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XVI ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DO


CEARÁ HISTÓRIA PÚBLICA E DEMOCRACIA

ANAIS

FORTALEZA
JULHO 2018
2

XVI ENCONTRO ESTADUAL DE


HISTÓRIA DO CEARÁ

HISTÓRIA PÚBLICA E
DEMOCRACIA

ANAIS

Universidade Federal do
Ceará 24 a 27 de julho de 2018

Realização: ANPUH - CE e Departamento de história UFC

Apoio:
3

Edição: Ana Alice Miranda Menescal; Francisca Clédia Sousa de Oliveira;


Glaucivânia Vieira Gomes; Letícia Rodrigues Gonçalves.

Capa: Tito Barros Leal

Arte: Sérgio Lima

Encontro estadual de História do Ceará (16: 2018: Fortaleza-Ce)


Anais do XVI Encontro Estadual de História do Ceará – ANPUH-CE, de 24 a 27
de julho de 2018, [recurso eletrônico]: História Pública e Democracia/organizado por
Tito Barros Leal (UVA), Gleudson Passos Cardoso (UECE-Itaperi), Mário Martins
Viana Júnior (UFC), Allyson Bruno Viana (UECE-Itaperi), Francisco Adoniran Braga
Ramos (Rede Pública de Ensino), Vanessa Nascimento de Souza (Rede Pública de
Ensino), Carlos Virgílio Cavalcante Freitas (Rede Pública de Ensino), Cláudia Freitas de
Oliveira (UFC). [realização ANPUH-Secção Ceará, Departamento de História – UFC] –
Fortaleza: ANPUH-Secção Ceará, 2018.
ISSN: 2177-160X
1. História do Ceará – Encontro Estadual. 2. Pesquisa em História. I. Barros Leal, Tito,
org.
II. Cardoso, Gleudson Passo, org. III. Viana, Mário Martins, org. IV. Viana, Allyson
Bruno, org. V. Ramos, Francisco Adoniran Braga, org. VI. Souza, Vanessa Nascimento
de, org. VII Freitas, Carlos Virgílio Cavalcante, org. VIII. Oliveira, Cláudia Freitas de,
org.
4

SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 7
Palestras
Ensino de História da África e História Pública: uma perspectiva comparada 9
Idalina Maria Almeida de Feitas
Cultura e política nas narrativas de Alejo Carpentier: poética da história e debate 23
latinoamericanista
Nuno Gonçalves Pereira
Artigos
Mundos do trabalho e trabalho nos engenhos de cachaça artesanal no município de Alcântaras 36
Adelina Lopes Guimarão e Telma Bessa Sales
Fazeres educativos em DST/AIDS: experiências e perspectivas das mulheres de Guiné-Bissau 50
estudantes da UNILAB
Adriana Nívia Girão Lima
Os Intelectuais do Instituto do Ceará e a contribuição documental para a História, a Memória e 64
o Esquecimento dos Povos Nativos
Ana Alice Miranda Menescal
“Campo” e “Cidade”: perspectivas entre o ficar e sair de jovens da comunidade d eCurrais II – 81
Ce
André Victor da Silva Oliveira
Formação de Professores para o ensino de História Afro-Brasileira: perspectivas de aplicação 97
da Lei 10.639/2003 na Educação Básica
Antonia Valdenia de Araújo
A participação indígena na formação social do Ceará Colonial: um debate sobre Ensino de 106
História e Historiografia
Antonio Edgley Furtado Sousa e Raimundo Nonato Rodrigues de Souza
Entre a economia e a distinção: a crise econômica e social brasileira nas publicidades da 116
Revista Veja (1979-1989)
Beneângelo Soares Chagas
Dançando coco no Cariri cearense: trânsitos migratórios e fluxos culturais 126
Camila Mota Farias
Fake News, Memes e o Ensino de História 135
Cicero Anderson de Almeida Bezerra
Fé e transformação social: a contribuição da Igreja Católica cearense para a consolidação do 146
Partido dos Trabalhadoes (1982-1986)
Ciro Alcântara de Araújo e Ilka Alcântara de Araújo
A Seca e a Peste: adoecimentos e saúde pública no Ceará durante a seca de 1877-1879 155
Daniel dos Santos Carneiro
Vislumbrando estrelas: estudo sobre a Tradição Oral e Memória na Ordem de Penitentes 165
Irmãos da Cruz de Barbalha
David de Lima Damasceno
História, Memória e Abolição: a construção histórica do município de Redenção/Ce nos 177
arquivos particulares de Ladeísse Silveira
Ester Araújo Lima da Silva, Leonardo da Silva Leal e Willian Franco de Almeida
Apresentando Christopher Dawson para brasileiros 187
Francisca Jaquelini de Souza Viração
Um terceiro olho desvenda Cronos: Júlio de Mesquita Filho e “O roteiro da Revolução” 196
Francisco Adriano Leal Macêdo e Marylu Alves de Oliveira
Ofício de Professor no final do século XIX: queixas e vigilância 210
Francisco Júlio Sousa Ferreira
A cidade, a terra e o jogo social: a atuação de intendentes e outros funcionários da Intendência 221
de Natal na gestão e no uso do patrimônio fundiário municipal
Gabriela Fernandes de Siqueira
5

“Eu sou ela, Lilith, concubina da escuridão, primeira criminosa e auxiliadora dos demônios”: o 235
imaginário da bruxa no Martelo das Feiticeiras (século XV)
Gabrielle Abreu dos Santos e Gleudson Passos Cardoso
“O jangadeiro das Letras cearense”: Domingos Olímpio, o escritor, a obra e os espaços de 245
escrita
Igor Emanoel Ramos Barroso
A Meruoca indígena na escrita da História do Ceará (séculos XVII e XVIII) 259
Jaiana Kelly Rodrigues Alcântara e Mariana Albuquerque Dantas
Incursões pelos Sertões: Naturalistas, Escravos e Indígenas no Piauí e no Maranhão do final 273
do século XVIII
Janayne de Moura Ferreira e Mairton Celestino da Silva
Entre o Sagrado e o Profano: um olhar sobre a Festa de Santa Maçalina em São Mateus do 285
Maranhão na contemporaneidade
Jean Carlos Silva Cunha
Pesquisa em base de dados: analisando perspectivas do Ensino de História Indígena 299
Joilson Silva de Sousa
A historiografia sobre a Seca no Ceará: sujeitos, fontes e abordagens 311
Kércia Andressa Vitoriano Gonçalves, Welligton Costa Borges e Francisco Gleison da
Costa Monteiro
Os resíduos medievais culturais e literários nos poemas de Patativa do Assaré 323
Larissa Araújo Almeida
“A história ao ar livre”. Monumentos estatuários e o Ensino de História em Praça Pública 333
Liesly Oliveira Barbosa
Das vassouras aos ramos: estudo das práticas curativas e médicas do medievo para a 346
modernidade
Maria Deiziane Lino e Tito Barros Leal
“A escrita da História”: Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil 356
Maria Isadora Leite Lima e Sônia Menezes
“Pelas várzeas do Rio Jaguaribe”: a empresa União Cearense e a construção de um Ceará 366
moderno
Maria Leopoldina Dantas Máximo e Ana Isabel Ribeiro Parente Cortez Reis
Ocupação e distribuição de sesmarias nos rios Groaíras, Jacurutu e Macaco no século XVIII 381
Maria Malena Paiva Mesquita e Raimundo Nonato Rodrigues de Souza
História Local e Memória: a Ditadura Militar e suas implicações no interior cearense 392
Maria Terla Silva Carneiro dos Santos
A resistência solidária dos trabalhadores portuários de Fortaleza (1912-1933) 402
Nágila Maia de M. Galvão
A abordagem da Lei 1.645 de 2008 no livro didático: por que aplica-la de forma efetiva no 416
ensino básico?
Paulo Ênio de Sousa Melo e Mariana Albuquerque Dantas
Biblioteca do Seminário da Prainha: um olhar sobre o livro e a leitura no Ceará provincial 429
(1864-1889)
Rafaela Gomes Lima
Cristianismo e as artes liberais 439
Raimundo Yuri Gomes Avelino e Francisca Jaquelini De Souza Viração
Os Flagelados e a Hospedaria Getúlio Vargas: fome, doenças, saques e revolta (1943-1960). 449
Renata Felipe Monteiro
De Jorge Amado a Nelson Pereira dos Santos: identidade nacional e miscigenação na literatura 458
e no cinema brasileiro (1960-1980).
Romario de Moura Rocha e Fábio Leonardo Castelo Branco Brito
A ficção histórica de José Eduardo Agualsa: possibilidades na compreensão da história 473
angolana
Welligton Costa Borges e Kércia Andressa Vitoriano Goncalves e Fábio Leonardo
Castelo Branco Brito
6

Intelectuais subalternos e o poder: uma análisedas das trajetórias de Mário Pinto de Andrade e 484
de Amílcar Cabral nas lutas de libertação nacional em Angola e Guiné-Bissau nos anos de
1960-1970.
Wendel Damasceno Oliveira
7

APRESENTAÇÃO

A cada dois anos, a ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA - SECÇÃO CEARÁ


(ANPUH-CE) realiza o Encontro Estadual de História, o maior e mais importante evento da
área de História do Estado. Os encontros bienais atraem grande número de profissionais de
história, de alunos de graduação e de pós-graduação e interessados em geral.
Entre os dias 24 e 27 de julho de 2018 realizamos o XVI Encontro Estadual de
História do Ceará nas dependências da Universidade Federal do Ceará (UFC). Ocupamos
diferentes espaços da instituição, nas cercanias da Avenida da Universidade. Com
programação variada, contamos com um total de 7 Minicursos, 21 propostas de Simpósios
Temáticos, 3 Mesas Redondas e 4 Conferências. A programação cultural, por seu turno,
contou com belíssimas apresentações: o Grupo Choro Grande Banda (Música – UECE)
abrilhantou a primeira noite de atividades com seu alegre repertório de chorinhos; a poesia
falada do Grupo Verso de Boca (Letras-UFC) reconfortou nossos corações e avivou nossas
mentes no segundo dia; o tradicionalíssimo Quinteto Agreste levantou o público com sua
música raiz e, finalizando a os trabalhos, tivemos a qualificada atuação do Natanael Pereira
Trio e do Grupo Vozes d’África (UNILAB).
O sucesso do evento só foi possível dada as parcerias firmadas com a ANPUH–PB, a
ANPUH-PE, o PPGEd–UFRN, a Fundação Casa de Rui Barbosa (RJ) e o Governo do Estado
do Ceará, tanto com a SEDUC quanto com a SECULT.
A parceria com a SEDUC-CE é ponto a se destacar. Desse diálogo derivou o Curso
História Pública e Democracia que possibilitou aproximação entre a ANPUH-CE e os
professores da Rede Estadual de Ensino do Estado do Ceará. A ideia primordial foi promover
o XVI Encontro Estadual de História do Ceará entre os professores da Rede e oportunizar a
troca de experiências entre Associação, Universidade e Rede Estadual de Ensino. Tratou-se de
curso de 80h, realizado na modalidade de Ensino à Distância. Foram ofertadas 300 vagas para
os professores de História da rede pública.
Outra alegria vivenciada no XVI Encontro Estadual de História do Ceará foi a
presença de um dos maiores nomes da historiografia mundial, Roger Chartier (Collège de
France/University of Pennsylvania) que prontamente atendeu nosso convite e proferiu a
Conferência de Encerramento intitulada O passado no presente – Memórias e História, no
Anfiteatro do Centro Dragão do Mar, com entrada livre e com a lotação máxima (658 lugares)
praticamente lotada.
8

O tema do Encontro foi História Pública e Democracia, deveras pertinente para os


tempos duros que vivemos. O encontro contou com 495 inscritos e 118 trabalhos
apresentados, dos quais recebemos 40 versões completas que compõem estes Anais.
Agradecemos a todo/as os/as parceiros/as, monitores/as, bolsistas, colaboradores/as,
professores/as, participantes, que ajudaram na realização e sucesso do XVI Encontro Estadual
de História do Ceará.

Atenciosamente,
Diretoria ANPUH-CE gestão 2016-2018.
9

PALESTRA
Ensino de História da África e História Pública: uma perspectiva comparada.

Profa. Dra. Idalina Maria Almeida de Freitas1

A presente investigação nasce a partir das experiências já iniciadas no Brasil frente ao


campo de pesquisa em Ensino de História, o qual já venho desenvolvendo em torno de 4 anos
enquanto coordenadora e docente na área de Estágio Supervisionado em História. Após a
mudança de instituição, agora fazendo parte do corpo docente da UNILAB/Malês, percebo a
necessidade de aprofundar tais discussões, pensando a articulação e a pesquisa em instituições
de ensino superior em países da lusofonia. A Priore estabelece-se uma investigação de caráter
bibliográfico, análise das produções didáticas lusófonas em abordagens por meio da literatura
didática, estabelecendo contrapontos com o Brasil. Problematizando, no que tange aos seus
conteúdos e narrativas2, formas de abordagens sobre a História Africana, em tal recorte.
Mantem-se ainda o objetivo de compreender o contexto histórico de produção dos
manuais escolares e seus usos didáticos no Ensino de História, pensando temáticas que
envolvem os processos históricos em África e no Brasil. Por fim, um dos desdobramentos
desta pesquisa, será avaliar as formas de interação destes materiais didáticos com o universo
escolar no qual estão inseridos, no que concerne aos seus usos e alcance no processo de
ensino-aprendizagem, como se orientam temporalmente por meio da aprendizagem histórica,
construções de narrativas históricas por meio da literatura didática, práticas de leituras,
diálogos entre historiografia e saberes escolares, pensando como essas questões se articulam
na construção de identidades locais e atlânticas. Temos buscado uma atenção especial a
nossas relações com a África, trata-se de uma aspiração antiga do Brasil, mas que nenhum
outro governo levou a diante com tanta determinação.
Nessa empreitada, tem-se presentes nossos laços históricos, nossa condição de país
com grande população de afrodescendentes e, também, outros esforços internos para a
promoção da igualdade racial. A UNILAB veio reforçar esses laços de integração e
cooperação. A introdução da licenciatura em História em 2016 no campus dos Malês,

1
Universidade Internacional da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira Campus dos Malês/Bahia.
2
Como salienta Rusen, a narrativa é a face material da consciência histórica. Neste contexto, a narrativa é
entendida como a forma usual da produção historiográfica, que pode emanar de escolas diversas. Pela análise de
uma narrativa histórica ganha-se acesso ao modo como seu autor concebe o passado e utiliza as suas fontes, bem
como aos tipos de significância e sentidos de mudança que atribuí à história. In Significados do Pensamento de
Jorn Rusen para investigações na área da educação histórica. SCHUMIDT, Maria Auxiliadora, BARCA, Isabel,
GARCIA, Tania. Curitiba: ed. UFPR, 2011. pp.12
10

acompanhará essa trajetória, e nesse sentido, estabelecerá vínculos de cooperação entre os


países parceiros da UNILAB e fortalecerá a compreensão das dinâmicas nas cidades do seu
entorno. A intenção é estabelecer uma perspectiva comparada entre a produção didática
moçambicana, angolana e brasileira, analisando, no que tange aos seus conteúdos, o modo
como trabalham a História desses países e as relações históricas entre o Brasil e o continente
africano. Por fim, um dos desdobramentos desta pesquisa, será avaliar as formas de interação
destes materiais didáticos, formação docente em geral com o universo escolar no qual estão
inseridos, no que concerne aos seus usos e alcance no processo de ensino-aprendizagem,
empreendendo aqui novamente, um estudo comparativo em relação à realidade do recôncavo
baiano.
A UNILAB, Universidade Federal criada em Redenção-CE, sob o escopo da
cooperação Sul-Sul, iniciou suas atividades em 25 de Maio de 2011 e mantém, segundo as
premissas de sua fundação, a missão institucional específica de formar profissionais e
cidadãos para contribuir com a integração entre o Brasil e os demais estados membros da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), especialmente os países africanos e
Timor Leste, bem como promover o desenvolvimento regional e o intercâmbio cultural,
científico e educacional. Destaca-se nesse escopo, a entrada de alunos estrangeiros, oriundos
dos países ditos parceiros. Em Maio de 2014, foi inaugurado um novo campus da UNILAB
com os cursos de Letras e Bacharelado em Humanidades, na cidade de São Francisco do
Conde, estado da Bahia. Trata-se de um grande desafio, mas também de parte de um processo
que visa inserir a UNILAB em um espaço historicamente marcado pela presença africana: o
recôncavo baiano, dando maior impulso ao projeto de integração Brasil-África.
As histórias de portugueses e africanos se encontram estreitamente ligadas entre si,
pautadas durante séculos pela constituição de importantes redes de trocas comerciais, nas
quais circulavam ouro, marfim, pedras preciosas, tecidos, sal, mandioca, milho, e, sobretudo
escravos. Contatos que se iniciaram em empreitadas lusitanas à região norte da África por
volta do primeiro quartel do século XV. Neste mesmo século, em meados dos anos 80
chegariam à região do Congo, para já nos primeiros lustros do século XVI, atingirem também
o litoral índico, acompanhando as rotas em direção às Índias e estabelecendo feitorias em
Sofala (1503), Quiloa (1505) e Moçambique (1507).
É mister destacar que os ventos atlânticos do alvorecer quinhentista, trariam os
portugueses também ao Brasil, importante parceiro comercial que se ressentia de tudo o que
se passava no continente africano. Em 1575, a fundação de Luanda traria estabilidade à
presença lusitana em terras africanas. Após diversos conflitos na região, Angola transformar-
11

se-ia em posição estratégica no processo de consolidação do império marítimo português. O


século XVII trouxe consigo a consolidação de relações comerciais que envolveriam Portugal,
Angola e o Brasil. À época, a Holanda empreendeu duras investidas aos litorais africano e
brasileiro, deflagrando, segundo Charles Boxer (2002): a verdadeira primeira guerra mundial,
em um processo de expansão que se deu pelos sete mares e de fato uniu os quatro continentes
(p. 120). O medo de perder a frutífera colônia africana ante a força da fúria holandesa, fez
com que os portugueses se servissem de exércitos e governadores brasílicos no esforço maior
de retomar o espaço perdido. Estes últimos atuaram com mão de ferro e se imiscuíram no
lucrativo trato negreiro (ALENCASTRO: 2000, p. 247-325).
No tocante ao Brasil e a Angola, Alencastro (2000) apontou a íntima relação entre as
duas colônias, separadas pelo Atlântico mas fortemente unidas pelo intenso comércio de
mandioca (este sim nosso primeiro grande ciclo!), das moedas-concha, do tabaco, da cachaça,
de escravos. O autor destaca a extrema dependência que o Brasil guardava das importações
angolanas da mandioca e da cachaça. O cauri do Recôncavo comprava escravos, pagava os
salários dos missionários jesuítas que traficavam em solo africano e inflacionava o mercado
nativo, e o fumo de corda baiano manteve-se preferido por séculos na outra margem do
Atlântico (p. 251-259). Nesse período de constante insegurança face às empreitadas dos
holandeses às possessões portuguesas em Angola, o Brasil desempenharia um importante
papel nas estratégias militares de proteção. A intervenção brasílica, segundo Alencastro
(2000), traria grandes mudanças nas dinâmicas políticas africanas.
Dois episódios marcaram fortemente essas transformações: a conversão da Rainha
Nzinga da Matamba e a Batalha de Ambuíla. Para o autor, os métodos de guerra empregados
nas bandeiras da América portuguesa, trazidos por militares transferidos do Brasil, a partir da
governança de Francisco Vasconcelos em 1635, foram fundamentais para a vitória das tropas
sob o comando do administrador de Angola, André Vidal de Negreiros, entre os anos de 1661
a 1666, durante as guerras angolanas desse período (2000: 294). decorrer dos séculos, essas
relações se estreitariam ainda mais, assentadas no comércio de escravos, tornando-se a região
centro-africana a maior fornecedora de mão de obra para as Américas durante todo o período
de existência do tráfico. Outros povos europeus aportaram no continente africano antes do
século XIX. Holandeses, franceses e britânicos, investiram, com maior ou menor sucesso, em
empreitadas na costa ocidental africana, estabelecendo ali fortes e fortalezas, nos quais
altercavam-se correntemente e que, no mais das vezes, trouxeram-lhes pouca ou nenhuma
autonomia junto ao concorrido comércio costeiro.
12

Segundo Roquinaldo Ferreira (2010), essas ocupações se estabeleciam mediante


disputadíssimos acordos comerciais e diplomáticos que deixavam os europeus à mercê dos
povos africanos, uma vez que não garantiam qualquer poder local ou territorial e, inclusive,
eram modificados à larga pelas populações locais, de acordo com seus interesses e as
vantagens que lhes pudessem resultar (p. 487-491). É importante salientar-se que até meados
do último quartel do século XIX, apenas as possessões portuguesas em Guiné, Angola e
Moçambique, alguns fortes na Costa Ocidental e na contracosta, a Argélia, Lagos, os
territórios boers da África do Sul e o Cabo da Boa Esperança, estavam em mãos europeias, e
assim: imensos eram os espaços vazios no conhecimento que a Europa tinha da África
(COSTA E SILVA: 2003, p. 64-65). Nesse sentido, os oitocentos trariam consigo uma
inflexão às antigas relações entre os europeus e as diversas sociedades africanas, é o momento
em que, segundo Costa e Silva (2003, p. 53): começam a integra-se, na comunidade mundial,
ainda que de modo imperfeito, as nações africanas, até então fora das grandes rotas do
caravaneiro e do navegador.
Essa integração, violenta e dolorosa, passou num primeiro momento, pela invasão do
continente africano ao qual a idade mecânica impunha um novo papel a desempenhar. (Ki-
Zerbo: 1991, p. 67). No tocante a Portugal, Pélissier (1997) afirma que este não soubera
aproveitar a oportunidade de exclusividade nas relações com o interior da África que a sua
longa permanência nas costas atlântica e índica lhe proporcionara, quer por falta de recursos
ou por vontade política (p. 92-93). Dessa forma, uma efetiva colonização de Angola,
Moçambique e Guiné- Bissau pelos portugueses, seria gradual e dar-se-ia apenas em meados
do final do século XIX, sempre sob a pressão de seus congêneres europeus, que lhes queriam
tirar as preciosas colônias e impunham agora a sua presença de modo muito mais
contundente.
Na inflexão dessas relações, pautadas doravante pela consolidação do sistema
capitalista, reside a estruturação de um processo de colonização assente no imperialismo que
se prolongará pelo século XX. Fenômeno que traria profundas transformações nas dinâmicas
intestinas do continente e no qual a imposição de uma cultura e educação ocidentais tornou-se
instrumental teórico e peça essencial.
Os sistemas de ensino em África forma influenciados diretamente pelo colonialismo
dos estados modernos europeus, a educação atuou como instrumentos de colonização e
descolonização nos países africanos. A educação no contexto do colonialismo seguiu o
modelo metropolitano, tendo como principal objetivo a formação de mão-de-obra barata e a
13

civilização dos “indígenas”3. No caso das colônias portuguesas em África, apesar de ser
utilizada como instrumento de segregação e dominação, a educação foi mecanismo central
dos movimentos de luta anticolonial. No decorrer dos processos de independência, tornar-se-
ia ferramenta de construção de identidades nacionais, e, nesse contexto, o ensino de História
seria essencial.
Tem-se como objetivo nesse texto, por meio da experiência do Ensino de História em
Moçambique, promover uma reflexão acerca de manuais escolares produzidos pós
reformulação na década de 1990 pelo governo moçambicano, em articulação com narrativas
de práticas docentes de dois professores de história4. As narrativas expõem experiências de
ensino, o que por sua vez nos permite tanto a análise das estruturas de ensino, quanto
provocar primeiras reflexões em torno de temas em comum com os saberes ensinados no
Brasil produzidos pelos manuais escolares e percebidos na prática docente.
Em Moçambique a educação pode ser descrita em três momentos: educação
tradicional, colonial e pós-independência. Destinada aos “indígenas”, esses compunham
grande parte da população, o ensino passou a ser condição para a elevação à categoria de
assimilados (africano civilizado):

Torna-se, par outro lado, necessário distinguir entre cidadania originaria e


cidadania derivada (assimilação), atribuindo sempre ao termo cidadania o
conteúdo que acima se indicou. A primeira nunca se perde, ao passo que a segunda
pode ser retirada nos termos do art. 64.° de5te Est. (Cf. Prof. Adriano Moreira,
Administração da Justiça aos indígenas, 1955, pag. 118).5
Consideram-se indigenas das referidas provincias os indivíduos de raça negra ou
seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo habitualmente nelas, não possuam
a111da a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral
aplicado do direito publico e privado dos cidadãos portugueses6.

Publicado em formato de manual e intitulado: “Organização do ensino indígena na


Colónia de Moçambique”, definia em seu Artigo 1º que:

“o ensino indígena tem por fim conduzir gradualmente o indígena da vida selvagem
para a vida civilizada, formar-lhe a consciência de cidadão português e prepará-lo
para a luta da vida, tornando-o mais útil à sociedade e à si próprio”7.

3
Estatuto dos indígenas portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique. José Carlos Ney Ferreira e
Vasco Soares da Veiga, Lisboa, 1957.
4
Entrevistas com professores moçambicanos Cecília Avelino e Noé José na cidade de Maputo, Moçambique,
2015.
5
Estatuto dos indígenas portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique. José Carlos Ney Ferreira e
Vasco Soares da Veiga, Lisboa, 1957.pp.13
6
Idem.
7
Biblioteca Nacional de Moçambique. Organização do ensino indígena na colónia de Moçambique. Governo
Geral de Lourenço Marques. Referência: CDU37–37-316/R 1316, pp. 5-6.
14

Demorariam os portugueses, exatos dez anos para proceder à extinção do regime de


indigenato, igualando-se, teoricamente, a partir de 1961, a condição social de africanos e
portugueses. Nos processos pós-independência a Frelimo (Frente de Libertação de
Moçambique)8 se consolida dentro de seu viés de organização da educação, desmontando a
estrutura de educação colonial, mudança comportamental, atuando na construção de unidade e
identidades políticas em diferentes grupos.
A Frelimo insistiu na formação política dos seus cidadãos, embora obedecendo os
padrões da modernidade, definindo a educação como principal arma para o desenvolvimento
humano9. Modlane via na educação o único meio para lutar contra a situação de subjugação e
constituir consciência sobre a situação real de Moçambique. A obra escrita por Modlane
“Lutar por Moçambique” configura-se enquanto produção que segue tais inspirações:

“O livro cumpre o seu valor como instrumento de reflexão para uma historicidade
do pensamento político moçambicano/africano, mantendo a actualidade de tópicos
sobre a constituição da moçambicanidade, da libertação e da emancipação dos
moçambicanos no quadro do sistema-mundo(...)A Colecção “Nosso Chão”
preparou a terra, trouxe o adubo, as alfaias, a “previsão metereológica” cabendo,
pois, ao leitor encontrar a forma mais engenhosa de fazer medrar as riquezas de
Modlane, como figura histórica e sobretudo como ensaísta, nos propõe outras
colheitas de novos saberes a desvendar...”10

Ensino de História e Literatura Didática


Em Moçambique, o ensino primário divide-se em dois graus: o ensino primário do 1°
grau que responde às primeiras cinco classes/séries e o ensino primário do segundo grau vai
da 6° á 7° classes. A 7° classe é o terminal desse ensino, e dá acesso ao secundário, comercial,
industrial e acesso ao mercado de trabalho. O Ensino secundário compreende a 8°, 9° e 10°
classes, e o Ensino Pré-universitario contempla a 11° e 12° classes. O termo classe é usado em
Moçambique sendo equivalente a série no Brasil. Tanto no Ensino primário do 1° e 2° graus,
como no Ensino Secundário também no 1° e 2° graus, a disciplina História é trabalhada.
Por meio de relatos de dois professores moçambicanos atuantes em uma escola que no
nosso entender podem ser tidas como privadas pois não pertencem ao Estado, no entanto,
essas escolas recebem um variado grupo de estudantes, muitos deles bolsistas e em condição
social vulnerável. Os professores relataram algumas impressões sobre o Ensino de História

8
A Frente de Libertação de Moçambique, FRELIMO, é um partido político oficialmente fundado em 25 de
Junho de 1962, com o objetivo de lutar pela independência de Moçambique do domínio colonial português.
9
BASÍLIO, Guilherme. O estado e a escola na construção da identidade política moçambicana. Tese de
Doutorado em Educação-Currículo, São Paulo: PUC, 2010.
10
MODLANE, Eduardo. Lutar por Moçambique, Maputo: Colecção Nosso Chão, 1995. Pósfácio de
Alexandrino José, pp. 172-173.
15

em um contexto específico: a região norte de Maputo, capital de Moçambique. A professora


Cecília Avelino é formada pelo Instituto de Formação de Professores Primários da
Universidade Pedagógica de Moçambique11, concluiu o curso regular em Metodologia do
Ensino de Ciências Sociais e conta que nessa formação a História é ensinada a partir da
perspectiva geográfica, conhecimento de mapas, regiões, dando ênfase “só a história do
continente africano”12.
A abordagem das aulas é através da divisão, em regiões: África Austral, Oriental,
Central, Ocidental e Norte. É na África Austral que situa-se Moçambique, a professora
destaca que dentre outros temas, a questão da fixação das populações na áfrica austral, grupos
Bantu, atividades econômicas, progresso e religião, etc. A docente diz que a mesma
abordagem descritiva é utilizada para outros espaços do continente, e salienta também a
perspectiva de ensinar uma história que pontue a interferência de outros povos para o
continente, como os árabes por exemplo.
Encontra-se também na 6° classe, conteúdos referentes à escravidão, segundo Cecília:
“fala-se em Angola e Moçambique, como eram obtidos, transportados e trabalhos no local de
chegada”13. Pensando sobre o passado colonial que permeia as aulas de História nesse nível
de ensino, é interessante perceber o processo de aprendizagem das crianças envolvidas,
segundo a docente: “as crianças sabem que quando falam de Portugal, remetem ao passado
colonial”14, na sua interpretação a aprendizagem desse passado faz surgir algumas vezes
conflitos, com crianças brancas dentre outras.
O Ensino de História nesse contexto atravessa dimensões temporais e cria outras
experiências no presente, tendo como centralidade o fato histórico. Essas impressões que a
priore são contextualizadas no fato passado, incidem fortemente sobre demandas sociais do
presente, disputas de memórias individuais e coletivas, assentamentos de discursos e práticas.
No segundo relato encontra-se o professor Noé José que é Formado em História,
também na Universidade Pedagógica de Moçambique. O docente leciona 7° (Ensino
Primário), 8°, 9°, 10° (Ensino Secundário Geral do Primeiro Grau),11° e 12° (Secundário
Geral do Segundo Grau) classes. Por meio de sua narrativa de sua experiência no Ensino de
História nos informa:

11
A Universidade Pedagógica é uma instituição pública de ensino superior, mantida pelo governo de
Moçambique. Como universidade, foi a primeira e é a única pública totalmente vocacionada para a formação de
professores no país.
12
Entrevista Cecília Avelino.
13
Idem.
14
Idem.
16

“7° classe já são com vários continentes, já esta a descolonização,formas de


abordagens a partir da localização geográfica partindo para a história, 8° classe –
civilizações antigas, 9 classe – história universal, feudalismo, mercantilismo,
vantagens e desvantagens, revoluções, último capítulo a conferência de Berlin, 10°
classe – história universal das guerras, revolução russa, crises econômicas,
continente africano no período de descolonização, década de 50 – movimentos
nacionalistas, guerra fria,11° classe – descolonização do continente africano, volta
a abordar um pouco da 7° classe, historiografia europeia, eurocentrismo, base para
análise (será que foi bom ou não?),12° classe – historiografia de Moçambique –
colonialismo em Moçambique – bantus na África Austral, forma superficial,
exploração portuguesa, (se foi bom ou não), depois na situação atual de
independência…15.

Sobre os processos de escolha dos manuais didáticos, o docente expõem:

“até a 7° classe o governo escolhe um dentre outros manuais(…) as editoras


mandam os livros e o ministério faz um concurso, o ministério publica a escolha e
os professores escolhem, quais manuais são convenientes de acordo com o
programa da escola, ainda não vi nenhum manual que aborde bem o
programa...”16,

Tomando por base a sua prática o professor também afirma “fazer os cruzamentos de
outras fontes, de acordo com as abordagens dos livros”, relata que os manuais não
aprofundam muito e alerta que há muito trabalho de pesquisa que precisa ser realizado a
“partir da própria Àfrica”, utiliza as obras do historiador Joseph Ki Zerbo em suas aulas e
destaca a importância da pesquisa histórica e da historiografia na produção dos saberes
ensinados em História. Ainda sobre os manuais didáticos, os relatos informam que o governo
distribui até a 7° classe, levando muitos professores a utilizarem materiais e manuais variados,
não necessariamente da mesma coleção ou editora, podem ser vários tipos de livros. Porém
mesmo com a escassez nesses níveis de ensino de manuais didáticos, os mesmos quando
disponíveis são seguidos nas aulas, os docentes julgam o livro uma base importante e
acrescenta o uso de “textos de apoio”.
Em relação à conteúdos que façam alguma menção ao Brasil, o professor destaca que
na 9° classe se fala sobre o Brasil na dinâmica do “comércio triangular”, realça a narrativa do
continente africano como fonte de mão de obra escrava para as Américas e inclui o Brasil.
Nos manuais pesquisados podemos perceber o que sobressai na fala do professor:

Cronologia da Expansão Portuguesa


1498 – Vasco da gama chegava à Índia, tendo aportado antes em Moçambique
1500 – Pedro Álvares Cabral chegava ao Brasil

15
Entrevista Noé José.
16
Idem.
17

(...) Ciclo dos escravos (1750-1900) – A partir de meados do século XVIII, a


procura de escravos ultrapassou a do ouro e a do marfim. O tráfico de escravos
teve três etapas a saber: antes de 1750: comércio menos intenso com os escravos,
sendo enviados para as ilhas francesas do Índico; 1750-1842: período alto do
tráfico de milhar saem anualmente para as plantações e minas da América
(Brasil); 1842: (abolição oficial em Moçambique), fim do tráfico clandestino. Os
escravos saíam principalmente pelos reinos afro-islâmicos da costa, tendo como
destino as ilhas francesas no Índico.17

Na 11° e 12° classes, segundo ele, volta-se a se falar mais sobre a escravatura, o que
na sua experiência estabelece conexão com o tema das relações raciais, tema complexo e
cheio de nuances no contexto africano, ele diz que “o moçambicano conhece muito o
Brasil”18. José Noé retoma a questão da escravidão para falar do Brasil, sobretudo quando
ressalta os Prazos no conteúdo de História, em dois manuais diferentes encontramos as
seguintes definições para a dinâmica portuguesa no contexto colonial em África:

“Os Prazos da Coroa, tão ligados a fortuna dos afro-portugueses, constituíram-se


uma das características que mais marcou a história de Moçambique. As suas
origens remontam ao século XVI, mas eles só seriam abolidos, formalmente nos
anos 30 do século XX. Durante todo este período constituíram-se uma das
instituições mais visíveis no vale do Zambeze.”
Os prazos eram terras doadas, conquistadas, compradas ou simplesmente cedidas
no vale do Zambeze pela Coroa Portuguesa19

A questão dos Prazos é abordada pela historiografia com ênfase nos estudos africanos
e destaca que o Conselho Ultramarino era instituição que tutelava o processo de concessão de
terras sesmariadas no Brasil e que a legislação pensada para o Prazos em Moçambique adotou
as mesmas normas legais20.
Compreende-se o “ensinado” como um espaço-tempo composto por múltiplas forças 21.
Nesse sentido vale destacar que aliado aos professores, a dinâmica de produção didática
adquire lugar de valor nesse processo, assim como a historiografia produzida em espaços

17
Livro História 9° classe – Salvador Agostinho Sumbane, Capítulo – Formação do Sistema Capitalista Mundial
(séculos XV – XVIII), 2008, Texto Editores Ltda. pp. 19
18
Entrevista Noé José.
19
Livro História 12° classe – Carlos Musa – Capítulo - Os estados de Moçambique e a Penetração Mercantil
Estrangeira, 2008, Texto Editores, Ltda. pp. 59; Livro História de Moçambique, de África e Universal. Manual
de Preparação para o Ensino Superior. 10° à 12° classes, Dionísio Calisto Recama, Plural editores, 2006.
20
RODRIGUES, Eugênia. As donas de prazos do Zambeze. Políticas imperiais e estratégias locais. In
RODRIGUES, Eugénia, Portugueses e Africanos nos Rios de Sena. Os prazos da Coroa nos séculos XVII e
XVIII, Universidade Nova de Lisboa, Dissertação de Doutoramento em História, 2002.
21
AZEVEDO, Patrícia. A produção de sentido na História Ensinada e sua relação constitutiva com o tempo-
espaço. In Pesquisa em Ensino de História. Rio de Janeiro: Mauad, 2014.
18

acadêmicos. Deve-se refletir que o livro permeia e dá suporte a uma intencionalidade de


história ensinada. E de que forma essas relações adquirem sentido na aprendizagem histórica?
O conhecimento sobre o Brasil segundo tanto a narrativa do professor quanto de
alunos africanos angolanos, moçambicanos, guineenses, são tomenses e cabo-verdianos no
espaço da Unilab/Malês, é bastante veiculada a partir de telenovelas e/ou outros instrumentos
na dimensão pública da História, muito embora tenha-se também conhecimento dos laços
históricos permeados pelo colonialismo. O professor em sua fala lamenta ser por meio da
escravidão, uma das formas de “recuperar” as relações com o Brasil e demonstra sua
associação também por meio das telenovelas, fazendo com que os estudantes percebam por
meio de características físicas (o professor ressalta as pessoas negras que porventura
aparecem nas novelas), o quanto nos assemelhamos. Outra informação interessante que nos
concebe refletir sobre a construção dos saberes ensinados em História, é a prática de
relacionar o conteúdo ensinado, especialmente a escravidão, com relatos orais, nesse contexto
os dois professores entrevistados afirmam que os alunos “quando chegam em casa tem a
oportunidade de questionar os seus avós, tem a vantagem de ouvir o que os pais e avós tem a
dizer sobre o tema, as aulas se constróem nesse contexto” 22. Os sentidos de tais relatos
também permeiam a construção do aprendizado em História.
Isso permite evocar em outra situação, a partir de algumas falas e reflexões de alunos
no cotidiano das aulas de História no espaço da Unilab/Malês, experiências articuladas a
narrativas pessoais ou de grupos específicos, construções identitárias em contextos lusófonos
apontando que ainda é importante pensar como o ensino e a aprendizagem em história no
tempo presente, remete a uma construção de suas próprias histórias pela ótica de um passado
colonial.
O passado realmente está distante do presente, guardado num “arquivo fixo” ou
adquire ressonância no universo de experiências socioculturais de professores e alunos?Nesse
sentido, por mais que alguns fatos e eventos narrados nos livros didáticos não se refiram a um
“tempo vivido”, múltiplas memórias e experiências no tempo presente podem ser
interpretadas a partir desse movimento de refletir sobre esse tempo, identidades de classe,
raciais, experiências de lutas, etc. Para esse viés de análise é interessante observar o que os
estudantes pensam sobre as aulas de História.
Tais temas e suas formas de abordagens, nos levam a uma questão maior e crucial,
qual seja a de percebermos que as narrativas históricas criadas na perspectiva de um saber

22
Entrevista Cecília Avelino.
19

escolar são um componente significativo do pensamento histórico e uma ferramenta central


no ensino e na aprendizagem em história, por sua vez interfere nas concepções de uma
história da África contemporânea. Perceber como são construídas essas narrativas por meio de
manuais escolares e práticas de leituras que os professores implantam em sala de aula, são
fundamentais para ampliarmos o debate na área da pesquisa e do ensino em história.
O contato direto com as demandas cotidianas de estudantes em formação docente na
universidade, as dinâmicas dos estágios supervisionados nas escolas públicas, me fazem
pensar como se dão os processos de ensino e aprendizagem, articulando a noção de
temporalidades históricas, nos levando a estabelecer conexões entre a história ensinada e a sua
realidade com forte preocupação de que ela lhe sirva como instrumento para o entendimento
das sociedades no seu tempo.
No Brasil, em relação as formas e estratégias de implementação da lei 10.639/03 nos
espaços acadêmicos e escolares, percebe-se que ainda existem muitas lacunas, sobretudo
quando pensa-se no continente africano ou em “africanos” como um bloco homogêneo. O
desconhecimento da geografia do continente, das especificidades dos países e suas trajetórias
históricas, dentre outras questões, levam a ensinar e aprender sobre história da África numa
perspectiva que “privilegia o cultural”23 ou a partir da Europa por meio do Imperialismo e a
colonização em África.
Sobre o caráter das construções de manuais escolares e suas reformulações, os
professores apresentam as mudanças que ocorreram na década de 90 no plano dos conteúdos a
serem trabalhados, tendo a perspectiva de uma África contemporânea situada no plano da
História Universal. Entre os anos de 1990 e 1995 reformulou-se os conteúdos de História,
segundo os professores: “diminui-se mais as questões políticas, diminui-se a história
específica da África”24. Nesse sentido, pode-se perceber de acordo com Basílio 25, a busca por
uma construção de identidade universal a partir das identidades locais, resultado das
interações entre Estados e instituições globais. Nos manuais didáticos, os usos políticos e
históricos na constituição de uma identidade moçambicana passa a ser fruto da coexistência e
entrelaçamentos entre o local e o universal. As mudanças no conteúdo que se abre para a
história mundial direciona para essa interpretação, a de uma abertura a partir do capitalismo e
acordos de cooperação internacionais.

23
SOUZA, Marina de Mello. Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de História da África. In Revista
História Hoje, v. 1, p 17-28, 2012.
24
Entrevista Noé José.
25
BASÍLIO, Guilherme. O estado e a escola na construção da identidade política moçambicana. Tese de
Doutorado em Educação-Currículo, São Paulo: PUC, 2010.
20

As mudanças do ponto de vista da educação e do ensino de história refletem-se


também na produção de manuais escolares e nas práticas docentes que se reinventam. Estudar
o Ensino de História da África no próprio continente, permite um “encontro” com o passado,
intricadas por outras “marcas” do tempo expostas pela mídia, família, sociedade, desse modo
os alunos precisam desenvolver estruturas históricas que o permitam orientação no tempo,
pensando uma aprendizagem satisfatória. Nesse contexto perceber como os manuais didáticos
atuam nesse processo - elaboração e práticas de uso – bem como os professores se apropriam
em aulas, desses materiais, nos permite pensar se há uma preocupação com a reflexão do
aluno sobre a sua identidade, compreensão sobre si mesmo e seu entorno no presente e não
somente reproduzir fatos históricos, a partir de uma tradição disciplinar estabelecida.
Tendo como recorte os espaços lusófonos, pode-se contribuir para potencializar a
compreensão das ferramentas de construção do passado, podendo resignificar a história da
África aqui aprendida e ensinada, que por sua vez denota representações dessa história nas
narrativas de experiências históricas afro-brasileiras. O conhecimento sobre o continente
africano, localização geográfica, diversidade línguística, perspectivas sobre identidades, pode
incidir nas construções das consciências históricas e diferentes apropriações da História entre
alunos africanos e brasileiros, nesse novo movimento via Atlântico, mas isso será assunto
para outro artigo.

Referências Bibliográficas
ALENCASTRO, Luis Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul
séculos XVI e XVII. Cia das Letras, 2000.
AZEVEDO, Patrícia. A produção de sentido na História Ensinada e sua relação constitutiva
com o tempo-espaço. In Pesquisa em Ensino de História. Rio de Janeiro: Mauad, 2014.
BASÍLIO, Guilherme. Os saberes locais e o novo currículo do ensino básico. Moçambique:
Universidade Pedagógica de Moçambique; São Paulo: PUC-SP, 2006. Dissertação.
BENOT, Yves. Ideologias das independências africanas. Luanda: INALD, 1968. Volumes I e
II.
BOAVIDA, Américo. Angola: cinco séculos de exploração portuguêsa. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1967.
BOXER, Charles. O Império Marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Cia das Letras,
2002.
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escolares para o ensino primário na África: relatório de um seminário do IIPE. Paris:
IIPE/UNESCO, 1992. Disponível em:
http://unesdoc.unesco.org/images/0009/000919/091900poro.pdf.
21

CABAÇO, José Luís. Moçambique: identidade, colonialismo e libertação. São Paulo:


UNESP, 2009.
CASTIANO, José P., NGOENHA, Severino E. A longa marcha duma educação para todos
em Moçambique. Maputo: Publifix, 2013.
CHOPPIN, Alain. 2002. O historiador e o livro escolar. História da Educação. Pelotas. n. 11,
abr. 2002. p. 5-24.
HOFISSO, Narciso. História - 6ª Classe. Maputo: República Popular de Moçambique.
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FERREIRA, Roquinaldo. A primeira partilha da África: decadência e ressurgência do
comércio português na Costa do Ouro (ca. 1637 ca. 1700). Varia hist. [online]. 2010, vol.26,
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MONDLANE, Janet Rae. Janet Rae Mondlane (depoimento 2009). Rio de Janeiro.
CPDOC/FGV; LAU/IFCS/URFJ/ISCTE/IUL;IIAM, 2010.
MUNAKATA, Kazumi. Investigações acerca dos livros escolares no Brasil: das idéias à
materialidade. In: Historia de las ideas, actores y instituciones educativas. Memória del VI
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CD-ROM, 2003.
MUSCALU, Ivana Pansera de Oliveira. Donde o ouro vem: Uma história política do reino do
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Dissertação.
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SILVA, Alberto Costa e. A enxada e a lança. A África antes dos portugueses. 2ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
22

SITOE, Lucas António. Ensino da História no 1º Grau da Escola Primária em Moçambique: o


caso de Maputo Cidade, 1975-1995. Maputo: Universidade Eduardo Mondlane, 2000.
Monografia, p. 38.
SOUZA, Marina de Mello. Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de História da
África. In Revista História Hoje, v. 1, p 17-28, 2012.
23

PALESTRA
Cultura e política nas narrativas de Alejo Carpentier:
poética da história e debate latinoamericanista.

Nuno Gonçalves Pereira1

RESUMO: O presente trabalho aborda o problema da representação literária da história em


dois romances históricos de Alejo Carpentier: O reino deste mundo e A consagração da
primavera. A eleição desses romances decorre da perspectiva de abordagem que adotamos e
do interesse central de nossa pesquisa: a articulação entre a reflexão latinoamericanista e o
tema da revolução social na produção intelectual deste escritor cubano. A análise comparativa
destes romances, escritos e publicados em períodos distintos e marcados por circunstâncias
políticas diversas, nos permite problematizar a partir das suas diferenças estilísticas e
ideológicas, como os propósitos de formulação de uma interpretação da realidade latino-
americana se alteraram profundamente no pensamento de Alejo Carpentier; apesar da
permanência de uma unidade temática central (as revoluções) e da opção por um determinado
gênero de escrita (a novela histórica).
Palavras-chave: Romance histórico. América Latina. Revolução.

As ideias que, sucintamente, apresentarei aqui são parte dos resultados da tese de
doutorado “LAS CRÓNICAS DE LA REALIDAD MARAVILLOSA: LA ESTÉTICA DE
LA HISTÓRIA EN LAS NOVELAS DE ALEJO CARPENTIER”, defendida junto ao
programa de estudos latino-americanos da Unam, sob orientação da Dra. Begoña Pulido
Herráez.
A referida tese buscou percorrer, os romances históricos de Alejo Carpentier, tentando
identificar as transformações e permanências das idéias de revolução e América latina nessas
obras. Ao problematizar as transformações e as contradições entre as diferentes concepções de
história que regem as composições dos romances históricos de Carpentier nos guiamos pelas
seguintes questões: Seria possível agrupar sob um único conceito de romance histórico essas
obras? Como se apresenta em cada uma delas a visão do autor sobre a cultura latino-
americana e qual a relação desta com a ação política? Quais as articulações que essas
narrativas estabelecem entre os tempos passado/presente/futuro e qual o lugar da revolução
como conceito modulador dessas articulações?

1
Doutor em Estudos Latino-americanos pela UNAM e professor da UFRB. A presente pesquisa contou com o
apoio financeiro do Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología da República dos Estados Unidos Mexicanos e
com a colaboração dos colegas do colegiado de história da UFRB que possibilitaram minha licença integral para
a realização da mesma: a ambos, minha gratidão.
24

A tese central que viemos desenvolvendo, nestes últimos anos em que nos debruçamos
sobre os romances históricos de Alejo Carpentier, poderia ser resumida da seguinte maneira:
existe uma solução de continuidade radical entre as representações da história que definem
estética e politicamente os romances históricos “O reino deste mundo” e “A consagração da
primavera”.
Posicionando-nos contra a visão teleológica, tão difundida por uma parcela importante
da extensa fortuna crítica do autor, que insiste na leitura que atribui aos anos de formação do
jovem Carpentier uma revolta embrionária que teria dado origem ao personagem
mundialmente conhecido do intelectual-embaixador da revolução cubana, viemos insistindo
na necessidade de historicizar a produção literária deste autor; procurando relacionar em cada
um de seus romances históricos: o tempo de escritura, o tempo da narrativa e o tempo utópico.
Para isso nos foram de fundamental importância a consulta de seu epistolário, a análise de
suas crônicas jornalísticas e a leitura minuciosa dos intelectuais que lhe eram
contemporâneos.
A idéia de revolução, central nos romances históricos de Alejo Carpentier por
estabelecer o salto hermenêutico que articula a estória particular narrada nos romances a uma
série de generalizações que permitiram a esse intelectual cubano intervir no debate
latinoamericanista do século XX, sofreu, ao longo das três décadas que separam a escritura
dos romances em questão, uma alteração qualitativa que, na nossa compreensão, de forma
alguma pode ser compreendida enquanto alteração quantitativa.
Enquanto no primeiro romance, O reino deste mundo, a revolução é pensada como um
processo de desdobramento das potencialidades da cultura que se caracteriza por manter em
aberto o horizonte de expectativas; no segundo caso, a revolução é representada como um
processo eminentemente político de instauração de uma nova forma social conduzida por uma
vanguarda política que anseia controlar o espaço de experiência e as dinâmicas culturais.
Essa passagem da idéia de revolução enquanto processo cultural conduzido por uma
eticidade à idéia de um processo político conduzido por uma moralidade; não pode, a nosso
ver, ser interpretada como um progresso, uma evolução, um aperfeiçoamento ou uma
clarificação do sistema conceitual e das motivações poéticas e políticas que levaram Alejo
Carpentier a manter sua eleição inicial pelo romance histórico como gênero adequado à
expressão de suas proposições latinoamericanistas.
Em nossa opinião – e essa é a tese que tentaremos demonstrar brevemente aqui –a
diferença substancial entre essas duas compreensões da idéia de revolução alteram
25

radicalmente o tratamento literário que Alejo Carpentier concede ao conteúdo propriamente


histórico em suas narrativas. O percurso que faremos para corroborar nossa asseveração é o de
reestabelecer as condições políticas dos tempos em que essas obras foram escritas e que, em
boa medida, determinaram a configuração dessas distintas poéticas da história latino-
americana com suas antagônicas formas de articulação dos tempos passados e futuros.
Neste sentido é que nos propomos a estabelecer algumas relações entre as principais
diferenças entre estes dois romances e os diferentes lugares que o autor ocupava ao tempo que
os escreveu, entre os contextos políticos de suas escritas e as distintas posturas políticas
expressas pelo autor nesses períodos.
Se O reino deste mundo expressa as experiências dos anos de formação do autor – a
influência dos estudos afroamericanos de Don Fernando Ortiz, os influxos vanguardistas da
revista Avance e o convívio no interior do grupo minorista – A consagração da primavera
resulta das experiências pós-revolucionárias onde Alejo Carpentier assumiu o eminente lugar
de articulador da rede de intelectuais em defesa da revolução cubana.
É à luz dessas experiências que devemos compreender a substituição do tempo cíclico,
do pessimismo crítico e da ideia de revolução como processo cultural regido por uma noção
de eticidade que definem a poética da história em O reino deste mundo; pelo tempo linear
progressivo, o otimismo histórico e uma ideia de revolução enquanto processo político regido
por uma moralidade específica apresentadas em A consagração da primavera.
Para compreendermos o alcance da transformação nessas representações literárias da
história e as implicações impressas por ela no latinoamericanismo de Alejo Carpentier, em sua
visão da cultura e sua valoração do fenômeno da mestiçagem e das matrizes culturais não-
europeias: iniciaremos por examinar comparativamente a presença das práticas culturais afro-
americanas nestas duas obras. Se pode realmente afirmar que a visão de Carpentier sobre a
cultura latino-americana seja idêntica nestes dois romances? Quais relações existem entre
essas visões, a ideia de revolução e a imagem do tempo histórico que emerge dessas obras?
Iniciemos por estabelecer rapidamente algumas comparações que nos servirão de apoio no
transcurso de nossa argumentação.
Nos dois romances encontra-se tematizada a questão das culturas afro-americanas,
suas relações com os poderes instituídos e com as perspectivas de transformação social.
Entretanto, enquanto no primeiro romance esse problema ocupa um lugar central no enredo;
no segundo ele ocupa um lugar secundário. Em O reino deste mundo, os protagonistas são
alçados à condição de sujeitos da história pela sua imersão na tradição do vodu. Nesse
26

romance, essa tradição é a responsável por manter viva a dimensão utópica da existência, de
tornar visível no tempo presente aquilo que só existe como esperança, projeto, expectativa e
memória de um tempo futuro.
Nesse sentido, é que afirmamos que o latinoamericanismo de Carpentier em O reino
deste mundo parte de uma particularidade – o vodu é na realidade um círculo cultural estreito
e, razoavelmente, fechado no interior da totalidade cultural latino-americana e o processo
revolucionário haitiano se diferencia dos demais processos de independências latino-
americanas pela radicalidade com que enfrentou os temas da escravidão e do racismo
colonialista.
A trajetória do personagem Ti Noel é inversa ao processo que acostumamos a designar
como mestiçagem cultural e que serviu de base a mais de um dos tantos projetos de estado-
nação das nascentes republicas hispano-americanas. A iniciação de Ti Noel no universo da
santería haitiana e o abandono de sua cosmovisão mestiça lhe levam a assumir um
compromisso político com a causa revolucionária. Sua reinserção identitária na tradição afro-
americana é indissociável de seu engajamento na luta revolucionária e o ápice de sua
decepção com o mundo mestiço se dá quando durante o processo revolucionário Ti Noel se
depara com a república dos mulatos.
Já em A consagração da primavera, a cultura afro-americana surge quando a bailarina
Vera, de origem russa, decide utilizar dançarinos afroamericanos no seu projeto de montagem
do ballet de Stravinski sobre as origens míticas da nação eslava. Através desses dançarinos,
Alejo Carpentier define uma dupla relação entre a cultura e a revolução: do ponto de vista
estético eles revolucionam o ballet com seus movimentos corporais e, do ponto de vista
político, por manterem laços orgânicos com os grupos urbanos que mantinham viva a luta
clandestina contra a ditadura de Fulgêncio Batista; laços esses que terminam por arrasar o
sonho apolítico de Vera e lhe arrastar definitivamente pelos caminhos da revolução.
Sem dúvidas, nesses dois casos, ao contrário do romance O reino deste mundo, se
pode perceber um elogio do fenômeno da mestiçagem. Seja pela postura vanguardista de
utilizar dançarinos da santería com o intuito de aportar inovações estéticas e revolucionar
uma arte tradicional como o ballet, ou pelo vanguardismo da atuação política destes
personagens expondo-se a todos os riscos que essa decisão implicava.
Nos dois casos, ao contrário de Ti Noel, a trajetória dos personagens negros segue um
movimento que parte da cultura afro-cubana em direção ao universo da arte e dos grupos
universitários de contestação política: a sua constituição enquanto sujeitos históricos
27

revolucionários equivale às capacidades que demonstram de incorporar e fusionar os


elementos culturais de sua origem às exigências de uma cultura que lhes é estranha.
Essa diferença entre essas representações do universo afro-americano sinalizam uma
diferença de fundo na própria definição de como Alejo Carpentier pensava a relação entre
cultura e revolução enquanto elemento chave na composição do romance histórico: na medida
em que anuncia a substituição da prevalência do cultural sobre o político por uma
predominância do político sobre o cultural.
O romance histórico deixa de ser um lugar de afirmação e investigação sobre como a
diferença cultural pode produzir a mudança revolucionária e se transforma em lugar de
afirmação e investigação sobre como a política revolucionária pode possibilitar o
desenvolvimento e a integração dos projetos culturais. Esta nova relação, entre a cultura e a
política, termina por afastar o romance histórico das famosas formulações de Carpentier sobre
o real maravilhoso americano e aproxima-o de um realismo político com certas semelhanças
ao realismo socialista.
Se, na primeira definição, o romance histórico levantava um problema político em
termos culturais; na segunda, até as batalhas e os embates do campo estético (figurativismo x
abstracionismo, vanguardismo x modernismo, etc.) são apresentados em termos políticos. O
crítico Leonardo Padura, interpretou com muita precisão esse deslocamento do sentido da
cultura afro-americana no latinoamericanismo de Carpentier, ao assinalar a importância de um
episódio relativamente marginal no desenvolvimento do argumento do romance e extrair dele
implicações ousadas para o esclarecimento dessa questão.
O episódio a que nos referimos é o primeiro contato de Vera com o universo da
santería. Levada pelas mãos de Gaspar – o músico comunista – a uma cerimônia, Vera se
deslumbra com as capacidades corporais e gestuais dos participantes do ritual e inicia seu
plano de incorporá-los ao seu antigo sonho de realizar uma montagem do ballet de Stravinski.
Nessa visita, Gaspar trata de desqualificar por completo a visão mágica de mundo da santería
e atribui à pura sugestão e comédia o fenômeno da incorporação. A conclusão de Padura sobre
este episódio é bastante ousada e vai de acordo à nossa argumentação:

En la boca de Gaspar, entonces, la valoración del mundo mágico de los negros


cubanos como barbarie y superstición constituye algo más que una opinión: resulta
una sentencia inapelable que Carpentier, de acuerdo con sus preceptos ideológicos
del momento, lanza sobre un universo del que había extraído más de una historia,
más de un personaje, y muchísimas aristas capaces de develar la singularidad
americana que definió como lo real maravilloso en su texto de 1948 (PADURA,
2002: 410)
28

Essa negação da autenticidade da cosmovisão da santería, em função de uma


apreciação racionalista e intelectualista, define uma nova abordagem às visões mágicas de
mundo completamente oposta ao que caracterizara O reino deste mundo e as formulações de
Carpentier a respeito do real maravilhoso. Para Padura, essa nova abordagem corresponderia a
uma nova postura filosófica e ideológica de Carpentier: se trataria de uma nítida expressão de
sua aproximação à filosofia marxista da história e aos postulados estéticos do realismo
socialista.
Para além do fato de que essa nova concepção da história latino-americana seja uma
consequência de sua nova posição política; parece-nos mais significativa a afirmação de
Padura sobre como a negação de Gaspar à autenticidade da experiência do transe seria, na
verdade, expressão literária de uma mudança do próprio Carpentier em relação às matrizes
não europeias da cultura latino-americana e, consequentemente, uma nova avaliação do
fenômeno da mestiçagem.
Perceba-se que não se trata aqui de uma questão menor, ou de um simples detalhe, e
sim da substituição de um latinoamericanismo baseado numa visão culturalista por um
latinoamericanismo político, onde o espaço de afirmação das tradições não europeias está
restrito às possíveis apropriações e reelaborações, que no campo da política ou da estética,
esta tradição possa sofrer por parte de uma consciência erudita que as reorganiza de acordo
com convenções formais que lhe são completamente estranhas.
A inserção desses códigos em linguagens pré-estabelecidas pelas tradições estéticas e
políticas de origem europeias, fragmenta a totalidade cultural de onde elas provêm e se desfaz
de suas especificidades em função de sua capacidade de assimilação a uma nova gramática
que termina por lhes conferir novos significados. Assim, os personagens negros em A
consagração da primavera são valorizados positivamente pela exótica potencialidade de seus
movimentos corporais e por suas posturas progressistas de ingressarem nos movimentos
estudantis e operários que lutavam contra a ditadura de Batista; entretanto seu ethos e a
cosmovisão, de onde se originaram essas mesmas qualidades, são descartadas e negadas pelas
próprias consciências eruditas que se apropriam delas: seja a de Gaspar, a de Vera ou, em
última instância, a do próprio Alejo Carpentier.
Se o real maravilhoso de O reino deste mundo expressava a valoração positiva da
alteridade cultural por uma consciência erudita (o narrador) que atribuía às forças mágicas do
vodu haitiano os impulsos primordiais do processo revolucionário; em A consagração da
primavera, essa consciência, passa a perceber essa alteridade como simples fonte de onde
29

pode extrair os elementos necessários para lograr seus próprios avanços e superações – de
maneira muito similar às propostas folcloristas e vanguardistas que Carpentier rechaçara em
sua denúncia dos artifícios surrealistas na década de 40.
No primeiro caso, encontramos a formulação de que a originalidade latino-americana
residiria na diversidade de experiências que permitiram a Carpentier, questionar o discurso
hegemônico que identificava as independências históricas como realização revolucionária e
utilizar o romance histórico para reinterpretar o passado e forjar um conceito de revolução. No
segundo caso, encontramos a formulação de que a originalidade latino-americana residiria na
realização de uma série de fusões culturais que terminariam por oferecer novas perspectivas
ao desenvolvimento da arte e da política sem, necessariamente, ter em consideração as lógicas
culturais intrínsecas a essas visões mágicas de mundo.
Paradoxalmente, à dissolução do maravilhoso corresponde o surgimento de uma
leitura unidimensional da história, convertida em narração que devora a alteridade e descrê de
sua potencialidade revolucionária. Seguindo a argumentação de Padura, defendemos que esse
movimento, que críticos tão importantes como o venezuelano Alexis Marques e tantos outros
definiram como sendo “la evolución filosófica de Carpentier”, era na verdade expressão
literária de uma guinada de orientação política radical no pensamento de Carpentier que ao
integrar-se tardiamente ao grupo que levara a cabo a revolução de 59 assumia para si uma

[C]oncepción definitivamente optimista del desarrollo histórico, del papel de las


masas en la lucha revolucionaria, de la preponderancia del factor económico, del
transcurso dialéctico del tiempo, de las condicionantes históricas que permiten el
florecimiento de las dictaduras y las dependencias neocoloniales y otras máximas y
leyes generales del desarrollo patentadas por la filosofía marxista de la historia y su
concepción de realidad (PADURA, 2002: 393)

Essa descrição do novo conceito de história manejado em A consagração da


primavera nos leva a levantar outra série de problemas: Seria então esse romance, que
Carpentier designou como uma épica da revolução, uma mera tentativa de adequar o romance
histórico ao conceito marxista de história? Estaria, nesse romance, reduzida a representação
literária da história a uma função legitimadora do processo revolucionário cubano e
justificadora de sua adesão pessoal a esse processo? Quais as estratégias e os alcances que
esse novo conceito de história permitia ampliar para a história latino-americana alguns
elementos particulares da experiência cubana como o vanguardismo, o foquismo, o
voluntarismo, a valorização heroica do passado, a teoria do homem novo e do pecado original
dos intelectuais?
30

Nossa leitura de A consagração da primavera nos levou a concluir que nesse romance
o tempo histórico está organizado de maneira linear e progressista. Toda a tessitura das
memórias dos personagens, intrínsecas ao enredo, se revelam como artifícios literários
insuficientes para ocultar o sentido unidirecional e unidimensional que a história assume nesse
romance.
Os personagens protagonistas se deslocam no tempo e no espaço ao ritmo de um
metarrelato que concatena a série de revoluções retratadas na novela e que tem por desfecho e
ápice a própria revolução cubana. Existe uma ideia de história universal que funciona como
metarrelato ao determinar o sentido particular de cada acontecimento na trama e,
progressivamente, eliminar e homogeneizar a multiplicidade temporal que, em O reino deste
mundo, Carpentier demonstrara, magistralmente, ser uma característica singular do processo
histórico latino-americano.
Para concluir nossa breve comparação da poética da história nestes dois romances
gostaríamos de afirmar que nos dois casos algo se manteve intacto e resistiu à passagem do
tempo: a ideia de que o romance histórico se utiliza da interpretação do passado enquanto
recurso de expressão de uma tomada de posição política no tempo presente da escritura.
As diferenças que apontamos no caso dos romances aqui abordados, não devem
ocultar o fato de que, nos dois casos, a descrição dos acontecimentos históricos obedecia a um
sistema hermenêutico mais amplo que determinava o lugar e o sentido de cada acontecimento
dentro da narrativa literária. Esse procedimento foi o que permitiu a Alejo Carpentier extrair
dos sucessos particulares que narrava suas proposições gerais sobre latinoamérica.
Retomando os termos de Koselleck, podemos afirmar que enquanto em O reino deste
mundo o efeito pretendido pela representação literária da história era forjar um novo horizonte
de expectativas desde a reconstituição de um determinado espaço de experiência; no caso de A
consagração da primavera, Carpentier buscou tornar familiar uma nova e inusitada
experiência e utilizou a reconstrução literária da história como uma ferramenta que tornava
visível as possíveis sementes, origens e antecedentes dessa experiência.
Possivelmente, uma das dificuldades de Carpentier em encontrar soluções narrativas
adequadas ao tema que se propôs em A consagração da primavera, consistia na proximidade
temporal dos acontecimentos que elegera e na proximidade entre esses acontecimentos e sua
própria biografia; ainda mais problemático parece ter sido o fato de ter que reavaliar o
passado recente desde a perspectiva de um desenlace até pouco tempo inesperado para muitos,
inclusive para ele mesmo: a vitória revolucionária de 59 e a adesão ao socialismo em 61.
31

Ainda que os movimentos sociais cubanos, suas organizações estudantis e operárias,


sempre estivessem atuantes contra o governo de Batista e o intervencionismo estadunidense
que o caracterizou; a vitória de um processo revolucionário radical parecia bastante remota e
contrária às experiências de Alejo Carpentier, que nesse período vivia em Caracas e ainda
pensava na historia do subcontinente como uma sucessão de tentativas frustradas de alcançar
uma autêntica revolução.
Utilizando-se das expressões cunhadas pelo historiador Rafael Rojas, podemos dizer
que, para Alejo Carpentier, não era tarefa de fácil execução abandonar o fértil mito da
revolução inconclusa, que lhe rendera o precioso romance O reino deste mundo, e abraçar o
incerto mito da revolução vitoriosa que regeria a poética da história em A consagração da
primavera.
De acordo com o historiador cubano, o mito da revolução inconclusa tem uma longa
história na tradição intelectual cubana, tendo perpassado as representações do passado da ilha
e, muitas vezes, de toda a América latina em representativos pensadores de diversos matizes
ideológicos. Remontando à ideia de nação independente como um projeto inacabado, esses
pensadores elaboraram uma poderosa interpretação do passado que permitia derivar uma série
estratégias no campo da mobilização política.
Se, por um lado, essa interpretação trazia em seu bojo uma falsificação da história, ao
nivelar acontecimentos tão díspares como a guerra separatista de 1868 e a chamada revolução
de 1933; é, justamente, ela que vai permitir a gerações de intelectuais ancorarem seus projetos
utópicos de transformação da realidade cubana e latino-americana. Se toda a história de Cuba
e, por extensão, da América Latina, resume-se a uma série de revoluções frustradas em suas
pretensões mais centrais, a tarefa do intelectual engajado permanece sendo a construção de
uma crítica do presente e a ação revolucionária uma missão a ser cumprida: um dever e um
destino.
Ao criar uma zona de indiferenciação entre o passado histórico e o passado mítico,
Alejo Carpentier reproduzia em seu romance O reino deste mundo, a interpretação do passado
que conformava a idéia da Revolução inconclusa. Ao utilizar o processo de independência
haitiana como metonímia da frustração dos projetos revolucionários que animaram as guerras
de independência hispano-americanas, Carpentier estendia sua crítica a todo o processo das
independências hispano-americanas apagando suas diferenças e especificidades e dando
seguimento ao diálogo que definira seus anos de formação junto aos intelectuais minoristas e
da revista Avance, além de expressar seu descontentamento com os rumos da revolução de 33.
32

Se, por um lado, essa coexistência de uma heurística historiográfica e de uma


explicação mítica, reduzia a natureza particular das revoluções históricas a uma idéia abstrata
de Revolução que guardava mais utilidade como estratégia de ação política do que como
ferramenta conceitual de conhecimento do passado, já que como enfatiza o próprio Rojas “no
existió tal Revolución eternamente frustrada e inconclusa porque no hubo una, sino varias
revoluciones, con sus propias ideas, valores, metas y actores.” (Rojas 2006: 66). Por outro
lado, foi essa mesma característica que permitiu a Alejo Carpentier arquitetar seu primeiro
romance histórico e se inserir num campo discursivo estabelecido desde o século XIX:

Este mito, aunque reforzado en los años 60 y 70 del siglo XX, como parte de una
legitimación discursiva de un poder revolucionario que se imaginaba eterno, surgió
en las últimas décadas del siglo XIX, dentro de la mentalidad de algunos caudillos
separatistas de la primera guerra (1868-1878), como Máximo Gómez y Antonio
Maceo, y, con especial fuerza retórica, dentro de la obra intelectual y política del
joven José Martí. Estos tres líderes independentistas organizaron una nueva guerra
en Cuba, la de 1885, en buena medida con el argumento de que la anterior, la de los
Diez Años, había sido frustrada por el Pacto de Zanjón, una transacción entre las
tropas rebeldes y el ejército colonial español que, en 1878, ofreció a los cubanos
amnistía y olvido del pasado, representación en las Cortes, derecho a constituir
partidos y ampliación de las libertades públicas. Martí, con su legendaria
elocuencia, dirá que en el Zanjón España asesinó la revolución cubana. (Rojas,
2006:61)

O contexto de escrita e publicação de A consagração da Primavera era radicalmente


distinto e o cenário exigia uma nova forma de representação da história. O curto período de
três décadas, que separava esses dois momentos, experimentara a erupção da revolução de 59
e suas consequências eram demasiadas profundas para serem esquivadas. O antigo debate
sobre como interpretar e representar o passado cubano e latino-americano foi diretamente
afetado pela posição de cada intelectual ante esse acontecimento.
A adesão total de Carpentier ao processo revolucionário e sua posição de destaque nas
fileiras burocráticas dos órgãos responsáveis pela implementação e regulamentação da política
cultural revolucionária exigiam dele uma nova revisão do passado que daria origem ao
romance A consagração da primavera.
Para ele, assim como para tantos outros intelectuais cubanos forjados sob os
autoritários governos que antecederam à revolução, a ruptura inesperada equivalia à desejada
efetivação da Revolução inúmeras vezes frustrada. O horizonte de expectativas, insuflado por
todos os projetos historicamente derrotados parecia, enfim, ter encontrado seu espaço de
experiência. A crença na realização da utopia, sua encarnação em história, levou Carpentier a
33

elaborar seu novo romance histórico utilizando uma hermenêutica do passado muito distinta a
que utilizara na arquitetura de O reino deste mundo.
A expectativa de uma revolução vitoriosa estava fora do horizonte compartilhado por
vários intelectuais cubanos remanescentes das intensas primeiras décadas do século XX,
inclusive para os integrantes da velha guarda do comunismo cubano. A frustração que se
sucedeu à queda de Gerardo Machado em 33 se agravaria com a ascensão de Fulgencio
Batista e o futuro parecia tão sombrio e previsível como nas décadas anteriores. Assim, a
vitória de 59 foi vivida por esses homens como uma nova experiência.
A supressão da distância entre horizonte e experiência ou, dizendo em outros termos,
entre utopia e história; apresentava aos intelectuais que vivenciavam essa nova situação o
desafio de abandonar a visão cíclica do tempo e reconstruir a imagem do tempo histórico.
Essa tarefa, no caso específico do romance histórico de Alejo Carpentier implicaria a
substituição de uma visão trágica da história por uma visão épica, fundada sobre uma
concepção teleológica do processo histórico. Passava-se assim do mito da revolução
inconclusa ao mito da revolução acabada.
A consagração da primavera, juntamente com Esse sol do mundo moral (de Cintio
Vitier) e Chover sobre o molhado (de Lisandro Otero) foram tentativas de construir respostas
intelectuais a essa situação. Parte importante dessas respostas consistia em introduzir a ideia
de progresso na representação do passado latino-americano. Talvez aí encontremos um último
vestígio do que, três décadas antes, havia sido o real maravilhoso de Carpentier: transformar
um fato insólito (a ascensão ao poder dos guerrilheiros da Sierra Maestra) na culminação
lógica e necessária de um longo processo. Ainda mais complexa era a tarefa se pensarmos que
no lapso de tempo de um piscar de olhos a revolução nacionalista se assumira marxista-
leninista. Certamente não foi por casualidade que Carpentier decidiu concluir seu romance
com a vitória cubana da praia Girón: se realizava, assim, o telos, a promessa e a finalidade de
uma história concebida como evolução lógica de suas próprias origens.
A política cultural da revolução prevalecia assim sobre a cultura política
revolucionária. Ironicamente, Alejo Carpentier segue sendo mais reconhecido como o autor
de O reino deste mundo do que como o autor de A consagração da primavera – talvez o
pessimismo crítico e a fé romântica expressas na poética da história daquele romance nos
ajudem a repensar os caminhos que trilhamos até esses tempos de realismo político, inércia
cultural e apatia social. Pessimismo e fé, beleza e desespero, como na iluminação final de Ti
Noel:
34

Ti Noel comprendió obscuramente que aquel repudio de los gansos era un castigo a
su cobardía. Mackandal se había disfrazado de animal, durante años, para servir a
los hombres, no para desertar del terreno de los hombres. En aquel momento;
vuelto a la condición humana, el anciano tuvo un supremo instante de lucidez. Vivió,
en el espacio de un púlpito, los momentos capitales de su vida; volvió a ver los
héroes que le habían revelado la fuerza y la abundancia de sus lejanos antepasados
del África, haciéndole creer en las posibles germinaciones del porvenir. Un
cansancio cósmico, de planeta cargado de piedras, caía sobre sus hombros
descarnados por tantos golpes, sudores y rebeldías. Ti Noel había gastado su
herencia y, a pesar de haber llegado a la última miseria, dejaba la misma herencia
recibida. Era un cuerpo de carne transcurrida. Y comprendía, ahora, que el hombre
nunca sabe para quién padece y espera. Padece y espera y trabaja para gentes que
nunca conocerá, y que a su vez padecerán y esperarán y trabajarán para otros que
tampoco serán felices, pues el hombre ansía siempre una felicidad situada más allá
de la porción que le es otorgada. Pero la grandeza del hombre está precisamente en
querer mejorar lo que es. En imponerse Tareas. En el Reino de los Cielos no hay
grandeza que conquistar, puesto que allá todo es jerarquía establecida, incógnita
despejada, existir sin término, imposibilidad de sacrificio, reposo y deleite. Por ello,
agobiado de penas y Tareas, hermoso dentro de su miseria, capaz de amar en medio
de las plagas, el hombre sólo puede hallar su grandeza, su máxima medida en El
Reino de este Mundo. (Carpentier, 2004: 196-197)

Bibliografia
CARPENTIER, Alejo. El reino de este mundo. La Habana: Letras cubanas, 2004.
CARPENTIER, Alejo. La consagración de la primavera. Madrid: siglo XXI, 1981.
CARPENTIER, Alejo. Tientos y diferencias. Ciudad de México: UNAM, 1964.
ECHEVARRÍA, Roberto González. org. (2008); Cartas de Carpentier. Madrid: Editorial
Verbum.
ECHEVARRÍA, Roberto González. Alejo Carpentier: el peregrino en su patria. Madrid:
Editorial Gredos, 2004.
ECHEVARRÍA, Roberto González. Mito y archivo: una teoría de la narrativa
latinoamericana. Fondo de Cultura Económica: México, 2000.
HERRÁEZ, Begoña Pulido. Poéticas de la novela histórica contemporánea: El general en su
labirinto, La campaña y El mundo alucinante. México: UNAM, 2006.
MÁRQUEZ, Alexis. Lo barroco y lo real-maravilloso en la obra de Carpentier. Ciudad de
México: Siglo XXI, 1982.
MÁRQUEZ, Alexis. Ocho veces Carpentier. Caracas, Grijalbo, 1992.
OTERO, Lisandro. Llover sobre mojado. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 1997.
PADURA, Leonardo. Un camino de medio siglo: Alejo Carpentier y la narrativa de lo real
maravilloso. México: Fondo de Cultura Económica, 2002.
POGOLOTTI, G.; RODRÍGUEZ BELTRÁN, R., orgs. (2010); Cartas a Toutouche. La
Habana: Editorial Letras Cubanas.
ROJAS, Rafael. Tumbas sin sosiego: Revolución, disidencia y exilio del intelectual cubano.
Barcelona: Editorial Anagrama, 2006.
35

VITIER, Cintio. Ese sol del mundo moral: para una historia de la eticidad cubana. México:
Siglo XXI Editores, 1975.
36

MUNDOS DO TRABALHO E TRABALHO NOS ENGENHOS DE


CACHAÇA ARTESANAL NO MUNICÍPIO DE ALCÂNTARAS.

Adelina Lopes Guimarães1


Telma Bessa Sales2

Resumo: Esta produção objetiva-se abordar sobre o Mundo do Trabalho, e de forma mais
específica o trabalho nos engenhos de cachaça artesanal no município de Alcântaras,
localizado na região Norte do Estado do Ceará, tendo como base as experiências de
trabalhadores de engenhos, resgatadas nas memórias desses sujeitos por meio da metodologia
da história oral afim de conferir visibilidade aos trabalhadores através da análise das suas
ações enquanto sujeitos ativos na História por meio da escuta de suas memórias, analisando
seus hábitos, costumes, relações familiares, sua interação com o ambiente que ocupa, seu
convívio com os patrões e colegas de trabalho, as visões de mundo, o seu próprio fazer-se
histórico, o trabalho em si na fabricação da cachaça artesanal, e também ter um olhar voltado
para além dos muros dessas mini fábricas.
Palavras chave: Trabalho. Memória. Engenhos.

1. Adentrando os caminhos da história do trabalho no Brasil


Ao tratar sobre a História do Trabalho no Brasil, (MARTINS, 1995 :92) mostra a
importância da sociologia como pioneira das produções sobre o trabalho, tendo como marco o
final dos anos de 1950 que apresentava inúmeras transformações sociais, principalmente nas
questões relacionadas ao aceleramento do processo de industrialização. Nos anos de 1960 foi
destinada a sociologia, “a tarefa de explicar a emergência do novo operariado”.
A respeito do prelúdio da História Social do Trabalho a autora expõe que “não coube
aos historiadores os louros de terem enfrentado este desafio. Foi a Sociologia que, desde o
início dos anos 60, desenvolveu instigante produção que definiria os parâmetros do campo da
futura sociologia do Trabalho no Brasil. ”
Segundo (BATALHA, 2006: 88) a respeito dos percursos trilhados pela História do
Trabalho, assinala que houve avanços nas produções sobre esse tema, bem como a
variabilidade dos temas abordados, como podemos perceber nesse fragmento

[...] as conquistas da história do trabalho foram muitas e muitos significativas


desde fins dos anos 1990. Houve ganhos no volume e na qualidade da pesquisa
produzida, com reflexos evidentes nas publicações, nas variedades dos temas
abordados, na construção de espaços institucionais e acadêmicos para a história do
trabalho.
1
Graduanda em História na Universidade Estadual Vale do Acaraú
2
Professora Doutora, do curso de História na Universidade Estadual Vale do Acaraú, e orientadora deste
trabalho
37

Sobre a relação entre sociologia e história e as produções sobre o trabalho, Claudio


Batalha também apresenta seu questionamento, e expõe os conflitos existentes entre essas
duas áreas, levando em conta a cronologia estudada sobre ambos ao tratarem das pesquisas
com a temática do trabalho.

No que diz respeito aos limites cronológicos ocorreu uma ampliação nos anos 1990
com relação aos períodos precedentes. Por um lado, acabou a “divisão de
trabalho” informal entre historiadores e cientistas sociais, que deixava para estes
últimos tudo que dizia respeito ao pós-1945 ou, na melhor das hipóteses, ao pós-
1964. (BATALHA, 2006: 90)

Por meio desses avanços, percebemos que os estudos sobre trabalho ganharam forma e
força, e muitos foram os desafios enfrentados para que alcançassem seu devido espaço, pois, o
objeto, na sua maioria está voltado para aqueles indivíduos de classes inferiores, os
trabalhadores. Não só os trabalhadores da cidade, do ambiente fabril, dos movimentos
sindicais tiveram participação nessas pesquisas, as vivências como já foram tratadas aqui,
também apresenta uma parcela de importância para a pesquisa, é necessário hoje estudarmos
também o que acontece para além dos muros do ambiente de trabalho.
A respeito desse questionamento de desenvolver estudos com as vivências dos
trabalhadores (FENELON: 92 apud SALES, 2008:150-151) reafirma dizendo que:

A preocupação de acompanhar as realizações apenas das lideranças e dos


segmentos ativistas do proletariado obscureceu o exame da vivência (...)
negligenciou forças culturais importantes incluindo-se aí a vida em família, os
hábitos e costumes sociais, a religiosidade(...) enfim, o viver no campo e na cidade
em uma época de transformação.

Através desse olhar voltado para o que está intrínseco ao trabalhador, podemos ter
acesso as emoções, sua religiosidade, costumes, medos, as lutas enfrentadas por essas pessoas
em busca de uma vida digna através do trabalho, responsável pelo seu sustento e de sua
família, que afetam majoritariamente o seu comportamento frente as tarefas dentro do
ambiente de trabalho, e por meio desse contato torna-se possível elaborarmos pesquisas
enriquecedoras e com uma variabilidade de questionamentos e analises.
Voltando para a questão da trajetória da história do trabalho no Brasil, além do avanço
no período estudado pelos historiadores que marcam desde as duas últimas décadas do século
XIX, tornando-se um “um campo legítimo para as suas análises”, também houve um avanço
considerável no âmbito geográfico, como podemos perceber na escrita de Claudio Batalha.
Segundo ele:
38

Ocorreu também uma considerável ampliação do recorte geográfico adotado na


história do trabalho. Há muito que os estudos sobre este campo deixaram de voltar-
se para o eixo Rio e São Paulo. Afora a já vasta produção sobre o Rio Grande do
Sul, há trabalhos sobre Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais,
Bahia, Alagoas, Pernambuco, Ceará, Pará e Amazonas. Cada vez mais é possível
encontrar pesquisas que têm como recorte geográfico localidades onde o trabalho
industrial está longe de ser significativo. (BATALHA, 2006: 90)

Para que essa produção alcançasse toda essa proporção devemos enfatizar a
importância da constituição do Grupo de Trabalho (GT) “Mundos do Trabalho” na esfera da
Associação Nacional de História (ANPUH) em 1990, primeiro no Rio Grande do Sul e
posteriormente no âmbito nacional, que deu abertura para a consolidação das discussões sobre
a história do trabalho que até esse período era considerada inexistente.
Foi a partir desse marco que as produções sobre a História do trabalho tomaram corpo
e disseminaram-se no mundo acadêmico através dos encontros regionais e nacionais,
proporcionando então grandes produções. (BATALHA,2006:91) apresenta essa questão ao
evidenciar que “o sucesso dessa iniciativa, em parte, pode ser verificado pelo poder de atração
dos simpósios temáticos promovidos pelo GT nos encontros da ANPUH e pela presença
crescente neles de jovens pesquisadores. ”
Diante desses grandes avanços, é que nos dias de hoje, dispomos de um grande
número de produções acadêmicas, mas muitos foram os desafios enfrentados para se chegar
até aqui. Segundo (MELLO e SALES ,2017:50)

Para nós que chegamos ao século XXI, importa beber ainda, de uma fonte
inesgotável: dos ensinamentos e reflexões de estudiosos que marcaram a
historiografia contemporânea do trabalho na esteira de E.P.Thompson, Eric
Hobsbawn e David Montgomery, entre outros. [...] acreditamos que seus escritos
nos aproximam dos desafios da construção do conhecimento a partir das
experiências dos sujeitos sociais e seus respectivos processos constituintes.

Partindo para a produção de pesquisas sobre esse campo, muitas dificuldades ainda
nos cercam, tornando difícil, mas não impossível continuarmos trilhando e dando sucessão as
escritas sobre essa classe trabalhadora e aos seus ofícios, o trabalho.
MELLO; SALES (2016:51), nos traz o que seria essencial para essas produções
referentes as fontes e os cruzamentos das mesmas, além de práticas metodológicas: “para a
história do trabalho torna-se essencial uma pratica metodológica que permita a intercessão de
diferentes disciplinas e fontes para expandir e aprofundar as múltiplas formas pelos quais os
trabalhadores interagem e influenciem a sociedade mais ampla”.
Temos, portanto, o dever de continuar abraçando as pesquisas sobre o trabalho e os
indivíduos que dele fazem parte. Aos poucos daremos cada vez mais visibilidade as suas
39

vivencias indo além de questionarmos sobre as lideranças sindicais, e as classes propriamente


ditas. Não que essas questões não tenham importância, mas devemos fazer trabalhos mais
humanos, onde possamos adentrar para além da produção acadêmica, vivenciar de perto os
acontecimentos mesmo que sejam passados, tendo uma chance de rememorar o passado
estando no presente através do ato de recordar.

2. Os desafios da história do trabalho no Ceará


Ao discorrermos sobre a história do trabalho nos vem em mente, os grandes nomes do
âmbito internacional que trabalham sobre essas questões, como por exemplo Hobsbawn e
Thompson, fundamentais para o entendimento desse mundo aos moldes ingleses, que podem
ser aplicados em diversos lugares do mundo, claro que cada lugar com suas particularidades,
uma vez que, A formação da classe operaria inglesa, não acontecerá da mesma forma em
outros países.
As produções a respeito dessa temática ganharam o mundo, apresentando uma
considerável quantidade de grandes pesquisas e trabalhos, gerando, portanto, um importante
reconhecimento da classe trabalhadora, que em outrora era ignorada na historiografia. Em
nível de Brasil os estudos ganharam diversas abordagens, valorizando as experiências dos
trabalhadores e tornando-se cada vez mais consolidadas.
Trazendo as discussões sobre a produção histórica relacionada ao trabalho no Ceará,
(MELLO; SALES, 2014:124) apresentam importantes questionamentos sobre os
trabalhadores, no que diz respeito a ausência de produções sobre os mesmos, visto que “no
Ceará, as temáticas ligadas aos trabalhadores continuam geralmente negligenciadas, e há um
relativo desinteresse para pesquisas sobre trabalho no Ceará. ”
Frente a essa ausência podemos questionar os motivos desse descuido, pois há um
vasto campo de pesquisas a serem aprofundados, como as experiências construídas no
cotidiano dos trabalhadores, seus hábitos, costumes, relações familiares, sua interação com o
ambiente que ocupa, seu convívio com os patrões e colegas de trabalho, as visões de mundo, o
seu próprio fazer-se histórico, enfim, são muitas as possibilidades de investigação sobre os
trabalhadores no Ceará. Ao elencarmos essas possibilidades, percebemos o que Hobsbawn
apresenta como central, para os novos interesses e possibilidades de discursões sobre o estudo
do trabalho e o trabalhador de forma geral, indo além dos questionamentos centrados nas
classes e política grevista que também apresentam sua importância, mas não de forma única.
Percebe-se essa afirmativa no fragmento presente em sua grande obra Mundos do Trabalho,
importante produção sobre essa temática onde expõe que:
40

Apesar do fato de nossa geração terem sofrido do capitalismo uma lavagem


cerebral para acreditar que a vida é o que o dinheiro pode comprar, há mais do que
pedidos de aumento de salário. Há mesmo mais do que o desespero quanto a uma
sociedade incapaz de dar a seus membros o que eles precisam, uma sociedade que
força cada indivíduo ou cada grupo a cuidar de si próprio e não se importar com o
resto. Já foi dito: dentro de cada trabalhador existe um ser humano tentando se
libertar. ” ( HOBSBAWM, apud MELLO; SALES, 2014: 117)

O estudo sobre o Mundo do Trabalho, não pode ser estudado separadamente seja no
Ceará, no Brasil ou no mundo, é relevante haver um dinamismo entre todos os espaços onde o
trabalho se faz presente. (MELLO; SALES,2014:123) discutem essa importância, e
apresentam que a ausência desse dinamismo causa um entrave, mas que aos poucos se
evoluem, portanto, “[...] seria o diálogo, sempre necessário, entre os próprios historiadores no
Nordeste e entre estes e os do centro sul do País, contemplando também a américa Latina.
EUA e Europa, que sabemos, também produzem ricos estudos nesse campo. ”
As lacunas existentes quanto a produção a respeito do trabalho, carregam
questionamentos importantes devido ao próprio aspecto do local analisado. De modo geral o
homem do Nordeste é considerado uma grande figura que sobrevive a grandes períodos de
estiagem, de dificuldades e incertezas de dias melhores, mas que nunca lhes falta a esperança
e a força de trabalho, buscando em meio a tantos embates, formas de adaptação para superar
tantos obstáculos, ou seja, o trabalho sempre estará presente seja ele qual for.
Quanto a essas indagações o Ceará do século XIX apresentou produções referentes ao
setor industrial como a realizada por Thomas Pompeu de Sousa Brasil, em 1863, onde o
mesmo aponta a indústria fabril cearense e seus respectivos setores, que eram quatro:
“escravista, criadora, pastoril e fabril. ” Ainda falando sobre a produção de Thomas Pompeu,
o mesmo

Listou as principais fabricas na Província do Ceará: “couro salgado; solla; couros


miúdos preparados; carne charqueada; queijos; sabão; velas de carnaúba;
calçado; chapeos de seda; obras de palha (chapeos, esteiras, cestos); tecidos
grossos de algodão; redes; costuras. Bordados e crivos; objetos diversos. ”
(MELLO; SALLES, 2014: 125)

A busca das narrativas dos trabalhadores está intimamente ligada ao ato da escuta, da
conversa, com esses protagonistas sociais, por meio da oralidade. Através desses discursos
podem ser realizados os questionamentos dos ditos e das ausências na fala dos trabalhadores,
seus gestos, suas formas únicas de relatar o vivido, que não podem mais voltar. Tornando se
novos objetos de pesquisas, assim como diz (THOMPSON,1998:27), “a história oral pode
41

resultar não apenas numa mudança de enfoque, mas também na abertura de novas áreas
importantes de investigação. ”
Portanto, a história oral e suas evidencias “é de particular valor para os historiadores
da vida operária preocupado com o processo de trabalho propriamente dito não simplesmente
sua tecnologia [...], mas, a experiência de trabalho e as relações sócias que desta resultam. ”
(THOMPSON,1998:114)
Não será de imediato que o interesse por estudar a história do trabalho alcançará
grandes números de produção no Ceará, esse aumento acontece aos poucos, na medida em
que historiadores ou pesquisadores de outras áreas percebam a importância existente nessa
prática do trabalho e dos indivíduos que o pratica, pois ainda está muito enraizado questões
que tornam essas pesquisas entediantes, como apenas trabalhar com o sindicalismo, por
exemplo.
Será através da consciência em buscar trabalhar as experiências daqueles que foram
oprimidos por tanto tempo, que não tem nenhuma representatividade em sua cidade, estado ou
país, entendendo que o mesmo é um agente social ativo de grande importância para a
economia, um ser transformado da história cultural e social de determinado espaço, que essas
produções alcançarão quantidades significativas, objetivamos inserir os trabalhadores da
cidade de Alcântaras nessa dinâmica importante para a construção da nossa sociedade.

3. Trabalho nos engenhos de cachaça artesanal

Escrever e pesquisar a história dos trabalhadores no Nordeste, e particularmente


no Ceará nunca foi uma tarefa fácil. A falta de documentação e arquivos, aliados a
longos anos de repressão política às organizações da classe trabalhadora e
dominação feroz das elites regionais, obriga os historiadores a lançar mão de
metodologias e fontes poucos convencionais e buscar fundamentação teórica que
contribuam para novas formas de entender o passado. (MELLO; SALES, 2017: 62)

Produzir a respeito dos engenhos de cachaça artesanal também não se torna uma tarefa
fácil, contemplando do que foi apresentado no fragmento acima, onde devemos levar em
conta que essa dificuldade não se relaciona a não querer produzir sobre.
É importante considerar o contexto e sobre quem estamos pesquisando, onde os
interesses, sejam eles financeiros ou políticos, por parte daqueles que se assumem superiores,
estão acima de tudo e de todos, e as documentações quando existem há uma proteção para
com elas, ou lhes são dados um fim, em busca de não deixar rastros e até mesmo por serem
consideradas irrelevantes.
42

É por meio desses desafios que nós historiadores nos tornamos “investigadores”,
passamos a valorizar o ato da escuta, e o desejo instigante de encontrar a luz em lugares
sombrios onde em sua maioria se encontram aqueles que buscam no trabalho um meio de
possibilitar a sobrevivência de suas famílias. Por isso se faz tão importante o contato com os
trabalhadores e conhecermos suas vivências, seus costumes e hábitos, buscando assim como
(HOGGART, 1973, apud SALES, 2008:153) “[...]ver além dos hábitos, aquilo que os hábitos
representam[...] as verdadeiras raízes da vida. ”
A partir do conhecimento dessas verdadeiras raízes da vida dos trabalhadores é
necessário inseri-los no campo da visibilidade tirando-os da condição obscura de meros
indivíduos desconsiderados pela história geral e de suas localidades, e que a partir do fio
condutor da memória podemos ter acesso a uma vastidão de reflexões e questionamentos.
A respeito desse viés da memória dos trabalhadores, (THOMPSON, 2002:114 apud,
SÁ, 2008: 6) lembra que a “vivência oral é de particular valor para o historiador da vida
operaria preocupado com o processo de trabalho propriamente dito(...) a experiência de
trabalho e as relações sociais que dela resultam. ”
Elencando esses desafios encontrados por nós pesquisadores, também se faz presente
nessa escrita a dificuldade de se encontrar produções especificas a respeito do trabalho nos
engenhos de cachaça artesanal. São muitas as pesquisas que trazem questionamentos sobre as
etapas da produção da cachaça, o saber fazer essa bebida, sua importância econômica e
turística, a sua posição de patrimônio cultural e histórico do país, os balanços dessa produção,
enfim são muitas as abordagens sobre o tema, porém sobre o trabalho em si é bastante
reduzido.
Todas essas produções envolvendo a produção de cachaça artesanal, não abordam as
vivências dos trabalhadores, tornando difícil utilizá-las nesse capítulo, pois trataremos aqui de
uma forma mais geral das narrativas destiladas sobre esse trabalho, como ele pode ser
entendido e as questões mais especificas serão realizadas no decorrer dos embriagantes
capítulos dessa produção. Diante desses fatos, serão utilizadas as produções que tratam de
outro tipo de produto, que também é fabricado no engenho, tendo uma pequena diferença
apenas nas etapas dos processos de fabricação, que são os engenhos de rapadura, por meio
deles poderemos interligar o trabalho no engenho de cachaça e da rapadura, podendo ser
produzidos no mesmo espaço.
O primeiro espaço em que começa o trabalho é nos canaviais, durante todo o período
do inverno a cana é preparada para quando o verão chegar a moagem ser iniciada. No período
chuvoso o imenso verde das canas é de encher os olhos de tanta beleza, com o passar dos
43

meses chegando ao final do inverno se contrastavam com as folhas amarronzadas que já se


tornam secas, anunciando que chegara o período do corte, restando dessas belezas apenas as
memorias das mesmas nos dias atuais.
Vale ressaltar, que nesse período chuvoso o trato com a cana é compartilhado com a
agricultura ou outra atividade de fundamental importância para os moradores do campo, que
começavam logo meninos para ajudar na sobrevivência da família. Em um artigo de Maria
Yacê intitulado “Zé Fulô, uma vida em trinta e oito Moagens: Experiência de um trabalhador
em engenho de rapadura do Cariri”, publicada na revista dos alunos de pós-graduação em
história social da UFC, é abordada essa prática da agricultura aliada com as plantações e
moagem da cana:

Esse componente era de trabalho familiar era um dos fatores que compunham a
sobrevivência da família de um morador. Aos ganhos do engenho, muito pequenos,
eram associados determinados complementos, entre os quais se sobressaia o
roçado. Todos os moradores tinham permissão de utilizar durante alguns meses do
ano, uma parcela de terra do sitio, para plantar e colher feijão, milho, ou outra
cultura breve. (SÁ, 2007:109)

O mesmo é relatado por trabalhadores do engenho de cachaça artesanal, o senhor José


Rafael3, trabalhador do engenho de cachaça artesanal em Alcântaras, em uma conversa relata
que “[...] eu trabalhava nas folgas, porque a gente trabalhava na agricultura aí tem uns tempos
que a gente tá meio folgado, aí a gente faz aquele biscate 4[...]”. Como exposto, o trabalho no
engenho seja ele de cachaça ou rapadura, quando realizado em pequenas proporções aliava-se
com outros tipos de atividades para ajudar no complemento da renda familiar, tornando-se um
trabalho bastante exaustivo, onde os mesmos eram movidos pela necessidade.
Ao ter contato com esses trabalhadores ou simplesmente observar suas narrativas
escritas, percebe-se a emoção ao falar de um momento bastante sofrido, mas também de
grande importância que lhes causam emoção ao reviver momentos únicos, e que hoje estão
cada vez mais raros porque “[...] para apreender essa importante parcela do passado é
necessário resgatar as vivencias dos homens que realmente viveram esse passado. ” (SÁ,
2008: 3)

3
José Rafael de Souza, 79 anos, aposentado. Ex-trabalhador do engenho de cachaça do Sítio Bom-Fim,
pertencente ao município de Alcântaras. Entrevista realizada no dia 09/05/2017.
4
Biscate segundo o seu José Rafael é o que hoje conhecemos como um bico, ou seja, não é seu trabalho de todo
dia, é apenas um complemento.
44

Maria Yacê em outro trabalho5, também sobre a produção de rapadura, mescla o


passado e o presente na paisagem dos canaviais da cidade de Barbalha, onde coloca que, se
um indivíduo retornar a essa cidade hoje, não irá se deparar como os grupos de trabalhadores
cortando a cana, o cheiro do mel a cozinhar e até mesmo a fumaça vinda dos engenhos.
Hoje, em alguns sítios pertencentes ao município de Alcântaras, onde existiam os
engenhos, também não se encontram as belas paisagens dos canaviais com seus imensos
pendões6 de cor rosada que davam a impressão de estarem tocando o céu, nem o barulho do
engenho ao moer a cana, e muito menos o aroma embriagante da cachaça. O trabalho hoje
com a cana é de transporta-la para a cidade de Sobral, com a finalidade de tornar-se caldo de
cana encontrados nas lanchonetes, que por sinal é bastante apreciado.
Trabalhar nos engenhos de cachaça artesanal, tornou-se quase um ofício em extinção
na atualidade, restando apenas as lembranças de antigos trabalhadores, que recordam essa
pratica que em outrora eram abundantes. Em relação a essa quase extinção
Maria Yacê apresenta que “Fazer rapadura deixou de ser uma “arte”, um “oficio” de
parte expressiva dos trabalhadores de Barbalha, para se tornar um emprego, mais raro e sem
mestres.” (SÁ, 2008:12)
Percebe-se a dureza que era trabalhar no engenho, e em relação a remuneração, o
Senhor José Rafael apresenta que por ser um trabalho complementar, quando folgavam da
agricultura, relata que faziam esse “biscate” “porque não era empresa, não tinha carteira
assinada não tem nada, aí a gente faz esse biscate ajudando o dono da cana. ”
Já que não se tinha a carteira assinada, percebemos que esses trabalhadores não
estavam assegurados caso algum acidente acontecesse, e estavam sujeitos a isso, pois o seu
ambiente de trabalho, o engenho, era uma máquina que apresentava perigos, portanto, era
propício a acidentes. Também não havia nenhum sindicato especifico dos trabalhadores dos
engenhos de cachaça artesanal que os auxiliassem, mas muitos se associavam ao sindicato dos
trabalhadores rurais.
Quanto aos requisitos para torna-se trabalhador no engenho de cachaça, não
necessitava de nenhuma profissionalização na área, o que lhes exigia era a vontade de
trabalhar, uma certa experiência e também um saber repassado de geração em geração, o

5
SÁ, Maria Yacê Carleial Feijó de. Os homens que faziam o Tupinambá moer: Experiência e trabalho em
engenhos de rapadura no Cariri – 1945-1980. Dissertação (mestrado em História). Fortaleza: Universidade
Federal do Ceará/Centro de Humanidades/Programa de Pós-Graduação em História Social, 2007.
http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/3390/1/2007_dis_mycfsa.pdf
6
São comumente chamados na roça para designar as flores, ou na verdade, uma inflorescência podendo ser
denominado também por flecha ou bandeira, anunciando a planta atingiu a maturidade sexual e, portanto, está
pronta para a reprodução sexuada.
45

saber fazer a cachaça. Essa forma de seleção dos trabalhadores, se assemelha a outros
trabalhos realizados no sertão como por exemplo o da extração de carnaúba.
MELLO e SALES (2016:59) evidencia no trabalho com a carnaúba esses requisitos
para tornar-se um trabalhador, apontando que:

Nos carnaubais não havia exigências de currículo e a dignidade profissional se


formava por meio do dia a dia do trabalho e o conhecimento passados pelos
familiares por geração. [...] nos lugares do sertão há inúmeras atividades aonde o
que se exige é a experiência. Porem em muitas atividades, os trabalhadores
continuam, sem pagamento justo, nem proteção aos direitos e ferramentas de
trabalho.

Outro fator preponderante estava na forma de distribuição do trabalho, um só


trabalhador poderia realizar dois ou mais serviços, mas só em extrema necessidade. Levando
em consideração que a qualidade da cachaça está intimamente ligada ao saber fazer do
destilador, muitos ficavam apenas com o corte, moagem e retirada do bagaço.
MELLO e SALES (2016:57) nos alerta quanto as funções existentes nos ambientes de
trabalho bem como as suas complexidades

Na verdade, não sabemos e nem imaginamos a complexidade que é a organização


das funções e tarefas desenvolvidas pelos trabalhadores. Em muitos casos a história
oficial das industrias e das cidades, deixam de reconhecer o papel central dos
trabalhadores no processo de desenvolvimento socioeconômico, e mais ainda, a
complexidade do processo de trabalho, mesmo que este - ainda em nossos dias, seja
uma atividade manual.

O Senhor José Rafael em sua narrativa, aponta um exemplo acontecido com ele sobre
fazer dois trabalhos ao mesmo tempo, o que era comum, referente a isso relata que “[...] eu
pelo menos eu moía e destilava quando era minha, aí eu podia me esforçar e trabalhar e fazer
as duas coisas, mais sempre num dá certo[...]”. Inferimos então, que esse tipo de prática
muitas vezes estava relacionado a carência para pagar mais trabalhadores, e por fim um só
trabalhador realizava serviço por dois.
Essa carência em contratar outros trabalhadores estava relacionada também a forma
que esses trabalhadores eram pagos, como já abordamos aqui não existia salário, o sistema
utilizado era a diária assim chamado pelos trabalhadores, que é referente ao dia de serviço.
Portanto terminado o dia o trabalhador recebia seu pagamento independente do trabalho ser
mais exaustivo ou não. Mais uma vez esse tipo de sistema também era utilizado na produção
de rapadura. Em sua dissertação de mestrado (SÁ, 2008:184-185) também comunga dessa
informação, o trabalho exercido com pagamento por diária. Ela nos informa que “a
46

remuneração recebida pelos operários referente ao desgastante trabalho de fabrico da rapadura


era calculada por dia de serviço, independentemente do número de horas trabalhado [...]. Para
os trabalhadores do canavial, também por muitos anos a diária foi a única forma de
pagamento. ”
Tal sistema não era executado somente na lida do engenho de cachaça, mas também
em outros serviços, como por exemplo, na agricultura. Esse sistema não se restringiu somente
ao passado, nos dias atuais muitos trabalhadores vivem dessas diárias, não tal qual foi em
décadas anteriores.
A ausência de documentações ou outros meios que se comprovem o que fora dito (ou
o contrário) sobre esse sistema de pagamento aos trabalhadores é quase nenhuma. O que nos
move são as memórias desses indivíduos que eram protagonistas desse período, no qual
devemos ter consciência que essas narrativas podem guardar vários ‘não ditos’. Trazendo para
a atualidade em pleno século XXI esse pagamento da diária não ultrapassa 40 reais, sendo um
dos meios de trabalho ocasionado pela falta de escolaridade, ou pela falta de oportunidade em
outros ramos.
Abordar sobre as condições dos trabalhadores na atual conjuntura em que se encontra
o Brasil, só tende a alcançar cada vez mais insatisfações e malefícios para a classe
trabalhadora. Mesmo com as conquistas dos trabalhadores por meio de tantas manifestações
advindas desde o fim da escravidão, o quadro dos trabalhadores principalmente os rurais
ainda está longe de ser o ideal.
Mesmo o trabalho tendo que ser assegurado por direito pelo Estado, afim de não
retrocedermos ao quadro de escravidão, as péssimas condições de trabalho ainda estão
presentes, onde a flexibilização das Leis trabalhistas, na qual o Governo atual busca, aparece
como mais uma afronta aos direitos conquistados pelos trabalhadores. Tudo isso por conta do
discurso de que essas leis por serem estipuladas a muito tempo não estão alcançando o
aceleramento do País.
Portanto com o auto nível de desemprego, abre espaço para essa flexibilização, onde
os grandes empresários pontuam que os gastos maiores estão voltados para com os seus
empregados, ou seja, a solução seria tornar suscetível a mudanças dos direitos dos
trabalhadores como o FGTS, férias, previdência social, 13º salário, tudo isso para que a
empresa tenha mais lucros e o trabalhador ganhando cada vez menos.
47

4.“A luta é muito grande e num é todo mundo que aguenta, precisa do caboco ter muita
coragem [...]”7
Que o trabalho no engenho não era moleza, parece bem claro. A respeito dessa
condição era designado ao homem o título de coragem, “o homem tinha que ter coragem para
trabalhar no engenho”, que na realidade faz muito sentido. Para poder preparar a cana, cortar,
conduzir até o engenho, moer, destilar, retirar o bagaço necessitava grande força de trabalho.
Mais uma vez essa qualidade de corajoso era iniciada quando o menino ainda era
criança, afinal todos os componentes da família deveriam trabalhar de alguma forma para
ajudar nas despesas de casa. Em seu projeto de pesquisa, (GUIMARÃES,2016: 8) ao
trabalhar com os trabalhadores rurais, enfatiza suas condições de trabalho iniciadas desde
muito cedo, e apresenta um trecho da narrativa de seu entrevistado, o mesmo relata que “[...]
quando as crianças nasciam os dentes, já eram colocados para trabalhar, carregando lenha,
tirando capim ou indo para a roça, porque não tinha outra coisa para fazer [...]” “[...] eu custei
a crescer de tanto trabalhar no roçado do papai, com 7 anos eu e todos os meus irmãos
também iam trabalhar.”
Ainda sobre essa condição da coragem do homem, o senhor Francisco Ximenes,
trabalhador e responsável por ajudar a introduzir um engenho no Sitio Bom-Fim, no
município de Alcântaras, em sua narrativa menciona essa condição de dureza do trabalho no
engenho, segundo o mesmo:

[...] A luta é muito grande e num é todo mundo que aguenta, precisa do caboco ter
muita coragem, passava a noite trabalhando, eu trabalhei muito chega ficava com a
roupa toda molhada de suor, porque a gente só se banha depois que termina de
tirar a cachaça.

Através das narrativas, das experiências de vida desses trabalhadores, percebemos que
estes eram condicionados a um cotidiano de trabalho duro, de muita labuta, condições
precárias, e de muita dificuldade, mas em meio a tanta pobreza, apresentavam uma riqueza
abundante de experiências comuns, que contrastavam com outras narrativas para além do
trabalho no engenho de cachaça artesanal, entretanto, estavam nutridos de vontade de viver e
sobreviver.
Como a cana de açúcar era moída durante o dia e colocada para fermentar durante 48
horas, e só depois disso poderia ser destilada, todo esse trabalho acontecia de forma lenta e

7
Trecho da entrevista realizada com Francisco Ximenes Guimaraes, 82 anos, no dia 29 de maio de 2017
48

por isso o trabalho se estendia por toda a madrugada, sendo que o destilador só poderia deixar
o engenho depois que toda o caldo fermentado se transformasse em cachaça.
Não se pode deixar de enfatizar o sofrimento desses trabalhadores frente a rotina de
trabalho, começando já na madrugada, onde deveriam estar sempre atentos a desempenhar
suas funções afim de obterem uma boa produção, principalmente aqueles que destilavam a
cachaça.
A respeito desse processo Maria Yacê apresenta essa condição de sofrimento dos
trabalhadores que também acontecia na produção de rapadura, expondo que:

Quando a última cana do dia era moída, havia ainda uma boa quantidade de caldo
para cozinhar e mel grosso para caixear, o que representava mais três ou quatro
horas de intensa atividade no engenho. “Desse jeito o cabra sofria muito nesse
tempo. E não era só aqui não, em todo canto era desse jeito aí”, afirmou o Sr. José
Pindó. ” (SÁ, 2008:7)

Desenvolver estudos relacionando o trabalho do engenho de rapadura com o de


cachaça artesanal, nos faz perceber as semelhanças existentes entre ambos, bem como as suas
diferenciações. Através desse cruzamento foi possível a compreensão da complexidade
existente dentro dos engenhos, que despertam inúmeros questionamentos a respeito desses
agentes sociais e culturais, os trabalhadores, o ambiente que os cercam, a coletividade, além
da temporalidade com suas inúmeras transformações. Ficando-nos claro que, “suas
experiências, relações, modos de viver e trabalhar escapam às teorias generalizantes e eles
continuam na luta e, de forma fragmentada e plural afirmam que o mundo da fábrica, da casa,
do clube, é o mundo onde se sentem gente. ” (SALES, 2008:159).

REFERÊNCIAS
ATAÍDE, Marlene Almeida de. O mundo do trabalho no Brasil a partir da década de 90: uma
questão em análise. In: MÉTIS: história & cultura, São Paulo – SP, v. 11, n°.22, p.329-345,
jul./dez 2012.
BATALHA. Claudio Henrique de Morais. Os desafios atuais da História do Trabalho. In:
Anos 90, revista do Programa de Pós-Graduação em História. Porto Alegre, vol. 13, n°.23/24,
p. 87-104, jan./dez., 2006.
GUIMARÃES, Adelina Lopes. Prática agrícola e o cotidiano do agricultor de baixa renda no
Sítio Bom-Fim na década de 60 a 2014. Sobral, 2016.
MARTINS, Ismênia de Lima. Anotações sobre a História do Trabalho no Brasil. In: Revista
Brasileira de História. São Paulo, vol.15, n°.30. p. 91-100,1995.
MELLO, William J.; SALES, Telma Bessa. História Oralidade e os Mundos do Trabalho:
Notas sobre trabalhadores da carnaúba no Ceará - Passado e Presente. In: Revista eletrônica
49

do Mestrado Acadêmico em História da UECE. Fortaleza, vol. 5, n°09, p. 49-62, jan./jul.,


2017.
MELLO, Willian J.; SALES, Telma Bessa. Trabalho e trabalhadores na pesquisa histórica. In:
História, memoria, oralidade e culturas. Fortaleza: EDuece, 2014.
SÁ, Maria Yacê Carleial Feijó de. Os homens que faziam o Tupinambá moer: Experiência e
trabalho em engenhos de rapadura no Cariri – 1945-1980. Dissertação (mestrado em
História). Fortaleza: Universidade Federal do Ceará/Centro de Humanidades/Programa de
Pós-Graduação em História Social, 2007. Disponível em:
http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/3390/1/2007_dis_mycfsa.pdf
SÁ, Maria Yacê Carleial Feijó. Zé Fulô, uma Vida em Trinta e Oito Moagens: experiência de
um trabalhador em engenhos de rapadura do Cariri. In: Moanga. Revista dos alunos de Pós-
Graduação em história Social da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, v. 01, n° 2, p.
104-119, Julho, 2007.
SALES, Telma Bessa. Um olhar sobre as mudanças no mundo do trabalho. O público e o
privado, n°. 11. Fortaleza: UECE, 2008.
THOMPSON, Paul. A voz do passado. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. Entrevista
realizada com o Sr. Francisco Ximenes Guimarães, no dia 29/05/2017, antigo trabalhador do
engenho de cachaça artesanal.
Entrevista realizada com o Sr. José Rafael de Souza, no dia 09/05/2017, antigo trabalhador do
engenho de cachaça artesanal.
50

FAZERES EDUCATIVOS EM DST/AIDS:


EXPERIÊNCIAS E PERSPECTIVAS DAS MULHERES DE GUINÉ-BISSAU
ESTUDANTES DA UNILAB.

Adriana Nívia Girão Lima1

RESUMO: Essa investigação é um desdobramento de minha experiência no programa de


Iniciação Científica – PIBIC/UNILAB, através do projeto “O Corpo em Tempos de
SIDA/AIDS: Experiências Educativas em Saúde. Interdisciplinarmente, objetivou-se realizar
um estudo dos fazeres educativos em DST/AIDS das mulheres de Guiné-Bissau, estudantes
da UNILAB. A pesquisa desenvolveu-se através da observação participante, com entrevistas
fundamentadas na metodologia da história oral temática. Englobando questões de gênero,
sexualidade, cultura e SIDA/AIDS, e analisando um trabalho organizado pela CPLP –
Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa e pela UNAIDS – Programa Conjunto
das Nações Unidas sobre HIV/AIDS, buscamos identificar as experiências das guineenses,
relacionadas à epidemia de HIV e suas perspectivas.
Palavras-chave: Fazeres Educativos. Guiné-Bissau. DST/AIDS.

INTRODUÇÃO
Neste trabalho, analisamos as experiências femininas ligadas à saúde das mulheres de
Guiné-Bissau estudantes da UNILAB, relacionando educação com o tema: AIDS/SIDA. Foi
na coletividade que percebemos a importância do projeto, que emergiu de uma aproximação
com as estudantes, entendendo os posicionamentos, comportamentos e suas realidades.
Guiné-Bissau é o país que tem a segunda maior demanda de estudantes na universidade, e a
pesquisa realizou-se num recorte de 95 estudantes guineenses dos campi do Ceará, das quais
10 (dez) dispuseram depoimentos bastante contundentes. Neste sentido interessava-nos saber,
deste grupo em foco, suas práticas educativas e o grau de conhecimento sobre DST/AIDS –
Doenças Sexualmente Transmissíveis e HIV – Vírus da Imunodeficiência Humana.
O vírus da AIDS apavorou e ainda apavora o mundo desde seu surgimento.
Atualmente, ainda se questiona sobre sua temporalidade. Não podemos dizer que ele apareceu
de forma instantânea. Ele pode ter estado em espaços isolados e ter se proliferado. É fato que
os casos iniciais foram identificados na transição do final da década de setenta para início da
década de oitenta. Inicialmente era desconhecida a causa da síndrome pois, só em 1984,
pesquisadores franceses e americanos isolaram o vírus. (CARDOSO, 1989: 26). O vírus da
imunodeficiência humana – VIH é um retrovírus causador da AIDS. Ao adentrar o organismo

1
*Bacharela em Humanidades (UNILAB), graduanda em Licenciatura em História (UNILAB). Integra o Grupo
Interdisciplinar Marxista (DGP/GIM/UNILAB). Bolsista do Programa Pulsar de Tutoria
(PROGRAD/UNILAB). E-mail: adriananivia@yahoo.com.br.
51

humano, age dentro das células do sistema imunológico, exatamente naquelas que comandam
a resposta específica de defesa do corpo diante de agentes como vírus e bactérias. Esse agente
se multiplica por meio do DNA, replicando-se e espalhando-se pela corrente sanguínea. Uma
vez afetadas pelo vírus, as células do sistema imunológico do indivíduo funcionam com
menor eficiência, retardando a capacidade do organismo em Combater doenças comuns
(FRANCO, 2010, p. 12). Ao destruir a capacidade imunológica da pessoa, o vírus a torna
suscetível ao aparecimento, no organismo, de outros vírus e bactérias causadores de outras
doenças. De acordo com Franco, a educação corporal é um exercício fundamental para a
prevenção e saúde, precisamente na fase assintomática, onde a pessoa é reconhecida como
sorologicamente positiva para o VIH. A doença é identificada na fase em que os sintomas se
manifestam e é tratada com medicamentos antirretrovirais de forma que inibam a reprodução
do vírus.
Em Guiné-Bissau, a incidência de VIH perpassa mais de 30 mil pessoas, a maior parte
adulta. O país começou a apresentar casos de infecção em 1985-1986, segundo dados do
documento do Conjunto dos Países membros da comunidade de Língua Oficial Portuguesa –
CPLP e da ONUSIDA – Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o VIH/SIDA (2010).
Em 1989, através de um sistema nacional de monitoramento “Sentinela”, um programa
baseado num estudo feito com mulheres grávidas entre 15 e 49 anos. Em 2009 este programa
atingiu 20 localidades urbanas e rurais, sendo o primeiro estudo que englobou todas as regiões
de Guiné-Bissau, e o único, desde 2005 a trabalhar com a incidência de HIV em um recorte
considerável da população. Guiné-Bissau é um país localizado da Costa Ocidental da África,
com uma população em torno de 1,5 milhões de habitantes, cuja capital é Bissau. Sua recente
independência é datada de 24 de setembro de 1974. Possui uma densa população jovem, com
a faixa etária de até 25 anos. As mulheres representam a maioria, com 51%, com alta taxa de
fecundidade. Administrativamente, o país se divide em oito regiões: Bafatá, Biombo, Bolama,
Bijagós,
Cacheu, Gabú, Oio, Quínara e Tombari. A pesar dos esforços administrativos em
relação às necessidades e ao acesso à saúde, mais de 40% da população vive a uma distância
superior a 5 km das áreas sanitárias, restringindo assim, o acesso. As regiões detectadas com
maior incidência de HIV em 2009 foram Gabú e Bafatá, entre mulheres de 15 a 30 anos. O
país apresenta a necessidade de programas de apoio, tanto na educação preventiva, como no
tratamento, embora o que já fora realizado tenha uma relevância significativa.
Adiante, no desenvolvimento do 2º tópico, que vem falar sobre a influência do
contexto social englobando as questões de gênero, sexualidade, cultura e AIDS/SIDA, dados
52

do Fórum Nacional da Juventude e População – FNJP em Guiné-Bissau apresentarão melhor


o problema dessas duas regiões, marcadas por influências culturais que impulsionam o
preconceito e a negação diante da AIDS/SIDA. Vale salientar a importância dos programas de
prevenção, como o” Sentinela” e o Fórum Nacional da Juventude e População:

A proporção de indivíduos conscientes de que o VIH/SIDA pode ser prevenido pela


utilização contínua de preservativos cresceu de 70% em 2007 para94% em 2009.
Estes resultados sugerem que a implementação dos programas de prevenção desde
2007 surtiram efeito. Em julho de 2010 foi efetuado o inquérito CAP transversal e
quantitativo relativo ao VIH/SIDA. Foram selecionadas aleatoriamente 20 tabancas
em cada uma das 11 regiões sanitárias da Guiné-Bissau onde foram realizadas
entrevistas individuais junto à população residente. Para além de dados
sociodemográficos, foram recolhidas informações sobre os conhecimentos em DST
e VIH/SIDA, práticas sexuais e uso do preservativo. A grande maioria (92%) dos
participantes, com idade entre 15 e 49 anos, declararam já ter ouvido falar das DST
e 97% do VIH/SIDA. (CPLP,2010).

Apesar dos projetos já realizados em Guiné-Bissau, as dificuldades de acesso à saúde


ainda são preocupantes. De acordo com os depoimentos dispostos a esta pesquisa, os
programas não abrangem todas as regiões e as zonas mais carentes, as interioranas, sofrem
com a precarização e a falta de políticas, como o exemplo de Gabú e Bafatá. O Estado ainda
não conseguiu atingi-las como deveria, por isso, entende-se como marcante a influência da
cultura e do conservadorismo nessas localidades, algumas com prevalência, ainda, das
práticas de circuncisão feminina. Através desses apontamentos, foi identificada a
problemática existente na UNILAB, resultando nos seguintes questionamentos: Qual o
conhecimento das alunas sobre essas questões? Como estão acontecendo as relações e quais
as alternativas de apoio, esclarecimento e acompanhamento? Essas considerações
inquietaram-nos desde o início da pesquisa, e ganharam força na prática investigativa. Nesse
sentido, o estudo foi desenvolvido através da observação participante, ou seja, em um contato
direto, contínuo e dinâmico com as pessoas, em que o investigador pode tornar-se instrumento
da pesquisa, podendo eliminar conceitos preconcebidos, interagindo com a realidade através
do trabalho de campo e entrevistas fundamentadas na metodologia da história oral temática.
Segundo Thompson (1992), a história oral é um método que permite uma análise
social dos fatos narrados pois, tem um sentido para as pessoas que fazem parte daquele
contexto e esse sentido é o que vem a relatar e explicar com fidedignidade os fatos. “A
história oral é uma história construída em torno de pessoas. Ela lança vida para dentro da
própria história, e isso alarga seu campo de ação” (THOMPSON, 1992). Considerando os
depoimentos das estudantes guineenses, as práticas educativas em DST/AIDS permeiam as
relações nos espaços públicos e privados, ou seja, na escola, nos grupos de amigos, na família,
53

envolvendo questões como gênero, sexualidade, saúde, religião e até política. Nesse contexto,
as jovens apresentam uma consciência sobre AIDS através de um processo dialético, de
acordo com os relatos de suas experiências construídas historicamente, perpassando sua
trajetória desde suas vivências no país de origem, intercalando-se com a fase de transição para
o Brasil, até sua realidade atual.

QUESTÕES DE GÊNERO, SEXUALIDADE, CULTURA E AIDS/SIDA ENTRE AS


ESTUDANTES GUINEENSES DA UNILAB

“Os historiadores sociais, por exemplo, supuseram as mulheres como uma


categoria homogênea; eram pessoas biologicamente femininas que se moviam em
contextos e papéis diferentes, mas cuja essência, enquanto mulher, não se alterava.
Essa leitura contribuiu para o discurso da identidade coletiva que favoreceu o
movimento das mulheres na década de 1970. (SOIHET, 1997: p. 276)”.

No contexto do tema proposto nesta pesquisa, é importante identificar a mulher como


objeto da história e, para melhor análise, voltamos nossa atenção para a “mulher guineense”
como transformadora da sua sociedade. Guiné-Bissau tem uma população relativamente
jovem, em sua maioria mulheres, e as projeções sobre AIDS são mais focadas no público
feminino. A CPLP (Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa) em seu estudo
sobre epidemia de VIH fomenta análises em campos como fecundidade, maternidade,
mortalidade infantil, bem como a prevalência de VIH em mulheres grávidas de 15 a 24 anos.
Nossa pesquisa com as estudantes guineenses da UNILAB ressalta, sobretudo, como
se dá a atuação da mulher guineense frente a AIDS, seja na educação corporal, através de suas
atividades de inclusão social e no seu papel de agente transformadora para além da situação
da saúde, contextualizando sua vida tanto no seu país de origem, quanto no Brasil. Em seus
depoimentos, as estudantes não revelaram uma condição vitimizada, muito pelo contrário, a
maioria evidenciou o quanto é importante a mulher atuar frente as condições sociais impostas
marcadas pelo preconceito e pela precarização da saúde. Em uma sociedade que tem
enraizado o protagonismo masculino e a subserviência da mulher, é importante a superação
feminina frente ao conceito de “sexo frágil”. De acordo com o estudo de Raquel Soihet, ao
discorrer sobre mulheres como objeto da história, após os anos 70, em que se evidenciava a
passividade feminina diante da opressão e a submissão a uma sociedade patriarcal, as
mulheres foram se desvencilhando do que a história descrevera até então. Da condição de
oprimida, emergia uma mulher atuante, burlando prejulgamentos e assumindo um
posicionamento frente a realidade social. Os depoimentos dispostos pelas estudantes
54

guineenses retrataram justamente essa questão, o posicionamento das mulheres para além do
condicionamento, a visão real da mulher e suas atitudes frente a uma realidade que as locava
num espaço crítico, de vitimização.
Relembrando Mary Del Priore (1994) novamente, nos seus apontamentos sobre a
mulher e a historiografia, ela traduz a emancipação feminina após década de 70 em
contraposição ao status depreciativo da mulher, dado até então pela historiografia, onde a
mulher era condicionada ao determinismo vitimista, ao poder dominador que as subjugava.
Del Priore (1994, p. 13) considera que “a história da mulher é, antes de tudo, uma história de
complementaridades sexuais, onde se interpretam práticas sociais, discursos e representações
do universo feminino como uma trama, intriga e teia”. Nas entrevistas, as guineenses
retrataram bem esse posicionamento, falando do seu comportamento em relação à AIDS para
além do preconceito, do adoecimento e da mistificação, transpondo seus fazeres educativos às
suas vivências e suas relações sociais. Isso revela a importância da pesquisa oral nesse estudo.
Franco (2010, p. 74) releva essa questão em seu estudo “A Face Pobre da AIDS”:

O interesse especial pela fonte oral se justifica na medida em que as entrevistas


permitem obter e desenvolver conhecimentos novos e fundamentar análises com
base no trabalho de criação de fontes inéditas sobre a experiência social do
aprender a viver e conviver em tempos de HIV/AIDS.

Guiné-Bissau é um país cuja recente independência, é datada de 1974. Tem passado


por vários conflitos, o que enfraqueceu seu desenvolvimento social. Como já fora
mencionado, sua população feminina é significativa e as mulheres têm buscado atuar nos
campos da educação e de projetos sociais, apesar de ainda prevalecer o preconceito
relacionado ao tradicionalismo, à família e à própria discriminação social relacionando
mulher, sexo e saúde. Consideramos aqui, a fala da estudante Natividade Maria Beia (2016),
quando dialogamos sobre prevenção e informação, no campo público e privado (sociedade e
ambiente familiar):

Falar sobre AIDS na comunidade familiar é muito muito fechado. Porque é tipo
um tabu, pois na nossa realidade você não pode falar sobre relações sexuais,
diferente daqui. Tem o medo da família, dos mais velhos... é uma coisa muito
fechada, muito “sagrada”, mas existem várias ONG’s nacionais e internacionais
que trabalham nessa área de prevenção e sempre estão nas escolas, nos seminários,
para saber como os jovens devem se prevenir, quais são os métodos que devem usar
para não pegar esse vírus de AIDS. E havia muita massa de participação dos jovens
nos seminários... muito interessante... e sempre quando acaba o seminário eles
fazem uma dinâmica sobre a prática, falam sobre exame HIV. É um trabalho de
sensibilização dos jovens para participarem. E também tem o trabalho de porta a
porta com agentes de saúde.
55

Podemos observar bem, nesta fala, a predominância do conservadorismo propagado


culturalmente entre as famílias, impulsionando a repressão feminina frente a liberdade de
manifestação, o que se comprova a mistificação existente em relação à AIDS. Porém, diante
dessas condições, a estudante justifica a inserção em projetos sociais para além dos campos
tradicionais, como um mecanismo fundamental de apoio ao conhecimento e à prevenção.
Nestes termos, a mulher torna-se figura ativa, num campo em que a AIDS é tratada através da
sociabilização nos diversos grupos. Parafraseando ainda Raquel Soihet (1997), a
historiografia tem uma grande responsabilidade nessa questão da opressão feminina, devido à
falta considerável de registros de transformações e fatos sociais que tiveram mulheres como
agentes. Não obstante, o que se vê é uma história determinista, alicerçada pelo
posicionamento masculino, ditando regras pautadas em uma conduta funcionalista, ou seja,
determinando quem são as mulheres e o que elas devem fazer. “Daí a maior ênfase na
realização de análise visando a captar o imaginário sobre as mulheres, as normas que lhes são
prescritas e até a apreensão de cenas do seu cotidiano, embora à luz da visão masculina”.
(SOIHET, 1997: 295).
O trabalho de campo deste estudo foi justamente pautado nessas considerações,
intencionando ir mais além do estruturalismo, sem precisamente se estreitar somente em
conceitos como mulher e comportamento. Nesse sentido, ir mais além parte do princípio da
dialética materialista, ou seja, se contrapor ao que está posto e assumindo novos conceitos.
Karl Marx já considerava no Manifesto Comunista (1848) a liberdade feminina, relacionando
a dominação e a opressão feminina que remete as mulheres a uma segunda classe inserida no
campo familiar: “O burguês vê em sua esposa um mero instrumento de produção… Ele
sequer suspeita que o real ponto almejado (por quem é comunista) é acabar com a ideia de que
as mulheres são meros instrumentos de produção” (MARX, 1848). Foi no contexto da
liberdade feminina que este trabalho desenvolveu a pesquisa oral. O estudo dos fazeres
educativos permitiu revelar campos de atuação muito importantes, entendendo a educação
como um mecanismo social capaz de transpor barreiras. No entanto, um fato que vem a se
confirmar nos depoimentos, é a distinção de gêneros como um problema no compartilhamento
de relações, o que ainda impede homens e mulheres de trocarem experiências. Por exemplo, o
uso do preservativo não deveria ser uma atitude de domínio masculino e o campo de
discussão poderia ser compartilhado. Continuando com as considerações de Natividade Beia,
falando da importância das instituições filantrópicas como ONG’s e grupo de escoteiros no
processo de educação preventiva, ela revela que mesmo nesses grupos havia distinção de
gênero:
56

Eu pertencia a um grupo de escoteiros, que trabalhava com crianças e jovens.


Dentro do cronograma, o grupo tirava um final de semana para falar sobre
prevenção. Em nosso grupo tinha aqueles que estavam em processo de transição, de
adolescência para “juventude”, numa faixa de 14 a 18…. E tem também os jovens
até 25 anos. Nosso grupo se chamava São João Batista de Pra, e tirávamos um dia
na semana para falar sobre prevenção. E tinha um dia certo que era programado
para as meninas falarem só com as meninas sobre AIDS e prevenção, e os meninos
falarem só com os meninos…. E tinha também muitas jovens na fase da puberdade
ou que iam iniciar relações sexuais. Haviam vários grupos de escoteiros, uns 16
grupos, e estes eram ligados às paróquias (BEIA, 2016).

Essa questão referente à distinção nos grupos se contrapõe ao conceito de “gênero”,


quando este propõe um campo relacional entre mulheres e homens, ou seja, o entendimento
de um é coexistente ao outro, não podendo serem estudados de forma separada. É importante
frisar que estamos discorrendo sobre gênero no campo das relações sociais, considerando as
práticas educativas como um mecanismo de compartilhamento. Nesse aspecto, para
enriquecer as informações em nosso trabalho, tivemos a preocupação em ouvir os relatos de
dois homens, estudantes guineenses, os quais se dispuseram em contribuições interessantes à
pesquisa. O jovem Id, de 22 nos, fala sobre cultura, conservadorismo, submissão feminina e
relacionamento. Ele ressaltou, em seu depoimento, as atitudes das mulheres guineenses
quanto ao uso do preservativo, dizendo que lá em Guiné, quando das relações sexuais,
normalmente é a mulher que pede ao homem para usar o preservativo, a atitude parte dela, e o
homem fica na “dúvida” se usa ou não usa. Em outro depoimento de uma jovem de 22 anos
que preferiu preservar sua identidade, ela fala que nem sempre usou preservativo e que
confiava (um pouco) no namorado, que gostava de fazer sexo sem camisinha. O uso era, mais
objetivamente, para prevenir a gravidez. Cabe-nos, então, uma discussão sobre as concepções
habituais de poder, em que a mulher possa sair da sua condição de submissão, superando-se e
ampliando o seu campo de atuação nas relações. É importante entender a necessidade de a
mulher abandonar o estado vitimizado, subjugada a conceitos patriarcalistas que ainda a
remetem a distinção de classes: a mulher como reprodutora, como submissa e sem poder de
decisão. E como bem pontua Rachel Soihet (1997, p. 298), “tais recomendações convergem
para a necessidade de se focalizar as relações entre os sexos e as categorias de gênero, sendo
importante neutralizar as categorias de dominação”. Nesse ponto, os fazeres educativos
desenvolvidos nos diversos campos pelas entrevistadas, tais como o conhecimento sobre
AIDS nas escolas e ONG’s, os métodos de prevenção como o uso do preservativo e,
principalmente, o compartilhamento de informações nos grupos sociais se evidenciam, como
táticas de sobrevivência e resistência, frente ao preconceito, à discriminação, a precarização
da saúde e à estrutura dominante que ainda persiste na sociedade atual. Outra estudante que
57

também preferiu não se identificar enfatizou a importância de transpor barreiras em relação à


AIDS para além dos campos formais, de maneira que não seja tratada só no âmbito do
adoecimento, mas na pluralidade das relações sociais:

Eu sinto falta sim, de informação, sobre como a pessoa pode prevenir AIDS, e
também todas as doenças sexualmente transmissíveis. Na UNILAB, têm muitas
pessoas de diferentes nacionalidades, e aqui todo mundo se cruza, brasileiro com
guineense, guineense com angolano, e assim vai… e têm relações entre si. Eu acho
que devia ter mais informações sobre as doenças sexualmente transmissíveis,
propagar o uso de camisinha constante. Pelo menos em cada trimestre, aqui na
universidade, deveria ter um debate sobre prevenção ao HIV, sobre adoecimento, e
sobre outras doenças sexualmente transmissíveis. Se tivéssemos isso no nosso
ambiente, seria mais fácil tratar dessas questões sobre AIDS, teríamos um espaço
mais aberto para a gente dizer o que sente o que pensa o que sabe e buscar mais
conhecimento, isso nos daria mais confiança (A.B, 2016).

A estudante mostra-nos sua preocupação em relação ao seu contexto social atual,


sendo este um espaço com diferentes culturas e vivências, seu campo de atuação deveria
transcender a metodologia normativa. Sobretudo, ela revela o desejo de uma identificação
social, em que os fazeres em DST/AIDS não fossem desenvolvidos sobre domínios
individuais, mas num espaço coletivo, onde houvesse a oportunidade do debate, da troca de
experiências no compartilhamento de relações. Neste aspecto, é no coletivo que a mulher se
reconhece, e não numa classe distinta. Considerando essas questões, fazemos um paralelo
com dados do Fórum Nacional da Juventude e População – FNJP em Guiné-Bissau. De
acordo com pesquisas desenvolvidas, o VIH (Vírus da Imunodeficiência Humana) é retratado
como um estigma, e a falta de informação é o principal agente desse quadro. A não
identificação e a negação colaboram para o preconceito, enraizado por questões religiosas e
tradicionais, que acabam não permitindo as pessoas, como nas regiões de Gabu e Bafatá (com
maior incidência de HIV), de se manifestarem, sejam elas soropositivas ou não, estando ou
não em processo de adoecimento. Os depoimentos que fomentaram essa pesquisa, não contam
só um pouco da história das mulheres de Guiné-Bissau estudantes da UNILAB, mas
contextualizam os fazeres educativos com suas relações sociais. Dispomos neste, de saberes e
vivências imprescindíveis para a estruturação deste estudo. A este respeito, Mary Del Priore
diz que,

A história das mulheres não é só delas, é também aquela da família, da criança, do


trabalho, da mídia, da literatura. É a história do seu corpo, da sua sexualidade, da
violência que sofreram e que praticaram da sua loucura, dos seus amores e dos seus
sentimentos (PRIORE, 2004: 9).
58

Mary Del Priore, em seu estudo sobre o corpo feminino, no qual fala da ciência
médica entre os séculos XVI e XVIII, pontua bem como se enraizou a questão do preconceito
sobre a natureza feminina, vindo já de séculos antes de Cristo, em que a mulher era
unicamente objeto de reprodução, excluindo-a de qualquer outra função social. A estrutura
feminina estava formada em parir, procriar, ser mãe, frágil e submissa. Basicamente a mulher
era reconhecida pelo que “tinha entre as pernas”, e não pelo que era por dentro. Hoje, apesar
do avanço da tecnologia e da abertura de campo para o trabalho, a mulher não deixou de ser
rotulada e remetida a uma estrutura determinista e patriarcal. O período pós-revolução
industrial contribuiu para a mudança das condições de trabalho da mulher, mas essa foi uma
concepção equivocada de emancipação, pois limitou a mulher a dois campos. O trabalho nas
indústrias tirava a mulher do ambiente familiar do trabalho doméstico, porém ela ficava
limitada entre dois campos. O que seria uma possível emancipação, seria a mulher poder
participar de todos os campos de trabalho, formais e informais, e inserir-se nas lutas sociais de
modo que sua identidade não tivesse mais um caráter unitário. Esse é mais um ponto em que
este trabalho vem expor diversas manifestações femininas para além do conceito “mulher”
contextualizadas tão comumente entre casa e trabalho. Um dos direcionamentos dessa
pesquisa foi ter uma visão da mulher para além do “movimento histórico como uma resultante
da relação dos sexos, modulado pelo conflito latente entre a mulher/natureza e o
homem/cultura” (MICHELET, 1859), embora, concomitantemente, este estudo revele em
várias considerações estes traços. Considerando, novamente, o depoimento do guineense Id,
ressaltamos a questão do conservadorismo e da cultura:

O conservadorismo é pouco relacionado a uma cultura africana… E então tem um


lado bom e um ruim. Por exemplo, no ritual com as mulheres… é uma coisa ligada
ao conservadorismo… à circuncisão feminina. Nesse ritual, cortam “uma parte”
que é importante para a mulher, mas que foi tirada dela. Pelo que eu já ouvi falar,
pelo que as pessoas já me contaram, não diretamente, porque ninguém fala
diretamente sobre isso…, mas eu já sei que as mulheres quando passam por essa
prática, perdem o gosto pelo homem (Id, 2016).

Sobre essa questão, deve-se ressaltar que em África tem a predominância de várias
etnias atreladas “culturalmente” à religião. Por exemplo, quem é Balantu, Mancaine,
Manjaco… tende a ser cristão. E quem é Fula, Mandiga, Nalu, Susu e Beafada tende a ser
muçulmano. Nessas etnias vinculadas ao islamismo acontece muito mais o processo de
circuncisão. Sobre esse aspecto, é importante considerar o que é religião e o que é cultura.
Seguindo essa linha de análise, o estudante T.M pontuou questões como os ritos de iniciação,
no caso do Fanado, um processo de ensinamento comportamental do que é “ser mulher”,
59

relativo aos cuidados do corpo, à menstruação, etc. O que pudemos interpretar é que, não
necessariamente, esse ritual tenha a obrigatoriedade da circuncisão. O fanado é um ato
cultural ligado a algumas etnias, e esse processo é desenvolvido tanto nos grupos étnicos onde
predomina o cristianismo, como nos seguidores do islamismo. No caso de “algumas” etnias
que seguem a religião islã, estas possuem características peculiares do ritual, onde acontece a
circuncisão (a mutilação genital). Enquanto os Balantas fazem o Fanado para iniciar a mulher,
através de um minucioso processo de aprendizado, os Fulas realizam a circuncisão feminina
para que a mulher tenha a condição da “pureza”. Em considerações anteriores, pontuamos
bem essa questão, ao falar do processo histórico-cultural de construção da imagem da mulher
subjugada ao campo da reprodução, ao ambiente familiar. Ora, se a mulher é restrita a um
espaço no qual sua função é a procriação, ela tende a atender somente os anseios do marido.
No caso da circuncisão, o ato de corte do clitóris é feito para que a mulher não tenha mais
desejo pelos homens e a necessidade do prazer sexual. O que se pode entender, segundo o
depoimento do jovem T.M, é que, em algumas etnias, o casamento, a formação familiar é
condicionada à realização dessas práticas. Daí surge a justificativa religiosa para esse ato, pois
o islamismo defende muito a pureza da mulher, mas o Alcorão, que é o livro sagrado do Islã,
não prega a circuncisão feminina. Portanto, o que percebemos é que há uma prática
incorporada “culturalmente”, que se justifica através de uma sustentação religiosa. Um
exemplo que podemos citar é o do catolicismo. Nele, existem muitas práticas que não são
bíblicas, mas a religião católica sustenta essas práticas. Identificamos, então, que as religiões
monoteístas são espiritualmente machistas, permitindo que o homem se aproprie de algumas
coisas que não estão claras, para satisfazer as suas vontades.
Guiné-Bissau é um país que depende muito da força produtiva feminina, porém, o
Estado não resguarda as necessidades das mulheres, bem como os seus direitos fundamentais.
A submissão feminina e a subjugação do gênero as expõem às injustiças sociais como a
violência, a exploração sexual; muitas vezes são forçadas a casarem e a ocorrência de
gravidez entre as jovens é relevante. Diante da população masculina, as mulheres têm mais
dificuldades quanto à acessibilidade à saúde, o que caracteriza a distinção de gênero e a
desigualdade. De certo, sobre todas essas condições, podemos considerar o fator da
mistificação da AIDS/SIDA, em que o problema não é só a precariedade do atendimento em
saúde, mas toda uma questão cultural que permeia uma camada da população jovem feminina
de Guiné-Bissau. “A AIDS é coisa do demônio”, frase de uma aluna guineense, que se dispôs
a falar em uma conversa aberta sobre o tema no pátio da universidade. De acordo com as
colegas guineenses, elas tinham acesso ao trabalho básico, com agentes de saúde em postos, e
60

com a distribuição de preservativos, mas no sistema de saúde não havia a oportunidade de


projetos educativos e de acompanhamento. Tudo isso não se distancia muito da realidade
brasileira. Na construção social que se fez sobre a AIDS/SIDA ao longo desses 36 anos em
que foram identificados os primeiros casos da doença, a AIDS foi tratada mais como um
objeto clínico do que como um problema da sociedade, fazendo com que se disseminasse o
preconceito e a discriminação, colaborando para a construção de um estereótipo, de um
“bicho mortal”, fazendo distinções de gênero e associando a AIDS a grupos de risco.
Em um debate com as estudantes guineenses, uma colega comentou: “É importante o
homem usar a camisinha”. Eu perguntei em seguida: “E se o seu parceiro não tiver o
preservativo na hora H”? Ela respondeu: “Aí a gente reclama, mas acaba cedendo, dando um
jeitinho, e até mesmo ele não ejacula dentro…. Porque se a gente se nega, o namorado pode
não gostar e ficar com raiva”. É evidente a questão da submissão feminina, como também é
notória a necessidade de apoio e informação para as meninas.

PRÁTICAS EDUCATIVAS EM DST/AIDS DE MULHERES DE GUINÉ-BISSAU


ESTUDANTES DA UNILAB
Para exploramos um universo de práticas educativas cujo ambiente propõe a
integração de diferentes culturas, como a UNILAB, partimos de uma racionalidade com visão
voltada para a diversidade. Ao enxergarmos a diversidade num espaço de compartilhamento
de relações, faz-se necessário basearmo-nos em princípios que impulsionem a identidade e a
dignidade humana. Neste aspecto, a questão identitária foi pautada no reconhecimento e na
valorização de todas as ações educativas das guineenses relacionadas aos seus fazeres em
DSTAIDS, considerando o seu contexto social, tanto no país de origem, como no Brasil. O
foco não é saber que as diferenças existem, mas entender o direito de ser diferente num
ambiente multicultural. Kabengele Munanga, ao discorrer sobre educação e diversidade
cultural, defendeu bem a questão da inter-relação:

Em vez de opor igualdade e diferença, é preciso reconhecer a necessidade de


combiná-las para construir a democracia. É nessa preocupação que se coloca a
questão do multiculturalismo, defendido como encontro de culturas, ou seja, a
existência de conjuntos culturais fortemente constituídos, cuja identidade,
especificidade e lógica interna devem ser reconhecidas, mas que não são
inteiramente estranhas umas às outras, embora diferentes entre elas. (MUNANGA,
2010, p.41)
61

Desse modo, podemos identificar a importância da conscientização num ambiente


multiculturalista, ou seja, as diversas formas de ser e estar compartilhadas por diferentes
visões. Relacionando educação com processo saúde-doença que envolve a AIDS, a
diversidade cultural se aloca como fomento para o desenvolvimento de uma política educativa
que impulsione o censo comum, sendo a troca de saberes um elemento fundamental para esse
processo de formação. A respeito, Munanga (2010, p.44) cita ainda, Boaventura Souza
Santos:

A racionalidade cosmopolita é aquela que não desperdiça pessoas, conhecimentos,


experiências, e, por isso mesmo, aumentam e densifica as possibilidades de a
humanidade se encontrar e encontrar respostas adequadas e harmoniosas para que
todas as pessoas e comunidades tenham o seu lugar nesse mundo (GOMES, op. cit.
p. 37-38.)

De acordo com essa visão, nesse estudo, não nos privamos em momento algum, de
quaisquer oportunidades que pudessem revelar o universo cognitivo das vivências das
estudantes. O trabalho desenvolvido não foi só uma busca de informações, mas uma troca de
saberes, e através dessa simbiose construiu a pesquisa. A visão da AIDS entre lugares nos
permitiu adentrar nesse espaço de pluralidade. Estivemos em diversos ambientes como as
reuniões da Associação dos Estudantes Guineenses da UNILAB, nos ensaios para as
apresentações culturais da universidade, em seus lares, em sala de aula, na rua, em
acampamentos de férias, enfim, tudo isso nos propiciou não só uma apreensão de saberes, mas
de valores que nos identificaram com o nosso objeto de pesquisa, construídos na prática
educativa. Nessa perspectiva, percebemos que a comunicação entre as culturas deve se
desenvolver num espaço que tenha como base o respeito às individualidades e, sobretudo, que
não promova a distinção. Para que isso aconteça, faz-se necessário o reconhecimento de
pontos em comum nos grupos, sendo esse o primeiro passo para a construção de relações
sociais harmoniosas baseadas nos princípios da interculturalidade, ou seja, num mecanismo
interativo que promova práticas democráticas e de inclusão. Respaldamo-nos, então, na obra
“Direitos humanos, educação e interculturalidade”: as tensões entre igualdade e diferença”, a
qual reforça que o mais importante é “articular políticas de igualdade com políticas de
identidade” (CANDAU, 2010, p.51). Contudo, através da interculturalidade, cuja base
consiste no desenvolvimento dinâmico e constante de relações, fomos nos legitimando em um
movimento de aprendizado, numa troca de saberes correlacionados no campo saúde-doença.
Para entender a AIDS como um fato social é necessário que o processo educativo não
dependa somente de uma manifestação individual e do reconhecimento do problema, pois
62

muitos dos fatores que a constituem, como a prevenção, a educação, e o adoecimento atuam
em campo coletivo, refletindo na forma de ser e estar no mundo.
Relacionando esses apontamentos com o estudo de Teresa Cunha e Inês Reis
(MUNANGA, Kabengele, 2010, Educação e Diversidade Cultural, p. 44) sobre direitos
humanos e educação, salientamos a importância de um processo educativo que possa romper
as barreiras distintivas como classes, gênero e sexo, promovendo uma realização igualitária. A
sobreposição da dignidade humana diante dos problemas promoveria um estado de paz, em
que, na diversidade dos indivíduos e seus sentimentos não houvesse uma separação entre o ser
e o saber, e a resolução dos conflitos se deslocaria do campo das ideias para o da realidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS, UM RETRATO DO QUE OUVIMOS


Estamos inseridos em um meio social cuja base é a educação, envolvendo pessoas de
diferentes nacionalidades e culturas. É através dessa Educação que buscamos as ferramentas
para trabalhar em prol de uma vida acadêmica saudável; sim, pois não estamos alheios ao
adoecimento e necessitamos de acompanhamento, seja em nível de conhecimento, moral, de
prevenção, e principalmente, de tratamento. É certo que esta pesquisa não relata e nem
identifica estudantes guineenses com incidência de DST/AIDS, pois ainda não foram
identificados casos de adoecimento, como também algumas pessoas ainda não têm a
consciência preventiva. Em pleno século XXI, a AIDS ainda é considerada um tabu. O
homem adoece muitas vezes por preconceito banal, por não ter conhecimento e não querer
enxergar a realidade, por achar que nunca vai acontecer com ele ou com algum parente, que
são “imunes” a isso. A AIDS/SIDA nos insere em um contexto de igualdade, em detrimento
da ideia da existência de grupos de riscos específicos. A AIDS não difere classes e nem é
homogênea. Ela pode se manifestar em diferentes situações e grupos sociais. Remeto-me aqui,
a um livro de José de Souza Martins (2013): “A Sociabilidade do Homem Simples’’. Nesta
obra, Martins fala do homem simples como uma figura universal, comum. O homem simples
é aquele que todos somos no dia a dia, que incorpora as atitudes e vivências que podem
pertencer a qualquer indivíduo, sem distinção. Através desse discurso, posso considerar que a
AIDS simplesmente existe e todos nós estamos propensos, desde que possamos adquirir uma
postura de identificação e reconhecimento para a importância do tratamento, prevenção e
acompanhamento.
Os relatos das estudantes aqui transcritos formam o principal elemento deste estudo de
caso, pois contribuíram pertinentemente para o retrato-realidade o qual dispusemo-nos.
Equiparar o conteúdo estudado com a vivência das “guiguis” (forma carinhosa a qual nos
63

reportamos às colegas guineenses) foi tratar fidedignamente o tema “FAZERES


EDUCATIVOS EM DST/AIDS” de acordo com a etnografia, considerando que o “estar lá”, o
“conhecer de perto… vivenciar” estar fielmente ligado à vivência e à oralidade. Foram as
estudantes guineenses que conduziram esta pesquisa, proporcionando-nos as ferramentas de
desenvolvimento, e tudo aqui registrado é muito fiel. Ler nos olhos das meninas “Oi, estou
aqui, é isso, é a minha vida, foi isso que eu vivi. Olhe como eu estou! Você me conhece?…”
foi uma experiência de valor imensurável. Trazendo a AIDS para o nosso contexto
acadêmico, percebemos a necessidade de se fomentarem programas voltados para a formação
digna em saúde.

REFERÊNCIAS
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entre igualdade e diferença. Rio de Janeiro: Revista Brasileira de Educação, 2008.
CARDOSO, Luiz Cláudio. AIDS: E AGORA? São Paulo: Scipione, 1989. CPLP –
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – Documentos e textos. In: Epidemia de HIV
nos Países de Língua Oficial Portuguesa. Portugal/ Brasil: UNAIDS, 2010.
FRANCO, Roberto Kennedy Gomes. A Face pobre da AIDS. Tese (Doutorado)-
Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em
Educação Brasileira, Fortaleza (CE), 26/08/2010.
MARX, Karl Heinrich. ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista – Ebook. Rocket
Edition: 1999.
MARTINS, José de Souza. As Hesitações do Moderno e as Contradições da Modernidade
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MUNANGA, Kabengele. Cadernos Penesb: Discussões sobre o Negro na
Contemporaneidade e suas Demandas. In: Educação e Diversidade Cultural. Niterói, RJ:
Editora da UFF, 2010.
PINTO, Teresinha Cristina Reis. Educação Preventiva – AIDS. São Paulo: Instituto José Luís
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PRIORE, Mary Del. História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.
SOIHET, Rachel. Domínios da História. In: História das Mulheres. Rio de Janeiro: Campus,
1997.
THOMPSON, Paul. A Voz do Passado – História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992
64

OS INTELECTUAIS DO INSTITUTO DO CEARÁ E A CONTRIBUIÇÃO


DOCUMENTAL PARA A HISTÓRIA, A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO DOS
POVOS NATIVOS.

Dra. Ana Alice Miranda Menescal1

RESUMO: O presente estudo se propõe a analisar a contribuição dos intelectuais do Instituto


Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará para a sistematização de uma historiografia
cearense no que diz respeito aos povos indígenas. A atuação do Instituto do Ceará seguia o
indicativo do IHGB para composição de uma história unificada do Brasil, levando em conta
as histórias provinciais. Encontra-se disponível uma riqueza de documentos referindo-se aos
povos nativos, bem como artigos relativos a eles, entretanto, há ainda muito que discutir a
respeito dessas publicações, uma vez que as mesmas contribuíram fortemente para o
estabelecimento tanto do que podemos chamar de historiografia oficial do Ceará, quanto da
imagem do indígena local. Propomo-nos a pensar a questão ideológica que aparentemente
sustenta a imagem do indígena no Ceará do século XIX e princípio do século XX, criando
assim uma história, memória e esquecimento dos povos nativos.
PALAVRAS CHAVE: Instituto do Ceará. Indígenas. Memória.

1. O Instituto do Ceará, a pesquisa e a apresentação de documentos.


Desde a fundação do Instituto do Ceará, os intelectuais da agremiação tomaram para si
a responsabilidade de fundar a História do Ceará, através da busca incansável de documentos
que dissessem respeito às origens da província, mas sem esquecer o compromisso com uma
suposta verdade histórica. A postura assumida na pesquisa documental não era privilégio dos
doutos do Ceará. De modo geral, os filiados aos Institutos Históricos instituídos no território
brasileiro pressupunham a mesma atitude. Mesmo após a modificação do método do IHGB
em relação às suas publicações, o Instituto do Ceará privilegiará num primeiro momento a
publicação de documentos. Poderia tratar-se apenas de opção metodológica inicial, tendo em
vista que no ano de fundação do Instituto do Ceará a produção do IHGB já tinha quarenta e
nove anos, e a do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco (IAHGP)
contava vinte e cinco. Portanto, a escolha metodológica pode estar vinculada à necessidade
momentânea de inserção na história nacional e no interesse em exaltar o processo civilizatório
começado pelos portugueses e continuado pelo Instituto do Ceará em busca do destaque da
Província no contexto brasileiro.

1
Doutora em História e Cultura do Brasil – Universidade de Lisboa; Mestra em Filosofia – Universidade
Estadual do Ceará; Especialista em Estudos Clássicos – Universidade Federal do Ceará; Licenciada em História
– Universidade Federal do Ceará. E-mail: ana.alice.menescal@gmail.com
65

Expressar a metodologia empregada para utilização dos documentos é apontamento


recorrente nos artigos da Revista2. O objetivo dos intelectuais vinculados ao Instituto do
Ceará não era a criação de polêmica em torno de seus escritos, mas a veracidade dos fatos. Na
constante busca de contribuir para a fundação da ideia de nação brasileira, o Instituto do
Ceará inicia apresentando os documentos sobre a história mais antiga da Província. As fontes,
até então, eram desconhecidas e, por isso, poderiam parecer numerosas, sendo grandes as
dificuldades para realizar a coleta de material. Os membros do Instituto agiam por conta
própria, recorrendo aos arquivos locais, nacionais e estrangeiros, os intelectuais do Instituto
foram aos poucos fundando uma história, inicialmente em função da nação, depois do Ceará,
compilando inúmeros documentos relativos aos primórdios das terras cearenses e das gentes.
Em maioria, os membros da agremiação dividiam as atividades pessoais com a
pesquisa, coleta de documentos e produção dos textos para a Revista do Instituto do Ceará. O
maior destaque foi o Barão de Studart 3, pela dedicação, trabalho e produção em benefício do
Instituto e da História do Ceará4. A respeito da atuação deste, afirma José Honório Rodrigues:

Na historiografia local ninguém se avantajou ao Barão de Studart, no amor ao


estudo, na vastidão da pesquisa, na capacidade de realização. Desenvolvendo um
esforço contínuo, persistente e positivo, procurou na Inglaterra, França, Holanda e
Itália a matéria-prima reveladora do passado brasileiro. (RODRIGUES, 1978: 95-
96)

O próprio Studart, em carta endereçada a Capistrano de Abreu, datada de 26 de junho


de 1893, afirma o interesse pelas pesquisas em História e Geografia, além do exercício da
medicina em benefício dos mais carentes 5. Dos reconhecimentos recebidos pela pesquisa feita
da história do Ceará, Studart recebeu também o provindo de Capistrano de Abreu que, em
carta de 18 de junho de 1893, elogia a dedicação do Barão à História e Geografia cearenses,

2
Vide, por exemplo, CARVALHO, Alfredo. Diário de Mathias Beck. Revista Trimestral do Instituto do Ceará,
Fortaleza, v.1, Tomo XVII, Anno XVII, 325-405, 1903, p. III. No referido texto, Alfredo Carvalho, sócio do
IAHGP e colaborador da Revista do Instituto do Ceará, expõe o método escolhido para realizar a tradução do
texto buscando ser o mais “fiel” possível ao texto original, tendo em vista a necessidade de futuros
investigadores em acessar as informações de forma mais próxima possível à escrita e vivência do tempo do
texto.
3
Para conhecer a biografia do Dr. Guilherme Studart (Barão de Studart), cf.: Revista do Instituto do Ceará,
Fortaleza, Tomo Especial, dedicado ao Barão de Studart, Anno LII, 1938; e, Revista do Instituto do Ceará,
Fortaleza, Tomo Especial, 1º Centenário de nascimento do Barão de Studart, Anno LXX, 1956.
4
É importante lembrar que àquela época o historiador era uma espécie de compilador de documentos. Na
concepção que tinham de si próprios, não era parte de seus atributos o questionamento das fontes documentais
ou a interpretação dos documentos; apenas a exposição pretensamente imparcial e objetiva do material para
conhecimento da sociedade. No discurso e na prática dos historiadores do Instituto do Ceará assim deveria ser
exercida a função.
5
Cf. AMARAL, Eduardo Lúcio Guilherme. Correspondência cordial: Capistrano de Abreu e Guilherme
Studart. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria de Cultura, 2003. (Coleção Outras Histórias), p. 96.
66

ressaltando a importância de seu contributo para os estudos históricos atinentes à terra natal e
o destaque do Ceará frente aos outros estados da região (AMARAL, 2003:111). Lembremos
que a maior parte do acervo documental do Instituto do Ceará corresponde à compilação de
documentos realizada por Studart ao longo dos anos em que esteve à frente da produção e
publicação da Revista do Instituto do Ceará.
Para grande parte da historiografia oitocentista, a validação dos documentos se dá
quando estes são considerados oficiais pelas entidades ou instituições responsáveis por lhes
atribuir valor, legitimando os registros escritos de um fato. Esse modo de entender e validar a
documentação traz a perspectiva de verdade histórica, norte dos intelectuais do Instituto do
Ceará, entretanto, essa ideia cai por terra, quando compreendemos que as supostas
objetividade e neutralidade determinantes daquela produção dizem respeito apenas à ideologia
da época6. Portanto, as conclusões às quais chegavam a partir da leitura de manuscritos
condiziam apenas com uma possibilidade de compreensão da mensagem contida no texto do
documento.
Sobre a impossibilidade do homem ser neutro e objetivo, Ricoeur, com Hans-Georg
Gadamer, afirma:

não podemos nos abstrair do devir histórico, situar-nos longe dele, para que o
passado se torne, para nós, um objeto...Somos sempre situados na
história...Pretendo dizer que nossa consciência é determinada por um devir
histórico real, de tal forma que ela não possui a liberdade de situar-se em face do
passado. (GADAMER apud Ricoeur, 1990:40)

Dessa maneira, a análise documental exposta pelos sócios do Instituto do Ceará é


utilizada simplesmente para a fundação de uma ideologia, ainda que de forma inconsciente7.
E pensando o uso dos documentos, temos Durval Muniz de Albuquerque Júnior que
destaca a função do historiador:

O historiador conta uma história, narra; apenas não inventando os dados de suas
histórias. Consultando arquivos, compila uma série de textos, leituras e imagens
deixadas pelas gerações passadas, que, no entanto, são reescritos e revistos a partir
dos problemas do presente e de novos pressupostos, o que termina transformando

6
Cf. RICOEUR, Paul. Interpretações e Ideologias. Rio de Janeiro: F. Alves, 1990; a mesma postura pode ser
verificada em História e Memória de Jacques Le Goff, especialmente no capítulo intitulado
“Documento/monumento” (São Paulo: Unicamp, 1994); conferir também RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa.
São Paulo: Papirus, 1997, t. 3.
7
Importa ressaltar a época em que a produção desses intelectuais foi pensada. Diante disto, a ideologia
construída por eles deve ser compreendida a partir de seu universo cultural. Não há propriamente uma má
intenção na atitude assumida por aqueles historiadores. A reflexão aqui exposta leva isso em conta. Nossa
intenção é, portanto, apresentar uma chave interpretativa capaz de oferecer subsídios teóricos para compreensão
dos nossos documentos.
67

tais documentos em monumentos esculpidos pelo próprio historiador, ou seja, o


dado não é dado, mas recriado pelo especialista em História.8

Mesmo não se referindo propriamente à lógica historiográfica dos Institutos


Históricos, na passagem citada, ao apresentar a função do historiador Durval Muniz tangencia
a prática dos intelectuais dessas agremiações. Recorrendo aos documentos, esses letrados
encharcados das teorias de sua época e de uma suposta neutralidade científica, se pensarmos o
final do século XIX e o início do XX, esculpiam (e frisamos, apenas esculpiam!) a história
pretendida verdadeira, marcados, como é obvio, por toda a mesmidade9 que lhes cabia.
Por não possuírem a compreensão de serem incapazes das pretensas neutralidade e
objetividade, os sócios do Instituto do Ceará seguiram suas atividades utilizando os
documentos em busca da legitimação da história local. Recortando do passado somente o que
interessava ao modelo historiográfico da época, em busca da criação de memórias históricas
para a população cearense, fragmentando o processo histórico e cristalizando10 momentos
que, segundo seus preceitos, caracterizavam o princípio da luz, da civilização trazida pelos
portugueses e continuada por estes senhores.
Interessa-nos salientar o fato de que o velho Barão e seus pares não possuíam esses
elementos teóricos à disposição. Por essa razão seguiam preocupados com o respeito aos
documentos, acreditando, ou afirmando acreditar, na não interferência nos escritos originais
pelo trabalho desenvolvido por eles. Importa ainda ressaltar que o procedimento seguido pelos
intelectuais ligados ao Instituto do Ceará bem como aos demais Institutos Históricos, ainda é
muito semelhante ao dos anos iniciais do IHGB. É óbvio que ao longo dos anos as ideologias
mudaram, o convívio de vertentes de pensamento diversas ficou mais evidente e há, além
disso, a publicação de imensa variedade de estudos historiográficos, filosóficos, sociológicos,
e de outras áreas de conhecimento, que têm possibilitado um procedimento mais condizente
com o estágio científico ora atingido nas ciências humanas. Há, também, a publicação de
documentos avulsos, compilações documentais, biografias e elogios biográficos, memórias,
crônicas, catálogos bibliográficos e tantas outras modalidades consideradas menores ou
ultrapassadas para os moldes historiográficos atuais, praticados nas universidades.
Contudo, é preciso considerar a contribuição dos Institutos Históricos, pois, por longos
anos, estas instituições localizavam os documentos e produziam a historiografia nacional,
8
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de reinventar o passado. Ensaios de teoria da
história. Bauru, SP: EDUSC, 2007, p. 62-63.
9
Sobre mesmidade, conferir: SCHAFF, Adam. História e verdade. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p.
284.
10
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de reinventar o passado. Ensaios de teoria da
história. Bauru, SP: EDUSC, 2007, p. 206.
68

plantando as sementes que possibilitaram muito do mister do historiador pós 1930. Além
disso, em certos casos, a criação das universidades esteve vinculada ao empenho de sócios
dos Institutos, às discussões realizadas dentro das agremiações, ou em nome destas, como no
caso do Ceará.
Sobre as transformações conceituais dentro da produção historiográfica do Instituto,
recorremos a Koselleck que, referindo-se à Hayden White, afirma que “toda a história está
indissoluvelmente ligada às suas representações historiográficas. Desse ponto de vista, cada
texto historiográfico alcançaria, junto aos demais gêneros literários, sua correspondente cota
no sistema de comunicação cultural” (KOSELLECK, 2004:41).
Segundo a afirmação acima, o registro escrito das experiências vividas, isto é, a
historiografia de uma sociedade, pode ser determinante para o conhecimento de sua cultura e
de suas experiências. As análises iniciais tendo por objeto os povos indígenas no Ceará
parecem muito vinculadas às teorias europeias do século XIX, especialmente em razão de
serem fruto das pesquisas e estudos realizados pelos membros do Instituto do Ceará e,
obviamente, estarem cercadas de imagens europeizadas, quer pela influência teórica, quer
pelo imaginário criado em torno dos povos nativos, a partir da leitura de cronistas europeus de
séculos anteriores.
Compreendemos que as análises expostas pela intelectualidade cearense dizem
respeito à cultura de feição europeia da época e foram determinantes para caracterizar a
condição social, política e cultural dos povos indígenas do Ceará no século XIX e as
posteriores. Obviamente, estamos a nos referir à construção cultural de uma sociedade
constituída como civilizada a partir da presença de europeus no século XVI. Portanto, do fim
do século XIX ao princípio do XX, o que se tem por cultura no Ceará e no Brasil é a
concepção da sociedade brasileira baseada em inúmeros elementos culturais europeus, no
intuito de estabelecer a nacionalidade e a identidade do povo com a sua história.
Lembramos, ainda, que a fundação do Instituto do Ceará se dá quando os povos
indígenas da região já tinham sido considerados oficialmente extintos, de acordo com as
informações de Cunha Figueiredo Júnior, Presidente da Província, em relatório datado de 9 de
outubro de 186311. Assim, acontece no Ceará a junção entre o documento oficial e a
necessidade ideológico-cultural de promover a civilização da região, uma vez que o discurso
evolucionista em voga na Europa colocava a questão racial como explicação da defasagem do

11
Cf. Relatório apresentado à Assembléa Legislativa Provincial do Ceará pelo Excellentissimo SenhorJosé
Bento da Cunha Figueiredo Júnior, por occasião da installação da mesma Assembléa no dia 9 de outubro de
1863. Ceará: Typographia Cearense, 1883, p. 19-20.
69

Brasil em relação ao velho mundo. Era mais fácil lidar com uma sociedade sem o elemento
“selvagem”, ainda que miscigenada, como reconheciam os intelectuais do Instituto do Ceará,
do que conviver com a diversidade racial evidente na qual os indígenas ainda não eram
considerados extintos ou mesmo assimilados.

2. História, Memória e Esquecimento: a imagem do índio no Ceará


Os institutos históricos brasileiros, desde a fundação, tinham o intuito claro de edificar
a identidade nacional, partindo da construção da história oficial que levasse o indivíduo a
sentir-se membro de um grupo social mais amplo e a igualmente identificar-se com a história
local. Portanto, essas academias eram, desde a criação, moradas não apenas da história, mas
também da memória e do esquecimento da sociedade na qual estavam inseridas.
Antes de prosseguir é preciso que pensemos sobre a memória, entendendo a
possibilidade da subdivisão em três categorias: individual, coletiva e nacional. Levando-se em
consideração que a individual só interessa às ciências sociais quando há interação entre dois
ou mais indivíduos, cabe aqui dar atenção às outras duas. A memória coletiva, sustentada pela
interrelações de grupos sociais, busca assegurar coesão e solidariedade nos grupos, mas não é
espontânea e precisa ser reavivada sempre para manter-se ativa12. A memória nacional, por
sua vez, não é a simples soma das memórias coletivas da nação, busca manter a aparência de
unidade e de integração e para este fim utiliza diversos estratagemas, mantendo, distorcendo
ou esquecendo elementos que a compõem. A memória nacional é de ordem ideológica e tem a
finalidade específica de formular, desenvolver e manter a identidade nacional; por isso não é
raro estar associada à atuação das camadas dominantes e de seus interesses para a manutenção
da ordem.
Do exposto sobre a definição de memória, bem como de seus tipos específicos, é
preciso entender a memória como objeto da História, posto que esta tem caráter crítico
(História-problema) e não o caráter narrativo de outros tempos (História-narração).
Entretanto, a atuação dos intelectuais do Instituto do Ceará no período entre sua fundação e a
morte do Barão de Studart13 é caracterizada pela História-narrativa, o que justifica muitos dos
critérios utilizados para fundação da historiografia cearense decorrente dos estudos dos
agremiados daquela instituição.

12
Sobre memória coletiva, conferir, além de Maurice Halbwachs, Marc Bloch e Michel Pollak, NORA, Pierre.
Mémoire Collective. In: LE GOFF, Jacques (org.). La Nouvelle Histoire. Paris: CEPFL, 1978.
13
Período abrangido pela tese intitulada Indígenas e Intelectuais: a questão indígena no Instituto do Ceará (1887-
1938), defendida em 2016, na Universidade de Lisboa, que deu origem ao presente artigo.
70

Convém ainda retomar algumas questões correlatas ao esquecimento. Segundo Marc


Augé (2001:19), a relação entre memória e esquecimento é semelhante à da vida e da morte,
uma vez que o conceito de uma só se define pelo da outra. Portanto, o esquecimento não é
menor que a memória, aliás, para Augé “fazer um elogio ao esquecimento não é vilipendiar a
memória, e ainda menos ignorar a recordação, mas reconhecer o trabalho do esquecimento na
primeira e assinalar a sua presença na segunda” (AUGÉ, 2001:19).
Partindo do vínculo orientador da historiografia produzida pelos Institutos Históricos
— História, Memória e Esquecimento ―, concernentes aos povos nativos do Ceará, tenhamos
em conta a construção de sua imagem pelo Instituto do Ceará e como esta determinou o
entendimento da sociedade cearense quanto aos primeiros habitantes do território. Quando
“desapareceram” os povos indígenas do Ceará? Não se pretende aqui responder a essa questão
do ponto de vista da possibilidade de um desaparecimento físico dos nativos 14, mas refletir
sobre a história criada relativa a esses povos. Trataremos, sim, da ideia de um
desaparecimento ideológico, de uma historiografia que de modo seletivo determinou a
memória coletiva sobre os indígenas no Ceará. Mas qual seria a intencionalidade na forma
como o Instituto do Ceará desenvolvia suas ideias? É possível ao historiador de hoje
recompor o cenário intelectual dos princípios da historiografia cearense? Como a história
produzida no Instituto do Ceará poderia contribuir para uma mudança na condição
sociopolítica e econômica do Ceará?
É possível, apesar de considerarmos improvável, que não existisse intencionalidade na
manipulação de ideias e que esta fosse simples consequência da formação dos próprios
intelectuais do Instituto. No entanto, a conjuntura sociopolítica e econômica do Ceará
indicava outros caminhos. A visibilidade do Ceará diante da capital do Império não era
satisfatória, por nenhum ponto de vista. Vejamos então: a província localizada na região

14
Diversos autores já trataram a questão, conferir, por exemplo: PINHEIRO, Francisco José. Os Povos nativos
do Ceará (uma síntese possível). In: CHAVES, Gilmar (org.). Ceará de corpo e alma: um olhar
contemporâneo de 53 autores sobre a terra da luz. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Fortaleza, CE: Instituto
do Ceará (Histórico, Geográfico e Antropológico), 2002; LEITE, Maria Amélia. O Cearense é um povo
caboclo? In: CHAVES, Gilmar (org.). Ceará de corpo e alma: um olhar contemporâneo de 53 autores sobre
a terra da luz. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Fortaleza, CE: Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico e
Antropológico), 2002; VALLE, Carlos Guilherme Octaviano do. Aldeamentos indígenas no Ceará do século
XIX: revendo argumentos históricos sobre o desaparecimento étnico. In: PALITOT, Estêvão Martins (org.). Na
mata do sabiá: contribuições sobre a presença indígena no Ceará. Fortaleza: Secult/Museu do
Ceará/IMOPEC, 2009; GOMES, Alexandre Oliveira. A saga de Amanay, o Algodão, e dos índios da Porangaba.
In: PALITOT, Estêvão Martins (org.). Na mata do sabiá: contribuições sobre a presença indígena no Ceará.
Fortaleza: Secult/Museu do Ceará/IMOPEC, 2009; PORTO ALEGRE, Sylvia. De ignorados a reconhecidos: a
“virada” dos povos indígenas no Ceará. In: PINHEIRO, Joceny (org.). Ceará terra da luz, terra dos índios:
história, presença, perspectiva. Fortaleza: Ministério Público Federal. 6ª Câmara de Coordenação e Revisão.
FUNAI; IPHAN/4ª Superintendência Regional, 2002.
71

norte15 ficava muito distante dos grandes centros da nação; suas terras não despertavam
grande interesse, não havendo nenhum aspecto físico, social ou econômico que desse relevo
ao lugar; portanto, era conveniente para a elite local encontrar meios de inserir o Ceará na
história do Brasil, abrindo brechas para destacar a província diante do restante do império.
Deste modo, acreditamos que a intelectualidade cearense tenha encontrado os meios a partir
de sua produção, ou seja, aspectos da cultura letrada teriam o potencial necessário para
realizar os anseios de parte da sociedade cearense. Assim, a história produzida pelo Instituto,
especialmente através do Barão de Studart, criou uma imagem da população do Ceará e para
esta mesma população. E o recurso associado ao estabelecimento da memória foi o
esquecimento.
O esquecimento ou amnésia, como referida por Le Goff, não consiste apenas na
perturbação da personalidade do indivíduo, mas pode dizer respeito à perda ou à falta de
elementos determinantes da memória coletiva de sociedades, de nações inteiras, acarretando
alterações identitárias (LE GOFF, 1996:425). Ou seja, o esquecimento – voluntário ou
involuntário - determina os caminhos da memória e da identidade coletiva de um grupo social
e neste sentido a produção histórica pode vir a ser compreendida como um importante
instrumento de poder, manipulando dados e fatos de tal modo a provocar alterações muitas
vezes difíceis de serem contornadas.
Sendo as agremiações de intelectuais lugares tanto de história, quanto de memória e
esquecimento, para os letrados do Instituto do Ceará, bem como para qualquer outro grupo
social detentor de algum tipo de poder sobre a sociedade em geral, o controle da memória e
do esquecimento é de suma importância para a afirmação social-comunitária. Como sustentou
Le Goff:

Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes


preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as
sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores
desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. 16

Portanto, a manipulação da história, da memória e do esquecimento possivelmente


promovida pela elite letrada do Instituto do Ceará, demonstra o intuito de suprimir da história
local aquele elemento que acreditavam pesar negativamente sobre a trajetória histórica
pertinente ao estado. Desse modo, teriam, os intelectuais cearenses, promovido um

15
Referimo-nos aqui à região norte, porque era sob a divisão Norte e Sul que se compreendia o território
brasileiro no período tratado.
16
Idem, p. 426.
72

retraimento da memória referente à população local, buscando, de tal sorte, a repercussão


além-fronteiras e o engrandecimento da província do Norte?17 18
. Talvez tenham apenas
atuado na edificação de um tipo específico de memória, decorrente do próprio contexto
histórico e da memória coletiva do grupo social que compunham. Surge, então, a pergunta:
por que a historiografia construída pelos letrados do Instituto do Ceará atingiria tão
definitivamente o entendimento da sociedade local sobre o indígena local? Para elucidar esta
questão consideremos com Fernando Catroga o seguinte: O sujeito, mesmo antes de ser um
eu, já está, a um certo nível, imerso na placenta de uma memória que o socializa e à luz da
qual ele irá definir, quer a sua estratégia de vida, quer os seus sentimentos de pertença e
adesão ao coletivo. (CATROGA, 2009:13)
É, pois, a experiência em sociedade que determina a identidade, o sentimento de
pertença a um grupo, como consequência da memória coletiva estabelecida. E foi essa a
importância da atuação dos intelectuais do Ceará, já que a identidade do homem cearense
esteve, no final do século XIX e início do século XX, intimamente ligada ao entendimento
social, político e científico difundido na produção das agremiações de estudiosos, com
especial destaque para o Instituto. Entretanto, mesmo compreendendo as questões
relacionadas ao senso de coletividade do homem, pensar unicamente a memória coletiva seria
extrair dele mesmo a condição que o distingue: a da subjetividade. É a subjetividade que lhe
permite destacar-se na multidão, tornando-o único em seu grupo social. Assim, uma vez mais
citamos Catroga que observa:

Na experiência vivida, a memória individual é formada pela coexistência, tensional


e nem sempre pacífica, de várias memórias (pessoais, familiares, grupais, regionais,
nacionais, etc.) em permanente construção, devido à incessante mudança do
presente em passado e às alterações ocorridas no campo das re-presentações (ou
re-presentificações) do pretérito. Significa isto que a recordação, enquanto
presente-passado, é vivência interior na qual a identidade do eu, ou melhor, a
ipseidade, unifica os diversos tempos sociais em que comparticipa. (CATROGA,
2009:12)

Sendo assim, a formação do homem e de sua identidade dependem da relação por ele
mantida com os valores da sociedade ou do grupo em que está inserido, bem como daqueles
que constrói para si, partindo da experiência de vida. Por esse viés se explica a subjetividade

17
O pensamento de Le Goff a propósito da manipulação da memória e do esquecimento, coincide com o de
Marc Augé, quando este se refere ao relativismo cultural. Apesar da argumentação distante, ambos tratam do
poder que determinado grupo pode exercer sobre outro. (Cf. LE GOFF, 1996 e AUGÉ, 2001).
18
Lembramos, uma vez mais, que após a instauração da República, a atuação do Instituto do Ceará permaneceu
na mesma linha de interesse, posto que a condição do Ceará diante da nação e seu governo continua a mesma, ou
seja, de pouco ou nenhum destaque.
73

humana, pois o indivíduo, apesar de ter sua parcela de individualidade, está sempre tão
envolvido com a sociedade da qual faz parte, que características determinantes de sua
essência estarão identificadas com a vivência em grupo e não consigo mesmo.
E, se é da junção das diversas memórias que se constrói a identidade coletiva, bem
como a ipseidade, naturalmente ambas serão originadas também do esquecimento. Afinal,
memória e esquecimento estão lado a lado na conformação da história de toda a humanidade,
determinando escolhas, caminhos, ideologias, etc. Para Catroga (2009:19), as duas se exigem
reciprocamente e, “se a vida é impossível sem a primeira, nem que seja ao nível da sua acção
como proto-memória ou como habitus, ela seria igualmente impossível sem o esquecimento”.
O esquecimento termina por fazer parte, de certa forma, da memória, pois, como bem definiu
Fernando Catroga, ele é a presença da ausência (CATROGA, 2009:16). Portanto, a toda
memória atrela-se um esquecimento, pois memória e esquecimento são escolhas, algumas
vezes inconscientes, outras não.
Quando nos referimos à atuação dos Institutos no fim do século XIX e início do XX, e
à memória e o esquecimento vinculados a eles, isto é, se nos referimos à fundação da História
e de sua escrita, é porque são evidentes alguns aspectos determinantes para a compreensão
político-ideológica dos intelectuais e dessa história oficial fundada em benefício das
“sociedades imaginárias” criadas a partir do desejo positivo de evolução, desenvolvimento e
destaque intelectual. Destarte, na construção da memória e do esquecimento fundadores da
identidade cearense, bem como da identidade nacional (se pensarmos no IHGB), encontram-
se mescladas história e ficção, sendo as marcas do tempo bastante claras, pois os intelectuais
buscavam fundar a história de modo a ressaltar características positivas dos grupos sociais
retratados. Esse entendimento da construção da memória e do esquecimento é semelhante à
definição daquele paradigma a que Paolo Rossi chamou artista da memória, sendo este “o
intérprete da realidade do universo e do seu destino, o possuidor da ‘chave universal’ que está
escondida e assim deve permanecer para os mortais comuns” (Rossi, 2010:18).
Aqui se evidencia a questão do poder de quem determina a memória e o esquecimento
adstrito a algo, pois o artista da memória limita ou expande o acesso ao conhecimento. É por
isso que quem primeiro domina o saber tem em suas mãos o poder de transformar, conduzir,
fundar. E se, a seu modo, memória e esquecimento seguem lado a lado, como iguais em
importância e em reciprocidade, pois são interdependentes, até certo ponto a memória tende a
se sobrepor, pois o esquecido que constrói é realmente relegado ao olvido. É como sustenta
Catroga (2009:20): “a memória (subjectiva e/ou colectiva) tende a olvidar-se do esquecido
que constrói”. E esta termina por ser uma das formas de surgimento das identidades coletivas,
74

pois a memória e o esquecimento ganham enorme força na dinâmica da sociedade que de


conhecimento externo torna-se inconsciente coletivo. Daí provém a imagem construída dos
povos nativos do Ceará, pela qual a população “recebe” da elite letrada informações marcadas
ideologicamente, seguindo as tendências intelectuais da época e o desejo da sociedade
provincial de aparentar desenvolvimento e modernidade, chegam as ideias a se arraigar de tal
forma que ganham a condição de inconsciente coletivo. Portanto, aquilo que foi difundido por
um pequeno grupo ganhou ares de verdade histórica.
Essa pretensa verdade teve por consequência o desaparecimento, melhor dizendo, o
apagamento ideológico de um importante elemento cultural da sociedade cearense. Afinal, o
homem do Ceará recebeu dos povos nativos e mantém com estes profunda afinidade
cultural19. Não podemos tratar a questão do ponto de vista das perdas culturais nem supor que
outra identidade teria a sociedade cearense, caso os povos nativos tivessem estado sempre
presentes e atuantes no convívio e (auto)reconhecimento da população.
Como se sabe, a história se constrói através de escolhas, de seleção, portanto, de
memórias e esquecimentos, sendo estes igualmente importantes, uma vez que ambos
determinam a trajetória do processo histórico. As consequências da memória e do
esquecimento, no caso dos nativos do território cearense, se fazem sentir na
percepção/compreensão de como é o espectro da sociedade local; e não identificamos melhor
forma de atingir esse entendimento do que através da historiografia cearense. A produção
historiográfica nos possibilita observar o alcance das escolhas e construções ideológicas de
uma sociedade. Então, no caso, por ela chegamos a um possível diagnóstico da idealização da
sociedade cearense sobre si mesma.

3. A imagem dos povos nativos difundida na produção historiográfica do Ceará na


primeira metade do século XX: sob a influência da produção do Instituto do Ceará.
Na historiografia cearense, estabelecendo uma divisão minimalista, distinguimos o que
podemos chamar de produção historiográfica tradicional, onde encontramos os autores mais
antigos a tratar de temas cearenses. Muitos dos referidos autores eram profundamente ligados
ao Instituto do Ceará e seguidores de um modelo positivo de história, que difere da
historiografia mais recente, produto das instituições de ensino superior instaladas no Ceará 20.
As diferenças consistem fundamentalmente na abordagem feita dos povos nativos, na qual

19
Ressaltemos o vocabulário, a alimentação, o comportamento, entre outros aspectos tão arraigados e por isso
mesmo indissociáveis do ser cearense.
20
Relembramos que a primeira Instituição a fazer frente à produção historiográfica do Instituto do Ceará foi a
Universidade Federal do Ceará.
75

temos o distanciamento, a extinção ou assimilação dos nativos de um lado; e do outro uma


diversidade de pensamento, uma consciência mais apurada da influência étnica e, com o
passar dos anos um amadurecimento de pesquisas, estudos, e também da resistência dos
povos indígenas no Ceará. Entretanto, a identidade cearense abordada nestas páginas foi a que
surgiu como consequência da história, memória e esquecimento instituídos pelo Instituto do
Ceará, ou seja, a vinculada à historiografia tradicional.
Dessa historiografia podemos citar, por exemplo, Tristão de Alencar Araripe, que
justificou a extinção dos diretores indígenas no Ceará pela impossibilidade de manutenção
dos índios sob ordenação diferenciada do restante da população da província, alegando que a
experiência indígena no Ceará era muito diferente daquela de outras províncias, como Goiás,
Mato Grosso e Amazonas. Segundo Araripe (1867:90), o caso dos indígenas do Ceará foi
fundamentalmente de assimilação, por incompatibilidade da política de manutenção da ordem
entre os nativos do território brasileiro e os do território cearense.
Além de Araripe, outros autores estão vinculados a essa tendência da historiografia
tradicional. Raimundo Batista Aragão publicou a História do Ceará (ARAGÃO, s/d), dividida
em cinco volumes, cujo intuito parece ser ao mesmo o tempo da singeleza de um compêndio
para o público estudantil e o da profundidade de arrogar para si a condição de quem
preencheu as lacunas da História do Ceará (ARAGÃO, s/d:8). Do primeiro volume, no
capítulo oitavo, cujo título é “Resistência Indígena ao Povoamento do Ceará”, ao referir-se à
opressão branca e à redução indígena em aldeamentos, o autor afirma:

Esse processo de redução ou extinção, como seria o mais correto, dos índios tidos
como nocivos à paz que se desejava implantar na Capitania, deve ser considerado
como um dos meios menos cruéis de limpar das terras cearenses o vandalismo
selvagem, porém não o mais aconselhável em sua extensão social. Era sobretudo
hostil e desumano e além disso nada produzia em benefício dos fins politicamente
declarados, pois, o índio, tanto lá quanto cá, teria a mesma disposição arredia de
integração ao convívio disciplinar. Os maiores reflexos, então, de rebeldia nativa,
consistia na presunção legítima de posse da gleba, prerrogativa da qual só a morte
seria capaz de afastar os indígenas do sagrado direito de expulsar os invasores
brancos. (ARAGÃO, s/d:134)

A opinião de Batista Aragão demonstra clareza do abuso de poder do invasor branco,


entretanto, tende igualmente à ideia de extinção por assimilação. Portanto, mesmo
reconhecendo as medidas abusivas e o direito dos indígenas de se oporem à disciplina imposta
pelo colonizador, justificadas pelo interesse de posse territorial por parte do invasor, o autor
compreende como extintos os povos que, de uma forma ou de outra, se relacionaram e
assimilaram a lógica de trabalho e de convívio social do homem branco. Deste modo,
76

permanece o suposto de estagnação na experiência sociocultural do indígena, sendo a outra


alternativa a extinção por assimilação com estabelecimento de contato e aceite do modo de
vida do civilizado, enquanto para o invasor há a ideia de progresso e de evolução
sociocultural21.
E, no capítulo XIII, quanto à miscigenação e seus benefícios para o homem cearense,
Batista Aragão atribui a fortaleza do cearense à mestiçagem (s/d:253), que foi igualmente, na
historiografia antecedente, tanto vilã, quanto heroína. Se teve sentido absolutamente
pejorativo anteriormente, com a manipulação de ideias necessárias à construção de uma
imagem de força e valentia para o homem local (dois atributos responsáveis pela resistência
às adversidades da natureza), as impressões atribuídas à mestiçagem ganham destaque com a
valorização de características supostamente atreladas a ela, como é o caso da força e da
resistência do mestiço cearense.
Em 1931, Cruz Filho publicou Historia do Ceará - resumo didactico22. Em nota
preliminar, o autor expõe as pretensões que o motivaram: o “intuito, ao redigi-lo, teve por
escopo exclusivo prestar um serviço útil á mocidade cearense, que nelle aprenderá a amar e
venerar a nossa terra, tão grande e tão infortunada pelos flagellos das secas” (CRUZ FILHO,
1931:4). Escrevendo sobre a história local, Cruz Filho demonstra cuidado em estabelecer uma
ligação entre esta e a história do Brasil, a demonstrar sua percepção de que o Ceará, mesmo
consideradas as peculiaridades, faz parte de uma nação; portanto, há na escrita de Cruz Filho a
questão da identidade, do sentimento de pertença ao Ceará e ao Brasil. Ainda na nota
preliminar, o autor afirma ter tentado “estabelecer ligações entre os factos da historia geral do
paiz e os da historia local, fazendo avultar a unidade delles e a das aspirações do povo
brasileiro em toda a extensão territorial” (1931:5). Aspecto interessante dessa obra é a
indicação das fontes recorridas em nota informativa, demonstrando preocupação com o rigor
científico e com a apresentação da verdade histórica.
No que respeita aos povos nativos, encontramos passagens condizentes com a postura
adotada pelos autores responsáveis pela historiografia cearense desde o princípio, no século
XIX, até o terceiro quartel do século XX. Logo no início do capítulo III, intitulado “As Tribus
selvagens do Ceará”, Cruz Filho faz referência à extinção dos índios cariri, quando afirma que
estes já pareciam completamente extintos no Brasil, tendo antes habitado região
compreendida entre Bahia e Maranhão e, desta nação cariri, somente os Tremembé habitavam
as praias do Ceará (1931:30)

21
Cf. ARAGÃO, s/d:186.
22
CRUZ FILHO. Historia do Ceará - resumo didactico. São Paulo: Comp. Melhoramentos de S. Paulo, 1931.
77

No capítulo IV, “Ethnographia Indigena”, faz referência aos índios atribuindo-lhes


uma parte da responsabilidade pelo caldeamento da população cearense ao supor ser “a
cabeça chata dos mestiços cearenses um vestigio de sua procedencia das tribus da nação
Cariry, dominadora dos nossos sertões” (CRUZ FILHO, 1931:40) 23. Além desta, há outra
passagem na qual faz alusão à mestiçagem e à extinção dos nativos. No capítulo X,
“Povoamento do Solo”, após rápida observação sobre as guerras como forma de extermínio
dos indígenas, o autor afirma:

As calamidades das seccas não menos collaboraram na extincção dos aborigenes,


bem assim as molestias infecciosas transmittidas pelos conquistadores, entre as
quaes sobresae a variola, que chegou a despovoar aldeias inteiras.
Escravizados pelos exploradores, sujeitos por elles a trabalhos penosos,
submettidos á vida sedentaria, tão contraria á sua natureza de povos nomades,
foram os selvagens rareando no interior e cruzando-se com os colonizadores; da
fusão resultou a actual população mestiça do Ceará. Na formação da sub-raça
entrou o elemento negro da Africa numa proporção apenas de 8,65 por cento, por
isso que a exportação de escravos para o territorio da capitania cearense foi
reduzida. (CRUZ FILHO, 1931:80)

Assim, abordando a questão da miscigenação e associando-a também à extinção dos


selvagens, Cruz Filho perpetua o apagamento dos indígenas da historiografia cearense. E, ao
finalizar o derradeiro capítulo, intitulado “O Ceará actual”, Cruz Filho afirma a força do
cearense, sem mencionar mais a questão da miscigenação e atribuindo-lhe pertinácia ao
enfrentamento das dificuldades da natureza (CRUZ FILHO, 1931:218).
A Pequena História do Ceará24, de Raimundo Girão, foi prefaciada por Thomaz
Pompeu Sobrinho que destacou a importância desta primeira tentativa de síntese da história
do Ceará, bem como o zeloso trabalho do autor. A qualidade desse trabalho de Girão recebeu
parecer do Presidente do Conselho Estadual de Educação, professor Filgueiras Lima, que
ressalta o reconhecimento do tipo de história que se deveria ensinar nas escolas cearenses da
segunda metade do século XX (GIRÃO, 1953:8). Desse modo, temos um indicativo da
identidade do cidadão cearense, herdeiro da historiografia construída e difundida pelo
Instituto, até então o maior difusor da história do Ceará. Na introdução do livro, Raimundo
Girão enumera as principais fontes para estudo da história do Ceará, desde os primeiros
documentos: a Relação do Maranhão, Jornada do Maranhão e Relação do Siará, passando
pelas coletâneas documentais publicadas na RIC e livros publicados por outras editoras não
relacionadas ao IC.

23
Idem, p. 40.
24
GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Ceará. Fortaleza: Editora A. Batista Fontenele, 1953.
78

Do ponto de vista metodológico, o livro de Raimundo Girão merece o maior destaque.


Naquelas páginas o autor aponta as referências a cada capítulo, não só como bibliografia no
fim do texto, mas indicando ao longo da escrita as que lhe serviram de fundamento na feitura
do livro. Se voltarmos à análise relativa aos nativos, Girão somente comenta o indispensável
e, portanto, os povos originários ficam “confinados” nos capítulos iniciais, com pouca ou
nenhuma referência direta à miscigenação e à contribuição destes na formação do homem
cearense. Raimundo Girão parece sugerir nas entrelinhas que referidos povos ficaram no
alvorecer da história do Ceará, daí não dispensar a esta parcela fundadora da identidade
cearense mais do que um papel de relativa importância na fase colonial pretérita.
Carlos Studart Filho também escreveu sobre os nativos nas Páginas de História e Pré-
História (STUDART FILHO, 1966), livro este publicado pelo Instituto do Ceará. Deste,
pouco ou nada escapa a respeito dos indígenas que fizeram parte do passado cearense. É
oportuno lembrar que a obra de Studart Filho, estudioso dos homens da terra, defende a tese
da extinção indígena decretada em 1861.
É inegável a contribuição de Studart Filho para a historiografia cearense,
especialmente no respeitante aos estudos sobre os povos nativos. Ao lado de Pompeu
Sobrinho, Studart Filho foi dos pesquisadores que mais se dedicaram à temática indígena.
Mas, nenhum dos dois faz alusão à presença de índios no Ceará dos séculos XIX e princípios
do XX, período de atuação mais forte do Instituto. Para ambos, parece reinar a ideia da
extinção ou assimilação dos nativos pelo restante da sociedade. Carlos Studart Filho faz
alusão à assimilação em, pelo menos, dois trechos da obra em questão. Num primeiro
momento, referindo-se ao fim da guerra dos bárbaros, assegura:

Remanescentes de tribos destroçadas pelos brancos reunem-se em povoados


estáveis sob a proteção eficiente de clérigos de várias congregações religiosas. Tais
aldeamentos, que marcam, de fato, o término da Guerra-dos-Bárbaros, foram,
porém, criados em épocas assaz diversas. Assim, não é possível fixar a data
provável em que teve fim a terrível contenda que tão caro havia custado aos dois
grupos adversos. Verdadeiro conflito étnico, ela quebrou, para sempre, a
resistência dos gentios e lhes marcou o mais inglório dos ocasos que é o finar-se um
povo na escravidão. (STUDART FILHO, 1966:116)

Adiante, referindo-se aos nativos após o término da rebelião de 1713, Studart Filho
sentencia:

estava para sempre morto o sentimento de altivez e rebeldia do nativo cearense.


Encerrara-se a fase heróica da resistência armada dos filhos da terra aos invasores
brancos.
79

Atritos armados e sangrentos, envolvendo o silvícola, haveriam de entenebrecer por


dilatado período o ambiente social do Ceará. Desassossêgo e insegurança
inquietariam, dêsse modo, pelo tempo em fora, os lares sertanejos.
Tais lutas já não eram, porém, oriundas dos velhos ódios separadores de brancos e
íncolas que recrudesciam. Resultavam antes do choque de interêsses políticos,
sociais ou econômicos, surgidos no próprio seio da comunidade luso-brasileira aqui
radicada.
O elemento indígena pelejaria nesses conflitos apenas integrando qualquer das
parcialidades que se digladiavam, nunca porém como grupo independente agindo
por iniciativa própria. (STUDART FILHO, 1966:133)

Portanto, o estudioso defende a assimilação dos indígenas, primeiro com as missões e


aldeamentos, depois com a aceitação, tomada para si, da cultura da sociedade civilizada.
Há outros nomes dessa chamada historiografia cearense tradicional, entretanto,
acreditamos que os mencionados já nos dão uma boa ideia de quem é o homem cearense cuja
imagem foi construída pelos intelectuais que alicerçaram a História do Ceará. Um homem
miscigenado, porém sem traços que denigram sua imagem de civilizado. Os nativos? Para a
história fundada, principalmente pelos associados do Instituto do Ceará, iniciada no século
XIX e mantida pelos letrados que os sucederam e conservando a maior parte do pensamento
oitocentista, os indígenas do território ficaram para trás. Foram extintos por lutarem contra a
ordem imposta pelo homem civilizado, isto é, dizimados; ou foram assimilados pela
sociedade dita civilizada, ao seguirem as regras desta, quer dizer, tidos por extintos porque
assimilados. Enfim, a historiografia disponível, desde o século XIX até o último quartel do
século XX, confirma a extinção decretada em 1861. Assim, desde 1861 se constrói o
sentimento de pertença do homem do Ceará, mas uma autoidentificação desprendida de um
dos elementos mais importantes do ponto de vista cultural e étnico: o nativo.

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até 1850. Fortaleza: Edições Fundação Demócrito Rocha, 2002 (Coleção Clássicos Cearenses,
v. 5)

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BLOCH, Marc. História e Historiadores: textos reunidos por Étienne Bloch. Lisboa:
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BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembranças dos velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1971.
80

CATROGA, Fernando. Os passos do homem como restolho do tempo: memória e fim do fim
da história. Coimbra: Edições Almedina, 2009.

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S. Paulo, 1931.

GADAMER, Hans-Georg. Kleine Schriften. 1. Philosophie Hermeneutik, Tübigen, 1967 apud


RICOEUR, Paul. Interpretações e Ideologias. Rio de Janeiro: F. Alves, 1990.

GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Ceará. Fortaleza: Editora A. Batista Fontenele,


1953.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

KOSELLECK, Reinhart. Historia de lós conceptos y conceptos de historia. Ayer, nº 53, 27-
45, 2004.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4. ed. Campinas, SP: Editora UNICAMP, 1996
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memória no campo das Ciências Sociais. Rev. Inst. Est. Bras., São Paulo, 1992, nº 34, pp. 9-
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POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Volume 2,


número 3. Rio de Janeiro: CPDOC, 1989, pp. 3-15.

RODRIGUES, José Honório. A pesquisa histórica no Brasil. 3. ed. São Paulo: Companhia
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ROSSI, Paolo. O passado, a memória, o esquecimento – seis ensaios dahistória das ideias.
São Paulo: UNESP, 2010.

STUDART FILHO, Carlos. Páginas de História e Pré-História. Fortaleza: Editora “Instituto


do Ceará”, 1966.
81

CAMPO” E “CIDADE”:
PERSPECTIVAS ENTRE O FICAR E SAIR DE JOVENS DA COMUNIDADE DE
CURRAIS II – CE.

André Victor da Silva Oliveira1

RESUMO: Este trabalho teve como objetivo analisar a visão de jovens da Comunidade de
Currais II – Ceará, sobre o espaço onde vivem, seus anseios e perspectivas para o futuro.
Tendo em vista que muitos dos entrevistados não veem o “campo” como um espaço onde
possam realizar seus sonhos, busquei – a partir das minhas leituras em diálogo com as
respostas de seus interlocutores – desmistificar os conceitos atribuídos para o “campo” e para
a “cidade” e como esses termos estão envolvidos, ainda hoje, no processo de decisão do
jovem entre o ficar e sair de sua localidade de origem. Por isso o fator principal deste estudo
foi buscar uma compreensão dos fatores que influenciam e levam os jovens da comunidade,
filhos de familiares da região, a tomarem suas decisões pessoais que, direta ou indiretamente,
não estão ligadas ao “campo” e associadas à lógica do trabalho como perspectiva de um
futuro melhor.
PALAVRAS-CHAVE: Juventude. Campo. Cidade.

INTRODUÇÃO
Esta pesquisa surgiu a partir do meu incômodo em relação ao que muitas pessoas
pensam sobre o “campo” e principalmente às noções pejorativas que a ele são atribuídas. Com
questionamentos e dúvidas iniciais procurei me dedicar a essa temática em busca de respostas
acerca deste descontentamento, pois, assim como muitas pessoas, eu também me encontrava
diante de um pensamento formulado que não incluía o meio rural como espaço que pudesse
estabelecer um futuro promissor. Diante da minha inquietação, resolvi oficializar o meu
objeto de estudo: os jovens da comunidade rural de Currais II. E por que jovens? Porque é
nessa faixa etária que começa a se estabelecer uma personalidade, conceitos sobre a
sociedade, além de ser um período de transição entre a vida adolescente para a adulta, com
momentos de grandes escolhas, principalmente de cobranças sobre o seu futuro. E foi partir
destes anseios que pude verificar como se configura o processo de decisão dos jovens
entrevistados diante do ficar ou sair de sua localidade. Mas a questão central é: o que
influencia estes jovens e quais os motivos de tomarem tal decisão?
A categoria “jovem” já é complexa por si só e a sua vinculação ao “campo” a torna
ainda bem mais estereotipada, pois no que se refere ao mundo rural, a juventude ainda
permanece numa situação de invisibilidade decorrente de uma visão muitas vezes equivocada
1
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). Bacharel em Humanidades
e licenciando em História.
82

que tem dificultado a compreensão da sua complexa inserção num mundo culturalmente
globalizado (CARNEIRO, 1998). Vale ressaltar que o termo “juventude rural” muitas vezes é
reduzido apenas ao trabalho agrícola e não evidencia o “campo” como um espaço heterogêneo
com múltiplas possibilidades e é por isso que há muitos equívocos em relação ao que se pensa
sobre esse ambiente.
Seguindo este contexto, a presente discussão buscou analisar as falas de cada
entrevistado, pois cada um possui um contexto social diferenciado. Foram essas diferenças de
idade, pensamentos, sentimentos e de sonhos que eu quis buscar para esta pesquisa. É por isso
que CASTRO (2005) em sua tese procura desmistificar essa categoria:

“Permeada de definições genéricas, associada a problemas e expectativas, a


categoria tende a ser constantemente substantivada, adjetivada, sem que se busque
a auto percepção e formação de identidades daqueles que são definidos como
“jovens”. Há muito a ser percorrido neste campo investigativo para nos
aproximarmos das muitas juventudes “urbanas” e “rurais”. (CASTRO, 2005:18)

A metodologia para a construção desta análise se deu através de pesquisas


bibliográficas de autores que abordaram diretamente com a temática. Também houve o
processo de entrevistas em seu caráter qualitativo, que englobou cerca de seis jovens
residentes da comunidade estudada e a prática em campo que possibilitou uma análise mais
profunda dos objetos do estudo. Busquei analisar os jovens que se distinguiam e por um
conhecimento prévio, aqueles que tinham uma realidade social diferenciada, para que
houvesse uma variedade de opiniões em diversos contextos. No processo de coleta de dados,
os meios que me possibilitaram recolher informações foram as entrevistas semiestruturadas e
conversas informais que em sua maioria acabaram se tornando diálogos e debates sobre
diversos aspectos que abordam e ajudam a entender o ponto de vista de cada interlocutor. O
meu intuito não era que eles trouxessem respostas automáticas para as perguntas, e sim que
oferecessem questões, indagações e principalmente expressassem suas opiniões da forma mais
natural possível, trazendo assim uma legitimidade diante das falas e uma credibilidade maior
para esta pesquisa.

1. “CAMPO” VERSUS “CIDADE”: A CRIAÇÃO DE MITOS A CERCA DA


DICOTOMIA.
“Campo” e “cidade”: porque são considerados uma dicotomia? Essa pergunta nos leva
a perceber o quanto é grande a complexidade de tal questionamento. Para compreender essa
indagação é necessário conhecer o contexto histórico que influenciou o pensar sobre “campo”
83

e “cidade”. Mitos construídos solidificam essa dicotomia, mas é fundamental entender o


processo de “construção” deles ao longo do tempo para que se possa compreender os
contextos que lhe são atribuídos.
O que se designa por “campo” e “cidade” tornou-se uma oposição. De um lado temos
o “campo”, visto como natural. E de outro a “cidade”, considerada artificial. A tecnologia
emancipou o homem da dependência extrema dos fatores naturais. Por isso na “cidade” o
sentido de produção aparentemente se mostra de maneira mais expressiva, portanto, a
emancipação é maior. No “campo”, as mudanças estão sujeitas à lógica da natureza. E é a
partir disso que se limita o sentido do natural para o “campo”, e do não natural ou produzido
racionalmente pela lógica humana, para a “cidade”.
Alguns pontos são inquestionáveis a respeito dos atributos das “cidades”: a capacidade
de criar e distribuir mercadorias, a rapidez e intensidade das mudanças, e a forma de como
tudo é processado nas grandes indústrias, chegando em larga escala para uma grande
quantidade de pessoas. E a partir disso, frente a “cidade”, como ficaria o “campo”? A maioria
das pessoas diriam: imutável, atrasado e homogêneo. Os mitos da imutabilidade e
homogeneidade do “campo” são construídos a partir de fatos aparentes: as cidades estão em
constantes mudanças, sendo que se transformam em uma velocidade bem superior, atingindo
uma quantidade muito maior de pessoas e a heterogeneidade é algo de ampla visibilidade, já
que pessoas de várias regiões de culturas e costumes se encontram nas metrópoles em busca
de oportunidades e melhoria de vida. Mas seriam a mudança e a heterogeneidade
características apenas das cidades?
A existência de diferentes civilizações rurais com costumes, instrumentos e cultura
diferenciada é a prova dessa heterogeneidade. WILLIAMS (1988) ressalta essa
heterogeneidade do “campo” (referindo-se à Inglaterra da segunda metade do século XX
como foco de sua reflexão) quando escreve sobre a realidade histórica afirmando que “é
surpreendentemente variada” (WILLIAMS, 1988:11). Para o autor, a vida campestre “engloba
as mais diversas práticas – de caçadores, pastores, fazendeiros e empresários agroindustriais”
(WILLIAMS, 1988:11) e a organização varia “da tribo ao feudo, do camponês e pequeno
arrendatário à comuna rural, dos latifúndios e plantations às grandes empresas agroindustriais
capitalistas e fazendas estatais.” (WILLIAMS, 1988:11).
Segundo WILLIAMS (1988) o contraste retórico se cristalizou com Roma, momento
em que a “cidade” ganha o status de organismo independente e mostrou-se o oposto do
“campo”. “Essa vida fervilhante, de lisonja e suborno, de sedução organizada, de barulho e
tráfego, com ruas perigosas por causa dos ladrões, com casas frágeis e amontoadas, sempre
84

ameaçadas de incêndio, é a cidade como algo autônomo, seguindo seu próprio caminho”
(WILLIAMS, 1988:70). Então a lógica da “cidade” foi comparada com a do “campo”, e se
tornando o seu oposto. E é por isso, que o “campo” foi associado como lugar do passado e do
atraso, como um refúgio da “cidade”, e esses mitos tinham suas bases fundadas numa
realidade aparente: a relação com o feudalismo.
Devemos observar que a ideia que se tem tanto de “cidade” quanto de “campo”, está
associada com o tempo e o contexto em que é produzida. Em determinados séculos vemos a
“cidade” associada à riqueza, enquanto que em outros ela é associada à marginalidade, caos e
insegurança, sendo que em outros tempos, era associada à ideia de evolução, desenvolvimento
tecnológico e progresso. A complexidade e graus de intensidade que as relações campo-
cidade e rural-urbano assumiram ao longo da história, em contextos espaciais diferenciados,
levaram a formulação de abordagens variadas, já que em cada período histórico, lugares e
sociedades diferentes, se consolidou distintos modos de integração entre esses espaços. Pois o
“rural e urbano denotam processos e sua identificação perpassa a compreensão de que são,
também, fenômenos. ” (WHITACKER, 2010: 90).
Por isso para desconstruir os mitos, é fundamental não se limitar apenas a uma
dicotomia construída, mas sim ao processo como um todo, acerca de como tais concepções
foram sendo construídas, pois as relações entre “campo” e “cidade” possuem uma ampla
variedade de fatores que devem ser pensadas em termos de estrutura, forma, conteúdo e sua
função regional, além do período histórico em que é formulado tais conceitos e suas possíveis
interpretações.

2. O PROCESSO DA DICOTOMIA “CAMPO” E “CIDADE” NO BRASIL.


De acordo com (PEGORETTI e SANCHES, 2013) em suas pesquisas sobre a
dicotomia rural x urbano e segregação sócio-espacial, até 1950, o Brasil era um país
essencialmente rural, com aproximadamente 65% de sua população vivendo no campo. Já em
1960 esse percentual caiu para 55% e na década de 70 o país já possuía a maior parte de sua
população vivendo nas áreas urbanas. O incremento da população urbana no país foi
consequência basicamente de três fatores: do próprio crescimento vegetativo das áreas
urbanas, da migração com destino urbano, principalmente a migração do campo em direção à
cidade e da expansão do perímetro urbano de muitas localidades antes consideradas rurais
(BAENINGER, 2003). O processo de migração no Brasil foi se intensificando cada vez mais,
acarretando uma mudança significativa no meio rural, que era predominante em décadas atrás
85

(até 1950), fazendo com que exaltasse a ideia de que a vida urbana seria a ideal e propicia ao
progresso:

Surgiram a partir da década de 1980, mudanças significativas no meio rural


brasileiro. Observa-se a emergência de um espaço rural multifuncional com a
introdução de uma maior diversificação econômica, em meio a novas formas de
produção e subsistência, em visível contraste com o que dominava no passado. A
expansão do tecido urbano sobre as áreas rurais e o crescimento do número de
pessoas ocupadas em atividades consideradas, até então como exclusivamente
urbanas, indicam a existência de um novo paradigma sócio espacial no Brasil.
(JACINTO, J. M.; MENDES, C. M.; PEREHOUSKEI, N. A. 2012:178)

O movimento migratório de moradores do “campo” para a “cidade” no Brasil foi


provocado, além outros fatores, mas principalmente pelo processo de mecanização da
agricultura, formação de latifúndios e por novas oportunidades de emprego. Sendo assim, o
processo de crescimento dinâmico das cidades que se intensificou ao fim da Segunda Guerra
Mundial no Brasil, considerou-as como um espaço propício de vida coletiva e também
território de produção industrial moderna, concentrando as condições de produção exigidas
pelo processo cooperativo da indústria, que necessitaria de mão de obra, proporcionando a ida
de muitas pessoas do “campo” ao mercado de trabalho na “cidade”.
O “campo”, por sua vez, privilegiado pela produção agrária, perdeu seu caráter de
potência após a sua subordinação à “cidade” industrial. Por isso “esta subordinação do campo
à cidade significou e abrangeu não apenas o âmbito da produção e da realização do produto,
mas também sua dependência face às crescentes demandas no campo por produtos,
tecnologias e serviços ofertados pela cidade. ” (MONTE-MÓR, 2004:5).
De tempos para cá, exemplificando, do pós-guerra até hoje, as inúmeras mudanças e
transformações que ocorreram no mundo instigam a repensar os significados de rural e urbano
no Brasil, não apenas como conceitos ou termos, como vêm sendo historicamente utilizados,
mas pela complexidade em que se colocam nessa inseparável rede de misturas:
comportamentais, mercantis, tecnológicas e informacionais. Torna-se cada vez mais difícil,
contudo, delimitar, definir, compreender e refletir sobre as atuais áreas ditas rurais e urbanas
brasileiras, pois em meio a um processo dicotômico evidente, as transformações territoriais,
sociais, políticas e econômicas do mundo atual, faz com que a relação “campo” e “cidade”,
rural e urbano precisem ser redimensionadas, já que o espaço e a sociedade se recriam, tendo
novas pretensões, formas, funções em meio as delimitações territoriais e sociais.
O crescimento populacional das cidades no Brasil é muito grande e as causas que
influenciam as pessoas a quererem ir para o meio urbano é principalmente causado pelo
86

impacto histórico e comparativo entre o “campo” x “cidade”. Mas primeiramente é importante


que se entenda a problemática acerca da questão já mencionada, pois devemos considerar os
impactos dessa construção dicotômica ao longo da história como a base principal para o nosso
entendimento hoje, diante disso, essa concepção superficial que muitos possuem diante de tal
complexidade, é resultado das várias definições equivocadas a respeito das representações do
“campo” ou da “cidade” e suas contribuições ao longo do tempo.

3. FICAR OU SAIR DO “CAMPO”? UM DILEMA PARA OS JOVENS DA


COMUNIDADE DE CURRAIS II.
3.1. Comunidade de Currais II: caracterização da localidade.
Currais II é uma comunidade rural da cidade de Redenção (CE) localizada a uma
distância aproximadamente de 17,5 quilômetros do centro do município e é próxima ao
distrito de Antônio Diogo a uma distância de 6 quilômetros. A estrutura para o acesso do local
não se encontra adequada, sem estradas ou ruas asfaltadas, com vias de acesso em condições
não favoráveis, e não possui uma linha de transporte, além de apresentar dificuldades na
comunicação telefônica. A comunidade é formada por aproximadamente 200 famílias de
acordo com a Secretaria de Saúde do município de Redenção. A paisagem se dá por meio de
árvores por toda parte, plantações em tempos de safra e casas não tão próximas umas das
outras. (Todos os dados foram colhidos no ano de 2017).

Imagem 1: Visão via satélite da comunidade de Currais II – Ceará.

Como demonstração do espaço geográfico, a imagem apresentada mostra a


delimitação da comunidade e uma visão panorâmica a respeito do local onde os jovens
87

entrevistados a seguir sempre residiram. Nota-se o afastamento de Currais II em relação a


outras comunidades e uma grande variedade de propriedades rurais, que se dedicam ao cultivo
de alimentos, criação de animais e principalmente usadas na safra do cajú.
A localidade de Currais II possui uma escola, mas que não é utilizada 2, e para estudar,
os alunos têm que se locomover para as comunidades vizinhas. Existem duas igrejas, uma
católica e outra evangélica, sendo estas as religiões predominantes no local. Na questão
econômica, prevalece a agricultura como maior fonte de renda e sustento para a comunidade,
com atividades de colheita de feijão e milho, safra do cajú e venda de castanha. A prática de
comércio também é utilizada a partir de pequenos estabelecimentos de vendas como:
bodegas3, mercearias e bares. Além disso, atividades autônomas voltadas a confecção de
objetos para uso pessoal, vendas de cosméticos e de roupas também são bastantes evidentes,
sendo este um dos principais meios para aumentar a renda no fim do mês.
A chuva acaba sendo o fator essencial para a economia de Currais II. Se não chove, a
plantação e a colheita não vigoram, prejudicando assim os agricultores que ficarão sem
trabalho, donos de terra que produzirá um mínimo de alimentos como: caju, feijão, milho,
batata e mandioca para o consumo próprio das famílias, além de outros fatores que atingem
diretamente na qualidade de vida do morador da comunidade. Currais II é uma localidade
relativamente pequena, mas que enfrenta muitos problemas, não só pela falta de
infraestrutura, mas também na questão de oportunidades de emprego, locomoção e
abastecimento de água, sendo este último o problema mais grave, porque se no tempo das
chuvas4 as cisternas ou tambores não armazenarem água suficiente, provavelmente os
moradores ficarão sem abastecimento durante o verão. Em tempos de falta de água,
ocasionalmente aparecem carros pipas para distribuí-la gratuitamente em tanques para o
consumo de todos, mas a água não é potável, dando apenas a possibilidade de ser usada para
banho, lavagem de roupas e etc., mas não é só isso que prevalece na comunidade, ela é
composta por pessoas em diversas condições sociais, mas que em sua maioria mostram
solidariedade a quem necessita e isso faz com que, apesar de tudo, prevaleça um clima
harmonioso e tranquilo. Então, é a partir desta breve descrição podemos idealizar um

2
No ano de 2017 e no período até a conclusão deste trabalho (13/07/2017), a escola Dr. Brunilo Jacó de Castro e
Silva da Comunidade de Currais II é utilizada apenas para projetos educacionais do Governo, como por
exemplo: O Mais Educação do Governo Federal.
3
Pequenos estabelecimentos de vendas que em sua maioria vendem bebidas alcoólicas e uma variedade de
produtos importantes para o dia-a-dia. Se torna uma opção mais acessível quando não se pode ir a um
supermercado.
4
De acordo com os moradores e agricultores de Currais II, as chuvas mais significativas iniciam-se em
dezembro de cada ano e vão até fevereiro, mas se “o inverno for bom” pode estender-se até junho ou julho, mas
com uma menor intensidade.
88

panorama do que é possível encontrar na comunidade de Currais II, verificar em que meio os
jovens analisados a seguir estão inseridos, e dessa maneira levantar questionamentos, opiniões
e críticas acerca dos entrevistados diante do espaço onde vivem, ou seja, dentro de um
contexto social.

3.2.Os jovens de Currais II (CE) e a sua relação com a comunidade.


As discussões que giram em torno do termo juventude remetem a uma série de
definições divergentes. Culturalmente determinada, a demarcação desta etapa da vida é
sempre imprecisa, sendo referida ao fim dos estudos, ao início da vida profissional, à saída da
casa paterna ou à constituição de uma nova família ou, ainda, simplesmente a uma faixa etária
(CARNEIRO, 1998). Conforme OLIVEIRA (2006) define-se juventude a partir de cinco
abordagens: faixa etária, ciclo de vida, geração, cultura ou modo de vida e representação
social. Para esta pesquisa, estes aspectos se tornam imprescindíveis, uma vez que estas
relações estão diretamente relacionadas ao que se propõe o estudo.
PAULO (2011) também considera que não se pode definir o jovem apenas de forma
objetiva, mas sim dentro de um conjunto das subjetividades e que há a necessidade de
entender esse segmento por meio da concepção de uma construção sociocultural ligada a um
processo histórico. Com isso, a autora enfatiza a necessidade de entender o meio rural como
um espaço de vida e as relações que os jovens vivenciam, uma vez que, somente por meio do
conjunto dessas relações, com a família e com o mundo, e junto com a percepção que o
próprio jovem tem dele mesmo, será possível entender as identidades desses atores sociais.
Diante dos demais aspectos apresentados nos parágrafos acima, as práticas e
representações sociais dos jovens inseridos no meio rural e a sua relação entre “campo” e
“cidade”, bem como seus projetos de vida, fez com que os jovens da comunidade de Currais
II passassem a ser o meu objeto de investigação, buscando analisar os diversos contextos e
situações que influenciam de alguma forma suas decisões e metas para o futuro. De fato, para
analisar as diversas situações vividas pelos jovens torna-se necessário uma análise profunda e
detalhada para uma melhor compreensão de questões relacionadas à cultura, às relações
sociais, ao trabalho e a outras dimensões que reforçam a heterogeneidade vivida socialmente
pelos mesmos. CARNEIRO (1998) em seu trabalho observa que:

O que nos interessa aqui é justamente perceber como essa categoria, "irredutível a
uma definição estável e concreta" (Levi & Schmitt, 1996), é afetada pelas mudanças
e crises recentes do mundo rural e como essa realidade é reelaborada na
formulação dos projetos individuais e familiares em contextos sociais e econômicos
distintos. (CARNEIRO, 1998).
89

As entrevistas em torno dessa temática ocorreram no ano de 2017. No total foram seis
entrevistados com a faixa etária de 16 a 21 anos, todos residentes da comunidade de Currais II
e de famílias que sempre residiram na localidade. Cada um deles concedeu duas
entrevistas/conversas sobre suas perspectivas de “campo” e “cidade”, a sua relação com a
comunidade e sonhos individuais, mas que também inclui uma preocupação com o coletivo
familiar. As entrevistas consistiram em três etapas. 1) Identificação do entrevistado e
trajetória pessoal, 2) Percepções sobre a comunidade e 3) Percepções sobre projetos futuros.
As entrevistas concedidas mostraram a visão dos próprios jovens sobre Currais II,
onde eles ressaltaram suas visões e críticas, tendo uma ideia de “invisibilidade” sempre
presente em relação ao trabalho no “campo” e da própria comunidade em si, fazendo com que
esses fatores sejam cruciais para as suas decisões futuras. A jovem entrevistada Nayra
Hevily5, estudante do ensino médio e que possui 16 anos destaca seu ponto de vista sobre a
comunidade:

“É uma localidade que falta muito para se desenvolver, porque eu acho que a
comunidade é muito “esquecida”, porque falta mais olhares para que ela possa se
desenvolver e se inteirar mais com Redenção (centro) e eu acho que falta muita
estrutura ainda, falta também a questão dos gestores terem um olhar diferente, não
só para cá, mas também para as outras comunidades vizinhas que também precisam
dessa atenção. (...)”

Outra entrevistada, Erika Maria6, que faz faculdade de Administração e que possui 20
anos responde:

“A comunidade é calma, não tem variedades de emprego, muitas vezes a gente tem
que sair para a cidade, até para comprar algo ou vender também, devido os
moradores daqui serem poucos. A saúde também é algo difícil, pois não tem
hospital, só postos de saúde que muitas vezes não tem materiais de procedimentos,
medicamentos ou consultas disponíveis para a comunidade e por isso que para você
ter algum atendimento médico, tem que ir até a cidade.”

Diante da indagação, todos os entrevistados puderam expressar o seu ponto de vista


sobre a comunidade no sentido de “faltas”. Reforçando a visão de alguns, Lucivânia
Rodrigues7, estudante de Pedagogia e que possui 21 anos ressalta: “É uma comunidade muito
boa, calma, que tem pessoas que ajudam umas às outras e por isso se torna um lugar bom de
se viver. O ponto mais crucial é a dificuldade de água”.

5
Entrevista concedida no dia 21 de abril de 2017, por Nayra Hevily de Oliveira Silva.
6
Entrevista concedida no dia 22 de abril de 2017 por Erika Maria da Silva Pinheiro.
7
Entrevista concedida no dia 25 de abril de 2017 por Lucivânia Rodrigues de Sousa Lima.
90

De forma semelhante ao que constatou CASTRO (2005) em seu estudo, é possível


notar que a juventude rural se encontra diante de muitos desafios e incertezas “entre ficar e
sair” do “campo”. As dificuldades relatadas nas entrevistas dos jovens de Currais II são a de
permanecer na agricultura, pois existem os limites impostos pela escassez da terra e pouca
valorização do agricultor juntando com falta de investimento na produção agrícola e a
ausência de empregos em outras áreas como na educação, saúde ou atividade autônoma.
E quando perguntado sobre o que mais o incentiva a permanecer na comunidade o
jovem Sérgio Henrique8, agricultor de 21 anos responde: “O que me incentiva a ficar na
comunidade é apenas a minha família”. E quando questionado sobre o que mais lhe atrai na
“cidade”, fazendo com que ele lá vivesse toda a sua vida, responde: “O que mais me atrai na
cidade é a oportunidade de emprego fixo, possibilitando a partir disso uma estabilidade
financeira maior para a minha vida”. E nessa mesma lógica foi perguntado a Maria Raquel 9,
manicure de 21 anos e ela responde:

“O que me incentiva a permanecer na comunidade é a minha família e a


comodidade que eu tenho por aqui. Pois eu trabalho como manicure e é bem mais
fácil você receber seu dinheiro, pois eu trabalho na hora que eu quero. O que me
atrai na cidade são as oportunidades, creio que o mercado lá é bem mais variado e
você sabendo investir, você pode ganhar muito dinheiro. [...] e o que me incentiva a
sair da comunidade é a falta de oportunidade para aumentar o meu negócio. ”

Continuando na mesma sequência das perguntas Erika Maria, define bem seus
objetivos e ressalta os motivos de ficar e os de sair da comunidade:

“O que me incentiva a permanecer aqui em Currais II, é a minha iniciativa de


montar o meu próprio negócio, fazendo com que eu possa ajudar de alguma
maneira a minha comunidade. O que mais me atrai na cidade é a facilidade de
emprego e lá as coisas são mais acessíveis em questão de hospitais, saúde e porque
muitas coisas nós só conseguimos resolver na cidade. (...) O que mais me incentiva
a sair é a falta de oportunidade para o jovem, principalmente na área que eu estudo
que é a de administração. E também porque geralmente aqui no interior para você
montar um negócio, você tem que diversificar muito, porque não é toda empresa
que abre aqui e ela permanece. Já lá na cidade é mais diferente, pois tem mais
público, pessoas diferentes e oportunidades para construir um negócio que lucre
mais”.

A partir das entrevistas o que pude perceber é que um dos principais motivos de
alguns jovens de Currais II quererem sair da comunidade é o fator “oportunidades” que logo
vem ligado a “formação” e também “futuro”. Esses fatores destacados são comuns em seus

8
Entrevista concedida no dia 1 de maio de 2017 por Sérgio Henrique da Silva Pinheiro.
9
Entrevista concedida no dia 25 de abril de 2017 por Maria Raquel Pereira da Silva.
91

discursos, pois há uma preocupação não só deles, mas da família em querer conquistar tais
objetivos. Quando perguntada sobre quais eram as oportunidades de trabalho que Currais II
oferecia, Nayra Hevily respondeu:

“A agricultura e o cultivo de alimentos são uma das principais oportunidades de


trabalho, mas também tem a opção de as pessoas abrirem o seu próprio negócio,
como por exemplo meu pai que abriu um bar. Mas mesmo assim é difícil manter
porque é uma comunidade afastada e para poder trazer recursos também é difícil,
fazendo com que a pessoa não lucre muito, ganhando apenas o suficiente para
manter o negócio. E eu acho que essas oportunidades não caberiam a mim, porque
não é algo que eu quero e não favorece os meus objetivos”.

E nesse mesmo contexto responde Marcos Daniel10: “Aqui em Currais II não tem
muitas oportunidades de trabalho, só a roça e a agricultura. Eu aproveito essas oportunidades
na agricultura enquanto eu não arrumo outro emprego, mas não é algo que eu me vejo
trabalhando futuramente”.
É notório que na fala dos entrevistados, Currais II tem sim oportunidades de trabalho,
mas não é o que eles almejam, pois aproveitam alguns trabalhos querendo apenas que seja
algo provisório, pois acham que essas oportunidades oferecidas pela comunidade não se
encaixam em suas metas para o futuro, já que estão inseridos em uma realidade que é notada
as dificuldades em permanecer na agricultura, além de outros tipos de trabalho, e que buscam
desviar desse tipo de “problema”, tendo como exemplo disso a experiências de vida de seus
próprios familiares. Diante do exposto, reafirma-se, por um lado, há necessidade de uma
análise focalizada e aproximada das dinâmicas dos jovens na questão de quererem sair ou
permanecer na comunidade, uma vez que são processos que levam em conta várias
particularidades dos atores envolvidos, pois como CARNEIRO (1998) designa, existe entre os
jovens uma formulação de projetos individuais que influenciam suas escolhas, que se traduz
na realização de uma carreira profissional e principalmente na busca de uma autonomia
maior.

3.3. Perspectivas para o futuro.


Dentro da temática do meu estudo percebem-se nas entrevistas três abordagens acerca
da participação dos jovens da comunidade de Currais II nos processos de atuação,
perspectivas e sonhos. A primeira refere-se aos “projetos individuais” (CARNEIRO, 1998)
que são projetos profissionais e sonhos da vida, que estabelecem uma discussão entre os
interesses do jovem e do grupo familiar. A segunda trata-se dos processos envolvidos na
10
Entrevista concedida no dia 25 de abril de 2017 por Marcos Daniel Pereira da Silva
92

busca dos jovens por acesso a um mundo de oportunidades, relativizando a noção de que o
fenômeno migratório se relacione apenas a uma questão “monetizada”, de acesso à renda. Por
fim a terceira abordagem trata-se das questões acerca da pluriatividade de pensamentos e
metas como mecanismo de perspectivas para um futuro, buscando uma realidade bem
diferente da que seus pais tiveram.
De acordo com os entrevistados é notada a dificuldade que estes jovens encontram no
acesso à terra (agricultura), pois há um desestímulo para a continuidade da vida no “campo”,
pois existe uma ansiedade em busca da independência financeira através do trabalho o que, na
maioria dos casos, não acontece quando eles trabalham em conjunto com seus pais em suas
propriedades. Como a agricultura é a principal fonte de renda da comunidade de Currais II,
existem vários fatores que acrescentam a dificuldade de muitos jovens em continuar em sua
terra, pois no âmbito agrícola existe uma falta de conhecimento técnico, desconhecimento de
projetos voltados para a agricultura e outras áreas, além de que todo conhecimento agrário
advém do que é repassado pelos pais. O conteúdo da escola, em geral, é direcionado apenas
para a realidade urbana, além disso, falta assistência técnica para orientação dos mesmos, falta
de crédito para iniciarem alguma atividade, entre outros fatores que interferem fortemente no
interesse em permanecer no “campo”.

Apesar do peso dos fatores estruturais, as decisões sobre a migração são tomadas
por indivíduos, que variam na avaliação de fatores de atração ou de expulsão.
Ademais, na decisão de migrar, provavelmente os fatores de expulsão são
anteriores aos de atração, na medida em que os indivíduos fazem um balanço entre
a situação vivida e a expectativa sobre a nova situação. Dependendo de como se
examina a questão, os estudos sobre a migração de jovens focalizam ora os
atrativos no novo ambiente ora os aspectos vistos como negativos no local de
origem. Entre os ‘ruralistas’ predominam as análises que apontam antes os fatores
de expulsão do que os de atração, como causas da migração. (BRUMER, 2007:3).

Os fatores que levam o jovem de Currais II a ficar ou sair da comunidade são muitos,
mas um dos principais motivos que eles levam em consideração é a opinião da família, pois é
a partir do contexto familiar que muitas vezes eles evidenciam a necessidade de saírem ou
não. E seguindo essa ideia foi feita a seguinte pergunta: “Há algum incentivo de seus pais para
você ficar ou sair da comunidade? Qual é o sonho dos seus pais para você?”. E nessa ordem
de perguntas Erika Maria responde:

“Eu tenho mais incentivo dos meus pais para ficar na comunidade. Mas na verdade
como aqui é difícil de conseguir um emprego, querendo ou não se eu fosse
trabalhar na minha área que é administração, aqui não tem muita oportunidade
para essas coisas, então eu teria que sair, mas se fosse da preferência do meus pais,
eles queriam que eu trabalhasse aqui, pois eu ficaria perto deles. O sonho dos meus
93

pais com certeza é que eu estude muito, consiga um emprego, seja independente e
viva bem.”

Seguindo a mesma sequência Sérgio Henrique11 ressalta: “Os meus pais me


incentivam a sair, porque aqui não tem empresas e não tem muitas oportunidades de trabalho
como tem na cidade. O sonho dos meus pais é que eu consiga um emprego que eu possa viver
fixamente as minhas custas”. Lucivânia Rodrigues12 também relata: “Os meus pais me
incentivam a sair da comunidade para procurar emprego na cidade e melhorar de vida. Eles
desejam que eu me forme, tenha um bom emprego e construa uma família”.
Na indagação “entre o ficar e sair” (CASTRO, 2005), pode-se compreender a relação
de vários aspectos na formulação das decisões dos jovens. Então outro fator de grande
destaque é o “sonho”, onde cada entrevistado relata o que mais almeja para a sua vida e que
muitas vezes para se realizar, esse processo não inclui o espaço onde vivem, pois muitas vezes
a comunidade não possui o que é preciso para concretizar esse “sonho”.

Observa-se um aumento significativo de jovens que se preparam para o vestibular.


As carreiras escolhidas apontam para uma certa incompatibilidade com a intenção
de continuar vivendo na localidade. (...) Apesar da intenção declarada por alguns
jovens de residirem na localidade de origem, são poucos os jovens que efetivamente
retornaram após terem cursado a faculdade, mas, por outro lado, já é comum a
expressão do desejo de que a emigração represente apenas uma fase do
aprendizado supondo o retorno após a obtenção da especialização profissional.
(CARNEIRO, 1998).

Cada entrevistado quando perguntado sobre seu “sonho” responde algo referente à
profissão, onde cada um se mostrou interessado em uma área para uma atuação futura, como,
por exemplo, no âmbito da: Psicologia, Administração, Educação Física, Direito e no ramo
empresarial. Quando foi perguntada sobre seu sonho e em seguida se era possível realiza-lo
no espaço/comunidade onde vive, Maria Raquel13 responde com toda clareza:

“Meu sonho é montar um salão para as minhas clientes e também montar uma
empresa de aniversário. É possível realizar esse meu objetivo na comunidade sim,
mas com muita dificuldade, porque aqui a quantidade de clientes é pouca e não tem
um espaço adequado para a construção desse meu sonho. Por isso que às vezes eu
acho que se eu me mudasse para a cidade eu teria um lucro maior. ”

Mostrando seu ponto de vista Sérgio Henrique também relata seus desejos e as
alternativas para que se possa realiza-los: “Meu sonho é se formar e conseguir um bom

11
Entrevista concedida no dia 15 de maio de 2017 por Sérgio Henrique da Silva Pinheiro.
12
Entrevista concedida no dia 20 de maio de 2017 por Lucivânia Rodrigues de Sousa Lima.
13
Entrevista concedida no dia 21 de maio de 2017 por Maria Raquel Pereira da Silva.
94

emprego. Aqui na comunidade não tem como eu levar adiante meu sonho, porque existe
muita dificuldade de conseguir um emprego principalmente na área que eu quero futuramente
atuar que é na parte da Educação Física”. A jovem entrevistada Erika Maria 14, reforça o seu
ponto de vista destacando vários aspectos para o seu futuro:

“No momento o meu sonho é terminar minha faculdade de administração e mais no


futuro construir o meu próprio negócio, que eu ainda não sei o que vai ser, pois,
ainda vou estudar o mercado, mas quero ver logo essa possibilidade. Eu acho que é
possível sim realizar meu sonho aqui na comunidade, pois se eu estudar bem o
espaço, o mercado e fazer algo diferente aqui na comunidade, provavelmente meu
negócio dará certo. ”

Conectando com as respostas dos entrevistados deste trabalho, CARNEIRO (1998)


desenvolve uma tese que mostra uma dualidade em relação às escolhas dos jovens em
permanecer ou sair do seu local de origem:

A migração, temporária ou definitiva, para a cidade expõe os jovens ao contato com


um sistema variado de valores que são absorvidos, ou rejeitados, atuando tanto no
sentido de reforçar os laços identitários com a cultura original quanto no sentido
de negá-los. Essa mobilidade simbólica, que permite sentir-se pertencente a uma e a
outra cultura, supõe uma margem de negociação entre níveis distintos da realidade
[...] associados às relações afetivas com a família e um projeto individualizado que
pressupõe uma autonomia face às redes familiares e uma relação impessoal com o
mercado de trabalho e outros setores da sociedade. Poderíamos sugerir que dessa
relação ambígua com os dois mundos resultaria a elaboração de um novo sistema
cultural e de novas identidades sociais que merecem ser objeto de investigações
futuras. (CARNEIRO, 1998).

Entende-se a importância de se debater acerca do que se pensa sobre o mundo rural,


tendo como objetivo elaborar estratégias para não reproduzir conceitos hegemônicos, tanto no
âmbito social, econômico e físico do “campo”. É necessário que haja uma percepção maior
sobre a importância do “campo”, até mesmo pelos próprios jovens de Currais II, para que eles
juntamente com as gerações futuras da comunidade, compreendam o quanto os trabalhos
ligados ao “campo” simbolicamente depreciativos são tão importantes quanto qualquer outra
profissão. Por isso torna-se relevante entender as motivações juvenis e sua relação com as
instituições presentes no meio rural, para que possa abrir um panorama diante dos “valores”
atribuídos para o “campo” e para a “cidade”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa teve como questão norteadora o estudo da uma “juventude rural”, termo
este descrito pelas autoras CASTRO (2005) e CARNEIRO (1998) em seus trabalhos
14
Entrevista concedida no dia 14 de maio de 2017 por Erika Maria da Silva Pinheiro.
95

relacionados com a problemática “campo” e “cidade” em diálogo com os anseios e


perspectivas dos jovens entrevistados. Foi ao longo da construção destes resultados que
obtive uma reflexão sobre vários aspectos relacionados ao pensar sobre o “campo” e da
“cidade”. Foi a partir disso que pude perceber que essas categorias foram criadas de acordo
com aspectos, características e conceitos diferentes atribuídos ao longo da história,
categorias estas que se modificam mediante realidades e contextos distintos, que também se
alteram de acordo com o período em que foram produzidas. Por isso que não há um conceito
hegemônico sobre “campo” ou “cidade”. O que se mostra mais provável é a criação de mitos
acerca de como se pode definir esses termos em cada realidade, sendo que ao longo do
tempo as associações para estas categorias se mostraram opostas: opunham-se no sentido de
que as virtudes exaltadas de um se fortaleciam sobre as deficiências e carências do outro.
Assim, as qualidades e afirmações do “campo” e da “cidade” acabaram se tornando distintas
e praticamente imutáveis em vários contextos.
A comunidade de Currais II é o local onde estão inseridos os jovens da pesquisa.
Conhecida como “rural”, à localidade são atribuídas características tanto negativas como
também positivas, de acordo com os entrevistados. Mas o que prevalece em seus discursos
são questões ligadas às perspectivas para futuro em conexão com a ótica do trabalho, sendo
esse um dos fatores primordiais em suas escolhas de permanecerem ou não na comunidade.
Mas a questão não está no fato de quererem sair ou ficar, mas sim nos motivos que os levam
a tomarem tal decisão. Sendo estas circunstâncias oriundas de um pensamento que atribui
características atrasadas para o “campo” e modernas para a “cidade”, essa hierarquização é
fator que muitas vezes influencia os jovens a não optarem por atividades exercidas no meio
rural, pois tais atividades são, em sua maioria, associadas a práticas agrícolas. E em Currais
II, local onde se situa o objeto do estudo, essa condição de desvalorização é perceptível nas
falas dos entrevistados.
O motivo dessa pesquisa, e que sempre foi um incômodo para mim, é tentar entender o
que leva muitas pessoas a desmerecerem atividades exercidas no meio rural e exaltarem em
grande parte a vida no meio urbano. Correlato a esse pensamento é a percepção de que o
“campo” é local de ignorância e a “cidade” de sabedoria, ponto de vista bem perceptível na
fala dos jovens entrevistados. E é esse tipo de discurso que mais me impulsiona a querer
investigar o porque eles são produzidos e muitas vezes propagados como verdade absoluta.
Em suma, as pesquisas são referentes a um local, período e pessoas de um
determinado tempo (2017) e que futuramente mostrarão como era o pensamento de alguns
jovens de uma determinada comunidade de nome Currais II, acerca de suas interpretações
sobre o “campo” e a “cidade” e como essas categorias influenciavam diretamente em suas
perspectivas para o futuro.

REFERÊNCIAS
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tendências recentes. In: GONÇALVES, M.F.; BRANDÃO, C.A.; GALVÃO, A.C. (Orgs).
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UNESP, 2003. p. 271-288.
96

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CARNEIRO, Maria José; CASTRO, Elisa Guaraná de. Juventude rural em perspectiva.
Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
CARNEIRO, M.J. O ideal rurbano: campo e cidade no imaginário de jovens rurais. In:
SILVA, F.C.T.; SANTOS, R.; COSTA, L.F.C. (Org.). Mundo rural e política: ensaios
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MONTE-MÓR, Roberto Luis. A relação urbano-rural no Brasil contemporâneo. II
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João Evangelista – MG. Dissertação (Mestrado em Meio Ambiente e Sustentabilidade).
Centro Universitário de Caratinga. Caratinga: UNEC, 2006.
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WHITACKER, A. M. Campo e cidade. Cidades médias e pequenas. Algumas proposições
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WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988.
97

FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA O ENSINO DE HISTÓRIA AFRO-


BRASILEIRA: PERSPECTIVAS DE APLICAÇÃO DA LEI 10.639/2003 NA
EDUCAÇÃO BÁSICA

Antonia Valdenia de Araújo1

Resumo: O objetivo do presente trabalho é o de se pensar a formação docente para o ensino


da História afro-brasileira na educação básica de acordo com os pressupostos da lei
10.639/2003. Este tema requer, como qualquer outro, conhecimento por parte do professor em
relação ao conteúdo propriamente dito e aos métodos que devem ser utilizados para se
abordar tal proposta de ensino, principalmente levando-se em conta que a mesma ainda é
bastante incipiente no sistema educacional brasileiro. Para o desenvolvimento do trabalho,
foram aplicados questionários a professores do ensino médio de escolas públicas do estado do
Ceará, com o intuito de compreender como essa formação tem sido pensada e ofertada aos
docentes. Como fundamentação teórica, acerca das diretrizes do ensino de História e das
práticas relacionadas ao ensino de História da África e afro-brasileira, serão discutidas as
reflexões de Silva e Guimarães (2012), Guimarães (2009), ORIÁ (2004), Abreu & Mattos
(2008) e ALBERTI (2013).
Palavras-chave: Formação de professores. Ensino de História afro-brasileira. Educação
básica.

Pensando a formação docente


O ensino de história para as relações étnico-raciais requer, como qualquer outro tema,
conhecimento por parte do professor, no que diz respeito ao conteúdo propriamente dito e aos
métodos que devem ser utilizados para se abordar tal proposta de ensino. Porém, a formação
docente, inicial e continuada, ainda é um problema no sistema educacional brasileiro.
A deficiência da formação inicial decorre principalmente, da organização curricular
dos cursos de licenciaturas nas universidades brasileiras, que não prioriza o ensino, voltando-
se mais para a pesquisa, ao invés de buscar estabelecer uma relação entre as duas propostas
uma vez que um bom professor deve primeiramente ser pesquisador.
Em se tratando dos conteúdos relacionados à história afro-brasileira, essa deficiência é
ainda maior, pois apenas no início do século XXI o referido tema passou a fazer parte, em
caráter obrigatório, do currículo escolar. Portanto, houve um processo de esquecimento por
mais de um século, da história do negro no Brasil e na África, e geralmente o assunto era
abordado sob a perspectiva da escravidão. Tal fato contribuiu para que os professores
passassem por uma formação inicial que não contemplava as demandas presentes hoje na
construção teórica do tema.
1
Aluna do curso de mestrado profissional em História – Profhistória na Universidade Regional do Cariri-
URCA; bolsista da Capes; Professora de História da EEMTI Wilson Gonçalves, aval.araujo@hotmail.com.
98

Além dos problemas de base teórica, percebe-se que não há um comprometimento por
parte dos órgãos educacionais no sentido de garantir a formação continuada para os
professores do ensino básico. Também, faltam recursos e materiais didáticos que abordem o
tema dentro das perspectivas atuais e que sirvam de subsídio para o professor realizar um bom
trabalho. De acordo com Guimarães,

Atualmente, é preciso considerarmos que a formação e a atuação de profissionais


da educação ocupam uma posição estratégica, pois os projetos de melhoria da
qualidade do ensino dependem da “qualidade pedagógica” dos professores, e,
nesse sentido, é necessário ampliarmos a discussão, para que possamos, de uma vez
por todas, romper com as velhas ideias de “reciclagem” e requalificação.
(GUIMARÃES, 2003: 73).

Diante dessas inquietações, é necessário sempre reforçar a importância de uma


formação de qualidade para os professores, de modo a garantir a profissionalização dos
docentes e, como consequência, também a melhoria na qualidade do ensino.
Esse artigo tem como objetivo analisar o processo de formação docente voltado para o
ensino de História africana e afro-brasileira na rede estadual de educação do Ceará, a partir de
relatos de professores de História que atuam na referida rede. A pesquisa foi realizada no
município de Crato que conta com dez escolas estaduais entre regulares, profissionais e
escolas em tempo integral. Foram escolhidas seis escolas das quais os docentes de História
responderam ao questionário proposto. Dos seis docentes apenas uma tem vínculo temporário,
sendo os demais efetivos. Todos são licenciados em História e lecionam a referida disciplina
nas séries do ensino médio.
O questionário de modelo semiestruturado foi composto por dez perguntas, de caráter
objetivo e discursivo, acerca do ensino de História afro-brasileira nas referidas escolas,
especificamente, sobre a formação continuada com vistas a se trabalhar tais elementos no
cotidiano da sala de aula. As escolas e os professores não serão identificados na pesquisa.

Importância da formação docente para o ensino de história afro-brasileira


A lei 10.639, publicada em 9 de janeiro de 2003 que alterou a Lei de Diretrizes e Base
da Educação Nacional, lei 9394/96, tornou obrigatório no currículo oficial da educação básica
o ensino de história e cultura afro-brasileira, numa tentativa de responder aos anseios da
população negra que busca conquistar seu espaço na sociedade brasileira, principalmente a
partir do surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978, e assumindo uma
99

expressão mais significativa e popular no decorrer das últimas décadas do século XX e da


primeira década do século XXI.
De acordo com Fernandes, tais movimentos passam a ganhar importância a partir do
final dos anos 1970 através das reivindicações por espaço na sociedade brasileira: ―[...] os
movimentos de consciência negra, que lutam, em todo o país, contra quaisquer formas de
preconceito e discriminação racial, bem como pelo direito à diferença, pautada no estudo e
valorização de aspectos da cultura afro-brasileira‖ (FERNANDES, 2005: 381).
Portanto, a proposta apresentada na supracitada lei não é algo externo à comunidade
negra, mas sim uma consequência da própria insatisfação desta, que pode ser percebida desde
o período colonial, início do processo de escravização dos africanos e afro-brasileiros. Com o
passar dos séculos, a luta contra a escravidão e opressão dos negros ganhou mais importância
e novos significados. Após a abolição no final do século XIX, surgiram alguns movimentos
de enfrentamento à violência e à exclusão às quais a população negra estava sujeita uma vez
que a garantia da liberdade não resultou em igualdade racial e social.
Nas últimas décadas do século XX, os movimentos negros ganham novos adeptos e
ocupam outros espaços, como o teatro e os jornais. Com o crescimento do MNU, surgem
novos atores em cena. Pessoas que afirmam, não apenas a cor negra, mas uma identidade
afro-brasileira impregnada de sentidos que se constituem desde a perspectiva de raça/etnia até
as representações culturais, incluindo religiões de matriz africana. Conforme Fernandes

Apesar da influência marcante da cultura de matriz européia por força da


colonização ibérica em nosso país, a cultura tida como dominante não conseguiu,
de todo, apagar as culturas indígena e africana. Muito pelo contrário, o
colonizador europeu deixou-se influenciar pela riqueza da pluralidade cultural de
índios e negros. No entanto, o modelo de organização implantado pelos
portugueses também se fez presente no campo da educação e da cultura.
(FERNANDES, 2005: 379).

Essas demandas acabam por se fazerem presentes também na área da educação. A


Constituição de 1988 prevê um ensino plural que zele pelo respeito à diversidade de qualquer
natureza. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 reforça essa proposta. Porém, para
os movimentos negros, estas ainda eram iniciativas pouco expressivas, que não garantiam
nem o respeito, nem a afirmação de identidades negras, e nem a diminuição do racismo na
sociedade.
Com a aprovação da lei 10.639/03, os sistemas educacionais tiveram que adotar novas
propostas de ensino que contemplassem o referido tema. No decorrer dos últimos quinze anos
após a aprovação da lei, ainda são encontradas muitas dificuldades para se trabalhar a
10

temática afro-brasileira nas escolas. Uma delas, e talvez a mais significativa, é a falta de
programas de formação continuada que possibilitem aos professores uma apropriação acerca
da temática e das metodologias e recursos que podem ser empregados para explora-la.
Segundo Silva e Guimarães

(...) o papel da formação dos profissionais da área de História, cujo objetivo de


trabalho docente é a formação da consciência histórica de crianças e jovens que, no
Brasil, experienciam uma realidade marcada por múltiplas diferenças culturais e
enormes desigualdades sociais e econômicas. (Silva e Guimarães, 2012:22).

Assim, é possível afirmar que a formação inicial dos professores também é deficiente,
no que diz respeito ao processo de profissionalização docente e, especificamente em relação à
temática afro-brasileira. A principal dificuldade resulta da elaboração do currículo acadêmico,
do qual a citada temática só passou a constar a partir da última década.
Vários são os fatores que podem explicar tal fenômeno. Por exemplo, a falta de
interesse por conteúdos relacionados à história da África era uma situação recorrente até o
início da segunda metade do século XX. Não se pode negar que houve, após esse período, um
processo de ressignificação da história da África e dos afro-brasileiros. Atualmente é possível
encontrar diversos trabalhos, sejam dissertações, artigos, teses ou livros que abordam a
temática. Ou seja, observa-se um crescimento significativo da produção acadêmica nesta área.
Apesar disso, a formação docente ainda é bastante incipiente. Algumas universidades
oferecem a disciplina de história afro-brasileira como optativa, o que contribui para se colocar
à margem do sistema educacional a importância da luta dos movimentos negros por espaço no
ambiente escolar e acadêmico, pela valorização de suas práticas e representações culturais,
afirmação das identidades e combate ao racismo. Para Alberti ― O racismo está entre as
questões ditas ― sensíveis ou ― controversas, por isso ignoradas ou evitadas em sala de aula.
Essa questão pode ser enfrentada a partir da desconstrução da imagem do negro como
escravo. (ALBERTI, 2013: 36). A partir da formação docente é possível um ensino que
vislumbre uma mudança de mentalidade possibilitando ao professor abordar questões até
então silenciadas devido à formulação de ideias preconceituosas e estereotipadas.
O problema da formação inicial repercute para além dos muros das universidades,
chegando às escolas, espaço onde a lei 10.639 deve ter uma atuação mais significativa.
Algumas escolas até dispõem de um bom acervo historiográfico acerca da história do negro
no Brasil, abordando principalmente as representações culturais, os vários papéis que os afro-
brasileiros desempenharam e desempenham na construção do país. Porém, estas obras não
10

estão disponíveis em quantidade suficiente para se realizar um trabalho em sala com os


alunos, servindo apenas para leituras individuais. O resultado é que como ocorre quase
sempre, o professor toma para si a responsabilidade de providenciar materiais didáticos.
Os professores também acabam por se tornarem responsáveis por sua própria
formação continuada uma vez que, os órgãos educacionais praticamente não a oferecem, ou
ofertam de forma esporádica e dentro de uma lógica que nada acrescenta ao trabalho docente
orientado pela lei.
Tais constatações resultam da análise das respostas dos professores às questões
propostas para o desenvolvimento do presente artigo. Todos concordaram que a aplicação da
lei ainda está muito aquém do que se espera por tratar de temáticas que envolvem diversas
formas de preconceitos e ao mesmo tempo de busca por afirmação da identidade afro-
brasileira. Os docentes reconhecem os avanços ocorridos principalmente na última década em
relação aos conteúdos de história afro-brasileira, porém ressaltam que as ações poderiam e
deveriam ser mais significativas uma vez que os africanos e afro-brasileiros foram
negligenciados no decorrer de toda a história do Brasil desde sua chegada neste território.
Perguntado aos professores se os mesmos têm conhecimento acerca da Lei
10.639/2003, todos responderam que sim e que a consideram essencial para a educação básica
no sentido de se combater o racismo seja na sociedade ou nas próprias instituições, de se
perceber os negros como sujeitos de sua própria história que tiveram papel importante no
processo de construção da sociedade brasileira, de dar voz a esses personagens durante muito
tempo esquecidos e invizibilizados pela historiografia vigente.
Os respondentes apontaram ainda a necessidade de se ensinar história afro-brasileira
não apenas pelo viés da escravidão, e de se considerar que a lei foi aprovada em resposta aos
anseios da população negra através dos movimentos que ganharam espaço na sociedade
brasileira ao longo do século XX.
Em relação à aplicação da lei nas escolas estaduais do Ceará, as opiniões foram
diversas. Uma professora afirma que faltam docentes capacitados e materiais para se abordar
a temática. Para outra, o assunto é tratado de forma parcial uma vez que a lei ainda é um
pouco nova e falta conhecimento acerca dela, e formação adequada para se tratar as questões
pertinentes à negritude. Outra professora afirma acreditar que nem todas as escolas aplicam a
lei, porém não tem dados suficientes para embasar tal afirmação.
Os demais afirmaram que independentemente dos recursos didáticos e metodológicos
que cada professor utilize, a temática é abordada nas diferentes escolas. Embora eu também
não tenha dados suficientes sobre o assunto, considero que as escolas de uma forma ou de
10

outra abordam a temática, porém acredito que os conteúdos de história afro-brasileira devem
estar definidos de forma mais significativa tanto no currículo como no livro didático.
Todos os respondentes afirmaram que a lei é aplicada em suas respectivas escolas não
só pelo fato de se tratar de uma lei, mas porque as instituições se preocupam com o combate
ao racismo e com a importância dos negros na sociedade brasileira. De acordo com as
respostas todas as escolas, além da abordagem cotidiana do assunto, desenvolvem projetos
que visam à integração das referidas temáticas no currículo escolar.
Quando indagados acerca da formação voltada para o ensino de história afro-
brasileira, se a Secretaria Estadual da Educação e a Coordenadoria Regional oferecem essas
formações, se eles já participaram de algum curso de formação sobre a Lei 10.639/2003,
ofertada pelo Estado, e se têm conhecimento de algum plano estadual de educação elaborado
com o objetivo de promover as formações, todos os respondentes afirmaram que não existe
um compromisso por parte do estado em ofertar as formações, tendo cada um deles
participado apenas de uma formação, e que os professores acabam buscando se qualificar por
conta própria.
Todos afirmaram que para que a Lei 10.639/2003 seja plenamente aplicada nas escolas
estaduais do Ceará faltam recursos como, materiais didáticos adequados, formação docente
continuada, até porque trabalhar o assunto não é simplesmente reproduzir o que está no livro
didático, tem que se ter todo um cuidado sobre o que se vai ensinar e de que forma o assunto
vai ser abordado, de modo a não se repetir ou reforçar estereótipos. Segundo os respondentes,
falta iniciativa por parte do estado em tratar essas questões, em perceber a importância do
combate ao racismo e a outras formas de preconceito, e em promover um ensino de qualidade.
Apontaram ainda, a deficiência da formação inicial uma vez que as licenciaturas não trazem
nos currículos um amplo debate que possibilite ao formando se apropriar do assunto de modo
adequado, principalmente nos cursos que não fazem parte das ciências humanas nos quais os
professores sentem maior dificuldade em abordar os temas. E ainda, falta fortalecer o vínculo
entre escolas e universidades de modo que as discussões ocorridas no ambiente acadêmico
possam chegar à educação básica.
Sobre a forma como o Livro Didático trata da história e cultura afro-brasileira, os
docentes apontaram equívocos conceituais, questões ainda bastante pontuais, ou seja, sem um
aprofundamento acerca dos temas, períodos inteiros sem referência alguma aos africanos e
afro-brasileiros, e a permanência de conteúdos já existentes antes da aprovação da lei, que só
valorizavam as questões voltadas para o passado colonial escravista.
10

Uma professora mencionou que os livros têm passado por um processo de mudanças,
porém ainda há muito a ser respondido para que o ensino da história afro-brasileira de fato
contemple as demandas expressas na lei. Um professor afirmou que os livros são analisados
pelo Programa Nacional do Livro Didático e que de uma maneira mais profunda ou mais
superficial devem abordar a temática, cabendo ao professor escolher a obra que melhor
englobe o assunto.
A última pergunta considerou a necessidade e importância da formação continuada em
ensino de História afro-brasileira para a educação. Todos os docentes afirmaram que a
formação é essencial, pois capacita os profissionais a trabalharem com questões que ainda não
dominam completamente. Afirmaram ainda que é papel do estado ofertar formações na área, e
se existem programas de formação que contemplam outras áreas e conteúdo, também deve
haver para o ensino de história da África, ou o estado estará negando a importância da
temática e o seu próprio papel no cumprimento da lei.
Segundo a análise de um professor geralmente os docentes ficam presos ao cotidiano
escolar, o que torna um pouco difícil a busca por novos métodos de ensino. As formações são
uma oportunidade de se quebrar essas barreiras uma vez que promovem a integração entre
diversos professores, análises de teorias diversas acerca do ensino de História, e uma maior
aproximação com as universidades em parceria com a Secretaria da Educação do Estado.

Considerações finais
Dessa forma, pode-se concluir que a aplicação da lei 10.639/03 no ensino básico ainda
está muito aquém do esperado, principalmente pela comunidade negra. É necessário, porém,
se ter todo um cuidado para, a partir dos discursos não anular um trabalho que vem sendo
desempenhado por diversos professores na última década, que pode ser observado a partir do
contato que as escolas estabelecem entre si. Ou seja, é comum que um professor venha a ter
conhecimento sobre o trabalho do outro.
Portanto, não é nenhum exagero afirmar que a temática da história afro-brasileira é
trabalhada nas unidades de ensino básico, pelo menos em boa parte delas. O que se questiona
aqui é a falta de uma proposta ou de propostas por parte do Estado, que promovam
discussões, trocas de experiências, construções de novos elementos que possam ser
incorporados ao tema, de novos recursos e métodos a serem utilizados nas aulas.
O que se percebe é que este é um tema já bastante explorado em se tratando da
necessidade de incluí-lo no ensino básico de forma mais rigorosa, com a desconstrução de
estereótipos e preconceitos, e que possa de fato, contribuir para um reconhecimento da
10

presença africana no Brasil a partir do resgate de valores durante muito tempo negligenciados
pela historiografia oficial.
Para que haja um reconhecimento das questões raciais e do racismo como elementos
que relegaram os negros a uma posição considerada inferior na sociedade brasileira, é
necessário que toda essa problemática seja amplamente discutida nos espaços escolares
conforme estabelecem as Diretrizes Curriculares. De acordo com Abreu e Mattos, ―As
―Diretrizes‖ trazem para o âmbito da escola, pela primeira vez, a importante discussão das
relações raciais no Brasil e o combate ao racismo, tantas vezes silenciado ou desqualificado
pelas avaliações de que o Brasil é uma democracia racial‖. (ABREU E MATTOS, 2008: 9).
Portanto, ainda há muito a ser realizado para que de fato a temática seja incorporada
amplamente aos currículos escolares. E não tem como haver êxito nessa proposta sem que o
professor disponha de meios para discuti-la com seus alunos. Ou seja, todo esse conjunto de
ideias deve passar, inevitavelmente pelo processo de formação docente.

REFERÊNCIAS
FONTES:
QUESTIONÁRIO APLICADO AOS (ÀS) PROFESSORES (AS)
1. Você tem conhecimento da Lei 10.639/2003? Sim ( ) Não ( )
2. Você considera esta lei importante?
Sim ( ) Não ( ) Porque?
3. Em sua opinião, a referida lei é aplicada nas escolas estaduais do Ceará? Sim ( )
Não ( ) Porque?
4. O ensino de História afro-brasileira é abordado na sua escola?
Sim ( ) Não ( ) Porque?
5. A Secretaria Estadual da Educação e/ou a Crede da sua região oferecem formações
para o ensino de História afro-brasileira?
Sim ( ) Não ( ) Comente a respeito.
6. Você já participou de algum curso de formação sobre a Lei 10.639/2003, ofertada pelo
Estado? Sim ( ) Não ( ) Comente a respeito.
7. Você tem conhecimento de algum plano estadual de educação elaborado com o
objetivo de promover formações voltadas para o ensino de História afro-brasileira?
Sim ( ) Não ( ) Comente a respeito.
8. O que você acha que falta para que a Lei 10.639/2003 seja plenamente aplicada nas
escolas estaduais do Ceará?
9. Você considera que o Livro Didático trata da história e cultura afro-brasileira de forma
adequada?
Sim ( ) Não ( ) Comente a respeito.
10. Você considera que a formação continuada em ensino de História afro-brasileira seja
necessária e/ou importante para a educação?
Sim ( ) Não ( ) Porque?
10

TERMO DE COMPROMISSO
Este questionário destina-se a professores da rede estadual do Ceará, efetivos e/ou
temporários que se disponham de forma exclusivamente voluntária a respondê-lo. O mesmo
será utilizado como fonte para elaboração de um artigo acerca da formação de professores
voltada para o ensino de História afro-brasileira nas escolas estaduais do Ceará, que será
apresentado no XVI Encontro Estadual de História do Ceará, promovido pela Universidade
Federal do Ceará. Adianto que embora alguns dados sejam requisitados, os respondentes não
serão identificados. O referido trabalho poderá ser consultado após publicação nos anais do
evento.
1. Qual sua formação acadêmica?
2. Atualmente, qual a disciplina que você leciona?
3. Você leciona em quais turmas?
4. Qual seu vínculo com o estado?

BIBLIOGRAFIA:
ABREU, M; MATTOS, H. M. Em torno das Diretrizes curriculares nacionais para a educação
das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro- brasileira e africana: uma
conversa com historiadores. Estudos Históricos, Rio de janeiro, v. 21, n. 41, p. 5-20, jan./jun.
2008.
ALBERTI, Verena. Algumas estratégias para o ensino de história e cultura Afro- Brasileira
In: PEREIRA, Amílcar Araújo; MONTEIRO, Ana Maria. (Orgs). Ensino de história e
culturas Afro-Brasileira e Indígenas. Rio de Janeiro: Pallas, 2013 p.27-55.
FERNANDES, J. R. O. Ensino de História e Diversidade Cultural: Desafios e Possibilidades.
Cad. Cedes, Campinas, vol. 25, n. 67, p. 378-388, set./dez. 2005.
FONSECA, Selva. Didática e prática de ensino de história: Experiências, reflexões e
aprendizados. Campinas, SP: Papirus, 2003. (Coleção Magistério: Formação e Trabalho
Pedagógico).
SILVA, M; FONSECA, S. G. Ensinar História no século XXI: em busca do tempo entendido.
— 4ª ed. — Campinas: Papirus, 2012.
10

A PARTICIPAÇÃO INDÍGENA NA FORMAÇÃO SOCIAL DO CEARÁ COLONIAL:


UM DEBATE SOBRE ENSINO DE HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA

Antonio Edgley Furtado Sousa1


Raimundo Nonato Rodrigues de Souza2

Resumo: Olhar para o Ceará Colonial, é paralelamente, encarar uma realidade de violência
institucionalizada, pois as relações entre os fazendeiros, coroa portuguesa e as populações
indígenas desse espaço foram marcadas por conflitos e imposições. No entanto não podemos
cometer o erro de achar que os indígenas foram agentes passivos nesse processo, muito pelo
contrário, os grupos étnicos tentaram dentro de suas possibilidades, resistir a essa violência e
protagonizarem também a formação social do Ceará. Juntamente com essa abordagem, o
presente artigo procura compreender como essas questões chegam as salas de aula do ensino
básico, suas possibilidades e perspectivas.
Palavras-chave: Ceará Colonial. Indígenas. Ensino.

Não é difícil na nossa prática docente e no próprio caminhar do nosso cotidiano nos
depararmos com situações que reforçam os estereótipos construídos e reproduzidos em torno
dos povos indígenas. Tais situações que posteriormente serão exemplificadas fazem-nos
pensar na nossa condição de professores de História e também em qual História chegou e está
chegando em sala de aula. Partindo dessas questões em especial, a presente pesquisa pretende
analisar a presença e atuação dos grupos indígenas no Ceará colonial e concomitante perceber
como essa abordagem chega em sala de aula.
Faz-se necessário destacar nesse primeiro momento que a proposta desta pesquisa se
encontra em estágio incipiente e que, como requer o trabalho da nova historiografia a qual nos
comprometemos, a bibliografia aqui usada precisa ser relida e trilida, deve-se estimular ainda
mais o trabalho de campo com as fontes para que assim novas problematizações surjam nesse
processo. A nova historiografia mencionada em linhas anteriores diz respeito a uma série de
estudos e novas abordagens em torno da temática indígena que ganharam força no Brasil a
partir das últimas décadas do século XX e que servem de base para esta escrita.
Entender uma sociedade especifica, um espaço determinado geograficamente em um
recorte temporal estabelecido não é uma das tarefas mais fáceis, muito pelo contrário, mas é
esse o nosso oficio enquanto historiadores. Dessa maneira é válido destacar que toda e

1
Autor, Graduando do Curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual Vale do Acaraú,
edgley_furtado@hotmail.com
2
Orientador, Professor da Disciplina de História do Ceará I do Curso de História da Universidade Estadual Vale
do Acaraú, raisouza2013@hotmail.com
10

qualquer produção é construída coletivamente, nesse caso, a construção se dá por meio da


leitura teórica autores que contribuíram para o entendimento dessa temática e desse espaço-
tempo selecionado. Destaco aqui Jhon Manuel Monteiro e Maria Regina Celestino de
Almeida que possibilitaram uma compreensão ampla da atuação indígena no Brasil e
especificamente no Nordeste. A compreensão da Capitania do Ceará no período colonial foi
possível a partir da leitura de Francisco José Pinheiro, João Paulo Peixoto e Lígio de Oliveira
Maia. Como o presente artigo também busca perceber essas abordagens no ensino básico,
utilizamos Giovani José da Silva que trata dessa temática.
Através da leitura dos autores acima mencionados é possível redimensionar o nosso
olhar para a presente pesquisa e interpretar as fontes que aqui servem como objeto de análise,
as fontes dizem respeito a alguns relatos produzidos por viajantes que estiveram na capitania
do Ceará durante o período colonial, entre eles destacamos o de Henry Koster e o de Luiz
Barba Alado de Menezes. Tabelas relativas a ocupação da capitania tanto no período em
estudo quanto nos dias de hoje são importantes fontes que serão aqui trabalhadas.
Os povos indígenas que protagonizam essa pesquisa não devem ser entendidos, como
bem nos diz Costa como “objeto analítico, pronto, acabado, homogêneo nem de forma
definida, mas como sujeitos diversos em constate construção”.3

A CAPITANIA DO CEARÁ: DISCURSOS E REPRESENTAÇÕES


É muito recorrente a associação da História com eventos datados, essa imposição que
muitas vezes é alimentada na própria cultura escolar já não encontra mais sustentação
nenhuma se levarmos em conta os processos históricos. Sendo assim, devemos entender 1500
como o ano de chegada dos portugueses em território posteriormente denominado de Brasil e
não como o ano de ocupação total do território que hoje compreende o nosso país.
Durante os três primeiros séculos, pelo menos, boa parte do território brasileiro ainda
não estava ocupado por portugueses, somente por grupos indígenas nativos. Com o Ceará não
foi diferente, a partir do século XVII e mais especificamente na segunda metade, que se
iniciou o processo de construção de vilas neste território. Essa ocupação “tardia” refletiu, e
muito, na visão deturpada do outro em relação a este espaço e na própria atuação da coroa
portuguesa, no que diz respeito as ações de políticas públicas na capitania.
O que se pretende primordialmente nesse momento é perceber como se estruturava a
capitania do Ceará na segunda metade do século XVIII, a seleção desse recorte temporal vai

3
COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812- 1820) –
Teresina - EDUFPI, 2015. p. 31
10

de encontro ao estudo dos autores que também tratam desse recorte e das fontes que serão
aqui problematizadas, produzidas no período em questão.
Como já mencionado nos parágrafos introdutórios dessa pesquisa, parte do objeto de
estudo consiste em relatos produzidos por viajantes que passaram por essas terras hoje
compreendida como Ceará e que deixaram registros sobre economia, terra, populações
nativas, seca, política etc. Como a tentativa aqui é fugir da visão objetiva, crua e superficial da
História, buscaremos traçar uma análise dos discursos presentes nessas fontes. Dessa maneira,
procuraremos entender a representação simbólica construída em torno desse Ceará colonial.
É importante entendermos nesse primeiro momento a sociedade da capitania cearense
e como tal estava organizada nesse território, sobre isso nos diz Pinheiro:

Aqui se constituiu uma parcela que representava por volta de 10% da população,
que eram os fazendeiros, criadores de gado que detinham praticamente o monopólio
da terra (...). Na outra ponta, estava uma parcela quase equivalente composta de
escravos, inicialmente predominantemente de origem indígena e, posteriormente
(...) com africano e seus descendentes. O terceiro grupo social, composto por
despossuídos. 4

Essas informações, que são essenciais para compreendermos este espaço estão
presentes, em grande maioria, nos documentos produzidos pela coroa e também nos relatos
que serão aqui tratados.
Como já mencionado, a constituição das primeiras vilas aconteceu tardiamente na
capitania, esse provavelmente é um dos principais motivos para que a visão de atraso fosse
tão associada ao Ceará durante o período colonial. Constata-se isso a partir dos escritos
produzidos, que de maneira geral, indicavam que a região era um local de miséria e perigo
eminente, não só produzidos pelos fenômenos naturais como a seca, mas também pelos
decadentes habitantes que aqui viviam, especialmente os indígenas.
O relato de Henry Koster vai de encontro a este discurso de um espaço miserável. Sua
principal obra intitulada “Viagens ao Nordeste do Brasil” 5 se configuram como um tesouro
para entendemos essas construções discursivas do Ceará colonial. Koster foi um comerciante
inglês que viajou o nordeste do Brasil nos primeiros anos do século XIX e que passou pelo
Ceará mais precisamente em 1810. Seus escritos sobre tudo que viu e viveu em terras
nordestinas foram publicados em forma de livro no ano de 1816, intitulado “Travels in

4
4 PINHEIRO. Francisco José. “Um perfil da formação social cearense.” In: Notas sobre a formação social do
Ceará (1680-1820). Fortaleza: Fundação Ana Lima, 2008. p. 21
5
5 KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro / São Paulo / Fortaleza. ABC, 2003.
10

Brazil”. O acesso ao conteúdo presente no relato só chegou até nós em 1940 com a tradução
obra para o português realizada por Câmara Cascudo.
Koster constrói uma imagem de Ceará a partir de suas vivências e é válido destacar
que essa construção faz parte de uma seleção do mesmo e de seus interesses. “Pobreza de solo
em que esta vila está situada”6 é como define Koster a respeito da localização da Vila de
Fortaleza, que apesar de possuir prédios públicos recém construídos e uma tentativa por parte
do governo local de “limpar” o espaço, ainda assim está inserida em um semiárido severo, que
deixa em primeiro plano a imagem dos flagelados e da desolação provocada pelas constates
secas que acometem o território.
A respeito da violência presente neste território tanto o relato de Koster como os
demais a serem apresentados enfatizam os grupos sociais como um dos principais motivos
para a situação. Os ricos fazendeiros e criadores de gado do Ceará dominavam de fato o
controle sobre o território, tendo mais influência inclusive que a própria coroa portuguesa. O
uso da força era o principal instrumento utilizado por estes, principalmente em relação aos
povos nativos que, na tentativa de resistirem a ocupação de suas terras, eram maltratados e
mortos. Situação esta que nem o governo tinha controle, visto que até mesmo representantes
oficias da coroa tinham medo destes senhores, o que acabava por abrir caminho para a
impunidade e a ausência quase que total de políticas públicas.
Esse cenário de violência é evidenciado também por Pinheiro em seu clássico “Notas
sobre a formação social do Ceará (1690 - 1820)” que no primeiro capitulo faz um apanhado
da estrutura social do Ceará e também destaca a violência cometida pelos grupos senhoriais
contra indígenas. Para ele, a violência deve ser encarada como um elemento constitutivo da
ocupação portuguesa na capitania, visto que a “constituição do espaço cearense sob o domínio
português foi marcada pelo conflito entre os povos indígenas e os colonos na disputa pelo
território da capitania”7
Em relação ao descaso por parte do poder real e a impunidade que se firmava no
território cearense, Koster faz uma descrição de como essa realidade estava presente na
sociedade da capitania, quando trata a respeito da justiça ele relata “Um inocente é punido se
interessar a um rico fazendeiro enquanto um assassino escapará se tiver a proteção de um
patrão poderoso”8. O relato complementa o que foi apresentado anteriormente por Pinheiro,
sobre o jogo de forças presente no sertão.

6
6 KOSTER, 2003. p. 173.
7
PINHEIRO, 2008, p. 22
8
KOSTER, 2003, p. 177.
11

Além dessa violência escancarada faze parte da realidade do Ceará, outros


mecanismos também violentos eram utilizados com os nativos do território. Para a expansão
agrária eram travadas guerras violentas contra as populações que ocupavam as terras de
interesse dos latifundiários. Essa violência era institucionalizada e estimulada pelo governo
português, que via nos indígenas uma possível ameaça ao plano de expansão dos domínios. A
institucionalização da violência se dava pelos termos que passaram a ser adotados no que diz
respeito aos nativos e também nas solicitações de recursos, sejam eles em dinheiro ou
armamento, para o combate aos indígenas, as famosas “guerras- justas”
Um novo vocabulário surgiu para referir-se aos povos que já habitavam o território,
são “bárbaros”, “infestos”. Nos processos de aldeamentos que serão enfatizados no próximo
tópico, muitos grupos eram agrupados no mesmo território e passavam por um processo de
homogeneização, o que acabava por perder nomes importantes como os da etnia, os rituais.
Esse processo resultou em consequências precisas pois:

Tornou bem difícil identificar, em termos quantitativos e geográficos, os grupos


indígenas que lá habitavam. Além disso o fato de a documentação oitocentista ter
deixado de utilizar etnômios ancestrais dos grupos nativos constitui-se como um
obstáculo a mais ao trabalho do pesquisador que visa analisar esses povos a partir
de suas organizações étnicas. 9

A prática de expulsão dos indígenas de seus locais também era justificada como uma
“limpeza de terra”. Essas informações encontram-se, em grande maioria, nas cartas de
sesmarias que eram enviadas para o rei solicitando o direito formal da terra ocupada. A
própria conquista ou não de uma posse de sesmaria estava ligada a atuação desse sesmeiro nos
conflitos exitosos contra os nativos.
Obviamente muito mais poderia ser aqui analisado no que diz respeito ao espaço
social cearense do período colonial. Porém, como já mencionado no tópico introdutório, está é
uma pesquisa em estágio inicial e que nesse momento tem por objetivo apresentar um
panorama geral do discurso construído a respeito do Ceará colonial e da atuação das
populações indígenas nesse espaço.

A PARTICIPAÇÃO DOS INDÍGENAS NA FORMAÇÃO SOCIAL DO CEARÁ


A respeito das populações indígenas, que nesse momento é de nosso maior interesse,
faz-se necessário compreender melhor quem eram esses povos, quais etnias viviam e

9
COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no Ceará (1812- 1820) –
Teresina - EDUFPI, 2015. p. 31
11

conviviam na capitania. Por conta da falta de produção no período em questão por parte dos
próprios índios, muitas dessas perguntas continuam sem informações concretas para nós, mas
é possível dimensionarmos a presença indígena no Ceará precisamente a partir da primeira
formação dos aldeamentos compreendidos entre os séculos XVI e XVIII.
No decorrer desses três séculos, nove aldeamentos foram constituídos nesse território,
estes objetivavam a reunião do maior número de nativos que estivesses “espalhados” pelos
arredores da aldeia, para passarem por um processo de domação, catequização e alienação. O
quadro abaixo nos apresenta justamente o nome desses aldeamentos construídos no território,
as áreas de referência que norteiam nossa localização espacial do estado e os grupos que
compunham essas aldeias.

Fonte: DANTAS, Beatriz, et. Al. “Os povos indígenas no Nordeste brasileiro: um esboço
histórico. In: CUNHA, Manuela C. da. História dos Índios no Brasil. p. 446.

Esses dados são essenciais para já, nesse primeiro momento de abordagem sobre os
povos indígenas especificamente, percebermos as diversas etnias presentes no estado do
Ceará durante o período colonial e que passaram por processos de “invisibilização”, medida
essa que fazia parte do projeto português de domínio do território.
Retomando ao relatório de Koster, é valido fazer uma ressalva pois seu relato se
configura como um dos mais importantes escritos a respeito dos indígenas do Ceará nesse
período em estudo, colonial. É preciso cautela nesse momento, pois mesmo sendo um
documento de alta relevância, ele não deixa de ser um processo de seleção de alguém, para
alguém, de uma ótica especifica e de com interesses de quem o escreve.
Koster se detém mais aos aspectos do cotidiano dos indígenas, por essa questão em
uma parte dos seus relatos ele menciona que há muito o que se dizer de bem dos indígenas,
que eram povos dóceis e que raramente se envolviam em conflitos sangrentos entre si.
11

Segundo Koster mesmo vivendo agora em aldeamentos coletivos, alguns grupos “conservam
em segredo seus ritos bárbaros, prestando adoração ao maracá”.
Esse relato também precisa ser problematizado, o uso do termo barbáros no relato
pode ser compreendido a partir da constatação do lugar de fala de Koster, ele é um europeu
em terras cearenses, muito provavelmente já aporta nesse território com seus preconceitos
estabelecidos acerca dos nativos e para a época, de fato tinha-se a ideia de que os indígenas
eram bárbaros, por mais que pra gente hoje pareça tão obvio que a História não é dessa forma,
ou pelo menos não deve ser.
Nessa pequena fala de Koster mencionada anteriormente é possível perceber que,
mesmo diante das situações de violência, imposição e controle nas aldeias, algumas medidas
eram tomadas pelos grupos para burlar esse sistema, como a prática de seus ritos mesmo sob
proibição. Ou seja, em momento algum a atuação indígena deve ser entendida como algo
passivo, eles atuavam conforme seus interesses dentro das possiblidades que lhes cabiam.
Apoiada nessa nova historiografia, esta pesquisa tenta demonstrar justamente a
participação efetiva dos indígenas na construção do Estado Nacional, especificamente no
período colonial.
O relato de Koster também nos dá uma dimensão do posicionamento desses indígenas
frente as imposições dos senhores fazendeiros. Pelo contrário do que pensamos a respeito
desses povos, estes tentavam a todo custo fugir da submissão imposta, rejeitando muitas vezes
um tratamento formal com os fazendeiros. Em outro trecho do seu relato isso fica explicito:

Um indígena nunca está disposto a chamar o patrão, que o haja alugado, por
senhor, embora de uso comum dos brancos entre si quando fala, e por todos os
homens libres da região. (...) recusam dar por cortesia o que outrora lhe seria
exigido pela lei.10

Acompanhada desta situação, consequentemente são recorrentes as fugas de nativos


dos espaços de domínio dos senhores. É comum em documentos produzidos pelo governo o
registro das fugas individuais e coletivas dos indígenas das aldeias.
No trato com a terra, que era uma das principais motivações para as guerras justas
provocadas pelos colonos, os indígenas possuíam uma posição bem definida, defendiam e
lutavam por suas terras não por um fator econômico, mas por questões de identidade. Em
“Mundos em confronto: povos indígenas e europeus em disputa pelo território” Pinheiro faz
questão de destacar que

10
KOSTER, 2003, p. 178
11

O território tinha significado diferente para os povos indígenas e para os colonos.


Para os últimos a terra era sobretudo um meio de produção, enquanto que para os
povos indígenas o território constituía-se em valor simbólico através do qual se
definia a própria identidade. 11

A partir desses apontamentos percebemos que a formação social da capitania do Ceará


contou sim com uma ampla participação indígena, estes que devem ser entendidos por nós
como agentes ativos que resistiram em todas as suas possibilidades. Muitas vezes essa
resistência se dava pelo confronto físico, através de brigas armadas ou não e também através
da prática de costumes próprios dentro dos territórios dos aldeamentos. Dialetos nativos
foram preservados, bem como muitas outras práticas culturais de ritos e crenças foram
sincretizados com a nova ordem imposta.

A TEMÁTICA INDÍGENA EM SALA DE AULA: ABORDAGENS,


POSSIBILIDADES E PERSPECTIVAS
O século XX é marcadamente o período em que diversos, centenas de grupos
indígenas reaparecem no cenário nacional. E é nesse mesmo momento que o debate em torno
da temática indígena toma folego, sendo impulsionada por uma leva de historiadores apoiados
em uma historiografia renovada. A produção acerca dessa questão também passa a ser
estimulada em várias universidades e centros de pesquisa do país e é nesse momento que a
História como disciplina do ensino básico deve se posicionar. A grande questão é, como levar
o material que vem sendo produzido acerca da atuação indígena no Brasil, e para nós, mais
precisamente no Ceará?
Responder a indagação anterior é sem dúvidas um processo desafiador, até porque
essa resposta deve vir em forma de prática, prática cotidiana e prática docente. Não podemos
permanecer no equívoco de usar a figura do índio como um personagem folclórico, pintar a
cara de alunos do ensino infantil e fundamental com desenhos e acessórios indígenas no 21 de
abril, Dia do Índio. Essa mudança tão almejada no ensino brasileiro como um todo só é
possível através da atualização de formações docentes, para que o material que está sendo
produzido na academia chegue também até as salas de aula e nos espaços da comunidade de
maneira geral.
Alguns dados são pertinentes para percebermos como essa abordagem é necessária,
com o censo de 2010 constatou-se que no Brasil 896,9 mil pessoas se declaram e auto

11
PINHEIRO, 2008, p. 18
11

reconhecem como indígenas, muito provavelmente esse número já deu outro salto nos últimos
7 anos pois cada vez mais os grupos estão se posicionando e reivindicando seu espaço.
Trazendo essa discussão para nossa realidade, a nível de Ceará, é nítido a importância
dessa temática, não só pelo histórico das cidades cearenses que possuem sua origem vinculada
a história indígena (inclusive nos próprios nomes, a exemplo as cidades da região noroeste do
estado: Reriutaba, Guaraciaba do Norte, Camocim, Jericoacoara), como também pela
presença de indígenas hoje no cenário político-social do Estado. Mais uma vez torna-se
necessário a apresentação de um quadro, dessa vez dos grupos indígenas presentes no estado
reconhecidos pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e de como anda seus processos
administrativos de reconhecimento do espaço físico.

Fonte: http://www.socioambiental.org/

É valido, portanto, todas as tentativas de inserir essa discussão atual dentro das salas
de aula, nas escolas de ensino infantil, fundamental e médio. Nas palavras de Giovani José da
Silva Apreender a respeito dessa riquíssima diversidade étnico e cultural constitui um desafio
permanente para professores e estudantes da educação básica no Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Ceará colonial e a atuação indígena nesse espaço devem ser entendidos por nós
como uma importante fonte de pesquisa. As diversas fontes como relatos, inventários,
documentos governamentais nos oferecem informações relevantes para o nosso trabalho, mas
antes de tudo é preciso perceber os ditos e não ditos nas entrelinhas, é lá que a maioria desses
grupos étnicos se posicionam.
Portanto não podemos entender essas considerações como uma conclusão, longe disso,
esse estudo incipiente abre portas para percebermos a atuação indígena no âmbito do
11

cotidiano, religioso, político, econômico e cultural e quem sabe servir como objeto de estudo
posteriormente.
Os indígenas foram e continuam sendo protagonistas de sua própria história e a forte
presença desses agentes no Ceará reforça ainda mais a importância de os conhecermos
melhor, a partir de suas próprias vivencias de vida e manifestações culturais.
Os relatos de Koster foram fundamentais para entendermos o Ceará colonial, mais
especificamente no início do século XIX. Uma gama de informações não pôde ser trazida a
está escrita por motivos de limitações, mas “Viagens ao Nordeste do Brasil” se configura uma
potente fonte histórica que precisa ser lida e relida, para que percebamos ainda mais a fala dos
indígenas nas entrelinhas.
A dimensão histórico-social que Pinheiro nos apresenta é fundamental para a
compreensão desse espaço que ora é representado como espaço de miséria, ora como espaço
de riquezas naturais, contraste que de fato merecem problematização.
A breve apresentação em torno do ensino busca refletir sobre como todas essas
discussões presentes em sala de aula de universidades e em publicações acadêmicas estão
chegando, se é que chegam no ensino básico.
A proposta é uma provocação para que os leitores dessa escrita encerrem essas últimas
linhas repensando na forma como vemos os indígenas do passado e como os encaramos hoje,
como eles estão presentes nos livros didáticos e como devem ser percebidos a partir de agora.

REFERÊNCIAS
FONTES
Tabela - Aldeamentos no Ceará Colonial disponível em DANTAS, Beatriz, et. Al. “Os povos
indígenas no Nordeste brasileiro: um esboço histórico. In: CUNHA, Manuela C. da. História
dos Índios no Brasil.
Tabela - Povos Indígenas no Ceará disponível em http://www.socioambiental.org

BIBLIOGRAFIA
COSTA, João Paulo Peixoto. Disciplina e invenção: civilização e cotidiano indígena no
Ceará (1812-1820) – Teresina - EDUFPI, 2015.
PINHEIRO. Francisco José. “Um perfil da formação social cearense.” In: Notas sobre a
formação social do Ceará (1680-1820). Fortaleza: Fundação Ana Lima, 2008.
KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro / São Paulo / Fortaleza.
ABC, 2003.
11

ENTRE A ECONOMIA E A DISTINÇÃO:


A CRISE ECONÔMICA E SOCIAL BRASILEIRA NAS PUBLICIDADES DA
REVISTA VEJA (1979-1989)

Beneângelo Soares Chagas1

Resumo: Os anos de 1980 ficaram marcados, no Brasil e em muitos países da América


Latina, África e Ásia ocidental como um período de fortes crises inflacionárias e grandes
recessões econômicas. Nessa década, a economia brasileira entrou em recessão e a
desigualdade social se agravou. Como a expressão publicitária é marcada por um discurso
otimista, que encontra em momentos de prosperidade econômica mais oportunidades para
interagir socialmente, visa-se entender como, em um período de crise, as publicidades da Veja
traduziram o tempo, os conflitos, os anseios e expectativas do cotidiano. Sustenta-se até aqui a
hipótese de que a publicidade dos anos 1980 foi construída principalmente sob os “conceitos”
de economia e de distinção. Entretanto, a partir dela, o que isso significa e o que mais se pode
dizer do Brasil da chamada “década perdida”?
Palavras-chave: Ditadura Militar. Crise brasileira. Publicidade.

Qualquer um que, por curiosidade ou necessidade de análise, resolver folhear as


páginas da revista Veja1 de fins da década de 1970 e da maior parte dos anos seguintes se
deparará com uma contradição, se não inédita, no mínimo curiosa: enquanto muitas páginas
da revista são dedicadas a noticiar as mazelas nacionais e os malefícios que a crise econômica
e a alta inflação causavam aos brasileiros naqueles anos, outras tantas – às vezes em maior
número! – ofertavam, em anúncios publicitários muito diversos e até divertidos, soluções para
os problemas do cotidiano, no limite saídas para a própria crise ali mesmo tão alardeada.
Em edição do dia 12 de outubro de 1983, a Veja, em uma publicidade que ocupa
integralmente duas páginas iniciais, apresenta aos seus leitores, em tom jocoso, uma daquelas
soluções: “Vista-se na Riachuelo e dê uma banana para a crise 2”. Na parte central do anúncio,
um homem bem trajado segura uma maleta de couro e encara o leitor com seu olhar sisudo:
“Mal humorado, sempre com cara de má notícia, esse senhor atende pelo nome de ‘Seu’
Crise. Para ele tudo é supérfluo. Inclusive bom gosto e felicidade.” Por não ser praxe dos
anúncios publicitários a ausência de felicidade e menos ainda de bom gosto, uma
interpretação ligeira levaria a crer no possível fracasso desse anúncio. Todavia, ao
considerarmos que “o discurso publicitário frequentemente utiliza provérbios, clichês,
palavras de ordem repetitiva e outros textos já conhecidos pelo ‘público-alvo’ e, introduzindo
pequenas modificações, ressemantizam esses elementos” (GASTALDO, 2012: 22) em outro

1
2
11

contexto, podemos sugerir as principais nuanças do citado anúncio: consumir – na Riachuelo


– é enfrentar e provar superar a crise econômica que tanto se noticia, conquanto é também
sentir a felicidade e o otimismo que o “Seu Crise” não transmite; e é, principalmente,
distinguir-se daqueles que apenas leem as publicidades, incluindo-se no (seleto) rol dos que
leem e consomem as mercadorias e o estilo de vida anunciados.
O anúncio trazido acima é apenas um entre os oitenta e quatro que naquele número
ocuparam as cento e quarenta e oito páginas da revista. Ali, a dividir espaço com aquela
verdadeira coleção de mercadorias das mais diversas, se lia a pobreza de milhões de
brasileiros aumentada em virtude dos saltos constantes nos preços de víveres básicos àquela
altura cada vez mais escassos no país, como o leite e a carne bovina; uma pobreza que
contrasta com os carros, whiskies, cigarros, sapatos, pacotes de viagens internacionais,
seguros de vida, joias em ouro e até diamantes.
Ao longo de muitos dos mais de quinhentos números da revista que foram às bancas e
às casas dos assinantes no decorrer da década de 1980, anos onde “o isolamento do governo
se aprofundaria cada vez mais, em grande parte devido à situação econômica do país, que
piorava a cada ano” (NAPOLITANO, 1998: 87), a Veja noticiou os problemas brasileiros e
simultaneamente anunciou não poucas soluções para aqueles, quase sempre na forma de
mercadorias, majoritariamente em seus anúncios publicitários coloridos e alegres.
Apresentada em certo imaginário como a “década perdida”, os anos de 1980 ficaram
marcados no Brasil como uma fase não apenas de contestação, mas também de desilusão e
ansiedade, onde algumas hipóteses com respeito ao comportamento da economia brasileira
indicavam que “se chegaria ao final do decênio com agravados problemas sociais, em um país
semidevastado, como que varrido por uma peste ou assolado por uma guerra” (FURTADO,
1984: 9).
Naqueles anos de crise, muitos milhões de brasileiros conviveram com o desemprego,
com a inflação e com arrochos salariais, em grande parte devido aos seguidos insucessos dos
vários planos econômicos que então objetivavam conter o crescimento da dívida pública ou
mesmo amortizar os seus altíssimos juros. Segundo o historiador Francisco Carlos Teixeira da
Silva (2003), naqueles dias o Brasil se viu envolvido em sua maior crise econômico-social,
apesar dos primeiros passos em direção à abertura política com a Lei da Anistia já em 1979, a
elaboração de uma nova Constituição (1988) e, finalmente, eleição direta para a presidência
da República (1989), há 29 anos reivindicada e reclamada por boa parcela da população. De
acordo com esse historiador (SILVA, 2003: 253-254), nesse período,
11

Todo um ciclo de desenvolvimento econômico encerrava-se, com o modelo


econômico esgotado. A crise do milagre econômico, largamente baseado na
repressão sindical, no arrocho salarial e na repressão política, arrastava consigo a
credibilidade dos militares e as bases sociais de aceitação da ditadura, tal como
fora praticada durante o chamado Milagre Brasileiro.

É importante destacar, todavia, que esse cenário de crise guardava grande


complexidade, tendo em vista o seu alcance no globo. Não podemos dissociar esse complexo
período da história brasileira da crise financeira internacional da década de 1970, culminada
com o bloqueio petrolífero levado a cabo pelos países árabes formadores da Organização dos
Países Exportadores de Petróleo (OPEP) em outubro de 1973. Agravada em 1979 com o
segundo choque do petróleo, a crise viu seu ápice em setembro de 1982, com a moratória
mexicana, quando, segundo Nicolau Sevcenko (2001), muitos países – entre eles o Brasil –
recorreram ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao Banco Mundial (BM) em busca de
socorro imediato. Em vez de um alívio ao endividamento, esses países receberam
(SEVCENKO, 2001: 53),

Um grosso pacote de medidas de “reajuste estrutural”(...). Esse receituário


impunha medidas como a desregulamentação da economia e das finanças, a
derrubada das barreiras alfandegárias e comerciais, a drástica redução dos gastos
públicos e serviços sociais, a privatização das empresas estatais e a eliminação de
garantias e direitos trabalhistas, inclusive com o enfraquecimento dos sindicatos, de
modo a permitir demissões em massa e tornar o mercado de mão-de-obra mais
barato, mais dócil e mais flexível.

A crise afetava a muitos e figurava em inúmeras páginas, como já dissemos. A


publicidade, entretanto, também a trouxe às páginas, com outra conotação, a partir de
interesses outros. Em 1986, por exemplo, o próprio presidente José Sarney foi envolvido em
um anúncio, em um ano em que sua política econômica provocou uma breve e visível
esperança nos brasileiros: “Vick Vaporub. O Brasil respira aliviado. Obrigado, Presidente
Sarney. As medidas econômicas implantadas pelo seu governo desobstruíram as vias para o
pleno desenvolvimento de nosso país. Conte conosco.3” Neste interessante anúncio que
ocupou uma página inteira da revista, notamos a ressignificação feita pela publicidade daquele
momento de esperança vivido após o Plano Cruzado, quando, por alguns meses, o Brasil
pareceu entrar novamente em rumos certos (RODRIGUES, 1994: 47).
Na anteriormente trazida Veja que foi às bancas em outubro de 1983, há um destacado
lugar para “a nova receita do governo [Figueiredo] para conter os salários” e para tratar do
Nordeste, onde a “adoção ameniza o drama dos flagelados” (notícias em preto e branco, como

3
Veja. 19 de março de 1986. P. 78. Acervo do NUDOC (UFC).
11

a grande maioria), mas os maiores espaços e as cores mais vibrantes são para o “Chevette 84.
Preparado para vencer”, para o “Ford Del Rey Scala 84. O máximo de requinte para quem
vive na era da tecnologia” e até para a rede de supermercados Carrefour, onde um saco de
compras sobrecarregado de alimentos diversos informa que “este ainda é o melhor pacote
contra a inflação.” Esse embate de realidades, essa contradição latente entre as notícias sobre
a pobreza e os anúncios com a pujança pode ser, de início, compreendido porque o discurso
publicitário é “livre de contratos enunciativos que o obriguem a ser ‘fiel aos fatos’ ou a
‘transmitir informações’...[e também] não possui o poder de definição da realidade de outros
gêneros, como o jornalismo, por exemplo” (GASTALDO, 2012: 20). Entretanto, essa
diferença de tons entre as notícias e as publicidades ocorre porque estas últimas apresentam,
quase via de regra, “um mundo sem conflitos, sem problemas que não sejam resolvidos
imediatamente (por intermédio do produto, é claro), uma espécie de ‘mundo ideal’”
(GASTALDO, 2012: 24). Acreditamos, todavia, que além de um mundo ideal e de muitas
mercadorias, a publicidade pode nos dizer ainda mais. Bem mais.
A publicidade pode nos dizer bastante sobre a cultura de uma época, por exemplo.
Portanto, ela, a publicidade, enquanto fonte de pesquisa ou mesmo como objeto de estudo,
pode ser de grande valia para historiadores, antropólogos e sociólogos, dentre outros.
Obviamente, esse pressuposto parte da premissa de que a função do discurso publicitário está
para além da venda de mercadorias e serviços ou da promoção de marcas e de lojas. Significa
acreditar que a publicidade informa e revela maneiras de ser e estar na sociedade: seus
anúncios expressam imaginários sociais, valores morais, anseios e expectativas de uma época.
Nesta premissa de que as publicidades têm muito a nos dizer, a depender das questões
que na análise a elas lançarmos, faz-se necessário perceber e problematizar, à guisa de
exemplo, por que, em uma revista Manchete do final da década de 1960, lia-se em um
anúncio “Na câmara de torturas o TV Philips 550 resistiu a tudo”, ou por que razão o sabão
Odd fazia “guerrilhas contra a sujeira”, e ainda, talvez bem mais, por que as toalhas Artex
afirmavam com tanta ênfase que “Artex continua sua política: contra a tradição e a favor da
família” (CARTOCE, 2017: 1). Claro está que, nessas publicidades, há uma ressignificação
de termos e expressões que, naquele tempo, eram parte de todo um imaginário social4

4
Ele [o imaginário social] se traduz como sistema de ideias, de signos e de associações indissoluvelmente ligado
aos modos de comportamento e de comunicação. E a análise dos imaginários sociais ganha novos possíveis
quando se começa a cotejá-los com os interesses sociais, com as estratégias de grupo, a autoridade do discurso, a
sua eficácia em termos de uma dominação simbólica, enfim, com as relações entre poder e representação.”
CAPELATO, Maria Helena R., Eliana R. F. Representação política: O reconhecimento de um conceito na
historiografia brasileira. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir. (Orgs) Representações:
contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas/SP: Papirus Editora, 2000, p. 229
12

marcado por torturas, repressão às guerrilhas e da busca por uma suposta defesa aos valores
da família. O que dizer, também, da marca de roupas Le Mazelle, que em 1968 anunciou,
igualmente na Manchete: “Não espalhem...Le Mazelle está preparando um golpe de estado na
moda brasileira com sua linha 68.” Anos de ditadura, anos pós-golpe...O uso da expressão em
um anúncio de revista de grande tiragem e de circulação nacional é revelador de pelo menos
uma marca: a palavra golpe, apesar do governo ditatorial e dos seus esforços repressivos por
intermédio de uma forte censura institucionalizada e moral para promover a expressão
revolução, estava mais presente no cotidiano do que os militares poderiam querer. E os
publicitários e a agência que fizeram circular esse anúncio sabiam bem disso.
Não se trata de afirmar se os publicitários estavam ou não coligados com os interesses
dos ditadores brasileiros. Isso não é, para nós, a maior questão. Porque já é lugar-comum entre
comunicólogos e historiadores da publicidade que a maior parte das grandes agências
nacionais enriqueceu às custas das vultosas contas governamentais, e que a publicidade
brasileira tornou-se competitiva mundialmente exatamente no período ditatorial brasileiro
(ARRUDA, 2004: 161). Ao estudar os ideais otimistas propagados pela ditadura militar
brasileira à época do chamado “milagre econômico”, Carlos Fico aponta uma das
especificidades da propaganda governamental do período (FICO, 1997: 118),

É nesse contexto que se entende melhor a opção pela propaganda diferenciada, que
não usava sinais típicos do poder e da política, nem queria parecer oficial ou
doutrinária. Mais ainda, é também em função dessa busca de um discurso
construtor da história que se compreende a utilização do “material histórico” a que
se aludiu: para sublinhar o caráter pretensamente fundamentador e notável da
época em que se vivia era necessário lançar mão de imagens, palavras e gestos que
estivessem enraizados na própria “memória nacional”. Foi o que se fez.

Foi aí que palavras como “amor”, “união”, “solidariedade”, entre outras, passaram a
compor o panteão dos “valores nacionais”. Tudo, supostamente, pelo “Brasil grande”, o
Brasil, “um país que vai para frente” (FICO, 1997: 129).
Muitos outros casos poderiam ser para cá trazidos. O que deve ficar claro é que, tanto
de um lado quanto de outro, ditadura ou oposição, havia a mobilização, via propaganda ou
publicidade, de valores, de expectativas, no limite de expressões que naqueles tempos
estavam em maior voga no cotidiano, nos diferentes âmbitos da cultura. E disto tudo se pode
valer o historiador para problematizar e compreender as disputas travadas cotidianamente,
para as quais a publicidade é uma interessante via de acesso.
12

Mas, a propósito, como a publicidade interage com o cotidiano? Ou melhor, como o


historiador pode, via publicidade, ter acesso a traços de cotidianos outros? É que, como
ressalta o historiador Jailson Pereira da Silva (SILVA, 2010: 116),

A publicidade percorre os acontecimentos que explodem no cotidiano


transformando-os em anúncios de oportunidade – uma copa do mundo de futebol, o
carnaval, a ditadura ou a abertura política – são teses, temas, motes que servem aos
objetivos dos discursos publicitários. Os anúncios de oportunidades são painéis de
fragmentos, como um mural de recados onde se encontram informes múltiplos sobre
nossas vivências históricas. As repetições das referências a um determinado evento
ou momento histórico aludem à importância que tal acontecimento tinha para a
época que ocorreu. Como marcas no tempo, as oportunidades dos publicitários
podem balizar a vivência histórica e nos informar sobre o que estava ocorrendo,
exibindo os referenciais que perpetuam os fragmentos dos eventos que explodem no
cotidiano.

A publicidade, pois, lida com fragmentos de um tempo para (re)inseri-los no cotidiano


sob a forma de textos e imagens, em prol de mercadorias e serviços, sob marcas, slogans e
emblemas. Nós, historiadores, devemos estar constantemente atentos para a relação
harmônica ou desarmônica que há entre a imagem e o texto, e mais ainda entre o que liga
esses ao contexto social em que aquele anúncio circula. Pois a linguagem publicitária é repleta
de jogos de palavras, de jargões, de operadores que se ligam ao senso comum e que fazem uso
deste para melhor transmitir as suas mensagens. Nesse sentido, a utilização das expressões
“crise” e “inflação” nos aqui citados anúncios publicitários da Veja de 1983 não é nada
inocente; é antes uma tentativa deliberada de convencer o leitor e transformá-lo em
consumidor, mesmo naqueles dias em que a inflação atingiu 211%, ainda que em um ano
(como quase todos da década!) cujos esforços governamentais para quitar ou amenizar uma
dívida externa de até ali US$ 95 bilhões oneravam e empobreciam a maior parte da população
brasileira (RODRIGUES, 1994: 42).
Destacadamente, a publicidade deve ser vista como um jogo de poder, uma vez que
além de fazer transitar e buscar consolidar interesses particulares (sejam os de uma empresa,
sejam os de um governo, entre outros interesses públicos e privados) em espaços públicos,
para a maior quantidade de interlocutores, é necessário ter poder para fazer a publicidade
existir por si mesma dentro do sistema que a sustenta. Dito de outra forma, a publicidade joga
com poderes, mas igualmente depende de poderes para se fazer jogo. E, jogo do cotidiano,
disputa incessante de sujeitos e de grupos para validar esta ou aquela publicidade, este ou
aquele veículo de comunicação e, principalmente, esta ou aquela mensagem, a publicidade
interessa bastante ao historiador, visto que lida e habita no cotidiano. Pois, “como fenômeno
histórico, a publicidade é atenciosa ao que a circula. Por isso, é ao cotidiano, à vida ordinária
12

que ela dedica a maior parte dos seus esforços” (SILVA, 2010: 117). Assim sendo, esse
reverberar do cotidiano está tanto nos anúncios da Manchete da década de 1960, onde
palavras como “guerrilha”, “família” e “tradição” e expressões como “câmara de torturas”,
quanto na Veja dos anos 1980, anos de predomínio dos termos “crise”, “inflação”, e mais
ainda de “economia”. Portanto, a publicidade nos dá indícios dessas idéias que, nas páginas
passadas das revistas, passavam também naqueles cotidianos.
Mas não olvidemos: a publicidade é também fragmento, é traço e apenas parte de todo
um sistema que tem na produção e no consumo de mercadorias a sua chave- mestra. A
publicidade é, em instância isolada, um meio que levará ao fim máximo do capitalismo: o
consumo de mercadorias. Acerca dessa função da publicidade na sociedade capitalista, o
antropólogo Everardo Rocha, em “Magia e Capitalismo” (ROCHA, 2010: 31), aponta que,

A publicidade retrata, por meio dos símbolos que manipula, uma série de
representações sociais sacralizando momentos do cotidiano. Sua presença contrasta
fortemente com a mentalidade científica e racional da nossa sociedade, pois nela
acreditamos que os animais possam conversar conosco ou que os objetos adquiram
vida. Aí, nesse jogo de representações, o cotidiano se faz vivo, se faz sensação,
emoção, mágica. O discurso publicitário fala sobre o mundo, sua ideologia é uma
forma básica de controle social, categoriza e ordena o universo. Hierarquiza e
classifica produtos e grupos sociais. Faz do consumo um projeto de vida.

Para além de um jogo que opera com símbolos do dia-a-dia do qual fala Everardo, é
preciso enfatizar o aspecto cotidiano da publicidade: ela está no outdoor da avenida, nos
carros que por esta circulam; na televisão, dentro dos programas e entre estes; em cartazes,
jornais e, bem evidentes e menos efêmeros, nas revistas. Nas revistas Veja com as quais
trabalhamos, é imprescindível destacar, a sua presença tem quantidade demasiado superior se
comparada a algumas outras revistas da época5.
Naquelas páginas tão repletas de anúncios, a mercadoria é apresentada sempre como
solução para algo, como que destinada verdadeiramente a um objetivo mais específico dentre
os tantos possíveis: para os que desejassem economizar naqueles tempos de arrocho salarial e
de crise dos combustíveis (NAPOLITANO, 1998: 90-91) “O perfil da economia. Chevette
Hatch 15 km/litro”6, o “FIAT 147 CL. Quanto mais você anda, mais economia você faz”7 ou

5
À guisa de comparação de quantidade dos anúncios, analisamos alguns números de duas concorrentes da Veja
no período aqui estudado, a também semanal Isto é (1976, Editora Três) e a quinzenal Visão (1952-1993, Editora
Vision). Inicialmente, escolhemos os meses de agosto e outubro de 1983. Nestes meses, enquanto as páginas de
Veja apresentaram em média entre 68 e 79 anúncios, a Visão expôs entre 13 a 19 anúncios. A Isto é, por sua vez,
veiculou em suas páginas uma média de 24 a 32 anúncios publicitários.
6
Veja. 18 de junho de 1980. P. 30 e 31. Acervo do NUDOC (UFC).
7
Veja. 25 de novembro de 1981. P. 59. Acervo do NUDOC (UFC
12

quem sabe o “Fusca. Dinheiro aplicado, dinheiro recuperado”8; para aqueles que buscassem
se distinguir através do consumo de certas mercadorias 9 finas, havia desde os “Cigarros St.
Moritz. Uma classe a mais”10 ao“Passat 80. Mais do que um carro, você está conquistando
uma posição”11, passando pelo “Cartão Diners Club. Ter é poder”12; e se tinha ainda uns
poucos lugares variados para quem desejasse as novidades tecnológicas daquela década, como
o “Gol 88. A tecnologia está em alta”13, ou o “Televisor Sharp. Tecnologia é domínio”14,
entre outros. Quer se buscasse tecnologia, mas principalmente distinção ou economia, nas
páginas de Veja variadas soluções se via!
É que, ressaltemos, no sistema publicitário, se vendem soluções, se anunciam
mercadorias, se apresentam estilos de vida. Na publicidade, tudo é mágica. E essa magia se
faz em um sistema onde o grande mágico é a mercadoria. Raymond Williams, em “Cultura e
materialismo” (2011), analisa a formação de uma publicidade enquanto sistema a partir do
caso londrino, com anúncios rústicos se transformando pouco a pouco em refinadas
produções, ao passo que os esparsos investimentos iniciais em publicidade avançam para
vultosas cifras de um sistema bastante complexo e organizado. Salienta Williams que
podemos entender a publicidade como “um sistema mágico organizado para vender pessoas
numa determinada cultura” (WILLIAMS, 2011: 250). Isto é, ao passo que anuncia
mercadorias, a publicidade também propaga estilos de vida. Estes, por sua vez, serão
pretendidos por aqueles que compram a mercadoria, mas que implicitamente estão buscando
aquele estilo de vida prometido. O fracasso perene dessa conquista é o que possibilita o êxito
da publicidade, mas também é o que impulsiona a sua constante renovação. Nos anúncios, é
preciso um incessante lidar com as sensibilidades, com desejos cotidianos, que mudam com o
passar do tempo. Mudam tanto que o “Ford Landau. O carro do presidente”15, que em 1979
foi anunciado por um anúncio da Veja como objeto de desejo, não é mais tão desejado assim.

8
Veja. 14 de fevereiro de 1979. P. 63. Acervo do NUDOC (UFC).
9
BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: Sociologia.
São Paulo: Ática, 1983, p. 82-121. Bourdieu analisa o jogo de poder – especialmente na esfera cultural, em que
as práticas de aquisição interferem até mesmo nos significados das obras e das artes. Ele constata que, nas
sociedades modernas, como a nobreza de sangue não é plenamente reconhecida, o consumo é o lugar
privilegiado de manifestação das distinções e de sua comunicação. De acordo com ele, se, por um lado, essas
sociedades são pautadas pela necessidade de divulgação, na medida em que precisam ampliar o mercado de
bens, por outro lado reforçam a lógica da distinção, contrapondo, aos efeitos massificadores, signos recriados de
diferenciação para os seguimentos hegemônicos. Quanto a estilo de vida, Bourdieu define por esse conjunto de
preferências distintivas pelo qual as classes mais altas marcam sua posição perante as demais.
10
Veja. 18 de junho de 1980. P. 119. Acervo do NUDOC (UFC).
11
Veja. 23 de janeiro de 1980. P. 8 e 9. Acervo do NUDOC (UFC).
12
Veja. 21 de setembro de 1988. P. 20 26. Acervo do NUDOC (UFC).
13
Veja. 3 de fevereiro de 1988. P. 51 e 52. Acervo do NUDOC (UFC).
14
Veja. 1 de junho de 1988. P. 6. Acervo do NUDOC (UFC).
15
Veja. 4 de julho de 1979. P. 28 e 29. Acervo do NUDOC (UFC).
12

Nem mesmo o “Ford Escort 86. Um carro chamado desejo. A síntese de todos os desejos”16.
É porque a publicidade, como os objetos no tempo, muda. Porque para anunciar essas
mudanças não só dos objetos, mas também do tempo, ela precisa mudar.
Alerta-nos Everardo Rocha, antropólogo brasileiro já aqui citado, que “os anúncios
publicitários podem ser tomados como mitos, como narrativas de modelos ideais do cotidiano,
como uma ideologia do estilo de vida das classes dominantes” (ROCHA, 2010: 178).
Responsável no capitalismo por fazer a passagem de um produto fabricado em séries iguais às
centenas e milhões, para o universo da pessoalidade e da personalidade; e criadora de
características humanas às mercadorias, no intuito de atiçar o desejo pelo consumo desta,
acreditamos que as publicidades podem até ser destinadas, primordialmente, às classes
dominantes, todavia pensamos que o seu diálogo tem interlocutores mais variados, mais
diversos no corpo da sociedade. Pois ela precisa captar as oportunidades do tempo, da cultura,
expressas no cotidiano pelos mais variados sujeitos e grupos. Somente assim a publicidade
conseguirá efetivamente comunicar e, ainda que não venda a mercadoria que anuncia, dirá
algo sobre aquele tempo para todos os que as lerem, antes ou depois.
Eis a nossa pretensão e o caminho que estamos trilhando: dizer algo sobre o Brasil
daqueles anos de crise a partir das publicidades impressas da revista Veja, aquelas páginas tão
repletas de objetos. Porque a publicidade, “esse resquício (i)material da existência dos objetos
e das vivências que lhes atravessam, também é, em muitos casos, sua única forma de
permanência palpável e visual. Ela, assim como todos os outros objetos, é denúncia do
tempo” (SILVA, 2010: 119).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A embalagem do sistema: a publicidde no
capitalismo brasileiro. Bauru, SP: Edusc, 2004, (Coleção Ciências Sociais).
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto
Alegre, RS: Zouk, 2008.
CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir. (Orgs) Representações: contribuição a
um debate transdisciplinar. Campinas/SP: Papirus Editora, 2000.
CARTOCE, Rachel Elisa. O milagre anunciado: publicidade e a Ditadura Militar
Brasileira (1968-1973). Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017.

16
Veja. 22 de janeiro de 1986. P. 54 e 55. Acervo do NUDOC (UFC).
12

FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O tempo da ditadura: regime


militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003, (Coleção O Brasil Republicano; 4).
FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: Ditadura, propaganda e imaginário social no
Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997.
FURTADO, Celso. Cultura e desenvolvimento em época de crise. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1984.
GASTALDO, Édison. Publicidade e sociedade: uma perspectiva antropológica. Porto
Alegre: Sulina, 2013.
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
MIRA, Maria Celeste. O leitor e a banca de revistas: a segmentação da cultura no século
XX. São Paulo: Olho d’Água/Fapesp, 2013.
NAPOLITANO, Marcos. O regime militar brasileiro: 1964-1985. São Paulo: Atual, 1998,
(Coleção Discutindo a História do Brasil).
ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
ROCHA, Everardo. Magia e Capitalismo: um estudo antropológico da publicidade. São
Paulo: Brasiliense, 2010.
RODRIGUES, Marly. A década de 80: Brasil. Quando a multidão voltou às praças. São
Paulo: Ática, 1994, (Série Princípios; 223).
SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: No loop da montanha-russa. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001, (Coleção Virando séculos; 7).
SILVA, Jailson Pereira da. Um Brasil em pílulas de 1 minuto: História e cotidiano em
publicidades das décadas de 1960-1980. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2010.
WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. São Paulo: Editora da Unesp, 2011.
12

DANÇANDO COCO NO CARIRI CEARENSE:


TRÂNSITOS MIGRATÓRIOS E FLUXOS CULTURAIS

Camila Mota Farias1

Resumo: O Cariri, situado no sertão do Estado do Ceará, possui fronteira com diversos outros
estados, como Pernambuco, Piauí, Paraíba e configurou-se historicamente como uma região
com forte influência de trânsitos migratórios de romeiros e de sertanejos na sua formação
política, econômica e cultural. Estas migrações foram iniciadas no século XVIII e movidas
pela busca de melhores condições de vida, assim como por questões religiosas. A partir deste
dado, temos que a dança do Coco, brincadeira de origens afro- indígena encontrada no
nordeste brasileiro, é realizada atualmente no Cariri, sobretudo, por grupos de mulheres
agricultoras que, ao experimentarem o dançar, evocam memórias, histórias e práticas culturais
reveladoras de fortes influências e conexões com as formas de brincar Coco dos estados
fronteiriços. Assim, neste trabalho iremos explorar estes fluxos culturais, por meio do
cruzamento de entrevistas com a leitura de folcloristas, estas circulações culturais podem ser
percebidas nas letras de músicas, em nomenclaturas da prática cultural ou no dançar. Desta
forma, estas equivalências se dão em decorrência dos movimentos de sujeitos em migrações
que proporcionam encontros, trocas e novas formas de experimentação e recriação do Coco,
mostrando a dinamicidade da cultura que por meio de interações sociais passa por variações e
transformações, sendo reinventada.
Palavras-chave: Dança do Coco. Trânsitos migratórios. Fluxos culturais.

O Coco é uma prática das culturas populares brasileiras encontrada no litoral e no


sertão nordestino. Acredita-se que a introdução desta dança no Nordeste se deu através dos
escravos africanos que catavam e quebravam coco em um ritmo de trabalho do qual emergiu a
música (ANDRADE, 2002). Os Cocos podem ser classificados em três gêneros: dançado,
embolada e literatura de cordel. Dentro destes existem várias modalidades que dependem da
métrica, dos instrumentos, do local e da coreografia2.
Nos Cocos dançados, objeto desta pesquisa, há a presença de elementos indígenas, os
movimentos em roda e a estrutura poético-musical, e de elementos das culturas africanas, os
instrumentos de percussão3 e a umbigada4. Assim, a prática envolve música, com um ritmo de

1
Mestra em História pela Universidade Estadual do Ceará e Doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará (PPGS-UECE) com bolsa CAPES,
camilamotafarias@gmail.com.
2
Com relação à métrica existem os Cocos de embolada, em quadras, de dez pés, de rima, de roda e tombado.
Com relação à música encontram-se os Cocos de ganzá e o de zambê. Com relação ao local praticado temos os
Cocos de praia, de usina, de sertão e pé de serra. Com relação à coreografia identificam-se os Cocos de roda, de
sapateado, de filas, de parelhas e o solto.
3
Os instrumentos, normalmente, utilizados na dança do Coco são o caixão, o zambê e o ganzá. Entretanto, nos
grupos estudados aparece a presença do pandeiro, do bumbo, do triângulo e, até, de instrumentos de corda como
o violão.
4
A umbigada é o ato dos dançadores encostarem seus umbigos, pode ser simulado, em sinal de desafio.
12

batuque; dança, com passos de sapateado e batidas de palmas; poesia, através das letras
cantadas.
Os Cocos no Ceará podem ser encontrados em diversas regiões 5. Percebe-se que, neste
Estado, a dança se localiza majoritariamente em áreas litorâneas, sendo realizada,
especialmente, por homens, com exceção do Cariri, situado no sertão cearense. Então, a
escolha do Cariri para este estudo relaciona-se às particularidades da prática na região, desde
a localização no Estado – o sertão – aos sujeitos que emergem – as mulheres – e às suas
poéticas.
As mulheres integrantes desses grupos são, em sua maioria, agricultoras ou
profissionais autônomas que possuem de 40 a 80 anos. Nos grupos assumem as funções de
“Coquista, Tiradora, ou Mestra de Coco”6 e de “Dançadeiras”7. Cada grupo possui uma
trajetória particular e formas específicas de dançar/cantar.
No local estudado, identificamos a existência de quatro grupos de Coco femininos, são
eles: A gente do Coco da Batateira (1979) 8; Amigas do saber (2000); Coco Frei Damião
(2003) e Coco da SCAN (2011). A pesquisa centra-se, portanto, nos municípios de Juazeiro
do Norte e do Crato, tendo em vista que foram neles que identificamos os sujeitos produtores
da dança do Coco. As cidades estão localizadas, respectivamente, a 540 e a 529 quilômetros
da capital cearenses e correspondem à Região Metropolitana do Cariri9, criada pela Lei
Complementar Estadual n. 78, sancionada em 29 de junho de 2009.10
O Cariri é uma das quatorze regiões11 que compõe o Estado do Ceará. Seu nome
deriva dos Kariris, grupo indígena que habitou o território antes de sua colonização. A região
faz fronteira com outros Estados – ao sul com Pernambuco, ao oeste com Piauí e ao leste com
a Paraíba –, inclusive: “Por ser território fronteiriço, sua formação política, econômica,
histórica e cultural deve muito a fluxos migratórios que datam do século XVIII, quando se
iniciou sua colonização” (SEMEÃO, 2014, p. 1).

5
Iguape, Caetanos de Cima, Fortaleza, Trairi, Balbino, Aracati, Majorlândia, Canoa Quebrada, Quixaba, Pecém,
Almofala e Cariri.
6
As nomenclaturas Coquista, Tiradora ou Mestra são utilizadas para caracterizar aquela responsável por cantar o
Coco e conduzir/organizar a brincadeira.
7
São aquelas que dançam.
8
A Data em parênteses corresponde ao ano de fundação do grupo
9
A Região Metropolitana do Cariri é composta por Juazeiro do Norte, Crato, Barbalha, chamado de triângulo
caririense, e mais seis cidades: Caririaçu, Farias Brito, Jardim, Missão Velha, Nova Olinda e Santana do Cariri.
10
Informações disponíveis no Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável: Território Cidadania do
Cariri, realizado pelo Instituto Agropolos do Ceará em 2010.
11
O Ceará é composto pelas regiões: Cariri, Centro Sul, Grande Fortaleza, Litoral Leste, Litoral Norte, Litoral
Oeste/Vale do Curu, Maciço de Baturité, Serra da Ibiapaba, Sertão Central, Sertão de Canidé, Sertão de Crateús,
Sertão dos Inhamuns, Sertão de Sobral e Vale do Jaguaribe. (O Povo, Fortaleza, 3 out. 2015, s/p).
12

Segundo o historiador Carlos Rafael Dias (2014), durante o século XIX o Cariri
destacou-se no plano estadual e nacional por sua participação em diversos eventos, como os
movimentos emancipacionistas liberais e republicanos ocorridos em Pernambuco, a
Revolução de 1817 e a Confederação do Equador, em 1824, destacando nomes como os de
Bárbara de Alencar e de Tristão Gonçalves. Além do movimento liderado pelo político militar
Joaquim Pinto Madeira, em 1831, que se desenvolveu como uma insurreição absolutista em
decorrência da abdicação do Imperador Dom Pedro I ao trono brasileiro. A região, também,
tornou-se conhecida pelos acontecimentos de cunho religiosos, como o milagre de Juazeiro do
Norte, ocorrido em 1889, protagonizado por Padre Cícero Romão Batista e pela Beata Maria
de Araújo, e como o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, ocorrido no século XX, liderado
pelo Beato José Lourenço.
O Cariri é uma região mística e de significativa dinâmica cultural, é palco de diversos
grupos de cultura popular, como bandas Cabaçais, grupos de Reisado, Maneiro Pau, Coco,
entre outros.
Temos que a dança do Coco, brincadeira de origens afro-indígena encontrada no
nordeste brasileiro, é realizada atualmente no Cariri, sobretudo, porgrupos de mulheres
agricultoras que, ao experimentarem o dançar, evocam memórias, histórias e práticas culturais
reveladoras de fortes influências e conexões com as formas de brincar Coco dos estados
fronteiriços. Assim, neste trabalho iremos explorar estes fluxos culturais, por meio do
cruzamento de entrevistas com a leitura de folcloristas, estas circulações culturais podem ser
percebidas nas letras de músicas, em nomenclaturas da prática cultural ou no dançar.
Sobre as origens dos Cocos no Cariri não há considerações realizadas na obra de
Figueiredo Filho (1962), o folclorista indica que a dança está ligada às raízes étnicas da
região, considerando-a como um gênero de louvação, em justificativa de que suas letras
faziam saudações à terra “dadivosa” que seria o Cariri, sendo cântico-dança, conforme
sugeriu Mário de Andrade (2002). Porém, de modo geral, o cratense acredita que os folguedos
da região provam que a mesma não foi colonizada pelo norte do Ceará, pois: “Todos os
folguedos difundidos no sul do Ceará, encontram, no entanto, similares em Alagoas, Sergipe,
Pernambuco e Bahia, e isso com raízes multisseculares” (FILHO, op. cit., p. 15). A suposição
é justificada tendo como base a pesquisa do historiador Pe. Antônio Gomes de Araújo que
anotou a presença de mais de quatrocentas famílias de origem baiana e mais de duzentas de
origem sergipana, além da ligação forte com Pernambuco devido aos fluxos migratórios.
Identificamos uma pequena nota na obra de Alceu Araújo (1964, p. 240) sugerindo
que a dança praticada no sul do Ceará: “É de nítida influência alagoana, dos romeiros da Terra
12

dos Marechais que se dirigiram a Juazeiro do Norte [...] Na exibição que presenciamos em
Juazeiro do Norte em junho de 1962, o único instrumento usado era um idiofônio 12 – um
ganzá”.
O autor percebe uma influência alagoana no Coco praticado em Juazeiro do Norte,
mas não aponta fontes, ou uma comparação entre ambos, para mostrar os elementos
identificados que possuiriam em comum as práticas realizadas nos dois locais. Entretanto,
através das narrativas realizadas, da pesquisa desenvolvida e de uma revisão bibliográfica,
podemos inferir que há ligações e há elementos que dialogam entre os Cocos caririenses e os
Cocos alagoanos, pernambucanos, paraibanos e potiguares.
Uma primeira consideração que pode juntar-se a de Araújo (op. cit.) é, por exemplo, a
existência de um coquista alagoano que migrou para Juazeiro do Norte e é a referência dos
Cocos “do outro tempo” no município, “tio Dunízio”. Além dele, entre as atuais dançadeiras,
Mestras e tocadores, temos sujeitos que migraram de Pernambuco – como Mestra Edite e
Terezinha – e de Alagoas – como Maria das Dores e Expedito. A dançadeira Maria das Dores
narrou, inclusive, que conheceu a prática no Sítio Baixa Dantas, local que foi moradia de
romeiros migrantes de várias regiões do Nordeste, como Paraíba, Alagoas e Pernambuco. A
migração de romeiros e de sertanejos que buscavam melhores condições de vida para o Cariri
por conta do ambiente religioso criado em torno do Padre Cícero e por conta da prosperidade
da terra, foram fundamentais na urbanização das cidades, em especial de Juazeiro do Norte e
do Crato, e estes migrantes levam consigo seus saberes e suas práticas culturais.
Assim, observamos semelhanças com relação aos Cocos realizados no Cariri e nestes
demais Estados – na música, no dançar e nas nomenclaturas utilizadas para representar seus
elementos constituintes. Porém, é importante pontuarmos que estas equivalências se dão em
decorrência dos movimentos dos sujeitos, como as migrações que citamos, que proporcionam
encontros, trocas, que produzem trânsitos e circulações culturais (APPADURAI, 1996).
Identificamos correspondências em diversos versos de Cocos, ou até quadras
completas, cantados no Cariri com relação a versos cantados em outros Estados. Nos Cocos
de Cabedeu, zona costeira da Paraíba, coletados e registrados por Altimar Pimentel (1978)
mapeamos dez correspondências13. Seguem alguns exemplos, enquanto na Paraíba cantava-se:

12
São os instrumentos que produzem o som através de sua vibração, por exemplo, pelo atrito ou pela agitação,
como o reco-reco e o ganzá.
13
Estas correspondências foram identificadas através da leitura da obra do autor e da escuta sensível
(NAPOLITANO, 2008) das músicas de Coco cantadas pelos grupos estudos. Optamos por selecionar três trechos
de músicas citadas por Pimentel e compará-las com as músicas cantadas atualmente no Cariri para ilustrar a
nossa observação, os mesmos foram enumerados em algarismos romanos para facilitar a compreensão
13

I
Aplantei, mas não nasceu,
carrapicho em meu vestido,
A coisa que eu mais odeio
É homem casado enxerido (ibidem, p.62)
II
Menina, se queres, vamo,
Não se ponha a maginá,
Quem magina cria medo,
Quem tem medo não vai lá. (ibidem, p. 50)
III
Já te quis, não quero mais,
Já te dei o desengano:
Que me importa que tu morras
No sereno cochilando (Ibidem, p. 55).

Os respectivos versos foram encontrados nos Cocos do Cariri com pequenas


modificações14, como podemos observar:

I
Já plantei e semeei (ô mulher)
Carrapicho nas estrada (ô mulher)
Ô coisa pra eu achar feio (ô mulher)
É mulher arrupiada (ô mulher)15

II
Menina se quer ir vamos
Não se ponha a imaginar
Quem imagina cria medo
Quem tem medo não vai lá16

III
Linda flor, linda flor (coro)
Eu já te quis, não quero mais
Linda flor, linda flor (coro)
Eu já te dei o desengano
Linda flor, linda flor (coro)
Só não quero que tu morra Linda flor,
linda flor (coro)
Ôi, no sereno cochilando17

Percebe-se que os versos possuem a mesma ideia central, porém alguns outros versos
foram inseridos, ou palavras modificadas, algumas apenas possuem variação na pronúncia.

14
Marcamos em itálico os termos modificados. É interessante pontuar que muitos desses versos são cantados não
apenas por um grupo da região, mas por outros grupos de Cocos da região, ou até de outras práticas das culturas
populares. Em trabalho de campo realizado em novembro de 2014 presenciamos e registramos em nosso diário
de campo grupos de Maneiro Pau cantando, em Juazeiro do Norte, versos que estão em letras de Cocos da
região. Revelando dimensões da cultura popular como a apropriação, adaptação, recriação e a circulação.
15
NANINHA. O farol incendiou (faixa 13). In: NANINHA. Lagoando Mar – os Cocos de dona Naninha. Crato:
Pindoretama Record’s, 2013. 1 CD. (grifos nossos).
16
A GENTE DO COCO DA BATATEIRA. Paraíba (faixa 3). In: A GENTE DO COCO DA BATATEIRA.
Barra do Dia. Crato: Pindodoretama Record’s, 2013. 1 CD. (grifos nossos).
17
AMIGAS DO SABER. Linda flor (faixa 2). In: AMIGAS DO SABER. Grupo Cultural Amigas do Saber.
Crato: s/g, 2012. 1 CD. (grifos nossos).
13

Observemos, por exemplo, nas letras I que ambas possuem versos correspondentes, entretanto
ocorreu uma adaptação e uma recriação da letra que revelam modificações em posições de
gênero que representam, antes “homem casado enxeridas” e, na música de Mestra Naninha,
“mulher arrupiada”. Esta modificação identificada pode possuir relação com o
desenvolvimento do Coco no Cariri, seu contexto e sua apropriação, marcado pela emergência
da figura feminina. Outras similaridades foram identificadas com relação aos Cocos coletados
por Mário de Andrade no Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco (2002a).
No dançar mapeamos que nomenclaturas usadas pelos sujeitos desta pesquisa, como
“Coco travessão”, “Coco de roda”, “toadas ou toeiras”, “trupé ou tropel”, são encontradas nos
Cocos de outros Estados, principalmente de Alagoas e da Paraíba. Estas nomenclaturas não
são utilizadas nos Cocos da zona costeira do Ceará, com exceção da “Coco de roda”.
O “Coco de roda” e o “Coco travessão” caracterizam modalidades da dança, citadas
por Mestra Maria da Santa como típicas de antigamente. Os “Cocos de roda” são comuns nos
Estados da Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Alagoas (PIMENTEL, op. cit.;
ANDRADE, op. cit.; VILELA, op. cit., entre outros). Porém, verificamos o “Coco travessão”
apenas em Alagoas (VILELA, op. cit.).
A dança neste “outro tempo” era desenvolvida através do passo da umbigada. “Seu”
Expedito18 afirma que: “O Coco antigamente era o Coco umbigada, era muito agressivo, era
homem com mulher” (Expedito José da Silva, Crato – CE, 13 nov. 2014). Como abordamos a
umbigada era/é passo característico dos Cocos em outros Estados do Nordeste (ANDRADE,
2002; PIMENTEL, op. cit.).
A palavra “trupé” ou “tropel”, utilizadas por algumas brincantes do Cariri para nomear
o que outros grupos do Estado do Ceará chamam de sapateado dos Cocos, é típica dos Cocos
Alagoanos e Pernambucanos.

No caso do Coco Alagoano localizo o trupé como um dos fundamentos mas, mais
que isso, sua função percussiva. Quero chamar atenção para o fato de que, no Coco
Alagoano, o trupé tem uma intenção não só coreográfica mas também percussiva,
um dançarino de Coco Alagoano é dançarino e percussionista ao mesmo tempo19.

O trupé, ou o sapateado, dos Cocos, tanto em Alagoas como em Pernambuco e no


Ceará, na região do Cariri, produz um som que compõe, junto aos instrumentos utilizados, a
melodia dos Cocos. Por fim, investigamos o uso das nomenclaturas “toadas, toeiras”
18
Expedito José da Silva é esposo de Mestra Maria da Santa, nasceu em Alagoas, mas reside no sítio Quebra,
localizado no Crato, e é tocador de pandeiro no grupo Amigas do Saber (Crato – CE
19
Disponível em: <http://www.gazetaweb.globo.com/gazetadealagoas/acervo.php?c=247296> Acessos em: 1
ago. 2018.
13

utilizadas para referenciar as músicas de Coco cantadas pelo grupo A gente do Coco da
Batateira, esta nomenclatura usada com relação aos Cocos detectamos, apenas, na obra do
cantor alagoano Jacinto Silva que se consagrou em Pernambuco como cantor de Forró e de
Coco sincopado.20
Esta paisagem composta por movimentos de aproximações e de distinções entre os
Cocos de diversos lugares onde são dançados – Ceará, Paraiba, Pernambuco, Alagoas, Rio
Grande do Norte, e mesmo entre localidades dentro do Ceará, como o litoral e o sertão –
atravessa territórios e temporalidades. Independente da origem da prática cultural ela é
ressignificada e possui uma poética própria a cada lugar/época/sujeitos.
Destarte, os Cocos – suas origens e seus saberes/fazeres diversos –, enquanto práticas
das culturas populares que se constituem em trânsitos culturais, revelam elementos que se
tangenciam em conformações rizomáticas. Compreendemos uma figuração da realidade como
rizoma através de Gilles Deluze e de Félix Guattari (1995). Os autores concebem o rizoma
como um labirinto, sem fim e nem começo, sem centro e periferia, sendo uma estrutura de
passagem:

Ele não é o Uno que se torna dois, nem mesmo que se tornaria diretamente três,
quatro ou cinco etc. Ele não é um múltiplo que deriva do Uno, nem ao qual o Uno
se acrescentaria (n+1). Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de
direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual
ele cresce e transborda (p. 31).

Assim, entender a produção/experimentação dos Cocos de forma rizomática quer dizer


que não há um fio de Ariadne, não podemos demarcar uma trilha linear ou contínua na busca
pela “origem histórica” desta prática, apontando um local ou grupo como fundadores da dança
a partir dos quais a mesma se difundiu, mas podemos observar configurações dos Cocos que
não se constituem essencialmente de unidades, mas de multiplicidades, os Cocos surgem e se
apresentam de formas singulares de acordo com as circunstâncias – sujeitos, época, local, etc.
As diversidades dos Cocos e das culturas populares afiguram-se enquanto rizoma,
pois, mesmo diante das multiplicidades existentes e da impossibilidade do encontro da
origem, de um centro irradiador ou de uma estrutura fixa, suas práticas diversas configuram-
se como uma rede de linhas que são lugares de passagens, ou seja, as produções dos fios – dos

20
20 Modalidade da música dos Cocos que se assemelha a um trava-língua, com emboladas aceleradas e o
recurso do trava-língua com pique de embolada, caracteriza-se por explorar o tempo da música, introduzindo
divisões e quebras no canto para alongar ou comprimir a métrica. Cf. Disponível em:
<http://www.pulaomuro.blogspot.com.br/2013/08/o-coco-sincopado-de-jacinto-silva.html> Acessos em: 1 ago.
2018.
13

Cocos e das culturas populares – são marcadas por processos de trocas, de diálogos, por
encontros que constroem uma coesão dinâmica, tendo em vista que o dançar e as culturas
estão sempre em movimentos, da mesma maneira que o rizoma é um sistema aberto.
Portanto, os Cocos no Cariri estão em processos de transformações por movimentos
que podem trazer novos passos para o dançar/cantar por meio de variações e transformações
como as que surgem em decorrência das apropriações das mulheres dos processos criativos
desta dança, sejam como Mestras ou como dançadeiras, produzindo outras poéticas e vias de
invenções das culturas populares.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ARAÚJO, Alceu Maynard. Folclore Nacional – danças. recreação. música. 3. ed. São
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no coco cearense e candombe mineiro. 2013. 149 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de
Pós-Graduação em Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais, Minas Gerais,
2013.
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Secretaria de Cultura e Desporto, 1982.
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do Cariri cearense (1855-1980). 2014. 169 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, 2014.
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PIMENTEL, Altimar de Alencar. O Coco Praieiro – Uma Dança de Umbigada. João
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SEMEÃO, Jane. Os intelectuais do Instituto Cultural do Cariri e sua atuação na
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13

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2014. p. 1-15.
VILELA, José Aloísio. O Coco de Alagoas: origem, evolução, dança e modalidades.
Maceió: Museu Théo Brandão, 1980.
13

FAKE NEWS, MEMES E O ENSINO DE HISTÓRIA.

Cicero Anderson de Almeida Bezerra1

RESUMO: Nos anos 2000, a internet parece ter atingido o seu recorde com um número cada
vez maior de usuários no Brasil e no mundo. O mundo inteiro está ao alcance de nossas mãos
através de equipamentos eletrônicos que transmitem informações a todo instante. Refletir
sobre as mudanças provocadas pela introdução dessa tecnologia no nosso cotidiano através de
CERTEAU em sua obra a Invenção do Cotidiano é de grande relevância na atualidade. Tudo
está a um clique de distância. Nos aparelhos de celular e smartphones, nos aplicativos e
grupos aos quais pertencemos, de forma privada temos acesso uma infinidade de vídeos,
notícias urgentes, conteúdos e comentários fazendo juízo de valor sobre os mais diversos
assuntos em tempo real, inclusive com transmissões ao vivo. Mas, não podemos esquecer que
quem divulga tem sempre uma intenção. Para atingir cada vez um público maior, a todo
instante notícias são criadas, tragédias são anunciadas, escândalos são abafados, biografias
são manipuladas e o jornalismo parece ter a pretensão de assumir as rédeas da história,
transformando o jornalista no historiador e o fato histórico numa criação sua. A escola não
pode ignorar o fato de crianças e jovens terem acesso diariamente a todo esse conteúdo que
circula nas redes sociais e nos meios de comunicação em suas casas ou outros espaços através
dos equipamentos transmissores e receptadores de dados conectados à internet. Os conteúdos
que circulam diariamente nas redes sociais impactam no dia-a-dia da sala de aula.
Especialmente quando se trata do uso da liberdade de expressão para difundir discursos de
ódio, bullying, o racismo, a homofobia, a xenofobia ou qualquer outro tipo de preconceito
através de memes ou outros recursos virtuais. As aulas de história são um espaço bastante
oportuno para promover o debate necessário sobre essas questões e tantas outras,
considerando que se trata de uma disciplina escolar de caráter reflexivo, conectada com os
acontecimentos não só do passado, mas também atuais, propiciando um ambiente de
discussão no qual os sujeitos se reconheçam enquanto sujeitos participantes e protagonistas
dos processos. Trata-se, portanto de utilizar o potencial dessas inovações de maneira eficiente
e didática, a favor da educação e do ensino de história reflexão constante sobre o ato de
aprender e a produção da informação e do conhecimento.
Palavras-Chaves: Fake News. Memes. Ensino de História.

INTRODUÇÃO
A comunicação sempre foi uma necessidade do ser humano desde os tempos mais
remotos. Com o passar do tempo, trocar informações, registrar fatos, expressar ideias e
emoções se tornaram fatores que contribuíram para a evolução das formas de se comunicar,
aperfeiçoando assim a capacidade de se relacionar entre os indivíduos.
A medida que foram surgindo novos meios que oportunizaram atingir distâncias cada
vez mais maiores num espaço de tempo cada vez menor, as possibilidades de se comunicar se

1
Licenciado em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Especialista em Gestão Escolar pela
Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestrando em Ensino Profissional de História pela Universidade
Regional do Cariri – URCA. Email: candbez@hotmail.com
13

multiplicaram, as formas já existentes se aprimoraram e a informação passou a ser propagada


com muito mais rapidez e alcance.
A última década do século XX representa um momento em que a internet criada para
fins militares na Guerra Fria, se expandiu no mundo se tornando acessível a uma grande
parcela da população mundial. Depois da criação da televisão em 1950, a internet se tornaria a
principal ferramenta tecnológica amplamente utilizada para se comunicar no século XXI.
Nos anos 2000, a internet parece ter atingido o seu recorde com um número cada vez
maior de usuários. Mas foi a partir de 2005, que começou uma nova era na Internet no mundo,
com o avanço das redes sociais. No Brasil, o Orkut foi a porta de acesso para muitos usuários
e acabou ganhando a preferência dos brasileiros. Nos anos seguintes surgiram outras redes
sociais como, por exemplo, Facebook, Twitter e o Instagram.
Temos vivido desde então uma avalanche de informações a cada segundo. O mundo
inteiro está ao alcance de nossas mãos através de equipamentos eletrônicos que transmitem
informações a todo instante. Tudo está a um clique de distância.

Vivemos, hoje, em sociedades em que a difusão de formas simbólicas através dos


meios eletrônicos se tornou um modo de transmissão cultural comum e, sobre certos
aspectos, fundamental. A cultura moderna é, de uma maneira cada vez maior, uma
cultura ‘eletronicamente mediada’, em que os modos de transmissão orais e escritos
foram suplementados – até certo ponto substituídos – por modos de transmissão
baseados nos meios eletrônicos (THOMPSON, 1995, p.297).

Nos aparelhos de celular e smartphones, nos aplicativos como o Whatsapp, o


Facebook, nos grupos aos quais pertencemos ou de forma privada temos acesso uma
infinidade de vídeos, notícias urgentes, conteúdos e comentários fazendo juízo de valor sobre
os mais diversos assuntos em tempo real, inclusive com transmissões ao vivo.
Mas, não podemos esquecer que quem divulga tem sempre uma intenção. Há sempre
um interesse por trás de um compartilhamento, de uma curtida ou comentário numa rede
social ou de uma notícia divulgada numa determinada emissora. Nos meios de comunicação e
nas redes sociais, não existe informação desinteressada.
Nesse sentido, concordamos com LETRIA (2000), quando afirma que: a notícia é “um
fato verdadeiro, inédito ou atual, de interesse geral, que se comunica com o público, depois de
recolhido, pesquisado e avaliado por quem controla o meio utilizado para a sua difusão” (p.
27).
Na corrida desenfreada pelo furo jornalístico, pela noticia em primeira mão, jornalistas
e pessoas comuns são capazes de qualquer coisa por uma imagem, um áudio, um vídeo ou
13

algo comprometedor sobre alguém que possa lhe favorecer de alguma forma. É a lei da oferta
e da procura. É o comércio da notícia onde se vende aquilo que se quer comprar como real. E
se não é, pode ser produzida levianamente, de modo a satisfazer as exigências do mercado,
que ouso chamar de “mercado de notícias.”

Há dois tipos de valor que são (...) importantes a esse respeito. Um tipo é o que
pode ser chamado de "valor simbólico": O valor que as formas simbólicas possuem
em virtude das maneiras como elas são apreciadas pelas pessoas que as produzem e
as recebem, em virtude das maneiras como elas são apreciadas ou denunciadas,
queridas ou desprezadas por esses indivíduos. Um segundo tipo de valor é o "valor
econômico", que pode ser entendido como o valor que as formas simbólicas
adquirem em virtude de serem trocadas num mercado. (THOMPSON, 1995, p.23)

Muitas vezes nesse jogo de manipulação e alienação a qual as mídias sociais nos
expõe, abrimos mão de valores morais e agimos de maneira antiética, irresponsável,
desrespeitosa e até criminosa, distorcendo fatos e camuflando a verdade sobre os mesmos. A
informação e a notícia deixam de ser o relato do ocorrido, para se tornar um produto com
finalidade, valor econômico e fim mercadológico. Em meio a todo esse cenário, às vezes é
difícil saber o que é verdadeiro ou não.
Para KUNCZIK, (2001) o indivíduo se depara diante de duas atitudes éticas; a ética de
responsabilidade e ética de valores absolutos. Na ética de valores absolutos, o autor destaca
que o indivíduo não assume a responsabilidade pelas próprias atitudes, mas frisa que “os
valores absolutos nada tem a ver com a irresponsabilidade, assim como a ética da
responsabilidade nada tem a ver com a falta de valores”.

As Fake News e os seus impactos no ensino de História


Para atingir cada vez um público maior, a todo instante notícias são criadas, tragédias
são anunciadas, escândalos são abafados, biografias são manipuladas e o jornalismo parece ter
a pretensão de assumir as rédeas da história, transformando o jornalista no historiador e o fato
histórico numa criação sua.

Os meios de comunicação tradicionais ainda são os lugares que o indivíduo busca


para saber de fato o que está acontecendo no mundo. Se o jornalista executar todo
aprendizado e os procedimentos indicados por autores da área ele vai realizar um
trabalho pautado na lealdade e na responsabilidade. Para proceder dessa forma, o
profissional deve ser consciente, ético, duvidar de todas informações que chegam
até ele e ser leal aquilo que está publicando ou investigando, sempre indo a fonte -
aqui como origem do fato. (SCHUDSON, 2017, p. 14).
13

Concordamos com SCHUDSON (2017) quando afirma “O jornalismo produz um


primeiro rascunho da história, não a última palavra sobre o acontecimento”.
É muito comum nos dias atuais comentários sobre matérias de jornais da qual apenas
uma manchete foi lida, sem verificar a informação e a sua fonte. Para não mencionar os
vídeos que são compartilhados diariamente por pessoas do mundo inteiro sem muitas vezes
sequer terem noção de sua origem ou conteúdo. O grande problema é o fato de não
questionarmos a origem das informações.

A falsidade se tornou uma fonte de renda lucrativa. Existe a industrialização de


notícia falsa, com o objetivo de fazer dinheiro com anúncios que são alocados por
instrumentos regidos por algoritmos que premiam sites com mais visibilidade,
acesso, compartilhamento. (SILVA, 2017, p. 37)

As notícias falsas provavelmente sempre existiram, no entanto, nunca se propagaram


tanto e tão rapidamente como nos dias atuais. Há quem diga que o termo seja impreciso e
vago para definir a essência desse fenômeno. Mas é consenso que ele não surgiu com as redes
sociais. Não é necessário recorrer a mitologia para constatar que a propagação de notícias
falsas é um costume tão antigo quanto a palavra escrita.
Na obra República, por exemplo, Platão já se referiu a disseminação das notícias falsas
como “nobres falsidades” necessárias como cimento social para sua utopia de déspotas
filosóficos. Essa tem sido uma estratégia antiga para eliminar os adversários na política.
Com o objetivo de tumultuar as eleições papais, em 1522 papas já teriam sido vítimas
de infâmias; na Inglaterra e França do século XVIII, caluniadores profissionais teriam
espalhado notícias reais com elementos de ficções comprometedoras em panfletos
estimulando desavenças pessoais e inimizades políticas 2, e nos dias atuais a lisura do processo
democrático tem sido questionada mediante a interferência de redes sociais como o Facebook,
nas eleições presidenciais dos Estados Unidos em 2016.
A escola não pode ignorar o fato de crianças e jovens terem acesso diariamente a todo
esse conteúdo que circula nas redes sociais e nos meios de comunicação em suas casas ou
outros espaços através televisão, smartphones, tablets ou outro equipamento transmissor e
receptador de dados conectados à internet.
A educação tem utilizado diversas possibilidades tecnológicas como alternativas
modernas que facilitam o processo educativo através da inclusão de ferramentas digitais,
facilitando e aperfeiçoando o uso das tecnologias pelos alunos e a realização de múltiplas

2
A informação foi encontrada em diversos artigos de revistas online, sites e blogs sobre a história cultural das
Fake News.
13

tarefas em todas as dimensões, além de capacitar professores e alunos por meio da criação de
redes sociais e comunidades virtuais.
Os conteúdos que circulam diariamente nas redes sociais impactam no dai-a- dia da
sala de aula. Especialmente quando se trata do uso da liberdade de expressão para difundir
discursos de ódio, bullying, o desrespeito pelas lutas históricas dos povos indígenas, africanos
e quilombolas, racismo, homofobia, xenofobia ou qualquer outro tipo de preconceito. Aquilo
que é aprendido de ruim nas redes sociais acaba muitas vezes sendo vivenciado na prática
dentro do ambiente escolar.
No que tange as Fake News, mesmo com todas as ferramentas de pesquisa disponíveis
para se detectar informações suspeitas ou infundadas, as notícias falsas tendem a prosperar
porque o usuário tem adotado uma postura passiva e acrítica diante dos fatos. O conformismo
parece ter sido a marca da sociedade contemporânea e talvez por isso nos últimos tempos,
tenha aumentado a quantidade de notícias falsas, as famosas Fake News.
As aulas de história parecem ser um espaço bastante oportuno para promover o debate
necessário sobre essas questões e tantas outras, considerando que se trata de uma disciplina
escolar de caráter reflexivo, que está conectada com os acontecimentos não só do passado,
mas também do presente, propiciando um ambiente de discussão no qual os sujeitos se
reconheçam enquanto sujeitos participantes e protagonistas dos processos. Em outras
palavras,

A história ensinada serve para ajudar a criar identidades, mas serve principalmente
para que as pessoas reconheçam-se como sujeitos, como parte também de um
coletivo, conheçam suas possibilidades e limitações de ação na história. Desta
forma, serve também para questionar identidades inventadas (...) (CERRI, 1999,
p.6)

Nem tudo que circula diariamente nas redes sociais pode ser aproveitado de maneira
positiva, mas sempre se pode utilizar alguma coisa com um fim pedagógico na sala de aula e
no ambiente escolar. Quando postamos na rede as fotos de um evento realizado na escola, por
exemplo, estamos estimulando os jovens a frequentarem tais ambientes no intuito de
compartilharem suas experiências no processo educativo.
Trata-se, portanto de utilizar o potencial dessas inovações de maneira eficiente e
didática, a favor da educação e do ensino de história, buscando inserir novos recursos,
visando mudanças de paradigmas, a reflexão constante sobre o ato de aprender e a produção
da informação e do conhecimento.
14

As práticas de linguagem desenvolvidas até metade do século passado debruçavam-se


sobre uma cultura manuscrita. As formas de interação passaram por transformações
significativas ao longo dos tempos. Comunicar-se no século XXI tornou-se cada vez mais
dinâmico, rápido e objetivo. O uso de imagens se tornou a marca dos processos de
comunicação na sociedade atual.
O processo de comunicação e interação virtual mediado por equipamentos eletrônicos
é uma realidade cada vez mais presente no dia-a-dia dos cidadãos a nível planetário. Nesse
sentido, é oportuno observar a importância que a imagem tem adquirido para a construção de
outros gêneros comunicativos que se consolidam em meio ao que se convencionou chamar de
pós-modernidade.
A imagem é um elemento delineador e significativo. Referências imagéticas se
tornaram e se consolidaram com intensidade no século XXI, com o surgimento das redes
sociais que ganharam espaço no meio virtual pela facilidade de comunicar e se compartilhar
imagens em tempo real que poderiam circular permanentemente e ser acessadas a qualquer
instante.
A imagem tem sido fortemente adulterada e utilizada com interesses diversos, seja
para esconder rugas faciais, gorduras localizadas, dentre outras imperfeições estéticas em
usuários comuns das redes sociais ou para projetar valores morais, éticos e de caráter, em
candidatos a cargos eletivos, por exemplo.
A produção de imagens que circula na internet a todo instante nos dias atuais não pode
ser comparado a nenhum outro momento histórico. O uso que se tem feito da imagem ao
longo do tempo, seu manuseio de forma interessada e tendenciosa precisa ser constantemente
observado e refletido de modo ativo e participativo.
Nas palavras de Certeau (1998):

A presença e a circulação de uma representação (ensinada como código de


promoção sócio-econômica por pregadores, educadores ou por vulgarizantes) não
indicam de modo algum o que ela é para seus usuário. É ainda necessário analisar
a sua manipulação pelos praticantes que não a fabricam. Só então é que se pode
apreciar a diferença ou a semelhança entre a produção da imagem e a produção
secundária que se esconde nos processos de sua utilização. (CERTEAU, 1998, p.40)

Diante dessa problemática, podemos dizer que a imagem é uma representação e como
tal pode ser produzida de maneira intencional, podendo ser fabricada, manipulada com fins e
objetivos específicos. Temos um papel frente a essa realidade diagnosticada que é o de
analisar criticamente essas imagens e questionar suas utilizações.
14

CERTEAU (1998) expressa a consideração de que “a análise das imagens difundidas


pela televisão (representações) e dos tempos passados diante do aparelho (comportamento)
deve ser completada pelo estudo daquilo que o consumidor cultural “fabrica” durante essas
horas e com essas imagens” .(p.39)
As imagens socializadas na internet, muitas vezes são compartilhadas sem que muitos
critérios por quem as utiliza. Nem sempre se questiona a razão da existência daquela imagem
ou a sua origem. As imagens são fabricadas com uma finalidade, que muitas vezes é reforçar
preconceitos e representações distorcidas de eventos, pessoas ou informações que não
condizem com a realidade.
Dai a importância de se refletir sobre o fenômeno dos memes. Pois a produção de
novas linguagens e discursos nas mídias não se dá de maneira inconsciente e aleatória.
Representa a necessidade de criação de novos modelos de comunicação de um dado momento
histórico e isso acaba passando despercebido pelos usuários mais desatentos.
De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais, pode-se afirmar que:

Produzir linguagem significa produzir discursos. Significa dizer alguma coisa para
alguém, de uma determinada forma, num determinado contexto histórico. Isso
significa que as escolhas feitas ao dizer, ao produzir um discurso, não são
aleatórias — ainda que possam ser inconscientes —, mas decorrentes das condições
em que esse discurso é realizado. Quer dizer: quando se interage verbalmente com
alguém, o discurso se organiza a partir dos conhecimentos que se acredita que o
interlocutor possua sobre o assunto, do que se supõe serem suas opiniões e
convicções, simpatias e antipatias, da relação de afinidade e do grau de
familiaridade que se tem, da posição social e hierárquica que se ocupa em relação
a ele e vice-versa. (PCNs, 1999, p.22)

Mais que um suporte físico passivo para a transmissão de mensagens, a web é


entendida aqui como um meio de comunicação, uma esfera na qual a comunicação e a
geração de sentido são possíveis, na qual a cultura ciber torna-se possível através de signos e
símbolos.
VIEIRA (2007) corroborando com a idéia acima ressalta que, “os avanços e as
mudanças nas comunicações transglobais exercem poder transformador nos eventos de
escrita, alcançando principalmente o texto” (p.9) Dessa esfera emerge o meme, que pode ser
considerado uma forma de expressão e concepção de mundo que apresenta certa regularidade,
por possuir “gramática”, dinâmica própria e seus jogos de significação.
14

1.2 - O uso dos memes nas aulas de História


O termo meme remonta a expressão utilizada em 1976 por Richard Dawkins, no livro
“O Gene Egoísta”. A etimologia da palavra vem do grego “minema” que significa
“imitação/algo que é imitado”. No inglês, o vocábulo faz referência a gene e a memória. O
gênero seria advindo dos Estados Unidos, nos finais dos anos de 2008, com a explosão de
sítios eletrônicos de compartilhamento de vídeos e imagens e se espalhado por todo o planeta.
Nas palavras de SOUZA (2014), memes são compreendidos como palavras, imagens,
fotos, bordões, desenhos, ideias, fragmentos de idéias, sons, gírias, comportamentos, falas,
costumes, enfim, é tudo aquilo que se multiplica a partir da cópia/imitação. (p.157)
O meme é um exemplo de novas formas de linguagem e discursos que se apresentam
na atualidade nos espaços virtuais e que tem tido grande aceitação e utilização. Trata-se de
uma manifestação cultural da internet que se estabeleceu na rede como uma forma de
comunicação nas últimas décadas.
A memética se inspira na Teoria de Charles Darwin, autor de "Origem das Espécies"
(1859) e define que existem três princípios básicos para a existência dos memes: variação,
seleção e a hereditariedade. Considerando que os memes constituem-se como reproduções,
para que estes sejam propagados e atinjam assim a sua função, necessitam de hospedeiros. E é
assim que temos nos comportado diante desse fenômeno. Temos deixado de produzir nossas
próprias ideias para reproduzir criações anônimas.
Tal fenômeno baseia-se na recriação excessiva, coletiva, satírica e paródica de
imagens, textos verbais, vídeos, entre outros, que se espalham de forma viral. É uma imagem
fabricada e produzida com interesses e objetivos específicos. É, portanto, uma forma de
linguagem com uma mensagem nem sempre explicita num primeiro contato, mas que tem
exercido uma influência inimaginável no mundo real, utilizando-se do humor.
Os memes tem sido utilizado fortemente no Facebook, por se tratar de uma plataforma
que facilita a sistematização e o acúmulo de fotos, depoimentos, comentários, recados para os
amigos, comunidades que sintetizam gostos dos indivíduos, construindo-se em uma realidade
imagética, multimodal, multissistêmica.
A psicóloga, conferencista e escritora britânica Susan Blackmor, se referiu a evolução
cultural como sendo “uma criança que não deve ser deixada sozinha. Quando se percebe a
criança é um pestinha fazendo confusão e é tarde para mudar. ” Para ela, os memes seriam
“uma nova forma de pensar sobre o que acontece no nosso planeta”.
O fato é que não podemos ignorar esse fenômeno. Os memes fazem parte do dia-a-dia
de professores e alunos, pois estes sujeitos são usuários de redes sociais e consomem e
14

produzem conteúdos que circulam nesses ambientes virtuais. É necessário refletir sobre essa
forma de comunicação, investigando as suas intenções e questionando essa lógica cotidiana
que se apresenta como tal.
O professor de história precisa assumir o seu papel social que é também o de
historiador, pesquisador e cientista. Transformar suas aulas de história em oportunidades de
reflexão constante sobre os discursos tem se apresentado como um desafio, frente o aumento
significativo dos discursos fascistas, racistas, homofóbicos, sexistas, xenófobos e de todas as
formas de intolerância que ganham força na mídia na atualidade.
Em muitos casos, os próprios professores ou alunos, viram memes que passam a ser
compartilhados em grupos de WhatsApp no próprio universo escolar e fora dele. Geralmente
essas iniciativas visam provocar o riso em quem aprecia, mas na prática essas atitudes acabam
ridicularizando, humilhando e desrespeitando aqueles que são vítimas.
Pelo fato de incomodar, os memes não podem passar despercebidos. Sua reprodução
causa desconforto. Precisamos questionar como temos nos comportado diante da reprodução
desses valores que permeiam o universo dos memes.
Outro desafio que se coloca para os professores é o de conseguir inserir os alunos em
um contexto de questionamento sobre informações prévias, recuperando os personagens
históricos. É fundamental verificar o nível de linguagem, a construção da ironia e as
diferenças existentes entre o sarcasmo e o humor expresso. Em virtude disso, os memes tem
se apresentado como objetos de debate constante, que devem ser discutidos nas aulas de
história.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O jornalismo sério, investigativo e imparcial cumpre um papel importante na
sociedade contemporânea por checar as informações e servir de mediador entre o cidadão e os
acontecimentos do cotidiano. Muitas vezes, na ânsia de sair na vanguarda, a preocupação com
a velocidade em produzir um conteúdo mais ágil pode acabar com essa credibilidade.
A informação precisa sempre está baseada na ética e na responsabilidade. Seja no
meio jornalístico ou acadêmico. Numa sociedade tecnológica, o educador assume um papel
fundamental como mediador das aprendizagens a medida que traz para dentro da sala de aula
o debate, tornando esse espaço propício para a reflexão e a mudança de paradigmas frente aos
desafios impostos pela realidade.
Cabe ao professor analisar cuidadosamente os materiais encontrados e colocados a
disposição dos seus alunos nas redes virtuais, compreendendo que os mesmos mecanismos
14

que permitem a proliferação das notícias falsas podem ser desmascarados com idêntica
rapidez.
É papel do professor/historiador analisar a fundo as informações que compartilha em
suas redes sociais próprias e os conteúdos que compartilha seja através de seus espaços de
interação virtuais ou na sala de aula, bem como utilizar aquilo que circula na internet com um
objetivo pedagógico e não apenas como passatempo, promovendo o debate necessário acerca
de determinadas posturas e posicionamentos.
Nos últimos anos temos visto aumentar as manifestações de todo tipo de preconceito e
ódio das redes sociais. Em nome da liberdade de expressão, internautas, usuários e grupos
intolerantes tem destilado veneno na rede e conquistado discípulos. A ignorância e a
intolerância precisam ser combatidas.
Merece a nossa atenção constante a questão dos memes sempre utilizarem imagens de
personagens de atores e atrizes de novelas, filmes e seriados contemporâneos, políticos e
personagens históricos para repassarem valores. A simbologia que esses personagens reiteram
é relevante, uma vez que se produzem falas, comportamentos, atitudes que se tornaram
sistemáticas e que passaram a construir significados na sociedade num determinado momento
histórico.
Em relação a isso, percebe-se que esses personagens integram o imaginário e ideário,
permeado de ideologias, representando classes, demonstrando poder e hegemonia de
determinados grupos em detrimento de outros.
A produção de memes deve promover uma reflexão sobre o uso da imagem, a
construção linguística, o conhecimento prévio, entre outros aspectos que são relevantes ao
conhecimento do aluno e sua consciência crítica sobre o uso das linguagens. O professor não
pode deixar de reconhecer que os memes, disputam as memórias do que é de fato
conhecimento histórico construído e sistematizado ao longo dos processos históricos.
Mas, se os memes interferem nas aulas, sobretudo nas de história, isso de algum modo
pode ser utilizado a favor delas. Essa nova forma de se comunicar e transmitir informações,
dependendo da abordagem que for dada pode render bons debates e aulas de história que
assegurem na prática o cumprimento do seu caráter questionador.
A disciplina de história é campo fértil para uma ação relevante sobre discussões do
presente e na formação de cidadãos autônomos, valorizando as marcas deixadas pelos homens
e que permitem uma interpretação dos seus atos cotidianos que possibilitaram a construção da
sociedade da sua época e os efeitos produzidos nas sociedades que os sucederam.
14

Refletir sobre as realidades vividas e as transformações, compreendendo o passado


sem perder de vista as peculiaridades dos desafios atuais é uma tarefa atribuída aos
professores de história. E esse exercício deve ser feito com a consciência de que não se deve
emitir juízo de valores. É necessário considerar as mentalidades próprias dos sujeitos
envolvidos, dos períodos estudados e observá- los com lentes do presente.

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Petrópolis: Vozes, 2007.
14

FÉ E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL: A CONTRIBUIÇÃO DA IGREJA CATÓLICA


CEARENSE PARA CONSOLIDAÇÃO DO PARTIDO DOS TRABALHADORES
(1982-1986)

Ciro Alcântara de Araújo1


Ilka Alcântara de Araújo2

Resumo: O presente trabalho se propõe compreender a ação evangelizadora da Igreja


Católica cearense, em face da Teologia da Libertação, entre 1982 e 1986. Tenta-se perceber a
influência dos católicos no campo político-partidário. Nesse sentido, a Igreja contribuiu para a
organização da Sociedade Civil em movimentos populares e, dessa base, foram lançadas
lideranças que ocuparam mandatos eletivos pelo Partido dos Trabalhadores (PT),
concretizando-o em um cenário de esgotamento político do regime militar e da política
tradicionalista dos governadores cearenses, popularmente conhecidos como “coronéis”. O
recorte temporal foi elencado com base em mudanças consideráveis na quantidade de
lideranças católicas apresentadas pelo PT, como também a representatividade recebida por
meio do sufrágio nos pleitos eleitorais de 1982 e 1986. Para tanto, articulamos reflexões sob
materiais usados pela Igreja nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), fontes
hemerográficas, livros.
Palavras-Chave: Igreja Católica. Partido dos Trabalhadores. Abertura Política.

A maior parte dos pesquisadores que se debruçaram sobre a origem e consolidação do


Partido dos Trabalhadores (PT) o caracteriza como uma novidade na política brasileira por
conta do processo de formação, proposta política e organização interna. Entre eles é
importante destacar os trabalhos de Meneguello (1989) e Keck (2010) devido ao poder de
síntese sobre o contexto histórico, institucional e como a agremiação se situava no quadro
partidário brasileiro.
Há um ponto convergente nas análises das autoras, onde o surgimento desse partido
estava diretamente ligado ao novo sindicalismo urbano e as mudanças socioeconômicas nas
quais levaram o fortalecimento de segmentos dos trabalhadores em fins dos anos 1970. Em
nosso trabalho, abordaremos um foco diferente, porém, tratando do mesmo objeto, ou seja, a
atuação dos católicos e o Partido dos Trabalhadores.
O contexto econômico em 1978 foi profundamente marcado pela crise, controle dos
preços e salários pelo governo militar. Então, os operários do ABC paulista organizaram-se
coletivamente para, publicamente, questionar a proibição das greves e a reposição dos salários

1
Autor: Mestre em História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), e-mail: cyru_@hotmail.com
2
Coautora: Mestranda em Saúde Pública pela Universidade Federal do Ceará (UFC-2019), e-mail:
ilkalcantara@yahoo.com.br
14

que não acompanhavam a elevação do custo de vida. A iniciativa partiu do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Bernardo quando comunicou a justiça do trabalho que não aceitava os
índices do governo.
Os sindicalistas do ABC deram início a uma jornada de greves que instigou vários
movimentos sociais por todo o Brasil. A mobilização impulsionou segmentos dos
trabalhadores para a discussão sobre a formação de um partido que representasse a classe
trabalhadora, uma possibilidade descortinada pela reforma partidária de 1979. Embora o
grande impulso para a formação do PT tenha sido o movimento sindical, outros sujeitos
sociais aderiram a proposta de criação desse partido. Eu diria mesmo que onde o “novo
sindicalismo” não teve uma influência mais presente, os grupos ligados à Igreja Católica e a
esquerda política tiveram uma importância muito maior. Líderes comunitários ligados as
Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), vinculados a Teologia da Libertação, parlamentares
de esquerda do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), intelectuais, membros de diversas
organizações de esquerda, militantes de diversos movimentos populares viram no PT a
viabilidade de participação na política institucional.
Para Keck (2010), o Partido dos Trabalhadores é um elemento raro na política
brasileira, pois no jogo político tradicional de interesses das elites, esse partido foi composto
em meio a organizações independentes e cada vez mais representativas que precisavam ser
institucionalizadas. Foi um movimento de “baixo para cima”. Keck caracteriza-o como uma
anomalia, um partido que não pertenceu ao establishment durante o período de transição do
regime militar para a democracia. O PT quebrou essa lógica de governo-oposição, conchavos
tradicionais e clientelismo político quando tomou para si, inicialmente, uma postura
isolacionista, se formalizou em 1980, participou das eleições em 1982 e não integrou o
Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo Neves. Assim, tomou para si a “lógica da diferença”
na política brasileira, identificando-se como uma agremiação fora do círculo governo-
oposição. A condição “anormal” e a “lógica da diferença” possibilitaram ao PT ser uma
alternativa ao poder, um partido que faria a mudança, primeiramente atuando no interior da
sociedade para, posteriormente, mudar a estrutura do poder estabelecido.
Nesse sentido, Meneguello (1989) destacou que a ligação do partido com os
movimentos sociais e a participação das bases nos processos decisórios garantiu o processo de
democracia interna. Os Núcleos de Base foram importantes e funcionavam como uma ponte
entre a sociedade e a agremiação, além de servir como um centro de educação política e
espaço de debate entre militantes. Os núcleos do PT não foram herança das células
comunistas, nem das seções socialistas.
14

Isto posto, os sindicalistas tiveram um papel fundamental na construção do partido em


São Paulo. A grave crise, política e econômica, impulsionou diversos segmentos dos
trabalhadores a unirem-se em torno do PT. Um partido cuja democracia interna era efetivada
pela nucleação das bases. Em grande parte, os núcleos tomaram a forma das CEB’s e foram a
manifestação política de uma organização popular. Não há dúvidas do caráter
extraparlamentar do partido e de sua capilaridade no seio da sociedade, da importância dos
operários do ABC paulista, porém:

Ainda é preciso trabalhar muito sobre a relação do partido com a Igreja Católica e
os movimentos sociais a ela vinculados, bem como sobre as diversas organizações
de esquerda que decidiram trabalhar no interior do PT. Sobretudo, faltam estudos
sobre o crescimento do partido fora de São Paulo, em especial durante a segunda
metade dos anos 80, quando passou a ganhar adeptos em âmbito nacional (KECK,
2010: p. 07-08).

Nos anos 1990 sugiram muitas pesquisas abordando a diversidade regional do Partido
dos Trabalhadores. Trabalhos como o de Petit (1996), Borges (1998), Azevedo (1996), mas
ainda é preciso estudar muito sobre a diversidade regional dessa agremiação. Para
entendermos o que ocorreu no Ceará, traçamos um recorte temporal de fundação entre 1980 a
1982, em que o PT apareceu como um conjunto de movimentos sem muita organicidade, um
conjunto núcleosde base com grande autonomia. Entre 1982 e 1986 ocorreu o período de
consolidação e que abordaremos mais adiante.
A década de 1980 foi um momento de ascensão política das massas, onde o partido
conseguiu absorver grande quantidade de força social. No Ceará, a fundação do PT teve uma
influência muito maior dos militantes ligados as Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) e da
esquerda revolucionária. O período de formação só foi superado a partir de 1982, após a
primeira experiência eleitoral. No intervalo entre 1982 e 1986 foram desenvolvidas a lutas dos
sem-terra através do MST, a luta pela reforma agrária com apoio de segmentos da Igreja
Católica, ocorreu a maior campanha de massas do Brasil que foram as Diretas Já, a campanha
pela Assembleia Nacional Constituinte, foi fundada a CUT, greves gerais, o partido
conquistou uma vitória eleitoral triunfante após eleger Maria Luiza Fontenele a prefeitura de
Fortaleza, a primeira prefeitura petista de uma capital no país, portanto houve uma força de
ascensão das massas que permitiu ao PT absorver boa parte dessa força social.
A esquerda tradicional orientada pela matriz marxista-leninista ou com forte vínculo
com a União soviética teve seu raio de ação delimitado, ofuscado pela presença do PT que até
então se autoproclamava como “nova esquerda”.
14

Para Garcia (1986), a novidade entre as esquerdas daquele momento era a crítica ao
marxismo-leninismo, com uma proposta de “esquerda social” baseada em tendências
anticapitalistas que se ergueram nos movimentos sociais, especialmente do movimento
operário e sindical. Essas tendências eram uma resposta à crise dos partidos comunistas no
final da década de 1970 e início dos anos 1980. Após a reordenação teórica, grupos como o
Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e
diversas tendências trotskistas contribuíram para a organização da sociedade civil em
oposição ao regime militar. O PT surgiu como o resultado da crítica à atuação dos partidos
comunistas e das experiências fundamentadas no “socialismo real”, mesmo recebendo setores
egressos da luta armada e de organizações marxistas que combateram o regime militar.
Então, foi num mosaico de organizações e disposições que a esquerda e segmentos da
Igreja Católica uniram-se em um projeto político partidário. No Ceará, a atividade do novo
sindicalismo não teve tanta importância como em São Paulo, visto que a esquerda radical
modificou seu corpo teórico e buscou fortalecer-se no meio popular. Por conseguinte, os
segmentos da Igreja católica atuavam no intuito de instruir os fiéis politicamente e trazê-los
para o centro do debate político. As CEB’s foram a grande ferramenta de ação dos católicos.

CATOLICISMO E A FACE RURAL DO PARTIDO DOS TRABALHADORES

Você que prega o evangelho


A milhões de irmãos seus,
Combate, imitando a Cristo,
Os césares e fariseus
Reflita orando e pregando
Que só com o povo reinando
Existe o reino de Deus. (NETO, 2009: p.39)

Os versos acima foram escritos pelo potiguar Crispiniano Neto, em 1981. O cordel
intitulado “A construção do partido de todos os trabalhadores” teve um caráter convidativo a
causa petista. O folheto de cordel não pertence aos gêneros políticos tradicionais, embora seja
frequentemente usado pelas agremiações políticas. Nele é mobilizado elementos da memória
discursiva para legitimar um discurso e construir subjetividades políticas.
Usamos esse cordel como uma forma de ler, interpretar, representar o tempo e uma
realidade concreta. Ele possui regras de elaboração e carrega uma semelhança com os fatos
vividos, de criar o real através da narrativa. Ele é ficcional, porém menciona o real através de
várias formas, desde negá-lo ou reafirmá-lo. Ele interpreta o presente, reflete sobre o passado
e lança uma imagem do futuro através de uma narrativa baseada no verossímil. É uma
15

expressão da experiência social e da invenção desse social, se tornando uma fonte histórica
das relações sociais.
Portanto, há um cruzamento nítido entre religião e política quando o autor descreve
“Que só o povo reinando existe o reino de Deus”. Nota-se o intuito de colocar “o povo” como
sujeito central no cenário político. Esse “novo sujeito” organizou-se através de “práticas
reivindicativas”, ou seja, por intermédio dos movimentos por moradia, contra a elevação do
custo de vida e desemprego, por mais saúde, educação, transporte coletivo, etc. Assim, Doimo
ao analisar os movimentos populares, em fins dos anos 1970 a meados de 1980, afirmou que
os movimentos organizados pela população:

Convergiram para um grande círculo reivindicativo, cujas conexões ativas são


evidentes: a Igreja Católica, agrupamentos de esquerda e organizações não
governamentais, em geral abrigando intelectuais e profissionais empenhados na
causa popular (DOIMO, 1997: p. 95).

A principal forma de organização dos católicos se dava por meio das CEB’s. Por isso,
a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) publicou uma série de estudos sobre a
formatação das comunidades eclesiais que estavam divididas em regiões episcopais com seus
conselhos regionais. A seção responsável pelo Ceará é Regional Nordeste I. Essa teve como
presidente Dom Aloísio Lorscheider e sua primeira Assembleia Geral realizou-se, na Diocese
de Limoeiro do Norte, em novembro de 1980. Sua abrangência era de nove Dioceses:
Fortaleza (Arquidiocese), Crato, Crateús, Iguatu, Itapipoca, Limoeiro do Norte, Quixadá,
Tianguá e Sobral.
As CEB’S foram fundamentais no processo de organização da sociedade civil. Elas
possuíam encontros para praticar a religiosidade, viver na “comunhão” e debater os problemas
conjunturais do cotidiano. O grande tema que aflorou nesses debates foi a posse e uso da
terra, sendo que a Regional Nordeste I se posicionou frente aos graves contrastes sociais no
sertão cearense. A pastoral da terra foi uma prioridade da Igreja durante a década de 1980.
Os trabalhadores rurais, habituados com as relações de submissão e violência
predominantes no sertão cearense, encontraram na religiosidade uma alternativa
organizacional que os uniram para além do campo espiritual e que pôde articular a identidade
do homem em torno de um projeto político, social, econômico e religioso. Foi por meio da
religiosidade que vários camponeses ingressaram no espaço político. Para Leonardo Boff:

Os pobres organizados e conscientes batem as portas dos seus patrões e exigem


vida, pão, liberdade e dignidade. Começam ações que visam libertar a liberdade
15

cativa; emerge a libertação como estratégia dos próprios pobres que confiam em si
mesmos e em seus instrumentos de luta como os sindicatos independentes,
organizações camponesas, associação de bairros, grupos de ação e reflexão,
partidos populares, comunidades eclesiais de base (BOFF, 1986: p.17).

A fé e a política estabelecem dois polos de tensão, sendo vivenciadas de formas


diferentes em diferentes conjunturas. A fé parte de uma perspectiva que transcende a história
dos homens, enquanto que a política forma como o homem constrói a sociedade. O ato de ver
os fatos sociais, julgar a luz do evangelho e agir diante dos problemas fez com que os
católicos usassem taticamente da política partidária para atingir um objetivo muito maior que
estava diretamente ligado a questão de classe.
Aqui, abordaremos como a Regional Nordeste I contribuiu para a organização da
sociedade civil cearense. Segundo Olinda (1991) o PT-CE foi formado, em 1980, quando
houve um congresso que reuniu os movimentos pró-PT no Ceará. Em um Convento
Carmelita, na periferia de Fortaleza, foi eleita a primeira comissão provisória. Em 1982, o
partido enfrentou sua primeira disputa eleitoral contra os “coronéis” militares Adauto Bezerra,
Virgílio Távora e Cesar Cals.
A Igreja Católica se posicionou contra o clientelismo político nessas eleições.
Entretanto, optou por um envolvimento indireto, ficando restrita a ação de conscientização
política dos eleitores, apesar da simpatia com a oposição. A Regional Nordeste I divulgou, em
novembro de 1981, da Cartilha de Educação Política. Dom Aloísio Lorscheider demonstrou
que o intuito era de “não manipular ninguém, proporcionando apenas os elementos
necessários para que as pessoas possam se situar sem perplexidade, encontrando o caminho
do bom engajamento político” (CNBB-REGIONAL NORDESTE I, 1981, p.2).
Na discussão referente aos partidos políticos, o documento possui uma inclinação
favorável para os partidos de oposição através do argumento de que “Jesus defendia o direito
dos pequenos que não tinham nem voz, nem vez e era contra os grupos que estavam no poder
e abusavam da autoridade para explorar o povo” (CNBB-REGIONAL NORDESTE I, 1981,
p.20). Mas o documento não tomou nenhum partido como referência.
As CEB’s discutiram essa cartilha por todo o estado. Apesar da Igreja não possuir nem
candidatos, nem partidos oficiais, sua orientação era de oposição ao regime militar. Alguns
segmentos da Igreja passaram a ter uma participação maior no PT de partir de 1982, chegando
a apresentar uma chapa para a presidência do partido em 1984 e contribuir para eleger
deputados em 1986.
15

O Partido dos Trabalhadores encontrou muitas dificuldades para estruturar-se por que
além de cumprir sua tarefa partidária de educar e organizar as massas, ele se colocava em
oposição ao tradicionalismo político. O partido não conseguiu eleger políticos no Ceará.
Segundo Paulo Mamede, candidato a deputado estadual:

O PT não tinha estrutura para participar de uma eleição daquele porte. Lançar
candidatos a vereador, deputado estadual, federal, senador e governador era barra.
Mas o mundo é dos loucos. O PT lança chapa própria, “de cabo a rabo”. Américo
Barreira era o governador, Manuel Fonseca o vice, William Montenegro o senador.
Conseguimos ainda nomes para deputados estadual e federal, Gilvan foi candidato
a deputado federal. Eu deputado estadual. O partido obteve cerca de 10 mil votos,
não elegeu ninguém mas conseguimos o registro. O PT era um partido legal.
(ROCHA, 1996, p.14)

O trecho descrito por Paulo Mamede é muito revelador, pois os principais candidatos
do partido, governador e senador, eram da esquerda política. Esse fato nos leva a crer que
nessas eleições os católicos tiveram uma liderança limitada, porém primordial. Quatro anos
depois, em 1986, os católicos engrossaram as fileiras do partido.
Segundo o coordenador estadual das CEB’s, havia uma estimativa de 3.500 a 4.000
CEB’s no Ceará em meados da década 1980, sendo significativas em “Crateús(700), Itapipoca
(612), Iguatu (700) e Limoeiro do Norte (200) ” (O POVO, 21 de junho de 1986, p.12).
Haviam CEB’s espalhadas por todo o território cearense e que suas lideranças formaram
muitas associações, consequentemente combatiam, juntamente com a esquerda, o
sindicalismo vinculado ao governo dos “coronéis”.
O Caderno Pastoral n. 51, publicado em agosto de 1986, intitulado “Diretrizes da ação
pastoral da Igreja que está no Ceará”, evidencia a presença de dois modelos no interior da
Igreja. Primeiro, um modelo majoritário que atenta para a salvação eterna do indivíduo, sem
contemplar profundamente uma transformação da sociedade e suas contradições sociais. É um
modelo orientado para o individualismo cristão e seu princípio de honestidade, sua fé é
devocionista, fazendo uma leitura individualista dos mandamentos de Deus e da Igreja. O
segundo é o minoritário que almejava a construção de uma nova sociedade, dentro de uma
perspectiva comunitária, marcada por uma tendência “sócio-crítico-profético-transformadora”
no processo histórico da vida cristã. A Regional Nordeste I priorizou, através desse
documento, o modelo designado como minoritário de Igreja, cujo objetivo era evangelizar os
mais pobres, entendidos como oprimidos.
No entendimento dos progressistas da Igreja, a concentração de terras estaria em
oposição ao “plano divino” para a sociedade. Por isso, ela assumiu a responsabilidade de
15

“despertar a consciência dos lavradores para a conquista dos seus direitos e a participação nos
sindicatos, partidos políticos e movimentos populares”. Para chegar a esse fim, os católicos
teriam que “coordenar e divulgar experiências da pastoral da terra, vivências nas dioceses,
criar a mística da terra através dos seminários, encontros e publicações, apoiar autênticas
organizações dos trabalhadores” (CNBB- REGIONAL NORDESTE, 1986, p. 23 e 24).
A Igreja fortaleceu a oposição ao regime militar por meio dos seus documentos, com
críticas às injustiças sociais, a concentração de terras e a pobreza. A Igreja não possuía um
partido, nem candidatos oficiais e seu discurso era muito difuso com relação aos partidos
políticos. Isso seria uma escolha individualizada, onde o sujeito analisaria qual a melhor
agremiação e candidato. Mas, o discurso oposicionista e as críticas aos problemas estruturais
aproximavam parte dos fiéis ao Partido dos Trabalhadores, principalmente aqueles orientados
pela Teologia da Libertação.
Os segmentos progressistas da Igreja mostraram sua força quando lançaram a
candidatura de Padre Haroldo Coelho ao governo do Estado. Ele atingiu a quantidade de
68.044 votos ficando em terceiro lugar. Em segundo, com 807.315 votos, o “coronel” Adauto
Bezerra. O governador eleito foi Tasso Jereissati (PMDB) com 1.407.693 votos. A grande
conquista do PT foi eleger dois deputados estaduais João Alfredo Telles deMelo e José Ilário
Gonçalves Marques. Ambos advogados que atuavam junto aos sindicatos dos trabalhadores
rurais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A origem e consolidação do Partido dos Trabalhadores no Ceará ocorreu devido a
metamorfoses políticas e econômicas que ofereceram condições para viabilidade eleitoral de
determinados segmentos da classe trabalhadora, destacamos tal confirmação quando o regime
militar passou pela abertura política e segmentos da sociedade civil organizada buscaram
meios de representação. Isso foi uma resposta as diversas crises daquele momento como as
crises econômicas, das esquerdas, sindicalismo agregado ao estado, a política tradicionalista
dos militares, a maior expressividade dos católicos progressistas por meio das Comunidades
Eclesiais de Base e a “politização” dos camponeses contra a indústria da seca.

REFERÊNCIAS
FONTES:
Bispos desmentem invasão de terras no Ceará. O Povo. Fortaleza. 21 de junho de 1986q.
p.12.
15

CNBB- REGIONAL NORDESTE 1. Diretrizes da ação pastoral da Igreja que está no Ceará.
Fortaleza, [s.l.:s.n.] (Cadernos Pastorais, n.51).
CNBB- REGIONAL NORDESTE I. Cartilha de Educação Política. Fortaleza, 1981

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2009.
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GARCIA, Marco Aurélio. Contribuição à história da esquerda brasileira, 1960-1979: in
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da democracia brasileira. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010
MENEGUELLO, Rachel. PT: a formação de um partido 1979-1982. São Paulo: Editora
Paz e Terra, 1989.
OLINDA, Ercília Maria Braga de. A dimensão educativa do partido político. Fortaleza:
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PETIT, Pere. A esperança equilibrista: A trajetória do Partido dos Trabalhadores no Pará,
São Paulo; Boitempo,1996.
ROCHA, Gilvan. Vermelho é a cor da esperança: textos socialistas. Fortaleza: Expressão
Gráfica Ltda, 1996c.
15

A SECA E A PESTE: ADOECIMENTO E SAÚDE PÚBLICA NO CEARÁ


DURANTE A SECA DE 1877-1879.

Daniel dos Santos Carneiro1

RESUMO: O presente trabalho se propõe a analisar a Saúde pública e as doenças que


acometeram a população cearense no período da grande seca entre os anos de 1877 e 1879.
Compreendendo que o termo saúde pública também engloba saúde coletiva, a qual trabalha na
perspectiva de identificar variáveis de cunho social, econômico e ambiental que possam
culminar no desenvolvimento de epidemias em determinadas regiões. O estudo tem como
fonte de dados os relatórios de Presidentes da Província; o jornal O Retirante; as obras:
Varíola e Vacinação e História da Seca no Ceará (1878-1880) de Rodolfo Teófilo; além dos
relatórios da Santa Casa de Fortaleza 1877-1879 direcionados ao presidente da província e as
revistas do Instituto do Ceará. Assim, problematiza as ações no campo da saúde que visavam
combater epidemias e a disseminação de doenças, tais como a peste e a varíola,
principalmente quando políticas e projetos relacionados ao tema eram utilizados como
instrumentos de afirmação de hierarquias sociais e disciplinamento da população pobre.
Palavras chave: Saúde pública. Seca. Adoecimento.

A seca no Ceará: Aspectos ambientais e sociais.


A seca enquanto fenômeno climático é um fator natural que ocorre em diversas partes
do mundo com diferentes aspectos. No que diz respeito ao Ceará, o mesmo está situado na
porção sertão, ou Polígono das Secas no nordeste semiárido. As demais regiões do Nordeste
são a Zona da Mata e o Agreste., a região na qual situa-se o Ceará, as chuvas são irregulares,
com índices pluviométricos que vão diminuindo até atingir 279mm por ano. Outro fator que
torna a seca no Ceará ainda mais voraz e marcante é o fato de ser o único estado do nordeste a
não dispor da zona da mata e do agreste, sendoa ligação feita direto do sertão para o mar,
caracterizando se assim como uma espécie de ilha regional, marcando a paisagem, a vida
social e os índices pluviométricos em extremos. Outro ponto que merece ênfase é o fato de
que a seca não se caracteriza somente pela ausência de chuvas e sim também pela distribuição
irregular das mesmas no tempo e espaço.
Do ponto de vista topográfico2, Ceará é divido em litoral, Serras ou montanhas e
sertão ou parte central.2 A definição do verão ou estação seca, considerada como a estação
mais longa, comumente começa em junho e se estende até dezembro, é caracterizada pela
falta absoluta de chuvas. A definição da estação chuvosa, o inverno e os meses chuvosos são

1
Discente do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Humanidades pela Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-brasileira UNILAB.
2
NOGUEIRA. Paulinho. Revista do Instituto do Ceará. ANO III – TOMO III- 1889 – 1º TRIMESTRE DE
1889. P.8
15

entre dezembro e junho, sendo que as chuvas que ocorrem entre dezembro e janeiro são
consideradas chuvas de pré-estação, as quais ocorrem principalmente no Cariri, influenciados
pela frente fria que se posiciona na Bahia, sul do Maranhão e Piauí no mesmo período.3

Secas e Epidemias no Ceará


As secas registradas no século XIX foram as de 1808-1809; 1816-1817-1816 e 1824-
1825, 1830, 1833, 1844-1845 e a de18774. Mesmo sendo assolado pela irregularidade
climática, o Ceará vinha apresentando prosperidade na indústria extrativa com a borracha,
cera de carnaúba e de abelhas, madeiras, agrícola, Fabril e comércio. Na indústria agrícola,
produtos como algodão, café, cana, fumo, farinha de mandioca, arroz milho e feijão dentre
outros sustentavam a prosperidade econômica do Ceará. Porém, a ideia de prosperidade
econômica sempre era interrompida pelas secas As imagens da última seca da primeira
metade do século XIX , de 1844-1845 ja trouxe o caos, pestes e uma leva de retirantes em
busca de socorros públicos, todavia, a economia de subsistência em 1845 ajudou a reduzir os
impactos causados pela seca, que só voltariam a assolar o Ceará três décadas depois.
Rompendo a ilusão de prosperidade decorrente da situação econômica dependente da
regularidade das chuvas e em número populacional relativamente grande, seguindo o processo
de modernização encabeçado pela Capital do Império, a grande seca chegou ao Ceará de
maneira voraz, combinando fome, e adoecimento! Mesmo que na forma de casos esporádicos
no primeiro ano de seca a varíola torna a aparecer:

A 16 de junho, apareceram alguns casos de varíola na capital, entre os retirantes;


os enfermos foram immediatamente recolhidos ao Lazarento da Lagôa-Funda. O
desembargador Estellita, temendo que a varíola tomasse caracter epidemico,
ordenou ao Dr. João da Rocha, inspector da saúde pública, que propagasse a
vaccina o quanto fosse possivel. A solicitude do Dr. Morerira no cumprimento
d’esta ordem foi inpotente ante a repugancia do retirantes. Or mais que se
mostrassem as vantagens da vaccina, não se convenciam:- Deus nos livre de metter
a peste no corpo diziam eles.5

A partir do trecho citado, percebe-se que de fato, mesmo com o advento da seca, a
varíola não estava caracterizada de forma epidêmica! Porém como apresentado, algumas
questões foram cruciais para que no segundo ano de seca tal moléstia tomasse forma

3
http://www.funceme.br/produtos/script/chuvas/Grafico_chuvas_postos_pluviometricos/totalchuvas/index.htm
4
TEÓFILO, Rodolfo. História da seca do Ceará (1877-1880). [1883]. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa,
1922..P.11
5
Ibidem. TEÓFILO. 1922. P.99
15

epidêmica: A resistência da população de retirantes ao processo de vacinação, a ineficiência


da mesma, e os processos de contenção em forma de abarracamento e as frentes de trabalho.

A comissão de engenheiros
As obras públicas com trabalhos para retirantes não estavam restritas à capital. Dentre
os melhoramentos e obras feitas na província pelos socorros públicos, Sobral foi “agraciada”
com obra de açude e cadeia Pública. Em todos os locais da província foram estabelecidas
obras, pois o caos gerado pelo corte de socorros públicos para o interior so aumentou os danos
na capital:

Quando o conselheiro Aguiar tomou conta da administração, encontrou na capital ,


uma população de 42.931 retirantes, dividida em cinco districtos [...] A 31 de
dezembro, trinta de quatro dias depois do acto da presidência restringindo os
socorros para o interior, a população adventicia da capital elevava-se a 83 mil
almas. Tinhamos mais de 40 mil pessoas desabrigadas. Foi então que o conselheiro
Aguiar reflectiu em seu erro, mas já era tarde. Approximava-se o inverno e o que
viria a ser dos infelizes sem tecto: Construir abarracamentos não era a medida que
fosse realizada com a presteza exigida pela necessidade 6

Tal comissão também se encarregaria de examinar os açudes existentes, investigar


locais no Ceará ou vizinhanças que fossem favoráveis para abrigar as pessoasna falta de
meios de subsistência. Contudo, enquanto as aglomerações só aumentavam, ao caos social
somava-se o pavor contra as doenças, entre as quais a varíola.
O termo varíola, também conhecido como bexiga, vem do latim: varius = mancha ou
varus = pústula7. Posteriormente, no século XV, o termo smallpox (pústula pequena) foi
empregado para diferenciar da sífilis, (pústula grande).A distinção referia- se tanto ao
tamanho da lesão como à população acometida, pois no século XV as crianças eram as
principais vítimas da Varíola. É muito controverso precisar o surgimento específico da
Varíola, sendo poucos os indícios de sua existência anterior ao século X, sugerindo que a
determinação de suas causas poderiam confundir-se com os relatos acerca das demais pragas
na História antiga. Toledo relata que um determinado grupo de epidemias poderiam estar
relacionadas à varíola como também a outras pragas como a peste negra ou a praga dos
Hititas, originária do Egito. O fato é que diversas epidemias foram relatadas ao longo da
história, sugerindo Varíola. Uma teoria apresentada pelo Médico sugere que no Egito mesmo

6
TEÓFILO, Rodolfo. História da seca do Ceará (1877-1880). [1883]. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa,
1922. P. 140-141
7
TOLEDO, Júnior Antônio Carlos de Castro. Pragas e Epidemias: Histórias de doenças infecciosas. – Belo
Horizonte: Folium, 2006. 152 p.
15

não havendo relatos do acometimento da população pela varíola anterior à era Cristã, achados
de lesões cicatriciais em múmias indicam a doença em três múmias entre 1580 e 1100 a.C.
outra teoria defendida em 1767 pelo médico Howell 8 com base no Atharva Veda9 acreditava
que a Varíola existia há séculos na Índia. Tal Teoria foi questionada pelo Historiador e
antropólogo Sir Nicholas o qual afirmou que a masurika (Varíola) só viria a ser descrita na
medicina indiana no Século VI, sendo defendida por Nicholas a teoria de que a varíola foi
introduzida na Índia no primeiro milênio antes de Cristo por mercadores egípcios.
No que diz respeito à expansão da varíola no mundo, entre os séculos XI e XIX, ela
atingiu toda a Europa com exceção da Rússia, sendo que em relação a tal peste:

Era possível observarem-se dois padrões epidemiológicos distintos. Em grandes


cidades ou em regiões densamente povoadas, ela tinha caráter endêmico, atingindo
quase que exclusivamente crianças, com grandes epidemias em intervalos variáveis.
Já nas cidades menores, e em regiões de baixa densidade populacional, apresentava
caráter exclusivamente epidêmico, com surtos ocorrendo de tempos em tempos e
atingindo todas aas faixas etária10.

Desta forma, compreende-se que “A varíola era, portanto, importante problema de saúde
pública na Europa, [...] em alguns locais, a criança só era considerada membro da família e
só recebia seu direito de herança e o nome da família após sobreviver à varíola”11
Após causar danos em diversas parte do mundo, no Ceará, desde o início da segunda
metade do século XIX que a varíola já aparecia de forma esporádica, sendo a transmissão de
pessoa para pessoa, através do convívio e pelas vias respiratórias, não sendo transmitida
através de animais.

A transmissão ocorre de pessoa para pessoa por meio do convívio e geralmente


pelas vias respiratórias. Uma vez dentro do organismo, o vírus da varíola
permanece incubado de sete a 17 dias. A seguir, ele se estabelece na garganta e nas
fossas nasais e causa febre alta, mal-estar, dor de cabeça, dor nas costas e
abatimento, esse estado permanece de dois a cinco dias, para finalmente atingir sua
forma mais violenta: a febre baixa e começa a aparecer erupções avermelhadas,
que se manifestam na garganta, boca, rosto e que depois espalham-se pelo corpo
inteiro. Isso ocorre, porque a varíola parasita as células do tecido epitelial para se
reproduzir. Com o tempo, as erupções evoluem e transformam-se em pústulas
(pequenas bolhas cheias de pus), que provocam coceira intensa e dor – nesse
estágio o risco de cegueira é maior, pois, ao tocar o olho, o enfermo pode causar
uma inflamação grave.12

8
Médico da British East Índia Company.
9
Livro Sagrado do Hinduísmo.
10
TOLEDO, Júnior Antônio Carlos de Castro. Pragas e Epidemias: Histórias de doenças infecciosas. – Belo
Horizonte: Folium, 2006. 152 p. 20
11
Ibidem. TOLLEDO, 2006. P.22
12
Idem..
15

O processo de tentativa de medicalização tardia, aliada ao aumento da emigração,


resistência, prolongamento da seca e desnutrição foram um combinação perfeita para o
avanço da doença transmitida pela Orthopoxvírus variolae 13 , sendo um vírus resistente as
variações externas como calor, umidade e variações de temperatura. Além de bastante
resistente às variações climáticas apresentadas, ela também se manifestava sob diversas
formas. Na epidemia apresentada, manifestou-se sob as formas confluente, de canudo, e
hemorrágica
No ano de 1878, a varíola tornou-se uma questão de saúde pública, frente uma
população de aproximadamente 110 mil retirantes, sendo que a Capital tinha pouco mais de
20 mil habitantes:

A população de Fortaleza podia-se calcular em 130 mil pessoas das quaes 110 mil
eram retirantes, que acossados[...] Desta grande massa de famintos noventa e cinco
por cento não eram vacinados. Nunca em parte alguma do mundo um morbus
encontrou terreno mais apto a sua germinação e desenvolvimento[...] dessa
multidão que alem de não ter a imunidade[...] vivia na mais completa infracção dos
mais rudimentares preceitos dehygiene. [...] imagine-se uma população da qual
apenas em cem mil pessoas existiam cinco mil preservadas pela vaccina.14

Como citado anteriormente, a varíola é resistente às oscilações de clima e temperatura,


portanto houve uma espécie de união microbiana pela combinação do caos perante a falta de
estrutura da urbes, aliada à ausência ou mesmo implantação de uma política de higienização
eficiente. Portanto, às estatísticas do primeiro ano de seca como apresentado anteriormente,
chegava a cada dia mais retirantes, sendo mantidos afastados dos centros urbanos através do
trabalho e fixação de abarracamentos, espaços de aglomeração de multidões, um dos motivos
justificados por Teófilo para o agravamento da varíola era a ausência de vacinação: “
tinhamos um instituto vaccinogenico e a lympha vaccinica, que nos era enviada de tempos a
tempos pela repartição da Hygiene Publica do Rio de Janeiro, raramente dava resultados.” 15
Portanto era uma questão maior que vacinar. Além de resistência à vacina, havia ainda as
dúvidas quanto ao seu efetivo resultado.
A atitude por parte do governo da província neste período foi de solicitar ao Rio de
Janeiro iniciar o processo de vacinação junto aos abarracamentos (TEÓFILO, 1997). Porém,
além da qualidade da vacina deixar a desejar ainda havia processo de resistência por parte da

13
http://www.fiocruz.br/biosseguranca/Bis/infantil/bioterrorismo.htm
14
TEÓFILO, Rodolfo: Varíola e vacinação no Ceará. [1904]. Ed. fac-sim. Fortaleza: Fundação Waldemar
Alcântara, 1997. P.6-7.
15
Ibidem. TEÓFILO, 1997.P.8
16

população como apresentado anteriormente e um traço marcante do período que era


medicalizar quando a doença já estivesse fora de controle.
Neste contexto, surgem as inciativas para isolar doentes tentando assim impedir a
infecção nos demais setores da população.
Além da Santa Casa de Misericórdia, a capital contava com o Lazarento da Lagoa
funda, projetos para acomodar 300 doentes em condições de isolamento, situado a três
quilômetros de Fortaleza.16
Não bastasse os perigos da varíola, outras moléstias aproveitaram as precárias
condições sanitárias provocadas pelas emigrações em massa para ganhar as ruas:

Os jornais continuavam a classificar de febre amarella as febres biliosas que então


reinavam. Assim noticiavam elles, de 1 a 20 de agosto, quarenta obitos feitos por
aquella terrivel doença. As moléstias que entao grassavam, e de preferencia nos
emigrantes, eram febres remittentes e intermittentes, desynteria e a terrível
inchação (anasarca) na maioria dos casos devida aoenvenenamento ela mucunã.
Para curar este enfermidade o povo, em sua medicina, applicava o cosimento de
laranja da terra com mel de furo, e o chamam caco. Davam neste ultimo na dose de
uma pitada em uma chicara d’agua morna ao deitar-se [...] quando a moléstia não
estava muito adiantada, conseguia-se restabelecer o doente com drasticos
tonicos.17

Outra moléstia também muito comum no período foi a tísica, nome popular para a
tuberculose. Pensando etimologicamente, o termo deriva do grego phthiso, que significa
decair, definhar. Ao logo do tempo também foi denominada como “peste branca” e “mal do
peito”. Não se sabe especificamente as origens, mas acredita-se que remota de oito mil anos, e
a forma de contágio deu-se a partir do contato com auroques uma espécie de boi que foi
extinto no século XVII, os quais estariam contaminados com a espécie da tuberculose bovina,
a Mycobacterium bovis.
Apesar de ter se manifestado de forma endêmica e epidêmica entre a população
brasileira a tuberculose foi encontrada no período pré-colombiano 18, especialmente na forma
óssea, porém, pode atingir pulmões, rins, pele e intestinos dentre outros órgãos. Na forma
óssea, a doença acomete a coluna em cerca de 50% dos casos, resultando na perda de um
corpo vertebral, causando dentre outros aspectos desvio da coluna que varia de 30 a 35º. O

16
Ibidem. TEOFILO, 1997. Pp.11
17
TEÓFILO, Rodolfo: História da seca do Ceará (1877-1880). [1883]. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa,
1922P.111
18
GURGEL, Cristina: Doenças e curas: O Brasil nos primeiros séculos. 1. Ed. 2º reimpressão. – São: Contexto,
2011. P.43
16

termo tuberculose como conhecemos teve origem em 1839 por Schoenlein baseado no nome
da em 1860 por Sylvius à lesão nodular, o tubérculo encontrado em pulmões de doentes.19

Combate às doenças: Entre a higienização e controle social.


Não diferente das demais cidades do período, os centros urbanos do Ceará como
Fortaleza e Sobral também estavam passando pelo processo de embelezamento, e
disciplinarização dos espaços. Com o advento da grande Seca tal processo “civilizador” foi
desequilibrado, gerando assim o caos nas cidades do Ceará com maior recurso. Diante da
população de retirantes que se deslocavam em busca de socorros, o desembargador Estellita
tomou a seguinte medida que serviria de modelo para ampliar, ocupar e conter a invasão de
flagelados e das doenças que os acompanhavam:

Crescendo sempre a calamidade, entendeu o desembargador Estellita ser preciso


propocionar o quanto antes aos retirantes a subsistência por meio do trabalho.
Pensando assim, em 7 de setembro, fez assentar, n’um terreno proximo á povoação
de Arronches, e para isso generosamente offerecido pelo commerciante Manoel
Francisco da Silva Albano, a pedra fundamental do asylo de alienados. Entretanto
isso não impedia a emigração nem a insalubridade [...] Admira que a variola não
tivesse tomado caracter epidemico, attendendo-se não só a aglomeração de
individuos nos abarracamentos, como tambem o grande numero de emigrantes não
vaccinados.20

Desta forma, ocupar os retirantes, fazendo-lhes prover o próprio sustento, mantê-los


longe do centro da Capital que passava por seu processo de embelezamento, tratava-se
também de uma medida criada para conter a população “osciosa”. Junto com este processo
vem o que Sidney Chalhoub21 apresenta como a criação do conceito de “classes perigosas”,
termo que ganhou força a partir da justificativa de se buscar novas formas de controle da
população de cor fosse escrava ou liberta da segunda metade do século XIX. Se na Capital do
Império, tais povos eram tidos como responsáveis pelas mazelas sociais, no Ceará, tal termo
será empregado aos retirantes:

Quem observar o quadro lastimoso de desenas e desenas de mendingos, que se


apresentão diariamente em algumas ruas d’sta bella e florescente capital não pude
de deixar de lamentar a falta de uma casa onde só recolherão essas creaturas
infelizes, muitas das quais entregues aos execrandos vicios da embriaguez e até da

19
Ibidem. Gurgel, 2011. P.44.
20
TEÓFILO, Rodolfo. História da seca do Ceará (1877-1880). [1883]. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa,
1922.(P.113-114.)
21
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996
16

libertinagem! Braços que tratados e guiados convenientimente poderão prestar


ainda bons serviços, produzindo vantagens para ajudar sua sustentação.22

Além da disciplina através do trabalho, o poder público também estava atento ao


crescente número de saques ou desvios de socorros:

Na primeira quinzena de novembro, foram remetidos generos e dinheiros para as


localidades seguintes: Maranguape, Tucunduba, Imperatriz, S. Francisco, Sobral,
Acarape [...] O governo enviava socorros até para os pontos mais centraes da
provincia, alguns a mais de cem leguas da capital. [...] algumas d’essas remessas
não chegavam a seu destino, porque ou eram roubadas pelos salteadores, ou
subtrahidas pelos proprios freteiros.23

Partindo da associação entre epidemias e aglomeração de pessoas das classes


populares ou perigosas, avançou ainda projetos de higienização. No que diz a tal processo,
chalhoub24 apresenta o processo de reorganização do espaço urbano, e gestão de classes no
Rio de Janeiro pautado dentre vários aspectos como a idealização do conceito de classes
perigosas. O termo buscava dentre inúmeros aspectos depreciar os povos negros criando uma
relação entre os mesmo e uma espécie de ameaça social. Ao culpabilizar a população negra
fosse livre, fugitiva, trabalhadora ou marginal, criava-se uma justificativa para intervir junto
aos espaços de habitações coletivas, estabelecendo assim novas formas de controle. Seja pela
política idealizada no Rio de Janeiro, ou seja, pelo caos gerado pelas secas, o termo classes
perigosas foi empregado no Ceará ao se referir a população de flagelados que desembargam
nos grandes centros urbanos da época em busca de socorros.
Os discursos e práticas que buscavam disciplinar retirantes através do trabalho acabam
tornando a vida dos migrantes ainda mais difícil, inclusive as possibilidades de trabalho
oferecidas ajudavam a debilitar mais ainda a saúde da população pobre:

Os comissarios, distribuidores de socorros, tinham ordem de dar ração ao retirante


unicamente no dia da chegada. No dia seguinte, se queria ter o direito a socorro,
devia ir á pedreira do Mocuripe ma legua distante da Capital carregar pedras!
Uma viagem de duas léguas com um peso de 15 kilogrammas, [...] seria nada para
um organismo são e vigoroso, mas para um enfermo, que tinha os membros tolhidos
do cansaço de tantos dias de jornada, era bastante para acabar de extenual-o,
roubando-lhe depois a vida. Tivemos ocasião de ver por muitas vezes essas

22
Relatórios da Santa Casa do Ceará. Maio de 1877, pelo vice provedor José Francisco da Silva
Albano, P. 6.
23
TEÓFILO, Rodolfo. História da seca do Ceará (1877-1880). [1883]. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa,
1922..( P 125-126.)
24
24 Ibidem. 20. CHALHOUB, 1996.
16

victimas, inanidas, tropegas, ecaveiradas gemendo sob o peso de uma pedra,


porque em casa a familia se estorcia nas cascas da fome. 25

Tais condições levavam a um aumento da mortalidade se não por doenças, por fome.
Segundo Teófilo, ao final do ano de 1878 38 pessoas foram mortes exclusivamente por fome.
E ao se imaginar as possibilidades daqueles que não entraram nas estatísticas, que morreram à
beira nas estradas pode ser alarmante. A população decrescia, mais dizimada pela forme e
seus efeitos que pelas moléstias, quase todas devidas ou a insuficiência alimentar ou a má
qualidade da mesma.26

REFERÊNCIAS
FONTES:
TEÓFILO, Rodolfo. História da seca do Ceará (1877-1880). [1883]. 2. ed. Rio de Janeiro:
Imprensa Inglesa, 1922.
. A seca de 1915. Fortaleza: Tipografia Moderna, 1919.
. Secas do Ceará (segunda metade do século XIX). Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa,
1901.
. Varíola e vacinação no Ceará. [1904]. Ed. fac-sim. Fortaleza: Fundação Waldemar
Alcântara, 1997.
. Varíola e vacinação no Ceará (nos anos de 1905 a 1909). Fortaleza: Tipografia
Minerva, 1910.
. 1853-1892. A fome: cenas da seca do Ceará; organização e notas de Waldemar
Pereira Filho; posfácio de Lira Neto.- São Paulo: Tordesilhas, 2011.
BRASIL, Thomaz Pompeu de Sousa. Salubridade. In: O CEARÁ NO CENTENÁRIO DA
INDEPENDÊNCIA DO BRASIL. Fortaleza. Tip. Minerva, 1922. P. 473-562
Relatórios referente à saúde pública e caridade da Santa Casa de Misericórdia do Ceará. Ano
de 1877.
Relátorios do Annexos á falla com que o ex.mo sr. dezembargador Caetano Estellita
Cavalcanti Pessoa, presidente da província do Ceará, abriu a 2.a sessão da 23.a legislatura da
respectiva Assembléa no dia 2 de julho de 1877. Fortaleza, Typ. do Pedro II, 1877.

BIBLIOGRAFIA:
Almeida Filho, Naomar, 1952- Introdução à epidemiologia. 4º. Ed. Ver. E ampliada. –
[Reimp.] Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2014.

25
TEÓFILO, Rodolfo. História da seca do Ceará (1877-1880). [1883]. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa,
1922.( P.132)
26
Ibidem, TEÓFILO, 1922.. P. 137.
16

CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989.
GURGEL, Cristina: Doenças e curas: O Brasil nos primeiros séculos. 1. Ed. 2º
reimpressão. – São: Contexto, 2011.
MARQUES, Vera Regina Beltrão. A medicalização da raça: médicos, educadores e
discurso eugênico. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1994. ( Coleção Ciências
Médicas).
SÁ, Isabel dos Guimarães. As misericórdias portuguesas, séculos XVI A XVIII/ Isabel dos
Guimarães Sá. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.
THEOPHILO, Rodolfo. Varíola e Vacinaçao no Ceará: Primeiro milheiro / Rodolpho
Theophilo – Ed. Fac – sim. – Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1997. 244 P. _
(Coleção Biblioteca Básica Cearense)
TOLEDO, Júnior Antônio Carlos de Castro. Pragas e Epidemias: Histórias de doenças
infecciosas. – Belo Horizonte: Folium, 2006.
WEYNE, José de Freitas. Seca e Socorros no Ceará. Revista Projeto História, São Paulo, n.
52, pp. 178-219, Jan.-Abr. 2015.
16

VISLUMBRANDO ESTRELAS: ESTUDO SOBRE TRADIÇÃO ORAL E MEMÓRIA


NA ORDEM DE PENITENTES IRMÃOS DA CRUZ DE BARBALHA

David de Lima Damasceno1

RESUMO: O presente trabalho é resultado da pesquisa empreendida para realização do vídeo


etnográfico “Irmãos da Cruz”, tendo como tema central o fenômeno presente na Ordem de
Penitentes Irmãos da Cruz de Barbalha, manifestação do catolicismo popular existente a mais
de 160 anos. Pretendeu-se, com o vídeo, apresentar essa manifestação do catolicismo popular
de origem secular — perpetuada e mantida pela tradição oral — através do diálogo entre
passado e presente criado pelas vozes de dois membros dessa irmandade, Joaquim Mulato e
Antônio de Amélia. Para tanto, analisou-se bibliografia existente aliando à discussão os
conceitos de tradição oral de Zumthor (1993) e os conceitos de história oral de Thompson
(1992).
PALAVRAS-CHAVE: Memória. Oralidade. Resistência.

Vislumbrando Estrelas
Vislumbrar, segundo o dicionário Aurélio (FERREIRA, 2010:2165), quer dizer, em
seu segundo verbete: “conhecer imperfeitamente”, seguido de “lançar luz frouxa” e “começar
a aparecer, a surgir, entrever-se; apontar”. Esta é a definição que mais se aproxima do que de
fato alcançamos com a pesquisa e a produção do vídeo, por tratar de assunto presente há mais
de 160 anos, transmitido oralmente e transferido por gerações.

Em termos de História: desde a implantação da cultura letrada no Brasil, ficaram


abaixo do limiar da escrita quase todos os conceitos da vida indígena, da vida
escrava, da vida sertaneja, da vida artesanal, da vida rústica, da vida proletária, da
vida marginal; abaixo do limiar da escrita ficaram as mãos que não puderam
contar, no código erudito, a sua própria vida.” (BOSI, A. Prefácio. In: MOTA, G.
C. Ideologia da Cultura Brasileira, apud OLIVEIRA, F. W. Do Oral ao Escrito:
momento de reflexão. In: Anais do II Encontro de História Oral do Nordeste,
2000:15)

Impossibilitados de escrever a sua história com as próprias mãos, encontramos no


audiovisual a possibilidade de dar o lugar de sujeito aos penitentes, distanciando-os do lugar
de objeto ao qual foram inseridos em outros trabalhos. Buscou-se a partir do vídeo-
documento-etnográfico “Irmãos da Cruz” e da pesquisa empreendida na sua produção:
registrar, apresentar e divulgar, o passado e o presente da Ordem de Penitentes Irmãos da
Cruz. Sob o olhar e a voz de Joaquim Mulato, decurião entre os anos de 1940-2009, e Antônio

1
Graduado do Curso de Publicidade da Universidade Federal do Ceará, e-mail: daviddamascenoo@gmail.com.
16

de Amélia, decurião desde 2013-atualmente. Analisando os aspectos de tradição oral,


resistência e existência da Ordem.
A discussão é necessária por tratar-se de manifestação com expressão por todo o
Brasil e possuir forte influência na cultura do Nordeste, guardando na sua história fragmentos
do processo colonizatório praticado no País. Por ser importante manifestação da cultura
popular, conhecida por algumas instâncias da sociedade, porém, de pouca circulação fora do
meio acadêmico e na sociedade em geral. Além de reforçar a importância de mecanismos de
proteção do patrimônio imaterial para a permanência de fenômenos como o discutido no
trabalho.

Introdução
As ordens de penitentes — manifestação religiosa secular de grande adesão no
nordeste brasileiro, com origem datada do século XIX. Conforme Carvalho, A., "há
referências na literatura de que as Ordens de Penitentes no Cariri cearense remontam a pelo
menos a 1850" (2011:27) — possuem forte suporte da tradição oral para transmissão de sua
história. Por isso, aliamos à análise bibliográfica os conceitos de oralidade de Zumthor e de
história oral de Thompson para compreender as facetas do fenômeno que é perpetuado e
mantido vivo até hoje.
Joaquim Mulato e Antônio de Amélia são as duas vozes que costuram a narrativa do
vídeo e nos dão margem para contrapor passado e presente na criação deste documento
audiovisual, ao mesmo tempo histórico e etnográfico.
Por meio de entrevistas, semiestruturadas e de histórias de vida, registrou-se a voz e
parte da vida desses dois homens. O primeiro ingressou na Ordem aos dezesseis anos e o
segundo aos dez. Os dois têm em comum o título de decurião, como são chamados os líderes
da irmandade. Joaquim assumiu a chefia da Ordem entre os anos de 1940-2009 e Antônio de
Amélia de 2013-atualmente.
Mulato foi entrevistado em 2003, por Gilmar de Carvalho e Wellington de Oliveira.
Antônio, por mim, em junho de 2017. Quatorze anos entre os dois registros. Contrapostos e
entrecruzados, na narrativa criada, buscando evidenciar as particularidades presentes nos
discursos e as transformações sucedidas no tempo decorrido.
Partindo desse discurso que nos faz viajar entre passado e presente/presente e passado
percebemos que antes dele ser a imitação concreta da história nos serve mais como filtro
desta, permitindo conhecer o que mais interessa, pensando sua salvaguarda. Segundo
Williams (1989:23-25 apud ANTONACCI, 2002:194), “está em jogo algo mais que
16

aritmética e, evidentemente, algo mais que história. (...) O que é necessário investigar, nestes
casos, não é a veracidade histórica, e sim a perspectiva histórica".
A narrativa do vídeo parte da preocupação de Mulato para com o fim dessa tradição.
Ele acreditava que com a sua morte a Ordem teria grande chance de ser extinta, tanto por
conta da pouca adesão de membros mais jovens como pela falta de capacidade de
memorização dos membros. O que impediria a manutenção dessa religião persistida na
memória. Em sua fala ele diz: "Quem sabe, sabe. Se eu morrer, e Severino, acabou os
penitentes aqui. Porque não tem um que tenha a memória. Daí nós já tamo já na pindura. Eu
to com 83”.
As ordens de penitentes encontram-se onde o cordel estava antes do espírito vivo
presente na voz ter sido roubado pelas palavras transmitidas ao papel. Suas histórias, orações,
devoções e benditos estão gravados e perpetuados na memória imaterial, como por muito
tempo permaneceram as canções de gesta — conjunto de poemas surgidos na aurora da
literatura francesa, entre os séculos XI e XII (ZUMTHOR, 1992).
Além da necessidade de arquivar, para preservar e compartilhar, essa manifestação que
guarda em seu cerne fragmentos do processo colonizatório sofrido pelo Brasil, é importante,
também, dar voz aos membros dessa irmandade. Observou-se a partir da revisão bibliográfica
a ausência, em todos os estudos, da presença massiva da voz do penitente.
Os estudos aos quais me refiro são: Artimanhas da história, ANTONACCI, 2002;
Entre cantos e açoites: memórias, narrativas e políticas públicas de patrimônio que envolvem
os penitentes da cidade Barbalha-CE, MACHADO, 2014; Os Penitentes do Genezaré e o
poder público do município de Assaré – CE (2005 aos dias atuais): diálogos e sensibilidades,
OLIVEIRA, 2013; Sob o signo da fé e da mística: um estudo das Irmandades de Penitentes no
Cariri cearense, CARVALHO, A., 2011.
Ainda há outras obras, transferidas para meios digitais (filmes e fotografias) e
impressos (monografias, dissertações, artigos e livros), aqui divididas em: filmes — "Ordem
dos Penitentes" (2002) e "Penitentes" (2013) —, fotografias — Ana Cristina Riente (RJ); Guy
Veloso (PA) e Tiago Santana (CE) —, artigos — O penitente Joaquim Mulato, de Barbalha
publicado no Jornal do Cariri (1999); Joaquim Mulato. Penitência e arte publicado no Diário
do Nordeste (2003) e Joaquim Mulato: Santeiro Penitente publicado na Cariri Revista (2012)
—, livros — Artes da Tradição - Mestres do Povo (2005) e Sob o signo da fé e da mística
(2011) — e programas de tevê — “SBT Repórter – Auto Flagelo” (exibido em 02/08/2010).
Esses trabalhos prestam sua contribuição para o resguardo dessa história mas são
insuficientes para divulgar e preservar o repertório do grupo, por tanto, faz-se necessário a
16

produção de novos e atuais trabalhos sobre essas irmandades, além de projetos que
possibilitem a manutenção e salvaguarda dessa memória.

Metodologia
Para o desenvolvimento deste trabalho processou-se dois tipos de metodologias. A
primeira foi utilizada para a construção do relatório e a segunda para a realização do vídeo.
Ambas de natureza qualitativa.
Num primeiro momento, de construção do relatório e início da pesquisa, a
metodologia utilizada foi a pesquisa exploratória, a partir da análise do material bibliográfico,
de arquivos de periódicos e jornais, fotografias e vídeos.
Acrescida, posteriormente, da pesquisa de campo onde realizou-se coleta de dados por
meio de entrevistas — semiestruturadas e de histórias de vidas — através de gravação de
áudio e de imagens. Para tanto, Thompson (1992) foi utilizado como provedor dos conceitos
de história oral e Zumthor (1998) como referencial teórico para entender os conceitos de
tradição oral que permeiam essa irmandade e tornar mais compreensível os resultados obtidos
nesta fase.
Durante a realização do vídeo fez-se a captação das imagens em Barbalha e no Sítio
Cabeceiras. Seguido da decupagem do material obtido nas filmagens: separando e
catalogando todas as imagens feitas, possibilitando a agilidade na terceira parte desta etapa, a
montagem, quando foi produzido o roteiro de edição, seguido da edição.
Não há, para este trabalho, técnica mais adequada do que a história oral. De certo que
a maior parte da história a ser contada está contida nas reminiscências de quem a viveu e vive.
No entanto, pelos textos obtidos a partir das entrevistas realizadas com Joaquim Mulato
(2003) e Antônio de Amélia (2017) notou-se em suas falas alguns denominadores em comum
— palavras, frases e histórias semelhantes —, índice do processo de transmissão oral, que
apresenta também, um "tipo de memória, sempre em recuo, mas prestes a intervir para fazer
ressoar a língua, quase à revelia do sujeito que a teria como que aprendido de cor"
(DRAGONETTI, R. Le Jeu de saint Nicolas de Jean Bodel. apud ZUMTHOR, 1993, p. 21).
Por isso fez-se necessário a investigação de algumas histórias, pois as falas obtidas nos
apontaram a debilidade da memória e sua falta de precisão. Notava-se ausência de algumas
informações necessárias para o entendimento de determinados aspectos e, também, histórias
que após verificação determinavam-se incoerentes com os processos históricos. Por tanto,
nessa fase pós coleta de dados também tivemos como suporte a bibliografia existente.
16

Penitentes

“São as vozes do passado atualizadas no presente que


presenteiam o futuro com a fonte essencial da vida: a
memória.” (NEVES, 2000:49)

Observar os penitentes é como olhar para as estrelas, mesmo estando há milhares de


anos luz de distância, emitindo uma luz que foi irradiada no passado, ainda brilham vivamente
aos nossos olhos.
Joaquim Mulato, em 2003, nos revela informações cruciais sobre a constituição e
manutenção da irmandade. Relata a passagem de Padre Ibiapina pelo sertão cearense, os
aspectos da oralidade incutidos na tradição, a origem dos benditos e sua preocupação com a
continuidade da irmandade.

Frei Ibiapina veio naquela época, desde 1800.. pra 700.. por aí assim. Ele
descobriu o Caldas, fez casa de caridade no Crato, fez casa de caridade na
Barbalha. Fez o cemitério da Macaúba, fez o de São Raimundo, desceu, fez aquele
ali. [...] Aí ele deixou essa irmandade, essa religião. Foi estendida aqui e na Bahia.
Foi Frei Ibiapina que deixou, tudo ele deixou, ensinou como é que o homem andava
com a cruz, ensinou como fazia, trazia os cachos feitos de recife, Frei Ibiapina.

Em 2017, Antônio de Amélia reatualiza as histórias contadas por Joaquim, e atualiza-


nos com outras informações que não foram transmitidas na primeira entrevista.

Nós deixamos de se cortar faz tempo. faz tempo. Ah... evolução como é que diz, as
coisas vão mudando né. O bispo disse que num era bom se cortar não, porque não..
Se cortar no cemitério né bom não, se fosse noutro canto.. Mas no cemitério ele
disse que era contaminado, ora, no hospital, tem infeção hospitalar, e no cemitério.
É certo, o doutor também disse que não. É bem verdade, esse negocio de se cortar é
um pouco meio complicado. Hoje. Porque hoje tá tudo contaminado, porque assim,
no passado se cortava e num tinha nada. [...] Agora eu tenho pra mim que continua
o grupo de penitentes entrando com pouco bendito. Se não se acabar é com pouco
bendito.

Das transformações identificadas por Antônio de Amélia, a diferença na relação com o


decurião é uma das mais significantes. No passado, mais do que hoje, havia um respeito e
obediência ao líder da irmandade, como cita seu Antônio: "Naquele tempo o povo obedecia o
chefe, o decurião, hoje não querem, a gente manda cantar, eles não cantam". Situação que
preocupa o novo líder, mais, até, que a falta de adesão de novos membros e o pouco
engajamento dos atuais.
17

Antepassado
Diferente da crença de Joaquim Mulato, a história da penitência no nordeste brasileiro
vem de tempos anteriores a passagem de Padre Ibiapina pela região. De acordo com os
estudos de Carvalho, A. (2011:27-28), “as Ordens de Penitentes no Cariri cearense remontam
a pelo menos a 1850, portanto em época anterior ao Padre Ibiapina, que pregou e fundou
Casas de Caridade no Nordeste a partir do final de 1855”.
A presença dos missionários das Santas Missões pelo sertão — grupo de jesuítas,
carmelitas, franciscanos, oratorianos, capuchinhos, dentre outros — está fortemente ligada ao
início da prática penitencial no Nordeste. É com eles que é levado ao imaginário do sertanejo
a ideia de salvação por meio da mortificação corporal e penitência, seja ela qual for, conforme
diz Silva (2011).

Diferente das Missões Volantes e de Aldeamento, que foram marcantes nos


primeiros séculos da colonização e atuaram com o propósito de catequizar as tribos
indígenas do litoral e dos sertões, as Santas Missões, ou Missões Populares, do
século XIX foram criadas no contexto histórico da romanização em que vivia a
Igreja Católica e pretendiam, dentre os vários objetivos, transmitir a prática
sacramental e fortalecer o vínculo entre os fiéis e a hierarquia eclesiástica. (SILVA,
2011:2)

Além dessas missões existiam missionários que percorriam o sertão pregando sob o
auxílio de textos de catequese como Missão Abreviada. Texto que traz passagens de antigas
escrituras e instruções aos fiéis de como se remir de suas culpas e livrar-se do pecado por
meio da mortificação corporal.

Esses “missionários”, ao contrário da maioria dos fiéis, detinham um conhecimento


básico das Sagradas Escrituras, uma vez que dispunham de obras voltadas para a
compreensão simples da Bíblia, como é o caso da já citada Missão Abreviada, além
d´As Horas Marianas e a Imitatio Christi (Imitação de Cristo) – manuais muito
comuns entre os sertanejos e que serviam como livros de orientação para a vida
cotidiana. (SILVA, 2011:18)

Por praticarem uma vida simples e nômade, esses missionários apresentavam


semelhanças ao povo sertanejo. Característica que facilitava o contato entre esses dois grupos,
propiciando uma admiração por parte do povo do sertão para com esses homens. (SILVA,
2011)
Os penitentes ainda guardam em suas relações a confiança depositada na fala de
missionários, assim como nos membros da Igreja Católica. Algo que foi possível concluir por
meio da fala de Antônio de Amélia sobre o fim da autoflagelação, “o bispo disse que num era
17

bom se cortar não”. Foi possível chegar a essa conclusão, também, por meio de relatos do
vigário de Barbalha, Padre Alencar. O pároco contou-me existir um grande respeito por parte
dos penitentes para com os conselhos de seus membros e os preceitos da Igreja.
A forte relação com a Igreja Católica vem desde a fundação dessas irmandades. Nos é
possível inferir que a organização das irmandades penitentes faz alusão às ordens
franciscanas, iniciadas no século XI (ZUMTHOR, 1993). Há em comum nessas duas ordens
além da prática da penitência, o canto de benditos — histórias sagradas ou biográficas
cantadas em versos ritmados.
Remontam ainda à outras práticas medievais. Trazem-nos à memória os flagelantes
públicos, indivíduos que se açoitavam em praça pública na Europa do século XIII, com ápice
da prática no século XIV, em decorrência da peste negra. Os flagelantes acreditavam serem
aplacados pela ira Divina com a prática da penitência e martírio, como foi observado no texto
de Carvalho, A. (2011).
“A salvação é garantida pelas práticas penitenciais onde cânticos, orações e sofrimento
físico fazem parte do ritual desses grupos" (CARVALHO, A. 2011:21). A penitência também
é meio de reatualizar a vida de Cristo. Segundo Joaquim Mulato, “Ele foi o maior penitente
que existiu, morreu sem nenhum pecado para salvar a humanidade”.

Pergaminhos Vivos
Os penitentes são como uma obra secular. Daqueles livros ao qual a página onde
consta a data da primeira impressão de tão amarelada e seca se desfez. Enxergamos os
penitentes como pergaminhos vivos. Homens que inscreveram em seus corpos parte da
história da penitência no Brasil e são, hoje, os documentos mais importantes a serem
consultados para compartilhá-la.
A História Oral como metodologia é "capaz de dar voz a segmentos sociais sem acesso
à produção de documentos escritos e cuja cultura e cotidiano se desenvolvem,
preferencialmente, através da oralidade" (ATAIDE, 2000:70). Por meio dessa técnica
aproximamos pesquisador e pesquisado, criando uma conscientização em ambas as partes do
entendimento do objeto como parte crucial à pesquisa.
Percebemos hoje uma mudança no quadro do arquivamento dessa história, antes
preservada apenas na memória dos membros da irmandade. Com o interesse partindo da
academia, da mídia, da fotografia e do cinema, tem sido feita a transferência dessa memória
para monografias, dissertações e teses, ensaios e filmes, programas de tevês e editoriais.
17

Memória, história e tradição oral

O verbo se expande no mundo, que por seu meio foi


criado e ao qual dá vida. (ZUMTHOR, 1993:75)

A memória é o suporte mais antigo e o que mais arquivou as informações sobre o


fenômeno dos penitentes. E foi através da oralidade que essa memória se perpetuou, sendo
transmitida de pai para filho, detentor do saber ao curioso, de quem vivenciou a quem
procurou conhecer, fixando-se, e findando a uma memória coletiva.
Visto que o maior suporte dessa memória são as reminiscências dos membros da
irmandade, esteve com esses homens durante muitos anos a responsabilidade pela
manutenção, processamento, partilha e preservação dessa tradição. Pode-se concluir, então,
que com cada irmão da cruz morto antes de haver interesse em registrar essa tradição morria
parte da história da irmandade. O que, segundo Zumthor (1993:49), "indicam-nos um buraco
negro do qual se ergue outras vozes inaudíveis, mas inumeráveis".
É por intermédio dessa memória, acessada pelas reminiscências de Joaquim Mulato e
Antônio de Amélia, visualizadas a rigor da pesquisa e do método escolhido como
documentos, que nos aproximamos do passado a fim de compreendemos o presente. O acesso
a esses documentos permite-nos adentrar ao campo da história imaterial, indo de encontro ao
imaginário da Ordem, conjunto de símbolos e pensamentos relativos às vivências do grupo.
De acordo com Thompson (1992), o uso da história oral na pesquisa transforma todo
colaborador em um documento histórico o qual guarda e é responsável por transmitir o
conhecimento, deixando a cargo do historiador o papel de organizá-las, associá-las e
interpretá-las, fazendo com que a reconstrução da história se torne um processo colaborativo,
dando a não profissionais o papel crucial nessa tarefa.
Encontramos em A Voz do Passado o que nos reafirma o papel documental e histórico
em torno dos decuriões enquanto detentores da história da irmandade e responsáveis pela
transmissão oral desses conhecimentos. No texto, são citados exemplos de tribos indianas
onde a característica da arquivo humano e transmissor de tradições é encontrado, como os
"genealogistas, memorialistas, rapsodos e abiiru, cada um, responsável pela preservação de
um tipo diferente de tradição.", no dialeto dessas tribos, cada nome tem sua tradução.
Seguindo a ordem anterior,

os abacurabwenge, eram responsáveis por lembrar das listas dos reis e das rainhas-
mães, os abateekerezi, os acontecimentos mais importantes de cada reinado, os
abasizi, preservavam os panegíricos aos reis e os abiiru, os segredos da dinastia.
17

Havia equivalentes a eles em muitas outras culturas, como no skald escandinavo ou


no rajput indiano. (ibid:47).

Thompson conclui, afirmando e validando nossa escolha por esse método, que práticas
como essa de testemunho grupal ou mesmo individual podiam preservar por séculos alguns
padrões, inclusive arcaísmos, e que continuariam perpetuados mesmo que não mais fossem
compreendidos, e que, "tradições desse tipo assemelha-se a documentos legais, ou livros
sagrados”.
O contato com dois, dos mais antigos, membros da Ordem dos Irmãos da Cruz, em
diferentes épocas, nos permitiu perceber que a prática dessa tradição oral preservou certas
diferenças entre suas falas, algo de fácil percepção se visualizarmos o bendito de Santo
Antônio. Cantado de forma, ligeiramente, diferente entre os dois decuriões.
Observando as três primeiras estrofes do bendito cantado por Joaquim Mulato (I) e
Antônio de Amélia (II) podemos perceber os pontos supracitados.

(I)
Santo Antônio de Lisboa, amoroso
imperador Vai livrar teu pai da morte
Que vai morrer inocente
Que vai morrer inocente
(II)
Santo Antônio de Lisboa
Amoroso amparador
Que no dia 29 dos castigos nos
livrou Que no dia 29 dos castigos
nos livrou Antônio tava na Itália
Celebrando o seu sermão
Desceu um anjinho do céu e a ele foi a
visão Desceu um anjinho do céu e a ele foi a
visão Socorre o Antônio
Nesse mesmo continente
Vai livrar teu pai da morte que vai morrer
inocente Vai livrar teu pai da morte que vai
morrer inocente

VÍDEO-DOCUMENTO-ETNOGRÁFICO
Decido categorizar o filme "Irmãos da Cruz" como um vídeo-documento- etnográfico
por entendê-lo como a junção de todas essas categorias, citá-lo por alguma dela em separado,
não o descaracteriza nem mesmo o diminui, apenas o fragmenta. Em "Irmãos da Cruz" são os
homens que fizeram a história e detém o poder de contá-la que a contam. São eles, inscritos
no filme, que escrevem o documento, registrando suas memórias, salvando-as e
resguardando-as do esquecimento.
O processo de criação deste vídeo-documento começa a partir de uma pesquisa. A
impossibilidade de um roteiro de filmagem tornou-se um ponto positivo na produção, pois, a
17

ida a campo sem uma ideia pré-determinada do que deveria vir a ser o vídeo fez com que o
desenho do filme surgisse no contato com a história que seria contada. Um work in progress
desde o começo da leitura bibliográfica que serviu de suporte para a viagem à Barbalha, a
conversa com Antônio de Amélia e a posterior criação do roteiro de edição do filme.
Dessa forma, a captação das imagens do vídeo seguiu de acordo com a conclusão de
Rabinger, conforme pontuado em seu livro Directing the documentary, "a filmagem deverá
ser preferencialmente a coleta de “evidências” para relações e suposições básicas
identificadas anteriormente" (RABINGER, 1998, p. 113 apud PUCCINI, 2009).
O documentário é uma carta escrita pelo realizador aos espectadores. Um mundo
possível imaginado, uma transfiguração do real na tela filmada,

é também resultado de um processo criativo do cineasta marcado por várias etapas


de seleção, comandadas por escolhas subjetivas desse realizador. Essas escolhas
orientam uma série de recortes, entre concepção da idéia e a edição final do filme,
que marcam a apropriação do real por um discurso. (PUCCINI, 2009:34)

"Irmãos da Cruz" é uma carta escrita com as palavras dos personagens dessa história
organizadas pelas minhas mãos, jovem pesquisador, o qual vos escreve esta outra carta. Na
escrita videográfica foi-me confiado o papel de montador de palavras, do qual o vídeo resulta
como colagem dos discursos dos dois decuriões. Foi neste ponto onde minha atenção ficou
focada, pois, eu tinha como tarefa contar a história que me transmitiram, a partir da
organização das palavras que me foram contadas. Levando em conta a dificuldade de fazer
isso sem provocar outras histórias, visto que

Na articulação dos planos existe uma mão oculta que fascina a reflexão
desconstrutiva contemporânea e que pode também produzir enunciados ou sentido,
interagindo ativamente com o modo do sujeito-da-câmera ser na tomada (...) A mão
oculta que articula os planos, alguns chamam montagem. (RAMOS, 2008:86)

O vídeo toma forma como extensão, apêndice, corpo fora do corpo, ou suporte, da
memória. No entanto, assim como ela, a ele, só é possível registrar fragmentos de
reminiscências que constroem uma memória coletiva e plural.

Argumento
A partir de uma fala de Joaquim Mulato iniciamos a pesquisa para este trabalho.
"Quem sabe, sabe.. se eu morrer, e Severino, acabou os penitentes aqui. Porque não tem um
que tenha a memória. Daí nós já tamo, já, na pindura. Eu to com 83". As especulações de
17

Joaquim são feitas em 2003, seis anos antes de sua morte. O vídeo foi desenvolvido oito anos
após a morte de Mulato, buscando compreender através do entrecruzamento das vozes do
presente e do passado, o processo sofrido pela manifestação religiosa secular.
Ancorados na entrevista concedida em 2003 por Joaquim Mulato, voltamos ao Sítio
Cabeceiras, região onde vive parte da irmandade, para ouvir a voz do presente, representada
pelo atual decurião da Ordem, Antônio de Amélia. Através do enlaçamento das duas vozes,
criou-se um panorama de avaliação e contraposição de passado e presente, tentando
compreender os processos vividos após o falecimento de Joaquim, evidenciando a resistência
por parte da irmandade e a importância da preservação dessa memória coletiva, para sua
manutenção e perpetuação.

Considerações Finais
Segundo os pensamentos explicitados por Zumthor, em A Letra e a Voz, observamos
que os penitentes preservam características inerentes à fé popular, presentes nessas camadas
desde a Baixa Idade Média. Por exemplo, os ensinamentos e rituais transmitidos de boca ao
ouvido.
Nessa época, e ainda hoje, em grupos como os Irmãos da Cruz, a voz se identifica ao
espírito. Segundo Zumthor (1993), a autoridade está no verbo proferido pela voz daqueles que
detém o conhecimento, logo, a verdade. E dessa forma, perpetuavam-na por meio de seus
discursos. Assim como acontece entre os Irmãos da Cruz.
Foi pela voz que essa tradição foi transmitida durante todos esses anos, até há pouco
tempo, antes de surgir interesse por parte do homem letrado em contá-la. É por ser vivificada
na voz que acreditamos no vídeo como suporte ideal para transmitir essa tradição e, assim
como foi feita por mais de um século, quem as conte sejam as vozes dos homens que a vivem.
Neste trabalho onde o objeto é sujeito e o objetivo é espalhar uma voz, o pesquisador é,
também, um método para tornar isso possível.
Acesso ao vídeo: https://youtu.be/GtvEfgWFsm8

REFERÊNCIAS
ANTONACCI, M. A., Artimanhas da história. In: Proj. História, São paulo, (24), jun.
2002. Revista Eletrônica da PUC-SP Disponível em:
<https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/10618>. Acesso em 24 de maio, 2017.
ATAIDE, Y. D. Bandeira de. ALGUNS USOS DA HISTÓRIA ORAL: CONTRIBUIÇÃO
PARA O ESTUDO DE GÊNERO, ETNIAS E GRUPOS EXCLUÍDOS. In: Anais do II
Encontro de História Oral do Nordeste, Salvador: Editora da UNEB, 2000.
17

CARVALHO, Anna Christina Farias de. Sob o signo da fé e da mística: um estudo das
Irmandades de Penitentes no Cariri cearense. Fortaleza: Editora IMEPH, 2011.
CARVALHO, Gilmar de (org.). Onze vezes Joaseiro: Tributo a Ralph Della Cava.
Fortaleza: Expressão Gráfica, 2011. Madeira Matriz. Cultura e Memória. São Paulo:
Annablume, 1998.
DOS ANJOS, Moacir; FARIAS, Agnaldo. Catálogo da Bienal Internacional de São Paulo,
2010. "Penitentes, dos Ritos de Sangue à Fascinação do Fim do Mundo". Disponível em:
https://issuu.com/guyveloso/docs/penitentes_-_cat logo_v11_issu Acesso em 25 de maio,
2017.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da língua portuguesa. 5. ed. Curitiba:
Positivo, 2010.
MACHADO, Jana Rafaella Maia. Entre cantos e açoites: memórias, narrativas e políticas
públicas de patrimônio que envolvem os penitentes da cidade Barbalha-CE. Rio de janeiro:
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2014.
OLIVEIRA, Cícero da Silva. Os Penitentes do Genezaré e o poder público do município de
Assaré – CE (2005 aos dias atuais): diálogos e sensibilidades. In: XXVII Simpósio Nacional
de História - ANPUH, Natal, julho de 2013. Anais eletrônicos. Disponível em:
www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364844456_ARQUIVO_ArtigoSNH.pdf
Acesso em 12 de jun. 2017.
SILVA, L. R. da, Canudos e Caldeirão: Missões Abreviadas. In: XXVI Simpósio Nacional de
História – ANPUH, São Paulo, julho de 2011. Anais eletrônicos, São Paulo, 2011. Disponível
em:<www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300847429_ARQUIVO_CanudoseCaldeir
ao- Missoesabreviadas.pdf>. Acesso em 24 de jun. 2017.
THOMPSON, Paul. A Voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a "literatura" medieval. São Paulo: Companhia das Letras,
1993.
1

HISTÓRIA, MEMÓRIA E ABOLIÇÃO: A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO


MUNICÍPIO DE REDENÇÃO/CE NOS ARQUIVOS PARTICULARES DE
LADEÍSSE SILVEIRA.

Ester Araújo Lima da Silva*


Leonardo da Silva Leal**
Willian Franco de Almeida***

RESUMO: O município de Redenção/CE se destaca na historiografia cearense por ter sido


pioneira no pleito de abolição da escravidão ocorrida em 01 de janeiro de 1883. Neste bojo,
este trabalho tem como escopo analisar o discurso em torno da história e memória da
abolição, tendo como viés a construção do imaginário urbano de formação de uma “Sociedade
Redentora”. Para tanto, realizamos uma análise da Coleção Ladeísse Silveira, no contexto de
tratamento e catalogação de seu acervo para a montagem do arquivo público de pesquisa
documental através do Núcleo de Documentação Cultural (NUDOC) e de seu potencial para
repensar a história local, em especial a formação de um imaginário social pós-abolição.
PALAVRAS-CHAVE: História. Memória. Redenção-Ceará.

INTRODUÇÃO
A cidade de Redenção-CE, anteriormente conhecida como Villa Nossa Senhora da
Conceição de Acarape, está situada na região do Maciço de Baturité, a 55 km de distância da
capital Fortaleza, e se destaca historicamente no cenário cearense por seu pioneirismo na
libertação de 116 cativos que permaneciam sob o regime escravista (SILVA, 2016:05), cinco
anos antes da promulgação da Lei Áurea, oficializada em 25 de maio de 1888.
A libertação dos cativos constitui-se rapidamente em marco fundante da narrativa
histórica oficial, ensejando a construção de um imaginário social, com características de mito
fundador, que orienta e molda a trajetória histórica do lugar, implicando na alteração do seu
nome para Redenção, em 1889, e em esforço de perpetuação de uma memória glorificadora,
evidenciada em uma série de lugares de celebração desta memória, a exemplo dos museus e
da salvaguarda de objetos simbólicos a este passado e, além disso, os monumentos históricos
que buscam acionar esta memória social como o Busto da Princesa Isabel, o Painel Negra
Nua, o monumento Vicente Mulato e o Obelisco.

*
Bacharela em Humanidades e Graduanda do Curso de Licenciatura em História pela Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, e-mail: esteraraujo67@gmail.com
**
Bacharel em Humanidades e Graduando do Curso de Licenciatura em História pela Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, e-mail: leoleal@aluno.unilab.edu.br
***
Bacharel em Humanidades e Graduando do Curso de Licenciatura em História pela Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, e-mail: willianalmeidamk@gmail.com
17

Neste sentido, as mudanças que se estabeleceram no decorrer desta trajetória,


principalmente no que diz respeito a sua estrutura urbana e paisagística, podem ocasionar
implicações que não se restringem apenas ao espaço público e a sua materialidade,
influenciando, também, nas subjetividades, nos sentimentos e costumes da população
redencionista, que estreitam laços de identificação, ou rejeição da narrativa consagrada sobre
a história local.
Como se constrói, se propaga, e se perpetua, no âmbito do acervo documental da Sra.
Ladeísse Silveira, o imaginário social de uma “Sociedade Redentora”? Como os documentos
por ela colecionados reforçam ou desconstroem esse imaginário? Como a preservação,
organização e divulgação deste acervo pode contribuir para aprofundar o estudo sobre
formação de uma memória sobre a abolição da escravidão em Redenção? São estas as
questões que orientam a construção deste artigo.
Esta problematização nasceu a partir de nossa experiência no tratamento e catalogação
da Coleção Ladeísse Silveira, para a montagem de arquivo público de pesquisa documental
através do Núcleo de Documentação Cultural (NUDOC) em parceria com o Programa de
Bolsas de Extensão, Arte e Cultura (PIBEAC/UNILAB). Ela pontua nossas reflexões sobre
como este inédito acervo documental dialoga com a narrativa glorificadora sobre uma
Acarape abolicionista.
A partir da catalogação e tratamento do presente acervo, observamos um número
significativo de documentos manuscritos, datilografados e impressos que ressaltam o
pioneirismo da cidade de Redenção quanto à abolição da escravidão e a construção de uma
“Sociedade Redentora” no pós-abolição.

REDENÇÃO: HISTÓRIA E MEMÓRIA DA ABOLIÇÃO


Em 01 de Janeiro de 1883, no atual município de Redenção, ocorreu o episódio de
libertação de um grupo de 116 escravizados, que foi consagrado pela narrativa histórica
oficial como o marco inaugural da abolição da escravidão no Brasil.
Como o próprio nome sugere, Redenção, logo libertação, situa-se na narrativa
historiográfica oficial tendo como pano de fundo a referência ao ato abolicionista. Entretanto,
esta trajetória situa-se na sua vinculação a Villa de Nossa Senhora da Conceição de Acarape
de onde se extrai os discursos oficiais deste período. Não há uma definição exata sobre o
topônimo de Acarape, porém, para Russo o nome pode vir da língua tupi-guarani significando
“caminho das garças” criado por José de Alencar ou ainda “peixe (acará) canal/caminho
(pe)”. Embora tal significado siga em um plano não totalmente delineado, a questão é que
17

grande parte dos municípios situados no Maciço de Baturité estão intrinsecamente ligados a
topônimos referentes a termos de origem indígena. “A região foi habitada por índios tapuias
(potyguaras, jenipapo e kanindé), sendo conhecida como Vila dos Índios. Assim, Acarape é
uma palavra indígena” (BARBOSA, 2011:19).
Neste sentido, a Villa de Acarape destacou-se no cenário econômico cearense deste
período através da produção de aguardente seguida da produção de cana-deaçúcar, o que
justificava também a necessidade do emprego de mão-de-obra escrava para a sustentação da
sua economia. Portanto, segundo Russo, em dezembro de 1882, os abolicionistas Gil Ferreira
Gomes, Antonio da Silva Ramos, Henrique Pinheiro Teixeira, Gomes Carneiro, Pe. Luís
Bezerra da Rocha e Deocleciano Ribeiro de Menezes formaram a Sociedade Redentora
Acarapense que “debatiam os problemas escravistas” (SILVEIRA, s/d: 02).
Assim, em menos de um mês, o movimento “Nesta terra não há mais escravos”, que
projetou a dimensão local e histórica da Villa de Acarape, atraiu atenção de outros
abolicionistas como General Antônio Tibúrcio, José Liberato Barroso, José do Patrocínio,
João Cordeiro, Padre José Silveira Guerra e Justiniano de Serpa, abolicionistas que vieram
assistir ao ato de alforria dos escravos que restaram. O ato ocorreu na igreja matriz. Um
evento que contou com grande parte da população local e a Vila Acarape passou a chamar-se
Redenção. No ato oficial a Câmara registrou o telegrama para o Imperador D. Pedro II
anunciando que não há mais escravos no município de Acarape.
Com a decadência dos engenhos, a população também entrou em crise e a economia
local desmoronou. As novas fontes de renda vieram por outros comércios. O declínio das
indústrias do açúcar e engenhos foi tanta a ponto que os “proprietários [...] desceram tanto na
escala de pobreza enquanto seus agregados caíram para o nível da miséria” (RUSSO,
2004:30). A incapacidade de manter escravos reforçou o estímulo para a libertação. As novas
fontes de renda vieram por outros comércios como tecido, mercearias e agricultura.
Foi de fato um momento histórico, mas há quem questione essa realidade. “Até a
década de sessenta, em Redenção, a escravidão apenas havia mudado de forma, pois
continuou a existir em condições praticamente análogas à extinta, na forma da lei antiga da
abolição” (RUSSO, 2004:54-55). Os recentes escravos libertos não tinham bens, terras ou
trabalho. Necessitavam sobreviver assim como os fazendeiros e empresários precisavam de
trabalhadores.
Redenção preserva a história local com seus locais turísticos e seus documentos. No
centro da cidade há um busto da Princesa Isabel, construído em homenagem ao
cinquentenário da abolição na cidade assim como a Praça Obelisco e seu monumento no
18

centro. O grande Painel Negra Nua em frente à UNILAB. O Museu Senzala Negro Liberto é
um dos pontos que mais chama atenção. Além de museu, é um engenho com mercadinho
local que vendem a cachaça Douradinha, envelhecida 30 anos em tonéis de bálsamo. O museu
em si foi criado em 2003, mas o local composto por casa-grande, senzala, canavial e moageira
são construções de 1873 da família Muniz Rodrigues. Possui boas condições de preservação,
é uma importante atração turística e local histórico abrigando vários documentos como cartas
cédulas, jornais, uma cópia do documento de libertação dos escravos de 1883, e utensílios de
tortura usados no período escravocrata como gargantilhas, algemas, chicotes, focinheiras,
pregos e martelos. É frequente a visita dos estudantes da UNILAB das áreas de humanas.
A imagem de Redenção como cidade libertadora possibilitou que fosse escolhida para
a instalação da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia AfroBrasileira
(UNILAB) em 2010 durante o governo Lula. Diferentemente das outras faculdades e
universidades, a UNILAB acolhe estudantes de outros países cujo português seja a língua
oficial. A grade curricular da instituição também oferece modos de estudos diferenciados dos
comuns, reforçando nos estudos sobre África e Ásia. Redenção cresceu bastante desde a
universidade. Sua história local contribuiu para o desenvolvimento de trabalhos acadêmicos
visando a história do município. “A primeira cidade a libertar os escravos [...] precisa ser
reconhecida não só como um grande acontecimento histórico nacional, mas, como o ato
humanitário superlativo, brilhante e sublime de um povo no campo dos direitos humanos”
(RUSSO, 2004:43).

O NUDOC E O ACERVO DE LADEÍSSE SILVEIRA


Maria Ladeísse Silveira, filha de José de Arimatéa Silveira e Stela Rodrigues da
Silveira, nasceu na comunidade de Guassí, município de Redenção/CE, em 27 de dezembro
de 1941 e faleceu em 19 de junho de 2015. De acordo com os moradores mais antigos da
cidade, Ladeísse, era uma mulher bastante requisitada pelas autoridades locais e até mesmo
referência para pesquisadores que tinham interesse na história do município já que a mesma
era tida pela população redencionista como a “guardiã” da história ou ainda a “dona da
história de Redenção” (JORNAL DIÁRIO DO NORDESTE, 2006:01).
Sendo assim, de acordo com a entrevista concedida ao Jornal Diário do Nordeste
(2006), Ladeísse informa sua trajetória pessoal no âmbito do trabalho como professora,
pesquisadora e funcionária da Prefeitura Municipal de Redenção. Ela ressaltou que lecionou
cerca de seis anos, porém, cinco deles não recebeu salário e posteriormente conseguiu um
emprego como secretária na prefeitura onde trabalhou “para seis prefeitos”, ou seja, subtende-
18

se que por seis gestões consecutivas seus serviços foram solicitados. Nesta perspectiva, a
mesma informou ainda que nos horários livres, “como não encontrou o passado nos livros, foi
atrás dele saindo a campo para conversar com os mais antigos, e resgatar com eles a memória
que está se perdendo” (JORNAL DIÁRIO DO NORDESTE, 2006:01).
Desse modo, Nascimento e Santos (2007) em seu artigo “História, Memória e
Esquecimento: implicações políticas”, traçam um panorama geral acerca dos respectivos
conceitos, ressaltando que a história quer ser memória na medida que faz um intermédio entre
passado e presente fazendo uma crítica a memória. Ou seja, a memória não é lembrança,
outrossim, uma dinâmica do que deve ser lembrado e esquecido para dar significado a
determinados acontecimentos. As autoras ressaltam ainda que, este esquecimento não é uma
falha da memória, e sim, faz parte deste papel de entender porque as pessoas não querem
lembrar de determinados fatos. O esquecimento funciona como alternativa que em muitos
casos as pessoas aderem como um dinamismo selecionável do que é importante e o que não é,
depende muito de cada pessoa.
Já para Pollak (1992) a “memória parece ser um fenômeno individual, algo
relativamente íntimo, próprio da pessoa” (POLLAK, 1992:211), porém, Maurice Halbwachs,
desde os anos 20-30, mencionava que para além da classificação de um fenômeno individual a
memória deve ser entendida como “um fenômeno coletivo e social”, que está sujeito a
mudanças de acordo com a sociedade (POLLAK, 1992:211).
Desta maneira, após o falecimento da Sra. Ladeísse Silveira um grupo de estudantes
juntamente com um professor da UNILAB iniciou uma série de negociações com a família da
mesma e, sua irmã Evenisse Silveira concordou em doar parte da coleção da irmã para a
Universidade, resultando assim, na primeira edição do Projeto de Extensão “Tratamento e
catalogação da Coleção particular de Ladeísse Silveira para montagem de arquivo público
de pesquisa documental”, sob a coordenação e orientação do Prof. Robério Américo do
Carmo Souza e que tem como escopo principal “a organização de um arquivo público virtual
que subsidie ações de educação sobre cultura e história da Região do Maciço de Baturité”
(PROJETO DE EXTENSÃO, 2016:05).
A seleção do material que compõe o acervo teve inicio na residência da Sra. Ladeísse
Silveira, em maio de 2016, onde a equipe do projeto trabalhava apenas quatro horas semanal
cujas atividades aconteceram sob o acompanhamento da Sra. Evenisse Silveira e findadas em
dezembro de 2016. É importante frisar que, após a doação do acervo a UNILAB, uma das
dificuldades enfrentadas é a falta de espaço adequado para abrigar o material doado e permitir
o seu correto manuseio. Assim, “na falta de um lugar mais adequado o acervo foi abrigado (e
18

ainda está) em armários no gabinete institucional do coordenador do projeto, no Campus das


Auroras” (PROJETO DE EXTENÇÃO, 2016:05).
Neste sentido, com intuito de institucionalizar o acervo foi criado o Núcleo de
Documentação Cultural Ladeísse Silveira (NUDOC), na condição de órgão complementar do
Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira, intitulado como NUDOC. Para tanto, este projeto objetiva-se a partir de uma
perspectiva interdisciplinar:

promover e amparar, ações de pesquisa no campo das humanidades, que


possibilitem a constituição de acervos de documentação cartorial, hemerográfica,
bibliográfica, imagética e de áudio, contribuindo, assim, para o desenvolvimento da
pesquisa acadêmica e para a valorização da memória e da cultura (NUDOC,
2017:02).

Assim, o acervo NUDOC irá agregar diferentes projetos numa perspectiva


interdisciplinar, que vai manter sob sua salvaguarda os materiais que foram reunidos,
produzidos como material de pesquisa. O mesmo vai atuar através de dois campos: “a
pesquisa (recolhimento, produção, preservação e difusão de fontes ligada ao universo cultural
e ao campo da memória) e a educação” (NUDOC, 2017:02) através de ações de formação
para exercício da pesquisa na área de Humanidades e Letras.
O presente núcleo recebe o nome de Ladeísse Silveira como maneira de homenagear
“uma das figuras mais importantes para a preservação da memória cultural de Redenção, cuja
rica coleção documental e bibliográfica, recolhida e organizada ao longo de mais de cinco
décadas, foi doado ao IHL/UNILAB”, (NUDOC, 2017:02) e a partir disso se constituiu o
acervo.

A CIDADE DE REDENÇÃO NO ACERVO DE LADEÍSSE SILVEIRA


O processo de criação do Arquivo Público de Pesquisa documental Ladeísse Silveira,
como espaço para a preservação e disponibilização dos documentos históricos, possui
suportes textuais e imagéticos, para subsidiar futuras pesquisas através de sua
disponibilização digital, e consequentemente atender sua finalidade conforme os princípios do
(Art. 3º da Lei 12.527, inciso §3º, de 18 de novembro de 2011) nestes termos, o “Art.3º que
Regula o Acesso à Informação e no inciso III, que dispõe pela utilização de meios de
comunicação viabilizados pela Tecnologia da Informação” objetivando a democratização de
seu acesso.
18

No desenvolvimento das atividades para o inventariamento do fundo documental


Ladeísse Silveira, sob a tutela do NUDOC/UNILAB, em suas etapas de leitura, descrição e
identificação, encontramos um vasto volume de documentos públicos que remontam a década
de 1870, e outros documentos manuscritos/datilografados classificados como “documentos
particulares” parte da coleção particular que foi acumulada por décadas por dona Ladeísse e
doada por sua família à UNILAB, post mortem.
A Coleção Ladeísse Silveira, enquanto conjunto de documentos públicos recolhidos e
parte produzido em suas atividades no exercício da vida pública, resguardados de forma
orgânica, passam a ser fonte importante de informação sobre os diferentes contextos do
Maciço de Baturité a partir da segunda metade do século XIX, de relevância histórica pela
sociedade cearense que a Constituição Federal de (1988) legitima como Patrimônio Cultural
brasileiro nos termos do Art. 216:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial,


tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos
quais se incluem: [...] IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais; [...] (BRASIL, 1988: 123).

Com o processo de doação da coleção ao Instituto de Humanidades e Letras -


UNILAB, vai reafirmar a Constituição sobre a importância da preservação dos documentos
históricos como bens patrimoniais dos brasileiros nos termos do inciso 1º do Art. 216, “O
Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio
cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e
desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação” (BRASIL, 1988: 123).
O arranjo do acervo possui a série “documentos públicos” com suas subdivisões,
especificadas a partir das disposições e natureza documental, configura-se em parte segundo o
inventário, como, Livros de Termos de Aforramentos de Terrenos; Livros de Atas de
Instituições Públicas do Período Colonial e Republicano; Sociedades Associativas; Registros
Eleitorais; Documentos Paroquiais e Entidades Religiosas (INVENTÁRIO, 2018),
encontram-se como os documentos mais antigos do fundo Ladeísse Silveira, na sua maioria
em considerável estado de conservação.
No entanto, a série identificada como “documentos particulares” também
especificados a partir de suas características e natureza documental, encontram-se
conglomerados de recortes de jornais, na sua maioria referentes aos festejos do
“Cinquentenário ao Centenário da Abolição” colados e organizados (em blocos de notas)
18

como dossiê dentre outros individualizados; panfletos diversos; iconografias (fotografias,


postais e recortes); documentos administrativos da Villa de Acarape à cidade Redenção/CE;
atividades de sala de aula de seu exercício como docente sobre o pioneirismo Abolicionista;
textos manuscritos/impressos sobre o histórico de Redenção/CE; cartas e outros documentos
identificados como avulsos (INVENTÁRIO, 2018).
Diante do trabalho de inventariamento, a equipe do projeto constata que parte dos
“documentos particulares” merecem um arranjo mais apropriado, ou seja, que considere
outras peculiaridades documentais, como intervenções de restauração e de identificação
técnica que ateste que os manuscritos encontrados sem marcas de originalidade, sejam de
Dona Ladeísse Silveira, considerando sua proveniência documental, que segundo Heloísa
Bellotto (2002) está dentro dos princípios fundamentais da arquivística que a,

marca de identidade do documento relativamente ao produtor acumulador, o seu


referencial básico o “princípio”, segundo o qual os arquivos originários de uma
instituição ou de uma pessoa devem manter sua individualidade não sendo
misturado aos de origem diversa (Bellotto, 2002:23)

Tendo por finalidade a disponibilização do acervo em formato digital e acessibilidade,


optou-se pela utilização de uma ferramenta de tecnologia da informação, o aplicativo Tiny
scaner: Scan Doc to PDF, o mesmo, disponível gratuitamente para download no aparelho de
telefonia celular que acoplado a um tripé fixo de braço giroscópio, permite-nos que
documentos de diversos tamanhos possam ser escaneados e convertidos em formato (PDF)
com precisão, dessa forma, garantindo a qualidade nos arquivos gerados para a
democratização de seu acesso.
Como orienta Silva (2005) no Manual de Digitalização de Acervos: Textos, mapas e
imagens fixas, que:

A criação e manutenção de versões digitais de documentos, bem como o processo


anterior de seleção dos documentos para a conversão, envolve custos elevados. No
entanto,somente um terço dos custos totais são consumidos com a digitalização
propriamente dita, ou seja, a captura da imagem, enquanto os dois terços restantes
distribuem-se em outros segmentos, principalmente com catalogação,
administração e controle de qualidade (SILVA, 2005:31).

Cumprindo com a finalidade de dar acesso a estratégia utilizada atende dois objetivos,
o primeiro segundo Silva (2005) “a digitalização pode promover uma redução no manuseio
dos documentos originais, mas ainda não é um meio reconhecido para a preservação”
(SILVA, 2005:31), e segundo a facilidade na visualização dos documentos, pois qualquer
18

sujeito que possua um aparelho de telefonia celular terá acesso ou mesmo com o uso de um
projetor de imagens em sala de aula.
Nesse sentido, estimular aos professores da Rede Pública de Ensino da região do
Maciço de Baturité, para o uso dos documentos históricos do acervo como recurso didático no
Ensino de História, contextualizando aspectos da cultura regional, nessa perspectiva estão
sendo ofertadas oficinas de “Uso de Fontes Documentais em Sala de Aula: Documentos
Textuais; Documentos Imagéticos e a Cidade como Fonte. Que segundo Neto:

A adoção deste recurso didático tem condições de estimular a curiosidade


investigativa e o desejo pelo conhecimento, transformando a sala de aula em um
lugar de produção de conhecimento escolar [...] A introdução deste método didático
visa auxiliar o estudante a construir conhecimento em história. (NETO, 2001:02).

Atividades essas, que visam aproximar os estudantes das diversas instituições de


ensino superior da região, que atuam no campo das pesquisas históricas dentre outros recortes
relacionados e possa com a utilização do acervo documental Ladeísse Silveira desenvolver
pesquisas para uma produção epistemológica sobre o território do maciço de Baturité e suas
interações sociais, políticas e culturais na historiografia brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após realizarmos uma análise da Coleção Particular da Sra. Ladeísse Silveira que se
deu no contexto de tratamento e catalogação de seu acervo para a montagem de um arquivo
público de pesquisa documental através do Núcleo de Documentação Cultural (NUDOC),
observamos um número significativo de documentos manuscritos e impressos que ressaltam o
pioneirismo da cidade de Redenção quanto à abolição da escravidão e a construção de uma
“Sociedade Redentora” no pós-abolição.
Diante da documentação analisada selecionamos o respectivo material que reporta ao
pioneirismo da cidade a fim de problematizarmos esta memória oficial que se constrói a partir
do marco da abolição. Portanto, é a partir deste pleito de construção histórica que iniciamos o
processo de formação de professores da rede pública municipal de Acarape utilizando os
diferentes suportes textuais e imagéticos que serviram como recurso didático nas oficinas que
busca dialogar, também, com o imaginário da cidade, a exemplo, os monumentos históricos,
os espaços de memória como o Museu Memorial da Liberdade, Museu Senzala Negro Liberto
e as produções arquitetônicas entre os municípios de Redenção e Acarape.
18

Assim, o presente acervo além de proporcionar o acesso aos professores da rede


pública para o ensino de História numa perspectiva regionalizada, o mesmo busca
potencializar pesquisas no âmbito acadêmico, entorno da história, memória e abolição.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, Maria Paula Nascimento; SANTOS, Myrian Sepúlveda Dos. História, memória e
esquecimento: implicações políticas. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 79, p. 95-111,
2007.
BARBOSA, Anna E. M.; SOBRINHO, José H. F.; MOURA, Marisa R. – Descobrindo e
construindo Redenção. Edições Demócrito Rocha. Fortaleza. 2011.
BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Como fazer análise diplomática e análise tipológica de
documento de arquivo. Arquivo do Estado, 2002.
BRASIL, Senado Federal. Constituição da república federativa do Brasil. Brasília: Senado
Federal, Centro Gráfico, 1988.
Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso às informações.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011- 2014/2011/lei/l12527.htm
Acesso em 20 Jul. 2018.
INVENTÁRIO do Fundo Ladeísse Silveira: Projeto Tratamento e Catalogação da Coleção
Particular Ladeísse Silveira. Pibeac/Proex. Instituto de Humanidades e Letras. Universidade
da Integração Internacional da Lusofonia Afrobrasileira, Redenção, Ceará, 2018.
NETO, André de Faria Pereira. O uso de documentos escritos no ensino de história:
premissas e bases para uma didática construtivista. História & Ensino, v. 7, p. 143-165, 2002.
POLLAK, Michael. “Memória e identidade social”. In: Estudos Históricos, 5 (10). Rio de
Janeiro, 1992.
Projeto de Criação e Implantação do Núcleo de Documentação Cultural Ladeísse Silveira.
Redenção. 2017.
Projeto de Extensão Tratamento e catalogação da coleção particular de Ladeísse Silveira
para montagem de arquivo público de pesquisa documental. Redenção. 2016.
RUSSO, Maria H.; SILVA, Francisco. R. – Redenção: Palco dos primeiros abolicionistas do
Brasil, Berço da educadora dos redencionistas. Ed. Uva. Sobral. 2004.
SILVA, Ester Araújo Lima da. Narrativas pós-abolicionistas: a história escrita dos
monumentos históricos. / Ester Araújo Lima da Silva. Redenção, 2016.
SILVA, Rubens Ribeiro Gonçalves da. Manual de digitalização de acervos: textos, mapas e
imagens fixas / Rubens Ribeiro Gonçalves da Silva. - Salvador : EDUFBA, 2005. 56 p.
SILVEIRA, Maria Ladeísse. A Abolição da Escravatura em Redenção. Redenção. p. 01 -
07.
18

APRESENTANDO CHRISTOPHER DAWSON PARA BRASILEIROS

Francisca Jaquelini de Souza Viração1

RESUMO: A presente produção tem por objetivo apresentar a obra do historiador galês do
início do século XX Christopher Dawson, mas que só na última década do século XXI suas
obras vêm sendo publicadas no Brasil pela editora É realizações, que são A formação da
cristandade, A divisão da cristandade, Dinâmicas da História do Mundo, Progresso e
Religião, Criação do Ocidente, Inquéritos sobre religião e cultura e recentemente publicado
O Julgamento das nações. O que Dawson pode contribuir para os estudos em cultura e
religião para a historiografia brasileira? O que seus conceitos e sua importância da religião na
história humana tem para ajudar os atuais historiadores da religião no Brasil hoje? Dawson é
um historiador da cultura e da religião. A partir da análise de suas obras proponho
conhecermos como o historiador galês produz seu conceito de história e como faz suas
análises da cultura e da religião, e qual sua função na história.
PALAVRAS-CHAVE: Dawson. Religião. História.

Introdução
Ele é um historiador anglicano convertido ao catolicismo que nutriu correspondência
com intelectuais católicos ingleses do porte de J. R. R. Tolkien, além disso foi professor de
estudos em catolicismo romano na universidade de Harvard e membro da academia britânica.
Porém um quase completo desconhecido pela academia brasileira, suas obras só recentemente
(2010) foram publicadas no Brasil pela É realizações. Quais os motivos para tamanho
desconhecimento não é o objetivo deste trabalho, mas o que este ilustre, jogado no ostracismo
intelectual no nosso país, tem a nos dizer enquanto historiadores da religião, em especial o
cristianismo.

Quem foi Christopher Dawson?


Christopher Henry Dawson nasceu em 12 de outubro de 1889 no País de Gales, e
morreu em 25 de maio de 1970 na Inglaterra. Em 1908 começa seu curso de História no
Trinity College da Universidade de Oxford, anglicano de nascimento e praticante por opção
faz uma viagem à Roma. Sua presença no antigo centro da dita “civilização” ocidental, o
impressiona tanto que decide ser um historiador da cultura. Ao retornar conhece sua futura
esposa em Oxford e por influência dela e do melhor amigo, se converte ao catolicismo,
tornando-se um praticante. Suas obras foram:

1
Doutoranda em História Social pelo Dinter URCA/UFF, aluna pesquisadora do Grupo de Pesquisas Companhia
das Índias da UFF, professora da Universidade Regional do Cariri e das Faculdades Integradas do Ceará em
Iguatu no Ceará. jackhistory@gmail.com
1

The nature and destiny of Man (1920), The Passing of Industrialism (1920), Cycle of
Civilizations (1922), The Ages of Gods (1928), Progress and Religion (1929), Christianity
and the New Age (1931), The Making of Europe (1932), The mordern dilema (1932), The
spirit of the Oxford Movement (1933), Enquiries into Religion and Culture (1933), Medieval
Religion and Other Essays (1934), Religion and the Modern State (1935), Beyond Politics
(1939), Judgment of the nations (1942), Religion and Culture (1948), Religion and the rise of
western culture (1950), Medieval Essays (1954), Dynamics of World History (1956), The
Movement of World Revolution (1959), The historic reality of christian culture (1960), The
crisis of western education (1961), The dividing of Christedom (1965), The formation of
Christedom (1967). Além de duas obras póstumas The Gods of Revolution (1972), Religion
and World History (1975).
Dawson nasce e passa pela infância durante a Era Vitoriana em uma pequena cidade
do interior do País de Gales, portanto em um ambiente rural. Em sua juventude ele vê o fim
desta Era com o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914 ele tinha 25 anos, casa-se em
1916 e só aos 31 anos publica pela primeira vez, 12 anos depois que decidiu ser um
historiador da cultura. Portanto o mundo que formou sua visão intelectual é um mundo de
transição.
E os impactos negativos da Primeira Guerra Mundial fará toda uma geração de
intelectuais pensarem sobre a “modernidade”, como por exemplo, uma série de distopias
produzidas pela literatura. Só durante o período em que Dawson publica seu primeiro livro até
o último são publicados Nós (1924) - Evgueny Zamiatin; O Processo (1925) - Franz Kafka;
Admirável Mundo Novo (1931) - Aldous Huxley; A Revolução dos Bichos (1945) - George
Orwell; 1984 (1949) - George Orwell; Eu, Robô (1950) - Isaac Asimov; Farenheit 451
(1953) - Ray Bradbury; O Senhor das Moscas (1954) - William Golding; Laranja Mecânica
(1962) - Anthony Burgess; O Caçador de Andróides (1968) - Philip K. Dick; Além da
adaptação cinematográfica de A Guerra dos Mundos (1953) de H. G. Wells.
E não apenas um futuro não tão promissor é construído na literatura, mas também um
retorno ao apreço dos valores anteriores ao “mundo moderno” como em C. S. Lewis e J. R. R.
Tolkien. Ambos os autores ambientaram suas principais obras, “As Crônicas de Nárnia” e “O
Senhor dos Anéis” respectivamente, na Idade Média. Além disso, Dawson pertence a uma
geração de intelectuais ingleses convertidos ou encantados com o catolicismo e a tradição
ocidental, representados prioritariamente por G. K. Chesterton e T. S. Elliot.
Neste aspecto, Dawson parece concordar com o que C.S. Lewis aborda em Abolição
do Homem, ensaio de 1943. Lewis analisa como o “progresso” criou uma ilusão: a ideia que o
1

homem dominou a natureza. Lewis, que escreveu este ensaio em um contexto de guerra e
aparente vitória do nazismo e comunismos, também alertou para as ideologias que afirmavam
ter algo errado com a natureza humana, seja racial (nazismo), seja social (comunismo). Pois
quem definisse o tal erro seria, na verdade, o ditador da humanidade. Dawson, portanto,
pertence a toda uma geração de intelectuais britânicos que temiam que o rompimento total
com a tradição, na verdade destruísse a humanidade. Lewis afirmou:

A conquista da Natureza pelo Homem, caso se realizem os sonhos de alguns


cientistas planejadores, significaria que algumas centenas de homens estariam
governando os destinos de bilhões e bilhões. Não há nem pode haver nenhum
acréscimo ao poder do Homem. Cada novo poder conquistado pelo homem é da
mesma forma um poder sobre o homem. Cada avanço o deixa mais fraco, ao mesmo
tempo que mais forte. Em toda vitória, o homem é ao mesmo tempo o general que
triunfa e o escravo que segue o carro dos vencedores. (LEWIS, 2017: 59)

Todas estas características fazem o homem, que havia decidido ser um historiador da
cultura pensar o significado desta modernidade. Suas primeiras obras foram: The nature and
destiny of Man (1920), The Passing of Industrialism (1920). Para entender melhor esta
cultura, que parecia em decadência, Dawson buscará compreender a formação das
civilizações, fará um diálogo vivo e profundo com Edward Gibbon e A Queda de Roma;
Marx e sua dialética da história; Spengler e os ciclos de civilização; Toynbee e sua filosofia
da História; até se encontrar no conceito de cultura de T.S. Elliot.
Suas três obras seguintes Cycle of Civilizations (1922), The Ages of Gods (1928),
Progress and Religion (1929), refletirá este processo intelectual. A primeira delas publicada
no Brasil foi Progress and Religion (1929), cujo título foi traduzido literalmente para
Progresso e Religião, publicado pela É Realizações em 2012. Apesar de ser a obra mais antiga
de Dawson publicado no Brasil, dois outros livros foram publicados primeiro em 2010:
Dynamics of World History (1956), como Dinâmicas da História do Mundo e The formation
of Christedom (1967), como A Formação da Cristandade. Desta feita o leitor brasileiro teve o
primeiro contato com o autor através de uma obra que representa o seu apogeu como teórico,
Dinâmicas da História do Mundo.
Em “Progresso e Religião”, Dawson critica fortemente a ideia positivista de progresso,
que seria a passagem de um estágio teológico para o positivo. Para Dawson esse pensamento
hegemônico foi transmitido como o único possível, o que não corresponderia à realidade dos
fatos. O cientista social ao analisar a realidade como um físico ou matemático faria análises
incompletas e incompatíveis com a sociedade estudada, já que o objeto de pesquisas são seres
humanos e não átomos.
1

Filósofos e cientistas dos séculos XVIII e XIX viam o universo do ponto de vista do
físico, como um sistema mecânico, uma ordem fechada governada pela lei da
matemática, em vez de manifestações de um espírito vivo. E os historiadores do
século XVIII eram igualmente limitados em sua visão. Eles concentravam sua
atenção em fatos e em eventos e acumulavam pilhas de detalhes, sem prestarem
atenção ao espírito conformador, único que pode dar significado a circunstâncias
materiais. Eles viam a história como a sequencia de eventos isolados e não como
um processo de vida. (DAWSON, 2012: 80)

Ao analisar o idealismo e o romantismo alemão, afirmando inclusive que a História é


filha intelectual destes movimentos. Dawson percebe a força do “espírito” dos povos, o
particularismo, o “kultur” que os dá identidade. Em 1904, Max Weber lança “A ética
protestante e o espírito do capitalismo”, depois desta obra fica evidente que a religião é uma
força que não pode ser mais negada. A antes vista como “trevas”, culpada pela barbárie e
superstição dos homens, foi descrita por Weber como capaz de criar uma ética econômica.
Dois anos depois das publicações The nature and destiny of Man (1920) e The Passing
of Industrialism (1920), Dawson publica Cycle of Civilizations (1922). No Brasil o ensaio foi
publicado em 2017 como o capítulo 5 de “Inquéritos sobre religião e cultura”, cujo obra
original foi publicada em 1933, e mesmo assim “Ciclos de Civilização” está resumido.
Dawson afirma que quando seu ensaio foi lido na Sociedade Sociológica em 20 de dezembro
de 1922, o mesmo não tinha se inteirado da publicação de “Declínio do Ocidente” de Oswald
Spengler, publicado pela primeira vez em 1918.
Para Dawson o erro dos progressistas da era iluminista foi buscar progresso material
desassociado do progresso cultural e espiritual. Pois para Dawson todas as grandes
civilizações cresceram materialmente ao mesmo tempo que desenvolveram sua cultura e
sistemas religiosos. Em outras palavras, Dawson não acredita na “autonomia da razão”, para
se utilizar de uma expressão do filósofo holandês Herman Dooyeweerd (DOOYEWEERD,
2010). Em Ciclos de Civilização, Dawson afirma:

Por trás da unidade cultural de toda grande civilização há uma unidade espiritual
em virtude de algumas sínteses que harmonizam o mundo interior da aspiração
espiritual com o mundo exterior da atividade social. Essa síntese se expressa
naquilo que podemos chamar de religião-cultura, tal como a que prevaleceu na
Europa Ocidental durante a Idade Média, quando a civilização, em todas as suas
manifestações, estava indissoluvelmente imersa em uma grande religião social.
Nessas culturas, tão opostas às nossa, sentimos que a vida está internamente
unificada e que o mesmo espírito se expressa tanto no trabalho instintivo do artesão
inculto quanto na realização do artista e do escritor. Uma vez que se dê uma síntese
desse tipo, ela domina a civilização por séculos, e compreendê-la constitui a chave
da história de toda uma era global. (...) Mesmo quando a síntese em que a religião-
cultura está baseada não mais expressa uma relação viva entre o mundo interior e o
exterior – entre a consciência individual e a realidade -, a sociedade ainda luta
para mantê-la e forçar as novas e rebeldes condições a se encaixar nas categorias
da antiga religião-cultura. (...) Há a sensação dolorosa de tensão na manutenção da
19

fé social, e os indivíduos são tentados a romper com a ordem tradicional e


encontrar novas oportunidades de conhecimento e ação. Quando se atinge um ponto
de ruptura, as novas forças derrubam as barreiras de tradição, seguem-se um
período de progresso com seu individualismo brilhante, a sua irrelevância para com
o passado e o seu sentido de uma nova vida e novas realizações em todos os lugares
(DAWSON, 2017: 94 – 95).

Em “Enquiries into Religion and Culture (1933)”, publicado no Brasil como


“Inquéritos sobre religião e cultura” em 2017, Dawson claramente afirma que o iluminismo e
positivismo criaram uma religião do progresso. Religião esta que descartou completamente a
contribuição medieval no desenvolvimento do humanismo e do Renascimento, que para
Dawson são expressões da cultura cristã. Com esta afirmação o historiador galês concorda
com a visão de Johan Huizinga em “Outono da Idade Média” que foi publicado em 1919.
Além de expressar sua visão eliotiana de cultura:

Eliot adotou o conceito sociológico moderno de cultura, significando o modo de


vida comum de um povo em particular, baseado numa tradição social que se
expressa em suas instituições, em sua literatura, em sua arte. Concordo totalmente
com Eliot em sua definição, a qual é, de fato, a minha também. Acredito que esse
entendimento sobre a cultura se tornou indispensável para o historiador e o
sociólogo. (…) O valor da abordagem de Eliot pode ser visto pela forma como
direciona nossa atenção para os grandes elementos primários da cultura – a
família, a região e a religião -. os quais tendem a ser, igualmente, ignorados tanto
pelos advogados socialistas de umasociedade planejada, como pelos sobreviventes
do ideal liberal, os líderes da cultura individual. (DAWSON, 2010: 186 - 187).

A visão de que a cultura é a força motriz da formação das instituições humanas é


essencial para compreender Dawson como historiador. E em especial um historiador da
cultura por excelência, que dá valor extremamente elevado à religião, por ser esta, na visão de
Eliot, um dos três pilares da cultura. Sendo assim, Dawson não consegue conceber a história
do Ocidente sem a cultura que lhe formou: a cristã. Desconsiderar o cristianismo seria um
erro fatal de qualquer historiador do mundo ocidental.
O cristianismo e a sua importância para a cultura e história do Ocidente, serão temas
que nunca mais sairão da produção de Dawson. É só observar as obras que se seguiram à
publicação de Religião e Progresso de 1929: Christianity and the New Age (1931), The
Making of Europe (1932), The mordern dilema (1932), The spirit of the Oxford Movement
(1933), Enquiries into Religion and Culture (1933), Medieval Religion and Other Essays
(1934), Religion and the Modern State (1935), Beyond Politics (1939), Judgment of the
nations (1942), Religion and Culture (1948), Religion and the rise of western culture (1950),
Medieval Essays (1954).
19

Destes, a É realizações publicou Religion and the rise of western culture (1950), com o
título de “Criação do Ocidente, religião e civilização medieval” em 2016, e Judgment of the
nations (1942), com o título de “O Julgamento das nações” neste ano de 2018. A editora que
vem publicando obras de Dawson desde 2010, não publica as obras de forma cronológica,
mas aqui não cabe fazer um julgamento, já que as questões editoriais têm suas próprias
especificidades.
Nesta fase de sua produção, Dawson já não apenas se mostra um historiador que
acredita ser a religião social e a sociedade religiosa, ele prova. “Criação do Ocidente” (1950)
já foi uma obra escrita 4 nos depois que o autor assumiu as Gifford Lectures na Universidade
de Edimburbo. As Gifford Lectures foi fundada por Adam Lord Gifford no século XIX para a
promoção da teologia natural e o conhecimento de Deus. Para se ter uma noção da qualidade
das Lectures, Hannah Arentd, Henri Bergson, Noam Choonsky, Paul Tillich, Rudolf Bultman,
Karl Barth, Carl Sagan, Jonh Dewey, Michel Polanyi, Jaroslav Pelikan, Raymond Aron e
Alister McGrath já foram palestrantes, nomes de grande importância para a história e teologia.
Dawson está no ápice de sua produção e chegando na sua maturidade intelectual.
Depois de mostrar a importância da religião como formadora da sociedade, Dawson agora
deixa de ser mais “sociólogo” e começa a se tornar mais “historiador”, ou seja, enfim buscará
a especificidade do cristianismo. E afirmará em “Criação do Ocidente” de 1950 que
especificidade é esta, que para ele é o fato do cristianismo ser uma religião baseada em fatos.
A religião do transcendente que se transformou em imanente é uma experiência religiosa
única no tronco religioso judaico-cristão, e para o mesmo, isto criará visões, valores e
instituições muito específicas se comparadas com outras civilizações, Dawson diz:

Faz dezoito anos que escrevi: “Entre as civilizações do mundo, por que somente a
Europa foi continuamente perturbada e transformada por uma espécie de energia
indomável de agitação espiritual, cuja dinâmica interna não se sujeita às imutáveis
leis da tradição social que sempre governaram as culturas orientais? Creio que a
resposta seria: porque seu ideal religioso nunca esteve ligado à adoração de uma
perfeição intemporal e imutável, mas apresenta-se como um espírito que busca se
incorporar à humanidade, mudando, porém a face do mundo. No Ocidente, o poder
espiritual, não foi imobilizado e cristalizado em uma ordem social sagrada, como
ocorreu no Estado confuciano, na China, e no sistema de castas da Índia. Aqui, ele
adquiriu liberdade e autonomia social e, consequentemente, sua atividade não ficou
confinada à esfera religiosa, e seus efeitos se disseminaram sobre todos os aspectos
da vida social e intelectual. (DAWSON, 2016: 37 - 38).

Poucos anos depois em Dynamics of World History (1956), aqui publicado em 2010,
Dawson, em sua obra mais teórica, afirmará ser o cristianismo não apenas uma religião
histórica. Mas que para fazer história do cristianismo é preciso respeitar e aceitar o fato que os
19

cristãos creem na sua historicidade. Ou seja, se historiador do cristianismo não pode duvidar
que Cristo nasceu, viveu, morreu. Milagres, curas, o nascimento virginal e ressurreição não
cabe ao historiador defender ou atacar, já que não fazem parte da imanência. O historiador
deve então se preocupar como essas crenças foram vividas e no que elas influenciaram o
Ocidente. Interessante como esta afirmação se aproxima de Apologia da História de Marc
Bloch, escrito em 1944:

Pois, diferentemente de outros tipos de cultura, ela sempre esperou muito de sua
memória. [Tudo a levava a isso: tanto a herança cristã como a herança antiga. Os
gregos e os latinos, nossos primeiros mestres, eram povos historiógrafos. O
cristianismo é uma religião de historiador. Outros sistemas religiosos fundaram
suas crenças e seus ritos sobre uma mitologia praticamente exterior ao tempo
humano; como Livros sagrados, os cristãos têm livros de história, e suas liturgias
comemoram, com os episódios da vida terrestre de um Deus, os faustos da Igreja e
dos santos. Histórico, o cristianismo o é ainda de outra maneira, talvez mais
profunda: colocado entre a Queda e o Juízo, o destino da humanidade afigura-se, a
seus olhos, uma longa aventura, da qual cada vida individual, cada "peregrinação"
particular, apresenta, por sua vez, o reflexo; é nessa duração, portanto dentro da
história, que se desenrola, eixo central de toda meditação cristã, o grande drama do
Pecado e da Redenção. Nossa arte, nossos monumentos literários estão carregados
dos ecos do passado, nossos homens de ação trazem incessantemente na boca suas
lições, reais ou supostas. (BLOCH, 2002: 42).

É por isso que Dawson vê na Divisão da Cristandade o começo do fim da própria


cristandade. Ele vê o protestantismo como a força propulsora da secularização na Europa, e
assim, concorda com teólogos e historiadores protestantes como Paul Pillich e Alister
McGrath (este último é posterior ao Dawson). A doutrina do sacerdócio universal de Lutero,
no qual se afirma ser todas as profissões vocações, é vista como promotora da secularização.
Dawson, como católico praticante, rejeitou a reforma litúrgica do concílio Vaticano II, mas
aprovou sua proposta ecumênica.

Considerações finais
Dawson foi corajoso ao contrariar toda uma geração que desprezava a religião, ao
afirmar o quanto a religião forjou civilizações inteiras, o mundo não é tão “laico” assim, na
verdade o império do laicato cultural é uma novidade do século XIX. Nossa geração foi criada
a pensar que a razão é autônoma, que a religião é inferior e que ela representa atraso e não
avanço. Em Dawson vemos justamente o contrário. O que o historiador da religião ganha ao
ler Dawson? Em especial o historiador do cristianismo? Creio que uma referência mais do que
erudita sobre o papel da religião e do cristianismo na formação das instituições do mundo
ocidental.
19

Além disso, Dawson também nos ajuda a explicar a dita era da “pósverdade”. Se para
o historiador galês o fim das civilizações coincidiu com o fim ou mudanças na religião, a
“pós-verdade” também pode ser explicada pelo paulatino abandono das crenças no homem
que não condenou a mentira, mas que afirmou ser ele mesmo a verdade. A civilização
ocidental caminha a passos largos para a superação do cristianismo? Estaria o que entendemos
por valores ocidentais chegando ao fim? A escrita historiográfica não permite escatologias,
mas permite afirmar, que segundo Dawson, já que o Ocidente nasceu cristão, ele morrerá se
deixar de ser, e uma nova civilização surgirá.
E por isso este historiador se torna atualíssimo, por que ele ajuda a compreender
melhor a atual onda reacionária na política ocidental. Não é apenas uma disputa ideológica
direita x esquerda, nem somente os velhos racismos e xenofobias vindo à tona em momentos
de crise econômica. É também o medo da morte, e que morte? De todo um estilo de vida, que
para Dawson foi forjado por uma cultura religiosa: o cristianismo, cuja “religião” do
progresso tanto advogou a necessidade de superar. Assim, se vivo fosse, o historiador católico
diria que a atual crise civilizatóriaque passa a Europa não é culpa dos refugiados, e nem serão
eles os responsáveis pelo fim da Europa, mas ela própria.
O Dawson católico acreditava que a restauração da unidade cristã, mantida pelo
respeito às duas tradições, seria a salvação da cristandade frente ao paganismo, e o
historiador, na salvação da Europa de seu declínio civilizacional. Este é Christopher Dawson,
erudito, brilhante, cristão, com a capacidade de dialogar em uma mesma frase com Max
Weber e Confúcio. Historiador que tem muito a contribuir com a historiografia do
cristianismo no Brasil, apesar de quase 50 anos de publicação de sua última obra, mesmo
sendo um historiador datado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro, Zahar,
2002.
DAWSON. Christopher. A divisão da cristandade. São Paulo, É realizações, 2014.
. A formação da cristandade. São Paulo, É realizações, 2014.
. Criação do Ocidente. São Paulo, É realizações 2016.
. Dinâmicas da história do mundo. São Paulo, É realizações, 2010.
. Inquéritos sobre religião e cultura. São Paulo, é realizações 2017.
. Progresso e religião. São Paulo, É realizações, 2012.
19

LEWIS, C.S. A abolição do homem. Rio de Janeiro, Thomas Nelson Brasil, 2017
1

UM TERCEIRO OLHO DESVENDA CRONOS:


JÚLIO DE MESQUITA FILHO E “O ROTEIRO DA REVOLUÇÃO”.

Francisco Adriano Leal Macêdo*


Marylu Alves de Oliveira**

RESUMO: Este artigo é parte constitutiva da pesquisa de graduação que toma a trajetória do
intelectual paulista Júlio de Mesquita Filho, a pretexto de pensar aspectos do imaginário
político brasileiro que moveu esse representante da elite paulista entre os anos de 1932 e
1964. Já situado na parte final do recorte temporal estabelecido, o texto que segue deseja
problematizar mais uma das perspectivas de época em torno do golpe militar de 1964 e seus
desdobramentos. Buscamos traçar considerações sobre o lugar dos que se entendiam como a
elite nacional, de posições políticas demarcadas em torno do espectro liberal-conservador,
tomando como fonte um editorial do jornal O Estado de São Paulo publicado em 12 de abril
de 1964 pelo proprietário e diretor do periódico, Júlio de Mesquita Filho. Pretendemos,
também, mapear a extensão da participação de setores intelectuais como sujeitos envolvidos
de maneira direta no golpe civil militar. Serão feitas referências a autores tais como Jorge
Ferreira, Marcelo Ridenti e Carlos Fico para refletir sobre a dinâmica da política brasileira do
período do golpe e a transição para a ditadura militar. Teoricamente, o argumento se
desenvolverá em torno de Arno Mayer e Reinhart Koselleck.
PALAVRAS-CHAVE: Golpe militar. Política. Intelectuais.

Mas vocês não compreenderam ainda que se não tomarmos o


poder agora estamos perdidos? Quem vai governar mesmo no
próximo quinquênio é o Jango e o maluco do cunhado dele, o Leonel
Brizola. Os dois, mancomunados, continuarão manobrando os
sindicatos, encorajando as greves, fazendo passar mais e mais leis
favoráveis aos seus eleitores e pelegos, aumentando o salário mínimo,
em suma, estrangulando cada vez mais as classes produtoras. Vamos
acabar no socialismo! Que Deus nos livre acrescentou,
rápida, Quitéria. [...]
Erico Veríssimo – Incidente em Antares

Introdução: Intelectuais como fios de compreensão da História


Esse objeto de pesquisa se insere no horizonte de análise em que a historiografia tem
se enveredado com frequência desde a década de 1980.1 A escrita contemporânea da história,

*
Graduando em História pela Universidade Federal do Piauí – Campus Senador Helvídio Nunes de Barros,
cursando presentemente o 8º período do curso. E-mail: adrianocpf@hotmail.com
**
É doutora em História Social pela Universidade Federal do Ceará (2016). Pesquisa as seguintes temáticas:
Cultura Política, Anticomunismo, Partidos Políticos, PTB, Trabalhismo e Trabalho. É professora efetiva da
Universidade Federal do Piauí. Orientadora deste trabalho. E-mail: marylu.oliveira@gmail.com
1
A historiadora brasileira Angela de Castro Gomes argumentou que as novas abordagens da historiografia
depois da década de 1980 lançou novos objetos e fundou novas interpretações da História do Brasil. Um
exemplo dessa tendência é a história intelectual, ou história das teorias e dos sistemas de pensamento que
manejavam a visão de mundo de sujeitos que se propuseram pensar a realidade nacional. Ver: GOMES, Angela
19

que outrora privilegiou modelos histórico-estruturais, passou a refletir também sobre o


pensamento social de sujeitos de épocas anteriores. A história intelectual, ou história das
teorias, define esses indivíduos como “intérpretes do Brasil”, portadores de “diagnósticos” e
“projetos” para a Nação.2 Essa preocupação com o que pensavam e desejavam esses
personagens do mundo intelectual é tal que, na virada do milênio, ganhou status
comemorativo, com a Folha de S. Paulo lançando a coleção de livros Grandes Nomes do
Pensamento Brasileiro. Conforme explicitado na apresentação de cada volume, o leitor
deveria “entender como o Brasil se tornou o que é”. 3 Esse mote ambicioso, para além do
símbolo que representa, não demonstra sinais de esgotamento.
Os esforços em estudar os intelectuais que atuaram na cena política e social brasileira
tomam como objeto de análise indivíduos dos séculos XIX e XX. As conclusões apresentadas
possuem semelhanças e diferenças sutis, variando conforme a temporalidade e os conceitos
que os preocuparam. Nesse ponto, e como desdobramento de uma pesquisa em ponto maior,4
o personagem aqui trabalhado é um intelectual paulista que atuou no século XX através de
livros publicados e editoriais em seu próprio jornal – a saber, O Estado de São Paulo. Trata-se
de Júlio de Mesquita Filho, indivíduo cuja notoriedade familiar já vinha sendo consolidada
desde o século XIX. Frente às fontes pesquisadas sobre o sujeito em questão, encontramos a
“possibilidade metodológica de se trabalhar com a dimensão social do pensamento e das
ideias dos atores, explorando-se fontes que indicam ‘pistas’ e ‘indícios’”.5
As questões sociais em que Mesquita Filho esteve imerso ao longo da sua atuação
intelectual encontram aspectos lacunares e enigmáticos, que, apesar de existirem diversas
pesquisas que se debrucem sobre isso, não é escusado acatarmos a lição Darntoniana em
buscar novas respostas ou reflexões para problemas antigos. O que move esta análise é a
vontade de saber o que se mostrará na lupa focada sobre a figura do intelectual paulista, e
quais brasis se refletiam em sua retina. A apropriação acadêmica das suas falas e de outros
sobre ele, cruzadas, se não puderem demonstrar “como o Brasil se tornou o que é” podem ao

de Castro. Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980: notas para debate. In: Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, n.34, jul-dez, 2004. pp. 157-186.
2
Para elencar uma bibliografia sobre este tema, podemos citar os estudos empreendidos pelas historiadoras
Tânia Regina de Lucca e Maria Stella Bresciani, respectivamente: Ver: BRESCIANI, Maria Stella Martins. O
charme da ciência e a sedução da objetividade: Oliveira Vianna entre intérpretes do Brasil. São Paulo: Editora
UNESP, 2007. DE LUCA, Tania Regina. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1999.
3
SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Projetos para o Brasil. São Paulo: Companhia das letras; Publifolha,
2000.
4
Monografia que está sendo produzida por mim no âmbito da Universidade Federal do Piauí, cujo título
provisório é: Nação como retórica: a construção da ideia de Brasil por Júlio de Mesquita Filho (1932-1964).
5
GOMES, Angela de Castro. Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980: notas para debate. In:
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.34, jul-dez, 2004. p. 161.
19

menos produzir insights sobre os devires históricos da constituição da sociedade brasileira,


dos preconceitos arraigados e das culturas políticas que a atravessam.
É a partir dessa hipótese que o texto se constrói: O tempo do agora de 1964 era
efervescente. As bigornas da forja do Brasil retiniam, onde o futuro era um objeto de disputa
aguerrida. Ocupando lugar central no palco dos acontecimentos está a pergunta que já vinha
sendo colocada há algumas décadas: Qual o regime político seria mais apropriado para o país?
Mesquita Filho ousaria ensaiar uma resposta a essa pergunta. O título de uma das obras de
Francisco Goya apresenta uma metáfora que consideramos ilustrativa nesse caso: El sueño de
la razón produce monstruos – a torre da modernidade não era infalível; não apenas o “sono da
razão” produz monstros, mas também seus “sonhos”. O monstro parido em 1964 tem, entre
outras coisas, a genética dos delírios racionalistas de intelectuais como Júlio de Mesquita
Filho. A concepção do regime partiu, também, da ideia de que a “revolução” estava inscrita
na ordem natural das coisas.

A carta revolucionária: roteiro para a História


Faziam doze dias desde que o golpe militar havia derrubado João Goulart de seu cargo
de presidente do Brasil, quando o Jornal O Estado de São Paulo publica um editorial em que
trouxe o título de “roteiro da revolução”. Esse roteiro, que tinha sido endereçado às “altas
patentes das Forças Armadas”, era a missiva escrita em vinte de janeiro de 1962, quando essas
“altas patentes” teriam inquirido Júlio de Mesquita Filho – diretor d’O Estado –, a manifestar
sua opinião acerca das conspirações que já teriam então tido início. Esse roteiro estava
dividido em tópicos que, segundo seu autor, teriam a sequência das ações a serem tomadas
como ideais para a estruturação do Estado brasileiro. Em outras palavras, estava detalhada a
receita política de estrutura linear e causal, tomando as experiências anteriores da política
brasileira como parte do seu arsenal analítico.6
Apoiador bastante assíduo de políticos ligados à UDN, podemos pensar Júlio de
Mesquita Filho como sujeito alinhado às aspirações do proeminente partido conservador. O
seu lugar na sociedade da época era o da elite nacional, que viera se mantendo em lugares de
privilégios há bastante tempo. Próximo de Carlos Lacerda, 7 comungava pelo menos em parte
com seus projetos, francamente golpistas; em 1964, estavam definitivamente legitimados pela
bandeira da legalidade. A UDN, enquanto partido político, já partira no encalço de demolir a
6
MESQUITA FILHO, Júlio de. Política e cultura. São Paulo: Martins Editora, 1969. p. 122
7
Nas fontes obtidas por mim no arquivo do Jornal O Estado de São Paulo, Júlio de Mesquita Filho é o
destinatário de uma vasta correspondência enviada por Carlos Lacerda, sempre em tom de amizade e
proximidade. Após a morte de Mesquita Filho, Lacerda chegou a projetar a escrita de uma biografia para o
amigo, todavia veio a falecer antes que concluísse a tarefa.
19

figura de Vargas décadas antes, esforçando-se em atribuir à sua imagem os ares do ditador
que fora até 1945. Os correligionários do partido buscavam articular a ideia de que a
metamorfose de Getúlio de ditador para democrata – por vezes alinhado à esquerda – era uma
fachada populista de manipulação. Em 1954, o suicídio de Vargas sacudia a firmeza de Carlos
Lacerda – “o demolidor de presidentes” – e seu partido. Quando o PSD e o PTB formaram
uma coalizão, frustraram a UDN por várias vezes consecutivas. O partido conservador passou
a enxergar a aliança que chamavam de “getulismo e populismo” como causa de grande parte
dos atrasos do país, passando a desprezar e odiar a situação, ressoando em críticas “mal
humoradas”.8
A crescente votação em grupos políticos à esquerda mobilizou novamente o
anticomunismo. Na perspectiva do espectro liberal-conservador direitista da União
Democrática Nacional, uma atitude se fazia necessária. Como pode ser lido no fragmento do
livro Incidente em Antares que serve de epígrafe para esse texto – escrito por Erico Veríssimo
já na década de 1970 –, as mistificações anticomunistas ecoavam pela sociedade brasileira. 9 O
trabalhismo e a reforma agrária, projetos políticos que representavam Jango, eram vistos
como a soleira da porta para o comunismo. É nesse terreno que o argumento construído em
torno da “defesa da legalidade” culminaria no golpe militar de 1964, bem como adentraria
mais de duas décadas, sempre alimentando essa ideia – que a certa altura passou a justificar a
tortura e a morte de brasileiros como “mal menor”.
No livro de Mesquita Filho intitulado Política e cultura,10 publicado em 1969, figura a
transcrição do editorial já referido. O título “roteiro da revolução” encontra um significado
forte no contexto da época. A palavra “roteiro” implica um plano que manteria os
desdobramentos da conspiração contra o presidente seguindo por trilhos pré-estabelecidos;
“revolução”, por sua vez, é um termo de legitimidade que na década de sessenta, segundo os
estudos desenvolvidos por Marcelo Ridente, encontrava envolto em um grande misticismo
romântico. A Revolução com R maiúsculo estava fincada no imaginário coletivo, não sendo
exclusividade nem dos espectros políticos de direita ou de esquerda. Era apenas palpável que
muitos consideravam causas pelas quais estavam dispostos a pagar um alto preço. Ridente
escreve que “(...) talvez os anos 1960 tenham sido o momento da história republicana mais
marcado pela convergência revolucionária entre política, cultura, vida pública e privada,

8
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Introdução à História dos Partidos Políticos brasileiros. 2 ed. Belo Horizonte:
UFGM, 1999. p. 83.
9
VERÍSSIMO, Erico. Incidente em Antares. São Paulo: Companhia das letras, 2006. p. 107.
10
MESQUITA FILHO, Júlio de. Política e cultura. São Paulo: Martins Editora, 1969.
20

sobretudo entre a intelectualidade”.11 Os intelectuais canalizam essa tradição revolucionária,


passando a integrar seus escritos e engajamentos – “a utopia que ganhava corações e mentes
era a revolução”.12
A “revolução” que ganharia “o coração e a mente” de Júlio Mesqita Filho seria
protagonizada pelos militares. A partir disso, pensaria ele ser um importante roteirista, já que
os interesses a quem servia esse ponto de inflexão política era o dos setores conservadores. O
governo de João Goulart estava ameaçando bases políticas brasileiras que jaziam em voga há
bastante tempo, com mudanças lentas, onde muitas vezes apenas os nomes mudavam e as
coisas permaneciam; para conservar esse status quo havia a necessidade de barrar as reformas
que Jango e seus apoiadores pretendiam promover. Em torno dessas reformas, as alegorias
anticomunistas foram criadas e compartilhadas de maneira extensa e incontrolável. Um
regime socialista poderia estar a caminho, e isso era algo que aterrorizava os indivíduos das
classes dirigentes. Essa batalha contra o comunismo possuía raízes que remontavam os
períodos que precederam o “Estado Novo”.13 Operando através de mecanismos como a
imprensa e criando uma certa ordem discursiva14 que enunciavam, um terreno fértil para uma
“revolução” política foi preparado; pelo menos desde 1962 as conspirações já estavam a todo
pano, e, no início do artigo publicado no livro de Mesquita Filho.
O texto é apresentado nos seguintes termos, após detalhar que ele havia sido escrito há
aproximadamente dois anos daquela data: “O Dr. Júlio de Mesquita Filho, instado por altas
patente das Forças Armadas a dar a sua opinião sobre o que se deveria fazer caso fosse
vitoriosa a conspiração que já se iniciara contra o regime do Sr. João Goulart (...)”. 15Em
seguida, se desdobra a transcrição de uma carta pelas próximas oito páginas, detalhando um
itinerário a ser seguido para que a “legalidade” fosse restaurada. A data de tal missiva segue
do dia vinte de janeiro de 1962; um “roteiro” em seis tópicos é escrito e endereçado a um
misterioso destinatário, referido apenas como “meu ilustre amigo”. Os tópicos possuem os
seguintes subtítulos: Junta militar, tribunais, legislativo, Conselho Nacional, O prestígio
nacional e Iniciativa privada. O intelectual e Revolucionário Mesquita Filho aflorava
novamente, dessa vez forjando uma receita de como proceder após o golpe de Estado a que
chamava de Revolução. Desde 1932, se passara três décadas; após os seus dois exílios e o
11
RIDENTI, Marcelo. Cultura e política: os anos de 1960-1970 e sua herança. In: FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Orgs.). O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em
fins do século XX. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. (O Brasil Republicano, 4). p. 135.
12
Ibidem.
13
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil. (1917-1964).
São Paulo: FEPESP, 2002.
14
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2005.
15
MESQUITA FILHO, Júlio de. Política e cultura. São Paulo: Martins Editora, 1969. p. 122.
20

passar do tempo, o seu papel na revolução agora era o de pensador cuidadoso por trás da ação.
Emprestava seus saberes às forças armadas.
Analisando o documento, em primeiro momento, um pensamento se faz presente – a
introdução desse escrito afirma que “a responsabilidade que pesa sobre as forças armadas é
enorme”.16 Essa responsabilidade atestada por Mesquita Filho aos militares aparece seguido
de referências a diversas ocasiões em que o exército havia agido como poder moderador,
especialmente apologético ao “belo movimento que derrubou a ditadura em 1945 e da queda
de Getúlio de 1954”.17 É nesse momento que se faz presente sua preocupação para o que
chama de “imprudências que redundaram em fracasso”, já que anteriormente o exército teria
entregado precipitadamente o poder a homens que tiveram seus espíritos formados em tempos
de ditadura. O personagem dirá que uma atitude planejada e prudente se faz necessária, como
se desejasse perscrutar o futuro e fornecer-lhe um plano a prova de falhas, um diagnóstico e
receita de intervenções que “no máximo três anos terá voltado o Brasil a um estado de perfeita
saúde política e social”.18
Segue, nesse tom de planejamento, o roteiro. A respeito da junta militar, ela se
constituiria em três militares que fariam as vezes do executivo. Tudo isso seria ancorado na
legitimidade constitucional, fundamentada na constituição de 1946 “para acalmar os espíritos”
e a partir disso promover a inadiável obra de saneamento”. 19 O chamado de “Poder Executivo
revolucionário” promoveria, de dentro dos limites da constituição, uma “reestruturação
administrativa e moral do Estado Brasileiro”. Não é definido, contudo, quais seriam esses
limites e até onde era aceitável o esgarçamento da constituição em nome do governo
“revolucionário”. Uma vez sob a bandeira da legalidade, as forças armadas desempenhariam o
seu papel, posto como quase sagrado, de restaurar a moralidade, o que deveria ser feito,
segundo Mesquita Filho, com prudência.
Essa prudência consistia, principalmente, em “evitar violências desnecessárias”.20
Dado o tom da aquiescência apenas parcial nesse trecho da carta/artigo, aparentemente “as
forças armadas” planejavam proceder uma derrubada total dos tribunais imediatamente após a
então nomeada “revolução”. O “saneamento” dessas instituições era urgente e necessário para
que as sombras que tanto diziam combater pudessem ser substituídas pelos faróis do Estado
autocrático que estava por dominar o país. O desafio que parece ter havido foi a não

16
Idem, ibidem. p. 120.
17
Ibid.
18
Ibid.
19
Ibid.
20
Ibid. p. 122.
20

existência uma fórmula para se fazer isso; em outras palavras, os conspiradores não tinham
controle sobre quaisquer das contingências vindouras. Júlio de Mesquita Filho afirmara que o
processo que levaria à queda de João Goulart já havia tido sua ignição, mas não existia um
roteiro prévio. Essa previsão que desejava dar conta do futuro, começara a ser discutida pelo
menos desde de 1962 e nem sempre encontrava unanimidade. 21 A consulta de intelectuais e
homens ligados à imprensa – como aqui apresentamos Mesquita Filho –, parece ter sido parte
do conjunto de ações que compôs o golpe de 1º de abril de 1964.
Júlio de Mesquita Filho pregara prudência. Não sabemos se ele ou outro dos ideólogos
e teóricos que ajudariam compor o quadro burocrático que cobriria o futuro governo ditatorial
com a bandeira da legalidade. Até hoje, os desdobramentos mais sutis desse período muitas
vezes permanecem velados por causa do alto grau de complexidade posta ao lado de uma
renitente insistência em modelos explicativos. Carlos Fico faz uma prolífica discussão em
torno dessa problemática; segundo este autor, pouquíssima atenção é dada aos
acontecimentos.22 Nesse caso, por exemplo, vemos o eco de como “1964 buscou construir
suportes jurídicos e aliou estratégias de legalização do regime às práticas de censura aos
meios de comunicação, de cassação arbitrária de mandatos parlamentares e dos direitos
políticos”,23 consultando intelectuais e pessoas em evidência na política nacional. Essas
dinâmicas são lampejos de processos subterrâneos, contudo não menos importantes. Uma
sugestão dada por Júlio de Mesquita Filho na referida carta pode ajudar a compreender como
esse processo se desdobrou. Ele defendia a criação de um “Conselho Nacional” que pudesse
ser consultado pela junta militar. Assim teria sido pensado tal conselho:

[...] Outra medida que julgo de grande interesse seria a criação de um Conselho
Nacional que acolhesse em seus quadros figuras de grande projeção. Este novo
organismo poderia ter apenas caráter consultivo ou deliberativo, ou os dois
simultaneamente. [...] A sua presença no organismo estatal viria reforçar
sensivelmente o prestígio do governo revolucionário, pois com ele julgo que estaria
completada a estrutura jurídico-política do País”.24

21
Para Reinhart Koselleck, a relação dos sujeitos históricos com as temporalidades em que habitam não é a
mesma para todos os indivíduos, ao mesmo tempo que propõe o estudo da própria historicidade da categoria
tempo. Ver: KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.
Tradução: Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006. pp.
09-15.
22
FICO, Carlos. Ditadura militar brasileira: aproximações teóricas e historiográficas. Revista Tempo e
Argumento, Florianópolis, v. 9, n. 20, p. 05 ‐ 74. jan./abr. 2017. pp. 35-38.
23
MONTENEGRO, Antonio Torres. História e memória de lutas políticas. In: MONTENEGRO, Antonio
Torres; RODEGHERO, Carla S.; ARAÚJO, Maria Paula. (Org.) Marcas da memória: história oral da anistia no
Brasil. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012.
24
MESQUITA FILHO, Júlio de. Política e cultura. São Paulo: Martins Editora, 1969. p. 127.
20

Os conselhos que Mesquita Filho apresentaria aos militares nessa carta, que é tornada
pública após a deposição de João Goulart, defendem fortemente a restauração da legalidade,
segundo os moldes da democracia por ele pensado. Não concebia mais que o país continuasse
a se afastar dos seus projetos e, dessa vez, com o espaço muito mais limitado para
negociações do que acontecera na década de 1930 e a sua penetração no terreno público. O
“liberal” fazia aposta alta no exército para que o mando de campo das elites ameaçadas fosse
devolvido, numa posição paradoxal: era revolucionário em nome, inserindo-se como tal para
se autolegitimar, mas o futuro utópico correspondia, também, a um passado nostálgico. O
reacionário – ou uma vontade de retorno – e o revolucionário disputavam espaço em um
mesmo indivíduo, o que, em última análise, era um mesmo significante. O indivíduo, como
escreveu Norbert Elias, pensara uma sociedade ao seu modo, mas que deviria dissonante dos
seus desejos. É nesse ponto que a força das tradições se fazem presentes, demonstrando força
de reação, quase seguindo as leis Newtonianas de “igual força e sentido contrário”. Tal
fenômeno é análogo ao apresentado por Arno Mayer sobre a permanência do antigo regime na
europa, com papel ativo da aristocracia e dos intelectuais.25

1964 entre a experiência e a expectativa.


Conforme o século envelhecia, mais o autor da carta e da matéria de jornal que
analisamos nesse texto também sentia o peso dos anos. Giorgio Agamben nos lembra que a
terminologia “século” significava, no latim que a derivou, saeculum ou “tempo de vida”.26
Nascido em 1892, Júlio de Mesquita Filho provavelmente sentia o peso da própria
mortalidade e já contabilizava dois exílios. 27 Como era Kairos – ou “tempo de agora” – em
que ele vivia enquanto redigia aquele texto? Para além de conjecturas, é possível afirmar a
vontade de coerência que o fizera acreditar que possuía um “terceiro olho” que podia
perscrutar o futuro; esse olho estaria vigorosamente fincado nas seis décadas do tempo de
vida que tivera no século XX, passando a pretender a segurança dos Oráculos. Essa segurança
é evidente quando afirma que caso “(...) a junta militar se mantiver dentro dos limites da
política cujos traços principais são os que aí ficam, ela terá contribuído para tornar o Brasil
aquela Nação que o seu grande passado prometia”.28

25
MAYER, Arno J. A força da tradição: a persistência do antigo regime (1848-1914). São Paulo: Companhia
das letras, 1987. p. 269.
26
AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009. p. 60.
27
O primeiro exílio de Júlio de Mesquita Filho foi em 1932, por ocasião de sua participação na chamada
“Revolução constitucionalista”; o segundo seria motivado por sua oposição ao “Estado-Novo”, se prolongando
entre 1938 e 1943.
28
MESQUITA FILHO, Júlio de. Política e cultura. São Paulo: Martins Editora, 1969. p. 127.
20

Mesquita Filho seguia uma tradição de passado que na primeira República sujeitos
como Monteiro Lobato e o seu próprio pai tinham trilhado – a de compor políticas que tinham
lastro numa construção de um país grandioso, expurgando-lhe “as pragas” que o levava à
menoridade no concerto das nações.29 Evidências de sua saudade do “liberalismo excludente”
da primeira República, na qual vivera até seus quarenta anos, aparece no texto do derradeiro
tópico de sua proposta de “Revolução”. Aí entra o seu projeto liberal, construção de um país
em que a “iniciativa privada” daria as cartas; ao mesmo tempo, combateria qualquer vestígio
de filosofias que remetesse ao socialismo. Caberia ao Estado brasileiro

[...] combater os males que a infiltração do pensamento marxista na política


brasileira provocou nesses dois últimos decênios, exacerbando até o paroxismo a
intervenção do Estado na economia nacional. [...] Se quisermos combater o
comunismo dentro das nossas fronteiras, o próximo passo a ser dado pelo futuro
governo será o que tenda a conter dentro do razoável a ingerência do Estado
naquele delicado terreno estudando, ao mesmo tempo, a maneira de aliviar as
responsabilidades financeiras do tesouro, devolvendo à iniciativa privada tudo
quanto esta esteja em condição de gerir melhor.30

O anticomunismo voltava, encarnando parte do clima histórico, mostrando como as


dinâmicas da sociedade se canalizam nos indivíduos e como estes reagem. A iniciativa
privada era defendida por Mesquita Filho como uma defesa contra o comunismo. Isso se
expressava na tentativa de coser o seu agora de 1964, fortemente influenciada por suas
experiências passadas, disputa por um futuro à sua imagem. Nas palavras de Reinhart
Koselleck, um horizonte de expectativa sui generis estava se constituindo no calor das
“decisões políticas tomadas sob a pressa dos prazos e compromissos” 31 sob influência da
urgência de uma ação militar que rompesse com uma ordem estabelecida e implantasse outra
no seu lugar. Essa sequencia de acontecimentos encontra o que afirmara Darcy Ribeiro na
obra que sintetiza seu pensamento, O povo brasileiro. Ribeiro afirma que o golpe militar de
1964 é reflexo de que as classes privilegiadas viviam o medo de qualquer sublevação,
reagindo duramente a isso.32

29
DE LUCA, Tania Regina. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Fundação Editora
da UNESP, 1999.
30
MESQUITA FILHO, Júlio de. Política e cultura. São Paulo: Martins Editora, 1969. p. 126.
31
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução: Wilma
Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006. p. 15.
32
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: companhia das letras, 2006.
p. 21-22.
20

A “Revolução” devora seus filhos


O Historiador estadunidense Thomas Skidmore nas palavras finais de seu livro Brasil:
de Getúlio a Castelo faz uma breve menção a Júlio de Mesquita Filho como participante ativo
no golpe, apesar de não fazer nenhuma referência ao “roteiro da revolução” aqui trabalhado.
Skidmore aponta o envolvimento de certos setores da sociedade no golpe, sujeitos a quem
diversas mudanças que estavam se desenrolando no status quo brasileiro estava desagradando.
Novas dinâmicas que assustavam as classes privilegiadas conduziriam o apoio ao golpe,
devidamente travestido sob o nome de “revolução”. Skidmore anota que os miliares agiram
respaldados “por antigetulistas e civis de ideias neoliberais” – como é o caso de Mesquita
Filho – e que esses conspiradores estavam certos de que, com a “revolução”, a incômoda
herança varguista que viam encarnada em Jango finalmente se exauriria. 33 Contudo, esses
acontecimentos dariam origem a uma curiosa ironia, como veremos em seguida. Conforme a
“revolução” se prolongava e ganhava indisfarçáveis tons de ditadura, os interesses individuais
se bifurcavam e se tornariam conflituosos.
O dia 1º de abril é popularmente conhecido como “o dia da mentira”; apesar disso, em
1964 a “peça” pregada no regime democrático no Brasil não foi uma mentira, apesar de que
recheado delas em seus pretextos. Ainda assim, o espírito do dia parece acompanhar os
desdobramentos, uma vez que a célebre frase “a revolução devora seus filhos” atribuída por
Georg Büchner a Danton parece poder ser aplicada por muitos cá no Brasil pelos anos do
regime de governo que seguiu o golpe. Júlio de Mesquita Filho em breve seria engolido; após
publicar um artigo nada elogioso ao regime que se instituíra, 34 distante daquele que escrevera
no seu roteiro, seu jornal é censurado e nunca mais publicaria nele. “Golpes de Estado são
eventos traumáticos, que podem ser bem planejados e executados. Mas uma vez efetivados, é
frequente que abram alternativas políticas diversas. Por isso, o que ocorre após muitos golpes
de Estado foge muito do controle de muitos que o promoveram e apoiaram”, 35 o que significa
que os sujeitos de cada época possuem seus próprios projetos políticos, mas isso não significa
que tudo ocorra de acordo com o “roteiro”.
O deus ex machina que conteria o avanço da suposta avalanche comunista estava,
enfim, construído. Brotava como a solução milagrosa que levaria o país de volta aos trilhos;
diversas mitologias construíram as condições de nascimento desse golpe. A literatura ecoa
sensivelmente essa dinâmica do terror que então era construído: “Os inimigos já estão dentro

33
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 369.
34
INSTITUIÇÕES em frangalhos. O Estado de São Paulo. 13 dez 1968.
35
FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, e pôs fim ao
regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: São Paulo, 2014. p. 373.
20

de nossos muros! Protegei a vossa intimidade” – escreve Érico Veríssimo em Incidente de


Antares, referindo ao crescente anticomunismo – “Fechai as vossas portas e vossos corações a
esses forasteiros curiosos e indiscretos agentes do comunismo internacional ateu e
dissolvente. [...] Defendamos a nossa crença em Deus, na Pátria, na Família e na
Prosperidade! (Um Patriota)”.36 Na ficção de Veríssimo, essa caricata e irônica referência não
estava, de maneira alguma, aos “patriotas” dessa época.
Um coro considerável uniu-se para “demolir” Goulart; não apenas Carlos Lacerda,
Júlio de Mesquita Filho, ou a igreja. Seja a “Pátria”, a “Família” ou a “Prosperidade”, essas
poderosas falácias pintadas através dos meios de comunicação e no senso comum
contribuíram com o golpe, que em seguida se transformaria em revolução. Mais tarde, os
pretensos “flautistas de Hamelin” que abandonavam o coreto eram tratados de maneira
semelhante àqueles que se recusaram segui-los desde o começo – como inimigos da
revolução. O artigo escrito pelo proprietário do OESP e publicado em plena vigência do AI5
já falava em ditadura; o jornalista já mudara seu tom, talvez por sua cartilha de interesses
liberais vir sendo deformada durante o período “revolucionário”. O título sugestivo de
“instituições e frangalhos” denunciava a implosão da democracia política pela qual acreditava
ter lutado quatro anos antes.37 O neoliberalismo referido por Skidmore não teve pudores
quanto ao modelo de Estado o brasil fazia uso, justamente por ser o desenvolvimento mais
agressivo do já voraz liberalismo. Esse filho bastardo da modernidade, em sua fome
insaciável, não pouparia nem mesmo os paladinos e mercenários que lutaram do seu lado.

“El sueño de la razón produce monstruos”: Considerações finais


Estudar os intelectuais brasileiros no século XX é, necessariamente, ir de encontro
com discursos sutis e insidiosos. Eles falam de um lugar de poder que os transformam em
“bandeiras” engajadas em justa causa – pelo menos aos olhos de si mesmos. As trocas de
correspondência entre sujeitos que enunciavam certas vontades de verdade. Nesses projetos,
havia uma estética de grandeza e engajamento ao se inflamarem pelo Brasil; por outro lado,
essas ideias nem sempre estavam ancoradas em outras realidades visíveis das terras
brasileiras. Pelo menos, não aos olhos de todos que habitavam o país. O “humanismo” latente
os faziam oscilar entre a descrição e interpretação dos problemas do país, muitas vezes se
travestindo de historiadores, não raramente, tinham cunho teleológico e finalista. Em meio aos

36
VERÍSSIMO, Erico. Incidente em Antares. São Paulo: Companhia das letras, 2006. p. 141.
37
INSTITUIÇÕES em frangalhos. O Estado de São Paulo. 13 dez 1968, p. 3.
20

seus argumentos, acreditavam dizer, como lembrou Michel Foucault sobre os intelectuais, a
muda verdade de todos.
Esses enunciados pretendiam ditar ações, regimes políticos e moralização na
sociedade; imaginavam projeções que mostraram ser, reiteradamente, um caminho de
inteligibilidade íngreme. De fato, a intelectualidade que aqui temos pensado através de Júlio
de Mesquita Filho, tinha idiossincrasias clássicas, como seus projetos aparentemente a prova
de falhas e certeiros, mas que costumavam ficar no pretérito imperfeito – e quando não,
ficavam restrita a uma ínfima parcela do “povo brasileiro” por quem desejavam falar. Esse
fenômeno social que envolve as elites, aristocráticas no modo de pensar e abastadas no modo
de viver, está envolto de um misticismo identitário-regionalista, veladamente antidemocrático
– pelo menos no curto prazo. Os conceitos sob os quais desejavam conformar o mundo eram
a-históricos, uma vez que não havia nenhuma preocupação em relação à dimensão humana da
história.
As “forças incorpóreas”, meros princípios abstratos que não encontravam ressonância
em realidades maiores, representavam a distância que há entre o direito constitucional e o
direito costumeiro, teorias e uma práticas absolutamente descoladas entre si. Sergio Buarque
de Holanda define essa atitude curvada ao cientificismo sem lastro como uma separação
“irremediável” desse tipo de razão e a vida, sendo aquele usado apenas “para vestir seus
interesses”. As buscas de construção de uma intelectualidade de elite eram fundamentadas por
tautologias em que o próprio argumento se legitimava de maneira automática. Em meio a esse
enunciado intelectual, se fazia presente uma militância pelo “Brasil do futuro”, cuja
concretização fazia necessário o sacrifício de gerações inteiras – principalmente aquelas
distante dos “centros de saber” de onde esses discursos intelectuais se enunciavam.
Como escreveu Friedrich Nietzsche, aqueles conceitos que possuem história vivida e
lastro de significância entre os homens e mulheres que habitam o mundo, “esquivam-se à
definição”, acrescentando que “só o que não tem história é definível”. Pois bem, o liberalismo
conservador que moveu os engajamentos de Júlio de Mesquita Filho, intelectual e
sujeitocidadão brasileiro, enfrenta o mundo em sua complexa profusão, muito mais amplo do
que costuma admitir um pensador inspirado pelo positivismo. Por outro lado, os problemas
que envolvem a lentidão na construção da cidadania no Brasil, permite que os poderes sejam
embebidos por uma linguagem que não responde aos anseios da maioria. Esse fenômeno nos
remete ao que disse João Ubaldo Ribeiro em Viva o povo brasileiro, em referência de como
os heróis brasileiros são criados de maneira aberrante, escondidos sob uma névoa de sangue.
20

Os sujeitos a quem o Estado tem servido – e que compõem o estado – e a quem


atribui-se títulos, medalhas, ganham renome, monumentos e viram nome de avenidas são
personagens que deveriam ser parte de um passado a se libertar, não buscar inspiração. As
bandeiras paulistas – os mesmos que atacaram palmares e os indígenas brasileiros – são
tomados como inspiração por Júlio de Mesquita Filho e, certamente, por muitos de seus
contemporâneos. Ligada a tradição da razão do século XIX, o golpe militar de 1964 encontra
ressonâncias em brasileiros notáveis que desejaram fazer da política do país um edifício
construído a partir da razão. O “terceiro olho” falha em desvendar as contingências do tempo
e da vida humana nos termos exatos que desejou. Ainda assim, esse roteiro contribuiu para
dar tons de legitimidade, servindo a forças que se definiriam no futuro.

REFERÊNCIAS
FONTES:
INSTITUIÇÕES em frangalhos. O Estado de São Paulo. 13 dez 1968, p. 3.
MESQUITA FILHO, Júlio de. Roteiro da Revolução. In: Política e cultura.
São Paulo: Martins Editora, 1969. p. 120-127.

BIBLIOGRAFIA:
AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos,
2009.
BRESCIANI, Maria Stella Martins. O charme da ciência e a sedução da objetividade:
Oliveira Vianna entre intérpretes do Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2007.
DE LUCA, Tania Regina. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1999.
FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, e
pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: São Paulo,
2014.
FICO, Carlos. Ditadura militar brasileira: aproximações teóricas e historiográficas. Revista
Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 9, n. 20, p. 05 ‐ 74. jan./abr. 2017.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2005.
GOMES, Angela de Castro. Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980: notas
para debate. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.34, jul-dez, 2004. p. 161.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.
Tradução: Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed.
PUC-Rio, 2006.
MAYER, Arno. A força da tradição: a persistência do antigo regime (1848-1914). São
Paulo: Companhia das letras, 1987.
20

MONTENEGRO, Antonio Torres. História e memória de lutas políticas. In:


MONTENEGRO, Antonio Torres; RODEGHERO, Carla S.; ARAÚJO, Maria Paula. (Org.)
Marcas da memória: história oral da anistia no Brasil. Recife: Ed. Universitária da UFPE,
2012.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Introdução à História dos Partidos Políticos brasileiros. 2 ed.
Belo Horizonte: UFGM, 1999.
. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil. (1917-
1964). São Paulo: FEPESP, 2002.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo:
companhia das letras, 2006.
RIDENTI, Marcelo. Cultura e política: os anos de 1960-1970 e sua herança. In: FERREIRA,
Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Orgs.). O tempo da ditadura: regime militar
e movimentos sociais em fins do século XX. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2013. (O Brasil Republicano, 4).
SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Projetos para o Brasil. São Paulo: Companhia das
letras; Publifolha, 2000.
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castelo. São Paulo: Companhia das Letras,
2010.
VERÍSSIMO, Erico. Incidente em Antares. São Paulo: Companhia das letras, 2006.
2

OFICIO DE PROFESSOR NO FINAL DO SÉCULO XIX:


QUEIXAS E VIGILANCIA.

Francisco Júlio Sousa Ferreira*

RESUMO: Analisar as queixas movidas contra os professores primários no Ceará do final do


século XIX, pode nos ajudar a entender o contexto de construção do papel social deste
profissional e, também, o processo histórico de constituição de uma identidade profissional no
referido contexto. A documentação existente a este respeito nos permite tentar entender como
se davam as relações de poder entre Instrução Pública (Estado) e os professores, objetivamos,
portanto, analisar tais relações, identificar situações que revelam resistência por parte dos
professores e as práticas promovidas pela Instrução pública no sentido de “Vigiar e Punir” os
docentes. Para isto, recorremos à uma análise criteriosa e bastante volumosa de processos
movidos pela instrução pública e outros setores da sociedade contra os professores e,
relacionaremos, estes documentos à uma base teórica fundamentada nos conceitos
(CERTEAU, 2015, 2012) e (FOUCAULT, 1971, 1999, 2000).
PALAVRAS-CHAVE: Queixas. Vigilância. Professor.

1. A OPERAÇÃO HISTORIOGRÁFICA NOS PROCESSOS DE QUEIXA E


VIGILÂNCIA.
Construir uma narrativa histórica sobre as relações sociais existentes entre professores
primários, Estado, e comunidade de forma geral é uma tarefa, por demais, árdua que nos
propomos a desenvolver na dissertação de mestrado.
Para construir tal narrativa é preciso, além de embasamento teórico, possuir uma
sólida habilidade na interpretação das fontes. Diferente de outras pesquisas, esta, possui uma
quantidade significativa de fontes catalogadas que estão presentes no Guia de Fontes para a
História da Instrução pública da Província do Ceará (1833 – 1889). Diante disso, a análise
coerente das fontes e sua relação com os teóricos tornam-se itens de primeira necessidade
para o desenvolvimento da presente pesquisa.
Enquanto historiadores, estamos propensos a incorporar na análise de fontes perguntas
ou características mais subjetivas, o que é aceitável, portanto, quando se faz perguntas às
fontes necessariamente existem questões particulares que fazem parte de nosso lugar social.
“Certamente não existem considerações, por mais gerais que sejam, nem leituras, tanto,
quanto se possa estendê-las, capazes de suprimir a particularidade do lugar de onde falo e do
domínio em que realizo uma investigação”. (CERTEAU, 2015: 45). Portanto, apesar de
fugirmos constantemente da subjetividade, esta nos acompanha indefinidamente.
*
Universidade Regional do Cariri (URCA). Graduado em História (UVA), Especialista em Metodologias do
Ensino de História (UECE), Mestrando em Ensino de História (ProfHistória-URCA).
21

Particularidades que dependem diretamente do lugar de fala, ou seja, quem escreve,


torna-se uma parte importante, mesmo sem pretensão, acaba por incorporar singularidades à
sua escrita. Dessa forma, o historiador precisa incorporar à sua análise um embasamento
teórico consistente, já que “Mas que isso, em história como em qualquer outra coisa, uma
prática sem teoria desemboca necessariamente, mais dia menos dia, no dogmatismo de
“valores eternos” ou na apologia de um intemporal”. (CERTEAU, 2015: 46).
É curioso como pretendemos construir uma narrativa científica, utilizando fontes,
métodos e teoria para que, mais dia menos dia, outra narrativa ponha em xeque o que foi
produzido outrora por nós. De fato parece estranho, mas é aí que reside o caráter de maior
valor na escrita da História: a possibilidade de rever os conceitos, de mudar, reorganizar,
descontruir, reconstituir e problematizar.
Assim, a construção de uma narrativa histórica pode ser entendida como uma
“Operação Historiográfica” (CERTEAU, 2015), onde, além de estar atento ao método o
historiador precisa, permanentemente, lembrar-se de que ele é parte de uma combinação entre
lugar social, de práticas científicas e de uma escrita.

“Nessa perspectiva, gostaria de mostrar que a operação histórica se refere à


combinação de um lugar social, de práticas científicas e de uma escrita. Essa
análise de premissas, das quais o discurso não fala, permitirá dar contornos
precisos às leis silenciosas que organizam o espaço produzido como texto. A escrita
histórica se constrói em função de uma instituição cuja organização parece
inverter: com efeito, obedece a regras próprias que exigem ser examinadas por elas
mesmas”. (CERTEAU, 2015: 47).

Este lugar social citado por (CERTEAU, 2015) refere-se a seguinte pergunta: De onde
escreve o historiador? A que grupo pertence ele? Esses dois questionamentos nos dizem muito
sobre a forma de pensamento e qual o propósito do historiador ao escrever sobre um
determinado assunto. Obviamente, por estar em um contexto (lugar social) o pesquisador será
influenciado por suas vivências.

“Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção


socioeconômico, político e cultural. Implica um meio de elaboração circunscrito
por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto de observação ou de
ensino, uma categoria de letrados etc. Ela está, pois submetida a imposições, ligada
a privilégios, enraizada em uma particularidade. É em função desse lugar que se
instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os
documentos e as questões, que lhes serão propostas, se organizam”. (CERTEAU,
2015: 47).
21

Em relação às práticas científicas podemos entender como tudo aquilo que o


historiador pode fazer para dar contornos, na medida do possível, mais objetivos, acadêmicos.
De fato, para ser aceita a pesquisa precisa ser referendada por nossos pares. Diante disso, a
própria utilização da linguagem, a metodologia de pesquisa e modelo teórico-conceitual
merecem atenção especial, no sentido de utilizar as palavras e os conceitos certos, para que
mesmo estando vinculada à subjetividade do historiador, a escrita possua caráter científico.
Em terceiro lugar o CERTEAU (2015) nos coloca a escrita. Em ciências humanas ele
prefere utilizar o termo análise. Este termo permite estabelecer um conjunto de regras que
“permitam controlar” operações destinadas à produção de objetos determinados. Entende-se
aqui, que esta é a produção de objetos que se referem à construção da narrativa histórica.
Nessas análises, como não pode dar conta de todosos elementos da história, o historiador
acaba por produzir ausências, ou seja, ele dá voz a um determinado contexto e, deixa escapar
outros. Trata-se de uma situação que se apresenta, antes mesmo da escrita da narrativa,
geralmente a escolha do tema já é uma situação problema, que deixa algo “não dito”.
CERTEAU (2015) aponta que para alguns autores, a própria escolha do tema / objeto
já é uma escolha subjetiva anterior a toda a pesquisa. Portanto a objetividade completa seria
inalcançável. No entanto, o autor trata de escrever, também, que alguns filósofos estão
travestidos de historiadores e querem dar um caráter essencialmente subjetivo e voltado
basicamente para o pensamento teórico. Afirma que toda interpretação histórica depende de
um contexto, de uma estrutura. E, em muitos textos, figura o não dito que, embora não seja
descrita em sua produção, suas escolhas e pensamentos aparecem sem serem mencionadas,
elas são não ditas, mas podem revelar muito. Dessa forma, o “não dito” pode figurar de duas
formas: Aquilo que foi “esquecido” / “descartado” pelo historiador e, a sua subjetividade, que
é a junção do lugar social, da escrita e da técnica que unidas representam as escolhas
conscientes ou subconscientes que não foram ou não assumidas, deliberadas, portanto,
também, não ditas.

“Entre muitos outros, esses traços remetem o ‘estatuto de uma ciência’ a uma
situação social que é o seu não-dito”. É, pois, impossível analisar o discurso
histórico independentemente da instituição em função da qual ele se organiza
silenciosamente; ou sonhar com uma renovação da disciplina, assegurada pela
única e exclusiva modificação de seus conceitos, sem que intervenha uma
transformação das situações assentadas”. (CERTEAU, 2015: 55).

Dessa forma, partimos das análises de (CERTEAU, 2015) para entender o processo de
operação historiográfica extremamente necessário à escrita da história.
21

Começamos, portanto, de um presente, de um lugar social para tentar relacioná-lo à


um passado, na intenção de tentar compreender como neste caso, em particular – Os
processos contra os professores do Ceará no final do século XIX – se relacionam com os
casos contemporâneos e, de que forma, partindo de métodos específicos: interpretação,
elaboração de outras pertinências e aspectos teóricos, seria possível analisar a definição e uso
de alguns conceitos, tais como: O ofício de professor no final do século XIX, queixas e
vigilância.

Mais genericamente um texto histórico (quer dizer, uma nova interpretação, o


exercício de métodos novos, a elaboração de outras pertinências, um deslocamento
da definição e do uso do documento, um modo de organização característico etc.)
enuncia uma operação que se situa num conjunto de práticas. Esse aspecto é o
primeiro. É o essencial numa pesquisa científica. Um estudo particular será
definido pela relação que mantém com outros, contemporâneos, com um ‘estado da
questão’, com as problemáticas exploradas pelo grupo e os pontos estratégicos que
constituem, com os postos avançados e os vazios determinados como tais ou
tornados pertinentes com relação a uma pesquisa em andamento. (CERTEAU,
2015: 57).

2. AS ARTES DE FAZER: PRÁTICAS DE TRANSGRESSÃO DE PROFESSORES NO


CEARÁ NO FINAL DO SÉCULO XIX.
As fontes que serão analisadas ao longo da dissertação de mestrado são representações
das práticas de transgressão cometidas por vários professores no Ceará no final do Século
XIX. Tais práticas exteriorizam, portanto, a delicada relação dos professores com a instrução
pública e a sociedade de maneira geral. Chamaremos essas práticas de “operações dos
usuários” (CERTEAU, 2012: 37). Assim pretendemos, analisar, “sobretudo, a questão tratada
que se refere a modos de operação ou esquemas de ação e não diretamente ao sujeito que é o
seu autor ou seu veículo”. (CERTEAU, 2012: 37). Portanto objetivamos tratar do ato e não do
indivíduo como forma de mapear os conflitos / transgressões e, na medida do possível,
desenvolver uma análise que explique aquela situação.
Assim, ao tratar desses atos, já mortos, pretendemos verificar a presença de um
“estatuto de dominados, o que não quer dizer passivos ou dóceis. O cotidiano se inventa com
mil maneiras de caça não autorizada” (CERTEAU, 2012: 38). Essas práticas cotidianas, não
autorizadas, transgressoras serão a matéria-prima que dará corpo à nossa análise, pois, é
preciso situar o lugar e os discursos, lançar um olhar específico sobre o lugar de fala e suas
utilizações nos processos, entender a natureza e o processo de construção dos discursos de
moralidade, civilidade, de comportamento ético exigido aos professores, já que “suponho que
em toda sociedade a produção do discurso é simultaneamente controlada, selecionada,
21

organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por papel exorcizar-
lhes os poderes e os perigos, refrear-lhe o acontecimento aleatório, disfarçar a sua pesada e
temível materialidade”. (FOUCAULT, 1971:02).
Num primeiro caso, na comarca de Pereiro em 1866 foi feita uma queixa contra a
professora Maria Ignácia Franco do Nascimento, “Esta era viúva e foi acusada de manter
relações ilícitas com o Capitão da Guarda Nacional dessa Vila e de ter rejeitado uma criança.
O conselho diretor resolveu removê-la do cargo de professora. A mesma enviou, entretanto,
documentos com o objetivo de combater as acusações”. (CEARÁ, 2010: 478).
Entre 1858 – 1859 na localidade de Assaré foi feita uma queixa contra o professor
primário de Acaraú Jozé Sisnando Baptista Xenofonte.

O referido professor foi acusado, por Manuel Pereira do Nascimento, de enviar


duas cartas a sua sobrinha Maria Bella. O professor, que era casado, prometeu a
jovem matar a esposa e casasse com ela. O mesmo, em interrogatório, afirmou que
tinha inimigos em Assaré, a quem atribuiu as intrigas, e que não tentou matar a
esposa. (CEARÁ, 2010: 475).

Existe na documentação uma cópia das cartas enviadas pelo professor a jovem Maria
Bella.

Em 1859 na comarca de Jardim foi feita uma representação contra a professora


Joanna Henriqueta de Almeida. A professora foi acusada de não ter conduta moral
e religiosa pra lecionar, pois vivia com a mãe, que era separada, e seus pais não
tinham boa conduta moral. A professora foi removida para a localidade de Acaraú.
(CEARÁ, 2010: 476).

Existe, anexado, um abaixo-assinado dos pais de família contra a professora 1 Diante


das situações supracitadas algumas reflexões são necessárias: A quem interessava a conduta
ilibada do professor? Por que se dava tanta importância à conduta moral? Isso nos revela uma
situação instigante, pois o Estado cobrava dos professores um comportamento digno de elogio
da sociedade, a sociedade cobrava uma boa conduta moral dos professores e aos docentes
restava uma situação de conflito: Seria possível atender a todas as exigências feitas pela
sociedade?

“É claro sabemos [...], da existência de procedimentos de exclusão. O mais


evidente, o mais familiar, também, é o interdito. Temos consciência de que não
temos o direito de dizer o que nos apetece, que não podemos falar de tudo em

1
A informação sobre a existência de documentos anexados às representações é feita ao final de cada descrição
processual no livro “Guia de fontes para a história da Instrução Pública no Ceará 1833 – 1889”.
21

qualquer circunstância, quem quer que seja, finalmente, não pode falar do que quer
que seja”. (FOUCAULT, 1971: 3).

Nos processos analisados fica evidente que a construção do discurso da instrução


pública tinha um objetivo claro: refrear os desejos dos professores. Desejos esses que tinham
naturezas variadas eram desejos políticos, sociais, econômicos e até mesmo sexuais. Por meio
dos processos a Instrução Pública tentava, de certa forma, abreviar o poder de fala dos
professores, ou seja, reduzir as possibilidades do professor dizer o quer a quem quer que seja
sobre qualquer assunto.

“E com isso não há com que, manifesta (ou esconde) o desejo; é também aquilo que
é objeto do desejo; porque – e isso a história desde sempre o ensinou – o discurso
não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas
aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos
assenhorearmo-nos”. (FOUCAULT, 1971: 3).

Nos processos analisados é evidente que o professor assume um papel fundamental, o


de influenciador / educar pelo exemplo, justamente por que deve ser um exemplo de
comportamento para seus alunos e, para o Estado não seria aceita nenhuma forma diferente do
exigido pela sociedade de maneira geral.
Outra situação que nos chama atenção é o fato de a sociedade da época cobrar com
tanta veemência uma boa conduta moral dos professores. Isso nos revela uma, dentre as
inúmeras formas de comportamento presente durante o século XIX. Nesse contexto, o
cotidiano do professor pode ser descrito como uma teia de ralações sociais, onde estão
presentes conflitos sociais, políticos, psicológicos, financeiros, sexuais e morais. Portanto, a
realidade desse profissional no século XIX pode ser traduzida numa “Arte de Fazer”
constantemente seu presente, suas ações. “Essas ‘maneiras de fazer’ constituem as mil
práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção
sociocultural”. (CERTEAU, 2012: 41).
Um refazer-se no sentido mais amplo da palavra, uma vez que muitas práticas
cotidianas podem ser reveladas por meio das ações tomadas pelos atores históricos. Essas
ações, que a princípio nos parecem efêmeras, na verdade são repletas de significados.
Portanto, há naquele contexto um intenso conflito de interesses, de papeis sociais. Conflitos
entre aqueles produtores e consumidores do cotidiano.

A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e


espetacular, corresponde a outra produção, qualificada de “consumo”: esta é
astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ele se insinua ubiquamente, silenciosa e
21

quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas as maneiras de
empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante. (CERTEAU,
2012: 39).

Nesse sentido, sobre o ofício de professor no século XIX, é possível perceber que
haviam intensas relações de poder, em algumas situações os professores entravam em
discordância com o Estado por questões profissionais, com a Igreja Católica por questões
morais e religiosas e com os pais por questões pedagógicas e entre as diferentes camadas
sociais que compunham o contexto histórico educacional no período supracitado. Essa ideia
não encerra de maneira simplista o cotidiano estudado 2 , mas, nos permite visualizar com
maior clareza os conflitos sociais existentes entre professores, sociedade, Estado e Família.

Pode-se supor que essas operações multiformes e fragmentárias, relativas a


ocasiões e a detalhes, insinuadas e escondidas nos aparelhos das quais elas são os
modos de usar, e, portanto desprovidas de ideologias ou de instituições próprias,
obedecem a regras. Noutras palavras, deve haver uma lógica dessas práticas.
(CERTEAU, 2012: 41).

Fica evidenciado, portanto, que existiam e ainda existem, de acordo com cada
contexto, maneiras específicas de fazer e agir no cotidiano3. Maneiras complexas de compor
as práticas comportamentais, e cabe ao historiador tomar os detalhes dessas formas de
representação ou “Artes de Fazer” e analisar tais práticas comportamentais.

a mensagem, ouvida a meias, a manchete dos jornais, a voz ao telefone, a conversa


mais anódina, o homem ou a mulher anônima, tudo aquilo que fala, rumoreja,
passa, aflora, vem ao nosso encontro. (CERTEAU, 2012: 43 Apud Sojcher,
1979:145).

Essas práticas cotidianas estão latentes, a partir da análise das fontes selecionadas para
este estudo. Dessa forma, podemos perceber que algumas situações são muito singulares e que
por assim se apresentarem merecem destaque neste trabalho: Sexo e gênero, conduta moral e
ética e conflitos sociais são as principais características identificadas no referido contexto e
que, deverão der discutidas na dissertação de mestrado em andamento.
A partir da análise de Certeau sobre cotidiano e suas inúmeras maneiras de fazer-se, é
possível identificar algumas situações que são de suma importância para a complementaridade
deste estudo. Se a sociedade é um campo complexo de relações e para Certeau, tais relações
nem sempre são providas de análise e entendimento devemos, portanto, voltar nosso olhar

2
O cotidiano para (CERTEAU 2012) pode ser entendido como um conjunto de práticas que individualizam as
ações do sujeito, tornando-as específicas “Artes de fazer”.
3
Para (CERTEAU, 2012) algumas dessas práticas podem não ter uma lógica aparente.
21

para aquilo que se refere às práticas mais cotidianas, aqueles eventos relacionados ao fatos
mais simples e, que, no entanto, nos revelam muito sobre as formas de comportamento de
determinado contexto histórico.
Sob a ótica de Certeau, as práticas cotidianas revelam-se em atos ou situações muito
simples, como cozinhar, ler, estudar, dar aulas, etc., essas práticas cotidianas desvelam
aspectos importantes do contexto histórico relacionado. Esse campo de abordagem nos remete
à chamada micro história, justamente, por que a intenção desde estudo é tentar analisar o
cotidiano do professor no século XIX, os conflitos envolvidos no ofício de ensinar. Nesse
sentido, ainda de acordo com (CERTEAU, 2012), existe uma espécie de microfísica do poder.
Saber analisar e compreender essas relações de poder é de fundamental importância para o
entendimento da temática em questão.
Tais práticas sociais, obviamente são providas de intencionalidades e, podem ser
espontâneas, singulares ou orquestradas, nesse sentido devem ser entendidos dentro de seus
respectivos contextos históricos.

As práticas cotidianas estão na dependência de um grande conjunto, difícil de


delimitar e que, a título provisório, pode ser designado como o dos procedimentos.
São esquemas de operações e manipulações técnicas [...], é possível, senão defini-
los, ao menos precisar melhor seu funcionamento em relação ao discurso [...] e a
esta forma do tempo que é a ocasião. (CERTEAU, 2012: 103).

Dentro dessas práticas cotidianas podemos citar a queixa feita contra o professor
Ildefonso Pereira Camapum em 1866 em Saboeiro/Assaré.

O professor foi acusado, pelos inspetores de Assaré, de se ocupar com atividades


comerciais e coisas estranhas ao seu magistério, de não cumprir com as suas
obrigações como professor, de ser viciado em jogos e de não ter uma boa conduta
moral e religiosa. O referido professor enviou alguns documentos contestando as
acusações, afirmando que as mesmas eram frutos de intrigas políticas. O professor
reclamou, ainda, da dificuldade de conseguir atestados do cumprimento dos deveres
no magistério. (CEARÁ, 2010: 479).

Podemos citar, também, o caso do professor José Thomaz de Araújo em 1868 em


Lavras.

O referido professor, que exercia também as funções de capitão do serviço ativo da


guarda nacional e de recrutador, foi acusado de prender, injustamente, o tenente da
guarda nacional, José Leandro Correia, acusando-o de abrigar em sua casa
criminosos e desertores. O professor foi acusado ainda de se encontrar em estado
de embriaguez, corrompendo as condutas morais e religiosas. (CEARÁ, 2010: 481).
21

Em 1872, na localidade de Mulungu foi feita uma representação contra o professor


primário Balduino de Almeida Cabral.

O professor foi acusado, pelo alferes Francisco Teixeira de Magalhães, de se


dedicar às atividades comerciais e de agricultura, de não se dedicar aos seus
deveres de magistério, abandonando as aulas, por causa de viagens contínuas à
capital e de ter poucos alunos matriculados. O professor afirmou que o alferes
acusava-o porquê queria removê-lo da cadeira para colocar seu afilhado e que as
acusações sobre as atividades comerciais eram falsas. Afirmou ainda que, o abaixo-
assinado contra ele, foi assinado por pessoas dependentes ou amigos íntimos do
denunciante. (CEARÁ, 2010: 484).

Os documentos destacados acima podem nos ajudar a entender o contexto histórico da


profissão de alguns professores no Ceará do século XIX.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sabemos, portanto, que era proibido, ao professor exercer qualquer outra atividade
além de ensinar. O regimento moral e ético da época, também, impunha inúmeras proibições,
assim sendo, podemos perceber algumas práticas de resistência por parte dos professores –
possuir um segundo emprego, manter um relacionamento amoroso com uma aluna, ministrar
uma aula embriagado, se exceder no castigo físico de um aluno, não aplicar as avaliações na
data correta e a abandonar a sala de aula - são apenas algumas situações descritas nos
documentos da época. Analisar essas fontes é de fundamental importância para que possamos
contribuir, minimamente, para o entendimento da construção histórica do papel social do
professor. Pretendemos além, de entender a construção desse papel social, construir uma
dissertação que contemple três campos principais: Primeiro, relacionar as fontes primárias aos
teóricos listados no início do texto e construir uma relação coerente entre fontes primárias e
teoria. Em segundo lugar, problematizar os processos movidos contra os professores e
entender o cotidiano desse profissional no Ceará do século XIX e, finalmente, mapear as
principais práticas pedagógicas relacionadas ao ensino de História e entender a influência
dessas práticas no ofício do professor cearense do final do século XIX.

REFERÊNCIAS
FONTES PRIMÁRIAS:
 LEIS.

CEARÁ, Instrução Pública (1833) Lei nº 743 de 22 de Outubro de 1833: Fortaleza –


Regulamento nº 2 que dispõe sobre a instrução pública na província do Ceará.
21

 PROCESSOS.

Código de referência do Arquivo público do Ceará: BR APEC, IP. CO, QX. 1/11 – Queixa
contra a professora Maria Ignácia Franco do Nascimento - Comarca de Pereiro, 1866.
Código de referência do Arquivo público do Ceará: BR APEC, IP. CO, QX -1/ 3 - Queixa
contra o professor primário de Acaraú Jozé Sisnando Baptista Xenofonte – Comarca de
Assaré, 1859.
Código de referência do Arquivo público do Ceará: BR APEC, IP. CO, QX – 1/ 5 - Queixa
contra a professora Joanna Henriqueta de Almeida. – Comarca de Jardim, 1859.
Código de referência do Arquivo público do Ceará: BR APEC, IP. CO, QX – 1/ 12 - Queixa
feita contra o professor Ildefonso Pereira Camapum. Localidade de Saboeiro/Assaré. 1866
Código de referência do Arquivo público do Ceará: BR APEC, IP. CO, QX. – 1/ 18- Queixa
contra o professor José Thomaz de Araújo. Comarca de Lavras, 1868.
Código de referência do Arquivo público do Ceará: BR APEC, IP. CO, QX. –1/ 27 Queixa
contra o professor primário Balduino de Almeida Cabral. 1872, na localidade de Mulungu.
Código de referência do Arquivo público do Ceará: BR APEC, IP. CO, QX – 1/ 11 Queixa
contra o professor Enoch Rodrigues Campelo, feita por Zeferino Calasancio Lopes Pinheiro,
Bernardo Beserra de Menezes e Manoel Lopes do Nascimento. Localidade de Riacho do
Sangue, 1869.

BIBLIOGRAFIA:
BLOCH, Marc Leopold Benjamim. Apologia da História, ou O ofício do Historiador. Rio
de Janeiro: Zahar, 2001.
BRAGA de Olinda, Erlinda Maria. Tinta, papel e palmatória (A escola no Ceará do Século
XIX). (Coleção “Outras Histórias”, 2004). Fortaleza-governo de estado Ceará - Museu do
Ceará.
BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo. UNESP, 2002. CABRAL, Magali. A
palavra e o objeto. (Coleção “Outras Histórias”, 2004). Fortaleza-governo de estado Ceará -
Museu do Ceará.
CARVALHO, José Murilo. A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras,1990.
CEARÁ, Secretaria da Cultura. Arquivo público. Guia de Fontes para a História da
Instrução Pública da Província do Ceará (1833- 1889) – Fortaleza: SECULT, 2010.
CERTEAU, Michel de. A escrita da História. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
. A invenção do cotidiano: 1. Artes de Fazer; 18º Ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2012.
DOCUMENTOS. Revista do Arquivo Público do Ceará: História e Educação. N° 2.
Fortaleza. Arquivo Público do Estado do Ceará, 2006.
FOUCAULT, Michel. L’ordre du discours, Leçon inugurale ao collège de France prononcée
le 2 décembre. 1970. Éditions Gllimard, Paris, 1971.
22

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 1987.


PÁDUA, Elisabete Matallo Marchesini de. Metodologia da Pesquisa: Abordagem teórico-
prática. 18ª Ed. Campinas, SP: Papirus, 2016.
VIEIRA, Sofia Lerche. História da educação no Ceará: Sobre promessas fatos e feitos.
Fortaleza: Ed. Demócrito Rocha, 2002.
ZOTTI, Solange Aparecida. Artigo: Organização do Ensino primário no Brasil: Uma
leitura da História do Currículo Oficial. 2010.
22

A CIDADE, A TERRA E O JOGO SOCIAL:


A ATUAÇÃO DE INTENDENTES E OUTROS FUNCIONÁRIOS DA INTENDÊNCIA
DE NATAL NA GESTÃO E NO USO DO PATRIMÔNIO FUNDIÁRIO MUNICIPAL
(1903-1919).

Gabriela Fernandes de Siqueira

Resumo: Este trabalho objetivou investigar o processo de apropriação e uso do patrimônio


fundiário natalense associando-o à atuação da Intendência Municipal de Natal no início do
século XX. Constatou-se como intendentes e outros funcionários da Intendência de Natal
utilizavam suas posições privilegiadas para beneficiar-se da política de concessão de terras
municipais em enfiteuse, aforando grandes lotes, pagando foros inexpressivos, alienando
terras por quantias não significativas do ponto de vista do capital econômico, fortalecendo os
vínculos que possuíam com as redes de poder, configurando um mercado pessoal de terras
que envolvia a transação de diferentes tipos de capitais. Intendentes, secretários e fiscais da
municipalidade negligenciavam as leis locais, participando de um jogo social que visava
fortalecer os grupos influentes em prejuízo do patrimônio público. Tem-se um processo
marcado pela ambiguidade do ligame de formas liberais com uma estrutura política e
administrativa patrimonialista e conservadora. Foram utilizados como fontes os periódicos A
Republica e Diário do Natal, leis e decretos estaduais, relatórios de intendentes, resoluções
municipais, cartas de aforamento, dicionários biográficos e livros de memórias.
Palavras-chave: Intendência. Aforamento. Mercado de terras.

Com a implantação do governo republicano, os estados passaram a desfrutar de maior


autonomia. O domínio da esfera estadual significava o controle de verbas que poderiam ser
empregadas diretamente nas áreas de influência de quem controlasse essa esfera de poder,
realidade diferente da existente no período imperial. Os estados passaram a ter mais liberdade,
a receita de exportação pôde ser revertida para as próprias unidades federativas, e as
representações políticas tornaram-se mais autônomas. Contudo, essa autonomia favorecida
pelo federalismo permitiu o fortalecimento do que Edgar Carone denominou de “governos
oligárquicos”, nos quais a máquina governamental era controlada por um partido dominante,
representando o predomínio de determinadas famílias (CARONE, 1977: 10). No governo
republicano, segundo Faoro, a pressão da ideologia liberal e democrática não quebrou a
estrutura patrimonialista existente no país, em que o poder público confundia-se
constantemente com o privado (FAORO, 1975: 631-734).

 Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará


(UFC), mestra em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN) e professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do
Norte (IFRN-campus Currais Novos).
22

No Rio Grande do Norte foi possível observar a repercussão dessas mudanças e


continuidades com o governo republicano. Foi nesse período que a rede de parentela
Albuquerque Maranhão assumiu o poder no estado 1. Essa rede queria afirmar-se na capital, e,
para tanto, inscrevia-se nas toponímias da urbe, nos novos territórios criados, e,
especialmente, na historiografia. Mesmo perdendo progressivamente o poder a partir de 1914,
esse grupo familiar conservou, até o final da Primeira República, cargos e influência na
política. Na ocasião de fundação do Partido Republicano Federal do Rio Grande do Norte, em
27 de janeiro de 1889, Pedro Velho, a principal liderança dos Albuquerque Maranhão, leu um
manifesto representando as ideias gerais do movimento. Augusto Tavares de Lyra, em sua
obra História do Rio Grande do Norte, transcreveu partes desse manifesto que foi concluído
com o seguinte trecho: “no horizonte novo, surge, iluminando todos os espíritos e alegrando
todos os corações, o sol da liberdade, e com ele a república, a república que é paz e o
progresso como desenvolvimento da ordem” (LYRA, 2008: 324). É possível notar como os
fundadores do partido republicano norte-rio-grandense concebiam em seu discurso a imagem
da República como um regime que representava a liberdade e o progresso, ambos seguidos da
manutenção da ordem.
No dia 17 de novembro de 1889 a província do Rio Grande do Norte, que a partir
daquele momento tornou-se unidade federativa, aderiu ao novo governo, e Pedro Velho
tornou-se governador. O A Republica publicou um boletim ressaltando a adesão norte-rio-
grandense e exaltando o novo chefe do executivo estadual:

[...] Convencido de que representa e é depositário da honra pública, o governo,


nesta conjuntura solene, será ao mesmo tempo forte e justo, não poupando esforços
para manter inteira a harmonia social, respeitando todos os direitos, defendendo
todas as liberdades. Extintos os privilégios, estamos e entramos numa data de
verdadeira e plena confraternização. [...](LYRA, 2008: 328).

Como se pode inferir com base no fragmento do boletim transcrito no jornal que
publicava os atos oficiais do novo governo, periódico criado por Pedro Velho, o discurso dos
grupos que assumiram o poder era de otimismo, com várias promessas de transformação.
Com a República, ressaltava a redação do A Republica, os privilégios característicos do
governo imperial não mais existiriam. Com a República, a harmonia social reinaria, os
direitos e as liberdades de todos seriam resguardados, o povo brasileiro teria espaço nesse
governo novo, eis a promessa que guiava o discurso republicano norte-rio-grandense.
1 A ascensão do grupo familiar Albuquerque Maranhão não ocorreu de forma imediata após a implantação da
República, consolidando-se apenas a partir de 1895. Ver: BUENO, Almir de Carvalho. Visões de República:
ideias e práticas políticas no Rio Grande do Norte (1880-1895). Natal: Editora da UFRN, 2002.
22

Contudo, boa parte dessas promessas ficou reduzida ao campo do discurso. Os governos
estadual e municipal atuaram nas primeiras décadas do século XX na política de
modernização da capital norte-rio-grandense fomentando um processo de desapropriação em
massa, legitimando a relocação de retirantes e sujeitos considerados indesejados das zonas
urbanas. Na cidade que enfrentava um processo de remodelação nem todas as liberdades
estariam garantidas. No governo que começava a enraizar-se no Rio Grande do Norte, nem
todos teriam seus direitos resguardados, os privilégios de poucos ainda seriam prioridade.
No manifesto republicado divulgado em 21 de novembro de 1889, Pedro Velho
ressaltou que o governo seria representante dos direitos do povo, asseverando que os “erros e
desmandos do passado, a desigualdade e os privilégios, que traziam a vergonha pública e o
rebaixamento da dignidade cívica, cedeu o passo a uma vida nova, de horizontes largos, de
abundâncias e glórias, livres todos e todos iguais” (MARANHÃO apud Cascudo, 1965: 279).
O chefe do executivo estadual era categórico: “o Govêrno atual é do Povo e pelo Povo!”
(MARANHÃO apud Cascudo, 1965: 279). Os trechos citados do documento elaborado
alguns dias após o advento do governo republicano pode demonstrar como os organizadores
do Partido Republicano no Rio Grande do Norte desejavam divulgar o novo sistema político,
fazer propaganda, diminuir o número de insatisfeitos com as mudanças que o 15 de novembro
de 1889 prometia instaurar. Todavia, com o passar dos anos, os ideais otimistas do
republicanismo do tempo da propaganda foram, em grande medida, afastados pelas práticas
dos governos republicanos.
Câmara Cascudo ajudou a construir a imagem de um Pedro Velho que, além de
poderoso e memorável, era também honesto:

Pedro Velho velava sobre essa honestidade que era atributo funcional da chefia
política. Êle próprio, dono do Estado, filho de homem rico, deixou uma herança que
envergonharia o mais desinteressado dos homens contemporâneos. Quando casava
uma filha, dava-se por feliz podendo presenteá-la com um conto de réis, trocado em
notinhas novas, para as futuras despesas miúdas. Por hábito ou temendo o Chefe,
todos os delegados de sua política temiam a transgressão disciplinar no terreno dos
dinheiros públicos. Não posso nem devo revelar sua intervenção fulminante, serena,
implacável, definitiva, quando algum amigo sucumbia à tentação financeira das
rendas municipais ou compra fictícia de propriedades. Fibras das velhas árvores...
sem poda e sentidos de aclimatação... (MARANHÃO apud Cascudo, 1965: 40).

O trecho transcrito é elucidativo da imagem de herói composta por Cascudo. Segundo


ele, a principal liderança dos Albuquerque Maranhão morreu sem deixar herança expressiva,
e, pelo exemplo, fazia com que funcionários do estado e da municipalidade não cedessem à
tentação de desviar rendas municipais para fins particulares. Os redatores do jornal
22

oposicionista Diário do Natal certamente discordariam das afirmações de Cascudo. Afinal, o


Diário acusava constantemente Pedro Velho e os demais que participavam de seu partido de
desviar verbas públicas para fins particulares, de utilizar recursos do estado e da
municipalidade para embelezamento e construção de habitações de indivíduos ligados à rede
de parentela Albuquerque Maranhão. A análise da distribuição do patrimônio fundiário da
Intendência de Natal também é capaz de demonstrar como os funcionários municipais
utilizavam suas posições privilegiadas para se beneficiar do patrimônio público.

Funcionários da Intendência e a apropriação do patrimônio municipal


No início do século XX, as terras da Intendência eram apropriadas por meio do
aforamento (ou enfiteuse), um modelo de apropriação do solo que continua presente na
atualidade2. O aforamento é estabelecido mediante contrato perpétuo, em que o titular da
propriedade confere a outro os poderes de seu uso, gozo e disposição 3. Trata-se de um modelo
baseado na concepção de domínios divididos (direto e útil). Tem-se um sujeito, o senhorio,
que possui o domínio direto do terreno, e outro, o foreiro ou enfiteuta, que possui o domínio
útil do mesmo, podendo gozar de benefícios como construir, habitar e alienar o domínio útil,
devendo cumprir obrigações como o pagamento de uma taxa anual, denominada foro, e taxas
de transferência, de expedições de cartas, entre outras. O objetivo da enfiteuse era propiciar a
ocupação de áreas despovoadas da cidade e incentivar a política de construção de moradias na
capital, por isso uma das principais obrigações associadas ao aforamento na área urbana era o
comprometimento de construir uma edificação no lote concedido. Fora da área urbana, os
foreiros deveriam cercar as terras aforadas e, a longo prazo, estabelecer cultivo. Essa política
de apropriação de terra foi utilizada como um mecanismo de fortalecimento dos grupos que
dominavam o poder. Os intendentes permitiam alienações constantes do patrimônio público,
concediam latifúndios cobrando foros simbólicos e não revogavam os aforamentos de
enfiteutas que passavam anos sem construir e sem pagar as taxas.

2 Com o Código Civil elaborado em 2002, novos aforamentos para chãos urbanos foram proibidos. Entretanto,
em algumas cidades do Brasil esses aforamentos continuam existindo, pois as enfiteuses já existentes
continuaram sendo reguladas pelo Código de 1916. O aforamento de terrenos de marinha não foi proibido em
2002, sendo regulado por legislação específica. Em Natal, atualmente as pessoas pagam a taxa denominada
laudêmio ao transferir terrenos localizados em terras que, em tempos longínquos, constituíram o rossio da
Câmara. O pagamento do foro caiu em desuso, mas o instituto permanece, uma vez que a taxa de transferência
ainda é paga à Prefeitura, detentora do domínio direto das terras aforadas.
3 Para mais informações sobre esse modelo de apropriação, ver: AMORIM, Edgar Carlos de. Teoria e prática da
enfiteuse. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1986. p.1; SIQUEIRA, Gabriela Fernandes de. A regularização do
instituto do aforamento urbano em Natal e em Cidade Nova. In: _ . Por uma “Cidade Nova”: apropriação e
uso do solo urbano no terceiro bairro de Natal (1901-1929). Dissertação (Mestrado em História). Programa de
Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, 2014..+0
22

Os Albuquerque Maranhão também projetaram seu poder sobre a esfera municipal, já


que as indicações do Partido Republicano Federal do Rio Grande do Norte, composto
principalmente pelos membros dessa família, na maioria das vezes saíam vitoriosas nas
eleições para a composição da Intendência. Na prática, o poder municipal era pouco
autônomo4. Um bom desempenho na Intendência poderia resultar em cargo no poder estadual,
em ascensão social, e, até mesmo, em casamentos com membros influentes. Esse foi o caso de
Joaquim Manoel Teixeira de Moura, que atuou como presidente da Intendência entre 1900 e
1913.
A atuação de Moura na política de aforamento em Natal nas primeiras décadas do
século XX é elucidativa de como as ideias republicanas do tempo da propaganda foram
desviadas em determinados momentos, e como o processo de modernização convivia lado a
lado com práticas patrimonialistas. Moura, também conhecido pela alcunha Quincas Moura,
ocupou a Intendência de Natal entre 1895 e 1913, possuía a patente de coronel comandante
superior da Guarda Nacional do Rio Grande do Norte, foi importante comerciante da cidade,
sendo membro da Associação Comercial do Rio Grande do Norte (SANTOS, 2012: 77), dono
da Fazenda Santo Estevam5 e bem relacionado com a família Albuquerque Maranhão,
casando, em 1909, sua filha com o filho de Pedro Velho6. É possível encontrar nas
publicações oficias do A Republica notas informando que o governo estadual efetivou
contrato com Joaquim Moura para o fornecimento de determinados serviços ao longo da
gestão de Alberto Maranhão7.
Em relatório publicado em 1914, Quincas Moura destacou seu papel no processo de
regularização da política de aforamento de terras do patrimônio fundiário natalense,
ressaltando que somente em 1903, com o aumento da população e progressos da cidade, o

4 O artigo 5º do Decreto n.08 de 1890, que estabeleceu o Conselho de Intendência de Natal, dava ao governador
o direito de dissolver, no intuito de zelar pelo bem público do município, esse conselho, o que demonstra a
grande interferência do poder estadual no governo municipal, ver: RIO GRANDE DO NORTE. Decreto n.08, de
16 de janeiro de 1890. Decretos do Governo do Estado (1889-1891). Natal: Typ. da Empreza gráfica de Renaud
& Cia, 1896.
5
Moura também aparece como criador nas listas do Almanak Laemmert entre 1909-1929, ver: ALMANAK
Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro (Almanak Laemmert). Rio de Janeiro, 1909-1929.
Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=313394&pasta=ano%20190&pesq=>.
Acesso em: 04 maio 2018.
6 Essas informações foram encontradas em: A REPUBLICA, Natal, 18 mar. 1909; A REPUBLICA, Natal, 14
maio 1909; A REPUBLICA, Natal, 21 dez. 1909.
7
Em junho de 1900 o governo pagou a quantia de 107.000 réis para Moura pelo fornecimento de 25 quilos de
“semente de maniçoba para serem distribuídos gratuitamente aos agricultores da zona do agreste”. Em março de
1910, ao longo do segundo mandato de Alberto, o governo estadual pagou 716.260 réis para Joaquim Teixeira de
Moura pelas “despexas realizadas com a construção dos poços de propriedade do Estado, sitos às ruas Jundiahy,
Assú e Avenida 8”, ver: GOVERNO do Estado. A Republica, Natal, 06 jun. 1900; PARTE Official. A Republica,
Natal, 31 mar. 1910.
22

poder municipal lançou “as vistas para os terrenos doados ao município por D. João VI” 8.
Moura fazia referência às antigas terras do rossio, doadas pela Coroa às câmaras municipais
ainda no período colonial. Essas terras constituíram o patrimônio do poder municipal desde a
colônia e permaneceram, agora pertencendo à Intendência, no período republicano. O
presidente da Intendência ressaltou que, antes dessa intervenção de sua gestão em 1903, eram
raros os proprietários que possuíam a documentação regularizada de seus aforamentos e
pagavam os foros anuais à Intendência, contribuindo para a receita anual do poder municipal
com a quantia de apenas um conto de réis (1:000.000). Diante desse quadro de
irregularidades, Moura argumentou que:

Urgia organizar um cadastro e normalizar a situação dos posseiros, assegurando a


um tempo uma renda vantajosa e fixa. Várias resoluções foram votadas e muitos
sacrifícios custaram esses trabalhos preparatórios devido, em sua maior parte, à
solicitude e influencia do preclaro estadista que foi o senador Pedro Velho. [...].
O tempo com sua logica inflexível, saldou todo acervo de censuras e injustiças que
nos foram prodigalizadas, como sóe acontecer entre gentes incultas e inconsciente
de seus deveres cívicos. Como prova do resultado obtido, tenho a satisfação de
acusar um rendimento superior a 10:000.000 annuaes, para 2.700 cartas de
aforamento, ou seja o decuplo da receita primitiva no espaço de dez anos [...]9.

Moura ressaltou a importância de sua intervenção na política de aforamento urbano,


regularizando uma situação que estava sendo bastante desvantajosa para a receita municipal.
O relatório também anunciou que essa política de regularização não foi encarada
pacificamente, sacrifícios foram realizados, contestações existiram, mas esses percalços
representavam apenas um despreparo de “gentes incultas e inconscientes de seus deveres
cívicos”10. O presidente da Intendência buscou reafirmar a função pedagógica do poder
municipal, de mostrar à população que iniciava os anos de 1900 incultamente, que a capital
norte-rio-grandense tinha outro papel a desempenhar, que não podia mais tratar suas políticas
de terra com descaso. Ele reforçava a importância das reformas implementadas por esse poder
local. Outro aspecto importante do trecho mencionado é o incremento da receita municipal
graças à regulamentação da política de aforamento urbano.
Ainda nesse mesmo relatório, foi mencionado que, apesar da regularização e do maior
controle em relação ao pagamento dos foros anuais, era necessária ainda uma reforma para
assegurar o desenvolvimento da edificação, objetivo principal do aforamento para áreas
urbanas. Era preciso limitar a área dos terrenos concedidos em aforamento, pois, para o

8 RELATÓRIO. A Republica, Natal, 04 jun. 1914.p.2.


9 Idem.
10 Idem.
22

presidente da Intendência, a concessão de verdadeiros latifúndios, “além de não ser equitativa,


concentra as propriedades nas mãos dos mais abastados e reduz o número de edificações, em
desaccôrdo com o crescimento da população” 11. Afirmação que pode ser interpretada como
mais um indício de que os ideais de igualdade, de fim de privilégios, de um governo
preocupado com a coisa pública, muitas vezes ficavam restritos apenas aos textos da lei e aos
discursos oficiais. O referido presidente da Intendência aforou, entre 1904 e 1919, 19 terrenos
do patrimônio fundiário da Intendência Municipal de Natal, conforme destacado abaixo:

Tabela 01 - Tabela contendo número de cartas aforadas por Joaquim Manoel Teixeira
de Moura entre 1904-191912.
Bairro Quantidade Área por bairro Área total aforada
Cidade Nova 2 59.202,65 m²
Cidade Alta 8 4.353,4 m² 527.190,92 m²
Ribeira 0 0
Subúrbio 9 13 463.634,87 m²
Fonte: Elaborada pela autora com base nas cartas de aforamento.

Joaquim Moura era foreiro de uma área de 527.190,92 m². Entre esses terrenos
concedidos em enfiteuse, tem-se destaque para um lote de 216.499m² concedido pela
Intendência de Natal em setembro de 1912 e localizado na região suburbana. Trata-se, pois,
de um expressivo latifúndio, demonstrando como o discurso de Quincas Moura não se tornou
prática efetiva. Em janeiro 1904, quando Alberto Maranhão era o governador do Rio Grande
do Norte, Moura recebeu em enfiteuse um lote de 58.265 m² no bairro Cidade Nova. Para ter
acesso ao domínio útil desse terreno, o presidente da Intendência deveria pagar, conforme
estipulado pela Resolução n.81, o valor de 83.265 réis anuais14. Contudo, a carta de
aforamento registrou como valor de foro a quantia de 8.000 réis15. A quantia registrada na

11
Idem.
12
Expressar em números a participação do presidente da Intendência de Natal no mercado de terras da capital é
tarefa difícil. Muitas das cartas de aforamento que listam Quincas Moura como enfiteuta foram desmembradas
em outras. Todavia, ao longo desse processo, ocorreu alteração na área do terreno original, que foi ampliada
consideravelmente, o que dificulta o processo de descontar as áreas já contabilizadas antes do desmembramento,
podendo causar alteração nos números aproximados contidos na tabela destacada.
13
Vale ressaltar que Moura foi listado em 18 cartas de aforamento para a região suburbana de Natal. Contudo,
para a contagem da área de domínio útil de cada enfiteuta é preciso fazer o desconto de áreas que possam ser
contadas mais de uma vez. Sendo assim, se um terreno foi desmembrado em dois outros e, posteriormente,
novamente em dois outros, somente se deve contar a área original, já que, apesar dos desmembramentos, trata-se
do mesmo terreno. É preciso ainda ter cuidado para contabilizar as incorporações de áreas, efetivadas ao longo
de alguns desmembramentos.
14
Segundo a Resolução n.81, os foros de terrenos municipais nas áreas urbanas continuariam a ser cobrados à
razão de cinco réis por metro quadrado, entretanto esse cálculo seria efetuado para um terreno de até 5.000m². O
que excedesse de 5.000m² até 10.000m² seria calculado na razão de dois réis e o que ultrapasse os 10.000m² seria
cobrado na razão de um réis. Ver: A REPUBLICA, Natal, 15 set. 1903.
15
NATAL. Prefeitura Municipal do Natal. Carta de aforamento n.12, de 30 de janeiro de 1904. Natal: s.d.
22

carta era mais de dez vezes inferior ao que deveria ser cobrado segundo resolução
implementada em setembro de 1903, quando Joaquim Moura já era presidente da Intendência.
Os exemplos destacados demonstram como o presidente do executivo municipal aproveitava
sua posição privilegiada para aforar terrenos de dimensões expressivos nas zonas urbanas e
suburbanas da capital, pagando foros simbólicos.
O relatório de Moura sobre a gestão de 1911 a 1913 também ressaltou um problema
que foi apontado em algumas matérias do A Republica: a questão da falta de edificações. Os
habitantes aforavam terrenos, mas não cumpriam a cláusula da edificação, ocasionando um
problema considerável, já que o aumento populacional não era acompanhado pelo aumento de
moradias. Moura, enquanto presidente da Intendência, tinha papel importante na organização
das mesas eleitorais e, como os editais publicados no A Republica destacavam, também
indicava os mesários que participavam das eleições 16. Nota-se que, ocupando o cargo de
intendente, Moura fortalecia suas relações com a rede de parentela dos Albuquerque
Maranhão, e, enquanto comerciante, também beneficiava seus negócios, além de ter forte
atuação nas eleições para variados cargos. O Diário do Natal constantemente denunciava as
ligações diretas entre os Albuquerque Maranhão e Quincas Moura, e sugeria que o então
presidente da municipalidade desviava verbas para empregá-las em interesse particular, como
destacou a matéria pulicada em 09 de janeiro de 1912:

Não sei porque cargas a Intendencia triplicou os impostos para o corrente anno.
Quaes os melhoramentos feitos por essa grandíssima [...] nesta cidade? Onde estão
as suas obras? Nos cercados dos magnates? Nas terras do Senegal?
Responda o Quincas Manuel
Ou algum seu agregado
Os cobres da Intendencia?[...]17.

Quincas Moura também possuía o domínio útil de terrenos no bairro Cidade Nova, em
um deles construiu a propriedade denominada Senegal18. Na matéria citada, o autor criticou o
aumento dos impostos e sugeriu que eles estavam sendo desviados para custear a construção
de propriedades do presidente da Intendência e de seus agregados, já que não se conseguia
observar na urbe natalense melhoramentos que justificassem o referido aumento. Moura

16
Conforme destacado em edital publicado em junho de 1904, em que Joaquim Manoel Teixeira indicou os
mesários para a eleição de deputado federal. Entre os nomes indicados constavam os de Manuel Dantas,
Francisco Cascudo, Theodósio Paiva e Fortunato Aranha, que também atuaram como intendentes na capital. Em
1906 o próprio Joaquim Manoel assinou um edital a respeito da eleição estadual desse ano colocando-se como
mesário, ver: EDITAES. A Republica, Natal, 11 jun. 1904; EDITAES. A Republica, Natal, 27 out. 1906.
17
NETTO. De meu canto. Diário do Natal, 09 de jan. 1912.
18
Além das matérias do Diário citando tal propriedade, a mesma também foi mencionada por Alberto Maranhão
em carta enviada a Câmara Cascudo, e em matéria do A Republica, ver: CASCUDO, Câmara. História da
Cidade do Natal. Natal: Editora da UFRN, 1980. p.333-334; A REPUBLICA, Natal, 19 jun. 1913.
22

também exerceu o cargo de presidente da comissão encarregada de regresso e localização de


retirantes, sendo responsável por gerir a verba estadual destinada ao transporte dos emigrantes
para outros estados19, acumulando, assim, suas funções de comerciante, comandante da
Guarda Nacional do Rio Grande do Norte, intendente e integrante da junta apuradora das
eleições. Tem-se, assim, indícios que atestam a grande influência que ele possuía em Natal no
início do século XX.
Quincas Moura não foi o único membro da Intendência a aforar lotes com dimensões
expressivas e a pagar foros anuais abaixo do que as resoluções municipais determinavam. Dos
18 intendentes e 3 secretários que ocuparam a municipalidade ao longo de 1903 a 1919, todos
foram enfiteutas de terras do patrimônio foreiro da capital. A tabela abaixo apresenta alguns
desses funcionários, incluindo também fiscais, e as terras a que tiveram acesso nas duas
primeiras décadas do século XX.

Tabela 02- Alguns funcionários da Intendência e terras aforadas entre 1903-1919.


Enfiteuta Cargo ocupado na Quantidade de terrenos Área total de terras
Intendência aforados aforadas
Alberto Roselli Secretário da 8 845.290,45 m²
Intendência (1912-
1913); intendente
(1914-1916)
Alexandre dos Reis Intendente (1918-1919) 1 270,70 m²
Antonio Gurgel do Intendente (1914-1916) 4 9.379 m²
Amaral
Antonio Joaquim Intendente (1902-1904; 1 159.000 m²
Teixeira de Carvalho 1905-190720; 1908-
1910; 1911-1913; 1918-
1919)21
Arthur Disnard Fiscal da Intendência 29 521.768,85 m²
Mangabeira (1908-1910); secretário
da Intendência (1911-
1912)
Arthur Hypolito da Intendente (1917-1919) 1 1.364,71 m²
Silva

19
GOVERNO do Estado. A Republica, Natal, 09 maio 1904.
20
Ver: INTENDENCIA Municipal. A Republica, Natal, 02 jan. 1905.
21
Também citado como intendente em resoluções de 1918. Após a morte do intendente Virgilio de Miranda,
foram abertas eleições para a vaga de intendente, por isso Carvalho não iniciou o mandato em 1917, mas apenas
em 1918. Ver: A REPUBLICA, Natal, 02 abr. 1918; A REPUBLICA, Natal, 28 dez. 1918.
23

Avelino Alves Freire Intendente (1914-1916) 2 492,52 m²


Felinto Elysio Manso Intendente (1914-1916) 53 19.536,48 m²
Maciel
Fortunato Rufino Intendente (1901-1913; 2 10.257,22 m²
Aranha 1917-1919; 1926-1930)
Joaquim Ignácio Torres Intendente (1917-1919; 1 11.830,42 m²
1923-1925)
Joaquim José Valentim Intendente (1914-1916) 5 102.997 m²
de Almeida
Joaquim Manoel Intendente (1895- 1913) 19 527.190,92 m²
Teixeira de Moura
Joaquim Policiano Leite Intendente (1917-1919; 2 1.432,72 m²
1923-1925)
Joaquim Severino da Secretário da 3 4.181,92 m²
Silva Intendência (1892-
1910)
José de Calazans Intendente (1905- 1913) 5 35.210,15 m²
Pinheiro
José Mariano Pinto Intendente (1914-1916) 2 5.331,11 m²
Mario Eugenio Lyra Secretário da 7 3.934,85 m²
Intendência (1913-
1923); diretor de
expediente da
Intendência (1926-
1930)
Miguel Augusto Seabra Intendente (1897- 1912) 2 20.249 m²
de Mello
Paschoal Romano Fiscal da Intendência 3 90.552,4 m²
Sobrinho (1906- 1909)
Pedro Soares de Intendente (1892-1895; 2 4.882,8 m²
Amorim 1905-1913)
Raymundo Filgueira e Fiscal da Intendência 11 25.755,71 m²
Silva (1904- 1913)
Romualdo Lopes Intendente (1914-1916) 15 124.416,23 m²
Galvão
Theodosio Paiva Intendente (1899-1912; 3 7.257,15 m²
1917-1922)
Fonte: Elaborada pela autora com base em resoluções municipais, notas do A Republica e cartas de aforamento.

Conforme demonstrado na tabela acima, vários membros da Intendência possuíam


23

latifúndios em Natal. Tem-se destaque para as terras de Alberto Roselli, que apareceu como
enfiteuta em 8 cartas de aforamento, reunindo uma área de mais de 800.000m², que abarcaria
mais de 6.000 lotes destinados aos aforamentos gratuitos e a mais de 118 campos de futebol
no padrão atual da FIFA22. Já Arthur Mangabeira, que atuou como fiscal da Intendência,
parece ter seguido a estratégia de solicitar e adquirir vários terrenos com dimensões menores,
somando um patrimônio fundiário de mais de 500.000 m² divididos em 29 lotes. Felinto
Elysio Maciel recebeu em enfiteuse 53 lotes, todavia seu patrimônio fundiário era inferior ao
do fiscal Paschoal Romano Sobrinho, foreiro de apenas 3 terrenos. Os membros da
Intendência utilizavam estratégias diferenciadas no mercado de terras. Alguns preferiam
solicitar vários lotes visando lucrar do ponto de vista econômico, construindo casas para
alugar ou transacionando para indivíduos fora da rede de parentela dominante por valores
expressivos economicamente. Já outros optavam por ter seus nomes citados em poucos editais
de solicitação, evitando críticas do jornal oposicionista, sustentando a imagem de funcionários
comprometidos com os ideais republicanos do tempo da propagada, e mantendo a
governabilidade por meio de uma gestão que estivesse voltada para benefício da população,
ainda que apenas na aparência. Todavia, quantidade não significava restrição de área.
Conforme pode ser verificado na tabela, alguns membros da Intendência solicitavam dois ou
três terrenos, mas possuíam um patrimônio fundiário bem mais expressivo do que outros que
solicitavam mais de 10.
Esses são apenas alguns exemplos, em trabalho em andamento será demonstrado em
estudos de casos como muitos intendentes não pagavam os foros devidos e não respeitavam as
regras que as resoluções estipulavam para aforamentos concedidos em áreas urbanas e nos
subúrbios23. Muitos governadores e seus familiares também foram beneficiados com essa
política de concessão de terras em enfiteuse ainda na gestão de Joaquim Moura. Vários
membros da família Albuquerque Maranhão conseguiram adquirir o domínio útil de terras da

22
Conforme estipulado pela Resolução n.92, o lote destinado aos aforamentos gratuitos deveria ter no mínimo
140 m² (7M x 20 m). Ou seja, 140 m² indicava a menor unidade de moradia legalmente reconhecida pela
Intendência de Natal. Para fins de comparação com a atualidade, pode-se utilizar como parâmetro a área do
campo de futebol dos estádios de futebol que, de acordo com a Federação Internacional de Futebol e da
Confederação Brasileira de Futebol, é de 7.140 m² (105 m x 68 m), ver: A REPUBLICA, Natal, 14 maio-14 jun.
1904; PROJETO gramados: CBF padroniza campos em 105 x 68. Disponível em: <
http://www.cbf.com.br/noticias/campeonato-brasileiro/projeto-gramados-cbf-padroniza-campos-em-105-x-
68#.WYyTkNKGN1t>. Acesso em: 10 ago. 2017.
23
Essa discussão será aprofundada na tese Terra e poder: apropriação e uso do patrimônio fundiário da capital
do Rio Grande do Norte e seu impacto na formação e reestruturação das redes de poder locais (1903-1929). A
referida tese encontra-se em fase de desenvolvimento.
23

Intendência sem respeitar as regras citadas24.


Dessa maneira, o que teria levado membros da Intendência a desrespeitar as regras que
eles mesmos criavam? Por que aprovavam a concessão de latifúndios com taxas que
provocavam diminuição da receita municipal? Acredita-se na existência de um mercado
pessoal de terras na Natal do início do século XX, um mercado que não levava em
consideração apenas a transação de capital econômico. Esse mercado respeitava a formação
de um espaço social específico. Segundo Bourdieu, o espaço social é a realidade invisível que
organiza as práticas e as representações dos agentes sociais (BOURDIEU, 1996: 24). Os
agentes ou grupos de agentes são definidos pelas suas posições relativas nesse espaço,
distribuídos de acordo com os tipos e volumes de capitais que possuem. Em Natal, tem-se um
espaço social em que a rede de parentela dos Albuquerque Maranhão detinha as maiores
parcelas desses capitais, principalmente o político, que era utilizado e, sobretudo, reforçado
nas transações. Os indivíduos que participavam do mercado pessoal partilhavam de um
mesmo habitus nesse espaço social natalense, ou seja, eram sujeitos que compartilhavam um
conjunto de elementos, de práticas e de bens capazes de formar uma unidade de estilo
(BOURDIEU, 2011: 349). Eram indivíduos que possuíam parcelas semelhantes de capitais
econômicos, sociais e políticos, que frequentavam os mesmos lugares e compartilhavam um
modo de vida específico.
Bourdieu ajuda a compreender como os sujeitos que partilham um mesmo habitus são
constrangidos a participar de um jogo que lhes impõem acordos e sacrifícios. O mercado que
foi construído com o patrimônio fundiário natalense pode ser considerado como uma espécie
de jogo, e os foreiros relacionados com as famílias que participavam do poder podem ser
compreendidos enquanto sujeitos que partilhavam ou tencionavam partilhar de um mesmo
habitus, que possuíam o que o autor chama de illusio, isto é, que conheciam as relações desse
jogo. Segundo Bourdieu, os jogos sociais se fazem esquecer como tais, e a illusio seria “essa
relação encantada com um jogo que é o produto de uma relação de cumplicidade ontológica
entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espaço social” (BOURDIEU, 1996:
140). Dessa forma, para Bourdieu, entre os agentes e o mundo social existe uma relação de
cumplicidade “infraconsciente”, ou seja, esses sujeitos utilizam constantemente em suas
práticas teses que não são colocadas como tais.
Aplicando esse conceito à análise das apropriações de terras via aforamento, é possível
24
Para ter acesso a esses casos, ver: SIQUEIRA, Gabriela Fernandes de. Entre a Cidade Nova e a Cidade das
Lágrimas. In: ARRAIS, Raimundo (org.). A Terra, os homens e os sonhos: a cidade de Natal no início do século
XX. Natal: Sebo Vermelho, 2017; SIQUEIRA, Gabriela Fernandes de. Por uma “Cidade Nova”: apropriação e
uso do solo urbano no terceiro bairro de Natal (1901-1929). Op. cit.
23

compreender que não era necessário que os intendentes solicitassem aos fiscais que não
reprovassem suas petições de aforamento pelo fato de seus terrenos serem bem mais extensos
do que a lei permitia. Também não era preciso pedir para a Intendência não revogar
aforamentos de enfiteutas que não pagavam os foros anuais e alienavam constantemente as
terras aforadas. Essas concessões eram realizadas porque faziam sentido, porque esses
indivíduos partilhavam, ou aspiravam partilhar, um mesmo habitus, estavam inseridos em um
jogo, já tinham internalizado o senso de jogo. Essas relações, essa política de terras, era um
jogo nesse espaço social, e, para os partícipes desse jogo, fazia sentido praticar determinados
atos, concessões específicas, não lucrar apenas economicamente.

Considerações Finais
Os homens que integravam a Intendência de Natal no recorte estudado não recebiam
salários por essa atividade, devendo conciliar suas profissões com o exercício do executivo e
do legislativo municipal, o que afastava desses cargos indivíduos que não possuíam posições
privilegiadas na sociedade, com renda capaz de sustentar a família ao longo do mandato.
Mesmo sem receber salário, integrando a Intendência esses homens poderiam conquistar
diferentes tipos de capitais, já que, em seus cargos, legislavam sobre as mais diversas
atividades, podendo criar leis que beneficiassem seus negócios diretamente, como fixando um
preço vantajoso de uma determinada mercadoria, mandando calçar ou fazer outro tipo de
beneficiação na rua de seu estabelecimento, decidindo sobre o local de implementação de
equipamentos urbanos, como uma determinada linha de bonde que valorizasse sua
propriedade ou atendesse o seu comércio, firmando contratos que beneficiassem amigos e
parentes, entre outras medidas que garantissem vantagens aos seus negócios e às suas
posições políticas.
Nesse sentido a política de concessão de terras municipais em enfiteuse tinha papel
fundamental. Certamente muitos intendentes e demais funcionários da municipalidade
deveriam ter conhecimento que várias petições de solicitação de enfiteuse que aprovavam
estavam indo de encontro às resoluções que regulamentavam o aforamento. Todavia,
conforme elucidado, não seria vantajoso para esses indivíduos questionar ou negar tais
petições, pois o mercado de terras integrava um jogo social, e esses membros da Intendência
faziam parte desse jogo, partilhavam ou aspiravam partilhar o mesmo habitus compartilhado
pela rede de parentela que dominava a política local. Intendentes, secretários e fiscais da
municipalidade negligenciavam as leis locais, participando de um jogo social que visava
fortalecer os grupos influentes em prejuízo do patrimônio público.
23

Referências Bibliográficas
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1986.

ARRAIS, Raimundo (org.). A Terra, os homens e os sonhos: a cidade de Natal no início do


século XX. Natal: Sebo Vermelho, 2017.

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BUENO, Almir de Carvalho. Visões de República: ideias e práticas políticas no Rio Grande
do Norte (1880-1895). Natal: Editora da UFRN, 2002.

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Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1975.

LYRA, Tavares de. História do Rio Grande do Norte. Natal: Editora da UFRN, 2008.

SANTOS, Renato Marinho Brandão. Natal, outra cidade!: o papel da Intendência municipal
no desenvolvimento de uma nova ordem urbana (1904-1929). Dissertação (Mestrado em
História). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN), Natal, 2012.

SIQUEIRA, Gabriela Fernandes de. Por uma “Cidade Nova”: apropriação e uso do solo
urbano no terceiro bairro de Natal (1901-1929). Dissertação (Mestrado em História).
Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN), Natal, 2014.
2

“EU SOU ELA, LILITH, CONCUBINA DA ESCURIDÃO, PRIMEIRA CRIMINOSA


E AUXILIADORA DOS DEMÔNIOS”: O IMAGINÁRIO DA BRUXA NO MARTELO
DAS FEITICEIRAS (SÉCULO XV).

Gabrielle Abreu dos Santos*


Gleudson Passos Cardoso**

RESUMO: As práticas mágicas existem desde a mais remota Antiguidade, e seus praticantes
poderiam ser homens e mulheres, e desde o início da Inquisição, as acusações de bruxaria era
destinada a ambos os sexos. Porém, em um certo momento essa prática passou a ser dirigida
apenas às mulheres, as Filhas de Eva, pecadoras por excelência. O Martelo das Feiticeiras,
manual inquisitorial, em seus capítulos, apresenta as argumentações necessárias para provar
que o intelecto, a moral e o espírito de uma mulher era inferior. Nas seguintes argumentações,
é possível verificar o repertório de leitura dos inquisidores Heinrich Kramer e James
Sprenger, para a elaboração do documento canônico responsável pela caça às bruxas, como as
bulas papais Ad extirpanda e Summis Desiderante affectibus, além dos livros bíblicos do
Antigo Testamento.
PALAVRAS-CHAVE: Bruxaria. Inquisição. Caça às bruxas.

INTRODUÇÃO
Neste trabalho, é apresentado algumas reflexões e questionamentos acerca do
imaginário da bruxa retratado no Martelo das Feiticeiras, documento canônico escrito entre
1484 e 1487, e os repertórios de leituras que os inquisidores Heinrich Kramer e James
Sprenger tiveram para a elaboração do manual de caça às bruxas.
O imaginário sobre a feitiçaria e a magia existem na maioria das sociedades desde os
tempos mais antigos, e ele faz referência a uma história de criação e uso de imagens de uma
sociedade na sua forma de agir e pensar, de forma única e complexa, e de acordo com o seu
território e local social. (LE GOFF, 2005). E as representações são influenciadas pelas crenças
e concepções folclóricas, e seu significado só se faz presente aos termos de compreensão do
papel dos criadores da documentação que temos acesso, pois os padrões de representações nos
escritos devem partir dos agentes responsáveis pela confecção de tais escritos e das
informações propiciadas pelos mesmos. (MORÁS, 2001).
Devido a influência da tradição cristã, por meio de um processo de transformação e
demonização gradual dos ritos pagãos, a feitiçaria foi se modificando até se tornar na bruxaria
diabólica. (RUSSEL, 1993).

*Graduanda em História pela Universidade Estadual do Ceará – UECE (gabrielle.abreu@aluno.uece.br)


**
Pós-doutor em História Medieval pela Universidade do Minho – UMINHO (gleudson.passos@uece.br)
23

No início da Inquisição as acusações de feitiçaria eram voltadas para ambos os sexos,


e as perseguições eram contra heresias em geral. Porém, num dado momento, a prática da
magia passou a ser associada apenas às mulheres, já que “houve uma falha na formação da
primeira mulher, por ter sido ela criada a partir de uma costela recurva [...] E como, em
virtude dessa falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e mente.” (KRAMER,
SPRENGER, 1995, P. 116).
O ódio às mulheres e a caça às bruxas dialogaram bem: o período medieval com seus
tênues limites entre a magia e o real, as crises que davam um ar apocalíptico a conjuntura, as
mulheres que sabiam demais, as parteiras e curandeiras, o poder da Igreja Católica se
expandindo. Todos esses fatores colaboraram para o surgimento da bruxaria.
Para alimentar os preconceitos e a misoginia, esforços não foram poupados: foram
recolhidos materiais das Sagradas Escrituras e da própria tradição patrística. Segundo Zuber:

As mulheres são governadas pelo seu sexo. A morte, o sofrimento, o trabalho


entraram no mundo através delas. [...] Tais são as verdades afirmadas à partida
pela Escritura e pela tradição patrística. Por isso, controlar ou castigar as
mulheres, e antes de mais o seu corpo e a sua sexualidade desconcertante ou
perigosa, é tarefa para homens. A prudência e o saber masculinos não deixam de o
fazer, e de forma suficiente. Provérbios ditados, mas sobretudo tratados médicos,
teológicos, didácticos e morais forneceram, desde a Antiguidade, todo um arsenal.
(ZUBER, 1993, P. 27).

Segundo Simone de Beauvoir, “as religiões forjadas pelos homens refletem essa
vontade de domínio: buscaram argumentos nas lendas de Eva, de Pandora, puseram a filosofia
e a teologia a serviço de seus desígnios” (BEAUVOIR, 1967), é possível observar o poder
que o homem teve na história, tanto na questão de escrita sobre as mulheres, como na
composição de documentos que compuseram um imaginário sobre essa figura feminina.
Para compreender as motivações dos inquisidores ao elaborar o Malleus Maleficarum,
é necessária recorrer às suas fontes e seu repertório de leitura na tentativa de compreender as
razões para a publicação de um manual responsável pelo momento mais sanguinário da caça
às bruxas (e das mulheres). O artigo em questão terá um foco maior na primeira parte do
manual inquisitorial: Das Três Condições Necessárias Para Bruxaria: O Diabo, A Bruxa e a
Permissão de Deus Todo-Poderoso, onde apresentava a argumentação para provar a
existência da bruxa e seus malefícios, e o suposto intelecto inferior da mulher em relação ao
do homem, trazendo à tona, as questões relacionadas à formação da primeira mulher, Eva,
vinda de um osso curvo.
23

DA FEITIÇARIA À BRUXARIA DIABÓLICA


A feitiçaria como conceito de relação com o cosmos e a sua manipulação para se obter
o resultado desejado, na sua forma mais básica e primordial, existe em quase todas as
sociedades do mundo, e em todas as variações culturais da feitiçaria, os seres noturnos são
universalmente malignos. Por conta do momento dualista, na Europa medieval, das forças do
bem, de Deus, contra as forças maléficas de Satã, a feitiçaria de algo simples e mecânico,
tornou-se mais elaborada: o que antes consistia na evocação de espíritos e adivinhação, agora
é um crime contra Deus, e seu praticante é o próprio Satã e seus agentes com o objetivo de
destruir tudo aquilo que foi criado pelo Deus-TodoPoderoso. (RUSSEL, 1993).
O mito da bruxaria foi construído pela Igreja Católica, em cima das religiões e mitos
pagãos que ainda permeavam a Europa. A sua expansão e seu contato com as outras religiões
resultou na eliminação sistemática destas: quando não era possível a sua extinção total, a
Igreja se apropriava dos elementos pagãos, e o que não podia ser dominado, era demonizado.
Essa foi uma das bases para a formação do imaginário sobre a bruxaria, ela foi composta por
quatro fatores: a feitiçaria, a religião pagã, o folclore e a heresia cristã. E para a condenação
da bruxaria a ideia de pacto com o Diabo era crucial, onde a bruxa se entregava e passava a
servi-lo de livre e espontânea vontade. (RUSSEL, 1993).
Aproveitando-se do imaginário fértil da época, o surgimento da bruxaria causou
pânico generalizado, o que ajudou na instalação dos instrumentos jurídicos (SALLMAN,
2002), pois “Possuídos de um fervor combativo, os cristãos não hesitam em lançar mão de
práticas por eles condenadas para justificar a supremacia de sua fé.” (IDEM, 2002).
Assim como a bruxaria, a figura do Diabo, muitas vezes dito como amante ou mestre
das bruxas, também foi criado a partir da demonização de ritos e deuses pagãos, já que “a
Idade Média encarregou-se de promover a redução completa das divindades pagãs à condição
demoníaca.” (NOGUEIRA, 2002, P. 40). Sendo uma base para a construção do “Mal”, as
religiões pagãs foram extremamente necessárias para a propagação do “Bem”, como pode
observar Carlos Roberto Nogueira: “Era necessária para a coletividade cristã a existência e a
encarnação do Mal. Era preciso que fosse visto, tateado, tocado, para que o Bem surgisse
como a graça suprema – o Belo e o Divino, em oposição ao Horrível e Demoníaco.” (IDEM,
2002, P. 103)
As crenças populares e o imaginário sobre o poder do Diabo e dos seus seguidores, as
bruxas, noivas de Satã; de tanto serem repetidas, acabam por serem aceitas como fatos.
Quando isso ocorre, as especulações escatológicas e teológicas são confirmadas pelos
cristãos, onde o surgimento de heresias causa o pânico na população. Nesse momento, com o
23

apoio das autoridades seculares, há o massacre dos heréticos, “os inimigos de Deus, os
agentes de Satã.” (IDEM, 2002, P. 50).
Por conta do pânico generalizado, agora, o diabólico e o Mal invade o mundo por
completo. Apesar das Sagradas Escrituras designarem que os praticantes das magias poderiam
ser homens e mulheres: “O homem ou mulher que pratica a necromancia ou adivinhação, é
réu de morte. Será apedrejado, e o seu sangue cairá sobre ele.” (Lv. Cap. 20, v. 27), a vítima e
seguidora, por excelência, é a mulher. Pois a mulher é mais predestinada ao mal do que o
homem (NOGUEIRA, 2002) e “Qualquer maldade é um nada diante da maldade da mulher:
caia sobre ela a sorte dos pecadores.” (Ec. cap. 25, v. 18).
Com tanto poder nas mãos, a necessidade de justificativa para os acontecimentos
escatológicos e o mito de Eva, a primeira pecadora, à disposição, a Igreja Católica encontrou
alguém para culpar pela morte dos animais, aos desastres naturais, à problemas de fertilidade
dos homens e do solo: a mulher. E a sua alta posição na sociedade, lhes deu o espaço que
precisavam para a difusão, segundo Dalarun:

Uma vez mais, há que partir dos homens, daqueles que, nesta idade feudal, detêm o
monopólio do saber e da escrita, os clérigos; e muito particularmente dos mais
letrados de entre eles, os mais influentes, os mais prolixos. Monges ou prelados
seculares, têm a obrigação de pensar a humanidade, a sociedade e a Igreja, de as
orientar no plano da salvação, de atribuir também às mulheres o seu lugar nesta
divina economia. (DALARUN, 1993, P. 29).

A filosofia escolástica e a teologia não acrescentaram novos e inéditos elementos ao


imaginário da feitiçaria já existente, mas estabeleceram as razões cruciais e forneceram aos
inquisidores uma estrutura intelectual na qual eles poderiam se apoiar e justificar a caça às
bruxas. Os sermões que foram deixados se apresentam como o veículo e multiplicador da
misoginia com base teológica, pois “a mulher é um ser predestinado ao mal. Assim, jamais
tomaremos precauções suficientes contra ela.” (DELUMEAU, 2009, P. 477). Esses sermões,
meio mais efetivo de cristianização, a partir do século XIII, difundiu e tentou fazer penetrar
no imaginário o medo da mulher: “O que na Alta Idade Média era discurso monástico tornou-
se em seguida, pela ampliação progressiva das audiências, advertência inquieta para uso de
toda a Igreja discente que foi convidada a confundir vida dos clérigos e vida dos leigos,
sexualidade e pecado, Eva e Satã.” (DELUMEAU, 2009, P. 480)
Os escolásticos estabeleceram a tradição de que na bruxaria era predominante a
participação das mulheres, pois segundo ele, como as reuniões noturnas do Sabá eram
presididas pelo Diabo em pessoa, entidade com grandes poderes, ao ponto de ser considerado
23

rival de Deus, tal poder não poderia ser associado à uma figura feminina, e apesar de não
descartar a sodomia e relações homossexuais, o Diabo se deitava mais vezes com mulheres.
Segundo Aragão, as feiticeiras e as bruxas são mulheres à mercê do Diabo, a quem se
entregam de corpo e alma em troca de poderes. As funções satânicas, às vezes, são exercidas
por homens, mas “como deixámos provado, á ultima evidencia, as mulheres são muito mais
faceis de catechizar, ou hypnotisar pelo demonio, por nervosas, ou levianas.” (ARAGÃO,
1990, P. 38).
A misoginia da caça às bruxas é composta por três tradições. A tradição literária
clássica, onde os papéis femininos nas peças gregas e romanas eram de clara subserviência
aos homens, sem ocupar papeis de poder, e quando os ocupam, é de forma maligna, como a
feiticeira Circe e a assassina de crianças Medéia. Apesar das religiões politeístas possuírem
deusas femininas e relações com o sagrado feminino, mesmo ainda, as mulheres apresentam
papeis sociais de submissão ao homem.
A tradição hebraica apagou as deidades femininas e colocou as mulheres em posições
inferiores mais que as outras tradições. A tradição dualista, que vê o mundo como uma eterna
luta entre o Bem (o espírito) e o Mal (a carne), condena a carnalidade do ser humano, mas
atuando ao lado da tradição hebraica, o mal da carne, a luxúria, foi direcionada apenas às
mulheres, por serem as filhas de Eva, a primeira pecadora, e trazerem consigo o pecado no
sangue.
No começo da Idade Moderna intensificou-se a caça às bruxas, e a mulher foi
identificada como um agente de Satã, pela Igreja e pela a sociedade em geral, e o medo da
mulher foi integrado e manipulado pelo cristianismo.

O MARTELO DAS BRUXAS, O FEMININO E AS MULHERES


O manual inquisitorial Malleus Maleficarum, escrito entre 1484 e 1487 (as datas
divergem dependendo da edição ou das referências), pelos inquisidores Heinrich Kramer e
James Sprenger. Apesar de ter sido rejeitado pela Universidade de Colônia por ser antiético e
ilegal à doutrina católica, o manual perdurou e foi usado pelas cortes seculares. O manual é
dividido em três partes, onde é abordado como encontrar, como curar e como arcar com as
medidas judiciais para se obter respostas, julgar e condenar um acusado de bruxaria.
Foi escrito com o consentimento da bula papal Summis desiderantes affectibus (1484),
de Inocêncio VIII, que lhes deu autonomia para a supressão total da bruxaria, na Europa de
Norte a Sul, utilizando a tortura como método de interrogatório, autorizada desde a bula Ad
extirpenda (1252), que é afirmado:
24

Tendo em vista a solicitude [pelo rebanho] que nos foi confiado, nos propomos a
extirpar do meio do povo cristão a cizânia da depravação herética, que em nosso
tempo, se espalhou amplamente, semeando a licenciosidade em nome do Inimigo
dos homens, tanto mais intensa quanto perniciosamente, à medida que
negligenciarmos como ela causa a ruína dos princípios católicos. Desejosos, pois,
que os filhos da Igreja e os defensores da fé ortodoxa se ergam e conosco se
oponham aos artífices dessa perversidade, infra nós decretamos determinadas leis,
com o fito de extirpar a praga herética, e [determinamos que] venham a ser
observadas por vós e pelos fiéis defensores da Fé, com diligente cuidado.1

A abordagem teórica para a elaboração do Martelo das Feiticeiras consiste na Bíblia


Sagrada, junto com outros filósofos e teólogos, como: São Tomás de Aquino, São Cristovam,
São Jerônimo, Aristóteles, Sócrates, entre outros; e também se apoia em leis canônicas e civis,
tendo a atenção na questão de legitimação do discurso. O manual apresenta três capítulos e
com a sua junção, os juízes saberiam como se posicionar em um julgamento por bruxaria, pois
“[...] desenvolvemos essa obra para que possa ficar acargo dos Juízes os métodos de
processar, julgar e sentenciar nesses casos.” (KRAMER, SPRENGER, 1995, P. 381).
Segundo Santo Agostinho, a bruxaria surgiu da ligação do homem com o Diabo, e é a
arte mais hedionda pois busca profanar o Criador, a verdadeira Fé e destruir a alma dos
homens, e a base dela, em um ato de explícito de ultrajar Deus, é o pacto com o próprio
Diabo. Ele e seu séquito só podem agir por meio de instrumentos, que são as bruxas, e com a
permissão de Deus-Todo-Poderoso. Santo Isodoro, na Questão II, apresenta a definição de
bruxas que:

[...] são assim chamadas pela negrura de sua culpa, que dizer, seus atos são mais
malignos que os de quaisquer outros malfeitores [...] elas incitam e confundem os
elementos com a ajuda do Demônio, causando terríveis temporais de granizo e
outras tempestades. E mais: enfeitiçam a mente dos homens, levando-os à loucura,
ao ódio insano e à lascívia desregrada. (KRAMER, SPRENGER, P. 74, 2015)

Havia a necessidade da existência das bruxas, da figura maligna, do agente do Diabo


disposto a destruir a Criação, era necessário o Mal para a sobreposição do Bem (NOGUEIRA,
2002). Por conta disso, a primeira questão levantada pelo Malleus Maleficarum é a própria
existência das bruxas, e a falta de crença na existência do mal, era considerado heresia.
O documento Canon Episcopi, além de afirmar a existência das bruxas, trouxe
importantes referências a respeito do sabá e também ajudou no processo de demonização das
deidades femininas pagãs, como a deusa Diana (RUSSEL, 1993). As Sagradas Escrituras
também trouxeram afirmações sobre a existência de feiticeiras (Ex. 22:18) e necromantes
(Lev. 20:27), e sobre demônios que possuem poder sobre a mente e o corpo dos homens.

1
Bula papal Ad Extirpanda, 1252.
24

As sanções e decretos estabelecidos pela Inquisição ficaram mais severos, agora que
toda bruxaria envolvia pacto com o Diabo. A figura da bruxa em si também mudou, agora, ela
não era mais uma mulher possuída ou tentada como vítima a compactuar com o Diabo, e sim
uma mulher, que utilizando do seu livre arbítrio dado por Deus, compactua com o Diabo, uma
vez e sua alma está perdida para sempre, e a sua execução é uma forma de salva-la.
(RUSSEL, 1993) A feitiçaria agora seria condenada como um crime de lesa-majestade, ou
seja, um crime cometido diretamente contra Deus e o seu Rei. O Sínodo de Paris, 829, usou
citações da Bíblia como o Levíticos e Êxodo, e declarou que como as Sagradas Escrituras
declaram a morte da feiticeira, o rei possuía o direito de castiga-la, porém, apenas, se ela
tivesse realizado pactos com o Diabo, pois as bruxas são usadas como instrumentos para a
destruição e profanação das obras do Criador.
Entretanto, as bruxas não devem ser condenadas por serem instrumentos do Diabo, e
sim pelo prazer de servir ao Demônio, pois apesar do pacto realizado, ainda possuem o livre
arbítrio dado por Deus, e os poderes do mal não podem modifica-lo. Por isso, condenada
serão aquelas que permanecerem submissas ao Diabo por livre e espontânea vontade.
(KRAMER, SPRENGER, 2015). Porém, ao analisar essa passagem, é possível verificar o
argumento arbitrário dos inquisidores. Segundo Russel, os processos inquisitoriais eram
feitos, na maioria das vezes, para acusar e culpabilizar mais do que para provar inocência, os
inquisidores eram instruídos a procurar respostas com exames, torturas e ameaças, e por meio
do medo, eram capazes de descobrir a bruxaria onde ela existia ou não. (RUSSEL, 1993).
A arbitrariedade também é presente a respeito da representação da mulher no próprio
manual. Como seria possível dizer se a mulher estava sendo um instrumento do Diabo ou
servindo-o de livre e espontânea vontade se, na Questão VI, a palavra “mulher” é apresentada
como sinônimo de lascívia da carne, são ditas como as mais impressionáveis e possuem a
tendência a cair em tentação mais que os homens, pois a sua origem é uma costela recurva e
por isso possui um caráter desviante?
O Antigo Testamento tem muito a dizer sobre os malefícios das mulheres, por conta
de Eva, a primeira pecadora que condenou toda a raça humana à dor e ao trabalho. Porém, no
Novo Testamento, o Eva é substituído por Ava (Ave Maria), uma mulher mais digna, a mãe, a
virgem. (KRAMER, SPRENGER, 2015). Entretanto, apesar da mudança de perspectiva sobre
a mulher nas Sagradas Escrituras, a presença de uma mulher pura e santificada aumentou
ainda mais o abismo entre o ideal e o repudiado, numa tentativa de definir as duas opções
viáveis para ser mulher: a bruxa ou a virgem. (RUSSEL, 1993).
24

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho propõe uma abordagem elucidativa em torno das questões sobre a
estigmatização da mulher dentro do contexto do século XV. Por meio do Martelo das
Feiticeiras foi possível obter um direcionamento sobre a violência cometida em torno de uma
política institucional de julgamento, proporcionada legitimamente pela Igreja Católica e por
todos àqueles que estiveram envolvidos socialmente. É importante perceber que ela é o
principal agente repressor acerca das mulheres, mas não o único, pois a própria sociedade em
si, possuía uma vasta trajetória de práticas de hostilidade, exclusão social, discriminação
sexual e dentre outros diversos tipos de violências contra a mulher em variados contextos.
Os procedimentos inquisitoriais expressados ao longo do medievo traduzem como foi
exercido poder institucional propagado pela Igreja e a sua influência dentro da sociedade. Os
documentos canônicos, as bulas papais e as consideradas escrituras sagradas sendo elas: os
livros bíblicos do Velho Testamento instrumentalizam essa forte repressão contra as mulheres
e todas as demais manifestações presentes na sociedade, que de alguma forma se enquadrava
como práticas de bruxaria ou heresia à crença divina vigente. A cultura letrada exerce papel
importantíssimo na aplicação e na discussão dos métodos repressivos proporcionados pela
Igreja, é nela que que os manuais e leituras se sustentam, afim de se readequar a cada caso de
insurgência contra a fé cristã.
Observar as percepções acerca da representação também é de muita importância para
conseguir visualizar o contexto do imaginário da bruxa no século XV. E a principal
representação é a da mulher nas sociedades do século XV, através de um longo processo de
estigmatização já presente na antiguidade, o ódio a mulher na sociedade vai ganhando força e
sendo fundamentado mediante a doutrina cristã. Porém, é preciso enfatizar que esta
caraterística de aversão contra a figura da mulher na sociedade não é de exclusividade do
medievo, nem mesmo das religiões providas pelo tronco das religiões abraâmicas.

REFERENCIAIS
FONTES:
 Documento Canônico:

Malleus Maleficarum, Heinrich Kramer; James Sprenger. 489 p. 1487.


Licet ad capiendos, Papa Gregório IX, 1233 (Início da Inquisição)
Ad extirpanda, Papa Inocêncio IV, 1252 (Autoriza a tortura nos hereges)
24

Summis Desiderantes affectibus, Papa Inocêncio VIII, 1484 (Supressão da bruxaria ao longo
do rio Reno, ou seja, Europa de norte a sul)
Livro Gênesis, Bíblia Sagrada. Antigo Testamento. (aprox.) 1500 a.C.
Livro Eclesiásticos, Bíblia Sagrada. Antigo Testamento. (aprox.) 1500 a.C.
Livro Êxodo, Bíblia Sagrada. Antigo Testamento. (aprox.) 1500 a.C.
Livro Levíticos, Bíblia Sagrada. Antigo Testamento. (aprox.) 1500 a.C.

BIBLIOGRAFIA:
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Lisboa, 1990.
BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral (Tradução: Ivo, Storniolo; Euclides Martins Balancin).
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BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: 1. Fatos e Mitos. Editora Nova Fronteira; 7°
edição. Rio de Janeiro, 1967.
DALARUN, Jacques. Olhares de clérigos. In: PERROT, Michelle. DUBY, Georges.
História das Mulheres: Idade Média – Vol. 2(Org.). (Tradução: Maria Helena da Cruz Coelho,
Irene Maria Vaquinhas, Leontina Ventura e Guilhermina Mota). Editora Afrontamento, Ltda.
Porto, Portugal.
DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente: uma cidade sitiada. (Tradução: Maria
Lucia Machado). Editora Companhia de Bolso, São Paulo, 2009.
GEVEHR, Daniel Luciano. SOUZA, Vera Lucia de. As mulheres e a Igreja na Idade
Média: Misoginia, demonização e caça às bruxas. In: Revista Acadêmica Licencia&acturas.
V. 2; n. 1. p. 113 - 121. Janeiro/Junho; 2014.
LE GOFF, Jacques. Heróis e maravilhas da Idade Média. (Tradução: Stephania Matousek).
Editora Vozes, 2° edição. Rio de Janeiro; 2009.
MORÁS, Antônio. Cultura folclórica, referenciais culturais e as representações de entes
espirituais. In: Os entes sobrenaturais na Idade Média: imaginário, representações e
ordenamento social. Editora Annablume; São Paulo, 2001.
NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão. Editora Edusc – 2° edição.
Bauru, São Paulo; 2002.
RUSSEL, Jeffrey Burton. História da feitiçaria: feiticeiros, hereges e pagãos. Editoria Série
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SALLMAN, Jean-Michel. As bruxas: noivas de satã. (Tradução: Ana Luiza Dantas Borges).
Rio de Janeiro. Objetiva, 2002.
SANTOS, Neila Cristina dos. GONÇAVES, José Artur Teixeira. Um olhar analítico sobre o
discurso deturpado e denomizador das mulheres bruxas no manual Malleus
Maleficarum. Encontro de Iniciação Científica – ETIC. ISSN: 21-76-8498, Vol. 9, n. 9,
2013.
24

VIANA, Geysa Novais. As bruxas no Malleus Maleficarum: caracteres, praticas e poderes


demoníacos. Pós-graduanda em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
(UESB).
ZUBER, Christiane Klapish. As normas do controlo. In: PERROT, Michelle. DUBY,
Georges. História das Mulheres: Idade Média – Vol. 2(Org.). (Tradução: Maria Helena da
Cruz Coelho, Irene Maria Vaquinhas, Leontina Ventura e Guilhermina Mota). Editora
Afrontamento, Ltda. Porto, Portugal.
2

“O JANGADEIRO DAS LETTRAS CEARENSE”: DOMINGOS OLÍMPIO, O


ESCRITOR, A OBRA E OS ESPAÇOS DE ESCRITA.

Igor Emanoel Ramos Barroso*

RESUMO: O presente trabalho se caracteriza por buscar na trajetória do escritor sobralense


Domingos Olímpio, autor de Luzia-Homem o caminho de entendimento sobre sua obra e os
mecanismos de produção literária de seu tempo, além dos espaços de disseminação da
literatura na segunda metade do século XIX e início do XX. Além do mais, buscamos analisar
a articulação do homem de letras com os projetos de crítica há uma determinada realidade
histórica baseada na representação social de sua produção sobre uma temporalidade, criada a
partir da operacionalização da literatura como produto de concatenação política do autor.
Deste modo, pretendemos articular o romance naturalista de Domingos Olímpio, como
elemento de alteridade entre sua época e as problemáticas com o qual Luzia-Homem suscitou
em seu enredo. Outro aspecto importante é trabalhar a recepção do romance tendo em visto,
ser um elemento influenciador no entendimento do papel do mesmo em um momento declínio
do naturalismo no Brasil, ou seja, o “campo” perde seu espaço na literatura citadina devido
sobretudo, há uma série de transformações na sociedade brasileira do início século XX,
ligadas à necessidades de novos temáticas literárias e problemas inseridos na dinâmica das
cidades e sua vida cotidiana e distante de uma crítica social tão explorada pelo escritores
naturalistas. Destarte, a literatura do início do século XX, era uma espécie de arauto de uma
parcela da intelectualidade brasileira, uma voz pronta para denunciar seus vícios.
PALAVRAS-CHAVE: História. Domingos Olímpio. Recepção.

1. INTRODUÇÃO
O universo literário do início do século XX, se mostra rico quando nos apoiamos num
romance específico para através da literatura entender como uma obra pode ser objeto de
representação de uma série de elementos que perpassam o processo de sua fabricação.
LuziaHomem (1903) romance do cearense Domingos Olímpio nos possibilitou analisar como
os instrumentos de divulgação literária vão ganhando forma no ambiente letrado do Rio de
Janeiro pós proclamação da república.
Deste modo, buscamos a partir da escrita de Luzia-Homem e da biografia do autor
Domingos Olímpio, compreender o ambiente literário quando da publicação do romance em
1903, salientando os espaços de escrita frequentados pelo escritor, e como eles influenciaram
sua produção intelectual, como crônicas, artigos e romances. Ou seja, como livro de um
escritor sem tanta tradição literária e inserido nos círculos nobres da sociedade carioca, mas
que ingressou tardiamente no mundo das letras, foi recepcionado pelos seus pares numa
sociedade desejosa de
*Mestrando em História Cultural pelo Programa de Mestrado Acadêmico em História (MAHIS) da
Universidade Estadual do Ceará-UECE. E-mail: ramos_22@outlook.com.br
24

2. DOMINGOS OLÍMPIO: O ESCRITOR E SEU TEMPO


O presente trabalho se caracteriza por buscar na trajetória do escritor sobralense
Domingos Olímpio, autor de Luzia-Homem o entendimento sobre sua obra e os mecanismos
de produção literária de seu tempo, além dos espaços de disseminação da literatura na
segunda metade do século XIX e início do XX. Além do mais, objetivamos analisar a
articulação do homem de letras com os projetos de crítica há uma determinada realidade
histórica baseada na representação social que sua obra discute e trata.
Deste modo, objetivamos analisar a biografia do autor Domingos Olímpio a partir da
perspectiva de compreensão do indivíduo social em contraposição a do escritor engajado.
Portanto, tentando entender como as duas categorias se apresentam no processo de escrita do
mesmo, visando sobretudo perceber como ele, Domingos Olímpio se inseriu e se articulou
com os ideais de “progresso”, “republicanismo”, “civilização”, o meio cultural e socialletrado
tanto da cidade de Sobral1 como do Rio de Janeiro no final do século XIX e início do
XX.mudanças e inovações.
O ano era 1850 na quente Sobral1 da metade segunda do século XIX, o Brasil, ainda,
era um Império. Os anos anteriores não tinham sido tranquilos, com uma série de questões
envolvendo debates políticos na Corte do Império 2. Nesta megalomania de acontecimentos
nacionais a “Fidelíssima Cidade de Januária do Acaraú”, elevada à categoria de cidade em 12
de janeiro de 1841, levando o pomposo nome pela fidelidade ao Império quando do “Golpe da
Maioridade do imperador D. Pedro II”.
Em meio a esse cenário de metamorfoses constantes, de consolidação de grupos
detentores do poder em uma cidade de economia modesta, à base principalmente do algodão e
do comércio, nascia a 18 de setembro de 1850 na cidade de Sobral, Domingos Olímpio. O
sobralense que ficaria conhecido por seu romance regionalista “Luzia-Homem” (1903), filho
de uma família abastada da região3.

1
Sobral localiza-se na Zona Noroeste do Ceará, a 225 km de Fortaleza. Até meados do século XIX Sobral
acumulava uma riqueza advinda especialmente da criação de gado e comércio de seus derivados, depois do
algodão, sendo importante rota de entroncamento comercial para o Piauí e Maranhão, de modo que sua riqueza a
situava em posição privilegiada em relação a Fortaleza, capital. Autônoma economicamente durante esse
período, sem ligação direta com a capital, seu adensamento populacional superou aquela cidade. Foi somente no
final do século XIX e início do século XX que Fortaleza consegue uma hegemonia econômica.
2
O período que vai de 1841 a 1864 representa uma se importante para a consolidação da monarquia no Brasil.
As rebeliões regenciais da Bahia, Pará e Maranhão estavam debeladas com a ajuda do barão de Caxias, que se
transformou numa espécie de herói local. Nesse mesmo momento, o Gabinete da Maioridade anistiou os
“rebeldes” que se entregaram às autoridades e, assim, o término das rebeliões separatistas foi celebrado como um
novo começo, acima das possíveis divisões partidárias. SCHWARCZ, Lilia M; STARLING, Heloisa M. Brasil:
uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. 2015, p. 271.
3
Domingos Olympio (sic) Braga Cavalcanti, filho de Antonio Raymundo de Holanda Cavalcanti e Rita de Cassi
[sic] Pinto Braga (Rita de Cassia Cavalcanti depois do matrimônio), nasceu em Sobral, Estado do Ceará, a 18 de
24

Ao observar-se sua trajetória intelectual, verifica-se que, Domingos Olímpio foi um


homem atuante tanto na política, jornalismo e na literatura de seu tempo. A vida de acadêmico
em Pernambuco foi marcada pela inserção do jovem sobralense no mundo da imprensa. Os
jornais “O Paiz”, “Jornal do Commercio” e “Jornal do Brasil”, quando da publicação de
Luzia-Homem (1903), proporcionariam o sustento do escritor e o principal espaço de
divulgação de seu artigos e crônicas políticas, ciência e literatura.
A formação educacional de Domingos Olímpio foi suscitada em sua autobiografia,
citada pelo Pe. João Mendes Lira em A vida e Obra de Domingos Olympio:

Eu me formei, como se formam as rochas, por um processo de aglomeração lenta,


imperceptível, sem plano, sem coordenação sistemática, cujas cristalizações vão
assumindo formas monstruosas ou pitorescas, sob a ação das intempéries, as
erosões do ambiente [...]
Estudei as primeiras letras pelo método de Castilho; aprendi cantando umas toadas
melancólicas ensinadas pelo professor Joaquim Frederico Niaque da Costa Rubim,
português de origem, morto como um bravo, no Paraguai, em defesa da Pátria
adotiva. Dessa escola, eu e o Domingos Jaguaribe, saímos laureados com a
medalha de ouro para curso de latim, do Padre Antônio da Silva Fialho
(LIRA,1977, p. 17).

Na citação, Domingos Olímpio narra em sua autobiografia sua formação intelectual


nos anos de 1860. Ao relatar as primeiras aulas, um elemento a ser analisado na fala do autor
é que, quase como um processo natural e incerto o jovem sobralense foi iniciado no universo
dos livros e manuais escolares de seu tempo. O próprio escritor fantasia sua vida de estudante
usando a alegoria das rochas em constituição para ilustrar o nascimento do “homem de letras”
do escritor Domingos Olímpio.
Desde o seu regresso ao Ceará em 1872, Domingos Olímpio sempre despertou numa
parcela de sobralenses, a admiração. Principalmente pelo trabalho que exerceu na cidade antes
de ir embora no ano de 1880. Domingos Olímpio enquanto escritor sempre foi tratado como o
“arauto da intelectualidade” sobralense, um discurso de engrandecimento, construído,
sobretudo pela elite letrada da cidade. É que nos mostra, Dênis Melo:

O escritor é reiteradamente apropriado pela elite letrada da cidade e transformado


numa espécie de “patrono da intelectualidade” sobralense. Sua obra, e em especial
Luzia-Homem, acende o estopim de um orgulho indisfarçado, de um potencial
intelectual considerado desmedido, transformando a obra numa espécie de epopeia
[...] Domingos Olímpio deste modo se transforma por esse discurso não só no

setembro de 1850. Estudou preparatórios em Fortaleza, e formou-se em Direito na Faculdade em Recife, em


1873. Começou a escrever, na imprensa da capital pernambucana, nos tempos de acadêmico. Formado, voltou ao
Ceará, onde passou a exercer a advocacia. Casou-se em primeiras nupcias (sic) no ano de 1875 com D. Adelaide
Ribeiro (Cavalcanti), consórcio de que lhe vieram duas filhas. Foi depois nomeado promotor público de sua
cidade natal (Sobral).
24

grande escritor, mas acima de tudo no que seria supostamente o exemplar fiel do
intelectual sobralense (MELO, 2013, p. 53).

Revestido sob a armadura de “homem de letras”, Domingos Olímpio foi transformado


ou alçado à posição de pioneiro no entendimento sobre a cultura, política e as mudanças da
sociedade sobralense do século XIX. Portanto, o protagonismo do autor se deu no momento
de maior produção de uma intelectualidade tanto local, como a nível regional na Província do
Ceará no final do século XIX.
A década de 1870, foi um período em que a Província do Ceará passou por uma série
de mudanças de caráter de valorização das artes, com o surgimento de instituições, como a
Academia Francesa4 em Fortaleza no ano de 1872. Domingos Olímpio regressou ao Ceará no
mesmo ano, vindo do Recife. Formado em Direito foi contemporâneo de Tobias Barreto e
Castro Alves poetas e abolicionistas negros de envergadura e posição social importantes
naquele contexto social de pressão sobre o Império para abolir a escravidão. Depois de
regressar a Sobral, Domingos Olímpio exerceu atividade abolicionista e jurídica na cidade,
sendo nomeado promotor público em 1875. Cabe lembrar que a “Lei do Ventre livre”, tinha
acabado de ser sancionada pelo governo imperial em 1871, onde proporcionou intenso debate
no cenário político brasileiro do século XIX, e de certo modo, delineou os caminhos
ideológicos que Domingos Olímpio seguiria.
Sobre esta questão, Sadoc de Araújo ilustra a participação de Domingos Olímpio na
“Sociedade Manumissora Sobralense”, um grupo de abolicionistas da cidade Sobral em 1871:

22 de janeiro (Domingo): Houve sessão solene da “Sociedade Manumissora


Sobralense” pelo Dr. Tomás Antonio Paula Pessoa. Na ocasião discursaram o Dr.
Virgílio de Morais, Dr. João Adolfo Ribeiro da Silva, Dr. Antonio Sabino do Monte,
Dr. Francisco de Paula Pessoa Filho e o acadêmico Domingos Olímpio. Foi uma
memorável reunião em defesa da libertação dos escravos do Brasil (ARAÚJO,
2015, p. 225).

O mais interessante é que o jovem Domingos Olímpio ainda era um acadêmico vindo
do Recife, onde conheceu alguns intelectuais engajados na causa abolicionista. A escravidão
foi uma temática abordada e importante na sua produção literária. A circulação nesses espaços
de transmissão de valores positivistas, republicanos e abolicionistas foi sem dúvida um traço
que facilitou a circulação do autor de “Luzia-Homem” em cargos públicos na cidade de
Sobral, Pará e no Rio de Janeiro.

4
A Academia Francesa, criada em 1871, com a participação de “cearenses ilustres”, como Capistrano de Abreu
e Thomás Pompeu Sobrinho. Participaram ainda Tristão de Alencar Araripe Jr., João Lopes Ferreira Junior,
Antonio José de Melo, Domingos Olímpio entre outros. A Academia Francesa deixou de se reunir em 1875.
24

A convivência com intelectuais engajados na causa abolicionista despertou em


Domingos Olímpio o engajamento na luta contra a escravidão, sendo que, possivelmente o
abolicionismo do autor tenha influenciado posteriormente na escrita do romance, “O Negro”,
escrito quando o mesmo estava no Rio de Janeiro e também ao seu posicionamento político,
quando decidiu tornar-se partidário do republicanismo. Sobre esse fato, Carmélia Aragão cita
essa fase vida do escritor sobralense:

Formado bacharel em 1873, regressou ao Ceará, onde exerceu intensa atividade


jornalística como abolicionista e republicano. Em 1875, foi nomeado promotor de
Sobral onde permaneceu até o final da Grande Seca de 1877-79 conhecendo a
miséria dos retirantes retratados em Luzia-Homem. Durante sua permanência nessa
cidade encenou também muitas de suas peças no Teatro Apolo, fundado por ele e
alguns companheiros. Porém, a oposição ao governo dos Acioli obrigou-o a
exilarse, em 1879, em Belém do Pará, transferindo-se para o Rio de Janeiro, capital
do País, apenas em 1891 (ARAGÃO, 2008, p.30).

As mudanças com a relação à valorização da cultura e da arte podem ser vistas com a
fundação do Teatro Apolo, [sic] em 1872, sendo Domingos Olímpio um dos idealizadores do
projeto desse espaço de manifestações das mais variadas natureza e de textos do autor de
“Luzia-Homem”. A necessidade de expor suas ideias e interpretações sobre seu tempo lhe
ensejou a ideia de construir juntamente com a “União Sobralense 5” um local que fosse digno
de falar sobre literatura, arte, ciência, poesia e política.
Assim sendo, os espaços de sociabilidade do autor vão tornando-se claros, com a
inserção de Domingos Olímpio numa espécie de fraternidade de intelectuais, comerciantes e
políticos da cidade de Sobral e de Fortaleza.
Porém, o que é o espaço literário? Como os intelectuais absorvem a ideia de escrever?
Tentar responder essas perguntas é sem dúvida uma empreitada consideravelmente difícil.
Discutir o espaço literário como elemento modificador no desenvolvimento social e
intelectual de um escritor e de sua escrita, como cerne de uma transcendência que ultrapassa o
mero desejo interior de ser intelectual, para revelar a intimidade do espírito humano em forma
de palavras.
A escrita como parte essencial na produção de uma lógica narrativa é, portanto, um
elemento definidor da constituição do escritor. Maurice Blanchot em O espaço literário
(1987) traduz o ato de escrever:

5
A União Sobralense foi fundada na década de setenta do século XIX, em Sobral. Seu objetivo era incentivar e
valorizar uma cultura letrada na cidade a partir de um conjunto de iniciativas econômicas como a construção do
Teatro São João, esse desejo partiu do próprio grupo de intelectuais criadores da instituição. JÚNIOR, Agenor
Soares Silva. Cidades Sagradas: da “Roma cearense” à “Jerusalém Sertaneja”, a igreja católica e o
desenvolvimento urbano no Ceará (1870-1920), Sobral. Ecoa. 2016.
25

Escrever é entrar na afirmação da solidão onde o fascínio ameaça. É correr o risco


da ausência de tempo, onde reina o eterno recomeço. É passar do Eu ao Ele, de
modo que o que me acontece não acontece a ninguém, e anônimo pelo fato de que
isso me diz respeito, repete-se numa disseminação infinita. Escrever é dispor a
linguagem sob o fascínio e, por ela, em ela, permanecer em contato com o meio
absoluto, onde a coisa se torna imagem, onde a imagem, de alusão a uma figura se
converte em alusão ao que é sem figura e, de forma desenhada sobre a ausência
torna-se a presença informe dessa ausência, a abertura opaca e vazia sobre o que é
quando não há mais ninguém, quando ainda não há ninguém (BLANCHOT, 1987,
p.24).

A definição de Maurice Blanchot sobre o ato de escrever segue a encenação do


fascínio sobre o escritor. Se lançar ao mundo da linguagem é estar num recomeço constante,
onde jamais se poderá chegar a um final. Deste modo, a solidão é o preço pago por aqueles
que se aventuram por este universo da fascinação. O tempo não passa para aqueles que
escrevem, ele é eternizado em pequenos movimentos de pinceladas uniformes que fazem das
palavras uma forma de permanência.
No entanto, escrever é uma necessidade inerente ao desejo humano de expressar em
linguagem simbólica a dimensão do seu próprio “Eu”, daquilo que o cerca. Mais uma vez
Maurice Blanchot tenta esclarecer a necessidade de escrever:

A necessidade de escrever está ligada à abordagem desse ponto onde nada pode ser
feito das palavras, donde se projeta a ilusão de que, se for mantido o contato com
esse momento, mas voltando ao mundo da possibilidade, “tudo” poderá ser feito,
“tudo” poderá ser dito. Essa necessidade deve ser reprimida e contida. Se não o
for, torna-se tão ampla que não há mais lugar nem espaço para que se realize. Só se
começa a escrever quando, momentaneamente, por um ardil, por um salto feliz ou
pela distração da vida, consegue-se driblar esse impulso que a conduta ulterior da
obra deve despertar e apaziguar de modo incessante, abrigar e afastar, dominar e
sofrer sua força indomável. Movimento tão difícil e tão perigoso que todo escritor e
todo artista se surpreende, de cada vez, por tê-lo realizado sem naufragar. E que
muitos soçobram silenciosamente, ninguém que tenha encarado o risco de frente
pode duvidar disso. Não são os recursos criativos que falam, se bem que, de todas
as maneiras, sejam insuficientes, mas o mundo que, sob esse impulso, se furta: o
tempo perde então o seu poder de decisão: nada mais pode realmente começar
(BLANCHOT, 1987, p. 46).

A necessidade de escrever para o autor não pode se conectar ao mundo de que tudo
pode ser dito a todo momento, só se escreve pelo impulso da fascinação que a vida exerce
sobre o escritor e suas paixões. Porém, essa tarefa para o literato não é fácil de ser realizada,
pois, pela dor ou felicidade se lança à escrita para satisfazer sua necessidade, e como
havíamos falado anteriormente, o tempo perde sua capacidade de alterar a dinâmica do ato de
escrever. Portanto, Domingos Olímpio escreve pela dor, pela ausência do tempo que passou e
pelo desejo de perenizar sua própria vivência.
25

A relação de Domingos Olímpio com a literatura e o teatro, espaços de manifestação


da escrita do autor é fortemente revivida por ele, em sua autobiografia citada na obra do Pe.
João Mendes Lira, A Vida e Obra de Domingos Olympio (1977). Os romances e livros de
história foram seus “companheiros” quando chegava o período de férias, quando ainda,
estudava no Recife. Temos um relato sobre seu encontro com Castro Alves e sua paixão pela
leitura:

Ele (Castro Alves) aparecia de calças de enfiar e camisola preta, pois lhe morrera,
havia pouco, pessoa de sua família. Trazia a pena atrás da orelha e, na mão uma
folha de papel; filiava um cigarro, e recitava com a voz, que era um veludo sonoro,
uma estrofe lapidar, acabada de construir; assim tivemos as primazias da “Visão
dos Mártires”, recitada dias depois numa tempestuosa sessão solene do “Grêmio
Jurídico”. Pouco preocupado com meus estudos, porque eu apenas necessitava de
uma pouca de retórica, tinturas de Algebra e noções preliminares de Geometria,
atirei-me à leitura de romances: devorava todos os que passavam ao meu alcance;
romances estrangeiros; li-os de um fôlego, noite e dia, desde os grandes, os
enormes romances intermináveis de Alexandre Dumas pai, e de Eugène Sue. O
infinito Rocambole de Ponso du Terrali, as sinistras histórias de Paul Feval, as
páginas de bronze de Vitor Hugo, os belos livros de G. Dias, e de Paulo de Kork,
grande crime-literário numa quadra de exarcebados melindres religiosos e
escrúpulo de moral, na qual se liam esses livros canalhas às escondidas (LIRA,
1977, p.18).

Todos esses romances foram as bases formadoras do pensamento de Domingos


Olímpio. Esse relato revela a educação recebida pelo jovem sobralense no Recife. No entanto,
o escritor de “Luzia-Homem” também construiria fama na cidade de Sobral por suas peças de
teatro. Apoiador da construção de um local que valorizasse a arte, como o “Teatro Apolo”,
participaria mais tarde da organização do grupo de intelectuais desejosos de construir a
imagem de uma cidade ligada aos movimentos literários do Ceará, como a Academia
Francesa do qual fez parte.
É neste espaço de produção intelectual que Domingos Olímpio, embrionariamente,
iniciou sua atividade como escritor, produzindo peças e espetáculos para o entretenimento da
população de Sobral. O teatro de fato, foi uma das maiores paixões do escritor, porém, mais
tarde no ano de 1875, juntamente com a “União Sobralense6”, constituída pelos comerciantes
e doutos da cidade Sobral, daria início à construção de outro teatro, o “Teatro São João”.

6
A União Sobralense foi fundada na década de setenta do século XIX, em Sobral. Seu objetivo era incentivar e
valorizar a cultura letrada na cidade a partir de um conjunto de iniciativas econômicas, como a construção do
Teatro São João 1880, esse desejo partiu do próprio grupo de intelectuais criadores da instituição.
25

2.1 Escrita e recepção: Luzia-Homem um romance à moda sobralense


A República brasileira nascera nos idos de 1889, foi um momento ímpar para os
intelectuais republicanos que almejavam o tão sonhado dia que o Brasil seguiria os rumos da
“modernidade7”, que estava sendo incorporada ao plano nacional de se reestruturar a
sociedade a partir dos valores advindos da Europa. O jovem Domingos Olímpio, também
tinha em seu íntimo o desejo de mudança no tradicional e complicado sistema político
brasileiro, ele próprio que havia deixado Sobral por problemas políticos com a família
Accioly, grupo dominante na Província, como ressaltamos no primeiro tópico deste capitulo.
Sua chegada ao Rio de Janeiro, sede da capital da República em 1890, vindo de Belém
onde havia trabalhado na política amazônica como deputado provincial foi marcante para sua
carreira política, viveria no Rio até sua morte no ano de 1906, por complicações de saúde.
Entretanto, o ano era 1903, três anos antes de Domingos Olímpio falecer fora publicado seu
principal romance, “Luzia-Homem”. Obra capital para a história da literatura cearense o livro
se tornaria um dos principais da chamada “Literatura das Secas”, embora muito
posteriormente.
Domingos Olímpio foi herdeiro da geração que buscou na literatura um novo modelo
para o Brasil. O desligamento de um padrão de produção fez com os escritores buscassem
novas bases ideológicas para se ancorar. A França se tornou o novo espelho para estes
intelectuais e teorias como o “Evolucionismo”, “Cientificismo”, “Racionalismo” e o
“Positivismo8” se consolidaram como alicerce para formatar o novo pensamento da elite
intelectual brasileira. A influência dessas correntes no modelo de escrita de um grupo de
literatos foi marca cabal nos principais romances do século XIX.
Domingos Olímpio era um escritor fortemente ligado aos movimentos científicos e
filosóficos do seu tempo. No entanto, com o avanço da ciência no século XIX, é inaugurado
em meio a esse “boom” de desenvolvimento tecnológico o Naturalismo, corrente literária que
surge como linha de entendimento empírico da literatura sobre a realidade em detrimento da
espiritualidade, como elemento triunfante na compreensão da vida.

7
Para Antonio Vitorino, Modernidade é um ideal, um desejo não concreto que se impõe em relação à
substituição do “tradicional” em prol do “novo”. Ver. FILHO, Antonio Vitorino Farias. Cidade e Modernidade.
Ipu-CE: versos e reversos de uma cidade nas primeiras décadas do século XX. Recife: Tese (Doutorado em
História) – UFPE. 2013, p. 9.
8
Sobre essas correntes ideológicas do século XIX. Ver: CARDOSO, Gleudson Passos. Práticas letradas e a
construção do mito civilizador: “Luzes”, seca abolicionismo em Fortaleza (1860-1930). Fortaleza: Ed UECE.
2016.
25

Afrânio Coutinho e Eduardo Faria na obra, A Literatura no Brasil, explicita sobre o


Naturalismo e o Realismo como movimentos que estavam interligados pela mesma base
narrativa de fidelidade à realidade representada:

Devem-se encarar o Realismo e o Naturalismo como movimentos específicos do


século XIX. Porquanto, antes de se concretizarem numa época histórica, eles eram
categorias estéticas ou temperamentos artísticos, tendências gerais da alma humana
em diversos tempos, como Classicismo e Romantismo, surgindo o Realismo sempre
que se dá a união do espírito à vida, pela objetiva pintura da realidade. Dessa
forma, há Realismo na Bíblia e em Homero, na tragédia e comédia clássicas, em
Chaucer, Rabelais e Cervantes, antes de aparecer em Balzac, Stendhal e
Dostoievski. Do mesmo modo, o Naturalismo existe sempre que se reage contra a
espiritualização excessiva, como em certas expressões do barroco ou na ficção
naturalista do século XIX (COUTINHO Afrânio e FARIA, 2004, p.4-5.

Portanto, o que devemos entender, é que o Realismo e o Naturalismo são movimentos


nascidos no século XIX. A racionalização do pensamento e a compreensão de que a
metafísica não era mais um elemento central na discussão sobre a existência humana, que a
realidade não era um presente dado por uma entidade superior que rege o destino de todos. O
Naturalismo surgiu como uma necessidade de desmembrar a “razão” da visão divina sobre os
fatos, pois, os homens e mulheres do XIX teriam na ciência o novo oráculo e auxílio para
explicar as mazelas da sociedade moderna.
O romance naturalista, busca na sua essência manter a fidedignidade para com a
realidade do qual se propõe discutir. As nuanças de elementos que caracterizam a sociedade,
não podem se distanciar da narrativa que a corrente naturalista ensejava. Portanto, o mote do
naturalismo era representar na literatura uma experiência concreta, tendo no cotidiano a base
para a construção dos enredos.
Essa questão fica clara, quando pensamos no romance “Luzia-Homem”, que tem como
pano de fundo um cotidiano inserido numa lógica temporal que não existia mais. A seca, os
retirantes, a cidade de Sobral e as datas figuram como tentáculos de uma escrita baseada na
tradução da realidade como objeto imutável, e procurando manter-se fiel a esta mesma
realidade social.
No entanto, o romance naturalista do final do século XIX no Brasil, não mantinha seu
partidarismo com o naturalismo surgido na Europa, especialmente de França e Portugal. As
condições excepcionais da intelectualidade brasileira, possibilitou um novo arranjo literário
por parte de alguns escritores de se afastar do romance-denúncia ou de não expor a realidade
social dos desfavorecidos, o uso do poder político para fins próprios e a onda de corrupção da
25

máquina pública. Seus interesses eram distintos, causando contendas entre os escritores e seus
projetos:

No caso dos escritores naturalistas regionalistas, estavam em jogo vários interesses


que se contrapunham e se digladiavam. De um lado, o naturalismo tentando
mostrar o feio e o patológico, de outro o nacionalismo/regionalista, que precisava
exaltar a figura do sertanejo como símbolo do caráter nacional. De um, a tentativa
de denúncia dos problemas nacionais. De outro, o controle das elites e a aliança
dos letrados com o poder. São esses alguns dos aspectos que podem ter contribuído
para a pouca qualidade estética da maioria das obras ditas naturalistas
regionalistas, até o surgimento do romance nordestino de trinta (OLIVEIRA, 2005,
p. 61)

Os dois projetos literários, buscaram dentro de suas matrizes literárias modelos que se
contrapunham, favorecendo a pobreza estética das obras naturalistas. Portanto, a elite letrada
da sociedade brasileira no século XIX, se aliou ao poder das classes abastadas para
confeccionar visões críticas sobre o Império, negligenciando o complexo arranjo social que a
sociedade brasileira possuía.
Destarte, a representação sistemática de Domingos Olímpio sobre a Sobral de 1878,
mostra que o autor interagia com as correntes estéticas de sua época. A própria valorização do
falar do homem do sertão é um aspecto que veio com a particularidade da relação entre o
lugar do qual se procurava abordar homens e mulheres do campo, com seus costumes e
crenças. Neste sentido, o Regionalismo ganha força na produção literária brasileira no final do
século XIX e início do XX, contribuindo para o sentimento de pertencimento a terra natal.
Com a relação há escrita do romance não sabemos ao certo se o mesmo foi publicado
em forma de folhetim, mas algumas informações indicam que não. Luzia-Homem teria
chegado ao público carioca em formato de livro impresso, dadas as condições de circulação
de obras pela cidade do Rio de Janeiro e pelo baixo número de leitores, publicar uma obra que
não fosse nos jornais e em forma de romance-folhetim, foi um feito diferenciador que afetou a
leitura sobre o romance, possibilitando compreender a articulação de Domingos Olímpio para
com o embrionário mercado editorial naquele início de século XX.
Sobre o romance Luzia-Homem o próprio Domingos Olímpio em sua autobiografia
citada no livro do padre João Mendes Lira (1977), faz referência à produção do romance e
outras produções como contos e os motivos de fazê-los:

Naquela época em que Camilo Castelo Branco era considerado um escritor, eu não
ousei publicar as minhas produções. Mais tarde procurando acolhida nos jornais de
Belém e do Rio, iniciei os artigos políticos, os folhetins, os contos e a crônica.
E então surgiu a composição de “Luzia-Homem”, espelhando o resultado das
observações que se operavam insensivelmente no meu espírito, com os erros, os
25

desvios e os grandes defeitos das criações de impulso irrepreensível, por ventura


melhor explorado em mãos mais hábeis. Através das suas páginas traduzi o drama
num realismo que se ressente dos impulsos do meu temperamento, a paisagem que
foi o teatro da minha saudosa mocidade, no meu grande amor pela natureza
cearense (11-2-1906. (LIRA, 1977, p.19-20).

O texto acima datado de 1906, ano de sua morte e três anos depois da publicação de
seu romance. Domingos Olímpio fala-nos de momentos no Pará onde começou a escrever
seus contos e crônicas, como podemos observar foi apenas no Rio de Janeiro, que entraria de
vez no círculo letrado brasileiro com uma participação como escritor me jornais da época.
Para ele, seu romance trouxe através de suas páginas a interpretação trágica de sua juventude,
pois, como num teatro da vida real pôde encenar e relembrar os momentos narrados naquela
história.
Além do mais, Luzia-Homem foi citada em alguns jornais do Rio de Janeiro quando
da sua publicação em 1903:

No gênero, porém, o melhor livro do anno, foi, acho eu, a Luzia-Homem, (Rio de
Janeiro) de um provinciano-carioca, o Sr. Domingos Olympio. E´do Ceará o autor
e da vida cearense a interessante narrativa. O novo romancista, bastante conhecido
no norte do Brazil e aqui como jornalista, entra tarde na vida literaria, perdôe-me
elle a indiscrição, com mais de cinquenta annos. Mas, salvo talvez uns laivos de
espiritualismo romantico, o seu romance é, melhor que o de um jovem, com as
inexperiencias e os excessos da juventude o de um espírito em plena madureza. A
narrativa, acaso tanto ou quanto sobrecarregada de descrições, quase todas bellas
aliás, de digressões e de dialogos, igualmente bem feitos, mas que porventura
lucrariam em ser encurtados, podia, sem prejuizo do mérito livro, ser menos longa.
Mas, repito, é interessante, e deixa-nos com a sensação de um quadro exacto e
perfeito da terra e da vida cearense, a certeza de que ha no Sr. Domingos Olympio
um romancista de valor, um escritor, uma imaginação de poeta, que apenas tardou
em manifestar-se no livro. E´, preciso, porém, para confirmar este juizo, que outros
lhe sucedam9

Numa coluna literária na revista “Kosmos” de 1904, assinada por José Verissimo:
“Vida Literaria ano Passado”, um dos mais importantes escritores brasileiros da época e
membro da Academia Brasileira de Letras comenta sobre os principais romances publicados
no ano anterior no Rio de Janeiro, fazendo referência à obra de Domingos Olímpio,
LuziaHomem, diz ser do gênero o melhor livro do ano de 1903. Outro ponto que o autor
pontua é com relação à tardia inserção do escritor cearense na vida literária, com mais de
cinquenta anos. No entanto, para José Verissimo o romance do cearense era melhor do que o
de um jovem escritor, inexperiente e com pouca maturidade literária.

9
Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Revista Kosmos, Rio de Janeiro 14 de janeiro de 1904, p. 12
25

Assim, percebemos o prestígio de Domingos Olímpio entre alguns intelectuais da


Academia de Letras, tendo mais tarde se candidato há uma cadeira em 1905. Nesta mesma
revista, Domingos Olímpio publicou como um dos colaboradores dois contos “O Doutor
Conceição”, que conta a história de um jovem estudante negro e neto de uma escrava que
ascende socialmente na sociedade carioca pós-abolição, com uma série de dificuldades
associadas a sua descendência e cor e “Jules Verne”, conto que fala de uma expedição do
autor e seus colegas à serra da Meruoca em busca de uma caverna, quando ainda morava em
Sobral nos idos de 1872-1880.
Outro jornal carioca “O Fluminense” (1900-1914) também noticia em 24 de março de
1903, para seu público leitor o lançamento de uma obra do escritor cearense, Domingos
Olímpio:

Domingos Olympio, cuja produção intellectual foi, é e sempre será bem acolhida,
acaba de dar á luz da publicidade de um livro, um romance, emfim uma dessas
belíssimas obras que registram uma épocha.
Luzia-Homem – eis como se intitula esse trabalho primoroso, essa excellente
produção – uma obra que todos devem possuir – pois que reune neste momento,
talvez, toda a idéia da litteratura [..].
O Luzia-Homem tem seenas que comovem há ocasiões em que sentimos o coração
apertar-se – tentamos fechar os olhos á escuridão do horror que nos arripía a
espinha – mas uma luz muito clara, de um brilho muito intenso vem devastar essa
escuridão : - é a prosa de Domingos Olympio sempre deliciosa, sempre doce,
sempre suave, monopolizada pelo seu espirito de homem de lettras que é.
Eis o que é Luzia-Homem de Domingos Olympio – uma obra completa, um trabalho
de muito valor e além d´isto – um écho desse grito horrível do cearense quando se
esforce soffrendo as calamidades da secca10

Podemos observar na citação a acolhida por parte do jornal “O Fluminense”, sobre a


repercussão do lançamento do romance, Luzia-Homem. O periódico, ainda ressalta o valor do
livro para a literatura brasileira, sendo um livro que reunia naquele momento, o espírito da
produção intelectual. Porém, um ponto sempre tocado é a representação trágica do Ceará
durante a estiagem, o próprio texto do jornal traz contradições ao se referir a Luzia-Homem
como um “romance doce, sempre suave”, mas também, de gritos horríveis do cearense
castigado pelo flagelo da seca.
No entanto, o sucesso de Luzia-Homem não se ateve apenas ao público brasileiro,
ganhou envergadura estrangeira ao ser lançado uma nota no jornal “Pharol” a 15 de maio de
1903: “Luzia-Homem, livro do jornalista e escritor dr. Domingos Olímpio, está sendo
traduzido para o espanhol e o francoz por um diplomata platino e um jornalista francez

10
Hemeroteca da Biblioteca Nacional. O Fluminense, Rio de Janeiro 24 de março de 1903, p. 1.
25

residente no Rio11”. Portanto, o romance alçava voares maiores com sua tradução para duas
línguas estrangeiras, circulando entre o pequeno mercado editorial do Rio de Janeiro e entre
as camadas ricas de países como França e Espanha.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste cenário de intensa insatisfação com o sistema político republicano, é que
Domingos Olímpio lançou Luzia-Homem. É lógico de se pensar que o autor fazia parte do
grupo de intelectuais herdeiros de uma geração que lutou pelo republicanismo e pela abolição
da escravidão, mas que viu seus sonhos frustrados diante da indiferença com que seriam
tratados pela administração pública do Estado republicano.
Assim sendo, Luzia-Homem permanece até hoje como uma das principais obras do
Naturalismo-Regionalismo brasileiro do século XX. Deixou à posteridade uma visão amarga,
mas crítica de um sertão e de uma população que em meio a Grande Seca de 1877-79, soube
resistir à tamanha calamidade e as ações dos grupos dominantes. Portanto, como uma escrita
dura e crítica Domingos Olímpio lançou para o cenário intelectual do Rio de Janeiro uma obra
que marcava uma narrativa em declínio, o naturalismo estava perdendo força e mesmo assim,
Luzia-Homem foi um marco para se analisar as questões que circulam com a publicação de
romances sobre o sertão, seca e a vida no campo.

REFERÊNCIAS
ARAGÃO, Carmélia Maria. Luzia-Homem: aspectos da crítica sobre uma obra. Fortaleza:
Dissertação (Mestrado em Letras) – UFC, 2008.
ARAÚJO, Pe. Francisco Sadoc de. Cronologia Sobralense. Vol. I (1604-1800). 2 a ed.
Sobral. CE: Imprensa Universitária. Fundação Vale do Acaraú. 2015, p.54.
CARDOSO, Gleudson Passos. Práticas letradas e a construção do mito civilizador:
“luzes”, seca e abolicionismo em Fortaleza (1860-1930). Fortaleza, ed UECE. 2016.
COUTINHO, Afrânio; COUTINHO, Eduardo de Faria. A literatura no Brasil. São Paulo: 7°
edição. São Paulo, 2004.
FILHO, Antonio Vitorino Farias. Cidade e Modernidade. Ipu-CE: versos e reversos de uma
cidade nas primeiras décadas do século XX. Recife: Tese (Doutorado em História) – UFPE.
2013.
LIRA, Padre João Mendes. A vida e a obra de Domingos Olympio. Sobral- Ceará, 1977.
MAURICE, Blanchot. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

11
Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Pharol, Rio de Janeiro 15 de maio de 1903, p. 1
25

MELO, Francisco Dênis. Os intelectuais da academia sobralense de estudos e letras


ASEL: e a invenção da cidade letrada (1943-1973) Recife: Tese (Doutorado em História)-
UFPE, 2013
OLIVEIRA, Valdeci Batista de Melo. Figurações da donzela-guerreira: Luzia-Homem e
Dona Guidinha do Poço. São Paulo: Annablume, 2005.
STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. 2015.
2

A MERUOCA INDÍGENA NA ESCRITA DA HISTÓRIA DO CEARÁ


(SÉCULOS XVII E XVIII)

Jaiana Kelly Rodrigues Alcântara*


Mariana Albuquerque Dantas**

RESUMO: Esta pesquisa busca analisar a presença indígena na Serra da Meruoca, localizada
na região Norte do estado do Ceará, e a importância desse espaço na constituição da história
da capitania no período colonial. Dessa forma, o ponto de partida da investigação é a
historiografia produzida sobre a região no século XX. Percebemos que grande parte das
pesquisas sobre a história colonial da região Norte se concentram na Serra da Ibiapaba, as
produções que tratam do Ceará colonial, de um modo geral, raramente citam a Meruoca, e os
trabalhos que tratam especificamente da Serra não são especificos ao período colonial. A
partir de uma análise crítica dessa produção documental, a presente investigação tem a
intenção de demonstrar a importância da presença indígena na formação do espaço da Serra
da Meruoca e da Ribeira do Acaraú.
PALAVRAS-CHAVE: Serra da Meruoca. Índios. Historiografia.

Situando o objeto: a Meruoca indígena


As primeiras informações sobre o povoamento da Serra da Meruoca fazem referência
à presença indígena e ao início do trabalho de catequese por missionários. Isso confere à
região particularidades em sua formação territorial, sendo possível perceber neste espaço a
atuação de variados sujeitos históricos, como índios, negros e escravizados que
desempenharam papéis importantes na formação histórica e territorial da Serra. Abordando a
ocupação da Meruoca como um espaço povoado anteriormente à chegada do colonizador e
pensando as relações estabelecidas entre índios e não índios no processo de entrada pelos
sertões da Ribeira do Acaraú, é possível, então, conferir visibilidade a uma dinâmica social
específica, que tenha particularidades diante dos modelos explicativos generalizantes do
Ceará, do Brasil e do Nordeste.
A Meruoca é considerada um enclave de tropicalidade no meio do semiárido, e foi
neste espaço, que se desenvolveram atividades missionárias com indígenas e a formação de
um aldeamento no ano de 1712. No entanto, sobre o aldeamento da Meruoca, bem como
sobre todo o processo colonizador da serra e as primeiras missões, tem-se uma lacuna na
historiografia cearense. São raras as produções que se dedicam ao estudo sobre a ocupação

* Universidade Estadual Vale do Acaraú; Graduanda; Bolsista do Programa de Educação Tutorial


PETHISTÓRIA/UVA
**
Orientadora/ Professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco
26

indígena da região, os trabalhos produzidos convergiram para a construção de uma história


voltada para aspectos religiosos, políticos e administrativos.
As primeiras notícias sobre aldeamentos de índios dirigidos por missionário na região
que atualmente é a cidade de Meruoca fazem referências aos Tapuias catequizados pelo padre
José Teixeira de Miranda, no ano de 1712. Sendo que “os Areriús, que habitavam por uma e
outra margem do Acaraú: eram assaz, bravios e indóceis” (ARARIPE, 1958:55-56). Pode-se
dizer que os Tapuias Reriús que habitavam a Serra da Meruoca, na descrição de Tristão de
Alencar Araripe, intelectual do Instituto Histórico do Ceará, estavam inseridos em “uma e
outra margem do rio Acaraú”, tendo em vista que o autor não fez uma menção especifica à
Serra da Meruoca, percebemos que a ocupação deste espaço deu-se à medida que a região da
Ribeira do Acaraú estava sendo ocupada por sesmeiros.
É, portanto, preciso compreender a Serra da Meruoca como uma expansão dos
domínios das terras da Ribeira do Acaraú. Podemos chegar a essas conclusões pois no início
do século XVIII a aldeia da Serra da Meruoca foi uma das três sedes de missões do distrito do
Acaraú que foram entregues a padres seculares, sendo definida como: “Missão dos Reriús,
ribeira do médio Acaraú, aldeados na Serra da Meruoca sob a direção do Pe. José Teixeira de
Miranda (1712)” (STUDART, 1957:30-51).
Vale destacar que “a ação catequética dos companheiros de Jesus, afirma que a
Companhia de Jesus se confundia com os empreendimentos da Coroa, ou seja, define que a
ação missionária era parte integrante dos preceitos de dominação”. (MAIA, 2010: 20) A Serra
da Meruoca se insere nesse contexto das atividades jesuíticas da Companhia de Jesus no
Ceará, com a passagem do padre Ascenso Gago, sendo chefe superior da Missão jesuítica da
Serra da Ibiapaba. Ao escrever ao provincial Pe. Alexandre de Gusmão dando contas de suas
atividades missionárias no Ceará, informa em sua carta Ânua sobre os indígenas da Serra do
Tapuia: “achei-os quando fui a primeira vez para a serra, postos em guerra com todas as
nações circunvizinhas, a saber, com os Tabajaras, com o Tapuia Guanacé e com os
Aconguaçus”1. Ao dar notícias sobre as missões no Ceará, Pe. Ascenso Gago informa que os
Tapuias Reriús foram agregados à Missão da Ibiapaba, e então a Serra da Meruoca, começa a
receber os primeiros esforços evangelização. Mesmo as visitas tendo sido descontínuas, essa
passagem do chefe superior da Missão da Ibiapaba pela Serra da Meruoca demarca os
primeiros projetos de missionação na Meruoca indígena. Ao dar notícias sobre as missões no
Ceará, Pe. Ascenso Gago informa que os Tapuias Reriús foram agregados à Missão da

1
Trecho da Carta do Padre Ascenso Gago (1693) in: História religiosa de Meruoca. Sobral. Fundação Vale do
Acaraú- UVA-1979. p. 24.
26

Ibiapaba, e então a Serra da Meruoca, começa a receber os primeiros esforços evangelização.


Mesmo as visitas tendo sido descontínuas, essa passagem do chefe superior da Missão da
Ibiapaba pela Serra da Meruoca demarca os primeiros projetos de missionação na Meruoca
indígena.
No tocante à colonização das Ribeiras do Acaraú 2 , em 1613, para tirar a capitania do
Maranhão do poder dos franceses, a Coroa Portuguesa estabeleceu uma fortificação militar na
enseada da Jericoacoara. Essas fortificações militares, foram responsáveis por proporcionar
um contato entre militares e índios. Em meados do século XVII, quando o domínio português
foi reestabelecido, surgiram no litoral cearense os primeiros núcleos de povoamento. Esse
processo dá-se, principalmente, pela vinda de soldados que passaram a manter contatos com
os Tabajaras e Tremembé. Na capitania de Pernambuco, o impulso exploratório advindo da
expulsão dos holandeses levou a efeitos imediatos para a Capitania anexa do Ceará, pois é
somente na segunda metade do século XVII que a ocupação colonial passou a ser
estabelecida, pois “se num primeiro momento, os núcleos iniciais de povoamento estavam
restritos ao litoral, os sertões, passaram a ser ocupados por colonos vindos de Portugal,
Pernambuco, Rio Grande do Norte e Bahia, por diversos caminhos” (SOUZA, 2015 : 29).
Outra consequência para a capitania do Ceará, após a restauração do domínio
Português na Capitania de Pernambuco, seria pois o recebimento de tropas militares que
“foram se estabelecendo na antiga fortaleza holandesa para garantir o controle da costa
cearense e, ao mesmo tempo, reprimir e tecer alianças com populações nativas” (SOUZA,
2015: 27). Quando o domínio português foi reestabelecido, a administração do Ceará foi
entregue a Álvaro de Azevedo Farias3 (1654-1655). A partir de então: “a região seria visitada
de forma esporádica por soldados, mantendo contato com os Tabajara e Tremembé,
favorecendo o surgimento dos primeiros núcleos de povoamento do litoral cearense”
(SOUZA, 2015: 28).
É importante, ainda, perceber essa definição do sertão no período colonial.
Diferentemente das definições atuais, o sertão “caracterizava-se como sendo o espaço que não

2
As Ribeiras do Acaraú compreendidas pelos rios: Mundaú, Aracatiaçú, Aracati Mirim, Coreaú e Acaraú,
localizadas na zona norte da capitania do Ceará, constituem uma imensa área de terras lavadas por águas fluviais
e lacustres, propícias para o desenvolvimento da agricultura e do pastoreio. Para mais informações veja:
SOUZA, Raimundo Nonato Rodrigues de. “Minha riqueza é fruto do meu trabalho”: negros de cabedais no
Sertão do Acaraú (1709-1822). Fortaleza: Tese (Doutorado)- Universidade Federal do Ceará/ Programa de Pós-
Graduação em História Social, 2015.
3
Foi o primeiro capitão-mor após a saída dos holandeses do Ceará, suas ações iniciais foram no sentido de
construir uma capela em louvor a Nossa Senhora da Assunção, nome pelo qual aliás passou a ser denominado o
forte flamengo de Schoonenborch. Para mais informações veja: AMORIM, J Terto de [org]. O Siará na rota
dos Neerlandeses. Utrecht, 2012.
26

era ocupado pela administração lusa, que era considerado espaço de barbárie, onde habitavam
os índios bravos” (ALMEIDA, 2010: 32).
Uma questão primordial a ser discutida são os interesses coloniais e objetivos que
estão em jogo no final do século XVII. “Havia uma preocupação por parte da Coroa com a
afirmação de seus domínios coloniais, diante da ameaça estrangeira, e com a expansão das
fronteiras em direção aos sertões” (DANTAS, 2010: 30), sendo o final do século XVII para
Capitania do Ceará, marcado pela falta de sacerdotes e igrejas. O próprio governador da
capitania, Pedro Lelou, “escreve a respeito da necessidade de uma igreja matriz e de
sacerdotes na capitania do Ceará” (STUDART, 1921: 43).
Devido à ausência de sacerdotes na Capitania do Ceará no final do século XVII, de um
modo geral, podemos pensar nas dificuldades e na falta de sacerdotes nos interiores desta
capitania. Pensando a ausência de missionários na Meruoca e na Ribeira do Acaraú, os quais
eram destinados a “apaziguar” os índios no contexto da própria expansão dos domínios do
Império português, então pode-se afirmar que havia uma frouxidão religiosa na Capitania do
Ceará no período em análise e, consequentemente, uma ausência missionária na Serra da
Meruoca. O próprio Império Português estava alheio às necessidades de sua colônia, às
necessidades da Capitania do Ceará. Sobre o século XVII:

Durante todo o século XVII, a Capitania do Ceará se constituiu como um


entreposto, uma guarnição de passagem; inicialmente, como uma possessão da
Coroa na proteção de toda extensão do território do Rio Grande para além da
província do Jaguaribe, infestada de grupos indígenas hostis, e sob perigo
constante dos franceses que comerciavam com os Potiguara, no litoral. Apenas no
final do século XVII, com certa organização administrativa e concessões de datas
sesmarias, é que se tem início a uma sistemática política de ocupação territorial
(MAIA, 2010: 63).

O estudo do processo de colonização da Serra do Tapuia, forma que o Padre Ascenso


Gago se refere à serra da Meruoca, no ano de 1693, passa pela análise da própria colonização
da região norte do Ceará e das relações estabelecidas entre a Capitania de Pernambuco e suas
anexas, Paraíba, Rio Grande e Ceará. É importante atentar para os interesses, as investidas
coloniais, as alianças entre os povos portugueses e franceses, que passaram a ocupar a terra
através da concessão de sesmarias e a ver naquelas terras possibilidades de produção,
enriquecimento e transformação do território.
A serra da Meruoca constitui-se territorialmente como um espaço de passagem entre a
Serra da Ibiapaba e a Ribeira do Acaraú, pois a primeira era “um dos maiores redutos
missionários da Companhia de Jesus no Brasil, e a conquista da Ribeira do Acaraú constituía-
26

se como algo imprescindível para consolidar o caminho em direção ao Maranhão”. (MAIA,


2010: 28). Portanto, a relação entre estes três espaços é de fundamental importância para
compreender a transformação e ocupação territorial da região norte do Ceará e mais
especificamente perceber de que modo a Serra da Meruoca teve sua região ocupada e quais as
relações que foram estabelecidas nas passagens de missionários e colonos pela Serra.
Pensar no Ceará indígena implica também compreender a Meruoca indígena e
perceber, mesmo com as limitações documentais, de que modo esta serra viveu a transição do
século XVII para o XVIII, período belicoso vivenciado em toda a capitania e nos interiores do
sertão. Esse foi o período de doação das sesmarias e do estabelecimento de algumas missões
no sertão da capitania do Ceará, foi marcado também por vários conflitos nos quais índios de
grupos variados se envolveram. No ano de 1713, na Ribeira do Acaraú e em terras
circunvizinhas, explodiam muitos movimentos armados, que foram denominados de
“Rebelião de 1713”. Nesse momento, os Acriús e os Tremembés tomaram armas contra os
colonizadores, e os Areriús assaltaram os moradores da Ribeira do Acaraú. “A Rebelião de
1713, representou uma reação armada dos nativos contra os abusos e vexações que vinham
sofrendo” (STUDART, 1963:10).
Assim, no início do século XVIII, o interior da capitania do Ceará se apresentava
como um espaço de conflito por terras, entre sesmeiros e grupos indígenas. Os religiosos, que
eram responsáveis pelos aldeamentos, também tiveram participação nesses conflitos. As
causas dos confrontos entre os colonos portugueses e os indígenas estavam na expansão das
áreas criadoras de gado. Os índios foram apontados, em algumas ocasiões, como os
causadores das hostilidades, sendo-lhes atribuído roubos e mortes, sendo que:

No início do século XVIII, a Junta das Missões autorizou a guerra justa contra
alguns grupos indígenas (Tapuias, Paiacus, Icós e Cariris). Membros desses grupos
foram acusados de ter matado vaqueiros nas capitanias de Ceará e Rio Grande.
Para combater a “voracidade” dos índios, o governador de Pernambuco entregou
ao mestre de campo Manuel Álvares de Morais Navarro, pertencente ao terço dos
Paulistas, o comando da expedição. (FERREIRA, 2013: 32).

Abriam-se lutas entre indígenas e colonos por ocasião de serem incorporadas trechos
do sertão cearense ao patrimônio da coroa portuguesa: “de 1703 à 1706 uniram-se Icós,
Cariús, Cariris e Cratiús para assaltar os moradores do alto sertão. Em 1712, levantam-se os
Canindés e Jenipapos”. (STUDART,1963: 14.) Podemos dizer que o povoamento dos sertões
da Ribeira do Acaraú por colonos portugueses e, em especifico a área da Serra da Meruoca,
26

não ocorreu sem conflitos e alianças com as populações indígenas que já as habitavam ou que
para ali foram reduzidas em aldeias.
E foi nesse contexto belicoso, no início do século XVIII, que houve a formação do
aldeamento da Serra da Meruoca e o envio de um missionário específico para catequizar os
nativos da Ribeira do Acaraú. Segundo Carlos Studart Filho no documento Dados para uma
história eclesiástica do Ceará (1603-1750), em que apresenta nomes de missionários que
foram responsáveis por estarem em contato com os índios:

Para dar largas à sua vocação de apóstolo, chegava também ao Ceará, nestes
começos de séculos, o Pe. José Teixeira de Miranda, filho de José Novais Sampaio e
natural da Vila de Alfarela, Arcebispado de Braga. Internando-se pelos agrestes
Sertões da Capitania em busca de prosélitos, pacificou e aldeou os índios Arariú,
para os quais, esclarece o Barão de Studart, construiu uma igreja na Serra da
Meruoca. Numerosos conversos do Pe. Teixeira de Miranda e por êle capitaneados,
incorporaram-se, em 1712, à tropa sob o comando do coronel José de Lemos,
ajudando-o a fazer levantar um sitio que os nativos revoltados haviam postos nos
moradores da Ribeira do Acaraú. Em 1712 e 1714, foi, assevera-nos o Barão de
Studart, o mais poderoso fator de apaziguamento dos índios rebelados contra os
moradores da Ribeira do Acaraú. Faleceu em 1725, ainda no desempenho de seu
benemérito ministério (STUDART, 1957: 30-51).

O referido padre chegou à Serra da Meruoca, onde ajudou os índios Reriús a construir
a defesa contra os primeiros moradores da Ribeira do Acaraú, que pouco a pouco tentavam se
apossar das terras férteis da serra. Nesse sentido, a compreensão da formação do aldeamento
na Serra da Meruoca, como já afirmado anteriormente, é possível a partir do povoamento da
região da Ribeira do Acaraú por colonos, à medida que a ocupação da Ribeira do Acaraú
efetivava-se, a Serra da Meruoca era vista como um espaço a ser ocupado também.
Esse documento, bem mais amplo que o trecho apresentado, ao referenciar uma série
de padres que começaram a desenvolver atividades missionárias no Ceará, insere a Serra da
Meruoca em um contexto colonial missionário. Além do exemplo de José Teixeira de
Miranda missionário da Meruoca, temos outros missionários que eram enviados para a região
das Ribeiras do Acaraú, com o intuito de catequisar os nativos. É o caso do Padre José Borges
Novais que foi o primeiro missionário dos índios Tremembés na costa Norte da capitania,
onde construiu em 1712 uma igreja em invocação a nossa senhora da Conceição.

Em outros espaços distantes da Ribeira do Acaraú foi enviado o Pe. João da Costa
que ficou responsável por desenvolver trabalhos com os índios Paiacú no Sítio
Araré, localizado na ribeira do Jaguaribe; Félix de Azevedo Faria, missionário da
Igreja Nossa Senhora dos Prazeres de Caucaia, Padre Antônio Caldas Lobato,
residia na Ribeira do Jaguaribe, no povoado de São João, era missionário dos
índios da vizinhança, especialmente do Grei Jenipapo, o ramo da tribo Paiacú
(STUDART, 1957: 14).
26

Era portanto desta forma que estava configurado os interiores do Ceará indígena no
contexto das missões, sendo as áreas de envio de missionários mais próximas da região da
Ribeira do Acaraú no início do XVIII, as atuais cidades de Almofala e de Meruoca. Segundo
Padre Sadoc, a tropa do Padre Miranda tinha por cabo o Coronel José de Lemos, possuidor de
terras na Ribeira do Acaraú pelas sesmarias que conseguira a 20 de setembro de 1705 e de
janeiro de 1708: “José de Lemos recebe sesmaria na ribeira do Acaraú, medindo quatro léguas
de terra de comprido e uma de largo”. (ARAÚJO, 1974: 93.) Vale destacar que em 1708, anos
antes da formação do aldeamento missionário na Serra da Meruoca, colonos já requeriam as
terras da Serra em sesmarias. Um exemplo é Felix da Cunha Linhares que: “obtém sesmaria
nas margens do riacho cachoeira, o qual vem do boqueirão da Serra da Meruoca, medindo
légua e meia de comprido pelo dito riacho acima, com meia de largo para cada banda,
pegando na confrontação da Serra da Tucunduba”4
Desse modo, o estudo do aldeamento da Serra da Meruoca passa pela análise da
construção desse espaço através das relações que foram mantidas dos grupos indígenas com a
população não indígena que passara a ocupar a área por meio da doação de sesmarias
concedidas e da fundação da povoação de Meruoca. A chegada e a estadia do missionário na
Serra da Meruoca estavam relacionadas ao processo de colonização portuguesa, à concessão
de sesmarias e à formação de aldeamentos. O objetivo era integrar o espaço ou a região numa
lógica de expansão territorial, na qual o espaço deveria ser dominado como uma garantia de
pertencer ao império Português.
De acordo com Sadoc (1979: 40) “no ano de 1724, houve a chegada do primeiro casal
de brancos, com a intenção de fixar residência na atual região da cidade de Meruoca, sendo o
Cel. Sebastião de Sá, casado com Cosma Ribeiro Franca” tendo sido o doador de um terreno
para a construção da igreja.

Ele mantinha relações com a índia Madalena Saraiva, com a qual teve duas filhas
naturais. O coronel era filho de Leonardo de Sá, que chegou na Ribeira do Acaraú
no final do século XVII, considerado um dos primeiros povoadores desta ribeira.
Uma informação importante é que este era missionário leigo efez um trabalho de
catequese entre os indígenas, proporcionando a difusão da devoção à N. Senhora
da Conceição. Vale informar que Nossa Senhora da Conceição é a padroeira da
cidade de Meruoca até os dias atuais. Leonardo de Sá era pernambucano, serviu
inicialmente no forte, na praça da companhia, chefiada pelo capitão Domingos
Gonçalves Freire e pelo Capitão Francisco Nogueira, sendo o primeiro missionário
leigo da região da Ribeira do Acaraú. (Sadoc, 1979: 40).

4
Ibidem. p.89.
26

Leonardo de Sá solicitou ao governador de Pernambuco a confirmação de uma


sesmaria que lhe foi concedida às margens do rio Acaraú pelo capitão mor do Ceará,
Francisco Gil Ribeiro. Na petição consta:

Ser ele suplicante o primeiro povoador da dita ribeira e havendo respeito ao


excessivo gasto que fez e despendeu de sua fazenda, em fazer aldear o gentio bravio
que nela habitava, reduzindo-os ao grêmio da igreja, como consta das certidões do
vigário daquela capitania e dos missionários, sendo o suplicante povoador das
terras, no ano de 97, em que não havia tributo nem pensão, como consta da certidão
dos Padres da Companhia missionários da serra da Ibiapaba, por cuja causa deve
ser isenta da confirmação da dita data.5

A partir da interpretação de padre Sadoc sobre esta petição infere-se que Leonardo de
Sá procurou trazer ao grêmio da igreja os tapuias da região da Ribeira do Acaraú, que tinham
seu reduto e principal concentração na Serra da Meruoca. Leonardo Sá, ao mesmo tempo em
que era um católico praticante, não deixou de lado seus interesses em adquirir terras e
expandir seus domínios, fazendo um trabalho de catequese entre os indígenas.
A Região da Serra da Meruoca, como demostrado, teve sua área ocupada tempos antes
da chegada do primeiro missionário em 1712, e do primeiro casal de brancos em 1724.
Encontramos ainda o território da Serra requerido por sesmeiros anos antes da chegada do
primeiro casal de brancos que fixaram morada na região, sendo Manuel Fernandes de
Carvalho proprietário de quatro sesmarias, a primeira, junto ao seu irmão, o alferes João
Fernandes Neto, em 1716, na serra da Meruoca, “entre um posso de água por nome Goyreguá,
e por entre as duas serras do boqueirão que corre emparelhado com o boqueirão da
Morohoqua” (SOUZA, 2015: 113).
Entendemos que a colonização da área, a passagem de sesmeiros vindos de
Pernambuco e índios, confere à Serra da Meruoca particularidades no processo colonial
cearense. É necessário levar em conta que a redução dos índios em aldeias ocorreu com mais
intensidade por conta dos conflitos que aconteciam no interior da Capitania do Ceará, mais
especificamente na ribeira do Acaraú. Além da instalação do Aldeamento na Serra da
Meruoca, este era um período em que a terra era requerida por sesmeiros, encontramos, como
demostrado anteriormente a requisição das terras da Serra da Meruoca em um período anterior
a formação do aldeamento e a chegada do primeiro missionário, José Teixeira de Miranda. É
importante destacar que esses sesmeiros raramente viviam ou visitavam suas terras na
Meruoca, desempenhando suas funções militares na região da Ribeira do Acaraú, e deixando

5
Documentação histórica pernambucana- Sesmarias- Vol.1-Recife-1954, p.80 in: ARAÚJO, Francisco Sadoc
de. História religiosa de Meruoca. Sobral. Fundação Vale do Acaraú- UVA-1979. p.32.
26

a administração de suas fazendas e lavouras sob o cuidado dos moradores e agregados. Isso
demostra que o processo de formação territorial do atual espaço da cidade de Meruoca,
ocorreu a partir do contato de variados sujeitos históricos.

A história local
O estudo sobre a formação histórica e territorial da Serra da Meruoca é de fundamental
importância para se compreender a dinâmica de colonização da região norte do estado do
Ceará. No entanto, grande parte das pesquisas sobre a história colonial da região Norte se
concentram na Serra da Ibiapaba e na Ribeira do Acaraú. As produções que tratam do Ceará
colonial, de um modo geral, raramente citam a Meruoca. Já os trabalhos que tratam
especificamente sobre a Serra compreendem longos períodos de tempo não sendo específicos
sobre o período colonial. Essas são algumas das problemáticas relacionadas à produção
historiográfica da Meruoca indígena. Para compreender essa escrita da história, é necessário
analisar a produção e os textos de alguns dos pesquisadores que escreveram sobre a região,
sendo importante, compreender a ocupação das terras da Serra da Meruoca antes da chegada
dos não índios, bem como as relações estabelecidas entre os povos que já habitavam a região,
constituíam famílias e desempenhavam atividades no território.
O aldeamento e a presença indígena da Serra da Meruoca constituem-se como um
enigma para a historiografia cearense, pois são raras as produções que se dedicam ao estudo
sobre a ocupação da serra. A historiografia de autores como Padre Sadoc, que escreve
especificamente sobre a Serra em estudo, José Tupinambá da Frota 6 que escreve sobre a atual
região de Sobral, Antônio Bezerra 7, Carlos Studart Filho8, Guilherme Studart9, Dr. Thebérge10
que escrevem sobre o Ceará de modo geral, trazem de fato uma gama de informações
referentes aos Tapuias do Ceará, aos índios da região norte. No entanto, esses estudos
raramente são específicos sobre a Serra da Meruoca e o próprio aldeamento formado na
região no início do XVIII. Além disso, nas produções historiográficas, a Serra da Meruoca
sempre figura como um espaço indígena secundário da Serra da Ibiapaba e da Ribeira do
Acaraú, devido à reunião dos índios da Meruoca à missão da Ibiapaba no final do século XVII
e início do século XVIII. Além desta justificativa para a relação entre esses três espaços,
6
Ver: FROTA, D. José Tupinambá da. História de Sobral. Fortaleza: IOCE, 1995.
7
Ver: BEZERRA, Antônio. Notas de Viagem. Imprensa Universitária do Ceará. Fortaleza 1965[1884].
8
Ver: STUDART FILHO, Carlos. Aborígenes no Ceará. Fortaleza: Editora do Instituto do Ceará, 1965.
9
Ver: STUDART, Guilherme. Notas para a história do Ceará. Brasília: Senado Federal, Conselho editorial,
2004.
10
Ver: THÉBERGE, Dr. P. Esboço histórico sobre a província do Ceará. Tomo I. Fortaleza: Fundação
Waldemar Alcântara, 2001; Esboço histórico sobre a província do Ceará. Tomo II. Fortaleza: Fundação
Waldemar Alcântara, 2001.
26

retomamos uma questão já apresentada anteriormente: “a Serra da Ibiapaba aparece como


sendo um dos maiores redutos missionários da Companhia de Jesus no Brasil, e a conquista
da Ribeira do Acaraú era importante para consolidar o caminho em direção ao Maranhão”
(SOUZA, 2015: 113).
No livro História Religiosa de Meruoca, publicado no ano de 1979, Pe. Sadoc faz a
pedido de Monsenhor José Furtado uma descrição da vida religiosa da dita serra. Na obra, há
um tópico destinado à presença indígena, no qual, aponta a origem dos Tapuias Rerius. O
padre com formação de bacharel em filosofia e em teologia e considerado um intelectual e
erudito da sociedade Sobralense, em sua estrutura argumentativa, utiliza principalmente obras
do Instituto Histórico do Ceará. Suas referências informam que se baseou em autores como
Carlos Studart Filho, Tristão de Alencar Araripe e Guilherme Studart. Trabalha ainda com
algumas fontes, como inventários, registros de batismo, registros de casamentos, pedidos de
sesmarias, levantando alguns pontos importantes, como a catequese dos índios, os primeiros
trabalhos de missionários na região. O padre ao afirmar que a Serra da Meruoca foi
primitivamente habitada pelos Tapuias Rerius, aponta as dificuldades que o estudioso do
assunto encontra ao pesquisar, alerta sobre a falta de documentação e tece elogios aos estudos
“sabidamente sérios” feitos por Tomaz Pompeu Sobrinho e Carlos Studart Filho, membros do
Instituto Histórico do Ceará. Padre Sadoc dedicou-se ao estudo sobre a história religiosa de
diferentes cidades da região Norte do estado do Ceará e as origens da região do Vale do
Acaraú11
De acordo com Maia (2010: 24)

Padre Sadoc de Araújo e José Tupinambá da Frota, por possuírem uma vinculação
com a igreja, conseguiram, a partir de fontes eclesiásticas locais, ter acesso a um
acervo importante e pouco trabalhado por historiadores, estes dois sacerdotes
dedicaram-se à investigação sobre as regiões ligadas ao sertão da Ribeira do
Acaraú.

Então podemos perceber uma escrita da história das diferentes cidades da região Norte
do estado do Ceará, articulada com questões religiosas especificas. Nas palavras do Bispo de
Sobral no ano de 1980, o livro História Religiosa de Meruoca “ajudaria a recordar um
‘passado glorioso’ através de um sacerdote que põe seu talento e seriedade de pesquisador a
‘serviço da igreja’”. (ARAÚJO, 1979: 18) Além de um trabalho prestado para a Igreja, Sadoc
escreveu dezenas de artigos na imprensa de Fortaleza e Sobral e vários estudos sobre
11
Dentre essas obras destacamos: ARAÚJO, Francisco Sadoc. História Religiosa de Guaraciaba do Norte.
Imprensa Oficial do Ceará (IOCE). Fortaleza:1988. Raízes portuguesas do Vale do Acaraú. Fortaleza: Gráfica
editorial cearense LTDA, 1991;Padre Ibiapina: peregrino da caridade. São Paulo: Paulinas, 1996.
26

educação e Cultura em revistas especializadas do conselho de Educação do Ceará e da


Secretaria de Cultura do Ceará, e nas revistas da Academia Cearense de Letras e do Instituto
do Ceará.
Outra obra que reproduz ideias sobre os índios da Meruoca é o livro “Alcântaras III
séculos de história”, do autor Bertoni Vasconcelos Diogo. Neste trabalho, Diogo dedica-se
mais especificamente ao estudo da cidade de Alcântaras, que por muito tempo foi denominada
de sítio São José, e compreendia um território que era pertencente à Meruoca. O autor trata
desde a ocupação indígena da Serra da Meruoca até a construção da estrada que liga
Alcântaras a Coreaú. No decorrer do livro aponta algumas lendas da cidade, discorre sobre a
construção do sindicato dos trabalhadores rurais, descreve aspectos relacionados à
religiosidade alcantarense, entre outros assuntos. No entanto, quando Diogo aponta a presença
de índios na região da Meruoca, levanta as mesmas questões e informações que Padre Sadoc
apresenta no livro História religiosa de Meruoca. A contribuição deste autor para a
historiografia alcantarense se dá quando afirma que Alcântaras tem séculos de história e que
sua origem não começa com a chegada de João Capistrano de Alcântara, considerado
fundador da cidade e doador das terras para a construção da capela em 1908. O autor defende
que o início do povoamento das atuais terras da cidade de Alcântaras iniciou no ano de 1791
pela viúva do Capitão José de Araújo Costa, Brites Vasconcelos, uma das 7 irmãs.
Outro autor que também faz parte dessa produção historiográfica sobre a Serra da
Meruoca é Mário Henriques Aragão. Trata desde a “civilização indígena” à “gestão
municipal” contemporânea, dedica-se a apontar datas e dados em um contexto mais amplo
para, em seguida, apontar algumas datas e alguns dados sobre a Região da Meruoca. Essa
obra, além de constituir-se de poucas páginas e englobar um longo período de tempo, não tem
um caráter analítico. De acordo com as pesquisas, Aragão (1999:18):

1670-Chegou ao Ceará, vindo de Pernambuco, Leonardo Sá, o qual foi o primeiro


povoador branco da serra da Meruoca. Era irmão do governador Sebastião de Sá.
1693- O cronista holandês Elias Herckman confirmava que os índios ao fugirem do
litoral baiano, acossados pelos portugueses em demanda do sertão, preferiram
refugiar-se nas serras acreditando serem locais mais estratégicos em termos de
sobrevivência.

Outra obra de Padre Sadoc que traz informações relativas a Ribeira do Acaraú, a Serra
da Meruoca e as regiões circunvizinhas é “Cronologia Sobralense”, constituída de cinco
volumes, nos quais o autor discorre detalhadamente, em ordem cronológica, sobre fatos
ocorridos entre o século XVII e meados do século XX. No trabalho, há a utilização de fontes
27

primárias, como registros de batismos, casamentos, óbitos e inventários. Nesta coleção, a


história tem um caráter factual, as datas são o que norteiam a pesquisa. A cronologia “ocupa-
se do tempo e de sua medida, sendo sobretudo a arte de verificar as datas e o estudo dos
múltiplos calendários humanos” (CARDOSO, 1984: 48). Para Sadoc (1974: 22):

Pouco a pouco, a terra começa a ser empossada definitivamente. Entrelaçamse os


liames de amizade. As fixações se estruturam. Os índios começam a se socializar
tornando-se agregados dos sesmeiros. Nascem sítios e fazendas. A pecuária e à
agricultura começam a dar condições econômicas à sobrevivência. E como
resultado de toda esta epopeia geradora: eis a povoação da Caiçara que nasce.

Esta é uma reflexão do historiador e padre Francisco Sadoc de Araújo que no século
XX não estava isolado na argumentação de civilização dos indígenas diante do contato com o
homem branco. Nesse trecho o padre aponta uma informação importante, que refere-se ao tipo
de regime de trabalho ao qual os índios das Ribeiras do Acaraú foram submetidos, ao terem
contato com os brancos. No entanto o padre, apresenta este contato com uma passividade,
para podermos perceber que esse regime de trabalho foi intenso na região, será possível
identificar , no ano de 1788, na Serra da Meruoca, uma relevante quantidade de moradores,
agregados e rendeiros, devido uma fragmentação intensa noterritório, pois, “estará dividida
em 110 sítios, nos quais os proprietários destas terras reuniam estes trabalhadores na
Meruoca, enquanto desenvolviam suas atividades políticas no Sertão da Ribeira do Acaraú”
(FROTA, 1974).
Nos diversos âmbitos, historiografia, literatura e nos próprios pronunciamentos das
autoridades, se decretava a morte do Ceará indígena. As referências sobre os indígenas na
história cearense faziam menção ao índio do passado, que no processo colonial desempenhava
um papel secundário. Sadoc vem demonstrar em sua escrita uma passividade do indígena no
contato com os posseiros, menciona uma civilização e a agregação destes índios sem nenhum
tipo de resistência cultural e até mesmo física. Porém, um contraponto importante a ser
destacado e analisado é que, quando Sadoc trata dos Tapuias Rerius da Serra da Meruoca,
apresenta-os como índios resistentes às investidas coloniais. Afirma que “a Serra da Beruoca,
como se grafava primitivamente, foi um dos redutos dos tapuias que mais custou a ceder às
investidas dos colonizadores” (ARAÚJO, 1979: 20).
É surpreendente, e muitas vezes intrigante, o papel que a Meruoca ocupa nas
produções existentes. Figura na historiografia e na documentação como uma espécie de
“periferia”, um “espaço de passagem” entre os “espaços principais” (Ribeira do Acaraú e
Serra da Ibiapaba). No entanto, como demostrado, o fato desta ser um território de passagem,
27

não a faz um espaço menos importante que os outros, apesar da concentração missionária na
Serra da Ibiapaba e a concentração de capitães mores e ouvidores no curato do Acaraú.
Entendemos a Serra da Meruoca como um espaço importante nas trocas culturais entre os
índios, e na divisão territorial da região norte do estado do Ceará.
Todo o trabalho historiográfico não somente da sobre a Serra da Meruoca, a Ribeira
do Acaraú e regiões vizinhas, seguira caminhos parecidos. A história volta-se para o casal de
brancos que fixam morada, estabelecem laços, procriam, expandem a família, expandem os
domínios territoriais, doam terras para o patrimônio da Igreja, agregam trabalhadores e dão
consequentemente origem aos sítios, povoações, e a posteriori ao núcleo urbano de um
município ou cidade. No entanto, isto ocorre porque “uma parte da historiografia oficial
tendeu a retratar o sertão no período da colonização como um espaço vazio, que estivesse
esperando a chegada dos colonizadores” (PIRES,2002:27).
Ao analisar a produção escrita do século XX relativa à Serra da Meruoca,
especialmente as produções de Pe. Sadoc e dos historiadores do Ceará, pode-se inferir que
grande parte das ideias sobre a escrita da História estava voltada para os fatos e a utilização
das fontes como comprovação de uma verdade:

Para os historiadores de fins do século XIX e princípios deste, ao contrário das


ciências baseadas na observação direta, [...] o conhecimento histórico se basearia
na observação indireta dos fatos históricos através dos testemunhos conservados.
Ao tratar-se de fatos passados, chegar a conhece-los dependeria estritamente
daquilo que, sobre eles, nos dissessem as fontes, e muito especialmente os
documentos escritos (CARDOSO, 1984: 48).

Percebemos então que os pesquisadores que se dedicaram ao estudo da Serra da


Meruoca, utilizavam muito do que os estudiosos do Instituto Histórico do Ceará produziram,
identificamos nas obras relativas a Meruoca, que a temática indígena não é tão aprofundada,
pelos motivos que os próprios pesquisadores apontam, como a ausência de fontes, no entanto
esta pesquisa, se insere no contexto de reescrita da história da região, demostrando que a
presença indígena na Meruoca, foi marcante, e fundamental, para a formação do espaço,
através da historiografia pudemos identificar, de que modo os povos indígenas foram
retratados na história, e como esta escrita da história, influencia até os dias de hoje, com essa
pesquisa, pudemos demostrar que o processo de formação territorial do atual espaço da cidade
de Meruoca, ocorreu a partir do contato de variados sujeitos históricos, que tinham interesses
próprios.
27

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2010.
ARAGÃO, Mario Henriques. Meruoca 300 anos de história. IOM, 1999.
ARARIPE, Tristão de Alencar. História da Província do Ceará: Desde os tempos primitivos
até 1680. 2º Ed. Fortaleza: Tipografia Minerva, 1958.
ARAÚJO, Francisco Sadoc de. Cronologia Sobralense (1604-1800). Fortaleza: Gráfica
Editorial Cearense, 1974.
Francisco Sadoc de. História religiosa de Meruoca. Sobral. Fundação Vale do
Acaraú- UVA-1979.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Uma introdução à história. 4º ed. São Paulo: Editora
brasiliense, 1984.
Carta do Padre Ascenso Gago (1693) in: História religiosa de Meruoca. Sobral. Fundação
Vale do Acaraú- UVA-1979.
FERREIRA, Josetalmo Virginio. Conflitos jurisdicionais no sertão do Ceará (1650 –
1750). Dissertação (Mestrado)- Universidade Federal de Pernambuco/ Programa de
PósGraduação em História, Recife, 2013.
FROTA, Luciara S. de Aragão (Org.). Estudo do Remanejamento da Pecuária na Zona
Norte do Estado do Ceará. Fortaleza: SUDEC, 1974.
MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia à vila de índios: vassalagem e
identidade no Ceará colonial – século XVIIII. Tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.
PIRES, Maria Idalina da Cruz. “Guerra dos Bárbaros”: resistência indígena e conflitos no
Nordeste colonial. Recife: UFPE, 2002.
SOUZA, Raimundo Nonato Rodrigues de. “Minha riqueza é fruto do meu trabalho”:
negros de cabedais no Sertão do Acaraú (1709-1822). Fortaleza: Tese (Doutorado)-
Universidade Federal do Ceará/ Programa de Pós- Graduação em História Social, 2015.
STUDART, Barão de. Documentos para a história do Brasil e especialmente a do Ceará. In:
Revista do Instituto do Ceará – RIC, Fortaleza, t. XXXV, 1921. (Coleção Studart)
STUDART FILHO, Carlos Filho. Dados para uma história eclesiástica do Ceará (1603-1750).
Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, tomo 71, 1957.
Carlos. A rebelião de 1713. Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, tomo 77, v.
77, 1963.
2

INCURSÕES PELOS SERTÕES: NATURALISTAS, ESCRAVOS E INDÍGENAS NO


PIAUÍ E MARANHÃO DO FINAL DO SÉCULO XVIII.

Janayne de Moura Ferreira*


Mairton Celestino da Silva**

RESUMO: Na esteira do Iluminismo, o século XVIII foi marcado por uma série de reformas
que culminariam em efervescências cientificas no continente europeu. As principais potências
europeias passaram a investir nas “viagens filosóficas”, cuja finalidade era conhecer a fundo a
natureza de suas colônias. Seguindo as pegadas deixadas por dois destes agentes coloniais no
Sertão do Piauí e Maranhão – o padre Joaquim José Pereira e o bacharel em Direito Civil e
Filosofia Vicente Jorge Dias Cabral – este artigo busca fazer reflexões acerca do modus
operandi da administração portuguesa, assim como desejamos apurar o olhar para o lugar do
Indígena e dos escravizados e os seus respectivos espaços (ou ausência deles) nos enunciados
dos viajantes. Para auxiliar nas discussões teóricas e historiográficas, serão citados autores
tais como Edgardo Pérez Morales, Manuel Hespanha e Heather Flyyn Holler.
PALAVRAS-CHAVE: Viajantes. Indígenas. Escravos.

Introdução
As discussões e ponderações sobre a relação que Portugal mantinha com o Brasil no
período colonial não parecem se esgotar. Todos os anos nos deparamos com questões até
então não abordadas, ou abordadas muito anteriormente e postas de lado, mas que nesse
momento adquirem sentindo e importância para a historiografia brasileira. Os estudos sobre
como a administração de Portugal refletia em suas colônias não cessam, e a cada dia que
passa abordagens da historiografia recente surgem para complementar a ideia de que o
governo português era descentralizado, sendo assim, os funcionários do rei serviam como
extensões de seus braços e garantiam um forte elo entre as diversas partes do império
Ultramarino (HESPANHA, 2001). Uma das maneiras mais significativas de manter a relação
entre o império português e suas colônias foram as expedições cientificas, forjadas sob bases
iluministas e com o intuito de conhecer a natureza e suas potencialidades. Muitos autores
contemporâneos estão convictos de que a preocupação com o avanço cientifico só se deu no
inicio do século XIX com a abertura dos portos brasileiros, e dessa forma, ingleses, franceses,

* Graduanda em História pela Universidade Federal do Piauí – CSHNB. Membra do Núcleo de pesquisa e
documentação em História – NUPEDOCH. E-mail: jany.ferre@gmail.com
**
Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2016), é professor da Universidade Federal do
Piauí. Atualmente pesquisa o Estado do Maranhão e Piauí durante os séculos XVII e XVIII, com enfoque
analítico para as redes de hierarquias, os costumes e os conflitos/negociações envolvendo africanos, indígenas e
os mais diversos mestiços - livres e escravizados - com agentes coloniais, bandeirantes, viajantes, missionários
enviados pela Coroa - que adentravam naqueles sertões. Orientador dessa pesquisa.
27

alemães e russos de muita desenvoltura e dotados de espirito empreendedor viram na natureza


selvagem do Brasil a oportunidade de registrar novas espécies de plantas e animais, e assim,
revela-las ao mundo europeu. Um exemplo claro sobre essa afirmação é que os nomes mais
presentes na historiografia brasileira quando se fala em viagens científicas são os de europeus
como Alexander Van Humboldt, Von Martius, Auguste de Saint Hilarie e Johann Christian
Mikan, há relatos de que até o príncipe alemão Wied fez questão de conferir com seus
próprios olhos os recursos naturais luso-brasílicos. Mas, esquecem-se de todo o esforço do
Marquês de Pombal e dos intelectuais selecionados para realizar a reforma nos estatutos da
UC-Universidade de Coimbra, dentre eles, o renomado médico italiano Domenico Vandelli
que provoca uma revolução científica no império português.

Domenico Vandelli e o advento da História Natural


Domenico Vandelli foi o guia intelectual de muitos estudantes da Universidade de
Coimbra, e se destacou também pela insistência na realização das viagens filosóficas. Para
que estas começassem a ser aceitas pelas autoridades portuguesas, Vandelli se esforçou e
trabalhou politicamente até obter os resultados que tanto almejava. A vontade desse médico e
professor de Coimbra não parecia ter limites, sua paixão pela natureza e pelo país que agora o
acolhia o levava a transitar por muitas áreas, da ciência natural à política e econômica, tudo
com uma praticidade e desenvoltura admirável. Em 1770, Vandelli escreve um livreto sobre a
utilidade dos Jardins Botânicos no qual defende piamente que esse é o ambiente em que se
aperfeiçoa a arte da agricultura nos mais diversos âmbitos e que se conhece a fundo o clima e
terreno onde brotam, assim como adaptá-los fora de seu ambiente natural, como podemos
observar em seguida:

A Sciencia da Agricultura consiste principalmente no conhecimento dos vegetaes,


da sua natureza, e do clima, e terreno em que nascem; na causa da fertilidade da
terra, na influencia do ar sobre os vegetaes, e nas regras praticas necessárias para
a boa cultura. O primeiro conhecimento adquire-se com o estudo da Botanica, o
segundo com experiencias, e reflexões físicas, o terceiro, e quarto com hum Jardim
Botanico, no qual he necessário cultivar os vegetaes de todos os climas, e terrenos.
Hum botanico ignora inteiramente quaes sejaõ os terrenos estereis (se
exceptuarmos hum cham cheio de ocra, enxofre, ou sal) por cuja causa pôde
escolher entre treze mil, e mais plantas, que se conhecem, as que saõ uteis á
economia, e proprias a qualidade do terreno ; pois que he certo, que existem
plantas proporcionadas a todos os differentes terrenos: por exemplo, para as terras,
que os Francezes chamaõ franche, que saõ os ordinarios terrenos cultivados; para
os lugares cheios de barro, greda, e areia; para os campos aridos, aquosos, e
arenosos maritimos. Duas saõ as opinioens a respeito da fertilidade da terra. A
primeira, he que a terra serve somente de matriz aos vegetaes, e de nada mais: a
segunda, que os vegetaes tomaõ o maior nutrimento da terra. O que he porem
incontestável, he que o maior nutrimento das plantas depende da água, e
27

principalmente da chuva, a qual com as partículas differentes que traz da


atomosphera, e dos saes, e olios depositados na terra concorre muito para a
vegetaçaõ. Alem do que contribui o calor, a luz, e matéria elétrica (VANDELLI,
1770).

Vandelli continua enfatizando que para se ter um Jardim Botânico adequado, seria
imprescindível ter nele espécies de todos os continentes, e que para isso seria necessário sair à
procura de materiais, dando ênfase ao ponto de que a grandes potências como Alemanha,
França e Suécia já o estavam fazendo, e além do mais, já eram capazes de reconhecer uma
grande quantidade de plantas originarias de suas conquistas na América. Inclusive já se
utilizavam desse conhecimento para obter lucros. Aparentemente, essa seria a maneira mais
eficaz de prender a atenção do governo português e levá-lo a enxergar a oportunidade de
expandir o setor econômico, ao mesmo tempo em que o aspecto intelectual.

Por quanto, com o conhecimento Botanico adquirido nos mais celebres Jardins, tem
os Inglezes, e Francezes examinado, e reconhecido a maior parte das plantas que
nascem nas suas conquistas da America, e tem tirado immensa utilidade, e cada vez
poderão tirar maior lucro. Muito me dilataria eu se quizesse referir todas; algumas
das quaes saõ da America meridional.
Basta que se saiba, que muitas dellas uteis a Economia, às Artes, e ao Commercio
se dão felizmente, e que saõ rarissimas as plantas da America Septentrional, que
aqui se não dão bem, e de huma parte dellas pôde servir de prova o Jardim de Mr.
de Wisme (Ibidem).

Em 1778, Domenico Vandelli é responsável pela publicação do “Dicionário dos


termos técnicos de história natural extraídas das obras de Lineu”, nesta obra de quase 400
páginas, encontramos logo na introdução os objetivos de Vandelli para Portugal e suas
colônias, advertindo com frequência sobre o grandioso papel da Botânica e dos estudos
naturais não só para Portugal, todavia, a nível universal. É como se Vandelli atribuísse à
história natural boa parte das razões de viver, a põe como a base de todas as artes que trazem
prazer e a felicidade humana. Ressalta ainda que no século passado haviam muitos museus de
medalhas, dos quais poucos restaram, já que agora preferem os museus de História Natural.
Permanece ainda dizendo que o conhecimento das produções naturais abrange o universo; a
Anatomia, a Medicina, a Economia e muitas Artes se confundem, por ambas servirem a
História Natural.

O saber, pois somente o nome das plantas não é ser botânico, o verdadeiro
Botânico deve saber além disso a parte mais dificultosa, e interessante, que é
conhecer as suas propriedades, usos econômicos, e medicinais; saber a sua
vegetação, modo de multiplicar as mais úteis, os terrenos mais convenientes para
isso, e o modo de os fertilizar ( VANDELLI, 1778).
27

Ao longo do texto introdutório da obra, notamos a preocupação do autor em deixar


claro a função que os naturalistas devem assumir com profundidade, sem se abster da procura
por especificidades de cada ambiente natural em que estejam inseridos. Para em seguida,
prosseguir redigindo o dicionário, na primeira parte nota-se a atenção ao reino animal, o qual
apresenta-se dividido em classes na ordem disposta a seguir: Mammaes, Aves, Amphibios,
Peixes, Insectos, Vermes. Prontamente adentra no mundo das plantas e traz “As classes das
plantas segundo o Sistema de Linneo” (Ibidem), e só então se chega a discussão acerca da
Terminologia das plantas – Radix”. Depois passa-se a discutir os aspectos da Mineralogia,
intitulado de “Mineralogia, termos da arte”, essa se dá de maneira bem breve, e então vemos
uma reedição de uma memória publicada anteriormente “Memória sobre a utilidade dos
Jardins Botânicos a respeito da Agricultura e principalmente da cultivação das Charnecas.”
No decorrer das páginas finais podemos nos deleitar com estampas do reino animal e vegetal.
No entanto, não nos conformamos em citar e entender apenas essa obra, visto que
Vandelli escreveu um grande número de memórias/manuais com instruções meticulosas para
aqueles que se interessavam pela História Natural e os seus alunos em Coimbra, bem como
futuros viajantes naturalistas. Nesse momento, partiremos por uma viagem dentro do manual
feito com o propósito de esboçar a “Necessidade dos Diários e métodos de os fazer”, e o
esmiuçaremos parte a parte com o desígnio de compreender bem de perto como seria o
trabalho de um naturalista em ação. Iniciaremos como é mais conveniente, com a abertura do
manual com a justificação para a sua composição, e prosseguiremos analisando aquilo que o
mesmo autor julgou importante enfatizar.

Mui pouca seria a utilidade das peregrinações filosóficas, se o Naturalista se fiando


na sua memória, quisesse fazer as suas relações e descrições, sem ter notado
antecedentemente com a pena todos os objetos, que fosse encontrando no seu
descobrimento. Não há hoje uma só pessoa, que não esteja persuadida da
necessidade dos Diários, não basta que o Naturalista conheça os produtos da
natureza, também é necessário, que ali assine os diversos lugares do seu
nascimento, os caminhos, a jornada que fez nas suas peregrinações; (contra) muitas
circunstâncias que bem (VANDELLI, 1776: 1).

Ao falar em exatidão, Vandelli relembra aos naturalistas a importância dos


conhecimentos em trigonometria plana, assim sendo, o naturalista que não tem ao alcance os
serviços de um matemático consegue proceder registrando em seu diário informações
indispensáveis como a “a latitude ou a altura do Polo, a longitude, clima e qualidade da
atmosfera em que se acham no globo”1 Da mesma maneira apresenta a necessidade de os

1
Ibidem.
27

filósofos naturalistas terem desenvolvido uma boa relação com os desenhos e as pinturas, já
que nem sempre se faz possível levar consigo um especialista na área. Portanto, o autor do
manual deixa explicito que os naturalistas carregam em seu trabalho a obrigação de deslizar
por muitas áreas do conhecimento, sendo impossível prosseguir sem o domínio dessas
múltiplas habilidades.

(...) computar o número de seus habitantes, se forem povos civilizados, e entre estes
que se aplicam a agricultura, quais ao comércio , quais as letras , quais as armas,
indicando miudamente o estado de cada uma destas bases da sociedade: se a
agricultura está aumentada, ou enfraquecida, se o comércio dá ao Estado o maior
interesse possível ; os gêneros que entram nele, se são os mais interessantes, e os
que podem servir a isso, ignorado muitas vezes pelos seus possuidores; examinar os
edifícios públicos e particulares ; a estrutura dos templos, das casas, a sua
arquitetura, barbar ou polida, as matérias de que se servem para a sua construção ,
e as suas comodidades : a polícia e o costume dos povos ; o modo de fazer as suas
núpcias, festas, jogos , funerais, até as últimas funções sepulturais, dependente tudo
da religião dominante ou da antiga superstição dos povos (Ibidem:52).

Em sua extensão, Vandelli pede aos viajantes que apresentem muita atenção a
fisionomia dos povos, seus hábitos mais notáveis, “fazendo se for possível nos lugares
povoados o catálogo dos vivos e mortos, se passam uma vida casta, ou dissoluta, servindo-se
igualmente da monogamia, ou poligamia; se as mulheres são fecundas, ou estéreis” (Ibidem)
Os detalhes são tantos que chegam a impressionar, de tanta atenção que é dada a minúcias que
seria pouco provável de imaginarmos tal valor cedido a preocupação em desvelar a maneira
como as mães educam seus filhos, quais as suas vestimentas e o tecido do qual foram
fabricados, como estes povos moem seus grãos, os sucos que preparam, as frutas, os vinhos,
se vivem da caça ou da pesca, ou de ambos, assim como os instrumentos utilizados para estes
fins, não se abstendo de anotar e desenhar o material do qual eram feitos. “Como são as dos
barcos, em que navegam, as mercadorias, as suas armas, os instrumentos musicais, ou de
guerra. A isto se reduz o que o naturalista é a mão do conhecimento físico e moral dos
povos”2
Vandelli tinha praticidade quando o assunto era adquirir mais espécies para o seu
herbário, logo, nenhum tipo de planta seria dispensável, quando “achada alguma planta, isto
se deve entender do mais rasteiro musgo até a maior árvore, deve a recolher e pôr-lhe o nome
da Arte”3. As plantas deveriam ser classificadas seguindo ordem, gênero e espécie, mas caso
fosse encontrada uma nova espécie “como hão de ser infinitas do Brasil”, então, deveriam
formar um novo gênero ou espécie utilizando-se das prudentes cautelas indicadas por Linneo.

2
Ibidem
3
Ibidem, 59
27

Careceriam ser anotadas a sua utilidade tanto nos usos domésticos quanto nas artes, fazendo
experiências a fim de descobrir se dariam fios ou se úteis a produção de tinta. Com a
aspiração de contrair a maior quantidade de informações possíveis, Vandelli recomenda uma
aproximação dos viajantes com os indígenas. Essa relação seria essencial no processo de
colhimento e nomeação das plantas.

Os índios como são os mais inteligentes práticos daquele continente, são também os
melhores Mestres para nos ensinarem os nomes das plantas, e o seu uso
principalmente das que se podem extrair cores, e das que servem nas doenças
próprias daquela parte da América, onde eles morarem. As plantas devem ser
recolhidas com a sua flor, folhas, tronco e raiz, das árvores basta que se recolha
algum pequeno ramo com a frutificação, e será melhor que tenham flor. Recolhidas
assim as plantas, devem ser imprensadas pela imprensa portátil4

Há momentos na escrita de Vandelli em que ele especifica o nome Brasil, ao invés de


generalizar utilizando a palavra América. Nessa ocasião é que se percebe a intenção de
Vandelli em catalogar a infinidade de espécies do reino vegetal e animal do Brasil, pois, ele
enxergava todo o potencial que esse país possuía e dessa maneira, desenvolveria ao máximo o
potencial econômico de Portugal.

A descrição do sertão do Maranhão e do Piauí


Muitos historiadores esquecem dos viajantes filosóficos brasileiros que foram
essenciais para a catalogação dos recursos naturais existentes pelos sertões, dentre os
inúmeros que se aventuraram por essas terras, insistimos em tirar da penumbra dois agentes
coloniais que desempenharam diversas funções a serviço da Coroa portuguesa, Joaquim José
Pereira e Vicente Jorge Dias Cabral, ambos foram designados em 1799 para viajarem pelo
sertão descrevendo e analisando os aspectos naturais da Capitania do Piauí e do Maranhão. O
pedido do Governador e capitão general do Estado do Maranhão D. Diogo de Sousa Coutinho
seria que se realizassem repetidos experimentos “sobre as muitas de diversas terras salinas do
continente desta capitania, para descobrir os muitos outros sais que estarão nelas como
ocultos aos químicos e naturalistas” (PEREIRA, 1799). Também deveriam se atentar as
plantas de muito préstimo a medicina, como a Quina e o Angico vermelho.
Joaquim José Pereira encontrava-se ocupando o cargo de padre na Vila de Valença,
quando recebeu o aviso dessa expedição, e como já era um conhecedor de tais terras também
havia sido incumbido por D. Diogo de Sousa a realizar uma descrição minuciosa da
demografia da capitania a qual denominou de “Memória que contém a descripção e
4
Ibidem
27

problemática da longitude e latitude do sertão da capitania geral de São Luiz do


Maranhão...”. esse manuscrito é extremamente minucioso e segue perfeitamente a obra do
Domenico Vandelli, de como deveria se comportar um naturalista. No início do diário
Joaquim José Pereira faz esclarecimentos sobre a sua conduta, e critica veementemente
aqueles que escrevem diários apenas especulando o que há na natureza e a sua utilidade, sem
conhecer de perto e fazer os devidos experimentos. Essa breve memória também deixa pistas
sobre a trajetória de Joaquim, no qual ele revela que antes da sua chegada ao Maranhão havia
cruzado o sertão da capitania do Pernambuco por cerca de 12 anos. Pouco sabemos sobre a
origem de Joaquim José, a única informação que conseguimos encontrar fora que nasceu em
Carnoza Correa, escrita por ele mesmo em suas memórias, mas não traz nenhuma informação
para desvendar onde se localiza esse lugar, ou se era o nome de uma vila ou fazenda.
Pouco depois de escrever a memória já citada, Joaquim José Pereira escreve uma
memória tocante intitulada “Memória sobre a extrema fome e triste situação em que se
achava o sertão da Ribeira do Apody, da capitania do Rio grande do norte, da comarca da
Parahiba, de Pernambuco: onde se escrevem os meios de ocorrer a estes males futuros.”
Notamos grande sensibilidade na escrita dessa memória, talvez, por vir de um padre
acostumado a ver as mazelas humanas, mas que ainda assim é capaz de se espantar com a
existência delas. O autor justifica a escrita da carta por sua” atenta e escrupulosa observação
feita e meditada sobre a estação dos anos de 1792 e de 1793, nos quais a cada passo se
esperava a morte” (PEREIRA). Os dias passavam e nenhum sinal de chuva no céu. Nas
palavras do padre, os habitantes dali pareciam ter sido abandonados tanto pelos céus quanto
pela terra, a fome e o desamparo os levava a comer qualquer coisa que surgisse a sua frente,
“sem ao menos ter o conhecimento de suas perniciosas qualidades”, e logo caiam enfermos de
febre, vômitos com manchas de sangue, disenterias ferinas, inchaço e males cutâneos cruéis.
Os habitantes deixavam de povoar aqueles espaços e passavam a povoar as sepulturas. As
grandes secas se repetiam de dois em dois anos, e “o mais leve principio de uma seca os faz
andar espasmódicos, tristes e pensativos, lacrimosos e desconhecidos” (Ibidem). A seca não
era menos impactante para os ricos, os atingia cruelmente a catástrofe da natureza.
Em 12 de abril de 1800, o vigário de Valença se encontraria com o Bacharel em
Direito e matemático Vicente Jorge Dias Cabral na cidade de Aldeas Altas, onde dividiriam a
tarefa dada pelo governador da Capitania do Maranhão. Vicente Jorge Dias Cabral nasceu em
Tejuco (Serra do Frio), lugar que hoje corresponde a cidade de Diamantina em Minas Gerais,
é filho de Thomas Pereira Cabral, e foi um dos brasileiros matriculados na Universidade de
Coimbra, concluindo seus estudos no ano de 1789. O bacharel era um entusiasta naturalista
28

que outrora se tornou responsável pelo Horto Botânico do Maranhão, mas queixava-se por
não ter tanto tempo para se aventurar em análises que ele chamava de dignas de serem
estudadas. Ao receber o aviso de sua expedição, Dias Cabral teve a oportunidade de adentrar
o sertão e se aprofundar em seus estudos. Os seus diários, assim como os de Pereira foram
unidos em um único tomo para serem enviados para Portugal, esse tomo fora intitulado
“Memória sobre as produções nativas”, e traz como memória inicial a “Memória sobre os
nitros naturaes, sal de Glauber, Quina, mais produções nativas”, nesta memória, encontra-se
o discurso Preliminar e história sobre o clima da Capitania do Maranhão e do Piauí em geral,
origem das serranias dos seus sertões, os testes sobre as propriedades salinas das rochas e a
propriedade do seu clima para a nitrificação das terras, assim como o método econômico de as
fabricar (PEREIRA, 1799).
A segunda Memória trás descrições sobre o cotidiano dos viajantes, os locais pelos
quais passaram, o tempo que permaneceram e rasas descrições sobre a paisagem. Dentre as
cidades ou vilas estão Santa Maria do Icatú, Aldeias Altas, Oeiras, Várzea do Salitre, Valença,
Piracuruca, Campo Maior, Sambambaia, Marvão, Barra, Jerumenha e Parnaguá. O terceiro
diário segue analisando a paisagem com mais profundidade, registrando os produtos naturais
existentes, as matas, os animais, as aves, os olhos d’água e os escólios de cada localidade, e
na página final encontra-se um mapa que resume o que encontraram em cada cidade. O quarto
diário não ocupa tantas páginas, mas diz respeito as drogas encontradas na região, destacando
a Quina quina. Encontrar a quina no Brasil poderia ser muito lucrativo para a coroa
portuguesa, já que até aquele momento, quem dominava o comércio da quina eram os
espanhóis. “Na terra do Pará e Maranhão nasce uma árvore cuja casca só difere da verdadeira
quina em ser um pouco mais aromática. Deveriam se reiterar, e repetir sobre este ponto
experiências, e ver se esta pode substituir a que se faz uso na medicina”5

(...). Cheias as matas, como testemunham alguns experimentados, e o afirmou um


missionário volante, que frequentou muito aquele rio. — O mesmo afirma de toda a
serra do Ibiapaba correndo de Norte a Sul e nas cabeceiras do dito rio é tão fina
como a mais fina que nos vem de Castella a que os Castelhanos chamam Casquilha
ou Cascarilha. Assim o afirmou o Vigário de Porougue Valentim de Lyra que antes
de se ordenar era Cirurgião e de lá a mandava vir para as curas que fazia. Como
também um José Lopes, homem grave, e fidedigno, afirmou que tinha muita
abundância em uma sua fazenda chamada o Espirito Santo, e para prova a
mandava apanhar, e mostrar aos inteligentes. No rio de S. Francisco mostrou a sua
arvore um N. Peixoto, Homem dos mais graves, e fidedignos por ser muito
inteligente em Medicina; e assim muitos outros de sorte que já se não duvida da sua
existência, e da sua abundância (VELLOSO, 1799).

5
Ibidem
28

A utilidade da quina se dava em especial para dar fim as febres intermitentes que
assolavam as colônias de clima tropical, e essa começou a ser utilizada ainda no século XVII
pelos jesuítas, e só passou a ser receitada pelos médicos muito depois. No entanto, a quina
não se reduzia a um só tipo, mas haviam inúmeras espécies por várias partes das colônias
tanto portuguesas quanto espanholas. Eram feitos estudos, experimentos em todas as partes
para descobrir quais eram mais eficazes, as mais aromáticas e as que poderiam ser
transplantadas para o Museu da Ajuda em Portugal e os demais herbários pelo mundo. Pereira
e Cabral descrevem a região onde é encontrada a quina na freguesia de São José do Piauí e as
características dessa planta: as folhas, frutos, flores, cascas, cheiro, cor, tamanho e formas. Os
expedicionários se propõe a analisar as virtudes dessa planta para área medicinal, dentre elas
está a antifebril, e segue contando um caso de um homem de quarenta e três anos que após
uma longa cavalgadura se pôs enfermo com uma febre continua, “as extremidades frias a vista
espantada, a língua áspera como uma lixa, a fala balbuciante...”(PEREIRA, 1803), tiveram de
mutilar as partes com gangrena, e nas demais que começavam a se infectar aplicou-se a quina
quina tanto externamente quanto internamente, e só então uma maior infecção foi remediada6.
São muitas as descrições de que se havia encontrado tais plantas em diversos pontos
do Piauí. Sobre a fazenda de “Lagoa”, por exemplo, traz a seguinte descrição: “nesta fazenda
se fizerao as operações pertinentes (...). Aqui se acha abundancia de quina quina pihauience
do qual lugar se tirarão...” os remédios supracitados. “Nas planícies deste sertão de Iguará,
acham se várias montanhas, que mais parecem da Segunda Ordem que primitivas cobertas de
pedras lumalizadas (?) a que chamam quartzo...”, apresentando quase uma descrição densa e
formando uma imagem das planícies piauienses. A fauna, por sua vez, não é esquecida,
dizendo existir “animais cavallar e vacum, onças, antas, javalis, crocodilos”. As propriedades
de cura de outros produtos naturais são catalogadas com rigor, tal como o Sal de Glauber
“(...)muito útil para lançar as áreas dos rins e bexiga, serve para febres intermitentes(...)” e o
Angico Vermelho do qual “(...) Faz-se este lambedor composto de quatro libras de água, bem
classificado a que se ajusta a quatro onças desta goma depois de dissolvida n`agoa e
coada(...)”7

Considerações finais
A partir das experiências dos viajantes, fossem eles missionários, curiosos, filósofos
ou cientistas naturalistas, construía-se uma paisagem da terra que recebera o nome de Brasil.

6
Ibidem
7
Ibidem
28

Entende-se por paisagem no sentido mais limitado, o apanhado de contornos possíveis de


serem abarcados pela visão. O que diferencia paisagem de espaço é o fato de o espaço ser
sempre presente e horizontal, enquanto a paisagem pode ser tanto presente quanto passado,
transversal. Nessa relação encontram-se pistas do passado unidos ao presente, a construção
humana, as forças da natureza e o momento experimental em que se forma na retina um
entorno, como um quadro, uma moldura que fica presa a memória, podendo ser prazerosa ou
não (MORALES, 2006: 94).

Planicies
Nas planícies deste sertão do Iguará, acham-se varias montanhas que mais parecem
de segunda Ordem que primitivas cobertas de pedras lumializadas, a que eu chamo
quartzo ferruginoso, porque calsinado com o nosso sal de vidro e com mais ferro,
pezadas e irregulares, umas soltas e muitas cravadas, na sua base argiloza se
agrega da mesma natureza.
Matas
O mesmo observei nas matas que cercão a vársea do rio, cujas terras humosas
cobrem os óxidos, ou saes metálicos cujas matas constam de palmeiras e unhas de
gato.
Animaes
Cavallar, vacum, onças, antas, javalis, crocodilos.
Escolio
Pareceria cousa duvidosa, mas não impossível que apodrecendo as substancias
vegetaes e animaes nos lugares sombrios das matas desta varsea do salitre, não
houvesse criação e abundancia de salitre (PEREIRA, 1803).

Nesse pequeno trecho do Diário de memórias de Vicente Jorge Dias Cabral, bacharel e
viajante naturalista, nos deparamos com a descrição minuciosa da planície da Várzea do
Salitre, e a partir dessa minúscula amostra formamos uma imagem na mente. É justamente
essa imagem particularizada que podemos denominar de paisagem. “Antes de poder ser um
repouso para os sentidos, a paisagem é obra da mente. Compõe-se tanto de camadas de
lembranças quanto de extratos de rochas” (SCHAMA, 1996) Apesar de não ter se quer posto
os pés nesse território, o conhecemos e os reconheceríamos se o víssemos. Dessa mesma
maneira fluía a circulação de saberes pelos continentes. A experiência dos viajantes
naturalistas não se limitava apenas a descrição, também tinha a ver com experiência sensorial
e corporal, de modo que houvesse uma conexão real entre o viajante e a natureza, gerando um
conhecimento profundo sobre esse mundo natural. Essa conexão se dava de maneira tão forte
que através das descrições e diários dos viajantes naturalistas era possível conhecer o mundo.
Sem sair de seu gabinete ou país de origem, muitos estudiosos de botânica conheciam as
espécies da fauna e flora e cumpriam a tarefa/sonho de catalogar o mundo colonial
(MORALES, 2006: 97).
28

Se nos debruçarmos sobre o trabalho do viajante naturalista e analisarmos todas as


suas especificidades, especialmente o papel desempenhado no âmbito político e social,
tornase possível discernir em meio as sombras, a participação de agentes que são mantidos
invisíveis em grande parte das descrições e diários que circulam pelo continente americano e
europeu. E notar como a partir de seus diários era possível qualificar e desqualificar uma
sociedade, de acordo com o seu apego aos bens materiais, tratá-lo com desprezo e
denominálos de “bárbaros”.
Os viajantes naturalistas foram aqueles que escreveram narrativas sobre tudo que
poderia ser experimentado pelo homem. De forma lúdica, em suas expedições, o viajante
sentia-se como “o Adão em seu jardim”. Nas descrições dos viajantes naturalistas, o homem
aparece em segundo plano, o grande quadro é a natureza/paisagem que até a dita chegada do
viajante é não possuinte de historicidade, mas entende-se que esses viajantes não chegariam
longe sem os seus ajudantes, que eram geralmente negros, índios e mestiços. A experiência
viajante não teria sido tão sensível sem o contato com os habitantes e com os informantes
(ROLLER, 2013).

REFERÊNCIAS
Fontes manuscritas:
CABRAL, Vicente Jorge Dias. Memória sobre as nitreiras naturaes da parte inferior da
Capitania do Piauhÿ. 1801. AHU. Maranhão. Caixa 127, doc. 9555.
. Documentos diversos. AHU. Maranhão. Caixa 128, doc. 9574.
. Documentos diversos. AHU. Maranhão. Caixa 128, doc. 9595.
. Documentos diversos. AHU. Maranhão. Caixa 125, doc. 9471.
PEREIRA, Joaquim José. Memória que contém a descripção e problemática da longitude e
latitude do sertão da capitania geral de São Luiz do Maranhão. RIHGB, v. 20, pp. 165-169,
1904.
. Memória sobre a extrema fome e triste situação em que se achava o sertão da Ribeira
do Apody. RIHGB, v. 20, pp. 175-185, 1857.
. Memória sobre nitros naturais, sal de Glauber, Quina e mais produções inventadas na
capitania do Piauí e Maranhão. 1803. AHU, Maranhão, Cx.127, doc.9556.
. Observações deste diário ou Memória sobre as Produções naturaes. 1799. AHU,
Maranhão, Cx.127, doc. 9556.
. Memoria ou addendo, á continuação do Diário em credito da quina quina do Piauhÿ.
1801. AHU. Maranhão. Caixa 127, doc. 9555.
28

. Suplemento á dizertação ou memoria sobre o Sal de Glauber ou sulfato de soda


remetida do Iguará no anno de 1799. 1800-1801. AHU. Maranhão. Caixa 127, doc. 9555.
. Memoria sobre o sal aluminozo de plumas. Alumen plumosum. 1800-18001. AHU.
Maranhão. Caixa 127, doc. 9555.
. Memoria sobre o salitre natural na continuação do diario. 1801. AHU. Maranhão.
Caixa 127, doc. 9555.
Oficio do governador e capitão-general do Maranhão e Piauí, D. Diogo de Sousa para o
secretário de Marinha e Ultramar, D. Rodrigo de Sousa Coutinho; sobre o envio de um
canudo de latão com desenhos, ramos ressecados e descrições Botânicas. Anexo: 2
documentos. AHU_ACL_CU_009, cx.112, D. 8759.
VANDELLI, Domingos. Diccionario dos termos technicos de História Natural: extrahidos das
Obras de Linnéo, com a sua explicaçaõ, e estampas abertas em cobre, para facilitar a
intelligencia dos mesmos: e a Memoria sobre a utilidade dos jardins botanicos: que offerece a
Raynha D. Maria I. Nossa Senhora / Domingos Vandelli Director do Real Jardim Botanico, e
Lente das Cadeiras de Chymica, e de História Natural na Universidade de Coimbra. &c. -
Coimbra: na Real Officina da Universidade, 1788. - [4], VI, 301, [3], xxxvi p., [22] f. grav.:
il.; 4º (21 cm). In: Disponível em http://purl.pt/13958/3/#/7
VANDELLI, Domenico. Memória sobre a utilidade dos jardins botânicos: a respeito da
agricultura e principalmente da cultivação das charnecas. In: Disponível em
https://books.google.com.br
VANDELLI, Domenico. Viagens Filosóficas ou dissertação sobre as importantes regras que o
filósofo naturalista nas suas peregrinações deve principalmente observar.
VELLOSO, José Mariano. Quinografia portugueza ou colleção de várias memórias sobre
vinte e duas espécies de quinas, tendentes ao seu descobrimento nos vastos domínios do
brasil.

Bibliografia:
HESPANHA, Antonio Manuel. A constituição do Império Português: revisão de alguns
enviesamentos correntes. In.: BICALHO, Maria Fernanda, FRAGOSO, João, et alii. O
Antigo Regime nos trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (séc. XVI-XVIII). Civilização
Brasileira : Rio de Janeiro, 2001.
MORALES, Edgardo Pérez. Naturaleza, paisaje y sociedad en la experiencia viajera:
misioneros y naturalistas en América Andina durante el siglo XVIII. Quito, 2006, 97 p. Tesis
(Maestría en Estudios de la Cultura. Mención en Políticas Culturales). Universidad Andina
Simón Bolívar, Sede Ecuador. Área de Letras.
ROLLER, Heather Flynn. Expedições coloniais de coleta e a busca por oportunidades no
sertão amazônico, c. 1750-1800. Rev. Hist. (São Paulo) [online].2013, n.168, pp.201-243.
ISSN 0034-8309. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.v0i168p201-243.
28

ENTRE O SAGRADO E O PROFANO: UM OLHAR SOBRE A FESTA DE SANTA


MAÇALINA EM SÃO MATEUS DO MARANHÃO NA CONTEMPORANEIDADE

Jean Carlos Silva Cunha*

RESUMO: O referido trabalho se propõe a estudar as relações existentes entre o sagrado e o


profano a partir da Festa de Santa Maçalina que ocorre na Comunidade Timbaúba em São
Mateus do Maranhão – MA. A pesquisa problematiza as relações existentes da festa em torno
da devoção de Santa Maçalina e a construção de um espaço sociocultural, bem como as
alterações desse espaço, lançando luz para os conflitos existentes dentro da festividade. A
compreensão das práticas e representações em torno da festa é percebida através da realização
de entrevistas história oral, tomando esta como uma metodologia de pesquisa. Foram
entrevistados antigos moradores da comunidade estudada. Mediante a análise das entrevistas,
o estudo aponta para as tensões e as relações de poder existentes durante os festejos, bem
como na articulação para a manutenção da festa. A análise das vicissitudes que fizeram parte
da formação dos festejos como também a tentativa de controle frente às experiências ditas
como profanas, na contemporaneidade, perfazem o estudo.
PALAVRAS-CHAVE: Religiosidade. Memória. Festa Religiosa.

1 - INTRODUÇÃO
A religiosidade popular, pode se expressar de várias maneiras, transitando entre dois
polos: o profano e o sagrado. Fomentando vivências e atitudes que não conseguimos
visualizar em outras esferas do cotidiano. É capaz de proporcionar um momento ímpar de
sociabilidade, além de fazer um resgate às tradições e a um momento histórico que apesar de
passado é revivido e ressignificado através dos ritos e festas que periodicamente são
realizados (JURKEVIKS, 2005).
O que propomos com esse trabalho, é a análise das relações entre sagrado e profano
dentro das festas religiosas populares e para tal iremos focar na festividade de Santa Maçalina,
que acontece na comunidade Timbaúba, no Munícipio de São Mateus do Maranhão. O
trabalho procurou compreender as mudanças ocasionadas na dinâmica sociocultural da
comunidade Timbaúba a partir da evolução do festejo. Para este fim o trabalho se fundamenta
sob a perspectiva da história cultural, que dentro das modalidades historiográficas existentes,
vem a ser a mais adequada ao tipo de estudo a ser realizado.
A festa aqui estudada e as relações entre sagrado e profano, bem como os conflitos
existentes a partir da convivência desses dois opostos perfaz a estrutura desse trabalho e irá
fornecer uma compreensão melhor sobre as relações existentes no campo das religiosidades

* Graduado em História pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. Mestrando em Ensino de História
pela Universidade Regional do Cariri – URCA. E-mail: cunhajean25@gmail.com
28

populares nos fazendo refletir sobre os vários aspectos que podem ser percebidos dentro das
vivências da festividade, um momento construído pela comunidade que participa, mas que
pode tomar direções diferentes daquelas que eram vividas no seu início, demonstrando assim
que a história é fluída e movida através das atitudes de quem a constrói.

2 - FESTAS RELIGIOSAS POPULARES


As festas religiosas sempre foram um traço forte da religiosidade popular, no Brasil
elas constituem um momento privilegiado para as mais típicas expressões de fé, regadas de
todos os tipos possíveis e imagináveis de sincretismo que possam existir. A fé e as crenças
que se estabeleceram na cultura brasileira são frutos de uma colonização onde se era
permitida a convivência, por muito tempo pacífica, de culturas e rituais religiosos diferentes
da religião oficial do colonizador. Uma fé híbrida se estabelecia no Brasil a partir da fusão das
influências indígena, africana e europeia. O trio que é a base da cultura nacional.
Na tentativa de converter os gentios aumentando dessa forma o número de fiéis
católicos, em virtude da ameaça dos cristãos reformados que na Europa vinha congregando
muita gente em torno das novas religiões recém-nascidas, a Igreja Católica vê no Brasil a
esperança para a manutenção da sua fé, levando-a além do Atlântico, obrigando índios e
negros, a se converterem ao cristianismo. No entanto, além da nova fé imposta pelo
colonizador, permanecia e era vivenciada, ainda que de maneira velada, os cultos dos nativos
e as batucadas dos negros ao cultuar seus deuses. Laura de Mello e Souza em seu estudo sobre
religiosidade na colônia diz que:

[...] toda a multiplicidade de tradições pagãs, africanas, indígenas, católicas,


judaicas não pode ser compreendida como remanescente, como sobrevivência: era
vivida, inseria-se, neste sentido, no cotidiano das populações. Era, portanto,
vivência. É nessa tensão entre o múltiplo e o uno, entre o transitório e o vivido que
deve ser compreendida a religiosidade popular da colônia, e inscrito o seu
sincretismo (SOUZA, 2009: 135).

Com o passar do tempo essa fé híbrida foi ganhando terreno e passou a prevalecer em
toda a colônia, formando dessa forma um catolicismo bastante peculiar, com diferenças
marcantes do catolicismo que era vivenciado na Europa. De acordo com Souza (2009)
práticas pagãs eram sincretizadas no catolicismo europeu medieval, mas quando essas práticas
foram inseridas no Brasil, já não eram mais tão utilizadas na Europa, permanecendo aqui um
sincretismo dotado agora por outras ressignificações, uma herança do catolicismo
28

medievalista português que ao se misturar com as práticas ameríndias e africanas, ganha um


novo sentido.
Segundo, Abreu (1996) as missas eram pomposas, regadas das mais variadas formas
de expressões da fé, onde pessoas dos vários segmentos sociais participavam e vivenciavam
desses momentos que quase sempre eram animados através dos batuques e das danças dos
negros, índios e mestiços. As comidas e bebidas também não faltavam nessas celebrações, um
espaço onde “Deus e o Diabo conviviam lado a lado”. As procissões, as missas festivas e tudo
mais que estivesse sob a esfera do sagrado era também vivido pelo profano.
Marta Abreu ainda ressalta o papel importante que tinham as confrarias e ordens
terceiras, pois as mesmas constituídas por leigos, não mantinham vínculo estreito com as
autoridades eclesiásticas. Dessa forma gozavam de uma maior liberdade para organizar as
festas religiosas com esse caráter multicultural. Quanto a isso ela ressalta:

Uma das expressões mais típicas desse catolicismo foram as confrarias organizadas
pelos leigos. Entre elas existiam as irmandades e ordens terceiras que se
diferenciavam das primeiras por estarem subordinadas às ordens religiosas.
Podiam reunir membros de diferentes origens sociais, estabelecendo solidariedades
verticais, mas também servir com associações de classe, profissão, nacionalidade e
“cor”. [...] As festas organizadas pelas irmandades em homenagem aos santos
padroeiros ou outros de devoção, eram o momento máximo da vida dessas
associações (ABREU, 1994: 184).

Essa postura adotada pelas confrarias contribuía para a manutenção do bem estar
social no momento em que proporcionava a convivência dos diferentes setores sociais. Além
de se cumprir um papel religioso de louvor ao santo, cumpria-se também um papel social
através da mistura de classes e do seu convívio, é claro, que a estratificação social não sofria
alterações, tão pouco a consciência dela. E essa convivência de extremos exemplifica de certa
maneira a concepção de Ginzburg sobre circularidade cultural. Nesse contexto a circularidade
cultural, conceito trabalhado por Ginzburg em sua obra “o Queijo e os Vermes”, defende a
influência mútua ente cultura popular e cultura hegemônica, o que foi demonstrado pela
citação acima através da presença de membros da elite nas manifestações populares. O que
deixa um pouco de lado a dicotomia popular x erudito.
Outra característica que deve ser salientada é quanto a postura dos representantes
institucionais da fé, no que se refere ao caldeirão cultural que era vivenciado durante as festas.
Ao que se percebe, a Igreja no início da colonização ou pelo menos até o século XIX
mantinha uma postura de tolerar tais práticas e por vezes até de inseri-las dentro da liturgia
oficial, muito disso deve-se pela fragilidade institucional no que tange a fiscalização e
28

higienização das práticas sincréticas. Logo, eram evidentes ainda nessa fase de evangelização,
transformar ou de certa maneira tentar moldar algumas práticas sincréticas, mas permitindo a
manutenção de outras, seguindo um dito popular que expressaria isso “se não há como
vencêlos, junte-se a eles”. Quanto a isso Laura de Mello e Souza ao citar Antonil nos coloca
que:

Antonil será talvez um dos primeiros a perceber como era importante, em termos de
controle social e ideológico, deixar aflorarem manifestações sincréticas. “Negar-
lhes totalmente os seus folguedos, que são o único alívio do seu cativeiro, é querê-
los desconsolados e melancólicos, de pouca vida e saúde. Portanto, não lhe
estranhem os senhores o criarem seus reis, cantar e bailar por algumas horas
honestamente em alguns dias do ano, e o alegremse inocentemente à tarde depois de
terem feito pela manhã suas festas de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito e
do orago da Capela do Engenho...” diria Antonil (SOUZA, 2009: 127).

Por se configurarem como parte importante da religiosidade popular, como já fora


citado, As festas religiosas são momentos em que o povo através de suas vivencias e práticas,
interagem entre si, deixando um pouco de lado as teias sociais que os segregam, e participam
de uma forma dinâmica e particular do louvor ao santo padroeiro. É importante ressaltar que
apesar das festas se caracterizarem como centros irradiadores de cultura e adotarem uma visão
“sacroprofana” das suas ações, permanece ainda a pretensão de controle dessas práticas, vistas
pela Igreja como desnorteadoras do verdadeiro mistério.
As festas religiosas foram e ainda são ambientes dotados de misticismo e práticas que
engendram a cultura popular. Fazendo sempre o contraponto entre religião oficial e
religiosidade popular, unindo o profano e o sagrado, as festas religiosas populares exercem
um papel fundamental na construção do “ser brasileiro” e mais do que isso, são de certa forma
a maneira que o povo encontrou de resistir as imposições da religião oficial e do controle da
Igreja acerca de suas práticas e vivências:

Assim se configuram as festas brasileiras desde os primeiros séculos de


colonização. O espaço de sociabilidade, para a maior parte da população, se
realizava fora do âmbito domiciliar, uma vez que os grandes momentos de interação
social eram as festas religiosas. As práticas católicas eram marcadas por efusivas
manifestações de fé visíveis nas missas com corais, nas procissões − caminho do
devoto à Casa do Pai − repletas de alegorias e nas festas com músicas, danças,
comidas, bebidas e fogos de artifício (JURKEVIKS, 2005: 74).

Nesse contexto as festas possuem um caráter unificador, uma vez que unem em um
mesmo espaço, elementos do sagrado e do profano, fazendo dessa forma um entrelaçamento
de práticas e vivências que transforma e reifica a ideia de sagrado. Observa-se que dentro
28

dessas festas havia espaços para todos, fomentando gestos de sociabilidade, fraternidade e
solidariedade, raramente vistos em outras ocasiões.
De maneira geral é possível ver que o eterno contraponto entre a religião oficial e a
religiosidade popular não se fazem de maneira tão acirrada e que cada uma das vertentes se
confluem e tentam conviver, em certos casos, de maneira harmoniosa.
Quanto a convivência entre profano e sagrado é possível percebe-la em quase todos os
momentos da festividade popular e são sempre marcadas por momentos de lazer e diversão.
Quanto a isso Martha Abreu ressalta:

[...] essas festas costumavam confundir as práticas sagradas com as profanas, tanto
nas comemorações externas como nas que eram realizadas dentro das igrejas. Além
das missas com músicas mundanas, sermões, Te-Déum, novenas e procissões, eram
partes importantes as danças, coretos, fogos de artifício e barracas de comida e
bebidas. Na maioria delas a população escrava e/ou negra não perdia a
oportunidade para realizar seus “batuques” (ABREU, 1996: 9).

O papel do profano é inerente ao andamento das celebrações e se torna parte essencial


da mesma, onde sem ela, a festa perde todo o seu caráter cultural e aproximador das
populações mais carentes. Quanto ao papel do profano podemos ainda notar que ele é parte
integrante da festa constituindo dessa maneira uma realidade indissociável da manifestação da
fé popular (OLIVEIRA, 2007).
Ao analisarmos essas festas percebemos que os limites entre sagrado e profano são
bem tênues e por vezes não encontramos distinção entre um e outro, mas é importante ainda
ressaltar que tanto um como outro podem ser vistos de várias maneiras e por perspectivas
distintas, se levarmos em consideração o tipo de análise que se pretende fazer.
O cotidiano, a mentalidade e o simbolismo formam a esfera que engloba as festas
religiosas populares, não fugindo seu estudo da compreensão do contexto social que está
inserido dentro da realidade vivida por determinadas comunidades, que vivem esse tipo de
religiosidade. As festas não são o único aspecto em que se pode perceber e compreender as
vicissitudes das práticas de religiosidade, mas se constituem como peça chave, para
compreensão e vivência do sagrado, que ao se unir ou se afastar do profano adota uma postura
repleta de sentidos e significados para quem o celebra.

3 – SANTA MAÇALINA: DEVOÇÃO, FESTA E SACRALIZAÇÃO


A devoção popular como já colocado antes, se constitui de uma prática marcante da
religiosidade brasileira desde os tempos coloniais, herança de uma catequização portuguesa
29

marcada ainda de muitos sincretismos. A festa que vamos relatar aqui vem a ser um dos
muitos exemplos pelo país a fora de como pessoas de vida simples se transformam em ícones
de devoção popular e conseguem arregimentar multidões em torno de seu culto, e mais, como
se deram essas relações com o sagrado e que consequentemente irão refletir no profano.
Não se sabe bem ao certo em que ano Maçalina nasceu, nem como chegou até a
comunidade Timbaúba, no município de São Mateus do Maranhão. O que os mais velhos
contam é que Maçalina era descendente de escravos e que vivia para ajudar as pessoas que
moravam na comunidade. De acordo com Dona Raimunda Nonata de 69 anos, moradora da
comunidade há muitos anos e que ouvia as histórias de seus pais, Maçalina era uma preta
velha, que brincava tambor de crioula e era também parteira, conhecedora dos remédios
caseiros, e que sempre fazia uso das plantas para ajudar quem precisasse.
A devoção à Santa Maçalina, como muitas outras, inicia-se a partir da sua morte,
momento que se evidenciou, segundo a crença popular os primeiros milagres e peregrinações
ao seu túmulo. De acordo com os moradores da comunidade, Maçalina quando estava idosa
sofreu um acidente e morreu, alguns disseram que quando foi buscar lenha seu coração teria
parado e ela veio a falecer à beira da estrada, outros falam que ao ir buscar lenha, uma
manada de bois a pisoteara causando a sua morte. Ao ser encontrada morta, seus restos
mortais foram enterrados à beira da estrada em que foi encontrada. Ali enterrada, fizeram-se
as orações para encomendar sua alma e segundo a tradição católica acenderam-se velas em
seu túmulo.
Após esses acontecimentos, seu túmulo foi muito visitado pelas pessoas da
comunidade que a conheciam, e tinham muita estima por ela. Muitas iam para rezar e outros
faziam promessas em nome da sua alma, mas ainda era uma devoção muito particular e
bastante local. O corpo de Maçalina foi enterrado, como já fora dito, no lugar onde fora
encontrado, que era a beira de uma estrada por onde passavam os bois que vinham do interior
do país para o Maranhão, era a famosa estrada da boiada.
Em uma dessas passagens, ao sentir o cheiro das velas queimando, os bois se
assustaram e se espalharam pelo campo, causando preocupação no boiadeiro que os estava
conduzindo. Segundo os entrevistados eram mais de 2000 cabeças de gado, e o boiadeiro iria
demorar muito tempo para reuni-las novamente, preocupado com a situação e em desespero,
ele percebe que existia um túmulo na beira da estrada por onde os bois passavam, ao se
informar sobre o túmulo e sobre a fama de milagreira que Maçalina tinha, resolve fazer uma
promessa em nome dela, onde segundo as fontes, ele prometeu que se conseguisse reunir todo
o gado mandaria erguer uma casinha sobre o seu tumulo, para que fossem feitas suas
29

celebrações. No dia seguinte à promessa, a boiada retorna e o boiadeiro consegue seguir


viagem. A partir de então, esse suposto milagre de Maçalina, faz aumentar a sua devoção.
Com o aumento da devoção, e a fama dos milagres se espalhando pela região,
aumenta-se também a festa que é feita ao redor da casinha, que logo se transformará em
capela. Com isso o prestígio da santa só cresce atraindo cada vez mais pessoas, aqueles que
vêm para celebrar e muitas outras que vem para se divertir.
A festa é o lugar primordial do encontro, da celebração festiva, do agradecer, do
comemorar mais uma passagem de ciclo. Numa visão eliadiana, é um momento cosmogônico
que transporta aquele que o vivencia para um tempo mitológico, diferente do tempo moderno
em que vive. Como acontece na maioria das festas religiosas populares, grande parte dos que
participam delas, vai para os divertimentos que elas proporcionam e andam longe de
compreenderem ou vivenciarem o mistério que ali é celebrado. Enquanto uma parte vai
agradecer e rezar, uma maioria vai pra brincar, se divertir. A festa proporciona isso, une em
torno de si elementos das duas esferas, que por vezes se misturam. De um lado a reza, do
outro a folia, um espaço onde o sagrado e o profano convivem lado a lado.
A festa de Santa Maçalina não fugia a regra e proporcionava esse momento de
congraçamento entre as duas esferas. Era justamente a festa dedicada à santa que era o ponto
auge de sua devoção. Desde o seu primeiro milagre, o número de devotos, só vinha a
aumentar ano após ano. Pouco se sabe sobre as festas realizadas antes das terras serem
compradas por Sebastião Coelho na década de 70. Portanto, iremos focalizar os momentos da
festa a partir dessa data, momento que a festa ganha uma nova tonalidade e começa a ser até
mais divulgada, apesar de que segundo os moradores, a festa já havia quase um século de
existência.
Segundo Joedson, morador da comunidade e presidente da Associação de
Trabalhadores Rurais do Povoado Timbaúba, as terras foram compradas por Sebastião Coelho
das mãos do Sr. Manoel Martins no ano de 1973, e a partir de então a festa de Santa Maçalina
passa para a responsabilidade da Família Coelho. Com isso alguns investimentos são feitos no
que tange a realização da festa, como a construção de uma capela de alvenaria da santa, a
manutenção do Barracão de festas e a própria divulgação da festa ali realizada.
Como nos foi repassado pelas entrevistas, a festa de Santa Maçalina reunia muita
gente, pessoas que vinham de vários lugares, inclusive do sul do país, para conhecer a famosa
festa. A região não tinha muito a oferecer em relação ao entretenimento, mas nos dias da festa
da santa, a cidade e região praticamente se mudavam para o povoado Timbaúba e
participavam das novenas e dos momentos festivos que aconteciam após a reza.
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Eu alcancei quatro barracões de festa, quatro, e eram seis aonde tinha o do Antero
Boueres [...] com alto falante em cima dum podarqueiro que enchia o interior de
voz bonita, de música bonita de oferecimento de tudo de bom pra esta alma
milagrosa, era uma festa de romaria[...] quando dava de noite depois da reza tinha
um silencio e aí começava depois que terminava o silencia da reza, das alvoradas
de músicos que vinha de Coroatá e aí tinha a festa (RAIMUNDA NONATA, 2014).

Do lado de fora da capela, se encontravam as barracas de comida e bebida, que


tomavam conta da rua que dava acesso à capela. Após a reza, aqueles que vinham para se
divertir, ficavam nas barracas até o dia seguinte, bebendo, comendo e dançando. Ou seja,
eram momentos de confraternização que aconteciam no decorrer de toda a festividade, mas
que nos últimos três dias da festa se tornavam mais intensos, inclusive o fluxo de pessoas.

[...] aqui tudo era barraca, começava dia 21 a primeira noite, você podia vir que
você via cada barraca lotada de pessoas, som que você não sabia distinguir qual
era música dessa barraca aqui, dessa aqui , da outra e da outra mais, quando
chegava no dia 26, mesmo sem as festas de dança lá no barracão, mas o pessoal
botava nas barracas e nego dançava e bebia e emendava até o dia 1º (SOCORRO,
2014).

A novena a Santa Maçalina acontece no período de 21 a 30 de Novembro, mas eram


nas três últimas noites que a festa aumentava o seu tamanho. No dia 30, último dia da novena,
era o auge da festa, pois acontecia a missa com o padre da Igreja Católica Brasileira, onde
eram realizados batizados, casamentos, crismas e o número de romeiros, aumentava
consideravelmente. Ao cair da tarde, acontecia à procissão com a imagem da santa pelas ruas
da comunidade, onde se rezavam as ladainhas, cantos e louvores a santa. Ainda hoje as
ladainhas que são rezadas, permanecem em latim, na verdade um latim não oficial, que foi
aprendido oralmente e repassado pelas gerações. Uma tradição que é mantida pelo núcleo
conservador da novena.
Voltando ainda para a festa profana, esta acontecia concomitante à festa religiosa,
onde como é praxe acontecer, se realizavam diversas formas de entretenimento, desde jogos
de azar à prostíbulos. Nessa época segundo os relatos, os cabarés da Rua Pindaré que
funcionavam na cidade, se mudavam para a Timbaúba durante os dias de festa, e
proporcionavam dessa maneira um divertimento à parte para os que lá participavam.
Além das barraquinhas que preenchiam um grande espaço na festa, existia ainda o
salão de festas principal, que era conhecido como Barracão ou Salão Azul. Era nesse espaço
que aconteciam as festas dançantes, onde a maioria das pessoas frequentava. Enquanto a
capela era o templo da festa sagrada, o barracão era o templo da festa profana. Ao terminar a
novena, todos iam ao barracão, dançar, beber, namorar. Sem muita precisão de datas, não se
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tem uma ordem cronológica que indique quando o barracão foi construído, mas como a
maioria dos entrevistados diz, que quando nasceram o barracão já existia, então podemos
supor que essa estrutura, já havia muito antes do Sr. Sebastião Coelho comprar as terras.
No Barracão aconteciam as festas dançantes e segundo os relatos ele ocupou um
espaço privilegiado na disseminação da cultura local, pois vinham artistas se apresentar e
existia ainda uma forma de circularidade cultural entre a elite e as massas populares. Dentre
os artistas que animavam as festas, é unanime a presença de um cantor conhecido como Bibiu
Balaiada, que já era tradição nas festas da santa.
Havia também certas regras sociais que deveriam ser respeitadas. Apesar de estarem
no mesmo espaço alguns setores sociais não se misturavam. Exemplo disso, como nos foi
relatado, era a existência de uma divisória feita de palha no meio do salão de festa. De um
lado ficavam as “mulheres de bem” e suas famílias e o do outro ficavam as meretrizes, ou
mulheres solteiras de “vida livre”.

[...] Na época era peitori, que você levava suas filhas, sua família e você olhava o
baile, tinha uma parede bem no meio, a outra eles falavam que eram de mulheres
que não podiam se misturar com as casadas e a s moças [...] era uma parede bem
alta, que ninguém via, e a outra de família, a gente chegava cruzava o braço no
peitori, olhava as pessoa dançar, era de lamparina, aqueles petromax, nessa época
não tinha energia, era só no petromax mesmo (SOCORRO, 2014).

Como podemos perceber, apesar da festa reunir em um mesmo espaço os vários


setores sociais, ainda permanecem resquícios de segregação social, o fato de se dividir o
salão, reflete muito bem isso. Os limites físicos do salão de festa traduzem os limites
ideológicos e sociais que separam pessoas de classes diferentes. Estão juntos, mas não estão
misturados.
Mesmo havendo algumas divisões no que tange a presença no Barracão, e o respeito a
determinadas regras sociais, fora dele a situação mudava, pois na capela e nas barraquinhas
que ficavam na rua, essa divisão não era tão evidente, onde todos participavam sem restrições.
Pelo que se percebe era um clima de harmonia, onde não existia muita violência e de certa
forma, a comunidade participava de forma a garantir que esse ambiente de fraternidade
proporcionasse a integridade e o respeito a devoção de Santa Maçalina.
A festa vai continuar acontecendo ano após ano, chamando mais devotos e ficando
cada vez mais famosa, gerando lucro para os donos da festa, e garantindo dessa maneira a
diversão daqueles que participavam dos momentos ali celebrados. No entanto a partir da
década de 90 começam a surgir os primeiros conflitos no que se refere a posse da terra. Esta
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será novamente vendida, dessa vez para o Coronel Sales, que ao comprar decide não querer
mais a manutenção da festa e resolve, além disso, expulsar as famílias que ali moravam a
muitos anos.
Diante dessa ameaça dupla, a de acabar com o festejo e a de perder as terras, a
comunidade resolve agir, pedindo ajuda ao poder público, que intervém através do INCRA na
compra das terras, para a comunidade. Em 1994 sai o decreto da compra do povoado pelo
INCRA e em 1995 é entregue a comunidade a emissão provisória de posse, que dava o direito
das famílias de permanecerem em suas terras. Porém durante uma década, de 1995-2005, a
comunidade não adquiriu a posse do festejo, e sua organização ficou ainda sob a
responsabilidade indireta dos antigos donos, nesse caso representados pela segunda esposa do
Sr. Sebastião Coelho.
A partir de então, mesmo com a posse da terra garantida em lei, a comunidade
permanece refém de outros posseiros que oriundos da cidade de Santa Inês – MA, vão agora
administrar a festa de Santa Maçalina. É justamente nesse período que se intensificam os
conflitos dentro da comunidade. A festa vai continuar nos moldes que sempre aconteceu, no
entanto haverá uma exploração maior daqueles que participam dela, principalmente no que
tange a festa profana. Serão cobradas mais taxas para se montar as barracas, a comunidade vai
ser constantemente ameaçada através das armas, que garantem agora a manutenção da ordem
estabelecida.

[...] Tinha muito policiamento aqui dentro, muitas pessoas armadas [...] a própria
polícia era do lado deles e pessoas particulares deles, seguranças particulares,
amedrontando a própria comunidade, foram dez anos de sofrimento [...] mesmo
assim não houve afastamento das pessoas (JOEDSON, 2014).

Alguns fatos não nos foram relatados dessa época por uma questão de medo, alguns
silêncios são mantidos no que se refere aos detalhes desse conflito. A morte de um romeiro é
a lembrança mais citada pelos entrevistados, ao fazerem memória desse período. Um
momento que chocou a comunidade e que fez com que muitas práticas perdessem o seu
sentido original. O mistério ali foi quebrado, pois houve um desnorteamento do sentido real
de realizar o festejo. O que antes era um ambiente de alegria e diversão se transformava em
um ambiente de medo e insegurança.

[...] a gente só ia pra igreja e voltava, fechava as portas [...] quando terminava as
novenas, todo mundo ia embora, a maioria das pessoas aqui da Timbaúba, eles não
iam pras novenas na época que surgiu esse outro povo de Santa Inês que festejaram
esses 10 anos, foi muito pouco as pessoas e eu fui, todo ano eu ia rezar, porque eu
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achava assim, onde é que está minha fé? Eu não vou pra festa, eu não vou rezar pra
pistoleiro, eu não vou rezar pra A nem B, eu to rezando, fazendo a minha parte, já
que eu nasci e me criei aqui, eu tenho fé na imagem, na alma e em Deus em
primeiro lugar [...] (SOCORRO, 2014).

A partir do ano de 2005, a Associação de Moradores do Povoado Timbaúba, consegue


recuperar o patrimônio religioso, que seria a capela de santa Maçalina e a organização do
festejo, mesmo assim os posseiros que outrora organizavam a festa não saíram completamente
do povoado e continuaram a fazer ameaças e a quererem controlar novamente a festa, afinal, a
festa de Santa Maçalina rendia muitos lucros para aqueles que a organizavam, principalmente
com a venda de bebidas, as taxas que eram cobradas dos barraqueiros, a entrada no barracão e
ainda tiravam uma percentagem dos sacramentos realizados.
Percebendo essa condição de exploração a que estava submetida, a comunidade e seus
líderes resolvem romper inclusive com a instituição religiosa que vinha acompanhando a
festa, que era a Igreja Católica Brasileira, e resolve agora ficar sob a jurisdição da Paróquia de
São Mateus, Igreja Católica Apostólica Romana.
Mesmo com a comunidade assumindo o festejo e a Paróquia de São Mateus agora
como instituição religiosa oficial estar na organização do festejo, a festa profana ainda
continuou por mais três anos, e a ameaça dos antigos posseiros também rondava a
comunidade, trazendo ainda um clima de tensão e insegurança, o que levou a alguns membros
da comunidade a se armarem, para se defenderem e defenderem também a integridade da
festa de Santa Maçalina.
Durante os três anos seguintes, a partir do momento em que a festa é assumida pela
comunidade e pela paróquia de São Mateus, ocorre um processo lento e pacífico para evitar
conflitos e evitar mais derramamento de sangue, portanto ainda será tolerada a festa profana
por parte da instituição religiosa, que apesar de não concordar com a mesma, permite que ela
aconteça ainda nos seus moldes tradicionais. No entanto já se pensa na ideia e aos poucos ela
vai amadurecendo de acabar por definitivo com a festa profana.
A decisão de acabar com a festa por definitivo segundo os relatos, foi uma decisão da
própria comunidade reunida em assembleia, um dos motivos dessa decisão seria justamente
romper com o passado obscuro, que trouxe sofrimento aos moradores. Durante dez anos eles
presenciaram momentos difíceis em razão da própria festa. O sentido de festejar mudou
radicalmente e o que se via era a exploração econômica e social que machucava e feria a
dignidade do povo. Por esses motivos e outros que não foram explícitos, a comunidade
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resolve romper com essa tradição e prioriza somente a festa religiosa através das novenas.
Quanto a isso Pe Luís, que acompanhou esse processo diz:

[...] não fomos nós a procura, foram eles que procuraram, porque naquela época,
aquela mudança, derrubando o galpão e etc. eles queriam virar a página, não ter
mais nada a ver com esse passado e naquela época eles chamavam de sofrido, de
opressão, de exploração, então por isso também o padre brasileiro não foi mais
procurado (PE. LUIGI CARAMASCHI, 2014).

Esse momento chega em 2008, quando ocorre a derrubada do Barracão, que é de certa
maneira o símbolo da festa profana, isso acontece devido à prisão de um dos moradores da
comunidade pela polícia militar, por porte de armas, justamente uma forma de se defender,
devido as ameaças que vinham sofrendo. Com a prisão desse membro, a comunidade reage de
forma violenta, através da derrubada do barracão de festas. Essa ação simboliza o rompimento
da comunidade com a festa e com os moldes com que vinha acontecendo nos últimos anos.
A derrubada do Barracão simbolizou o rompimento do sagrado com o profano e
representou na vida da comunidade o início de uma nova forma de celebrar e conviver. Vejo
que este rompimento se fez necessário por vários motivos, mas o principal deles seria
justamente a liberdade. Liberdade que a comunidade queria para celebrar a sua maneira, por
mais que se tivesse o peso da instituição oficial, que nesse caso específico, ajudou a
comunidade a reencontrar o seu caminho. O importante naquele momento era não se perder o
mistério da devoção a Santa Maçalina e isso não se perdeu, continuou acontecendo sempre. A
festa nos moldes que vinha acontecendo já havia perdido todo o sentido de existir para a
comunidade, portanto não fazia mais parte do mistério ali celebrado. Só servia para lembrar
os momentos difíceis que foram vividos e ainda agir como comercio da fé, para o
enriquecimento de alguns.
Ao contrário de muitas outras festas religiosas populares, a sacralização da festa de
Santa Maçalina, não ocorreu por meio de imposição, embora os conflitos tenham ajudado pra
que isso acontecesse, foi uma decisão da própria comunidade e não uma imposição da
instituição oficial, embora se tenha tido uma influência e uma negociação por parte da
Paróquia para que houvesse certo respeito a algumas normas da Igreja.
Desta forma a sacralização da festa de Santa Maçalina e a forma como ela aconteceu,
se torna específico e diferente no que tange à outras festas de santos populares, de um olhar
mais tolerante se conseguirmos perceber os efeitos de tal ação, por um lado a festa de romaria
acabou, a multidão de pessoas que vinham e faziam a fama da festa também foram embora e o
29

que restou foi a pura e simples fé da comunidade que ainda celebra e festeja os milagres de
Santa Maçalina, preservando sua história e mantendo viva suas tradições.

4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
O universo das religiosidades populares ainda tem muito a nos revelar sobre as
práticas e vivencias daqueles que participam delas, toda uma estrutura cultural e ideológica se
mantém em ressonância dentro dessas práticas, o que nos propomos aqui foi pegar uma dessas
relações como a convivência entre sagrado e profano e problematiza-la. A festa de Santa
Maçalina foi o nosso exemplo para discutir essa relação que é bastante observada nas festas
populares Brasil afora, que embora seja específico em cada caso, encontramos muitas
semelhanças principalmente em suas estruturas e relações.
Ao analisarmos as festas populares em específico a de Santa Maçalina, podemos
compreender o quão valioso é para esse povo a dimensão da ação do sagrado, que se
manifesta através das várias ações misteriosas entendidas como milagres. Passamos a
compreender seu modo de vida, e sua enorme capacidade de viver a sua fé mesmo sob
ameaça, e mesmo não tendo mais o prestígio ou fama da grande festa, consegue permanecer
fiel ao mistério que é celebrado ano após ano, fazendo de suas vidas um eterno celebrar,
trazendo de volta o momento único em suas vidas que é o prazer de se encontrar e se dedicar
ao culto de alguém que representa algo de importante e sagrado pra sua comunidade. Desta
maneira é que devemos enxergar as festas religiosas populares, momentos autênticos da fé
popular.

REFERÊNCIAS
ENTREVISTAS:
Raimunda Nonata. Entrevista concedida a Jean Carlos Silva Cunha. São Mateus do
Maranhão, 2014.
Socorro. Entrevista concedida a Jean Carlos Silva Cunha. São Mateus do Maranhão, 2014. Pe
Luigi Caramaschi. Entrevista concedida a Jean Carlos Silva Cunha. São Mateus do Maranhão,
2014.
Joedson. Entrevista concedida a Jean Carlos Silva Cunha. São Mateus do Maranhão, 2014.

BIBLIOGRAFIA:
ABREU, Martha Campos. “O Império do Divino”: Festas Religiosas e Cultura Popular no
Rio de Janeiro 1830 -1900. Unicamp, Campinas –SP, 1996.
. Festas Religiosas no Rio de Janeiro: perpectivas de controle e tolerância no
século XIX. Estudos Históricos, vol. 7, n. 14, p.183-203. Rio de Janeiro, 1994.
29

BARROS, José D’Assunção. O Campo da História: Especialidades e Abordagens. Ed.


Vozes, 2008.
COUTO, Edilece Souza. Devoções, festas e ritos: algumas considerações. Revista brasileira
de História das Religiões – Ano 1, nº 1 – Dossiê Identidades Religiosas e História. 2008
ELIADE, Mircea. O Profano e o Sagrado: A essência das religiões. Ed. Martins Fontes, São
Paulo, 1992.
GINZBURG, Carlo. O Inquisidor como antropólogo. In: . O fio e os rastros.
Companhia das Letras, São Paulo, 2007.
JURKEVIKS, Vera Irene. Festas Religiosas: A materialidade da fé. História: Questões e
Debates. nº 43, p.73-86, Ed.UFPR, 2005.
. Os Santos da Igreja e os Santos do Povo: devoções e manifestações de
religiosidade popular. UFPR, 2002. Tese de Doutorado.
MACHADO, Maria Clara Tomaz; PRADO, Luiz Ricardo; ALVES, Rogério Antônio.
Religiosidade Popular e Igreja Católica. Fatos e Versões, Vol. 4, nº 8, Uberlândia, 2012.
NASCIMENTO, Maria Regina do. Religiosidade e Cultura popular: Catolicismo,
Irmandades e Tradições em movimento. Revista da Católica, vol. 1, nº 2, p.119-130,
Uberlândia, 2009.
RIBEIRO, Maria do Socorro Nascimento. Santa Maçalina: história relatada por moradores
do povoado Timbaúba, Timbaúba – São Mateus do Maranhão, 2012.
SOUZA, João Carlos de. O caráter religioso e profano das festas populares: Corumbá,
passagem do século XIX para o XX. Revista Brasileira de História, vol. 24, num. 48, p. 331-
351, São Paulo, 2004.
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade
popular no Brasil colonial. Companhia das Letras, São Paulo, 2009.
2

PESQUISA EM BASE DE DADOS: ANALISANDO PERSPECTIVAS DO ENSINO DE


HISTÓRIA INDÍGENA

Joilson Silva de Sousa*

RESUMO: Realizamos uma investigação tendo como princípio a definição do objeto que
servira de guia, na busca do que se pretende averiguar. Portanto, a elaboração do Estado da
Questão (EQ), contribui para a descoberta e/ou redefinição dos caminhos de pesquisa.
Destarte, o objeto desse escrito foi elaborado pelo EQ tendo por alvo os saberes docentes
ligados a temática indígena. A pesquisa de caráter bibliográfico, teve como fundamento
teórico-metodológico, os escritos de Minayo (2015), Nóbrega-Therrien (2010), artigos
científicos da Associação Nacional de História – ANPUH e Associação Nacional de
Pósgraduação e Pesquisa em Educação – ANPED. A pesquisa realizada evidencia a
especificidade do objeto de estudo, sendo neste mapeamento, foram escolhidos descritores
que pudessem apresentar as categorias de pesquisa. Enaltecemos a importância do EQ, por
auxiliar pesquisadores no planejamento de investigações, sendo sinalizadores do aspecto de
originalidade necessário as pesquisas nas diversas áreas do conhecimento.
PALAVRAS-CHAVE: Estado da questão. Bases de dados. História e Cultura Indígena.

Introdução
A construção do Estado da Questão sobre a temática de pesquisa que envolve o ensino
de História e a Educação para as Relações Étnico-Raciais buscou relação com os professores
de História, seus saberes e práticas com a Temática Indígena brasileira, que constitui interesse
de nossa investigação. Este trabalho, é oriundo de pesquisa dissertativa realizada no Programa
de Pós-graduação em Educação, na Universidade Estadual do Ceará no período de 2015 a
2017, que tem por título: “Temática Indígena na Escola: saberes experienciais de docentes em
história na rede pública municipal de Fortaleza-CE” que pretendeu compreender como ocorre
a constituição dos saberes que mobilizam as práticas de docentes em História em uma escola
pública municipal da cidade de Fortaleza/Ceará, no tocante à temática indígena brasileira,
tendo por marco a Lei 11.645/2008, que torna obrigatório o estudo da História e Cultura Afro-
Brasileira e Indígena no contexto da educação básica, prescrito na Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDBEN) e comemora neste ano 10 anos desde sua promulgação.
Acreditamos que a realização de um Estado da Questão proporciona ao pesquisador
uma visão extensa das pesquisas e estudos sobre sua área de interesse, pois, corroborando
com Silveira (2012), ao se realizar um rigoroso levantamento bibliográfico em diversos
bancos de dados e sites de pesquisas, é possível a elaboração de um “inventário” sobre o que

* Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Ceará; Colégio Estadual Rui Barbosa;
joilsondesousa@hotmail.com.
30

já foi pesquisado em relação a uma temática específica, contribuindo para o conhecimento


científico da área. Segundo Nóbrega-Therrien; Therrien (2010:34);

O estado da questão é uma maneira que o estudante/pesquisador pode utilizar para


entender e conduzir o processo de elaboração de sua monografia, dissertação ou
tese, ou seja, de produção cientifica com relação ao desenvolvimento de seu tema,
objeto de sua investigação. É um modo particular de entender, articular e
apresentar determinadas questões mais diretamente ligadas ao tema ora em
investigação.

Compreendemos que tal análise contribui ainda na delimitação do problema de


pesquisa, tornando o trabalho do estudante-pesquisador bem elaborado, fundamentado e
ciente dos caminhos que devem ser percorridos nas opções de contribuição com o que foi
apurado ou trilhar novos percursos para contribuir ainda mais com a temática em análise.
Portanto, o EQ: “configura então o esclarecimento da posição do pesquisador e de seu objeto
de estudo na elaboração de um texto narrativo, a concepção de ciência e a sua contribuição
epistêmica no campo do conhecimento” (NÓBREGA-THERRIEN; THERRIEN, 2004:9).
Consideramos assim, a análise minuciosa dos caminhos percorridos para que as contribuições
encontradas pudessem ser fundamentalmente importantes no andamento da pesquisa a ser
realizada.
Nesse caso, o pesquisador tem diversas opções para obtenção dos dados do seu Estado
da Questão. Silveira; Nóbrega-Therrien (2011: 220-221), nos apontam que

[...] os periódicos online nacionais e/ou internacionais, encontrados em diferentes


bases de dados, como Scielo, Wilson Web, Thomson, Scopus, Ilumina etc. É
possível, também, fazer levantamento de teses e dissertações nos endereços
eletrônicos dos programas de pós-graduação de várias universidades do País.
Outra opção válida é a busca em anais de eventos científicos e, ainda, em
bibliografia pessoal/profissional. Alguns eventos também disponibilizam o
download de trabalhos apresentados em endereços eletrônicos, sendo possível ter
acesso a várias publicações organizado por ano de realização.

Alinhado as ideias de Silveira e Nóbrega-Therrien (2011), o pesquisador não pode


deixar de informar os meios de busca utilizados e os procedimentos realizados para a análise
dos dados encontrados. Assim, acreditamos que possam ser evitadas generalizações e
informações equivocadas, tornando sua busca e, consequentemente, a pesquisa o mais original
possível.

Metodologia Empregada
Buscamos mapear pesquisas voltadas à temática Indígena após a promulgação da lei
30

11.645/2008, que torna obrigatório, em todo o território brasileiro, o ensino da História e


cultura Indígena nas disciplinas de Literatura, Artes e História. Neste trabalho, optamos por
direcionar nosso olhar para os saberes e práticas desenvolvidas pelos professores de História,
por ser esta a nossa área de formação acadêmica e de atividade profissional.
Ao fazer um levantamento dos estudos publicados sobre a temática supracitada, para
conhecermos os direcionamentos que os trabalhos acadêmicos têm tomado, foi realizado um
mapeamento bibliográfico em dois locais de busca. Primeiramente no site da Associação
Nacional de História - ANPUH, que tem grande prestígio acadêmico para os profissionais
formados em História e que possui mais de 50 anos de existência com grande
representatividade nacional e em toda a América Latina, com reuniões realizadas a cada dois
anos. Nos anais da ANPUH, optamos por verificar as produções do GT (Grupo de Trabalho)
“Os índios na História” onde analisamos cada um dos ST´s – Simpósios Temáticos, a saber:
ST-073 “História Indígena, Historiografia e Indigenismo: Contribuições, desafios e
perspectivas”, ST-069 “História e Indígenas nas universidades: pesquisas e ensino”, ST-111
“Os Índios e o Atlântico” e o ST-011 “A presença indígena na História do Brasil”. Por fim, a
pesquisa foi realizada ainda, no site da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação -ANPED, no GT-21 “Educação e Relações Étnico-Raciais”.
Feita a escolha pelos locais de busca, iniciamos a pesquisa no banco do site da
Associação Nacional de História - ANPUH, onde se encontram os anais. Através dos
descritores cruzados na busca e o recorte temporal inicial no ano de 20081 , (ano de
promulgação de lei 11.645/08) até o ano de 2016, onde seguimos com as buscas via desktop
no laboratório de informática do Programa de Pós-graduação em Educação da UECE e em
microcomputador pessoal em nossa residência.
No quadro 1, inserimos os achados de busca sobre a temática em foco, no evento da
ANPUH e o resultado não foi diferente, conforme podemos observar a seguir:

1
Tomamos como marco o ano de promulgação da lei 11.645/08 criado em 10 de março de 2008, que torna
obrigatório o ensino da História e cultura indígena nas escolas do país, acreditando que as discussões sobre a
temática se intensificaram no meio acadêmico após a lei supracitada.
30

Quadro 1 – Trabalhos encontrados no GT “Os índios na História” da ANPUH, no período de


2011 a 2015. Fortaleza/CE, 2015

Reunião da ANPUH Publicados Relacionados a


temática
Ano Simpósio Temático – ST

2011 Os Índios e o Atlântico 43 -

2013 A presença Indígena na História do Brasil 32 -

2015 História e Indígenas nas universidades: pesquisas e ensino 24 4

2015 História Indígena, Historiografia e Indigenismo: contribuições, 32 1


desafios e perspectivas

Fonte: Elaboração própria (2016).

Diante do exposto, percebemos boa quantidade de artigos no referido evento


acadêmico. Contudo, poucos foram os trabalhos relacionados ao nosso tema de estudo,
levando em consideração edições do aludido Grupo de Trabalho (Os índios na História), a
partir das edições do ano de 2011, somente na edição de 2015 são verificados trabalhos que se
aproximam de nossa investigação atinente aos saberes e práticas de professores de História
relacionados à temática Indígena brasileira.
Criado no Simpósio Nacional de História da ANPUH, na cidade de Fortaleza em julho
de 2009, o Grupo de Trabalho "Os Índios na História", promove para os eventos uma
organização de Simpósios Temáticos – ST assumindo nomes que façam referência ao Grupo
de Trabalho – GT “Os Índios na História”. No ano de 2015 observamos a inserção de dois
Simpósios temáticos, vinculados ao referido GT que foram: O Simpósio Temático – 069
“História e indígenas nas universidades: pesquisas e ensino” e o Simpósio Temático – 073
“História Indígena, Historiografia e Indigenismo: contribuições, desafios e perspectivas”.
Podemos observar que depois de sua criação em 2009, o GT – “Os índios na História”
não receberam publicações sobre a temática Indígena e sua relação com o cotidiano escolar da
educação básica, obtendo resultados apenas no último evento realizado, porém, ainda com um
número pouco expressivo, nos fazendo inferir que mesmo após nove anos da promulgação da
lei 11.645, a temática supracitada ainda não se tornou assunto amplamente difundido no meio
acadêmico.
30

No quadro 2, apresentamos os dados encontrados nos anais dos eventos da Associação


Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação-ANPED no GT-21 “Educação e
Relações Étnico-Raciais”, que apresentam o menor número de textos que fazem referência a
nossa linha de pesquisa:

Quadro 2 – Trabalhos encontrados no GT “Educação e Relações Étnico-Raciais” da ANPED, no período de


2009 a 2015. Fortaleza/CE, 2016

Reunião da ANPED – GT-21 Trabalhos Trabalhos sobre a


publicados temática
Ano Local do Evento

2009 Caxambu-MG 9 -

2010 Caxambu-MG 13 1

2011 Natal-RN 30 -

2012 Porto de Galinhas-PE 22 1

2013 Goiânia-GO 18 -

2015 Florianópolis-SC 29 1

Fonte: Elaboração própria (2016).

Anteriormente presente na categoria de Grupo de Trabalho, o GT-21 da ANPED tinha


em suas bases de dados duas denominações, “Afro-Brasileiros e Educação e Educação e
Relações Étnico-Raciais”, que no ano de 2009 passou a se chamar exclusivamente “Educação
e Relações Étnico-Raciais”. Durante o levantamento de dados, encontramos, nos registros do
GT-21 da ANPED, que as mudanças decorrentes da nomenclatura do aludido Grupo de
Trabalho expressam um movimento de uma hermenêutica de cunho político e epistemológico
entre seus integrantes e ainda, a intenção da ampliação de abrangência para o recebimento de
trabalhos referentes à temática Indígena.
Para alcançarmos o maior número de trabalhos possível que fizessem referência a
nossa linha de pesquisa, e alinharmos a perspectiva do recorte temporal desta análise,
buscamos trabalhos das reuniões anuais da ANPED desde o ano de 2009, ano em que o GT
passa a ter nomenclatura que aborda também nossa temática de pesquisa e o ano seguinte de
30

promulgação de lei 11.645/2008 na expectativa de que os trabalhos iniciem suas discussões


após esta.
No primeiro momento entramos em contato por e-mail através do endereço eletrônico
da ANPED, anpedgt@gmail.com, onde fomos orientados como encontraríamos, de modo
sistemático, todos os trabalhos do GT-21. Mesmo encontrando nos títulos de muitos trabalhos
a nomenclatura “Étnico-Racial” foram lidos os resumos na tentativa de identificar se os textos
presentes nos anais de cada evento abordavam a temática Indígena numa relação com o
ensino de História ou os saberes e práticas dos professores de História o que se confirmou
quando percebemos uma grande quantidade de trabalhos voltados à temática Africana e Afro-
brasileira.
Observamos que os trabalhos apresentados desde a criação do GT-21, mesmo tendo
um quantitativo satisfatório, apenas três trabalhos estabelecem relação com nossa proposta de
pesquisa, ao que podemos afirmar que verificar a implementação da lei 11.645/2008
estabelecendo relação com o ensino de História e Cultura Indígena na educação básica tendo
no professor o papel de protagonista ao expressar seus métodos de ensino, trabalhos
desenvolvidos e suas inquietações sobre a temática supracitada, ainda figura como incipiente
durante quase uma década após a promulgação da referida lei.

Resultados de pesquisa
Escritos Acadêmicos no portal da ANPUH.
A análise da base de dados do site da ANPUH nacional apontou para a possibilidade
de uma análise referente à matéria Indígena nas edições de 2011, 2013, 2015. Pois a data de
criação do Grupo de Trabalho “Índios na História” aconteceu no evento do ano de 2009,
considerando as edições bienais do evento acadêmico, contabilizam-se três edições de um dos
mais importantes eventos acadêmicos de profissionais formados em História em todo o país.
Nos eventos de 2011 e 2013, dos 76 trabalhos que totalizaram as duas edições, não
foram encontrados trabalhos pertinentes ao nosso tema. Aspectos relacionados à matéria
Indígena e ao ensino de História foram encontrados em todos os trabalhos, porém, não tinham
relação com a tese de pesquisa de nosso projeto. Pesquisas relacionadas a outros assuntos
foram observados como: ensino de História na licenciatura Indígena, Etnias Indígenas
específicas como Guarany, Xerentes, Kaiabi, Tapuia, Índios no período republicano, políticas
de saúde nas comunidades Indígenas, Serviço de proteção aos Índios, Indígenas imigrantes,
movimentos Indígenas e relações políticas, Aldeamentos Indígenas, aspectos antropológicos,
30

resistências Indígenas, trabalho Indígena na formação de cidades, presença Indígena nas


guerras, relação com os jesuítas, foram produções encontradas nas duas edições.
Na edição de 2015, a ANPUH promoveu dois grupos de trabalhos a fim de dinamizar
e sistematizar as pesquisas. O ST-073 “História Indígena, Historiografia e Indigenismo:
Contribuições, desafios e perspectivas” e o ST-069 “História e Indígenas nas universidades:
pesquisas e ensino. Destes dois grupos temos um total de 46 trabalhos sendo muitos deles
pesquisas relacionadas com a cultura política de líderes Indígenas na Bahia, conflitos de
territorialidade, visões europeias sobre os Indígenas que viviam na costa brasileira, a presença
de Indígenas no extremo norte do país, percepções sobre imagens Indígenas, aldeamentos
Indígenas dentre outros. Apenas quatro trabalhos deste total relacionam-se com nosso estudo,
considerando ainda serem resumos publicados nos cadernos dos eventos, a pesquisa nos
mostrou que os trabalhos relacionados ao nosso estudo, não foram ampliados para artigo
completo e que tais resumos não forneceram os referenciais teóricos nos quatro trabalhos
encontrados.
No ST-073 “História Indígena, Historiografia e Indigenismo: Contribuições, desafios e
perspectivas”, foi encontrado apenas um único trabalho, onde Silva (2015) faz uma
abordagem sobre os limites e possibilidades da lei. 11.645/08. Nesta pesquisa de análise
documental, podemos destacar o “novo desenho” do currículo escolar das escolas de educação
básica na tentativa de uma melhor abordagem dos assuntos étnico-culturais nas escolas. A
pesquisa realizada em uma escola na cidade de Imperatriz - MA traz como resultado a
afirmação de que o currículo da escola em destaque, ainda não estava adaptado à legislação
educacional vigente. O autor considera ser fundamental políticas que possibilitem uma
formação inicial e continuada que leve em conta a diversidade cultural existente no país. Em
outras palavras podemos perceber que muitas escolas ainda não adaptaram seus currículos
para contemplar o estudo da História e cultura Indígena no Brasil e que os professores que já
estão em sala de aula e estão vivenciando estas mudanças curriculares necessitam de
formações específicas para trabalharem com a temática supramencionada.
No ST-069 “História e Indígenas nas universidades: pesquisas e ensino”,
aparentemente não tem a perspectiva de temas voltados para a educação básica, mas o intuito
de pesquisa sobre a questão Indígena neste grupo de trabalho tornou-se possível na intenção
de observar todas as possibilidades e ainda como fator preponderante à inserção da Lei
11.645/08 nas justificativas do grupo temático. Para nossa surpresa, quatro trabalhos foram
encontrados neste GT, podendo ainda considerar de maior significação, o de Saraiva e Silva
(2015), que traz um estudo sobre a prática docente em uma escola municipal em Altamira-PA,
30

a qual tem uma boa parcela de seus alunos Indígenas da etnia Xipava e Curuaia, justificativa
contundente para a escola trabalhar a valorização do multiculturalismo. O objetivo de
pesquisa inicial foi a identificação do estudo da prática docente e as dificuldades na
implementação da lei 11.645/08, assim como as representações dos docentes sobre os
Indígenas locais.
O trabalho de Jesus (2015) e Brighenti (2015) trazem propostas semelhantes em uma
observação documental e as ações de implementação nos currículos na expectativa de
mudanças estruturais. O Trabalho de Brighenti (2015) relata em uma de suas propostas o
aprofundamento nas inter-relações de saberes que transitam no universo escolar, pretendendo
que as mudanças não se limitem apenas à legislação educacional vigente, mas na
transformação de centros de ensino em lugares de múltiplos saberes.
O trabalho de Carmo (2015) tem como foco de estudo as experiências de professores
em diversos municípios da Bahia, para implementação das leis 10.639/03 e 11.645/08, que
trabalham as temáticas Afro-Brasileiras e Indígenas com objetivo de mapear as estratégias,
práticas e fazeres para a criação de novas metodologias, temas e atividades, a estarem
presentes na formação continuada, e na reestruturação dos processos de ensino e
aprendizagem nas escolas da Educação Básica.
As investigações aqui descritas, portanto, se configuram importantes para o
conhecimento da produção já existente, mostrando o cenário de pesquisas sobre o tema
Indígena na atualidade. O que reforça a importância de nossa pesquisa diante da tão evidente
escassez de pesquisas sobre a temática em foco.

Textos publicados no Portal da ANPED.


Na 32ª edição do evento da ANPED “Sociedade, Cultura e Educação: novas
regulações”? O GT-21 “Educação e Relações Étnico-Raciais”, contou com nove trabalhos
apresentados. Realizamos a leitura dos títulos e resumos dos escritos no site do evento.
Contudo, nenhum dos artigos fazia referência à questão Indígena brasileira. Todos os
trabalhos abordavam a tese Afro-Brasileira e/ou Africana com as seguintes perspectivas: Lei
10.639/2003, Epistemologias Afro-Brasileiras, práticas pedagógicas antirracistas para com os
negros, a relação dos negros em determinadas escolas públicas no Brasil, relação Educação e
Africanidades e ainda, museologia e identidade a partir da perspectiva da Diáspora Africana.
Na 33ª reunião da ANPED “Educação no Brasil: o balanço de uma década”, dos treze
trabalhos apresentados neste evento, apenas o trabalho de Ana Cristina Cruz (2010) fazia
referência ao nosso tema de estudo. O trabalho GT21-6038, intitulado “Dimensões de educar
30

para as relações étnico-raciais: refletindo sobre suas tensões, sentidos e propostas”. O referido
trabalho traz uma análise sobre as experiências de educar para as relações étnicoraciais na
sociedade brasileira. A autora analisa projetos que alcançaram expressividade no Prêmio
Educar para a Igualdade Racial, organizado pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho
e Desigualdades – CEERT. Logo, buscamos compreender a relação que a autora faz no que se
refere às concepções de escola, diversidade e cultura, nas experiências vividas por
professores.
Todos os demais trabalhos estão ligados exclusivamente à questão étnica negra, dentro
de perspectivas de currículo universitário – racismo – livro didático – ensino religioso –
práticas pedagógicas dentro de comunidades quilombolas – políticas públicas relacionadas às
cotas raciais.
Durante a 34ª edição em 2011, com o título “Educação e Justiça Social”, dos trinta
trabalhos apresentados, o que nos fez perceber um crescimento quantitativo expressivo do
número de textos aprovados no evento, nenhum tinha relação com nossa proposta de pesquisa.
No entanto, nos chamou a atenção um trabalho que trata da questão Indígena cujo título é:
“Identidades/Diferenças Indígenas nas teias de um currículo universitário”. Contudo, como o
próprio título diz e ainda após a leitura do resumo do mesmo, fica clara a perspectiva voltada
para alunos Indígenas e cotistas em uma universidade pública sobre suas percepções em torno
do currículo universitário.
A 35ª edição da reunião anual da ANPED: “Educação, Cultura, Pesquisa e Projetos de
Desenvolvimento: o Brasil do século XXI” teve apenas um trabalho que apresentou relação
com a perspectiva proposta por nós acerca da temática Indígena, em relação aos vinte e dois
trabalhos apresentados neste evento no GT-21. O trabalho “Os conceitos de Multiculturalismo
e Interculturalidade e a Ressignificação do Currículo”, de José Licínio Backes (2012), faz um
levantamento de 52 trabalhos apresentados no GT-21 da ANPED, na tentativa de identificar
como estão sendo abordados os conceitos de Multiculturalismo e Interculturalidade e como
seu uso contribui para a ressignificação do currículo. Logo, este trabalho contribui para nossa
perspectiva, principalmente no que diz respeito ao conceito de Interculturalidade e os
objetivos pretendidos em relação ao currículo.
Outro trabalho próximo à perspectiva de nosso estudo foi: “Saberes tradicionais e as
possibilidades de seu trânsito para os espaços escolares”. Contudo, mesmo relacionado à
cultura Indígena, aos saberes e ao ensino escolar, o referido texto traz análises da Educação
Escolar Indígena, perspectiva essa que acontece dentro de comunidades Indígenas Guarani e
kaiowá. As demais propostas estavam relacionadas à cultura Afro-Brasileira e Africana.
30

No ano de 2013, a 36ª edição anual da ANPED “Sistema Nacional de Educação e


Participação Popular: desafios para as políticas educacionais” trouxe no GT-21 cerca de
dezoito trabalhos para serem apresentados. Entretanto, nenhum deles fazia referência a nossa
linha de pesquisa. Três trabalhos apresentaram propostas relacionados à Cultura Indígena: “A
Construção de um Diálogo Intercultural com Indígenas por meio da Pesquisa-ação não
convencional”; “Os Circuitos de Trabalho Indígena: os profissionais Indígenas como novos
sujeitos da gestão de políticas públicas” e “Formação, Pesquisa e Prática Pedagógica dos/as
Professores/as Indígenas”. Porém, os resumos desses trabalhos apontam para reflexões sobre
as Formações Indígenas em nível superior e a relação entre alunos de ensino superior
Indígena com não indígenas no contexto universitário.
Por fim, a 37ª edição a ANPED, no ano de 2015 em caráter bienal, com o título “PNE:
Tensões e perspectivas para a educação pública brasileira” apresentou no GT-21, o total de
vinte e nove trabalhos, tendo um único trabalho relação próxima com nossa pesquisa. O
trabalho “Identificações Étnico-Raciais: um estudo exploratório nas escolas municipais de
pesqueira/PE” de Maria da Penha da Silva (2015), traz em seu texto uma excelente discussão
teórica relacionada aos aspectos Indígenas na educação básica, superior e formação de
professores, encontrando, inclusive, referenciais teóricos que se alinham aos nossos estudos
durante elaboração deste escrito dissertativo.
Foram encontrados ainda, trabalhos voltados para a História e Cultura Africana e
Afro-Brasileira nos aspectos literários, análise de materiais didáticos, mídias jornalísticas,
estudos da arte voltados ao GT-21 da ANPED sobre formação de professores inicial e
continuada e políticas educacionais sobre a História e Cultura Africana e Afro-Brasileira e
acerca das cotas para as universidades. Outros trabalhos que abordavam a Cultura Indígena
foram encontrados, porém, numa abordagem direcionada ao ensino superior nas licenciaturas
interculturais e materiais pedagógicos direcionados para a formação de professores Indígenas
em suas comunidades.

Considerações Finais
A temática indígena e os saberes e práticas sobre o cotidiano escolar, desponta para a
compreensão de duas variantes. Em primeiro, a temática indígena a ser ensinada nas “escolas
diferenciadas” (termo atribuído pelo MEC), inseridas nas comunidades Indígenas em várias
regiões do país, o que não é o nosso foco de estudo, pois as mesmas possuem legislação
diferente das ofertadas pelas escolas de ensino regular (escolas não indígenas), e há muito
tempo valorizam a História e cultura de sua própria etnia nas escolas inseridas em várias
30

comunidades. Em segundo lugar, (e este é nosso campo de observação) a investigação da


temática Indígena abordando as várias etnias pertencentes ao país na educação básica de
ensino regular, que passaram ser ensinadas de maneira obrigatória após a promulgação da lei
11.645/2008, que estabelece tais concepções para as escolas de ensino básico, particulares e
públicas de todo o país.
Dentre os estudos mapeados, podemos perceber que os trabalhos dos Simpósios
Temáticos da ANPUH contribuíram trazendo novos olhares para os debates acerca das
políticas educacionais em outros locais do país sobre a questão Indígena e ainda as práticas
desenvolvidas por professores de História, na tentativa de implementação do que diz a lei
11.645/08, e neste sentido, apresentando semelhanças com nossa pesquisa quanto aos
objetivos, enfoque na legislação (lei 11.645/08) e no que concerne as práticas pedagógicas
sobre a temática Indígena brasileira.
Considerando o que foi apresentado, fechamos este texto afirmando que a produção do
Estado da Questão sobre o nosso tema de investigação foi muito importante. Sua realização
nos proporcionou o conhecimento sobre as produções científicas relacionadas à nossa
pesquisa, reforçando ou redirecionando as nossas categorias teóricas, possibilitando
conhecimento de referenciais fundamentais aos estudos realizados para o embasamento do
texto ora escrito.

REFERÊNCIAS
BRASIL, Presidência da República. Lei nº. 11.645, de 10 de Março de 2008. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm>. Acesso em: 1
mai. 2014.
MINAYO, Maria Cecília de Sousa; DESLANDES, Suely Ferreira; GOMES, Romeu.
Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 34 ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
NÓBREGA-THERRIEN, Sílvia Maria; THERRIEN, Jacques. O Estado da Questão: aportes
teóricos-metodológicos e relatos de sua produção em trabalhos científicos. In: FARIAS,
Isabel Maria Sabino de; NUNES, João Batista Carvalho; NÓBREGA-THERRIEN, Sílvia
Maria. Pesquisa Científica para Iniciantes: caminhando no labirinto. Fortaleza: EdUECE,
2010.
REUNIÃO NACIONAL DA ANPED, 32., 2009, Caxambu. Anais... Caxambu, (MG):
ANPED, 2009. Dispoível em: <http://32reuniao.anped.org.br/trabalho_gt_21.html>. Acesso
em: 10 jun. 2017.
REUNIÃO NACIONAL DA ANPED, 33., 2010, Caxambu. Anais... Caxambu, (MG):
ANPED, 2010. Disponível em: <http://33reuniao.anped.org.br/internas/ver/trabalhos-gt21>
Acesso em: 10 jun. 2017.
31

REUNIÃO NACIONAL DA ANPED, 34., 2011, Natal. Anais... Natal, (RN): ANPED, 2011.
Disponível em: <http://34reuniao.anped.org.br/index.php>. Acesso em: 10 jun. 2017.
REUNIÃO NACIONAL DA ANPED, 35., 2012, Porto de Galinhas. Anais... Porto de
Galinhas, (PE): ANPED, 2012. Disponível em: <http://35reuniao.anped.org.br/trabalhos/133-
gt21>. Acesso em: 10 jun. 2017.
REUNIÃO NACIONAL DA ANPED, 36., 2013, Goiânia. Anais... Goiânia, (GO): ANPED,
2013. Disponível em: <http://36reuniao.anped.org.br/trabalhos/179-trabalhos-gt21-educacao-
e-relacoes-etnico-raciais>. Acesso em: 20 jun. 2017.
REUNIÃO NACIONAL DA ANPED, 37., 2015, Florianópolis. Anais... Florianópolis, (SC):
ANPED, 2015. Disponível em: <http://37reuniao.anped.org.br/trabalhos/>.Acesso em: 10 jun.
2017.
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 28., 2015, Florianópolis. Anais... Florianópolis,
(SC): ANPUH, 2015. Disponível em: <http://www.snh2015.anpuh.org/simposio/public>.
Acesso em: 11 nov. 2015.
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 27., 2013, Florianópolis. Anais... Florianópolis,
(SC): ANPUH, 2015. Disponível em: <http://www.snh2013.anpuh.org/simposio/public>
Acesso em: 11 nov. 2015.
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 26., 2013, Florianópolis. Anais... Florianópolis,
(SC): ANPUH, 2015. Disponível em: <http://www.snh2011.anpuh.org/simposio/public>.
Acesso em: 11 nov. 2015.
3

A HISTORIOGRAFIA SOBRE A SECA NO CEARÁ:


SUJEITOS, FONTES E ABORDAGENS

Kércia Andressa Vitoriano Gonçalves*


Welligton Costa Borges**
Francisco Gleison da Costa Monteiro***

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo a análise de obras recentes que retratam a
seca no Ceará, partindo da perspectiva de que a seca é um fenômeno climático e social. O
trabalho abrange uma análise conceitual sobre os estudos da seca, com ênfase nos sujeitos
retirantes e nas migrações. Também procura ampliar as discursões sobre as abordagens
teóricas que foram dadas nessas pesquisas que, a partir do tema do trabalho e das migrações,
tem em suas análises a História Social Inglesa como ponto nodal de suas problemáticas, cuja
análise procura centrar nos sujeitos da classe menos favorecida da sociedade, aqueles que
estavam à margem da história.
PALAVRAS-CHAVE: Historiografia. Seca. Imigrantes.

Ao relatar problemas decorrentes das secas, é necessário analisar, através da


criticidade, as diversas perspectivas e imaginários que se constituiu sobre esse fenômeno.
Pois, se tornaram realidades que foram sendo apropriadas e cristalizadas através de visões
baseadas na pobreza, barbáries, fome, doenças, calamidades e atraso. Decorrente disto, a
imagem que se constitui sobre sertão está, até os dias atuais, diretamente ligada as secas.
Nesse sentido, tornou-se legitimo analises historiográficas, na qual, apresentam diversos
paralelos e perspectivas sobre o fenômeno e os sujeitos. Pensamentos voltados para a seca,
não somente como um fenômeno climático, mas social, que se constitui como base de
modificações de vidas. As visões sobre seca e migrações tem fundamentado produções de
trabalhos hegemônicos, sobretudo da memória cearense. Parte dessas produções, se constituiu
através da historiografia, ponto nodal na produção deste artigo. São história de homens e
mulheres, jovens e crianças, que deixavam seu local de origem, suas vidas, para moldarem
novas perspectivas em algum lugar que lhes garantam o sustento.
A seca se tornou sinônimo de retirantes, que assolados pela fome, erem obrigados a
vagar pelas estradas e cidades, na procura de subsídios para sobrevivência. Porém, é
importante que se desconstrua o imaginário de que a seca lhes oferecia somente miséria, esse

* Graduanda em História pela Universidade Federal do Piauí – CSHNB e aluna veiculada ao Programa de
Educação Tutorial, PET conexão de saberes: cidade, saúde e justiça.
**
Graduando em História pela Universidade Federal do Piauí – CSHNB e aluno veiculado ao Programa de
Educação Tutorial, PET conexão de saberes: cidade, saúde e justiça.
***
Professor Doutor, ligado ao departamento de História da Universidade Federal do Piauí – CSHNB.
31

se constituía também como um momento em que o sertanejo mudava de rota e tinha


possibilidade de viver experiencias de vida e de trabalho. Nesse sentido, este trabalho
pretende analisar as diversas perspectivas sobre a seca e movimentos migratórios, observar as
modificações de vida dos sujeitos decorrentes no período de seca, o posicionamento político
de ajuda frente a problemática das multidões de flagelados, como também seu caráter social e
cultural na vida dos migrantes e das cidades que o recebiam.
O recrutamento de imigrantes como operários de obras públicas, tornou-se umas das
medidas governamentais para afastar as multidões de flagelados das cidades, e enquadrava-se
nas novas experiências que os migrantes adquiriam no decorrer de suas caminhadas. Essa
linha de análise é observada, sobretudo na Tese do autor Tyrone Apollo denominada
Proletários da Seca: Arranjos e desarranjos nas fronteiras do trabalho, onde aborda os
trabalhos destinados aos migrantes, através das comissões de socorros. Ao decorrer do
trabalho, o autor afirma que para que se tivesse acesso aos socorros, por parte das comissões,
eram impostas as condições de prestarem serviços em obras públicas, a exemplo deste fato
cita algumas ferrovias, entre elas as de Sobral e Baturité, sendo construídas, em quase sua
totalidade, pelos flagelados. A vertente de analise abordada pelo Tyrone Apollo torna-se
importante pelo fato de nos possibilitar visualizar as “soluções”, através dos imigrantes, que a
população cearense teve, sobretudo para satisfazer os interesses da elite local.
Os interesses da elite estavam diretamente ligados as necessidades dos retirantes, na
qual aproveitavam-se de suas condições para explorarem nas obras públicas, ou seja, não se
tinha uma via de mão dupla, mas constituiu-se uma exploração velada pelos discursos de
caridade e bondade. Nesse sentido o autor Frederico de Castro Neves afirma que:

Todas essas atividades e representações, entre muitas outras, apresentavamse como


partes de um conjunto composto por inúmeras ações de caridade, que era seu
elemento motivador e legitimador. Com isso, a caridade recobria o tecido social e
entrelaçava seus fios, constituindo-se como elemento organizador da relação com
os pobres e legitimador da ordem social que naturalizava a pobreza. (NEVE, 2014:
118)

Ou seja, na perspectiva apresentada pelo autor na citação acima, a caridade servia de


elo que ligava a sociedade, como também um meio de ligação com os pobres. Mas é
importante ressaltar que haviam diferentes formas de caridade. A caridade tida pelo autor
como “oficial”, era advinda das comissões de socorros, comissão essa responsável pelo
acolhimento e ajuda aos retirantes das secas, na qual, era organizada pelo Império. Essa forma
de ajuda particular era exercida pelo Estado e tinha como figura principal o imperador, isto é,
31

os migrantes, a priori dependiam das “esmolas” dadas pelas comissões, porém, essas mesmas
comissões eram as responsáveis por direcionar os flagelados da seca para trabalhos de obras
públicas, apresentados pelo autor como sendo de caráter explorativo e abusivo.
Na perspectiva abordada, os imigrantes recrutados para construírem obras públicas,
contribuía para o desenvolvimento da nação, ou seja, conflito entre modernidade e pobreza.
Afinal, utilizar-se de milhares de pessoas, pobres, sem esperanças, desprovidas de subsídios
básicos para sobrevivência, como meio de aproveitamento, economia e lucros, já que seria
inevitável dispor de recursos para o acolhimento dos pobres. A mudança de rotina, o
deslocamento de seus locais de origem, interferiam diretamente na vida daqueles indivíduos,
sendo a fome o elemento principal de mudança de vida. A quantidade de retirantes nos
períodos de seca era numerosos e isso interferia também na vida e rotina de cidades, nesse
sentido os imigrantes eram vistos como um problema e algo que deveria ser combatido pelos
órgãos públicos.
A visão que se tinha sobre os retirantes era de medo e insegurança, pois, em algumas
cidades e fazendas, havia relatos de furtos e saques por onde os imigrantes passavam. A
exemplo dito, na tese no autor Tyrone Apollo, é apresentado que em Quixeramobim, em
1877, foram relatados casos de grupos armados furtando locais, passando por todos os
obstáculos para tentar saciar sua fome. Nesse sentido o medo tornava-se inevitável dentro
desse contexto de barbárie, onde, decorrente disto as ações caridosas, não consistiam na
bondade das pessoas, mas ajudavam os flagelados, simplesmente pelo receio de saques e
violência. Sendo assim, o autor afirma que diversas pequenas obras eram propostas aos
imigrantes, para que pudessem dar-lhes ocupação por um curto período.
Não somente nas fazendas, as medidas foram utilizadas em cidades, sobretudo as de
litoral, local de refúgio bastante procurado pelos retirantes, por isso, as construções e obras
oferecidas aos retirantes tornava-se a medida mais urgente, na tentativa de evitar aglomerados
e badernas na distribuição das ajudas advindas das comissões de socorros. Para além da
caridade, essas medidas tornaram-se uma forma de controle daqueles indivíduos, ou seja, o
trabalho como forma de ajuda, surgiu não somente para suprir as necessidades dos retirantes,
mas como forma de crescimento e melhoramento das cidades. Entretanto, segundo o autor,
somente as cidades não eram suficientes para recrutar os milhares de flagelados, por isso,
tornou-se necessário levar os retirantes para trabalharem em grandes obras como estradas de
ferro, reformas de portos, construção de açudes, entre outras obras, pois, na mesma medida
que retirava os retirantes dos grandes centros, crescia a mão de obra para construção das obras
públicas.
31

Entretanto, cabe aqui problematizar que apesar de serem oferecidos trabalho, os


retirantes não estavam em seu todo satisfeitos, pois, o engajamento nas obras estava distante
de ser algo espontâneo e benéfico. Os trabalhos eram constituídos de rotinas exaustivas e
disciplina intensa, como também assolados pela falta constante de subsídios básicos como
água e comida, sendo os alojamentos aglomerados de pessoas, expostas a doenças e
desconforto, muitas dessas problemáticas contribuíam para alguns retirantes recusarem o
trabalho. É importante ressaltar que o trabalho oferecido pelas comissões de socorros, para
além do discurso de caridade, idealizava o trabalho como sendo algo para cidadão de bem e a
falta deste para vagabundo ou mesmo mendigo. Nesse sentido afirma o autor Tyrone Apollo
que:

A promoção do trabalho nas obras de socorros públicos encontrou, dessa forma, a


renitente oposição dos retirantes que, a cada situação enfrentada no dia a dia dos
tempos de seca, se revelavam como uma composição de gente agitada e resistente.
Por diversos meios, os imigrantes das secas contrapunham os esquemas de controle
criados pelas autoridades suas próprias convicções acerca do que julgavam que
deveria prevalecer enquanto socorro aos pobres. A cada situação vivida nos tempos
de estiagem – nas retiradas por estradas, vilas e cidades, nos momentos de
embarque em vapores, nas jornadas dos abarracamentos improvisados, na
formação das turmas de operários em cidades, ferrovias e açudes, nas horas dos
pagamentos... - os grupos de retirantes faziam pressão sobre agentes de socorros,
chefes de turmas, engenheiros, policiais, interferindo de diferentes modos na
dinâmica dos sistemas de assistência montados. Valendo-se de suas formas
cotidianas de resistência, desviavam como podiam os mecanismos de controle
através de um complexo jogo de forças com as autoridades. (TYRONE, 2014: 21)

Ou seja, a mudança de visão por parte dos retirantes tornava-se inevitável, pois
estavam a todo momento lidando com diferentes dimensões de aprendizado, na qual eram
preenchidos nos períodos de seca. No entanto essa visão que se tinha dos retirantes, como
sendo flagelados, uma população fadada a estancar-se nos períodos de seca, sendo incapazes
de conseguir sustentar-se nos períodos de penúria, eram tidos também como uma população,
que através da fome eram levados a barbárie, indo diretamente contra a civilização elitista
urbana. O imaginário que desqualificava aquela parcela da sociedade, afirma o autor, que
ficou impregnado no pensamento das pessoas na época, sendo necessário justificar os diversos
mecanismos de controle aplicado sobre os retirantes na época.
É importante salientar que tal visão, pode ter moldado o modo como a construção
histórica dos indivíduos se constituiu, como sendo frágeis e incapazes. Esse olhar
influenciava, até mesmo o pensamento sobre os movimentos sociais de revolta desenvolvido
pelo grupo, havendo essa contraposição entre trabalhadores urbanos e trabalhadores rurais.
Podemos citar, nesse sentido o pensamento de Eric Hobsbawn que identificava como sendo
31

movimento pré-políticos aqueles que ainda não haviam encontrado uma língua específica para
expressar seus pensamentos em relação ao mundo. isto é, o pensamento político dos
camponeses não haviam aflorado a ponto de formações de grupos de protestos políticos, ou
pelo menos não eram muitos, mas, segundo o autor José de Souza Martins (1986), somente na
década de 1950, com a aparição de ligas camponesas e com a atuação do PCB, como também
de alguns setores da igreja, que uma maioria de camponeses começou interessar-se pela
política.
Tornou-se importante problematizar, se os flagelados da seca possuíam consciência de
classe, ou, como demostram alguns estudos da historiografia, seriam apenas sujeitos, que
através da fome, eram levados a cometer violência pela barbárie. Nessa perspectiva, o autor E.
P. Thompson, na sua renomeada obra, afirma que consciência de classe operaria não é
determinada de uma hora para outra, ela se constituiu e participou ativamente desse fazer-se.
Sobre concepção de classe explica:

Não vejo a classe como estrutura, nem mesmo como uma categoria, mas como algo
que ocorre efetivamente e cuja ocorrência pode ser demonstrada nas relações
humanas (...) a noção de classe traz consigo a noção de relação histórica (...) A
classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiencias comuns
(herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses
diferem (e geralmente se opõem dos seus). (THOMPSON, 1987: 9-10)

Na concepção de Thompson, o proletariado não precisaria de um guia para adquirir


consciência, pois é constituída através das ações de homens e mulheres. A exemplo disto,
pode-se demonstrar os “protestos” os alguns proletários da seca faziam em obras públicas,
sobretudo decorrentes dos maus tratos praticados contra os mesmos. Pois, o que deveria ser
uma situação excepcional, tornou-se uma medida recorrente de trabalho para os retirantes.
Entretendo, o que deveria ser algo de aprendizado, como também medida passageira, tornouse
um meio de protesto, onde os retirantes burlavam ordens superiores. Segundo Tyrone Apollo,
as obras de socorros públicos, constituiu-se como aprendizados de para formas de resistência,
de colaborações mutuas e estabelecimentos de laços.
O autor Tyrone Apollo, cita em sua tese, que durante a construção da estrada de ferros
de Baturité, muitos retirantes se recusarão a engajar, pois não havia qualquer ajuda e
assistência aos trabalhadores que ali chegavam, talvez por esse fato, quando as comissões de
socorro em Fortaleza anunciaram, quase nenhum retirante se prontificava no engajamento.
“Possivelmente temiam que, uma vez internados no sertão, não pudessem mais contar com o
fornecimento de alimentos que, ainda que de forma precária, era feito em Fortaleza.” (P. 37).
31

A segregação e a escolha do gênero eram feitas conforme as condições que o trabalho exigia,
como por exemplo na obra de Baturité só eram aceitos homens, solteiros ou que tivessem
família em pequeno número.
Para além dos conflitos, as obras públicas eram locais de solidariedade e união,
sobretudo pelos retirantes, pois a solidariedade legitimava-se como forma de superar as
situações difíceis enfrentadas pelos mesmos. Os retirantes enfrentavam dificuldades
compartilhadas, como o baixo salário, falta de comida, água e roupas, situação degradante
vivenciada em conjunto, por esse motivo os conflitos tornavam-se inevitáveis. O autor Tyrone
nos dá um exemplo:

Henrique Theberge não pôde conter o surgimento de conflitos violentos em seu


distrito. No mês de fevereiro de 1878 um grupo de retirantes voltou-se contra um
chefe de turma odiado e o espancou, em consequência do que dias depois veio a
falecer. As circunstâncias desse conflito são esclarecedoras do grau de tensão
vivenciado nos abarracamentos de Fortaleza durante a seca. Aquele chefe de turma,
Felipe Manuel Pedrosa, era “incumbido de fazer a polícia das barracas”. Certo
dia, não se sabe a razão pela qual, ordenara a prisão de dois retirantes que foram
amarrados, “depois do que mandou esbordoá-los por um grupo de cacetistas”.
Com a oposição de “alguns parentes dos presos”, os próprios cacetistas
“revoltaram-se contra o intitulado inspetor, dando-se um conflito em que foi
horrivelmente espancado”. A reportagem do jornal, a partir da qual foram
reconstituídos esses acontecimentos, afirmava que “Pedrosa era malvisto pelos
retirantes por tratá-los mal”. (TYRONE, 2014: 39-40).

Segundo o autor era algo possível que a formação dos laços solidários, dava-se
diretamente pelo compartilhamento de dificuldades, principalmente na construção da estrada
de ferro de Baturité, pois o cotidiano do local era repleto de castigos, dificuldades, os
trabalhos em condições degradantes, fome e doenças, ou seja, muitas das ações de revoltas se
davam por momento de fúria e ódio, por serem obrigados a passarem pela situação de
desgaste e sofrimento. Para o autor, se faz importante relatar que muitos desses sentimentos
eram alimentados em conversas paralelas entre os próprios trabalhadores, normalmente depois
de terem passado por alguma situação ruim, como trabalho pesado ou reclamações, pois, os
engenheiros eram constantemente acusados de opressores.
O compartilhamento dessas dificuldades, os laços de solidariedade construídos pelos
retirantes, afirma o autor, que eram preciosos, sendo usado como meio para lidar com a
opressão e serviam também como meio de reinvindicação, a exemplo disto relata o autor que:

As jornadas de trabalho naquela grande obra ao que parece deram motivos para
serem forjadas estreitas relações entre parceiros de trabalho que construíam às
vezes amizades consolidadas ao longo da vida. Afinal de contas, daquela turma que
se engajou nos trabalhos do prolongamento de Baturité ao menos dezesseis homens
31

voltariam ainda a se encontrar na nova seca de 1889 trabalhando novamente em


obras de socorro público. (TYRONE, 2014: 41)

Isto é, para além das alianças em revoltas, muitos dos trabalhadores se encontravam,
posteriormente em outras obras para novamente trabalharem juntos. Os laços poderiam ser
cultivados por longos anos, até porque, ao serem assolados pela seca novamente, muitos
retirantes saiam a busca de socorros e consequentemente instalavam-se em obras públicas. Já
que essa medida se constitui como um meio de afastar os retirantes das grandes cidades,
sendo uma medida de controle, como também em forma de lucros a partir dos trabalhos
braçais dos mesmos.
Nesse sentido, o que se pode perceber nessa vertente abordada é que a migração não
era um elemento neutro, em que sujeitos saiam a vagar sem destino. Pelo contrário, o que o
autor Tyrone pode nos mostrar é que os retirantes eram sujeitos pensantes e que, a sua
maneira, lutavam pela subsistência diária, não eram simples fantoches nas mãos das
comissões de socorros, mas não se conformavam com os maus tratos e opressões. A seu
modo, adquiriam experiências novas. Tornaram-se sujeitos acarretados de estereótipos,
principalmente relacionados a seca, como também tomados como bárbaros e incivilizados.
Porém, sua consciência estava presente em suas ações. Consciência essa que, posteriormente,
servi-lhes como revolta contra os mandos e desmandos de superiores.
A perspectiva abordada pela autora Kênia Sousa Rios, em seu livro Isolamento e
Poder: Fortaleza e os campos de concentração na Seca de 1932, demonstram uma visão da
seca baseada no surgimento dos campos de concentração em Fortaleza, que para além de uma
cidade de sol, cores e beleza, escondia-se escuridão de sofrimento. Ao decorrer da pesquisa, é
relatado que muitos imigrantes buscavam abrigo em cidades grandes, como já relatado
anteriormente, entretanto, assim como em outras cidades, os retirantes que chegavam a
Fortaleza eram marginalizados. Nesse sentido, durante a seca de 1932, havia o desejo de
afastar os flagelados dos grandes centros, sendo assim foram criados centros de isolamentos
para os retirantes. O governo construiu sete campos de concentração para isolar os sertanejos,
sendo eles construídos em pontos estratégicos, para garantir o afastamento de uma maior
quantidade de imigrantes.
Pode-se perceber que em todas as vertentes já abordadas os retirantes são
marginalizados, tidos como bárbaros e miseráveis. Levados para trabalhos árduos pelas
comissões de socorros nas obras públicas ou isolados em campos de concentração, essas
medidas se constituíram como meios de afastar essas multidões pobres e famintas dos grandes
centros e das elites locais. Pois, os mesmos configuravam-se como sujeitos bárbaros e
31

perigosos para o bom funcionamento da sociedade. Para a autora, os campos de concentração


é um dos meios para se entender a construção de locais de isolamento da pobreza frente ao
medo da polução urbana.
A autora Kênia Sousa firma que os retirantes caminhavam longos trechos até encontrar
estradas que ferro que os levassem as cidades. Os trens levavam uma grande quantidade de
retirantes para Fortaleza. Nesse sentido relata que “De modo bastante recorrente, os jornais da
Capital publicavam matérias sobre a chegada diária de centenas de retirantes. No jornal O
Povo do dia 13 de abril, havia, por exemplo, a seguinte manchete: “Mais dois trens entulhados
de famintos se dirigem a esta capital”. (RIOS, 2014: 18)
Porém, como medida de controle o governo suspendeu a distribuição de passagens nos
trens que saiam do sertão em direção a Fortaleza. No entanto, ao decorrer do livro, a medida
de restrição não foi suficiente para conter os retirantes, pois estavam decididos a sair do sertão
e chegar até a cidade, acabando por invadir os trens e chegar ao destino previsto. Os locais
mais atingidos pela seca, detinham a maior concentração de pessoas nas estações de trens, na
qual saiam todos os dias trens lotados transportando esses indivíduos. Para a autora, as
estações de trens acabavam sendo um local de tensão e conflito entre os retirantes e policiais
locais.
Como já relatado anteriormente, a autora cita a estrada de ferro de Baturité, tida pelo
autor Tyrone como sendo uma das obras públicas que os retirantes foram engajados, como
sendo, após sua construção, um dos locais que configuravam-se como pontos de passagem
dos retirantes, pois a construção de mais uma estrada de ferro não se tornaria apenas um meio
de crescimento de cidades, mas um meio de refúgio para os sertanejos, como também pontos
de tensão, sendo um local que muitos retirantes abrigavam-se na espera de passagens para a
cidade. Os trens se configuravam também como um meio de transporte eficaz para fugir do
sertão seco e sem meios para subsistências, pois diminua a quantidade de quilômetros que os
retirantes percorreriam a pé, sendo essas longas viagem responsáveis por levar a vida de
muitos deles, durante o percurso.
Estrategicamente, os campos de concentração, segundo a autora, eram construídos
próximos as estradas de ferros, pois desse modo o governo conseguia controlar as tensões
frequentes nas estações, como também evitar que as multidões de retirantes conseguissem
chegar aos centros da cidade. Os campos de concentração, constituíam-se como mais um meio
de controle da vida sofrida dos retirantes, por esse fato o meio de aprisionamento era bem
próximo as estradas de ferro, paralelo entre o caminho de terra do sertão e as estradas de ferro
da cidade. Porém, é importante ressaltar, que mesmo os campos de concentração localizadas
31

próximo as estradas de ferro, alguns retirantes conseguiam chegar até o grande centro de
Fortaleza onde os ricos residiam e passeavam.
Na concepção da autora Kênia Sousa, após a suspensão da distribuição de passagens
do sertão para Fortaleza, não configurou-se como meio de diminuição da chegada dos
flagelados a cidade, pois os vagões de trens continuavam chegar lotados de imigrantes, sendo
muitos deles despejados próximos ao litoral da cidade, onde muitos construíam seus sobrados
por ali mesmo, configurando-se como fato para surgimento das favelas na cidade de
Fortaleza. A presença dos retirantes, para além de mãos de obras, foram responsáveis pelo
aumento da marginalidade e prostituição na cidade, fato esse que contribuía para a
desvalorização de imóveis por um período longo. Como já afirmado, os campos de
concentração e o engajamento nas obras públicas, foram meios utilizados para o afastamento
dos retirantes, o isolamento dos tais da elite local. Sobre esse fato a autora firma que:

A fixação dos retirantes nas proximidades dos trilhos foi se alargando por toda a
extensão da linha férrea dando origem a uma das maiores favelas de Fortaleza: a
favela do trilho, que corta a cidade, em um “estirão”, de uma ponta a outra. Nesse
movimento, os retirantes deixaram de ser flagelados e passaram a ser favelados.
(RIOS, 2014: 31)

Porém, para além da ajuda advinda do governo através das obras públicas e das
comissões de socorros, na percepção da autora, a elite da sociedade de Fortaleza, também se
empenhavam em ajudar os flagelados da seca. Com discurso de caridade, a elite local
organizava evento para que se conseguisse arrecadar ajuda em prol dos retirantes. No período
de carnaval, a população de Fortaleza se esbaldava nas festas luxuosas da cidade, porém
sofriam críticas por parte da igreja católica, na qual refutava que enquanto muitos sertanejos
sofriam com as calamidades da seca no sertão, a elite se divertia nas luxuosas festas
carnavalescas, regadas a luxo e requinte. Enquanto a elite divertia-se, os cristãos
conservadores da igreja rezavam pelas pobres almas flageladas pela seca e em luto.
No entanto, segundo a autora, os foliões divertiam-se despreocupados, divertiam-se no
requinte da festa, pois também cumpriam com seus deveres humanistas de caridade, ou seja, a
caridade vinha por parte de quem divertia-se durante as festividades, quanto dos que rezavam
para os flagelados da seca. Pois, muitos desses grupos publicavam nos jornais suas obras
caridosas, sendo um meio utilizado até mesmo para crescimento político.
Algo importante relatado pela autora, está presente no exemplo no carnaval de 1916.
Constituiu-se como período da grande seca, que desde 1915 assolava o Ceará. Nesse sentido,
os jornais locais publicavam protestos para que não houvesse a comemoração na cidade. Em
32

meio ao embate, surgiu a proposta de que houvesse sim a festividade, mas que tudo que fora
arrecadado fossem doados em forma de ajuda aos flagelados da seca. Por esse motivo a elite
podia divertir-se sem nenhum ressentimento e esbaldar-se nas luxuosas festas, ou seja,
utilizaram-se do discurso de uma caridade invertida para justificar a participação das
festividades. A burguesia local, legitimavam sua participação nas festividades durante a seca,
com discurso de que estavam cumprindo seu dever humanista de caridade.
Os jornais locais, era dito pela autora, como um meio de propagar os feitos da elite em
forma de caridade, pois publicavam e propagavam os bailes luxuosos em prol dos flagelados
com o mesmo empenho que publicavam sobre os bailes carnavalescos. Eram organizados
bingos, torneios esportivos, festas dançantes, entre outras, que segundo a autora,
constituíamse como meio de ajuda aos retirantes.
No entanto, cabe problematizar que esses meios de caridade utilizados pela elite, como
também pelos cristãos, constituíram-se como meio de controle dos retirantes, na tentava de
transforma-lhes em “civilizados”. A caridade na época era utilizada como meio de controle e
isolamentos dos indivíduos, todas as práticas utilizadas pela elite e cristão visavam manter
controle sobre as ações dos retirantes, para que diminuísse os saques, prostituições e protestos
dos mesmos. Como já relatado, os retirantes eram vistos como bárbaros, marginalizados e não
civilizados, um grupo de pobres homens que não conseguiam nem mesmo os subsídios
básicos para sobrevivência.
Pode-se observar, através das perspectivas abordadas, que a visão constituída sobre os
retirantes da seca está ligada diretamente à pobreza, barbárie, miséria e marginalidade. A
multiplicidade de usos da seca é transformada em usos e práticas de caridade e ajuda. As
formas pela qual os retirantes são tratados demonstram o pensamento humanístico que se
tinha na época. Porém, cabe ressaltar que para além do discurso de caridade e pensamento
humanista, a elite local e o governo se utilizavam desses meios para isolar os retirantes e
afasta-los dos grandes centros. Os imigrantes, constituíam-se como forma de desvalorização
dos espaços, pois retirantes acabou tornando-se sinônimo de sofrimento e pobreza. As práticas
de isolamento, acabou por ser uma pratica recorrente da elite cearense, pois, de maneira
rigorosa ou não o aprisionamento dos indivíduos que incomodavam era uma prática de grande
recorrência, sejam eles com discursos explícitos ou encobertos pelo discurso de caridade.
O afastamento dos retirantes, através do engajamento nas obras públicas, para além de
uma maneira de restrição, constituiu-se como forma de crescimento de cidades, pois, a mão de
obra dos retirantes contribuiu para construção de grandes obras públicas dentro do Estado do
Ceará, a exemplo, como já fora dito, está a estrada de ferro de Baturité e a ferrovia de Sobral.
32

O isolamento nos campos de concentração foi uma das abordagens utilizadas para o
entendimento da visão que se tinha sobre os retirantes. Afastar-lhes dos centros, impedido de
saírem do sertão, com restrições de passagens, como também os prenderem nos campos, foi
uma das medidas utilizadas também pelo governo e sociedade. Porém, cabe ressaltar que os
retirantes eram sujeitos pensantes, que protestavam e reivindicavam seus direitos, a exemplo
os subsídios básicos para conseguirem trabalhar, como água, comida e vestimentas.
Tornou-se perceptível como essas medidas de isolamento foram cobertas pelo discurso
de caridade presente na época. A caridade das elites, eram publicadas em jornais, como forma
de propagarem esse discurso e sendo também utilizados como reforço de discursos político,
sendo ela um elemento motivador e legitimador da ordem social. Através da filantropia
legitimava-se o discurso humanista de ajuda e solidariedade, como também sendo utilizada
como meio de restrição dos retirantes e tentativas de “afastar-lhe” aquele povo da barbárie e
“trazer-lhes” a civilização, mantendo assim a boa ordem social. Preocupação essa recorrentes
entre as elites de Fortaleza, na qual se legitimavam pelo discurso de poder e ordem. Sendo a
caridade um laço que entrelaçavam os fios da sociedade, constituindo-se como um meio
organizador das relações entre pobres e ricos, legitimando e naturalizando a pobreza, através
da ordem social.
Em todos os autores e trabalhos abordados, pode-se perceber que o uso dos indivíduos
marginalizados, constituiu-se como método extraído da História Social Ingressa, que via nos
grupos marginalizados um meio para se entender a sociedade. Ou seja, a partir do momento
que os autores observaram a sociedade cearense, por meio da vida dos retirantes, escreviam
uma História vista de baixo, uma escrita utilizando sujeitas excluídos da sociedade. Sujeitos
que não tiveram voz, mas participaram da construção de sociedades, contribuindo socialmente
e culturalmente para a história daquele local abordado. Nesse sentido, tornou-se perceptíveis
que as abordagens dos sujeitos demonstrados, utilizaram fontes diferentes, mas seus métodos
de análise foram os mesmos.

REFERÊNCIAS

BARBOZA, Edson Holanda Lima. A hidra cearense: rotas de retirantes e escravizados entre
o Ceará e as fronteiras do Norte (1877-1884). Doutorado em História Social. São Paulo:
PUCSP, 2013.

CANDIDO, Tyrone Apollo Pontes. Proletários das Secas: Arranjos e Desarranjos nas
Fronteiras Do Trabalho (1877-1919). Doutoramento em História Social. Fortaleza: UFC,
2014.
32

HOBSBAWM, Eric. Rebeldes primitivos: estudos sobre formas arcaicas de movimentos


sociais nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.

MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: HUCITEC, 1986.

NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: saques e outras ações de massa no


Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

RIOS, Kênia Sousa. Isolamento e poder: Fortaleza e os campos de concentração na Seca de


1932. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2014.

THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. 3ª edição, Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1997.
32

OS RESÍDUOS MEDIEVAIS CULTURAIS E LITERÁRIOS


NOS POEMAS DE PATATIVA DO ASSARÉ

Larissa Araújo de Almeida1

RESUMO: A literatura brasileira, assim como a origem de seu povo, é bastante diversa.
Independentemente do nível de uma sociedade, as criações artísticas da atualidade estão
permeadas por um legado cultural da história humana, ocorrido através dos tempos e
encontrando-se presentes nos mais diversos tipos de literatura. No Brasil existe uma Literatura
Popular permeada de elementos memoriais, cristalizados, que traz à tona uma cultura e
folclore do povo. A Idade Média é destacada como enfoque por ser um rico período,
impregnado pelas mais diversas formas e conteúdo de escrita, aproximando-se do popular, da
música, trazendo as grandes cantigas trovadorescas – líricas ou satíricas – além de ser
conceituada como um berço cultural e literário tão encantador que segue, através dos tempos,
influenciando a humanidade. Os trovadores foram os principais alicerces e precursores para a
futura Literatura de Cordel, principalmente na vasta região nordestina do Brasil, onde criou
raízes e imortalizou-se no imaginário dos poetas cordelistas e cantadores repentistas. Dentre
estes artistas, destaco um humilde poeta e agricultor, Antônio Gonçalves da Silva, mais
conhecido por seu apelido, Patativa do Assaré. Já que a cultura e literatura nordestina são tão
peculiares e vastas, existirão resíduos medievais nas poesias “patativanas”? À luz da Teoria
da Residualidade, método investigativo desenvolvido pelo professor e poeta, Roberto Pontes,
serão verificados alguns dos vastos resíduos que permaneceram na poesia de Patativa,
delimitada na obra Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador nordestino, seu maior
sucesso editorial.
Palavras-chave: Teoria da Residualidade. Patativa do Assaré. Poesia medieval.

INTRODUÇÃO
A literatura pode ser definida como a arte de compor prosa, verso e também como um
conjunto de trabalhos literários de uma determinada época ou de um país. Em busca de um
conceito mais amplo, o crítico e sociólogo Cândido (2004), diz que a literatura também pode
ser considerada como

todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de


uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos de folclore,
lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das
grandes civilizações. (2004, p.176).

Independentemente do nível de uma sociedade, as criações artísticas da atualidade


estão permeadas por um legado cultural da história humana, ocorrido através dos tempos e
encontrando-se presentes nos mais diversos tipos de literatura. O texto literário é passível de
interpretação, como qualquer outro, devendo ser considerado também como um todo

1
Mestranda em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC) – larissassa@hotmail.com
32

comunicativo de sentido. Sendo assim, essa relação comunicativa tem relação direta com a
mentalidade2 da comunidade que o produziu, basta observar os elementos devidamente
cristalizados3 nessa sociedade. Assim, no Brasil, existe uma Literatura Popular permeada de
elementos memoriais, cristalizados, que traz à tona uma cultura e folclore do povo. Diante
deste cenário, é evidenciada neste artigo a Literatura Popular, em especial, do Nordeste
brasileiro, uma temática que apesar de pouco abordada durante a formação do curso de Letras
no Brasil, afirma-se cada vez mais abrangente, instigante e, principalmente, como marca da
cultura de um povo tão especial quanto o nordestino.
O conjunto de formas simples da arte verbal do povo é definido como Literatura
Popular, que traz legados, reminiscências, resíduos dos povos das épocas antigas, trazendo à
tona uma indiscutível influência do passado na história presente. No nordeste brasileiro, não
foi diferente. Além disso, os legados culturais são responsáveis por contribuírem para a
formação cultural e literária dos povos contemporâneos em qualquer lugar do mundo.
Considerando-se que o Brasil foi “descoberto” na era medieval, a enorme bagagem trazida
pelos portugueses foi, sem dúvidas, a cultura. Aportaram, neste país, trovadores e artistas
populares que trouxeram em sua bagagem cultural o que alguns consideravam ser as origens
da Literatura Popular, porém, a Literatura desenvolveu temáticas próprias e hoje ultrapassa
um século de história e tradição oral. Ademais, os trovadores foram os principais alicerces e
precursores para a futura Literatura de Cordel, principalmente na vasta região nordestina do
Brasil, onde, a partir da capital baiana, dos portos marítimos e adentrando no interior dos
estados, criou raízes e imortalizou-se no imaginário dos poetas cordelistas e cantadores
repentistas. Dentre estes artistas, destaco um humilde agricultor Antônio Gonçalves da Silva 4,
mais conhecido por seu apelido, Patativa do Assaré, em uma belíssima referência a um
pássaro cantador que habita na região de Assaré, Ceará.

2. TEORIA DA RESIDUALIDADE E PATATIVA


Já que a cultura e literatura nordestina são tão peculiares e vastas, existirão influências
medievais nas poesias “patativanas”? Se existirem, quais poderiam ser apontadas e
analisadas? Esta suposta influência poderá ser assemelhada aos resíduos, às reminiscências

2
Conceito relacionado à Teoria da Residualidade, diz respeito ao que permanece no povo, um conjunto de
manifestações psíquicas e intelectuais presentes na memória.
3
Outro conceito da referida Teoria, relacionado ao que está na mentalidade dos povos e que virou tradição.
4
Nascido dia 5 de março de 1909, foi um poeta popular, repentista, cantador e compositor. Sua perda parcial da
visão, aos dois anos de idade, nunca foi impedimento. Seus livros, traduzidos em vários idiomas, já chegaram a
ser tema de estudos na Sobornne, na disciplina de Literatura Popular Universal. Faleceu em oito de julho de
2002, no mesmo município em que nascera, Assaré.
32

medievais no objeto de estudo? De que maneira a poesia de Patativa apresenta hibridação5


cultural com o medievo? À luz da Teoria da Residualidade6, método investigativo
desenvolvido por Roberto Pontes7, serão verificados quais resíduos permanecem na poesia de
Patativa, delimitada na obra Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador nordestino,
seu maior sucesso editorial. Para compreender a Residualidade, termo que, inicialmente fora
utilizado na dissertação de mestrado de Pontes e, posteriormente, publicada em livro, de título
Poesia insubmissa afrobrasilusa8, parte-se da afirmação de que todas as relações humanas
geram o que se pode chamar de resíduos.
A conceituação da Residualidade está nos estudos de Pontes que, a partir das
considerações do sociólogo Alberto Guerreiro Ramos na obra Introdução à cultura9, sugeriu
o conceito de resíduo articuladas com as do crítico de cultura Raymond Williams, na obra
Marxismo e Literatura10, que conceitua o resíduo como algo “efetivamente formado no
passado, mas que ainda está ativo no processo cultural, não só como elemento do passado,
mas como um elemento efetivo do presente11”. Enquanto teoria e método, a Residualidade
tem a preocupação de estudar como se dá a ocorrência do resíduo em um determinado
momento. Vale destacar que residual é diferente de arcaico. Ambos formaram-se no passado,
mas o arcaico iniciou-se e findou-se no passado, sua retomada e uso em tempos atuais
certamente causa estranhamento. Já o residual está ativo no processo cultural do presente, é
valorizado e estimado, por isso, a Residualidade cultural e literária do passado está
visivelmente presente nas obras artísticas do presente. A partir desse pressuposto, a Idade
Média foi aqui escolhida para enfoque por ser um rico período, impregnado pelas mais
diversas formas e conteúdos de escrita, aproximando-se do popular, da música, trazendo as
grandes cantigas trovadorescas – líricas ou satíricas –, além de ser conceituada como um
berço cultural e literário tão encantador que segue, através dos tempos, embalando a criação
artística e poética mundo afora.
A Literatura de Cordel traz uma leitura musical de épocas passadas que a memória
popular nordestina propaga através dos seus poetas trovadores, versando numa linguagem

5
Cruzamento entre indivíduos, mentalidades, culturas diferentes na variedade ou espécie formando um todo
novo.
6
A Teoria da Residualidade, formulada pelo Prof. Dr. Roberto Pontes, é registrada junto à Pró-Reitoria de
Pesquisa e pós Graduação da Universidade Federal do Ceará e ao Conselho Nacional de Pesquisa – CNPq.
7
Poeta, ensaísta, escritor e professor do Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará. Integrou
o Grupo SIN de Literatura.
8
PONTES, Roberto. Poesia insubmissa afrobrasilusa: estudo da obra de José Gomes Ferreira, Carlos Drummond
de Andrade e Agostinho Neto. Edições UFC, Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1999.
9
RAMOS, Guerreiro. Introdução à cultura. Rio de Janeiro: Cruzada da Boa Imprensa, 1939.
10
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
11
WILLIAMS, 1979, p.125
32

muito própria, sua alma, sua história e seus valores. Patativa do Assaré, considerado um dos
principais trovadores nordestinos, poeta de origem humilde e pouco escolarizado, revelou e
divulgou a poesia de cordel para o mundo através da sua poética marcada por traços de
oralidade, sendo um verdadeiro artesão da palavra falada numa linguagem matuta e
impregnada dos resíduos medievais. Este poeta sertanejo conseguiu descrever, liricamente, o
“prazê12 e o sofrimento” da vida no campo, denunciar as desigualdades sociais e a corrupção,
enaltecer valores como honradez, lealdade e disposição para o trabalho, dentre outras
temáticas populares, sempre de modo simples e, simultaneamente, profundo.
O que impulsionou a realização deste artigo foi perceber a grandeza e importância da
poética cordelista de Patativa, uma vez que notada a semelhança com a época medieval,
através de seus resíduos culturais e literários, inseridos nos estudos de Literatura Comparada e
Popular em verso. Sua poesia será evidenciada por meio de pesquisa bibliográfica, destacando
para a sociedade, em especial, ao povo brasileiro, a significância e importância de uma
literatura vinda do povo e para o povo. Ainda que muitos os artistas mereçam tal destaque no
meio acadêmico, o poeta de Assaré, doutor13 em várias universidades, traduz a simplicidade
em versos e faz brilhar os olhos de quem o lê. O foco deste artigo está em investigar, com
base na Teoria da Residualidade, quais resíduos culturais e literários da mentalidade medieval
se encontram presentes nas poesias deste matuto cearense. A referida teoria parte do
pressuposto de que assim como na natureza nada se perde, tudo se transforma, então, na
Literatura, nada é original, tudo é residual:

A Residualidade se caracteriza por aquilo que resta, isto é, remanesce, de um tempo


em outro, podendo significar a presença de atitudes mentais arraigadas no passado
próximo, ou distante, dizendo respeito também aos resíduos indicadores de futuro.
[...] Mas a residualidade não se restringe à categoria tempo, abrangendo
igualmente a do espaço, a qual nos possibilita identificar também a hibridação
cultural no tocante a crenças e costumes (PONTES, 1999, p. 27).

Esta concepção é depreendida ao se analisar as poesias de Patativa, que, apesar de ter


vivido do século XX e início do século XXI, traça relações com o período medievo europeu
ao abordar temas religiosos, costumes e características desta época remota. A literatura vinda
do povo, Literatura Popular, é bem dinâmica e flexível, atinge os mais diversos temas, com
objetivos múltiplos e vasta divulgação e aceitação social, tanto em meios populares, como nas

12
Escrito à semelhança da forma utilizada por Patativa do Assaré em seus textos, aproximando-se da forma oral
do falar nordestino não culto.
13
Em referência aos títulos de Doutor Honoris Causa recebidos pela Universidade Regional do Cariri (URCA),
Universidade Estadual do Ceará (UECE), Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade Federal de
Sergipe (UFS) e Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN).
32

elites acadêmicas. A Literatura de Cordel, também designada, principalmente no meio


acadêmico, como literatura de folhetos, caracteriza-se por sua tradição oral, suas marcas da
fala na escrita e o fato de sua poesia ser feita para ser lida, declamada ou mesmo cantada em
voz alta para um grande número de pessoas, mesmo as analfabetas ou com pouca instrução
escolar. Todas estas características são comuns às culturas que valorizam a oralidade, de
acordo com Paul Zumthor14. Na poesia de Patativa do Assaré, os traços da transmissão oral na
escrita são nítidos, pois ela assemelha-se à fala, porém, de acordo com Marcuschi (2010, p.
17) “a escrita não pode ser tida como uma representação da fala... Em parte, porque a escrita
não consegue produzir muitos fenômenos da oralidade”. A transcrição da obra de Patativa
para os meios gráficos, infelizmente, perde boa parte da significação expressa por meios não
verbais, como voz, entonação, pausas, ritmo, ou mesmo um pigarro e a linguagem corporal
através de expressões faciais, gestos. São estes elementos não verbais que realçam
características expressas unicamente no ato performático, tais como ironia, veemência,
hesitação, etc.
A complexidade da obra deste poeta popular é evidente também pela sua capacidade
de criar versos tanto nos moldes camonianos como poesia de rima e métrica populares (por
exemplo, a décima e a sextilha nordestina). Ele próprio diferenciava seus versos feitos em
linguagem culta daqueles em linguagem do dia-a-dia (denominada por ele de poesia matuta).
É muito intrigante notar que um agricultor cearense que pouco frequentou a escola pudesse
escrever uma forma clássica tradicional, difundida pelo italiano Francesco Petrarca, o soneto,
com tanta maestria quanto Camões, poeta clássico que imortalizou esta forma em Língua
Portuguesa. Na poesia de Patativa de Assaré de nome Mal de Amor (2008, p.180) tem esta
estrutura, assemelhando-se às cantigas pela musicalidade, esquema rímico e temática
amorosa.

Mal de amor

O doutor me falou que eu morro agora?


Não estou no seu dito acreditando.
Se dentro sinto o coração falhando,
Forte energia eu tenho aqui por fora.

Se o compasso no peito ele demora,


É porque está calado, recordando
O belo tempo em que viveu amando
E os lindos sonhos que já teve outrora.

14
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São
Paulo: EDUC, 2000.
32

Médico amigo, estas razões perdoe:


Muito enganado na receita foi;
O segredo não viu, senhor doutor.

Seu estudo, a ciência e seu diploma


Nunca podem saber nenhum sintoma
De um poeta que sofre mal de amor.

Ainda há, na Idade Média, uma forte ligação do homem com a religião, na qual o
Teocentrismo predominava (Deus no centro do universo). Deve ser ressaltado também que a
arte medieval é essencialmente alegórica, ou seja, procura representar simbolicamente valores
abstratos – a majestade de Deus e autoridades terrenas que o representam, a verdade revelada,
os dogmas, os símbolos religiosos. Muito dessa forte tradição religiosa que é vista em canções
de amor e amigo, em roga ou agradecimento a Deus ou ao divino, identificamos também nas
poesias de Patativa, o que podemos definir como parte de um ciclo15 religioso.
Outra observação interessante em relação à poesia “patativana” está relacionada ao
protesto que é feito através dos seus textos, assemelhando-se a um modo poético medieval de
origem provençal, o sirventês. O próprio autor da Teoria da Residualidade, Pontes, realizou
um breve estudo16 sobre o sirventês como modo poético na obra de Patativa. A princípio, este
modo consistia numa cantiga elaborada por um sirven (servo) em honra do seu senhor. Com o
tempo, passou a versar a polêmica pessoal, o protesto, assumindo caráter satírico e
moralizante. A investigação sobre a poesia matuta buscará identificar e relacionar
características residuais medievais. Nas poesias17 Meu Protesto (2008, p. 164), A terra é
naturá (2008, p. 154) e No terreiro da choupana (2008, p. 124), encontraremos um tom de
protesto com assuntos que versam desde a defesa de um animal indefeso (o jumento)
passando pelo desabafo de um agricultor apelando para ter um pedaço de “terra pra trabaiá”.
No livro selecionando para este artigo, Cante lá que eu canto cá, verifica-se que há
pouco mais de 100 poesias, todas selecionadas e ordenadas pelo próprio autor, de acordo com
a sua apresentação, feita por Francisco Salatiel de Alencar (2008, p. 09). É possível que nem
todas possam ser analisadas de acordo com a Teoria da Residualidade, por isso se faz
necessário um estudo mais aprofundado, averiguando quais serão exploradas e,
posteriormente, comparadas com a escrita da época medieval. Comparar é um procedimento

15
Ainda que os cordelistas escrevam sobre qualquer assunto, há alguns temas que, de tão frequentes, dão
fundamento aos ciclos. A classificação desses temas é muito polêmica, havendo até discordâncias entre os
pesquisadores de Literatura Popular.
16
PONTES, Roberto. “O sirventês como modo poético na obra de Patativa do Assaré”. In PONTES, Roberto;
MARTINS, Elizabeth Dias (org.). Anais [do] VII Encontro Internacional de Estudos Medievais – Idade Média:
permanência, atualização, residualidade. Fortaleza / Rio de Janeiro: UFC / ABREM, 2009
17
Todas inseridas no livro Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador nordestino (2008).
32

que faz parte da estrutura do pensamento do homem e da organização da cultura. Por isso,
valer-se da comparação é hábito generalizado em diferentes áreas do saber humano.

Pode-se dizer, então que a literatura comparada compara não pelo procedimento
em si, mas porque, como recurso analítico e interpretativo, a comparação
possibilita a esse tipo de estudo literário uma exploração adequada de seus campos
de trabalho e ao alcance dos objetivos a que se propõe.” “Em síntese, a
comparação, mesmo nos estudos comparados, é um meio, não um fim.
(CARVALHAL, 1986, p. 7).

A literatura comparada garante sua participação nos mecanismos de integração


cultural. Nesta instigante empreitada, várias podem ser as trilhas pelas quais o comparatista se
aventura: pode optar pela via da tradução literária, pela via da estética da recepção, pela via da
intertextualidade e outras mais, como os estudos de Residualidade, destacado neste trabalho.
Por outro lado, a comparação não é um método específico, mas um procedimento mental que
favorece a generalização ou a diferenciação. É um ato lógico-formal do pensar diferencial
(processualmente indutivo) paralelo a uma atitude totalizadora (dedutiva).
Desta forma, é de grande importância destacar Patativa do Assaré como objeto de
estudo em Literatura Comparada, dando ênfase na Teoria da Residualidade. Numa breve
busca realizada no site Google Acadêmico, em outubro de 2017, utilizando as palavras-chaves
“Patativa do Assaré” e “residualidade”, apenas quatro resultados foram encontrados, o que
reforça ainda mais a relevância desta pesquisa para o meio acadêmico. Ademais, por se tratar
de uma teoria relativamente nova, que vem sido divulgada em encontros e simpósios da área,
faz-se necessário evidenciá-la e estudá-la a fundo, contribuindo ainda mais para sua
ampliação. Ademais, unir o regional e o cultural ao residual neste artigo, proporcionará a
ambas as partes uma boa valorização e validação em meio acadêmico, estendendo-se também
às áreas de história, sociologia e antropologia.
Tradicionalmente, as pesquisas acadêmicas tendem a ressaltar o estudo de obras
clássicas, geralmente com maior parte em prosa. Os estudos sobre poesia costumam estar
relacionado aos autores mais consagrados como Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes
ou mesmo ícones da MPB. Patativa é o registro de um povo, seus costumes, histórias e
tradição, um representante ímpar da cultura e literatura cearense, que é permeada por grandes
mentes, dentre elas, o mais conhecido, sem dúvida, é o grande romancista José de Alencar,
bastante homenageado pela sua importância e repleto de estudos sobre sua obra, que
claramente apresenta resíduos medievos. Assim como Alencar está para a prosa, Patativa está
para a poesia cearense. É destacada aqui a importância da Literatura Popular em Verso
33

através de uma poesia que veio do povo simples, humilde, e retorna para o povo da mesma
forma. Enfim, acredita-se que os resíduos medievais literários e culturais presentes nas
poesias “patativanas” irão contribuir ainda mais para a construção do diversificado legado
cultural brasileiro, em especial, o cearense.

3. OBJETIVOS
Este artigo destaca-se pelo intuito de investigar os resíduos pertencentes à cultura e
literatura medieval nas poesias do livro Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador
nordestino, de Patativa de Assaré, ressaltando a importância da Literatura Popular brasileira.
Como objetivos específicos listamos: analisar as semelhanças entre a cultura medieval
europeia e a nordestina de acordo com a Teoria da Residualidade na obra de Patativa do
Assaré; evidenciar a mentalidade medieval presente em elementos regionais nas poesias
selecionadas de Patativa; comparar características apresentadas na literatura medieval com as
poesias “patativanas” utilizando conceitos da residualidade; ressaltar a importância da
literatura de folhetos, suas concepções, temáticas, ciclos e características da Literatura
Popular em verso dentro da obra de Patativa do Assaré.

4. METODOLOGIA
Para alcançar os objetivos pretendidos neste artigo, foi realizada uma pesquisa
bibliográfica, consultando várias literaturas relativas ao assunto em estudo, como textos
acadêmicos, dissertações, teses e monografias, além de leitura de artigos voltados para a
Residualidade, revistas e periódicos publicados, disponíveis na internet, possibilitando a
fundamentação deste trabalho dentro da abordagem teórica qualitativa, que possui um caráter
exploratório.
A abordagem qualitativa visa o levantamento de dados coletados, neste caso, as
poesias de Patativa do Assaré do livro Cante lá que eu canto cá. Pode-se partir do princípio
de que a pesquisa qualitativa é aquela que trabalha predominantemente com dados
qualitativos, isto é, a informação coletada pelo pesquisador não é expressa em números. Logo,
de acordo com esse amplo conceito, segundo Tesch (1990), os dados qualitativos incluem
também informações não expressas em palavras, tais como pinturas, fotografias, desenhos,
filmes, vídeo tapes e até mesmo trilhas sonoras. Algumas das poesias deste livro estão
gravadas em um LP, Poemas e canções (1979), também existem documentários e vídeos do
autor recitando seus textos mais importantes, ambos poderão ser utilizados para contribuição
desta pesquisa.
33

Segundo Marconi & Lakatos (1992), a pesquisa bibliográfica é o levantamento de toda


a bibliografia já publicada, em forma de livros, revistas, publicações avulsas e imprensa
escrita. Sua finalidade é fazer com que o pesquisador entre em contato direto com todo o
material escrito sobre um determinado assunto, auxiliando o cientista na análise de suas
pesquisas ou, ainda mesmo, na manipulação de suas informações. Ela pode ser considerada
como o primeiro passo de toda a pesquisa científica. Por fim, conforme Gadamer (1999), o
verbo principal da análise qualitativa é compreender. Compreender é exercer a capacidade de
colocar-se no lugar do outro, tendo em vista que, como seres humanos, temos condições de
exercitar esse entendimento. Esta pesquisa visa à compreensão do objeto de estudo dentro da
perspectiva da Teoria da Residualidade, analisando os elementos medievais nas ricas poesias
de Patativa do Assaré.
As poesias serão, inicialmente, selecionadas do livro Cante lá que eu canto cá –
Filosofia de um trovador nordestino (2008), publicado, pela primeira vez através da Editora
Vozes, em 1978, sendo considerado o maior sucesso editorial do poeta. São mais de 100
poesias que serão analisadas detalhada e sistematicamente para verificação dos resíduos
medievais literários e culturais, aplicando conceitos da referida Teoria. Vale ressaltar que,
previamente, será feito um estudo sobre a literatura e cultura medieval, buscando em
monografias, teses, artigos, livros, periódicos, dentre outros meios, traçar um panorama geral
sobre a época, seus costumes, características marcantes na literatura etc. para, então, ocorrer a
análise e aplicação da Teoria na obra do matuto cearense. As poesias serão identificadas de
acordo com o estudo, em seguida, analisadas para ser feita a devida comparação, investigação
e constatação da presença de tais resíduos medievais literários e culturais.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Era Medieval deixou seu legado em diversas áreas da vida do homem moderno. O
resíduo medieval na literatura de cordel é encontrado não apenas no poeta de Assaré, mas
também na prosa e mesmo na literatura de transmissão oral. Portanto, faz-se necessário um
aprofundamento deste estudo, detalhando outros modos operacionais da referida Teoria na
poesia deste grande mestre popular cearense. A Teoria da Residualidade fornece uma visão de
mundo bastante ampla e, associada à riquíssima literatura poética de Patativa do Assaré,
evidencia a necessidade de ser estudada com maior profundidade.

REFERÊNCIAS
ABREU, Márcia de. Histórias de cordéis e folhetos, Editora Mercado de Letras. 1999.
33

ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção (capítulos


de uma poética sertaneja). Fortaleza: Editora UFC / São Paulo: Nankin Editorial, 2003.
ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador nordestino. 15ª
ed., Petrópolis: Vozes/Crato: Fundação Pe. Ibiapina, 2008.
BEZERRA, Lurdinha. Os trovadores: de fonte lusitana ao nordeste brasileiro. Publicado
em 20 jul. 2009. Disponível em: http://www.webartigos.com/artigos/os-trovadores-de-fonte-
lusitana-para-o-nordeste-brasileiro/21470#ixzz4uUQcZ9fN Acesso em 02 out 2017.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 6ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
CÂNDIDO, Antônio. O direito à literatura e outros ensaios. Coimbra: Angelus Novus,
2004.
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 1986.
LAJOLO, Marisa. O que é literatura. São Paulo: Brasiliense, 1981 (Col. Primeiros Passos).
LAKATOS, E.M., MARCONI, M. de A. Fundamentos de metodologia científica. 3ª ed.
São Paulo: Atlas, 1991.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. Ed.
São Paulo: Cortez, 2010.
Revista Historiador Especial Número 01. Ano 03. Julho de 2010. Disponível em:
http://www.historialivre.com/revistahistoriador Acesso em 03 out. 2017.
TESCH, Renata. Qualitative research: analysis types and software tools. Basingstoke: The
Falmer Press, 1990.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e
Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000.
. A literatura e a formação do homem. São Paulo. Ciência e Cultura, 1972.
33

“A HISTÓRIA AO AR LIVRE”.
Monumentos estatuários e o Ensino de História em Praça Pública.

Liesly Oliveira Barbosa1*

RESUMO: O presente trabalho propõe analisar o ensino de História a partir dos monumentos
estatuários erigidos nas praças de Fortaleza. A possibilidade de interpretação dessas novas
fontes pelos historiadores também estimulou o alargamento das fontes nas pesquisas
escolares. Diante dessa nova perspectiva, a legislação educacional brasileira, mediante os
PCNs, destaca a necessidade de se trabalhar com os diversos tipos de documentos em sala de
aula. Cabe, portanto, neste trabalho, analisar as intencionalidades presentes na construção dos
monumentos estatuários, destacando a finalidade educativa e através desta perceber como a
legislação brasileira propõe os trabalhos escolares a partir dos monumentos estatuários em
aulas de História e como os professores e alunos percebem a importância desta metodologia
de trabalho.
PALAVRAS CHAVE: Ensino de História. Monumentos estatuário. Legislação Educacional.

FINALIDADES DE UM MONUMENTO ESTATUÁRIO EM PRAÇA PÚBLICA.


A cultura estatuária nas praças da cidade de Fortaleza apresenta dois momentos. No
primeiro momento que tem início na segunda metade do século XIX os monumentos
dispostos nas praças representavam os ideais de modernidade inspirados nos padrões
europeus, sendo assim, tais monumentos eram inspirados nos modelos greco-romanos.
Durante esse primeiro período a cidade passava por uma série de mudanças urbanísticas que
pretendiam a higienização, o controle, a disciplinarização urbana e social e o embelezamento
da cidade. (PONTE, 1999)
A segunda fase da cultura estatuária em Fortaleza se inicia ainda na segunda metade
do século XIX e foi consequência do fortalecimento do nacionalismo e da busca pela
formação de uma identidade nacional. Nesta, podemos perceber o crescimento dos
monumentos históricos e cívicos que celebram a memória compartilhada pelos indivíduos da
nação.
É nesse período que percebemos uma tentativa maior de elaboração de uma memória
nacional e regional nos espaços urbanos da cidade, por meio da nomenclatura de suas praças,
logradouros e pela ereção de monumentos dispostos em locais públicos, celebrando heróis
nacionais e seus grandes feitos. Portanto, os monumentos seriam utilizados de modo a
representar e eternizar as glórias pátrias e teriam uma função educativa, pois, através dos
monumentos se contaria a história do país e de seus filhos mais ilustres, mártires ou heróis.
1
Liesly Oliveira Barbosa. Licenciada e Bacharel pela Universidade Federal do Ceará e Especialista em
Metodologias do Ensino de História pela Universidade Estadual do Ceará.
33

É, portanto, nesse contexto que no dia 8 de Abril de 1888 é inaugurado em Fortaleza o


primeiro monumento estatuário de caráter histórico intitulado Monumento Tibúrcio. A estátua
em homenagem ao general cearense, herói das Guerras do Uruguai e do Paraguai, foi uma
iniciativa de seus amigos e admiradores2. Ela foi erigida na antiga Praça de Palácio, que
recebeu nova nomenclatura de Praça General Tibúrcio, após ter sido eleita pela Câmara
Municipal para ser o local onde seria erguido o monumento.
Segundo a nota do jornal Libertador a respeito da idealização do monumento Tibúrcio,

A historia do monumento é muito breve. A 6 de Abril de 1885, poucos dias depois da


morte de Tiburcio, alguns de seus camaradas em palestra saudosa sobre o amigo
morto lembraram a necessidade de perpetuar o seu nome em monumento
duradouro. No dia 15 houve a 1ª. Reunião de officiaes do 14 batalhão de Infanteria
para tratar do assumpto e ficou resolvido realisar a idea por subscripção publica.
Não se tratava de uma estatua de praça, mas de um monumento no cemiterio. O
capitão Cândido Leopoldo Esteves, natural de Santa Catharina, e presentemente
enfermo na côrte, foi quem propoz, e encorajou seus camaradas para empenharem
seus esforços em obra mais digna da patria e da memoria do inclyto general. 3

A partir deste relato podemos percebemos a mudança de atitude em relação ao local


destinado para celebração da memória. A intenção era perpetuar a memória do General para a
posteridade e até a data mencionada o local reservado para a criação de monumentos
estatuários era o cemitério. Mesmo diante da escolha do local e do tipo de monumento com o
qual o general seria homenagiado foi erigido um outro monumento no cemitério São João
Baptista como consta no relato de Barroso (1962, p. 325), que afirmava que “em volta do
túmulo de Caio Prado se podia ver os sepulcros dos Generais Sampaio e Tiburcio, heróis das
guerras sulinas”, onde foram depositados os restos mortais do General Tiburcio, que
posteriormente foram transladados para a cripta criada sob a sua estátua. Já o monumento no
cemitério não foi preservado e atualmente não existe, apenas é encontradauma placa na parte
lateral posterior da capelaque ralata as informações referentes à transladação dos restos
mortais do General Tibúrcio.
Nesse sentido, surgem tais questões em nossa pesquisa. Será que houve uma mudança
posterior dos restos mortais de Tibúrcio para o local atual onde não há monumentos? Será que
Barroso se enganou na descrição do túmulo ou na propria existência dele? Para responder a
estes questionamentos seria necessária uma pesquisa mais aprofundada. Neste momento,
podemos somente levantar tais questões e refletir sobre o monumento Tibúrcio a partir delas.

2
Jornal Libertador de 08 de Abril de 1888.
3
Jornal Libertador de 08 de Abril de 1888.
33

Como já foi mencionado anteriormente, a partir do século XIX surge uma nova atitude
em relação à celebração da memória, que se difunde pela necessidade de formar uma
identidade nacional. A partir deste novo pensamento se faz necessário exaltar a memória dos
grandes heróis e seus grandes feitos e isto deve ocorrer em espaços de socialização e grande
circulação, como as praças.
As finalidades de criação de um monumento podem ser as mais variadas e, dentre elas,
podemos citar: adornar, educar, comemorar fatos históricos e celebrar memórias individuais
ou coletivas. As primeiras esculturas erigidas em praças de Fortaleza foram postas para
embelezar a principal praça da cidade. Tendo, portanto,a função de adorno.
No tocante aos diferentes usos dos monumentos, a função educativa passa a ter grande
importância para os idealizadores dos monumentos. Segundo Catroga (2005, p. 107):

Mais do que em qualquer outra cerimônia necromântica, as comemorações cívicas


mobilizam, explicitamente, a memória, chamando-a a desempenhar a mesma função
pedagógica que era atribuída a toda a literatura histórica. Daí que, também nelas,
a morte (o passado) fosse utilizada pela vida (o presente e o futuro), pois “os
homens superiores, pela nobreza dos seus sentimentos, pelo poder de seu gênio
criador, pela porção de beleza que souberam espalhar prodignamente, pela sua
extrema dedicação à causa da humanidade, pelo relevo das suas obras, onde a
verdade esplende, pelo prestígio da sua acção, e pela autoridade da sua palavra,
exercem, ainda depois de sua morte, uma extraordinária influência social. Os vivos
têm de recolher vantagens da obra imorredoura dos mortos.

Assim sendo, as homenagens dedicadas aos heróis nacionais são utilizadas como um
instrumento de educação e patriotismo. A função educativa dos monumentos pode ser
percebida tanto no momento de sua elaboração, quando é destacada pelos idealizadores a
necessidade de celebrar a memória para as pessoas de sua época, como nas utilizações e
interpretações realizadas na posteridade, quando os mais variados setores da sociedade se
utilizam da memória já instituída para discutir a história local.
Cabe, portanto, uma análise minuciosa dos monumentos com os quais se pretende
trabalhar, pois a pesquisa dos documentos relativos à criação dos monumentos pode
esclarecer muito de seus significados. Vale destacar que:

A partir da análise dos monumentos, podemos interpretar os


significados destes no contexto social em que foram erigidos e tentar entender o que
estes representavam para o imaginário social da época. Como? Por quê? Para
que? E por quem são escolhidos? Pois, sendo então a memória interpretada como
uma construção social podemos perceber que não é um mero acaso o ato de
selecionar personagens e fatos que devam ser perpetuados. Vale ressaltar que o que
33

está em jogo no momento da escolha é o caráter exemplar do que deve ser


rememorado.4

Atualmente, termos como: educação patrimonial e história local parecem estar em


grande evidência no campo historiográfico. Algumas iniciativas trabalham, em aulas de
campo, o patrimônio da cidade na tentativa de preservar a memória local. Porém, não há
trabalhos de pesquisa mais aprofundados a respeito dos monumentos que são analisados,
levando a interpretações equivocadas a respeito da memória idealizada pelos criadores da
mesma.

UM BREVE HISTÓRICO DOS DISPOSITIVOS LEGAIS DO ENSINO DE


HISTÓRIA E A VALORIZAÇÃO DAS CELEBRAÇÕES CÍVICAS
Ao destacar as particularidades da área de História, os PCNs perfazem o percurso
histórico da legislação educacional brasileira desde a criação do decreto de 1827, que é
considerado a primeira lei dedicada à educação do Brasil, abordando as concepções científicas
e o processo de instalação das instituições de ensino do Brasil desde o período do Império.
Segundo a lei nesses primeiros anos da implantação do sistema educacional brasileiro
“a História a ser ensinada compreendia História Civil articulada à História Sagrada;
enquanto esta utilizava-se do conhecimento histórico como catequese, um instrumento de
aprender a moral cristã, aquela o utilizava para pretextos cívicos”5.
Assim, é interessante perceber como a sociedade daquela época se apropriava dos
eventos cívicos e atos de celebração nacional, tais como a inauguração de monumentos e
festejos cívicos, para destacar o papel da História como formadora da identidade nacional.
Ainda segundo a lei,somente a partir de 1870 é que se buscou nos currículos das
escolas uma separação entre a História Sagrada e a História profana influenciada pelo modelo
francês que passou a ser seguido como regulamentação para a disciplina de História. Mas, no
entanto, o que se pode perceber na prática é que a História Sagrada ainda tinha forte
influência. Durante esse período segundo a lei:

Os programas de História do Brasil seguiam o modelo consagrado pela história


Sagrada, substituindo as narrativas morais sobre a vida dos santos por ações
históricas realizadas pelos heróis considerados construtores da nação,
especialmente governantes e clérigos. A ordem dos acontecimentos era articulada
prela sucessão de reis e pelas lutas contra os invasores estrangeiros, de tal forma
4
Barbosa, Liesly Oliveira. A memória moldada no bronze. O Monumento Tibúrcio e a evocação do passado.
Monografia de Bacharelado. UFC – 2006.
5
Brasil. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história, geografia / Secretaria
de Educação fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997, p. 19.
33

que história culminava com os grandes eventos da Independência e da Constituição


do Estado Nacional, responsáveis pela condução do Brasil ao destino de ser uma
grande nação. 6

Mesmo após a proclamação da República, o currículo de História continuava tendo o


caráter civilizatório e patriótico. Este fato pode ser percebido quando da participação das
instituições escolares nos diversos festejos e atos cívicos nacionais ou regionais. Conforme
então os PCN´s:

A moral religiosa foi substituída pelo civismo, sendo que os conteúdos patrióticos
não deveriam ficar restritos ao âmbito específico da sala de aula. Desenvolveram-
se, nas escolas, práticas e rituais como festas e desfiles cívicos, eventos
comemorativos, celebrações de culto aos símbolos da Pátria, que deveriam envolver
o conjunto da escola demarcando o ritmo do cotidiano escolar.7

Ainda segundo os PCN´s, nas primeiras décadas do século XX, não houve mudanças
significativas no campo metodológico; porém, com o desenvolvimento das propostas
escolanovistas, na década de trinta, outras atividades passaram a ser desenvolvidas em
substituição aos processos de memorização dos conteúdos, tais como: aulas de campo, visitas
a museus, realização de maquetes etc. Essa abertura a novos espaços da memória foi
fundamental para os estudos voltados para o patrimônio.
O movimento escolanovista se desenvolve no Brasil a partir da influência da
pedagogia norte-americana, principalmente a partir das ideias do filósofo John Dewey. Nesta
proposta, a educação é uma necessidade social, nela as pessoas devem ser aperfeiçoadas para
que se afirme o prosseguimento na sociedade, ou seja, para que possam ampliar seus
conhecimentos e ideias. A escolanovista propunha a substituição das disciplinas de História e
Geografia pelos Estudos Sociais, especialmente no ensino elementar. Ainda na década de
trinta, com a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública e da Reforma Francisco
Campos, nome da primeira reforma educacional de caráter nacional, o Estado centralizou seu
poder e o controle sobre o ensino. A educação teve papel importante, pois era usada como
aparelho de dominação do Estado e formadora do sentimento de patriotismo e de bons
cidadãos. Durante o Estado Novo, o Ministro Capanema reformou o ensino secundário: o
mesmo foi dividido em três cursos: o primário, com duração de quatro anos; o ginasial, com a
mesma duração; e o clássico ou científico, com duração de três anos. A formação docente
também passou a ser estruturada a partir das faculdades de Filosofia, Ciências e Letras,

6
BRASIL. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história, geografia /
Secretaria de Educação fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997, p. 20.
7
Idem, p. 21.
33

criadas nos primeiros anos da década de trinta. Nesse contexto, a História tinha como tarefa
enfatizar o ensino patriótico. E para tanto, esta matéria teve sua carga horária ampliada e a
História Geral e a História do Brasil passaram a ser áreas distintas, sendo privilegiada a
História brasileira.
No pós-guerra, a disciplina de História passou a ser fundamental na formação de
cidadãos conscientes de seu papel na sociedade e para tanto foram dedicados novos estudos
para a elaboração da organização curricular e de materiais didáticos. Nas décadas de 50 e 60
se inicia o processo de substituição da disciplina de História e Geografia pelos Estudos
Sociais, projeto que se concretiza posteriormente durante a ditadura militar, com a Lei n.
5.692/71. A tentativa era esvaziar o caráter político e formador de consciência da disciplina e
valorizar o caráter nacionalista e ufanista defendido e controlado pelo regime militar.
Somente durante o processo de redemocratização, na década de 80, é que a História
passou a ser novamente uma disciplina curricular das escolas. Este processo foi fruto das
discussões que estavam centradas nos debates historiográficos e a partir deles surgem novas
abordagens e temáticas para o ensino de História. Portanto, a educação patrimonialsó pode ser
entendida se analisada a partir dos estudos das novas abordagens históricas que surgiram a
partir desse período.

OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS DE HISTÓRIA E O ENSINO DE


HISTÓRIA ATRAVÉS DOS MONUMENTOS ESTATUÁRIOS.
Os PCN’s do ensino fundamental I não dedicam à educação patrimonial um capítulo
em especial, porém este assunto é trabalhado dentro dos vários temas abordados para o ensino
de História. Isto pode ser percebido ainda na delimitação dos objetivos gerais do ensino
fundamental, nos quais, segundo os PCN’s, os alunos devem ser capazes de “saber utilizar
diferentes fontes de informação e recursos tecnológicos para adquirir e construir
conhecimentos”8. Assim como também nos objetivos gerais de História para o ensino médio,
nos quais é destacada a necessidade dos alunos serem capazes de “utilizar métodos de
pesquisa e de produção de textos de conteúdo histórico, aprendendo a ler diferentes registros
escritos, iconográficos, sonoros” 9.
A partir desses objetivos podemos fazer referência à necessidade da leitura dos vários
tipos de documentos históricos para a aquisição do conhecimento. É fundamental que os

8
Brasil. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história, geografia / Secretaria
de Educação fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997, p. 33
9
Brasil. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história, geografia / Secretaria
de Educação fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997, p. 33.
33

alunos possam saber interpretar a escrita da história, assim como saber ler e interpretar
charges, músicas, filmes, monumentos, e demais testemunhos que possam ser trabalhados em
sala de aula ou em aulas de campo.
Dentre os objetivos de história para o primeiro ciclo tratados na lei é destacado ainda a
necessidade do aluno “identificar alguns documentos históricos e fontes de informações
discernindo algumas de suas funções”10. Neste caso, podemos perceber que não cabe apenas
ao aluno conhecer e conseguir ler o documento, mas também perceber qual a função do
mesmo.
No primeiro ciclo, os eixos temáticos trabalhados são o da História local e o da
História do cotidiano. Ambos são aspectos mais próximos do convívio dos alunos e, portanto,
possibilitam a este realizar, através da observação, comparações para compreender as relações
sociais, econômicas, políticas e culturais do seu tempo, percebendo nele a influência de outras
épocas e outros atores sociais. Em relação ao segundo ciclo, os PCN´s destacam que:

[...] no primeiro ciclo, os questionamentos são realizados a partir do entorno do


aluno, com o objetivo de levantar dados, coletar entrevistas, visitar locais
públicos, incluindo os que mantêm acervos de informações, como bibliotecas e
museus”11.

Além disso, os PCN’s fazem referência à necessidade do professor criar para os alunos
situações que estimulem a aprendizagem, para que os mesmos se sintam motivados a
comparar as diversas fontes documentais que devem ser trabalhadas com os alunos no
momento da construção do conhecimento. É neste momento que os alunos podem expressar
suas opiniões a respeito do assunto e criar diferentes explicações para os acontecimentos
estudados, possibilitando assim ao aluno investigar documentos diversos e lançar hipóteses a
respeito de suas interpretações a partir dos dados. Em relação aos objetivos do segundo ciclo,
destacamos em relação ao trabalho com os monumentos a necessidade do aluno “utilizar
diferentes fontes de informação para leituras críticas”12.
A lei destinada ao terceiro e quarto ciclo de ensino também inicia com um breve
histórico da legislação educacional no Brasil. A lei apresenta a área de História como
fundamental para o aluno entender a realidade em que está inserido. Isto se realiza a partir da
análise dos atos de indivíduos e grupos do passado a partir dos estudos de âmbito mais restrito

10
Brasil. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história, geografia / Secretaria
de Educação fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997, p. 40.
11
Brasil. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história, geografia / Secretaria
de Educação fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997, p. 45.
12
Idem, p. 46
34

como no caso do local, até chegar ao mais amplo, relativo à escala mundial. Para realizar esta
análise a lei propõe o trabalho com diferentes fontes e documentos, permitindo-nos destacar a
importância das diferentes linguagens para o ensino de História.
Nessa fase inicial, de caracterização da área de História, a lei não menciona
especificamente os monumentos estatuários como documentos, porém ela o fará
posteriormente em vários momentos quando tratar dos tipos de documentos que podem ser
utilizados pelo professor.
Ademais, nos PCN’s afirma-se que não se aprende história apenas na sala de aula.
Atualmente, temos acesso a uma série de informações em tempo quase que instantâneo nos
mais diversos setores da sociedade em que vivemos e é a partir desses diversos contatos que
temos os primeiros contatos com a História. A partir da observação do meio e do cotidiano
dos ciclos sociais aos quais estão inseridos e dos quais eles não participam, os alunos
percebem vivências variadas, mudanças e permanências nos costumes. A esse somatório de
informações se acrescentam aquelas construídas e adquiridas em sala de aula. Estes
conhecimentos escolares somados aos já apreendidos pelos alunos modificam o senso comum
ou ampliar conteúdos. É, portanto,papel do professor orientar os alunos nesse processo de
aquisição dos conhecimentos escolares e ressignificação dos já aprendidos.
Quanto aos objetivos gerais da História, a lei referente ao terceiro e quarto ciclo de
ensino não difere em relação ao nível de primeiro e segundo, modificando apenas a escrita do
texto, pois destaca a necessidade de “dominar procedimentos de pesquisa escolar e de
produção de texto, aprendendo a observar e colher informações de diferentes paisagens e
registros escritos, iconográficos, sonoros e materiais” 13.
Outro objetivo que não aparecia no ciclo anterior e pode auxiliar nos trabalhos com os
monumentos é o que se refere ao fato da necessidade do aluno “compreender que as histórias
individuais são partes integrantes de histórias coletivas”14. Esse objetivo da lei é
fundamental na justificativa da educação patrimonial por meio do estudo das estátuas, pois é a
partir da análise das mesmas que compreendemos o contexto histórico no qual o indivíduo
celebrado está inserido.
Quanto aos objetivos específicos do terceiro e quarto ciclo do ensino fundamental
destacamos que a lei propõe que ao final de cada um deles, o aluno seja capaz de utilizar
fontes históricas em suas pesquisas escolares. Vale destacar que nesse tópico não é

13
Idem, p. 43.
14
Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: história / Secretaria de
Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1998, p. 43.
34

explicitado que tipo de fontes o aluno deve utilizar, porém no decorrer da lei encontramos a
menção em relação à utilização de fontes variadas e dentre elas o trabalho com os
monumentos estatuários.
Outro tópico da lei que aborda a questão do trabalho com diversas fontes e dentre elas
os monumentos estatuários é intitulado “Orientações e métodos didáticos”. Neste as situações
didáticas propostas pela lei representam as novas teorias da História. Segundo tais teorias tudo
que é produzido pelo homem pode ser considerado objeto de análise histórica, porém a
utilização dessas fontes em sala de aula requer que o professor conheça e trabalhe com
algumas abordagens específicas para o trabalho com cada tipo de fonte selecionada. Outro
ponto a ser destacado é a necessidade de confrontar fontes diversas para obter uma maior
quantidade de informações, sejam elas complementares ou divergentes. Vale destacar que o
documento deve ser analisado a partir do contexto em que foi criado para evitar assim os
anacronismos.
Os parâmetros referentes ao último nível da educação básica são apresentados de
forma mais objetiva, diferentemente, pois, dos níveis anteriores. Os PCN’s do ensino médio
dedicam a área da História apenas algumas páginas, enquanto os dos níveis anteriores são
abordados em forma de pequenos livros. Isto deve estar relacionado ao fato de se acreditar
que os professores já tenham tido contato com a lei dos níveis anteriores.
A apresentação da parte referente à História é precedida pelo debate a cerca da área
onde a mesma esta inserida, ou seja, as Ciências Humanas e suas tecnologias. Assim como
nos PCN’s dos níveis anteriores a lei inicia a discussão do tema a partir de um histórico da
legislação e da educação brasileira, em relação às disciplinas trabalhadas na área. Esse tópico
assim como a parte referente à História é introduzido pela imagem de alunos analisando um
monumento histórico, o que destaca mais uma vez, a importância dos estudos da história a
partir dos monumentos, e, dentre estes, as estátuas, pois nas duas imagens os alunos observam
bustos.
As imagens que ilustram a lei nesse nível de ensino são complementadas por pequenos
textos e, assim, este fato o difere dos níveis anteriores, nos quais são apresentadas apenas
figuras. O texto que complementa a imagem apresentada no início da área dos conhecimentos
de História reforça a importância dos monumentos no ensino desta disciplina. Segundo a lei,
“proporcionar aos alunos o contato ativo e crítico com as praças, edifícios públicos e
monumentos é excelente oportunidade para o desenvolvimento de uma aprendizagem
34

significativa”15. O contato direto com o objeto de estudo estimula os alunos e facilita a


aprendizagem. Portanto, é necessária a utilização de diversos tipos de fontes e para cada uma
delas metodologias específicas.
A lei também destaca a necessidade de analisar os documentos em seus aspectos
objetivos, ou seja, as informações contidas no documento, mas também em seus aspectos
subjetivos, aqueles que não estão escritos no mesmo, como saber para qual fim aquele
documento foi criado, a quem ele representa etc.
A História assim como as demais disciplinas é peça importante na formação da
cidadania, objetivo principal da educação. E para que esta se realize, a lei destaca a
importância do direito à Memória, pois este faz parte da cidadania cultural, fato que livrará
“as novas gerações da amnésia social que compromete a constituição de suas identidades
individuais e coletivas” 16.
Dentre as competências e habilidades a serem desenvolvidas em História, que é o
último tópico dos PCN’s da disciplina, podemos destacar algumas que se relacionam
diretamente com o estudo dos monumentos estatuários, são elas:

Criticar, analisar e interpretar fontes documentais de natureza diversa,


reconhecendo o papel das diferentes linguagens, dos diferentes agentes sociais e
dos diferentes contextos envolvidos em sua produção; atuar sobre os processos de
construção da memória social, partindo da crítica dos diversos “lugares de
memória” socialmente instituídos e situar as diversas produções da cultura – as
linguagens, as artes, a filosofia, a religião, as ciências, as tecnologias e outras
manifestações sociais – nos contextos históricos de sua constituição e significação17.

Ao comparar este tópico com os objetivos propostos nos parâmetros dos outros níveis
de ensino, compreendemos que a lei dedica uma maior atenção à análise dos diferentes tipos
de documentos históricos e dentre eles, em especial os lugares de memória, portanto, é
fundamental para o professor tomar conhecimento da lei e desenvolver trabalhos que
envolvam os diversos tipos de fonte e dentre elas os monumentos estatuários em seus
programas de ensino. Como já mencionado, as aulas de campo proporcionam aos alunos uma
maior interação com o objeto de estudo, o que o estimula a construir o conhecimento.
A letra da Lei, portanto, fornece a educação um caminho a seguir, mas não assegura o
cumprimento da mesma nos espaços escolares. Sendo assim, cabe aos professores

15
Brasil, Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares Nacionais: ensino médio /
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnologia. – Brasília: MEC; SEMTEC, 2002, p. 298.
16
Idem, p. 305.
17
Brasil, Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares Nacionais: ensino médio /
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnologia. – Brasília: MEC; SEMTEC, 2002, p. 307.
34

proporcionar aos alunos uma educação crítica que promova a efetivação dos processos de
ensino-aprendizagem, permitindo então aos alunos o seu desenvolvimento intelectual e
pessoal.
Pesquisar, analisar e estimular o processo de ensino-aprendizagem parte do trabalho
do professor, mas só se realiza plenamente se for percebido pelo aluno como algo importante
e necessário para o seu crescimento intelectual e pessoal. Propiciar aos alunos maneiras mais
interessantes de construir o conhecimento são fundamentais para o sucesso do processo de
desenvolvimento intelectual.
Na perspectiva da educação patrimonial, o Monumento Tibúrcio, assim como outros
monumentos históricos de Fortaleza, apresentam-se como fontes históricas importantes para a
construção do processo de ensino-aprendizagem. Pois, ao estabelecer as relações entre as
fontes que envolvem o objeto de estudo o aluno é motivado a interpretá-los, e a partir deles, a
construir o próprio conhecimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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34

DAS VASSOURAS AOS RAMOS:


ESTUDO DAS PRÁTICAS CURATIVAS, E MÉDICAS DO MEDIEVO PARA
MODERNIDADE.

Maria Deiziane Lino1


Tito Barros Leal2

RESUMO: No presente artigo nos propomos a refletir sobre a bruxaria, feitiçaria e medicina
popular, bem como a ideia de certa similitude entre as tradicionais benzedeiras e as antigas
bruxas medievais. Sabemos que durante muito tempo estas mulheres, a saber, as benzedeiras
foram tratadas de maneira marginalizadas com a alegação de que seu conhecimento era
informal e, portanto não digno de reconhecimento na sociedade. Porém, se tem nestas
mulheres há muito tempo um ponto de refúgio e alívio para várias doenças e enfermidades, ou
seja, as benzedeiras sempre tiveram um espaço de ação seja na comunidade em que vive nos
bairros ou até mesmo na cidade. Propomos-nos analisar como está ideia da similitude entre
benzedeira e bruxa se propaga, de que maneira se fundamentam a existência de tal ligação e
quais aspectos permeiam estes dois universos.
Palavras chaves: Bruxas. Benzedeiras. Medicina Popular.

INTRODUÇÃO
Dentro do processo de racionalização do mundo, encontramos muitas lacunas a se
pensar, ou seja, o processo de racionalização do mundo nem sempre trouxe clara distinção
entre o mundo sobrenatural, e o conceito de religião. Para tal, emergiram de tal mescla
figuras mitológicas e lendárias como, bruxas, feiticeiras, mulheres que por vezes não era o
que de fato se pronunciava sobre elas. Em tal contexto, pretende-se aqui compreender um
pouco tal conjunto a fim de melhor perceber a diferenciação entre a figura das benzedeiras de
hoje e a ideia de certa similitude entre essas e as antigas bruxas medievais.

1. Benzedeiras: as remanescentes das bruxas medievais?


Para tal análise considerou-se neste primeiro momento apartir de Jeffrey Richards,
uma leitura sobre o que seria a bruxaria no período medievo. E qual a mentalidade que se
mantinha a respeito desta figura lendária? Já que os homens e as mulheres do período

1
Graduanda de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA, Bolsista do programa de Educação
Tutorial – História UVA. E-mail: deiziane_maria.lino@hotmail.com
2
Professor adjunto do curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú (Sobral-CE) e líder do Grupo
de Estudos em Residualidade Antigo-Medieval (GERAM-UVA), inscrito no Diretório de Grupos de Pesquisa do
CNPq desde 2016. Presidente da ANPUH-Ceará (Biênio 2016-2018) e Vice-Presidente do SINDIUVA (Biênio
2017-2018). E-mail: titobarrosleal78@gmail.com
34

medieval acreditavam claramente na bruxaria e tinha ela como uma explicação para vários
dos problemas e desastres que vinham a lhes acontecer.

Era uma sociedade que acreditava no sobrenatural, no poder das forças das trevas
e na ação de satã e de seus demônios no mundo. Acreditava também na bruxaria,
que era uma explicação conveniente tanto para as catástrofes naturais súbitas
(fome, epidemias, tempestades, enchentes, destruição de safras e animais) quanto
para problemas familiares recorrentes, tais como impotência, infertilidade, crianças
natimortas e mortalidade infantil. Estes últimos itens explicam por que as parteiras
eram tão frequentemente o alvo das acusações de bruxaria. (RICHARDS,
1998:82)

De acordo com a citação acima a bruxaria vem a ser uma das grandes causas para os
problemas cotidianos do período medievo, o que era pensado e vivido pelos homens da época
tinha muitas das vezes seu surgimento no sobrenatural, principalmente quando se referia a
mortes repentinas, já que os trabalhos dos bruxos medievos eram de mão dupla servia tanto
para construir como para destruir.
Nessa perspectiva, entende-se que o processo histórico da imagem criada da bruxa
medieval emerge de épocas muito distantes dos processos de modernidades. Gilson Xavier
argumenta: “sua imagem é, na realidade, uma construção histórica multifacetada; um
imbricamento de tendências que se estereotiparam em vários momentos históricos”
(XAVIER, 2016: p.123) Corroborando com está assertiva de Xavier e segundo Ellis (1995)
citada por Câmara (2006, p. 224) as mudanças em torno da imagem da bruxa começaram de
forma gradual e aparentemente bem-intencionada. Aos poucos, a medicina tradicional dos
antepassados passou a ser considerada bruxaria pelos que professavam a fé em Cristo,
subestimando, sobrepujando e rebatizando antigos saberes. As pessoas que faziam uso dos
vetustos conhecimentos pré-cristãos como filtros e poções passaram a ser implacavelmente
perseguidas. E com o Cristianismo cada vez mais preponderante, intolerante e imponente,
tornava-se inviável que a mulheres continuassem a agir como sempre haviam agido; não se
aceitava mais que seguissem remediando a vida.
Desse modo, se criar ao longo dos tempos diversos discursos sobre a imagem da
bruxa, ou seja, no século XIX teremos um discurso romantizado, assim como também
teremos um discurso eclesiástico propagado pela cristandade contra todas as práticas pagãs.
Cabendo aqui ressaltar que dentro do contexto medievo a bruxaria era de todo modo para o
discurso cristão, realizado apartir de pactos com o Diabo, desta forma e dentro de tal discurso
o pacto era uma renuncia ao cristianismo, ou seja, “a bruxaria satânica era assim a imagem
refletida, inversa e abrangente do cristianismo, uma fé alternativa” (RICHARDS, 1988: 82)
34

Salienta que o que Richards traz como fé alternativa vem ao encontro do que
procuramos situar neste estudo, já que em meio a tal processo, as práticas curativas, a saber, a
prática da benzedura também se situa neste discurso de uma prática alternativa de cura. Mas é
plausível ressaltar que estamos falando de dois contextos diferentes, um medievo, e um
contemporâneo. Desse modo, busca-se compreender inicialmente, aspectos de tal presença
dentro do contexto medievo, e em seguinda abordar com estas práticas curativas chegam ao
período colonial brasileiro, relacionado às diferentes relações entre os povos indígenas,
africanos, português, que até os dias atuais é possível perceber traços e expressões variadas
destas culturas nas benzedeiras.
Neste sentido, nota-se um discurso religioso repressor da bruxaria, ou de sua crença,
ligada, normalmente, ao mal e a figura do demônio, a figura da bruxa vai se conectando ao da
mulher, da sua sexualidade, do feminino. Para tanto Richards vai falar das orgias sexuais “ As
orgias sexuais indiscriminadas eram parte integrante de seus rituais. Isto reflete diretamente o medo
milenar do sexo no cristianismo, e também destaca a desconfiança e o desagrado em relação ás
mulheres como parte integrante da cultura medieval” (RICHARDS, 1988: 84)
Percebe-se, portanto que no momento histórico que acima nos referimos à bruxaria era
ligada a todas as formas antigas de crenças populares e magia erudita. O que se quer dizer é
que a imagem do feminino, e neste caso, cita-se a figura da bruxa e da benzedeira, que está
em todo caso associada à mulher, foi historicamente determinada pelo universo masculino,
patriarcal e violento, pois, dentro deste universo era desonroso para a sociedade masculina
que a mulher, por si só, tivesse a capacidade de curar, ou realizar algo referente ao mundo
sobrenatural.
Contudo, estas mulheres tornaram-se alvo de perseguições e discussões freqüentes,
tida com empoderada, e com grande conhecimento empírico, e de seu potencial curador na
idade média, era inaceitável e desonroso para a sociedade patriarcal da época que a mulher
pudesse manipular a natureza cristalizada nas plantas em prol da cura do outro. Assim os
saberes pagãos eram considerados perigosos já que se acreditava que o poder de curar
também poderia levar ao de matar, assim já dizia o autor Peter Burke.
Desta forma estas mulheres iam sendo consideradas ameaça tanto social como
religiosa, pois para além do fator social, elas estariam colocando em risco o incipiente saber
médico masculino, que estava sendo criado, em paralelo com a ascensão do cristianismo, que
no período medievo, legitimava-se como a religião oficial do mundo civilizado. Em relação
ao fator social de condenação destas mulheres chamamos atenção para uma questão a da
sexualidade, pois como bem vem dizer Richards, um dos grandes medos a ser temido pelo
34

cristianismo era o sexo, no entanto a mulher era vista como a grande detentora da sexualidade
selvagem. O trabalho o martelo das bruxas de Kramer e Speenger, citado no livro de Jeffrey
Richards traz justamente o sexo como este impulso para a bruxaria: “Toda bruxaria advém do
desejo carnal, que é insaciável nas mulheres” (RICHARDS, 1988: 83).
A ascensão histórica do Cristianismo no período medievo logo relaciona à mulher a
desobediência, neste sentido tudo aquilo que ia contra os dogmas e as regras da Igreja era
preciso ser eliminado, se as mulheres eram vistas com desconfiança pelo Cristianismo, por
suas maneiras de agir em meio à sociedade, e por serem diferentes estas precisaria ser
expurgada, eliminadas, pois, de todo modo era as grandes causadoras do mal. Não
esqueçamos que estamos falando de um período onde o discurso era totalmente patriarcal e
sexista, de um período onde qualquer intriga ou deslizes em suas vidas particulares, em seus
trabalhos ou relações sociais era motivo para a tal acusações.
Para tanto Richards vai complementar dizendo que está visão da mulher como um ser
ruim, demoníaco, era comum na realidade medieval “oficial”. O gênero feminino era tido
como inferioridade, e se mantinha a todo o momento um repúdio ao feminino, uma
inferioridade perpetuamente decretada por causa do pecado original de sua ancestral Eva,
descrita em Gênesis, em que a mulher se deixar seduzir pela força do mal (demônio) para
posteriormente, leva o homem ao pecado. Deste modo a mulher vem a ser a inimiga, fonte do
pecado e dotada de malícia, lascívia, assim sendo vai sofrendo as pressões sociais da época,
sendo perseguidas, oprimidas, rejeitadas, torturadas, punidas e lançadas vivas em suas
fogueiras até a sua morte. Vale ressaltar que para tais extremos havia o Tribunal do Santo
Ofício, instituição essa que se amparava em leis e manuais vindos da Igreja católica e que
defendiam seus interesses. Outra grande marca dolorosa na história é a caça as bruxas dos
séculos XVI E XVII em que se dar um grande extermínio de pessoas acusadas de práticas de
bruxaria.
Com a missão de impedir o avanço do protestantismo e garantir o maior controle da
Igreja sobre a conduta moral e religiosa dos fieis, a Inquisição perseguia e condenava os que
manifestavam simpatia, ou fossem acusados de feitiçaria ou crime de carne. Para tanto quem
colocasse em dúvida os dogmas da igreja era pego pelas garras dos Inquisidores. Tal
inquisição foi responsável por um dos períodos de maior intolerância e repressão da Igreja,
um dos marcos mais sangrento e doloroso contra a humanidade registrado na história.

As bruxas satânicas do final da Idade Média eram, assim, os bodes expiatórios


perfeitos, uma minoria inventada, uma imagem compósita do mal, pronta para ser
usada e aplicada a qualquer pessoa que discordasse dos dogmas da Igreja e que, pelo
35

uso da tortura e do terror, se tornava realidade. A propaganda contínua sobre o


perigo, enraizada como estava em imagens e idéias que podiam ser reconhecidas,
penetrou na consciência popular até gerar frutos pavorosos nas caças às bruxas dos
séculos XVI e XVII, quando a grande massa das comunidades aceitava e incentivava
a caça aos servos de satã (RICHARDS, 1988, 94)

Ou seja, o envolvimento feminino com as práticas mágicas foi ferozmente combatido,


e estas consideradas detentoras de malícia, bruxas adeptas do demônio. Para tanto na
imaginação do ocidente comum a “bruxa” era algo a ser repudiado, e assim se constrói uma
imagem, em cima de suas más característica, totalmente em oposição ao sistema de controle
patriarcal, a bruxa sendo a mulher da rebeldia, dos instintos primitivos, e principalmente da
sexualidade selvagem, uma imagem a ser eliminada e combatida. Ainda segundo Richards O
cristianismo esforçou-se ao máximo para absorver o paganismo e negar a magia pagã,
assumindo os dias sagrados e as festas pagãs, apropriando-se dos lugares sagrados pagãos e
construindo igrejas neles, transformando as divindades pagãs em santos. E usando Russel
como uma das suas referências Richards expõe: “A perseguição simultânea dos hereges e bruxos
pela inquisição papal, estabelecida em 1227, é considerada por Russel como significando que a
bruxaria havia então passado a ser vista como uma forma de heresia. (RICHARDS, 1988: 85)
Nesta perspectiva, as práticas populares de cura e as práticas sexuais, como a sodomia,
feitiçaria e o curandeirismo era consideradas de todo modo pecaminoso pela Igreja. Teremos
assim o que podemos chamar de intolerância étnico-religiosa, contra as mulheres,
perseguindo-a e nominando-as preconceituosamente de “bruxas”, alegando elas terem
ligações com ideias satânicas. Entretanto, vale ressaltar que está presença dominante e por vez
intolerante e extrema da instituição católica, não eliminou inteiramente da cultura européia da
época valiosas manifestações populares que, mesmo com a condenação dos padres e demais
autoridades da época, foram preservadas e até hoje constituem referências importantes para a
cultura mundial. Le Goff ao se referir as resistências do mundo cristianizado vai nos dizer
que:

O que resistiu mais a que se estabelecesse o novo Deus não foram os antigos deuses
pagãos, mais certas práticas ligadas à magia ou a àquilo que o cristianismo chamará
de superstições: culto das árvores, culto das fontes; [...] Convém, contudo, não
esquecê-las. Trata-se de crenças, e às vezes de práticas (LE GOFF, 2017: 21)

Percebe-se assim, portanto que mesmo na Idade Média, e apesar de todo o cuidado da
Igreja com a manutenção do seu domínio, muitas manifestações populares fugiam ao seu
controle religioso. Neste cenário social de imponência, suntuosidade e exuberância da Igreja
Católica, única instituição católica da Europa, surge um amplo movimento de contestação e
35

de divisão da igreja. Compreende-se, então que foram muito comuns a perseguição as


mulheres, uma superstição criada pela cultura dominante, em que o catolicismo apresenta seu
conservadorismo numa missão maior que é resguardar os dogmas católicos e a integridade da
fé cristã, controlando todas as práticas religiosas e sexuais consideradas pecaminosas pela
mesma, como a feitiçaria e o curandeirismo.
Subjacente a este contexto e já na modernidade teremos um maior desenvolvimento da
ciência e já não é mais só a igreja a grande perseguidora e controladora das práticas de curas,
a medicina que vai ter de inicio uma ligação muito forte com a Igreja, já que a igreja era a
responsável por educar estas pessoas, passa a lutar de forma mais evidente sobre o controle
das práticas de cura e a perseguir ainda aqueles que manifestavam alguma feitiçaria ou crença
do tipo. Certamente está perseguição não era só a elas mais a tudo que fazia concorrência com
o saber médico das academias, havendo uma imposição do saber medicinal em
desenvolvimento sobre as práticas populares. A Igreja assim, matinha naquela época um
poder muito expressivo, logo aqueles que enfrentavam seu poder eram chamados de Hereges
ou infiéis. Por outro lado apesar de toda perseguição sofrida as bruxas, tidas como
endemoniadas, malfeitoras e como grandes ameaças, resistiram, ressignificaram sua missão e
permanecendo entre nós sob outras denominações.
Para tanto é preciso salientar que ao enxergamos o imaginário relacionado ás
mulheres, percebemos que, ao longo dos tempos, as representações do feminino e masculino
foram construídas mediante algumas crenças enraizadas no universo social de determinados
grupos e épocas. Ou seja, Igreja e Estado reagem conforme as ideias que circulavam nesse
universo. Assim teremos o sagrado e o místico que apartir de então confundem-se em rituais,
práticas e dogmas, passados de geração a geração, legitimado no caso do período em questão,
principalmente pelo discurso religioso e científico.
Assim para melhor compreendermos, a prática e a atividade de cura dos antepassados
no Brasil colonial e na modernidade fazem-se necessário no reportamos ás origens das
atividades de cada ofício e as relações complexas e variáveis que existia para os que exerciam
está atividade. Entretanto, tal situação é produto de um longo processo histórico, marcado por
antagonismos e conflitos que se estenderam na Europa Ocidental, desde a Idade Média, até o
período colonial brasileiro, onde teremos as primeiras escolas de cirurgias. Durante todo este
período perceberemos como as relações culturais e sociais foram marcadas por diferenças, e
como os paramentos curativos de uma medicina européia, fundada em moldes antigos e
medievais foram transpostos para o Brasil colonial. (VIOTTI, 2012: 16).
35

1.2 Práticas Medicantes e os saberes Médicos na colônia do Além-mar


No período colonial, a religiosidade, especificamente a católica fora implantada no
Brasil, através dos jesuítas, foram eles a incorporar os primeiros elementos cristãos na
América portuguesa, ou seja, a chamada Companhia de Jesus iniciava suas atividades na
colônia baseada na cristandade Européia, dava-se início assim uma reordenação social e
moral, baseada nos valores cristãos. Em uma missão que se fez presente e ativa, logo os
desafios e as dificuldades se fariam presente. “Os grandes desafios que se impuseram aos
portugueses recém-chegados à então Terra de Santa Cruz foram muitos, como a implantação
de uma estrutura administrativa, a progressiva ocupação territorial, o assentamento dos
colonos, a organização dos primeiros engenhos açucareiros e o enfrentamento de uma
geografia, uma flora e uma fauna desconhecidas” (CALAINHO, Daniela, 2005: 61-75).
No entanto toda está dificuldade seria apenas um detalhe diante da missão maior dos
jesuítas que era a conversão dos gentios. “A incorporação espiritual do novo território foi
missão fundamental a que se dispuseram os jesuítas, viabilizada pelo projeto catequético,
expressão de uma vocação universal que caracterizou esta nova cristandade, apartir do século
XV, com a expansão do missionarismo” (CALAINHO, Daniela, 2005: 62-63).
Para além de toda está propagação cristã dos jesuítas, os mesmo tinham por outra
missão cuidar da saúde da colônia. Para tal missão vinha de Portugal alguns homens formados
na arte médica, só que é preciso deixar claro que nem sempre, ou melhor, dizendo na maioria
das vezes, quem chegavam para tal missão era de certa forma inexperiente e desconhecedor
de tal arte, assim iam aprendendo na prática o ofício, estes se diziam físicos, sangradores e até
cirurgiões (CALAINHO, Daniela, 2005: 64).
Para Daniela Buono “a escassez de médicos leigos, formados por escolas de medicina
na Europa, pelo menos até o século XVIII, fez dos jesuítas os responsáveis quase que
exclusivos pela assistência médica no primeiro século de colonização do Brasil.”
(CALAINHO, Daniela, 2005: 64).
Estes ainda segundo a mesma foram aprimorando seus conhecimentos mediante
contato com outras pessoas que tinha dentro da colônia algum conhecimento. Fazendo uso de
terapêuticas diversas, irão aproveitar muito da medicina indígena, malgrado a tudo isto as
práticas mágicas e ritualísticas dos indígenas não serão bem vistas e nem aceitas, de imediato
os jesuítas se assustam, pois seus olhos estão diante de um povo, de uma sociedade totalmente
diferente do comum da mentalidade europeia. Daniela Buono nos expõe:
35

Os olhos dos jesuítas estavam diante de uma sociedade extremamente diferente,


cujos costumes, crenças e ritos por vezes os assombraram, exigindo persistência e
determinação ao lidar com o canibalismo, com a poligamia, com o incesto, com
suas crenças e com a organização, para eles caótica, do modo de vida do indígena.
O Novo Mundo povoava-se de ameríndios tidos como bárbaros, ferozes, quase
animais, intensificando-se os propósitos jesuíticos de resgatá-los desta espúria
condição. Nóbrega, indignado, via-os como “cães em se comerem e matarem, e são
porcos nos vícios e na maneira de se tratarem”, “gente de condição mais de feras
bravas que de gente racional”. Para Anchieta, inclusive, a própria integração e
convivência tranqüila do indígena com a natureza colonial, para ele avassaladora,
perigosa e misteriosa, era claro indício de animalidade (CALAINHO, Daniela,
2005: 71)

O repúdio apresentado aos indígenas gera certas determinações e persistência por parte
dos jesuítas em combater certo canibalismo, para isto e já nos primeiros anos da colonização,
os pajés serão os alvos principais dos padres missionários. Aqui está outro ponto em que o
olhar demonológico dos jesuítas vai se intensificar sobre os nativos, as práticas mágico-
religiosas dos gentios, cujos protagonistas principais eram os pajés, era de todo modo a
grande figura indígena. Carlos Alberto Miranda vai dizer “O pajé era um misto de profeta e
médico que estabelecia o contato entre o mundo dos homens e dos espíritos.” (MIRANDA,
2004: 196).
Podemos assim dizer que os jesuítas foram os primeiros a trazerem a arte médica para
as terras brasileiras, no entanto com o passar do tempo, foram surgindo os demais
profissionais que exerceram a medicina no Brasil colonial, foram, predominantemente, os
físicos, os cirurgiões, barbeiros, boticários, que aqui chegam com as expedições. Por outro
lado já temos aqui aqueles que praticavam a cura por outros meio, ou seja, curandeiros,
benzedeiras, que tinham um meio próprio de controlar suas enfermidades. Entretanto a
inquisição e o ensino dogmático dos jesuítas criaram sérios obstáculos aos avanços dos novos
conhecimentos científicos, vários foram os fatores das dificuldades médicas no Brasil
colonial, podemos citar: a inexistência de profissionais na área, desinteresse dos portugueses
em vim para o Brasil e principalmente a proibição do ensino superior na colônia. A presença
de médicos na colônia se deve em muitos casos ao Santo Ofício que os obrigou a virem para o
Brasil, de todo modo, se viu antes da emergência da clínica e do ensino especializado, nessas
terras a possível cura para os males através das ações do curandeiro e práticos de parcos
conhecimentos.
Somente após a chegada da Família Real e sua corte no ano de 1808 é que se terá a
institucionalização do saber Médico no Brasil. Já no ano de 1808 duas escolas de cirurgia será
construída em solo brasileiro, uma na Bahia e outra no Rio de Janeiro. Mais tarde e já no ano
de 1832 chega às faculdades de Medicina. No entanto antes do estudo oficial da arte da cura,
35

já existia nos séculos anteriores diversas outras formas e personagens que a seu modo buscava
tratar o doente e as doenças. Para tanto quando os primeiros profissionais da saúde chegam
ao Brasil se deparam com os curandeiros, aquém os mesmos vão dizer que não estavam
habilitados para o exercício da prática médica. No entanto, as críticas acerca da ação de cura
dos curandeiros não se relacionam aos religiosos, recaindo, principalmente sobre os
“empíricos”. Que em grosso modo, esses eram homens e mulheres que praticavam suas curas
baseadas em suas experiências com ervas, e orações. E como bem ressaltar Ana Carolina
Viotti, no período colonial terá uma existência de uma medicina plural e heterogênea, onde
temos: o mito de empirismo e o conhecimento acadêmico, a utilização de materiais diversos
em prol da cura, desde excrementos a simpatias, se referindo as prescrições de plantas nativas
para sana as enfermidades. (VIOTTI, Ana Carolina, 2012: 12-15).
Em torno das práticas terapêuticas da época surgiram muitos relatos, aguçando o
imaginário em diversas épocas diferentes. O confronto que se estabeleceu entre a medicina
científica versus a medicina “rústica” e empírica herdada de gerações passadas, pelas muitas
mulheres que detinham o uso deste conhecimento, aflorar nossa imaginação até os dias atuais.
É plausível apontar que o imaginário da mulher como portadora do mal, como a detentora de
conhecimentos, referente à bruxaria, tem data marcada na história, se constituindo como um
dos marcos mais marcantes da História, denominada História Medieval. (CÂMARA, 2016:
221-230). As ações destas mulheres eram resultado de um discurso normatizador, oriundo das
tradições portuguesas e européias transplantadas para a colônia. Em uma trajetória de
múltiplas fases, os papeis desempenhados, assim como suas ações principalmente no caso das
mulheres pobres poderiam caracterizar um modo de resistência, no qual sua sobrevivência
estava em jogo, devida ás circunstâncias do contexto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Gilson Xavier. Das vassouras aos Ramos: o arquétipo das benzedeiras nas
antigas bruxas medievais. Mandrágora, V.21. n.21, 2015, p. 119 – 133. Disponível em:
https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/MA/article/viewFile/5125/4853

BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo: ed. Unisinos, 2003

CALAINHO, Daniela Buono. Jesuítas e medicina no Brasil colonial, Tempo, Rio de


Janeiro, n° 19, pp. 61 – 75

CÂMARA, Yls Rabelo. Das bruxas medievais ás benzedeiras atuais: A oralidade como
manutenção da memória na arte de curar – pesquisa Exploratória. Revista do GT de
literatura oral e popular da ANPOLL, BOITATÁ, Londrina, n. 22, jul – dez 2016.
35

CONCEIÇÃO, Alaíze dos Santos. Ser rezadeira: experiências e práticas culturais de


participantes da Medicina popular. Mangueira – Recôncavo sul da Bahia (1950 – 1970).
Revista fazendo Gênero 8 – corpo – violência e poder, p. 1- 7, 2008.

MIRANDA, Carlos Alberto Cunha, A arte de curar nos tempos da colônia: Limite e
espaços da cura. Recife: Fundação de cultura cidade do Recife, 2004, 487p.

RICHARDS, Jeffrey. “Sexo, Desvio e Danação: As minorias na Idade Média”. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar ed., 1993.

SOUZA, Laura de Melo. O Diabo na Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia de
Letras, 2005.

VIOTTI, Ana Carolina, As práticas e os saberes médicos no Brasil Colonial (1677 – 1808)
– Franca: [s.n], 2012.
35

“A ESCRITA DA HISTÓRIA”:
GUIA POLITICAMENTE INCORRETO DA HISTÓRIA DO BRASIL.

Maria Isadora Leite Lima


Sônia Meneses

Resumo: A partir da História Pública que tem se configurado como um amplo espaço de
discursão e debate acerca dos usos das narrativas populares de passado, procuramos colocar
em perspectiva reflexões quanto aos abusos e apropriações da Historiografia, frente às novas e
crescentes demandas por História pelo público leigo, demanda que é suprida por profissionais
sem formação, como é o caso do jornalista Leandro Narloch em sua obra Guia Politicamente
Incorreto da História Brasil, que ao tecer sua narrativa do passado desconsidera processos
históricos, sob uma visão factual, repleta de anacronismos e preconceitos, deixando claro seu
objetivo em detratar e desconstruir o que ele chama de “historiografia politicamente correta”.
Nesse sentindo, torna-se fundamental compreender como tal narrativa é construída.
Palavras-chave: Guia Politicamente Incorreto. História Pública. Abuso da História.

Introdução
A História Pública tem movimentado discussões surpreendentes sobre o alcance,
divulgação e a produção de historiadores como também de não historiadores; como é o caso
da obra Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil (2009), do jornalista Leandro
Narloch. Ao expressar claramente sua rejeição quanto à produção acadêmica, Narloch ressalta
que sua obra tem o objetivo de reunir histórias que vão diretamente contra o que ele chama de
“historiografia politicamente correta” e ainda “enfurecer um bom numero de cidadãos”
(NARLOCH, 2009, p. 25).
Nesse sentido, torna-se fundamental analisar como é construída tal narrativa, a fim de
problematizar o papel social e a responsabilidade na escrita dessa história produzida, haja
vista que, na contemporaneidade vivenciamos o que Malerba (2014) chama de “entusiasmo
pela história viva”. Para tanto, realizaremos um estudo sobre as fontes e informações que o
autor traz em seu livro, destacando escolhas historiográficas, utilização e abordagem das
fontes.
É nítido no trabalho de Narloch, apresentado no prefácio do livro, que seu objetivo é
investir contra o trabalho dos historiadores, de professores, livros didáticos, considerados por


Graduanda do Curso de Historia da Universidade Regional do Cariri – URCA/CE. Bolsista de Iniciação
Científica – PIBIC (CNPq). isadora77ll@gmail.com.

Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É professora adjunta da Universidade
Regional do Cariri URCA. sonia.meneses@gmail.com.
35

ele militantes, e propor uma narrativa da História que longe de problematizar os processos
históricos, afasta-se do rigor da pesquisa Historiográfica.
Promover discussões sobre a obra de Narloch significa pensar ainda, em como a
História e a Historiografia estão sendo apropriadas no tempo presente, e como os discursos
sobre memória, lembrança e esquecimento são apresentados. Antoon De Baets em seu artigo
A theory of the abuse of History, é enfático ao escrever que “é a história que pode sofrer
abuso, não o passado”, a escrita do passado influencia o presente, o futuro e a formação da
consciência histórica, por isso a importância do rigor científico e metodológico da pesquisa,
pois o abuso da História sempre provoca danos.

Para além da “Torre de Marfim”: a História Pública e o debate sobre as narrativas de


passado na contemporaneidade.
A História Pública apresenta-se como um amplo espaço de debates plural e
colaborativo, em tempos em que “tem havido uma explosão de representações populares do
passado” (LIDDINGTON, 2011, p. 31); volvendo o seu olhar para as apropriações e
narrativas de passado feitas com, para e pelo público. Como ressalta a historiadora britânica
Jill Liddington, no livro Introdução à História Pública:

O passado popular é apresentado como se estivesse logo ali, dobrando-se a


esquina, a um mero estalar de dedos. Não é preciso passaporte ou uma longa
viagem; você só tem que usar o controle remoto da TV, clicar com seu mouse,
navegar pelo History Channel, e instantaneamente – muitas vezes, prazerosamente
– você estará lá. O passado, ou ao menos suas formas populares, esta a nos rodear.
E passado significa negócio. (LIDDINGTON, 2011, p. 31-32)

Como dissemos antes, na contemporaneidade vivenciamos o que Malerba (2014)


chama de “entusiasmo pela história viva”, em que muitas vezes a demanda por história é
suprida por profissionais sem formação. Nesse sentido, uma “discussão fundamentada e
comprometida sobre as diferentes relações estabelecidas entre a História e seus públicos é
algo irrenunciável” (MAUAD, ALMEIDA, SANTHIAGO, 2011, p. 12). Tendo em vista, o
papel ímpar da História e da Historiografia para a formação da nossa consciência histórica.
Nesse sentido, Liddington afirma que a História Pública é “o novo nome para a
história mais velha de todas” (LIDDINGTON, 2011, p. 34); destacando sua origem na década
de 1970 nos Estados Unidos com a grande crise de empregos, em especial entre os formados.
Ainda sobre este cenário Malerba (2014) ressalta
35

Embora a prática seja muito anterior, muitos autores já mostraram como o conceito
de “história pública” surgiu com a grande crise de empregos da década de 1970
nos Estados Unidos, quando o historiador Robert Kelley, entre outros, procurou
conceituar esse fenômeno do surgimento (ou da criação!) de carreiras ou de um
potencial mercado de trabalho alternativos à carreira acadêmica para
historiadores que não conseguiam ingressar nos postos das universidade.
(MALERBA, 2014, p)

O termo História Pública, abrange ainda muitos outros panoramas “se constituindo
num campo marcadamente abrangente, difuso e mutante” (MALERBA, 2014, p. 28);
apresentando-se de formas variadas à medida que este se manifesta nos diversos cenários
nacionais. Como aponta Jurandir Malerba ao ressaltar as palavras de Jill Liddington e Simon
Ditchfield

O uso consciente do termo “história pública” cresceu de maneiras distintas – em


lugares, momentos e de maneiras diferentes. Ela varia entre os países relativamente
“novos” que se reinventam como repúblicas (e. g. Estados Unidos) ou que se
definem como distintos do seu passado colonial (por exemplo, Austrália); “velhas”
nações (por exemplo, a Grã- -Bretanha), que podem eventualmente se sentir mais
confortáveis com a palavra “herança”; e entre, digamos, as nações de língua
francesa ou italiana, que usam uma terminologia diferente (por exemplo, patrimoine
na França e patrimonio na Itália, sendo que ambos termos têm conotações
nacionais muito particulares) (LIDDINGTON; DITCHFIELD 2005, p. 40 apud
MALERBA, 2014, p. 28).

No Brasil a discursão acadêmica sobre História Pública é bastante recente, ainda


assim, “a junção dessas duas palavras tem sido vista, pelo menos em nosso país, com suspeita
e apreensão – ou ao menos com uma dose equivalente de precaução e entusiasmo”
(SANTHIAGO, 2011, p. 23). Nessa perspectiva, Malerba destaca que “a historiografia
acadêmica brasileira ainda tem jogado um papel muito tímido, ao abrir mão da ocupação dos
espaços públicos de debate para manter-se confinada nos circuitos fechados da academia”
(MALERBA, 2014, p. 31)
A partir da emergência das novas mídias - a exemplo da internet - as formas de se
relacionar com a História e a memória se multiplicaram e se diversificaram de forma
espantosa, “pouco ou nada dependendo da instituição de um campo formalizado de debates”
(SANTHIAGO, 2011, p. 24); destacando-se à produção de pessoas sem treinamento
profissional, tornando-se a indústria o grande regulador destas produções, que buscam em sua
grande maioria negar a historiografia em vistas de suprir a “gana mercadológica”.
Como aponta Fausz (2007)

Nesta “era Harry Potter”, a rentabilidade dos livros que entretêm supera em muito
a qualidade dos livros que educam, com base na profecia autorrealizável de uma
35

indústria editorial guiada pela oferta, indústria essa determinada a demonstrar que
há pouca demanda do público por estudos sérios. Essa mentalidade de mercado de
massa atinge o seu pico durante grandes aniversários, quando o impacto intelectual
de livros produzidos por especialistas acadêmicos é superado pelo apelo comercial
de livros escritos por jornalistas. Sobrecapas encantadoras alardeando um livro de
importância exagerada muitas vezes disfarçam a decepção de títulos errados,
simplesmente se acrescentando “A verdadeira estória” (FAUSZ 2007, p. 576-581
apud MALERBA, 2014, p. 36).

Desse modo, há alguns anos acadêmicos comprometidos em promover debates e


reflexões acerca desse panorama, trazem por meio da História Pública questões intrínsecas
para tais discussões em que:

Seguindo a fórmula sob a qual o termo public history (com suas diversas traduções)
se consagrou, tendemos em um primeiro momento a compreender a história pública
como uma prática eminentemente voltada àquela “divulgação histórica” a que
aludimos; e, de fato, a produção de matérias para circulação e consumo de uma
audiência mais ampla que nossos pares acadêmicos consiste em uma das
modalidades mais nobres. Entretanto, os sentidos atribuídos à história pública
contemplam também os engajamentos (muitas vezes conflituosos, mas ainda assim
instigantes) entre o historiador e a produção acadêmica, de um lado, e os diletantes
e seus trabalhos que respondem a demandas próximas e imediatas de outro.
(MAUAD, ALMEIDA, SANTHIAGO, 2011, p 12)

Em meio a essa seara, “a História Pública age no reconhecimento da legitimidade


desses trabalhos tidos como ‘amadores’, bem como no delineamento das diferenças entre as
duas práticas; ou em uma atuação colaborativa, na qual os diferentes agentes produtores
trabalham dialogicamente”. (MAUAD, ALMEIDA, SANTHIAGO, 2011, p, 12). Tendo em
vista que, a partir da História Pública somos conclamados a atuação efetiva e reflexiva acerca
deste campo.
A História Pública neste contexto trás reflexões importantes para o desenvolvimento
da pesquisa, ao se consolidar como espaço de discussão crítico e problematizador no que se
refere à produção historiográfica. Como destaca Ricardo Santhiago:

O pensar a história pública também já está bastante consolidado, se a


considerarmos expressão como uma espécie de guarda-chuva conceitual capaz de
abrigar tudo aquilo que tem sido pensado e escrito em chaves como: usos da
memória, usos do passado; demanda social; percepção pública da história;
divulgação cientifica da história; interpretação e curadoria; empoderamento e
pesquisa-ação; apropriações midiáticas, literárias e artísticas da história – e assim
por diante. (SANTHIAGO, 2011, p, 26)

Nessa perspectiva, analisar e problematizar as formas populares de apresentação do


passado em que, como ressalta Malerba (2014) “hoje o passado significa “negócios” e, não
menos importante, “poder” ”significa compreender ainda, como no Brasil, diferente de outros
36

países este campo é caracterizado “onde a perícia narrativa e as articulações mercadológicas


parecem ser suficientes para garantir a qualquer leigo o domínio do ofício”. (MALERBA,
2014, p. 32)

Conforme já observaram alguns autores importantes como Roy Rosenzweig, o lado


bom da coisa é que existe uma demanda social enorme por história, ou seja, a
história está “bombando” (ROSENZWEIG 2000, p. 35-38). Mas há também um
lado sombrio desse fenômeno, que é justamente o da qualidade dessa história feita
por pessoas sem treinamento profissional. Um dos maiores especialistas na área,
Roy Rosenzweig, é muito crítico. Essa história produzida por leigos costuma ser
uma história muito ruim. A história social, processual, interpretativa, estrutural,
analítica, crítica, não chega ao grande público, e sim a história paroquial,
episódica, factual, pitoresca, anedótica, biográfica, das grandes batalhas, em
rápidas narrativas dramáticas inflamadas. Para Rosenzweig, a história é
importante para o público. O problema é que essa história popular é de qualidade
questionável. (MALERBA, 2014, p. 32)

A exemplo dessas produções de representação e apropriação populares do passado


temos o livro Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, do jornalista Leandro
Narloch (2009), que ao se apropriar da historiografia constrói uma narrativa que toma fatos da
história brasileira, num tipo de história que Malerba (2014) denomina de anedótica, e que
caracteriza muito bem como são construídas essas narrativas e ainda como pode ser
desastroso o abuso da História.

O Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil: da Escrita ao Abuso da História.


O Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil foi lançado em 2009 pela editora
Leya, “entrando imediatamente para a lista de best-sellers e alcançando a marca de mais de
100 mil exemplares vendidos em poucas semanas” (MALERBA, 2014, p, 38). O livro é
dividido em vários capítulos que buscam narrar à história do Brasil através do índio, do negro,
de personalidades como Machado de Assis, José de Alencar, Jorge Amado, Graciliano
Ramos, Gilberto Freyre, Santos Dumont, dentre outros. Por fim Narloch encerra seu livro
dando ênfase à conjuntura politica brasileira durante o período da Ditadura Militar, com o
capitulo intitulado de “Comunistas”.
Ao longo de seu trabalho Narloch, se apropria da historiografia sob uma visão
eurocêntrica e preconceituosa, sem nenhum compromisso com o rigor científico e
metodológico da pesquisa em História. A fim de construir “verdades” e “preencher espaços”.
Nesse sentido, Narloch escreve

É hora de jogar tomates na historiografia politicamente correta. Este guia reúne


histórias que vão diretamente contra ela. Só erros das vítimas e dos heróis da
36

bondade, só virtudes dos considerados vilões. Alguém poderá dizer que se trata do
mesmo esforço dos historiadores militantes, só que na direção oposta. É verdade.
Quer dizer, mais ou menos. Este livro não quer ser um falso estudo acadêmico,
como o daqueles estudiosos, e sim uma provocação. Uma pequena coletânea de
pesquisas históricas sérias, irritantes e desagradáveis, escolhidas com o objetivo de
enfurecer um bom número de cidadãos. (NARLOCH, 2009, p. 25)

O Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil surge em meio a esse contexto,


sob a influência de um fenômeno que tem seu estopim nos EUA na década de 1970,
justamente com a produção dos guias como o "The Politically Incorrect Guide to American
History" (o guia politicamente incorreto da história americana), do historiador Thomas Woods
Jr. Caracterizando uma “explosão ruidosa de formas populares de apresentação do passado”
(Malerba, 2014, p, 31).
No caso específico do Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, destaca-se a
utilização de um bom número de pesquisas acadêmicas sérias. Narloch se aproveita da
credibilidade dessas fontes para agregar confiança ao texto. Nesse sentido, Jurandir Malerba
destaca que “do ponto de vista da produção da escrita histórica, o texto se apoia na
historiografia disponível, ora para corroborar seus argumentos, ora para detratá-la quando dela
discorda.” (MALERBA. 2014, p. 38)
No Guia, é perceptível o interesse que Narloch tem em desenvolver uma narrativa que
mais do que se apropriar da historiografia brasileira, busca a partir desta legitimar um discurso
fragmentado do passado, que se esgota em si mesmo. “Sob a bandeira do “politicamente
correto”, mal se disfarça uma visão altamente conservadora, quando não reacionária,
retrógrada, eurocêntrica e preconceituosa da/sobre a história do Brasil.” (MALERBA. 2014,
p. 38).

Por exemplo, em relação a negros e índios, Narloch reproduz uma interpretação


típica das classes senhoriais brasileiras do século XIX segundo a qual a construção
do Brasil foi obra de europeus (portugueses) e o Brasil fez-se quase que apesar da
existência de negros e índios. (MALERBA, 2014, p. 38)

Esses discursos preconceituosos sobre o passado, “não são fruto de análise, mas de
juízos de valor metodologicamente mal conduzidos, ao produzir obras de cunho histórico que
só servem para deslegitimar a historiografia” (SANTHIAGO, 2011. p.29-30). A escrita do
passado influencia o presente e nossa perspectiva de futuro, promover uma cultura
negacionista, que desconsidera processos históricos, pluralidades temporais, etc. significa ir
contra os debates e políticas de inclusão, por exemplo.
36

Logo, torna-se fundamental analisar e promover discussões acerca do livro Guia


Politicamente Incorreto da História do Brasil, que ao construir sob a fórmula de uma
“proposta ‘didática’, capítulos com nomes de personagens icônicos, anedotas e linguagem
coloquial, destacando os tópicos mais ‘cabeludos’ de cada personagem” (MALERBA, 2014,
39 - 40) gera uma narrativa que acaba se esgotando em si mesma, negando à História a
possibilidade de ser analisada por meio dos processos históricos fundamentais para a
formação da consciência histórica.
A fim de compor sua narrativa, Narloch utiliza uma série de autores e fontes
historiográficas como a historiadora Maria Regina Celestino de Almeida, ou ainda o
sociólogo Florestan Fernandes, dentre outros. Desse modo, é de estrema importância que não
nos esqueçamos da “responsabilidade político-social do trabalho intelectual do historiador
com a memoria coletiva” (MAUAD, ALMEIDA, SANTHIAGO, 2011, p, 13);
Pois a “crescente demanda por história pelo público leigo nos últimos anos, demanda
que vem sendo suprida por profissionais não treinados na academia” (MALERBA, 2014, p,
27), têm produzido implicações quanto ao papel social da História.
Com efeito, pensar os usos do passado na contemporaneidade significa compreender
ainda, como a História Pública, a História do Tempo Presente, memória e escrita da história
estão intimamente ligadas por uma rede de sentidos e significados que tomam formas variadas
em meio a um cenário amplo, marcado pelo imediatismo que define o que é ou não
importante.
O que se destacam em algumas dessas obras produzidas por não historiadores, como é
o caso da produção de Narloch é o descuido e descaso com abordagens de processos
complexos e mais amplos, que se entrelaçam para formar o contexto do Brasil no período
colonial, por exemplo. Dedicando-se a uma abordagem que Malerba destaca como sendo “um
mosaico de episódios contados em tom de chiste, de forma pilhérica, picaresca, enfim, de
forma anedótica, conceituada como uma narrativa concisa” (MALERBA, 2014, p, 40), ou
seja, é construir uma narrativa que não requer nenhuma duração temporal nem
contextualização.
Sobre o conceito de anedota Jurandir Malerba destaca ainda que:

O que importa nelas não é contar ou explicar a história, mas impor um conjunto de
preceitos morais a partir do que se considera (moralmente) certo e errado, ou
(politicamente) correto ou incorreto. Narloch, provavelmente sem consciência
disso, retoma uma modalidade de escrita histórica antiga, anterior à construção da
história como ciência no século XIX, baseada na escrita rápida, alegórica e
normativa, garimpando na historiografia episódios picarescos que corroborem suas
36

posições e ataques conservadores, porém ironicamente travestidos de


“politicamente incorretos”. (MALERBA, 2014, p, 41)

Nesse sentido, ao utilizar um bom número de fontes historiográficas, vemos uma falta
de preocupação com o rigor metodológico da pesquisa, essencial para o desenvolvimento de
um trabalho ético e responsável na escrita da História.
Chegamos então a um ponto crucial para este trabalho, a escrita da História. Que nos
remonta a um questionamento importantíssimo: Quais os impactos desta produção para a
historiografia e para a formação da consciência histórica? Para nos auxiliar nessa análise e
reflexão recorremos então ao historiador Antoon De Baets que escreve sobre algo que esta
intimamente ligada a produções como a de Narloch, o abuso da História.
Escreve De Baets. Aos:

Historiadores que se dedicam à ética acadêmica, quando tentam resumir o que


realmente está em jogo nos casos de abusos graves da história, devem lembrar as
palavras de Voltaire: “Aqueles que o fazem acreditar em absurdos podem levá-lo a
cometer atrocidades”(DE BAETS, 2013, p, 54)

Fica evidente, que a História mais do que uma construção discursiva, reflexão e
problematização sobre o passado, tem papel importante na construção de nossas relações com
o outro, sobre nossa memória, posicionamento e engajamento político social, na naturalização
ou não de preconceitos, na legitimação dos direitos e deveres de cada sujeito social, etc. Indo
ao encontro a de nossa forma de ser e estar no mundo.
Quando analisamos a construção da narrativa do índio colonial apresentada por
Narloch, por exemplo, destaca-se em seu discurso o preconceito eurocêntrico no tratamento
do tema. Nesse caso, a historiografia é utilizada para legitimar uma narrativa da história que
em nada se aproxima da reflexão proposta pela obra dos autores citados por ele. Nessa
perspectiva, De Baets escreve ainda que:

Os abusos ameaçam essa confiança e, portanto, a autoridade e a eficiência da


historiografia profissional. Engendram custos sociais em termos de depreciação da
credibilidade da profissão de historiador e rebaixam a qualidade do discurso
histórico como um todo. Alimentam crenças em mitificações da história e seus usos
para propaganda ou, ainda, induzem ao esquecimento da história previamente
conhecida. O dano que se causa à produção historiográfica é um dano social. (DE
BAETS, 2013, p, 26)
36

Ainda sobre a escrita da História e como as discursões que a envolvem são caras para
a análise crítica, somos levados as palavras do historiador Antoine Prost em seu livro Doze
lições sobre a história, em que o autor escreve:

O historiador não exige que as pessoas acreditem em sua palavra, sob o pretexto de
ser um profissional conhecedor de seu ofício - embora esse seja o caso em geral -,
mas fornece ao leitor a possibilidade de verificar suas afirmações; o “método
estritamente científico a utilizar na exposição” (PROST, 2008, p, 55)

A partir do Guia somos instigados a refletir sobre os usos da historiografia por


profissionais de outras áreas, e mais, como esta prática nos coloca em contato com questões
fundamentais da contemporaneidade, no que se refere ao papel social do historiador e da
história frente às novas conjunturas políticas, sociais e culturais, em que é imprescindível
gerar reflexões, a fim de ocuparmos os novos espaços apresentados pela História Pública.
Nesse sentido, aponta Antoine Prost que “a crítica é a própria história e ela se afina à medida
que a história se aprofunda e se amplia” (PROST, 2008, p, 57).

Considerações finais
Neste artigo nos propusemos colocar em perspectiva o tema da escrita e do abuso da
História sob às luzes da História Pública, que tem se consolidado como uma área de reflexão e
debate acerca das apropriações e usos do passado feitos com, para e pelo público. Tomando
como exemplo a obra do jornalista Leandro Narloch (2009), intitulada Guia Politicamente
Incorreto da História do Brasil, em que o autor tece sua narrativa ao se apropriar da
historiografia disponível, com vistas legitimar sua própria abordagem da História, marcada
por distorções, preconceitos em muitos sentidos, anacrônica. Destaca-se ainda a falta de
responsabilidade social na produção de informações sobre o passado.
Nessa ótica, nossas reflexões foram estimuladas pelos historiadores brasileiros
Jurandir Malerba (2014), Ana Maria Mauad, Juniele Rabêlo e Ricardo Santhiago (2016); pela
historiadora britânica Jill Liddington (2011), pelo historiador belga Antoon De Baets (2013) e
ainda pelo historiador francês Antoine Prost (2008).
Desse modo, somos chamados a partir da discursão proposta por esses autores a nos
debruçarmos sobre a análise e problematização em torno da nova conjuntura, em que a
demanda do público por História, tem gerado narrativas populares do passado, que a exemplo
do Guia refletem claramente o despreparo, abuso e desleixo para com a Historiografia; ao
desenvolver narrativas que não buscam problematizar, pelo contrário, intentam contra o
36

trabalho de historiadores, professores e livros didáticos. Uma história cuja matriz é,


sobretudo, negacionista.
Com efeito, este debate torna-se fundamental na contemporaneidade, pois o diálogo
com as fontes e com autores que se dedicam a compreender os mecanismos, processos e
escolhas historiográficas e de discurso que envolvem produções como a de Narloch no Guia,
nos permite ter acesso a múltiplas áreas do conhecimento, afastando-se dos reducionismos,
em vistas de contribuir para a construção de um conhecimento crítico, efervescente, atual,
dinâmico e colaborativo, comprometido com o rigor metodológico e cientifico que a pesquisa
em História exige, tendo em vista, o seu papel impar na construção da nossa consciência
histórica.
Logo, fica claro a necessidade de rompermos a “Torre de Marfim”, pois realçar a
escrita da história, como aponta Malerba (2014) “não é e nem pode ser prerrogativa,
propriedade de quem quer que seja” sem deixar de lado a crítica; pois as diversas formas de
apropriação do passado nos permitem desenvolver reflexões e práticas sobre as novas
possibilidades de se relacionar com a História e com o passado. Chegou, pois, a hora de
ocuparmos esses espaços, para que de forma colaborativa e crítica possamos vivenciar este
leque de possibilidades criadores que a História nos permite ter acesso, por meio dos
processos históricos fundamentais para nossa compreensão.

Referências
DE BAETS, Antoon. Uma teoria do abuso da História. Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 33, nº 65, p. 17-60. 2013.
MALERBA, Jurandir, Acadêmicos na berlinda ou como cada um escreve a História?:
uma reflexão sobre o embate entre historiadores acadêmicos e não acadêmicos no Brasil
à luz dos debates sobre Public History. Hist. Historiogr. Ouro Preto, 2014.
NARLOCH, Leandro. Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil. Editora Leya,
São Paulo, 2009.
PROST, Antoine. Doze lições sobre a história, Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2008.
SANTHIAGO, Ricardo. Duas palavras, muitos significados: Alguns comentários sobre a
história pública no Brasil. In: MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele Rabêlo de;
SANTHIAGO, Ricardo. (Org.) História pública no Brasil: Sentidos e itinerários. São
Paulo/SP: Letra e voz, 2011.
36

“PELAS VARZEAS DO RIO JAGUARIBE”:


A EMPRESA UNIÃO CEARENSE E A CONSTRUÇÃO DE UM CEARÁ MODERNO

Maria Leopoldina Dantas Máximo


Ana Isabel Ribeiro Parente Cortez Reis

Resumo: Este artigo visa analisar as relações sociais, jogos de poder e interesses em torno da
proposta de uma linha de carros puxada a cavalos entre as vilas de Icó e Aracati no Ceará, sob
a justificativa de melhorar o transporte de pessoas e de mercadorias, do interior da província
ao litoral pela chamada Estrada Geral do Jaguaribe, discutido entre 1857 a 1861. Baseado nas
discussões acerca dos projetos oriundo do ideário progressista/ modernizador, que tornaram-
se a principal discussão sobre o interior do território cearense, na segunda metade do século
XIX.
Palavras chave: Sociedade União Cearense. Pedro Théberge. Modernidade.

Introdução
Na segunda metade do século XIX, projetos de cunho modernizadores tornaram-se a
principal discussão sobre o interior do território cearense. Influenciados pela cultura europeia,
e forjada com ideais iluministas e cientificistas, esses projetos tinham como principal
objetivo, atender a nova concepção do tempo positivista da modernidade, que via no futuro
um tempo onde as coisas evoluiriam. Assim, o futuro era sinônimo de progresso, e só seria
alcançado, a partir da superação da natureza (KOSELLECK, 2006).
A construção de estradas para interligar o território nacional Brasileiro, era um dos
principais projetos desse período; o interior cearense no ideário modernista, precisava ser
dotado de uma modernidade como os outros espaços brasileiros. Como explica Ana Isabel C.
Reis, “os ritmos desse progresso foram colocados em função da agilidade com que as tarefas
politicas do império brasileiro pudessem alcançar as mais longínquas regiões do território”
(REIS, 2017: p. 125), assim, as estradas eram projetadas visando à centralização
administrativa do país.
Nessa mesma perspectiva, acreditava-se que as estradas cearenses, facilitariam a
movimentação no interior território, demostrando uma maior efetivação do “poder” do
homem sobre a natureza e o espaço. Surgia ai, além de uma nova concepção de tempo, uma
nova concepção também do espaço. O relatório provincial do Ceará de 1867, demostrava uma

 Graduanda do Curso de Historia da Universidade Regional do Cariri – URCA/CE. Bolsista de Iniciação


Científica – FUNCAP. Leopoldina.desenho@gmail.com.

Doutora em História pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Professora Adjunta da Universidade Regional
do Cariri - URCA/CE. Bolsista de Produtividade (BPI) da FUNCAP. belparente@gmail.com.
36

preocupação em dominar estes conceitos; para eles, as estradas eram traçadas “segundo as
regras da arte moderna da fadiga dos viajantes, encurta as distancias, poupa o tempo” 1. Essas
estradas ainda contribuíam, para a circulação de produtos e da economia entre os centos
urbanos cearenses.
Localizados, assim como as estradas, em locais estratégicos esses centros urbanos
auxiliavam no domínio territorial, uma vez que “a articulação eficiente do território – da
Nação, da região e ou da cidade – seria formulada como uma questão-chave para a
estruturação da economia e da sociedade” (DANTAS, FERREIRA, & SIMONINI, 2011: p.
87). É nessa perspectiva que surgem trabalhos cartográficos 2, que visavam contribuir para a
formação de um Estado territorial no Ceará, e garantir uma consciência e um domínio do
território cearense.
Nesse artigo, destacamos para analise a proposta de uma linha de carros puxada a
cavalos entre as vilas de Icó e Aracati, sob a justificativa de melhorar o transporte de pessoas
e de mercadorias do interior da província ao litoral, pela Estrada Geral do Jaguaribe. Projeto
proposto por Pedro Théberge ao presidente da província do Ceará, e discutido entre 1857 a
1861, como um dos projetos modernizadores que surgiram no decorrer do século XIX. Assim,
a partir da analise em torno da Sociedade União Cearense3, objetiva-se compreender as
relações sociais, jogos de poder, interesses e conflitos em torno dos envolvidos nesse projeto,
oriundo do ideário progressista/ modernizador.

As Estradas cearenses e a modernização nacional


A construção de estradas, constantemente aparecia nos discursos e debates em torno
do melhoramento da província cearense, Fausto Augusto de Aguiar no relatório provincial de
1850, procura convencer sobre as possibilidades de desenvolvimento dos recursos cearenses,
que, segundo ele, encontravam-se ‘acanhadas’. Para ele, o desenvolvimento da província
aconteceria a partir da “abertura de estradas que estabeleção fáceis communicaçoes, e o

1
Relatorio de presidente de provincia, 1867, p.25.
2
Ver mais em: MÁXIMO, Maria Leopoldina D. & REIS, Ana Isabel R. P. C. A Cartografia de Pedro Théberge:
Modernização do Espaço Territorial do Ceará no Século XIX. Anais do I Seminário Nacional de História dos
Sertões e II Colóquio de História Social dos Sertões, 2018.
3
A proposta da Sociedade União Cearense, aparece pela primeira vez no relatório de presidente da província do
Ceará em 1857, no qual recebeu da “assembléa o privilegio por 20 anos” para incorporar a empresa, - tempo que
nos anos seguinte diminuiu para três – no ano de 1858 o Jornal Pedro II publicou o “Protecto D´estatutos da
Companhia União Cearense”, em que Pedro Théberge apresentou a empresa e buscou acionistas, entretanto, o
projeto nunca passou de uma proposta.
36

melhoramento das actuaes” 4, entretanto, a preocupação em torno dessas estradas, implicava


em uma discursão mínima por parte dos presidentes das províncias.
Em 1861, Pedro Théberge ao escrever um artigo publicado no jornal Diário do
Pernambuco, reafirma a importância da construção dessas estradas, que ainda eram escarças;
elas aparecem como centro de preocupação do governo imperial no decorrer da segunda
metade do século XIX, uma vez que a modernização e a centralização administrativa faziam
parte da construção elitista da nação brasileira. Pedro Théberge traz outro olhar para essas
estradas, a ideia era:

Abrir estradas boas perduráveis entre os pontos principaes da província, não como
se tem usado ate hoje, por curiosos ou afilhados a quem se quer favorecer; mas sim
debaixo da direção de engenheiros, ou pessoas habilitadas nesse genero de
construcçoes todo especial [grifo meu]. 5

Desta forma, elas deveriam ser mais que algo obsoleto, feito de qualquer forma, elas
deveriam, ser feita por pessoas profissionais e seguir ‘as regras da arte moderna’; as estradas
eram assim, “concebidas numa ideia de controle da natureza através do domínio do espaço e
do tempo” (REIS, 2018: p. 69), onde diminuir as distancias figurativa e literalmente fazia
parte dos objetivos do governo imperial, de se fazer presente até mesmo nos lugares mais
afastados.
Nessa compreensão, era necessário conhecer e dominar o território, o que contribuía
diretamente para efetivação do poder sobre o espaço, desta forma, “dominar o território
significava, entre outras coisas, diminuir distancias para que o poder pudesse circular com
mais facilidade” (RAMOS, 2012: p.108). Assim, as estradas possuíam outro objetivo,
centralizar o poder imperial a partir da unidade territorial procurando facilitar as tarefas
politicas do governo, o que por sua vez, contribuiria para a construção da nação brasileira que
estava em curso naquele momento.
Gostaríamos de destacar aqui, a estrada geral do Jaguaribe, que “partia de Aracati,
principal porto da Capitania, descia o rio Jaguaribe, passava em Russas e Icó e seguindo o rio
Salgado ultrapassava a chapada do Araripe para alcançar os sertões do Pernambuco em
direção à Bahia” (JUCÁ NETO, 2007: p. 241); essa estrada configurava-se, como a mais
importante ligação entre o interior e o porto cearense, uma vez que, levava e trazia toda a
produção dos cetros urbanos à margem do Rio Jaguaribe.

4
Relatório de presidente de província, 1850, p.25.
5
Diário do Pernambuco, 07/01/1861, p. 02.
36

As ribeiras dos rios cearenses eram vistas como localidades propicias para a
construção de estradas. Segundo Studart Filho, “cada rio e riacho possuiu, desde cedo, a sua
estrada de ribeira, desenrolando-se ora por uma, ora pela outra margem, da foz às cabeceiras”
(STUDART FILHO, 1937: p.29), essas estradas eram localizadas em pontos estratégicos ao
longo território, demostrando que o espaço havia sido conquistado e dominado; como explica
Regis Lopes, “o predomínio da natureza correspondia à falta de poder publico” (RAMOS,
2012: p.103), assim, estas estradas garantiam a penetração no território e a circulação da
economia.
Mas, se na segunda metade do século XIX os projetos voltaram-se para a estrada em
linha reta, que deixava de lado a necessidade de seguirem o curso dos rios, com o intuito de
“conseguir brevidade nas viagens pelos caminhos do território cearense” (REIS, 2017: p.124)
através da superação da natureza, por outro lado, surgiram discursos como o de Pedro
Théberge, que em seu artigo publicado em 1861, se mostra contra esses projetos:

Julgo dificílimo, para não dizer quasé impossível, no estado presente da provincia,
nem mesmo daqui á muito tempo, abrir estas estradas, com suficiencia de permitir
em transito facil e commodo aos productores do centro, a não seguir-se as margens
de algum grande rio [grifo meu]6

Para ele, não fazia sentido, deixar de lado uma estrada que “a natureza ministrou”7,
por uma mais dispendiosa. Como explica Ana Isabel C. Reis, “o relevo acidentado alterava o
comprimento da estrada” (REIS, 2017: p.131) assim, os carros perdiam velocidade ao passar
pelo que Pedro Théberge denominou de ‘estradas ingratas’. Pedro Théberge, ao usar como
exemplo a estrada de Crato para Icó explica, “ninguém transita por ella; um único carro se
atreveu a segui-la, para nunca mais”8. Théberge não foi o único a considerar essa estrada
como ineficiente, existia uma discussão em torno da construção da estrada e o melhoramento
da que existia na ribeira do Rio Salgado. 9
Contudo, os projetos em tornos das estradas, estavam inexoravelmente associados ao
poder sobre espaço. Essas estradas definiam de certo modo, o rumo do comercio cearense e
dessa maneira, o poder econômico dos centros urbanos, assim, estavam envolvidos nesses
projetos, jogos de poder e interesses da elite dessas localidades.

6
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
7
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
8
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
9
Ver mais em: REIS, Ana Isabel R.P.C. O Sertão em Linha Reta: Tempo e Espaço na Produção do Ceará
Moderno. In: CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes & NEVES, Frederico de Castro. (orgs). Capitulos de historia
social dos sertões. Fortaleza, CE: Plebeu Gabinete de Leitura Editorial, 2017, p. 124-139.
37

Pela a Estrada Geral do Rio Jaguaribe, percorria parte do comercio do sertão cearense,
o Rio correspondia à metade do estado, ocupando uma área de 72.000 km ligando o Ceará a
outras províncias do norte. As cidades que ocupavam as margens do rio Jaguaribe eram
banhadas por um forte poder econômico, uma vez que, o processo de construção dessas vilas
estava associado à “constituição dos fluxos das boiadas no sertão nordestino” (JUCÁ NETO,
2007: p.43), com o objetivo de estabelecer um maior controle sobre o espaço e circulação da
economia. Nesse sentido, destacamos para analise as vilas de Icó e Aracati.

Do sertão ao litoral
Diretamente associada à economia pecuarista cearense e aos caminhos das boiadas,
essas vilas sugiram a partir da necessidade de “homens e animais careciam naturalmente de
repouso e de alimento. Quebrando a monotonia daquellas ermas estradas setecentistas,
surgiram assim ranchos, vendas e bodegas, primeiras manifestações de muitos hodiernos
povoados sertanejos” (STUDART FILHO, 1937: p.34), e como uma forma de o governo
colonial se fazer presente no sertão cearense.
Nesse processo, são criadas vilas como Icó (1736) e Aracati (1748), que se
configuravam como centros econômicos no território cearense por dois principais motivos;
primeiro, elas se encontravam na ribeira do rio Jaguaribe, principal estrada que interligava o
interior cearense, ao porto de Aracati, onde chegava mercadorias que seriam levadas e
comercializadas nas cidades sertanejas cearenses, que no processo inverso, levava
mercadorias desses lugares para o porto que as escoavam. Esse processo, fazia de Aracati “a
mais opulenta da capitania, de mais população dentro da villa, e aonde se acham cazas de
sobrado; o que é devido a ser o ponto de embarque das produções dos algodões e solas do seo
termo.”10
Já a vila de Icó, era o centro econômico, e ponto de intersecção entre as cidades do
interior e o porto de Aracati. Descendo pelo o rio Salgado até a Chapada do Araripe, fazia
conexão com o Crato que a considerava o “interposto comercial do cariri” 11, e pelo rio São
Francisco, conectava-se com Piauí e Pernambuco; essa maior proximidade, possibilitava aos
“fazendeiros localizados nas proximidades do Icó uma vantagem sobre os demais da
Capitania do Ceará” (JUCÁ NETO, 2007: p. 245), esses produtos, passando por Icó, voltavam

10
PAULET, Antonio José da Silva. Descripção Geográfica Abreviada da Capitania do Ceará. 1898, p.13.
11
O Araripe, 16 de outubro de 1858, p. 01.
37

mais uma vez para Aracati, que era “o porto de desembarque dos gêneros, que de Pernambuco
vem para este lado da capitania” 12.
Em segundo lugar, ambas tinham papeis importantes na produção das charqueadas,
que no século XIX se configurava como parte importante da economia cearense. No Icó,
comercializava-se uma parte das boiadas que eram carneadas no litoral charqueador, esse
novo tratamento das carnes, possibilitou uma mudança do fluxo comercial na província
(JUCÁ NETO, 2007).
Segundo Silva Paulet, Icó se configurava como o “termo mais povoado e civilizado da
comarca e a villa de muito comércio, em proporção das mais villas”, isso ocorria segundo ele,
devido a “produção dos gados nas duas margens do Jaguaribe” 13, esses gados, eram levados
até Aracati que salgavam e comercializavam, essas carnes, desta maneira, as charqueadas “são
explicadas como a alternativa econômica para o baixo rendimento da comercialização do boi
em pé, [...] e, ainda, como uma solução prática dos fazendeiros do litoral aracatiense
concorrerem com os da ribeira do Icó (JUCÁ NETO, 2007: p.179).
Assim, essas duas vilas, se configuram como os principais núcleos cearenses, uma vez
que até a segunda metade do século XIX, “somente eles até então haviam desenvolvido
funções terciárias, de caráter urbano, no Ceará” (JUCÁ NETO, 2007: p.45). Desta forma, é
possível perceber que a criação dessas vilas, ou a relação que as duas possuíam não foi
aleatória, eram filhas de um projeto mais amplo, que envolvia desde sua criação, as relações
com a província cearense e suas circunvizinhas.
Assim, a cartografia, que “sempre esteve atrelado ao poder, seja para delimitar e
administrar a extensão dos territórios dominados seja para fins de estratégia” (DANTAS,
FERREIRA, & SIMONINI, 2011: p. 89), representava essas localidades nos mapas imperiais,
com o intuito de representar ideias, projetos e interesses sobre o território, reunindo em suas
folhas um tempo e um espaço.
É nesta pespectiva que a Carta chorographica Província do Ceará com a divisão
ecclesiastica, e indicação da civil judiciária até hoje, de Pedro Théberge, apresenta o rio
Jaguaribe com um maior destaque em comparação aos outros rios da província, ressaltando a
importância que o rio teve na economia e politica cearense, mas também, os seus próprios
interesses como morador de uma vila Jaguaribana e ainda, como defensor de seu próprio
projeto, a Sociedade União Cearense.

12
PAULET, Antonio José da Silva. Descripção Geográfica Abreviada da Capitania do Ceará. 1898, p. 13-14.
13
PAULET, Op. Cit, p. 27.
37

Pedro Théberge
Pedro Franklin Théberge era natural de Marcé, França, tendo nascido em 1811. Ainda
em Marcé, sob a vigilância do seu tio, fez seus primeiros estudos, mudou-se para Paris onde
estudou letras, formando-se em 28 de julho de 1832 na Universidade de Paris. Em 3 de julho
de 1837 Pedro Théberge se formou em medicina na mesma faculdade, e nesse mesmo ano
veio para o Brasil com sua esposa, D. Maria Angélica Elyza Théberge. Desembarcou em
Recife, Pernambuco onde clinicou deste ano até 1845. Pedro Théberge abriu o Colégio do
Espirito Santo, que, aos moldes europeus, era destinado às mulheres daquela província,
entretanto, em 1845, com dificuldades financeiras, precisou fechar o colégio, e veio para a
cidade de Fortaleza na província do Ceará, e segundo a revista da academia cearense14, com o:

Intuito de entregar-se a estudos sérios, concernentes ao território do Ceará-deixou


em fins de 1848 a cidade da Fortaleza, seguindo para a importante e então
florescente cidade do ícó, onde fixou sua residência, exerceo sua profissão de
medico, e entregou-se aos estudos litterarios e scientificos de que era mais
apaixonado [grifo meu]15

Pedro Théberge estava inserido no ambiente político daquela freguesia e assim,


participou da organização do projeto de um cemitério em Icó, que não teria sido realizado,
segundo sua bibliografia, por “ciúmes e despeito de um mandão político da terra”16.
Participando ainda da construção da cadeia pública, de uma igreja, que seria a matriz e de um
teatro, que serviu de ponto de atendimento aos doentes em 1862, quando o Ceará passou por
uma epidemia de cólera, ali Pedro Théberge atendeu os doentes junto com Rufino de Alencar,
e em 8 de maio de 1864 faleceu17 na cidade de Icó.
Pedro Théberge ainda escreveu sobre a seca do Ceará, divulgando a importância da
açudagem na região. Escreveu o livro Esboço Histórico Sobre a Província do Ceará,
procurando “fazer o Ceará por meio de seu passado, dando-lhes uma existência mais legível, e
por isso mesmo mais legitima” (RAMOS, 2012: p. 7). O livro possui quatro capítulos e foi
divulgado no ano de 1869 pelo seu filho Henrique Théberge18 na revista do Instituto do Ceará,

14
Em 1889 publicou uma bibliografia sobre o mesmo.
15
Traços Biographicos do Dr. Pedro F. Théberge. In: Revista da Academia Cearense, 1898: p. 230.
16
Traços Biographicos do Dr. Pedro F. Théberge. In: Revista da Academia Cearense, 1898: p. 230.
17
O jornal Diário de Pernambuco postou uma carta vinda de Icó que avisava a população de Pernambuco a sua
morte, “não era mão homem e seu modo de proceder aqui foi sempre viver bem com todos os bons, pelo que
viveu e morreu pobre, deixando apenas à sua família, composta por mulher e 3 filhos, um homem honrado”
(Diário de Pernambuco, 27/01/1864, p. 02).
18
Henrique Théberge, herdou do seu pai o gosto pela terra, história e engenharia, estudou na escola militar do rio
de janeiro e formou-se em agronomia, participou como tenente da guerra Paraguai, foi engenheiro da estrada de
ferro de Baturité e da estrada de ferro de Paulo Afonso na Bahia, trabalhou como bibliotecário, sendo um dos
fundadores da academia cearense de letras e depois de aposentado foi gerente da companhia de ferro- carril.
37

e foi republicado na mesma revista entre os anos de 1969 e 1972 em comemoração ao


centenário da sua obra.
Organizou a Carta chorographica Província do Ceará com a divisão ecclesiastica, e
indicação da civil judiciária até hoje19 onde apresenta de forma nítida o território pertencente
à província do Ceará; Pedro Théberge viajou por toda a província durante 12 anos “adquirido
um conhecimento perfeito das suas localidades, dos seus rios e riachos, da sua orologia, e
mais particularidades” 20, representando não só o território mais também como funcionava a
política e a organização territorial da província.
Tentou implementar uma “linha de carros por meio de rodagem puxada por cavalos” 21
entre as cidades de Aracati e Icó pela Sociedade União Cearense, que naquela época,
procurava facilitar o transporte de mercadorias pelo Rio Jaguaribe, o qual iremos nos dedicar
neste artigo.

A proposta da Sociedade União Cearense


Os projetos de cunho modernizador, implantados no Ceará na segunda metade do
século XIX, faziam parte de um objetivo bem maior, o progresso da nação brasileira e a sua
inclusão aos paramentos modernos ocidentais. A modernidade em todos os espaços
brasileiros, demostrava uma hegemonia nacional, transformando o Brasil em uma só nação
brasileira. O ‘poupar tempo’, como falado anteriormente, tornou-se sinônimos de
modernidade, e boas estradas não eram suficientes para reduzir o tempo de viagem e
proporcionar conforto e comodidade as elites cearenses. Desta forma, surgem projetos como a
Sociedade União Cearense.
O estatuto da Sociedade União Cearense, publicado em 1858, no jornal Pedro II, traz
como objetivo da empresa:

o transporte das mercadorias e passageiros entre o Aracaty e o Icò, em carros


aperfeiçoados, e puxados por cavallos substituídos em curtas distancias, afim de
poderem andar todo o dia, e cidades parte da noite; e percorrer em 3 ou 4 dias as
50 léguas que separão estas 2, com segurança, regularidade, e por preços
rasoaveis. [grifo meu ]22

19
Mapa disponível na Biblioteca Nacional Digital no seguinte link:
http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=13605.
20
Diário do Pernambuco, 26/04/1861, p. 08.
21
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
22
Pedro II, 07/04/1858, p. 02.
37

Esse trecho do estatuto apresenta dois objetivos importantes, o primeiro, é as vilas que
o transporte interligaria. Como explicado anteriormente, as vilas de Aracati e Icó, se
configuravam como principais núcleos urbanos no território cearense. Esse forte poder
econômico, provinha da sua localização privilegiada as margens do Rio Jaguaribe e da estrada
geral do Jaguaribe que as cortava. Sobre a escolha das cidades de Aracati e Icó Pedro
Théberge explica:

Icó collocada no centro dos sertões empório commercio de todo o interior, não só
desta província, como das suas circumvisinhas; cidade grande, rica, muito
commerciante, populosa, e maravilhosamente collocada para ainda augmentar
prodigiosamente seu commercio; Aracati, porto do mar, o mais importante da
provincia, e o mais frequentado pelas embarcações de cabotagem. [grifo meu]23

Desta forma, economicamente falando, a Sociedade União Cearense ajudaria na


facilidade do transporte e aumentaria o fluxo dessas mercadorias, que como explica Théberge,
“hoje sem estrada trabalhada, trocam-se annualmente entre estas duas cidades mais de mil
carradas de mercadorias que voltam compostas de productos do sertão” 24, que era outro ponto
que proporcionava um maior poder econômico para Icó, que interligava o porto cearense em
Aracati, a cidades do interior do Ceará como o Crato, ou até mesmo, províncias vizinhas.
O segundo objetivo da empresa apresentada pelo estatuto, era o poupar tempo, esse era
um dos objetivos mais frequentes nos projetos da segunda metade do século XIX, uma vez
que “o tempo é entendido como um elemento, por isso podia ser gasto” (REIS, 2012: p. 60),
assim, diminuir o tempo que seria “perdido” nas viagens era de fundamental importância.
Como solução, Pedro Théberge desenvolveu um sistema onde os cavalos seriam trocados em
curtas distancias, fazendo com que a viagem acontecesse durante todo o dia e parte da noite.
O grande porte do rio que seguia e dava nome à estrada, era um fator importante para a
escolha da estrada geral do Jaguaribe, como local por onde os carros passariam. A grande
quantidade de fazendas, possibilitava uma maior segurança aos viajantes, e o sistema de trocar
de cavalos de três em três léguas, carecia de locais onde os cavalos esperariam para efetuar as
trocas, assim, era necessário que os cercados25 estivessem muito bem localizados, facilitando
a alimentação e o descanso dos animais.
A cartografia nunca é uma mera representação do território, ela é uma forma de
conhecimento e uma forma de poder, onde “conscientemente ou não, não reproduz somente o

23
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
24
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
25
Entre as cidades de Aracati e Icó seriam construídos 18 cercados, protegidos por 36 guardas e haveria 2
Armazéns principais, um em Icó e outro em Aracati. Fonte: Diário do Pernambuco, 26/05/1858, p. 01.
37

entorno em sentido abstrato, mas também os imperativos territoriais de um sistema político”


(HARLEY, 2009: p. 3); afim de uma melhor visão do território que compunha os espaços
urbanos cearenses, e de analisar como esses espaços eram percebidos por Pedro Théberge e
representados na Carta chorographica da Província do Ceará, foi formulado um novo mapa,
que demostra uma possível rota da Sociedade União Cearense, e os territórios que sediavam
essa empresa (figura1).

Fig. 1: Possível rota da empresa união cearense, ligando as cidades de Aracati e Icó26.

Se por um lado, o Brasil da segunda metade do século XIX tinha como objetivo a
criação de indústrias no território nacional, o Ceará ainda não tinha despertado para esse
processo. Como podemos perceber na carta anônima, enviada da província do Ceará para o
Correio Mercantil em 1857:

Toda a tendência da nossa época é para o industrialismo; essa idéa tem sido tão
repetida por toda parte e por todos os meios de publicidade que poucas pessoas
deve, desconhecer. Entretanto o espirito de empreza e de associação, que é de

26
Fonte: Mapa elaborado pela autora a partir das informações contidas na Carta chorographica da Província do
Ceará com divisão eclesiástica e indicação da civil judiciária até hoje, elaborada por Pedro Théberge. 1861.
Fonte: Mapa disponível na Biblioteca Nacional Digital no seguinte link:
http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=13605 e o Mapa das Estradas Coloniais do Ceará
– 1817. Fonte: JUCÁ NETO, Clovis Ramiro. A Urbanização do Ceará Setecentista: As vilas de Nossa Senhora
da Expectação do Icó e de Santa Cruz do Aracati. Salvador: UFBA, 2007.
37

favorável ao desenvolvimento e propriedade da indústria, não tem toda a parte o


mesmo vigor nem acha geralmente acreditado. Entre nós quasi que póde dizer que
ele é desconhecido. Aqui não há uma sociedade industrial e existem poucas
commerciaes. [grifo meu]27

De todo modo, a nacionalidade francesa de Pedro Théberge, contribuiu para o


desenvolvimento da empresa e na forma do transporte, “pelo systema que em França tem o
nome de roulage” 28, demostrando não só uma influência europeia nos projetos brasileiros,
mas também, como era importante a comparação dos projetos implementados aqui, com os
que existiam no ocidente.
Pedro Théberge em 1861 reforçou, como nos anos anteriores, a ideia de que
sociedades no Ceará era incompreendida, e só foi sendo desenvolvida posteriormente:
“quando emitti minhas idéas pela primeira vez sobre esta matéria, não houve que não se
divertisse um pouco a minha custa, hoje ellas andão em todas as bocas, em todas as folhas” 29,
o mesmo já havia sido argumentado em 1857, na carta enviada ao Correio Mercantil, onde o
autor afirma que os projetos desenvolvidos no Ceará, acabavam sendo abafados pelo
preconceito que os rodeavam e os comprimiam. 30
Por outro lado, a Sociedade era de interesse do governo imperial, não só por melhorar,
o funcionamento do transporte cearense, mas também, pelo que o transporte significava para o
espaço nacional, que havia formulado uma nova concepção de território à medida que foi
construída uma visão unitária do território, fazendo com que os projetos desenvolvidos no
Império, levassem em conta as necessidades de deslocamento da administração imperial.
Assim, o relatório provincial de 1858, apresentava um novo projeto, que afirmava que
após a abertura da Sociedade União Cearense “outra igual se deverá estabelecer desta capital
para a villa de Baturité”31, se por um lado, o estabelecimento dessa nova linha tinha como
objetivo realizar “nesta província um grande melhoramento em suas vias de
communicação”32, por outro, a escolha não era aleatória. Fortaleza, durante a segunda metade
do século XIX, tentava centralizar o seu poder administrativo, que era divido entre ela e
Aracati em função de seus portos. Assim, a construção de uma nova rota que ligasse o porto
de Fortaleza à serra de Baturité, ajudaria nessa centralidade, uma vez que Baturité, era
entendida como uma região com forte potencial produtivo, assim, era necessário uma empresa

27
Correio Mercantil, 03/12/1857, p. 02.
28
Correio Mercantil, 03/12/1857, p. 02.
29
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
30
Correio Mercantil, 03/12/1857, p. 02.
31
Relatório de presidente de província, 1858, p. 22.
32
Relatório de presidente de província, 1858, p. 22.
37

que facilitasse o escoamento desses produtos33 para o porto de fortaleza, para eles “a
regularidade de suas viagens animaria a producção, pela certesa de que todos os productos
virão faciomente ao mercado”34 (figura 2).

Fig. 1: Possível rota da empresa união cearense, ligando as cidades de Fortaleza e Baturité 35.

Esta ideia, nunca foi salientada por Théberge, que acreditava que “centralizar na
fortaleza todo o commercio da provincia, e uma verdadeira loucura” 36. Para conseguir a
hegemonia esperada da capital cearense, o governo provincial, decretou medidas que
dificultaria o embarque e desembarque no porto aracatiense, tirando a sua alfandega,
impedindo assim, a entrada direta de navios estrangeiros. Pedro Théberge escreve
ironicamente no seu artigo ao jornal Diário de Pernambuco, eles queriam “um porto para
justificar o nome de porto, como se quis um simulacro de fortaleza para justificar o nome da

33
Sobre estes produtos, “Baturité se destacavam com a produção do café, muito embora produzisse também
algodão” (REIS, 2015: p. 37).
34
Relatório de presidente de província, 1858, p. 22.
35
Fonte: Mapa elaborado pela autora a partir das informações contidas na Carta chorographica da Província do
Ceará com divisão eclesiástica e indicação da civil judiciária até hoje, elaborada por Pedro Théberge. 1861.
Fonte: Mapa disponível na Biblioteca Nacional Digital no seguinte link:
http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=13605 e o Mapa das Estradas Coloniais do Ceará
– 1817. Fonte: JUCÁ NETO, Clovis Ramiro. A Urbanização do Ceará Setecentista: As vilas de Nossa Senhora
da Expectação do Icó e de Santa Cruz do Aracati. Salvador: UFBA, 2007.
36
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
37

capital; assignaturas estas que arruínam o interior para lisonjear a basofia e fanfarronice dos
habitantes da capital”37, para Théberge, o porto natural da província do Ceará era Aracati.
Em 1860, ao completar os três anos cedidos pela província para a implementação da
Sociedade por Théberge, o relatório provincial anuncia, que a associação não ocorreria,
afirmando que “a falta de capitaes na provincia e ainda mais a ausência de todo o espirito de
associação forão talvez os embaraços que suffocarão a idéa tão vantagosa do empresário” 38, e
abrindo para outro empresário, o privilegio para a implementação desta empresa. Em 1861,
Pedro Théberge, afirma que “sem profundos estudos sobre a matéria e conhecimentos
perfeitos das localidades, nada se fará com proveito neste sentindo” 39, explicando que, o prazo
de três anos lhe cedido era curto para a implementação de uma Sociedade como a proposta
por ele.

Considerações finais
Os projetos desenvolvidos durante o século XIX cumpriam um papel social e político,
dentro da nação brasileira, seja com o objetivo de modernizar os espaços brasileiros e
possibilitar a centralização administrativa do país, seja para auxiliar a economia dos centros
urbanos. Tais projetos envolviam uma serie de relações sociais e o estudo destes possibilita-
nos compreender o período de sua produção, e as pessoas envolvidas nela.
As estradas atendiam o objetivo desses projetos, e foram implementadas em locais
estratégicos procurando interligar todo o território nacional, possibilitando que o governo
imperial se fizesse presente em todos os lugares do vasto império brasileiro, demostrando
domínio do espaço e do território. Essas estradas apresentavam um caráter de modernidade e
progresso para o interior do território brasileiro, que necessitava ser tão ‘grandioso’ como os
demais espaços brasileiros.
A Sociedade União Cearense desenvolvida por Pedro Théberge, procurava aproveitar
o espaço cearense, e usar a natureza do território ao favor do melhoramento do “commercio,
que sempre procura suas melhorias”, assim, o comercio “desprezaria estas dispendiosas
estradas por aquella que a natureza ministrou” 40; com uma visão modernizadora pautada em
moldes científicos, a empresa buscava melhorar o transporte de mercadorias do interior
cearense e do porto de Aracati. Ganhando atenção do governo imperial, uma vez que ela não
só melhoraria o funcionamento do transporte cearense, mas também, trazia para o interior

37
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
38
Relatório de presidente de província, 1860, p. 28.
39
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
40
Diário do Pernambuco, 25/04/1861, p. 08.
37

brasileiro um caráter de modernidade. Desta forma, não é a toa que Théberge ao falar da
empresa, sempre chama atenção para a diminuição do tempo ‘gasto’ durante as viagens, uma
vez que a sua brevidade era fundamental.
A natureza por sua vez, deveria ser utilizada a favor dos homens, entretanto, para que
isso acontecesse era necessário conhecer o território cearense, assim, Pedro Théberge
procurou representar na Carta chorographica Província do Ceará com a divisão
ecclesiastica, e indicação da civil judiciária até hoje o território cearense atualizado,
mostrando suas particularidades, dando ênfase a organização territorial do espaço e a natureza
da província, tornando perceptível a atenção com as serras que circunscrevem o território
cearense, e ainda as que estão dentro desse espaço, como também, os rios que fazem parte
deste entorno.
Assim, Pedro Théberge em seus projetos, apresenta o fato, informando sobre o
território, e a fabula, procurando convencer sobre a modernização do território cearense, que
estava diretamente ligada aos seus interesses. Demostrando que os projetos desenvolvidos no
Ceará no século XIX, longe de ser aleatórios, faziam parte de uma trama de poder, que
colocava em jogo interesses e relações de poder das pessoas envolvidas na sua configuração.

REFERÊNCIAS
Fontes:
Mapas: Carta chorographica da Província do Ceará com divisão eclesiástica e indicação da
civil judiciária até hoje, elaborada por Pedro Théberge em 1861. Disponível em:
http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=13605.
Periódicos: Correio Mercantil (1830-1839), Jornal Diário de Pernambuco (1860-1869), O
Araripe (1850-1869), Pedro II (1840-1889).
Relatórios dos presidentes da Província do Ceará (1844-1889). Disponível em
http://www.crl.edu/brazil/Provincial/cear%C3%A1.
Traços Biographicos do Dr. Pedro F. Théberge. In: Revista da Academia Cearense, 1898.
THÉBERGE, Pedro F. Duas Palavras Sobre as Seccas do Ceará. In: Jornal Diário de
Pernambuco, 1861.
THÉBERGE, Pedro F. Esboço Histórico Sobre a Província do Ceará. In: Revista do
Instituto do Ceará, 1969.
PAULET, Antonio José da Silva. Descripção Geográfica Abreviada da Capitania do Ceará.
In: Revista do Instituto do Ceará, 1898.
38

Bibliografia:
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de Candido Mendes e o “Nordeste” Brasileiro do Século XIX. R. B. Estudos Urbanos E
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GUIMARÂES, Manoel Luís Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico
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HARLEY, B. Mapas, saber e poder. Confins, n.5, p.1-24, 24 abr. 2009.
JOLY, Fernand. A Cartografia. 10 ed. Campinas: Papirus, 1990.
JUCÁ NETO, Clovis Ramiro. A Urbanização do Ceará Setecentista: As vilas de Nossa
Senhora da Expectação do Icó e de Santa Cruz do Aracati. Salvador: UFBA, 2007.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.
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MÁXIMO, Maria Leopoldina D. & REIS, Ana Isabel R. P. C. A Cartografia de Pedro
Théberge: Modernização do Espaço Territorial do Ceará no Século XIX. Anais do I
Seminário Nacional de História dos Sertões e II Colóquio de História Social dos Sertões,
2018.
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REIS, Ana Isabel R. P. C. O Espaço a Serviço do Tempo: A Estrada De Ferro De Baturité E
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Graduação em História Social, Fortaleza, 2015.
STUDART FILHO, Carlos. Vias de Communicação do Ceará Colonial. In: Revista do
Instituto do Ceará, Fortaleza, 1937.
38

OCUPAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DE SESMARIAS NOS RIOS GROAÍRAS,


JACURUTU E MACACO NO SÉCULO XVIII

Maria Malena Paiva Mesquita*


Raimundo Nonato Rodrigues de Souza**

RESUMO: Esta comunicação tem o objetivo de apresentar os resultados da pesquisa


elaborada sobre o processo de ocupação de terras e distribuição de sesmarias nos afluentes da
ribeira do Acaraú, região norte do Ceará, no século XVIII. Nesse sentido, buscamos entender
quem eram os homens e mulheres e quais as relações políticas, sociais e econômicas, que
estes produziram diante da construção dos povoamentos e vilas na formação da sociedade
sertaneja. Neste sentido, esta pesquisa tem como justificativa, contribuir para a renovação da
historiografia cearense, na medida em que propõe outra interpretação acerca do processo de
ocupação da capitania do Siará Grande, a partir da região que cerca os rios Groaíras, Jacurutu
e Macaco. As fontes utilizadas foram as datas de sesmarias, testamentos e inventários do
século XVIII.
Palavras-chave: Sesmarias. Colonização. Ribeira do Acaraú.

1. A conquista da Ribeira do Acaraú.


No século XVI o Ceará representava apenas um ponto de apoio para as missões contra
estrangeiros e índios não aliados, mas durante o correr do século XVII, este passa a ser
explorado, e mesmo que não ocupado, participa do projeto colonizador como via de
comunicação. Essa conquista dos espaços foi acontecendo a partir de um processo
demorando, principalmente diante do reconhecimento de um sertão que era visto como
habitação dos gentios. Assim, havia uma tentativa de buscar definir as fronteiras, construindo
caminhos enttre as capitanias, fortificações militares, e consequentemente fixando os
primeiros núcleos de povoamento.
No que diz respeito a Ribeira do Acaraú neste contexto, podemos concluir que as
expedições em direção ao Maranhão possibilitaram a abertura de vias pelos conquistadores,
tanto pelos rios como pelas serras. Esses novos espaços e possibilidades de expansão dos
dominios portugueses e “essa configuração de malhas de comunicação não passaria
despercebida pela Coroa, cujo objetivo era promover a criação de núcleos populacionais nos
mais ínfimos sertões e confirmar sua presença”( MAIA, 2010: 89).

*Graduanda em História, Bolsista BIC/FUNCAP da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UEVA, e-mail:
maria.lisieux1@gmail.com.
**Prof. Dr. Raimundo Nonato Rodrigues Souza, Curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú –
UEVA.
38

Todavia, para o estabelecimento dessas vias a “conquista exigiu informações dos


nativos, sobre as grandezas dos rios, de terras que pudessem ser aproveitados nas atividades
agropastoris, que aumentariam as riquezas dos novos senhores da terra – poder régio, igreja e
potentados”(SOUZA, 2015:39). Sendo que as missões e aldeamentos sobre a Serra da
Ibiapaba foram muito importantes para o conhecimento da região, no final do século XVI a
ribeira do Acaraú, como já dito a cima, era território conhecido, todavia, não muito explorado
e ainda não ocupado. Para tanto, a fixação dos colonos se deu principalmente no final do
século XVII e inicio do século XVIII a partir das primeiras entradas e ocupações de sesmarias
às margens dos rios Acaraú, Coreaú, Aracatiaçu e seus afluentes.
Nesta dinâmica os rios tinham grande importância, pois, eram caminhos naturais para
a conquista e ocupação, assim as primeiras entradas ao sertão eram feitas através destes. Para
além das grandes ribeiras também podemos citar os afluentes, riachos e poços que davam a
terra o valor de ocupação. Compondo a ribeira do Acaraú, espaço a que nos debruçamos nesta
comunicação, estão os rios Groaíras, Jacurutu, Macaco e Jaibaras, como rios afluentes.
Temos como objetivo fazer um reconhecimento durante as primeiras décadas do
século XVIII, de como se deu a ocupação e distribuição de sesmarias às margens destes rios,
principalmente dos três primeiros citados, entendendo que este reconhecimento dará bases
para construir um mapeamento dos indivíduos que vieram neste dito período a fixar as
primeiras fazendas e povoamentos desta região que é composta – a localização dos
munícipios e o percurso que os rios fazem atualmente podem ser vistos no Mapa 01 abaixo -
atualmente por municípios como, Santa Quitéria, Groaíras, Catunda, Hidrolândia, Varjota e
Sobral, mas que ainda tem História pouco investigada dentro do período colonial.
38

MAPA 01: BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO ACARAÚ

2. Sistema de Sesmarias: a distribuição de terras às margens dos rios Groairas, Jacurutu


e Macaco.
Para falar sobre a instalação dos colonos nessas terras, será preciso entender o
funcionamento do sistema de sesmarias, usado pela administração portuguesa para distribuir
as terras em prol da garantia da guarda e da exploração dessas. Criado em Portugal, a partir
da legislação de 1375, o sistema de sesmarias permaneceu como instrumento de
administração das terras no Brasil até o ano de 1850, com a Lei de Terras.
A legislação foi proposta pelo rei D. Fernando I, e em solo europeu, tinha o intuito de
sanar os problemas ocasionados pela crise de escassez de alimentos. A implantação dessas
leis tinha também a ideia de assegurar a reestruturação do sistema de terras, trazendo mais
pessoas para o campo, estimulando a produção de alimentos para subsistência e a
movimentação da economia comercial do reino. Os instrumentos da lei concorriam para o
repovoamento, assim como para a captação de taxas para o Estado. O elemento central da lei
falava da obrigação de se cultivar a terra, aproveitando sua condição de desaproveitada.
38

(...) o estatuto de 1375 tinha pois, sua origem, uma série de questões que
impulsionaram a Monarquia à regulamentação do aproveitamento das terras: a
escassez de cereais, pelo abandono das lavouras; a carência de mão-de-obra; o
encarecimento dos gêneros e a elevação dos salários rurais; falta de gado para a
lavoura; o desenvolvimento da criação de gado em detrimento da agricultura; altos
preços dos arrendamentos; aumento dos ociosos, vadios e pedintes.(FERLINI,
1988:164-165.)

No Brasil, ele foi aplicado a partir do reinado de D. João III, junto com a criação das
capitanias hereditárias. No entanto, a adoção do sistema sesmarial requereu mudanças em
suas funções. Era preciso que este estivesse de acordo com as condições das terras, clima, e
administração desenvolvida em terras brasílicas, que se diferenciavam muito das previstas
para Portugal. “As terras desaproveitadas, eram virgens, o termo sesmeiro, antes designador
do funcionário que doava a terra, no Brasil passou a nomear o titular da doação”(FERLINI,
1988:165), e o objetivo de doação das terras não estava mais em produzir alimentos de
subsistência ou repovoamento, mas estava em viabilizar a conquista, a proteção de território e
a colonização.
Caminhando para isto, podemos citar dois pontos que serviram como fatores do
aumento da concessão de sesmarias, o primeiro vem a ser o combate aos índios, que pode ser
percebido desde o início da colonização portuguesa, mas que tem agudização a partir da
entrada pelos sertões, e o outro foi expansão da pecuária do litoral em direção ao sertão.
Rafael Ricarte defende a tese11 que a ocupação do território do Ceará como produto da
concessão de sesmarias para a produção pastoril, também teve como aporte o combate aos
povos indígenas, no sentido de que as concessões se davam também como pagamento dos
serviços prestados na guerra contra os índios.
Compreender a dinâmica e o crescimento da pecuária como fator econômico das
capitanias do nordeste se faz importante na medida que esta estava ligada a conquista, e
consequentemente a ocupação da terra. E apesar da importância econômica observada sobre a
pecuária nos século XVII e XVIII, “inicialmente, esta assumiu um papel de atividade de apoio
aos engenhos de açúcar, como importante fornecedora de alimentação, transporte e força

1
Nessa comunicação temos como base as ideia defendidas por Rafael Ricarte em sua tese, esta busca analisar a
formação de uma elite conquistadora na Capitania do Siará Grande entre os anos de 1679 e 1720, percebendo o
surgimento desta sociedade a partir da dinâmica de conquista da terra, dentro de uma contexto de “afirmação dos
dominios” portugueses, levando em consideração movimentos economicos e politicos para isso. Tal processo
propoem uma defesa do territorio, e em meio a estas relações percebe-se as teias de poderes locais construidas
através das sesmarias concedidas pela participação na guerra justa contra os gentios, perfazendo uma politica de
combate que foi institucionalizada. Assim, o autor a hipótese de que “a efetiva conquista dos sertões e das
ribeiras do Siará Grande foi parte integrante da política lusitana em um contexto de redefinições de hegemonias
imperiais na Europa e nas áreas coloniais e se utilizou da concessão de mercê – tais como: patentes militares,
títulos distintivos, cargos administrativos e, principalmente, sesmarias – como a forma de “recrutamento” de seus
agentes coloniais.”(SILVA, 2016:9)
38

motriz para os engenhos” (BEZERRA,2005:12). Em meados do século XVII os preços do


açúcar produzido no Brasil sofreram uma queda diante da concorrência do produzido nas
Antilhas pelos holandeses, essa situação impôs uma queda nas rendas da economia
portuguesa. “O avanço para o interior estava circunscrito como mais uma estratégia de
resolução de problemas econômicos e políticos do império português na sua colonia
portuguesa.” (MAIA, 2010: 87)
O avanço do gado, protagonizou a “formação de núcleos populacionais”, deste modo,
“esteve ligado com este, ou mais precisamente, ao seu transporte e venda, elaborando “um
sistema de comunicação através da movimentação dos rebanhos para o comércio com outras
capitanias.”(MAIA, 2010: 88-89) E podemos perceber o reflexo da importância da pecuária
na capitania do Ceará com o crescimento das fazendas de criação de gado e das oficinas de
charque, a capitania caminhava sempre em primeiro lugar.
Neste sentido, a identificação das terras a serem ocupadas era feita através dessas
ribeiras, seguindo os melhores espaços para a fixação das fazendas de criação de gado. Como
já exposto outras vezes aqui, os rios e poços apresentavam esta importância, principalmente
devido ao ambiente semiárido, pois, os locais com abundância de água facilitariam a criação.
Após as entradas através dos rios, e o reconhecimento da terra, chegava à fase da
ocupação através do estabelecimento dos currais. Mas a fixação do colono na terra se
consolidava a partir da legalização, através da liberação da terra pela coroa, a partir da
concessões das sesmarias. O gado pode ter levado o homem a desbravar os sertões em prol da
expansão da coroa, mas as fronteiras só permaneceram definidas e “protegidas” com a
regulamentação da conquista da terra.
As solicitações no litoral do Acaraú começam desde o inicio do século XVII, sendo
que no ponto onde está localizada a cidade de Sobral, desembocadura dos rios afluentes,
iremos encontrar solicitações pelo fim deste século. Já nas margens dos afluentes, Groaíras,
Jacurutu e Macaco, os registros das primeiras solicitações datam do ano de 1703, havendo
desde esse período um razoável numero de solicitações, tanto em locais próximos a
desembocadura no Acaraú, quanto nas subidas dos rios, tendo ponto final as terras de suas
nascentes.
No ano de 1734, por exemplo, é registrado o casamento do Alferes Lourenço
Guimarães, celebrado na Capela do Riacho, que foi construída por Antônio de Albuquerque
Melo, genro do Alferes Lourenço Guimarães na Fazenda Riacho, às margens do rio Groaíras.
A memória local aponta que a família Lourenço Guimarães, de origem portuguesa, teria sido
uma das primeiras famílias a ocupar a região do Groaíras, e que a capela teria sido construída
38

no ano de 1712, todavia esta só começa a aparecer nos registros paroquiais a partir do ano de
1734.22 Um ano antes, em 1733, Antônio Rodrigues Magalhães em cerimonia de batismo de
Margarida, filha do Sargento Mor João Pinto de Mesquita e de sua irmã Tereza de Oliveiras.
A cerimonia acontecia na Fazenda Macacos aos sete dias de dezembro do dito ano.
Diante disso, podemos levantar a hipótese de que a ocupação dos rios, Groaíras,
Jacurutu e Macaco, aconteceu em consonância com o movimento de distribuição e ocupação
de terras da Ribeira do Acaraú, no inicio do século XVIII, no entanto, poucos requerentes
aparecem como ocupantes do território da capitania do Ceará, e além dos pedidos nas ribeiras
do Acaraú, também pedem sesmarias em outras ribeiras. Isso caracteriza uma variável dos
pedidos de sesmarias, o absenteísmo. Temos a presença também das prescrições, terras que
estão sendo solicitadas novamente, pois estavam devolutas.
Referente ao território das margens dos rios com que trabalhamos, encontramos um
número maior de solicitações entre os anos de 1717 a 1743. Os solicitantes, em sua maioria
residiam na ribeira do Acaraú ou em outros locais da Capitania do Ceará. Os locais em que as
sesmarias eram solicitadas descreviam espaços com presença de água, seja nas margens dos
rios ou próximos a poços e riachos. Na petição de Domingo Machado Freire, ele,

Pede 3 léguas de terras, sendo 2 entre uma e outra data, no mesmo rio da Corairas,
começando das testadas dele suplicante, para cima, ou das testadas da data de seus
irmãos para baixo, conforme melhor conta tiver, e uma légua nas ilhargas das datas
dos ditos irmãos, onde chamam Riacho do Batoque. Diz que tem uma data de terras
passada a ele e ao defunto seu irmão, Miguel Machado Freire, de 4 léguas, no
riacho das Grorairas, e entre esta e outra que também pediu o seu dito irmão
defunto e seu irmão José Machado Freire, de 6 léguas, no mesmo riacho chamado
S, Jorge, supõem ficar algumas terras devolutas. 33

Além de fazer descrição da terra que solicitavam, ainda demonstravam conhecimento


sobre terras que faziam testa com a suas e que se encontravam prescritas ou devolutas, e que
nelas havia possibilidade de criação de gado. A ocupação da terra também se dava de maneira
coletiva entre os familiares, de maneira que isso possibilitava uma grande concentração de
terras nas mãos de uma mesma família, possibilitando o enriquecimento.

2
Na obra de Pe. Sadoc Araújo, Cronologia Sobralense-Volume 1, podemos ter acesso a registros de muitos
acontecimentos datados em Livros de Batismos, Casamentos e cartas que o autor imprime na sua obra como
intuito de escrever a História da Civilização Sobralense. Esta, nos serve também como fonte para pensarmos esta
formação da sociedade cearense. Podmos conferir tais informações nas páginas 70, 147 de ARAÚJO, Francisco
Sadoc de (Pe.). Cronologia Sobralense – Seculos XVII e XVIII (1604-1800). 2. Ed. Volume I/ Fortaleza:
Edições ECOA ,2015.
3
Descrição de território encontrado em uma solicitação de sesmaria nos livros transcritos por Thomas Pompeu
Sobrinho, no livro as Sesmarias Cearenses de 1979. Obs: a visualização das páginas estão prejudicadas por
conta da digitalização das folhas do documentos, devido a isso, não foi possível disponibilizar a página onde se
encontra o documento.
38

Raimundo Souza atenta para a “importância de perceber a concentração de terras nas


mãos de algumas famílias e de seus parentes”, ao discutir sobre os dados da grande
quantidade de sesmarias concentradas nas mãos de alguns indivíduos e algumas famílias.
(SOUZA,2015:63) Inseridas nessa relação de famílias com vasta concentração de sesmarias,
estão os Machado Freire, com 17 sesmarias. Acima já expomos a petição de um membro da
família Machado Freire, aqui podemos analisar as petições dos outros irmãos. José
Machado Freire,

Pedem 3 léguas de terra de comprido e uma de largo, começando do olho d’agua do


riacho das Itãs, costeando o morro e costeando o morro e olhos d’agua de
Carnaupajé, até se encherem das 3 léguas com meia de largo para cada banda do
morro. Dizem que se acham uns morros chamados Guarairas e Carnaupajé, entre
os olhos d’agua do dito Carnaupajé, e rio das Guaraibas; a roda deles se acham
terras devolutas.44

Miguel Machado Freire e seu irmão José Machado Freire,

Pedem uma légua de terra de mais do que têm pedido pelo riacho que mete no poço
chamado Gogoarasuí, e 1-1/2 légua do que tem pedido para a banda dos morros, e
os do Capitão Rodrigo da Costa, e assim mais algumas sobras que ficam por pedir
na sua mesma data no riacho das Gorabiras por ele abaixo. Dizem que tem uma
data de terras no rio Camocim e lhe ficaram fora algumas terras. (Ver datas n.104,
vol.110) Foi registrada em 22 de junho de 1727.55

E Francisco Machado Freire:

Pede 3 léguas de terra de comprido e uma de largo, no riacho dos Bois, pegando
estas a demarcar-se no lugar chamado Gangorra, légua e meia para baixo, com
uma de largo, meia para cada banda. Possui sitio no riacho das Guarabiras,
chamado S. Damião, doado por seu tio, Domingos Machado Freire, no qual
desagua um riacho por nome dos Bois, que deseja haver por data de sesmaria.66

Todas as petições fazem menção ao rio Groaíras e os morros que tem ao seu entorno,
demonstrando que os conquistadores apresentam um certo conhecimento dos caminhos da
região, seguindo a identificação a partir de nomes de morros, riachos e rios, demonstrando a
inicial ocupação a partir do rio Acaraú.
João Gonçalves Melo e Manoel Mendes Franco, no ano de 1724, ao solicitar sesmaria
no rio Acaraú, informam que existem quatro léguas de terras devolutas no Jacurutu há mais de
doze anos sem haver presença de ocupação. No ano de 1734, Manuel Dias Pereira, residente
4
Idem.
5
Idem.
6
Idem.
38

da capitania de Pernambuco, faz pedido de três léguas de terras no Jacurutu, iniciando de onde
acaba o Acaraú. O sesmeiro também informa que entre os rios Groaíras e Jacurutu se
encontram terras prescritas, sendo assim, não ocupadas ou povoadas por 25 anos. A partir
disso, percebemos que havia uma quantidade de terras no Jacurutu já solicitadas, mas em uma
situação de abandono em um período de mais de duas décadas.
No ano de 1735, João Ferreira Chaves descobre no rio do Macaco, um local com
águas e bons pastos para criar gado. No ano seguinte faz pedido de três léguas no dito riacho
do Macaco, e faz observação que nas proximidades das terras de Félix Coelho de Morais,
encontrou mais pastos para criação de gado. Em 1738, João Ferreira Chaves pede três léguas
de terras na Serra do Tamanduá na nascente do Riacho Batoque, e afirma ter um sítio, por
nome Santo Antônio nas proximidades do rio Macaco.
No ano de 1738, Ana Gonçalves Vieira, esposa do dito proprietário do sítio Santo
Antônio pede sesmaria de três léguas no Riacho do Batoque, das testadas das terras de seu
marido até as do Santa Tereza, e afirma que já tem no sítio Santo Antônio uma sorte de
currais e de casas. A partir das petições de terras podemos perceber o avanço do conquistador
e da ocupação por meio da fixação de currais e casas no decorrer dos período de 1720 em
diante. Se analisarmos a distribuição de terras nas proximidades dos rios nas primeiras
décadas do século XVIII, entendemos que não há um movimento de grande ocupação,
existem uma certa quantidade de de terras que se encontram prescritas nas região.
Quando o colono recebesse a concessão para ocupar a terra, ele ficava obrigado a
ocupá-la, e em um período de cinco anos, demarcar a área, ocupar e explorar, e se caso não
realizasse a ocupação e exploração, ela era passada a outro requerente. Era comum que o
sesmeiro realizasse a demarcação da terra, ocupasse e depois realiza-se a solicitação,
legalizando sua situação com a coroa. Nesse sentido, muitas terras foram solicitadas, mas não
ocupadas. Os solicitantes, na maioria das vezes não tinham residência no Ceará, podendo
colocar apenas como ocupante, um vaqueiro. Muitas das terras não ocupadas voltavam para a
coroa como desaproveitas e eram colocadas mais uma vez disponíveis a concessão.
Os interessados em obter a concessão das sesmarias usavam como justificativa os
serviços prestados a coroa no combate contra os “gentios” para alegar o direito de obter com
facilidade as sesmarias. Neste movimento de conflitos sobre a posse da terra muitos colonos
construíram grandes patrimônios através da obtenção de grandes porções de terras.
Nas solicitações de sesmarias das regiões dos rios Groaíras, Jacurutu e Macaco, não se
encontra como justificativa de solicitação da terra o combate ao “gentio”, mas sim o uso da
terra para a criação de gado. Mas acreditamos que isso não exclui a possibilidade de ter
38

havido estes conflitos entre índios e não indios, pois existem muitos materiais e possibilidades
de fontes e sobre a região da Ribeira do Acaraú para serem problematizadas e estudadas.
De modo geral, as produções da historiografia brasileira cearense, podemos citar o
nome de Francisco Pinheiro, Ligio Maia e Rafael Ricarte como exemplo, apontam para uma
releitura sobre a organização social, econômica e também política do Ceará no período de
ocupação, como um produto da violência institucionalizada, cultural e social, na medida que
havia um sistema de colonização que empregava, com violência, a evangelização, a adaptação
do índio aos costumes europeus civilizados, um “discurso construído da indistinta “barbárie”
acerca dos grupos indígenas, funciona como um claro exemplo da violência
generalizada”(MAIA,2010:83). O projeto colonizador português levou a escravização e morte
de uma grande parcela das populações indígenas brasileiras.
Quanto àqueles que traziam o interesse por comercializar a terra e fazer solicitação
desta, é imprescindível apontar que o combate aos povos indígenas e a pecuária, tendo como
justificativa a posse, deu a esses indivíduos a possibilidade de construir e fazer crescer um
poderio econômico, e desta posição, estabelecer redes de poder, as usando para a obtenção de
novos espaços, sejam esses materiais, políticos ou sociais em uma sociedade que estava sendo
edificada. Sobre a construção da elite da capitania do Ceará com relação a posse das terra
através das sesmarias, Ricardo Ricarte diz que,

Assim, cabe destacar que nesta tese entende-se por elite o grupo de sujeitos que
efetivamente participaram do processo de conquista territorial da Capitania do
Siará Grande, receberam sesmarias por esses combates aos indígenas e
constituíram espaços de poder territorial, político e econômico na referida
capitania, chegando ao ponto de interferirem diretamente na organização
administrativa, econômica e jurídica do Siará Grande(...) (SILVA,2016:127)

Como as redes de poder da capitania do Ceará se constituíam, durante a segunda


metade do século XVIII, e com a terra solicitada, seja por combate ou por criação de gado, a
fazenda era instalada, a partir deste ponto seriam os pilares de sustentação e também um fator
de impulso para a dinâmica econômica e social dessa sociedade que surgia.
Portanto, é entendido que a ocupação se fez de modo lento, e esta se deu através da
instalação das Fazendas, que no seu entorno traziam a instalação de diversos moradores que
exerciam os trabalhos. O Estado e a Igreja se voltavam a organização dos povoamento na
medida que estes cresciam em número de habitantes, tanto por conta de manutenção da ordem
ou por evangelização. Chegamos ao resultado de muitos povoamentos e vilas – que a partir da
passagem do XVIII para o XIX já congregam por toda a administração da Ribeira do Acaraú
39

uma sociedade sertaneja “conquistada” pelos caminhos das águas e também das serras, assim
como constantes conflitos pela terra – é preciso ter em mente que essas “achamentos” de
terras e solicitações se davam de modo amigável. Para tanto, chegamos ao consenso de que a
ocupação e distribuição dessas terras das regiões dos rios a que nos referimos nesta produção
aconteceram de maneira profunda com a expansão e estabelecimento da pecuária trazida do
litoral.

REFERÊNCIAS
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39

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ROLIM, Leonardo Cândido. “Tempos das carnes” no Siará Grande: Dinâmica social,
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. Mundos em confronto: povos nativos europeus na disputa pelo território. In:
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Rocha, 2000.
39

HISTÓRIA LOCAL E MEMÓRIA: A DITADURA MILITAR E SUAS


IMPLICAÇÕES NO INTERIOR CEARENSE

Maria Terla Silva Carneiro dos Santo1

RESUMO: Tendo em vista o atual cenário político brasileiro, marcado pela consolidação de
um golpe parlamentar, trazendo à tona discussões acerca do período da ditadura civil-militar,
esta escrita objetivou registrar as memórias de moradores da cidade de Pentecoste/CE acerca
desse período da nossa história, e descrever de que forma esse momento foi percebido por
eles, desvelando, assim, aspectos da história local. A pesquisa, de natureza qualitativa,
desenvolveu-se no primeiro semestre de 2018, por intermédio da metodologia da História
Oral e pesquisa bibliográfica. Como fundamentação teórico-metodológica, recorremos aos
escritos de Farias (2007); Ricoeur (2007); Thompson (1998); Portelli (1997); Le Goff (1994);
Bosi (1994); Pierre Nora (1993), entre outros. Consideramos, a partir do que foi pesquisado,
que os pequenos municípios brasileiros, a exemplo de Pentecoste, no Ceará, viveram um
“mundo à parte” no tocante às atrocidades cometidas pela ditadura civil-militar.
PALAVRAS-CHAVE: Ditadura Militar. Memória. História Oral.

1. INTRODUÇÃO
No âmbito das revisões acadêmicas e dos debates acerca da ditadura civil-militar no
Brasil (1964-1985), haja vista que muitos documentos ainda não estão totalmente disponíveis,
o que demanda dos pesquisadores e da sociedade brasileira acompanhamento dos novos fatos
que vão surgindo, esta escrita teve como objetivo, registrar as memórias de moradores da
cidade de Pentecoste/CE, acerca do período histórico mencionado, e descrever de que forma
esse momento foi percebido por eles, desvelando, assim, aspectos da história local.
Considerando-se que os relatos de experiências individuais ou coletivas acrescentam
significado à história, optamos pela história oral como metodologia de pesquisa por
concordarmos que tal procedimento abre espaço para que pessoas anônimas ganhem sentido
social, de maneira que sua memória documentada possa ser objeto de estudo de diversas
áreas. Assim, os sujeitos investigados foram moradores da cidade de Pentecoste/CE que
vivenciaram o período da ditadura civil-militar, totalizando seis participantes (dois do sexo
masculino e quatro do sexo feminino), cujos relatos foram gravados em áudio, com a devida
aprovação. Para atender a uma dimensão ética, utilizamos o Termo de Consentimento Livre
Esclarecido (TCLE), na obtenção do consentimento de publicação das informações coletadas

1
SEDUC/CE. E-mail: terlasilvacs@gmail.com
39

nas entrevistas e, optamos pela preservação de suas identidades recorrendo a nomes comuns
de moradores da respectiva cidade, como Antônio, Francisco, Maria, Francisca, Raimunda e
Benedita2.
Ao recorrermos à abordagem qualitativa, selecionamos a história oral como
metodologia de pesquisa posto que, assumimos com Thompson (1998), a ideia de que a
história oral é uma história que propicia diferentes diálogos. Em suas palavras, a história oral
“lança a vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação [...] traz a
história para dentro da comunidade e extrai a história de dentro da comunidade”. (1998: 44-
45). Portanto, pode ser compreendida também como relatos a respeito de fatos não registrados
por outra documentação ou, ainda, como uma complementação a registros considerados não
suficientes para o que se deseja investigar.
No que diz respeito à memória, julgamos importante esclarecer que partimos da
premissa defendida por Pierre Nora (1993: 19) de que:

A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está
em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento,
inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e
manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações.

Diante da concepção do autor supracitado, compreendemos que a memória tanto


social, como a individual, é seletiva; assim como, concordamos com a tese defendida por
Maurice Halbwachs (citado por ARAÚJO; SANTOS, 2007) de que os homens tecem suas
memórias a partir das diversas formas de interação que mantêm com outros indivíduos.
Ademais, importa ressaltar que as concepções defendidas por Le Goff (1994: 477) de
que “A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado
para servir o presente e o futuro [...]” nos auxiliaram na escolha da memória (social e
individual) como fonte histórica.
Face ao exposto, apresentaremos este texto descrevendo, primeiramente, as
implicações da ditadura militar no Ceará; em seguida, apresentaremos os resultados das
entrevistas realizadas, destacando aspectos da história local.

2
Selecionamos, entre os moradores entrevistados, uma funcionária pública aposentada (SEDUC); três
funcionários aposentados (DNOCS); um integrante da família “Nunes” e um integrante da família “Gomes da
Silva”.
39

2. A DITADURA MILITAR E SUAS IMPLICAÇÕES NO CEARÁ


O advento do Golpe civil- militar no Brasil, em março de 1964, repercutiu sobre
amplos setores sociais, de modo especial naqueles mais politizados e combativos que se
opuseram a derrubada do presidente da República João Goulart, tais como sindicatos, a União
Nacional dos Estudantes, agremiações partidárias historicamente vinculadas às ideologias de
esquerda, militares legalistas, professores universitários e secundaristas, entre outros.
No Ceará, consoante os estudos de Bonavides, (1986), houve apoio ao Golpe por parte
de segmentos empresariais, jornalísticos, eclesiásticos, da classe média e mesmo populares
cearenses. Nos dias seguintes ao golpe, os jornais O Povo e Correio do Ceará publicaram
editoriais e artigos exaltando a ação das Forças Armadas contra a “balbúrdia do comunismo
ateu que ameaçava o país”.
Nas páginas do jornal Correio do Ceará (do dia 06/04/1964, p. 6), encontramos
menção à realização de uma Missa de Ação de Graças na Catedral de Fortaleza em
homenagem às Forças Armada pela vitória do “movimento revolucionário.” O ato litúrgico
foi celebrado pelo próprio Arcebispo Metropolitano de Fortaleza, Dom José de Medeiros
Delgado, numa evidência do apoio de setores da Igreja Católica cearense aos golpistas. O
texto evidencia, ainda, o fato de o religioso ter elogiado o trabalho patriótico das Forças
Armadas em defesa da Constituição, banindo para sempre os comunistas do Brasil.
Pactuando desse raciocínio, Farias (2007), destaca em seus escritos, que o ano de 1968
foi um dos mais turbulentos da história cearense, ocorrendo greves, passeatas, confrontos
entre oposicionistas e polícia, e mesmo as primeiras ações armadas das esquerdas no estado,
as quais, segundo o pesquisador, não chegaram a ser noticiadas pela imprensa como tais. Boa
parte dessas agitações foi promovida por ativistas de esquerda vinculados às organizações que
comandavam o movimento estudantil cearense na segunda metade dos anos 1960, como a
Ação Popular (AP), Partido Operário Revolucionário Trotkista (PORT) e Partido Comunista
do Brasil (PC do B) ou ligados às organizações guerrilheiras que se instalavam já no Ceará
como, a Ação Libertadora Nacional (ALN) e, Partido Comunista Brasileiro Revolucionário
(PCBR). Tais organizações apoiaram, incitaram e lideraram as não poucas manifestações
populares, sobretudo, estudantis, acontecidas em Fortaleza no ano de 1968, manifestações
muitas vezes de caráter mais radical e, vinculadas, já, à luta armada.
Os militantes envolvidos com as bases do PC do B, da ANL, AP e de outras
organizações de esquerda no Ceará foram perseguidos e torturados por serem considerados
comunistas e perigosos ao regime instaurado. Consoante os estudos de Farias (2007) a
maioria foi torturada no Ceará.
39

Assim, entendemos que após o golpe, a repressão aos movimentos de esquerda no


Ceará foi dura e sistemática: muitas prisões, presos torturados, ativistas assassinados e muitos
corpos desaparecidos. Os que optaram pela militância clandestina foram caçados e presos pela
ditadura.

3. HISTÓRIA LOCAL E MEMÓRIA: AS NARRATIVAS DE MORADORES DA


CIDADE DE PENTECOSTE/CE
A priori, é válido mencionar, que no contexto da ditadura militar, especificamente, no
interior cearense destacou-se a predominância de chefes políticos locais descendentes de uma
mesma família, ou prefeitos indicados ou apoiados por essas tradicionais famílias políticas.
Como exemplo, vale destacar na história política de Pentecoste/CE, a predominância da
família “Gomes da Silva” no período em questão.
Sobre esse aspecto, D. Raimunda, confirmou em sua narrativa, que alguns dos
prefeitos eleitos em Pentecoste no período, foram apoiados pela família “Gomes da Silva”:

O Zé Gomes primeiramente foi um grande líder político. O irmão dele, Raimundo


Gomes da Silva, conhecido como Dr. Oliveira, já era deputado estadual na época, e
aí ele entra na política. Ele fez os prefeitos aqui em Pentecoste. O Francisco
Senhor Alves, que era o Senhorzinho; o Júlio Dias, o irmão dele Joaquim da Mota,
o Antonio Carneiro, tudo foram prefeito que ele elegeu. Nesse meio aí ele também
foi prefeito. (Entrevista realizada em 26/01/2018)

O relato em destaque caminha na direção das concepções defendidas por Almeida


(2008), de que a política do interior cearense no âmbito da ditadura militar era alvo das
vontades autoritárias de quem se encontrava no governo municipal.
Com a implantação do bipartidarismo, no Ceará a maioria dos políticos da UDN e do
PSD ficou com a Arena. Em Pentecoste não foi diferente. Politicamente, os partidários da
UDN e do PSD passaram para a Arena, formando duas sublegendas: a Arena 1, com os
antigos integrantes do PSD, e a Arena 2 com os ex-udenistas. Tal divisão demonstrou que o
partido oficial da ditadura militar alcançou o município de Pentecoste, mas também
observamos esse cisma como resultado de intrigas políticas locais entre as famílias “Gomes
da Silva” e “Nunes”. A narrativa de Antônio confirmou essa versão:

[...] aqui em Pentecoste os políticos aderiram a “revolução” e apoiaram o sistema


que começava a se implantar. [...] A oposição, que era nós, formou a Arena 2, [...]
a situação que era os “Gomes da Silva” formou a Arena 1. (Entrevista realizada em
19/01/2018)
39

O depoimento acima reforça o nosso entendimento de que essas experiências precisam


ser registradas, contudo, é preciso ter em mente o que Ecléa Bosi (1994: 33) evidenciou em
seus escritos “lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias
de hoje, as experiências do passado”, ou seja, é com os olhos no presente que os sujeitos
entrevistados se voltam para o passado, revelando aspectos de suas experiências vividas e
sentidas.
Com a Política dos Coronéis, a representação da ARENA se tornou ainda mais
freqüente no interior do estado. Nessa perspectiva, percebemos a influência da ditadura civil-
militar em Pentecoste como sendo muito mais política, do que repressora, principalmente
quando da formação de alianças entre o poder municipal e estadual, em relação ao apoio que
tais governos demonstraram aos generais-presidentes durante todo o regime. Vale destacar
que as autoridades locais prestaram uma homenagem aos militares. Sobre esse assunto, a Sra.
Maria relatou:

[...] no dia primeiro de maio de 1964, eu era menina, estudando na escola Tabelião
José Ribeiro Guimarães [...] de tarde, nós alunos, com fardamento completo, todos
em fila em frente à praça da matriz, pra homenagear os militares. (Entrevista
realizada em 22/01/2018).

Ela comenta inclusive como foi noticiado o evento em sala de aula:

[...] a professora chegou na classe e disse que no dia 1º de maio, feriado, ia ter um
bocado de autoridade em Pentecoste e que nós alunos deveríamos estar fardados,
às duas horas da tarde, na praça da matriz (em frente a Igreja N. Sra. Da
Conceição). Que essas autoridades iriam prestar uma homenagem porque o
exército brasileiro tinha feito uma coisa muito boa e não tinha deixado que o nosso
país caísse nas mãos dos comunistas [...] eu ainda me lembro, ela se benzendo em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo na hora que falou o nome “comunismo”
[...]. (Entrevista realizada em 22/01/2018).

O evento foi confirmado também pela D. Raimunda, que afirmou:

Nesse dia, eu lembro que houve o hasteamento da bandeira, as autoridades que


vieram de Fortaleza estavam em cima de um palanque falando ao povo. Tinha
alguns alunos, acho que era da escola Tabelião, não sei, mas como ela é muita
antiga [...]. Eles falavam que as coisas iam se resolver; que o povo não se
preocupasse que tudo ia acabar bem [...] Que o poder não era do homem, o poder
era de Deus. Deus era mais do que os “comunistas”. (Entrevista realizada em
26/01/2018).

Tais memórias são reveladoras para a discussão travada nesta tessitura e são vivências
que permitem compreender aspectos da história local, inserida no contexto da ditadura civil-
39

militar, especialmente, no Ceará. Desta feita, podemos presumir que o município de


Pentecoste, com representação na Câmara dos Deputados (Raimundo Gomes da Silva, filho
de Pentecoste, era Deputado Estadual na época) se mostrou a favor dos militares.
O autoritarismo e o individualismo dos líderes locais tendiam a ultrapassar os limites
dos direitos e deveres do poder público para com os cidadãos, fazendo da política uma arena
de disputas pessoais ou partidárias. Observando os depoimentos de três dos entrevistados,
percebemos a cidade de Pentecoste inserida nessa política.

Naquele tempo o que eu lembro é que se os “Gomes da Silva”, que era quem
mandava, soubessem que você não votava neles, você perdia o emprego. Naquela
época não era como agora que é tudo através de concurso, então era tudo
arranjado por eles. Eles arranjavam emprego pras pessoas, mas todo mundo tinha
que votar nos candidatos deles. Mesmo o seu pai ou sua mãe, se não fosse eleitor
deles, eles já davam as costas pra você. O Zé Gomes, que era quem arranjava os
contratos do estado na época, ele arranjava pra todo mundo, menos pra mim. E eu
acho que era só porque o papai era do outro lado, não votava neles. (BENEDITA,
entrevistada em 23/01/2018).

Também o Sr. Francisco confirma que havia um autoritarismo local muito grande por
parte dos “Gomes da Silva”

Eu votava nos candidatos do Zé Gomes. Fui cabo eleitoral dele muito tempo. Na
minha casa tinha reunião política e tudo. Trabalhei foi muito tempo, fazia o que ele
mandava: ia atrás de eleitor, de título. Na época eu pensava que era a coisa mais
certa a fazer. (Entrevista realizada em 20/01/2018)

Confirmando ainda esse mandonismo local a Sra. Francisca evidenciou:

Aqui tinha um chefe político (o Zé Gomes), que era prefeito, delegado, padre, era
tudo. Todo mundo tinha medo dele. Minha família era contra, era da UDN antes da
“revolução”. Por conta dessas questões políticas, eu não tinha o direito nem de
botar meus filhos na escola. Eu e a Carmelita, que também era do outro lado, fomos
na escola Tabelião, falamos com a diretora, na época era a Odília Feijó, e ela
disse: ‘não posso arranjar minha filha, só se você for falar com o Zé Gomes’. Aí eu
ainda fui falar com ele. A Carmelita foi comigo, e foi ela quem iniciou a conversa
dizendo que precisava matricular os filhos na escola Tabelião. Ele simplesmente
disse não. Não foi grosseiro, mas também não deixou a gente matricular nossos
filhos lá. Aí eu botei um na escola Francisco Sá, que era do DNOCS, outro foi
estudar lá no Posto Agrícola, outro foi para o Círculo Operário que não tinha nada
a ver com política. E assim foi. (Entrevista realizada em 29/01/2018).

Os relatos acima nos remetem à compreensão de que os momentos vividos e


enfrentados por cada um contribuíram para a constituição das memórias, tanto objetiva, como
subjetiva. Por isso, a memória não se forja isoladamente, segundo Ricoeur (2007: 130-131),
“é a partir de uma análise sutil da experiência individual de pertencer a um grupo, e na base
39

do ensino recebido dos outros, que a memória individual toma posse de si mesma”. Esse
aspecto é pertinente para entendermos a relação entre essas memórias, notando as
particularidades e, sobretudo, o que sobressai delas. De outro modo, “a memória por meio da
história oral pode devolver as pessoas que fizeram e viveram a história, um lugar fundamental
mediante suas próprias palavras”, conforme sugerido por Thompson (1998: 56).
Seguindo as trilhas da história local chegamos ao ano de 1971, momento no qual a
administração municipal passa às mãos do Antonio Braga de Azevedo. Este se mantém no
poder apenas por dois anos, devido o ato institucional n.º 11, de 14 de agosto de 1969 (Brasil,
1969), que tinha o interesse de igualar os mandatos dos prefeitos e dos governadores. Dessa
forma, consoante os escritos de (VASCONCELOS, apud ALMEIDA, 2008) o ato
institucional n.º 11, de 14 de agosto de 1969, alterou a data da posse dos prefeitos, vice-
prefeitos e vereadores; bem como a duração de seus mandatos, sob a alegação de ser
dispendioso realizarem-se eleições de dois em dois anos. Em seguida, ao fim de seu mandato,
nas eleições de 1972, elegeu-se para prefeito de Pentecoste, José Gomes da Silva.
O uso da violência não é algo novo na história do Brasil, nem do Ceará. Ao contrario,
nosso passado é permeado de lutas, atentados, assassínios. Violência não só dos setores
dominantes, mas também dos dominados. Na década de 1970, principalmente, a tortura,
prática cruel e desumana, largamente empregada pelos órgãos policiais contra os cidadãos
comuns para extrair confissões de suspeitos, tornou-se uma política de Estado a nortear a
repressão contra os envolvidos em quaisquer atividades políticas de oposição ao regime.
Em face desse cenário de violência em âmbito nacional e, até mesmo em âmbito
estadual, haja vista as evidências de práticas de torturas e violência no Estado cearense, as
narrativas dos sujeitos investigados nos dão indicativos para presumir que a política de
Pentecoste esteve inserida num contexto marcado por práticas oligárquicas, autoritária, mas
sem registro do uso da violência em virtude das manifestações de opositores à ditadura civil-
militar. Consideramos, a partir do que foi pesquisado, que os pequenos municípios brasileiros,
a exemplo de Pentecoste, no Ceará, viveram um “mundo à parte” no tocante às atrocidades
cometidas pela ditadura civil-militar. O relato da D. Maria confirma essa vertente

Aqui em Pentecoste não teve essa “esquerda” que a gente houve falar que teve no
Brasil na época da ditadura. Teve uma esquerda, mas uma esquerda no sentido de
oposição local. Quem era perseguido, era por questões políticas locais, não porque
fosse “comunista”. (Entrevista realizada em 22/01/2018).

A mesma D. Maria acrescenta


39

Aqui em Pentecoste já havia uma ditadura. Havia um autoritarismo local antes da


Ditadura Militar no Brasil, e por isso muita gente nem percebeu mudança de nada.
Para muitos, a coisa continuou como era antes. O Zé Gomes mandando e
desmandando, dizendo quem ia ser eleito e em quem você devia votar. Quem não
votava nos candidatos dele sofria repressão por parte dos capangas dele, não do
governo. (Entrevista realizada em 22/01/2018).

Também compartilha da mesma opinião o Sr. Antônio, quando diz “ aqui não teve vítima
da ditadura, até porque nós (tanto a UDN, quanto o PSD) ficamos do lado dela, apoiando o governo”.
(Entrevista realizada em 19/01/2018).
Considerando-se que a população não tinha acesso fácil aos meios de comunicação,
que eram restritos às elites, entendemos que tal aspecto contribui para o contexto de
desinformação, associado ao fato de que as pessoas tinham medo das conversas de calçadas,
pois o clima local era de muito disse-me-disse. O depoimento da D. Benedita confirma essa
versão

Eu não tomei conhecimento de nada desse período. Na época eu não ouvia nenhum
comentário sobre nada do que acontecia no Brasil. Pra mim não mudou nada.
Passou em brancas nuvens esse período, não fosse pela política local que era com o
Zé Gomes mandando, teria sido como qualquer outro período. (Entrevista realizada
em 23/01/2018).

D. Francisca, apesar de trazer em seu depoimento aspectos que contradiz os demais


entrevistados, no tocante ao conhecimento sobre os acontecimentos no Brasil, confirma,
também, que em Pentecoste não houve vítimas da ditadura civil-militar no Brasil, e sim dos
governantes locais:

Eu tinha conhecimento do que estava acontecendo no Brasil. A minha mãe era


muito letrada, ela gostava de ler, era muito atualizada; lá em casa tinha rádio, e
todo dia ouvíamos a Voz do Brasil; ela recebia pelos correios, a Revista Seleções, O
Cruzeiro. Então eu cresci nesse meio de informação. Meu esposo era funcionário
federal, recebia jornal, e nós sabíamos que o Brasil caminhava para mudanças, não
sabíamos quais. Então a gente tinha medo que houvesse uma guerra; ou que
mudasse alguma coisa (...) minha mãe recebia uma pensão do governo federal, meu
esposo também era funcionário do governo, e o medo era que houvesse uma
mudança nesse sentido. (...) Mas daí a dizer que aqui em Pentecoste as pessoas
foram atingidas pela ditadura, eu penso que não. Havia sim, uma ditadura local. As
pessoas tinham medo por que aqui ocorriam muitas mortes.(Entrevista realizada em
29/01/2018).

Nesse momento, a cidade passava por conflitos políticos que mostravam para a
população a força da cultura oligárquica como variante das práticas políticas observadas no
interior do estado. Isso denota uma situação singular do Estado ditatorial do Brasil, visto que
a política dos coronéis, ou ainda, todas aquelas práticas de caráter oligárquico, que já foram
40

por nós apresentadas, só ganharam espaço devido à nova forma de organização político-
eleitoral (eleições indiretas), assegurada pela força do governo federal.
Em 1974, a força política da família “Gomes da Silva” estava consolidada. Raimundo
Gomes da Silva elegeu-se deputado federal pela primeira vez, depois de vários mandatos na
Câmara Estadual (1950, 1954, 1958, 1962, 1966 e 1970); sua irmã Maria Zélia Mota, elegeu-
se deputada estadual, e na prefeitura estava o outro irmão, José Gomes da Silva. A década de
1970 assinalou o auge do domínio político dessa família.
Face ao material encontrado, acreditamos que essas experiências e vivências precisam
ser registradas, haja vista o nosso entendimento em Freitas (2006: 79) de que “a História Oral
possibilita novas versões da História ao dar voz aos múltiplos e diferentes narradores”;
contudo, é válido lembrar, também, o que Alessandro Portelli (1997: 31) nos ensinou: “[...]
Fontes orais contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que
acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em mente que o trabalho com o conceito de memória requer a atenção acerca da
distância temporal existente entre o ato de relembrar, narrar determinada experiência e a
própria experiência vivida pelo entrevistado no passado, essa pesquisa objetivou registrar as
memórias de moradores da cidade de Pentecoste/CE acerca do período da ditadura civil-
militar, e descrever de que forma esse momento histórico foi percebido por eles, desvelando,
assim, aspectos da história local.
A partir da análise das narrativas, percebemos a política da cidade com características
oligárquicas, autoritária, mas sem registro do uso da violência em virtude de manifestações de
opositores à ditadura civil-militar. Consideramos, também, que pequenos municípios
brasileiros, a exemplo de Pentecoste, viveram um “mundo à parte” no tocante às atrocidades
cometidas pela ditadura civil-militar.
Tendo em vista que a década de 1970 foi o período mais repressor, uma vez que a
tortura tornou-se uma política de Estado a nortear a repressão contra os envolvidos em
quaisquer atividades políticas de oposição ao regime, concluímos, com base nos depoimentos,
que em Pentecoste não houve vítimas da ditadura civil-militar, e sim dos governantes locais.
Considerando-se que as memórias possuem histórias particulares, entretanto,
envolvidas em um contexto social, histórico e político, entendemos que estas e outras
histórias necessitam serem investigadas, analisadas e compreendidas pelo historiador de
forma a ampliar as discussões.
40

REFERÊNCIAS
ALMEIDA,Viviane Prado. A cidade de Sobral no contexto da Ditadura Militar no Ceará
(1963-1970). Revista Homem, Espaço e Tempo. Centro de Ciências Humanas da
Universidade Estadual Vale do Acaraú/UVA. Ano II, número 1, março de 2008.
ARAÚJO, Maria Paula Nascimento; SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. História, memória e
esquecimento: Implicações políticas. Revista Crítica de Ciências Sociais, 79, Dezembro
2007: 95-111.
BONAVIDES, Aníbal. Diário de um preso político. Fortaleza: Gráfica O POVO, 1986.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. S ã o P a u l o: Companhia das
Letras, 1994.
BRASIL. Ato Institucional nº 11, de 14 de Agosto de 1969. Publicação Original. Disponível
em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/atoins/1960-1969/atoinstitucional-11-14-agosto-
1969-363939-publicacaooriginal-1-pe.html. Acessado em 03 de fev. de 2018.

CORREIO DO CEARÁ. Ceará, Jornal, 1964. Diário do dia 06/04/1964, p.6.


FARIAS, José Airton de. Além das Armas: Guerrilheiros de Esquerda no Ceará durante a
Ditadura Militar (1968-72). Dissertação (Mestrado em História Social), Universidade Federal
do Ceará. Fortaleza, 2007.
FREITAS, Sônia Maria de. História Oral: possibilidades e procedimentos. Associação
Editorial Humanitas. São Paulo: 2006.
LE GOFF, Jacques. Memória. In: Memória e História. Campinas: Unicamp, 1990, p. 423-
483.
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. In: Projeto História, nº 14. São
Paulo: 1997. Fev. pp. 25-39.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São
Paulo, n.10, dez. 1993, p.7-28
THOMPSON, Paul. A voz do passado. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
40

A RESISTÊNCIA SOLIDÁRIA DOS TRABALHADORES PORTUÁRIOS DE


FORTALEZA(1912-1933).

Nágila Maia de M. Galvão1

RESUMO: A presente pesquisa analisa o processo de conhecer–se dos trabalhadores do


Porto de Fortaleza – Ce. (1912-1934), a partir do estudo sobre as ações desenvolvidas pela
Sociedade Beneficente Deus e Mar (que chegou a ser Deus e União) e o Sindicato dos
Trabalhadores do Porto do Ceará, que ocorriam entre as fronteiras do mutualismo e do
sindicalismo. Essas instituições que representavam a maioria dos portuários da capital
cearense, principalmente o STPC, optaram pela tríade: beneficência + resistência + controle
do mercado de trabalho. Dessa maneira, o conceito de Resistência Solidária fundamenta-se na
garantia de necessidades imediatas, como auxílio doença, auxílio funerário, pagamentos de
Pecúlios, assistência médica, oferta de escolas para os trabalhadores, que serviam para
identificar as necessidades comuns e unir os portuários dentro da percepção de que quem
seriam “Eles”, diante dos “Outros”. Para tanto, utilizo como fontes jornais e Relatórios é Atas
de Assembleias do Sindicato dos Trabalhadores do Porto do Ceará. Os autores Richard
Hoggart, James Scott, William J. Melo e E. P. Thompson, auxiliam nas discussões teóricas.
Palavras-chave: Portuários. Mutualismo. Sindicalismo.

No início do século XX, os portos da cidade de santos e do Rio de Janeiro se


destacavam em volume do transporte de mercadoria, por onde escoava grande parcela da
produção do país, possuíam importância econômica não somente para a região Sudeste, como
nacional. Esses espaços também foram responsáveis por facilitar as trocas culturais, através
do contato entre indivíduos de vários estados brasileiros, e nacionalidade, entrada e saída de
livros, jornais, e notícias.
O movimento dos portuários possuía destaque nas grandes cidades do país, exercendo
importante participação nas manifestações e reivindicações dos trabalhadores. No caso do
Porto do Rio de Janeiro, a busca pelo controle da contratação da mão de obra portuária
ocorreu durante a primeira república, envolvidos pelo sentimento de resistência à dominação
capitalista no processo de produção. Em Santos, os estivadores iniciaram as lutas
reivindicativas pelo controle do mercado de trabalho, em 1910, e conquistaram parcialmente
na década subsequente, passando a ter o controle absoluto do contrata da mão de obra nos
anos de 1930 (CRUZ, 1998).
A cidade de Fortaleza, ganhou destaque a partir do século XIX, quando passou a ser
capital do Ceará, e importante centro urbano e comercial, antes dominado por Aquiraz e
Aracati. Nesse período, sua economia era voltada para a cultura do algodão, a qual contribuiu
1
Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco, professora da SEDUC/Ce.
nagilamaia@hotmail.com
40

de modo relevante para o crescimento econômico do Estado e do município. A partir da


produção algodoeira e o fortalecimento da economia local, surgiram as primeiras fábricas
(ABREU, 2012: 41).
Em meio a cidade que crescia, fui fundada a Sociedade Deus e Mar, em 1912, na
cidade de Fortaleza, composta, principalmente, por trabalhadores marítimos, assumiu papel
relevante nas lutas dos portuários por melhores condições de vida e de trabalho. Nesse
sentido, vou me ater à análise dos documentos sobre os portuários, para compreender as
relações estabelecidas entre os portuários, políticos (membros da elite econômica e política) e
os contratadores de serviço do porto.
O fato de a sociedade mutual ter como força para o seu nascimento as necessidades
materiais, esse elemento não explica o quão foi complexo esse processo, sendo necessário
analisar as vivências desses trabalhadores e suas experiências cotidianas para entender as
forças que os movimentaram à organização e manutenção desse tipo de associação,
juntamente com as práticas de relacionamentos, e alianças desenvolvidas entre os portuários,
os patrões e elementos ligados ao cenário político da cidade.
No caso da Deus e Mar, no Estatuto estava determinado no art. 4º que embora não
pertencesse a nenhum partido político, nem filiado a qualquer seita religiosa, reconheceu a
necessidade de adotar uma política de classe, com o objetivo de defender os interesses dos
associados e garantir a liberdade de expressões religiosas.2 Nesse artigo abre-se a
possibilidade de promover alianças e conchavos políticos e religiosos, ao admitir a
necessidade de inserir a associação dentro dessas discussões e apesar de não se declarar
pertencendo a qualquer tipo de partido ou religião.
As mutuais foram fundadas com o objetivo de garantir a seguridade física e familiar
dos associados, também serviu para fortalecer os vínculos e a convivência democrática, em
que solidariedade, companheirismo e fraternidade, tendo como referência, muitas vezes, os
laços estabelecidos no trabalho. Os serviços oferecidos por essas sociedades buscavam
amenizar as condições de pobreza, a falta de assistência do Estado e a ausência de direitos em
que viviam os trabalhadores.
Tânia de Luca afirma que as associações mutuais possuíam o cunho previdenciário,
tendo grande preocupação com a saúde dos associados. Destarte, essas associações devem ser
vistas como sendo uma forma de resistência dos operários, no entanto, uma resistência que

2
DIÁRIO DO CEARÁ. Segunda reforma dos Estatutos da ‘Deus e Mar’. Número e página (rasurados)
15/10/1927. pp. 3-6.
40

não entrou no embate direto contra os patrões ou contra as relações de exploração do trabalho,
mas sim como ferramenta de luta contra a miséria vigente (LUCA, 1990).
A Sociedade Deus e Mar possibilitou, como estratégia de luta, manter os trabalhadores
em uma relação de proximidade com os patrões e políticos, tendo em vista melhor negociação
de pequenos benefícios e favores imediatos. Já para os patrões e os políticos, a inserção na
Associação era uma maneira de amenizar as insatisfações mais emergenciais dos
trabalhadores e moldá-los para evitar condutas de desordens que fugissem do controle e da
ordem vigente estabelecida.
Assim como a Associação Deus e Mar, o STPC buscaram controlar a vida dos
trabalhadores do porto de Fortaleza, e também, o sistema de contratação da mão de obra e
prestação de serviços às empresas de navegação. Para isso prezavam pela força do trabalho
disciplinado de modo a atender a demanda no sistema de carga e descarga de mercadorias e
passageiros no porto.
Considerando-se que os sindicatos no Brasil, de um modo geral, foram mais
combativos em relação às lutas por melhores condições aos trabalhadores entre os anos de
1919-1922, durante os anos que se seguiram, o anarcossindicalismo foi progressivamente
perdendo suas forças. A categoria dos trabalhadores portuários era uma das mais numerosas
que buscaram o apoio da LCT, contando por volta de 1000 associados somados da Deus e
União, do STPC, sem contar com sócios do Sindicato dos Trabalhadores das obras do Porto,
que também possuía um número significativo de associados (SAMIS, 2013:36-37).
Na contramão do anarquismo, o STPC foi se tornando mais a combativo e atuante ao
longo dos anos de 1920, vindo posteriormente a alinhar-se ao discurso da Igreja Católica e da
LCT. Com a fundação a Legião Cearense do Trabalho (1931) que cooptou vários sindicatos e
associações, inclusive o STPC que em grande medida já colocava em prática muitos valores
defendido pelos legionários, como a disciplina, a moralidade e o valor do trabalho para
dignificar o homem, o movimento reivindicatório dos portuários conseguiu estreitar o diálogo
com os contratadores e as empresas de navegação.
A Igreja Católica, se inseriu de maneira mais explicita no movimento dos portuários,
defendendo a disciplina e a ordem entre os trabalhadores como maneira de provar a
maturidade e a capacidade de discutir e negociar melhores condições de trabalho, sem a
ameaçar fugir as rédeas Católica. A implementação da Ação Católica, foi realizada desde o
final do século XIX para fazer frente as ideias socialistas e comunistas, os quais colocavam
por terra valores e crenças da Igreja. A postura do cataclismo foi de intermediador das tensões
40

e conflitos existentes entre os patrões e os empregados, adotado como prática o diálogo e as


negociações entre as partes.
A influência das ideias da Ação Católica, estiveram presente na Sociedade Deus e Mar
no STPC, seja através de prática assistencialistas, seja com a defesa da união e da ordem entre
os trabalhadores associados, ou defendendo uma simples melhora da situação dos
trabalhadores, defendendo os seus direitos, mas sem a necessidade de transformação do
sistema social capitalista.

As expressões sindicalismo amarelo ou sindicalismo reformista remetem à


estratégia sindical – e, por analogia, aos sindicatos que a praticavam – oposta
àquela adotada pelas resoluções dos congressos operários brasileiros de 1906,
1913 e 1920, chamada de sindicalismo revolucionário ou de ação direta, inspirada
nas concepções da Confederação Geral do Trabalho (CGT) francesa. Portanto, a
designação, difundida a partir da década de 1910, somente ganha sentido na
confrontação com a outra forma de sindicalismo então existente (FAUSTO, 2005).

Os princípios defendidos pelos socialistas reformistas 3 se assemelhavam aos valores


católicos, principalmente no tocante a não se preocupar com a mudança da organização social,
bem como, a preservação da estrutura hierárquica de organização das diretorias dos sindicatos
a, com cargos dotados de atribuições específicas (presidente, vice-presidente, secretário,
tesoureiro etc.), existente em outros tipos de associações, como as sociedades mutualistas,
além de defender o fornecimento dos auxílios a seus associados (por falecimento,
desemprego, doença).
Essas práticas também foram adotadas pelo STPC que ao longo da história do
sindicato foi formada uma pequena casta de dirigentes que se revezavam nas funções, e Vital
Felix de Souza4 permaneceu na presidência, com características autoritárias diante dos
associados, pois à medida que o sindicato crescia, e sua área de atuação se expandia, esses
tipo ações se intensificaram. Como no caso de José Feliciano de Souza, em fevereiro de 1925,
suspenso por faltar com atenção a Vital, e isso foi considerado uma afronta ao poder do
presidente (PARENTE, 1999:84).

3
O sindicalismo amarelo defendia que a greve deveria ser vista como último recurso, a ser empregado apenas
depois de esgotadas outras formas de pressão e negociação, o recurso a intermediários, como advogados,
políticos e autoridades, era visto como um meio lícito de auxiliar o sindicato no encaminhamento de suas
reivindicações, e não raro figuravam entre seus projetos a participação eleitoral e a constituição de partidos
operários. Sustentados pela ideia de as conquistas deveriam ser consolidadas por meio de leis e a defesa da
função arbitral do Estado nas relações de trabalho.
40

Dentro dessa mesma linha de controle e poder exercido pela diretoria do sindicato,
também no ano de 1925, foi determinado que os trabalhadores não poderia trabalhar “despido
meio corpo”, por questões morais5. Manteve as ações mutualistas, bem como o alinhamento
com figuras políticas da cidade, e a ênfase na construção do diálogo e da negociação com os
patrões, delegando a greve um caráter secundário nas estratégias de lutas dos portuários
(PARENTE, 1999: 86)
No início dos anos de 1930, o STPC se aproximou da LCT, da ação social da Igreja
Católica e das ordens governamentais sobre o sindicalismo6 e, através do diálogo com estas
entidades, o sindicato conseguiu vitórias significativas em relação aos sistemas de contratação
e de pagamento da mão de obra, bem como da carga horária para os trabalhadores
sindicalizados.
Vital Félix de Souza foi um dos fundadores e presidente do STPC por vários mandatos
e teve forte atuação na LCT. Inicialmente foi carroceiro, e devido à sua boa conduta, acabou
tornando-se um protegido da Família Diogo, ligada ao comércio e a indústria local. Passou a
ser marítimo e foi um dos fundadores do Sindicato dos Trabalhadores do Porto.
Em entrevista concedida ao pesquisador Josênio Parente, em 09 de fevereiro de 1983,
Vital, afirmou que na época da fundação do sindicato, não havia legislação para defender os
trabalhadores, e que os patrões e capatazes não foram a favor da criação do mesmo. Mas,
segundo ele, recebeu o apoio da única associação forte entre os marítimos, a Associação Deus
e Mar, que via na criação do sindicato uma forma de fortalecer as lutas em prol de melhoras
nas relações de trabalho e nos serviços portuários. Vital, também afirmou que a questão
sindical era apoiada pelos ingleses que aportavam rotineiramente no porto de Fortaleza, e
alegavam que o sindicalismo e a conquista de leis trabalhistas seriam um avanço para os
portuários cearenses (PARENTE, 1999: 84)
Na fala de Vital Félix, pode ser percebido que a fundação do sindicato foi pensando
diante da necessidade de fortalecer o movimento de lutas dos trabalhadores portuários.
Inicialmente ele possuía uma caráter notadamente mutualista, mas os debates sobre o papel
diferenciando do sindicato em relação as reivindicações dos trabalhadores foi sendo
amadurecido e o diálogo com outras categorias e principalmente com as ideias que chegavam

6
O Decreto 19.770 de 1931 regulamentou o sindicalismo e não escondia sua ação desmobilizadora das antigas
lideranças sindicais, orientando-se no sentido de decapitar politicamente uma boa parcela das lideranças mais
aguerridas e resistentes. (Decreto- lei 1.371, de 23/IV/1939, art. 5§2 e 3).
40

via Porto, corroboraram para que o STPC buscasse mudanças mais efetivas nas relações de
trabalho. O Sindicato agregou essas ações às lutas reivindicatórias e de resistência contra a
exploração sofrida pelos portuários a construída. Assim, o STPC colocou o fortalecimento da
categoria partir das práticas mutualistas, e a construção das negociações contratadores da mão
de obra como sendo os dois pilares de sustentação das suas lutas.
Segundo Parente, durante os anos de 1925 e 1926, as ações do sindicato tornaram-se
mais intensos o diálogos com outras associações, objetivando ter maior força e participação
política. Nesse mesmo período colocou de maneira mais efetiva e combativa na busca por
melhorar as condições de vida dos trabalhadores. Em 1927, o sindicato aliou-se de maneira
mais ativa a Federação Operária Cearense, fundada em 1925, e que foi precursora da Legião
Cearense do Trabalho (PARENTE, 1999: 84).
Os membros da diretoria do STPC, vinham durantes os anos que antecederam a
Revolução de 1930 e da Fundação da LCT, passando por um processo de mudanças nas
estratégias de atuação sindical, tendo o objetivo conseguir conquistas para os trabalhadores
para além dos benefícios de caráter mutualistas. A aliança com a LCT em 1931, fortaleceu
mais o poder de Vital Felix de Souza, dentro do sindicato.
Analisando o processo de fortalecimento da sociedade Deus e Mar (Deus e União) e
do STPC, torna-se fundamental lançar mão da produção de Richard Hoggart, o qual pensou a
cultura inserida na vida real e não a parte. Ao realizar o estudo sobre as classes trabalhadoras
e as mudanças e adequações dos costumes, linguagem, etc., afirmou que os trabalhadores
acabam por desenvolver um senso de resistência, a resistência do dia a dia (COSTA, 2012: 160).

Não se trata de uma força de resistência passiva, mas antes de algo que, se bem
inconsciente, pode ser considerado como positivo. As classes proletárias possuem
um elevado grau de faculdade natural de resistirem à mudança, adaptando ou
assimilando, nas novidades aquilo que lhes interessa, e desprezando o resto
(HOGGART, 1973: 40)

O autor dota as classes operárias de uma ação protagonista natural no dia a dia para
lidar e escolher as informações e ações que são consideradas para as mesmas positivas,
mesmo que haja a tentativa de influência das camadas mais poderosas, que buscavam ditar
normas e condutas, que corroboram para a construção da ideia de grupo. Fazendo uso da
teoria da construção da coletividade entre os trabalhadores e o processo de identificação de
quem seriam os adversários (inimigos) e de quem seriam os aliados. Definindo que “Eles”
seriam os patrões, podendo ser entidades privadas ou elementos públicos, e “Nós” seriam os
trabalhadores explorados.
40

Hoggart foi importante para o desenvolvimento da ideia central desta tese, tendo em
vista que para analisar o processo de compreender-se dos trabalhadores portuários, enquanto
coletividade, diante da necessidade de identificar quem eram os portuários e contra quem eles
deveriam lutar, nesse sentido, o sindicato e a associação exerceu importante papel, ao
auxiliarem no processo de identificação do “Nós” e “Eles” (HOGGART, 1973:87)
Tanto a diretoria da Deus e União e do STPC, mantiveram intenso diálogo com a
LCT, seguiram as diretrizes legionárias, que prezavam pela manutenção da ordem e da boa
conduta dos trabalhadores, e o sindicato dos portuários, foi moldando suas ações de acordo
com o que era definido pela legião7.

O syndicato inicialmente lhe fornecerá o médico, o advogado, a escola para os


filhos, livrando-os assim de fortes laços de submissão ao patrão ao rendeiro, ao
coronel, ao chefe político. O syndicato se transformará no advogado de suas
aspirações de classe, organisando o programma de suas necessidades, pois estas
somente no syndicato poderão ser vistas, sentidas, comprehendidas.
O syndicato se constituirá o seu orgão de communicação com os governos, com as
autoridades, esclarecendo as prentenções e os interesses da classe, e amparando-os
convenientemente e proficientimente.
A propaganda da corporação deve ser portanto, emprehendida sem
desfallecimentos, por todos os meios. Emquanto o sertão todo não associar-se sob a
bandeira de syndicatos vivos, intelligentes e energicos, é inultil esperar qualquer
melhora para as suas condições de vida8.

A sindicalização defendida pela LCT assemelhava-se ao associativo beneficente,


ofertando serviços médicos e jurídicos, possibilitando o acesso dos filhos dos trabalhadores à
escola, intermediando as negociações entre os patrões e os trabalhadores, buscando melhorias
nas condições de vida e de trabalho, porém, de modo “organizado e controlado”, para fugir da
dita anarquia e das ideias revolucionárias comunistas. A diferença do mutualismo estava na
atuação social do sindicato na luta, que não eram necessariamente através do embate direto,
com greves e passeatas, mas que reivindicavam mudanças no processo de contratação, nos
valores pagos aos trabalhadores, na carga horária de trabalho, e na busca por garantias de
diretos considerados básicos.
O modelo de prática sindical que, a partir da releitura das experiências das décadas
anteriores, se consolidou no início dos anos 30 entre os trabalhadores do Porto de Fortaleza,
pautou se na luta reivindicativa por melhores condições de vida, como um controle do
mercado de trabalho e da beneficência, não podendo a organização sindical, no caso dos
portuários de Fortaleza, ser simplesmente definido dentro da linha de beneficência ou de

7
O LEGIONÁRIO. Legião cearense do trabalho – Boletim nº 1 (Janeiro). 04/03/1933 Nº 01. p. 2.
8
O LEGIONÁRIO. Legião cearense do trabalho – Boletim nº 1 (Janeiro). 04/03/1933 Nº 01. p. 2.
40

resistência, visto que esses trabalhadores tiveram contanto com diferentes ideias sociais e com
diferentes categorias de trabalhadores da cidade. Diante disso, perceberam que, através da
expansão da solidariedade entre os portuários e outras categorias, conseguiram vitórias
coletivas. Como no caso da greve da Light, empresa que fornecia energia para Fortaleza, os
portuários se colocaram como apoiadores do movimento grevista e enviaram apoio material
para as famílias dos trabalhadores em greve.9
Ao analisar as ações estratégicas do STPC, torna-se indispensável entender o conceito
de resistência, e dialogar com outros autores no objetivo de amadurecê-lo e então
compreender o modo de resistência vivido pelos trabalhadores portuários de Fortaleza.
Nesse sentindo, William Mello, desenvolve o conceito de solidariedade ocupacional
para tratar sobre a resistência desenvolvida pelos trabalhadores portuários de Nova York.
Pensando que esse tipo de solidariedade surgiu como reflexo dos interesses compartilhados, a
partir das condições gerais do processo de trabalho do porto, do emprego informal sem
vínculo com um único empregador, das condições de trabalho brutais e perigosas, da falta de
mobilidade ocupacional, que aliada a compreensão que eles faziam parte da camada mais
baixa da classe trabalhadora, corroboraram para conquista e fortalecimento do processo de
reconhcer-se enquanto grupo.

Para ocorrer a ação coletiva entre os trabalhadores, eles precisam desenvolver um


conjunto de características comuns que os levem a adquirir metas ou objetivos
comuns. Neste sentindo, a ação coletiva é primeiramente baseada no momento em
que os trabalhadores encontram disposição para comportar-se em ação comum
(MELLO, 2016: 57).

A partir do processo de ação coletiva, foi fortacelecida a resistência dos portuários, da


qual nasceu a noção de classe, que atrelou os interesses compartilhados ao intercâmbio social,
político e econômico. Assim, a cultura de resistência dos estivadores, baseou os seus
interesses compartilhados (relacionados a tradição), na experiência particular no trabalho e na
inserção do cais na economia política (MELLO, 2010: 24-25).
William compreendeu a ação consciente dos portuários de Nova York dentro da
preocupação com as questões sociais, políticas e econômicas, ou seja, onde os portuários se
inserem em um cenário de tensão e resiste diante das forças que os exploram. Já Scott,
entendeu os trabalhadores camponeses a partir de ações estratégicas, ditadas pelas artimanhas

9
ATAS DE ASSEMBLEIAS DO SINDICATO DOS TRABALHADORES DO PORTO DO CEARÁ.
22/09/1929.
41

(atitudes veladas e silenciosas) do dia a dia utilizadas para burlar o sistema de trabalho e de
exploram que estavam inseridos.
James Scott trata sobre as resistências cotidianas a partir das condições limitadas
desses trabalhadores, os quais temem as retaliações e reações dos seus patrões. Sendo as
resistências cotidianas, “as armas comuns dos homens sem poder”, que não produzem
manchetes de jornais, grandes mobilizações, e não chama atenção social, tendo em vista que
são prioritariamente construída com micro atos, para manter a segurança do anonimato
(SCOTT, 2002: 20). O autor segue afirmando que essas ações se dão majoritariamente a nível
individual, de caráter informal, são o que ele denominou de resistências silenciadas.
No caso de Scott, ao analisar os camponeses de Sedako, compreende que as ações de
resistência, como o boicote e o roubo de grãos se intensificaram a medida que as máquinas
foram sendo introduzidas na atividade do campo, modificando toda a dinâmica de
organização do trabalho e agravando a situação de pobreza dos camponeses, levando as
resistências rotineiras (SCOTT, 2002: 22). Nesse sentindo, as resistências cotidianas foram
fundamentais para diminuir a velocidade com que as máquinas foram sendo implementadas
na produção dos grãos de arroz, considerando essas ações válidas e importantes, mesmo que
não tenha tido inicialmente um caráter político, nem tenham tido um caráter radical e aberto.
Dessa feita, a resistência não precisa de etiquetas pré-planejadas, pois a resistência
pode possuir “diversas faces”: individual, coletiva, formal, informal, pública, anônima,
desafiam o sistema de dominação ou que objetivam ganhos marginais (SCOTT, 2002: 29-31).
O mais importante a ser destacado é que as formas de resistências cotidianas servem para o
processo de mobilização dos trabalhadores e transformações que podem ser vistas a logo
prazo, ou seja, a percepção de entendê-las dentro de um processo histórico, consideradas
como “armas duráveis”.
Utilizando da análise de James Scott para compreender as ações dos os portuários do
STPC, mas tomando as devidas precauções, posto que Scott analisou os trabalhadores
camponeses e aqui estudo os portuários, os quais possuem uma dinâmica de trabalho, inserção
e percepção da economia completamente diferente, bem como para esse autor as resistências
cotidianas, não são institucionalizadas. Percebo, a partir das ações informais e dissimuladas,
que os trabalhadores portuários, apesar de se organizarem na Deus e Mar e no STPC, muitas
vezes estavam preocupadas com ganhos imediatos, e utilizando as formas cotidianas de
resistência para fugir do combate direto e consequentemente das ações repressivas.
No entanto, esses trabalhadores também construíram momentos de embates diretos,
tiveram a visibilidade diante da sociedade, tornando público suas necessidades e
41

reivindicações nas páginas dos jornais, tal como os trabalhadores de Nova York fizeram.
Nesse sentindo, os portuários não adotaram somente a resistência passiva, com micro atos,
com caráter informal e individual. Eles foram além, não diminuindo a importância das ações
de resistência cotidianas apresentadas pelos camponeses, mas no sentido de sair da limitada
percepção de luta individual, conseguiram se organizar para conquistar os interesses comuns
fortalecidos pelas ações de resistência, que ganharam o caráter de formalidade como
estratégia política e social.
Concordo com James Scott, no sentido de que as forças cotidianas de resistência são
fundamentais para as lutas e conquistas dos trabalhadores, que buscaram fugir do desgaste
com os patrões e empresas de contratação, mas no sentido de processo, ou seja, “armas
cotidianas duráveis”, que foram modificando a maneira de agir e resistir dos trabalhadores
portuários de Fortaleza. Os quais, atuaram intensamente utilizando as estratégias das
sociedades beneficentes de auxílio mútuo, implementaram mecanismos de luta mais diretos
para conquistar benefícios, não somente matérias, mas de mudanças no processo de
organização, contratação da mão de obra e de pagamento, atuando na luta reivindicativa, na
tentativa de controlar do mercado de trabalho e a beneficência.
A ação beneficente se assemelha ao que Mello, afirmou ser solidariedade ocupacional,
dentro do processo de resistência, que surgiu da ação coletiva e corroborou para processo de
autoconhecer dos trabalhadores inseridos nas disputas por poder econômico, político e social.
Mesmo diante do que foi apresentado em relação às ações dos anarquistas para
convencer os trabalhadores da associação Deus e Mar e do STPC de que o Sindicato de
Resistência era uma importante ferramenta de luta, seja através das páginas dos jornais, da
aproximação dos sindicatos e associações, seja através das reuniões, das assembleias,
incentivando a fundação de escolas para os trabalhadores e seus familiares, etc. as instituições
que representavam a maioria dos portuários da capital cearense, principalmente o STPC,
optaram pela tríade acima citada (beneficência + resistência + controle do mercado de
trabalho).
Dessa maneira, apesar da diretoria STPC afirmar ser de resistência, nas suas atitudes
do dia a dia se acumulavam a beneficência. Dessa mistura, surge o que chamo de Resistência
Solidária, na qual os trabalhadores buscaram mecanismos para melhorar suas condições de
vida e de trabalho, através da união dos trabalhadores sob a égide da Associação Deus e Mar,
Deus e União e no sindicato, tendo o auxílio mútuo o objetivo de promover melhorias
imediatas, a as ações reivindicativas conquistar vitórias e espaços no âmbito das mudanças
materiais e estruturais, principalmente, no que tange a sistemática de contratação e pagamento
41

da mão de obra, que interferia diretamente na vida econômica dos trabalhadores, e os


deixavam a mercê dos patrões-contratadores e das empresas de navegação.
A luta se fez, evitando-se embates diretos, mas houve a resistência diante da
exploração e ela não se fez passiva, e sim ativa, com diálogo entre os trabalhadores,
principalmente, da diretoria do sindicato; com os patrões; promovendo o diálogo e a
negociação com os contratadores e as empresas de Navegação, ameaçando com a
possibilidade de greve e por vez, chegando a deflagrá-la; obtendo derrotas, mas também
vitórias, como a conquista do closed shop (Contrato Coletivo) e o controle do sistema de
contratação da mão de obra no porto no início dos anos de 1930, que deu maior poder ao
STPC e a Associação Deus e União no processo de controle da mão de obra.
A Resistência Solidária se pautava na garantia de necessidades imediatas, como
auxílio doença, auxílio funerário, pagamentos de Pecúlios, assistência médica, oferta de
escolas para os trabalhadores, que serviam para identificar as necessidades comuns e unir os
portuários dentro da percepção de que quem seriam “Eles”, diante dos “Outros”.
A partir dessa compreensão, foi possível articular mecanismos de lutas com caráter de
resistir, de modo a repassar a organização do trabalho as formas e valores de pagamentos, da
jornada de trabalho, etc. também foram feitas alianças declaras ou veladas com grupos
políticos, intelectuais da época, com a Igreja, a LCT, com outras categorias de trabalhadores,
fazendo acordos a partir das suas conveniências, para conquistar os objetivos traçados pelo
STPC: União para Resistir e conquistar benefícios.
No tocante aos trabalhadores do porto associados a Deus e Mar e ao STPC, apesar dos
anarquistas se mostrarem sensíveis as suas pautas reivindicativas, e de ter dado espaço de
divulgação das suas problemáticas nos jornais libertários, os portuários não se afirmaram
adeptos, ou simpatizantes da causa anarquista.
Enquanto a Deus e Mar se caracterizou pela beneficência, o STPC, viveu a dualidade
sindicato-beneficência, muitas vezes de maneira tensa e buscando construir uma forma
própria de luta e nesse processo de auto conhecer-se, o fortalecimento da categoria, passou
pela identificação de quem eram os trabalhadores do porto, e quem eram aqueles que se
beneficiavam da exploração da mão de obra portuária. E foi exatamente a questão envolvendo
o controle da mão de obra que deu força para que a Deus e Mar, posteriormente, Deus e
União, e o STPC buscassem construir espaços de lutas e conquistar o controle da contratação
dos trabalhadores para os serviços de carga e descarga no porto.
Então, apesar do anarquismo ter mostrado a importância estratégica de resistência
sindical, o caminho seguido pelos portuários do STPC não esteve de acordo com as ideias
41

anarquistas, mas também não se limitaram ao associativos. Dessa maneira, construíram suas
ações fundamentados na resistência solidária, que aliou a busca pelo controle do processo de
contratação da mão de obra, somadas as práticas de auxílio mútuo, desenvolveram ações de
resistência mais explicita, com a participação e apoio a greves e também construíram alianças
políticas, para negociar pautas reivindicatórias.
Os portuários buscaram o apoio não somente de indivíduos ligados aos partidos
políticos da cidade, como já foi abordado no capítulo 1 e 2 desta tese, mas também teceram
laços com elementos ligados ao catolicismo, para isso buscaram adequar se ao modelo de
moral proferido pela Igreja Romana. Aderiram ao movimento da Legião Cearense do
Trabalho (LCT), que teve destaque nas lutas dos trabalhadores do Ceará no início dos anos de
1930, período em que as atenções do governo Vargas estavam voltadas para a questões das
leis do trabalho, dos sindicatos e dos trabalhadores.
Os homens fazem a história, são sujeitos de transformação através das experiências e
lutas do dia a dia, buscam compreender-se e muitas vezes modificar as condições de vidas nas
quais estão inseridos, num constante processo de fazer-se. A partir das experiências e
vivências que os faz traçar objetivos e lutar para atingi-los, e assim a história é feita. A
história pode ser feita por homens ricos, que detém poderes políticos, econômicos, mas
também por homens pobres e trabalhadores. Sendo que me ocupo nessa pesquisa, exatamente
no fazer-se dos homens trabalhadores, com o objetivo de compreender suas ações no dia a dia,
suas experiências e os objetivos que traçaram e que serviram como combustível para que eles
interferissem na construção da história.
Uma importante discussão que devo enfrentar nesse momento está relacionada a
questão da consciência dos trabalhadores portuários de Fortaleza (1912-1933), analisando os a
partir da concepção thompsoniana de experiência e consciência de classe, inseridos num
processo de fazer-Se (THOMPSON, 2001: 10).
Esse processo de fazer-se é muito importante para a compreensão do movimento dos
trabalhadores do Porto de Fortaleza, no sentido de analisar as suas ações mesmo anterior à
fundação da Sociedade Deus e Mar, e perceber que nos primeiros anos do período
republicano, movimentações políticas e sociais já eram articuladas, como na greve dos
catraieiros em 1903-1904. Após essa greve, os trabalhadores do porto destacaram-se, como
sendo uma categoria que buscava se unir e lutar por melhores condições de vida. Chegando a
1912, ano em que foi fundada a Deus e Mar, associação que só fortaleceu de um modo geral a
aliança entre os portuários, a qual veio a ganhar como aliado o Sindicato dos Trabalhadores
do Porto do Ceará(1922). Então porque os portuários fundaram um sindicato e não
41

simplesmente se associaram a Deus e Mar? A resposta está relacionada ao próprio momento


histórico, o qual já foi analisado e que apontava para a necessidade de empreender uma nova
forma de luta, que fosse para além do auxílio mútuo, apesar de o sindicato ainda se afirmar
como tendo essa característica, ele possuíam um viés mais ativo na organização dos
trabalhadores e do trabalho, ao defender e articular caminhos políticos e sociais para
conquistar melhorias materiais e transformações nas relações de trabalho no porto.
As lutas dos trabalhadores do porto de Fortaleza, só foram possíveis devido as
experiências vivenciadas e a participação dos mesmos dentro do processo de conhecer-se que
foi sendo conquistado ao longo das décadas de lutas, desde os primeiros anos da república no
Brasil, chegando as décadas de 20 e 30 com um bagagem de autoconhecimento considerável e
com a participação ativa dos trabalhadores nas associações e no sindicato. No processo de
fazer-se dos trabalhadores portuários de Fortaleza (1912-1933), ocorreram avanços e
retrocessos, conquistas e derrotas, ganhos salarias e perdas de direitos trabalhistas, em outras
palavras, foi um processo permanente no qual não cabe a compreensão estanque de uma
consciência pronta e acabada, mas que o próprio processo de consciência se efetivou através
das lutas do dia a dia.

Referências Bibliográficas
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41

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THOMPSON, E. P. As Peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora
da Unicamp, 2001.
41

A ABORDAGEM DA LEI 11.645 DE 2008 NO LIVRO DIDÁTICO:


POR QUE APLICÁ-LA DE FORMA EFETIVA NO ENSINO BÁSICO?

Paulo Ênio de Sousa Melo


Mariana Albuquerque Dantas

RESUMO: O presente trabalho expõe novas abordagens historiográficas sobre a participação


dos povos indígenas na História. O texto apresenta novos estudos desenvolvidos nos últimos
30 anos que apresentam de forma interdisciplinar o protagonismo indígena em vários
momentos na História do Brasil. Logo, reitera a importância da aplicação da Lei 11.645/2008
no livro didático, que trata da obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena na
educação básica pública e privada. Essa nova perspectiva apresenta uma emergência da
historiografia recente em reconhecer os povos indígenas como formadores do Estado
Nacional, além de novos conceitos contra estereótipos sobre as populações indígenas que
persistem no ensino básico.
Palavras Chaves: Povos indígenas. Ensino de História. Interdisciplinaridade.

INTRODUÇÃO
Nos últimos 30 anos por meios de diversas pesquisas acadêmicas em todo o país é
possível apresentar novas abordagens historiográficas quando nos referimos aos povos
indígenas em vários momentos na História do Brasil. Pesquisas mostram que desde o século
XVI ao XXI os povos nativos resistem de diversas formas perante as dominações portuguesas
e do homem moderno respectivamente. Tudo isso fazendo cair por terra as elaborações
simplistas que estão presentes nos diversos materiais didáticos do Brasil que desde os idos do
século XIX apresentavam que os povos nativos estavam em vias de desaparecimento em todas
as regiões do país e, que o permanente contato com culturas diferentes, estes povos se
aculturavam e perdiam sua identidade.
Nessas perspectivas, como o último Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE)1 nos mostrou que os povos indígenas só aumentam movidos
por uma emergência de identidades étnicas. É visível que eles estão lutando por espaço,


Graduando do Curso Superior Licenciatura em História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA. E-
mail: pnsousa_100@hotmail.com

Orientadora, professora da UFRPE. E-mail: m_adantas@yahoo.com.br
1
Censo 2010: população indígena é de 896,9 mil, tem 305 etnias e fala 274 idiomas. No Censo 2010, o IBGE
aprimorou a investigação sobre a população indígena no país, investigando o pertencimento étnico e
introduzindo critérios de identificação internacionalmente reconhecidos, como a língua falada no domicílio e a
localização geográfica. Foram coletadas informações tanto da população residente nas terras indígenas
(fossem indígenas declarados ou não) quanto indígenas declarados fora delas. Para mais informações vide;
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICAS. (Brasil). Censo, 2010.
Disponívelem:<https://censo2010.ibge.gov.br/noticiascenso?busca=1&id=3&idnoticia=2194&t=censo-2010-
poblacao-indigena-896-9-mil-tem-305-etnias-fala-274&view=noticia>Acesso em:< 28/04/2018>.
41

participação política e por garantias de seus direitos diferenciados obrigatórios com a


publicação da constituição de 1988.
Os povos indígenas sempre estiveram no continente americano em diferentes
organizações sociais e étnicas. Cabe a nós historiadores enfrentar as novas concepções
teóricas para melhor compreender e desenvolver a inserção destes povos de etnias diversas em
nosso país em todos os espaços pedagógicos. Não só nos meios de ensino, mas incluí-los
enquanto cidadãos no dia a dia em nossas cidades em todo o país.
Portanto, as novas pesquisas que identificam os povos indígenas enquanto formadores
do Brasil, precisam tomar uma dimensão maior alcançando todos os espaços desde o senso
comum às elaborações de futuras pesquisas e representações feitas pelos materiais didáticos.
Nessa perspectiva, os materiais disponibilizados para as escolas da Educação Básica pelo
Ministério da Educação (MEC) precisam acompanhar essas novas posturas historiográficas
fruto de novas interpretações que estão desde 1990 como as pesquisas de John Manuel
Monteiro2 que logrou uma nova postura apresentando o protagonismo indígena na História
perfazendo uma renovação da historiografia quando nos remetemos aos nativos na atualidade.
Partindo dessas novas abordagens historiográficas atualizadas apresentamos um
estudo que repensa o ensino da história indígena na educação básica pela utilização dos livros
didáticos, pois, os livros apresentam formas, diálogos, e uma ideologia mediada pelos
currículos oficiais de ensino que norteiam o que se deve estudar e ensinar e, sobretudo, pelas
elaborações das editoras dentro na lógica do “mercado editorial”.

POR QUE EFETIVAR A LEI 11.645 DE 2008 NO LIVRO DIDÁTICO?


Este tópico apresenta estudos recentes sobre o protagonismo indígena na História,
sobre o ensino da temática indígena em sala de aula da educação básica, e a
interdisciplinaridade para aplicação da Lei 11.645 de 10 de março de 2008.
De acordo com os artigos da Lei:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos


e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e
indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos
da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a
partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos
africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e
indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional,

2
MONTEIRO, John Manuel. Os negros da Terra: Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo, São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.
41

resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes


à história do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos
indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em
especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.3

Dessa forma, as novas pesquisas relativas à temática indígena demonstram a


participação dos povos indígenas na formação do Brasil, apoiando-se em novas abordagens
teóricas e interdisciplinares. Existe um esforço tremendo de pesquisadores que apresentam
uma nova interpretação que rompe com modelos ortodoxos da historiografia sobre a formação
do Estado pela participação dos povos desde a década de 1990 do século XX.
Nesse sentido, podemos apontar inúmeros pesquisadores que apresentam uma nova
abordagem historiográfica nas análises da história de formação do Brasil, dentre eles,
destacamos John Manuel Monteiro, Edson Silva e Maria Regina Celestino de Almeida. Por
meio dessas novas pesquisas é possível reescrever uma nova história onde os povos indígenas
saiam da categoria de apenas passivos no processo de colonização e sejam agentes ativos.
Desta forma, nessa nova perspectiva se reconhece a sua efetiva participação em todos os
processos de dominação dos portugueses, segundo suas próprias dinâmicas, e políticas de
associações com o homem branco.
Muitos conteúdos e análises apresentados nos livros didáticos de História ainda
apresentam narrativas estereotipadas sobre as populações indígenas, sem considerar as
alterações propostas pelas pesquisas mais recentes realizadas em vários programas de pós-
graduação em todo o país. Sempre encontramos um descompasso entre os conteúdos que são
apresentados em livros didáticos e as novas abordagens teóricas e metodológicas que apontam
para o protagonismo indígena na História.
O processo de reconhecimento dos povos indígenas na formação do Estado brasileiro
está em processo de construção e pode levar um bom tempo pela negligência das editoras e
pela formação insuficiente proporcionada aos professores sobre o ensino de história e o
protagonismo indígena. Nesse sentido, todas as atualizações postuladas pelos novos estudos
nos ajudarão com uma reescrita de nossa história, rompendo com histórias de cunho apenas
factual e construções de heróis nacionais sem especificar múltiplas participações dos agentes
históricos.
As pesquisas já apresentam a importância de se escrever uma nova história desde a
década de 1990, com os estudos de John Manuel Monteiro, tanto na escala regional quanto

3
BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. História Indígena e Cultura Afro-Brasileira e Indígena.
Brasília – DF, 2008.
41

nacional, nos quais os povos nativos sejam reconhecidos pelas suas ações políticas diante da
formação do Estado colonial e imperial e, por conseguinte Republicano. A intenção das novas
propostas teóricas e metodológicas para escrita da História se concentra na premissa de
reescrever uma história onde os povos nativos sejam reconhecidos enquanto sujeitos
históricos tão importantes como os portugueses são retratados nos livros didáticos.
Os novos estudos trazem novos documentos e formas interpretativas que apresentam
como ocorreu as formas de resistência dos povos indígenas em diferentes tempos e espaços.
Ao contrário do que desde os idos do século XIX apresentavam que os povos nativos estavam
em vias de desaparecimento em todas as regiões do país e, que o permanente contato com
culturas diferentes, estes povos se aculturavam e perdiam sua identidade.
Atualmente as participações dos povos indígenas na política, nas lutas pelas
demarcações de suas terras, e nos sistemas judiciários de todo o país demonstram que eles
estão presentes lutando pela visibilidade e seus direitos diferenciados. Segundo Maria Regina
Celestino de Almeida4, os povos indígenas no período colonial mantinham sua resistência
hora sendo amigos com relações flexíveis ou por vezes movidos por seus interesses próprios
eram hostis e expulsavam os portugueses de suas terras tradicionais. As capitanias hereditárias
criadas em 1534 algumas tiveram sucesso e prosperidade, a exemplo de Pernambuco e Rio de
Janeiro pela boa relação constante dos portugueses com os povos indígenas enquanto que as
demais sucumbiram pela a resistência dos povos indígenas.
No Ceará, segundo Lígio Maia, os povos nativos presentes na Serra da Ibiapaba
“Piragiba, notadamente líder Tabajara, aliou-se com os Potiguara contra os portugueses” 5.
Frequentemente se pensa que os povos indígenas não se aliavam com os seus grupos
inimigos, mas, existe contradições quanto a estas ideias, como à exemplo do texto citado. Os
povos indígenas em diversas regiões do Brasil realizaram movimentações políticas amigáveis
ou não para afugentar os colonizadores quando estes nãos os beneficiavam em suas decisões
estabelecidas pelos pactos de contato.
As evidências destes estudos sugerem uma variedade de fatores relativos as diferentes
formas encontradas para a resistência dos povos indígenas. De modo geral, concorda-se com
Paulo Sérgio Barros:

4
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. O lugar dos índios na história do Brasil: dos bastidores ao palco.
In: ALMEIDA, Maria Regina Celestino de, (Autora). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. p.14-28.
5
MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeias à vila de índios: Vassalagem e Identidades no
Ceará colonial – Século XVIII. 2010. 409 f. Tese (Doutorado), Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia, Programa de Pós-graduação em História, Niterói, 2010. p.57-58.
42

Mais astutamente se manifestavam os nativos quando sentiam a fragilidade do


colonizador e sua importância para os propósitos que eles pretendiam. No caso da
procura incessante pelas minas de prata, os índios tinham uma oportunidade ímpar
de barganhar, esconder e mentir.6

Vários pesquisadores estão contribuindo com a atualização de termos na historiografia


quando nos referimos aos povos indígenas, como Maria Regina Celestino de Almeida 7, que
através de suas pesquisas estão apontando para o protagonismo indígena. As pesquisas no
campo da História têm avançado a partir do diálogo interdisciplinar com a Antropologia
histórica, como proposto por João Pacheco de Oliveira, levando à compreensão da formação
histórica plural do Estado nacional brasileiro.
Portanto, as novas pesquisas, a exemplo das elaboradas por Maria Regina Celestino de
Almeida e João Pacheco de Oliveira estão apresentando uma nova perspectiva de se analisar
as relações que foram estabelecidas pelos povos indígenas e os colonos na construção de seus
espaços sociais. Mas, sobretudo, deve-se reconhecer que as novas propostas de compreensão
dessas relações entre o homem branco e os nativos apresentam as relações políticas do ponto
de vista dos povos nativos para que tenhamos uma nova perspectiva de análise do processo
histórico. Portanto, tudo isso para que os povos indígenas saiam da imagética de um povo
autêntico e que somente estavam à mercê dos portugueses.
Sendo assim, a compreensão em torno da cultura e das identidades tomam uma nova
roupagem no sentido de configurar uma nova elaboração conceitual para a compreensão
dessas categorias no ponto de vista histórico, ao longo do tempo, para que se elabore uma
nova representação que aponta para o protagonismo indígena.
Nesse sentido, essa nova configuração desemboca uma abordagem numa perspectiva
histórica tanto da cultura quanto da identidade étnica. Nessa perspectiva, quebra-se uma ideia
do tempo pretérito dos estudos Darwinistas onde a cultura era invariável assim como as
teorias sobre as identidades étnicas do século XIX.
Os novos estudos apresentam uma abordagem específica sobre os conceitos de cultura
e identidade para o entendimento das vivências dos povos indígenas em contextos distintos.
Fredrick Barth8 nos apresenta que essas novas decisões do homem no tempo se elaboram
numa contínua relação interétnica dos grupos étnicos de forma flexível e dinâmica. Para tanto,

6
BARROS, Paulo Sérgio. Confrontos invisíveis: Colonialismo e Resistência Indígena no Ceará. São Paulo:
Annablume; Fortaleza: Secult, 2002. p.84.
7
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
8
BARTH, Fredrick. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: LASK, Tomke (org). O guru, o iniciador e outras
variações antropológicas. Rio de Janeiro: contracapa,2000.p.25-67.
42

segundo Barth, as distinções étnicas não dependem de uma ausência de interação, muito pelo
contrário, é preciso a constante relação com outros grupos étnicos para a manutenção de suas
próprias identificações subjetivas, onde cada indivíduo que decide como se posicionar no
mundo mantendo e reelaborando suas fronteiras étnicas com um identificador social comum
ao grupo.
Além disso, desde os anos de 1920 Max Weber 9 chama atenção para o sentimento de
pertencimento ao grupo étnico, pela comunhão étnica ou pela crença na procedência comum
pertinente ao grupo. É necessário se compreender que as análises relativas as identidades
étnicas devem partir de uma compreensão história no sentido de compreender que elas
mudam. Os agentes históricos tomam decisões próprias por meio de políticas elaboradas pelo
próprio grupo para a configuração de suas identidades dependendo de qual relação estejam
estabelecendo em um tempo e espaço social.
É importante mencionar que os povos indígenas sofreram com a reunião em pequenos
espaços de terras comandados pelos jesuítas, mas, nessa perspectiva é mais importante ainda,
analisar as formas encontradas por esses sujeitos para sobreviver dentro das políticas que
estavam disponíveis dentro dos aldeamentos. Então, essa nova postura de estudos culturais
embasados de um cunho histórico e antropológico para análises dos processos vivenciados
por cada indivíduo é importante para que se compreenda as elaborações e reelaborações que
os povos nativos usaram para resistir dentro das dominações estabelecidas em todo o país. E,
além disso, apresentar que os povos nativos resistiram formando também um Brasil tão
diverso em sua cultura.

A política de aldeamentos da Coroa Portuguesa, essencial para a ocupação do


território na capitania do Rio de Janeiro, só foi possível pela negociação com os
chefes indígenas. Cabe lembrar que, nos séculos XVI e XVII, a dependência dos
portugueses em relação aos índios era imensa, e a construção do projeto de
colonização dependia, em grande parte, das dinâmicas locais. Dinâmicas essas que
incluem as ações dos povos subalternos, tais como indígenas, africanos e seus
descendentes, como a história indígena e a história da escravidão estão revelando.10

Segundo Maria Regina Celestino de Almeida os povos indígenas foram cruciais para a
manutenção da colonização do Brasil. Não tem como não os reconhece-los como
fundamentais na formação do Brasil. Por muitas vezes os povos indígenas auxiliaram no

9
WEBER, Max. Relações comunitárias étnicas. In: Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia
compreensiva, Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 1999. p.267-277.
10
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. A atuação dos indígenas na História do Brasil: Revisões
historiográficas. Revista Brasileira de História, vol. 37, n. 75, p.25.
42

processo de colonização e por outras eles resistiram não aceitando à relação como o homem
branco em diferentes regiões do país, a exemplo na colonização do Estado de Pernambuco,
Rio Grande do Norte, Ceará, Rio de Janeiro e em São Paulo. As novas pesquisas apresentadas
no século XXI evidenciam essas posturas de movimentação dos povos nativos segundo os
seus interesses que foram fundamentais para a formação dos espaços coloniais e pós-
coloniais.
Portanto, devemos partir desses novos aportes teóricos para apresentar uma história
inclusiva dos povos indígenas pelos livros didáticos que é o principal suporte para o professor
trabalhar as novas questões relacionadas à temática indígena em sala de aula. A intenção é
incluir estes assuntos para o debate melhorando o ensino de história e a quebra de estereótipos
sobre os indígenas, existentes no senso comum e na educação básica.
Pois, o livro didático apresenta os debates e conteúdo que irão orientar o professor na
sua prática em sala de aula, independentemente se teve uma boa ou má formação. 11 As novas
discussões sobre o ensino de História, mediado pelos livros didáticos produzidos por
pesquisadores que buscam se adequar ao “mercado editorial” de acordo com as normas do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), 12 reconhece que o livro didático se apresenta
como um dos principais produtos de consumo para a educação básica brasileira. Assim,
formando jovens e adultos que seguem um material adequado ao currículo oficial de ensino
brasileiro que, por sua vez, obedece a um projeto político.13
O estudo do ensino de História e a análise de livros didáticos vêm se desenvolvendo
nos últimos anos centrados no debate sobre a participação de variados agentes históricos, tal
como vêm sendo apresentados nas pesquisas atualmente. O livro didático, em especial, pode
ser um guia para a construção desses novos conhecimentos na educação básica. Para
compreender as propostas da produção historiográfica mais recente, são utilizados alguns
termos como os de “mercado editorial” e “processo de produção de livros didáticos”, termos

11
Bittencourt, Circe Maria Fernandes. Livro didático e saber escolar (1810-1910). Belo Horizonte: Autêntica,
239 p. 2008.
12
Gelbcke, Juliana. OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; COSTA, Aryana (Orgs.). Para que(m) se avalia?
Livros Didáticos e Avaliações (Brasil, Chile, Espanha, Japão, México e Portugal). Natal: EDUFRN, 2014. 164 p.
In: Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 11, n. 2, 2016. p.527.
13
CAVALCANTI, Erinaldo. Livro didático: Produção, Possibilidades e desafios para o ensino de história.
Revista História Hoje, v. 5, nº 9, 2016. p.266.
42

utilizados pelos pesquisadores Circe Maria Fernandes Bittencourt 14, Kazumi Munakata15 e
Margarida Maria Dias de Oliveira16.
Existem muitos mecanismos que avaliam a produção dos livros que serão
disponibilizados pelas Secretarias de Educação das diversas cidades do Brasil, dispondo como
os conteúdos no campo da História devem ser apresentados na educação básica. Os
mecanismos são apresentados pelo Estado, que utiliza os instrumentos que regulamentam a
produção didática como a BNCC, a LDB, e principalmente os PNLs. No entanto, apesar de
todo o debate historiográfico atual em torno da temática indígena, nos livros didáticos ainda
persistem representações estereotipadas e lacunas de informações. Sobre o descompasso entre
produção acadêmica e os conteúdos apresentados nos livros didáticos, Marieta Ferreira e
Renato Franco afirmam que:

O problema do livro didático tem raízes muito mais profundas do que a simples
defesa ou condenação de obras isoladas. Um dos principais desafios está
justamente em fazer esse tipo de livro acompanhar as reinterpretações do passado
feitas pelos historiadores acadêmicos. O constante diálogo entre passado e
presente, inerente a qualquer reflexão histórica, deve também ser estendido aos
livros didáticos, sob pena de termos grandes hiatos entre o que se discute na
academia e o que se ensina nas escolas do país.17

Logo, estamos diante de um dos principais problemas que existem dentro da produção
didática atualmente, a aplicação dos debates referentes ao protagonismo das populações
indígenas na História e o seu reconhecimento na atualidade. Ao mesmo tempo em que na
academia se discutem novas teorias sobre a escrita, o ensino e a produção da História, em sala
de aula encontramos professores ensinando conteúdos defasados. As questões sobre esse
descompasso passam pela qualificação e formação continuada do professor, além de incentivo
e reconhecimento do seu ofício, pela estrutura oferecida pelo Estado, bem como pelo material
didático que é trabalhado em sala de aula. Além disso, são centrais à problemática as leis que
regulamentam o ensino básico e que sofreram duras reformas, que não contaram com a
opinião de pesquisadores, profissionais e gestores da área.
Nesse contexto, o livro de didático é produzido por empresas que, muitas vezes estão
mais interessadas no mercado editorial que, não obstante, também passa por mudanças.

14
BITTENCOURT, Circe. Livro didático e saber escolar (1810 – 1910). Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2008.
15
MUNAKATA, Kazumi. O livro didático como mercadoria. Pro-Posições . São Paulo, v. 23, n. 3, p. 51-66,
Set-Dez. 2012.
16
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias; Costa, Aryana (Org.) Para que(m) se avalia? Livros Didáticos e
Avaliações (Brasil, Chile, Espanha, Japão, México e Portugal) Natal: Ed. UFRN, 2014. 164p.
17
FERREIRA, Marieta de Moraes; FRANCO, Renato. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 21, nº 41, p. 79-
93, janeiro-junho, 2008.
42

Segundo Felipe Nobre18, no tocante à escolha dos conteúdos referentes e obrigatórios na


educação básica, o PNLD estipula que as editoras que objetivam concorrer para a elaboração
de seus projetos didáticos obrigatoriamente precisam se adequar às normas estabelecidas pela
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996.
Além disso, os livros apresentados para seleção devem seguir os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN). Então, nesse processo de seleção de livro didático, as editoras precisam
seguir as normas apresentadas em ambas as leis nacionais de ensino do Brasil. E logo, os
livros que forem selecionados pelos editais do PNLD para comporem os guias de escolha que
os professores da educação básica têm acesso, precisam demonstrar a efetivação da Lei
11.645 de 2008.
Em conjunto a essas questões, a temática indígena também lida com problemáticas
próprias no que se refere ao ensino de História. A representação das populações indígenas nos
textos dos livros didáticos e na própria estruturação dos conteúdos demonstram indivíduos e
grupos à margem da sociedade e da formação do Brasil. A exemplo da representação dos
povos indígenas no livro didático que compõem a análise para este texto, no livro “História &
Vida Integrada” Nelson Pilleti afirma que:

A maioria dos povos indígenas que habitavam o território no passado sobrevivia


essencialmente de caça de animais, da coleta de frutos, raízes e folhas, da pesca em
rios e mares, e ainda de uma pequena agricultura de subsistência, que atendia a
necessidade de cada povo.19

No que concerne ao ensino da temática indígena em sala de aula, é de conhecimento


de nós pesquisadores da temática, que os livros didáticos persistem em um discurso sem
fundamento nas novas teorias de participação dos povos indígenas na História, como
supracitados pelos novos estudos aqui exposto. Ainda estamos por construir um ensino da
temática indígena inclusiva para estes povos na educação básica.
Nota-se que a Lei 11.645 de 2008 estabelece o ensino da temática indígena na
educação básica. Mas é de perguntar; que ensino sobre a temática indígena estamos por
construir nos livros didáticos? Quais os materiais didáticos disponíveis para e efetivação dos
novos conteúdos sobre a temática indígena sem sala de aula? Quais os suportes teóricos
disponíveis para os professores da educação básica? O Estado realmente visualiza estes

18
NOBRE, Felipe Nunes. A lei 11.645/2008 e o lugar destino aos indígenas em livros didáticos de História.
Revista Historiar, vol.9, nº.17, 2017. p.31. Disponível em <http://www.uvanet.br/historiar/index.php/1/index>
Acesso em: 12/12/2017.
19
PILLETI, Nelson ; PILLETI, Claudiano; TREMONTE, Thiago. Coleção História e Vida Integrada. 6º ao 9º
ano. 5. Ed. São Paulo: Ática, 2012. p. 34.
42

questionamentos quando estabelece a efetivação do ensino da participação dos múltiplos


povos na formação do estado nacional?
Estas questões levantadas neste texto são pertinentes em relação ao que se espera
quando se estabelece uma lei nacional para o ensino de História para a educação básica. O
currículo está transmitindo conhecimento; mas que conhecimento é esse? Ele legitima a
relação que o Estado estabelece com estes povos ou estão realmente a fim de reconhecerem,
dar assistência a estas populações que foi estabelecido um lugar muito específico, não é de se
negar, o período colonial. Segundo Circe Bittencourt:

Os indígenas eram objeto de interesse de antropólogos ou etnólogos, desde o final


do século XIX , surgindo nos livros didáticos de História como os "bons selvagens",
como grupos exóticos ou então apareciam como representantes da grande aventura a
que estavam submetidos missionários e conquistadores do território americano. Os
índios eram sistematicamente apresentados nas ações selvagens que realizavam
junto aos missionários e que possibilitavam, inclusive, o surgimento de mártires e
heróis dentre os que conseguiam sobreviver ou conseguiam dominá-los. No decorrer
do século XX, com a progressiva escolarização, o papel histórico dos indígenas não
se modificou, e os livros didáticos limitaram-se a repetir as mesmas concepções
generalizadas sobre os indígenas, ou seja, sobre o índio, considerado como uma
entidade genérica, habitante primitivo, criador de obstáculos para a ação civilizatória
branca.20

As produções apresentadas nos estabelecimentos, Institutos e Faculdades de Direito ou


Medicina do século XIX, pelos intelectuais, a exemplo o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB) por exemplo, Francisco Adolf de Varnhagen com a missão de construir
uma ideia sobre o que era a nação brasileira que estava se construindo nos idos do século
XIX, apresenta um projeto sobre a história nacional destinando os povos indígenas ao
passado. Até aos dias atuais, produções que acompanham esta produção do século dos
“intelectuais ou homens das ciências” como eram conhecidos por comungarem de teorias
raciais sociais, principalmente darwinistas evolucionistas vindas da Europa tardiamente já na
década de 1870, interpretaram e adaptaram segundo seus desejos, logrando uma superioridade
do homem branco taxado como culto e civilizador dos povos que estavam em vias de
desaparecimento.21

20
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História para populações indígenas. Em Aberto, Brasília,
ano 14, n.63, jul./set. 1994.
21
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: Cientistas, Instituições e questão racial no Brasil (1870-
1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
42

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nessa perspectiva, para que não se ensine somente imagens estereotipadas sobre estas
populações que era vista em vias de desaparecimentos, mas que nos últimos anos os números
e pesquisas acadêmicas tem contrariado os dados excludentes. É importante repensar o papel
do Estado para com os povos indígenas e as formas de ensino que este aplica referente a Lei
11.645 de 2008 em uma sociedade que está vivenciando constantes golpes contra os direitos
conquistados.
Nota-se que o grande esforço que se elabora para aplicação da Lei na educação básica
parte dos pesquisadores e professores formadores sobre o protagonismo indígena na História.
São inúmeros textos, artigos, livros e monografias que apresentam os povos indígenas numa
nova perspectiva apontando para seu protagonismo junto a formação do Estado. É importante
este movimento que vem se desenvolvendo por novas perspectivas para que após dez anos de
publicação da lei na LDB se estabeleça as prescrições estabelecida pela Lei 11.645 de 2008.
Não negamos que é uma batalha complexa que ainda exige muita sensibilidade do
Estado e professores para que se tenham um ensino de qualidade e inclusivo. Apesar do
esforço de inúmeros pesquisadores, ainda há pouca pesquisa sobre a inserção da temática
indígena no ensino básico.
Também reiteramos que a partir da publicação da Constituição de 1988 iniciou um
processo que está se afirmando, de forma lenta e gradual, em reconhecer os povos indígenas
na formação do Brasil. Esperamos que venha se realizar todas as prescrições apontadas na lei.
Logo, também para o ensino, a Lei 11.645 de 2008 foi de extrema importância para se
expandir as possibilidades de se repensar o papel dos povos indígena, mas também,
reconhecer o papel do Estado para com todos os brasileiros em suas múltiplas formas de
expressões culturais.
Portanto, professores e demais profissionais levemos esta luta adiante para que todos
os agentes socias tenham seu papel reconhecido na história. Desta forma, esperamos que o
país seja um lugar onde se possa viver de forma justa, sem preconceitos aos povos nativos que
tanto sofreram e ainda sofrem, onde estes são esporadicamente alvos de ataques as suas terras
tradicionais, que muitas das vezes, até mesmo suas vidas são levadas pelos conflitos entre
políticos, posseiros e fazendeiros de Norte a Sul do Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
42

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Didáticos e Avaliações (Brasil, Chile, Espanha, Japão, México e Portugal) Natal: Ed. UFRN,
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42

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Integrada. 6º ao 9º ano. 5. Ed. São Paulo: Ática, 2012. p. 34.

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no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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SOUZA, Fábio Feltrin de; LUISA, Tombini Wittimann. O protagonismo indígena na


história. 1. ed. Tubarão, SC: Copiart: UFFS , 2016.

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INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICAS.


(Brasil). Censo, 2010. Disponívelem:
<https://censo2010.ibge.gov.br/noticiascenso?busca=1&id=3&idnoticia=2194&t=censo-
2010-poblacao-indigena-896-9-mil-tem-305-etnias-fala-274&view=noticia>Acesso em:<
28/04/2018>.
42

BIBLIOTECA DO SEMINÁRIO DA PRAINHA: UM OLHAR SOBRE O LIVRO E A


LEITURA NO CEARÁ PROVINCIAL (1864-1889)

Rafaela Gomes Lima

Resumo: A Biblioteca do Seminário Episcopal do Ceará, se constitui em documento/memória


inestimável para a compreensão sobre a difusão do ideário da Igreja Católica na sociedade
cearense, e por outro lado, há o aspecto da difusão do conhecimento geral através dos livros
que a compunham. Diante disso, o presente estudo visa analisar as obras constantes do núcleo
formador da Biblioteca do Seminário, buscando compreender em que medida elas se inserem
dentro do processo de formação dos padres cearenses diante do contexto da Romanização da
Igreja Católica. Para tanto, faz-se necessário o conhecimento da tipologia das obras, bem
como da sua utilização nos cursos oferecidos pela Instituição. Assim, infere-se que o ideário
da formação sacerdotal do Ceará provincial teve no livro um grande veículo para sua fixação.
Palavras-chave: História do Livro. Bibliotecas. Ceará Provincial.

Introdução
A instalação do Seminário Episcopal do Ceará - mais conhecido como Seminário da
Prainha - em Fortaleza no ano de 1864, é um marco cultural e intelectual da cidade e da
Província/Estado, já que a Instituição seria responsável pela formação dos jovens, pela
irradiação de um ideário de fundo teológico e espiritual, bem como na difusão dos signos da
modernidade no Ceará de então.
A historiografia mais recente considera que, embora o Seminário tenha surgido como
um forte vetor no plano da educação, oferecendo também uma formação de nível considerado
superior, se alinhava ao conservadorismo, afirmando o combate ao pensamento liberal que
alcançava inclusive os membros do próprio clero. (JUCÁ, 2014)
Esse foi, de fato, o motivo maior da instalação do Seminário no Ceará, pois as
autoridades eclesiásticas postulavam formas concretas de conter o avanço da laicização, como
se observa no presente estudo:

A implantação de uma instituição, voltada à formação religiosa, constituía uma


medida saneadora ante a crise moral temida pelas autoridades eclesiásticas, pois
um rígido sistema disciplinador se impunha como condição estratégica para
enfrentar o avanço da laicização e da ação dos pastores protestantes que
encontravam espaços nas cidades mais importantes do país, que se modernizava
com a presença do capital e dos usos e costumes dos europeus. (JUCÁ, Op. Cit. p.
37)

Doutoranda em História no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará.


43

Visando essa formação mais rígida para os padres cearenses o Bispo de Ceará, Dom
Luís Antônio dos Santos (1817-1891), entregou aos padres lazaristas a missão educacional do
Seminário, visto seu conhecimento sobre a pedagogia e os métodos de trabalho desta ordem,
por ter tido parte de sua formação no Seminário do Caraça em Minas Gerais, um dos polos de
irradiação das ideias romanizadoras no Brasil1, sob a supervisão dos lazaristas.
Enquanto Instituição de grande significado para a História do Ceará, o Seminário da
Prainha tem sido objeto de vários estudos que ressaltam questões históricas, religiosas ou
educacionais. Aqui se pretende abordar uma dimensão de relevo para a historiografia
cearense, qual seja, a formação de sua Biblioteca. O estudo da Biblioteca do Seminário da
Prainha permite dimensionar um campo mais alargado de analise na História Social do Livro
e da Leitura, face à temática das obras, o circuito do livro, que abrange a produção, a
circulação e a leitura dos mesmos (DARNTON, 2010), o que inclui também a possibilidade
de análise acerca das relações comerciais entre Fortaleza e determinadas praças da Europa,
observando a vinda dos livros do Velho Mundo, além das relações entre o Seminário e os
agentes locais do livro como os tipógrafos, encadernadores e livreiros.
Compreende-se o estudo das bibliotecas inserido no amplo leque de possibilidades da
História do Livro e da Leitura e, em alguma medida, em diálogo com os campos da História
Intelectual e da História Social das Ideias. As pesquisas nesse campo de estudos abordam as
dimensões relacionadas à produção e circulação do livro, bem como às práticas de leitura. No
que concerne à História do Livro,

(...) Pode-se estender e ampliar o campo de muitas maneiras, mas de modo geral ele
trata de livros desde a época de Gutenberg, sendo uma área de pesquisa que se
desenvolveu com tanta rapidez nos últimos anos que é provável que conquiste um
lugar ao lado de campos como a história da ciência e a história da arte, no elenco
das disciplinas acadêmicas. (DARNTON, 2010, p. 122)

Assim sendo, compreende-se o livro como signo de expressão cultural, capaz de


representar experiências ligadas à aplicação do conhecimento, à convivência social, aos
debates entre mestres e estudantes; uma mostra de conhecimentos e saberes compartilhados e
de como esses saberes se configuravam no Seminário da Prainha e deste, para a sociedade.
O estudo das bibliotecas e das questões relacionadas ao livro e à leitura numa
sociedade dominada pelo analfabetismo, permite compreender um pouco das relações de

1
O processo de Romanização teve início na segunda metade do século XIX, atingindo seu auge na década de
1870. Portanto, a formação do Seminário do Ceará está inserida nesse contexto. Cf. PINHEIRO, Francisco José.
O Processo de Romanização no Ceará. In: SOUZA, Simone(Coord.). História do Ceará. – Fortaleza: Fundação
Demócrito Rocha, 1995.
43

poder envolvendo os detentores de capital cultural e os demais níveis da população sujeitos –


por, na maioria dos casos, não possuírem esse capital – às diversas formas de dominação, mas
que resistem a ela. E ao ter acesso à instrução voltada sobretudo às camadas mais elevadas da
sociedade, como a oferecida no Seminário, encontram meios de se fazer presentes de forma
mais efetiva, nas disputas do cotidiano citadino.

A Biblioteca
O presente artigo trata-se de uma apresentação geral da pesquisa de doutorado que tem
como foco a Biblioteca do Seminário da Prainha em Fortaleza, se debruçando sobre as obras
de seu acervo, observando o circuito percorrido até sua chegada na Instituição e aos aspectos
relacionados ao uso desses livros nos cursos ministrados. Também busca observar a função
dos livros na difusão do conhecimento e do dogma católico no Ceará da segunda metade do
oitocentos.
O recorte temporal da pesquisa tem início em 1864, ano de fundação do Seminário
Diocesano por Dom Luís Antônio dos Santos (1817-1891). A autorização para a fundação de
um Seminário em terras cearenses, veio em 1860 quando da nomeação do primeiro Bispo do
Ceará pelo Papa Pio IX, seis anos depois da criação da Diocese2.
No entanto, como mencionado, apenas quatro anos depois de autorizada a criação é
que se dá o funcionamento do Seminário, visando a formação de padres no contexto da
romanização da Igreja Católica, processo esse caracterizado pela intensa propagação das
ideias do ultramontanismo3. Pode-se dizer que o Ceará “(...) não ofereceu resistência, pelo
menos declarada, ao processo de Romanização da Igreja Católica. Muito pelo contrário,
muitos de seus membros, que compunham a elite cearense, até anteviram nele a possibilidade
de efetivação de muitas aspirações, principalmente no campo político e educacional.”
(FILHO, 2012, p. 52). Nessa perspectiva, os padres lazaristas, conhecidos pela austeridade de
suas práticas foram os escolhidos por Dom Luís para assumir o Seminário

2
A diocese do Ceará foi criada em junho de 1854 através da assinatura, pelo Papa Pio IX da Bula Pro Animarum
Salute, fazendo assim com que a igreja cearense se desligasse, ao menos administrativamente da Sé de Olinda.
Cf. LIMA, Francisco. O Seminário da Prainha. – Fortaleza: BNB, 1982.
3
“Profundamente romano, caracterizou-se pela intensificação da tendência de centralização de poder nas mãos
do papa, pela uniformidade doutrinal cada vez mais acentuada e dirigida, tendo o ponto alto na definição
dogmática da infabilidade pontifícia, pela convergência de esforços e pela supervalorização da moralização dos
costumes, deixando em plano inferior um ensino e um conhecimento mais ligado a vida, pela ‘espiritualização’
do clero interiormente enclausurado nas questões de Igreja e desligado dos problemas sociais e políticos.”
LUSTOSA, Oscar F. Reformistas na Igreja do Brasil – Império, São Paulo, Boletim nº 17, 1977. Apud:
OLIVEIRA, Lúcia Helena Moreira de Medeiros. O projeto romanizador no final do século XIX: a expansão
das instituições escolares confessionais. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.40, p. 145-163, dez.2010. p.
148
43

Queria o Sr. D. Luiz o seu Seminário dirigido por Religiosos como o eram os de
Mariana e de S. Paulo – Alumno e particular Amigo dos Padres da Congregação da
Missão, foi para os Filhos de S. Vicente de Paulo que dirigiu suas vistas, suas
preferencias e sua confiança. Instado pelas reiteradas cartas do Sr. Bispo do
Ceará, o Rmo. Pe. João Baptista Etienne, Sup. Geral dos Lazaristas, não poude
recusar o que o zeloso Prelado sollicitava para maior gloria de Deus e bem da
Diocese, e prometteu, ainda que fosse pequeno o número de Lazaristas no Brasil, de
mandar quatro padres para começar a direção deste novo Seminário.”4

Neste contexto se deu a vinda dos padres da “Congregação da Missão” e o Seminário


teve como primeiro Reitor o padre francês Pierre Auguste Chevalier (1831-1901), que
acompanhado de outros padres, também franceses, iniciou a missão educacional da
Instituição, sendo o responsável pela implantação de seu programa pedagógico, disciplinar e
da formação da Biblioteca sobre a qual se falará mais adiante.
Os lazaristas estabeleceram então, uma base de estudos no Seminário que privilegiasse
a boa formação dos padres adequando aos preceitos da romanização, incidindo sobre a
disciplina rígida e submissão dos educandos. O Padre Chevalier estabeleceu esses aspectos
durante seu Reitorado, baseado nas regras estabelecidas pelo Diretório dos Seminários, livro
de normas adotado pelos padres da Missão por conter as bases da disciplina exigida na
formação dos clérigos na perspectiva ultramontana. (FILHO, Op. Cit.)
Nesse sentido, estabeleceu-se como marco final da pesquisa o ano de 1889, da
implantação do Regime Republicano, tendo em vista as mudanças políticas influenciado
também na relação entre a Igreja e o Estado. Durante o Império essa relação era baseada no
contexto do regime do Padroado e do Beneplácito, o que transformava a Igreja em um braço
do Estado e seus membros tidos como funcionários já que a instituição religiosa vivia às
expensas do Estado, situação que deixava os membros do clero em posição desconfortável,
conforme indica José Murilo de Carvalho:

Em primeiro lugar, a situação do clero em relação ao Estado era ambígua. Se por


efeito da união Igreja-Estado o padre era um funcionário público, pago pelos cofres
do governo geral, não deixava também de pertencer a uma burocracia paralela,
uma organização que ao longo da história se tinha empenhado em longas batalhas
contra o mesmo Estado pelo controle do poder político. (CARVALHO, 2003, p.
182.)

Foi nesse contexto de embates pelo controle do poder, pela manutenção e


fortalecimento institucional da Igreja perante o Estado que se deu a reação do
ultramontanismo que veio a culminar, no Brasil com a Questão Religiosa no final do Império.

4
Seminário Episcopal de Fortaleza – SEF. Álbum Histórico do Seminário Episcopal do Ceará. Fortaleza –
Ceará, 1914. p.20
43

A República, ao promover a separação entre Igreja e Estado, retirou o clero da efetiva


participação política e burocrática, retirou também os membros da igreja das listas de
pagamento do governo.
Observada essa moldura histórica e a partir das pesquisas iniciadas junto às fontes no
Seminário referentes à sua Biblioteca, achou-se por bem delimitar o estudo entre os anos de
1864 e 1889, o que delimita o estudo ao núcleo formador da Biblioteca, ou seja, às obras
adquiridas no Reitorado do Padre Chevalier para a composição do acervo bibliográfico
necessário à formação dos alunos da Instituição.
De acordo com a pesquisa no Livro de Receitas e Despesas do Seminário Provincial
(1864-1886), apesar de o Seminário ter sido inaugurado em 1864, a primeira referência à
compra de livros para a Biblioteca é de setembro de 1865, datando de junho do mesmo ano a
compra de uma estante no valor de 130 mil réis5
A compra de livros aparece registrada diversas vezes ao longo dos anos, sendo que a
grande maioria dos registros não identifica as obras, indicando a “compra de livros”, “livros
para o Seminário” ou anda “livros para a biblioteca”. No que se refere aos “livros para o
seminário”, se pode inferir que tanto podiam se tratar de obras impressas de quaisquer temas
ou de cadernos para a escrita dos alunos, livros em branco, como eram anunciados para venda
em algumas tipografias da cidade. Essa conjectura surge pelo fato de se tratarem de compras
de pequeno valor e de geralmente esses livros serem comprados junto de outros itens de
papelaria e expediente como tinta ou quadros e a aquisição se fazia com frequência, a cada
dois ou três meses. Em apenas uma ocasião foi registrada a compra de cadernos propriamente
ditos, em julho de 1869, foram adquiridos cinco cadernos pautados, no valor de 3.200 réis.6
Foram localizados os registros de aquisição de obras para a formação da Biblioteca
como dito, a partir de 1865. Tendo em vista que a Instituição entrou em funcionamento
aproximadamente um ano antes desse primeiro registro cabem algumas conjecturas acerca
dos livros que orientavam a formação dos alunos durante esse período. Certamente, tanto o
Bispo
D. Luís quanto os lazaristas que vieram assumir o Seminário, traziam seu próprio acervo de
estudos e leituras e diante do modo como se deu a inauguração das aulas é possível que os
livros de propriedade dos mestres - certamente vindos, em sua maioria, da Europa - tenham
sido utilizados nesse intervalo de tempo.

5
SEF. Livro de Receitas e Despesas do Seminário (1864-1886)
6
SEF. Livro de Receitas e Despesa do Seminário (1864-1886)
43

Dos registros de compras de livros tem-se a compra de 1865, seguida de uma leva de
“livros vindos de Pernambuco”7 no valor de 90 mil réis, em 1866; “livros portugueses” no
valor de 44 mil réis, em 1870; “livros comprados da Europa”, custando 185 mil réis, em 1871
e “livros para a biblioteca’ no valor de 100 mil réis e outra compra em 1880 no total de 191
mil réis. Além dessas aquisições também foram observadas anotações de compras individuais
que comprovam o quanto era difícil para as pessoas comuns adquirir esses bens devido seu
elevado valor. O Seminário comprou um livro de teologia por 16. 240 réis e outros dois livros
dos quais não foi indicado o assunto, um no valor de vinte e outro de seis mil réis.8
Além dos valores das obras, as informações resultantes da pesquisa no Livro de
Receitas e Despesas do Seminário, permitem traçar uma cartografia dos livros, ou seja, dão ao
pesquisador uma ideia do trajeto dos impressos até sua chegada à Biblioteca, vindos dos
principais lugares fornecedores de livros para Fortaleza. A capital cearense sempre esteve
intimamente ligada à Pernambuco e sua praça comercial que, inclusive no que diz respeito ao
comércio livreiro, já estava bem adiantada em relação à Fortaleza. Com relação à Europa, é
sabido que a partir da segunda metade do século XIX Fortaleza intensifica suas relações
comerciais com o Velho Mundo, conforme afirma Raimundo Girão:

As transações do Ceará com portos estrangeiros cresciam satisfatoriamente, (...).


As entradas e saídas de 1858 a 1863 cresceram de 65%. De 1863 a 1868, o aumento
foi de 75%. A navegação de longo curso, em 1858, era feita por 25 navios e, em
1866, por 65, quase uma triplicação em dez anos. (GIRÃO, 1979, p. 104)

Os navios atravessavam o Atlântico trazendo as mais diversas mercadorias, entre elas


os livros. A primeira compra de livros europeus pelo Seminário foi realizada em 1870, antes
se deu a aquisição de livros portugueses, que podem ter sido adquiridos em Fortaleza, já que
os livreiros da cidade também encomendavam suas mercadorias diretamente a Lisboa e outras
capitais europeias.

(...) podemos imaginar, entre os transeuntes na beira do porto, Joaquim José de


Oliveira e seus funcionários identificando, dentre os caixotes recém-
desembarcados, aqueles que traziam as encomendas de seus clientes: a última

7
A Província de Pernambuco era polo de difusão cultural para as demais províncias do Norte. Sobre a ilustração
em Pernambuco no século XIX ver: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Pernambuco e a cultura da ilustração. –
Recife. Editora Universitária da UFPE, 2013. Na capital pernambucana reverberavam as ideias de pensadores
como Rousseau, Montesquieu e Benjamin Constant, sobretudo após a instalação da Faculdade de Direito. Diante
disso, a cidade passou a ter uma convivência cada vez maior com os livros e desenvolveu um grande circuito
livreiro. Cf.: GONÇALVES, Adelaide. As comunidades utópicas e os primórdios do socialismo no Brasil. In.: E-
topia: Revista Electrónica de Estudos sobre a Utopia, n.º 2 (2004). Disponível em
http://www.letras.up.pt/upi/utopiasportuguesas/e-topia/revista.htm>
8
SEF. Livro de receita e despesa do Seminário (1864-1886)
43

edição da Revue de Deux Mondes (...). Pelos malotes do correio marítimo que eram
desembarcados na Alfândega da cidade chegavam os livros de Taine, Spencer,
Darwim, Burkle e outros. (OLIVERA, 1998, p. 73)

Na década de instalação do Seminário, já funcionava em Fortaleza a livraria de


Joaquim José de Oliveira e nesse estabelecimento os lazaristas adquiriam seus livros. No
citado Livro de Despesas e Receitas aparece geralmente no mês de dezembro ou nos meses
iniciais do ano a anotação “Livros pagos ao Oliveira”, geralmente com valores variando entre
26 e 75 mil réis.9 O livreiro Oliveira é considerado um dos intermediários da literatura que
atuavam em Fortaleza nesse período e quaisquer pessoa ou instituição que tenha relações com
os livros vai se relacionar com eles. Com o Seminário não era diferente, são inúmeros os
registros de pagamentos feitos a tipografias, pela compra de papel e impressão de boletins, e a
encadernadoras, pelo trabalho de encadernação dos livros da instituição, ou seja, é possível
enxergar o funcionamento do circuito do livro fortalezense no período através desse estudo
das obras da Biblioteca eclesiástica.
Como o foco da pesquisa é a Biblioteca original, aquela organizada pelo padre
Chevalier durante os primeiros anos de seu trabalho à frente do Seminário, a observação das
obras ficou restrita ao setor de obras raras da Biblioteca Padre Luiz Magalhães Uchoa
pertencente ao Seminário Episcopal e à Faculdade Católica de Fortaleza, que conta com um
acervo de aproximadamente sete mil volumes. Iniciou-se então o levantamento das obras
tendo em vista a seleção daquelas com data de publicação mais antiga, que pudessem ter feito
parte do núcleo da Biblioteca. Essa seleção foi feita de maneira conjectural, tendo por base as
disciplinas lecionadas e as datas de compras de livros atestadas no Livro de despesas e
receitas, tendo em vista não existir catálogo da época ou livro de consulentes.
Realizou-se um levantamento das obras existentes, que fornecem uma visão geral da
tipologia dos livros e sua relação com o ensino no Seminário. Os alunos tinham aulas de
Gramática Portuguesa, Francesa e Latina, Aritmética, Latim, Geografia, História (a partir da
Idade Média), Retórica, Prosódia, Física e Filosofia, além das disciplinas próprias do curso
eclesiástico.10 No Livro do Conselho do Seminário Provincial de Fortaleza (1864-1935),
estão apresentadas as disciplinas cursadas, seus respectivos professores e livros utilizados, ou
seja, através dele é possível saber que o Padre Calegni era o lente da turma do 2° ano
preparatório e utilizava a Geografia, de Pompeu.

9
O estabelecimento da livraria de Joaquim José de Oliveira data de 1857, por isso se afirma que seja ela o
“Oliveira” que aparece citado no documento do Seminário.
10
SEF. Álbum Histórico do Seminário Episcopal do Ceará. Fortaleza – Ceará, 1914
43

A maioria das obras são as de cunho religioso - filosofia, catecismos, direito canônico,
liturgia, história eclesiástica etc., dentre elas podem ser citadas A filosofia Escolástica, de
Kleutgen (1843); História de Santo Inácio de Loyola, por Daurignae (1865); História
Universal da Igreja Católica, pelo Abade Rohrbacher (1857); Dicionário da conversação e
da leitura, por W. Dukett (1853),todas em francês. Também há a Teologia Dogmática, de
Taurinoum (1871), e Teologia Moral, de Ligorio(1866), ambas em latim e Primeira
Enciclopédia Teológica, de Migne (1863, 29 volumes).
Além das obras religiosas há aquelas relacionadas às disciplinas do curso preparatório
do Seminário, como por exemplo, História Universal, de Muller (1846), História do Brasil,
de Southey (Traduzido do inglês por Joaquim de Oliveira e Castro – 1862. 6 volumes); Obras
de Bossuet (1851, 4 volumes), Filosofia Fundamental, de Balmes (1868); Curso Elementar de
Literatura Nacional, do Cônego Doutor Joaquim Caetano (1862); História Universal, de
Cesar Cantu (1867), As origens da França Contemporânea, por H. Taine (1887) e a História
da Conjuração Mineira. Estudos sobre as primeiras tentativas para a independência
nacional, de J. Norberto de Souza Silva (1873).
Convém destacar as obras extremamente raras do acervo, como o Apprendix ad
Historiam Literariam (1720), Curso de Direito Canônico (1766), Sermões, do Fr. Francisco
da Madre de Deos Pontes (1798, 2 volumes), Provas da Genealogia da Casa Real Portuguesa
(1746), a Genealogia da Casa Real Portuguesa (1746, 7 volumes), o Scripitorum
Ecclesiasticorum (1720), Apprendix ad Historiam Literarium (1720), Annales Ecclesiastici
(1710) e o Corpus Juris Canonici Academicum (1746)
O acervo pesquisado, oferece indicações do tipo de leitura indicado aos alunos; a
maioria das obras eram escritas por membros da Igreja, até mesmo os de disciplinas como
História e Geografia, ou seja, o objetivo era incutir a visão católica de mundo. A Biblioteca é
fruto também de um processo de seleção repleto de subjetividade no qual se observa o desejo
da Igreja de conservar seu capital cultural e expandir seu ideário. É também a representação
do poder simbólico da Instituição (BOURDIEU, 2010). A expansão do conhecimento
adquirido no Seminário se deu sobretudo, através da constituição de escolas por parte de seus
ex-alunos e muitos dos Institutos Educacionais fundados na cidade de Fortaleza buscavam
como mestres os egressos da Instituição dirigida pelos lazaristas.
Entre os egressos do Seminário tem-se nomes como Monsenhor Salazar, professor da
cadeia pública; Padre Antônio Cândido Rocha, diretor da Escola Normal, Luiz de Souza
Leitão, professor do Liceu, esses ocupando cadeiras na Assembleia provincial (CASTELO,
1964). Podem ser citados Agapito dos Santos, Menna Barreto, Gil Amora e Capistrano de
43

Abreu11, nomes ligados à Literatura, História e letras em geral. Como se pode perceber, a
presente pesquisa trará também contribuições à história da educação e do ensino no Ceará.
Com relação à leitura, essa era incentivada pelos lentes do Seminário, como se
confirma pela presença de registros de compras de “livros para prêmios” no Livro de Receitas
e Despesas, e pela afirmação contida no Álbum Histórico de que premiar os alunos com livros
era prática comum durante a administração do Padre Chevalier, tendo sido substituída pela
premiação com medalhas e folhas de louro quando da entrada do Padre Simon como Reitor.
Assim compreende-se a presença dos livros no Seminário como um caminho para
perscrutar a História desta Instituição e suas formas de atuação ante a sociedade. Nesse
sentido considera-se a Biblioteca conventual como repositório de conhecimento e também
como índice histórico para a compreensão de valores culturais de sua época. São importantes
os estudos sobre a educação nas instituições eclesiásticas, “(...) conventos e mosteiros
espalhados pelas cidades brasileiras e que tiveram um papel na história educacional do país.”
(DEAECTO, 2011, p. 51).

Considerações Finais
Se pretende portanto, perceber o papel da Biblioteca na formação dos alunos do
Seminário, e entendê-la como recurso para a observação da circulação dos livros em Fortaleza
e sua relação com a difusão internacional de ideias e mais ainda, estudar as obras não só em
seu conteúdo, mas também nos aspectos da produção livreira entre os séculos XVIII e XIX.
Os vínculos sociais e a relação individual com o livro e com a leitura são dimensões
que ao serem estudadas proporcionam melhor compreensão acerca das práticas sociais e
culturais de determinado período, e buscar visualizar essas práticas nos livros é, sem dúvida o
desafio maior do historiador do livro e da leitura.

Referências
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. –14ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem - Teatro de Sombras. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CASTELO, Plácido Aderaldo. O Seminário da Prainha – in: Revista do Instituto do Ceará,
Tomo LXXVIII, 1964.
DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.

11
SEF. Álbum Histórico do Seminário Episcopal do Ceará. Fortaleza – Ceará. 1914
43

DEAECTO, Marisa Midori. O Império dos Livros: Instituições e Práticas de Leitura na São
Paulo Oitocentista. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2011.
FILHO, João Batista de Andrade. Padres lazaristas no Ceará e a formação educacional
Confessional: seminários e colégios (1864 - 1914). Dissertação: Mestrado em Educação. –
Fortaleza: UFC, 2012.
GIRÃO, Raimundo. Geografia estética de Fortaleza. – Fortaleza: BNB, 1979.
OLIVEIRA, Almir Leal de. Saber e Poder. O pensamento social cearense no final do século
XIX. Dissertação (Mestrado em História). PUC-SP, 1998.
43

CRISTIANISMO E AS ARTES LIBERAIS

Raimundo Yuri Gomes AVELINO1


Francisca Jaquelini De Souza VIRAÇÃO2

Resumo: A gênese das primeiras práticas educacionais na Idade Média é um resultado


proeminente da propagação das Igrejas paroquiais em decorrência da defasagem do ensino
oficial e da cultura. Santo Agostinho (354-430d.C), ao assistir à derrocada do Império
Romano do Ocidente, será um dos principais representantes do Cristianismo no processo de
reestruturação da cultura antiga e da consequente fundamentação das bases educacionais. No
presente trabalho de pesquisa, foi-se possível identificar que alguns núcleos provincianos
serão envolvidos com o elemento letrado, justamente por influência de personalidades da
Igreja. Estes que ao perceberem os choques culturais pós invasão, aderirão ao sistema das
artes liberais do mundo antigo - que embora nos séculos V e VI medievais ainda não
estivesse sistematizado em Trivium e Quadrivium, ascenderá gradualmente diante dos
primeiros esboços sobre concepções educacionais possíveis.
Palavras chave: Doutrina Cristã. Sapientiae. Cultura e Educação.

I. Introdução
A pesquisa tem por principal intento aportar-se às aspirações educacionais de
personalidades da Igreja Cristã no início da Idade Média. Diante da conjuntura histórica do
período de transição entre a Idade Antiga e o início da Idade Média - o decurso do século V
assistiu à desarticulação do Império Romano do Ocidente e a forjada anexação das tribos
germânicas, neste território.
Para explicitar a abrangência de uma estruturação educacional, deve-se entendê-la em
seu sentido de conjunto, isto é, em que medida as tradições intelectuais herdadas e o esforço
de quem as buscou ornamentar, contribuíram para uma realização mesma do que se chama de
instrução por excelência.
No que se compreende dos séculos V e VI do início da Idade Média, a educação de
algumas províncias do Império Romano do Ocidente relaciona-se intimamente com a
interferência dos patres “pais” latinos da Igreja Cristã. Há de se convir, que os principais
anseios dos pais da Igreja eram de fato um laborioso trabalho apologético, mas percebe-se,
concomitantemente, a gestação de um modelo de ensino que embora essencialmente religioso,
formulou as bases da importância de uma formação plena dos indivíduos, dado o contexto de
desintegração do ensino oficial e o desentendimento de outras instituições sobre processos
formativos. Portanto, a sistematização inicial do ensino e seu paulatino desenvolvimento

1
Aluno de graduação no curso de Licenciatura em História da Universidade Regional do Cariri – URCA.
2
Historiadora e mestre em Ciências da Religião. Professora da Universidade Regional do Cariri – URCA.
44

fazem-se indiscutivelmente necessário a uma apreensão da evolução histórica da educação.


Sobre esta evolução, Mario Aliguiero Manacorda no seu livro: “História da Educação da
antiguidade aos nossos dias”, nos conta que “foi diferente em cada região, pois houve uma
Gália bárbara e uma Gália romana. Na África; os vândalos logo se aculturaram a cultura
romana e, em grau muito menor, os ostrogodos na Itália, pelo o menos até Teodato, e, mais
tarde os visigodos na Espanha”. (MANACORDA, 1999:107).
Nesta situação de adaptações no plano cultural, verificam-se renascimentos
norteadores da prática educacional.
Sobretudo quando esboçada a Doutrina Cristã por Santo Agostinho (397-427), inicia-
se uma incisiva busca em orientar os aspectos instrutivos, pois ao passo que a Igreja constituía
sua doutrina, os novos parâmetros culturais, políticos, e educacionais haveriam de reconhecer
sua interferência. Para melhor explicitar a sistematização da atividade pedagógica da Igreja,
destaca-se que quando do surgimento das escolas de tipo cristão no ocidente medieval, elas
não enveredaram para uma educação de elite e para aristocráticos como a antiguidade
promovia, ao contrário, atingiram as zonas rurais com a influência do clero secular.
Tais escolas, “Monástica, episcopal ou presbiteral, não separaram a instrução da
educação religiosa, da formação dogmática e moral; a religião cristã ao mesmo tempo douta e
popular concedeu ao mais humilde dos seus fiéis, por mais incipiente que seja seu
desenvolvimento intelectual, o equivalente aquilo que a altiva cultura antiga reservava à elite
de seus filósofos: uma doutrina sobre o ser e sobre a vida, uma vida interior submetida a uma
direção espiritual. A escola cristã forma a um só tempo litteris et bonis moribus, “nas letras e
nas virtudes”. (Marrou, 1904:516).
A vista disso buscou-se uma problematização histórica de documentos conciliares da
época, algumas das inúmeras epístolas, cartas e sermões que compuseram uma série de
pequenos tratados; formulados por representantes das instituições políticas da época e de
membros da religião Cristã. A busca pela conservação de tratados literários, históricos e
filosóficos da antiguidade, sugeriu a necessidade de uma motivação educacional,
propriamente dita, onde por sua vez, se encaixa a nossa principal fonte de pesquisa: A
Doutrina Cristã de Santo Agostinho.
Objetivamos, portanto, uma pequena síntese de uma História da Educação no início da
Idade Média, perscrutando sobre suas principais fundamentações e ressonâncias na realidade
dos sujeitos históricos. Ruy Afonso da Costa Nunes sobre a História da educação na Idade
Média, salienta que: “Em todo mosteiro passou a existir, ao lado da escola interna em que
estudavam os monges, uma escola externa franqueada a todos os interessados e onde se
44

aprendia a ler, escrever, contar e a cantar, e na qual, aos poucos, veio a organizar-se o ensino
completo das artes liberais e da própria filosofia”. (NUNES,1979:86). Certamente essa
afirmação nos servirá de base para o tipo de apreensão que ansiamos em despertar no leitor.

II. Irrupção bárbara no Ocidente e renascimentos provinciais no plano cultural


No início do século V, o mundo bárbaro e a Romania, efetivamente, encontram-se em
estado de beligerância e antes mesmo do mundo ocidental testemunhar uma defesa auspiciosa
para suas fronteiras, as tribos germânicas em uma sequência irreversível de ataques, avançam
e consagram-se – estiolando o Império que sem forças, subitamente percebem todas as suas
províncias cederem.
Édouard Perroy em seu livro: A Idade Média - expansão do oriente e o nascimento da
civilização ocidental, enumera historicamente as principais invasões: “Os visigodos em
primeiro lugar, após vencerem o Imperador Valente em 378, forçam o Danúbio. O governo
imperial consegue desviar sua marcha na direção do Ocidente; seu rei, Alarico, toma Roma
em 410; em 412, encontram-se no sul da Gália. Esta acaba de ser percorrida pelos vândalos
que, acompanhados de alanos e suevos, cruzaram o Reno no último dia do ano 406; partindo
da Espanha, onde estes bárbaros detiveram-se por um momento, Genserico, em 429, conduz
os vândalos à conquista da África. A Gália do Norte é progressivamente penetrada pelos
francos, alamanos e borgundos, que se instalam na Sabóia em 443. Em 451 e 452 os hunos de
Átila, com base na Panônia, lançaram incursões sem consequências sobre a Gália e a planície
do Pó. Enfim, em 488, Teodorico, rei dos ostrogodos, entrava na Itália com seu povo. Assim,
em menos de um século, uma ampla migração instala os germanos em todas as províncias
ocidentais do Império, ao passo que o Oriente ainda permanece ileso”. (PERROY, 1956:19-
20)
Tais invasões, carregadas de destruições materiais e psicológicas, constituíram uma
verdadeira catástrofe para as sociedades das regiões provinciais, pois já estando perplexa
pelas perturbações econômicas, não conseguem antever esse período de devastação e
assistem, agonizantemente, uma inigualável agitação social.
Nesse momento, novos modelos de organização social precisaram ser estabelecidos e
como consta, isso foi feito graças à solidez dos esforços de evangelização dos primeiros
cristãos. “Aliás temos que sublinhar, pois é um fato prenhe em consequência para o futuro, o
papel de primeira plana desempenhado pelos homens da igreja, durante todo o período
movimentado das invasões. Quando se ia enfraquecendo e desmoronando, pedaço por pedaço,
o Império Romano; e com ele ruía a maior parte das instituições sobre as quais repousava a
44

civilização antiga, manteve-se a Igreja, só ou quase só, e o povo cristão habituou-se pouco a
pouco a apoiar-se nela, a contar com ela para sobreviver”. (DANIÉLOU, MARROU, 1966:
416).
Assim, referir-se aos aspectos culturais destes conturbados períodos iniciais da Idade
Média, é admitir um predomínio da perspectiva Cristã em relação aos povos românicos e os
recém-anexados – povos bárbaros. No entanto, é errôneo entender esta interferência no
sentido de um poder centralizado. Ao contrário, pelo o menos inicialmente, era uma
intercessão local, limitada e distinta de um núcleo populacional para outro.
Um Sermão do Bispo S. Cesário de Arles (470-543), para uma paróquia rural,
reverbera de modo satisfatório este entendimento:

Os Pais devem ensinar e corrigir tanto os vossos próprios filhos como os afilhados,
para que viva uma vida pura, justa e sóbria. Exortai vossos filhos e parentes a
absorverem tais virtudes, não só com palavras, mas também com a força do bom
exemplo. Antes de tudo, onde quer que estejais, em casa, em viagem, comendo ou
em reuniões, não profira de vossa boca palavras torpes e obscenas, e exortem os
vizinhos e vossos próximos a que falem sempre o que é bom e belo, e não palavras
más ou maledicência. (ARLES, 470-543: Sermão 13).

Desse modo, verifica-se que no decurso do século V, as características apaziguadoras


da Igreja Cristã no sentido cultural, ocorreram provincialmente e a depender da possibilidade
de interferência social das personalidades letradas daquele âmbito. Portanto, posto que alguns
representantes letrados do clero foram os responsáveis em salvaguardar o legado cultural
antigo, se justifica os ressurgimentos locais de uma noção educacional. Vê-se ainda, que não
existia uma renovação consolidada do saber, justamente por consequência do enrijecimento
social e cultural da época. Contudo, cabe aqui destacar em que medida os representantes da
parte latina ocidental asseguraram as bases culturais antigas, não a deixando extinguir-se:

O saber antigo preservou-se nos livros que os mosteiros e as Igrejas agasalharam


carinhosamente. A sua transmissão às gerações da Idade Média operou-se por meio
da cópia dos manuscritos e da elaboração de manuais e enciclopédias por alguns
autores do fim do mundo antigo, tais como: Santo Agostinho e Marciano Capela e
autores do início da Idade Média, tais como Cassiodoro, Boécio, Santo Isidoro de
Sevilha e São Beda, o venerável. (NUNES,1979:74).

Nesse momento o elemento letrado ocupa lugar de destaque, boa parte dos povos
germânicos ainda não haviam conhecido nem um tipo de cultura escrita e vale novamente
ressaltar, que a tradição literária clássica, estava prestes a se perder. Mas o surgimento de
escolas do tipo monásticas, clarificam e norteiam a vida intelectual. “Santo Agostinho (354-
44

430) que introduziu o monaquismo na África, dera a sua primeira comunidade, mesmo ainda
leiga, o caráter de um mosteiro erudito e sua regra prevê, como normal, a existência de uma
biblioteca; em Marmoutier, os monges de São Martinho na Gália, copiam manuscritos. São
Patrício ao evangelizar a Irlanda; batiza e dá um alfabeto ao jovem. No século VI as regras
religiosas serviam não apenas para homens, mas também para as mulheres; onde deverão
aprender a ler, omnes litteras discant3. consagrarão duas horas diariamente à leitura; copiarão
manuscritos”. (MARROU, Henri Irénée, 1904: 507).

III. Representantes letrados do cristianismo e a adesão ao sistema das artes liberais


Finalmente podemos destacar as intervenções de personalidades da Igreja naquela
sociedade, especialmente sob o prisma educacional, já que a principal intuição desse trabalho
seja pôr-se em conformidade a observância das normas cristãs com os princípios da educação
medieval. Santo Agostinho foi exponencial, quando se fala em personalidades cristãs que
preocuparam-se com a educação por excelência. Tanto é, que formulou o De doctrina
christiana “Doutrina Cristã”. Um verdadeiro tratado educacional que tendo sido revisto e
redigido inúmeras vezes pelo próprio autor, levou cerca de trinta anos até sua conclusão final.
(397-427).
Assim, a doutrina instrutiva cristã que surgira, encontra em Santo Agostinho não só a
materialização fundamental e direcionadora sobre como um cristão deveria portar-se diante da
Sagrada Escritura, como também, estabelece as possibilidades de buscar métodos consistentes
na imitação de bons modelos instrutivos. A Doutrina Cristã de Agostinho divide-se em quatro
livros. LIVRO I: Conhecimento das coisas (doctrina rerum). LIVRO II: Conhecimento dos
sinais (doctrina signorum). LIVRO III: Ambiguidades da Escritura. LIVRO IV: É preciso
falar mais com sabedoria do que com eloquência. Dada a abrangência desta obra limitaremos
a elucidar apenas algumas partes deste último livro e em que medida ele conecta-se com o
sistema das artes liberais4.

3
Esta constitui uma das recomendações da regra monástica de São Cesário de Arles em que nos mosteiros,
homens e mulheres deverão instruir-se nas letras.
4
Era una preparación para los estudios superiores; en una palabra, algo muy semejante a nuestro actual
Bachillerato, com su cultura literaria y su cultura matemática, es decir, lo que nosostros separamos em los dos
conocidos grupos de Ciencias y Letras. (BARBA, Esteve. 1955:678). Era uma preparação para estudos
superiores; em uma palavra, algo muito semelhante ao nosso atual Bacharelado, com sua cultura literária e sua
cultura matemática, isto é, o que separamos nos dois grupos conhecidos de Ciências e Letras.
Desde la época romana, el ciclo de las artes liberales iba ascendiendo de categoria sencillamente porque em
torno iba descendiendo el tono de la cultura, de modo que lo sólo era antes um passo para nuevos estudios
superiores, se quedó convertido en única enseñanza. (BARBA, Esteve. 1955:678). Desde a era romana, o ciclo
das artes liberais estava aumentando por categoria, simplesmente porque o tom da cultura estava caindo, de
modo que se antes era apenas um passo para novos estudos superiores, tornou-se o único ensinamento.
44

O livro IV embora seja “Sobre a maneira de ensinar a doutrina” não se trata de um


tratado de Arte Retórica. O próprio autor afirma isto quando expõe:

Advirto, de início, refreando a impaciência dos leitores, que talvez suponham que
vou lhes dar preceitos de retórica que aprendi a comunicar nas escolas profanas.
Previno que não esperem isso de mim — não que esses preceitos sejam sem
utilidade. Mas no caso de serem úteis, será preciso aprendê-los à parte, sob a
condição, todavia, dessa pessoa encontrar tempo necessário para se dedicar a tal.
(AGOSTINHO, 426-427. d.C. Livro IV:127).

Perceba que mesmo não se tratando de um tratado sobre Retórica, Agostinho não nega
a possibilidade de instruir-se nesta arte. Tanto é assim, que logo em seguida utiliza-se da Arte
da eloquência, que estreitamente vincula-se a Arte Retórica:

Se é certo que as crianças só se põem a falar escutando as palavras das pessoas que
falam, por que alguém se poderia tornar eloqüente sem receber noção alguma da arte
oratória, contentando-se em ler, em escutar e, à medida do possível, em imitar os
bons oradores? E, além do mais, não temos exemplos que provem tal? De fato,
conhecemos muitos que, sem os preceitos da retórica, são mais eloqüentes do que
bom número de outros que os aprenderam nas escolas. E por outro lado, não
conhecemos ninguém que se tenha tornado eloqüente, sem ter lido ou escutado os
discursos e as pregações dos oradores. As próprias crianças não teriam necessidade
da gramática que ensina a língua correta, se lhes fosse dado crescer e viver entre
pessoas que falam corretamente. Com efeito, ignorando expressões errôneas, elas as
evitariam e corrigiriam ao ouvi-las de outros. É o que fazem os moradores das
cidades, inclusive os incultos, ao corrigir o modo de falar dos que vêm do meio
rural. (AGOSTINHO, 426-427. d.C. Livro IV:128).

São duas as dimensões que Agostinho debruça-se neste ponto do texto. A necessidade
de concluir satisfatoriamente os exercícios gramaticais, isto é, entender as variabilidades da
própria língua e passado esta fase - valer-se da arte de expor o conhecimento (Oratória).
A Doutrina Cristã de Santo Agostinho é um marco referencial para o modelo da
cosmovisão pedagógica no período da patrística. Os primeiros pais da Igreja rejeitavam
ordinariamente tudo que estivesse ligado a cultura pagã, notavelmente por acreditarem que
tais conhecimentos desvirtuava o caminho dos cristãos. Deste modo, entendemos que Santo
Agostinho, foi o ponto de intersecção entre as normas educativas cristãs com os fixos
fundamentos da tradição intelectual clássica.
Todavia, não é possível versar sobre a implementação de modelos sólidos de educação
nesse período, já que a conjuntura presente estava marcada por instabilidades sociais - em
face, vale lembrar; da destruição do Império Romano do Ocidente e do processo iniciatório de
configuração política das tribos Germânicas e províncias Romanas remanescentes. Mas veja-
se, que a influência de representantes da Igreja, principalmente a partir de Agostinho,
44

ocasionou um fenômeno de proporções socioculturais ordenado em si mesmo e, por sua vez,


fieis aos valores humanos e a prática educadora. “Todos os mestres espirituais do mundo
ocidental são discípulos de Santo Agostinho e reconhecem a sua dívida para com ele: Escoto
Erígeno, Abelardo, Anselmo de Cantuária, os Vitorinos, São Tomás... De fato, vê-se que
literariamente, gramaticalmente e claro, espiritualmente, a inteligência medieval está na
dependência escrita de seus livros, principalmente da Doutrina Cristã”. (ROPES, 1960: 67).
Portanto, os cristãos medievais a partir de Agostinho que pensaram em um modelo
educacional consistente, ordinariamente debruçaram-se sob as chamadas artes liberais do
mundo antigo, justamente pela influência de Agostinho em fazer uma abertura especulativa
sobre este sistema. Na Idade Média, gradualmente o sistema das artes liberais veio a definir-
se como um conjunto sistemático e intencional das disciplinas: (Gramática; Retórica e
Lógica) que correspondiam ao Trivium5. enquanto (Aritmética; Geometria; Astronomia e
Música) ao Quadrivium6. No entanto, falar de educação nesse agitado período, refere-se
singularmente à primeira fase da unidade do Trivium: a Gramática; pois notavelmente o
período inicial da Idade Média, voltou-se para o campo eminentemente gramatical, isto é, um
ensino que abrangesse as formas de intelecção linguísticas dos indivíduos, já que nas
primeiras décadas da Alta Idade Média, após o II concílio de Vaison em 529, pela iniciativa
de São Cesário “funda-se escolas rurais e populares, que a própria antiguidade não conhecia
sob esta forma regular e sistematicamente generalizada. Na própria Gália, temos prova de que
foi seguida de fato: vemos na vida do futuro Santo Géry de Cambrai (623-626), um bispo em
visita pastoral preocupar-se em saber se em determinada cidade há crianças que estejam sendo

5
La Gramática se refería a dos aspectos: al estudio de la lengua y sus leyes y a la exlicación de los grandes
escritores, es decir, lo que llamaríamos Historia Literaria; la Retórica era la enseñanza teórica y prática de la
Elocuencia, y la Dialética compreendía por un lado lo que llamamos Lógica y por otro la ciencia de la discusión.
(BARBA, Esteve. 1955:678). A gramática se referia a dois aspectos: o estudo da linguagem e suas leis e a
explicação de grandes escritores, isto é, o que chamaríamos de História Literária; A retórica foi o ensino teórico
e prático da Eloquência, e a Dialética entendeu-se por um lado o que chamamos de Lógica e por outro a ciência
da discussão.
6
La Aritmética no abarcaba más que el estudio teórico de las propiedades del número y no se ocupaba del
cálculo o solúción de los problemas, ciencia que los griegos habían distinguido bien de la Aritmética llamándola
Logística. La Geometría estudiaba las figuras ideales y se dividía em Geometría plana y del espacio. Por sua
parte la Astronomía – o Astrología, que con los dos nombres se designaba aún – se reducía al estudio
matemático de los movimentos de los astros. La música casi depreciable, porque no se enraizaba directamente
com la inteligencia, sino con los sentidos. Lo único que conservaba valor era lo que la Música tenía de
matemática, es decir, lo que llamaban entonces la Ritmica y la Armonía. (BARBA, Esteve. 1955:678-679). A
aritmética não cobria mais do que o estudo teórico das propriedades dos números e não lidava com o cálculo ou
solução de problemas; uma ciência que os gregos distinguiam bem da aritmética chamando-a de Logística. A
geometria estudou as figuras ideais e foi dividida em geometria plana e espaço. Por seu turno, Astronomia - ou
Astrologia, que ainda era designada pelos dois nomes - foi reduzida ao estudo matemático dos movimentos das
estrelas. Música quase depreciável, porque não se enraizou diretamente com a inteligência, mas com os sentidos.
A única coisa que retinha valor era o que a Música tinha da matemática, isto é, o que eles chamavam de Ritmo e
Harmonia.
44

preparadas para o sacerdócio. Mui naturalmente, o ermitão São Pátroclo (576), que acaba de
instalar-se no vicus de Néris, construir uma capela, que sagra após haver trazido para ela as
relíquias de São Martinho, e põe-se a ensinar as letras às crianças, pueros erudire coepit in
studiis litterarum7: as duas funções, de cura da cidade e de instrutor, estão, doravante unidas”.
(MARROU, Henri Irénée, 1904: 512).

IV. Conclusão
Vejamos por fim, que diante do que foi exposto, quando se inicia o processo de
assimilação do patrimônio cultural antigo na parte ocidental, e a profícua reestruturação dos
processos normativos no campo da Sapientiae, “Sabedoria”, floresce uma nova ordenação do
antigo sistema das artes liberais – diante do que ela pudesse ser útil à vida e a orientação nos
estudos. Foi possível ser identificado através deste estudo, um modelo de formação
educacional dos indivíduos, aliado ao trabalho de evangelização e amor pela sabedoria da
Igreja Cristã, onde os trabalhos apologéticos foram uma expressão necessária às condições
socioculturais da época.
Constatou-se também, que esse período histórico em análise, trata-se de uma fase em
que o ensino ainda não era sistematizado, mas que os renascimentos educacionais
provincianos, ao assegurarem a cultura da antiguidade, reorganizaram tanto a cultura, quanto
a escola. “Considerando que a Igreja tinha uma dupla estrutura organizacional, isto é, vivendo
ela em parte no meio do povo através dos bispados e das paroquias (clero secular) em parte
longe dele nos mosteiros (clero regular), é nessa dupla estrutura eclesial que devemos
procurar os primeiros testemunhos do surgimento de novas iniciativas da educação cristã, ao
lado das remanescentes ilhas livres de romanidade clássica”. (MANACORDA, 1999:114).
Claramente, os eventos históricos subsequentes, sucederam-se com a interferência e os
efeitos norteadores da cristandade. Conclui-se sobre esse período, que a gênese da
organização corporativa do magistério, situa-se na propagação das Igrejas paroquiais, pois ao
atingir as zonas rurais com a influência do clero secular, atingiam uma governança provincial
e eclesiástica sobre as orientações superiores, dignas de instrução para vocacionados ao
clericato. Não se pode negar que era esse o horizonte de perspectiva das primeiras escolas.
Entretanto o esforço de assimilação do patrimônio cultural antigo, somado a organização
doutrinária da fé encabeçada por personalidades da Igreja Cristã do Ocidente, serviram de

7
São Gregório de Tours, Vida dos Padres, 9, 2. Idem.
44

preâmbulo para uma profícua reestruturação dos processos normativos no campo educacional,
inclusive no sentido de amparar estudantes que não fossem vocacionados ao clericato.

REFERÊNCIAS
Fontes:
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. 413-426. d.C. Tradução: Oscar Paes Leme; Editora
das Américas. 1961. (Primeiro Volume).
AGOSTINHO, Santo. Confissões. 400.d.C. Tradução de J. Oliveira Santos, S.J., e A.
Ambrósio de Pina, S.J. Editora Nova Cultural Ltda. São Paulo. 2004.
AGOSTINHO, Santo. Doutrina Cristã. 397-427. d.C. Tradução da Coleção Patrística.
Manual de exegese e formação cristã. 2002.
AGOSTINHO, Santo. De Magistro (Do Mestre). 389. Tradução de ÂNGELO RICCI. Libri
Tredecim De Magistro e Copyright Abril S.A. Cultural e Industrial, São Paulo, 1979.
ARLES, S. Cesário de. (470-543). Um Sermão de S. Cesário de Arles. Nota Introdutória e
Tradução: Jean Lauand. 2011. Sermão 13. Site: http://www.ricardocosta.com/extratos-de-
documentos-medievais-sobre-o-campesinato-secs-v-xv#extrato-01.
AMBRÓSIO, Bispo, CARTA 17. Tradução de H. de Romestin, E. de Romestin e HTF
Duckworth. De Nicene e Post-Nicene Fathers, segunda série, vol. 10. Editado por Philip
Schaff e Henry Wace. ( Buffalo, NY: Christian Literature Publishing Co., 1896. ) Revisado e
editado para New Advent por Kevin Knight.http://www.newadvent.org/fathers/340917.htm.
BENTO, Santo. (480-547). Regra de São Bento (c. 530). Trad.: Dom João Evangelista
Enout. Disponível em: Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Site:
http://www.ricardocosta.com/traducoes/textos/regra-de-sao-bento-c-530.
NICÉIA, Concílio ecumênico de. Canon 5. Edição: Norman P., Tanner.

BIBLIOGRAFIA
Artigos:
COSTA, Ricardo da. Arte e História: a gênese da concepção monárquica no Ocidente
cristão (sécs. IV-VI). 2018. Site: http://www.ricardocosta.com/artigo/genese-da-monarquia-
no-ocidente.
COSTA, Ricardo da. As retóricas clássica e medieval. 2011.
http://www.ricardocosta.com/artigo/retoricas-classica-e-medieval.
PEINADO, Maria Rita Sefrian de Souza. O Ensino Do Trivium E Do Quadrivium, A
Linguagem E A História Na Proposta De Educação Agostiniana. Imagens da
Educação.2012.http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ImagensEduc/article/viewFile/15808/8
702.
44

Livros:
BARBA, Francisco Esteve. Historia de la Cultura. Tomo II Orígenes del cristianismo y
Edad Media. Editora: Salvat Editores – Barcelona. 1955.
DANIÉLOU, Jean, MARROU, Henri. Nova História da Igreja. Dos primórdios a São
Gregório Magno. Tradução: Dom Frei Paulo Evaristo. 1966.
JOSEPH, Irmã Miriam. O Trivium - As Artes Liberais da Lógica, Gramática e Retórica.
Editado por Marguerite McGlinn em 2002. Tradução e adaptação de Henrique Paul Dmyterko
Prólogo e revisão técnica de Carlos Nougué Prefácio de José Monir Nasser de 2008.
JÚNIOR, Hilário Franco. A Idade Média: O nascimento do Ocidente. 2001.
MARROU, Henri. História da educação na Antiguidade. Trad: Prof Mário Leônidas
Casanova / São Paulo, E. P. Brasília, INL., Editora da Universidade de São Paulo. 1966.
MANACORDA, Mario Aliguiero. História da Educação da antiguidade aos nossos dias.
1989. Tradução de Gaetano Lo Monaco; revisão da tradução Rosa dos Anjos Oliveira e Paolo
Noselia – 7 ed. – São Paulo, Cortez, 1999
NUNES, Ruy Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média. Editora Pedagógica
Universitária 1979.
ROPS, Daniel. A Igreja dos Tempos Bárbaros. História da Igreja de Cristo II. Tradução
portuguesa do Professor Eduardo Pinheiro. Editora., Livraria Tavares Martins – Porto. 1960.
44

Os Flagelados e a Hospedaria Getúlio Vargas:


fome, doenças, saques e revolta (1943-1960).

Renata Felipe Monteiro1

Resumo: A Hospedaria Getúlio Vargas foi inaugurada em 15 de março de 1943, sendo


descrita pela imprensa cearense como um “modelo de organização”. Tinha como principal
finalidade oferecer pouso provisório aos flagelados que iriam compor o “exército da
borracha”, que seria enviado para a Amazônia. Criada para comportar no máximo 1.200
pessoas, chegou a ter em suas dependências nos períodos de seca (década de 1950) mais de 10
mil. E essa superlotação ocasionava uma série de problemas: doenças, fome, saques e
revoltas. Através dos documentos oficiais, dos jornais e de outros meios de pesquisa, procuro
debater sobre os diversos problemas enfrentados pelos flagelados na Hospedaria Getúlio
Vargas, entre os anos de 1943 e 1960.
Palavras-chave: Seca. Hospedaria Getúlio Vargas. Flagelados.

“A Hospedaria Getúlio Vargas é um modelo de organização”. Assim noticiava o jornal


cearense O Povo, em 16 de março de 1943, sobre a inauguração da respectiva hospedaria2,
que se deu no dia anterior, contando com a presença ilustre do Ministro do Trabalho
Marcondes Filho, do Interventor do Ceará Menezes Pimentel, do diretor do Departamento
Nacional de Imigração (DNI) Henrique Dória Vasconcelos, e de outros. O Ministro do
Trabalho afirmou que “a Hospedaria Getúlio Vargas terá, brevemente, capacidade para
manter, com relativo conforto, um total de 1.200 pessoas”, obedecendo a uma orientação
eficiente que a caracterizava como um “modelo de organização”. De acordo com o ministro,
cada família alojada tinha diariamente três refeições e aguardavam confiantes “o dia do
embarque para o extremo norte”. Além disso, a hospedaria distribuía redes para todas as
pessoas, “proporcionando, deste modo, condições decentes de vida aos trabalhadores” (O
Povo, 16 de março de 1943).
Ao analisarmos os jornais, os documentos oficiais e outras fontes, percebemos,
contudo, que ao longo da existência da Hospedaria Getúlio Vargas 3, sobretudo, nos períodos
de grandes estiagens (1951-1953 e 1958), diversos problemas relacionados à superlotação, à
fome e às doenças impossibilitaram que a mesma continuasse a ser um “modelo de

1
Mestra em História Social, Universidade Federal do Ceará.
2
A Hospedaria Getúlio Vargas, atualmente uma Unidade de Abrigo de Idosos, funcionava na Avenida Olavo
Bilac, 1280, bairro São Gerardo-Fortaleza.
33
A hospedaria funcionou como abrigo provisório para os flagelados até aproximadamente o final da década de
1970.
45

organização”. O propósito deste artigo é compreender como os sertanejos 4 vivenciaram e


enfrentaram os diversos problemas existentes na hospedaria, entre os anos de 1943 e 1960.
A Hospedaria Getúlio Vargas, apesar de está subordinada ao DNI, foi criada para
auxiliar as atividades empreendidas pelo Serviço Especial de Mobilização dos Trabalhadores
para a Amazônia (SEMTA) 5. Em março de 1942 o Brasil assinou em Washington6 diversos
acordos sobre matérias primas estratégias, entre as quais a borracha. Através do SEMTA foi
organizado rapidamente todo um sistema que implicava assistência às famílias (pousos ou
hospedarias), seleção dos trabalhadores, alojamento nas barracas, exames médicos,
alimentação, transporte, vestuário e adiantamentos, até a colocação nos seringais (SECRETO,
2007).
Os aspectos relacionados à organização – exames médicos dos trabalhadores e seus
familiares e obras sanitárias – das hospedarias administradas pelo DNI ficou sob a
responsabilidade do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP). Em dezembro de 1942 foi
criado o Programa de Migração, com o propósito de prestar assistência médica e sanitária a
todos os imigrantes sob a responsabilidade do DNI e destinados ao Vale da Amazonas 7. De
acordo com Bastos, “o DNI, em parceria com o SESP, construiu uma hospedaria onde o SESP
instalou um hospital e um posto médico para onde foram transferidos as antigas instalações da
hospedaria do alagadiço8” (BASTOS, 1996:89)
O jornal Diário da Noite (RJ), em editorial de 11 de junho de 1943, noticiava que a
Hospedaria Getúlio Vargas se destacava por um detalhe: “a limpeza”. As condições higiênicas
da respectiva hospedaria, assim como a limpeza das crianças, eram percebidas em todos os

4
De acordo com Frederico de Castro Neves, a partir da seca de 1915 os sertanejos são denominados de
“flagelados”, indicando que estes sujeitos eram vítimas de um flagelo – a seca.
5
O SEMTA foi criado em 30 de novembro de 1942, tendo como competências promover imediatamente os
estudos necessários para transportar por vias interiores os trabalhadores nordestinos para a Amazônia; organizar
um sistema de recrutamento de tal forma que mereça a confiança dos trabalhadores protegendo-os e assistindo-os
convenientemente durante a viagem, dando às suas famílias assistência médica e econômica; articular com o
DNI no sentido de assegurar uma colaboração harmônica nos respectivos setores de atividade, dentre outros.
6
O ingresso dos Estados Unidos da América na Segunda Guerra Mundial exigiu um posicionamento claro das
nações americanas.
7
O SESP tinha o objetivo de organizar e superintender as hospedarias administradas pelo DNI, com os seguintes
serviços: proceder exame médico de todos os trabalhadores e pessoas de suas famílias que desejassem ingressar
nas hospedarias administradas pelo DNI a fim de selecionar os indivíduos fisicamente capazes de empreender a
viagem à Amazônia e executar trabalhos agrícolas peculiares àquela região; Proceder exame médico dos
trabalhadores alojados nas hospedarias para confecção das listas de embarque, deliberando sobre aqueles que
estão ou não em condições de empreender viagem; Executar as obras urgentes que julgar indispensáveis para
melhorar as condições sanitárias das hospedarias, quando elas não puderem ser custeadas por verbas do DNI,
dando ciência a este Departamento e à Autoridade que o representar no local, dentre outros. Em janeiro de 1943,
o SEMTA convidou o SESP para que prestasse igual assistência nas suas hospedarias e ao longo de todo o
percurso de viagem.
8
Durante a seca de 1942 foi organizado um albergue no campo do Alagadiço, para socorrer os retirantes, no
local que seria construído posteriormente a Hospedaria Getúlio Vargas.
45

oito pavilhões, nomeados com os nomes dos antigos ministros do Trabalho. Essa pretensa
organização e limpeza, contudo, era contestada:

Surge, de vez em quando, em um dos pousos do SEMTA ou em uma das hospedarias


do DNI um problema que exige esforços especiais. Foi o caso, por exemplo, do
surto de conjuntivite catarral verificado na “Hospedaria Getúlio Vargas” do DNI
nesta capital. Durante o primeiro semestre deste ano registraram-se nessa
hospedaria do Alagadiço nada menos de 2.011 casos de conjuntivite catarral, sendo
a maior parte desses casos concentrada em um só mês. O elevado número de
pessoas abrigadas na hospedaria e a ignorância da maior parte quanto a preceitos
de higiene agravavam o problema. (A Noite, 29 de agosto de 1943)

No período que a hospedaria esteve vinculada ao trabalho de deslocamento dos


flagelados para a região Amazônica, colaborando com o SEMTA (1943-1945), notícias –
como essa publicada no jornal carioca A Noite – sobre a falta de higiene ou problemas
relacionados a doenças são escassas. Uma tese que podemos levantar é que o trabalho efetivo
dos médicos, dentistas, auxiliares hospitalares e outros funcionários do SESP, que cuidavam
das mulheres, homens e crianças nos hospitais dos pousos e hospedarias do SEMTA e do
DNI, possa ter diminuído concretamente a proliferação das doenças entre as pessoas naqueles
ambientes. Vale ressaltar que, apesar do SEMTA e DNI utilizarem-se dos serviços do SESP,
havia diferenças cruciais entre essas organizações quando o assunto era migração.
O DNI – diferentemente do SEMTA que fazia o deslocamento dos migrantes por terra
até São Luiz através de caminhões do tipo pau-de-arara e trem – transportava os retirantes
através de navios do Loyde Brasileiro. O diretor do DNI, Dória Vasconcelos, afirmou que a
instituição suspenderia suas atividades no Ceará enquanto o SEMTA estivesse atuando, com o
intuito de evitar a dualidade de serviços. Na prática, contudo, o DNI continuou,
simultaneamente, a fazer o transporte de famílias para o Norte (MORALES, 2002).
Além da diferença citada acima, o SEMTA fazia o transporte apenas de homens
solteiros. O senhor Vicente (77 anos e natural de Iguatu), ao ser indagado sobre a presença de
mulheres viajando pelo SEMTA foi enfático: “Não! Só solteiro. Só mobilizado. Agora tinha
família, tá? Que ia pela amigração”. Quando o Sr. Vicente falava “amigração” estava se
referindo ao transporte dos migrantes pela Hospedaria Getúlio Vargas, o “pessoal aflagelado
da seca”. Na concepção do Sr. Vicente, quem viajava para a Amazônia pelo SEMTA eram os
mobilizados, “pra fazer serviço de guerra. Ia pra seringa, fazer borracha pra guerra, tá”
(MORALES, 2002:294).
As mulheres (e filhos) dos trabalhadores transportados pelo SEMTA permaneciam nos
seus locais de origem ou nas hospedarias e núcleos, esperando o momento para também
45

viajarem. Nestes locais escreviam cartas angustiadas a seus esposos. A senhora Elcina
Galvão, por exemplo, após ter vários problemas no núcleo que habitava, escreveu para seu
marido Cursino: “se você não tomar providência aí com o chefe aqui tomo, retirando-me nem
que seja para a Remigração Getúlio Vargas e quando menos você espera eu chego como
aflagelada aí no Pará” (SECRETO, 2005:182).
As falas do sr. Vicente e da senhora Cursina elucidam bem as diferenças entre o DNI e
o SEMTA, quando o assunto era migração dos sertanejos. Enquanto aqueles que migravam
pelo DNI eram estigmatizados como flagelados da seca, quem viajava pelo SEMTA era visto
como “mobilizado”, ou seja, um soldado que lutava para o país, contribuindo para a vitória na
segunda guerra mundial.
Com o fim dos trabalhos originais – transportar soldados para a “batalha da borracha”,
entre 1943 e 1945 – a hospedaria fechou suas portas, sendo reabertas apenas no surgimento de
um novo período de seca (década de 1950). Dessa forma, a Hospedaria Getúlio Vargas
integrou-se ao sistema de atendimento aos flagelados, atendendo aos retirantes que chegavam
diariamente à Fortaleza. Mas, para além de distribuir passagens e servir de pouso provisório,
tornou-se um novo centro de disputas e conflitos (NEVES, 2002).
Durante a estiagem de 1951 – que se prolongou até 1953 – os flagelados que estavam
abrigados na Hospedaria Getúlio Vargas organizaram várias “passeatas da fome”, como uma
forma de protestar contra as péssimas condições de alojamento, a falta de comida, de trabalho
e de passagens para o Norte e outras regiões. A primeira passeata foi organizada em 30 de
agosto, após o diretor da hospedaria, Otevino Alves, informar aos retirantes que o embarque
para a Amazônia estava cancelado. O diretor relata que seu gabinete foi ocupado
“pacificamente pelos trabalhadores”, que o pediram para autorizar uma passeata até o Palácio
do Governo. No intuito de justificar essa autorização ao repórter do jornal O Povo, o diretor
diz:

Ora, já não havia gêneros na Hospedaria para continuar alimentando os retirantes


e o último almoço que lhes fora servido consistira apenas duma escassa ração de
feijão. O recurso era ir mesmo a Palacio. Não pude impedir aquela marcha dos
famintos. (O Povo, 31 de agosto de 1951)

A realização da “marcha dos famintos” era justificada e legitimada pelo diretor da


hospedaria, na medida em que a fome aumentava naquele ambiente. Além disso, a suspensão
das passagens para a região Amazônica acirrou ainda mais os ânimos daqueles sujeitos.
45

Restou-lhes protestar junto ao governador, que no intuito de amenizar os ânimos improvisou


um jantar com pão e leite do Fundo Internacional de Socorro à Infância (FISI).
Uma nova “passeata da fome” foi organizada no dia 07 de setembro de 1951. Mais de
mil flagelados alojados na Hospedaria Getúlio Vargas percorreram diversas ruas de Fortaleza,
“numa verdadeira demonstração de miséria e de depaupeuramento físico” (sic), até o Palácio
do Governo. Levavam faixas com a seguinte frase: “A passeata da fome dos emigrantes da
Hospedaria ‘Getúlio Vargas’”, mostrando aos seus conterrâneos a situação de calamidade no
qual se encontravam (O Povo, 08 de setembro de 1951).
A realização dessa nova passeata causou revolta entre as autoridades governamentais
do Ceará, que exigiram ações imediatas contra essas “marchas dos famintos”. O governador
do Ceará, Raul Barbosa, procurou o Ministro do Trabalho informando que “os retirantes que
se encontram na Hospedaria Getúlio Vargas tentaram fazer dia 7 de setembro uma ‘parada da
fome’ antes do desfile militar”. O governador afirmava que o movimento foi organizado por
comunistas infiltrados entre os flagelados, contando ainda com a inércia proposital do diretor
da hospedaria, Otevino Alves. A solução encontrada para resolver esse problema foi substituir
o diretor por alguém indicado pelo comando militar. (Fundo Getúlio Vargas/CPDOC – GVc
1951).
É perceptível, através da análise dos documentos oficias e jornais, a tentativa de
minimizar ou anular completamente a autonomia dos flagelados nesses momentos de
resistência, atribuindo a outros a organização e a realização dessas “paradas da fome”. Na
concepção do Governador do Ceará, por exemplo, os retirantes eram manipulados por outros
sujeitos, não agindo de forma consciente nesses protestos.
A organização das “paradas da fome”, contudo, causou temor nas autoridades
governamentais, proporcionando negociações e ganhos para os flagelados. O presidente
Getúlio Vargas, em mensagem enviada por telegrama ao governador interino Stênio Gomes,
concedeu “491 passagens Manaus, 229 Belém, 38 Rio e onze São Luiz, esclarecendo à
remeteu Hospedaria com mil cruzeiros suprimento tendo solicitado Ministro do Trabalho
mais trezentos mil cruzeiros mesmo fim”. O presidente recomendou ainda a liberação de
recursos para custear obras de emergências, assim como a compra de víveres para a
“Hospedaria assim como passagens para que os que desejarem sair outros Estados”.
Autorizou-se, finalmente, o início imediato da estrada Canindé e a construção de três açudes
com o propósito de absorver os flagelados. (O Povo, 12 de setembro de 1951).
Os recursos financeiros para a compra de alimentos, assim como para a compra das
passagens, porém, não foram liberados imediatamente. Em outubro de 1951 encontravam-se
45

na hospedaria (dentro e nas adjacências) aproximadamente 1.600 pessoas a espera de


embarque para a região amazônica ou para outras regiões do país. A alimentação era
basicamente “feijão dágua no sal”. Às crianças era destinada “uma magra sopa de cenouras,
pela manhã e a tarde”. A burocracia era apontada como a grande culpada pela fome e miséria
dos retirantes.
Outro problema era a superlotação da hospedaria. Muitos retirantes barrados na
“Getúlio Vargas, arrancharam-se debaixo dos cajueiros existentes nas proximidades e ali
muitas delas estão há mais de um mês, esperando, esperando...”. O sr. Manoel Nogueira da
Silva (natural de Pedra Branca), por exemplo, estava “morando debaixo de um cajueiro há
mais de um mês”, com toda a família (22 pessoas, sendo 6 crianças), esperando passagens
para a Amazônia (O Povo, 13 de outubro de 1951). Assim, o local que foi criado para abrigar
provisoriamente e com todo o conforto os sujeitos que desejassem migrar para outras
paragens não cumpria seu papel e os flagelados permaneciam dias e meses esperando alguma
definição.
A questão da superlotação e a existência de flagelados nos arredores da hospedaria,
vivendo sob os galhos dos cajueiros, persistiram no ano de 1952. Homens, mulheres e
crianças viviam no maior desconforto, ao relento e sem higiene (JUCÁ, 2003). O repórter do
jornal O Povo contou 78 pessoas, que na ausência de comida ou trabalho, mendigavam pela
cidade. A maioria vinha das localidades da zona norte, tais como, Viçosa do Ceará, Tianguá e
Ubajara. Augusto Mendes Vieira, por exemplo, era natural de Tianguá e aguardava passagens
para o território do Acre. Antes de chegar à Fortaleza e pedir abrigo na hospedaria, foi a
Canindé pagar uma promessa e pedir proteção a São Francisco, pois considerava a viagem
para a região norte longa e perigosa (O Povo, 29 de julho de 1952).
O problema dos flagelados abrigados ao relento nas imediações da hospedaria foi
amenizado com a doação de barracas militares, pelo Exército. A instalação das mesmas foi
realizada pelos próprios sertanejos, que sob uma “disciplina militar” levantaram 12 barracas,
que alojaram grupos familiares. A instalação dessas barracas tinha o propósito apenas de
amenizar a situação dos inúmeros sujeitos, que aguardavam uma passagem para outras
regiões. Jucá salienta que, em 1953, 320 pessoas “alojavam-se nas árvores por falta de vagas
no prédio central” (JUCÀ, 2003:90).
Mesmo com a chegada das primeiras chuvas, em abril de 1953, “caminhões de
retirantes continuam a chegar do interior”, desejando partir para a região norte. As autoridades
governamentais e a imprensa almejavam que, com a chuva, cessasse o movimento migratório
para Fortaleza, diminuindo assim a superlotação na hospedaria. (Unitário, 24 de abril de
45

1953). Mas essas primeiras chuvas pioraram a situação sanitária dos flagelados, tendo um
surto de gripe entre as famílias desabrigadas. Calculava-se que morria uma criança por dia,
vítima de diarreia, vômitos e outras enfermidades.
Problemas relacionados à fome, doenças, superlotação e precariedade sanitária
potencializaram-se em 19589, ano de grande estiagem. A Hospedaria reabriu suas portas em
março aos emigrantes, com cerca de 200 pessoas solicitando auxílio. Menos de um mês
depois, a hospedaria já abrigava 2000 mil. Além da grande quantidade de pessoas, que
superlotavam as dependências da hospedaria e seu entorno, havia ainda problemas
relacionados ao abastecimento e a falta de verbas.
O jornal O Povo, em 29 de abril de 1958, anunciava que “estão recolhidas à
Hospedaria 3.500 pessoas e mais de 2.500 acampadas nas imediações”. A situação era
“impressionante”, pois, além das inúmeras pessoas ocupando os espaços existentes na
hospedaria, havia inúmeras outras acampadas nas proximidades, na mais “deplorável
promiscuidade”. Muitos se abrigaram na igreja, em construção próxima ao acampamento (O
Povo, em 29 de abril de 1958). A superlotação, que piorou ao longo dos meses, instigou os
flagelados a ameaçarem as autoridades governamentais com uma nova “marcha da fome”,
caso os problemas não fossem resolvidos.
Essa “marcha da fome”, aparentemente permaneceu apenas como ameaça, mas outros
conflitos ocorreram devido aos problemas existentes na hospedaria. No início de maio de
1958, inúmeros “flagelados revoltados expulsaram da Hospedaria Getúlio Vargas” Waldemar
Nepomuceno, diretor da hospedaria, promovendo um “quebra-quebra” – quebraram vidraças
de janelas, a cozinha e o refeitório. Alegavam que o mesmo os tratava de maneira brutal,
negando-lhes abrigo ou alimentos. De acordo com a imprensa, o respectivo diretor
desobedeceu inclusive as determinações do governador Paulo Sarasate, que havia sugeriu ao
diretor que fossem alistados mais algumas pessoas, das muitas que se encontravam
desabrigadas.
Após a saída do diretor Nepomuceno, a imprensa afirmava que a hospedaria voltou “à
completa normalidade”, sendo instalada uma cozinha de emergência e 800 barracas doadas
pelo exército (Unitário, 06 de maio de 1958). Podemos questionar, contudo, o que a imprensa
considerava “normal”, já que as condições de vida dos abrigados eram as piores possíveis:
uma média de três crianças morria por dia, chegando a 420 mortes entre janeiro e junho. O

9
Acreditava-se que com o fim da seca, em 1953, a hospedaria havia encerrado suas atividades. Mas ao analisar o
livro de Gisafran Jucá, percebemos que em 1954 flagelados abrigados na hospedaria foram usados pela polícia
para derrubar casebres, construídos irregularmente no bairro Coqueirinho.
45

jornal O Semanário, contudo, alertava que “estão morrendo 10 crianças, por dia, de fome”.
Além disso, afirmava que

A “Hospedaria Getúlio Vargas”, do INIC, não passa de uma miserável pocilga,


com oito galpões, onde homens, mulheres e crianças são armazenados como gado.
(...) Não existe uma creche, uma enfermaria. Agora a tragédia do flagelado atinge
ao inacreditável. Lá estão 8.000 retirantes, todos passando fome, rotos e devorados
por nuvens de moscas. (O Semanário, de 29 de maio a 5 de junho de 1958)

As críticas proferidas pelo jornal O Semanário, legitimada e endossada por outros


jornais, evidenciam a terrível situação dos flagelados, que, além de passarem bastante fome,
não tinha assistência médica, já que não tinha uma enfermaria que comportasse tantas pessoas
enfermas. Essa afirmativa é endossada também pelo médico João Alberto Gurgel, que em
1958 trabalhou junto aos flagelados na hospedaria: “imaginem o seguinte: homens, mulheres,
sem sanitários, diarreia, uma coisa. Era um verdadeiro inferno para se entrar na hospedaria,
com a quantidade de moscas que havia lá dentro” (Entrevista João Alberto Gurgel, CPDOC,
1981).
Além das doenças, outro problema enfrentado na hospedaria estava relacionado aos
saques realizados pelos flagelados. Apesar de não encontrarmos tantas notícias relacionadas a
isso, algumas já analisadas proporcionam um amplo debate sobre as motivações que levavam
os sertanejos a saquearem o comércio. O jornal Tribuna do Ceará, relatou que “levas de
flagelados” invadiram os mercados e saquearam as feiras livres de Fortaleza, “devido à
carência de recursos na hospedaria, onde se encontram entregues à própria sorte”, esperando o
embarque para o “Extremo Norte, para os cafezais do Paraná ou para Brasilia” (Tribuna do
Ceará, 22 de abril de 1958). Dessa forma, a fome era a grande incentivadora desses sujeitos,
que abandonados pelo poder público viam-se diante de uma situação alarmante. Assim,
entender-se que saquear devido à fome era justificável.
Ao iniciar o ano de 1959, novas esperanças relacionadas a um “bom inverno”
ressurgiram. Em janeiro, 78 famílias solicitaram passagem para retornarem para suas cidades
de origem. Mas somente aqueles que tivessem com “a vacinação antivariólica, antitífica a
antiamarílica” atualizadas poderiam regressar, para que essas doenças – que se disseminaram
na hospedaria – não se proliferassem pelo interior do Ceará. Nem todos, porém, acreditavam
nesse “bom inverno”, já que diversas pessoas (240) continuavam solicitando passagens para
outras regiões, mesmo com o início da quadra chuvosa. (O Povo, 28 de janeiro de 1959) As
portas da hospedaria fecharam-se por completo em 1960, reabrindo novamente apenas
45

durante a seca de 1970. Vale ressaltar, contudo, que desde a sua inauguração, em 1943, a
hospedaria tornou-se uma referência para os retirantes durante os períodos de estiagem.

Referências Bibliográficas
ARAÚJO, Maria Neyara de Oliveira. A miséria e os dias: história social da mendicância no
Ceará. São Paulo: Hucitec, 2000.
JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. Verso e reverso do perfil urbano de Fortaleza (1945-1960).
São Paulo:Annablume, 2003.
MORALES, Lúcia Arrais. Vai e vem, vira e volta: as rotas dos soldados da borracha. São
Paulo: Annalume; Fortaleza: Secult, 2002.
NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: saques e outras ações de massas no
Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará. Fortaleza. CE: Secretaria de Cultura e Desporto,
2000.
SECRETO, Maria Verônica. Fúria Epistolar: as Cartas das Mulheres dos Soldados da
Borracha – uma interpretação sobre o significado da assistência às famílias. Revista Esboços,
nº 14, UFSC, 2005.
. A ocupação dos “espaços vazios” no governo Vargas: do
Discurso do rio Amazonas à saga dos soldados da borracha. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, 2007.
SESP/FSESP: 1942 – Evolução Histórica – 1991/Nilo Chaves de Brito Bastos – 2º ed.
Brasilia: Fundação Nacional de Saúde, 1996.
45

DE JORGE AMADO A NELSON PEREIRA DOS SANTOS:


IDENTIDADE NACIONAL E MISCIGENAÇÃO NA LITERATURA E NO CINEMA
BRASILEIRO (1960-1980).

Romario de Moura Rocha1


Fábio Leonardo Castelo Branco Brito2

Resumo: Em meados dos anos 1970, muitos filmes nacionais, entre eles Tenda dos Milagres
(1977), do cineasta Nelson Pereira dos Santos, foram inspirados/produzidos a partir da
adaptação de obras literárias tidas como delineadoras da identidade nacional, sobretudo as que
trazem em seu conteúdo categorias como o povo e o negro, e principalmente a noção de
miscigenação. Por esse viés, este artigo tem por objetivo traçar uma análise sobre como a obra
do romancista Jorge Amado influenciou a produção político-cultural do cinema de Santos, no
que concerne a referência à identidade nacional e a miscigenação. Para tanto utilizaremos a
análise das fontes-bases, a saber, o romance Tenda dos Milagres (1969) e o filme homônimo,
além de entrevistas e fontes memorialísticas de ambos os sujeitos. Os principais referenciais
teóricos foram: Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior, Douglas Rodrigues de
Sousa, Carolina Fernandes Calixto.
Palavras-chave: Miscigenação. Cinema nacional. Literatura.

Introdução
O escritor baiano, Jorge Amado, que teve uma longa carreira literária de destaque
nacional e internacional durante o século XX, se constituiu um referencial a muitos setores da
produção artística nacional de seu período. É dentro deste âmbito, que muitas de suas obras,
entre elas o romance intitulado Tenda dos Milagres, publicado em 1969, – um dos objetos da
pesquisa – ganharam espaço dentro do cinema nacional.
No ano de 1977, o cineasta Nelson Pereira dos Santos levava às telas do cinema seu
filme Tenda dos Milagres, um homônimo do romance de Amado. Em muitas de suas
declarações o cineasta destacava sua ligação com o romancista, sobretudo na formação de se
pensamento intelectual. Essa relação está diretamente vinculada com a definição de Brasil, ou
nacionalidade, assumida discursivamente por Jorge Amado e sistematizada em seu romance
nos termos de um país mestiço. Partindo dessa perspectiva nos questionamos: em que medida
a produção político cultural do cinema de Santos é de influência amadiana?

1
Graduando do curso de Licenciatura Plena em História – UFPI/CSHNB. Pesquisador de Iniciação Científica
Voluntária (ICV/CNPq) no projeto “‘Uma câmera na mão e o Brasil no olho’: cinema, experimentalismos e
intertextualidades no Brasil dos anos 1960 a 1990”.
2
Doutor em História Social pela Universidade Federal do Ceará. Professor na Universidade Federal do Piauí,
atuando no curso de História do Campus Senador Helvídio Nunes de Barros e no programa de Pós-Graduação
em História do Brasil. Co-líder do GT “História, Cultura e Subjetividade” (DGP/CNPq).
45

Em meados dos anos 1970, muitos filmes nacionais, entre eles Tenda dos Milagres
(1977), foram inspirados/produzidos a partir da adaptação de obras literárias tidas como
delineadoras da identidade nacional, sobretudo as que trazem em seu conteúdo categorias
como o povo e o negro, e principalmente a noção de miscigenação. Neste contexto,
pretendemos percorrer pelo recorte espaço-temporal entre os anos de 1960 a 1980 que passa
pela publicação do romance de Jorge Amado em 1969 e do lançamento do filme de Nelson
Pereira dos Santos em 1977, como mecanismo de perceber a circulação e recepção da obra do
romancista enquanto referencial de uma imagem de Brasil, partindo ainda para a comparação
entre os imaginários desses artistas. As principais fontes utilizadas serão o próprio romance e
a adaptação par o cinema, além de relatos memorialísticos, biografias e jornais.

“O artista da mestiçagem”3: a (des)construção do mito Jorge Amado/Brasil

8 de maio - José Saramago, Cadernos de Lanzarote


Jorge Amado escrevendo do Brasil: 'Aqui o sufoco é grande, problemas imensos,
atraso político inacreditável, a vida do povo dá pena, um horror'. Diz-me que até ao
fim do mês estará na Bahia, que passará por Lisboa antes de seguir para Paris.
Esta vida de Jorge e de Zélia parece do mais fácil e ameno, uma temporada aqui,
uma temporada ali, viagens pelo meio, em toda a parte amigos à espera, prêmios,
aplausos, admiradores - que mais podem esses dois desejar? Desejam um Brasil
feliz e não o têm. [...] Em Paris, em Roma, em Madrid, em Londres, no fim do
mundo, Jorge Amado recordará o Brasil e, no seu coração, em vez daquela lenitiva
mágoa dos ingênuos, que é a saudade, sentirá a dor terrível de perguntar-se: “Que
posso eu fazer pela minha terra?” – e encontrará como resposta: “Nada”. Porque a
pátria, Brasil, Portugal, qualquer, é só de alguns, nunca de todos, e os povos
servem os donos dela crendo que a servem a ela. (AMADO & SARAMAGO,
2017:17)

JORGE AMADO. Um mito erguido durante os intensos anos do século XX. Dele se
esvaziou o que é próprio do sujeito histórico, suas contradições e imprevisões do tempo, para
dar formato a um ícone nacional. Elevado enquanto intérprete do Brasil, ou mesmo sua
personificação, quanto mais o próprio criador da brasilidade mestiça, e sistematicamente as
categorias que incidiram como símbolos da identidade nacional. De Gabriela, o brasileiro e o
eleitor estrangeiro descobriram a cor e o cheiro da típica mulher mestiça deste país (“a cor de
cravo e o cheiro de canela”); do herói Pedro Archanjo, “pardo, pobre e paisano”, “Ojuobá”,
“os olhos de Xangô”, constatou-se a fibra do bom brasileiro mestiço, contrário aos
preconceitos, principalmente o racial.

3
Expressão utilizada pela historiadora e antropóloga Lilia Mortiz Schwarcz ao se referir a Jorge Amado em seu
ensaio contido no Caderno de Leituras publicado pela Companhia das Letras. Ver em: GOLDSTEIN, Ilanna
Seltzer; (Org.). O universo de Jorge Amado: orientações para o trabalho em sala de aula. 1 Ed. São Pauo:
Companhia das Letras, V. 2., 2009. (Caderno de Leituras, Coleção Jorge Amado). p.34
46

De fato, debruçar-se sobre a obra de Jorge Amado é estar diante de um dos principais
romancistas da literatura brasileira do século passado, com uma trajetória intelectual notável
para além dos quadros nacionais, e que influenciou muitos de seus contemporâneos. Nosso
esforço nessa seção é perceber como essa associação a Amado foi construída, de modo a
identificar como a mesma norteou a formulação de um referencial.
A epígrafe destacada acima, retirada do recente livro publicado pela editora
Companhia das Letras, intitulado de Com o mar por meio: uma amizade em cartas, que reúne
as várias correspondências trocadas entre o escritor português José Saramago e Jorge Amado,
– durante os anos de 1992 e 1998 – além de demonstrar o caráter popular dos autores e um
exercício de adentrar ao íntimo para a sedimentação da memória, traz um aspecto importante
para o que propomos analisar. O fragmento destacado demonstra algo muito recorrente nas
referências que artistas e intelectuais, como Saramago, fizeram a Jorge Amado: a associação
deste com o Brasil. A expressão “no fim do mundo, Jorge Amado recordará o Brasil”, denota
a ligação que o escritor português associa a Amado em relação a seu país, e que, sobretudo
este insistiu sempre em lutar por essa nação.
Tal contexto é diretamente tributário da memória consolidada entorno de Jorge Amado
como um dos principais intérpretes do Brasil, ou seja, como aquele que melhor soube
investigar nossa realidade, semelhante ora a um antropólogo, ora a um historiador, e transpô-
la às páginas de seus romances. Isto está ligado ao próprio processo histórico de inserção do
romancista nos âmbitos das artes e da intelectualidade nacional, como também as categorias
ou tipos narrativos da maioria de seus escritos que se ocuparam do tema Brasil, seja na
política ou na cultura, na sedimentação das noções de povo, cultura negra, miscigenação,
cultura mestiça, sincretismo, entre outras, que como aponta Goldstein “Seja como militante
político no início da carreira, seja como romancista que enaltecia os mestiços, suas festas e
seus sabores, [...] Jorge Amado sempre discutiu questões de âmbito nacional.” (GOLDSTEIN,
2003:38)
No entanto é imprescindível desnaturalizar o mito e colocar em relevo os aspectos de
sua configuração. Como estabelece o estudo de Carolina Calixto – muito importante no
sentido de investigar como se consolidou uma memória sobre o romancista enquanto
intérprete do Brasil – “externar um modelo de nação através da literatura nem sempre foi uma
preocupação que esteve claramente presentes na elaboração de suas narrativas”, (CALIXTO,
2011:154) essa associação foi elaborada pelo próprio artista e por diferentes sujeitos de seu
tempo, e em contextos específicos, como pretendemos analisar.
46

Partimos da perspectiva de que o próprio romancista estabelece um exercício de


escrita ou discurso sobre si, que o associa como um literato que se ocupou da realidade de seu
país, reordenando o sentido de sua obra a um telos que sempre teve por intuito, quase que
linear, de descobrir o Brasil; além dos próprios intelectuais e artistas que sedimentaram e
absorveram essa visão.
Nas mais variadas análises da vida e obra de Jorge Amado ficam perceptíveis essa
recorrência, tanto por parte do direcionamento de artistas e intelectuais ao escritor, através de
revistas e cadernos de leitura, como também o mesmo é construtor dessa imagem de si. Uma
das principais obras, que tem como marco o sentido atrelado entre os fatos marcantes da
atuação do romancista, em sua trajetória intelectual e política, como também o sentido de suas
obras, é a biografia Conversando com Jorge Amado, organizada por Alice Raillard, e
publicada no Brasil em 1992, como resultado de um conjunto de entrevistas feitas com o
escritor baiano. Destes discursos se depreende que, como relatos de memória, são narrativas a
posteriori que se fixaram sobre recortes específicos da vida do escritor, e de determinados
romances de cunho político e cultural, dando molde ao intelectual enquanto referência para se
pensar o Brasil, uma vez que este é localizado como matéria prima da obra do romancista.
O momento de inserção de Jorge Amado enquanto escritor se dá durante os
desdobramentos conjunturais dos anos de 1930, com a sua primeira publicação do livro O
País do Carnaval em 1931. Como aponta Luís Bueno, sobre o cenário vivido naquela época,
aqueles escritores que despontavam “São rapazes que não conseguem manter a postura da
geração anterior, nutrida no ceticismo anatoliano e procurando fora do Brasil suas referências,
mas que, por outro lado, não encontraram um chão ideológico que lhes pudesse servir de
apoio.” (BUENO, 2001:03) Ou seja, vivia-se os intuitos da constituição de um debate acerca
do que formaria, entre as incertezas, a matriz constitutiva da identidade nacional.
O exemplo mais acabado nesse sentido foi o chamado “romance de 30”, que Jorge
Amado participou, e considerou como “[...] portador de uma literatura que vem tratar dos
problemas do povo e de uma escrita baseada na língua falada no Brasil.” (AMADO apud
RAILLARD, 1992:60). Isto denota a visão do próprio escritor sobre o momento de sua
formação enquanto literato, e que corresponderia ao sentido pelo qual percorreu sua obra. O
que nos leva a constatar os modos de apropriação do que se traduz como os pontos marcos e
formativos do intelectual preocupado com as questões nacionais.
O resgate a essa associação do escritor com a definição da identidade nacional está
atrelado, segundo aponta Calixto, com o momento de maior popularização, em termos de
público leitor, das obras do escritor, sobretudo com a publicação de Gabriela, cravo e canela
46

em 1958, e um intenso fluxo de identificação do romancista como definidor da identidade


brasileira mestiça. (CALIXTO, 2011:97) Ou seja, é nos idos dos anos 1960 – momento em
que cenário cultural e político se movimentava em direção aos componentes do nacionalismo
– que Jorge Amado se projeta enquanto referência, tanto pelo aprofundamento dos temas em
voga neste período, como também pelo sentido lançado sobre sua obra.
O marco do golpe militar de 1964 acentuou ainda mais a política de Estado voltada
para a cultura, principalmente na difusão de um ideal de nacionalidade que unificasse e
homogeneizasse os conflitos sociais existentes, a exemplo da criação em 1966 do CFC. Deste
modo, como aponta Calixto (2011), o incentivo, ou apropriação, por parte do governo, de
temas como a “democracia racial” foi amplamente veiculado, o que explicaria, por exemplo, a
não censura dos livros de Jorge Amado, como Tenda dos Milagres (1969) – que traz em seu
enredo o tema da superação do racismo pela condição mestiça do povo brasileiro – “apesar de
[muitos de seus livros] apresentarem um discurso que na época claramente poderia ser
enquadrado como ‘subversivo’”, além de não se atentarem para o fato das profundas
contradições e desigualdades vividas no Brasil, apontadas por Amado naquele romance.
(CALIXTO, 2011:149)
Tais aspectos demonstram como determinados temas são validados, em um dado
contexto histórico, na construção de uma identidade coletiva. O que nos faz perceber de que
maneira essa imagem de Jorge Amado, enquanto divulgador e intérprete da noção de
identidade nacional se difunde ainda mais neste contexto. A publicação de Tenta dos Milagres
intensificou ainda mais tal percepção, uma vez que o romance divulgou, para além do Brasil,
a imagem como este país era identificado por aquele romancista e intelectual já consagrado.
Essa afirmativa, do valor de circulação e divulgação das ideias de Amado, pode ser
embasada pelo fato de que, semelhante à maioria de suas obras, Tenda dos Milagres foi um
livro amplamente traduzido para outras línguas. Na publicação da edição norte-americana em
1971, uma seção do jornal Folha de S. Paulo, daquele ano, destacava a seguinte consideração
do romancista: “O escritor pode ser útil ao seu povo se conseguir interpretar sua voz e refletir
sua alma. Não compreendo um autor latino-americano que possa fugir da realidade de sua
gente. O grande escritor não depende de tema ou posição política, mas de grandeza estilística
e literária.” (Folha de S. Paulo. 10.09.1971) Jorge Amado então fixa, tanto nacionalmente
como internacionalmente, seu papel enquanto escritor que traduz em sua literatura a “voz” e a
“alma” do Brasil.
Não se pretende esvaziar a importância da atuação do romancista e o caráter que sua
obra assumiu nos contextos históricos em que fora produzida. Temos por intuito tomar os
46

discursos e as intenções em promover a imagem de Amado como referência para se pensar o


Brasil, e simultaneamente os elementos contidos na obra que fomentam essa elaboração, uma
vez que as escolhas narrativas do escritor, e os diálogos políticos-culturais assumidos pelo
mesmo, influenciou outros segmentos artísticos, em específico o cinema.

“Jorge Amado foi o grande professor do Brasil”:4 a literatura amadiana no cinema


Jorge Amado é considerado, por vários autores e por seus contemporâneos, como um
dos romancistas do século XX que teve sua obra mais adaptada pra diversos segmentos
artísticos. Seus romances foram às telas do cinema, ao teatro, a TV, e outros campos
artísticos, o que explicaria a popularidade que o autor assumiu com a veiculação de seus
personagens por outras mídias. Mas entre estes ambientes, é o cinema que se destaca,
sobretudo porque o escritor manteve uma relação muito próxima aos nomes mais consagrados
tanto da cinematografia nacional, como também internacional, de modo que o mesmo
considera: “[...] acho que o cinema tem uma influência muito grande sobre minha literatura.”
(AMADO apud RAILLARD, 1992:282)
A participação do romancista nos círculos cinematográficos se torna presente desde o
início de sua carreira. Em fins da década de 30, por exemplo, o mesmo afirma ter elaborado
nesse período “diálogos e cenários para chachadas”. (AMADO apud RAILLARD, 1992:119)
Mas sua relação com esse campo das artes passa tanto pela criação de uma companhia
cinematográfica, como também chega a atuar em um filme, além ter sido sempre aclamado
por muitos cineastas. Em 1962 Amado “Cria a Proa Filmes, companhia de cinema cujo
primeiro e único trabalho é a adaptação de Seara Vermelha.” Já em 1968 o cineasta Roman
Polanski “visita Jorge Amado para agradecer ‘a alegria que seus livros me proporcionaram na
juventude.’” Como ator, em 1977, “Interpreta um dos apóstolos de Cristo na cena da ‘Última
Ceia’ do filme A Idade da Terra, de Glauber Rocha.” ( FRANCESCHI, 1997:18-21)
Mas será o interesse relacionado em adaptar muitas de suas obras que marcou a teia de
relações que o mesmo estabeleceu com o cinema nacional. Um dos principais cineastas com
quem Amado constituiu profundas ligações foi o paulista Nelson Pereira dos Santos, este
responsável por adaptar dois de seus romances: em 1977 levava às telas do cinema Tenda dos
Milagres, e em 1987 Jubiabá; ambos recorrendo aos elementos vinculados às aspirações da

4
Declaração feita por Nelson Pereira dos Santos em 1987; ver em notas da autora. SANTOS, Nelson Pereira
dos. Apud RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Trad. Annie Dymetman. São Paulo: Record,
1992. p. 122
46

identidade nacional, e a realidade brasileira, no tocante as questões envolvendo a noção de


miscigenação.
Principalmente a partir da década de 1960, quando “seus escritos passarão a tratar com
mais ênfase da questão racial e a defender o respeito à diferença étnica e as práticas culturais
contrárias à cultura branca, ocidental e cristã” (DUARTE apud FRANCESCHI, 1997:94); é
que Jorge Amado se projeta enquanto referência para se pensar a matriz constitutiva de um
modelo de nação que se diferencia dos outros países e identifica a sua face original: o país
mestiço por excelência. Partindo deste contexto é que os cineastas, especificamente Nelson
Pereira dos Santos, tomaram mais tarde essa identificação do escritor – enquanto detentor de
uma obra capaz de dar respostas às questões da cinematografia brasileira, voltadas para o
sentido da originalidade e da realidade social do Brasil – para pensar suas produções.
As condições de produção do cinema brasileiro, nos princípios dos anos de 1960
apesentava, segundo Silva (2015), uma intensa discussão entorno dos rumos que o cinema
nacional deveria assumir. É o período em que esse campo artístico propunha, a partir de
alguns nomes, os termos de um “cinema sociólogo”. (PAIVA apud SILVA, 2015:308) Para
este historiador, tais fatos tem suas origens em debates anteriores a esse período, por exemplo,
no ano de 1953

Nelson Pereira dos Santos apresentaria a tese de que o público brasileiro ofereceria
“apoio irrestrito às obras do nosso cinema porque nele esperava o reflexo de sua
vida”. Portanto, para o cineasta: “tornar-se-á fator decisivo para a aceitação
pública de nossos filmes [...] um conteúdo de características nacionais’.” (SILVA,
2015:304)

Tais questões envolvidas no delineamento do que seria o papel do cineasta, e a forma


como as películas articulariam a exibição das “características nacionais”, fez parte do aspecto
formativo destes cineastas, o que levaria os mesmos a estarem sempre retornando ao sentido
desse entendimento do Brasil. Ainda em referência àqueles anos, Nelson Pereira dos Santos
declara em 1987 algumas considerações que coloca Jorge Amado como uma referência para
se pensar o país:

Para mim, ainda muito jovem, ‘Jorge Amado foi o grande professor do Brasil’; ele
nos ensinou a ver. E na prática, nas grandes campanhas culturais, a realização do
congresso para o cinema, ele sempre estava na frente – como ele estivera desde o
começo, através da sua presença literária. Eu o conheci em São Paulo, quando ele
era deputado e um dos líderes da esquerda no setor cultural. Tornei a encontra-lo
depois no Rio. Quando Rio 40 Graus foi proibido – ele era acusado de dar uma
imagem negativa do Brasil, e portanto de ser subversivo! – foi novamente Jorge
46

Amado que encabeçou um movimento a meu favor. Ele escreveu um belo artigo.
(SANTOS apud RAILLARD, 1992:122)

A indicação que Santos faz entre a sua juventude, colocando Jorge Amado como “o
grande professor do Brasil” e aquele que “nos ensinou ver”, ressalta tanto o aspecto formativo
de sua maneira de encarar a sua noção de Brasil, como também a do ciclo dos demais
cineastas. Ou seja, suas relações com o romancista tem seu cerne naquilo que ele representa
enquanto referencial, uma vez que Santos o destaca como alguém sempre presente nos
debates cinematográficos, desde sua presença física como também “sua presença literária”.
Isso nos indica o espaço que Amado, tanto como artista e intelectual, e o conjunto de sua
obra, seus romances, assume por aqueles que o considera intérprete do Brasil.
Os pontos de contato entre os dois artistas começaram desde muito cedo, na década de
1950, tanto que Jorge Amado afirma que na época em que conheceu Santos, este era “quase
uma criança”. (AMADO apud RAILLARD, 1992:111) Ambos fixam como o início de suas
relações o marco do lançamento do filme Rio, 40 Graus no ano de 1955, que representou o
momento da projeção de Santos no cinema nacional. A política cultural lançada por aquele
filme “gerou uma grande polêmica entorno da representação da realidade brasileira”, ao
projetar “em imagem cinematográfica uma capital federal distante daquela dos cartões-
postais”. (SILVA, 2015:304) É nesse interim que o filme foi censurado, e simultaneamente
desembocou um movimento de liberação da película, do qual Amado participa ativamente.
Além desses fatos de ligação dos artistas, na própria composição temática e o arranjo
do filme, Santos considera que “é flagrante a apropriação dos personagens – os meninos
pobres – dos primeiros livros de Jorge.” (SANTOS apud FRANCESCHI, 1997:30) Neste
aspecto é importante destacar o recente estudo, na área da literatura, do professor Douglas
Rodrigues de Sousa (2017), intitulado de Tenda dos Milagres – romance, roteiro e filme:
recriação e presença, em que o autor analisa a relação semântica entre a obra do escritor
Jorge Amado e do cineasta Nelson Pereira dos Santos, enfatizando que desde as primeiras
produções de Santos há um profundo perfil de ligação entre o segundo artista em relação ao
primeiro, a partir da escolha de determinados temas esboçados pelo romancista.
O que de fato assinala a influência mais direta dos escritos de Jorge Amado – tanto na
composição da película, bem como a fonte de conteúdo político-cultural – na trajetória
carreirista de Nelson Pereira dos Santos é o filme homônimo, lançado em 1977 pela
companhia cinematográfica Regina Filmes, a partir da adaptação do romance Tenda dos
Milagres de Amado. Inclusive, um fato a se destacar é que o próprio romancista participa
46

ativamente do processo de adaptação, enquanto editor do roteiro da película. (SOUSA,


2017:111)
Quando da movimentação causada pelo lançamento do filme, Jorge Amado deu a
seguinte declaração no dia 15 de novembro de 1977: “O filme Tenda dos Milagres é uma obra
de Nelson Pereira dos Santos, pensado, criado e concebido por ele. Mas não deixa de ser meu.
Afinal, no sangue de Nelson que corre ali dentro há um pouco de meu sangue.” (AMADO
apud SOUSA, 2017:122) A concepção que o artista estabelece é clara no sentido de que o
filme enquanto outro produto cultural assume aspectos próprios, mas simultaneamente traz a
carga de ideias, o “sangue”, do romancista. Isto corrobora com o que anos mais tarde Santos
comenta sobre a produção do filme que segundo o mesmo “foi o filme que eu queria o mais
fiel a sua obra. [..] era uma tarefa difícil, quase impossível.” (SANTOS apud FRANCESCHI,
1997:30)
Para além do quadro ficcional de ambas as obras – que não pode ser reduzida nas
análises históricas – outras considerações feitas pelos artistas tanto no momento histórico da
circulação da película, como aposteriori, destacam o sentido permanente do que seria o
espelho da nação nas artes. Tomar o conjunto simbólico, que compõe o quadro do romance
Tenda dos Milagres, e transpor ao cinema, enquanto veículo de maior circulação de ideias,
levando ainda em consideração o contexto em que estas eram veiculadas, traduz o claro
sentido em associar a estes artistas o papel de divulgadores, e ao mesmo tempo,
investigadores da realidade. Quando determinado setor do cinema concebe a idéia deste como
uma ferramenta pautada na e para a realidade, os referenciais estão claramente associados a
esta concepção.

O nacionalismo como projeto, entre a literatura e o cinema


Em 1977, o cantor baiano Gilberto Gil, lançava a música Babá Alapalá ressaltando
valores ancestrais em clara associação ao que comporia raízes indenitárias, sobretudo o
elemento africano, destacando, por exemplo, matrizes da religiosidade. Não por acaso,
naquele mesmo ano, a trila sonora de abertura do filme Tenda dos Milagres (1977), de Nelson
Pereira dos Santos, utilizava a convergência da música com imagens de sujeitos históricos
negros, e algumas indumentárias religiosas do Candomblé, que fazem parte do referencial
narrativo do romance Tenda dos Milagres (1969) de Jorge Amado, compondo, desde o início,
um quadro de identificação entre a obra cinematográfica e a literária, como um “espelho” da
nação.
46

No transcurso dos anos de 1960 a 1980 as propostas do cinema nacional


escamoteavam entre os complexos da realidade brasileira, os elementos, ou mesmo um
quadro definidor, para levar às telas do cinema, o “Brasil.” Entre as muitas propostas,
convergem nesse tempo, às aspirações de procurar na multiplicidade do país “‘um único
desejo’” do que seria categoricamente o nacional e o popular, como uma forma de inserir os
cineastas no rol daqueles que discutiam os rumos a serem seguidos pela nação. O debate
acerca da etnicidade, como esse fator determinante, ganhou projeção entre muitos cineastas
que passaram a investir em películas que abordassem aspectos da cultura popular, como a
religião. (SANTIAOG Jr, 2009:34, 37) O modelo mais propício encontrado nesse sentido, por
muitos cineastas, foi aquele relacionado com a definição de democracia racial.
A imagem do Brasil, modelada a partir da estória da figura histórica e ficcional5 de
seu personagem Pedro Archanjo, delineada pelo romance Tenda dos Milagres de Jorge
Amado, coloca em relevo o que seria um tipo de herói baiano, e de resto nacional, que atuou
junto ao povo em defesa da miscigenação racial brasileira – tendo a Bahia como cerne e
modelo – tomada como condição do Brasil, e solução do problema do racismo. Mesclando
tempos históricos, de fatos a ficções, e com um estilo narrativo que impressionou a crítica
literária, Amado trouxe para a literatura brasileira de seu tempo, um complexo de questões
que invadiam tanto os setores políticos, como culturais (os mais diversos), que buscavam
nomear a “nação brasileira”.
O tema da “democracia racial brasileira”, abordado no enredo do romance, toma como
norte o retorno a uma espécie de historicização do debate entorno da noção das raças, e o
encontro do que seriam as três matrizes constitutivas do Brasil: o português, o africano e o
índio; mas dando ênfase ao elemento afro-brasileiro. É partindo disto, que Amado ambienta
um dos tempos dos acontecimentos no romance, dentro do espaço da instituição da Faculdade
de Medicina da Bahia, entre os fins do século XIX e inicios do XX (principalmente no
período do Estado Novo), onde vigorava um intenso conflito sobre o debate racial, entre os
defensores do racismo científico, em contraste com os que defendiam a positivação da
miscigenação racial brasileira.
São amplos os aspectos históricos abordados pelo autor, o que mostra o esforço em
concentrar, no romance, questões de cunho da formação social. O debate sobre a noção de
“raça”, como nos indica Schwarcz (1993), tem seus idos no século XIX com a importação,

5
Jorge Amado compõe o tipo narrativo entorno de seu personagem principal partindo das referências de alguns
sujeitos históricos, tomando alguns fatos como plano da narrativa. Ver mais sobre isso em: GOLDESTEIN, Ilana
Seltzer. O Brasil best seller de Jorge Amado: literatura e identidade. São Paulo: Editora Senac, 2003. p. 175
46

pelas instituições científicas nacionais, das ideias evolucionistas gestadas na Europa e


adaptadas as especificidades nacionais, que naquele momento, procuravam compor um
quadro de identidade do Estado-Nação, para tanto condenando a miscigenação. Um exemplo
nesse sentido foi os esforços do IHGB em promover o que constituiria a identidade, pensando
em como tratar as três raças que formaram o Brasil, positivando esse caráter; mas que logo
não seria aceito. (MARTIUS, 1845) Da negação à positivação, temos com Gilberto Freyre, na
década de 1930, um processo de retomada da miscigenação das três raças, como aspecto
positivo e definidor, ao contrário do que tivera feito, até aquele momento, muitos intelectuais,
artistas e cientistas. (VAINFAS, 2006)
Tendo dado forma, em sua literatura, ao que estas questões representaram em nossa
história, Amado influenciou sobremaneira a mentalidade de muitos, – tomando o aspecto de
“grande artista e divulgador” da miscigenação brasileira (SCHWARCZ, 2009:39), inclusive
na percepção internacional – como a de Nelson Pereira dos Santos. No período de meados da
década de 1970, e nos anos 1980, vários dos filmes foram produzidos a partir de adaptações
literárias, sobretudo as que marcavam temas voltados para as expressões da cultura popular,
como foi entendida, por exemplo, as religiões de matriz africana. É dentro deste contexto que
Santos – além de Bruno Barreto com Dona Flor e seus dois maridos – empreende a sua
primeira adaptação da literatura amadiana. (SANTIAOG Jr, 2009:28-29)
Naqueles anos, o cinema nacional vinha passando por diversas transformações de
ordem tecnologia e econômica, de modo que muitos dos cineastas ingressaram no cenário da
“indústria cultural”, através do financiamento, muitas vezes, do Estado, como é o caso do
papel assumido pela Embrafilme. (SANTIAOG Jr, 2009:25) Como já mencionamos
anteriormente, a política cultural, angariada pelo governo ditatorial, buscava incentivar as
manifestações que se coadunavam com as concepções criadas para a fundamentação dos
ideários centralizadores, o que explica a tamanha atenção aos modelos vinculados à
homogeneização cultural, a exemplo da defesa do quadro da “democracia racial”. Neste
cenário, o lançamento do filme Tenda, foi amplamente aceito pelos órgãos da censura, e
elogiado tanto pelo arranjo da película, como pela temática abordada. (CALIXTO, 2011:149-
150)
O conteúdo de ambos, do romance e do filme, destaca uma abordagem central em sua
discussão: a denúncia do racismo, e a superação pela condição, e identidade cultural, mestiça
da sociedade brasileira. Existe aparentemente uma contradição entre os artistas em relação aos
setores governamentais, que naquele momento mantinham relações de oposição; entretanto a
maneira como a política de Estado se apropriara da categoria, excluiu muitas questões abordas
46

pelos autores, o que consequentemente não deve ser compreendido como um apoio daqueles
ao regime.
A luta contra o racismo foi à categoria que preencheu a intencionalidade de boa parte
da escrita de Amado e da construção de uma imagem de sí. Por outro lado, a tomada dessa
figura por Santos, dentro das circunstancias postas em meio ao cinema nacional nos anos de
1970 – como defesa do elemento da miscigenação enquanto superação do problema entorno
das raças – via-se, naquele recorte, às nuances da contestação de suas visões, até aquele
momento divulgada e aceita por muitos setores. Em meados da década de 1970 e idos de
1980, despontava no Brasil uma significativa mudança entorno da noção de “raça”, e como
determinados grupos passaram a elaborar uma nova identidade racial, de modo que
despontavam intelectuais negros que contestaram amplamente a veiculação da ideia de
“democracia racial”, na forma como o povo e o negro eram representados pelo cinema
nacional. (SANTIAOG Jr, 2012)
Neste contexto, as críticas lançadas ao filme Tenda dos Milagres, passavam pela ideia
de mestiçamento e pelo quadro da democracia racial, como se vê nessa declaração do
sociólogo Muniz Sodré em 1977:

Ela espelha [grifo nosso] o que poderíamos chamar de doutrina do mestiçamento.


Em seus termos, a Bahia aparece como um cadinho de culturas e etnias, capaz de
fornecer um modelo, miscigenado e sensual, para a consciência brasileira. A
“civilização baiana” seria “mulata da melhor mulataria”. Posição idêntica
adotava Mário de Andrade quando, falando sobre danças dramáticas nacionais
(bumba meu boi, maracatu, coco de praia etc.), chamava a atenção para a
coreografia “já brasileira, já mestiça e própria”. (SODRÉ apud SANTIAGO,
2012:100)

Isto situa a identificação da relação do diálogo entre as propostas de Jorge Amado em


seu romance, e Nelson Pereira dos Santos com sua película, vistas pela crítica, como a criação
de um modelo que, por um lado coloca o que seria o lugar de origem, a Bahia, e por outro, um
único modelo, “miscigenado e sensual”, para a pluralidade brasileira. O conflito de
percepções, entre as novas concepções que surgiam, divergia com as ideias consolidadas, e
amplamente divulgadas, e que para aqueles artistas falavam da realidade brasileira. O que nos
faz perceber, como o conjunto de ideias, pensadas no contexto histórico específico, toma
direcionamentos diferentes com as novas configurações do tempo.
A ligação de Jorge Amado com o tema da cultura negra, principalmente com o papel
que ela assume em sua literatura, defendia o aspecto que ressaltava o sincretismo, identificado
como síntese da realidade social e cultural do Brasil. Se durante muito tempo, principalmente
47

nos princípios de 1960, a visão de Jorge Amado sobre o debate racial era aceita, inclusive
pelo movimento negro – no tocante a exaltação da cultua negra, como a importância dada ao
Candomblé em seus livros – (CALIXTO, 2011:120) a partir dos anos 1970 o confronto a esse
modelo foi inevitável. Emergia no cenário nacional a influência de ideias que incidiram na
ordem política, sobre a constituição de um movimento negro, com outras questões, e que
contestavam o pensamento sobre a “democracia racial brasileira.” 6 (PEREIRA, 2010)
A dimensão construída na narrativa do livro de Jorge Amado, e compreendida por
Nelson Pereira dos Santos como um produto cultural (dentro da ficção literária), pautado nos
elementos capazes de dar respostas às questões cinematográficas, sobre a identificação do
“Brasil”, demonstra por si só como a obra do romancista foi posta no lugar de referência. O
confronto entre as ideais dentro do debate racial, também assinala a forma como estes artistas
ocuparam um dado setor do campo artístico, compartilhando de determinados signos e
conceitos.

Considerações finais
Como é perceptível, o objeto é demasiado complexo. As temporalidades abordam
questões igualmente amplas, que compõem um cenário entorno do ideário de uma época.
Quando promovemos o debate que relaciona a literatura e o cinema – estes campos do
pensamento social, através das artes – visualizamos a maneira como os sujeitos elaboram a
forma de pensar sobre sua atuação em sociedade e quais os componentes fazem parte da
mesma. Um tipo de cinema engajado nas questões culturais e sociais, que toma a expressão da
arte literária como via de acesso, para além da diegese ficcional, de uma pretensa realidade,
demonstra como estes atores sociais são tomados enquanto representantes da identidade
coletiva de seu tempo.
O romancista Jorge Amado, percebido como artista da brasilidade, e principalmente
do lugar social alcançado por aquele, no âmbito dos meios intelectuais e culturais brasileiros,
somado ainda as categorias narrativas abordadas pelo autor, fez com que a sua projeção
enquanto um intérprete do Brasil fosse assumida por outros setores além dos círculos
literários. Nelson Pereira dos Santos recorreu, por sua vez, a essa imagem consolidada
entorno do escritor, associada ao destaque de sua obra, trazendo para o debate político e

6
Jorge Amado tinha consciência das questões lançadas pelo movimento negro, e deu algumas considerações
sobre como o mesmo entendia a atuação e o debate proposto, no entanto esta discussão será abordada em outra
oportunidade em nossos estudos.
47

cultural do cinema, um referencial para embasar a discussão das noções étnicas que ocupavam
espaço nos vários setores sociais do Brasil naquele momento, como elemento identitário.
Dado o cenário em que as noções étnicas são revistas, no despontar de novas
concepções na década de 1970, o estudo discute a importância de revelar como os
antagonismos se constituem entorno de uma mesma problemática, e de como essa fase
histórica demonstra os posicionamentos frente ao racismo e a ligação do elemento racial
enquanto definidor do nacionalismo.

Referências bibliográficas
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BUENO, Luís. Os três tempos do romance de 30. Teresa revista de literatura brasileira, n.3,
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<10/07/2018>.
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V. 2., 2009. (Caderno de Leituras, Coleção Jorge Amado)
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PEREIRA, Amilcar Araújo. “O mundo negro”: a constituição do movimento negro
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Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento
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SCHWARCZ, Lilia Mortiz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições, e questão racial
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47

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SANTIAGO JR, Francisco das Chagas Fernandes. IMAGENS DO CANDOMBLÉ E DA
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VAINFAS, Ronaldo. Casa-grande erótica: a sexualidade na obra prima de Gilberto Freyre. In:
NASCIMENTO, Francisco Alcides do; VAINFAS, Ronaldo (Org.). História e Historiografia.
Recife: Bagaço, 2006.
47

A ficção histórica de José Eduardo Agualsa:


possibilidades na compreensão da história angolana

Welligton Costa Borges1


Kércia Andressa Vitoriano Goncalves2
Fábio Leonardo Castelo Branco Brito3

Resumo: As linhas que se seguem são um esforço de análise da obra do escritor angolano
José Eduardo Agulausa tomando-a como uma possibilidade de compreensão da história de
Angola. Passando por um debate que envolve Literatura, história, memória e identidade,
tenta-se situar a produção do autor como um discurso que não é apenas inventivo, mas que
possibilita a compreensão do passado e a ele coloca questões, tal como faz a História e os
historiadores.
Palavras chave: Ficção História. Angola. José Eduardo Agualusa.

Introdução
No dueto de vozes dissonantes que falam sobre o passado, lugar comum que
didaticamente se convencionou chamar de historiografia, há sempre os revezes e as
contradições, estas que acabam sendo o forte combustível de seu motor. Já diria o outro: “[...]
a história é filha da memória” (VEYNE, 2008, p.13), mas isso só resolveu o problema que
vem a ser a missão de se fazer história por um curto intervalo de tempo. A memória, em si,
não pode ser história, gritam os histéricos do outro lado. E é nesse interim, do que pode ou
não ser considerado história, que desfilam os grandes debates da Nova História, que aqui nos
interessam não só por uma questão de mérito, do tipo que reflete sobre o que pode ser
historicizado ou não, inclusive essa questão já se esgoelaram por resolver, mas por esta outra
questão que trata de quais tipos de discursos podem ser aceitos como porta-vozes do passado,
e esta última questão é um tanto mais violenta.
Como apanágio da violência do debate podemos eleger o drama de amores e
dissidências que rodeiam a proximidade (ou distância) entre história e literatura. A discussão
é sofrida, mas necessária. E é nesse sentido que estas linhas seguem: numa discussão da
arrefecida relação, tomando, ora como pano de fundo, ora como cortina de centro, a obra de
José Eduardo Agualusa e as possibilidades oferecidas por ela na compreensão do passado e
das complexidades do presente na Angola de todas as cores. Tendo por princípio que
1
Graduando em História pela Universidade Federal do Piauí – CSHNB e aluno veiculado ao Programa de
Educação Tutorial, PET conexão de saberes: cidade, saúde e justiça.
2
Graduanda em História pela Universidade Federal do Piauí – CSHNB e aluna veiculado ao Programa de
Educação Tutorial, PET conexão de saberes: cidade, saúde e justiça.
3
Professor Doutor, ligado ao departamento de História da Universidade Federal do Piauí – CSHNB.
47

Literatura e história são formas de retratar a realidade, de registrar e dar sentido a um período,
de transparecer um clima, a modéstia ou o arrivismo de uma época. Seus fazeres são coisas
demasiado diversas, isso é verdade, são gêneros discursivos com algumas especificidades,
mas não isentos de um entrecruzar de possibilidades, sobretudo por serem discursos
produtores de sentido, construídos por sujeitos banhados de subjetividade.
Tomamos, nas linhas que se seguem, quatro dos romances do autor para procedimento
da análise e da discussão. A escolha se deve notadamente a proficuidade dos textos na
discussão que aqui propomos, não deixando de constar também o imenso leque de outras
possibilidades que os demais romances do autor podem proporcionar. Os romances escolhidos
são: O seu segundo romance, Estação das Chuvas, de 1996; o romance epistolar Nação
crioula, de 1997; e por fim, o premiado romance O Vendedor de Passados, de 2004. A análise
também tem como pilar alguns autores que ajudam a pensar melhor a questão como Maurice
Halbwachs, Paul Veyne, Sandra Jathahy Pesavento, Hayden White, Durval Muniz, entre
outros. E mesmo sem a mínima esperança de que uma divisão em categorias dê a conhecer em
sua completude o debate, ainda assim a faço, por amor as causas perdidas, colocando, tal
como fazem com as várias apresentações de Foucault, o autor aqui analisado dividido em dois
tópicos que abrangem um terceiro que em letras bem colocadas não está: O Agualusa
tematizador, o Agualusa historiador e o Agualusa literato, que é a junção de todos os pedaços
disformes.

Agualusa: o tematizador
José Eduardo Agualusa se destaca na atualidade como um dos maiores nomes da
literatura africana de língua portuguesa. Sua vastíssima obra tem forte apelo e embasamento
histórico, onde se vê a todo momento em seus escritos uma necessidade de articular ficção e
realidade no esforço constante de registrar e refletir sobre a história de Angola, seu país de
origem e palco da maior parte da sua criação. Tomando como questão fundamental o interesse
do autor supracitado por discussões em torno da memória, dos usos do passado, da histórica
questão racial e escravidão, da colonização portuguesa e das lutas enfrentadas por angola em
seu processo independentista e mesmo após ele, é que faz dele um escritor tão profundamente
interessante para se poder analisar, através da produção literária, novas possibilidades na
compreensão de uma nação e de um povo tão marcados por ritos e reveses, por conflitos e por
uma profunda relação com a memória e, sobretudo, com o esquecimento.
Tematizador polêmico, talvez por influência de sua vasta experiência como jornalista,
o escritor angolano nascido aos anos 60 do século XX, coloca uma carga de crítica em seus
47

romances que o faz merecedor da alcunha. Sua escrita claramente não é desinteressada, ela é
recheada de temas insólitos, para muitos intocáveis, meche em feridas históricas ainda não de
todo saradas, diz, a partir da liberdade que a literatura lhe oferece, o que não se costuma ou o
que não se quer ouvir. Talvez a obra que mais acentua seu tom de polemista e crítico seja o
romance Estação das Chuvas, publicado em 1996 em plena guerra civil angolana. O romance,
que parte de uma personagem fictícia, Lídia do Carmo Ferreira, toma logo seu viés de
percepção histórica, isto porque os personagens fictícios logo começam por estabelecer
relações com personagens reais da luta pela independência de Angola e da luta armada que se
seguiu. O romance é uma crítica e uma revisão encabeçada pelo autor desse momento
histórico. A partir, sobretudo, da trajetória dos intelectuais que embasaram todo o conflito
como Agostinho Neto, Viriato da Cruz e Mario Pinto de Andrade, Agualusa tece ficção e
realidade em uma reflexão sobre os revezes e as contradições do processo. É, para além de um
registro de uma versão da luta, uma tentativa de compreensão da formação dos “heróis”
angolanos da independência: “Nesse contexto, Agualusa questiona os detentores do poder e a
quem se deve libertação: agradecer pela libertação: aos esquecidos ou aos lembrados? ”
(GUARIENTI, 2015, p. 21).
Não é, portanto, somente uma obra ficcional. São tomados elementos do real,
embasados por pesquisa e, sobretudo, pela memória, esta possibilitada por uma vivência em
se tratando de uma história ainda recente. Referências a fatos ocorridos, a pessoas e a períodos
bem situados historicamente, a posicionamentos e dissidências politicas acontecidas, o livro é
uma leitura de história com os sabores do romance. Verifiquemos um trecho:

No largo primeiro de maio, o presidente falava a multidão.


Pouco antes de subir à tribuna um jovem oficial saltara do jipe para lhe entregar
uma mensagem do comandante Jacob Caetano, mais conhecido por Monstro
Imortal. A situação era crítica: as colunas sul-africanas tinham subido oitocentos e
tantos quilômetros, pulverizando as frentes sul e centro. Agora, preparavam-se para
tomar a pequena cidade de Novo Redondo. Em Quifangondo a uma distância tão
escassa que quando o vento soprava mais forte a praça se enchia da tosse nervosa
das metralhadoras [...] Balas coloridas riscavam a noite e ninguém sabia dizer se
eram parte dos festejos ou do aparato e guerra. Os céus da cidade tinham-se
transformado numa imensa armadilha. Tão incerto era o destino de Luanda, que
muitas das delegações convidadas a assistir às cerimonias, incluindo a União
Soviética, tinham preferido não comparecer. (AGUALUSA, 1999, p.8)

O trecho está situado na madrugada do dia 11 de outubro de 1775, dia da declaração


de independência de angola. O personagem se trata de Agostinho Neto, à revelia de tudo,
proclamador da separação. Não há equívoco na narração, os sul-africanos alinhados aos
contrários do MPLA e com apoio estadunidense subiam rumo a capital também na intenção
47

de proclamação, cubanos combatiam para que Agostinho Neto pudesse falar ao povo e o
clima de incerteza, esse sim, era a pauta principal daquele dia. Este trecho serve, sobretudo,
para perceber o quanto de verdade pode haver em uma narração que se diz ficcional, mostra
que a escrita deste autor não pode ser facilmente limitada a um ou outro polo da discussão, a
um ou outro lado do fazer. E ainda temos que, tal como a História sonha em fazer:

A literatura permite o acesso à sintonia fina ou ao clima de uma época, ao modo


pelo qual as pessoas pensavam o mundo, a si próprias, quais os valores que
guiavam seus passos, quais os preconceitos, medos e sonhos. Ela dá a ver
sensibilidades, perfis, valores. Ela representa o real, ela é fonte privilegiada para a
leitura do imaginário. (PESAVENTO, 2008, p.82)

Aqui então encontram-se os fios. A literatura é até bem aceita na atualidade como
fonte histórica, isso é muito comum, inclusive. Mas a partir do momento em que se trata de
ela mesma colocar percepções a partir e sobre passado ela é duramente rechaçada. Agualusa,
como um bom inconveniente, se encontra no entremeio das duas colocações. Ele escreve
sobre o passado, colocando impressões sobre ele, podia-se então, em um manto de coragem,
alcunha-lo de historiador, mas ao mesmo tempo ele é fruto dos processos sobre os quais
escreve, ele mesmo os presenciou, os viveu, podendo também ser uma fonte para análise. Um
tematizador que não se contenta em revisitar o passado e colocar problemas a ele, mas que
também coloca questões que o conhecimento histórico ainda anseia por resolver como é o
caso de até onde vão os limites entre real e inventado. Sua escrita é testemunha mordaz de um
tempo e faz sátiras sobre a história que ela própria conta.
Mas os temas insólitos colocados por Agualusa não se limitam a luta de independência
e suas contradições. No romance Nação Crioula de 1997, por exemplo, ele aprofunda sua
percepção histórica e lança mão de uma escrita que problematiza não mais uma história
recente, sobre a qual ele poderia, a partir de sua própria memória, colocar impressões. Pelo
contrário, ele regressa à segunda metade do século XIX para tematizar a questão do tráfico
negreiro e, sobretudo, as questões políticas, econômicas, ideológicas e geográficas que o
possibilitavam. A visão do comércio negreiro de Agualusa, podemos dizer, que é basicamente
o de Alencastro (2000), é o Atlântico negreiro. É a partir de uma visão tricontinental
envolvendo Angola, Portugal e Brasil, interligados pelos sedentos navios sobre o Atlântico,
que ele coloca uma compreensão do estopim dos últimos anos da escravidão, mesclando uma
sátira feroz ao Portugal do período, que sentimentalmente não abria mão de sua ação
colonizadora, civilizadora, uma constatação sobre a condição de elites negreiras em contraste
com escravos em Angola, estes depois enviados a sorte de seus deuses pelo fundo Atlântico
47

até o Brasil, onde se desencadeava a luta abolicionista. Este romance tem um forte
embasamento histórico que pode ser observado nas similaridades com o relato de grandes
historiadores como o próprio Alencastro sobre o Atlântico negreiro e também Russel-Wood
(1998) em sua discussão sobre a condição de dominância de Portugal sobre suas colônias.

A descrição da sociedade colonial, feita a partir do olhar pseudo-objetivo e


aparentemente ingênuo do epistoleiro testemunho, esconde evidentemente o
discurso irônico do autor que, como em numerosas narrativas pós-coloniais e pós-
modernas, dá ao seu relato um tom paródico: à grandeza exaltada do Portugal de
ideologia colonial responde a desmitificação e a trivialização da sua pretendida
ação civilizadora. (LEVÉCOT, 2015, p.25)

O apelo ao uso de elementos do real na construção do romance fica nítido todo o


tempo nessa escrita como por exemplo sua referência a acontecimentos como a divulgação do
decreto de 1868 do Marquês Sá da Bandeira sobre a abolição, a personagens reais como o
famoso abolicionista brasileiro José do Patrocínio e mesmo Joaquim Nabuco. Mais uma vez o
real e o inventado se cruzam na intenção de lançar uma visão sobre o passado, uma
compreensão sobre um processo que para além de sangrento se mostra como uma das grandes
possibilidades no entendimento da constituição do Brasil, de Portugal e, claro, de Angola.
Aliás, questão central essa, a visão da constituição de angola do autor é notadamente essa
visão pluricontinental, de que Angola só pode ser compreendida pelas suas históricas relações
plurais, sobretudo com o mundo lusófono.
Mas esse Agualusa perscrutador de questões tão importantes e complexas fica ainda
mais evidente no premiado romance O Vendedor de Passados de 2004. A ideia central desse
texto é a possibilidade da construção e venda de um passado inventado que obedeça a alguns
interesses, interesses de elite, sobretudo, mas não somente dela. O romance, que se passa no
coração de Angola, privilegia questões como os equívocos que rodeiam a construção ou
reconstrução da memória, a ânsia por uma identidade na Angola pós-colonial e a influência do
passado como legitimador do presente, além de, é claro, como os usos feitos do passado
podem leva-lo a fronteira entre ficção e verdade histórica. Nesta obra, ao contrário das
anteriormente citadas, o autor não historiciza um período passado. Quase não há referências a
eventos ou personagens verídicos, o que serve à discussão é o teor teórico e histórico-
sociológico embutido no escrito. O texto poderia facilmente passar-se por teoria da história
uma vez que coloca as grandes questões que o conhecimento do passado enfrenta na
atualidade, sobretudo, e aqui partimos em uma direção mais bem definida, as questões que
envolvem o trato da memória e seus equívocos.
47

O personagem principal do romance é um “genealogista”. Um vendedor de passados


falsos que constrói enredos articulando realidade e ficção para pessoas que tem um bom
presente e um futuro assegurado, mas que, porém, não gozam de uma boa história. Felix
ventura (o genealogista) dá-lhes esse bom passado, propicia-lhes uma nova identidade
recheada com uma trama de antepassados ilustres, uma vida pregressa cheia de brilhos.
Esta obra trata de um assunto tão polêmico quanto as anteriormente citadas, mas o
enredo é mais sutil, infinitamente mais disfarçado. Ela é, sobretudo, uma sátira social a atual
sociedade angolana, que, no pós-independência, busca ainda uma identidade que a caracterize,
que, de certa forma, dê de volta um sentido a suas existências, este perdido com
indiscriminada interferência portuguesa nos séculos de colonização e sua súbita expulsão. E é
este, inclusive, um ponto de amarra entre as três obras supracitadas e também entre elas e a
alcunha de um tematizador mordaz atribuída a Agualusa. A identidade, sim, a identidade. A
identidade como algo que pode mostrar o que é e o que foi Angola, ou, como o voraz escritor
coloca, uma certa falta dela. É possível perceber nos três escritos a constante pergunta “O que
nós somos? ” E a inquietante tentativa de responde-la, embora não esteja formulada nesses
termos. A busca por uma compreensão da formação do que hoje é Angola, de seu povo, de
seus costumes, tudo isso é temática central de sua literatura.
E ainda tem a questão da memória, dita mãe da história, entendendo – Agualusa e nós
– que é em sua maioria a memória que constrói ou justifica as identidades, estas também
socialmente construídas. Sobretudo no último romance citado ela é uma questão central,
sobretudo no ponto em que ela pode ser moldada. E esses equívocos na construção da
memória é uma das mais instigantes relações que podemos estabelecer entre a escrita do
escritor angolano e a prática do historiador. Pensar que se pode acessar o passado tal como ele
aconteceu, embora na atualidade não seja a posição usada pela massa dos historiadores, ainda
gera embates bastante complicados. Isso acontece porque caso se negue a possibilidade de
chegar ao passado tal como o mesmo veio a acontecer, abre-se algumas janelas ao que
costumam chamar de relativismo histórico, a grande praga da “pós-modernidade”. Mas o real
é complexo demais. As memórias têm aquela leve sutileza desprendida de quem não pode ser
nunca provada de toda fé, nem abrangida em todos os seus detalhes. Mas a memória que
Agualusa tanto usa para questionar as possibilidades de acesso ao passado - valendo para
todos, inclusive para historiadores profissionais - muito se aproxima da noção de Memória
Coletiva proposta por Halbwachs (2013, p.30), uma memória – e para ele um passado – que é
legitimada por um grupo, por uma série de indivíduos que compartilham o ato de lembrar,
tornando verdadeiro o mundo que os cerca, uma memória que é coletiva. Ideia essa que faz
47

pensar que “Lembrar o passado e escrever sobre ele não mais parecem atividades inocentes
que outrora se julgava que fossem. Nem as memórias nem as histórias parecem mais ser
objetivas. ” (BURKE, 2000, p.70). A memória em Agualusa, sobretudo quando fala na
constituição de Angola, embasa-se em fatos que realmente aconteceram tanto mais
inverossímeis do que sua própria capacidade de inventar.
Para encerrar aqui este já muito extenso tópico destaco quatro ideias contidas nos três
romances citados que resumem o que foi dito do Agualusa tematizador. A primeira delas diz
respeito a última frase de Estação das Chuvas: “Este país morreu! ” (AGUALUSA, 1999, P.
186) do Agualusa que vê a guerra civil acontecer, vê a história de Angola seguindo um rumo
incerto, uma fala que tem uma incalculável conotação política. A segunda é: “Ao longo de
quatro demorados séculos construímos um império, vastíssimo, é certo, mas infelizmente
imaginário. ” (AGUALUSA, 2007, P. 80) fala que um personagem faz em Nação Crioula
sobre a condição política da colonização portuguesa, uma crítica fina a um processo de
colonização que, na sua visão, não foi tão efetivo e por isso rendeu tantas mazelas. Por último:
“um homem que traficava memórias, que vendia o passado, secretamente, como outros
contrabandeiam cocaína. ” (AGUALUSA, 2004, p. 16) e “A memória é uma paisagem
contemplada de um comboio em movimento. ” (AGUALUSA, 2004, p. 153) trechos estes de
O Vendedor de Passados que também é uma sátira aos historiadores, às dificuldades que o
falar sobre o passado impõe e da impossibilidade de controle deste, crítica aos fazedores de
história ainda embebidos no liquido da verdade profunda e absoluta. Agualusa, um
tematizador, um polemista, enfim, e em boa sintonia com o significado de seus escritos, um
profanador.

Agualusa: o historiador
Muito do Agualusa historiador já foi dito. Mas para situa-lo como um intelectual no
cerne da discussão é preciso primeiro um debate, um debate sobre hierarquia de discursos que
irá nos ajudar a entender melhor a produção de Agualusa e de como ela pode ser considerada
uma ponte de compreensão do passado.
Jurandir Malerba (2011, p.23) destaca que desde os historiadores cientificistas da
virada do século XIX para o XX já existia a preocupação com a interdisciplinaridade embora
de uma forma “imperialista”, considerando aos outros campos apenas como disciplinas
auxiliares. Atualmente a história é extremamente interdisciplinar, contando com a
colaboração de conhecimentos de várias outras áreas em seu fazer, nesse sentido certamente a
ascensão máxima do que atualmente se convenciona chamar de “História Cultural” foi uma
de
48

suas grandes fortalecedoras. A relação com a antropologia, por exemplo, se tornou tão cara ao
conhecimento histórico nesse período que hoje é impensável uma História que não esteja
aberta ao conhecimento antropológico. Além disso “o contato da história com suas disciplinas
vizinhas já não se pauta por aquela postura arrogante de quem apenas precisava de alguns
serviços técnicos. O diálogo é de igual para igual” (MALERBA, 2011, p.26). Mas ainda
existe uma área que suscita imensos debates no que diz respeito a sua relação com a produção
do conhecimento histórico: trata-se justamente da literatura. Esta última, infelizmente, não é
considerada pelos entrincheirados historiadores como um campo em pé de igualdade com a
história. Há uma aversão, um preconceito ou, pior, um medo. Durval Muniz destaca bem a
separação feita na atualidade a esse respeito que, inadvertidamente, desaba no erro grotesco
de percepção subjetiva atrelada somente a Literatura:

A História seria discurso que fala em nome da razão, da consciência, do poder, do


domínio e da conquista. A Literatura estaria mais identificada com as paixões, com
a sensibilidade, com a dimensão poética e subjetiva da existência, com a
prevalência do intuitivo, do epifânico. Só com a Literatura ainda se pode chorar.
(ALBUQUERQUE JR, 2007, p.49)

A relação estabelecida em que a literatura é usada como fonte, esta sim é até bem
aceita, como já dito. Mas desde que não se passe disso. O que queremos dizer é que o
Agualusa historiador não apenas é merecedor dessa alcunha por suas obras poderem ser
usadas como fonte para compreensão do contexto de sua escrita – isto também – mas
sobretudo por construir uma determinada versão do passado, uma percepção sensível de um
período histórico e apresenta-la de forma a difundi-la, de uma maneira a dar a conhecer o
passado.
O Agualusa historiador se apropria de uma forma de falar sobre o passado bem
especifica. Não há somente o garimpo de fatos históricos que ele aleatoriamente faz uso para
beneficiar sua criação ficcional. Não. Os fatos históricos colocados obedecem a uma ideia, a
uma crítica a certo aspecto do passado, a uma confrontação de outros discursos na tentativa de
chegar a uma compreensão de acontecimentos caros ao entendimento da constituição de
Angola. Ele não lança mão dos fatos históricos simplesmente como uma ferramenta
endossadora – o que comumente se atribui a escritos literários com uma proposta mais ou
menos parecida – o passado, sua compreensão e uma certa crítica a história oficial é também
sua questão central.
Entretanto, e em se tratando de falar sobre o passado não há nenhum inocente,
Agualusa também está submetido a uma subjetividade avassaladora, tal como os próprios
48

historiadores. Sua imparcialidade por exemplo fica de certa forma escancarada em Estação
das Chuvas. O livro que tem um forte tom político sobretudo de crítica a postura dos
vencedores, isto é, do governo do MPLA, e que trata justamente dos vários “heróis”
angolanos da libertação, é dedicado por Agualusa a Mário Pinto de Andrade, um dos
fundadores do dito MPLA e depois um de seus dissidentes. O Agualusa historiador
certamente não estaria completo se não compartilhasse com os historiadores essa que é uma
de suas maiores mazelas: a constante cobrança e a ainda mais constante impossibilidade de
domar aos rigores a subjetividade de quem fala pelos mortos. Agualusa escreve influenciado
por um contexto do qual é fruto e participante ativo, tal como todo e qualquer escritor.
Ainda aqui é interessante observar que a fase “historiadora” não está presente em
todas as obras do autor analisado, ela se manifesta com maior clareza em seus primeiros
romances, sobretudo até As Mulheres de Meu Pai, publicado em 2007. Daí em diante o autor
procede em seus romances de forma a notabilizar mais seu tom inventivo, inclusive há uma
preocupação do autor em destacar que o que ali está escrito é apenas ficção, fato que acontece
logo antes do início de Teoria Geral do Esquecimento (2012), por exemplo, o que vem a
contrastar, e talvez por causa disso mesmo, com o tom histórico dos seus escritos anteriores.
Mas o seu lado tematizador de grandes questões e também de temas controversos não
desaparece, pelo contrário parece agora abrir as margens de um competente “Agualusa
sociólogo”.
Por fim, cabe ressaltar que são as inúmeras possibilidades que rodeiam a literatura em
contraste profundo com a História que nos permitem alcunhar o literato angolano de
historiador. Na oportunidade cita-se:

O problema não é a natureza dos tipos de eventos com que se preocupam os


historiadores e escritores imaginativos. O que nos deveria interessar na discussão
da “literatura do fato” ou, como preferi chamar, das “ficções da representação
factual”, é o grau em que o discurso do historiador e o do escritor imaginativo se
sobrepõem, se assemelham ou se correspondem mutuamente. (WHITE, 2001, p.137)

A questão não é, portanto, relacionada aos objetos do fazer, caminho traçado por
grande dos que discutem a temática, mas a própria maneira de assim o fazer. Agualusa conta
versões da história envolvendo alguns acontecimentos de Angola, fato inegável, resta-nos
entender em que medida seu discurso é percebido apenas como simples ficção ou como um
discurso banhado de cunho histórico que possibilite a compreensão do passado e,
consequentemente, das complexidades do presente.
48

Considerações finais
O padecimento da memória, sua fragilidade e os equívocos que rodeiam sua
construção ou reconstrução, as possibilidades no uso do passado, a ficcionalização do real ou
o entrelaçamento entre o real e o inventado, uma narrativa que se localiza em contextos
históricos “reais”, com personagens reais, e deles se aproveita na sua construção. A História
entre o real e o inventado, entre ética e estética, entre a memória e o sonho. O passado
tematizado em seus horrores e em suas belezas, em suas lógicas ou em suas contradições,
dento de uma literatura que não somente entretém, mas dá a conhecer determinado período
histórico com uma profusão de interessantes possibilidades. A identidade construída, fio a fio,
em processos históricos em sua grande maioria mais inverossímeis do que o próprio ato de
invenção literária. Assim, a obra de Agualusa se mostra, também, como uma possibilidade na
compreensão da história de Angola. Uma forma peculiar de apresentação do passado que não
fica atrás dos grandes manuais de história, justamente por ser uma versão, uma busca de
entendimento e não a tentativa de explicação completa, esta tarefa ficou lá atrás com os
positivistas de além mar.

Referências:
AGUALUSA, José Eduardo. O vendedor de passados. Rio de Janeiro: Gryphus, 2004.

. Nação Crioula: a correspondência secreta de Fradique Mendes. 2ª ed. Rio de


Janeiro: Gryphus, 2001.

. Estação das Chuvas. 4ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 1999.

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de
teoria da história. Bauru, SP: Edusc, 2007.

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul,
séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

GUARIENTI, F.R. Lídia pelos caminhos de angola: As intersecções entre literatura e História
no romance Estação das Chuvas, de José Eduardo Agualusa. Dissertação (Mestrado) –
Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2015.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São Paulo:
Centauro, 2013.

LEVÉCOT, Agnès. Nação Crioula, de José Eduardo Agualusa: romance epistolar e identidade
comunitária. Via Atlântica, São Paulo, N. 27, 17-30, Jun/2015.
48

MALERBA, Jurandir. Ficções: ensaios de imaginação histórica. In.: . Ensaios: teoria,


história e ciências sociais. Londrina: Eduel, 2011. p.21-36.

PESAVENTO, Sandra Jathay. História & História Cultural. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2008. p. 69-88.

RUSSEL-WOOD, A. J. R. Centros e periferias no mundo luso-brasileiro,1500-1808. Rev.


bras. Hist. [online]. 1998, vol.18, n.36, pp.187-250.

VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Lisboa: Edições 70, 2008.

WHITE, H. Trópicos do Discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: EDUSP,
2001.
48

INTELECTUAIS SUBALTERNOS E O PODER:


UMA ANÁLISE DAS TRAJETÓRIAS DE MÁRIO PINTO DE ANDRADE E DE
AMÍLCAR CABRAL NAS LUTAS DE LIBERTAÇÃO NACIONAL EM ANGOLA E
GUINÉ-BISSAU NOS ANOS DE 1960-1970.

Wendel Damasceno Oliveira4

Resumo: O presente artigo insere-se na temática da emergência da luta anticolonial,


promovida em Angola e Guiné nas décadas de 1960 e 1970, sob a dinâmica do sistema-
mundo moderno/colonial. O enfoque de nosso trabalho dá-se a partir de um diálogo entre as
representações, as produções e as práxis dos intelectuais Mário Pinto de Andrade (1928-1990)
e Amílcar Cabral (1924-1973). Este foi presidente do Partido Africano para a Independência
de Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e aquele foi presidente do Movimento Popular de Libertação
de Angola (MPLA). Suas produções nos permitem fazer uma reflexão acerca dos processos de
identificação da “nação” que se forjaram no processo de luta anticolonial. A metodologia
utilizada foi a História intelectual de Sirinelli, cujo estudo se assenta na Nova História
Política, tendo como objetivo identificar a defasagem entre discursos ideológicos e os eventos
políticos.
Palavras-chaves: Intelectuais. Colonialismo. Poder.

1. INTRODUÇÃO
O objeto de estudo deste trabalho é os intelectuais em suas relações com o poder.
Antes de analisarmos as especificidades dos intelectuais Mário Pinto de Andrade e Amílcar
Cabral no contexto colonial português, durante o processo de libertação nacional, optei por
fazer uma breve análise histórico-sociológica da categoria intelectual, cujas discussões
percorreram todo o século XX. Durante este período, os trabalhos de Julien Benda, Benedetto
Croce, Gramsci, Karl Mannheim, Ortega y Gasset, Norberto Bobbio, Bourdieu e Edward Said
são autores que refletiram sobre este objeto de estudo, os intelectuais.
Todas as sociedades em todos os tempos tiveram seus intelectuais ou aqueles que
detêm o poder ideológico (sábios, doutos, filósofos, literatos, casta religiosa, sacerdote ou
clérigos), que atuam nas mentes pela produção e transmissão de ideias, de símbolos, de visões
de mundo ou de ensinamentos práticos (BOBBIO, 1997, p. 11). Os intelectuais, portanto, não
se restringem apenas aos sujeitos urbanos letrados da modernidade eurocentrada, podendo
uma comunidade negra ou indígena do campo ou das florestas também possuir seus
representantes que atuam na função de intelectual, apesar de serem nomeados com outras
nomenclaturas.

4
Mestrando na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) no Mestrado
Interdisciplinar em Humanidades. Email: wendel230@hotmail.com.
48

De todo modo, as origens modernas do termo intelectual estão ligadas com o caso
Dreyfus (1898). Este fato ocorreu na França, quando Emile Zola, defendendo os valores da
justiça e da verdade, publica uma carta-aberta ao Presidente Félix Faure, em 13 de janeiro
1898, no jornal parisiense L’aurore, protestando contra o julgamento iníquo de Dreyfus.
Durante alguns dias, vários artistas, jornalistas, professores universitários, escritores,
advogados, arquitetos, músicos e profissionais de outras áreas publicaram seus protestos nos
jornais franceses, defendendo o posicionamento de Emile Zola. Já, no dia 23 de janeiro de
1898, o chefe da redação do jornal L’aurore, George Clemenceau, afirmou que: “Não haverá
aqui um sinal, no facto de todos esses intelectuais chegados dos horizontes mais diversos, se
unirem em torno de uma ideia?” (BAUMAN, 2007, p. 227).
O nascimento do termo intelectual, portanto, originou-se no meio urbano e com
implicações políticas, haja vista ter como evento fundante uma carta endereçada ao
presidente, exigindo uma ação quanto ao julgamento de Dreyfus, que seria condenado em
virtude de sua origem judaica. Esse fato evidencia uma fricção entre detentores do poder
político e do poder ideológico, cuja relação é não-simétrica, alterando-se conforme as
circunstâncias de aliança ou de disputa (BOBBIO, 1997, p. 13). A partir do caso Dreyfus, os
intelectuais, enquanto “homens de letras” ou “homens de cultura da elite”, passaram a ser
identificados como um grupo crítico atuante nas questões políticas e/ou nas discussões
públicas da sociedade. Para Said (2005, p. 25-26)

A questão central para mim, penso, é o fato de o intelectual ser um indivíduo dotado
de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto
de vista, uma atitude, filosofia, ou opinião para (e também por) um público. E esse
papel encerra uma certa agudeza, pois não pode ser desempenhado sem a
consciência de ser alguém cuja função é levantar publicamente questões
embaraçosas, confrontar ortodoxias e dogmas (mais do que produzi-los); isto é,
alguém que não pode ser facilmente cooptado por governos ou corporações, e cuja
raison d’être é representar todas as pessoas e todos os problemas que são
sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapete.

Essa tarefa do intelectual de trazer ao público os problemas da sociedade que insistem


em serem postos “debaixo do tapete”, de fato, esteve muito presente no caso Dreyfus, haja
vista o antissemitismo estar muito presente naquele momento na sociedade francesa e na
Europa. Contudo, os intelectuais na modernidade eurocentrada não nasceram no século XIX,
sociologicamente, eles compõem um agrupamento da elite formado aos poucos no decorrer do
processo civilizador europeu.
48

A partir do século XVI, a Europa Ocidental foi cenário de uma cisão das elites por
iniciativa destas – de um movimento de extrema valorização, que congelava o resto
da sociedade na condição de uma “massa”, definida antes do mais pelos seus traços
de ignorância, irracionalidade, vulgaridade, brutalidade, deficiente humanidade,
insuficiente emancipação da natureza animal e estatuto de presa de paixões que
seria necessário domesticar ou sufocar. [...]. Os dominantes governavam agora em
nome da promoção de valores superiores – quer o fizessem protegendo-os da
contaminação e da degradação, ou difundindo-os entre a fração (grosseira,
impolida, não-civilizada) da população, o que lhes permitiam combinarem o papel
de vigilantes com o de professores. Este tipo de autodefinição reformulava a
dominação efetiva – política, econômica e social – nos termos de um projeto de
hegemonia cultural (BAUMAN, 2007, p. 230).

Essa reformulação do projeto de poder, ocorrido lentamente desde o século XVI tanto
na Europa quanto em suas colônias, causou a cisão entre elite e massa. Os “homens de letras”
eram os grandes portadores e divulgadores desses novos valores culturais. O processo
civilizador, portanto, implica a criação de novas formas de exercício de poder, de controle
social e de novas práticas culturais, nas quais a “massa” deveria adquirir costumes mais
refinados para evitar a “luta do homem contra homem”. Assim,

Foi esta última prescrição que abriu um espaço social funcionalmente importante
aos produtores e distribuidores de ideias. Pelo seu lado, estes últimos faziam todos
os possíveis por conseguir que à prescrição em causa fosse atribuída o mais
decisivo papel estratégico nos processos de construção e de manutenção da ordem.
A cultura enquanto teoria da ordem social e enquanto prática social de cultivo era
um produto deste reforço mútuo. A teoria considerava que os homens e as mulheres
por si próprios eram incapazes de coexistir pacificamente e estavam despreparados
para enfrentar as exigências complexas e forçosas da existência social; que não
seriam capazes de superar esta sua condição deficitária sem assistência qualificada,
e que por isso deveriam ser assistidos pelos “conhecedores”: teriam de ser
educados e educadas de maneira a que adquirissem as ideias e as competências que
os “conhecedores” asseveravam ser corretas e adequadas. A prática, por outro
lado, deveria instaurar o papel dos homens de ideias, fazendo-os ascender da ordem
social. (BAUMAN, 2007, p. 231).

Neste sentido, os “produtores de ideias”, os “grandes pensadores” ou os intelectuais


durante o processo civilizador europeu tinham a função social de elaborar teorias para a
construção dos novos valores capazes, cujo objetivo era construir a coesão social e conferir ou
não legitimidade as ações políticas praticadas da modernidade eurocentrada. Essa relação
entre saber e poder ou entre intelectuais e elite ocorreu na Europa Ocidental, bem como em
suas colônias, haja vista os fluxos de ideias e pessoas, ocasionados pela formação dos
impérios europeus, desde o século XVI, com a formação de elites periféricas ou coloniais que
estudavam nas metrópoles ou nas colônias. Em relação aos intelectuais dos países periféricos,
Bauman assevera
48

que ainda não tinham entrado na via das transformações sociais profundas, mas se
haviam tomado já conscientes dos seus efeitos graças à invejável experiência dos
núcleos já “modernos” existentes no mundo contemporâneo, a modernidade não
era um resultado não planejado da mudança social: era concebida antes de vir a ser
realidade, e por isso, só podia ser pensada como um projeto deliberadamente
assumido, um objetivo conscientemente visado (BAUMAN, 2007, p. 232).

Logo, os projetos de modernizações dos países periféricos (como no leste da Europa)


ou das colônias, consequentemente, tinham como modelo as experiências já praticadas na
Europa Ocidental. Essa condição específica das elites periféricas ou coloniais e, por
conseguinte, dos intelectuais dessas regiões terão efeitos significativos nas experiências de
modernização praticadas nessas regiões. Assim,

Historicamente, o estímulo itinerante, com origem no centro europeu ocidental do


processo civilizador/modernizador alcançou primeiro a Europa de Leste, que era a
região geograficamente mais próxima do lugar de nascimento da modernidade. Não
é pois surpreendente que tenha sido nesta parte do mundo que o conceito e a prática
da intelligentsia [intelectuais] começaram por ser cunhados e experimentados (a
própria palavra entrou no vocabulário internacional sob a sua forma russa) –
estabelecendo um modelo que seria interminavelmente retomado mais tarde em
numerosos e mais ou menos distantes lugares do mundo atingidos pelo zelo
missionário de uma civilização confiante na sua universalidade. Aparentemente, o
termo era simplesmente técnico: denotava uma estreita camada de pessoas
intelectualmente credenciadas, pessoas que mobilizavam no seu trabalho
competências de ordem espiritual, mais do que física. Mas a verdadeira significação
do novo conceito (que determinaria em larga medida a prática subsequente) pode
ser melhor apreendida a partir da oposição semântica da qual a concepção da ideia
decorria – a oposição entre a intelligentsia e o <<povo>> (BAUMAN, 2007, p.
233-234)

A Revolução Russa, ocorrida no início do século XX, adicionou cada vez mais sentido
político a categoria dos intelectuais ou intelligentsia, tornando-os agentes da modernização ou
transformação da sociedade. Desse modo,

A intelligentsia das sociedades periféricas descobria-se assim presa de um duplo


vínculo virtual: olhada com suspeita e muitas vezes escarnecida pelo “povo” que
escolhera fazer feliz, e condescendentemente tolerada quando muito pela elite cuja
autoridade ajudara a construir e acreditava ser inquestionável, era bem possível
que acabasse por amaldiçoar com as suas pragas as duas casas. A sua atitude
crítica era, por assim dizer, sobredeterminada, e o mesmo se passava com a sua
aguda consciência das suas próprias singularidade e solidão. Acima de tudo, os
seus membros sentiam-se efetivamente como classe transformadora: uma classe
portadora da pesada responsabilidade de refazer a sociedade tornando-a alguma
coisa mais do que ela era até ao momento, transformando o curso da sua história,
forçando-a a seguir “a via correta”. (BAUMAN, 2007, p. 234).

Essa representação dos intelectuais, como agentes engajados na política para a


transformação da realidade, sobretudo após a Revolução Russa, levou-os a agirem como
48

agentes portadores de novos valores da sociedade na qual estão inseridos, carregando em si


um forte sentido moral para sua atuação na política. Os intelectuais tornaram-se um grupo
com características distintas tanto do povo quanto da elite. Bobbio complexifica a questão nos
seguintes termos:

Se a Guerra Mundial, que podia ser interpretada como uma luta entre opostas
razões de estado, havia exaltado a figura do intelectual independente, celebrando o
princípio ético do estar acima do combate, a Revolução Russa, que podia ser
interpretada ao contrário como a luta da liberdade contra a opressão, da justiça
contra a iniquidade, em uma palavra, do bem contra o mal, havia exaltado a figura
do intelectual engajado, participante, partidário, que devia escolher um lado (e essa
era uma escolha obrigatória), entrar corajosa e disciplinadamente (nada de
independência!) no combate. Porém, como a figura do intelectual independente
tinha duas faces, uma boa e outra má, conforme a independência fosse entendida
como um colocar-se acima do combate para encontrar uma solução mais adequada
para o conflito ou como um colocar-se fora do combate, em uma postura de
aristocrática indiferença com respeito ao drama da história, assim também sempre
teve duas faces a figura do intelectual engajado: de um lado, o porta-bandeira das
massas em marcha, de outro, o zeloso porta-voz das diretivas do Partido (BOBBIO,
1997, p. 132).

Esses dois eventos históricos são paradigmáticos para a figura do intelectual. Eles
colocam uma série de questões que os interpelam em sua formação e ação. Por exemplo, o
intelectual deve estar a serviço apenas da ciência ou pode estar ligado a alguma ideologia? É
possível a separação entre ciência e ideologia? Ele deve ser uma pessoa engajada ou não na
política? Se for engajada na política, deve seguir os interesses de seu grupo, de sua classe, de
seu partido ou das “massas”? Se não for engajado na política, qual é então seu papel em sua
sociedade e sua forma de ação no mundo? Qual a posição do intelectual sobre a relação entre
cultura e política, na medida em que eles, em suas origens, cumpriam o papel de serem
portadores dos valores da modernidade eurocentrada? O intelectual pode representar ou falar
pelo povo? Quem são os intelectuais? Essas questões, que emergiram sobretudo durante e
após as duas guerras mundiais, bem como os eventos dramáticos ocorridos no século XX,
holocausto e as guerras anticoloniais, se impuseram na ordem do dia aos intelectuais.
Em suma, os intelectuais, no sentido moderno eurocentrado que apresentei, são um
agrupamento formado no seio das elites das metrópoles ou das colônias, cuja missão inicial
era exercer o poder ideológico e defender os valores da civilização moderna eurocentrada,
mantendo a coesão social dos impérios coloniais em formação desde o século XVI. No
decorrer do processo civilizador europeu, os intelectuais entraram em dissenso, em alguns
momentos, com os valores das elites pelas quais foram formados, passando a identificar-se
48

com os interesses do povo. Essa ambivalência entre os interesses da elite e do povo serão uma
constante na formação dos intelectuais no século XX.

2. REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS.
Compreendendo agora as especificidades da categoria dos intelectuais na modernidade
eurocentrada, do conjunto de questões citados anteriormente que interpelam esses sujeitos,
sobretudo no século XX, utilizo a abordagem teórico-metodológica da História dos
Intelectuais proposta por Jean-François Sirinelli5 para compreender a ação intelectual de
Mário Pinto de Andrade e Amílcar Cabral.
Sua abordagem propõe como objeto de pesquisa o grupo dos intelectuais, sendo um
campo autônomo de pesquisa situado na interface entre o político, o social e o cultural. A
fragmentação do objeto de estudo em uma dessas áreas ocasionaria prejuízos a compreensão
das ações dos intelectuais.
A noção de intelectual, para Sirinelli, compreende os "indivíduos criadores ou
mediadores culturais", tendo ou não algum tipo de engajamento político, englobando aqui o
escritor, jornalista, ou o erudito. De acordo com Sirinelli,

[...] A história política dos intelectuais passa obrigatoriamente pela pesquisa, longa
e ingrata, e pela exegese de textos impressos, primeiro suporte dos fatos e opiniões,
em cuja gênese, circulação e transmissão os intelectuais desempenham um papel
decisivo; e sua história social exige a análise sistemática de elementos dispersos,
com finalidades prosopográficas (SIRINELLI, 2003, p. 245)

O autor utiliza as noções de itinerário, geração e sociabilidade para abordagem


analítica das fontes históricas. Os itinerários são necessários para esclarecer e balizar a
atividade cognoscitiva do intelectual, mas para o trabalho histórico exige-se a interpretação,
buscando também localizar aquilo que o autor chama de "campos magnéticos", ou seja, um
determinado tema, autores ou ideologia que une um grupo de intelectuais. A noção de geração
é importante, pois

[...]. No meio intelectual, os processos de transmissão cultural são essenciais. Um


intelectual se define sempre por referência a uma herança, como legatário ou como
filho pródigo: quer haja um fenômeno de intermediação ou, ao contrário, ocorra
uma ruptura e uma tentação de fazer tábua rasa, o patrimônio dos mais velhos é,
portanto, elemento de referência explícita ou implícita (SIRINELLI, 2003, p. 255).

5
Historiador françês (1949) especialista em História política e cultural. Leciona no Instituto de Estudo Político
de Paris.
49

Por último, a sociabilidade é construída através de redes em torno de uma revista, de


uma redação ou de uma pesquisa (SIRINELLI, 2003, p. 249). Neste caso, a rede formada por
Andrade e Cabral, no período que me proponho a estudar nas décadas de 1960 e 1970, do
início da luta armada até as independências das colônias portuguesas, ocorreu sobretudo com
a formação dos partidos do MPLA, do PAIGC e da Conferência das Organizações
Nacionalistas das Colônias Portuguesas (CONCP) que eles participaram. Outra consideração
importante é que

[...] a sociabilidade também pode ser entendida de outra maneira, na qual também
se interpenetram o afetivo e o ideológico. As 'redes' secretam, na verdade,
microclimas à sombra dos quais a atividade e o comportamento dos intelectuais
envolvidos frequentemente apresentam traços específicos. E, assim entendida, a
palavra sociabilidade reveste-se, portanto de uma dupla acepção, ao mesmo tempo
'redes' que estruturam e 'microclima' que caracteriza um microcosmo intelectual
particular (SIRINELLI, 2003, p. 252-253).

A sociabilidade dos intelectuais, portanto, fornece elementos para a identificação dos


dados imediatos da consciência política. Para Sirinelli (2003, p. 250) “[...] no caso dos
acadêmicos, remontar a seus jovens anos escolares e universitários, numa idade em que as
influências se exercem sobre um terreno móvel e em que uma abordagem retrospectiva
permite reencontrar as origens do despertar intelectual e político".
Os conceitos analíticos apresentados (itinerário, geração e sociabilidade) permite
identificar a "[...] questão das relações entre as ideologias produzidas ou veiculadas pelos
intelectuais e a cultura política de sua época” (SIRINELLI, 2003, p. 261). Essa análise
possibilita interpretar o que o autor chama de "defasagem" entre o "despertar das gerações
intelectuais sucessivas" e a "atmosfera política" da maioria de uma sociedade em uma
determinada data. Para o autor,

[...]. Esta defasagem está ligada especialmente à natureza do campo estudado, o


meio intelectual. Este meio é, em essência, o domínio do metapolítico (os confrontos
ideológicos) mais que do político (as disputas eleitorais, sobretudo). E, entre os dois
níveis, há uma defasagem, e, portanto um fosso, quase constantes. [...]. Mas, a
constatação desse fosso deve se integrar numa visão ternária da história política
(SIRINELLI, 2003, p. 261-262).

Em suma, a abordagem analítica de Sirinelli permite identificar a relação ou o “fosso”


entre o poder ideológico e o poder político, os quais carregam em si a própria gênese e o
desenvolvimento da categoria intelectual, cuja discussão fizemos anteriormente.
49

3. TRAJETÓRIA INTELECTUAL
Mário Pinto de Andrade (1928-1990) e Amílcar Cabral (1924-1973) são dois
importantes intelectuais e lideranças políticas dos movimentos de libertação nacional em
Angola e Guiné-Bissau. Andrade é filho de um aposentado angolano que trabalhou na
burocracia nas finanças da administração colonial e Cabral é filho de um professor cabo-
verdiano do Liceu. Eles eram classificados pelo sistema do indigenato (1926-1961) como
sendo “assimilados” à civilização europeia lusitana, compondo uma fração da elite das
colônias portuguesas, que tiveram acesso ao ensino básico e superior. Eles se conheceram em
1948, quando Andrade estudava letras clássicas e Cabral, agronomia em Lisboa. Para Lopes
(2014, p. 38-39),

Mário de Andrade ficará em Lisboa apenas cinco anos, mas parecerão muitos mais
para qualquer historiador contemporâneo. É neste período que a agitação da Casa
dos Estudantes do Império vai desembocar na criação do Centro de Estudos
Africanos, na publicação de várias obras de ensaio e poesia de exaltação da
africanidade e negritude, e a maturação das ideias que depois darão origem aos
movimentos nacionalistas mais radicais das colônias portuguesas. O expoente deste
processo é, sem dúvida, Amílcar Cabral, cujo nome afetivamente Mário de Andrade
associa a toda a sua geração: a Geração de Cabral. Mas o agente cultural é Mário
de Andrade (LOPES, 2014, p. 38-39)

Esse período entre o ano de 1948 e 1961 é de grande efervescência cultural, sendo o
despertar intelectual e político desses estudantes das colônias portuguesas, cuja composição
na época era Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Noémia de Souza 6, Alda Espírito Santo7,
Francisco José Tenreiro8 e Andrade. Seus espaços de sociabilidade eram a Casa dos
Estudantes do Império (CEI) e o Centro de Estudos Africano. Este último foi criado para
atender os anseios desta geração, pois alguns temas não podiam ser debatidos na CEI, por
causa da vigilância dos órgãos repressivos do império português, para Andrade “[...]
estávamos a formar uma consciência coletiva, a partir de um grupo que pensava as mesmas
coisas” (LABAN, 1997, p. 69). De acordo com ele,

Toda a poesia negra dos nossos dias é a afirmação da negritude. Um neologismo


que nos vem dos negros franceses. A negritude define-se como objectiva e subjetiva
ao mesmo tempo. Na sua subjetivação recriando as formas de arte popular (mística,
dança, poesia), na sua subjetivação – gritando a dor milenária do Homem africano
6
Carolina Noémia Abranches de Souza Soares (1926-2003) é uma poetisa e jornalista de Moçambique do
Catembe. Uma de suas principais obras é o caderno Sangue negro (1961).
7
Alda Neves da Graça do Espírito Santo (1926-2010) foi uma poetisa e militante política. É autora das obras “O
jogral das ilhas” de 1976 e “É nosso o Solo Sagrado da Terra” de 1978.
8
Francisco José Tenreiro (1921-1963) nasceu na Ilha de São Tomé. Considerado o primeiro poeta da negritude
em língua portuguesa, além disso, foi também deputado português na Assembleia Nacional e Professor na
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Autor do poema: Coração em África (1977) ou Epopeia (1982).
49

(dor duma experiência de trabalho escravo) num apelo ao encontro da alma


colectiva negra, dispersa pelo mundo: O oceano separou se de mim/ Enquanto me
fui esquecendo nos séculos/ e eis me presente/ Reunindo em mim o espaço/
Condensando o tempo/ Na minha história/ Existe o paradoxo do homem disperso. E
aqui temos uma forma definida deste subjectivo-objectivo da negritude. O poeta
fala-nos na 1ª pessoa objectivando-nos a todos. [...] (ANDRADE, 1951, p. 25)

Andrade apresenta-nos aquilo que eles buscavam quando faziam suas leituras dos
negros da América, da Europa e de outros lugares da África. Suas intenções eram tentar
elaborar uma forma de expressão que vocalizasse aquilo que havia se dispersado entre as idas
e vindas dos navios negreiros. Além disso, a relação entre cultura e política, segundo Mário,
se dava do seguinte modo,

Esse capital de conhecimentos que tínhamos era um pouco o nosso patrimônio – os


negros americanos ou de África... – e não podia ser inocente, não era puramente
cultural: as ideias veiculadas neste patrimônio tinham um impacto político muito
claro... Um editorial de Alioune Diop na Présence Africaine, ou um poema de
Césaire9 ou de Jacques Roumain10, eram verdadeiros apelos à luta. E depois
quando nos interessávamos pelos acontecimentos da África do sul ou pela guerra
dos Mau-Mau, evidentemente tudo isso imbricava. Finalmente a nossa busca
cultural estava atravessada pela política (LABAN, 1997, p. 97).

Esse momento marca um forte entrelaçamento entre cultura e política, tendo os


sujeitos colonizados operado essa conjunção. Andrade e Cabral ainda escreveram um artigo
juntos, publicado no caderno Os estudantes negros falam (1953) da Revista Presence
Africaine. Esse escrito é importante, pois foi a primeira denúncia que eles conseguiram fazer
da situação colonial portuguesa, especificamente, em relação a educação colonial e ao
imperialismo. Neste artigo, eles classificam em três fases o processo educacional: (a) infância
(educação básica); (b) liceu (ensino médio); e (c) ensino superior. Esse processo promove a
assimilação do africano à civilização ocidental ou a “Parte Ocidental”. Contudo, a cultura
africana é retirada do currículo escolar. Em relação a este problema, vejamos aquilo que eles
nos falam em relação a situação dos estudantes africanos:

[...]. A colonização nos impede de adquirir essa consciência das realidades


africanas, o que constitui os valores da Parte Africana. [...]. Vejamos bem este

9
Aimé Fernand David Césaire (1913-2008) foi um poeta da Martinica. Ele estudou na França Autor das obras
Cahier d'un retour au pays natal (1939), Les Armes miraculeuses (1946), Soleil cou coupé (1947) e Discours sur
le colonialisme (1950). Ele foi deputado da cidade Fort-de-France, capital da Martinica que é uma região
administrativa da França.
10
Jacques Roumains (1907-1944) nasceu em Port-au-principe no Haiti. Ele graduou-se em Agronomia e formou-
se em etnologia e paleontologia em Paris. Autor das obras La proie et l’ombre (1930), La montagne ensorcelée
(1931) e Gouverneurs de la rosée (1944), além disso, é autor de diversas poesias. Fundou o partido comunista no
Haiti em 1944. Maiores detalhes ver: http://www.encaribe.org/fr/article/jacques-roumain/1953.
49

estudante Africano, que manteve uma atitude consciente, a melhor atitude, nas fases
b e c, uma vez de volta na comunidade, lutar por uma expressão significativa. Todos
os homens verdadeiramente progressistas vivem hoje a hora do encontro universal.
Também os estudantes africanos procuram recuperar o tempo perdido na
construção de outros mundos e, basicamente, eles aspiram por serem os porta-vozes
para a libertação de todos os canais que dificultam a marcha do progresso. A Parte
Africana aparecerá no ensino quando a África tiver deixado de ser a saída para o
imperialismo colonial. Aqui está a grande tarefa que pesa sobre os ombros dos
novos intelectuais africanos de ser a consciência viva do povo africano. (ANDRADE
e CABRAL, 1953, p. 229)118.

Andrade e Cabral queriam que a cultura ou a “Parte Africana” fosse introduzida nas
grades curriculares do ensino, mas sobretudo havia a consciência de que o entrave ao encontro
universal equilibrado entre a “parte ocidental” e a “parte africana” era o imperialismo
colonial. Outro dado importante desse artigo é o uso da noção dos “novos intelectuais
africanos” progressistas que deveriam lutar por esse encontro universal, sendo os porta-vozes
dos “novos valores” e da “consciência viva” do povo. Ao marcarem essa distinção entre
antigos e novos intelectuais, essa representação dos intelectuais, como sendo a “consciência
viva do povo”, construíam em torno de si representações em torno da figura dos intelectuais
engajados apresentados anteriormente no tópico inicial deste trabalho. Para Fanon (2005, p.
244),

[...], a reivindicação do intelectual colonizado não é um luxo, mas exigência de um


programa coerente. O intelectual colonizado que situa o seu combate no plano da
legitimidade, que quer apresentar provas, que aceita desnudar-se para melhor
exibir a história do seu corpo, é condenado a esse mergulho nas entranhas do seu
povo.

Esse mergulho nas entranhas do povo é o passo inicial para a fundação de uma nova
legitimidade ou de um novo contrato entre esses povos subjugados no sistema colonial
português. A construção dessa nova legitimidade e de “novos valores” remete a complexa
relação entre teoria e práxis política. Para Bhabha, não existe uma oposição entre esses dois
conceitos, mas na verdade uma negociação:

Quando falo de negociação em lugar de negação, quero transmitir uma


temporalidade que torna possível conceber a articulação de elementos antagônicos
ou contraditórios: uma dialética sem a emergência de uma História teleológica ou
transcendente, situada além da forma prescritiva da leitura sintomática, em que os
tiques nervosos à superfície da ideologia revelam a “contradição materialista real”
que a História encarna. Em tal temporalidade discursiva, o evento da teoria torna-
se a negociação de instâncias contraditórias e antagônicas, que abrem lugares e

11
Revue Présence africaine. L’etudiant africain et la civilisation ocidentale. Paris, 1953. Disponível em:
http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=04330.008.002#!2. Acesso em: 20/07/2018.
49

objetivos híbridos de luta e destroem as polaridades negativas entre o saber e seus


objetos e entre a teoria e a razão prático-política (BHABHA, 1998, p.51).

Esses “objetivos híbridos da luta” são profundamente marcados pela “negociação”


entre teoria e práxis política. Conforme as indicações de Bhabha, essa separação rígida não
existe, pois a resolução de um problema político carrega em si um problema teórico. A
negociação entre esses pólos híbridos, emergem na superfície da ideologia, cujo exercício se
inscreve por excelência nas atividades dos intelectuais, no entanto ela só tem função se
elaborada e aplicada na experiência humana. Pensar como Andrade e Cabral imaginavam a
construção dessa libertação das colônias portuguesas é entender como concebiam a ideologia
(intelecto) e a política (práxis) nessas sociedades.
Essa questão continuou ainda no cerne do cotidiano revolucionário dos autores onde
eles se interrogavam durante o processo de libertação nacional das colônias portuguesas. A
esse respeito, o artigo produzido para a II CONCP de Dar-es-Salam (1965) evidencia o
amadurecimento dessa questão para a orientação dos novos estados que emergiam durante o
processo de descolonização

Alguns estados africanos, geralmente considerados como a vanguarda do


continente, perceberam que o fato de acentuar as contradições internas existentes
na África, as contradições nas opções políticas, os modos de desenvolvimento e as
diversidades dos regimes constituíam-se, na realidade, uma arma a serviço dos
imperialistas que, ao explorá-la, pretendiam perpetuar a balcanização do
continente. Por outro lado, a evolução vertical deste ou daquele Estado, tomada
isoladamente, estava apenas consagrando seu isolamento. A divisão poderia assim
encorajar os países africanos a procurarem fora das forças de apoio para o seu
desenvolvimento12 (ANDRADE e CABRAL, 1966, p. 46)

A ausência de unidade de ação entre estados africanos recém independentes para a


promoção do desenvolvimento humano e material é o ponto chave para a resolução das
contradições criadas pelo colonialismo em África. Ambos entendem que o isolamento de cada
país ou a “evolução vertical” pode levar ao compromisso com interesses imperialistas.
Prosseguindo,

A atual conjuntura é, portanto, o resultado de um desenvolvimento progressivo de


três fases: a primeira, caracterizada pelo triunfo da pré-condição da independência;

12
Certains Etats africains, généralement considérés comme l’avant-garde du continente, s’aperçurent que le fait
d’accentuer les contradictions internes existentes en Afrique, contradictions sur les options politiques, les voies
de developpement et les diversités des régimes, constituait en realité une arme au servisse des impérialistes qui,
en l’exploitant, prétendaient perpétuer la balkanisation du continente. D’un autre côté, l’évolution verticale de tel
ou tel Etat, pris individuellement, ne faisait que consacrer son isolement. La division ne pouvait ainsi qu’inciter
les pays africains à chercher à exterieur les forces d’appui à leur développment.
49

o segundo pela busca de um conteúdo real para uma certa independência, através
de uma reivindicação de liberdade econômica; e a terceira extensão da segunda,
levando a esse equilíbrio da coexistência de razões de Estado, no contexto da
Unidade Africana, e em paralelo, a afirmação de uma personalidade própria na
África, liberada do dilema de uma escolha entre os blocos formados pelas grandes
potências. Outro elemento da conjuntura africana é representado pelos acordos
regionais baseados em cooperação econômica, ou por agrupamentos comandados
por uma herança comum da era colonial. Estes acordos e agrupamentos não
assumem necessariamente uma personalidade política, implicando em alguns casos
uma coexistência de regimes frágeis por natureza. Atualmente, esta fragilidade é
posta à prova pela manipulação de intervenções estrangeiras, especialmente no
"caso congolês". [...]. As reações constatadas diante da brutalidade da operação de
Stanleyville e suas extensões que agora constituem a "questão congolesa" mostram
a fragilidade da solidariedade inter-africana. Portanto, o problema fundamental
permanece: as contradições inerentes à natureza do poder político dos estados 13
(ANDRADE e CABRAL, 1966, p. 46-47).

Essas três fases são importantes para a consolidação dos estados africanos e, por
conseguinte, da natureza do poder político desses novos entes em formação. Para ambos, o
poder político em África deve levar em consideração a construção dessa “solidariedade inter-
africana”, para uma efetiva libertação do colonialismo. Assim,

A OUA teoricamente assume um papel instrumental na liquidação dos obstáculos


que ainda estão no caminho dos povos para a sua libertação total. É assim que os
defensores mais fervorosos da unidade africana, que são ao mesmo tempo os líderes
de experiências sociais geralmente considerados os mais progressistas da África, o
14
vêem 11 (ANDRADE e CABRAL, 1966, p. 49)

Em suma, a “libertação total” passa por uma reflexão acerca da “natureza do poder
político”, não apenas das colônias portuguesas, mas dos novos estados africanos, passa
necessariamente pela concertação e elaboração de novos instrumentos de ações onde os

13
La conjuncture actuelle est donc le résultat d’un développement progressif de trois phases: la première,
caractérisée par le triomphe du préalable de l’indépendance; la seconde par la recherche d’un contenu véritable
pour certe indépendance, à travers une revendication de liberté économique; et la troisième, prolongement de la
seconde, conduisant à cet equilibre de la coexistence des raisons d’Etat, dans le cadre de l’unité africaine, et
parallèlement, l’affirmation d’une personalitté propre à L’Afrique, libérée du dilemme d’un choix entre les blocs
formes par les grandes puissances. Un autre élément de la conjoncture africaine est representé par les accords
régionaux bases sur la coopération économique, ou par les regroupements commandés par um héritage commun
de l’époque coloniale. Ces accords et ces regroupements ne recouvrent pas nécessairement une identités des
options politiques, impliquant dans certaines cas une coexistence des régimes, fragile par nature. A l’heure
actuelle, cette fragilité est mise à l’épreuve par les manipulations des interventions étrangères, en particulier dans
<< l’affaire congolaise>>. [...].Les réactions enregistrées devant la brutalité de l’operation de Stanleyville et de
ses prolongements qui constituent aujourd’hui la <<question congolaise>> montrent la fragilité de la solidarité
interafricaine. Le problème fondamental demeure: à savoir, les contradictions inhérentes à la nature du pouvoir
politique des Etats.
14
L’OUA revêt théoriquement un carartère instrumental de liquidation des obstacles qui sont encore sur le
chemim des peuples pour leur libération totale. C’est ainsi que l’entendent les plus fervents défenseurs de l’unité
africaine, qui sont em même temps les dirigeants des expèriences sociales généralment considérées comme les
plus progressistes de l’Afrique.
49

próprios estados emergentes africanos pudessem construir suas próprias opções de


desenvolvimento livre de imperialismos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Andrade e Cabral, enquanto intelectuais colonizados, fizeram o mergulho “nas
entranhas do povo” para sair da condição de subalterno imposta pelo imperialismo colonial.
Esse passo inicial foi uma exigência para a saída da condição de subalternidade.
Esses sujeitos colonizados sentiram em seus corpos as contradições inerentes ao
processo civilizador europeu iniciado no século XVI. A função de Andrade e de Cabral para o
governo português, enquanto assimilados, era conferir legitimidade ao sistema colonial e,
enquanto intelectuais, reproduzirem os valores da modernidade eurocentrada nas elites
periféricas das colônias. Contudo, sob o contexto do pós-guerra mundial e dos processos de
independência das antigas colônias europeias, eles se engajaram nas lutas de libertação
nacional das colônias portuguesas. Isso levou a reflexão sob quais os novos princípios de
legitimidade para a construção dos novos estados-nação. Em suma, observando a trajetória
desses intelectuais e as suas produções acadêmicas é possível verificar a relação da ideologia
e o poder político. Essa conjunção de esferas de saberes foi uma constante durante o processo
de libertação das colônias portuguesas. Apesar da luta armada, ainda em 1965, estar
começando a tensão entre as ideologias que estavam circulando e a natureza do poder político
que se projetava e experimentava era o cerne das reflexões de Andrade e Cabral.
Para trabalhos futuros é necessário verificar os pontos de fricção do exercício entre
essas esferas para análise das ambivalências e da dinâmica dos processos de constituição dos
estados-nação africanos das colônias portuguesas. Os textos e experiências de Andrade e
Cabral fornece indícios para a análise da emergência desses novos valores.

REFERÊNCIAS
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49

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SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: REMOND, René. Por uma História Política.
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