicente de Paulo que dirigiu suas vistas, suas
preferencias e sua confiança. Instado pelas reiteradas cartas do Sr. Bispo do
Ceará, o Rmo. Pe. João Baptista Etienne, Sup. Geral dos Lazaristas, não poude
recusar o que o zeloso Prelado sollicitava para maior gloria de Deus e bem da
Diocese, e prometteu, ainda que fosse pequeno o número de Lazaristas no Brasil, de
mandar quatro padres para começar a direção deste novo Seminário.”4
4
Seminário Episcopal de Fortaleza – SEF. Álbum Histórico do Seminário Episcopal do Ceará. Fortaleza –
Ceará, 1914. p.20
43
5
SEF. Livro de Receitas e Despesas do Seminário (1864-1886)
6
SEF. Livro de Receitas e Despesa do Seminário (1864-1886)
43
Dos registros de compras de livros tem-se a compra de 1865, seguida de uma leva de
“livros vindos de Pernambuco”7 no valor de 90 mil réis, em 1866; “livros portugueses” no
valor de 44 mil réis, em 1870; “livros comprados da Europa”, custando 185 mil réis, em 1871
e “livros para a biblioteca’ no valor de 100 mil réis e outra compra em 1880 no total de 191
mil réis. Além dessas aquisições também foram observadas anotações de compras individuais
que comprovam o quanto era difícil para as pessoas comuns adquirir esses bens devido seu
elevado valor. O Seminário comprou um livro de teologia por 16. 240 réis e outros dois livros
dos quais não foi indicado o assunto, um no valor de vinte e outro de seis mil réis.8
Além dos valores das obras, as informações resultantes da pesquisa no Livro de
Receitas e Despesas do Seminário, permitem traçar uma cartografia dos livros, ou seja, dão ao
pesquisador uma ideia do trajeto dos impressos até sua chegada à Biblioteca, vindos dos
principais lugares fornecedores de livros para Fortaleza. A capital cearense sempre esteve
intimamente ligada à Pernambuco e sua praça comercial que, inclusive no que diz respeito ao
comércio livreiro, já estava bem adiantada em relação à Fortaleza. Com relação à Europa, é
sabido que a partir da segunda metade do século XIX Fortaleza intensifica suas relações
comerciais com o Velho Mundo, conforme afirma Raimundo Girão:
7
A Província de Pernambuco era polo de difusão cultural para as demais províncias do Norte. Sobre a ilustração
em Pernambuco no século XIX ver: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Pernambuco e a cultura da ilustração. –
Recife. Editora Universitária da UFPE, 2013. Na capital pernambucana reverberavam as ideias de pensadores
como Rousseau, Montesquieu e Benjamin Constant, sobretudo após a instalação da Faculdade de Direito. Diante
disso, a cidade passou a ter uma convivência cada vez maior com os livros e desenvolveu um grande circuito
livreiro. Cf.: GONÇALVES, Adelaide. As comunidades utópicas e os primórdios do socialismo no Brasil. In.: E-
topia: Revista Electrónica de Estudos sobre a Utopia, n.º 2 (2004). Disponível em
http://www.letras.up.pt/upi/utopiasportuguesas/e-topia/revista.htm>
8
SEF. Livro de receita e despesa do Seminário (1864-1886)
43
edição da Revue de Deux Mondes (...). Pelos malotes do correio marítimo que eram
desembarcados na Alfândega da cidade chegavam os livros de Taine, Spencer,
Darwim, Burkle e outros. (OLIVERA, 1998, p. 73)
9
O estabelecimento da livraria de Joaquim José de Oliveira data de 1857, por isso se afirma que seja ela o
“Oliveira” que aparece citado no documento do Seminário.
10
SEF. Álbum Histórico do Seminário Episcopal do Ceará. Fortaleza – Ceará, 1914
43
A maioria das obras são as de cunho religioso - filosofia, catecismos, direito canônico,
liturgia, história eclesiástica etc., dentre elas podem ser citadas A filosofia Escolástica, de
Kleutgen (1843); História de Santo Inácio de Loyola, por Daurignae (1865); História
Universal da Igreja Católica, pelo Abade Rohrbacher (1857); Dicionário da conversação e
da leitura, por W. Dukett (1853),todas em francês. Também há a Teologia Dogmática, de
Taurinoum (1871), e Teologia Moral, de Ligorio(1866), ambas em latim e Primeira
Enciclopédia Teológica, de Migne (1863, 29 volumes).
Além das obras religiosas há aquelas relacionadas às disciplinas do curso preparatório
do Seminário, como por exemplo, História Universal, de Muller (1846), História do Brasil,
de Southey (Traduzido do inglês por Joaquim de Oliveira e Castro – 1862. 6 volumes); Obras
de Bossuet (1851, 4 volumes), Filosofia Fundamental, de Balmes (1868); Curso Elementar de
Literatura Nacional, do Cônego Doutor Joaquim Caetano (1862); História Universal, de
Cesar Cantu (1867), As origens da França Contemporânea, por H. Taine (1887) e a História
da Conjuração Mineira. Estudos sobre as primeiras tentativas para a independência
nacional, de J. Norberto de Souza Silva (1873).
Convém destacar as obras extremamente raras do acervo, como o Apprendix ad
Historiam Literariam (1720), Curso de Direito Canônico (1766), Sermões, do Fr. Francisco
da Madre de Deos Pontes (1798, 2 volumes), Provas da Genealogia da Casa Real Portuguesa
(1746), a Genealogia da Casa Real Portuguesa (1746, 7 volumes), o Scripitorum
Ecclesiasticorum (1720), Apprendix ad Historiam Literarium (1720), Annales Ecclesiastici
(1710) e o Corpus Juris Canonici Academicum (1746)
O acervo pesquisado, oferece indicações do tipo de leitura indicado aos alunos; a
maioria das obras eram escritas por membros da Igreja, até mesmo os de disciplinas como
História e Geografia, ou seja, o objetivo era incutir a visão católica de mundo. A Biblioteca é
fruto também de um processo de seleção repleto de subjetividade no qual se observa o desejo
da Igreja de conservar seu capital cultural e expandir seu ideário. É também a representação
do poder simbólico da Instituição (BOURDIEU, 2010). A expansão do conhecimento
adquirido no Seminário se deu sobretudo, através da constituição de escolas por parte de seus
ex-alunos e muitos dos Institutos Educacionais fundados na cidade de Fortaleza buscavam
como mestres os egressos da Instituição dirigida pelos lazaristas.
Entre os egressos do Seminário tem-se nomes como Monsenhor Salazar, professor da
cadeia pública; Padre Antônio Cândido Rocha, diretor da Escola Normal, Luiz de Souza
Leitão, professor do Liceu, esses ocupando cadeiras na Assembleia provincial (CASTELO,
1964). Podem ser citados Agapito dos Santos, Menna Barreto, Gil Amora e Capistrano de
43
Abreu11, nomes ligados à Literatura, História e letras em geral. Como se pode perceber, a
presente pesquisa trará também contribuições à história da educação e do ensino no Ceará.
Com relação à leitura, essa era incentivada pelos lentes do Seminário, como se
confirma pela presença de registros de compras de “livros para prêmios” no Livro de Receitas
e Despesas, e pela afirmação contida no Álbum Histórico de que premiar os alunos com livros
era prática comum durante a administração do Padre Chevalier, tendo sido substituída pela
premiação com medalhas e folhas de louro quando da entrada do Padre Simon como Reitor.
Assim compreende-se a presença dos livros no Seminário como um caminho para
perscrutar a História desta Instituição e suas formas de atuação ante a sociedade. Nesse
sentido considera-se a Biblioteca conventual como repositório de conhecimento e também
como índice histórico para a compreensão de valores culturais de sua época. São importantes
os estudos sobre a educação nas instituições eclesiásticas, “(...) conventos e mosteiros
espalhados pelas cidades brasileiras e que tiveram um papel na história educacional do país.”
(DEAECTO, 2011, p. 51).
Considerações Finais
Se pretende portanto, perceber o papel da Biblioteca na formação dos alunos do
Seminário, e entendê-la como recurso para a observação da circulação dos livros em Fortaleza
e sua relação com a difusão internacional de ideias e mais ainda, estudar as obras não só em
seu conteúdo, mas também nos aspectos da produção livreira entre os séculos XVIII e XIX.
Os vínculos sociais e a relação individual com o livro e com a leitura são dimensões
que ao serem estudadas proporcionam melhor compreensão acerca das práticas sociais e
culturais de determinado período, e buscar visualizar essas práticas nos livros é, sem dúvida o
desafio maior do historiador do livro e da leitura.
Referências
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. –14ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem - Teatro de Sombras. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CASTELO, Plácido Aderaldo. O Seminário da Prainha – in: Revista do Instituto do Ceará,
Tomo LXXVIII, 1964.
DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
11
SEF. Álbum Histórico do Seminário Episcopal do Ceará. Fortaleza – Ceará. 1914
43
DEAECTO, Marisa Midori. O Império dos Livros: Instituições e Práticas de Leitura na São
Paulo Oitocentista. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2011.
FILHO, João Batista de Andrade. Padres lazaristas no Ceará e a formação educacional
Confessional: seminários e colégios (1864 - 1914). Dissertação: Mestrado em Educação. –
Fortaleza: UFC, 2012.
GIRÃO, Raimundo. Geografia estética de Fortaleza. – Fortaleza: BNB, 1979.
OLIVEIRA, Almir Leal de. Saber e Poder. O pensamento social cearense no final do século
XIX. Dissertação (Mestrado em História). PUC-SP, 1998.
43
I. Introdução
A pesquisa tem por principal intento aportar-se às aspirações educacionais de
personalidades da Igreja Cristã no início da Idade Média. Diante da conjuntura histórica do
período de transição entre a Idade Antiga e o início da Idade Média - o decurso do século V
assistiu à desarticulação do Império Romano do Ocidente e a forjada anexação das tribos
germânicas, neste território.
Para explicitar a abrangência de uma estruturação educacional, deve-se entendê-la em
seu sentido de conjunto, isto é, em que medida as tradições intelectuais herdadas e o esforço
de quem as buscou ornamentar, contribuíram para uma realização mesma do que se chama de
instrução por excelência.
No que se compreende dos séculos V e VI do início da Idade Média, a educação de
algumas províncias do Império Romano do Ocidente relaciona-se intimamente com a
interferência dos patres “pais” latinos da Igreja Cristã. Há de se convir, que os principais
anseios dos pais da Igreja eram de fato um laborioso trabalho apologético, mas percebe-se,
concomitantemente, a gestação de um modelo de ensino que embora essencialmente religioso,
formulou as bases da importância de uma formação plena dos indivíduos, dado o contexto de
desintegração do ensino oficial e o desentendimento de outras instituições sobre processos
formativos. Portanto, a sistematização inicial do ensino e seu paulatino desenvolvimento
1
Aluno de graduação no curso de Licenciatura em História da Universidade Regional do Cariri – URCA.
2
Historiadora e mestre em Ciências da Religião. Professora da Universidade Regional do Cariri – URCA.
44
aprendia a ler, escrever, contar e a cantar, e na qual, aos poucos, veio a organizar-se o ensino
completo das artes liberais e da própria filosofia”. (NUNES,1979:86). Certamente essa
afirmação nos servirá de base para o tipo de apreensão que ansiamos em despertar no leitor.
civilização antiga, manteve-se a Igreja, só ou quase só, e o povo cristão habituou-se pouco a
pouco a apoiar-se nela, a contar com ela para sobreviver”. (DANIÉLOU, MARROU, 1966:
416).
Assim, referir-se aos aspectos culturais destes conturbados períodos iniciais da Idade
Média, é admitir um predomínio da perspectiva Cristã em relação aos povos românicos e os
recém-anexados – povos bárbaros. No entanto, é errôneo entender esta interferência no
sentido de um poder centralizado. Ao contrário, pelo o menos inicialmente, era uma
intercessão local, limitada e distinta de um núcleo populacional para outro.
Um Sermão do Bispo S. Cesário de Arles (470-543), para uma paróquia rural,
reverbera de modo satisfatório este entendimento:
Os Pais devem ensinar e corrigir tanto os vossos próprios filhos como os afilhados,
para que viva uma vida pura, justa e sóbria. Exortai vossos filhos e parentes a
absorverem tais virtudes, não só com palavras, mas também com a força do bom
exemplo. Antes de tudo, onde quer que estejais, em casa, em viagem, comendo ou
em reuniões, não profira de vossa boca palavras torpes e obscenas, e exortem os
vizinhos e vossos próximos a que falem sempre o que é bom e belo, e não palavras
más ou maledicência. (ARLES, 470-543: Sermão 13).
Nesse momento o elemento letrado ocupa lugar de destaque, boa parte dos povos
germânicos ainda não haviam conhecido nem um tipo de cultura escrita e vale novamente
ressaltar, que a tradição literária clássica, estava prestes a se perder. Mas o surgimento de
escolas do tipo monásticas, clarificam e norteiam a vida intelectual. “Santo Agostinho (354-
44
430) que introduziu o monaquismo na África, dera a sua primeira comunidade, mesmo ainda
leiga, o caráter de um mosteiro erudito e sua regra prevê, como normal, a existência de uma
biblioteca; em Marmoutier, os monges de São Martinho na Gália, copiam manuscritos. São
Patrício ao evangelizar a Irlanda; batiza e dá um alfabeto ao jovem. No século VI as regras
religiosas serviam não apenas para homens, mas também para as mulheres; onde deverão
aprender a ler, omnes litteras discant3. consagrarão duas horas diariamente à leitura; copiarão
manuscritos”. (MARROU, Henri Irénée, 1904: 507).
3
Esta constitui uma das recomendações da regra monástica de São Cesário de Arles em que nos mosteiros,
homens e mulheres deverão instruir-se nas letras.
4
Era una preparación para los estudios superiores; en una palabra, algo muy semejante a nuestro actual
Bachillerato, com su cultura literaria y su cultura matemática, es decir, lo que nosostros separamos em los dos
conocidos grupos de Ciencias y Letras. (BARBA, Esteve. 1955:678). Era uma preparação para estudos
superiores; em uma palavra, algo muito semelhante ao nosso atual Bacharelado, com sua cultura literária e sua
cultura matemática, isto é, o que separamos nos dois grupos conhecidos de Ciências e Letras.
Desde la época romana, el ciclo de las artes liberales iba ascendiendo de categoria sencillamente porque em
torno iba descendiendo el tono de la cultura, de modo que lo sólo era antes um passo para nuevos estudios
superiores, se quedó convertido en única enseñanza. (BARBA, Esteve. 1955:678). Desde a era romana, o ciclo
das artes liberais estava aumentando por categoria, simplesmente porque o tom da cultura estava caindo, de
modo que se antes era apenas um passo para novos estudos superiores, tornou-se o único ensinamento.
44
Advirto, de início, refreando a impaciência dos leitores, que talvez suponham que
vou lhes dar preceitos de retórica que aprendi a comunicar nas escolas profanas.
Previno que não esperem isso de mim — não que esses preceitos sejam sem
utilidade. Mas no caso de serem úteis, será preciso aprendê-los à parte, sob a
condição, todavia, dessa pessoa encontrar tempo necessário para se dedicar a tal.
(AGOSTINHO, 426-427. d.C. Livro IV:127).
Perceba que mesmo não se tratando de um tratado sobre Retórica, Agostinho não nega
a possibilidade de instruir-se nesta arte. Tanto é assim, que logo em seguida utiliza-se da Arte
da eloquência, que estreitamente vincula-se a Arte Retórica:
Se é certo que as crianças só se põem a falar escutando as palavras das pessoas que
falam, por que alguém se poderia tornar eloqüente sem receber noção alguma da arte
oratória, contentando-se em ler, em escutar e, à medida do possível, em imitar os
bons oradores? E, além do mais, não temos exemplos que provem tal? De fato,
conhecemos muitos que, sem os preceitos da retórica, são mais eloqüentes do que
bom número de outros que os aprenderam nas escolas. E por outro lado, não
conhecemos ninguém que se tenha tornado eloqüente, sem ter lido ou escutado os
discursos e as pregações dos oradores. As próprias crianças não teriam necessidade
da gramática que ensina a língua correta, se lhes fosse dado crescer e viver entre
pessoas que falam corretamente. Com efeito, ignorando expressões errôneas, elas as
evitariam e corrigiriam ao ouvi-las de outros. É o que fazem os moradores das
cidades, inclusive os incultos, ao corrigir o modo de falar dos que vêm do meio
rural. (AGOSTINHO, 426-427. d.C. Livro IV:128).
São duas as dimensões que Agostinho debruça-se neste ponto do texto. A necessidade
de concluir satisfatoriamente os exercícios gramaticais, isto é, entender as variabilidades da
própria língua e passado esta fase - valer-se da arte de expor o conhecimento (Oratória).
A Doutrina Cristã de Santo Agostinho é um marco referencial para o modelo da
cosmovisão pedagógica no período da patrística. Os primeiros pais da Igreja rejeitavam
ordinariamente tudo que estivesse ligado a cultura pagã, notavelmente por acreditarem que
tais conhecimentos desvirtuava o caminho dos cristãos. Deste modo, entendemos que Santo
Agostinho, foi o ponto de intersecção entre as normas educativas cristãs com os fixos
fundamentos da tradição intelectual clássica.
Todavia, não é possível versar sobre a implementação de modelos sólidos de educação
nesse período, já que a conjuntura presente estava marcada por instabilidades sociais - em
face, vale lembrar; da destruição do Império Romano do Ocidente e do processo iniciatório de
configuração política das tribos Germânicas e províncias Romanas remanescentes. Mas veja-
se, que a influência de representantes da Igreja, principalmente a partir de Agostinho,
44
5
La Gramática se refería a dos aspectos: al estudio de la lengua y sus leyes y a la exlicación de los grandes
escritores, es decir, lo que llamaríamos Historia Literaria; la Retórica era la enseñanza teórica y prática de la
Elocuencia, y la Dialética compreendía por un lado lo que llamamos Lógica y por otro la ciencia de la discusión.
(BARBA, Esteve. 1955:678). A gramática se referia a dois aspectos: o estudo da linguagem e suas leis e a
explicação de grandes escritores, isto é, o que chamaríamos de História Literária; A retórica foi o ensino teórico
e prático da Eloquência, e a Dialética entendeu-se por um lado o que chamamos de Lógica e por outro a ciência
da discussão.
6
La Aritmética no abarcaba más que el estudio teórico de las propiedades del número y no se ocupaba del
cálculo o solúción de los problemas, ciencia que los griegos habían distinguido bien de la Aritmética llamándola
Logística. La Geometría estudiaba las figuras ideales y se dividía em Geometría plana y del espacio. Por sua
parte la Astronomía – o Astrología, que con los dos nombres se designaba aún – se reducía al estudio
matemático de los movimentos de los astros. La música casi depreciable, porque no se enraizaba directamente
com la inteligencia, sino con los sentidos. Lo único que conservaba valor era lo que la Música tenía de
matemática, es decir, lo que llamaban entonces la Ritmica y la Armonía. (BARBA, Esteve. 1955:678-679). A
aritmética não cobria mais do que o estudo teórico das propriedades dos números e não lidava com o cálculo ou
solução de problemas; uma ciência que os gregos distinguiam bem da aritmética chamando-a de Logística. A
geometria estudou as figuras ideais e foi dividida em geometria plana e espaço. Por seu turno, Astronomia - ou
Astrologia, que ainda era designada pelos dois nomes - foi reduzida ao estudo matemático dos movimentos das
estrelas. Música quase depreciável, porque não se enraizou diretamente com a inteligência, mas com os sentidos.
A única coisa que retinha valor era o que a Música tinha da matemática, isto é, o que eles chamavam de Ritmo e
Harmonia.
44
preparadas para o sacerdócio. Mui naturalmente, o ermitão São Pátroclo (576), que acaba de
instalar-se no vicus de Néris, construir uma capela, que sagra após haver trazido para ela as
relíquias de São Martinho, e põe-se a ensinar as letras às crianças, pueros erudire coepit in
studiis litterarum7: as duas funções, de cura da cidade e de instrutor, estão, doravante unidas”.
(MARROU, Henri Irénée, 1904: 512).
IV. Conclusão
Vejamos por fim, que diante do que foi exposto, quando se inicia o processo de
assimilação do patrimônio cultural antigo na parte ocidental, e a profícua reestruturação dos
processos normativos no campo da Sapientiae, “Sabedoria”, floresce uma nova ordenação do
antigo sistema das artes liberais – diante do que ela pudesse ser útil à vida e a orientação nos
estudos. Foi possível ser identificado através deste estudo, um modelo de formação
educacional dos indivíduos, aliado ao trabalho de evangelização e amor pela sabedoria da
Igreja Cristã, onde os trabalhos apologéticos foram uma expressão necessária às condições
socioculturais da época.
Constatou-se também, que esse período histórico em análise, trata-se de uma fase em
que o ensino ainda não era sistematizado, mas que os renascimentos educacionais
provincianos, ao assegurarem a cultura da antiguidade, reorganizaram tanto a cultura, quanto
a escola. “Considerando que a Igreja tinha uma dupla estrutura organizacional, isto é, vivendo
ela em parte no meio do povo através dos bispados e das paroquias (clero secular) em parte
longe dele nos mosteiros (clero regular), é nessa dupla estrutura eclesial que devemos
procurar os primeiros testemunhos do surgimento de novas iniciativas da educação cristã, ao
lado das remanescentes ilhas livres de romanidade clássica”. (MANACORDA, 1999:114).
Claramente, os eventos históricos subsequentes, sucederam-se com a interferência e os
efeitos norteadores da cristandade. Conclui-se sobre esse período, que a gênese da
organização corporativa do magistério, situa-se na propagação das Igrejas paroquiais, pois ao
atingir as zonas rurais com a influência do clero secular, atingiam uma governança provincial
e eclesiástica sobre as orientações superiores, dignas de instrução para vocacionados ao
clericato. Não se pode negar que era esse o horizonte de perspectiva das primeiras escolas.
Entretanto o esforço de assimilação do patrimônio cultural antigo, somado a organização
doutrinária da fé encabeçada por personalidades da Igreja Cristã do Ocidente, serviram de
7
São Gregório de Tours, Vida dos Padres, 9, 2. Idem.
44
preâmbulo para uma profícua reestruturação dos processos normativos no campo educacional,
inclusive no sentido de amparar estudantes que não fossem vocacionados ao clericato.
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44
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ROPS, Daniel. A Igreja dos Tempos Bárbaros. História da Igreja de Cristo II. Tradução
portuguesa do Professor Eduardo Pinheiro. Editora., Livraria Tavares Martins – Porto. 1960.
44
1
Mestra em História Social, Universidade Federal do Ceará.
2
A Hospedaria Getúlio Vargas, atualmente uma Unidade de Abrigo de Idosos, funcionava na Avenida Olavo
Bilac, 1280, bairro São Gerardo-Fortaleza.
33
A hospedaria funcionou como abrigo provisório para os flagelados até aproximadamente o final da década de
1970.
45
4
De acordo com Frederico de Castro Neves, a partir da seca de 1915 os sertanejos são denominados de
“flagelados”, indicando que estes sujeitos eram vítimas de um flagelo – a seca.
5
O SEMTA foi criado em 30 de novembro de 1942, tendo como competências promover imediatamente os
estudos necessários para transportar por vias interiores os trabalhadores nordestinos para a Amazônia; organizar
um sistema de recrutamento de tal forma que mereça a confiança dos trabalhadores protegendo-os e assistindo-os
convenientemente durante a viagem, dando às suas famílias assistência médica e econômica; articular com o
DNI no sentido de assegurar uma colaboração harmônica nos respectivos setores de atividade, dentre outros.
6
O ingresso dos Estados Unidos da América na Segunda Guerra Mundial exigiu um posicionamento claro das
nações americanas.
7
O SESP tinha o objetivo de organizar e superintender as hospedarias administradas pelo DNI, com os seguintes
serviços: proceder exame médico de todos os trabalhadores e pessoas de suas famílias que desejassem ingressar
nas hospedarias administradas pelo DNI a fim de selecionar os indivíduos fisicamente capazes de empreender a
viagem à Amazônia e executar trabalhos agrícolas peculiares àquela região; Proceder exame médico dos
trabalhadores alojados nas hospedarias para confecção das listas de embarque, deliberando sobre aqueles que
estão ou não em condições de empreender viagem; Executar as obras urgentes que julgar indispensáveis para
melhorar as condições sanitárias das hospedarias, quando elas não puderem ser custeadas por verbas do DNI,
dando ciência a este Departamento e à Autoridade que o representar no local, dentre outros. Em janeiro de 1943,
o SEMTA convidou o SESP para que prestasse igual assistência nas suas hospedarias e ao longo de todo o
percurso de viagem.
8
Durante a seca de 1942 foi organizado um albergue no campo do Alagadiço, para socorrer os retirantes, no
local que seria construído posteriormente a Hospedaria Getúlio Vargas.
45
oito pavilhões, nomeados com os nomes dos antigos ministros do Trabalho. Essa pretensa
organização e limpeza, contudo, era contestada:
viajarem. Nestes locais escreviam cartas angustiadas a seus esposos. A senhora Elcina
Galvão, por exemplo, após ter vários problemas no núcleo que habitava, escreveu para seu
marido Cursino: “se você não tomar providência aí com o chefe aqui tomo, retirando-me nem
que seja para a Remigração Getúlio Vargas e quando menos você espera eu chego como
aflagelada aí no Pará” (SECRETO, 2005:182).
As falas do sr. Vicente e da senhora Cursina elucidam bem as diferenças entre o DNI e
o SEMTA, quando o assunto era migração dos sertanejos. Enquanto aqueles que migravam
pelo DNI eram estigmatizados como flagelados da seca, quem viajava pelo SEMTA era visto
como “mobilizado”, ou seja, um soldado que lutava para o país, contribuindo para a vitória na
segunda guerra mundial.
Com o fim dos trabalhos originais – transportar soldados para a “batalha da borracha”,
entre 1943 e 1945 – a hospedaria fechou suas portas, sendo reabertas apenas no surgimento de
um novo período de seca (década de 1950). Dessa forma, a Hospedaria Getúlio Vargas
integrou-se ao sistema de atendimento aos flagelados, atendendo aos retirantes que chegavam
diariamente à Fortaleza. Mas, para além de distribuir passagens e servir de pouso provisório,
tornou-se um novo centro de disputas e conflitos (NEVES, 2002).
Durante a estiagem de 1951 – que se prolongou até 1953 – os flagelados que estavam
abrigados na Hospedaria Getúlio Vargas organizaram várias “passeatas da fome”, como uma
forma de protestar contra as péssimas condições de alojamento, a falta de comida, de trabalho
e de passagens para o Norte e outras regiões. A primeira passeata foi organizada em 30 de
agosto, após o diretor da hospedaria, Otevino Alves, informar aos retirantes que o embarque
para a Amazônia estava cancelado. O diretor relata que seu gabinete foi ocupado
“pacificamente pelos trabalhadores”, que o pediram para autorizar uma passeata até o Palácio
do Governo. No intuito de justificar essa autorização ao repórter do jornal O Povo, o diretor
diz:
1953). Mas essas primeiras chuvas pioraram a situação sanitária dos flagelados, tendo um
surto de gripe entre as famílias desabrigadas. Calculava-se que morria uma criança por dia,
vítima de diarreia, vômitos e outras enfermidades.
Problemas relacionados à fome, doenças, superlotação e precariedade sanitária
potencializaram-se em 19589, ano de grande estiagem. A Hospedaria reabriu suas portas em
março aos emigrantes, com cerca de 200 pessoas solicitando auxílio. Menos de um mês
depois, a hospedaria já abrigava 2000 mil. Além da grande quantidade de pessoas, que
superlotavam as dependências da hospedaria e seu entorno, havia ainda problemas
relacionados ao abastecimento e a falta de verbas.
O jornal O Povo, em 29 de abril de 1958, anunciava que “estão recolhidas à
Hospedaria 3.500 pessoas e mais de 2.500 acampadas nas imediações”. A situação era
“impressionante”, pois, além das inúmeras pessoas ocupando os espaços existentes na
hospedaria, havia inúmeras outras acampadas nas proximidades, na mais “deplorável
promiscuidade”. Muitos se abrigaram na igreja, em construção próxima ao acampamento (O
Povo, em 29 de abril de 1958). A superlotação, que piorou ao longo dos meses, instigou os
flagelados a ameaçarem as autoridades governamentais com uma nova “marcha da fome”,
caso os problemas não fossem resolvidos.
Essa “marcha da fome”, aparentemente permaneceu apenas como ameaça, mas outros
conflitos ocorreram devido aos problemas existentes na hospedaria. No início de maio de
1958, inúmeros “flagelados revoltados expulsaram da Hospedaria Getúlio Vargas” Waldemar
Nepomuceno, diretor da hospedaria, promovendo um “quebra-quebra” – quebraram vidraças
de janelas, a cozinha e o refeitório. Alegavam que o mesmo os tratava de maneira brutal,
negando-lhes abrigo ou alimentos. De acordo com a imprensa, o respectivo diretor
desobedeceu inclusive as determinações do governador Paulo Sarasate, que havia sugeriu ao
diretor que fossem alistados mais algumas pessoas, das muitas que se encontravam
desabrigadas.
Após a saída do diretor Nepomuceno, a imprensa afirmava que a hospedaria voltou “à
completa normalidade”, sendo instalada uma cozinha de emergência e 800 barracas doadas
pelo exército (Unitário, 06 de maio de 1958). Podemos questionar, contudo, o que a imprensa
considerava “normal”, já que as condições de vida dos abrigados eram as piores possíveis:
uma média de três crianças morria por dia, chegando a 420 mortes entre janeiro e junho. O
9
Acreditava-se que com o fim da seca, em 1953, a hospedaria havia encerrado suas atividades. Mas ao analisar o
livro de Gisafran Jucá, percebemos que em 1954 flagelados abrigados na hospedaria foram usados pela polícia
para derrubar casebres, construídos irregularmente no bairro Coqueirinho.
45
jornal O Semanário, contudo, alertava que “estão morrendo 10 crianças, por dia, de fome”.
Além disso, afirmava que
durante a seca de 1970. Vale ressaltar, contudo, que desde a sua inauguração, em 1943, a
hospedaria tornou-se uma referência para os retirantes durante os períodos de estiagem.
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Brasilia: Fundação Nacional de Saúde, 1996.
45
Resumo: Em meados dos anos 1970, muitos filmes nacionais, entre eles Tenda dos Milagres
(1977), do cineasta Nelson Pereira dos Santos, foram inspirados/produzidos a partir da
adaptação de obras literárias tidas como delineadoras da identidade nacional, sobretudo as que
trazem em seu conteúdo categorias como o povo e o negro, e principalmente a noção de
miscigenação. Por esse viés, este artigo tem por objetivo traçar uma análise sobre como a obra
do romancista Jorge Amado influenciou a produção político-cultural do cinema de Santos, no
que concerne a referência à identidade nacional e a miscigenação. Para tanto utilizaremos a
análise das fontes-bases, a saber, o romance Tenda dos Milagres (1969) e o filme homônimo,
além de entrevistas e fontes memorialísticas de ambos os sujeitos. Os principais referenciais
teóricos foram: Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior, Douglas Rodrigues de
Sousa, Carolina Fernandes Calixto.
Palavras-chave: Miscigenação. Cinema nacional. Literatura.
Introdução
O escritor baiano, Jorge Amado, que teve uma longa carreira literária de destaque
nacional e internacional durante o século XX, se constituiu um referencial a muitos setores da
produção artística nacional de seu período. É dentro deste âmbito, que muitas de suas obras,
entre elas o romance intitulado Tenda dos Milagres, publicado em 1969, – um dos objetos da
pesquisa – ganharam espaço dentro do cinema nacional.
No ano de 1977, o cineasta Nelson Pereira dos Santos levava às telas do cinema seu
filme Tenda dos Milagres, um homônimo do romance de Amado. Em muitas de suas
declarações o cineasta destacava sua ligação com o romancista, sobretudo na formação de se
pensamento intelectual. Essa relação está diretamente vinculada com a definição de Brasil, ou
nacionalidade, assumida discursivamente por Jorge Amado e sistematizada em seu romance
nos termos de um país mestiço. Partindo dessa perspectiva nos questionamos: em que medida
a produção político cultural do cinema de Santos é de influência amadiana?
1
Graduando do curso de Licenciatura Plena em História – UFPI/CSHNB. Pesquisador de Iniciação Científica
Voluntária (ICV/CNPq) no projeto “‘Uma câmera na mão e o Brasil no olho’: cinema, experimentalismos e
intertextualidades no Brasil dos anos 1960 a 1990”.
2
Doutor em História Social pela Universidade Federal do Ceará. Professor na Universidade Federal do Piauí,
atuando no curso de História do Campus Senador Helvídio Nunes de Barros e no programa de Pós-Graduação
em História do Brasil. Co-líder do GT “História, Cultura e Subjetividade” (DGP/CNPq).
45
Em meados dos anos 1970, muitos filmes nacionais, entre eles Tenda dos Milagres
(1977), foram inspirados/produzidos a partir da adaptação de obras literárias tidas como
delineadoras da identidade nacional, sobretudo as que trazem em seu conteúdo categorias
como o povo e o negro, e principalmente a noção de miscigenação. Neste contexto,
pretendemos percorrer pelo recorte espaço-temporal entre os anos de 1960 a 1980 que passa
pela publicação do romance de Jorge Amado em 1969 e do lançamento do filme de Nelson
Pereira dos Santos em 1977, como mecanismo de perceber a circulação e recepção da obra do
romancista enquanto referencial de uma imagem de Brasil, partindo ainda para a comparação
entre os imaginários desses artistas. As principais fontes utilizadas serão o próprio romance e
a adaptação par o cinema, além de relatos memorialísticos, biografias e jornais.
JORGE AMADO. Um mito erguido durante os intensos anos do século XX. Dele se
esvaziou o que é próprio do sujeito histórico, suas contradições e imprevisões do tempo, para
dar formato a um ícone nacional. Elevado enquanto intérprete do Brasil, ou mesmo sua
personificação, quanto mais o próprio criador da brasilidade mestiça, e sistematicamente as
categorias que incidiram como símbolos da identidade nacional. De Gabriela, o brasileiro e o
eleitor estrangeiro descobriram a cor e o cheiro da típica mulher mestiça deste país (“a cor de
cravo e o cheiro de canela”); do herói Pedro Archanjo, “pardo, pobre e paisano”, “Ojuobá”,
“os olhos de Xangô”, constatou-se a fibra do bom brasileiro mestiço, contrário aos
preconceitos, principalmente o racial.
3
Expressão utilizada pela historiadora e antropóloga Lilia Mortiz Schwarcz ao se referir a Jorge Amado em seu
ensaio contido no Caderno de Leituras publicado pela Companhia das Letras. Ver em: GOLDSTEIN, Ilanna
Seltzer; (Org.). O universo de Jorge Amado: orientações para o trabalho em sala de aula. 1 Ed. São Pauo:
Companhia das Letras, V. 2., 2009. (Caderno de Leituras, Coleção Jorge Amado). p.34
46
De fato, debruçar-se sobre a obra de Jorge Amado é estar diante de um dos principais
romancistas da literatura brasileira do século passado, com uma trajetória intelectual notável
para além dos quadros nacionais, e que influenciou muitos de seus contemporâneos. Nosso
esforço nessa seção é perceber como essa associação a Amado foi construída, de modo a
identificar como a mesma norteou a formulação de um referencial.
A epígrafe destacada acima, retirada do recente livro publicado pela editora
Companhia das Letras, intitulado de Com o mar por meio: uma amizade em cartas, que reúne
as várias correspondências trocadas entre o escritor português José Saramago e Jorge Amado,
– durante os anos de 1992 e 1998 – além de demonstrar o caráter popular dos autores e um
exercício de adentrar ao íntimo para a sedimentação da memória, traz um aspecto importante
para o que propomos analisar. O fragmento destacado demonstra algo muito recorrente nas
referências que artistas e intelectuais, como Saramago, fizeram a Jorge Amado: a associação
deste com o Brasil. A expressão “no fim do mundo, Jorge Amado recordará o Brasil”, denota
a ligação que o escritor português associa a Amado em relação a seu país, e que, sobretudo
este insistiu sempre em lutar por essa nação.
Tal contexto é diretamente tributário da memória consolidada entorno de Jorge Amado
como um dos principais intérpretes do Brasil, ou seja, como aquele que melhor soube
investigar nossa realidade, semelhante ora a um antropólogo, ora a um historiador, e transpô-
la às páginas de seus romances. Isto está ligado ao próprio processo histórico de inserção do
romancista nos âmbitos das artes e da intelectualidade nacional, como também as categorias
ou tipos narrativos da maioria de seus escritos que se ocuparam do tema Brasil, seja na
política ou na cultura, na sedimentação das noções de povo, cultura negra, miscigenação,
cultura mestiça, sincretismo, entre outras, que como aponta Goldstein “Seja como militante
político no início da carreira, seja como romancista que enaltecia os mestiços, suas festas e
seus sabores, [...] Jorge Amado sempre discutiu questões de âmbito nacional.” (GOLDSTEIN,
2003:38)
No entanto é imprescindível desnaturalizar o mito e colocar em relevo os aspectos de
sua configuração. Como estabelece o estudo de Carolina Calixto – muito importante no
sentido de investigar como se consolidou uma memória sobre o romancista enquanto
intérprete do Brasil – “externar um modelo de nação através da literatura nem sempre foi uma
preocupação que esteve claramente presentes na elaboração de suas narrativas”, (CALIXTO,
2011:154) essa associação foi elaborada pelo próprio artista e por diferentes sujeitos de seu
tempo, e em contextos específicos, como pretendemos analisar.
46
4
Declaração feita por Nelson Pereira dos Santos em 1987; ver em notas da autora. SANTOS, Nelson Pereira
dos. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Trad. Annie Dymetman. São Paulo: Record,
1992. p. 122
46
Nelson Pereira dos Santos apresentaria a tese de que o público brasileiro ofereceria
“apoio irrestrito às obras do nosso cinema porque nele esperava o reflexo de sua
vida”. Portanto, para o cineasta: “tornar-se-á fator decisivo para a aceitação
pública de nossos filmes [...] um conteúdo de características nacionais’.” (SILVA,
2015:304)
Para mim, ainda muito jovem, ‘Jorge Amado foi o grande professor do Brasil’; ele
nos ensinou a ver. E na prática, nas grandes campanhas culturais, a realização do
congresso para o cinema, ele sempre estava na frente – como ele estivera desde o
começo, através da sua presença literária. Eu o conheci em São Paulo, quando ele
era deputado e um dos líderes da esquerda no setor cultural. Tornei a encontra-lo
depois no Rio. Quando Rio 40 Graus foi proibido – ele era acusado de dar uma
imagem negativa do Brasil, e portanto de ser subversivo! – foi novamente Jorge
46
Amado que encabeçou um movimento a meu favor. Ele escreveu um belo artigo.
(SANTOS apud RAILLARD, 1992:122)
A indicação que Santos faz entre a sua juventude, colocando Jorge Amado como “o
grande professor do Brasil” e aquele que “nos ensinou ver”, ressalta tanto o aspecto formativo
de sua maneira de encarar a sua noção de Brasil, como também a do ciclo dos demais
cineastas. Ou seja, suas relações com o romancista tem seu cerne naquilo que ele representa
enquanto referencial, uma vez que Santos o destaca como alguém sempre presente nos
debates cinematográficos, desde sua presença física como também “sua presença literária”.
Isso nos indica o espaço que Amado, tanto como artista e intelectual, e o conjunto de sua
obra, seus romances, assume por aqueles que o considera intérprete do Brasil.
Os pontos de contato entre os dois artistas começaram desde muito cedo, na década de
1950, tanto que Jorge Amado afirma que na época em que conheceu Santos, este era “quase
uma criança”. (AMADO apud RAILLARD, 1992:111) Ambos fixam como o início de suas
relações o marco do lançamento do filme Rio, 40 Graus no ano de 1955, que representou o
momento da projeção de Santos no cinema nacional. A política cultural lançada por aquele
filme “gerou uma grande polêmica entorno da representação da realidade brasileira”, ao
projetar “em imagem cinematográfica uma capital federal distante daquela dos cartões-
postais”. (SILVA, 2015:304) É nesse interim que o filme foi censurado, e simultaneamente
desembocou um movimento de liberação da película, do qual Amado participa ativamente.
Além desses fatos de ligação dos artistas, na própria composição temática e o arranjo
do filme, Santos considera que “é flagrante a apropriação dos personagens – os meninos
pobres – dos primeiros livros de Jorge.” (SANTOS apud FRANCESCHI, 1997:30) Neste
aspecto é importante destacar o recente estudo, na área da literatura, do professor Douglas
Rodrigues de Sousa (2017), intitulado de Tenda dos Milagres – romance, roteiro e filme:
recriação e presença, em que o autor analisa a relação semântica entre a obra do escritor
Jorge Amado e do cineasta Nelson Pereira dos Santos, enfatizando que desde as primeiras
produções de Santos há um profundo perfil de ligação entre o segundo artista em relação ao
primeiro, a partir da escolha de determinados temas esboçados pelo romancista.
O que de fato assinala a influência mais direta dos escritos de Jorge Amado – tanto na
composição da película, bem como a fonte de conteúdo político-cultural – na trajetória
carreirista de Nelson Pereira dos Santos é o filme homônimo, lançado em 1977 pela
companhia cinematográfica Regina Filmes, a partir da adaptação do romance Tenda dos
Milagres de Amado. Inclusive, um fato a se destacar é que o próprio romancista participa
46
5
Jorge Amado compõe o tipo narrativo entorno de seu personagem principal partindo das referências de alguns
sujeitos históricos, tomando alguns fatos como plano da narrativa. Ver mais sobre isso em: GOLDESTEIN, Ilana
Seltzer. O Brasil best seller de Jorge Amado: literatura e identidade. São Paulo: Editora Senac, 2003. p. 175
46
pelos autores, o que consequentemente não deve ser compreendido como um apoio daqueles
ao regime.
A luta contra o racismo foi à categoria que preencheu a intencionalidade de boa parte
da escrita de Amado e da construção de uma imagem de sí. Por outro lado, a tomada dessa
figura por Santos, dentro das circunstancias postas em meio ao cinema nacional nos anos de
1970 – como defesa do elemento da miscigenação enquanto superação do problema entorno
das raças – via-se, naquele recorte, às nuances da contestação de suas visões, até aquele
momento divulgada e aceita por muitos setores. Em meados da década de 1970 e idos de
1980, despontava no Brasil uma significativa mudança entorno da noção de “raça”, e como
determinados grupos passaram a elaborar uma nova identidade racial, de modo que
despontavam intelectuais negros que contestaram amplamente a veiculação da ideia de
“democracia racial”, na forma como o povo e o negro eram representados pelo cinema
nacional. (SANTIAOG Jr, 2012)
Neste contexto, as críticas lançadas ao filme Tenda dos Milagres, passavam pela ideia
de mestiçamento e pelo quadro da democracia racial, como se vê nessa declaração do
sociólogo Muniz Sodré em 1977:
nos princípios de 1960, a visão de Jorge Amado sobre o debate racial era aceita, inclusive
pelo movimento negro – no tocante a exaltação da cultua negra, como a importância dada ao
Candomblé em seus livros – (CALIXTO, 2011:120) a partir dos anos 1970 o confronto a esse
modelo foi inevitável. Emergia no cenário nacional a influência de ideias que incidiram na
ordem política, sobre a constituição de um movimento negro, com outras questões, e que
contestavam o pensamento sobre a “democracia racial brasileira.” 6 (PEREIRA, 2010)
A dimensão construída na narrativa do livro de Jorge Amado, e compreendida por
Nelson Pereira dos Santos como um produto cultural (dentro da ficção literária), pautado nos
elementos capazes de dar respostas às questões cinematográficas, sobre a identificação do
“Brasil”, demonstra por si só como a obra do romancista foi posta no lugar de referência. O
confronto entre as ideais dentro do debate racial, também assinala a forma como estes artistas
ocuparam um dado setor do campo artístico, compartilhando de determinados signos e
conceitos.
Considerações finais
Como é perceptível, o objeto é demasiado complexo. As temporalidades abordam
questões igualmente amplas, que compõem um cenário entorno do ideário de uma época.
Quando promovemos o debate que relaciona a literatura e o cinema – estes campos do
pensamento social, através das artes – visualizamos a maneira como os sujeitos elaboram a
forma de pensar sobre sua atuação em sociedade e quais os componentes fazem parte da
mesma. Um tipo de cinema engajado nas questões culturais e sociais, que toma a expressão da
arte literária como via de acesso, para além da diegese ficcional, de uma pretensa realidade,
demonstra como estes atores sociais são tomados enquanto representantes da identidade
coletiva de seu tempo.
O romancista Jorge Amado, percebido como artista da brasilidade, e principalmente
do lugar social alcançado por aquele, no âmbito dos meios intelectuais e culturais brasileiros,
somado ainda as categorias narrativas abordadas pelo autor, fez com que a sua projeção
enquanto um intérprete do Brasil fosse assumida por outros setores além dos círculos
literários. Nelson Pereira dos Santos recorreu, por sua vez, a essa imagem consolidada
entorno do escritor, associada ao destaque de sua obra, trazendo para o debate político e
6
Jorge Amado tinha consciência das questões lançadas pelo movimento negro, e deu algumas considerações
sobre como o mesmo entendia a atuação e o debate proposto, no entanto esta discussão será abordada em outra
oportunidade em nossos estudos.
47
cultural do cinema, um referencial para embasar a discussão das noções étnicas que ocupavam
espaço nos vários setores sociais do Brasil naquele momento, como elemento identitário.
Dado o cenário em que as noções étnicas são revistas, no despontar de novas
concepções na década de 1970, o estudo discute a importância de revelar como os
antagonismos se constituem entorno de uma mesma problemática, e de como essa fase
histórica demonstra os posicionamentos frente ao racismo e a ligação do elemento racial
enquanto definidor do nacionalismo.
Referências bibliográficas
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47
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NASCIMENTO, Francisco Alcides do; VAINFAS, Ronaldo (Org.). História e Historiografia.
Recife: Bagaço, 2006.
47
Resumo: As linhas que se seguem são um esforço de análise da obra do escritor angolano
José Eduardo Agulausa tomando-a como uma possibilidade de compreensão da história de
Angola. Passando por um debate que envolve Literatura, história, memória e identidade,
tenta-se situar a produção do autor como um discurso que não é apenas inventivo, mas que
possibilita a compreensão do passado e a ele coloca questões, tal como faz a História e os
historiadores.
Palavras chave: Ficção História. Angola. José Eduardo Agualusa.
Introdução
No dueto de vozes dissonantes que falam sobre o passado, lugar comum que
didaticamente se convencionou chamar de historiografia, há sempre os revezes e as
contradições, estas que acabam sendo o forte combustível de seu motor. Já diria o outro: “[...]
a história é filha da memória” (VEYNE, 2008, p.13), mas isso só resolveu o problema que
vem a ser a missão de se fazer história por um curto intervalo de tempo. A memória, em si,
não pode ser história, gritam os histéricos do outro lado. E é nesse interim, do que pode ou
não ser considerado história, que desfilam os grandes debates da Nova História, que aqui nos
interessam não só por uma questão de mérito, do tipo que reflete sobre o que pode ser
historicizado ou não, inclusive essa questão já se esgoelaram por resolver, mas por esta outra
questão que trata de quais tipos de discursos podem ser aceitos como porta-vozes do passado,
e esta última questão é um tanto mais violenta.
Como apanágio da violência do debate podemos eleger o drama de amores e
dissidências que rodeiam a proximidade (ou distância) entre história e literatura. A discussão
é sofrida, mas necessária. E é nesse sentido que estas linhas seguem: numa discussão da
arrefecida relação, tomando, ora como pano de fundo, ora como cortina de centro, a obra de
José Eduardo Agualusa e as possibilidades oferecidas por ela na compreensão do passado e
das complexidades do presente na Angola de todas as cores. Tendo por princípio que
1
Graduando em História pela Universidade Federal do Piauí – CSHNB e aluno veiculado ao Programa de
Educação Tutorial, PET conexão de saberes: cidade, saúde e justiça.
2
Graduanda em História pela Universidade Federal do Piauí – CSHNB e aluna veiculado ao Programa de
Educação Tutorial, PET conexão de saberes: cidade, saúde e justiça.
3
Professor Doutor, ligado ao departamento de História da Universidade Federal do Piauí – CSHNB.
47
Literatura e história são formas de retratar a realidade, de registrar e dar sentido a um período,
de transparecer um clima, a modéstia ou o arrivismo de uma época. Seus fazeres são coisas
demasiado diversas, isso é verdade, são gêneros discursivos com algumas especificidades,
mas não isentos de um entrecruzar de possibilidades, sobretudo por serem discursos
produtores de sentido, construídos por sujeitos banhados de subjetividade.
Tomamos, nas linhas que se seguem, quatro dos romances do autor para procedimento
da análise e da discussão. A escolha se deve notadamente a proficuidade dos textos na
discussão que aqui propomos, não deixando de constar também o imenso leque de outras
possibilidades que os demais romances do autor podem proporcionar. Os romances escolhidos
são: O seu segundo romance, Estação das Chuvas, de 1996; o romance epistolar Nação
crioula, de 1997; e por fim, o premiado romance O Vendedor de Passados, de 2004. A análise
também tem como pilar alguns autores que ajudam a pensar melhor a questão como Maurice
Halbwachs, Paul Veyne, Sandra Jathahy Pesavento, Hayden White, Durval Muniz, entre
outros. E mesmo sem a mínima esperança de que uma divisão em categorias dê a conhecer em
sua completude o debate, ainda assim a faço, por amor as causas perdidas, colocando, tal
como fazem com as várias apresentações de Foucault, o autor aqui analisado dividido em dois
tópicos que abrangem um terceiro que em letras bem colocadas não está: O Agualusa
tematizador, o Agualusa historiador e o Agualusa literato, que é a junção de todos os pedaços
disformes.
Agualusa: o tematizador
José Eduardo Agualusa se destaca na atualidade como um dos maiores nomes da
literatura africana de língua portuguesa. Sua vastíssima obra tem forte apelo e embasamento
histórico, onde se vê a todo momento em seus escritos uma necessidade de articular ficção e
realidade no esforço constante de registrar e refletir sobre a história de Angola, seu país de
origem e palco da maior parte da sua criação. Tomando como questão fundamental o interesse
do autor supracitado por discussões em torno da memória, dos usos do passado, da histórica
questão racial e escravidão, da colonização portuguesa e das lutas enfrentadas por angola em
seu processo independentista e mesmo após ele, é que faz dele um escritor tão profundamente
interessante para se poder analisar, através da produção literária, novas possibilidades na
compreensão de uma nação e de um povo tão marcados por ritos e reveses, por conflitos e por
uma profunda relação com a memória e, sobretudo, com o esquecimento.
Tematizador polêmico, talvez por influência de sua vasta experiência como jornalista,
o escritor angolano nascido aos anos 60 do século XX, coloca uma carga de crítica em seus
47
romances que o faz merecedor da alcunha. Sua escrita claramente não é desinteressada, ela é
recheada de temas insólitos, para muitos intocáveis, meche em feridas históricas ainda não de
todo saradas, diz, a partir da liberdade que a literatura lhe oferece, o que não se costuma ou o
que não se quer ouvir. Talvez a obra que mais acentua seu tom de polemista e crítico seja o
romance Estação das Chuvas, publicado em 1996 em plena guerra civil angolana. O romance,
que parte de uma personagem fictícia, Lídia do Carmo Ferreira, toma logo seu viés de
percepção histórica, isto porque os personagens fictícios logo começam por estabelecer
relações com personagens reais da luta pela independência de Angola e da luta armada que se
seguiu. O romance é uma crítica e uma revisão encabeçada pelo autor desse momento
histórico. A partir, sobretudo, da trajetória dos intelectuais que embasaram todo o conflito
como Agostinho Neto, Viriato da Cruz e Mario Pinto de Andrade, Agualusa tece ficção e
realidade em uma reflexão sobre os revezes e as contradições do processo. É, para além de um
registro de uma versão da luta, uma tentativa de compreensão da formação dos “heróis”
angolanos da independência: “Nesse contexto, Agualusa questiona os detentores do poder e a
quem se deve libertação: agradecer pela libertação: aos esquecidos ou aos lembrados? ”
(GUARIENTI, 2015, p. 21).
Não é, portanto, somente uma obra ficcional. São tomados elementos do real,
embasados por pesquisa e, sobretudo, pela memória, esta possibilitada por uma vivência em
se tratando de uma história ainda recente. Referências a fatos ocorridos, a pessoas e a períodos
bem situados historicamente, a posicionamentos e dissidências politicas acontecidas, o livro é
uma leitura de história com os sabores do romance. Verifiquemos um trecho:
de proclamação, cubanos combatiam para que Agostinho Neto pudesse falar ao povo e o
clima de incerteza, esse sim, era a pauta principal daquele dia. Este trecho serve, sobretudo,
para perceber o quanto de verdade pode haver em uma narração que se diz ficcional, mostra
que a escrita deste autor não pode ser facilmente limitada a um ou outro polo da discussão, a
um ou outro lado do fazer. E ainda temos que, tal como a História sonha em fazer:
Aqui então encontram-se os fios. A literatura é até bem aceita na atualidade como
fonte histórica, isso é muito comum, inclusive. Mas a partir do momento em que se trata de
ela mesma colocar percepções a partir e sobre passado ela é duramente rechaçada. Agualusa,
como um bom inconveniente, se encontra no entremeio das duas colocações. Ele escreve
sobre o passado, colocando impressões sobre ele, podia-se então, em um manto de coragem,
alcunha-lo de historiador, mas ao mesmo tempo ele é fruto dos processos sobre os quais
escreve, ele mesmo os presenciou, os viveu, podendo também ser uma fonte para análise. Um
tematizador que não se contenta em revisitar o passado e colocar problemas a ele, mas que
também coloca questões que o conhecimento histórico ainda anseia por resolver como é o
caso de até onde vão os limites entre real e inventado. Sua escrita é testemunha mordaz de um
tempo e faz sátiras sobre a história que ela própria conta.
Mas os temas insólitos colocados por Agualusa não se limitam a luta de independência
e suas contradições. No romance Nação Crioula de 1997, por exemplo, ele aprofunda sua
percepção histórica e lança mão de uma escrita que problematiza não mais uma história
recente, sobre a qual ele poderia, a partir de sua própria memória, colocar impressões. Pelo
contrário, ele regressa à segunda metade do século XIX para tematizar a questão do tráfico
negreiro e, sobretudo, as questões políticas, econômicas, ideológicas e geográficas que o
possibilitavam. A visão do comércio negreiro de Agualusa, podemos dizer, que é basicamente
o de Alencastro (2000), é o Atlântico negreiro. É a partir de uma visão tricontinental
envolvendo Angola, Portugal e Brasil, interligados pelos sedentos navios sobre o Atlântico,
que ele coloca uma compreensão do estopim dos últimos anos da escravidão, mesclando uma
sátira feroz ao Portugal do período, que sentimentalmente não abria mão de sua ação
colonizadora, civilizadora, uma constatação sobre a condição de elites negreiras em contraste
com escravos em Angola, estes depois enviados a sorte de seus deuses pelo fundo Atlântico
47
até o Brasil, onde se desencadeava a luta abolicionista. Este romance tem um forte
embasamento histórico que pode ser observado nas similaridades com o relato de grandes
historiadores como o próprio Alencastro sobre o Atlântico negreiro e também Russel-Wood
(1998) em sua discussão sobre a condição de dominância de Portugal sobre suas colônias.
pensar que “Lembrar o passado e escrever sobre ele não mais parecem atividades inocentes
que outrora se julgava que fossem. Nem as memórias nem as histórias parecem mais ser
objetivas. ” (BURKE, 2000, p.70). A memória em Agualusa, sobretudo quando fala na
constituição de Angola, embasa-se em fatos que realmente aconteceram tanto mais
inverossímeis do que sua própria capacidade de inventar.
Para encerrar aqui este já muito extenso tópico destaco quatro ideias contidas nos três
romances citados que resumem o que foi dito do Agualusa tematizador. A primeira delas diz
respeito a última frase de Estação das Chuvas: “Este país morreu! ” (AGUALUSA, 1999, P.
186) do Agualusa que vê a guerra civil acontecer, vê a história de Angola seguindo um rumo
incerto, uma fala que tem uma incalculável conotação política. A segunda é: “Ao longo de
quatro demorados séculos construímos um império, vastíssimo, é certo, mas infelizmente
imaginário. ” (AGUALUSA, 2007, P. 80) fala que um personagem faz em Nação Crioula
sobre a condição política da colonização portuguesa, uma crítica fina a um processo de
colonização que, na sua visão, não foi tão efetivo e por isso rendeu tantas mazelas. Por último:
“um homem que traficava memórias, que vendia o passado, secretamente, como outros
contrabandeiam cocaína. ” (AGUALUSA, 2004, p. 16) e “A memória é uma paisagem
contemplada de um comboio em movimento. ” (AGUALUSA, 2004, p. 153) trechos estes de
O Vendedor de Passados que também é uma sátira aos historiadores, às dificuldades que o
falar sobre o passado impõe e da impossibilidade de controle deste, crítica aos fazedores de
história ainda embebidos no liquido da verdade profunda e absoluta. Agualusa, um
tematizador, um polemista, enfim, e em boa sintonia com o significado de seus escritos, um
profanador.
Agualusa: o historiador
Muito do Agualusa historiador já foi dito. Mas para situa-lo como um intelectual no
cerne da discussão é preciso primeiro um debate, um debate sobre hierarquia de discursos que
irá nos ajudar a entender melhor a produção de Agualusa e de como ela pode ser considerada
uma ponte de compreensão do passado.
Jurandir Malerba (2011, p.23) destaca que desde os historiadores cientificistas da
virada do século XIX para o XX já existia a preocupação com a interdisciplinaridade embora
de uma forma “imperialista”, considerando aos outros campos apenas como disciplinas
auxiliares. Atualmente a história é extremamente interdisciplinar, contando com a
colaboração de conhecimentos de várias outras áreas em seu fazer, nesse sentido certamente a
ascensão máxima do que atualmente se convenciona chamar de “História Cultural” foi uma
de
48
suas grandes fortalecedoras. A relação com a antropologia, por exemplo, se tornou tão cara ao
conhecimento histórico nesse período que hoje é impensável uma História que não esteja
aberta ao conhecimento antropológico. Além disso “o contato da história com suas disciplinas
vizinhas já não se pauta por aquela postura arrogante de quem apenas precisava de alguns
serviços técnicos. O diálogo é de igual para igual” (MALERBA, 2011, p.26). Mas ainda
existe uma área que suscita imensos debates no que diz respeito a sua relação com a produção
do conhecimento histórico: trata-se justamente da literatura. Esta última, infelizmente, não é
considerada pelos entrincheirados historiadores como um campo em pé de igualdade com a
história. Há uma aversão, um preconceito ou, pior, um medo. Durval Muniz destaca bem a
separação feita na atualidade a esse respeito que, inadvertidamente, desaba no erro grotesco
de percepção subjetiva atrelada somente a Literatura:
A relação estabelecida em que a literatura é usada como fonte, esta sim é até bem
aceita, como já dito. Mas desde que não se passe disso. O que queremos dizer é que o
Agualusa historiador não apenas é merecedor dessa alcunha por suas obras poderem ser
usadas como fonte para compreensão do contexto de sua escrita – isto também – mas
sobretudo por construir uma determinada versão do passado, uma percepção sensível de um
período histórico e apresenta-la de forma a difundi-la, de uma maneira a dar a conhecer o
passado.
O Agualusa historiador se apropria de uma forma de falar sobre o passado bem
especifica. Não há somente o garimpo de fatos históricos que ele aleatoriamente faz uso para
beneficiar sua criação ficcional. Não. Os fatos históricos colocados obedecem a uma ideia, a
uma crítica a certo aspecto do passado, a uma confrontação de outros discursos na tentativa de
chegar a uma compreensão de acontecimentos caros ao entendimento da constituição de
Angola. Ele não lança mão dos fatos históricos simplesmente como uma ferramenta
endossadora – o que comumente se atribui a escritos literários com uma proposta mais ou
menos parecida – o passado, sua compreensão e uma certa crítica a história oficial é também
sua questão central.
Entretanto, e em se tratando de falar sobre o passado não há nenhum inocente,
Agualusa também está submetido a uma subjetividade avassaladora, tal como os próprios
48
historiadores. Sua imparcialidade por exemplo fica de certa forma escancarada em Estação
das Chuvas. O livro que tem um forte tom político sobretudo de crítica a postura dos
vencedores, isto é, do governo do MPLA, e que trata justamente dos vários “heróis”
angolanos da libertação, é dedicado por Agualusa a Mário Pinto de Andrade, um dos
fundadores do dito MPLA e depois um de seus dissidentes. O Agualusa historiador
certamente não estaria completo se não compartilhasse com os historiadores essa que é uma
de suas maiores mazelas: a constante cobrança e a ainda mais constante impossibilidade de
domar aos rigores a subjetividade de quem fala pelos mortos. Agualusa escreve influenciado
por um contexto do qual é fruto e participante ativo, tal como todo e qualquer escritor.
Ainda aqui é interessante observar que a fase “historiadora” não está presente em
todas as obras do autor analisado, ela se manifesta com maior clareza em seus primeiros
romances, sobretudo até As Mulheres de Meu Pai, publicado em 2007. Daí em diante o autor
procede em seus romances de forma a notabilizar mais seu tom inventivo, inclusive há uma
preocupação do autor em destacar que o que ali está escrito é apenas ficção, fato que acontece
logo antes do início de Teoria Geral do Esquecimento (2012), por exemplo, o que vem a
contrastar, e talvez por causa disso mesmo, com o tom histórico dos seus escritos anteriores.
Mas o seu lado tematizador de grandes questões e também de temas controversos não
desaparece, pelo contrário parece agora abrir as margens de um competente “Agualusa
sociólogo”.
Por fim, cabe ressaltar que são as inúmeras possibilidades que rodeiam a literatura em
contraste profundo com a História que nos permitem alcunhar o literato angolano de
historiador. Na oportunidade cita-se:
A questão não é, portanto, relacionada aos objetos do fazer, caminho traçado por
grande dos que discutem a temática, mas a própria maneira de assim o fazer. Agualusa conta
versões da história envolvendo alguns acontecimentos de Angola, fato inegável, resta-nos
entender em que medida seu discurso é percebido apenas como simples ficção ou como um
discurso banhado de cunho histórico que possibilite a compreensão do passado e,
consequentemente, das complexidades do presente.
48
Considerações finais
O padecimento da memória, sua fragilidade e os equívocos que rodeiam sua
construção ou reconstrução, as possibilidades no uso do passado, a ficcionalização do real ou
o entrelaçamento entre o real e o inventado, uma narrativa que se localiza em contextos
históricos “reais”, com personagens reais, e deles se aproveita na sua construção. A História
entre o real e o inventado, entre ética e estética, entre a memória e o sonho. O passado
tematizado em seus horrores e em suas belezas, em suas lógicas ou em suas contradições,
dento de uma literatura que não somente entretém, mas dá a conhecer determinado período
histórico com uma profusão de interessantes possibilidades. A identidade construída, fio a fio,
em processos históricos em sua grande maioria mais inverossímeis do que o próprio ato de
invenção literária. Assim, a obra de Agualusa se mostra, também, como uma possibilidade na
compreensão da história de Angola. Uma forma peculiar de apresentação do passado que não
fica atrás dos grandes manuais de história, justamente por ser uma versão, uma busca de
entendimento e não a tentativa de explicação completa, esta tarefa ficou lá atrás com os
positivistas de além mar.
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48
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2008. p. 69-88.
WHITE, H. Trópicos do Discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: EDUSP,
2001.
48
1. INTRODUÇÃO
O objeto de estudo deste trabalho é os intelectuais em suas relações com o poder.
Antes de analisarmos as especificidades dos intelectuais Mário Pinto de Andrade e Amílcar
Cabral no contexto colonial português, durante o processo de libertação nacional, optei por
fazer uma breve análise histórico-sociológica da categoria intelectual, cujas discussões
percorreram todo o século XX. Durante este período, os trabalhos de Julien Benda, Benedetto
Croce, Gramsci, Karl Mannheim, Ortega y Gasset, Norberto Bobbio, Bourdieu e Edward Said
são autores que refletiram sobre este objeto de estudo, os intelectuais.
Todas as sociedades em todos os tempos tiveram seus intelectuais ou aqueles que
detêm o poder ideológico (sábios, doutos, filósofos, literatos, casta religiosa, sacerdote ou
clérigos), que atuam nas mentes pela produção e transmissão de ideias, de símbolos, de visões
de mundo ou de ensinamentos práticos (BOBBIO, 1997, p. 11). Os intelectuais, portanto, não
se restringem apenas aos sujeitos urbanos letrados da modernidade eurocentrada, podendo
uma comunidade negra ou indígena do campo ou das florestas também possuir seus
representantes que atuam na função de intelectual, apesar de serem nomeados com outras
nomenclaturas.
4
Mestrando na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) no Mestrado
Interdisciplinar em Humanidades. Email: wendel230@hotmail.com.
48
De todo modo, as origens modernas do termo intelectual estão ligadas com o caso
Dreyfus (1898). Este fato ocorreu na França, quando Emile Zola, defendendo os valores da
justiça e da verdade, publica uma carta-aberta ao Presidente Félix Faure, em 13 de janeiro
1898, no jornal parisiense L’aurore, protestando contra o julgamento iníquo de Dreyfus.
Durante alguns dias, vários artistas, jornalistas, professores universitários, escritores,
advogados, arquitetos, músicos e profissionais de outras áreas publicaram seus protestos nos
jornais franceses, defendendo o posicionamento de Emile Zola. Já, no dia 23 de janeiro de
1898, o chefe da redação do jornal L’aurore, George Clemenceau, afirmou que: “Não haverá
aqui um sinal, no facto de todos esses intelectuais chegados dos horizontes mais diversos, se
unirem em torno de uma ideia?” (BAUMAN, 2007, p. 227).
O nascimento do termo intelectual, portanto, originou-se no meio urbano e com
implicações políticas, haja vista ter como evento fundante uma carta endereçada ao
presidente, exigindo uma ação quanto ao julgamento de Dreyfus, que seria condenado em
virtude de sua origem judaica. Esse fato evidencia uma fricção entre detentores do poder
político e do poder ideológico, cuja relação é não-simétrica, alterando-se conforme as
circunstâncias de aliança ou de disputa (BOBBIO, 1997, p. 13). A partir do caso Dreyfus, os
intelectuais, enquanto “homens de letras” ou “homens de cultura da elite”, passaram a ser
identificados como um grupo crítico atuante nas questões políticas e/ou nas discussões
públicas da sociedade. Para Said (2005, p. 25-26)
A questão central para mim, penso, é o fato de o intelectual ser um indivíduo dotado
de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto
de vista, uma atitude, filosofia, ou opinião para (e também por) um público. E esse
papel encerra uma certa agudeza, pois não pode ser desempenhado sem a
consciência de ser alguém cuja função é levantar publicamente questões
embaraçosas, confrontar ortodoxias e dogmas (mais do que produzi-los); isto é,
alguém que não pode ser facilmente cooptado por governos ou corporações, e cuja
raison d’être é representar todas as pessoas e todos os problemas que são
sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapete.
A partir do século XVI, a Europa Ocidental foi cenário de uma cisão das elites por
iniciativa destas – de um movimento de extrema valorização, que congelava o resto
da sociedade na condição de uma “massa”, definida antes do mais pelos seus traços
de ignorância, irracionalidade, vulgaridade, brutalidade, deficiente humanidade,
insuficiente emancipação da natureza animal e estatuto de presa de paixões que
seria necessário domesticar ou sufocar. [...]. Os dominantes governavam agora em
nome da promoção de valores superiores – quer o fizessem protegendo-os da
contaminação e da degradação, ou difundindo-os entre a fração (grosseira,
impolida, não-civilizada) da população, o que lhes permitiam combinarem o papel
de vigilantes com o de professores. Este tipo de autodefinição reformulava a
dominação efetiva – política, econômica e social – nos termos de um projeto de
hegemonia cultural (BAUMAN, 2007, p. 230).
Essa reformulação do projeto de poder, ocorrido lentamente desde o século XVI tanto
na Europa quanto em suas colônias, causou a cisão entre elite e massa. Os “homens de letras”
eram os grandes portadores e divulgadores desses novos valores culturais. O processo
civilizador, portanto, implica a criação de novas formas de exercício de poder, de controle
social e de novas práticas culturais, nas quais a “massa” deveria adquirir costumes mais
refinados para evitar a “luta do homem contra homem”. Assim,
Foi esta última prescrição que abriu um espaço social funcionalmente importante
aos produtores e distribuidores de ideias. Pelo seu lado, estes últimos faziam todos
os possíveis por conseguir que à prescrição em causa fosse atribuída o mais
decisivo papel estratégico nos processos de construção e de manutenção da ordem.
A cultura enquanto teoria da ordem social e enquanto prática social de cultivo era
um produto deste reforço mútuo. A teoria considerava que os homens e as mulheres
por si próprios eram incapazes de coexistir pacificamente e estavam despreparados
para enfrentar as exigências complexas e forçosas da existência social; que não
seriam capazes de superar esta sua condição deficitária sem assistência qualificada,
e que por isso deveriam ser assistidos pelos “conhecedores”: teriam de ser
educados e educadas de maneira a que adquirissem as ideias e as competências que
os “conhecedores” asseveravam ser corretas e adequadas. A prática, por outro
lado, deveria instaurar o papel dos homens de ideias, fazendo-os ascender da ordem
social. (BAUMAN, 2007, p. 231).
que ainda não tinham entrado na via das transformações sociais profundas, mas se
haviam tomado já conscientes dos seus efeitos graças à invejável experiência dos
núcleos já “modernos” existentes no mundo contemporâneo, a modernidade não
era um resultado não planejado da mudança social: era concebida antes de vir a ser
realidade, e por isso, só podia ser pensada como um projeto deliberadamente
assumido, um objetivo conscientemente visado (BAUMAN, 2007, p. 232).
A Revolução Russa, ocorrida no início do século XX, adicionou cada vez mais sentido
político a categoria dos intelectuais ou intelligentsia, tornando-os agentes da modernização ou
transformação da sociedade. Desse modo,
Se a Guerra Mundial, que podia ser interpretada como uma luta entre opostas
razões de estado, havia exaltado a figura do intelectual independente, celebrando o
princípio ético do estar acima do combate, a Revolução Russa, que podia ser
interpretada ao contrário como a luta da liberdade contra a opressão, da justiça
contra a iniquidade, em uma palavra, do bem contra o mal, havia exaltado a figura
do intelectual engajado, participante, partidário, que devia escolher um lado (e essa
era uma escolha obrigatória), entrar corajosa e disciplinadamente (nada de
independência!) no combate. Porém, como a figura do intelectual independente
tinha duas faces, uma boa e outra má, conforme a independência fosse entendida
como um colocar-se acima do combate para encontrar uma solução mais adequada
para o conflito ou como um colocar-se fora do combate, em uma postura de
aristocrática indiferença com respeito ao drama da história, assim também sempre
teve duas faces a figura do intelectual engajado: de um lado, o porta-bandeira das
massas em marcha, de outro, o zeloso porta-voz das diretivas do Partido (BOBBIO,
1997, p. 132).
Esses dois eventos históricos são paradigmáticos para a figura do intelectual. Eles
colocam uma série de questões que os interpelam em sua formação e ação. Por exemplo, o
intelectual deve estar a serviço apenas da ciência ou pode estar ligado a alguma ideologia? É
possível a separação entre ciência e ideologia? Ele deve ser uma pessoa engajada ou não na
política? Se for engajada na política, deve seguir os interesses de seu grupo, de sua classe, de
seu partido ou das “massas”? Se não for engajado na política, qual é então seu papel em sua
sociedade e sua forma de ação no mundo? Qual a posição do intelectual sobre a relação entre
cultura e política, na medida em que eles, em suas origens, cumpriam o papel de serem
portadores dos valores da modernidade eurocentrada? O intelectual pode representar ou falar
pelo povo? Quem são os intelectuais? Essas questões, que emergiram sobretudo durante e
após as duas guerras mundiais, bem como os eventos dramáticos ocorridos no século XX,
holocausto e as guerras anticoloniais, se impuseram na ordem do dia aos intelectuais.
Em suma, os intelectuais, no sentido moderno eurocentrado que apresentei, são um
agrupamento formado no seio das elites das metrópoles ou das colônias, cuja missão inicial
era exercer o poder ideológico e defender os valores da civilização moderna eurocentrada,
mantendo a coesão social dos impérios coloniais em formação desde o século XVI. No
decorrer do processo civilizador europeu, os intelectuais entraram em dissenso, em alguns
momentos, com os valores das elites pelas quais foram formados, passando a identificar-se
48
com os interesses do povo. Essa ambivalência entre os interesses da elite e do povo serão uma
constante na formação dos intelectuais no século XX.
2. REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS.
Compreendendo agora as especificidades da categoria dos intelectuais na modernidade
eurocentrada, do conjunto de questões citados anteriormente que interpelam esses sujeitos,
sobretudo no século XX, utilizo a abordagem teórico-metodológica da História dos
Intelectuais proposta por Jean-François Sirinelli5 para compreender a ação intelectual de
Mário Pinto de Andrade e Amílcar Cabral.
Sua abordagem propõe como objeto de pesquisa o grupo dos intelectuais, sendo um
campo autônomo de pesquisa situado na interface entre o político, o social e o cultural. A
fragmentação do objeto de estudo em uma dessas áreas ocasionaria prejuízos a compreensão
das ações dos intelectuais.
A noção de intelectual, para Sirinelli, compreende os "indivíduos criadores ou
mediadores culturais", tendo ou não algum tipo de engajamento político, englobando aqui o
escritor, jornalista, ou o erudito. De acordo com Sirinelli,
[...] A história política dos intelectuais passa obrigatoriamente pela pesquisa, longa
e ingrata, e pela exegese de textos impressos, primeiro suporte dos fatos e opiniões,
em cuja gênese, circulação e transmissão os intelectuais desempenham um papel
decisivo; e sua história social exige a análise sistemática de elementos dispersos,
com finalidades prosopográficas (SIRINELLI, 2003, p. 245)
5
Historiador françês (1949) especialista em História política e cultural. Leciona no Instituto de Estudo Político
de Paris.
49
[...] a sociabilidade também pode ser entendida de outra maneira, na qual também
se interpenetram o afetivo e o ideológico. As 'redes' secretam, na verdade,
microclimas à sombra dos quais a atividade e o comportamento dos intelectuais
envolvidos frequentemente apresentam traços específicos. E, assim entendida, a
palavra sociabilidade reveste-se, portanto de uma dupla acepção, ao mesmo tempo
'redes' que estruturam e 'microclima' que caracteriza um microcosmo intelectual
particular (SIRINELLI, 2003, p. 252-253).
3. TRAJETÓRIA INTELECTUAL
Mário Pinto de Andrade (1928-1990) e Amílcar Cabral (1924-1973) são dois
importantes intelectuais e lideranças políticas dos movimentos de libertação nacional em
Angola e Guiné-Bissau. Andrade é filho de um aposentado angolano que trabalhou na
burocracia nas finanças da administração colonial e Cabral é filho de um professor cabo-
verdiano do Liceu. Eles eram classificados pelo sistema do indigenato (1926-1961) como
sendo “assimilados” à civilização europeia lusitana, compondo uma fração da elite das
colônias portuguesas, que tiveram acesso ao ensino básico e superior. Eles se conheceram em
1948, quando Andrade estudava letras clássicas e Cabral, agronomia em Lisboa. Para Lopes
(2014, p. 38-39),
Mário de Andrade ficará em Lisboa apenas cinco anos, mas parecerão muitos mais
para qualquer historiador contemporâneo. É neste período que a agitação da Casa
dos Estudantes do Império vai desembocar na criação do Centro de Estudos
Africanos, na publicação de várias obras de ensaio e poesia de exaltação da
africanidade e negritude, e a maturação das ideias que depois darão origem aos
movimentos nacionalistas mais radicais das colônias portuguesas. O expoente deste
processo é, sem dúvida, Amílcar Cabral, cujo nome afetivamente Mário de Andrade
associa a toda a sua geração: a Geração de Cabral. Mas o agente cultural é Mário
de Andrade (LOPES, 2014, p. 38-39)
Esse período entre o ano de 1948 e 1961 é de grande efervescência cultural, sendo o
despertar intelectual e político desses estudantes das colônias portuguesas, cuja composição
na época era Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Noémia de Souza 6, Alda Espírito Santo7,
Francisco José Tenreiro8 e Andrade. Seus espaços de sociabilidade eram a Casa dos
Estudantes do Império (CEI) e o Centro de Estudos Africano. Este último foi criado para
atender os anseios desta geração, pois alguns temas não podiam ser debatidos na CEI, por
causa da vigilância dos órgãos repressivos do império português, para Andrade “[...]
estávamos a formar uma consciência coletiva, a partir de um grupo que pensava as mesmas
coisas” (LABAN, 1997, p. 69). De acordo com ele,
Andrade apresenta-nos aquilo que eles buscavam quando faziam suas leituras dos
negros da América, da Europa e de outros lugares da África. Suas intenções eram tentar
elaborar uma forma de expressão que vocalizasse aquilo que havia se dispersado entre as idas
e vindas dos navios negreiros. Além disso, a relação entre cultura e política, segundo Mário,
se dava do seguinte modo,
9
Aimé Fernand David Césaire (1913-2008) foi um poeta da Martinica. Ele estudou na França Autor das obras
Cahier d'un retour au pays natal (1939), Les Armes miraculeuses (1946), Soleil cou coupé (1947) e Discours sur
le colonialisme (1950). Ele foi deputado da cidade Fort-de-France, capital da Martinica que é uma região
administrativa da França.
10
Jacques Roumains (1907-1944) nasceu em Port-au-principe no Haiti. Ele graduou-se em Agronomia e formou-
se em etnologia e paleontologia em Paris. Autor das obras La proie et l’ombre (1930), La montagne ensorcelée
(1931) e Gouverneurs de la rosée (1944), além disso, é autor de diversas poesias. Fundou o partido comunista no
Haiti em 1944. Maiores detalhes ver: http://www.encaribe.org/fr/article/jacques-roumain/1953.
49
estudante Africano, que manteve uma atitude consciente, a melhor atitude, nas fases
b e c, uma vez de volta na comunidade, lutar por uma expressão significativa. Todos
os homens verdadeiramente progressistas vivem hoje a hora do encontro universal.
Também os estudantes africanos procuram recuperar o tempo perdido na
construção de outros mundos e, basicamente, eles aspiram por serem os porta-vozes
para a libertação de todos os canais que dificultam a marcha do progresso. A Parte
Africana aparecerá no ensino quando a África tiver deixado de ser a saída para o
imperialismo colonial. Aqui está a grande tarefa que pesa sobre os ombros dos
novos intelectuais africanos de ser a consciência viva do povo africano. (ANDRADE
e CABRAL, 1953, p. 229)118.
Andrade e Cabral queriam que a cultura ou a “Parte Africana” fosse introduzida nas
grades curriculares do ensino, mas sobretudo havia a consciência de que o entrave ao encontro
universal equilibrado entre a “parte ocidental” e a “parte africana” era o imperialismo
colonial. Outro dado importante desse artigo é o uso da noção dos “novos intelectuais
africanos” progressistas que deveriam lutar por esse encontro universal, sendo os porta-vozes
dos “novos valores” e da “consciência viva” do povo. Ao marcarem essa distinção entre
antigos e novos intelectuais, essa representação dos intelectuais, como sendo a “consciência
viva do povo”, construíam em torno de si representações em torno da figura dos intelectuais
engajados apresentados anteriormente no tópico inicial deste trabalho. Para Fanon (2005, p.
244),
Esse mergulho nas entranhas do povo é o passo inicial para a fundação de uma nova
legitimidade ou de um novo contrato entre esses povos subjugados no sistema colonial
português. A construção dessa nova legitimidade e de “novos valores” remete a complexa
relação entre teoria e práxis política. Para Bhabha, não existe uma oposição entre esses dois
conceitos, mas na verdade uma negociação:
11
Revue Présence africaine. L’etudiant africain et la civilisation ocidentale. Paris, 1953. Disponível em:
http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=04330.008.002#!2. Acesso em: 20/07/2018.
49
12
Certains Etats africains, généralement considérés comme l’avant-garde du continente, s’aperçurent que le fait
d’accentuer les contradictions internes existentes en Afrique, contradictions sur les options politiques, les voies
de developpement et les diversités des régimes, constituait en realité une arme au servisse des impérialistes qui,
en l’exploitant, prétendaient perpétuer la balkanisation du continente. D’un autre côté, l’évolution verticale de tel
ou tel Etat, pris individuellement, ne faisait que consacrer son isolement. La division ne pouvait ainsi qu’inciter
les pays africains à chercher à exterieur les forces d’appui à leur développment.
49
o segundo pela busca de um conteúdo real para uma certa independência, através
de uma reivindicação de liberdade econômica; e a terceira extensão da segunda,
levando a esse equilíbrio da coexistência de razões de Estado, no contexto da
Unidade Africana, e em paralelo, a afirmação de uma personalidade própria na
África, liberada do dilema de uma escolha entre os blocos formados pelas grandes
potências. Outro elemento da conjuntura africana é representado pelos acordos
regionais baseados em cooperação econômica, ou por agrupamentos comandados
por uma herança comum da era colonial. Estes acordos e agrupamentos não
assumem necessariamente uma personalidade política, implicando em alguns casos
uma coexistência de regimes frágeis por natureza. Atualmente, esta fragilidade é
posta à prova pela manipulação de intervenções estrangeiras, especialmente no
"caso congolês". [...]. As reações constatadas diante da brutalidade da operação de
Stanleyville e suas extensões que agora constituem a "questão congolesa" mostram
a fragilidade da solidariedade inter-africana. Portanto, o problema fundamental
permanece: as contradições inerentes à natureza do poder político dos estados 13
(ANDRADE e CABRAL, 1966, p. 46-47).
Essas três fases são importantes para a consolidação dos estados africanos e, por
conseguinte, da natureza do poder político desses novos entes em formação. Para ambos, o
poder político em África deve levar em consideração a construção dessa “solidariedade inter-
africana”, para uma efetiva libertação do colonialismo. Assim,
Em suma, a “libertação total” passa por uma reflexão acerca da “natureza do poder
político”, não apenas das colônias portuguesas, mas dos novos estados africanos, passa
necessariamente pela concertação e elaboração de novos instrumentos de ações onde os
13
La conjuncture actuelle est donc le résultat d’un développement progressif de trois phases: la première,
caractérisée par le triomphe du préalable de l’indépendance; la seconde par la recherche d’un contenu véritable
pour certe indépendance, à travers une revendication de liberté économique; et la troisième, prolongement de la
seconde, conduisant à cet equilibre de la coexistence des raisons d’Etat, dans le cadre de l’unité africaine, et
parallèlement, l’affirmation d’une personalitté propre à L’Afrique, libérée du dilemme d’un choix entre les blocs
formes par les grandes puissances. Un autre élément de la conjoncture africaine est representé par les accords
régionaux bases sur la coopération économique, ou par les regroupements commandés par um héritage commun
de l’époque coloniale. Ces accords et ces regroupements ne recouvrent pas nécessairement une identités des
options politiques, impliquant dans certaines cas une coexistence des régimes, fragile par nature. A l’heure
actuelle, cette fragilité est mise à l’épreuve par les manipulations des interventions étrangères, en particulier dans
<< l’affaire congolaise>>. [...].Les réactions enregistrées devant la brutalité de l’operation de Stanleyville et de
ses prolongements qui constituent aujourd’hui la <<question congolaise>> montrent la fragilité de la solidarité
interafricaine. Le problème fondamental demeure: à savoir, les contradictions inhérentes à la nature du pouvoir
politique des Etats.
14
L’OUA revêt théoriquement un carartère instrumental de liquidation des obstacles qui sont encore sur le
chemim des peuples pour leur libération totale. C’est ainsi que l’entendent les plus fervents défenseurs de l’unité
africaine, qui sont em même temps les dirigeants des expèriences sociales généralment considérées comme les
plus progressistes de l’Afrique.
49
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Andrade e Cabral, enquanto intelectuais colonizados, fizeram o mergulho “nas
entranhas do povo” para sair da condição de subalterno imposta pelo imperialismo colonial.
Esse passo inicial foi uma exigência para a saída da condição de subalternidade.
Esses sujeitos colonizados sentiram em seus corpos as contradições inerentes ao
processo civilizador europeu iniciado no século XVI. A função de Andrade e de Cabral para o
governo português, enquanto assimilados, era conferir legitimidade ao sistema colonial e,
enquanto intelectuais, reproduzirem os valores da modernidade eurocentrada nas elites
periféricas das colônias. Contudo, sob o contexto do pós-guerra mundial e dos processos de
independência das antigas colônias europeias, eles se engajaram nas lutas de libertação
nacional das colônias portuguesas. Isso levou a reflexão sob quais os novos princípios de
legitimidade para a construção dos novos estados-nação. Em suma, observando a trajetória
desses intelectuais e as suas produções acadêmicas é possível verificar a relação da ideologia
e o poder político. Essa conjunção de esferas de saberes foi uma constante durante o processo
de libertação das colônias portuguesas. Apesar da luta armada, ainda em 1965, estar
começando a tensão entre as ideologias que estavam circulando e a natureza do poder político
que se projetava e experimentava era o cerne das reflexões de Andrade e Cabral.
Para trabalhos futuros é necessário verificar os pontos de fricção do exercício entre
essas esferas para análise das ambivalências e da dinâmica dos processos de constituição dos
estados-nação africanos das colônias portuguesas. Os textos e experiências de Andrade e
Cabral fornece indícios para a análise da emergência desses novos valores.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mario Pinto de. O Homem negro ocidentalizado em contradição consigo mesmo
(Câmbio Cultural). Site da Fundação Mário Soares, Lisboa, 1951. Disponivel em:
<http://casacomum.org/cc/visualizador.php?pasta=04334.001.001&pag=3#!73>. Acesso em:
15 Julho 2018.
ANDRADE, Mario Pinto de.; CABRAL, Amílcar. L' Afrique et la Lutte de Libération
Nationale dans les Colonies Portugaises. Site da Fundação Mário Soares, 1966. Disponivel
em: <http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=04330.008.012>. Acesso em: 26
Abril 2018.
BAUMAN, Zigmunt. A vida fragmentada: ensaios sobre a moral pós-moderna. 1ª. ed.
Lisboa: Relógio D"água Editores, 2007.
49
BHABHA, Hommi. K. o local da cultura. 2ª. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade uma entrevista. 1ª. ed. Lisboa: Edições João Sá
da Costa Lisboa, 1997.
SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: REMOND, René. Por uma História Política.
2ª. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p. 472.
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