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MATERNIDADE
NO MUNDO
AT LÂNT ICO
Corpo, saúde, trabalho,
família e liberdade nos
séculos XVIII e XIX
Organizadoras
Karoline Carula
Marília B. A. Ariza
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Reitor
Antonio Claudio Lucas da Nóbrega
Vice-Reitor
Fabio Barboza Passos
Conselho Editorial
Renato Franco [Diretor]
Ana Paula Mendes de Miranda
Celso José da Costa
Gladys Viviana Gelado
Johannes Kretschmer
Leonardo Marques
Luciano Dias Losekann
Luiz Mors Cabral
Marco Antônio Roxo da Silva
Marco Moriconi
Marco Otávio Bezerra
Ronaldo Gismondi
Silvia Patuzzi
Vágner Camilo Alves
ESCRAVIDÃO E
MATERNIDADE
NO MUNDO
AT LÂNT ICO
Corpo, saúde, trabalho,
família e liberdade nos
séculos XVIII e XIX
Organizadoras:
Karoline Carula
Marília B. A. Ariza
© 2022 EDUFF
E74
Escravidão e maternidade no mundo atlântico : corpo,
saúde, trabalho, família e liberdade nos séculos XVIII e XIX
[recurso eletrônico] / Organizadoras: Karoline Carula; Marília
B. A. Ariza. – Niterói : Eduff, 2022. – 6,34kb : il. ; PDF.
ISBN 978-65-5831-086-0
BISAC HIS058000 HISTORY / Women
CDD 326.09
INTRODUÇÃO 8
Karoline Carula e Marília B. A. Ariza
8
A historiografia estrangeira tem, há décadas, produzido
importantes estudos sobre as intersecções entre escravidão e
gênero e, mais recentemente, suas implicações sobre a materni-
dade escravizada. No que pesem contribuições pioneiras e
incontornáveis em nossa historiografia (DIAS, 1986; SOIHET,
1989; MOTT, 1998; MACHADO, 2011, 2012), a adesão de intelectuais
brasileiros/as a essa agenda de pesquisas ganhou impulso em
anos mais recentes, sendo acompanhada por interesse crescente
da comunidade acadêmica – perceptível em eventos, publica-
ções, cursos de graduação e programas de pós-graduação. Se,
por um lado, tal interesse é em parte motivado pela relevân-
cia e apelo público de pautas de gênero e feminismos, deve-se
também, e em grande medida, à potência crítica de estudos que
têm articulado, teórica e metodologicamente, abordagens amplas,
no espírito de grandes interpretações políticas e econômicas
e da inclinação transnacional da história atlântica, à história
social e sua vocação para análises meticulosas e aprofundadas
dos trânsitos entre grandes contextos a experiências históri-
cas comuns.
Não obstante o desenvolvimento tardio de pesquisas atentas às
intersecções entre escravidão e gênero no âmbito da historiogra-
fia nacional, um rico acúmulo de estudos produzidos por pesqui-
sadores/as brasileiros/as e estrangeiros/as já demonstrou sua
importância fundamental para a compreensão da escravidão
como fenômeno histórico de dimensões múltiplas. Estes estudos
não apenas têm contribuído para desvelar as especificidades
de experiências femininas sob a escravidão e o pós-emancipa-
ção, como também para iluminar o papel essencial desempe-
nhado por mulheres cativas e libertas na manutenção do sistema
escravista e em sua desagregação (GASPAR; HINE, 1996; COWLING
et al., 2020).
Nesse espírito, renovados olhares têm sido lançados ao princí-
pio do partus sequitur ventrem, fundamento que estabelecia a
transmissão do estatuto jurídico das mães a seus(suas) filhos(as),
extensivamente presente em sociedades escravistas america-
nas. Projetando no ventre materno as condições de legitimação
e continuidade da escravidão, tal princípio inscrevia no corpo
feminino negro as razões que justificariam, por séculos, a escravi-
zação e comodificação de sujeitos africanos e afro-descentes.
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Tornava-o, assim, objeto de dupla expropriação, ao qual se assoma-
vam formas variadas de violência, inclusive sexual, e intervenção:
dele se extraía o trabalho produtivo desempenhado nas lavouras
e cidades, e nele deitava raízes a reprodução da própria institui-
ção escravista (MORGAN, 2004; COWLING, 2013; TURNER, 2017;
MACHADO, 2018; BROWN, 1996).
A centralidade do corpo e das capacidades reprodutivas femini-
nas para a continuidade da escravidão contrastava com os termos
e condições nos quais a maternidade – aí incluídos gestação,
parto, aleitamento, cuidado dos filhos e constituição de famílias
– pôde ser vivenciada por mulheres escravizadas em diferentes
áreas escravistas das Américas, não obstante suas especificidades
(MACHADO, 2012; CARULA, 2012, 2016; GUZMÁN, 2018; MUAZE,
2018; TELLES, 2018; PIMENTA, 2018). Ainda que elas buscassem
constituir, nas brechas do domínio senhorial, formas autônomas
de controlar sua sexualidade e vida reprodutiva, exercer a materni-
dade, preservar vínculos familiares e comunitários (CAMP, 2004;
GAUTIER, 2010; MORRISON, 2015; TURNER, 2017a; ROTH, 2017;
2020), o tratamento dispensado por proprietários de escravos a
elas e seus(suas) filhos(as) correspondeu, geralmente, à invali-
dação de experiências maternas em suas múltiplas dimensões
(TURNER, 2017b; MACHADO, 2012).
Trabalhando pesadamente ao longo de toda a gravidez, privadas
de adequada alimentação e descanso, retornando à labuta tão
logo parissem, separadas dos filhos por este retorno precoce,
pela venda, abandono senhorial ou morte prematura, a elas eram
negadas prerrogativas maternas de outra sorte entendidas como
elementares, especialmente diante do crescente aburguesa-
mento de concepções de família, infância e maternidade entre
os séculos XVIII e XIX em sociedades ocidentais (DAVIN, 1997;
COSTA, 2004). Desde o Setecentos, discursos médico-científicos,
literatura colonial de viagem e outras formas de representação
cultural alimentavam e justificavam tais práticas de exploração
do corpo feminino escravizado, inclusive durante a gestação e o
puerpério, ao defender que mulheres africanas e afro-descenden-
tes seriam mais robustas e resistentes à dor quando comparadas
às brancas, além de serem desinteressadas dos filhos e incapa-
zes de prover-lhes cuidados adequados (MORGAN, 1997, 2004;
SCHWARTZ, 2006; BUSH, 2000).
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Embora índices de crescimento vegetativo positivos, como
aqueles verificados em zonas algodoeiras do sul dos Estados Unidos
ou em Barbados, não se traduzissem de fato em boas condições de
vida para mulheres escravizadas (CODY, 1996; SCHWARTZ, 2006),
os efeitos da sujeição de gestantes ao trabalho extenuante faziam-
se sentir em diferentes sociedades, nas quais taxas rebaixadas de
nascimento e números elevados de mortalidade infantil criavam
condições refratárias à reprodução natural da população escrava.
Certamente, o tráfico atlântico por longo tempo ofereceu baixos
preços e amplas facilidades para a reposição de mão de obra sem
que proprietários precisassem comprometer a máxima exploração
de mulheres cativas em nome da preservação de sua fertilidade e
da sobrevivência de seus filhos. Em colônias do Caribe britânico,
por exemplo, o emprego prioritário de escravizadas em atividades
pesadas da lavoura açucareira era pareado a índices de natalidade
bastante baixos (MORGAN, 2006). O mesmo se pôde verificar na
América Portuguesa e, mais tarde, no Império do Brasil. Ainda que
medidas de melhoria do tratamento dispensado aos escravizados
tenham sido ensaiadas a partir da década de 1830, quando proprie-
tários passaram a recear os impactos da campanha de abolição do
tráfico, a reposição da mão de obra escrava esteve garantida pelo
influxo ilegal de africanos até o fechamento do comércio transa-
tlântico de escravos, em 1850, e não pelo crescimento vegetativo
da população cativa. Neste cenário, não se constituíram políticas
efetivas e extensivas para poupar mulheres gestantes da labuta mais
extenuante nas lavouras e, assim, garantir condições favoráveis
à reprodução e à sobrevivência de crianças escravas (MACHADO,
2012; TELLES, 2018).
Se é fato que o não reconhecimento de prerrogativas maternas e
infantis, expresso em práticas senhoriais de exploração e negligên-
cia, atingia, por longo tempo e generalizadamente, as vidas de
mães e filhos/as escravizados/as, é verdadeiro também que, no
século das abolições, a maternidade escrava ganhou crescente
peso simbólico e importância política por todo o espaço atlântico.
Emergindo ainda no século XVIII, um abolicionismo britânico de
retórica sentimental, feminilizada e cristã recorria a alegorias
do sofrimento materno para demandar a extinção da escravi-
dão: mães privadas da companhia dos/as filhos/as ou obrigadas
a vê-los/as expostos/as a sofrimentos como os seus tornavam-se
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símbolos poderosos da imoralidade do tráfico atlântico, do regime
escravista e de seus defensores. A circulação desses discursos
e seus referentes fez-se evidente no movimento abolicionista
nos Estados Unidos, em franca expansão na primeira metade do
Oitocentos, mas também em diversas outras áreas escravistas –
chegando, já na segunda metade do século, com mais força em
décadas mais avançadas, ao Brasil e Cuba, baluartes da resistên-
cia escravista uma vez encerrada a Guerra Civil norte-americana
(CLAPP; JEFFREY, 2011; MORGAN, 2004; COWLING, 2013). Em todo o
espaço atlântico escravista, criaram-se representações e agências
que, no ambiente do combate à escravidão, alçavam a materni-
dade à condição de palco fundamental de embates.
Nas últimas duas sociedades escravistas das Américas, mas
não apenas nelas, políticas de emancipação gradual fundadas
na libertação do ventre reapresentaram, em novos e contradi-
tórios termos, a centralidade do corpo feminino escravizado e
suas capacidades reprodutivas para os destinos da escravidão.
Antiescravistas e escravistas valiam-se da retórica humanitária
de defesa das mães escravas e seus/uas filhos/as para pleitear ou
recusar o encaminhamento de medidas de eliminação gradativa
do cativeiro por meio da revogação do princípio do partus sequitur
ventrem. A alta carga política dos valores simbólicos da materni-
dade escrava era, ao mesmo tempo, mobilizada nas arenas jurídi-
cas, nas quais petições, ações de liberdade e disputas variadas
recorriam aos símbolos do amor inexorável, do vínculo sublime
entre mães e suas crianças e da abnegação a elas dedicada para
apresentar, numa linguagem de direitos maternos, os pleitos pela
libertação dos/as filhos/as de escravizadas.
Mais do que objetos de disputa ou alegorias de embates entre
Estado, proprietários e movimentos abolicionistas formalmente
constituídos, tais mulheres se apresentavam, em ambientes
tumultuários de desagregação da escravidão, como agentes do
processo de abolição. Não obstante o empenho por elas dedicado
à manutenção de vínculos familiares, à aquisição da liberdade
dos filhos e à melhora de suas condições de vida tenha sido
constante ao longo de séculos de escravidão, guardando-se tons
e variações de diferentes tempos e locais, seu engajamento em
disputas cotidianas com proprietários e autoridades públicas
ganhava maior densidade política diante das tensões em torno da
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extinção da instituição escravista. Ao mobilizar também represen-
tações da maternidade, de suas virtudes superiores e prerrogati-
vas incontornáveis, escravizadas colocavam-se simbolicamente
em pé de igualdade com mulheres livres, a elas se irmanando na
condição materna universal e reclamando seus direitos imaculá-
veis. Nessa medida, contribuíam diretamente para a construção de
processos de abolição que, desde fins do Setecentos, se multipli-
cavam e se conectavam em escala atlântica (SCULLY; PATON, 2005;
COWLING, 2013; CANELAS, 2017; CATEAU, 2008).
Por certo, no que pese a importância dessa atuação e o engaja-
mento para o declínio da escravidão, o fim da instituição do cativeiro
não correspondeu à possibilidade do exercício pleno e autônomo
da maternidade por mulheres egressas do cativeiro. Muitas interdi-
ções longamente experimentadas a tais vivências seriam carrega-
das ao pós-emancipação e ao pós-abolição – o afastamento dos/
as filhos/as, a exploração destes/as em arranjos de tutela e a
difícil luta pela sobrevivência acompanhariam mulheres que, em
diferentes paragens, experimentaram emancipações incomple-
tas, que passavam ao largo de quaisquer políticas de reparação
ou inclusão (ARIZA, 2020; SILVA, 2016). Mesmo livres, mães de
crianças nascidas sob o signo da escravidão precisaram repor,
continuamente, esforços para negociar os sentidos da liberdade
que elas próprias e os seus poderiam, então, usufruir.
Combinadas no espaço de cada corpo feminino escravizado e
sua trajetória, projetando-se como realidade ampla e partilhada
por mulheres cativas e libertas em diferentes tempos e lugares,
formas diversas de expropriação, violação e agência espelharam
um universo multíplice de imbricações entre escravidão, materni-
dade, marcadores sociais e raciais, relações e representações de
gênero. Escravidão e maternidade no mundo atlântico: corpo, saúde,
trabalho, família e liberdade nos séculos XVIII e XIX mergulha neste
quadro complexo por meio de onze estudos que endereçam especi-
ficidades e circularidades dos desafios da maternidade escrava
e sua relação com corpo, saúde, trabalho, família e emancipação
entre Brasil, Cuba, Caribe inglês e francês, e Argentina.
Dividido em três partes, o livro começa com “Maternidade, corpo
e saúde”, na qual a atenção se volta às dimensões mais encarnadas
e imediatas da maternidade sob a escravidão, considerando suas
implicações à saúde de mulheres e crianças e às intervenções sobre
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o corpo feminino escravizado. Tânia Salgado Pimenta abre a obra
com “Mães e filhos: vida de escravizados através de suas doenças,
Rio de Janeiro na primeira metade dos Oitocentos”, analisando
pedidos para enterramentos no cemitério da Santa Casa de Miseri-
córdia do Rio de Janeiro entre os anos de 1835 e 1838. A autora mira
uma das faces mais dolorosas da maternidade escrava: os altos
índices de mortalidade infantil que atingiam crianças nascidas sob
o cativeiro, cujos falecimentos representaram mais de 20% das
mortes de escravizados/as nos anos analisados. Reconstruindo o
cenário da escravidão na Corte no período, Pimenta leva em conta
as condições sanitárias urbanas, as condições de vida e cuidados
dispensados à saúde dos/as escravizados/as, iluminando possíveis
significados no nascimento e da morte destas crianças para suas
mães escravizadas
O capítulo seguinte, “O problema do osso ilíaco: anatomia
comparada e teorias raciais na obstetrícia da Enfermaria de Partos
do Rio de Janeiro (década de 1880)”, de Maria Helena Pereira Toledo
Machado, desvela outra dimensão das relações entre saúde e escravi-
dão – qual seja, a apropriação de corpos femininos escravizados
por saberes médicos institucionalizados. A partir da tese de Justo
Jansen Ferreira, sobre a anatomia pélvica diferencial de mulheres
da “raça negra”, defendida em 1887 na Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro, Machado reconstitui os complexos princípios e
circulação de teorias que, originadas na Europa e fundadas em
estudos de anatomia comparada, esquadrinharam e racializaram
corpos femininos, com fortes impactos na formação ginecoló-
gica e obstétrica em áreas escravistas americanas. Ao propor que
gestantes negras e escravizadas teriam compleição mais robusta
e tolerante à dor que mulheres brancas, tais pressupostos, uma
vez apropriados pela clínica obstétrica de fins do século XIX no
Brasil, redundaram em intervenções médicas invasivas e violen-
tas, muitas de caráter experimental, que guardam dolorosa atuali-
dade ainda em nossos dias.
É justamente a essas práticas e seus brutais efeitos que se dedica
o capítulo de Lorena Féres da Silva Telles, “Bacias, fetos e pelvíme-
tros: mulheres escravizadas e violência obstétrica na enferma-
ria de partos do Rio de Janeiro (década de 1880)”, o qual encerra a
primeira seção do livro. Referindo-se ao complexo cenário teórico
reconstituído por Machado, Telles aborda a clínica obstétrica da
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Enfermaria de Partos da Faculdade de Medicina num momento
em que lentes catedráticos e seus pupilos, capturando práticas
de cuidado com gestação, parto e recém-nascidos tradicional-
mente desempenhadas por mulheres, faziam de corpos femininos
escravizados plataformas de experimentação de técnicas e instru-
mentos, fortemente embasadas por teorias raciais. Ao processo
de masculinização e institucionalização da ginecologia e obstetrí-
cia na Corte, correspondiam dolorosas vivências do corpo e da
maternidade, expostos a intervenções agressivas e canhestras
que acarretavam severas consequências para a saúde e a vida de
mulheres cativas e seus filhos.
A segunda parte do livro, “Maternidade e trabalho”, tem como
eixo analítico o entrelaçamento dos mundos do trabalho e a materni-
dade de mulheres escravas, libertas e livres. Em “‘Precisa-se de
ama de leite para comprar ou conchabar’. Trabalho e racializa-
ções de gênero no contexto da abolição gradual (Buenos Aires
1800-1830)”, Florencia Guzmán leva a reflexão para a Argentina do
pós-independência, período em se iniciou o processo de abolição
gradual da escravidão. Lançando mão de uma perspectiva de gênero,
Guzmán analisa as continuidades e rupturas de diferentes formas
de trabalho – escravo, coercitivo e livre – que conviviam na urbe
portenha no período de fim da escravidão. Utilizando como fonte
anúncios publicados na Gaceta Mercantil de Buenos Aires, a autora
investiga o serviço de ama de leite, evidenciando as condições de
vida e de trabalho das nutrizes, os vínculos mantidos com suas
famílias e aquelas a que serviam, bem como com práticas de circula-
ção de crianças. Nessas condições, a atuação de mulheres negras
como amas de leite significava, ao mesmo tempo, estratégia de
sobrevivência e inserção num universo de trabalho em transfor-
mação, precarizado e racializado.
Também como olhar direcionado ao trabalho das amas de
leite, Karoline Carula, em “Maternidade escrava e amas de leite
na imprensa do Rio de Janeiro”, desenvolve um estudo sobre a
atividade de nutrizes de aluguel escravizadas na capital do Império
do Brasil. Por meio da análise de artigos noticiosos e anúncios
publicados em jornais, examinados em diálogo com outras fontes,
meandros do cotidiano da atividade das amas de leite e da materni-
dade das mulheres escravizadas são apreendidos – separação
de mães e rebentos, mortes de neonatos, o papel das parteiras
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nesse processo e no aluguel da nutriz, dentre outros. A autora
ressalta como o crescimento do movimento abolicionista e a Lei
do Ventre Livre, de 1871, trouxeram mudanças para o olhar da
imprensa sobre a maternidade das mulheres cativas. Embora o
emprego de amas de leite como método de aleitamento continuasse
a ser condenado, a maternidade escrava era referida com mais
frequência e forte retórica sentimental; a separação do/a filho/a
para que a mãe escravizada fosse colocada para trabalhar como
ama, por exemplo, marcou as páginas dos jornais com vivos tons
denunciativos.
“Experiências de maternidade entre trabalhadoras domésticas
livres no Recife da última década da escravidão (1880)”, de Maciel
Henrique Silva, é o capítulo que conclui as discussões de “Materni-
dade e trabalho”. Analisando processos-crime de defloramento
levados a cabo na cidade e década em questão, o autor problema-
tiza noções de honra sexual e vínculos paternalistas mobilizados
em casos envolvendo criadas domésticas e suas filhas, expostas
a violações sexuais no ambiente pretensamente protegido das
casas dos patrões. Ao jogar luz sobre imbricações entre gênero,
processos de racialização e desclassificação social, Silva aborda
trajetórias de mulheres empobrecidas, trabalhadoras de estatuto
racial ambíguo, libertas ou livres, partes de extratos sociais intima-
mente vinculados à escravidão, sobre as quais pesavam preconcei-
tos e vulnerabilidades diversas que se prolongavam do cativeiro
ao pós-emancipação. Busca-se, assim, demonstrar como mães e
filhas reclamaram para si sentidos de distinção moral e direitos
que lhes eram negados por membros da camada proprietária e
branca recifense.
A última parte do livro, intitulada “Maternidade, família e
liberdade”, volta-se às intersecções entre maternidade, políticas
natalistas, políticas de administração da escravidão e disputas
em torno da emancipação em diferentes sociedades atlânticas.
Abrindo a seção, o capítulo de Heather Cateau, “A administração
da maternidade em sociedades escravistas do Caribe britânico no
século XVIII”, explora as contraposições entre medidas senhoriais
de estímulo à reprodução da escravidão e agência de mulheres
escravizadas em luta pelo exercício autônomo da maternidade na
Jamaica colonial. Contornando a exiguidade de fontes primárias
diretamente relacionadas à maternidade escrava na região – comum,
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diga-se, às demais áreas escravistas –, a autora explora registros
produzidos por membros da administração colonial e da classe
proprietária, como os famosos diários de Thomas Thistlewood e
Lady Nugent, de modo a desvelar aspectos cotidianos da relação
entre senhores, seus prepostos, mães escravizadas e seus filhos.
Adotadas no contexto de pressões pela abolição do tráfico de
atlântico de escravos, em fins do século XIX, medidas pró-natalis-
tas e de ampliação de cuidados com a infância escravizada eram
matizadas pela ação de mães cativas, que, apoiadas em tradições
culturais e vínculos comunitários, forjavam formas próprias de
educar e cuidar dos seus.
Em “Maternidade, alforria e direitos no Caribe francês (século
XIX)”, Letícia Gregório Canelas investiga as intersecções entre
alforria, gênero e o contexto de transformações políticas na França
entre a Monarquia de Julho e a Segunda República. Canelas demons-
tra que, diante da circulação de ideário liberal simpático a discur-
sos antiescravistas no espaço atlântico, a experiência e os valores
simbólicos da maternidade desempenharam papel fundamental na
construção do processo de abolição nos domínios coloniais france-
ses. Sublinhando as dimensões transnacionais deste processo,
apoiando-se em textos legais, documentação judicial e escritos
de abolicionistas franceses, a autora joga luz sobre a atuação de
mulheres escravizadas e libertas engajadas em disputas pela emanci-
pação dos filhos que consumiam anos de mobilização, investimento
financeiro e enfrentamento dos poderes senhoriais enraizados
na burocracia colonial. Deslocando-se das colônias caribenhas
aos tribunais da metrópole, essas disputas e as mulheres que as
protagonizavam somavam parte num movimento ampliado de
dimensões sociais, políticas e jurídicas que ensejou a amplia-
ção dos acessos a alforria no Caribe francês e contribuiu para a
desagregação da escravidão na França e seus domínios ultrama-
rinos na primeira metade do século XIX.
Em seguida, Mariana Muaze mira o contexto da grande lavoura
cafeeira de fins de século para discutir, no capítulo “Experiên-
cias maternas no cativeiro: gênero, família e trabalho nas grandes
plantations cafeeiras do Vale do Paraíba (XIX)”, o enfrentamento
de mulheres escravizadas a tentativas senhoriais de controlar seu
trabalho e sua vida reprodutiva. Ao traçar um panorama das dinâmi-
cas econômicas da região e recorrendo a manuais de fazendeiro e
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processos-crime, a autora explora as oposições entre estratégias
de administração da população escravizada feminina – com ênfase
nas recomendações a respeito da reprodução natural da escravi-
dão – e práticas de resistência cotidianas adotadas por mulheres
cativas. Diante dos dramas e dificuldades que marcavam a materni-
dade escrava naquele contexto e em luta para criar seus filhos
e conquistar sua liberdade, elas se apoiavam em laços familia-
res e redes de solidariedade, forjadas na própria plantation e em
sua vizinhança.
Deslocando novamente o eixo da discussão ao Caribe colonial,
Karen Y. Morrison aborda dinâmicas de reprodução e formação
de famílias sob a escravidão em Cuba, em fins do século XVIII
e ao longo do século XIX, no capítulo intitulado “Para além do
conceito de ‘chattel’: sexualidade, casamento e legitimidade sob
a escravidão em Cuba no período colonial tardio”. Partindo dos
índices declinantes de legitimidade de crianças escravas, visíveis
sobretudo a partir de 1830, e reportando-se a um cenário de tensões
crescentes entre Estado, Igreja e pressões em torno da efetiva
eliminação do tráfico atlântico, Morrison problematiza as respos-
tas de proprietários de escravos a medidas antes predominan-
tes de restrição a uniões informais entre sujeitos escravizados
– ou entre cativas e homens livres. Busca-se, assim, compreender
como mulheres escravizadas procuraram preservar sua autonomia
familiar e sexual diante de costumeiras violências, da ameaça de
venda em separado de entes familiares e das tentativas senhoriais
de implementar mecanismos de controle da reprodução.
Encerra a terceira seção deste livro o capítulo de Marília B.
A. Ariza, “O longo caminho: usos da Lei do Ventre Livre por mães
libertas (São Paulo, década de 1880)”. Nele, a autora problema-
tiza o emprego de um dispositivo específico da lei em questão,
que admitia às mulheres que a partir de então se libertassem ter
em sua companhia os/as filhos/as menores de oito anos de idade,
ingênuos ou não, qualquer que fosse seu destino após a emancipa-
ção. Baseando-se em textos legais, registros de debates legislativos
e petições pela tutela de crianças escravizadas, Ariza reconstrói
disputas entre mulheres libertas e proprietários na década final
da escravidão. Apoiando-se no fervilhante ambiente abolicionista
da cidade, tais mulheres reclamavam direitos que asseguravam,
ao menos formalmente, a possibilidade de cuidar dos/as filhos/
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as e gerir suas famílias com independência, ajudando a moldar
os caminhos da abolição e do pós-abolição no Império. Encontra-
vam, em contrapartida, a pertinácia de ex-senhores apegados a
direitos de propriedade, que as empurravam a longos empreen-
dimentos em busca da liberdade.
Por meio de abordagens e recortes distintos, os capítulos aqui
reunidos evidenciam a complexidade das vivências da materni-
dade escrava em sociedades escravistas atlânticas – seus desafios,
lutas, amores e resistências. Desejamos boa leitura e reflexão!
19
Referências
BUSH, Barbara. “Sable venus”, “she devil” or “drudge?”. British slavery and
the “fabulous siction” of black women’s identities, c.1650–1838. Women’s
History Review, v. 9, n. 4, p. 761-789, 2000.
20
CATEAU, Heather. Amazing grace? Revisiting the issue of the abolition-
ists. Journal of Caribbean History, v. 42, n. 1, p. 111–30, 2008.
CLAPP, Elisabeth J.; JEFFREY, Julie Roy. Women, discent and anti-salvery in
Britain and America, 1790-1865. Oxônia, RU: Oxford University Press, 2015.
FR E I R E , J o n i s; CAR U L A , Ka ro l i n e ( o rg . ) . Ra ça , g ê n e ro e cl a s s e :
trabalhadores(as) livres e escravizados(as) no Brasil. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2020.
GASPAR, David; HINE, Darlene (eds.). More than chattel: black women and
slavery in the Americas. Bloomington and Indianapolis: Indiana Univer-
sity Press, 1996.
21
GOMES, Flávio dos S.; XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana B. (org.).
Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação. São Paulo,
Selo Negro, 2012.
MORGAN, Jennifer L. “Some could suckle over their shoulder”: male travel-
ers, female bodies, and the gendering of racial ideology, 1500–1770. William
and Mary Quarterly, v. 54, n. 1, p. 167-192, 1997.
22
MUAZE, Mariana de Aguiar Ferreira. Maternidade silenciada: amas de
leite no Brasil escravista, século XIX. In: XAVIER, Regina Célia; OSÓRIO,
Helen (org.). Do tráfico ao pós-abolição: trabalho compulsório e livre e a
luta por direitos sociais no Brasil. São Leopoldo, RS: Oikos, 2018. p. 360–91.
SILVA, Maciel H. Nem mãe preta, nem negra fulô: histórias de trabalhado-
ras domésticas em Recife e Salvador (1870-1910). Jundiaí, SP: Paco
Editorial, 2016.
23
TURNER, Sasha. The nameless and the forgotten: maternal grief, sacred
protection and the archive of slavery. Slavery & Abolition, v. 28, n. 2,
p. 232–50, 2017b.
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PARTE 1
MATERNIDADE,
CORPO E SAÚDE
25
MÃES E FILHOS: VIDA DE ESCRAVIZADOS
ATRAVÉS DE SUAS DOENÇAS, RIO DE JANEIRO
NA PRIMEIRA METADE DO OITOCENTOS
26
Barbosa (2014; 2016) que aprofundam a análise acerca das observa-
ções sobre as doenças e o tratamento dado aos escravizados nas
grandes fazendas e conselhos médicos para a preservação dessa
força de trabalho. Outro aspecto explorado refere-se à identifi-
cação, nos relatos de médicos, das enfermidades sofridas pelos
trabalhadores escravos. Algumas dessas pesquisas aprofunda-
ram o estudo sobre as doenças, recorrendo ao cruzamento com
outras fontes como inventários post mortem, registros de óbitos
e livros de internamento de hospitais.
Desse modo, o quadro nosológico dessa população tem sido
preenchido por informações de diversos contextos da escravidão
no Brasil, o que contribui para a compreensão sobre as condições
de vida dessas pessoas. Na cidade do Rio de Janeiro, Karasch (2000)
apresenta como as principais causas de mortes de escravizados, na
primeira metade do século XIX, as doenças agrupadas no rol das
moléstias infecto-parasíticas, em que constam tuberculose, varíola,
tétano, febres intermitentes e perniciosas, febre amarela, tifo,
sarampo, escarlatina, oftalmia, sarna, erisipela branca, elefantíase,
sífilis, entre outras. Para Salvador, no mesmo período, os cativos
atendidos no hospital da Misericórdia sofriam de doenças infecto-
-parasíticas, ou seja, tuberculose, a bexiga e a sífilis (BARRETO;
PIMENTA, 2013). Ao pesquisar os registros do mesmo hospital sotero-
politano, em período posterior e com foco nos africanos, Gabriela
Sampaio (2019) aponta decrepitude, tuberculose e anemia como
as enfermidades mais registradas entre esse grupo. Em Aracaju,
na segunda metade do Oitocentos, as doenças infecto-parasíti-
cas também constavam entre as principais causas de morte dos
escravizados, conforme Bárbara Santos (2020). Em Pelotas, região
de charqueadas, na segunda metade do século XIX, os escravizados
eram acometidos, principalmente, por tuberculose, febre tifoide,
varíola, disenteria e boubas (LONER; GILL; SCHEER, 2012). Em Porto
Alegre, no mesmo período, faleciam, principalmente, de doenças
como tuberculose, varíola, disenteria, hidropisia, diarreia, consti-
pação (MOREIRA, 2019). Na Ilha de Santa Catarina, no entanto, a
tuberculose não aparecia com frequência entre os internados no
hospital, mas havia doentes de boubas, bexiga, disenteria, sífilis
no início da segunda metade do Oitocentos (MATTOS, 2016).
Com esses estudos, destaca-se a importância da problemati-
zação da fonte, pois é necessário atentar para as diferenças entre
27
as documentações utilizadas, uma vez que o médico que preenchia
o formulário de acompanhamento de um cativo internado em
hospital talvez não tivesse o mesmo cuidado ao indicar a causa
mortis no registro de óbito (OLIVEIRA, 2018). Um avaliador de bens
de um inventário, por sua vez, teria intenções bem diferentes das
do médico ao apontar doenças ou deficiências de um escravizado.
Assim, vale destacar também que essas fontes mostram experiên-
cias diferentes. Enquanto algumas fontes indicam doenças que
levavam à morte, como os registros de óbito, outras possibilitam
identificar moléstias que causavam sofrimento e deixavam escravi-
zados incapacitados para o trabalho por algum período, como os
registros de entrada e saída de hospitais. Outro tipo de documenta-
ção pode tratar ainda daquelas enfermidades ou condições físicas
que anulavam ou limitavam a capacidade de trabalho, a exemplo
do que podemos observar nos inventários post mortem.
Ao trabalhar com documentos relacionados a óbitos, Karasch
(2000) procurou classificar as doenças que causaram morte em
infecto-parasíticas, dos sistemas digestivo, respiratório, nervoso,
circulatório e geniturinário, doenças reumáticas e nutricionais,
da primeira infância, de morte violenta ou acidental, gravidez
e parto, a fim de melhor associá-las às condições de vida que
propiciam o desenvolvimento de cada grupo de enfermidade ou
de situações que levavam à morte no parto. Essa classificação não
é tarefa fácil, pois foi em meados do século XIX que o hospital da
Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro estabeleceu uma
lista de doenças que deveriam ser usadas pelos médicos, com o
objetivo de uniformizar os diagnósticos e, na prática, essa nosolo-
gia ainda demorou a ser seguida dentro e fora do hospital. Além
disso, a própria concepção oitocentista sobre doença torna mais
complicada a classificação das enfermidades ao indicar, muitas
vezes, o que consideramos sintoma, como febre, por exemplo,
como sendo a doença em si. Certamente, quando as anotações
eram feitas por um leigo, a imprecisão em relação aos critérios
atuais aumenta bastante.
A presente pesquisa utiliza a mesma fonte – os encaminha-
mentos de enterramentos no cemitério da Santa Casa da Misericór-
dia do Rio de Janeiro – da qual Karasch (2000) extraiu seus dados
sobre as causa mortis de escravizados em geral para os anos de
1833, 1838 e de 1849, sobre os quais a autora agrega cruzamentos
28
com diversas outras documentações. Nossa análise baseia-se nos
anos de 1835 e 1838, dos quais escolhemos os meses de janeiro,
abril, julho e outubro.1 Trata-se de uma pesquisa em andamento,
em processo de sistematização e análise de dados, que se referem
ao dia da morte, dia do enterramento, nome do falecido, procedên-
cia, sexo, idade, nome dos pais em caso de crianças, causa mortis,
condição jurídica, nome do proprietário, endereço do proprietário,
nome do médico ou autoridade que assina o documento. Como não
são registros com formatação definida, o que começará a aparecer
com mais frequência no final da primeira metade do século XIX,
há considerável variação, mas parte significativa apresenta as
informações indicadas. Tal variação é consequência da diversidade
de documentos que compõem a fonte, sob guarda do Arquivo da
Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Trata-se de atesta-
dos de óbito assinados por médicos ou cirurgiões; bilhetes ou
guias assinadas por inspetores de quarteirões ou por juízes de
paz encaminhando tanto falecidos identificados, fossem escravos,
libertos ou livres pobres ou corpos sem identificação encontrados na
porta de igrejas, praças ou praias, quanto solicitações do adminis-
trador da Casa de Correção para o enterro de presos, que podiam
ser escravizados, libertos e africanos livres. Há ainda bilhetes tão
singelos, talvez redigidos com pressa, que não apresentam nem
data, nem local, nem assinatura, como esse: “Vai esse anjinho
por nome Guilhermina, escrava de Bento Antonio Vahia, que será
enterrada na Santa Casa”, encontrado no material de abril de 1838
(SANTA CASA, 1838).
Desde o final do século XVII até 1827, a Santa Casa da Miseri-
córdia dava sepultura a escravos mediante pagamento nos terrenos
atrás de seu hospital. Em 1827, parte da chácara pertencente ao
hospital Militar foi concedida à Misericórdia, que passou a enterrar
ali os cadáveres de despossuídos, indigentes, presos e escraviza-
dos. Com o projeto de obras para construção do novo hospital, o
provedor José Clemente Pereira transferiu, em 1839, o cemitério
para a ponta do Caju (RODRIGUES, 1997, p. 237–8). R. Walsh, que
esteve no Rio de Janeiro entre 1828 e 1829, visitou a Santa Casa
da Misericórdia e relatou que no fim do corredor havia
1 Alguns anos não apresentam todos os meses, por isso estabelecemos meses
em comum nessa análise.
29
um grande cemitério, o refúgio geral dos pobres, qualquer
que seja o lugar onde tenham morrido. O enterro é muito
simples; faz-se uma cova profunda onde os corpos são
colocados. Antes de serem enterrados aí, são deposita-
dos sobre um estrado numa casinha que fica no meio do
cemitério, até que haja um número suficiente de corpos.
Então é realizada a cerimônia fúnebre para todos eles,
que são colocados na cova sem os caixões. Algumas vezes
nus, mas normalmente envoltos em lona. São coloca-
dos de lado, geralmente com a cabeça virada para os pés
do outro. Nunca estive nesse lugar sem que houvesse
menos de quatro ou cinco corpos esperando para serem
enterrados e ao sair sempre me encontrava com outros
chegando. (WALSH, 1985, p. 170)
30
grossa das autoridades para a situação, que relaxaram ao máximo
os requisitos de prova de posse legal de cativos, contribuíram
para a precariedade da liberdade de pretos e pardos escravos,
alforriados e livres que corriam o risco de serem reescravizados
(CHALHOUB, 2012, p. 47–55).
Nesse contexto, parte desses africanos, debilitados pela traves-
sia, teve pouco tempo para reconstruir suas vidas do outro lado do
Atlântico. Além disso, tanto nascidos no Brasil quanto na África
enfrentavam “uma correlação complexa entre descaso físico,
maus-tratos, dieta inadequada e doença” que podia levá-los à
morte (KARASCH, 2000, p. 207). É possível, apesar desse cenário
desolador, estabelecer algumas relações entre os escravizados por
estarem ligados ao mesmo senhor, ainda que alguns pudessem
viver sobre si, conforme os quatro exemplos a seguir. Por meio
dos encaminhamentos de enterros, identificamos senhores que
perderam dois ou três cativos em curtos intervalos, mas que,
provavelmente, poderiam ser repostos sem grande dificuldade
pelo proprietário, dado o incremento do tráfico ilegal.
Assim, Jose Victorino Ventura Pinheiro, morador no Beco
do Suspiro, n. 16, freguesia de Santa Rita, perdeu ao menos dois
escravos em 1838. O crioulinho Mariano, filho de Marianna, que
“desde o seu nascimento nunca gozou de saúde e expirou em um
estado de marasmo”, 2 e Luzia Benguela, que faleceu de anasarca. 3
Ambos tiveram os atestados de óbito assinados pelo cirurgião José
da Cunha Santos. Laurindo José da Silva Sena, morador na Rua
dos Ourives, n. 9, também perdeu dois cativos. Em 11 de janeiro de
1838, Maria, de nação Cabinda, “10 para 12 anos”, faleceu de uma
disenteria, e no dia seguinte Antonio, da mesma nação, “15 anos
pouco mais ou menos”, sucumbiu aos efeitos de uma gastroen-
terite (SANTA CASA, 1838).
O preto José morreu em julho de 1838 de pleuris complicada
com retrocesso de sarnas. Três meses depois, o moleque André de
nação Cabinda não resistiu a uma peritonite aguda com sintomas de
31
varíola confluente. Ambos pertenciam a João Bernardo de Carvalho,
morador na Rua do Sabão, n. 111, e tiveram seus atestados de óbito
assinados por João Francisco de Souza, formado em cirurgia. Por
fim, Jose Antunes da Silva, morador na Rua do Valongo, n. 38,
perdeu no mesmo dia duas cativas: as crioulinhas Maria, de 30
dias, e Carlota, de 9 meses, que morreu de pneumonia.
4 Lycurgo Santos Filho considera como marco de criação dessa Escola a nomea-
ção do cirurgião Joaquim da Rocha Mazarém para a cadeira de anatomia. Quanto à
Escola de Cirurgia da Bahia, não há dúvida em relação à data de criação, conforme
a ordem do Príncipe Regente de 18 de fevereiro de 1808 (SANTOS FILHO, 1991).
5 Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica no Rio de Janeiro, que ganhou um plano
de estudos em 1813, passando a ser conhecida como Academia Médico-Cirúrgica
6 Naquele momento, enfatizava-se que a carta de cirurgião habilitava o aprovado
a exercer a cirurgia, enquanto a carta de cirurgião formado permitia o exercício da
cirurgia e da medicina. Lei de 9 de setembro de 1826 (BRASIL, 1880). Além disso,
médicos e cirurgiões formados no exterior também podiam obter autorização
para atuar no Brasil.
32
curar. Na década de 1830, enfrentavam muitas dificuldades para
assistir, em especial, mulheres, parturientes e crianças pequenas
que, geralmente, eram acompanhadas por parteiras que haviam
aprendido com outras mais velhas.
Os atestados de óbito assinados por cirurgiões e médicos
constituíam, desse modo, uma atividade importante para seu
nascente mercado de trabalho. Na maior parte dos casos, não
sabemos se os médicos apenas assinaram ou se também trataram
dos escravizados, mas recebiam o pagamento dos proprietários
de acordo com o serviço prestado. Além disso, ao desempenha-
rem essas funções, tinham também a oportunidade de colocar em
prática seus conhecimentos e adquirir experiência, talvez antes de
começar a atender grupos mais abastados. Ainda mais: a mando
dos senhores teriam acesso a corpos de escravizadas, de escravi-
zadas grávidas e seus bebês.
As indicações sobre a assistência médica se resumem a
afirmar que os escravizados falecidos receberam tratamento
e, por vezes, especificavam o período. Por exemplo, o atestado
de Carolina, preta, 10 anos, escrava de Joaquim Henrique da
Silva, afirmava que sua doença, gastroduodenite, teve duração
e tratamento de 20 dias. Já Maria, de 13 a 14 anos de idade, “não
obstante o tratamento empregado”, morreu de “febre remitente
acompanhada de uma gastroenterite (inflamação de estômago e
intestinos)” em outubro de 1838, conforme atestado do dr. Jose
Bento da Rosa. A menina Justa, de 8 anos, cativa do comenda-
dor João da Costa Lima, morador na Rua de São Pedro, casa nº
190, também não resistiu, “não obstante o tratamento prestado”,
depois de muitos dias de moléstia, uma febre remitente perniciosa
com inflamação do fígado e estômago. O cirurgião formado pela
Academia Médico-Cirúrgica, Marcos da Silva Cunha Lima, assinou
o seu atestado, como também o de Isabel, africana. “Ao fim de
muito tempo de moléstia e tratamento”, Cunha Lima, que também
era membro da Academia Imperial de Medicina, afirmava que a
escrava havia morrido, em janeiro de 1838, de “uma lesão orgânica
do coração (atrofia das paredes do coração, com estado anêmico
geral)” (SANTA CASA…, 1838).
O tratamento realizado por médicos acadêmicos poderia não
ser desejado pelos escravizados, que, em geral, prefeririam pratican-
tes das artes de curar que compartilhassem de suas concepções
33
de doença e de cura (PIMENTA, 1998). Marie Jenkins Schwartz
(2006), em estudo sobre maternidade e medicina antes da guerra
da Secessão no sul dos Estados Unidos, mostra como mesmo em
momentos de maior vulnerabilidade dos escravizados havia espaço
para negociação e resistência. Assim, poderiam não avisar sobre
suas doenças ou não seguir as orientações dos médicos. Claro
que em situações em que a enfermidade fosse mais grave, como
nos casos registrados que de fato levaram à morte, ficaria mais
difícil de esconder.
Muito provavelmente, os corpos encontrados por inspetores
de quarteirão em ruas, praças e praias não receberam nenhuma
assistência durante a vida, mas deveriam ser submetidos a um
corpo de delito ou autópsia, conforme o caso, o que constituía
mais uma atividade médica garantida nas posturas municipais.
Assim, em outubro de 1835, o inspetor da freguesia de Santa Rita
afirmava que o preto que “apareceu morto na Rua Direita, na casa
n. 233, não poderá ser sepultado sem passar pelo corpo de delito”
(SANTA CASA…, 1838). Em abril de 1838, outro inspetor da mesma
freguesia solicitava que o mordomo da Santa Casa da Misericórdia
mandasse uma rede para conduzir o cadáver que foi achado na Praia
dos Mineiros, que poderia ser sepultado depois de corpo de delito.
Por vezes, as escravizadas poderiam ser atendidas por seus
próprios senhores. Alguns utilizavam manuais, comuns desde o
século XVIII, sua própria experiência no tratamento de cativos e
recomendações de outras pessoas. Outros eram, eles próprios,
médicos, como o dr. José Pereira Rego (SANTOS FILHO, 1991,
p. 499-500).7 O fato de não ter assinado o atestado de óbito de
sua escrava não garante que não a tenha medicado. Seu colega
Jacintho Rodrigues Pereira Reis (SANTOS FILHO, 1991, p. 198,
310, 397, 525),8 em janeiro de 1838, atestou que a preta Domingas
34
havia morrido de pneumonia. No caso de José Maria Bomtempo
(SANTOS FILHO, 1991, p. 10, 47–48),9 sua cativa Germana faleceu
de diarreia, no mesmo ano e mês. Seis meses depois, Bomtempo
mandou enterrar Julia de “nação Angola” que havia morrido de
febres intermitentes.
Diversas doenças que vitimavam os escravizados eram tidas
como provenientes da África, trazidas “com o comércio imoral e
desumano da escravidão” (REGO, 1872, p. 26). Assim, a correspon-
dência entre a chegada de navios negreiros e a eclosão de surtos
e epidemias estava bastante evidente para muitos médicos. Um
dos fundadores da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro e
editor de alguns periódicos especializados, como O Propagador
das Ciências Médicas e o Diário de Saúde, José Francisco Xavier
Sigaud (1796-1856),10 apontava a lepra, a oftalmia e a bouba como
doenças trazidas pelos africanos. No entanto, assinalava também
que muitas outras haviam chegado por intermédio dos europeus
ou já existiam aqui.
Alguns esculápios defendiam a salubridade do clima brasileiro,
que os teria poupado dos avanços da pandemia de cólera durante
a primeira metade do século XIX, mas outros estavam bem atentos
às epidemias que anualmente assolavam cidades como o Rio de
Janeiro. Em seu levantamento sobre as moléstias que grassavam
na Corte, Pereira Rego destacou que, em 1835, as febres intermi-
tentes diminuíram no início do ano e uma epidemia de bronquite
ou catarral tomou lugar, fazendo vítimas entre as crianças. Com
a diminuição da temperatura e as chuvas copiosas, no segundo
trimestre, apareceram muitos casos de severas febres intermi-
tentes e remitentes.
De agosto em diante, a situação piorara com a epidemia de
sarampão, varicela, varíola de mau caráter, anginas, erisipelas
flegmonosas, notando-se também “frequentes casos de mania,
máxime no sexo feminino” (REGO, 1872, p. 10). Em 1838, a população
35
do Rio enfrentou fortes epidemias de varíola e de escarlatina, que
“espalhou terror e consternação em todos os habitantes desta corte
pelas vidas preciosas que ceifava” (ibid., p. 27). Contudo, não há,
necessariamente, uma correspondência entre o relato de Rego e os
dados das amostras de 1835 e 1838, porque os encaminhamentos
de enterro dizem respeito a escravizados, libertos e livres pobres.
36
documentos, o importante era registrar o nome do proprietário.
Mais improvável seria que mães e seus filhos estivessem juntos
nos casos das crianças africanas trazidas pelo tráfico atlântico,
muito provavelmente, já no período de ilegalidade. Como nos
mostra Carlos Vallencia Villa e Manolo Florentino: “Sob constante
estrangulamento por parte da Inglaterra desde 1810, o trato de
gente parece haver se adaptado até seu derradeiro fim, em 1850,
a um padrão de demanda pautado em crescentes aquisições de
crianças africanas” (2016, p. 3).
Em 1835, entre as crianças cuja procedência havia sido identifi-
cada, 43 teriam nascido no Brasil, enquanto apenas 6 foram conside-
radas africanas. Destas, chama a atenção “um pretinho africano
de um ano pouco mais ou menos” que pertencia ao carregamento
do Brigue Amizade Feliz. Faleceu de “diarreia epidêmica”, o que
era bastante comum nas aglomerações a que eram submetidos
os africanos escravizados. Um bebê ser capturado pelo tráfico
e sobreviver à travessia atlântica é que era bastante incomum.
Para tanto, o menino teve de contar com a proteção de adultos,
provavelmente sua mãe e/ou parentes entre as centenas de pessoas
que compartilharam essa experiência. Conforme explica Beatriz
Mamigonian, os africanos do Amizade Feliz foram misturados
aos da escuna Angélica após a apreensão de ambas as embarca-
ções pela marinha brasileira em acordo com a lei de 1831, que
proibia a importação de escravos para todo o país. Identifica-
mos que alguns dos que vieram no Amizade Feliz e no Angélica
sucumbiram pouco depois de aportarem ao Brasil, como o bebê
de quem não sabemos nem mesmo o nome. Outros chegaram
a ser distribuídos a particulares e instituições públicas, como a
Casa de Correção e ali morreram, conforme indicam os registros
de 1835: o “preto boçal n. 66”, “os africanos no. 44 e no. 165” e
o “africano no. 142” (SANTA CASA…, 1835). Todos esses fizeram
parte dos 46,8% dos africanos emancipados e distribuídos para
o serviço na década de 1830 que faleceram sem terem recebido
a carta de emancipação definitiva (MAMIGONIAN, 2017, p. 388).
Nos registros analisados de 1838, 20 crianças foram identi-
ficadas como africanas. Assim, encontramos Feliciana, 10 anos, e
João, 11 anos, ambos associados a Cabinda, cujas doenças que as
levaram à morte foram disenteria e hidropisia, respectivamente.
George, 9 anos, Benguela, faleceu de bexigas confluentes. Paulo
37
Calabar, 5 anos, morreu de hepatite crônica, enquanto Manoel
de Nação, tido como um menino de 4 anos, sucumbiu à epilep-
sia. Com 12 anos vários eram os africanos: Pedro, Moçambique;
Raquel, Roza, Paulo e Agostinho Angola; Filippe e José Congo.
Todos esses faleceram, respectivamente, de afecção do bofe
(pulmão), bexigas, gastroenterite, disenteria e febre. Entre os 48
infantes ditos crioulos, observamos doenças semelhantes aos dos
africanos que podem ser enquadradas em infecto-parasíticas,
como tuberculose, disenteria e varíola, além das verminoses; da
primeira infância, como mal dos sete dias, problemas relaciona-
dos à dentição, espasmos, convulsões; do sistema digestivo, como
gastroenterite, diarreia, hepatite; do sistema respiratório como
bronquite e pneumonia. Os restantes que não foram identifica-
dos como nascidos na África ou no Brasil também apresentavam
as mesmas doenças.12
Os médicos da época identificavam problemas de dentição como
uma causa importante de morte entre as crianças. Foi assim que
Maria, de 7 meses, morreu em julho de 1835, segundo o cirurgião
João Antonio de Azevedo “de dentição dificultosa; por efeito da
irritação das partes tenras nervosas de grande sensibilidade; por
efeito de outras afecções que já sofria sua duração foi de 12 dias”
(SANTA CASA…, 1835). Em 11 de outubro de 1838, a crioula Anna
faleceu, com 1 ano e 2 meses, de acordo com o cirurgião Antonio da
Costa, devido a uma dentição trabalhosa, complicada com febres
intermitentes, do que sofria há mais de 20 dias. Dentição laboriosa
também foi a causa da morte do filho de Rita, Manoel, no mesmo
dia. Alguns meses antes, Gregório, de 1 ano, falecera de disente-
ria causada por dentição complicada e afecção verminosa. Esses
exemplos ilustram a dimensão dada ao problema.
O médico alemão, Reinhold Teuscher, que observou algumas
fazendas de café na região de Cantagalo na província do Rio de
Janeiro, chamava atenção para as diarreias que acometiam muito
as crianças, “causadas a maior parte das vezes por indigestão de
vermes intestinais, ou pela época da dentição; o maior perigo
ocorre no período de saída dos dentes caninos, entre 18 e 20 meses”
(TEUSCHER, 1853, p. 11).
38
A fase da dentição, portanto, era considerada pelos médicos da
época potencialmente perigosa, podendo ter consequências que
iam muito além da boca como teria acontecido com Tito que, “não
obstante o uso de vários remédios” (SANTA CASA…, 1838), morreu
de uma grande inflamação no fígado, proveniente da dentição. Ou
ainda com Mathias, de 6 meses, filho de Tereza, que teve convul-
sões precedidas da dentição. Ambos faleceram em 1838.
Mary Karasch considera que muitas mortes por convulsão
e dentição entre um e seis meses seriam causadas por beribéri,
desenvolvida por falta de tiamina na alimentação. Está associada
a populações que consomem alimentos pobres em vitamina B1,
como mandioca, farinha de mandioca, farinha de trigo (KARASH,
2000, p. 254). Assim, é importante considerar que a suscetibilidade
às doenças e o seu agravamento se relaciona com as condições
de vida dessas crianças. A desnutrição e a carência de minerais
e vitaminas específicas podiam levar à morte ou agravar outras
doenças, como disenteria, verminoses, tuberculose e pneumonia
(p. 217, 246–247). Quando os filhos das escravizadas eram desmama-
dos e começavam a comer alimentos como farinha de mandioca
e feijão, não tinham as suas necessidades nutricionais supridas.
Se não tinham acesso a alimentos ricos em proteína e ferro, não
era raro as crianças passarem a comer terra e morrerem, muitas
vezes de diarreia, conforme aponta Karasch (p. 200).13
Mães e filhos
Quando uma criança pequena começava a manifestar alguma
doença, os primeiros cuidados seriam dados pela mãe, ainda que
as mães escravizadas não fossem consideradas nesses trâmites
burocráticos, ou por pessoas próximas. Porém, um bilhete avulso
ilustra toda a delicadeza da situação. Ao encaminhar um menino
e uma menina à Santa Casa para serem enterrados, a pessoa
13 Em seu estudo sobre a cidade do Rio de Janeiro, Karasch identifica o problema
de desnutrição entre crianças pequenas como consequência do uso das escravi-
zadas como amas-de-leite (2000, p. 199, 200). Entre as mães escravizadas da zona
rural, a necessidade de voltar ao trabalho também comprometia, muitas vezes, a
continuidade da amamentação.
39
que escreve, em dezembro de 1841, registra: “Por maizinha Luiza
Antunes”. Certamente não se tratava de uma escravizada, mas
provavelmente de uma mulher pobre.
Apenas 11 mães escravizadas apareceram no material
analisado de 1835 e num desses casos o nome do pai, Maximiano,
foi registrado ao lado do nome da mãe, Afra, como pais do criouli-
nho que nasceu morto. Vicência, crioula, acompanhou sua filha
Maria, de mais ou menos 2 meses, morrer de febre. Cipriana, filha
de Madalena Cabinda, e Sebastião, filho de Catharina Benguela,
foram encaminhados para o cemitério sem que fossem registra-
das as causas mortis. Não sabemos se tiveram alguma assistên-
cia médica. Sebastião, com 5 meses, filho de Catharina, não teve
a causa de sua morte registrada. Em 1838, localizamos 14 mães
escravizadas. Joana perdeu sua filha Maria, recém-nascida, de
hidropisia. Vicente Rebolo e Felicidade Mina perderam seu filho
Eleutério, de nove meses. Os crioulinhos Mariano, filho de Mariana,
e Vicência, filha de Carolina de nação, morreram de marasmo e
catarro pulmonar, respectivamente.
Apesar de a faixa etária da criança não ter sido identificada
em quase metade dos casos, podemos considerar que parte
desses registros se referisse a bebês. Alguns devem ter morrido
em decorrência das diversas doenças infecto-parasíticas a que
estavam expostos. Outros talvez sucumbissem às complicações no
parto e ao mal de sete dias. Nesse contexto, é razoável imaginar-
mos que parte dessas mães que nem mesmo aparecem nessa
documentação possam ter sido encaminhadas para o serviço
de ama de leite. Também não seria fora de propósito pensar o
inverso: a atividade de ama de leite de algumas mães pode ter
levado, direta ou indiretamente, à morte de seus próprios filhos,
pois algumas amas poderiam ter seus bebês arrancados de seu
convívio, enquanto outras teriam de dividir o leite, a atenção e os
cuidados com o filho do senhor ou de quem alugasse seus serviços.
Diversos estudos têm se dedicado à análise do discurso médico
e da iconografia sobre as amas de leite, assim como dos anúncios
de seus serviços, considerando, inclusive, as diferenças entre as
situações que levaram escravizadas e libertas a desempenharem
essa função (CARULA, 2012; MACHADO, 2012; MARTINS, 2006). Mas,
de fato, como aponta Machado (2012, p. 203), “a prole da ama de
leite, por sua presença ou por sua ausência, surgia como constante
40
ponto de tensão e negociação”. Bárbara Martins, baseada em 600
anúncios de amas de leite na cidade do Rio de Janeiro entre 1840 e
1881, conclui que mais de 92% dos reclames que sobre aluguel não
faziam menção aos seus filhos. Entre os que apresentavam alguma
informação, indicava-se que a cria havia morrido (MARTINS, 2006,
p. 42). Observando essa questão ao longo do tempo, Lorena Telles
aponta que, na década de 1850, com o fim do tráfico atlântico, os
senhores teriam mais interesse na vida dos filhos das amas, o que
é ilustrado com anúncios que explicitavam que os bebês ficariam
com as mães. A autora destaca que essa situação estava relacio-
nada também a uma estratégia por parte dos proprietários para
evitar fugas, assim como às pressões das próprias escravizadas
para manter seus filhos consigo (TELLES, 2018, p. 222).
Se por vezes, muitas mães enterravam seus filhos, por outras,
eram elas próprias que morriam no parto. Em geral, quem assistia as
grávidas eram as parteiras. Poucas, independentemente da condição
social, foram atendidas por cirurgiões ou médicos na hora do parto
(SANTOS FILHO, 1991, p. 231). Algumas parturientes ricas eram assisti-
das por parteiras francesas, sobretudo a partir da década de 1830,
mas as parteiras escravas e libertas foram muito mais numerosas
e importantes devido à quantidade de mulheres que ajudaram na
hora de dar à luz e, por isso, ocupavam uma posição de prestígio
em sua comunidade (KARASCH, 2000, p. 280 e 353).14
Nesse contexto, o atestado assinado por cirurgiões e médicos
constituía uma aproximação a esse universo feminino almejada
pela corporação médica. Não sabemos se, de fato, essas mulheres
foram acompanhadas antes e durante o trabalho de parto por
esses homens ou se eles apenas formalizaram os registros dos
acontecimentos. Havia, contudo, recomendações para que, diante
de um parto complicado, a parteira chamasse um cirurgião, o que
parece não ter ajudado Lourença, crioula, que morreu de um parto
laborioso, assim como Eva, que teve um ataque convulsivo após
o parto, e Florinda, preta crioula, que faleceu de febre perniciosa
“que a invadiu logo depois de um parto” (SANTA CASA…, 1838).
14 Conferir Covey (2007, p. 52-54), Savitt (2002); e, em especial, Fett (2002) sobre
os estudos a seguir também apontam para a importante relação entre a assistência
ao parto e à saúde das mulheres e dos recém-nascidos e a assistência religiosa
dadas pelas parteiras escravas nos Estados Unidos.
41
Mas, além dos médicos e cirurgiões, fazia parte do longo
processo de medicalização o reconhecimento de parteiras formadas
academicamente, segundo os preceitos da medicina oficial, no
curso oferecido para parteiras ministrado pelo professor de “partos,
enfermidades de mulheres pejadas, e paridas, e de meninos recém-
nascidos”, cadeira do 5º ano do curso de medicina.15 A Faculdade
de Medicina também era responsável por reconhecer diplomas
obtidos em outros países. Em vez de os conhecimentos sobre a arte
serem passados por mulheres mais experientes, homens especia-
lizados nesse campo da medicina acadêmica seriam, assim, os
mais indicados para ensiná-las sobre o ofício.
As poucas mulheres que assinavam atestados de óbito podem,
então, ser enquadradas nesse perfil de formação acadêmica e
hierarquicamente em posição inferior aos médicos. A crioula
Delfina, por exemplo, sucumbiu à uma peritonite puerperal, em
março de 1839, apesar dos cuidados de madame Durocher. Maria
talvez tenha morrido nas mãos de Stephanie Berthou, a parteira
que aparou sua mãe, Fortunata, quando deu à luz em julho de
1839 (SANTA CASA…, 1839).
Justamente, a partir da década de 1830, é possível observar
anúncios de parteiras francesas, como as madames Berthou e
Meunier, que divulgavam assistir o parto de escravas por preços
diferenciados.16 Stephanie Berthou era uma das que mais anunciava
no Jornal do Commercio. Desde a sua chegada à cidade repetia a
mesma propaganda, mudando apenas o endereço:
42
de escravizadas e o aluguel de amas de leite (BARBOSA; PIMENTA,
2016, p. 493). Maria Lucia Mott já havia apontado para o fato de
que as parteiras realizavam diversas atividades além de partejar,
como cuidados da saúde da mãe e do recém-nascido, tratamento
de doenças de mulheres, acompanhamentos em questões relacio-
nadas à contracepção, aborto, infertilidade, além do alojamento de
parturientes e do aluguel de amas-de-leite (MOTT, 2005, p. 126).
Por meio do levantamento dos anúncios de parteiras, foi possível
identificar essas e outras funções agregadas em torno dessas
mulheres: aulas de partos, sangrias, aplicação de ventosas, criação
de crianças de leite e aluguel de quartos para senhoras (BARBOSA,
2016). A propaganda de serviços relacionados de alguma forma
ao universo da maternidade e da parturição provavelmente teria
o intuito de destacá-las diante da concorrência. E, certamente,
indica outros meios de obter rendimentos (BARBOSA; PIMENTA,
2016, p. 492).
A inserção de cativas em ambientes específicos para o
parto, provavelmente, estaria relacionada com a observação da
alta mortalidade de seus recém-nascidos. Pedro Luiz Napoleão
Chernoviz, um polonês que morou no Rio de Janeiro entre 1840 e
1855 e escreveu o mais importante dicionário médico que circulou
pelo Brasil no século XIX, apontava o “mal de sete dias” como
uma moléstia bastante frequente nos climas intertropicais que
“ceifa muitos crioulinhos” (CHERNOVIZ, 1890, p. 359). Em 1848,
Jose Pereira Rego publicou sobre o assunto no Annaes de Medicina
Brasiliense, jornal da Academia Imperial de Medicina do Rio de
Janeiro. Rego ressaltava que a doença poderia se manifestar muito
antes ou muito depois dos sete dias, por isso não concordava com
a denominação. De acordo com o autor, cerca de um quarto dos
recém-nascidos morriam da enfermidade, sobretudo, as crianças
das classes pobres e escravizadas (REGO, 1848, p. 83). Entre eles,
provavelmente, Cipriana que faleceu com 7 dias, em 1835, possibi-
litando a associação com a doença, que seria causada por falta de
cuidados higiênicos e, talvez, os proprietários de escravas grávidas
da cidade que pudessem pagar pela internação começassem a
considerar mais apropriado que o parto ocorresse sob os cuidados
de médicos ou parteiras com diplomas da Faculdade de Medicina
ou reconhecidos por ela. A oferta de estabelecimentos de saúde
que recebiam escravizados foi aumentando ao longo do Oitocentos,
43
junto com o crescimento das próprias casas de saúde na cidade.
Mas é certo que a maior parte da assistência continuava a ser
dada em suas moradias.
Conclusão
A historiografia sobre saúde e escravidão tem avançado em
relação ao levantamento serial em diversos contextos, apesar
das dificuldades, e, desse modo, torna-se possível identificarmos
mudanças temporais e espaciais na percepção das enfermidades e
em suas terminologias. Ao revisitarmos a documentação utilizada
por Mary Karasch, pretendemos, por meio do cruzamento entre os
dados sistematizados, ressaltar algumas possibilidades de análise
sobre aspectos que possam enriquecer nosso conhecimento a
respeito das diferentes experiências da escravidão. Em especial,
atentamos para mães e filhos e para as doenças, procedências,
faixas etárias, relações identificadas por intermédio dos senhores
e dos médicos.
Abordamos experiências maternas comuns na primeira metade
do Oitocentos relativas à perda de seus filhos, o que toca num
tema particularmente sensível. Mas, se por um lado, trata-se de
um acontecimento muito doloroso, apesar de não ser excepcional,
por outro, por meio dos óbitos dessas crianças cativas, podemos
saber mais sobre as suas vidas, procurando identificar parte de
trajetórias atravessadas pela escravidão, ainda que essa parte diga
respeito ao ponto final de um indivíduo. Importa ressaltar, porém,
que o derradeiro destino não marca o fim das relações construí-
das. Parentes, companheiros de cativeiro e de vida continuaram.
E as doenças podem servir de fio para identificar essas redes de
sociabilidade e possibilitar a investigação e análise sobre o quanto
suas vidas foram afetadas pelas diferentes conjunturas e o quanto
conseguiram contorná-las ou aproveitá-las.
44
Fontes
REGO, José Pereira. Esboço histórico das epidemias que têm grassado na
cidade do Rio de Janeiro desde 1830 a 1870. Rio de Janeiro: Typographia
Nacional, 1872.
45
Referências
BARRETO, Maria Renilda N.; PIMENTA, Tânia Salgado. A saúde dos escravos
na Bahia oitocentista através do Hospital da Misericórdia. Revista Territórios
& Fronteiras, Cuiabá, MT, v. 6, n. 2, p. 75–90, 2013.
46
EUGÊNIO, Allison. Lágrimas de sangue: a saúde dos escravos no Brasil
na época de Palmares à Abolição. São Paulo: Alameda, 2016.
FETT, Sharla. Working cures: healing, health, and power on Southern slave
plantations. Chapel Hill, NC: The University of North Caroline Press, 2002.
47
(orgs.). No rastro das províncias: as epidemias no Brasil oitocentista. Vitória,
ES: EDUFES, 2019. p. 353–91.
OLIVEIRA, Daniel. “Os facultativos são obrigados a declarar […] cor, […]
moléstia”: mortalidade, atuação médica e pensamento racial em Porto
Alegre, na segunda metade do século XIX. 2018. Tese (Doutorado em
História) — Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
RS, 2018.
SAVITT, Todd. Medicine and slavery: the diseases and health care of Blacks
in Antebellum Virginia. Champaign: University of Illinois Press, 2002.
48
SCHWARTZ, Marie Jenkins. Birthing a slave: motherhood and medicine
in the Antebellum South. Cambridge: Harvard University Press, 2006.
49
O PROBLEMA DO OSSO ILÍACO: ANATOMIA
COMPARADA E TEORIAS RACIAIS NA
OBSTETRÍCIA DA ENFERMARIA DE PARTOS DO
RIO DE JANEIRO (DÉCADA DE 1880)
50
Algumas poucas indicações biográficas podem ajudar a entender
o perfil de Justo Jansen Ferreira, oferecendo pistas a respeito da
elite provinciana imperial que procurava a Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro (COELHO, 1999). Maranhense de origem, filho
de José Jansen Feirreira e Hermelinda da Costa Nunes Ferreira,
o doutorando provinha de família tradicional de Caxias. Uma de
suas tias era a famosa Ana Jansen, lendariamente conhecida em
São Luís de meados do século XIX, como uma das mais cruéis
senhoras de escravos.2 Tão terríveis foram suas façanhas que Dona
Ana aparece como personagem folclórica no famoso romance-
crônica de Josué Montello (1974), Tambores de São Luís, que foi
retratada em 58 episódios nos quais a difamada senhora não se
vexa de atirar hóstias no padre, quebrar o lombo de escravos tidos
como rebeldes, brigar com vizinhos e pares da alta elite ludovi-
quense, entre muitas outras façanhas. Não que o nosso jovem
doutor tenha que ser desde logo condenado pelo parentesco; mas
tais laços podem sugerir o contexto familiar originário deste.
Seguindo os padrões da elite provinciana maranhense, o jovem
Jansen foi enviado para estudar medicina em Salvador, sentando-se
nos mesmos bancos escolares que seu conterrâneo, Nina Rodrigues,
de quem se tornou amigo e admirador. Tanto assim que, em sua tese,
entre laudatórias declarações de reconhecimento e gratidão aos
pais, irmãos, parentes e amigos, que ocupam numerosas páginas,
não deixou de oferecer seu pleito ao “seu companheiro distinto e
sincero amigo Dr. R. Nina Rodrigues” (FERREIRA, 1887).
Jansen, no entanto, transferiu-se em meio ao curso para o Rio
de Janeiro, tornando-se interno da Enfermaria de Clínica Obstétrica
e Ginecológica da Faculdade de Medicina local, trabalhando sob a
supervisão do dr. Erico Coelho. Lente catedrático da clínica, mais
tarde, diretor da Faculdade de Medicina, a quem o candidato, na
tese, agradeceu fervorosamente, declarando-se discípulo, usufruiu
também de longa carreira na política. Republicano, maçom e evangé-
lico, dr. Coelho, apesar de inspirar seus pupilos, logo se distan-
ciou da medicina, embora na década de 1920 tenha retornado
51
momentaneamente à sua área de origem, porém ocupando cargos
de direção. No mais, tornou-se promotor público, juiz municipal,
deputado e senador no alvorecer republicano.3
Dr. Jansen traçou, em certo sentido, trajetória similar; embora
não tenha se tornado político, encerrada a faculdade, voltou para o
Maranhão, fixou-se em São Luís, tornando-se professor de geogra-
fia no Liceu Maranhense e outros locais, dedicou-se à cartogra-
fia, foi membro da Academia Maranhense de Letras e fundador
do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão. Sua trajetória se
confunde com as dos círculos intelectuais provincianos da Atenas
brasileira, que ainda lamentavam a decadência da outrora província
e depois estado mais poderoso do Norte, e acreditavam represen-
tar os ideais da mais alta estirpe provinciana, cujos princípios se
escoravam em ideais europeizados e profundamente excluden-
tes (JESUS, 2015).
No entanto, antes de retirar-se para junto dos seus, dr. Jansen
apresentou sua tese doutoral à Faculdade de Medicina, que, embora
tenha alcançado uma circulação restrita aos pares, marcou a história
das ideias raciais no Brasil. Isto porque por meio desta podemos
recuperar linhagens de elucubrações raciais, que originárias dos
estudos craniométricos, contaminaram as pesquisas ginecológi-
cas e obstétricas de médicos europeus, formando uma duradoura
cadeia de crenças errôneas e preconceituosas que obtiveram ampla
aceitação e longa sobrevida no meio médico. Algumas destas –
como a crença que mulheres negras experimentam partos fáceis
e indolores, o que recomenda menos atenção pré-natal e menor
acesso à anestesia – são ainda detectadas entre ginecologistas
e obstetras atuais, não só no Brasil, como em outras sociedades
pós-escravistas, como os Estados Unidos, ou contaminadas pelas
teorias raciais, como os Reino Unido.4 Como atesta a tese de Jansen,
3 Izabel Pimentel Silva. “Verbete: Erico Marinho da Gama Coelho”. In: Dicionário
da Elite Política Brasileira. CPDOC/FGV (http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbe-
tes/primeira-republica/COELHO,%20%C3%89rico%20Marinho%20da%20Gama.
pdf) consulta 11/01/2021 e Academia Nacional de Medicina (cadeira 16) (https://
www.anm.org.br/erico-marinho-da-gama-coelho/) consulta 11/01/2021.
4 Para os EUA, a bibliografia a respeito de preconceitos raciais no tratamento gine-
cológico e obstétrico de mulheres afrodescendentes é volumosa, cito como exemplo:
Owens e Fett, 2019. Em Invisible Hierarchy of Feeling, Thernstrom (2010, p. 167–72)
sublinha a ironia da situação, enquanto hoje sabemos que afro-americanos tendem
52
tais textos lidos pelos estudantes da Faculdade do Rio de Janeiro
tiveram alto impacto na formação do ginecologista e obstetra e
na prática da Clínica de Enfermaria de Partos.
a sentir mais dor do que pessoas de outras origens e etnias, a medicina desde cedo
resolveu que homens e mulheres negros, por possuírem a pele menos enervada
ou mais grossa, sentiam menos dor. Em 13 de janeiro de 2021, o site da CNN trazia a
seguinte manchete: Black mothers in the UK are four times more likely to die in child-
birth than their White counterparts. Little is being done to find why. (https://edition.cnn.
com/2021/01/14/uk/uk-black-women-childbirth-intl-gbr/index.html). Para o Brasil,
ver: Leal, Gama, Pereira, Pacheco, Carmo, Santos, 2017.
53
encontradas nas bacias de mulheres da raça negra em relação à
primeira. Iniciando o capítulo com uma longa descrição da anatomia
pélvica e da conformação da bacia estalão, toda a sua digressão tem
como base os ensinamentos do dr. Erico Coelho e dados recupera-
dos de autores europeus que se dedicaram à análise da anatomia
da bacia nas diferentes “raças” ou “espécies humanas”.
Na segunda parte do capítulo, embora o doutorando declare
ter dúvidas a respeito da possibilidade da bacia “ser um modo
absoluto para distinção nas raças humanas”, como, segundo ele,
admitem alguns antropólogos que consideram a face e a bacia
como condicionadas por leis semelhantes, assevera a particu-
laridade da anatomia pélvica e pubiana da mulher negra, a qual
se caracterizaria por ser mais estreita e alongada do que a bacia
padrão caucasiana (FERREIRA, 1887, p. 16). Tal fato aproximaria a
conformação da anatomia reprodutora das mulheres negras ao
padrão masculino, conforme as recorrentes conclusões dos estudos
de anatomia comparada raciais, que consideravam esta suposta
especificidade da bacia da mulher negra como fator de determi-
nação racial. Este tema será discutido com mais detalhes à frente.
Certamente o próprio uso do termo “espécie negra” no título
da tese sugere que dr. Jansen, com a aprovação de seu orientador,
dr. Coelho, professassem a poligenia. Ao longo do trabalho, o termo
mais utilizado é “raça negra”, porém a presença do conceito de
espécie em lugar de destaque revela uma opção. Embora discussões
a respeito dos conceitos de raça e espécie indiquem que, na segunda
metade do século XIX, os cientistas naturais ainda não tivessem
esclarecido suficientemente o significado de cada um destes termos,
permanecendo certa indiferenciação, o uso “espécie negra” pelos
cientistas racialistas norte-americanos aparece conectado a uma
firme adesão ao poligenismo. O mesmo pode ter ocorrido no Brasil,
embora aqui a discussão tenha sido mais tardia. O título do trabalho
indica, assim, uma escolha bastante deliberada. Apenas os críticos
da origem única da humanidade se utilizavam ostensivamente do
termo espécie.5 Além disso, pelo teor do trabalho, desconfiamos
que o termo “espécie” tenha sido usado de maneira consciente,
carregando em si mesmo as consequências de seu uso.
54
No entanto, há no texto passagens nas quais o próprio
doutorando coloca em dúvida as leis inevitáveis das teorias raciais,
levantando dúvidas sobre sua total adesão ao poligenismo, que
talvez espelhasse mais as diretrizes do orientador do que do próprio
aluno. De qualquer forma, não há dúvida de que este fosse um
trabalho voltado essencialmente para a discussão e comprova-
ção da conformidade diferenciada e masculinizada da bacia da
mulher negra, promovendo uma série de assertivas e práticas
obstétricas nas quais as particularidades decorrentes da estrei-
teza de bacia no parto e pós-parto são confirmadas, inclusive com
relação a febre puerperal e a menor sensibilidade à dor.
O segundo capítulo se propõe a realizar uma inquirição acerca
das consequências do afastamento da bacia padrão caucasiana na
concepção, gravidez e parto da mulher negra. Esta seção do texto
aparece composta tanto por uma digressão teórica e bibliográ-
fica quanto por observações práticas e referências aos ensina-
mentos do dr. Coelho. Embora nesta parte o doutorando tenha
apresentado alguma dúvida a respeito do tamanho reduzido
da cabeça do feto da raça negra, bem como tenha duvidado de
outras assertivas mais fantasiosas, como a de que os bebês negros
nascem brancos, já que o doutorando, em sua prática diária podia
facilmente confirmar a pouca acurácia desta injunção, ao fim e
ao cabo, Dr. Jansen segue as diretrizes da anatomia comparada
e obstetrícia racializada dos autores utilizados. A esta digres-
são teórica segue uma análise dos casos de partos complicados
e prática obstétrica, nos quais o doutorando teve participação
ativa. Finalmente, o terceiro capítulo apresenta um relato da
prática médica na Enfermaria de Partos em relação às mulheres
negras, escravizadas e libertas que ali ingressam, contendo fichas
médicas e relatos de casos de partos complicados por diferen-
tes razões e que evoluíram para a febre puerperal.
Ao tratar das consequências do parto em bacia estreita, o
doutorando teve que se defrontar com uma questão já há muito
debatida pelos obstetras racialistas, a qual poderia ser resumida
na seguinte equação: a bacia estreita deveria certamente produzir
partos mais difíceis na espécie negra do que na caucasiana. Neste
caso, as mulheres caucasianas é que deveriam experimentar partos
rápidos e indolores, podendo voltar à vida normal sem maiores
cuidados, e as mulheres negras, ao contrário, deveriam ser poupadas.
55
Obviamente, não é isso que os médicos tanto europeus quanto
das sociedades atlânticas escravistas do século XIX acreditam,
muito pelo contrário.6 Vigia a certeza de que quanto mais “civili-
zada” fosse a mulher, mais a gestação e o parto se complicavam,
dada a delicadeza e fragilidade física e mental experimentada
por mulheres pouco afeitas ao trabalho manual. A ideia de que
quanto mais “selvagem”, robusta fisicamente e “masculina” fosse
a mulher, mais fácil e indolor seria o parto jamais foi questionada.
Médicos, cientistas naturais, anatomistas e senhores de escravos
não se cansaram de disseminar a certeza de que mulheres negras
tinham partos fáceis e sem dor.7 Como harmonizar duas asserti-
vas tão contraditórias? Ora, a solução encontrada pelos teóricos
raciais foi abraçar a hipótese de que a cabeça do feto da raça negra
era naturalmente menor, facilitando a expulsão. Tal assertiva
também confirmaria a regra de ouro da anatomia comparativa
que propugnava, como já sublinhamos, que crânio e bacia eram
regidos pelas mesmas leis físicas.
Em seu esforço para caracterizar o desvio da conformação da
bacia da “espécie negra”, dr. Jansen recupera uma longa linha de
observações de anatomia comparada das bacias desde os finais do
século XVIII, de Peter Camper e Thomas Sommering, que fizeram
as primeiras descrições desta parte do corpo humano, à autópsia
da Vênus Hotentote, realizada por George Cuvier, às análise de
Vrolick, Bacarisse, Verneau, Corre, entre outros, até estudos médicos
da década de 1880, nos quais se incluem citações aos médicos
franceses na Senegal pré-colonial como Thlay (1867) e Corre (1878
e outros). A lista de cientistas naturais, médicos e antropólogos
físicos mencionados na tese é longa e bastante compreensiva.
Embora se possa considerar que Jansen Ferreira esteja citando
autores indiretamente, temos que considerar que seu trabalho
comprova, como já comentamos, a circulação, na Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, de uma linhagem de pensamento
racial de origem francesa (ou de textos traduzidos para o francês)
bastante extensa. Analisar tal linhagem de autores comprometidos
com estudos da bacia feminina ao longo do século XIX expande
56
a nossa compreensão a respeito da importância da anatomia
comparada na prática médica do passado e dos dias de hoje. Tais
trabalhos atestam também que o doutorando seguiu exatamente
o modelo de redação da tese corrente entre os doutorandos e/ou
médicos franceses, inclusive discutindo a mesma bibliografia que
os estrangeiros realizaram ao procurar legitimar seus trabalhos,
se dedicando a retomar a origem da anatomia comparada desde
Peter Camper, perseguindo uma sucessão de trabalhos simila-
res ao longo do tempo.
Seguindo os passos de J. J. Ferreira, apresentamos a seguir
a linhagem de anatomia comparada da bacia que inspirou a
tese em tela. Para tal, percorreremos alguns dos autores chave
no tema, propondo uma visão panorâmica da formação de um
campo de conhecimento ginecológico e obstétrico, cujas bases
se resumem a injunções raciais nobilitadas por uma abordagem
sistematizada em métodos comparativos supostamente científi-
cos. No entanto, um exame minucioso aponta com clareza a pouca
credibilidade dos estudos de anatomia comparada. A carência de
número meramente razoável de bacias das “diferentes raças” a
serem medidas é a principal falha de todos estes estudos, que se
limitaram a generalizar a partir de análises anatômicas muito
limitadas. Além disso, a presença de ideias pré-concebidas sobre a
inferioridade da raça negra, sempre colocada como o polo oposto
da caucasiana, desqualifica todo o edifício do campo. Espanta
concluir que, apesar de tudo, essas ideias penetraram em uma
camada profunda do conhecimento popular, achando-se presen-
tes na ginecologia de ontem e de hoje.
57
nascimento das ciências naturais, cuja história surge repleta de
homens sábios capazes de produzir conhecimentos sistemáti-
cos não apenas sobre a natureza como também a respeito da
natureza humana, eximimo-nos de questionar sob quais parâme-
tros se deu o desenvolvimento da ideia de raça e sob quais bases
repousou o racismo científico (BINDMAN, 2002, p. 11–21). A crença
na existência primeva de uma ciência neutra e autorreferenciada
é possivelmente um dos motivos que justificam a quase ausência
de estudos da área da história das ciências que questionem os
aspectos menos visíveis, mas estratégicos do desenvolvimento
do pensamento racial do século XIX.
A Europa ocidental do iluminismo e do pós-iluminismo,
principalmente a partir do último quartel do século XVIII, se viu
confrontada de maneira bastante direta com a questão da diversi-
dade humana, tendo que buscar formas de classificar as raças
ou os povos não ocidentais que crescentemente se faziam ver ou
eram vistos por viajantes, naturalistas, comerciantes e traficantes
de escravos. A necessidade de sistematizar de maneira racional
as características presentes na miríade de povos não ocidentais
desde logo requereu a delimitação de um modelo a partir do qual
se pudesse ressaltar as especificidades e diferenças. Ao mesmo
tempo, reflexões estéticas a respeito da beleza e da feiura se fizeram
presentes com constância em pensadores e artistas do período. A
avaliação do belo esteve certamente vincada por padrões eurocen-
trados, que foram amplificados, estabelecendo parâmetros que
claramente ultrapassavam a apreciação meramente estética. A
ideia de que o belo representava o moralmente superior e a feiura
o contrário se fez presente, estabelecendo as bases de julgamento
dos diferentes povos (GILMAN, 1975, p. 379-391). Cabe perguntar,
portanto, qual o modelo de beleza que subjazia ao julgamento
estético que preconizava o que se considerava perfeição física
como padrão moral e superioridade intelectual.
O certo é que o padrão do que era um ser humano elevado,
sempre entendido como belo e superior em termos intelectuais e
morais, foi, no ocidente, desde o sempre o grego, em sua reinterpre-
tação neoclássica. Não foram incomuns referências às esculturas
neoclássicas que revisitavam os monumentos greco-romanos como
exemplos do padrão de ouro das proporções do corpo humano. Se
na anatomia comparada desenvolvida no século XVIII – como de
58
P. Camper, J. C. Lavater, dr. J. Hunter – o perfil grego surge sempre
como ponto mais elevado da perfeição humana (BINDMAN, 2002,
p. 202-203), nos cientistas naturais racialistas do século XIX, como
nas obras de Hermann Burmeister e Louis Agassiz, os padrões
derivados do revivalismo greco-romano neoclássico se mantêm
como referência de perfeição. H. Burmeister, por exemplo, ao
elaborar medições de corpo negros, sobretudo de mulheres, em
Minas Gerais dos anos de 1850, referiu-se especificamente aos
parâmetros corporais estabelecidas pelo famoso escultor neoclás-
sico Johann G. Schadow, como o padrão do corpo humano. Ao não
encontrar esta proporção áurea nos corpos de africanos e seus
descendentes, concluiu pela proximidade destes últimos ao mundo
animal (MACHADO, 2014, p. 63). Já Louis Agassiz, ao organizar sua
coleção fotográfica que pretendia comprovar a inferioridade racial
de homens e mulheres negros, introduziu em meio as imagens
raciais, sobretudo aos trípiticos de nus de supostos africanos do
Rio de Janeiro, uma série de cartões postais de esculturas neoclás-
sicas. Imagens como a da “Vênus segurando a Maçã” de Bertel
Torvaldsen e “As Três Graças” de Antonio Canova encontram-se,
assim, em meio a série de fotografias de documentação corporal
racial, como referências comparativas (MACHADO, 2010).
Note-se que, no decorrer dos séculos XVIII e XIX, a história
da Grécia antiga foi totalmente remodelada pelos românticos de
forma a acomodar a interpretação de que este povo, em cujas bases
repousa a civilização ocidental, descendia dos arianos, e não dos
levantinos como até então se acreditava. A questão que subjazia à
reinterpretação do arianismo dos gregos residia no fato de que o
empreendimento desvinculava a Grécia antiga da colonização fenícia
e, concomitantemente, de sua origem africana (BERNAL, 1987).8
Estudos de crânio que estabeleceram tipologias fisionômi-
cas, como os do pioneiro Peter Camper, acabaram por sugerir
uma relação direta entre padrões de representação fisionômica e
somatológica e graus de civilização das diferentes raças humanas,
propondo um contínuo que ia da proximidade ao reino animal, no
8 Esta interpretação fazia eco aos estudos filológicos e linguísticos que desvin-
culavam a Europa do berço do Oriente Médio, criando a teoria do ramo linguístico
indo-europeu, que provinha dos ários da Índia, e este por sua vez dos persas
(POLIAKOV, 1996). Conferir também Machado (2018, p. 113-156).
59
seu nível mais inferior, ao Apolo, em sua esfera mais elevada, como
bem notou D. Bindman (2002, p. 190–228). Toda uma linhagem
de antropólogos físicos e médicos holandeses e, em seguida, dos
outros países da Europa ocidental, seguiram os passos abertos por
Camper, produzindo grande número de estudos de craniometria
e anatomia comparada (J. B. D., 1865, p. 202–18).9 Nesta tipologia,
os africanos foram colocados nos níveis mais inferiores, sendo
aproximados ou mesmo assimilados aos macacos.
Sublinhe-se que a complexa operação que situou os africa-
nos próximos à esfera animal esteve conectada aos esforços de
ocupação, saque e tráfico de escravos no continente africano.
Um exemplo elucidativo deste processo pode ser encontrado na
história da construção da representação do povo Khoisan, habitan-
tes do noroeste do continente africano, principalmente no territó-
rio atual da África do Sul. Originalmente nômades e pastores,
os Khoisan, foram, em princípio, representados por viajantes e
desenhistas que por estas terras aportaram a partir do século
XVI, como um povo selvagem, porém guerreiro e independente.
Assim, apesar da classificação rebaixada destes como selvagens
à espera da civilização, os Khoikhoi ou Khoisan, como hoje se
convencionou denominar este povo, foram representados como
seres orgulhosos e autônomos. Embora tais traços surjam nas
primeiras representações do guerreiro, a figura feminina, desde
os primórdios, recebeu dos desenhistas europeus característi-
cas animalizadas.
Porém, foi a partir do século XVIII, com o estabelecimento de
colônias holandesas, que os Khoisan passaram a sofrer pressão
para se engajarem no trabalho agrícola sedentário, ao qual resisti-
ram bravamente. Como mostra Zoe Strother, com um estudo dos
padrões de representação desse povo, foi a partir da resistência
dos Khoisan ao trabalho agrícola que todo um novo vocabulário
imagético estabeleceu este povo como desprovido da capacidade
de pensar, indolente ao extremo e carente de uma língua humana.
A denominação destes como Hotentotes surge agregada à desquali-
ficação deste povo e o julga como portador de caracteres inumanos
(STROTHER, 1999, p. 1–61). Embora não haja plena concordância a
respeito do significado Hotentote, a explicação mais aceita é de
60
que o termo se caracterize como uma corruptela do termo gaguejar
em holandês, em referência à dicção aspirada deste povo, vulgari-
zada pelos europeus como a fala do click, entendida não como uma
língua plena, mas apenas como um balbucio infantil (Ibid., p. 2–3).
O interessante é que no processo de construção das represen-
tações imagéticas que associavam esses pastores aos estágios
mais baixos de civilização ou ainda a não civilização, a mulher
Khoisan foi especialmente configurada como carente de qualquer
traço de humanidade. Descrita como feia ao extremo, incapaz de
qualquer compreensão, emitindo sempre sons guturais simila-
res aos dos símios, desgrenhada, suja e preguiçosa, a mulher
Khoisan, em muitas representações dos séculos XVIII e XIX, surge
como a modelo de um feminino bestial, desprovido de beleza e
atratividade sexual. Duas características principais marcaram a
construção imagética da mulher Hotentote como não pertencente
à humanidade. Foram estas a esteatopigia – condição produzida
pela excessiva concentração de gordura nas nádegas – e o avental
pubiano (sinu pudoris), composto pelo alongamento do tecido dos
lábios menores, ambos descritos por viajantes e observadores
europeus com um misto de atração, horror e ironia (GOULD, 1987,
p. 291-305). O denominado sinu pudores já havia sido, desde o século
XVIII, descrito erroneamente por Lineus, como uma característica
específica das mulheres africanas – erradamente, obviamente,
uma vez que esta peculiaridade foi observada apenas em parte
das mulheres Khoisan –, mas continuava a despertar a curiosi-
dade mórbida não apenas dos sábios naturalistas como também do
público em geral (LINEU, 1758, p. 22). O processo de fixação dessas
duas características no corpo da mulher africana e, especialmente
na Khoisan, se consolidou com exibição da Vênus Hotentote em
shows em Londres e Paris na década de 1810. Tal força imagética
alcançou a exibição desta mulher africana que se tornou veículo
de duradouras projeções e fantasias a respeito da sexualidade
da mulher africana e, especialmente da “Hotentote”, vista como
misteriosa e bestial, ao mesmo tempo profundamente atraente.
A construção imagética da mulher Hotentote como o elo
mais próximo ao símio se consolidou, como notamos, na figura
da Vênus Hotentote, exposta em feiras e shows pretensamente
etnográficos em Londres e Paris dos anos de 1810 a 1815. Muito
já se escreveu sobre Sartjie Bartman, a mulher que encarnou
61
tal personagem, de sua saída da Cidade do Cabo, onde exercia a
função de ama das crianças de uma família de fazendeiros dos
arredores da cidade, à sua aparição em shows em Londres, nos
quais estava vestida com uma malha transparente que lhe dava a
aparência de estar nua, era exibida em uma jaula, fazendo trejei-
tos, emitindo sons guturais e tendo seu traseiro apalpado pelo
público. Acrescente-se o processo a que foi submetida pela African
Colonization Society ainda em Londres, e no qual assegurou sua
participação voluntária nos espetáculos, sua ida à Paris e morte
em 1815, para alcançarmos a trajetória de exploração extrema do
corpo dessa jovem mulher. Denominada anedoticamente como
Vênus Hotentote, Sartjie Bartman consolidava a representação
histórica da mulher Khoisan como o ser humano mais próximo
do mundo animal (STROTHER, 1999, p. 31–48).
No entanto, outro aspecto deve ser considerado; o corpo raciali-
zado da Vênus Hotentote despertou interesse não apenas do público,
mas também dos cientistas naturalistas que obtiveram a oportuni-
dade de observar, medir e representar o corpo de Sartjie ainda em
vida. Se em sua visita ao Jardin de Plantes, os sábios – todos homens
brancos – puderam observar de perto e tocar o traseiro agigantado
pela esteatopigia da jovem Khoisan, ficaram frustrados com sua
decidida relutância em autorizar a inspeção do avental pubiano,
que foi, a duras custas, mantido longe dos olhares invasores.
Após sua morte precoce, o corpo de Sartjie Bartman acabou nas
mãos do famoso cientista natural e um dos principais difusores da
poligenia, Geroge Cuvier, cujo interesse insatisfeito de inspecio-
nar as partes privadas da jovem Khoisan na primeira visita ao
Jardin de Plantes não havia arrefecido. Esse realizou uma minuciosa
autópsia nos restos da Vênus Hotentote, inclusive devassando
sua genitália (CUVIER, 1817).
O relatório da autópsia tornou-se, entre cientistas naturais,
médicos e antropólogos físicos racialistas, uma peça fundamental,
sempre citada por todos aqueles que propugnavam a inferioridade
biológica e anatômica da mulher africana, colocando neste grupo
a Khoisan no nível mais baixo da espécie humana. É interessante
notar a ambivalência do relatório assinado pelo cientista natural; ao
mesmo tempo que detratava a observada, Cuvier deixou escapar seu
espanto com os predicados, digamos, humanos de Bartman; a boa
memória, a destreza com diferentes línguas, o ombro gracioso, os
62
bonitos pés, sem que, no entanto, tais características tenham desper-
tado no “sábio” qualquer tipo de reflexão (GOULD, 1987, p. 295-296).
O texto demonstra com que prazer Cuvier observou com detalhe
o famoso avental pubiano, vexando-se de ser o primeiro a revelar a
verdadeira anatomia desta particularidade exótica e repelente que
caracterizava a mulher Hotentote ou Bosquímana (proveniente de
Bush negros/negros da selva), já que o anatomista se achava confuso
a respeito das similaridades entre os dois grupos, os quais, em seu
entender, se diferenciavam internamente (GOULD, 1987, p. 294). O
documento como um todo é repleto de observações virulentamente
depreciativas e racistas; afirma, por exemplo, que os movimentos
bruscos de Bartman, por ele observados quando, ainda em vida,
esta foi estudada pelos pares do Jardin des Plantes, lembravam
os dos macacos e que a maneira como ela projetava seus lábios
fazia com que se assemelhasse ao orangotango (CUVIER, 1817);
pode-se facilmente notar que toda a análise anatômica do corpo
desta mulher gira em torno de seus atributos sexuais; a descrição
das nádegas protuberantes, sobre as quais Cuvier assegura serem
compostas apenas de gordura, e que segundo ele davam a Sartjie
Bartman uma aparência brutal similar a dos símios, bem como a
descrição da anatomia do avental pubiano, atestam a fixação dos
caracteres racializados na própria conformação sexual da africana/
Hotentote/Bosquímana (CUVIER, 1817, p. 263).
Ora, todo o esforço descritivo de Cuvier em torno dos caracteres
sexuais da mulher Khoisan como indicadores de uma humanidade
bestial o levaram a observar a conformação da bacia. Seu objetivo era
revelar se tais formações excepcionais também se verificavam na
estrutura pélvica e na disposição dos órgãos internos desta mulher
racializada. Ao fazê-lo Cuvier lançou mão da anatomia comparada
para concluir que, ao antepor a bacia da “minha Bosquímana” com
a das negras e das que caracterizam as mulheres brancas,
63
O espantoso é notar como esta observação que, em si mesma,
pouco chama a atenção em meio ao texto ao mesmo tempo virulento
e ambivalente de Cuvier, se tornou guia de uma longa cadeia de
estudos médicos ginecológicos que podem ter chegado aos dias
de hoje. Isto porque, em meio à ascensão dos estudos de anatomia
comparada, que se vulgarizaram ao longo do século XIX em todas
as faculdades de medicina do ocidente, a ginecologia, e especial-
mente a anatomia comparada da bacia feminina, recebeu atenção
especial. Se a célebre discussão sobre os ângulos faciais é bem
conhecida, outros aspectos do corpo humano que igualmente
foram sistematicamente medidos, analisados e comparados ao
ideal caucasiano, receberam menos atenção, sem, no entanto,
deixar de ter alcançado grande impacto no desenvolvimento da
medicina. Esse é o caso dos estudos da bacia e estrutura pélvica
feminina.
Certamente o avanço da obstetrícia, o desenvolvimento de
técnicas e aparelhos ginecológicos e obstétricos, das drogas anesté-
sicas, do diagnóstico das doenças ginecológicas, dos procedimen-
tos cirúrgicos da cesariana, dependeram do desenvolvimento de
um amplo cabedal de estudos anatômicos, técnicos e práticos,
cujos saberes foram cada vez mais monopolizados pelos doutores
(CIANFRANI, 1960, p. 223-268). A longa literatura sobre a crescente
tomada, ao longo do século XIX, de um campo considerado privado
e feminino por médicos homens, portadores de novos saberes, já
comprovou a ascensão do poder dos doutores – e, por consequência,
do mundo público e exteriorizado – no ambiente doméstico privativo
das mulheres, alcançando um monumental impacto na definição
de novos padrões de feminilidade e subordinação (MCGREGOR,
1998). Mais ainda parece claro que o desenvolvimento da gineco-
logia e da obstetrícia foi profundamente marcado por abordagens
médicas vincadas por classe e raça. Mulheres pobres, internadas
em instituições hospitalares, foram amplamente utilizadas como
cobaias no desenvolvimento das técnicas cirúrgicas ginecológi-
cas, como bem mostram os arquivos de médicos e de hospitais
femininos do século XIX, notando-se especialmente os Estados
Unidos (McGREGOR , 1998, p. 1-8)
Nada é mais significativo do que a conexão do desenvolvi-
mento da ginecologia e da obstetrícia com a escravidão. Já se
documentou abundantemente o papel dos médicos de fazendas
64
escravista do sul norte-americano, especialmente o do consagrado
J. Marion Sims, que atuou no Alabama nas décadas anteriores à
Guerra Civil, no controle das funções reprodutivas, da menstrua-
ção ao parto e aos cuidados no resguardo, de forma a garantir a
expansão dos plantéis de escravos. Além disso, os experimentos
no desenvolvimento da cirurgia para correção da fístula vaginal,
que tornaram Dr. Sims uma celebridade médica em Nova York da
segunda metade do século XIX, realizadas tendo como cobaias
mulheres escravizadas que sofriam a operação sem anestesia,
mostram sobejamente a colaboração da ginecologia/obstetrícia
com a manutenção da escravidão (SCHWARTZ, 2006, p. 25–51;
WASHINGTON, 2006, p. 25–51).
Embora já tenhamos um quadro bem consolidado a respeito
da intimidade da ciência médica ginecológica e obstétrica com
a escravidão, ainda falta sublinhar com clareza os laços entre a
anatomia comparada, um dos principais instrumentos de produção
dos estudos raciais, com o desenvolvimento de procedimentos
ginecológicos e obstétricos oferecidos às mulheres africanas e
afrodescendentes, durante a escravidão e no pós-emancipação.
Com isso em mente, voltamos à observação de Cuvier a respeito
das particularidades da bacia da Vênus Hotentote para estabe-
lecermos o marco original de um tipo de estudo que se popula-
rizou ao longo de todo o século XIX, o da anatomia comparada
da estrutura pélvica feminina entre as diferentes raças, as quais
conduziram o desenvolvimento de técnicas e procedimentos
obstétricos postos em prática no tratamento e assistência ao
parto das mulheres negras.
65
sobretudo do útero, dos ossos ilíacos e dos ísquios de estruturas
pélvicas e bacias de diferentes raças, organizando-as hierarqui-
camente. Se, nestes estudos, a determinação das raças e sub-ra-
ças variaram muito, ora estabelecendo a existência de apenas três
variantes – branca, amarela, negra – ora introduzindo outras –
como malaios e vermelhos –, no fim das contas, há sempre uma
permanente oposição. Os polos contraditórios se dão em torno
da bacia caucasiana, considerada o padrão humano, e a negra,
especialmente a Khoisan, considerada como similar ou mesmo
pertencente ao reino animal, é constantemente aproximada da
estrutura anatômica e fisiológica dos macacos.
Em 1824, foi lançada uma edição-revista do livro Histoire Naturelle
du Genre Humaine, de autoria de J. J. Virrey (1824), o famoso médico
parisiense e teórico racialista. No tomo IV, Virrey (1824, p. 193-238) se
esforçou por descrever, categorizar e comparar o gênero masculino
e feminino entre si e em suas variedades nos diferentes povos e
regiões do mundo. Segundo ele, as mulheres haviam sido, por
natureza, destinadas à inferioridade. Apresentando uma minuciosa
e, ao mesmo tempo, impressionista descrição da anatomia, fisiolo-
gia e moral do sexo feminino, o autor conclui que, de forma geral,
nas mulheres, a circulação sanguínea é robusta nas partes baixas,
devido à necessidade de garantir a reprodução. Situação diametral-
mente oposta à fisiologia masculina, cuja circulação sanguínea
se dá com mais vigor nas partes altas, tornando, assim, o homem
um ser pensante, em oposição a mulher, cuja fisiologia a limita ao
mundo dos sentimentos e emoções. Isso levaria a que as mulheres
precisem, para sobreviver, estar sob o comando masculino.
Em meio a observações sobre a beleza, amabilidade e tamanho
dos órgãos sexuais das mulheres de diferentes raças e nações,
o autor, analisa a anatomia feminina descrevendo detalhada-
mente a estrutura óssea e a fisiologia da bacia – e concomitan-
temente os órgãos sexuais. Virrey chega a estabelecer relações
entre clima, características da bacia e genitália feminina, sistema
de casamento, beleza e moral das mulheres de diferentes raças.
Uma das observações do autor, que claramente expressa a absorção
de traços exotizantes orientalistas, é que as mulheres do Cáucaso
e muçulmanas possuem bacias largas e órgãos sexuais avantaja-
dos, levando-as a serem mais “amorosas”, justificando a poliga-
mia (VIRREY, 1824, p. 216).
66
Figura 2: Vênus Hotentote com esteatopigia e avental pubiano – J. J. Virrey.
Histoire Naturelle du Genre Humaine, tomo 1. Edição revista e ampliada.
Paris: Crochard Libraire, 1824, p. 241.
67
Em contrapartida, toda uma seção do volume foi dedicada à
descrição dos órgãos sexuais da Hotentote. Citando abundante-
mente a autópsia da Vênus Hotentote realizada por George Cuvier,
Virrey ressalta que nenhum tipo feminino é mais parecido aos
símios que as mulheres bosquímanas e hotentotes. A descrição
das nádegas e seios, a observação da dimensão avantajada dos
órgãos sexuais no qual o avental pubiano surge como expressão
máxima é conduzida de forma a conectar o clima quente africano
à anomalia da vagina de mulher Khoisan, e estas duas caracte-
rísticas à degradação moral deste povo. Segundo Virrey, tais fatos
justificariam o costume da circuncisão feminina, como recurso para
diminuir as anomalias sexuais das mulheres africanas (VIRREY,
1824, p. 238-252).
Embora Histoire Naturelle du Genre Humaine não ambicione
apresentar um estudo específico sobre a anatomia comparada da
bacia feminina das raças e nações humanas, o livro abriu caminho
para o surgimento de estudos que enfocaram especificamente a
anatomia pélvica característica do corpo humano, especialmente da
feminina, estabelecendo pretensos padrões raciais desta estrutura
óssea e da anatomia dos órgãos reprodutores e sexuais, sempre
abordando o tema pelo viés comparativo. Neste tipo de estudo,
mais uma vez, a definição das raças varia, sem, no entanto, fugir
dos dois polos opostos definidores; de um lado, o padrão europeu,
tido como modelo de perfeição contrapondo-se à deformidade e
à imperfeição da raça negra.
Em 1826, G. Vrolick, médico holandês, lançava o livro Considéra-
tions sur la Diversité du Bassins des Differentes Races Humaines,
inaugurando um tipo de estudo que se tornou muito popular
entre os médicos do século XIX, e cujos achados instrumentali-
zaram a prática médica ginecológica e obstétrica, promovendo a
constituição de um saber altamente racializado sobre a anatomia
defeituosa das mulheres negras de diferentes nações africanas,
especialmente das bosquímanas, sempre dissimulado em padrões
de análise minuciosos e sistemáticos, que aparentavam possuir
alto teor científico.
68
Figura 3: G. Vrolick. Planche appartenant à lóuvrage intitule,
Considerations sur le Diversité des Bassin de different Races Humaines.
Amsterdã: Van der Hey, 1826.
69
assertiva. Mas, se os ossos do crânio promovem certa aparência,
não é certo que a ossatura do corpo deve ser também especí-
fica? (VROLICK, 1826, p. 1-11).
Com fins de responder a tal questão, o anatomista se propõe
a analisar a seguinte amostra esqueletal: a bacia “bem formada”
de um homem e uma mulher europeus, comparando-as com as
de um homem e uma mulher negros, as de um par javanês, a de
uma mulata e a bacia de uma mulher Bosquímana. Notemos que
esta última análise é retirada da autópsia realizada por Cuvier,
carecendo de observação direta. Assim, a partir da observação de
sete esqueletos e uma autópsia, Vrolick tece amplas e generali-
zadas conclusões a respeito da animalidade da estrutura pélvica
africana. Depois de afirmar que a bacia do homem é diferente
da mulher entre europeus e entre africanos, conclui que a bacia
do homem africano é igual de uma besta feroz, mas a da mulher
negra é delicada, mas ainda assim animalesca, devido a sua forma
alongada. Ora, após concluir a respeito da deformidade e estrei-
teza da bacia da mulher negra, Vrolick se dispõe a responder à
questão que naturalmente se segue, a respeito de como harmoni-
zar uma formação tão defeituosa com partos fáceis e indolo-
res, afirmando:
70
sugere signos de menor civilização; a da mulher bosquímana
se aproxima muito mais da animalidade”. Assim, hotentotes ou
bosquímanos, sobretudo do sexo feminino, ocupavam a última
escala civilizatória. Supõe Vrolick que as características físicas
animalizantes poderiam retroceder, caso houvesse algum grau
de evolução, a ser alcançado pelo contato com europeus. Assim,
observa o anatomista que, caso houvesse alguma elevação civili-
zatória deste último grupo, a esteatopigia e o avental pubiano
poderiam, talvez, regredir (VROLICK, 1826, p. 14-20).
Embora estudos de anatomia comparada da bacia continuem
a ser produzidos – como de Weber (1830), Killian (1835) e Joulin
(1864) citados pelos autores posteriores – foi na década de
1870 que dois novos estudos se sobressaíram por apresenta-
rem base experimental mais ampla e métodos de medição e
análise sofisticados. São estes os trabalhos de Bacarisse, intitu-
lado Du Sacrum, suivant les sexes et les races, (1873) e de R.
Verneau, Le Bassin dans les sexes et les races (1875). Ambas
eram teses doutorais apresentadas à Faculdade de Medicina
de Paris e ambas orientadas por Paul Brocca. Os dois trabalhos
utilizaram-se igualmente do material – esqueletos e múmias
– existentes no Museu de História Natural de Paris, o que faz
com que ambos agradeçam à ajuda de Quatrefages. Curiosa-
mente semelhantes, possuindo hipóteses similares, utilizando-
se dos mesmos métodos de anatomia comparada e medições
apresentadas em figuras e tabelas minuciosamente detalhadas,
as duas teses competem entre si na batalha de verificar qual seria
mais acurada. No entanto, se o leitor percorrer suas descrições
minuciosas e tabelas milimétricas com alguma atenção, logo
concluirá que ambos os trabalhos são, no essencial, semelhantes.
Ambos pretendem provar que a bacia da raça negra é desseme-
lhante a todas as outras existentes na face da terra. As discor-
dâncias entre Bacarisse e Verneau restringem-se apenas na
definição de quantos tipos de bacia se poderia determinar a
partir da análise esqueletal.
Em Du Sacrum, dr. Bacarisse afirma ter analisado 200 ossos
sacros de todas as eras, pertencentes à coleção de M. Quatre-
fages, que foram divididos entre raça branca, amarela e negra.
No entanto, reconhece que em cada uma das categorias existi-
riam subcategorias estabelecidas hierarquicamente. Assim, a
71
raça branca seria composta pelos europeus, árabes, egípcios e
berberes. Na amarela estariam os americanos, chineses, turcos,
polinésios, lapões e tchoudis (do Círculo Ártico). Entre os negros
se encontram melanésios, australianos, populações da África
oriental, África ocidental e bosquímanos.
72
Suas conclusões são: 1. Em todas as raças – exceto a negra – a
altura do sacro masculino é maior que a feminina, em oposição a
base, que é maior nas mulheres e menor nos homens; 2. A largura
máxima do sacro na base é encontrada nos europeus, especial-
mente mulheres, e a menor largura na raça negra; 3. A curvatura
do sacro atinge seu ápice entre os europeus e o menor índice nas
raças negras, especialmente África Oriental e Ocidental.
Pretende assim Bacarisse ter provado que a raça negra se
diferencia da amarela, contrariando o que alguns autores – como
Joulin – haviam afirmado. Discutindo com detalhes, diversos
trabalhos sobre a bacia e estabelecendo uma apresentação
metodologicamente bem embasada em tom mais profissional e
neutro que seus antecessores, Bacarisse, em realidade, repete
as conclusões racializadas anteriores.
Finalmente, a tese de dr. R. Verneau, de 1875, intitulada Le
Bassin dans les sexes et les races, envereda por caminho similar
ao de Bacarisse. O doutorando inicia seu trabalho com a avalia-
ção de seus antecessores no estudo da anatomia comparada da
bacia, citando a linhagem já mencionada, a qual iniciada por P.
Camper, passa pela autópsia de Cuvier, discute mais de vinte
autores que escreveram sobre o tema, sublinhando a importân-
cia de Vrolick, cujas conclusões Verneau subscreve.
Suas conclusões são: 1. Em todas as raças – exceto a negra – a
altura do sacro masculino é maior que a feminina, em oposição a
base, que é maior nas mulheres e menor nos homens; 2. A largura
máxima do sacro na base é encontrada nos europeus, especial-
mente mulheres, e a menor largura na raça negra; 3. A curvatura
do sacro atinge seu ápice entre os europeus e o menor índice nas
raças negras, especialmente África Oriental e Ocidental.
73
Figura 5: R. Verneau. Le Bassin dans les sexes et les races. Paris: Librairie J.
B. Ballière et fills. 1875, Prancha XV.
74
trabalho de Vernau (e igualmente ao de Bacarisse) uma impressão
geral neutra e profissionalizada, em realidade a tese corrobora
a mesma tese de seus antecessores, pretendendo comprovar
o caráter desviante da bacia, anatomia pélvica e pubiana dos
africanos, especialmente das mulheres.
Finalmente, e ainda seguindo as citações da tese de J. J.
Ferreira, menciono a referência a dois médicos navais franceses,
Armand Corre e Fl. Thaly, ambos com estadias no Senegal colonial
e que, na década de 1880, publicaram série de artigos de temas
variados sobre a experiência médica em áreas tropicais. Dr. Thaly,
por exemplo, além de assegurar que os partos das mulheres no
Senegal eram fáceis e rápidos, devido à robustez delas, registra
também a ausência de dor entre os seus pacientes, que, tanto
devido à grossura da pele ou menor enervação, aparentavam se
submeter às mais dolorosas cirurgias com indiferença (THALY,
1867, p. 167-197). Corre apresenta vasta produção sobre doenças
tropicais, inclusive um estudo sobre o ainhum (dactilose espontâ-
nea), derivando seus interesses para criminologia racial e craniome-
tria (CORRE, 1878). A menção à literatura médica colonial francesa
no Brasil da década de 1880 é bastante interessante, compro-
vando a circulação e instrumentalização de teorias raciais entre
médicos ginecologistas e obstetras no Rio de Janeiro do período.
Tais abordagens raciais não se tornaram meros aparatos
ideológicos ou oportunidades de exibição de erudição estran-
geira e adesão a ideias elegantes apresentadas de forma cientí-
fica. Muito pelo contrário, os achados médicos que “comprovaram”
a inferioridade da anatomia pélvica africana, devido ao caráter
desviante e masculino da bacia da mulher negra, serviram para
instrumentalizar práticas obstétricas de enorme violência.
Intervenções dolorosas, medições invasivas, indiferença à dor
e à morte de mães e bebês negros caracterizavam o dia a dia da
Enfermaria de Partos do Rio de Janeiro da década de 1880. Os frutos
desta visão estão presentes ainda hoje no tratamento pré-natal,
no parto e na atenção pós-parto de mulheres negras brasileiras.
O capítulo que se segue, “Bacias, fetos e pelvímetros: mulheres
escravizadas e violência obstétrica na enfermaria de partos do Rio
de Janeiro (década de 1880)”, mergulha nas práticas observadas na
Enfermaria de Partos do Rio de Janeiro apontando o quão cotidia-
nas foram as técnicas intrusivas e racializadas de seus médicos.
75
Fontes
CUVIER, George. Extrait des observations faite sur le cadavre d’une femme
connue à Paris et à Londres sous le nom de Venus Hottentote. Mémoires
du Muséum d’Histoire Naturelle. Paris: Cez a Belin, 1817. p. 259–74.
ENGELMANN, J. Labor among primitive people. 2. ed. rev. e ampl. St. Louis,
MI: J. H. Chambers, 1883.
76
VIRREY, J. J. Histoire naturelle du genre humaine. 1. ed. rev. aum. Paris:
Crochard libraire-Editeur, 1824. t. 1.
77
Referências
BINDMAN, David. Ape to Apollo: aesthetics and the idea of race in the
eighteenth century. Ithaca: Cornell University Press, 2002.
LEAL, Maria do Carmo; GAMA, Silvana G. N. da; PEREIRA, Ana Paula E.;
PACHECO, Vanessa E.; CARMO, Cleber N: do; SANTOS, Ricardo V: dos Santos.
The Collor of pain: racial inequalities in prenatal care and childbirth in
Brazil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, n. 33, 2017.
78
MACHADO, Maria Helena P. T. Raça, ciência e viagem no século XIX. São
Paulo: Intermeio, 2018.
OWENS, Deirdre Cooper; FETT, Sharla. Black maternal and infant health.
Historical legacies of slavery. American Journal of Public Health, Washing-
ton, DC, out. 2019.
POLIAKOV, Leon. The aryan mith. Nova York: Barnes and Nobles, 1996.
79
da Elite Política Brasileira, CPDOC/FGV, s/d. Disponível em: http://cpdoc.
fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/COELHO,%20
%C3%89rico%20Marinho%20da%20Gama.pdf. Acesso em: 11 jan. 2021.
80
BACIAS, FETOS E PELVÍMETROS: MULHERES
ESCRAVIZADAS E VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
NA ENFERMARIA DE PARTOS DO RIO DE
JANEIRO (DÉCADA DE 1880)
Lorena F. da S. Telles
81
nascidos e seus rituais eram domínios exclusivamente femininos
e vividos nos domicílios (MOTT, 1998). Eram designadas parteiras
e “comadres” as mulheres indígenas, africanas e suas descenden-
tes escravizadas e libertas, além de portuguesas e descendentes
sem posses, que detinham os saberes informais sobre o corpo
feminino, ancorados na experiência prática e na tradição oral
(MOTT, 1998; TELLES, 2021).
A reforma do ensino médico de 1832, que instituía Faculda-
des de Medicina nas cidades do Rio de Janeiro e de Salvador,
marcou o surgimento de um profissional, portador de um novo
modo de conceber e intervir sobre o parto e o corpo feminino,
provocando mudanças no cenário de assistência ao parto na
cidade. Estudos acerca do desenvolvimento dos campos da gineco-
logia e da obstetrícia no Brasil indicaram que, ao longo do século
XIX, na cidade do Rio de Janeiro, a participação dos médicos nos
partos foi rara e restrita a mulheres brancas das elites e camadas
médias escravistas (ROHDEN, 2001; MARTINS, 2000). Ao longo
da segunda metade do século, com o acirramento da disputa
pela legitimidade dos médicos e de seus interesses científicos
e profissionais na cidade, homens e mulheres proprietários de
escravizadas, entre ricos, remediados e os setores médios urbanos,
procuraram pela assistência dos doutores em seus domicílios ou
nas clínicas privadas dos médicos, como último recurso frente
ao agravamento de complicações no parto que colocassem em
risco a saúde e a vida das cativas e de seus bebês (TELLES, 2018).
As casas de saúde, como eram designadas as clínicas particulares
dos médicos, não foram os únicos espaços exteriores aos domicí-
lios senhoriais em que mulheres cativas deram à luz mediante
a intervenção de homens brancos, formados pelas Faculdades. 2
Com a lenta aparelhagem dos médicos no Estado e com as
campanhas dos professores da Faculdade de Medicina, foram
criados estabelecimentos destinados à assistência obstétrica
2 A partir de 1850, com a lenta ascensão dos médicos entre as elites escravistas,
os jornais diários multiplicaram os anúncios das Casas de Saúde, onde profes-
sores e formados pela faculdade ofereciam tratamentos a diversas doenças,
havendo clínicas destinadas à assistência aos partos das escravizadas, onde eram
inicialmente atendidas por parteiras brancas, muitas delas europeias, formadas
em cursos acadêmicos segundo os cânones da obstetrícia (MARTINS, 2000, p.
193; ROHDEN, 2006, p. 215).
82
gratuita, inicialmente na Maternidade Municipal e depois na
enfermaria de clínica obstétrica e ginecológica da Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, sediada no hospital da Santa Casa
de Misericórdia. Apesar de revestida de uma retórica humani-
tária dirigida às mulheres desvalidas, a defesa da criação de
uma maternidade pública esteve diretamente relacionada ao
objetivo de proporcionar aos estudantes a prática clínica que eles
raramente obtiveram, ao longo de todo o século (BARRETO, 2016;
TELLES, 2018). Até a década de 1880, os estudantes formados,
homens jovens, brancos, membros das aristocracias rurais ou
classes médias urbanas, obtinham conhecimentos teóricos acerca
dos partos a partir de simulações com manequins e tratados de
obstetrícia. Os egressos da faculdade, em sua maioria, obtiveram
seus diplomas sem presenciarem nenhum nascimento, visto que
as mulheres, de todas as classes sociais, davam à luz seus filhos
nos domicílios sob a assistência das parteiras (MOTT, 1998).
O diretor da Faculdade de Medicina, Vicente de Sabóia, revelava
a íntima conexão entre a aprovação do projeto de criação da
Maternidade Municipal e o decreto de abril de 1879, conhecido
como reforma Sabóia, que instituía nas Faculdades as cadeiras
de clínica obstétrica e ginecológica, reiterando que se criassem
enfermarias para o ensino prático (MARTINS, 2000, p. 162). Umas
das principais questões debatidas pelos professores e médicos
dizia respeito à procura voluntária das mulheres. Segundo Maria
Lucia Mott, dar à luz fora de casa era uma situação considerada
apavorante e evitada a todo custo; mulheres empobrecidas, mães
sós ou mulheres que subsistiam da prostituição, recorriam à
Santa Casa de Misericórdia (MOTT, 2002, p. 199). Realizando um
balanço da situação do ensino da obstetrícia no Império, um médico
reconheceu, em 1845, que as mulheres não se dirigiriam volunta-
riamente a tais estabelecimentos, prevendo que as senhoras e
senhores, para não terem despesas ou correrem o risco de alguma
complicação, enviariam as cativas para darem à luz na materni-
dade (MOTT, 2002).
Desde 1881, a criação da Maternidade Municipal, substituída
em 1883 pela enfermaria obstétrica e ginecológica da Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro, aberta aos médicos e estudan-
tes e financiada pela municipalidade, impactou as vivências do
parto para mulheres escravizadas, libertas e livres empobrecidas.
83
Sobretudo sobre os corpos e os partos de mulheres negras cativas,
majoritariamente crioulas descendentes de africanas, recaiu a
prática de estudantes e médicos e o uso de instrumentos obstétri-
cos segundo orientações racializadas.
Enfocando a década de desagregação do regime escravista
e da ascensão das teorias raciais entre intelectuais e médicos
brasileiros, este artigo primeiramente explora o perfil das mulheres
internadas na Maternidade Municipal e na enfermaria de partos
da Faculdade de Medicina. A partir dos relatórios elaborados em
1881 e 1882 sobre a Maternidade Municipal, de teses de medicina
elaboradas para conclusão de curso da Faculdade de Medicina
e de tratados de obstetrícia, analisaremos as experiências de
mulheres escravizadas internadas nas enfermarias, submetidas
ao uso de instrumentos obstétricos, manipulados por médicos
e estudantes inexperientes, e suas relações com a ascensão das
teorias raciais que se debruçaram sobre o corpo da mulher negra,
especialmente sua bacia.
As teses de medicina, último requisito para a conclusão,
ao final de 6 anos, do curso de medicina das faculdades do Rio
de Janeiro e da Bahia, constituem uma porta de entrada para as
práticas cotidianas dos médicos e estudantes e as experiências de
mulheres negras, cativas, libertas e livres, que ingressaram nas
enfermarias nos últimos meses de gravidez e ali deram à luz na
década de 1880. Entre 1884 e 1887, Justo Jansen Ferreira e Eduardo
Prevost frequentaram, como estudantes internos, a enfermaria de
clínica obstétrica e ginecológica da Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro, presidida pelo então professor Érico Coelho. Recolhe-
ram, a partir de exames e intervenções com instrumentos sobre
os corpos de mulheres negras, informações acerca de suas bacias,
seus partos e puerpérios, escolhidas para compor as observações
clínicas e os desdobramentos científicos publicados nas teses,
emblemas da obstetrícia racializada no Brasil.
Na segunda parte do texto, analisaremos as práticas médicas
racializadas e as experiências de mulheres negras internadas na
instituição, que deram à luz seus filhos com ou sem vida, mediante
o uso do fórceps e de manobras dolorosas nos partos difíceis,
acometidas pela febre puerperal, que ceifou a vida de algumas
delas na instituição.
84
Maternidade Municipal, enfermaria de
partos e exames pelvimétricos
A Maternidade Municipal era inicialmente instalada na Casa
de Saúde Nossa Senhora da Ajuda, uma dentre as clínicas em que
médicos se especializaram no atendimento aos partos e enfermi-
dades uterinas. Constituída por duas salas, uma para lições clínicas
e outra com 25 leitos para as mulheres parturientes e puérperas,
as aulas tinham início dia 25 de abril de 1881. Segundo o médico
autor do relatório, a Maternidade foi “desde então frequentada com
assiduidade pelos Srs. Alunos da 5ª inscrição”. 3 Entre os meses
de abril e dezembro de 1881, consta que 29 dentre as 47 mulheres
que ingressaram na enfermaria eram escravizadas, internadas
pela vontade senhorial nos meses finais da gravidez. As informa-
ções sobre o segundo ano de funcionamento da Maternidade
indicam igualmente a prevalência das mulheres escravizadas,
68 dentre as 103 que ali foram internadas em 1882: “Não julgue
a Ilma. Câmara que tem sido pouco concorrida a Maternidade,
o número de mulheres tem sido mais que regular e se ele não é
maior é isso devido ao Curso obstétrico, que afugente [sic] algumas
mulheres”. Assim como o médico autor do relatório, um estudante
de medicina atestava, em sua tese de conclusão de curso, que as
mulheres livres evitavam a todo custo a Maternidade Municipal,
recorrendo ao Hospital da Santa Casa de Misericórdia e a materni-
dades particulares, onde atuavam parteiras europeias:4
85
por escravas e as mulheres livres, por pequenos que sejam
seus recursos pecuniários, preferem parir em suas casas,
ou procurar o Hospital da Misericórdia e as maternida-
des particulares. (MARTINS, 1882, p. 66)
86
Municipal foram fechadas, quando chegou ao fim o financia-
mento público da Câmara e as doações. Em 1884, a fundação
de uma enfermaria para clínica obstétrica e ginecológica foi
autorizada e instalada na Santa Casa de Misericórdia, vencendo
a resistência das irmãs que se recusavam, até então, a ceder
um espaço para a atuação dos estudantes na instituição (MOTT,
2002, p. 200).
A partir da tese de Justo Jansen Ferreira, podemos nos aproxi-
mar das condições materiais oferecidas às mulheres internadas
na instituição. Segundo o estudante, a enfermaria era consti-
tuída de uma sala que continha 15 leitos “destinados promis-
cuamente a mulheres antes do parto, no estado puerperal, a
infeccionadas e aos casos de ginecologia”, havendo ainda “seis
leitos destinados às crianças”, estando “os colchões e os coberto-
res” sempre sujos (FERREIRA, 1887, p. 70). Érico Coelho, profes-
sor da cadeira de clínica, enfatizava o descaso da municipalidade
com as condições da enfermaria, descrevendo a falta de roupas
de cama e de alimentos para as internadas, mulheres em sua
maioria negras, deixadas à “míngua de rações alimentícias”
(COELHO, 1887, p. 388). A sala, segundo ele, deveria compor-
tar não mais de oito leitos a contar parturientes e bebês, tendo
chegado a abrigar 18 mulheres e seis recém-nascidos. A tese
indica, ainda, que elas foram ali submetidas ao escrutínio de
seus corpos com instrumentos obstétricos e exames altamente
invasivos antes, durante e depois dos partos.7 Os nascimentos,
87
segundo Érico Coelho, foram concorridos “por vários doutores
em medicina e algumas parteiras”.
Na função de médico da cadeira de clínica, Coelho indicava seu
empenho em “conciliar os interesses do ensino com os ditames
da filantropia”, afirmando preferir
Segundo depoimentos, ela havia sido ama de leite do filho do senhor, sendo
posteriormente alugada na mesma função, sem nenhuma menção ao destino
de seu filho.
8 A população de escravizados reduziu-se de 32.103, em 1884, a aproximada-
mente 29 mil em 1885 e 7 mil em 1888, devido às alforrias, mortes e sobretudo
em virtude da venda para as fazendas. Segundo o recenseamento de 1890,
realizado dois anos depois da Abolição, que contribuiu para incrementar a
88
Dentre as 12 mulheres negras selecionadas pelo estudante
para compor os casos clínicos abordados na tese, algumas foram
identificadas pela condição cativa, enquanto outras, também
prováveis escravizadas, foram designadas pela cor preta e apenas
pelo primeiro nome, como Anna, Maria, Izabel e Henriqueta.
Já as mulheres identificadas como “mestiças” e “negras”, como
Maria Luiza da Conceição, Crescência Maria de Jesus e Adelaide
Maria Ferreira tinham designados os sobrenomes, tratando-se,
provavelmente, de libertas ou nascidas livres. Em outra passagem
da tese, no registro geral da clínica entre os anos de 1884 e maio
de 1887, Jansen apontou que houve 103 partos em mulheres “da
raça negra” e 74 em “mestiças”, e 26 mulheres “da raça branca”
que não foram diretamente abordadas na tese (FERREIRA, 1887,
p. 72). As observações do estudante apontam que a maioria das
mulheres eram jovens, na faixa dos 20 anos, que davam à luz pela
primeira vez na presença de turmas de estudantes, havendo 23
casos de infecções puerperais.
Dia 20 de abril de 1884, Henriqueta ingressou na enfermaria
do serviço ginecológico e obstétrico da Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro, seis dias antes do que seria o seu primeiro e trágico
parto (FERREIRA, 1887, p. 39). A jovem de 17 anos teve sua bacia
mensurada pelo então estudante, que anotava as distâncias dos
ossos pélvicos, descrevendo-a como portadora de “constituição
fraca” e “primípara”. Assim como Henriqueta, mulheres em sua
maioria negras estiveram internadas na enfermaria por semanas
ou mesmo meses, tendo suas bacias e temperaturas corporais
medidas, e seus partos assistidos por estudantes inexperientes,
mediante explorações manuais sobre suas barrigas e úteros, e
usos de fórceps e outros instrumentos obstétricos.
O trágico parto de Henriqueta é emblemático das práticas de
violência que recaíram sobre as mulheres negras e seus partos
quando internadas naquela instituição. Às cinco horas da manhã
do dia seguinte ao início do trabalho de parto de Henriqueta,
segundo Jansen, foi realizada uma “ruptura artificial” da bolsa,
não sendo indicado a pessoa que realizou o procedimento nem
89
o instrumento utilizado para tal.”. O bebê, que inicialmente
apresentava-se pelos pés, mudava de posição “pela circuns-
tância de terem muitos alunos, palpado e malaxado o ventre da
parturiente com o intento de reconhecerem a situação do feto”,
que nascia a fórceps e sem vida. A violência dos médicos e turmas
de estudantes sobre a mulher negra cativa, submetida a toques
e apalpamentos que chegaram a mudar a posição do bebê, não
se limitou ao trabalho de parto. Nas observações a respeito do
puerpério, consta que Heriqueta foi submetida a explorações
manuais em seu útero, que se encontrava “doloroso esponta-
neamente e mormente à pressão, quando se explorava os seus
cornos e também na direção das bordas” (FERREIRA, 1887, p. 46).
Henriqueta, enquanto permaneceu internada, foi acometida de
febres, pneumonia e diarreias, além de ter o quadril esquerdo
“comprometido por abscessos” devido a injeções aplicadas. Depois
de um mês de internação, após seu primeiro parto, mediante
a assistência invasiva de vários estudantes e do uso do fórceps
que lhe extraía a menina sem vida, ela deixava a enfermaria
dia 28 de julho.
Assim como Henriqueta, todas as mulheres que compuse-
ram as observações de Justo Jansen Ferreira tiveram seus
corpos escrutinados por estudantes e médicos, tendo suas
bacias mensuradas e as distâncias dos ossos pélvicos anotados
e registrados. Segundo Ana Paula Martins, as teorias racialis-
tas desenvolvidas por cientistas europeus acerca das mulheres
estruturaram-se nas partes de seus corpos cuja anatomia
associava-se às funções reprodutivas e à sexualidade, como
o clitóris e, sobretudo, a pélvis (MARTINS, 2000, p. 35-36). A
dinâmica do gênero e da raça, na formulação dos saberes cientí-
ficos sobre as diferenças humanas, baseou-se no princípio de
uma hierarquia naturalizada em que as bacias eram medidas e
comparadas, tendo como padrão ideal de normalidade e civiliza-
ção o corpo da mulher branca europeia. Maria Helena Machado,
em seu capítulo neste livro, demonstra que as ideias raciais que
se originaram dos estudos craniométricos inf luenciaram as
pesquisas ginecológicas e obstétricas entre médicos europeus,
constituindo um arcabouço de crenças altamente preconcei-
tuosas que gozaram de ampla penetração e sobrevida no meio
médico. A autora nota que a especificidade conferida à anatomia
90
pélvica da mulher negra consistiria no caráter mais estreito e
alongado – e próximo ao padrão masculino – em relação à bacia
padrão da mulher caucasiana. A partir da análise da tese de Justo
Ferreira, Machado demonstra as conexões entre a caracteriza-
ção da bacia da mulher negra como masculinizada e estreita,
e uma série de práticas obstétricas racializadas escoradas nos
estudos de médicos franceses que confirmariam essas especi-
ficidades, dentre elas o uso do pelvímetro.
Assim, Henriqueta e as mensurações de seu corpo vinham
constituir o suporte para os achados racializados do estudante,
que a incluiu, junto a outras quatro mulheres negras, dentre
aquelas que possuíam suas bacias com diâmetro menores que
10 centímetros (FERREIRA, 1887, p. 39). Segundo Ana Martins, as
mensurações das bacias das mulheres constituíram um procedi-
mento clínico largamente utilizado após a publicação do famoso
tratado de Baudelocque, que criou um dos primeiros pelvíme-
tros, utilizado até o século XX, cujo uso veio definir padrões de
normalidade racializados. Se as distâncias e diâmetros dos ossos
da bacia eram anotadas nas observações de todas as mulheres
negras, Jansen menciona em apenas um caso indícios das formas
como foram empregados os instrumentos nas demais mulheres,
referindo-se laconicamente a “mensurações externas e internas
da bacia” (FERREIRA, 1887, p. 53).
O médico Theodoro Langgaard (1862) foi autor de um
tratado obstétrico de grande circulação entre os estudantes
de medicina na segunda metade do século XIX, intitulado Arte
obstetrica ou tratado completo dos partos. Na sessão referente à
anatomia da bacia, podemos entrever como se davam as práticas
de “mensurações externas e internas”. No item “exploração da
bacia”, ele defendia a necessidade de se reconhecer a existência
de “anomalias”, empregando-se “dois métodos de exploração;
um que só se emprega a mão, a exploração manual da bacia;
e o outro em que se serve de certos instrumentos, chamados
pelvímetros”. Segundo ele, a exploração manual poderia ocorrer
externa e internamente, praticada “com o dedo indicador; mas
emprega-se também às vezes mais dedos ou a mão inteira”
(LANGGAARD, 1862, p. 38-39). Quanto ao uso dos pelvímetros,
segundo ele, “uns só se empregam introduzindo-os na cavidade
da bacia, e outros aplicando-os externamente”, havendo um
91
terceiro tipo “que se emprega aplicando-os conjuntamente
interna e externamente” (LANGGAARD, 1862, p. 40). Segundo
o médico, o mais simples, antigo e eficaz instrumento denomi-
nava-se pelvímetro de Stein, que recebeu o nome do médico que
introduziu seu uso em 1772, aplicado internamente na vagina
das mulheres. Já o pelvímetro para o exame externo consistia
no compasso articulado e contendo graduações, inventado por
Beaudelocque, reproduzido no tratado de obstetrícia de autoria
de Vicente de Saboia, de 1873:
92
nas mensurações internas e externas das mulheres negras, mas
Langgaard refere-se aos chamados pelvímetros mixtos, “que se
aplicam interna e externamente”, mencionando o pelvímetro
de Van Huevel como “o melhor” (SABÓIA, p. 41). Sabóia conside-
rava os “excelentes resultados” fornecidos por esse instrumento,
tratando-se de vantagens “incontestáveis e reconhecidas por
todos os parteiros” (SABÓIA, 1873, p. 498). Langgaard demonstrou
sua aplicação na imagem reproduzida a seguir, com a inserção
interna da parte designada de A a A, e a ponta externa de B a B.
93
foram submetidas as mulheres negras, ainda grávidas, durante
os partos e depois deles, nada constando acerca das respostas e
possíveis resistências das mulheres.
Fórceps, craniotomia,
febre puerperal e analgesia
Além da centralidade do exame pelvimétrico e das considera-
ções acerca da bacia, em todas as observações sobre o desenrolar
dos nascimentos, Justo Ferreira Jansen trouxe à tona o fórceps,
cujo uso deu-se paralelamente ao ingresso dos médicos na cena
do parto. Portando duas grandes colheres de metal articuladas e
concebidas para agarrar a cabeça do feto, a invenção do instru-
mento é atribuída a cirurgiões ingleses durante o século XVII,
sendo que sua divulgação, aperfeiçoamento e instruções para uso
ocorreram a partir do século XVIII.9 Historiadores da obstetrí-
cia afirmam que sua concepção trouxe enormes benefícios às
parturientes e bebês, no entanto foram bastante comuns casos
em que o fórceps era utilizado sem necessidade, em situações
nas quais a imperícia poderia prejudicar a parturiente e o feto.
Theodoro Langgard reproduziu, em seu tratado de partos, a
imagem do fórceps mais comumente empregado:
Figura 8: Fórceps.
94
“a desproporção entre a cabeça do feto e a bacia ou a estreiteza
da mesma”, “a inércia do útero demorando-se o parto demasiada-
mente”, dentre outras situações. O autor prossegue numa descrição
pormenorizada do encaixe das colheres do instrumento na cabeça
do feto e das rotações e trações a serem realizadas pelo médico,
“sempre na ocasião das contrações uterinas”, enfatizando tratar-
se de casos sem complicações, com a posição ideal de apresen-
tação do feto pela cabeça (LANGGAARD, 1862, p. 276-277, 280).
A partir do manual de Vicente de Sabóia e de Langgaard,
podemos notar como os médicos concebiam o uso apropriado do
instrumento. Sabóia mencionava o medo que o fórceps provocava
nas parturientes, recomendando que se evitasse mostrá-lo, sob
o argumento de que seria suficiente a informação de que seu
uso seria inofensivo e necessário. Segundo Langgaard, “estando a
parturiente deitada na cama” bastaria um ajudante, necessitando-
se de quatro caso fosse necessário “colocá-la atravessado [sic] na
beira da cama”, para firmar as pernas e conter o corpo, e outro “para
coadjuvar o operador” (LANGGAARD, p. 276). Sabóia e Langgaard
recomendavam, ainda, que o instrumento fosse aquecido em água
quente e que suas grandes colheres fossem banhadas em alguma
matéria gordurosa. Não encontramos menção a nenhum destes
cuidados tomados pelos estudantes e médicos com as mulheres
negras observadas na tese de Jansen Ferreira.
Assim como Henriqueta, Isabel, “preta, com 23 anos de idade, de
constituição forte, primípara”, medindo 1,40 m de altura, experien-
ciou o nascimento de seu primeiro filho mediante a assistên-
cia invasiva de médicos e estudantes manipulando seu corpo e o
fórceps, após um dia de trabalho de parto de uma menina, seguindo-
se, segundo Jansen, o puerpério normal (FERREIRA, 1887, p. 48).
Damiana, 17 anos, preta, deu entrada na enfermaria dia 27 de julho
de 1886, também grávida pela primeira vez. O trabalho de parto
era descrito de maneira lacônica, extraindo-se com o fórceps
um bebê sem vida. Dois dias depois do parto, Damiana perdeu a
vida na enfermaria: “Alta noite a doente faleceu sem assistência
médica, quer da Maternidade, quer da Santa Casa de Misericórdia,
pelo que só podemos acrescentar a esta observação o resultado
da autópsia”. O fato de que todas as mulheres que constam nas
observações de Justo Ferreira tiveram seus partos com o fórceps,
havendo situações em que seu uso era apenas mencionado, aponta
95
para os possíveis usos desnecessários e destinados à prática dos
estudantes. Segundo ele, o recurso frequente ao fórceps entre as
parturientes negras observadas justificava-se pelo trabalho de
parto prolongado, da pequena capacidade da bacia “e também
no interesse do feto” (FERREIRA, 1887, p. 59). Para ele, os resulta-
dos foram satisfatórios, a despeito da ocorrência de fetos mortos,
não sendo mencionadas possíveis lesões causadas pelo instru-
mento, que poderiam constituir a causa de infecções puerperais
que ceifaram a vida de algumas mulheres. Já no relatório referente
à Maternidade Municipal, consta uma ocasião em que o instru-
mento foi usado em uma mulher, resultando em septicemia “por
lesões traumáticas” seguido de morte.10
Estudos dedicados às práticas dos médicos nos partos de
mulheres cativas em sociedades escravistas no Caribe e nos
Estados Unidos documentaram casos envolvendo danos nas
mulheres com o mau uso do fórceps. Tara Inniss apontou casos
de infecções, nas plantações do Caribe britânico, que teriam sido
provocadas pelos médicos que não esterilizavam os instrumen-
tos nem lavavam suas mãos (INNISS, 2009, p. 43). Mary Schwartz
demonstrou que, nas fazendas do sul dos Estados Unidos, as
mulheres negras escravizadas encontraram-se mais expostas
que mulheres brancas tanto a tratamentos de risco quanto a
procedimentos sem o uso de anestésicos, além de serem atendi-
das por médicos inexperientes, pois os iniciantes participavam
de seus primeiros partos nas senzalas. Segundo a historiadora,
condutas envolvendo o mau uso do fórceps e a ausência de assepsia
das mãos poderiam causar lacerações e infecções puerperais.
Schwartz documentou o caso envolvendo um médico que optava
pelo recurso ao fórceps em uma escravizada durante acessos de
convulsão, apesar de ele mesmo afirmar ciência de que a escolha
de seu uso seria provavelmente fatal, o que ocorreu (SCHWARTZ,
2006, p. 169-170).
A tese de doutorado de Antonio Prevost, sobre febre puerperal,
nos aproxima do dramático parto da cativa Rita. Num período em
que a cesariana era considerada uma cirurgia perigosa e mortal
devido às infecções e hemorragias, quando o parto fosse obstado pelo
estreitamento da bacia ou pelo tamanho do feto, este era extraído
96
tendo sua cabeça ou membros mutilados, operação conhecida como
craniotomia e embriotomia, praticada com ganchos, tesouras ou
bisturis, resultando em partos traumáticos para as mulheres que
a eles sobreviveram (LANGGAARD, 1862, p. 125).
Rita, cativa, 22 anos, deu entrada na enfermaria em 5 de maio
de 1885 (PREVOST, 1885, p. 14-2). Dia 27, às onze horas da noite,
Pedro Paulo, médico adjunto, atuava no difícil trabalho de parto
da jovem: o bebê era retirado pela pélvis e pelo braço, permane-
cendo, porém, a cabeça presa “apesar das manobras reiteradas”.
Diante da situação, Pedro Paulo recorreu ao professor da cadeira,
Érico Coelho, que chegava 4 horas e meia depois, enquanto Rita
padecia. Ali chegando, o médico indicou que se “fizesse a perfura-
ção do crâneo”, o que foi realizado pelo adjunto com “o trepano
de Braune”, extraindo-se a cabeça com o “cranioclasta”. Rita teria
um puerpério, nos dizeres do médico, “perfeitamente normal”, a
despeito do longo e dramático parto, deixando a enfermaria dia
12 de junho sem o filho.
Segundo Eduardo Prevost, durante o parto de Rita foram
realizadas irrigações vaginais antissépticas a fim de controlar
a enfermidade que cobrava a estada das mulheres na enferma-
ria, e que constituía o tema central de sua tese: a febre puerpe-
ral. Esta doença, que acometia mulheres no pós-parto, tomou
proporções epidêmicas nas maternidades e hospitais, na forma
de infecções que se iniciavam no útero, por meio de mãos, instru-
mentos cirúrgicos e contato com roupas sujas e contaminadas.11
Érico Coelho referiu-se à febre puerperal que grassava na
enfermaria, desferindo críticas ao que designava “a promiscui-
dade entre puérperas sãs e doentes, alimentando o puerperismo
que aí reinou desde que abriu o serviço”, e “a falta de lavagens
dos assoalhos”, “chegando a incúria ao ponto de não se empregar
durante quatro meses esta medida elementar de asseio”, a
despeito de seus incessantes rogos (COELHO, 1887, p. 388). Em
artigo publicado em 1885, no jornal O Paiz, um médico criticava
duramente as condições oferecidas pelos serviços de ginecologia
97
e de obstetrícia da Faculdade. As duas salas, além de separadas
por uma parede que continha duas grandes janelas, abrigavam
mulheres “que esperam a hora do trabalho, para as que estão
em estado puerperal e muito principalmente para as que forem
acometidas de febre puerperal, cujo isolamento é preciso que
seja completo e absoluto” (O Paiz, 14/11/1885).
Na estatística organizada por Jansen, dos 103 partos de
mulheres negras, houve 23 casos de infecção puerperal, sendo 3
destes fatais (FERREIRA, 1887, p. 63). O estudante menciona Érico
Coelho, que atribuía o suposto baixo número de mortes “a um
privilégio da raça negra”, segundo ele devido às glândulas sudorí-
paras, das quais as mulheres afrodescendentes seriam preten-
samente mais dotadas, e que eliminariam a infecção (FERREIRA,
1887, p. 71-72). Eduardo Prevost corroborava com os achados raciali-
zados, afirmando a suposta “resistência apresentada pela raça
negra para puerperismo infeccioso mostrado por Erico Coelho”
e defendida por médicos estadunidenses (PREVOST, 1885, p. 61).
A liberta ou livre Crescência Maria de Jesus, descrita como
“negra, com 23 anos de idade, constituição regular, conformação
boa”, primeiro parto, ingressou na enfermaria em 3 de dezembro
de 1884. Dois dias depois de um “trabalho demorado”, terminado a
fórceps, a jovem perdia a vida “em consequência de uma infecção
rápida siderante” (PREVOST, 1885, p. 65). Quanto a Brígida, seu caso
era descrito como “mui importante, a qual se observa frequen-
temente nas mulheres da raça negra”. Aos 30 anos, “constituição
forte, conformação boa”, a provável escravizada ingressou para
a clínica de partos em 15 de junho de 1886. O parto era descrito
laconicamente, “demorado e terminado pelo fórceps”. Quanto
ao puerpério, a febre infecciosa a acometeu dois dias depois
de dar à luz, tendo alta apenas em 26 de setembro daquele ano,
não sabemos se com ou sem o bebê (PREVOST, 1885, p. 68). Se
as observações selecionadas pelo estudante Justo Ferreira se
limitaram às mulheres negras − escravizadas, livres e libertas
−, a tese defendida por Eduardo Prevost sobre a febre puerpe-
ral aponta para os casos mais raros de mulheres brancas que se
submeteram pela pobreza à internação na enfermaria. Assim,
em 21 de junho de 1885, às três horas da tarde, “Candida Julia
da Silva, brasileira, branca, livre, com 28 anos de idade, solteira,
natural do Rio de Janeiro, pobre, moradora à rua do Passeio n. 66”,
98
adentrava a enfermaria, febril, três dias depois de seu primeiro
parto. Ela permaneceu internada durante três dias, foi diagnos-
ticada pelos médicos com erisipela – enfermidade de origem
infecciosa que acomete a pele e os vasos linfáticos evoluindo
para gangrena –, além de inflamações uterinas. Diante do agrava-
mento da febre, ela falecia (PREVOST, 1885, p. 138).
Já Maria Luiza da Conceição, descrita como “mestiça com 30
anos de idade, constituição fraca, conformação boa”, ingressou em
janeiro de 1887 na clínica nos últimos tempos da gravidez devido
às más condições de saúde: “estava febril e tinha vômitos biliosos”
(FERREIRA, 1887, p. 65). Dois dias depois de internada, declarou-
se o trabalho de parto, e estando o feto apresentando-se pela
espádua, “sob o emprego do clorofórmio praticou-se a versão”,
manobra obstétrica reconhecidamente dolorosa realizada com
as mãos, com o objetivo de mudar a posição do feto (FERREIRA,
1887, p. 65). A mulher vivia um puerpério marcado por mal-estar,
vômitos e febre, falecendo seis dias depois de dar à luz. Seu corpo
era autopsiado, e nada era mencionado acerca do bebê. Esta é a
única referência realizada por Justo Ferreira Jansen com relação ao
uso do inalante clorofórmio, o que nos remete à questão da analge-
sia nas manobras obstétricas e das especificidades da atuação dos
médicos com relação às mulheres negras nas práticas dolorosas.
Consta que o primeiro registro de uso do clorofórmio no parto
remonta ao ano de 1848, pelo médico Rodrigo Bivar, na materni-
dade do hospital da Santa Casa, havendo menções a seu emprego
em cirurgias entre escravizadas desde a década de 1850 (MARTINS,
2000, p. 209; TELLES, 2022, cap. 4). Mary Schwartz (2006) demons-
trou que, desde 1850, nos Estados Unidos, anestésicos inalantes
como clorofórmio e éter passaram a ser utilizados com a finali-
dade de atenuar as dores do parto entre mulheres brancas, porém
raramente entre escravizadas.12 O médico Marion Simms, nascido no
Alabama, realizou diversas cirurgias experimentais sem anestesia
99
em mulheres escravizadas na década de 1840, a fim de encontrar
uma solução cirúrgica para a fístula vesicovaginal, complicação
que atingia mulheres após o parto. Schwartz demonstrou que os
médicos reforçavam as concepções baseadas no racismo científico
de que as mulheres brancas, descendentes dos povos europeus
considerados civilizados, eram mais suscetíveis à dor e a partos
difíceis que as escravizadas, africanas e descendentes, consideradas
selvagens e insensíveis.13 Em direção semelhante, o médico José
Cordeiro, em tese intitulada Do emprego dos anestésicos durante o
trabalho de parto, de 1886, argumentou que o uso do clorofórmio
entre as mulheres brancas “civilizadas” se tornava imprescindí-
vel, devido às transformações sofridas por seus corpos. Para este
autor, a vida sedentária, os luxos e os considerados maus hábitos
higiênicos afastariam as mulheres ricas e brancas do estado de
natureza e as predisporiam aos partos dolorosos (apud MARTINS,
2000, p. 210).14 Em direção semelhante, Justo Ferreira Jansen disser-
tava acerca da pretensa relação entre raça, gênero, estado de civili-
zação e a suposta menor suscetibilidade à dor entre mulheres
negras, africanas e descendentes, consideradas selvagens cujos
trabalhos de parto seriam pouco penosos e dolorosos, afirmando
“ser o negro menos sensível à dor” (FERREIRA, 1887, p. 33-34). O
autor baseava-se nos achados racializados do médico francês Fl.
Thaly, para quem os partos das mulheres no Senegal eram fáceis,
rápidos e indolores.15
100
As teses indicam que as doutrinas do racismo científico
alcançaram, no fim do século, os médicos brasileiros e os saberes
oficiais produzidos na faculdade, sendo provável que informas-
sem as atitudes dos médicos com relação às mulheres negras
nas práticas dolorosas. Assim, Adelaide Maria Ferreira, 19 anos,
descrita como “mestiça”, “menstruada regularmente desde os 12
anos, primípara”, ingressou na enfermaria em 10 de setembro de
1886. Logo foi examinada pelo professor da Cadeira, Érico Coelho,
“com bacia regularmente viciada”, entrando em trabalho de parto
nove dias depois, às seis horas da tarde. Às duas da tarde do dia
seguinte, “não progredindo o trabalho de parto”, Érico Coelho
empregou o fórceps depois de ter feito manobras que mudavam a
posição do feto, sem menção ao uso da cloroformização (FERREIRA,
1887, p. 51-52). O bebê, do sexo feminino, nasceu morto. Em estado
febril, Adelaide queixou-se de dores na região uterina, e diante
do agravamento de seu estado, aplicaram diversos medicamen-
tos, dentre eles injeções vaginais e sanguessugas no ventre, para
debelar a infecção no períneo que ceifou sua vida.
Conclusões
Na década de 1880, os registros médicos documentaram as
tensões compartilhadas por mulheres negras, em sua maioria cativas,
mas também libertas e livres, que experienciaram o nascimento ou
a morte de seus bebês nas instituições criadas para os interesses
dos médicos. Deram à luz em meio a dores, condições materiais
precárias e mediante a intervenção de vários estudantes brancos
inexperientes, seus instrumentos e exames invasivos e doloro-
sos realizados antes, durante e depois de seus partos. As teses
demonstraram que as doutrinas do racismo científico alcança-
ram, no fim do século, os médicos brasileiros e os saberes oficiais
produzidos na faculdade, informando suas condutas com relação
às mulheres negras. Isoladas nestes espaços e distantes de suas
redes de solidariedade, mulheres negras estiveram vulneráveis
ao escrutínio de seus ventres, quadris e úteros por estudantes e
101
médicos, por meio da introdução de dedos e mãos, que também
manipularam instrumentos obstétricos por elas desconhecidos
como pelvímetros, em práticas invasivas, dolorosas e desconfortá-
veis. A internação das mulheres negras nesta instituição, de onde
a classe médica obteve suporte para desenvolvimentos científi-
cos racializados, cobraram destas mulheres infecções puerperais,
que ceifaram a vida de algumas delas. A entrada das escravizadas
nestes espaços revela, também, a ascensão da legitimidade dos
saberes científicos entre setores escravistas, e a confluência dos
interesses de médicos e senhores sobre os corpos das escraviza-
das, que poderiam ser alugadas como amas de leite sem os filhos.
As narrativas médicas comprometidas com os desenvolvimentos
de saberes racializados nos campos da obstetrícia e da ginecolo-
gia, marcadas pela objetificação de seus corpos e pela percepção
fisiológica dos seus partos, silenciaram as concepções de mulheres
afrodescendentes acerca do que consideravam práticas adequa-
das diante dos nascimentos e das mortes de seus filhos.
Nestes ambientes, elas certamente gozaram, antes e depois
do parto, de momentos de descanso que a permanência na casa
de senhores e patrões dificilmente permitiria. Estiveram, no
entanto, vulneráveis às visitas cotidianas e à participação de vários
médicos e estudantes em seus partos, sendo submetidas a suas
práticas e terapêuticas. Assim, dos discursos médicos racializados
e seus achados científicos emergem Rita, Henriqueta, Damiana,
Izabel, Adelaide. Podemos apenas imaginar as experiências destas
mulheres que vivenciaram seus partos num ambiente desconhe-
cido, mediante exames cotidianos e invasivos praticados em seus
corpos pretensamente menos propícios a sentir dor, por vários
homens que compartilhavam da mesma cor e origens sociais que
seus senhores, tendo as vozes de seus medos, dores e desconfor-
tos silenciados em seus discursos.
102
Fontes
103
Referências
INNISS, Tara A. “Any elderly, sensible, prudent women”: the practice and
practitioners of midwifery during slavery in the British Caribbean. In: BARROS,
Juanita; PALMER, Seteven; WRIGHT, David (eds.). Health and medicine in
the circum-Caribbean, 1800-1968. New York/ London: Routledge, 2009.
104
MOTT, Maria Lúcia. Assistência ao parto: do domicílio ao hospital
(1830-1960). Projeto História, São Paulo, n. 25, p. 197–219, dez. 2002.
105
PARTE 2
MATERNIDADE
E TRABALHO
106
“PRECISA-SE DE AMA DE LEITE PARA COMPRAR
OU CONCHABAR1”. TRABALHO E RACIALIZAÇÕES
DE GÊNERO NO CONTEXTO DA ABOLIÇÃO
GRADUAL (BUENOS AIRES 1800-1830)
Florencia Guzmán
Introdução
No ano de 1802 o escravo pardo Miguel Almagro abre um
processo civil contra Ángela Rivadavia, pela cobrança de pesos
devidos a sua esposa, que amamentou uma criança durante dois
anos e meio sem receber pagamento algum.2 Miguel, em sua declara-
ção, relata que, há três anos e seis meses sua mulher, a mulata
livre María Tomasa Alquivale, encarregou-se de cuidar de uma
criança “oculta” (tão oculta que seu nome ou o de seus pais sequer
aparecem no arquivo). María Tomasa fora contatada pelo pai da
criança, que prometeu pagar 8 pesos por mês pela criança de
leite “inteiro”, e, ao fim de um ano, quando iniciasse o desmame,
a quantia de 4 pesos. A primeira parte do acordo foi cumprida
107
e o problema se deu quando o progenitor tomou a decisão de
tirar a criança da casa onde era amamentada para levá-la a outro
lugar, em razão de seu próximo retorno à Espanha. María Tomasa,
apesar da dor da separação, descrita pelo próprio escravo Miguel,
compareceu ao local indicado e entregou a criança. Contudo, após
vários dias, e sentindo a tristeza causada pela ausência do filho
de leite, que amamentara e criara desde o nascimento, a mulata
recorreu à senhora Ángela Rivadavia, conhecida ou parente do
lactente. Com ela, chegou a um acordo para continuar cuidando
da criança durante mais um ou dois anos e receber em troca a
soma de 4 pesos por mês. Essa situação permitiria a María Tomasa
manter-se próxima da criança até que esta completasse quatro
anos e fosse entregue a um tutor para a educação escolar.
A ação legal ocorre dois anos depois desse acordo, quando o
pagamento estabelecido não é efetuado e após o fracasso de uma
série de ações informais realizadas pelo casal para a cobrança
do dinheiro. Na declaração judicial, o escravo Miguel se refere
às repetidas violências a que foi submetido por parte da senhora
Rivadavia. Em uma ocasião, na qual foi a sua casa para reivindi-
car o pagamento, a mulher o “expulsou” e ameaçou dar-lhe 200
chicotadas e pauladas que o deixariam incapaz de “pentear, barbear
e fazer os demais trabalhos servis”3 que o escravo realizava.4
Diante dessa situação de intimidação crescente, o escravo
recorre à justiça em nome de sua mulher, María Tomasa, para
processar Ángela Rivadavia. Ele reivindica o pagamento de uma
dívida de 95 pesos correspondentes ao pagamento de dois anos e
seis meses de cuidados e amamentação, por uma taxa de 4 pesos
por mês.
A partir de então, segue-se uma série de declarações e
acusações cruzadas, que culmina no ano seguinte com o pronun-
ciamento do juiz. O magistrado determina que, primeiro, a senhora
Rivadavia deveria efetuar o pagamento devido e em seguida poderia
retirar a criança da casa de Miguel e María Tomasa para levá-lo
ao lugar combinado com o pai. Diante da possibilidade de que
isso ocorresse imediatamente, a mulata, uma vez mais, e desta
vez com o apoio de seu marido, implorou-lhes que a deixassem
108
a cargo da criança e em troca não exigiria o pagamento em uma
única vez, mas em parcelas, assim, enquanto este se efetuasse,
ela continuaria com a criação. O pedido do casal foi aceito pela
autoridade judiciária e, dessa forma, a mãe “criadora” entregou
a criança assim que esta completou quatro anos de idade.
Apresentando o problema
O referido processo civil introduz o leitor no presente texto,
que tem como propósito analisar o trabalho das amas de leite na
cidade de Buenos Aires durante as primeiras décadas do século
XIX. 5 A prática de amamentar e sua vinculação com as mulheres
negras ao longo da história fazem com que seja indispensável nos
determos de uma vez por todas nessa atividade laboral e em suas
implicações sociais, familiares e de gênero. Com esse objetivo de
pesquisa e por meio de um enfoque multidimensional, proponho
situar a análise no mercado de trabalho da urbe portenha, antes,
durante e imediatamente após o processo de independência; ou
seja, quando começa a realizar-se a abolição gradual da escravi-
dão e, ao mesmo tempo, a transição ao trabalho livre.6
5 Uma rica bibliografia brasileira sobre o tema foi um guia inestimável para esta
análise. Conferir, por exemplo: Machado (2012), Carneiro (2006), Quintas (2009),
Martins (2012) e Carula (2012).
6 A ruptura da ordem colonial em 1810 e as guerras que a sucederam represen-
taram transformações importantes para as populações afrodescendentes na zona
do Rio da Prata. Em primeiro lugar, porque a guerra de independência e a fundação
da República coincidiram com a abolição do tráfico escravista e também com a
própria escravidão. As províncias Unidas do Rio da Prata proibiram o tráfico de
escravos em 1812 e aprovaram a Lei da Liberdade de Ventres em 1813, libertando
gradualmente as crianças nascidas de mães escravas. Em segundo lugar, porque
a ampla militarização e mobilização implementadas durante essas décadas aca-
baram sendo cruciais na vida dos homens e mulheres negras, assim como no
amplo conjunto social. Por último, devido à introdução de uma série de inovações
de índole política e social, como foi a revogação da legislação de “castas”, que, com
as ideias de liberdade e igualdade republicanas, foram diminuindo as relações
hierárquicas coloniais, criando novas identidades sociais e ao mesmo tempo
novas possibilidades de inclusão cidadã. Para uma profundamente desses temas,
proponho os seguintes livros: Mallo e Telesca (2010); Andrews (1989); Guzmán e
Ghidoli (2020); Borucki (2017).
109
Durante esse período, e assim como ocorre em outras socieda-
des escravistas da América Latina, se assiste à imprecisão de limites
legais e sociais entre a escravidão e a liberdade e à persistência e
reprodução de práticas coercitivas enraizadas na escravidão em
e com supostos regimes de trabalho livre. Esses interstícios –
como afirma a historiadora Paulina Alberto – habilitam a criação
de estratégias para controlar tanto os libertos quanto os escravos
(ALBERTO, 2020, p. 78–9). Por isso, deve-se considerar o serviço de
ama de leite no contexto de exploração dos diferentes caminhos,
opções e estratégias laborais por parte dos proprietários, patrões
e mulheres negras no mercado de trabalho e em um espaço social
que estava se transformando e também racializando.
No Rio da Prata e no resto do espaço que hoje se conhece como
Argentina, os estudos que problematizam a separação entre trabalho
escravo e livre, assim como a articulação com o gênero e a raça,
ainda são escassos. Entre os que se ocupam da primeira metade
do século XIX, destaco o artigo da historiadora Paulina Alberto
(2020), que, por meio da formidável reconstrução da história de
Cayetana, analisa de que maneira a marca escravista foi pautando
as diferentes formas de trabalho feminino e doméstico. A autora
conclui que o trabalho de “criada”, intimamente associado à escravi-
dão, com algumas relações paternalistas e um status degradado
e de direitos escassos, continuava a existir para além da erosão
do sistema formal da mesma.
Em trabalhos próprios correspondentes a essa linha de pesquisa,
questionei as relações entre escravidão, liberdade e trabalho livre e
avancei ao demonstrar como as relações de raça, classe e gênero se
entremearam na configuração de uma domesticidade republicana
que atribuía um campo de trabalho quase exclusivo às mulheres
negras de longa duração (GUZMÁN, 2018, 2020). Outras pesquisas
referentes à segunda metade do século também fornecem evidên-
cias sobre o mundo do trabalho de negras, pardas e mulheres
pobres, e, ao fazê-lo, lançam luz sobre as condições de vida e de
trabalho das pobres urbanas e suas estratégias de sobrevivên-
cia na cidade de Buenos Aires. Refiro-me aos textos de Gabriela
Mitidieri (2018); Gabriela Mitidieri e Gabriela Pita (2019); Cecilia
Allemendi (2017). As pesquisas mencionadas contribuem ao campo
específico dos estudos do mundo do trabalho urbano e particu-
larmente das mulheres ao longo do século XIX.
110
Nesta pesquisa, proponho aprofundar a linha de análise
referente à complexa continuidade e descontinuidade entre
formas de trabalho escravo, coercitivo e livre no espaço urbano
da capital, a partir de uma perspectiva de gênero. Neste caso, a
análise girará em torno do lugar que o serviço de ama de leite
ocupava no mercado laboral; como eram suas condições de vida e
de trabalho e que vínculos mantinham com a família e a circula-
ção de crianças, tão extensa nesse período. Que possibilidades
as mulheres escravizadas, libertas e livres tiveram de negociar e
inserir-se no mercado de trabalho? Que papel a prática de amamen-
tar tem para essas mulheres no quadro ocupacional da cidade?
Como se dá a interseção entre gênero, raça e classe no exercício
de tal prática laboral?7
O presente trabalho oferece uma perspectiva que integra
a história do trabalho à das mulheres negras, das crianças, da
família e da pobreza durante a abolição da escravidão. Os objeti-
vos propostos serão levados adiante por meio da análise multidi-
mensional do trabalho de ama de leite e com a contribuição de um
corpus de anúncios que aparecem publicados na Gaceta Mercan-
til de Buenos Aires.
111
por patrões e empregados costumava ser uma estratégia comple-
mentar às recomendações verbais, tanto para a elite quanto para
os homens e mulheres que buscavam se integrar ao mercado
laboral. Esses anúncios favoreciam todas as camadas do corpo
social, além de qualquer elemento de diferenciação baseado em
critérios raciais, privilégios ou graus de riqueza. Segundo o autor,
os referidos anúncios tornaram-se um “espaço de enunciação”,
aberto a todo o público, no qual estava em jogo o sustento de
algumas famílias (ABARCA, 2018, p. 30).
Durante a década de 1820, em um dos diários mais importan-
tes da cidade, a Gaceta Mercantil de Buenos Aires8, apareceu uma
grande quantidade de anúncios relacionados ao trabalho e ao
mercado de escravizados. Um corpus de 775 anúncios publica-
dos durante os doze meses do ano de 1827, que constitui a base de
dados da presente pesquisa, me possibilita capturar uma análise
em vários planos.9 Em primeiro lugar, porque permite estabele-
cer correspondência entre a compra e a venda de escravizados e
escravizadas, assim como relação entre a demanda e a oferta de
trabalho. Em ambos os casos, a segmentação se dá por gênero.
Em segundo lugar, a fonte revela uma série de atividades, porque
cada anúncio pressupunha escolha entre várias possibilidades
de trabalho, um ou vários ofícios com os quais se podia entrar no
mercado laboral e sair da situação de desemprego.
A análise quantitativa auxilia a identificar quais eram os
ofícios mais demandados e ofertados, bem como as modalidades
de trabalho; inclusive em formas combinadas ou mais ou menos
ambíguas presentes nas mesmas. Essa ambiguidade se observa da
mesma forma na linguagem, e os exemplos mais claros estão nos
8 A Gaceta Mercantil de Buenos Aires é um jornal comercial, político e literário que
circulou em Buenos Aires entre 1822 e 1852. Como seu nome indica, os principais
interesses da publicação se concentraram no desenvolvimento mercantil da região
e, durante os primeiros anos, o diário se dedicou principalmente ao campo eco-
nômico. Para um aprofundamento sobre as atividades desse jornal, cito o trabalho
de Zinny (1912).
9 A escolha do ano de 1827 está principalmente vinculada com duas fontes muito
ricas e com muito potencial para a continuidade desta pesquisa. Refiro-me ao
Censo Municipal de 1827, que se encontra completo na AGN, e a publicação do
Almanaque político y de comercio de la ciudad de Buenos Aires do ano de 1826. Ambos
os documentos fornecem, para esses anos, uma grande quantidade de informação
demográfica, social, econômica, cultural e de gênero, entre outras possibilidades.
112
termos “criada/o” e “conchabado/a”. O primeiro parece aludir tanto
a escravizados quanto a pessoas livres ou mais ou menos livres;
enquanto o segundo se refere a um tipo de contrato de trabalho,
em que uma pessoa livre era obrigada a realizar tarefas análogas ou
semelhantes às dos indivíduos escravizados. “Criado/a” e “concha-
bado/a”, como ressalta a historiadora Paulina Alberto, são expres-
sões que desempenharam um papel similar ao de “liberto/a”, de
mediação, “deslocando entre os sistemas de distinções jurídicas
explícitas baseadas na raça ou ascendência e sistemas emergentes
(baseados menos explicitamente) em classe e ocupação” (ALBERTO,
2020, p. 116-117).
É a partir dessa instância que a intercessão entre a história
conceitual e a história social se torna adequada para o exame da
documentação, na medida em que se analisam expressões carrega-
das de conteúdo social ou político. Termos como “criada”, “criado”,
“empregada”, “chinita”, “chinito”10, com os quais seriam designadas
as mulheres e homens que figuravam em documentos anteriores
como “escravos” e “escravas”, sugerem uma mudança conceitual
sutil nas expressões coloniais, embora na prática não significas-
sem uma mudança marcante em seu registro na escravidão e em
suas origens africanas (ALBERTO, 2020).
Outra informação importante que os anúncios fornecem é
referente à localização de algumas moradias, o que posterior-
mente demandará trabalho de cartografia social para estabelecer
articulação entre o espaço e o mundo do trabalho. Ainda que não
se especifique se a localização corresponde a uma residência ou
a um quarto de pensão, nem se era da própria “criada”, “escrava”,
“conchabada”, ou de um amigo ou conhecido. Geralmente o endereço
publicado é uma referência que servirá de contato entre ela e a
pessoa interessada em empregá-la. Aqui se faz referência a lojas
de todo tipo de produtos, escritórios, locais de recreação, espaços
religiosos ou educativos, gráficas ou livrarias onde se produziam
e distribuíam os jornais. Assim como uma farmácia, barbearia,
113
padaria e em um caso ainda aparece como contato um sacristão
da catedral. Como afirma o historiador Abarca, na citada pesquisa
sobre o México, embora nem sempre se possa identificar em que
parte da cidade todos os anunciantes habitavam, as menções aos
locais permitem entrever contatos e redes que esses “emprega-
dos”, “criados” ou subalternos teciam, deslocando-se por bairros
e ruas. O autor enfatiza “sobre o papel de mediação que os jornais
assumiam”, uma vez que informam os caminhos que tomaram a
demanda e a oferta de emprego (ABARCA, 2018, p. 27).
Dessa forma, a fonte consignada abre a possibilidade de
explorar a história social das amas de leite e as principais trajetó-
rias desse mercado em movimento durante a transição para o
trabalho livre. Ou seja, uma diversidade de formas laborais com
ou sem remuneração e de trabalho compulsório em uma cidade
que havia se transformado de maneira exponencial nas últimas
décadas. Particularmente, no que se refere à população, economia
e cartografia espacial. Junto a isso, acentuaram-se as desigual-
dades e hierarquias de gênero, sociais e raciais.
O cenário
A urbe portenha é uma das cidades coloniais espanholas
que mais se transformou durante as últimas décadas bourbôni-
cas e é uma das que se integrou mais completamente ao mundo
do Atlântico em 1800. De fato, como afirma o historiador Lyman
Johnson (2013), foi a primeira cidade espanhola em território
americano com importância suficiente para determinar sua
independência política efetiva. Após vencer os invasores ingleses
em 1806 e tão logo se iniciou o processo revolucionário em 1810, a
cidade se converteu em capital política e sede do Estado Nacional.
Apesar dos problemas provocados pela guerra de Independência,
a expansão comercial não parou, nem a supremacia e diferen-
ciação da urbe portenha em relação ao resto das jurisdições que
compreendiam as Províncias Unidas do Rio da Prata (HALPERÌN
DONGHI, 1972; JOHNSON, 2013).
Ao final da primeira década da Revolução, durante 1820, ocorreu
o fim do projeto de Estado nacional e o início de um período em que
as províncias argentinas começariam a se desenvolver de maneira
114
autônoma.11 Dessa forma, separada do restante das jurisdições,
Buenos Aires passou a ser a capital da província mais próspera,
mais progressista e mais europeizada, logo após alguns anos de
crescimento econômico e de estabilidade política, bem como de
florescimento cultural, educativo e científico. A “feliz experiên-
cia”, como é conhecido esse intervalo pacífico e progressista,
culminou em 1828, quando se iniciou uma sangrenta guerra civil,
junto com o conflito internacional com o Brasil (TERNAVASIO,
2000; DMITRUK, 2014).
Enquanto isso, uma série de reformas e um comércio ativo
contribuíram para o crescimento constante da cidade. Do porto
saíam couros, gordura e carne salgada produzida por uma elite
rural que começava a se fortalecer (GELMAN, 2000). Da mesma
forma, o número de habitantes aumentou significativamente: de
44.731 registrados em 1810, passou-se a 58.593 em 1827 (BESIO
MORENO, 1939). Assim, a população da cidade “aumentou, em
termos relativos, 36,7% durante as primeiras décadas do século”
(DMITRUK, 2014, p. 30). Igualmente, a capital ampliou sua cartogra-
fia social expandindo-se para fora do núcleo central. E ainda que
a maior aglomeração tenha permanecido nos trinta quarteirões
que rodeavam a Praça da Victoria (atual Praça de Mayo), os bairros
suburbanos também começaram a crescer (GONZÁLEZ BERNALDO
DE QUIRÓS, 2001; GUZMÁN, 2012). À medida que nos distancia-
mos do núcleo histórico da cidade e do eixo da Rua Federación
(atual Rivadavia), ela se estendia até os subúrbios que se organiza-
vam ao redor das igrejas paroquiais e das praças-mercados ou da
estrada importante ou da simples expansão do núcleo principal.
Como observa o historiador Tomás Guzmán (2012), a zona mais
antiga e mais densamente povoada concentrava não apenas as
funções do poder político e cultural, mas também contava com
os melhores serviços urbanos da época (estradas, segurança,
11 A partir de 1820, Buenos Aires e o restante das jurisdições provinciais esta-
beleceram governos autônomos com sua própria burocracia e recursos. Dessa
forma, a antiga capital pôde dispor livremente de seus recursos aduaneiros, antes
apropriados pelo poder central. Os impostos alfandegários passaram a constituir
o principal recurso do estado portenho, chegando ao ponto de sua receita asse-
melhar-se à soma de todas as receitas provinciais. A guerra com o Brasil será,
sem dúvida, um dos desencadeadores do final da Feliz Experiencia e de uma nova
dissolução do poder central (HALPERÍN DONGHI, 1972).
115
recreação) e era o bairro onde se agrupavam as casas e a convivên-
cia das famílias da elite urbana. A proeminente posição material
e simbólica dessa zona era uma herança da época do vice-reinado
que a Revolução rapidamente consolidou. Ao sair da zona central
e “nobre”, a cidade se estendia até a periferia, até os bairros das
“margens” e aí a paisagem social era caracterizada por apresen-
tar grande diversidade. Como afirma Guzmán, “heterogeneidade,
expansão e, até certo ponto, oportunidades, eram características
comuns dos subúrbios” (GUZMÁN, 2012, p. 14). Tanto a constante
migração procedente das províncias do interior quanto a mobili-
dade espacial dos habitantes já estabelecidos na cidade contribuí-
ram para essa expansão dos distritos suburbanos. Os principais
atores dessa expansão foram os setores populares e médios,
atraídos pela possibilidade de conseguir terra urbana a preços
baixos. Um exemplo disso é o “bairro do Tambor”, espaço locali-
zado na paróquia Monserrat, Concepción e San Nicolás, onde se
encontravam as nações africanas e também a população afro-por-
tenha (ROSAL, 2009; GONZÁLEZ BERNALDO DE QUIRÓS, 2001;
GUZMÁN, 2012).
Outra série de mudanças ocorre na demografia urbana e se
manifesta em alguns desequilíbrios de natureza racial. A cidade
portenha era caracterizada por ter uma população jovem e muito
masculina, devido às contínuas correntes de migrantes internacio-
nais, regionais e também da mão de obra escravizada (JOHNSON,
2013). Os censos coloniais informaram um predomínio quantita-
tivo dos homens sobre as mulheres. Em 1810, esse desequilíbrio
também se revelava no conjunto da população afro-portenha,
cuja quantidade de homens para cada 100 mulheres era de 108.
Em 1822, a taxa de homens era de 91, de acordo com os dados
proporcionados pela historiadora Marta Goldberg (1976). Quando
os dados são separados de acordo com o grupo racial, percebem-
se diferenças mais relevantes, uma vez que a taxa cai conside-
ravelmente para o setor afroportenho, que alcança 75, e esse
se reduz ainda mais se se considera a taxa de homens do grupo
adulto: 97 para os “brancos” e 72 para o “grupo de cor” (GOLDBERG,
1976, p. 91-95). Para 1827, inclusive, o índice diminui ainda mais,
alcançando somente 68,5, como consequência da ampla mobili-
dade, militarização e mortalidade da população de homens adultos
(ANDREWS, 1989).
116
Nessa década, a população afro-portenha também tinha status
legal variado. A população escrava diminui durante o período
entre 1810 e 1827, e essa situação se atribui tanto à Liberdade de
Ventres de 1813 quanto à expectativa de vida e aos recrutamentos
do exército, que influenciaram a diminuição do número de escravi-
zados. Isto adicionado ao aumento das alforrias realizadas nesses
anos, que contribuíram da mesma forma para a diminuição do
número da população escrava (DMITRUK, 2014; ANDREWS, 1989;
ROSAL, 2009). As cifras da militarização da população masculina
são muito eloquentes. Somente os escravizados que foram destina-
dos às armas na primeira década da revolução acrescentaram
um total de 1992 cativos que se tornaram libertos. Em 1813, foram
“resgatados” 1.016 libertos de Buenos Aires, em 1815, outros 576
e um ano depois, em torno de mais de 400 (GOLDBERG, 1976;
ANDREWS, 1989; RABINOVICH, 2013).12
A estas mudanças somam-se outras, que também refletem
questões de gênero. Foram principalmente as mulheres – de
acordo com os dados que o historiador Reid Andrews disponibiliza
– que conseguiram adquirir a liberdade (em 1810, somente 21.4%
eram livres, e em 1827, serão 51,5% das mulheres negras). O autor
constata que nesse período ocorre um aumento da chefia de lares
afro-argentinos, o que parece ser devido à decisão das ex-escra-
vizadas de estabelecer lares independentes sempre que possível
(ANDREWS, 1989, p. 63-4). Tudo isso contribui para a constitui-
ção de um movimento imobiliário dinâmico do setor afro-porte-
nho livre. O historiador Miguel Ángel Rosal situa esse movimento
na década de 1820, quando verifica um aumento de compras e
aluguéis por parte dessa população no “bairro do Tambor”, já
citado (ROSAL, 2009).
Por isso, não é raro encontrar nas fontes de arquivo uma série
de ações cíveis relacionadas a terras nessa parte da cidade. Os
conflitos e tensões que esses documentos permitem entrever e
os que são protagonizados por mulheres “morenas” e “pardas”
117
manifestam a importância que a moradia e o acesso à essa adquirem
na cartografia social da cidade (GUZMÁN, 2020A).
Acontece que o próprio teto era um meio de trabalho, princi-
palmente para as mulheres e, mais ainda, para as amas de leite,
como veremos em breve. Os anúncios que lemos na Gaceta Mercantil
nos mostram essa associação. Eles também explicitam a interse-
ção entre o gênero, a raça e o trabalho.
118
Tabela 1: Buenos Aires, 1827. Trabalho e gênero.
GÊNERO
TRABALHO
Homem % Mulher % TOTAL
Escravo/a venda 141 51% 137 49% 278
Escravo/a compra 108 64% 60 36% 168
Escravo/a oferta 2 50% 2 50% 4
Escravo/a procura 46 76,5% 18 30% 64
Livre oferta 8 50,5% 7 49,5% 15
Livre procura 79 52% 73 48% 152
Conchabado/a oferta 23 38% 38 62% 61
Conchabado/a procura 23 70% 10 30% 33
TOTAL 430 55,5% 345 44,5% 775
Fonte. Elaboração própria feita a partir do jornal Gaceta Mercantil de Buenos Aires (1827).
13 “Se solicitan 20 esclavos para conchabar, a los que se les proporcionará trabajo
durante el invierno proporcionándoles buen sueldo. En la imprenta darán razón del
sujeto que los quiere.”
119
bovino, quatro ou seis escravos sem vícios capazes de todo serviço
de campo. Interessados devem se dirigir à Rua Reconquista, 20”
(GM, 26/04/1827).14
Outra série de anúncios, também referente aos trabalhado-
res qualificados e não qualificados, informa sobre a expansão e
o consumo da cidade. Entre os primeiros, temos principalmente
os fornecedores de bens e serviços, como sapateiros, chapelei-
ros, alfaiates, cocheiros, ferreiros, padeiros, chocolateiros, pedrei-
ros. Entre os segundos, são recorrentes os anúncios, tanto em
espanhol quanto em inglês, que procuram os serviços de cozinhei-
ros ou “criados” para atender à demanda de famílias ou de homens
solteiros, principalmente estrangeiros.15
Em contraste com essa observação, as mulheres trabalhadoras
aparecem mais diretamente vinculadas com a área de serviços e
trabalhos semiqualificados. Nós as encontramos como passadei-
ras, lavadeiras, cozinheiras, costureiras, cuidadoras de crianças e,
sobretudo, como amas de leite. Essas atividades parecem indicar
trabalhos de subsistência, ou seja, trabalhos orientados para o
próprio sustento. Inclusive, nota-se que uma pessoa podia desenvol-
ver diversas estratégias de sobrevivência simultaneamente (VAN
DER LINDEN, 2019). Esse seria o caso apresentado pela escrava
Nicolasa, que, em um processo civil contra seu senhor pelo reconhe-
cimento de sua liberdade, demonstra como o trabalho de subsis-
tência se relacionava principalmente com a área de serviços e
se combinava com a venda ambulante e a produção de alimen-
tos. Nicolasa era uma mulher escravizada que teve de trabalhar
durante vários anos para conseguir reunir o dinheiro destinado
a comprar sua liberdade. Com esse objetivo, executava trabalhos
paralelos: servia como cozinheira, como passadeira de toda a
casa e também fazia diariamente dois pães doces para vender
por sessenta ou setenta pesos. Além disso, fabricava velas para
o consumo da residência e para vender no mercado. Conforme
14 “Se venden a cambio de ganado vacuno, cuatro o seis esclavos sin vicios capa-
ces de todo servicio de campo. El que lo necesite dirigirse a la calle Reconquista 20”.
15 Durante esse período os grandes e médios comerciantes estrangeiros
constituíam o setor mais poderoso da economia portenha. À diferença dos
anos 1810, os mercados estão um pouco mais diversificados e chegarão não
apenas comerciantes ingleses, mas também alemães, franceses e norte-a-
mericanos. (DMITRIK, 2014).
120
explica no documento judicial, tinha apenas 3 ou 4 horas à noite
para descansar, uma vez que terminava o trabalho muito tarde
da noite e tinha que se levantar às 4 da manhã para iniciar os
trabalhos diários da casa.16
A leitura do arquivo permite ver as opções que as mulheres
negras, escravizadas e livres tinham para obter renda: alugando
sua força de trabalho como conchabadas e como vendedoras de
sua produção no mercado. Os anúncios da Gaceta Mercantil, ao
contrário do que se veicula de maneira deficitária pelos censos da
população, permitem ainda estabelecer um quadro de variações de
atividades e reconhecer, em relação a elas, as diferentes modali-
dades de contratação e as condições de trabalho. Na tabela 2,
elaborada com base em 345 anúncios de mulheres escravizadas
e livres, informa-se que o trabalho de ama de leite se encontra em
primeiro lugar, seguido pelo serviço de “criadas”. Nestes últimos
se especificam as tarefas requeridas ou oferecidas, que podem ser
uma ou várias; em outros casos se acrescenta apenas a expressão
“todo serviço”. Assim como no caso dos homens, são reiterados
os pedidos de contratação para a assistência de homens soltei-
ros ou de famílias estrangeiras.
Vejamos a seguir alguns casos que representam graficamente
a situação. “Precisa-se de uma criada passadeira e cozinheira
com a interessada serão feitos acordos vantajosos, seja livre ou
escrava na mesma casa” 17 (GM, 28/05/1827) / “Vende-se mulata,
sabe costurar, bordar, passar e cortar um pouco por 500 pesos” 18
(GM, 05/01/1827) / “Precisa-se de uma mulher de confiança seja
branca ou de cor para o serviço interno de uma casa de dois
homens solteiros. Aquela que quiser conchabar comparecer à
Rua da Universidade a meia quadra do colégio com a praça da
Victoria”19 (GM, 01/08/1827) / “Precisa-se comprar uma criada em
torno de 40 anos que saiba cozinhar para o serviço de um homem
121
solteiro, sendo boas as circunstâncias, se dará a liberdade em
pouco tempo”. 20 (GM, 18/04/1827).
Ama
Doméstica/ Cuidadora Todo
Mulheres de Costureira Cozinheira Outros Total
criada de crianças serviço
leite
Escrava
20 51 2 4 2 34 24 137
venda
Escrava
19 23 1 5 2 9 1 60
compra
Escrava
2 - - - - - - 2
oferta
Escrava
7 2 2 7 - - -
procura 18
Livre oferta 6 - 1 - - - 7
Livre procura 28 11 2 14 5 10 3 73
Conchabada
34 3 - - - - 1 38
oferta
Conchabada
9 1 - - - - - 10
procura
Fonte: Elaboração própria feita a partir do jornal Gaceta Mercantil de Buenos Aires
(1827). Na categoria “outros” são incluídos os anúncios em que não há dados sobre a
atividade, assim como outras atividades com representatividade muito baixa.
20 “Se necesita comprar una criada como de 40 años que sepa cocinar para el
servicio de un hombre solo, siendo de buenas circunstancias se le dará en breve
tiempo la libertad.”
122
que os patrões e patroas, assim como os antigos proprietários,
buscavam reorganizar as relações de trabalho mantendo a subordi-
nação das antigas escravizadas, como se verá a seguir.
21 “Una morena ama de leche desea conchabarse, El que quiere verse con Carlos
el sacristán de la Catedral.”
123
dando garantia de sua conduta, Rua da Paz, 112.”22 (GM, 23/10/1827)
/ “Deseja-se conchabar uma ama de leite, Rua do Parque, 79.” 23
(GM, 28/09/1827) / “Uma ama de leite deseja conchabarse. Ir à Rua
Perú, 25, na barraca de Cueto, meia quadra do Retiro. Tem bom
temperamento ideal para ama”. 24 (GM, 31/08/1827).
Um segundo grupo de anúncios refere-se à relação entre
compra, venda ou conchabo. O anúncio que deu título a este trabalho
seria um exemplo claro para generalizar: “Precisa-se comprar ou
conchabar uma ama de leite para uma criança. Suipacha, 163.”
(GM, 21/04/1827).25 Em outros termos, mas com a mesma demanda
de compra, lemos: “Deseja-se comprar uma criada para ama de
leite que esteja amamentando seu filho, na Rua do Parque, 114”. 26
(GM, 28/06/1827). Também se oferece a venda de amas de leite
e, assim, se publica: “Vende-se uma criada solteira robusta sem
filho e com leite. Interessado em comprá-la procurar seu senhor
na Rua da Biblioteca, 121.”27 (GM, 05/10/1827) / “Na Rua de Cangallo
n 92 precisa-se de “criada” com leite de bons sentimentos e sem
vícios e será feito um bom acordo para conseguir a liberdade”. 28
(GM, 22/06/1827).
Sendo assim, a análise das categorias “criada” e “conchabada”,
fortemente associadas à mulher negra – mãe escrava criadora,
todo serviço – são chaves para reconhecer de que maneira as
relações formadas na escravidão persistiram depois do declínio
desse regime. Embora as trabalhadoras tivessem o status legal de
“livres”, a continuidade de suas condições de trabalho por meio
do conchabo e seu prolongamento por muitos anos em troca de
22 “A CONCHABAR. Una mujer con destino a cuidar una niña de pecho. Se le dará
además de vestirla con decencia, un salario, pero ha de ajustarse al menos por dos
años dando fianza de su conducta, Calle de la Paz 112”
23 “Se desea conchabar una ama de leche, Calle del Parque 79.”
24 “Un ama de leche desea conchabarse. Concurrir a la calle Perú 25 en la tienda de
Cueto, media cuadra para el Retiro. Es de buen genio ideal para ama.”
25 “Se necesita comprar o conchabar una ama de leche para un niño. Suipacha 163.”
26 “Se desea comprar una criada para ama de leche que este criando a su hijo, en
la calle del Parque 114.”
27 “Se vende una criada soltera robusta sin hijo y con leche. El que quiera comprarla
véase con su amo que está en la calle de la Biblioteca 121.”
28 “En la calle de Cangallo n 92 se necesita una “criada” con leche y de buenos
sentimientos y sin vicios y se hará un buen partido para conseguir la libertad.”
124
comida e moradia reproduziam uma relação de dependência. O
conchabo como forma de trabalho parece ter sido uma estraté-
gia para controlar tanto as trabalhadoras escravas quanto as
não escravas. Para essas mulheres, isso poderia significar uma
diminuição na incerteza quanto ao futuro mercado de trabalho
precarizado.
29 “El que necesite un ama de leche recién parida, ocurra a la calle de Belgrano 172”.
30 “Se necesita ama de leche entera para comprar o conchabar sin cría. En la
calle de la Plata 39.”
125
que iniciou este texto, de María Tomasa Alquivale, que declara ter
dado à criança “oculta” “leite inteiro” durante o primeiro ano de
vida por um valor de 8 pesos, e, assim que começou o desmame,
passou a “meio leite” com um salário de 4 pesos.31
Também devem ser consideradas as diferentes modalidades
de trabalho. Observa-se que enquanto algumas mães amamen-
tavam “em sua casa”, outras criavam na “casa da criança”. Parece
que enquanto famílias ricas contratavam amas de leite para
criar seus filhos em suas próprias casas, as de menos recursos
entregavam seus filhos para serem amamentados nas casas
das amas de leite. A julgar pelos endereços que aparecem nos
anúncios – o que exigirá um trabalho cartográfico detalhado
mais adiante –, tudo faz presumir que a clientela das amas de
leite que davam de mamar em suas casas, cortiços e moradias
coletivas eram justamente os filhos de conchabadas que estavam
amamentando nas casas de seus patrões. Essa modalidade, pelo
que se pode notar, manteve-se até o final do século e início
do seguinte, de acordo com o estudo detalhado realizado pela
historiadora Cecilia Allemendi (2017).
Outra questão a ser examinada é a referente às instituições
públicas, como hospitais e Hospital de Niños Expositos, nas quais
amas de leite trabalhavam. O Almanaque de Comercio publicado
em 1826 oferece valiosas informações sobre o desenvolvimento
laboral das amas de leite no estabelecimento para crianças expostas.
Esta instituição foi fundada em 1779 por ordem do vice-rei Juan
José de Vértiz e, para seu funcionamento, contava com os recursos
que o governo da província fornecia mensalmente. Consta da
publicação o pagamento efetuado a um número de amas de
leite que oscila entre 225 e 250 que “cuidavam de filhos de leite
inteiro e desmame todos os meses”32 (BLONDEL, 1968, p. 78-80).
As crianças eram criadas fora da casa dos expostos, e eles junto
com as “amas” deviam se apresentar no dia 10 de cada mês para
“pagar as amas que os criam e cuidam e examinar se estavam
bem ou maltratados”33. Quando os meninos e meninas chegavam
126
à idade de quatro anos, a casa dos expostos parava de lhes dar
alimentos e os entregava a famílias para que lhes fosse propor-
cionada educação, ou eram deixados com as próprias amas que os
criavam. Na instituição ficavam apenas aqueles que não podiam
ser “destinados”, os quais eram cuidados por 15 ou 20 “emprega-
das”. De acordo com o catálogo comercial, durante o ano de 1826,
havia no serviço da casa seis crianças cuidadas por duas, três ou
quatro amas que davam de mamar aos recém-nascidos, até que
chegasse o momento de serem levados embora da casa para sua
amamentação (BLONDEL, 1968, p. 80).
Assim, não apenas o estado fisiológico da ama de leite era
fundamental para o desenvolvimento da prática. Esse serviço
também carregava uma série de significados e articulações com
a maternidade, a família, o gênero, a raça e a condição social,
como veremos a seguir.
127
discurso racial classificou o leite da mulher negra como inferior,
assim como suas qualidades morais. Sucedia que a natureza
do corpo feminino se evidenciava como um ref lexo de valores
e categorias socioculturais (STOLCKE, 2000). Nesse quadro de
avaliações e hierarquias, as “qualidades morais” atribuídas às
mulheres “brancas” as colocavam em um degrau superior na
pirâmide laboral e social da cidade. Essa afirmação se constata
quando lemos as vantagens oferecidas às mulheres brancas
que queriam emprego como amas de leite. Vejamos este caso:
“Precisa-se de uma ama de leite que queira se encarregar de
criar uma criança em sua casa. Se é mulher branca e tem quem
ateste sua boa conduta de maneira satisfatória ao interessado
receberá mais do que se costuma por esse tipo de trabalho.” 34
(GM, 19/06/1827).
A persistente invocação das “condições morais” ou de boa
conduta que se repete nos anúncios de amas de leite está ligada às
matrizes discursivas que permitem essa amálgama com o imaginário
colonial de pureza de sangue. Até que ponto os filhos livres herdavam
as corrupções dos pais, ou melhor, da mãe, com quem estavam
em contato e, sobretudo, que lhes transmitira os vícios através
do leite materno?É que as mulheres negras, humildes provedoras
de maternidade, que doavam seu afeto e cuidado às crianças das
famílias brancas e embranquecidas, entrelaçam e retroalimen-
tam o signo feminino com o signo racial. Historicamente, essa
articulação foi importante para estabelecer o status dos espanhóis
peninsulares e para justificar sua superioridade sobre os criollos.
Mesmo em 1812, em pleno processo das mudanças instauradas
pelas guerras de independência, um dos argumentos que foram
usados para justificar a qualidade inferior dos nativos criollos
alude ao nascimento na América e ao fato de terem “absorvido”
pelo leite os defeitos das mães indígenas e africanas. Aqui, tanto
o clima quanto a natureza degeneraram os criollos, que perderam
suas virtudes por sugar o leite das nutrizes indígenas ou negras
(HERING TORRES, 201). Comparado ao sangue impuro, o leite da
mulher negra, se não incorporava o princípio teológico da mácula,
34 “Se necesita una ama de leche que quiera hacerse cargo de criar un niño en
su casa. Si es mujer blanca y tiene quien acredite su buena conducta a satisfacción
del interesado se le pagará más de lo que se acostumbra por esta clase de trabajo.”
128
claramente introduzia o princípio da herança, da transmissão, e,
desde então, da ameaça (GUZMÁN, 2018).
A articulação entre necessidade e ameaça que o serviço de
amamentação representava está presente em todo o corpus de
fontes consultadas. Ocorria que a ama de leite, além de prover leite,
estabelecia vínculos e criava laços parentais que uniam, apesar das
diferenças de classe e raça (CIVANTOS, 2005, p. 510). Este serviço
cumpre o papel de transversalidade que carrega um parentesco
com a mestiçagem, uma vez que rompe com o propósito de criar
subjetividades raciais claramente definidas. Daí a necessidade
de controle e a possibilidade de ameaça que essa prática tinha
em si (GUZMÁN, 2018).
Um terceiro elemento presente no mercado da amamentação
é o que articula a dimensão de um gênero com a classe e o âmbito
familiar. Esse vínculo ficou claro no caso da mulata livre María
Tomasa, que foi exposto no início do texto, pelo qual se consta-
tou uma transferência da maternidade, dada tanto por aspectos
materiais quanto afetivos. O marido de Tomasa, o escravo Miguel,
em uma parte da documentação, faz uma série de perguntas que
configuram essa interseção. Ele diz: Como minha esposa pode criar
filhos de outras pessoas gratuitamente, sendo uma pobre mulher
que vive às custas de seu trabalho e que talvez lhe falte para criar
os próprios filhos? E com que ânimo os pais dessa criança, sendo
sujeitos de boa vida, pretendiam que uma pobre mulher sacrifi-
casse suas tarefas em seu serviço? Que direito à criança poderiam
ter se nem lhe administravam o alimento necessário?35
A transferência de maternidade com condições de classe,
assim como o abandono de crianças, não se reflete apenas nesse
caso e no já mencionado registro das crianças expostas, mas
também nos registros eclesiásticos de batismos corresponden-
tes às paróquias urbanas (GUZMÁN, 2020A; MORENO; DMITRUK,
2016; GOLDBERG, 1976). Observa-se que algumas mães, não tendo
como cuidar de seus filhos, entregavam-nos a outras famílias,
e essas circunstâncias explicam a situação bastante comum da
ama de leite negra sem seu filho e a circularidade de crianças
que mostram os arquivos judiciais civis; e também os mesmos
anúncios na imprensa. Algumas crianças eram separadas da mãe
129
ao nascer, ou mortas no parto, ou entregues a terceiros, o que
dificultava para a ama manter seu filho junto de si. Nos anúncios
na imprensa, essa informação se destacava, como nos permite
ver o seguinte exemplo: “Vende-se uma parda de 16 anos de idade
parida de 12 dias, mas o filho não vive e conserva o leite, não tem
enfermidades nenhuma, sem vícios, boa cozinheira, lavadeira,
passadeira, ágil e destra para o serviço necessário de uma casa
e seu preço é de 600 pesos de papel moeda ou 230 em onças de
ouro”.36 (GM, 11/08/1827).
Será essa articulação entre o trabalho, a maternidade, o
gênero e a racialidade que condensará um cenário de grande
vulnerabilidade para as crianças negras nascidas nesse período.
A isso se somam as consequências socioculturais e microssociais
ligadas à família, à mortalidade e à fecundidade, uma vez que as
mulheres afro-portenhas, além de estarem expostas à separação
e à mortalidade de seus filhos, tiveram de enfrentar uma diminui-
ção da fecundidade. Se considerados os resultados fornecidos
pela pesquisa demográfica do historiador José Luis Moreno, cerca
de 90% das mulheres que amamentavam seus filhos – próprios
e alheios – não tinham possibilidade de engravidar novamente,
já que a amamentação constituía um método anticoncepcional
eficaz naqueles anos. Segundo o autor, as mulheres da elite, ao
não amamentar seus filhos, expunham-se a uma fecundação mais
rápida (MORENO, 2002, p. 155).
De maneira similar, o estudo demográfico realizado pela
historiadora Marta Goldberg (1976) confirma essa enunciação. A
autora registra para o ano de 1822 não apenas uma baixa fecundi-
dade, mas também uma alta mortalidade infantil da população
afro-argentina no primeiro ano de vida. Também observa diferen-
ças marcantes nas taxas de mortalidade (por mil) entre crianças
brancas e crianças de cor; e entre estas últimas há disparidade
entre as escravizadas e as livres de cor. Enquanto a mortalidade
para o setor branco é de 30, 18, para o setor livre de cor é de 59,96,
e para o escravo, de 17,25. Essa diferença se comprova novamente
36 “Se vende una parda de 16 años de edad parda de 12 días parida pero no vive el
hijo y conserva la leche, no tiene enfermedades ningunas, sin vicios, buena cocinera,
lavandera, planchadora, ágil y diestra para el servicio necesario de una casa y su
precio es de 600 pesos papel moneda o 230 en onzas de oro”.
130
quando a autora leva em conta o índice médio de óbitos entre os
anos de 1827-1831. A diferença entre as taxas de mortalidade de
população de cor, de acordo com a qualidade de livre ou escravo,
refletiria uma realidade possível: “as condições de vida da popula-
ção de cor pioravam quando conseguiam a liberdade” (GOLDBERG,
1976, p. 89-90).
Até aqui, tudo parece indicar que durante as primeiras décadas
do século XIX a dinâmica imposta pela Revolução e as sucessivas
guerras que se seguiram constituíram uma experiência social de
intensidade máxima para os e as escravizadas e descendentes livres.
As mulheres viveram o impacto de uma realidade complexa, cujas
manifestações foram ocorrendo em diferentes níveis da vida social.
Esse foi um período de grande vulnerabilidade familiar e de
precariedade da liberdade, tanto para as mulheres negras quanto
para sua prole. E, se um maior número de mulheres e crianças
afro-portenhas alcançou a liberdade, os limites jurídicos e sociais
incertos e a persistência e continuidade de práticas coercitivas
enraizadas na escravidão marcaram o trabalho “livre” durante a
abolição da escravidão.
O trabalho de ama de leite mostra-se para nós como uma
combinação de estratégias de sobrevivência e uma alternativa
laboral precarizada e racializada em uma organização do trabalho
em plena transformação.
131
Fontes
132
Referências
ALBERTO, Paulina. Liberta por oficio: negociando los términos del trabajo
no libre en Buenos Aires en el contexto de la abolición gradual, 1820-1830.
In: GUZMÁN, F.; GHIDOLI, M. L. (eds.). El asedio a la libertad. Abolición
y posabolición de la esclavitud en el Cono Sur. Buenos Aires: Editorial
Biblos, 2020. p. 75-118.
BESIO MORENO, Nicolás. Buenos Aires, Puerto del Río de la Plata, capital
de la Argentina, estudio crítico de supoblación, 1536-1936. Buenos Aires:
Talleres Gráficos Tuduri, 1939.
133
CARNEIRO, Maria Elizabeth R. Procura-se uma “preta, com muito bom leite,
prendada e carinhosa”: uma cartografia das amas-de-leite na sociedade
carioca (1850-1888). 2006. 418 f. Tese (Doutorado em História) — Instituto
de História, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2006.
134
GUZMÁN, Florencia; GHIDOLI, María de Lourdes (eds.). El asedio a la
libertad, abolición y posabolición de la esclavitud e nel Cono Sur. Buenos
Aires: Editorial Biblos, 2020.
135
Buenos Aires de la primera mitad del siglo XIX. Anuario del Instituto de
Historia Argentina, v. 19, n. 1, 2019.
STOLCKE, Verena. ¿Es el sexo para el género lo que la raza para la etnici-
dad y lanaturaleza para lasociedad? Política y Cultura, Cidade do México,
n. 14, p. 25-60, 2000.
136
VALENCIA VILLA, Carlos Eduardo. Ao longo daquelas ruas: a economia
dos negros livres em Richmond e Rio de Janeiro, 1840-1860. Jundiaí, SP:
Paco Editorial; São Paulo: Associação Nacional de História, 2016.
137
MATERNIDADE ESCRAVA E AMAS
DE LEITE NA IMPRENSA DO RIO DE
JANEIRO DO OITOCENTOS
Karoline Carula
138
Imagem e texto objetivavam incentivar o aleitamento materno
por meio da desqualificação do realizado por ama de leite, represen-
tada pela mulher negra, cujo tipo de leite classificava-se como “Leite
Mercenário”, terminologia emprestada da Europa e inspirada nos
soldados mercenários que lutavam em troca de dinheiro (CARNEIRO,
2006, p. 5). No Brasil, contudo, quem desenvolvia essa atividade,
em sua maioria, eram mulheres escravizadas (CARNEIRO, 2006;
MARTINS, 2006a; MARTINS, 2006b). Portanto, o lucro obtido não
ficaria com elas. 2
Ao contrastar as duas mulheres retratadas no Bazar Volante,
chama a atenção o direcionamento do olhar de cada uma delas e a
posição do bebê. A ama de leite mira para frente, como se estivesse
observando o infinito, não se concentrando na criança que está
em seu colo. Esta, por sua vez, encontra-se de braços à mostra,
aparentemente sem nenhuma coberta, com a cabeça direcionada
para a esquerda da ama. O texto é enfático: “Vede, e horrorizai-vos,
mães carinhosas!…”. A ama de leite, provavelmente uma mulher
escravizada, é caracterizada como displicente na realização de sua
tarefa. Negligência cuja vítima essencial era o bebê, que estava
sem a roupa necessária e os cuidados demandados. Esse cenário
é importante, pois as funções desempenhadas pelas amas de leite
não estavam restritas ao aleitamento, compreendiam também os
muitos cuidados exigidos pela criança3. A mensagem estava clara:
uma mãe carinhosa e zelosa jamais poderia entregar os cuidados
e a amamentação de seu filho a uma ama de leite escrava, africana
ou crioula. Escrava, livre ou liberta, a ama retratada trazia consigo
os “males” considerados inatos à escravidão como: a anomia, a
promiscuidade e a licenciosidade que poderiam, para muitos, ser
transmitido pelo convívio e pela amamentação. Representava-se
essa mulher como agente causador de males à família senhorial 4.
Sua maternidade, no entanto, não fazia parte da cena. Seu/ua
139
filho/a, se vivo/a estivesse, estava privado/a dos cuidados maternos
para que ela pudesse nutrir o rebento de outra mãe. Mas isso não
vinha ao caso, a intenção era demonstrar a mulher escravizada
como incapaz de ser responsável pelo bem-estar de um bebê.
Em contrapartida, a solução vinha com a mãe da família
branca desempenhando os cuidados com o/a filho/a. Seu olhar,
sugerindo atenção plena, está voltado diretamente para a criança,
totalmente agasalhada, enrolada em uma manta, acalentada no
colo materno, com a face diretamente voltada para a da mãe. A
advertência exposta na mensagem é clara: “Vede e invejai, mães
desnaturadas!…”. Somente a mãe, zelosa e carinhosa, poderia
garantir o pleno cuidado e a alimentação da criança. Apresen-
tar a mãe que não amamentava seu/ua próprio/a filho/a como
desnaturada foi uma constante entre aqueles que difundiam
um discurso pró-aleitamento materno no Brasil do século XIX
(CARNEIRO, 2006; CARULA, 2016a; TELLES, 2018).
Como já dito, para além da amamentação, as amas de leite
tinham a função de cuidar de todos os aspectos que pudessem
levar ao bem-estar do rebento. No tocante aos braços das crianças
nos desenhos destacados, o candidato à médico Agostinho Joze
Ferreira Bretas, em sua tese, afirmava que após o nascimento o bebê
necessitava “mover livremente seus membros” e, portanto, deveria
ser colocado em posição adequada para tal (1838, p. 19). Contudo,
alertava: a “escrava, esta por sua estupidez desconhecendo esta
necessidade […] tolherá algumas vezes completamente a liberdade de
seus movimentos”, o que ocasionaria além da reclamação por parte
da criança a “falta de desenvolvimento dos órgãos, uma natureza
acanhada e débil” (Ibid.). Mas não era só isso, os danos poderiam
também extrapolar o físico, pois “o menino, em uma luta sem cessar
para se mover, e sem conseguir o que ele procura, poderá ou antes
deverá contrair um gênio facilmente irritável” (Ibid., p. 20). Indepen-
dente da argumentação, fosse valorizando ou não o costume de
enrolar o bebê, a ama de leite escravizada seria desqualificada.
Ao se observar os ambientes domésticos onde as mulheres
estavam, é possível verificar que a ama de leite se encontrava
em um espaço no qual móveis e objetos 5 sugerem uma casa de
140
família abastada – cortinas nas janelas, mesa com pés tornea-
dos, enfeite de flores sob a mesa, cadeira alta, aparentemente
estofada. A mulher branca, por sua vez, está em um ambiente
mais modesto, mesa com linhas retas (sem detalhes), cadeira
baixa de madeira, um pequeno cesto 6 para o infante, ausência de
objetos decorativos. Assim como o recinto, a roupa da mãe branca
dá a entender pertencer a uma camada mais baixa. Quando se
compara suas vestes com as publicadas nas revistas e jornais de
moda dedicados às mulheres ricas da sociedade, como Jornal das
Senhoras (1852-1855), Jornal das Familias (1863-1878) ou A Estação
(1872-1904), verifica-se que são bem mais simples. É possível inferir
que a intenção da crítica estivesse direcionada às mulheres das
camadas afortunadas, que recorrentemente utilizavam amas de
leite para aleitar seus/uas filhos/as. Subentende-se que uma mãe
com parcos recursos financeiros sabia dos cuidados e carinhos
que devia ter com sua/eu filha/o, sendo um aspecto que “as mães
desnaturadas”, em sua maioria de famílias mais ricas, deveriam
“invejar”. Ao mesmo tempo, o desenho alertava as mães, que não
eram desprovidas de carinho para com seus rebentos, para o horror
que constituía deixar sua prole aos cuidados das amas de leite.
A publicação dos desenhos na imprensa ilustrada ampliava
o impacto da mensagem transmitida. Mesmo considerando o
baixo nível de alfabetização da sociedade brasileira oitocentista,
a leitura oral de jornais constituía uma prática amplamente
difundida (BARBOSA, 2010, p. 118). Aqui, além da parte textual, a
iconográfica em si consistia em importante veículo transmissor
de representações sociais.
A condenação da prática do aleitamento infantil empreen-
dido por ama de leite já ocorria na primeira metade do século e se
acentuou no decorrer dos anos. Todavia, ainda era muito circuns-
crita à esfera de determinados grupos, como no caso dos médicos.
Estes em suas teses e publicações científicas, para defender o
141
aleitamento materno, desqualificavam as mulheres que atuavam
como amas de leite. Semelhante aos congêneres europeus, a alta
mortalidade infantil estava entre os dados que impulsionavam a
preocupação com relação à alimentação dos bebês (CARULA, 2019).
Tais críticas eram divulgadas para além do universo médico, havia
a preocupação em levar os conhecimentos médico-científicos a um
público mais amplo. Com esse intuito, em meados do Oitocentos,
textos voltados às famílias mais abastadas, aquelas que utiliza-
vam o serviço de amas de leite, “traziam orientações e cuidados
profiláticos dirigidos ao problema do alto número [de] óbitos por
negligência de todas as autoridades” (MARTINS, 2006b, p. 116).
A imprensa exerceu importante papel na difusão da imagem
da ama de leite como agente pernicioso, criticava-se a entrega
das crianças para escravas cuidarem e aleitarem (CARNEIRO,
2006; CARULA, 2016a, 2016b; TELLES, 2018). Tencionava-se, dessa
maneira, formar uma opinião pública pró-aleitamento materno
e contrária não só à atividade das amas de leite, mas também
às mulheres, majoritariamente escravizadas, que exerciam essa
atividade. O próprio Bazar Volante foi criado, conforme publicado
em seu editorial de lançamento, com o objetivo de “vender um
pouco mais barato suas mercadorias” (ano 1, n. 1, 27/09/1863, p. 2);
no caso em análise, pretendia-se vender a imagem negativa da
mulher escravizada atuando como ama de leite sem o zelo necessá-
rio no trato de um bebê.
Publicações cujo público-alvo eram as famílias, quando critica-
vam a atuação das amas de leite, pretendiam formar opinião
pública atuando diretamente sobre as mães das camadas mais
abastadas7, as que mais utilizavam tal serviço. Mesmo artigos nos
quais o foco não estava no aleitamento, poderiam tangenciar a
questão. Esse foi o caso do semanário O Beija-flor, que ao tratar
da educação 8 dos filhos sinalizou para o potencial pernicioso da
142
ama de leite escrava “no interior das casas da cidade” (MARTINS,
2006b, p. 124). No artigo assinado por B. J. Borges, censurava as
mães que entregavam seus filhos aos cuidados de outras mulheres
– hábito, ou “bom tom”, apresentado como um “dever aristocrá-
tico”. O autor afirmava que a prática seria, com muito sacrifí-
cio, copiada pelas mulheres pobres da sociedade (O Beija-flor, v.
I, n. 9, 02/06/1849, p. 1, grifos do original). Em seguida, alarmava
para o perigo:
143
ricas empregavam mão de obra escrava em diversas atividades
(KARASCH, 2000, cap. 7; SOARES, 2007, cap. 4–8), talvez não no
montante apontado por Bretas, que afirmava mais adiante que nas
grandes cidades as mães mais afortunadas eram as que menos
amamentam seus filhos (1832, p. 27).
Com base em relatos de viajantes “sobre as diferentes raças
de homens, que existe sobre o globo”, por meio de uma interpre-
tação racializada, Bretas afirmava que as “escravas africanas […]
são muitas vezes tiradas dentre povos de costumes bárbaros,
supersticiosos, estúpidos, de pouco espírito, vingativos” e que,
em consequência da alimentação e de “infinitas outras circunstân-
cias” várias sofriam de enfermidades (1838, p. 19). Muitos perigos
poderiam ocorrer à criança cujos cuidados estivessem delegados
à ama de leite escravizada, como a asfixia, ao ser amamentada
deitada, e que poderia levar a morte. Bretas destacou que seu
professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Dr. Julio,
havia comunicado aos alunos um caso deste. Por fim, eviden-
ciava os danos morais advindos das amas de leite: “quem não sabe
das ridículas histórias, que as escravas, apesar do toda a vigilân-
cia dos pais, costumam contar às crianças […] Quanto aos vícios,
que na infância se podem beber das escravas igualmente com
seu leite” (1838, p. 23).
Tanto O Beija-flor quanto a tese médica de Bretas, bem como
outros jornais e médicos, apresentaram as amas escravizadas como
mulheres de características nada apreciáveis e doentes, algo danoso
para o rebento aleitado. A qualidade de seu leite era questionável,
pois existiam enfermidades que poderiam ser transmissíveis ao
bebê, além disso danos morais também seriam inevitáveis para as
famílias, a sociedade e o país. Mulheres pérfidas e más, assim se
representavam as escravizadas que atuavam como amas de leite.
Essa representação, contudo, foi tomando novos contornos
conforme os anos seguiram, sobretudo com o crescimento do
movimento abolicionista. A condenação ao uso de amas de leite
como método de aleitamento infantil continuou, mas o olhar para a
maternidade da mulher escravizada passou a ser diferenciado, além
de algoz ela passou a ser apresentada como vítima. É interessante
destacar que, mesmo antes dessa mudança de olhar, havia por parte
de certas famílias que utilizavam o serviço de nutriz de aluguel
um sentimento diferente para com aquelas mulheres, sobretudo
144
as escravizadas. E eles são bastante aparentes nos testamentos e
alforrias, por exemplo, nos quais amas de leite ou algum de seus
familiares figuravam como herdeiros/as ou obtinham sua alforria
em reconhecimento ao afeto devotado à ama.9
Ao analisar a escravidão e a maternidade, é necessário
compreender a distinta experiencia das mulheres escravizadas,
ao mesmo tempo produtoras e reprodutoras de trabalho, “no papel
de dupla produtora da riqueza escravista”, os princípios impostos
pelos sistemas escravistas “acabaram sublinhando a centrali-
dade do corpo da escravizada como o próprio locus da escravidão”
(MACHADO, 2018), num cruel sistema em que sua maternidade foi
silenciada, com a negação aos seus direitos maternos. O princípio
do partus sequitur ventrem garantia aos proprietários, até 1871, a
continuidade da mão de obra cativa. Após 1850, com o fim efetivo
do tráfico transatlântico de escravos, o papel como reprodutora
adquiriu relevo, na medida em que a reposição de mão de obra
passou a se dar pelo crescimento natural, além do tráfico interno.
A partir da década de 1870, a maternidade da mulher escravi-
zada passou a figurar na imprensa de maneira mais destacada.
Os debates parlamentares em torno da Lei que tornaria livres os/
as filhos/as de ventre escravo trouxeram para o primeiro plano
a mulher escravizada e seu papel como reprodutora de trabalho
(ABREU, 1996; SANTOS, 2016; COWLING, 2018; FREIRE, 2021); eles
repercutiam nos jornais, que noticiavam e ampliavam o espaço
de discussão. Em 1869, a separação por venda de mãe e filhos/as,
menores que 15 anos, escravos fora proibida,10 sinalizando para
uma nova perspectiva com relação à maternidade. Em 1871, a Lei do
Ventre Livre também tratou da separação de famílias escravas. No
seu art. 1º, § 5º, determina-se que em “caso de alienação” os filhos
livres de mulher escrava deveriam acompanhá-las; no art. 4º, §
7º, afirmava-se que em qualquer caso de “alienação ou transmis-
são de escravos” era proibido “sob pela de nulidade, separar os
145
cônjuges e os filhos menores de 12 anos do pai ou mãe”; e no §
8º estipulava-se que, em caso de divisão de bens entre herdei-
ros ou sócios se nenhum deles quisesse conservar a família sob
seus domínios, não sendo, portanto, possível manter “a reunião
de uma família”, a mesma deveria ser vendida e o valor rateado
(BRASIL, 1871). Contudo, o afastamento entre o recém-nascido
e a mãe escravizada, para servir como ama de leite, continuou,
mesmo porque nenhuma das leis tratava da separação de mães
para servirem como nutriz de aluguel; talvez porque ele fosse
considerado como temporário, a despeito de muitas vezes o rebento
ser abandonado na roda. Para alguns proprietários, o papel de
produtora de riqueza e não o de reprodutora de mão de obra era
mais lucrativo. Possivelmente, a incerteza quanto à sobrevivên-
cia das crianças, devido à alta mortalidade de neonatos, estava
entre os fatores considerados por aqueles senhores.
Muitos artigos publicados nos jornais denunciavam a entrega
do/a filho/a de mãe escravizada na roda dos expostos para alugá-la
como ama de leite, mostrando que a não separação no caso de
vendas estava garantida 11 pelas leis de 1869 e 1871, mas o mesmo
não ocorria com a separação pelo abandono no nascimento.
146
(CARULA, 2016a; TELLES, 2018). Em 1874, o futuro médico José
Coelho de Moura apontava a separação entre mãe escravizada
e filho/a como causa no mal desempenho da ama, a “[…] escrava
que apenas deu à luz ao produto de suas entranhas, é alugada, é
separada de seu filho, o qual ela não pode abraçar, amamentar,
porque os seus verdugos não compreendem o seu amor” (p. 26),
o amor materno foi evocado como sentimento nobre feminino,
semelhante ao atribuído às mulheres brancas, sobretudo as das
camadas abastadas.12 Com relação ao/a recém-nascido/a filho/a
da escravizada, “é lançado nas rodas das casas dos expostos, ou
então, fica entregue ao acaso, sem ter ao menos um olhar, um
sorriso e o que mais uma gota deste líquido tão necessário na
primeira idade”, o seu destino consistia em ser enjeitado (Ibid.).
Esses motivos levavam as escravizadas, na alegação de Moura, a
odiarem “a família que aluga e principalmente a inocente criança
a quem ela vai fazer as vezes de mãe!” (Ibid.).
Tal argumentação passou a circular cada vez mais entre abolicio-
nistas no mundo atlântico. Esses lançavam mão de retórica sentimen-
tal exagerada, colocando as mulheres escravizadas em destaque
ao mostrar os sofrimentos vividos pela população cativa. A separa-
ção entre mãe e filhos foi recorrente nos discursos abolicionis-
tas de modo a criar comoção (CAMP, 2004, p. 109-110; COWLING,
2018, p. 173-214), não só no Rio de Janeiro, mas também em outras
sociedades escravistas, como, por exemplo, em Havana (COWLING,
2018). Em ambas as cidades, a retórica esteve conectada com as
mudanças legais em torno da propriedade escrava, em especial,
a relacionada ao ventre da mulher escravizada.
A Gazeta da Tarde, jornal abolicionista cujo proprietário era
José do Patrocínio, regularmente publicava notas sobre a liberta-
ção de amas de leite. Muitas vezes o texto era efusivo, descre-
vendo a nobreza da atitude daqueles que as libertaram. Em 1882,
Thomazia recebeu a liberdade do Dr. Egydio Pinto da Silva Mello,
por ter amamentado sua filha (Gazeta da Tarde, 01/04/1882, p. 1). O
Dr. Souza Campos, da mesma maneira, libertou Maria, que então
tinha 22 anos de idade, como “gratidão pelos serviços que prestou
147
quando ama de leite de um seu filho”, o periódico evidenciou não
ser a primeira vez que o médico assim agia seguindo “excelente
ideia do seu coração”, já havia libertado Eugenia (Gazeta da Tarde,
01/08/1882, p. 1). Dois médicos deram liberdade às escravas que
atuaram como amas de leite de seus filhos. A condenação ao emprego
de amas de leite para o aleitamento infantil era difundida entre
a população por muitos médicos, principalmente por meio da
imprensa.13 Contudo, nem mesmo em suas famílias, a utilização
de mulheres escravizadas para aleitar bebês deixou de existir.
Na seção “Crônica do bem”, a publicação de Patrocínio noticiou
e cumprimentou o “ato do ilustre cidadão” Antonio Ferreira Vianna,
que libertou a parda Inesia, ou como constava no texto: “restitui-a à
liberdade”. A cativa era propriedade do major Luiz José de Menezes
Fróes da Cruz, a quem foi dada a quantia de 450$ (Gazeta da Tarde,
29/07/1885, p. 1). Restituir à liberdade foi expressão amplamente
utilizada pelo periódico abolicionista, indicando a percepção de que
a liberdade compunha a condição essencial da pessoa, mesmo se
ela nunca tivesse usufruído de tal, por ser juridicamente escrava.
O título da seção deixava explícita a sua intenção: representar as
alforrias como atos nobres.
Denúncias à colocação de mulheres escravizadas doentes
como amas de leite eram divulgadas na imprensa. A famosa
parteira francesa madame Durocher 14, em 1870, publicou suas
indignações no Diario do Rio de Janeiro. Considerou um “abuso
do direito do senhor contra o escravo”, que disponibilizava para
o aluguel “escravas fisicamente impossibilitadas de amamen-
tar”. Durocher afirmava ter aumentado o número de mulheres
escravizadas enviadas ao seu consultório naquelas situações. As
parteiras também intermediavam o aluguel de ama de leite. Por
meio de argumentação sentimental, em tom de acusação, asseve-
rava: “quase todas sem leite, porque, contra todas as leis divinas
e humanas, se lhes tem arrancado os filhos para levá-los à roda,
a fim de alugar as mães, mais facilmente, como amas de leite” e
148
continuava “ama esgotada por uma longa criação, ainda se obriga
a pobre escrava a dizer que pariu há poucos dias, e que se não
tem bastante leite é porque o filho foi para a roda e não tem dado
de mamar” (Diario do Rio de Janeiro, 30/11/1870, p. 2). Durocher
criticava o abandono de bebês, contudo, essa era uma das ativida-
des desempenhadas pelas parteiras; ela mesma “era encarregada
de separar a mãe do filho, função considerada difícil, tanto para o
proprietário, quanto para a família que deseja alugar os serviços
da ama” (MOTT, 2005, p. 118).
Parteiras, dentre outras atividades que desempenhavam além
do partejar, ajudavam a alugar mulheres como ama de leite e no
abandono dos recém-nascidos (MOTT, 2005; PIMENTA; BARBOSA,
2016; TELLES, 2018, p. 223-232). Em 1872, o suíço então residente
no Rio de Janeiro, Charles Pradez, destacou que próximo à sua
casa existia “uma espécie de maternidade”, pertencente a “uma
parteira francesa”, que “recebia como pensionistas escravas,
fazia o parto e cuidava delas e esse encarregava de alugá-las,
de separá-las de seus filhos, operações muito desagradáveis para
os senhores e pelas quais era fartamente recompensada.” (apud
LEITE, 1984, p. 94).
Durocher destacou que, por se recusar a intermediar o aluguel
de amas de leite adoentadas, conseguira alguns “desafetos” e, em
1849, “movida por sentimentos de humanidade”, havia levado à
Câmara Municipal um projeto para a inspeção de amas de leite
(Diario do Rio de Janeiro, 30/11/1870, p. 2). A parteira, além de poder
tornar mais ágil o processo de aluguel de ama, de certa maneira,
avalizava a nutriz. Portanto, o senhor da escrava poderia tentar
dissuadi-la para que afiançasse a saúde daquela mulher, mesmo
sendo “umas sifilíticas, outras escorbúticas; umas com impigens,
outras tuberculosas; umas cloróticas; outras escrofulosas; quase
todas sem leite” (Ibid.). Os sentimentos humanitários com relação
às mulheres escravizadas se tornaram cada vez mais intensos
na retórica abolicionista. Essas estratégia argumentativa passou
a circular de maneira mais ampla na sociedade em decorrência
do crescimento do movimento que lançava mão desses tipos de
alegações para sensibilizar a população para a causa. A fim de
mostrar sua revolta com relação ao envio de mulheres adoenta-
das para a atuação como amas de leite, a parteira fez uso do
mesmo tipo de estratégia.
149
O envio de bebês de mães escravizadas à roda dos expostos
também esteve em pauta quando das discussões que levariam à Lei
de 28 de setembro de 1871. Um artigo presente na seção “Publica-
ções a Pedido” do Diario do Rio de Janeiro (04/04/1871, p. 1), assinado
por “Lavrador”, tangenciou o tema, explicitando o desacordo com
relação à lei que tornaria livres filhos/as de mulheres escravas. Com
o propósito de mostrar que os senhores tratavam bem tanto as
mães quanto as crianças escravizadas, inicialmente, o fazendeiro
assegurou que quando a gravidez da escrava já estava adiantada,
impossibilitando-a de trabalhar em determinadas atividades, ela
era poupada 15, sendo isto “inevitável, porque os nossos lavrado-
res não são tão utilitários como os dessas colônias pertencentes
a países aonde [sic] tanto se alardeia de humanidade”. Médicos
teciam várias observações de como as gestantes deviam ser
preservadas, mas com o olhar direcionado às mulheres brancas,
consideradas frágeis (TELLES, 2018, p. 81–2). Na década de 1830,
no contexto de fim do tráfico transatlântico de escravos, e após o
fim efetivo em 1850, médicos e fazendeiros, em teses e manuais
médicos, passaram a dedicar atenção às escravizadas grávidas
e aos recém-nascidos, condenando o trabalho excessivo até os
últimos dias de gestação nas lavouras. A garantia da continui-
dade da escravidão, dependia do nascimento de bebês vivos e
saudáveis (Ibid., p. 81–5).
Segundo o “Lavrador”, a preocupação e o zelo com o rebento
se davam para “que pudesse vingar, crescer e prestar futuros
serviços” e esses fatores “animavam a tendência cristã” dos
proprietários. Ao continuar, ainda no intuito de representar os
senhores como bondosos e de sentimentos nobres, frisou: “As
senhoras das fazendas, sempre mais generosas e compassivas,
tomam a si a criação dos infelizes filhos das escravas, que sob seu
agasalho e proteção escapam muitas vezes dos carinhos insensa-
tos de suas estupidas mães”. E, não contente, continuou, “Quando
um dia mão imparcial escrever a história da escravidão no Brasil,
não esquecerá de pôr em relevo a caridade de nossas patrícias”. A
150
maternidade da mulher escravizada foi retratada como perigosa,
pois seus carinhos maternos seriam “insensatos” (Diario do Rio
de Janeiro, 04/04/1871, p. 1).
Especificamente sobre as amas de leite, o fazendeiro contra-
riado fez a pergunta retórica: “Que destino levam os filhos das
escravas?”. Em seguida, expôs o já conhecido por todos, “Vão para a
roda, não da fortuna, mas da morte. O senhor, habitante do centro
da civilização, prefere libertar o recém-nascido pelo abandono à
caridade pública, mirando maior vantagem: os aluguéis da escrava
mãe” (Diario do Rio de Janeiro, 04/04/1871, p. 1). Deixava claro que
o filho da cativa seria abandonado na roda, pois o lavrador sempre
iria procurar “maior vantagem” e acabaria ocorrendo um “infanti-
cídio em massa”, uma troca “da escravidão pela morte!”. A roda
era vista como local de morte certa. Então, por fim, sentenciava:
“A caridade da lei começa por separar a mãe do inocente filho e
termina por expô-lo em nome da liberdade a uma morte quase
infalível!” (Ibid.).
A Roda dos Expostas, ou Casa da Roda, integrava as institui-
ções assistencialistas coordenadas pela Irmandade da Misericór-
dia. Desde 1860, funcionava na rua dos Bourbons, lá as crianças
enjeitadas ficavam amparadas até serem encaminhadas para
famílias que as criariam, as quais receberiam uma ajuda trimes-
tral (CARNEIRO, 2006, p. 61). O alto número de abandono bem
como o restrito espaço físico existente eram de conhecimento
público, o “crescimento dos números do abandono e dos gastos
da instituição levou administradores inclusive a devolver crianças
aos respectivos familiares, sobretudo quando da ocorrência do
abandono de bebês escravos” (CARNEIRO, 2006, p. 41).
No mês seguinte, outra insatisfação com relação à possível
aprovação de uma lei que libertaria os/as filhos/as de mulher escrava
saiu na mesma seção do Diario do Rio de Janeiro (15/05/1871, p. 1).
O autor, que assinou o artigo como “Price”, fazendo jus ao pseudô-
nimo adotado, evidenciou o lucro obtido com o aluguel de mulheres
escravizadas como amas de leite: “O ventre livre é o assassinato.
Todos os dias se está vendo os senhores exporem os seus escravos
para terem 40$ e 50$ por mês pelas amas de leite. Vê-se ainda pior:
vê-se alugarem as mães e deixarem morrer em casa à mingua os
filhos”. Então, projetou valores sobre o quanto poderia se obter do
“produto” do ventre da mulher escravizada – cálculos com relação
151
ao rendimento como produtora e como reprodutora de trabalho.
Estimou que ao final de oito anos, tempo mínimo que o/a filho/a
da mãe escravizada ficaria com ela,16 caso ela desse à luz uma só
vez nesse período, teria “600$ pelo seu produto, que até aí lhes
custou, de desembolso real pelo menos, 480$ de criação, admitindo
que até a idade de oito anos a criança só consuma 5$ por mês em
sustento, em curativo e vestuário?” (Ibid.). No bojo das discus-
sões sobre o ventre livre da mulher escravizada, seus específicos
papéis no contexto da escravidão como produtora e reprodutora
passaram a ser quantificados e projetados, no quanto se poderia
lucrar com seu aluguel como ama de leite e nos gastos e ganhos
que seu/ua filho/a poderiam proporcionar, tanto se a opção fosse
ficar com ele/a até os 8 ou até os 21 anos.
Fato é que as crianças filhas de mulheres escravizadas continua-
ram a ser abandonadas na roda dos expostos. Em janeiro de 1878,
morria o filho 17 da escravizada Etelvina, do qual fora separada
para ser alugada como ama de leite. O caso chegou às autorida-
des policiais quando “uma preta” adentrou a delegacia de polícia
segurando o corpo de um recém-nascido morto. A mulher recebeu
o menino “para criar”, mas logo percebeu que ele se encontrava
doente. Então, decidiu levá-lo de volta para a pessoa que lhe
entregara, na rua do Conde d’Eu. No entanto, no caminho, após
ser cometido por convulsões, o pequeno faleceu. As investigações
revelaram que “a criança era filha escrava Etelvina, que a dera à
luz na maternidade de Mme. Borgé, e que a senhora da escrava,
com o fim de alugá-la como ama de leite, mandara deitar na roda
a criança.” (Gazeta de Noticias, 19/01/1878, p. 1). O caso policial veio
à público pela imprensa, indicando a continuidade da prática de
abandono de filhos/as de mulheres escravizadas.
16 A questão sobre até qual idade as crianças livres filhas de escravizadas deve-
riam ficar sobre a autoridade dos senhores foi debatida no Parlamento e, poste-
riormente, incorporada na proposta aprovada pela Lei n. 2.040 de 28 de setembro
de 1871. Foram várias as idades debatidas, no final o parágrafo 2 do artigo primeiro
determinou que aos 8 anos o senhor poderia optar por utilizar o trabalho das
crianças até os 21 anos ou receber uma indenização do governo. Caso escolhesse
a indenização, o governo daria, em conformidade com a lei, o destino adequado
à criança (BRASIL, 1871).
17 Na edição do dia 21 de janeiro, na seção “Obituário”, a Gazeta de Noticias
indicou o sexo do bebê.
152
O menino morto era ingênuo e foi separado de sua mãe não
pelos dispositivos legais estabelecidos pela lei de 1871, que determi-
navam que até os oito anos a criança ficaria perto da mãe e após
poderia ser dela afastada, mas para ser abandonado na roda dos
expostos. Não é possível saber se Etelvina sabia ou não que o filho
nascera vivo, certo é que não pôde tê-lo consigo e amamentava
outra criança. A nota policial dá a entender que ele não foi levado
à roda, conforme solicitação da proprietária. A “preta” estava indo
devolver o menino para quem lhe entregara, indicando que não
recebeu o recém-nascido da Santa Casa de Misericórdia, institui-
ção mantenedora da roda.
Ao investigar anúncios de amas de leite entre 1830 e 1890,
Bárbara Canedo Ruiz Martins (2006) verificou que a referência ao
termo “criar” indicava que o aleitamento correria fora da casa do
bebê – hábito não recorrente na cidade do Rio de Janeiro, pois as
famílias levavam as amas para suas residências. As mulheres que
carregavam as crianças para suas residências eram chamadas de
“criadeiras” e estavam mais relacionadas às que criavam meninos/
as abandonados/as na Casa dos Expostos (MARTINS, 2006a, p. 38).
No relato da viajante inglesa Maria Graham, de 1821, as crianças
abandonadas na roda “eram dadas a criar fora, e de muitas nunca
mais houve notícia. Não talvez porque todas tivessem morrido,
mas porque a tentação de conservar uma criança mulata como
escrava deve, ao que parece, garantir o cuidado com sua vida”
(apud LEITE, 1984, p. 49). No caso da “preta” que pegou para criar
o filho de Etelvina, é interessante refletir sobre quais motivos
teriam impulsionado aquela mulher, supostamente pobre, a fazê-lo.
Certamente, a proprietária da escravizada não estava disposta a
arcar com os custos da criança, nascida livre, e, por isso, solicitou
à parteira que fosse abandonada na roda que, a partir de então,
arcaria com os gastos. A “preta” não pegou o recém-nascido na
roda e, portanto, não recebeu a quantia dada pela instituição
para quem criava enjeitados/as. Talvez quisesse ter alguém para
ajudá-la futuramente nas atividades ou por simples sentimento
de caridade.
Madame Borgé, assim como outras parteiras, além de ser paga
para abandonar recém-nascidos na roda, recebia, como se pode
observar nos anúncios a seguir, para encaminhar crianças para
famílias cuidadoras: “Dá-se a criar uma criança, por 20$ mensais;
153
na casa de Mme. Borgé, ladeira de Santo Antonio n. 2.” (Jornal do
Commercio, 08/06/1876, p. 5); “Dá-se para criar, pagando-se 12$
mensais, uma criança de um mês e meio; dirija-se à casa de Mme.
Borgé, largo da Carioca.” (Jornal do Commercio, 13/04/1877, p. 8).
Esse, contudo, não foi o caso do filho de Etelvina, cuja senhora
determinou que fosse abandonado na roda. Contrariando à solici-
tação, o pequeno foi parar nas mãos de uma criadeira.
No tocante à madame Borgé, não era a primeira vez que seu
nome aparecia na imprensa vinculado a um bebê morto. Três anos
antes, em frente à casa da parteira, então situada na ladeira de
S. Antonio, fora encontrado “o cadáver de um recém-nascido de
cor parda, do sexo masculino, dentro de uma caixa de madeira e
coberto com um xale; fez-se o exame e mandou-se sepultar.” (O
Globo, 12/01/1875, p. 2). Seria um caso semelhante ao ocorrido com
o filho de Etelvina? A mortalidade de neonatos era alta na cidade
do Rio de Janeiro, constituindo alvo da atenção de médicos tanto
em suas teses como quando atuavam na Junta Central de Higiene
Pública18. Não seria de estranhar que se tratasse de mais um bebê
nascido na maternidade da parteira e por ela encaminhado para
ser criado por outra mulher, que, sem poder cobrir os encargos
com o sepultamento, o abandonou na porta de Borgé.
O abandono de crianças, nascidas de ventre livre, para o aluguel
da mãe como ama de leite foi denunciado por jornais abolicio-
nistas: “Foi ontem intimada a moradora da casa n. 4, da rua do
General Camara, por tentar deitar à rua um recém-nascido, filho
de uma sua escrava a quem aquela queria alugar para ama de
leite.” (Gazeta da Tarde, 13/04/1882, p. 2) Aqui, o termo “deitar à rua”
trazia uma componente a mais de caráter sentimental, típica da
imprensa abolicionista. É possível que o bebê encontrado dentro
18 Em 1878, o médico José Pereira Rego, o Barão de Lavradio, publicou a obra
Apontamentos sobre a mortalidade da cidade do Rio de Janeiro particularmente das
crianças e sobre o movimento de sua população no primeiro quatriennio depois do
recenseamento feito em 1872, na qual informou que, para os anos de 1873 a 1876, a
média da mortalidade até os 4 anos fora de 37,49%, sendo a maioria de bebês antes
de completarem um ano, sem adicionar aos cálculos os natimortos. O médico
havia ocupado o cargo presidente da Junta Central de Higiene Pública, quando se
dedicou ao estudo da população da cidade e da mortalidade (CARULA, 2019, p. 97-
102). Mesmo considerando as imprecisões quanto à coleta de dados, a quantidade
de crianças mortas não deve ter sido muito menor do que o apontado.
154
de uma caixa em frente à maternidade de madame Borgé fosse um
caso desses, algum senhor que não queria pagar a parteira para
efetivar o abandono do bebê e/ou não queria ele próprio ir à roda.
Portanto, era amplamente conhecida a separação de mãe escravi-
zada e filho/a, inclusive sendo este/a nascido de ventre livre, que
seria enjeitado na roda ou entregue para criadoras.
Durante toda a década de 1870, anúncios sobre as atividades de
madame Borgé foram publicados na imprensa. Parteira “formada
pela faculdade de medicina do Rio de Janeiro”, que mantinha uma
“maternidade de partos” sob sua direção (Jornal do Commercio,
08/06/1876, p. 6). A francesa Victorina Borgé era parteira formada,
ou seja, tinha seu diploma concedido ou validado pela Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro. Muitas estrangeiras atuavam como
parteiras, sendo a maioria da França, onde a formação institucional
já era mais recorrente. Madame Borgé, entre 1874 e 1876, dividiu
residência com outra parteira, a madame Maria Muller, e, de 1879
a 1882, com Maria Hildenwirth, sendo seu nome mantido como
o principal – maternidade de Mme. Borgé (PIMENTA; BARBOSA,
2016). Portanto, os casos relatados poderiam não ter, necessaria-
mente, envolvido a parteira francesa.
Seus préstimos como intermediária no aluguel de amas de
leite também eram anunciados na imprensa 19: “ALUGA-SE uma
ama de leite parda; para ver, em casa de Mme. Borgé, e trata-se na
rua da Quitanda n. 143, 1º andar.” (Jornal do Commercio, 19/10/1871,
p. 1); “ALUGA-SE, para casa de tratamento20, uma excelente ama de
leite; na ladeira de Santo Antonio n. 2, casa de Mme. Borgé” (Jornal
do Commercio, 17/06/1872, p. 4); “ALUGA-SE uma boa ama de leite,
preta, muito limpa, sadia, carinhosa e prendada, com abundante
leite de dez dias; para ver na casa de Mme. Borgé. Ladeira de Santo
Antonio n. 2.” (Jornal do Commercio, 14/01/1874, p. 1); “ALUGA-SE
uma preta, boa ama de leite; em casa de Mme. Borgé, ladeira de
155
Santo Antonio n. 2.” (Jornal do Commercio, 24/09/1874, p. 1). Essas
mulheres, muitas delas escravizadas, possivelmente deram à luz
nas instalações de sua maternidade e de lá foram encaminhadas
para atuarem como amas de leite. Não seria implausível supor que
a parteira também tenha ficado responsável, nos casos supraci-
tados, por encaminhar os recém-nascidos à roda ou a criadei-
ras. É interessante observar que para a ama recomendada para
“casa de tratamento” não havia assinalada qualquer menção a
sua cor, preta ou parda, sinalizações que indicariam ascendên-
cia escrava e, portanto, carregadas dos males provenientes da
escravidão que, no olhar de muitos, não eram atributos desejá-
veis para “casas de família”.
Com relação à maternidade, a exploração adicional sofrida
pelas mulheres escravizadas vinha: das mães que não aleitavam
seus filhos, gerando demanda por nutrizes de aluguel; dos/as
proprietários/as que as colocavam para atuarem como amas de
leite; algumas vezes das parteiras, que lucravam a mais interme-
diando o aluguel e abandonando o/a recém-nascido/a, muitas
delas mulheres livres, muitas brancas e estrangeiras. Não devemos
esquecer também as que não publicavam seus ofícios na imprensa,
mas eram conhecidas pela população da cidade, e desempenha-
vam o mesmo tipo de serviços além do parto.
Colocar a escravizada como ama de leite constituía uma maneira
de exploração de sua função como produtora de trabalho, o qual
só era possível devido à especificidade do corpo feminino escravi-
zado de ser também reprodutor de mão de obra. Os meandros da
atividade envolviam um universo feminino, composto por diferen-
tes mulheres – a mãe, das camadas alta e média, que não amamen-
tava 21; a ama escravizada; a parteira; e, em alguns casos, como
no caso da escrava Etelvina, a senhora escravocrata que pagava
a parteira para realizar todos os serviços anteriormente elenca-
dos. Cabe destacar a ação dessas outras mulheres no funciona-
mento do mercado de amas de leite escravizadas.
Em 1875, Victorina Borgé, ou sua colega parteira, madame Maria
Muller, alugou uma ama de leite escravizada, no entanto, não sabia
21 Mariana Muaze interpreta a não amamentação por parte das mulheres abas-
tadas como “parte integrante do habitus senhorial escravista compartilhado pela
classe dominante do Império” (2018, p. 385).
156
o nome do locatário e, por isso, teve que publicar a seguinte nota:
“MME BORGÉ. A pessoa que no dia 16 de Fevereiro próximo passado
alugou uma ama de leite por nome Augusta, da casa da senhora
acima, queira aparecer, a fim de dar o seu nome e morada para o
governo de seu dono.” (Jornal do Commercio, 21/04/1875, p. 6, grifos
do original). Uma vez que o paradeiro da escrava estava incógnito,
constituía-se uma situação muito melindrosa, pois era reponsabili-
dade da parteira perante o/a proprietário/a zelar pela cativa alugada.
Caso a ama de leite fugisse, por exemplo, como reencontrá-la?
Um caso de fuga de ama de leite, não o primeiro nem o último,
foi noticiado em 1876 (Diario do Rio de Janeiro, 22/09/1876, p. 2). Um
homem alugou a ama Maria, por 60$. A transação foi realizada “no
campo de Aclamação n. 4, onde diz-se morar a viúva de Antonio
de tal”. Contudo, no mesmo dia, Maria fugiu. Ao retornar ao local
onde alugara a nutriz, “não encontrou pessoa alguma com quem
falar; já se tinham mudado!”. O locatário foi à polícia, que iniciou as
investigações. Muitos motivos podem ter impulsionado essa e outras
fugas, no tocante aos relacionados à maternidade da escravizada
é possível destacar a recusa em atuar como ama de leite, o desejo
de estar com o seu bebê, a tristeza em saber, ou não, se ele estava
morto22 ou fora abandonado. As fugas, assim como a falta de leite
e serviços que não agradaram, também estavam entre as causas
de dispensas por parte da família locatária (TELLES, 2018, p. 218).
Em 1809, Joaquina Rosa, viúva do capitão José dos Santos, enviou
petições às autoridades judiciais para solicitar o resgate de sua
escrava Filipa, alugada como ama de leite a Luís Antônio Gonzaga,
que não pagava o aluguel devido (MARTINS, 2006a, p. 76). Argumen-
tou ainda que necessitava da ama para aleitar sua neta (Ibid.). Como
essa, outras transações malogradas envolvendo amas de leite que
foram parar na polícia apareceram nos jornais. Domingos de Castro,
por exemplo, foi intimado “por ter entrado no 1º andar do sobrado n.
1 do largo da Batalha e querer à força tirar sua escrava que aí tinha
alugada como ama de leite, sem que a dona lhe devesse aluguel
algum e sem motivo.” (Gazeta da Tarde, 09/08/1880, p. 2). A inadim-
plência, talvez não fosse o mote principal da invasão do sobrado
em 1880, os motivos podem ter sido variados, talvez o proprietário
22 Com relação aos traumas das perdas, à morte, e ao luto entre mulheres es-
cravizadas, conferir Paton (2017); Roth (2017) e Turner (2017b).
157
desejasse que aquela mulher escravizada atuasse como nutriz de
um ente próximo, ou para alguém que pagasse mais. O que os casos
nos mostram é que tensões nas negociações poderiam levar as
amas a transitarem entre várias famílias. A estabilidade em uma
mesma casa poderia possibilitar à ama auferir ganhos (simbólicos,
financeiros, alforrias etc.), por meio de estratégias de negociação
envolvendo a lógica paternalista.
Denúncias de maus-tratos sofridos pela população escrava,
em especial contra as mulheres, marcaram as páginas da imprensa
abolicionista. Em 1880, a Gazeta da Tarde (16/11/1880, p. 1) acusava o
proprietário de alguns escravos residente à rua Dois de Dezembro,
classificando-o como “o mais perfeito modelo do escravocrata
malvado e repugnante”. Segundo a notícia, havia sido batizado
na Freguesia da Glória um menino chamado Amadeu, designado
como filho de “uma mulher pobre e livre, chamada Henriqueta”,
que após o batismo foi enviado para ser enjeitado na Misericórdia.
Na realidade, se tratava do filho de Juliana, escrava daquele “cruel
senhor”, que foi abandonado para a sua mãe ser alugada como
ama de leite. Não querendo arcar com os custos do/a nascido/a de
ventre livre nem ser acusado de abandoná-lo, aquele “modelo do
escravocrata” fez uso dessa artimanha, que não passou desper-
cebida aos abolicionistas, cada vez mais atentos. O corpo daquela
mulher escravizada não mais podia ser usado como reprodutor
de trabalho, no entanto, como produtor, sua maternidade poderia
continuar a ser explorada por meio de seu emprego como ama
de leite. Os muitos anúncios de procura e, sobretudo, de oferta
de amas de leite publicados nos grandes jornais da cidade, como
o Jornal do Commercio e Gazeta de Noticias, mostram como esse
mercado de trabalho23 envolvendo mão de obra escravizada ainda
era intenso em fins do Oitocentos (CARNEIRO, 2006; MARTINS,
2006a; MARTINS, 2006b; TELLES, 2018; CARULA, 2020).
Notícias envolvendo amas de leite fora da cidade do Rio de
Janeiro, da mesma maneira, estiveram presentes nas páginas
dos jornais. Em 1876, o Diário do Rio de Janeiro (30/01/1876, p. 2)
transcreveu a nota originalmente publicada no Monitor, de Campos
23 Uma análise sobre essa mesma atividade laboral e sua dinamicidade para
a cidade de Buenos Aires, na Argentina, está presente no capítulo de Florencia
Guzmán, neste livro.
158
dos Goytacazes. O caso ocorrera na fazenda Harmonia, 24 fregue-
sia de S. Pedro de Itabapoana, onde a escravizada Joaquina, ama
de leite da neta de sua proprietária, Sra. D. Francisca de Paula
Monteiro da Silva, fora encontrada, 12 horas após ter desaparecido,
“enforcada com um cipó em um galho de laranjeira”. Teria Joaquina
se matado? Se sim, talvez motivações vinculadas à maternidade,
ou melhor, ao sufocamento da maternidade, tenham sido a causa
de atitude extrema. Tensões semelhantes podem ter feito parte
do cotidiano de tantas outras amas como Joaquina. Em 1886, por
exemplo, a escrava Ambrosina se viu obrigada a dividir seu leite
entre seu filho Benedito e o bebê homônimo branco de quem era
ama de leite. Ambrosina foi acusada de ter matado, por asfixia, o
filho da família senhorial (MACHADO, 2012).
Embora a maternidade das mulheres escravizadas fosse
emudecida, havia resistência para tentar vivenciá-la da maneira
menos dolorosa possível. Essas mulheres lutavam para ter perto de
si seus/uas filhos/as, para conseguir e assegurar suas liberdades,
para poder amamentar seu filho um pouco mais etc. 25 A maioria
daquelas mulheres que atuou como amas de leite no Rio de Janeiro
do Oitocentos era descendente ou veio da África Central ou Centro-
-Oeste Africano (KARASCH, 2000, p. 45), onde, assim como em
outras partes do continente africano, ser mãe, desde a gestação
ao cuidado com os/as filhos/as, simbolizava status social (PATON,
2017, p. 261). Na diáspora, o desejo de ser mãe e o de não conceber
uma criança que nasceria na escravidão podiam coexistir (ROTH,
2017, p. 274), sua capacidade reprodutiva e seu amor materno eram
marcados pela experiência do cativeiro, sinalizando para tantas
outras ressignificações que marcaram a gestação, o parto, a morte
dos bebês, a maneira de criar os/as filhos/as (MORGAN, 2004, cap.
4). A maternidade da mulher escravizada foi marcada por distintas
experiências, tensão, dor, amor, cuidados, e, sobretudo, resistên-
cia – como, inclusive, mostram muitos dos capítulos desse livro.
159
Além da publicação de anúncios de oferta e de procura por
amas de leite, que auxiliavam o dinâmico comércio de nutrizes
de aluguel, parte da imprensa que circulou na capital do Império
colaborou para construção de representações negativas acerca das
mulheres que desempenhavam a atividade e tentou formar uma
opinião pública contrária àquele método de alimentação infantil.
Esse foi o mesmo caminho trilhado por vários médicos. A mulher
escravizada que atuava como nutriz de aluguel foi retratada como
displicente, pérfida e má. Sua maternidade passou a figurar nas
páginas dos periódicos de modo mais intenso e com traços mais
humanitários, com o crescimento do movimento abolicionista e o
estabelecimento das leis que trouxeram para o foco a separação
entre mãe e filhos/as e a liberdade destes/as – foi quando, além de
algoz, a mulher escravizada passou a ser retratada como vítima do
sistema escravista. Para além das representações, as referências
às amas de leite na imprensa descortinam muitos meandros do
cotidiano de uma atividade amplamente difundida na sociedade.
Na tentativa de formar uma opinião pública contrária ao
emprego de amas de leite para o aleitamento infantil, tanto a
imprensa quanto os médicos não tiveram êxito na causa. Mesmo
em seus núcleos familiares, médicos lançavam mão de nutrizes
escravizadas para alimentarem seus entes. Anúncios de oferta
e de procura de amas de leite escravizadas recheavam diaria-
mente os principais jornais da cidade até o ocaso da escravidão,
junto com opiniões contrárias a sua utilização como nutrizes de
aluguel. Nos anos iniciais do século XX, o mercado de amas de leite
e o emprego da imprensa como meio de divulgar trabalhadoras
ainda foram muito ativos (GIL, 2018; PEÇANHA, 2018), expandindo
inclusive para famílias mais pobres, indicando que, a despeito
de todo o empenho, o hábito continuava presente na sociedade
e contava com a mão de obra de ex-escravizadas e suas descen-
dentes, além de estrangeiras e brasileiras brancas.
160
Fontes
BRASIL. Collecção das leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Typ. Nacional,
1869.
O Beija-Flor, 02/06/1849.
O Globo, 12/01/1875.
161
Referências
CARNEIRO, Maria Elizabeth R. Procura-se uma “preta, com muito bom leite,
prendada e carinhosa”: uma cartografia das amas-de-leite na sociedade
carioca (1850-1888). 2006. 418 f. Tese (Doutorado em História) — Instituto
de História, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2006.
162
CARULA, Karoline. Darwinismo, raça e gênero: projetos moderniza-
dores para a nação em conferências e cursos públicos (Rio de Janeiro,
1870-1889). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2016b.
FREIRE, Jonis. “Que […] continue sob a vigilância de sua mãe a receber os
carinhos”: debates e impactos da Lei do Ventre Livre nas relações famili-
ares. In: BRITO, Luciana Cruz; GOMES, Flavio dos Santos; MACHADO, Maria
Helena P. T.; VIANA, Iamara (org.). Ventres livres? Gênero, maternidade
e legislação. São Paulo: Editora Unesp, 2021, 319-339.
163
50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 334-340.
164
PIMENTA, Tânia S.; BARBOSA, Giselle M. O ofício de parteira no Rio de
Janeiro imperial. Revista de História Regional, v. 21, p. 485-510, 2016.
TURNER, Sasha. The nameless and the forgotten: maternal grief, sacred
protection, and the archive of slavery. Slavey & Abolition, v. 38, n. 2, p. 232-50,
2017b.
165
EXPERIÊNCIAS DE MATERNIDADE ENTRE
TRABALHADORAS DOMÉSTICAS LIVRES NO RECIFE
DA ÚLTIMA DÉCADA DA ESCRAVIDÃO (1880)
Introdução
O que as obras de intelectuais como Caio Prado Jr., Gilberto
Freyre, José Lins do Rego e Joaquim Nabuco, que compõem o amplo
e plural pensamento social brasileiro, têm em comum? As quatro
evocam imagens belas e suaves de amas de leite e “mães-pretas”,
mães generosas, e produzem o elogio da afetividade e da ternura
do seio da mulher negra que, enquanto escrava, egressa ou descen-
dente da escravidão – amamentava e contava histórias que embala-
vam a infância de meninos brancos. Imagem suavizada, terna,
cândida, que põe sombras sobre as dores da escravidão. Mas põe
sombra, também, sobre as experiências de maternidade de mulheres
livres e libertas, negras e mestiças que, na função de trabalhado-
ras domésticas, protagonizaram duras experiências no cuidado e
criação de seus próprios filhos e filhas nas cidades brasileiras do
século XIX e no pós-abolição.1 Terminada a escravidão, a ama de
leite que cuidou dos filhos brancos, convertida em mãe-preta, terá
um trono, senão real, ao menos literário, forjado com os elemen-
tos da memória (NABUCO, 2004; REGO, 1970; FREYRE, 1964; PRADO
JR., 1996; RONCADOR, 2008). A trabalhadora doméstica negra e
parda, a mãe sem suportes, terá que criar suas filhas ao mesmo
tempo em que trabalha para patrões e patroas que lhes tomam
a maior parte do tempo. Como conciliar os exigentes papéis de
166
maternidade e de trabalhadora doméstica nos anos próximos à
Abolição e no pós-Abolição? Como defender a honra das filhas e
executar as tarefas diárias? Teria a casa patriarcal, nos tempos da
escravidão, cumprido o papel de protetora de todos os dependen-
tes, incluída aqui, a proteção da honra das filhas das domésticas?
Mães livres e libertas, nesta condição, poderiam conduzir suas
filhas para a casa dos patrões e patroas? Isso garantiria a preser-
vação da honra de suas filhas?
O texto discute a maternidade de trabalhadoras domésti-
cas, mulheres livres pobres, marcadas pela escravidão e pelo
racismo na última década da escravidão. O debate se desenvol-
verá em torno do paternalismo, dos direitos costumeiros no
Brasil do século XIX, da categoria honra/desonra (GRAHAM, 1992;
SILVA, 2016). Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que o
conceito de honra estava em intenso processo de redefinição
jurídica no Brasil dos séculos XIX e XX. Se a honra dita condutas,
prescreve comportamentos, anuncia a boa ou má reputação de
pessoas, muitos juristas estavam dispostos a entender a honra
como um mecanismo de proteção da família. O debate jurídico,
contudo, não elide da honra componentes subjetivos e precon-
ceitos diversos. Cor, classe social, idade, gênero, vínculos com
a escravidão, comportamentos, quando passavam pelo crivo
público, poderiam dificultar o acesso a prestígios e a direitos,
em especial para mulheres negras livres e libertas que trabalha-
vam, muitas vezes, fora de casa (CAULFIELD, 2000, p. 61, p. 95).
Na prática, uma sociedade marcada pela desigualdade racial,
pela escravidão e pelo paternalismo, enxergava a honra como
um atributo/comportamento inerente às classes superiores,
homens e mulheres brancos. Homens e mulheres negros ou
mestiços, por isso mesmo precisavam lutar duramente para o
reconhecimento público de sua honra e, caso esta fosse negada
ou questionada, defendê-la na realidade de suas vidas. Para estes,
a honra é sempre um embate e um risco (PITT-RIVERS, 1992,
p. 18–9). Do mesmo modo que raça/cor e classe atuam no que
Muriel Nazzari designa como “sistema de honra e vergonha”,
também o gênero forja um duplo padrão de moralidade contra-
ditório que, por um lado, erigia o masculino como “conquista-
dor”/sedutor de mulheres e, por outro, exigia corpos femininos
castos e controlados, tidos como mais vulneráveis à sedução e aos
167
raptos. Mulheres de famílias de estratos sociais e raciais inferio-
res tinham muito poucos parentes masculinos que pudessem
lhes proteger (NAZZARI, 1998, p. 105).
Em segundo lugar, o paternalismo implica, de um lado, seu
sentido normativo que prescreve comportamentos de afetividade
e de reciprocidade entre senhores e subalternos, um modelo de
magnanimidade e deferência esperados, um “calor humano” e, por
outro lado, aponta para o uso descritivo do conceito pelo reconhe-
cimento de riscos, teatralidade gestual, performances, bem como
práticas costumeiras que conformam uma permanente arena
política entre os sujeitos da relação (THOMPSON, 2002, p. 25–85;
THOMPSON, 1979, p. 18). Estudos pontuais sobre as experiências
de maternidade de trabalhadoras domésticas livres e libertas, no
Brasil do século XIX, podem ser uma forma interessante de testar
os limites do paternalismo – e da chamada família patriarcal –,
bem como os limites dos discursos emergentes que buscavam
construir a moderna família burguesa, pautada em discursos sobre
moral e higiene, que erige à esposa-mãe como símbolo de padrão
de família burguesa “salubre” e “segura” (ARIZA, 2017, p. 62, 66).
168
pobreza e dependência, no contexto de práticas sociais patriar-
calmente estruturadas e de um legado da escravidão ainda forte.
Uma percepção comum entre os grupos sociais abastados e
pessoas brancas remediadas, no período, era a de que negros e
mulatos não tinham honra. Cabe verificar como diversos tipos
de subordinação se imbricavam na construção das experiências
maternas de mulheres pobres, negras e pardas livres.
Nem proteção, nem honra. Esse é um modo rápido de definir
grande parte das experiências de negras e mestiças em situação
social de miserabilidade no Brasil do século XIX. Em teoria a casa
deveria, pelos códigos paternalistas, ser o lugar da proteção,
da segurança, da estabilidade, por oposição à rua, seu contrá-
rio simbólico (GRAHAM, 1992, p. 15-21). Donata e sua mãe, como
tantas pessoas pobres, precisavam estar instaladas em uma casa
considerada honrada.
Rita de Cássia era analfabeta, doméstica, de 40 anos, solteira,
e engravidou, por volta dos 27 anos, de um português chamado
José Carvalho da Costa, proprietário de uma botica no Pátio do
Terço, região central do Recife. Provavelmente não era uma mulher
branca. Era, muito possivelmente, parda ou negra, pois sua filha
ora é descrita como “branca” (por parte da acusação), ora como
pertencente a uma raça de “natureza ígnea” (pelo advogado do réu).
Seja como for, não era fácil a atribuição racial, talvez porque Donata
fosse uma “mulata” de tez bastante clara.2 De alguma forma, a mãe
lhe propiciou certa instrução básica, pondo-a na escola de primei-
ras letras, já que ela sabia ler e escrever. As duas moravam em uma
casa sublocada com mais duas outras mulheres e seus respectivos
amásios. Ao sair para trabalhar, era na companhia destas mulheres
que Donata ficava, quando não ia ajudar a mãe na casa do patrão.
Ao que tudo faz crer, Rita julgou que era mais honroso que ela e
sua filha morassem na casa do patrão, o que também diminui-
ria as despesas de aluguel. Sentindo-se com respaldo para isso,
declarou a Augusto Moreira da Silva que tinha poucos recursos
para manter a filha em uma casa alugada, e pediu-lhe para viver
no trabalho com a filha, e ele então franqueou a casa. Segundo
2 Se os médicos afirmaram que ela era branca, o presbítero a batizou como parda.
Para a persistência, no Pós-Abolição, da dificuldade de classificação de cor, ver
Caulfield (2000, p. 281-291).
169
Rita, ela estaria também “cedendo a instâncias” de Augusto. Ou
seja, ele ofereceu a casa dele.3
Augusto Moreira da Silva era português, solteiro de 22 anos,
pequeno comerciante, dono de uma “casa de molhados”, alfabe-
tizado, homem de condição remediada. Ele tinha uma criada,
provavelmente para todo o serviço,4 e um caixeiro para lhe ajudar
no comércio. Ou seja, era um dos tantos habitantes do Recife que
não podiam dispor dos serviços de vasta criadagem. Em torno
desses personagens – Donata, Augusto e Rita – outros se insinuam.
Há alguns fatos que os unem: os laços de dependência da criada
e sua pobreza; a anuência do patrão em receber as duas em sua
casa; o ato sexual propriamente dito entre Augusto e Donata,
admitido pelo próprio patrão como algo “natural”, que se deu na
noite do dia 23 de junho de 1885; e a promessa deste último de
que, se viesse a casar com outra pessoa, “a ampararia [Donata]
conforme permitissem suas posses”.5
O tom de Augusto é claro: aceitar que sua criada e a filha
desta residissem em sua casa não significava que ele se tornasse
imediatamente responsável pela honra de Donata. Ao contrário,
e negando o depoimento de Rita, declarou ter dito para ela “mais
de uma vez” que não queria em sua casa moça que fosse tida
como donzela, e que, quando “se dispôs a deflorar”, se no futuro
casasse com outra pessoa, “ampararia conforme permitissem
suas posses”. Mas Rita, por sua vez, disse que ele, de fato, fizera
promessa de casamento, que “estaria pronto a reparar o mal por
meio de casamento” (o trecho entre aspas encontra-se grifado
no original). A mãe disse que, em função de sua pobreza e pelo
170
desejo de ver sua filha amparada, não pôde resistir à “preten-
são” de Augusto. Esse é o pequeno enredo que interessa por ora.
Para não haver dúvida sobre o defloramento, e não obstante
Augusto ter dito que “não entende desses negócios”, o auto de
corpo de delito confirmou que Donata, “branca”, estava realmente
deflorada, e que houve “cópula carnal”. Mas, como se verá, o teor
do texto médico, apesar da aura de objetividade que o cerca, dá
lugar a significados bem diferentes. Antes das falas das testemu-
nhas, deve-se mencionar que a mãe de Donata não foi a Autora
da Ação, uma vez que, sendo atestada a sua miserabilidade, fora
equiparada pela lei à condição de menor e, portanto, a Promoto-
ria Pública assumiu a condição de Autora. 6
Foram muitas as testemunhas. Ao todo, foram geradas três
inquirições, além dos autos de perguntas de Donata, de Augusto e
da mãe. As testemunhas, com exceção de uma criada que coabitava
com Donata antes dela ir morar na casa do réu, eram todas pessoas
de condição mais ou menos remediada. Em favor da criada e sua
filha, testemunharam um pintor, um calafate, um encadernador,
um alfaiate, uma criada, uma parteira e um negociante (todos na
primeira inquirição); e na segunda, temos um mestre de refina-
ria, um sinaleiro, 7 um funileiro, e repetem-se os testemunhos do
encadernador e do negociante; por fim, favoráveis ao português,
depuseram três negociantes (um português e dois brasileiros),
um proprietário e mais três testemunhas cuja profissão não foi
mencionada. 8
A primeira testemunha, o pintor Virgínio José da Costa Santos,
analfabeto, sabia pouco acerca dos envolvidos. Mas atestou que
Donata tinha “muito bom comportamento” e que “era reputada
como virgem”. Em uma venda, soube que ela havia ido residir
“em casa de um português”. Adolpho Rodrigues de Lima, calafate
paraibano também analfabeto, sabia mais, mesmo porque era
amasiado com uma das mulheres com quem Donata dividia a
6 Processo, fl. 10. Ver atestado pároco da Matriz de São José do Recife.
7 A grafia no documento é “senaleiro”: o termo sinaleiro indica o marinheiro
encarregado de dar sinais a bordo ou o empregado das estações de estrada de ferro
que fazia sinais aos comboios. Uma espécie de “guarda de trânsito”.
8 As inquirições estão situadas em Processo, fls. 12-21; fls. 29v-42v; e a última
inquirição da fl. 58 a 63v.
171
habitação antes de ir morar com Augusto. Conhecia Donata e seu
comportamento, soube do episódio do defloramento e afirmou
que, quando a mãe saía para a casa do patrão, a filha ficava com as
duas mulheres. Por fim, a mãe teria dito a ele que ia levar a filha
para a casa de uma família. Sobre Augusto, disse apenas que sabia
de sua fama de requestador, mas demonstrou conhecer pouco
mais do que isso, embora tenha mencionado uma certa Thereza
na história sexual do réu.
O enredo vai ficando mais interessante à medida que outras
testemunhas trazem elementos novos. Antonio Geminiano de
Carvalho, alfabetizado, solteiro de 19 anos, era encadernador. Além
de reforçar que Donata era virgem até deixar a casa onde residia,
afirmou conhecer Augusto e “que ouve dizer que tem ele seduzido
moças; que já não é a primeira questão de defloramento em que
ele tem sido envolvido”; e o depoente, morador no número 39 da
rua Padre Floriano, disse que Augusto, no dia mesmo da inquirição,
fora a casa número 41 (portanto, vizinha à casa do depoente) solici-
tar a um português que não se colocasse contra ele no processo. O
depoente afirma como se tivesse flagrado a cena: na saída de Augusto
da referida casa, Antonio teria ouvido um tal de Camilo dizer “que
já não era a primeira vez que o mesmo Augusto procedia mal a
respeito de honra”. Crescem as suspeitas de que o réu é mesmo um
sedutor de criadas. A quarta testemunha, o alfaiate José Tertuliano
dos Santos, também alfabetizado, contribuiu pouco: disse que, apesar
de vizinho do réu, “nunca ouviu atribuir-se-lhe fatos semelhantes”,
embora tenha ouvido falar no defloramento. Talvez não quisesse
se indispor com o vizinho.
Segue-se o testemunho da criada Thereza Maria de Jesus,
solteira de mais ou menos 40 anos e analfabeta. Seu depoimento
confirma a importância das redes horizontais de ajuda mútua para
mulheres e famílias pobres em situações de instabilidade (JELIN,
1994, p. 82). Thereza, apesar de solteira, vivia com um homem.
Sobre Donata, disse:
172
mãe dizendo esta que a ia levar para a casa de uma família.
173
diversas lutas políticas em Pernambuco nestas décadas, segundo
Cavalcanti Júnior (2001), e a memória destes conflitos perdurou
ao longo da segunda metade do século XIX.
O negociante João Walfrido, alfabetizado, casado, também
seria, segundo Augusto, seu “desafeto”. O depoimento, “apaixo-
nado” ou não, foi forte:
11 Processo, fls. 20v. e 21. O discurso de Walfrido deve ser lido como os textos
produzidos pelos conquistadores espanhóis da América e analisados por Todorov:
menos como um enunciado verdadeiro de fatos ocorridos, do que como enuncia-
dos verossímeis, passíveis de serem recebidos e cridos pelos contemporâneos.
Ver: Todorov (1999, p. 63–4).
12 Remeto o leitor à personagem criada por José Lins do Rego, chamada Maria
Chica, uma mulata lavadeira que despertava o tesão de Carlos de Melo; na pro-
dução acadêmica, limito-me a duas interpretações clássicas que se opõem em
muitos aspectos, mas não discordam nesse tópico (FREYRE, 1964; FERNANDES,
1978, p. 176).
174
palavras de Walfrido, para os ouvidos das autoridades judiciais
(muitas das quais talvez enxergassem as escravas domésticas e
criadas negras/mestiças como objetos sexuais), soavam com ares
de uma verdade universal na sociedade brasileira do período. Como
ele mesmo disse, era “voz pública” os fatos que acabava de narrar.
Augusto estava se complicando. O segundo interrogatório
não lhe foi muito favorável. O mestre de refinaria Theotônio da
Fonseca Sena acrescentou que Rita nunca deixava a filha sozinha,
tendo “todo zelo pela filha, a ponto de a castigar pela menor falta”, e
“levando-a e trazendo-a sempre em sua companhia”, o que indicava
que a mãe, mesmo na ausência da emblemática figura patriarcal
masculina, protegia como podia a honra da filha.13 Sendo pergun-
tado sobre o “estado” das pessoas que moravam na casa da mãe
de Donata e da própria Rita, o depoente disse ignorar. A pergunta,
claro, não era inocente.
O sinaleiro Ulysses Benjamim da Roza e Lima também trouxe
tintas novas ao caso. Estando na loja do funileiro Theotônio, na rua
Imperial, ouviu dizer do defloramento de Donata. Mas dias depois,
tudo parecia se confirmar. Encontrou Benjamim, ex-caixeiro de
Augusto que tinha sido dispensado “porque tinha falado mal da
família do mesmo patrão”. Ulysses, então, estranhou, pois Augusto
não tinha família no Recife, e Benjamim disse que se referia à
Donata, e que estava certo de que Augusto a deflorara. Ulysses
gostava de um enredo e, indo à venda de Augusto, disse-lhe “bravo
Senhor Augusto”, ao que este teria respondido no “mesmo tom de
caçoada” com que o sinaleiro fez a pergunta: “Não é de sua conta,
faço em você o que fiz nela”. 14 Augusto, sem dúvida, à moda do
patriarcalismo, estava se gabando de suas aventuras de garanhão.
As demais testemunhas nessa segunda inquirição não trazem
mais elementos novos. Era hora de a defesa agir.
A história é longa. Augusto alegou ser vítima de perseguição
“hedionda” e persistente movida pelo subdelegado do 2º Distrito
de São José, José Hermógenes de Oliveira Amaral, por este ter
considerado uma ofensa a cobrança de pagamento de uma dívida
que se avolumara. Hermógenes também teria se sentido ofendido
porque o português não teria se dirigido a ele pelo título de “Sr.
175
Subdelegado”. Este, disse Augusto, já teria aproveitado uma ocasião
para acusá-lo de ter roubado uma escrava de um grande proprietá-
rio do município de Escada que, usando sua autoridade senhorial,
já há muito a teria desvirginado. Augusto, talvez orientado por
seu advogado, utilizou-se da clássica imagem de senhores de
engenho promíscuos – landlordismo –, defloradores de escravas,
para se defender. O senhor de engenho de Escada, que nem tinha
a “matrícula” de posse da escrava, teria feito uso de seu droit de
jambage, ou seja, faz alusão ao direito senhorial feudal da primeira
relação sexual da recém-casada de seus subalternos. 15 Após esse
ataque ao escravocrata e ao subdelegado, segue-se a desqualifi-
cação da reputação de Donata. À pergunta “Quem é a ofendida?”,
o advogado do réu respondeu:
15 Para as expressões landlordismo e droit de jambage, ver processo, fl. 45.
16 O documento não está com folhas numeradas nesse ponto da defesa, mas
pode-se inferir pela continuação do registro que vai da fl. 44 à 53v; para a alegada
perseguição, Processo, fl. 44-45v; sobre quem seria Donata, Processo, fl. 45v-46.
176
subdelegado, do escrivão e de dois praças, a criada e sua filha não
teriam acusado Augusto, um “estrangeiro desprotegido”.17 E aqui
o argumento racial aparece de modo evidente: “se a ofendida é
jovem, deve ter-se em vista que o clima, a raça a que pertence,
o exemplo provocando o onanismo, podiam despertá-la aos dez
anos, e assim entregar-se a relações ilícitas em uma idade em que
outras, fora de semelhante meio, ainda são crianças”. O ataque
fundamentado no discurso racialista tem aqui seu ponto mais
contundente, ainda que Donata tivesse traços brancos. E raciali-
zar a sexualidade adequava-se perfeitamente às cínicas declara-
ções do advogado de que Donata era “uma mulher perdida” e de
que Augusto “apenas fez o que outros faziam”. 18
Daí em diante, segue-se trecho desqualificando os testemu-
nhos. Ao fazer isso, o advogado tem especial prazer em atingir os
depoentes: Adolpho como amásio de uma das mulheres perdidas
com quem Donata morava; Thereza Maria de Jesus, que antes era
ama, agora se tornou prostituta e mentirosa; a parteira, mulher sem
brio, sem dignidade, cuja fala se construiu sob “sandices”; Walfrido
é seu inimigo capital e aqui a defesa, de forma iconoclasta, fala
que as autoridades locais têm seus protegidos, fazendo com que
verdadeiros defloradores fiquem impunes, arranjando casamento
para os tolos que temem a cadeia.
Vamos ao que afirmaram as testemunhas favoráveis ao
comerciante. Antonio Marques d’Oliveira, também comerciante
e português, disse que, “por passar diariamente na porta da casa
em que reside Donata”, sabia que a casa era uma “habitação de
prostitutas”, e disse que “algumas vezes até havia samba nos quais
esta [Donata] tomava parte”, bem como discussões “entre Donata
e as prostitutas, em cujas discussões usava-se de uma linguagem
indecente de parte a parte”. 19 Sabia muito, ao que parece, para
quem só passava em frente. A referência a sambas é interessante:
de certa forma, é um modo de racializar e sexualizar o discurso,
uma vez que, em tom pejorativo, seria o lugar de ajuntamentos de
177
negros e mulatos e, portanto, assumia conotação de um lugar de
orgias e desordens. Festas populares eram consideradas “bárbaras
e vulgares” (ESTEVES, 1989, p. 51). Ele também alegou que a própria
Donata teria dito a Augusto que já havia sido def lorada, e que
o motivo da mãe, no dia 23 de junho, conduzi-la para a casa de
Augusto era para que ela não fugisse com um homem que não
tinha meios para sustentá-la. O texto transmite a impressão de
que a criada se esforçava para proteger a honra da filha, mas sem
sucesso. Outro depoente também afirma que a mãe havia conduzido
a filha para a sua casa, (ele teria um tipo de escola de aprendizes),
e que este, vendo o comportamento de Donata, não consentiu
que esta permanecesse, provavelmente para não haver nenhum
incidente.20 Apenas uma testemunha, o proprietário Urbano José
Carneiro, disse que a doméstica Rita era “uma mulher de má vida”,
mas sem trazer detalhes. Sobre Donata, disse que ele, “passando
pela casa e pedindo a Donata para recebê-lo, esta acedeu nisto
e recebeu-o e nessa ocasião disse-lhe que tinha sido deflorada
por um moço cujo nome não quis declinar”.21
Tudo isso não impediu que Augusto fosse pronunciado no art.
219 do Código Criminal, no dia nove de setembro de 1885, sendo
passado mandado de prisão e pagamento de uma fiança provisória
de 1 conto e 500 mil réis.22 Augusto, julgando-se perseguido por um
tribunal local “infenso a portugueses”, recorreu a Sua Majestade
Imperial, alegando ter sido agredido fisicamente pelo escrivão do
subdelegado e por um policial “que lhe repetiam dever conhecer
seu lugar, pois era marinheiro!”, para fazê-lo assinar a confissão
que originou os autos.23 Independentemente da recepção da Corte
para esse tipo de apelação, o fato é que o Tribunal da Relação de
Pernambuco teve autonomia para manter ou reformar a sentença,
e julgar a apelação de Augusto segundo a jurisprudência vigente.
A apelação se fundamentou em vários pontos. O foco principal
178
estava na distinção jurídica entre ação pública e ação particular,
e na condição de miserabilidade de Donata. Para o advogado de
Augusto, o Promotor tinha agido indevidamente ao dar queixa de
um crime que era particular, e que só ao ofendido caberia esse
direito. Para esse argumento ter valor, era preciso que Rita Maria
de Cássia não fosse indigente, ou seja, não carecesse de proteção
oficial para se desagravar. E, pelos documentos e depoimentos
prestados, estava provado que ela estava mesmo na condição de
miserabilidade que impunha à Promotoria o dever de mover a
ação. É quando aparece no processo um documento assinado de
próprio punho por Donata, em nome da mãe, pelo qual a criada não
apenas dizia não se considerar miserável, como afirmava que sua
filha estava contratada para casar, e solicitava que se pusesse um
fim nessa história para não ver a honra de sua filha discutida em
tribunal. Por fim, sendo a ação particular, ela concedia o perdão
e ordenava “completo silêncio sobre o mencionado processo”. Se
o caso já estava encerrado de modo satisfatório, com a punição
do infrator, o que fez a criada mudar de ideia e perdoar o réu?
É possível que, após o desfecho desfavorável, Augusto tenha
entrado em acordo com Rita prometendo “reparar” a honra de
Donata pelo casamento (especialmente por perceber que não tinha
muita chance de escapar judicialmente); antes disso, contudo,
é bastante plausível que Rita só tenha levado o caso ao subdele-
gado porque seu patrão ou não prometera nada no que se refere
ao casamento logo de início, evitando um acordo entre as partes,
ou, se prometera, não foi muito enfático para despertar confiança.
É de se imaginar que os boatos tenham se avolumado, e, além
disso, que mesmo o subdelegado tenha contribuído para que Rita
levasse o caso a julgamento. A partir de então, com o processo se
desenrolando e Augusto mais fragilizado, este decidiu negociar,
oferecendo o casamento e a restituição da honra em troca do
perdão e do fim da ação. Selado o acordo, fez-se o documento, e
Donata assinou, talvez coagida pela mãe. Mais uma vez a criada,
na ausência da figura paterna, surge como a guardiã da honra da
filha, decidindo por esta o seu destino, buscando um casamento
que repararia a ofensa.24 Sem os tradicionais atores masculinos,
marido, irmãos, a doméstica Rita de Cássia precisava assumir o
179
controle, o que não era incomum no meio popular. A defesa da
honra de filhas, a luta pelo reconhecimento de reputações era
constante, e mulheres não necessariamente esperavam pelos
elementos masculinos (JOHNSON; LIPSETT-RIVERA, 1998, p. 12).
As respostas anteriores ganham algum respaldo na própria
desconfiança lançada pelos julgadores de que Augusto teria obtido
essa declaração da criada, datada de 30 de julho de 1886 (portanto
um ano depois do fatídico dia 23 de junho de 1885), “sob promessa
de casamento”, como o próprio documento deixava claro. Mas
que: “Conseguida, porém, a declaração, não mais quis realizar o
casamento o ofensor. É este um fato conhecido na cidade, onde é
conhecido também o procedimento perverso do ofensor.”25
Augusto, após ter retomado ou iniciado uma negociação
com sua criada, fizera uma promessa oportunista, de última
hora, esperando o fim do processo. O tempo foi passando, e ele,
quase um ano depois, não tinha ainda casado, como indica o texto
anterior, datado de 10 de junho de 1887. A Justiça também atentou
para o fato de que, na apelação movida, o réu não tinha anexado a
petição de Rita de Cássia, que só tinha sido apresentada durante
a defesa e mesmo assim sem o termo de juntada, uma espécie
de comprovação de que o documento tinha de fato sido recebido
pelo escrivão. Ou seja, a justiça pôs em suspeita a própria legiti-
midade do documento.
De fato, a jurisprudência estava seguindo rumos que não
ajudavam o réu. Em primeiro lugar, a Justiça entendeu a petição
assinada pela filha da criada como um engodo de Augusto para
obter o perdão de sua criada, fazendo-a assumir publicamente
uma condição que não era a sua. Rita, sendo miserável, não podia
perdoar.26 Em uma edição do Código de Criminal do Império, datada
de 1885, portanto próxima do caso de Donata, o jurista Francisco
Luiz foi enfático:
180
e policiais, na acepção do nosso; em uma palavra, a todos
os crimes, seja ou não o ofendido pessoa miserável,
seja ou não afiançável o crime, seja ou não o criminoso
preso em f lagrante delito. Deve desaparecer uma das
mais freqüentes causas da nulidade dos processos, da
perempção das ações criminais. (LUIZ, 1885, p. 337)
181
sexual, não obstante não serem juridicamente escravas. Rita, mãe
e solteira, já sabia como os homens agiam, e tentou resguardar a
honra de sua filha como pôde, para esta ter um destino diferente:
fez a filha estudar primeiras letras, buscou colocá-la em uma
escola de aprendizes e, por fim, conduziu-a à casa de seu patrão;
depois de tudo, ainda tentou negociar com ele para não ver a
filha desamparada. Talvez este fosse o único engano dela nesse
esforço todo, pois seu patrão não se julgava no dever patriarcal
de proteger a honra de seus dependentes. Para ele, o patriarca-
lismo significava pouco mais do que a posse de direitos sexuais
sem obrigações de casamento; para a trabalhadora doméstica
solteira, que tinha uma filha jovem, o patriarcalismo significava
uma luta constante por alguma reciprocidade, ainda que diferen-
ças de gênero, cor e classe impossibilitassem uma relação de todo
igualitária. Nessa luta, negras e mestiças pobres tinham na honra
o elemento primordial de negociação. A desonra, originada com
a perda da virgindade, situava-as no limite próximo da prostitui-
ção. A honra, mesmo não sendo garantia plena, era um capital
simbólico importante com o qual contar em momentos de dificul-
dade. Donata, pelo visto, não teria uma vida muito diferente de sua
mãe. Sendo mulher, filha de uma trabalhadora doméstica, racial-
mente estigmatizada, ela desde cedo aprenderia, por um lado,
a importância de ser honrada e, por outro, mais difícil ainda, a
importância de parecer honrada aos olhos do julgamento público.
182
pois, regra geral, pagava pelos serviços de uma criada e recebia
ainda os serviços, sem salário, de uma auxiliar.
Ao contrário de Donata, deflorada pelo patrão de sua mãe,
Annizia protagonizou outra história. Ela declarou ser “do serviço
doméstico”, não obstante minha certeza de que só sua mãe fora
contratada pelo inglês. Na prática, porém, em função do horizonte
de possibilidades vigente, mesmo para alguém alfabetizada e com
condições de assinar o próprio nome, a adolescente de apenas 13
anos já se entendia como criada. Suspeito ainda, não sem indícios,
que sua mãe era ex-escrava, embora não conste muita informação
sobre seu passado. Se essa suspeita se confirmar, então Annizia
era a primeira geração livre. 28 Contudo, Annizia fora batizada
como branca, o que em nada invalida minha suspeita. Atribui-
ções de cor mudavam ao longo da vida de uma mesma pessoa, e
Annizia fora chamada de “mulatinha” por uma testemunha e de
“semibranca” no exame médico de corpo de delito. 29 Em suma,
suas características físicas provocavam dúvidas entre os contem-
porâneos que a viam: branca no batismo do pároco, mulatinha
no olhar da testemunha e semibranca para a autoridade médica.
Annizia era pernambucana, como os demais envolvidos. No
inquérito, a primeira a ser ouvida foi Aguida Maria da Conceição,
doméstica de mais ou menos vinte e cinco anos. Disse que no dia
vinte e cinco de julho de 1883, entre dez e onze horas da noite,
bateram na sua porta e ela, abrindo, viu Annizia acompanhada por
Neco do Valle (alcunha de Manoel). A menina foi pedir um agasalho
à doméstica, mas terminou ficando por lá mesmo durante dois ou
três dias, sem o conhecimento da mãe, ao menos no início. Neco
do Valle, enteado de certo Doutor Cardim, depois de deixar Annizia
com a doméstica, foi para sua casa que ficava na vizinhança. Após
três dias, e sendo procurada pelo subdelegado, Annizia fugiu da
casa de Aguida pelos fundos, em direção à casa de Neco do Valle.
Durante esses dias, antes da segunda escapada, Neco do Valle a
28 O documento não expressa se a cozinheira era livre ou liberta. Mas vários
documentos no processo criminal apontam para a permanência de estreitos
vínculos com ex-escravizados.
29 IAHGP, Arquivo Crimes e Denúncias, Caixa 1883-1884. Denúncia contra
Manoel do Valle, Pernambuco, fls. 3v, 11v e 13v. Referenciado à frente como
Denúncia, Manoel do Valle, seguido da folha.
183
teria encontrado duas vezes, prometendo-lhe “alugar uma casa na
casa forte para botá-la”.30 Por isso, alimentada por essa promessa,
quando o subdelegado foi procurá-la, ela correra para os matos
que iam dar na casa de Neco. No auto de perguntas, ela também
dissera que passou uma noite na casa do padrasto de Neco, confes-
sando à autoridade policial que só tivera relações “amorosas” com
ele, e que foi na cama da própria Aguida Maria. Aparentemente o
dono da casa (marido ou amásio de Aguida, de nome Juvencio) e a
própria doméstica saíam para realizarem seus trabalhos e ela ficava
sozinha na casa. A própria Annizia deu a entender, todavia, que a
dona da casa sabia de tudo, pois o ato teria acontecido “em casa do
Juvencio na cama da própria dona da casa que assim consentiu.”31
Ora, a doméstica surge aqui como cúmplice do rapto de Annizia:
acolheu-a em casa, cedera a cama para o ato sexual, enquanto a
mãe de Annizia a procurava sem resposta, tendo de recorrer ao
subdelegado. Annizia, ao dizer-se deflorada por Neco, afirmou que
este pedira que ela “dissesse que tinha sido Severino amante de
sua Mãe.”32 Voltaremos a falar desse “amante”.
O subdelegado ouviu como testemunhas Maria Ignacia da
Conceição, engomadeira, que morava na rua da Mangueira, logo
na vizinhança da casa do inglês onde ela e mãe viviam; Augusto
Pater Cezar, que vivia “de negócio”, também morador na rua da
Mangueira; e Francelino da Costa Ferreira, criado do inglês William
Elliot como a mãe de Annizia, logo personagem excelente para
iluminar algumas questões do caso. O que quero entender (demons-
trar?) é a relação da mãe de Annizia com sua patroa e com seu
companheiro de trabalho, e da própria Annizia com a doméstica
Aguida; ao mesmo tempo pretendo compreender como a escravi-
dão marcava os caminhos de Annizia e sua mãe.
O que dizem as testemunhas? A engomadeira Maria Ignácia,
solteira de trinta anos, teria visto, no dia 25 de julho, depois das
7 horas da noite, Neco do Valle, com o qual conversou “duas ou
três palavras”, notando ainda, apesar da escuridão, que na frente
dele ia “uma moça” que não conheceu de imediato, só vindo a
30 Para o depoimento de Aguida, ver Denúncia (Manoel do Valle), fl. 8-8v; sobre
o trecho citado, ver respostas de Anizia ao Auto de perguntas, fl. 9.
31 Denúncia, Manoel do Valle, fl. 9-9v.
32 Denúncia, Manoel do Valle, fl. 9v.
184
saber no dia seguinte que se tratava de Annizia e do rapto ocorrido
na “casa do estrangeiro Doutor William Elliot”. Disse ainda que,
dias depois, Neco teria afirmado “que não casava e que em último
caso tinha dinheiro para dotá-la pelo que nada lhe acontecia.”33 O
negociante Augusto, casado, de cinquenta anos, foi mais sucinto:
“Disse que viu passar o Neco do Valle com uma mulatinha e que
pela escuridão da noite não pode lhe distinguir, porém que no
outro dia soube ser a menor Annizia que fora raptada pelo Neco
do Valle.” 34 Agora o companheiro de trabalho da mãe de Annizia
dispunha de mais informações.
Francelino, de “vinte anos mais ou menos”, solteiro, conhecia
a negociação de Antonia Maria da Conceição, mãe de Annizia, com
o patrão. Para ser cozinheira em sua casa, ela teria “declarado ao
seu patrão que só podia vir para sua casa trazendo sua filha que
não a podia deixar só em casa ao que seu patrão cedeu”. 35 Não
era uma negociação simples. A cozinheira foi franca e exigiu um
direito que nem todos os patrões estavam dispostos a reconhe-
cer. Ela impôs uma condição ao inglês, e este “cedeu”. France-
lino disse que o rapto da filha da cozinheira se dera logo oito dias
depois de elas estarem na casa, mais ou menos às oito horas da
noite. Dando por falta dela, “trataram de procurá-la dentro do
sítio”, mas em vão. Após essa primeira busca, “até a sua própria
patroa saiu com a Mãe de Annizia” a procurar na casa de conheci-
dos. Também não conseguiram saber o paradeiro dela. Só dias
depois, ficou-se sabendo. A mãe de Annizia teria encontrado
dois sapatos da filha dados pela patroa, e parece que perguntou
a ela se eram os mesmos que ela havia dado. Por esses sapatos, a
mãe descobriu onde estava a filha.36 Ou seja, o patrão inglês e sua
esposa (cuja nacionalidade não aparece nas fontes) faziam uso dos
mesmos códigos paternalistas locais de dar o calçado para seus
dependentes. Por outro lado, Antonia estava sabendo tirar dos
patrões o que lhe convinha: lugar para a filha ficar, e ainda algo
mais. Nesse sentido, ganha força a hipótese de que Antonia fizesse
uso de experiências já consolidadas em seu passado de escravi-
185
dão. Vasta bibliografia aponta para habilidades e ganhos possíveis
dentro da própria escravidão, arrancados dos senhores e senhoras
pelos subordinados: alimentos melhores, roças, maior mobilidade
espacial, constituição/manutenção de redes de parentesco, entre
outros (ARIZA, 2017, p. 151-71; MATTOS; RIOS, 2004, p. 170-98). As
táticas de resistência da chamada infrapolítica dos grupos subordi-
nados, decerto, não garantiam ganhos certos e irrevogáveis, mas
tinham alguma chance de êxito temporário, e eram instrumentos
aprendidos e acionados pelos subalternos em diversos contex-
tos (CHALHOUB, 2003, p. 61-62; SCOTT, 1990, p. 18-19, p. 183-201).
A escravidão entra mais explicitamente na história quando as
autoridades, fazendo o que sempre faziam, decidem investigar a
vida da cozinheira Antonia e de sua filha, e quando as testemunhas
passaram a mudar o tom dos discursos. De início, a engomadeira e
o policial Bento Pereira Bastos relutaram em atender à notificação
do Oficial de Justiça, dando a entender que não queriam se envolver.
Só depuseram no dia 8 de novembro de 1883, enquanto as outras
testemunhas foram ouvidas no dia 19 de outubro. Quando, por fim,
a engomadeira foi ouvida, não mostrou a mesma disposição em
colaborar com Annizia quando de sua fala no inquérito, e disse
“Que nada sabe com relação ao processo e que o seu depoimento
que se vê no inquérito policial não é verdadeiro”. 37 E calou. Pelo
depoimento de Francelino, tomado em outubro, fica-se sabendo
que as fofocas veiculadas entre o inquérito policial e a audiência
foram sempre no sentido de destruir a reputação das duas domésti-
cas, mãe e filha. O próprio criado do inglês, um tanto a contra-
gosto, admitiu, por insistência do advogado de Neco, “ter ouvido
dizer que a dita menor quando morava no Encanamento portara-
se mal pelo que a tinham por doida e açanhada [assanhada].”
Antes ele afirmou nada saber contra a reputação dela, e sobre o
episódio de rapto e defloramento, disse: “quem melhor sabe ou
deve saber é uma visinha de nome Maria Ignacia, […].”38
Mas a engomadeira não mudou o discurso sozinha. Maria
Aguida, que também se apresentou como engomadeira, disse
claramente que foi pressionada pelo subdelegado Pestana para
incriminar Neco, e que não sabia se fora ele ou não o deflorador
186
de Annizia. Em suma, ela teria incriminado Neco “para salvar-
se das ameaças que lhe fazia o subdelegado senhor Pestana em
presença do senhor Frederico subdelegado de Apipucos e o Senhor
Mandú, escrivão do mesmo Senhor Pestana e um vizinho deste”.39
Não apenas as formalidades jurídicas são armas de dois gumes.
Também as fofocas têm significados contraditórios na vida dos
grupos populares. Elas podem unir as domésticas em determina-
dos contextos e afastá-las em outros. Ao mesmo tempo que a fofoca
exerce funções integradoras (grupos se “informam” sobre a reputa-
ção de outros grupos, e assim marcam distinções), a fofoca também
provoca danos no interior de um mesmo grupo, convertendo-se em
ataques entre iguais (FONSECA, 2004, p. 42-45). Aguida, de fato, dera
acolhida a Annizia, mas a solidariedade ficou nesse limite. Na briga
de gente grande, na rixa entre as autoridades policiais e o padrasto
de Neco (como parece ser o caso), as domésticas se situaram em
campos opostos. Mas onde a escravidão entra no caso? O curador
de Neco, tendo orientado seu padrasto e tutor a investigar a vida de
Annizia e Antonia, pediu uma espécie de atestado de conduta delas
ao ex-subdelegado do Poço da Panela, certo João Baptista da Ressur-
reição. Este, então, contou a triste história de Annizia e Antonia,
cenas acontecidas no ano anterior. Severino, descrito como pardo,
amásio de Antonia, era ex-escravo, e teria espancado e deflorado
Annizia, uma vez que esta resistira ao defloramento. O avô desta,
homem já idoso, teria “sucumbido de desgosto”. Antonia foi tida
como um mau exemplo para a filha, cuja moral era reputada à má
educação da cozinheira, que era amasiada com Severino “ainda
quando escravo, consentindo também no amasiamento da outra
filha mais velha, e ainda menor, com Damião, mano do referido
Severino, e nas mesmas condições deste”.40
Embora não seja possível afirmar, para além de qualquer dúvida,
se Antonia era efetivamente liberta, seus vínculos com a escravi-
dão eram fortes, e essa conexão foi vista como infamante. Mas seus
vínculos com a escravidão eram demasiado fortes, e essa conexão
foi vista como infamante. Estabelecer laços de família com ex-escra-
vos, para este subdelegado, era algo por si só desonroso para a
cozinheira. Se esta versão dos acontecimentos estiver correta, então
187
se justifica a insistência de Antonia para os patrões ingleses aceita-
rem que sua filha ficasse residindo com ela. Quando do episódio do
espancamento e defloramento pelo padrasto, Antonia não estava
em casa. Provavelmente estava no trabalho em casa de outro patrão.
O ex-subdelegado não quis enxergar a difícil situação de mãe
e filha, desprotegidas e vítimas dos abusos sexuais do padrasto e
amásio, e considerou “péssima a conduta moral dessa menor Annizia”.
Após esse abuso sexual acontecido na família, outras violências
sexuais se seguiram. Certo Augusto teria se gabado aos funcionários
da repartição policial, mostrando a camisa ensanguentada, de ter
copulado com Annizia no dia anterior. Certo José Caboclo, morador
nos fundos do sítio do Capitão Vianna, também fora flagrado em
ato sexual com ela. Os homens estariam se aproveitando da fragili-
dade de Annizia. Quero crer que o estupro cometido pelo padrasto
potencializou novas violências sexuais.41 Mas seria exigir muita
sutileza do olhar das autoridades policiais e dos médicos da época,
cuja percepção da honra estava ancorada demais nos valores relati-
vos ao hímen, à cor e aos preconceitos sociais vigentes. Bastava
chegar à conclusão simples de que mãe e filha eram imorais. Ainda
segundo Bento Pereira Bastos, Annizia se encontrava prostituída.42
Aos treze anos, sem a proteção das autoridades, sem a solidarie-
dade de outras domésticas, com os vínculos explícitos da mãe com
ex-escravos, Annizia estava perdera importantes capitais simbólicos.
Conclusão
Enquanto as mães-pretas aludidas no início desse texto,
mulheres escravizadas que serviam às famílias brancas em lares
senhoriais, foram inventadas pelo imaginário brasileiro como
símbolos de docilidade, submissão, generosidade e afetividade,
figura arquetípica do paternalismo brasileiro, inúmeras mulheres
negras e mestiças, livres e libertas, emergem dos documentos
41 O exame médico não falou de violências físicas. Mas o espancamento de que
fala o ex-subdelegado consultado pelo padrasto de Neco, o estado geral de Annizia,
levam a acreditar que houve estupro. Ver o exame médico em Denúncia, Manoel
do Valle, fl. 11-12.
42 Denúncia, Manoel do Valle, fl. 33v.
188
como costurando suas vidas sozinhas ou com ajuda de vizinhos,
tentando criar suas filhas nem sempre podendo contar com um
paternalismo, no mínimo, negligente e pouco predisposto a
cumprir deveres costumeiros, nem com emergentes discursos
morais de família burguesa urbana. A “mulher honesta” dos discur-
sos normativos e jurídicos, como um tipo mãe ideal, constrói-
se pela dicotomia mãe-prostituta (ESTEVES, 1989, p. 52-53), e
estigmas raciais, de classe e de gênero situam mulheres negras
no espectro oposto da mãe burguesa. Como visto em ambos os
processos-criminais analisados, mulheres populares, agenciando
suas existências, buscam o sistema jurídico para proteger a honra
das filhas. Sobre as próprias mães, trabalhadoras domésticas
negras e mestiças, recaem os estigmas infamantes que dificul-
tam a defesa da honra de suas filhas do avanço masculino sobre
seus corpos. Do mesmo modo que muitas mães libertas paulis-
tas, ainda nos anos finais da escravidão legal, perdiam a tutela
de filhas e filhos para tutores que os explorariam em ativida-
des laborais, essas mulheres tinham também as marcas de uma
maternidade contestada (ARIZA, 2017, p. 55).
Marília Ariza também demonstrou os desafios de mães escravas
em libertar filhos e filhas da escravidão, em projetos familiares de
emancipação (2018, p. 151-171). No contexto pós-abolição e mesmo
antes, mães livres e libertas precisavam empreender também
novos projetos para filhas livres, mas desprotegidas: projetos que
impunham a proteção da honra sexual, o casamento, a família.
Annizia e Donata, ambas não brancas, a primeira estuprada pelo
padrasto, a segunda deflorada pelo patrão da mãe, ficam à margem
do discurso emergente de mulher-mãe higienizada do ideário
burguês de família, sexualidade e família. Para muitos juristas e
moralistas do fim do século XIX e do pós-abolição, uma adoles-
cente que perdesse a virgindade estaria a um passo da prostitui-
ção, se um casamento não viesse salvar-lhe a honra (CAUFIELD,
2000, p. 78). Os processos-criminais, em si mesmos, contudo,
revelam eles mesmos a construção de diversos estigmas aviltan-
tes que recaíam sobre a reputação de mulheres negras e mestiças:
o clima, a raça, as condições precárias de moradia, entre outras
características, impunham barreiras objetivas à defesa da honra e
à construção de experiências de maternidade exitosas para além
dos modelos de família patriarcal e família burguesa.
189
Não se trata de construir hierarquias entre experiências de
maternidade escrava e de mães livres e libertas pobres. Como
denunciou Sônia Giacomini (1988, p. 57) em livro já clássico, as
mães-pretas escravas não experienciavam a maternidade. Décadas
depois, em especial no pós-abolição, a memória de homens brancos
constrói um trono imaginário para uma mulher negra escravi-
zada, que serve, assim, à construção de uma hegemonia cultural e
política elitista, em especial ao mito da “democracia racial”. Porém,
a reconstrução histórica, aqui esboçada, de outras experiências
de maternidade, ajuda a compreender a condição de precariedade
e de suspeita, os controles que recaíram sobre outras formas de
família que não a burguesa higiênica, ancorada na mulher branca,
bem como a agência de mulheres negras que acionavam diversos
mecanismos para defender a honra delas e de suas filhas.
190
Fontes
191
Referências
192
FONSECA, Cláudia. Da circulação de crianças à adoção internacional.
Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 26, p. 11-43, jan./jun. 2006.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. 11. ed. Rio de Janeiro: Livraria
José Olympio Editora, 1964. t. 2.
PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 24. reimp. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1996.
193
REGO, José Lins do. Bangüê. 21. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002 [1934].
REGO, José Lins do. Menino de engenho. 15. ed. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 1970 [1932].
SILVA, Maciel Henrique. Nem mãe preta, nem negra fulô: histórias de
trabalhadoras domésticas em Recife e Salvador (1870-1910). Jundiaí, SP:
Paco Editorial, 2016.
194
PARTE 3
MATERNIDADE,
FAMÍLIA E
LIBERDADE
195
A ADMINISTRAÇÃO DA MATERNIDADE EM
SOCIEDADES ESCRAVISTAS NO CARIBE
BRITÂNICO DO SÉCULO XVIII1
Heather Cateau
196
conseguiu cuidar de seus filhos até a idade adulta; na ausência de
suas histórias integrais, precisamos recorrer à história, cultura,
informações do período pós-emancipação para o qual contamos
com relatos mais diretos, além dos vislumbres oferecidos por fontes
primárias para tentar capturar as camadas diversas e profundas
associadas à lide com a maternidade sob escravidão.
Nesta discussão, as fontes primárias são tão importantes quanto
as secundárias. As fontes secundárias começaram a compilar e
contextualizar as evidências, produzindo enquadramentos analíti-
cos tão necessários. As fontes primárias oferecem uma perspectiva
fundamental de primeira mão, de modo geral involuntária e fragmen-
tada, sobre a maternidade em uma época para a qual as vozes dos
escravizados são escassas. Desta forma, diários e opúsculos, como
os de Lady Nugent3 e Thomas Thistlewood,4 deixaram-nos lentes
esclarecedoras sobre o passado que devem ser interpretadas com
atenção. Documentos sobre a plantation também são uma fonte
importante, assim como cartas de proprietários de terras e advoga-
dos, inventários de escravos, esquemas de fazendas e outros tipos
de documentos. Quando articulamos as informações recolhidas por
meio destas fontes com os enquadramentos analíticos produzidos
por teóricos contemporâneos, começamos a perceber as camadas
que conformaram as características que a maternidade assumiu
nas sociedades escravistas do Caribe britânico.
Esta discussão trata das facetas complexas da realidade das
mães escravizadas. O objetivo é acrescentar alguns aspectos à
3 Lady Nugent era a esposa do governador da Jamaica. O diário dela vai de 1801
a 1805. Trata-se de um diário pessoal, escrito sob a perspectiva de um membro
das elites. Todavia, ela era também alguém que pode ser descrita como excên-
trica. As anotações constituem assim uma fonte inestimável de informação, que
Lady Nugent não tinha noção de estar recolhendo para a posteridade. Várias
observações oferecem um vislumbre significativo sobre a realidade cotidiana das
mulheres e crianças escravizadas.
4 Thomas Thistlewood não era um dono de plantation importante. Tinha um curral
e por vezes trabalhava como feitor e advogado. Ou seja, era um proprietário branco
de pequeno porte na Jamaica, entre 1750 e 1786. Esta posição deu azo a uma interação
particular com a população escrava e com outros feitores e advogados brancos. As
entradas do diário por vezes são brutalmente explícitas. Há muita crueldade e per-
versidade sexual. Todavia, permitem apreender diversos aspectos sobre as relações
pessoais e as interações cotidianas entre crianças, homens e mulheres escravizados
bem como sobre os outros homens brancos que exerciam poder nestas unidades.
197
nossa compreensão da maternidade sob escravidão. Assim, desde
o início parto do reconhecimento da diversidade de espaços,
estratégias e soluções utilizados pelas mulheres escravas, e por
elas experimentados, no contexto de escravidão. Como Jennifer
Morgan mostrou para o caso da Carolina do Sul, não há um tropo
único, categorias precisas de acomodação ou resistência; não há
como estabelecer juízos ou definições de sucesso e fracasso. Estes
conceitos são artificiais e envolvem estereotipação, racismo ou
preconceito de gênero (MORGAN, 2004, p. 133–134). Uma análise
da historiografia aponta para uma mistura notável de estereótipos,
observações casuais e, por vezes, rudimentares, bem como para
esforços pretensamente criteriosos que redundam em revisionis-
mos. Todavia, um desenho mais abrangente deste cenário continua
em falta. Barbara Bush questiona as representações negativas
iniciais sobre as mulheres africanas (BUSH, 2010, p. 71). Baseia-
se no trabalho de Kimberly Brown, que analisa a criação de uma
contra narrativa que a autora refere como “unmothering motif”,
ou “tema da não maternidade”, a qual coloca a fertilidade das
mulheres africanas sob uma perspectiva negativa (BROWN, 2007
apud BUSH, 2010). A elaboração do “tema da não maternidade”
alimentou-se de fontes históricas diversas, nem sempre delibe-
radamente produzidas para documentar aspectos da materni-
dade escrava. Algumas das noções duradouras a isto relacionadas
provêm de fontes óbvias, como as representações distorcidas de
mulheres escravizadas como mães negligentes produzidas por
donos de plantation (CATEAU, 2011, p. 336–7). Por meio de diversas
fontes e de tais representações, foi criado um tropo que colocava
a maternidade sob a escravidão em uma perspectiva essencial-
mente negativa, que tem se mostrado difícil de desfazer. Varian-
tes deste tropo ainda permeiam alguns quadros analíticos.
Várias das noções difundidas projetam uma luz negativa sobre
as mães escravizadas. Um exemplo típico é o de Edward Long, que
argumentava que os problemas com a reprodução escrava eram
originados pelas próprias mulheres:
198
participação em tais envolvimentos promíscuos, em si,
com certeza perturba, ou destrói, a concepção. A isto
podem ser acrescidas as doenças venéreas; que, junto
com os remédios tomados para repelir ou se ver livre do
vírus, com frequência matam os fetos e infestam tanto
homens como mulheres.5
5 “The women here, are, in general, common prostitutes; and many of them take
specifics to cause abortions in order that they may continue their trade without loss
of time or hinderance of business; and, besides their admitting such promiscuous
embraces must necessarily hinder, or destroy conception. We may add to this the
venereal disease; which together with the medicines taken either to repel, or carry
off the virus, frequently kills the foetus, and fertilizes both men and women”. Long,
2002 [1774], v. II, 436.
6 Os trechos no original são: “upheld by no consolation”, “animated by no hope”,
“with the ultimate outcome of her troubled pregnancy ending in a birth of a child
doomed like herself to the rigours of eternal servitude”. David Collins, Practical Rules
for the Management and Medical Treatment of Negro Slaves in the Sugar Colonies
(London: Vemor and Hood, 1803), 35, citado em Bush, 2010.
199
da situação de crianças escravizadas em diversas plantations da
Jamaica. Jones deteve-se sobre jovens escravizados em Breadnut
Island Pen, na Jamaica, de que Thomas Thistlewood era dono. O
resultado destes e de outros trabalhos foi fazer com que a mãe e
as crianças escravizadas deixassem de ser invisíveis na historio-
grafia do Caribe britânico. Todavia, ainda há muito por desvelar.
Um dos temas mais importantes e evasivos é a identificação e
avaliação dos múltiplos fatores que determinaram as dimensões
da relação mãe-filho sob a escravidão. O presente capítulo propõe
um enquadramento que pode ser utilizado para fomentar nossa
compreensão dos dados resgatados até hoje.
Em certo nível, a complexidade da relação mãe-filho deriva do
fato de estarmos lidando com seres humanos que foram forçados
a viver em condições sub-humanas. Todavia, esta complexidade
se adensa à medida que, na realidade, as experiências cotidia-
nas eram, em última análise, determinadas por três grupos de
atores que ocupavam posições diferenciadas nas plantations e
em outras unidades produtivas. Políticas oficiais para o manejo
das mães e crianças escravizadas provinham dos donos de planta-
tion; contudo, a sua implementação era operacionalizada pelo
grupo intermediário dos feitores e administradores. Além disso,
a interação entre os dois grupos sofria influência da população
escravizada. Deste modo, embora escravizadas, as próprias mães
operavam como importantes mediadoras entre as políticas estabe-
lecidas e o que podia de fato ser implementado. Há ainda um
quarto fator, que envolve a especificidade do contexto caribenho,
que influenciou a natureza particular da interação entre os três
grupos (CATEAU, 2011). Refiro-me a este aspecto como contexto
situacional específico.
Uma análise do crescimento natural e da maternidade, ou
ausência dela, nas plantations deve, portanto, levar em conside-
ração estes três grupos e as interações entre eles e no interior
de cada um. Os proprietários traçavam as políticas oficiais e isto
era definido a partir das necessidades da plantation / unidade
produtiva. Todas as análises devem, pois, ser conduzidas a partir
do pano de fundo de que a lucratividade era o objetivo princi-
pal do sistema de plantation. Assim, não é de surpreender que
o crescimento natural da população não fosse uma prioridade
no período inicial da agricultura de plantation. O trabalho das
200
mulheres e crianças escravizadas tinha uma importância imediata
maior. Os donos de plantation julgavam mais barato recompor a
força de trabalho através de compras anuais do que por meio da
reprodução natural. É apenas mais para finais do século XVIII
que se observa uma mudança nítida na perspectiva dos donos de
plantation no sentido de incentivo ao aumento natural da popula-
ção escrava. Tais políticas novas incluíam uma ênfase na materni-
dade e na criação de filhos. O principal motivo era a iminente
abolição do comércio de escravos da África. Antes dos debates
que conduziram ao Ato de Abolição, a manutenção da população
escrava era resultado de uma importação maciça de escravizados.
Após a abolição do tráfico, tornava-se dependente de cuidados pré
e pós-natal para mulheres grávidas, bem como de cuidados com
a infância, que ganhavam proeminência crescente nas políticas
de administração da população escrava. Os meios mais práticos e
eficazes para renovar a força de trabalho sempre constituíram o
aspecto crucial de tais políticas. Deste modo, podem-se observar
mudanças nas determinações relativas à manutenção da força de
trabalho escrava. Uma análise dos registros das plantations aponta
as novas perspectivas: 1. Planos de compra visando o aumento da
proporção de mulheres na população escrava; 2. Maior atenção à
idade e saúde e às proporções entre crioulos/africanos e miscige-
nados/negros; 3. Implementação de medidas no sentido de melhor
tratamento das mulheres grávidas; 4. Implementação de medidas
no sentido de melhor tratamento para mães recentes; 5. Constru-
ção de casas de parto; 6. Construção de creches; 7. Aumento na
quantidade de instalações e medidas relacionadas ao desmame de
crianças; 8. Um foco novo na alimentação e vestuário das crianças;
9. Oferecimento de recompensas e incentivos para feitores; 10.
Oferecimento de recompensas e incentivos para as mulheres; 11.
Concessões no tocante ao regime de trabalho intensivo.
Deste modo, na parte final do século XVIII, os donos de planta-
tions haviam passado a enfatizar os três Ws: Women, Womb e Weaning;
em português, mulheres, ventre e desmame (CATEAU, 2011). Não
há dúvida de que as políticas mudaram e isto, com certeza, deve
ter impactado mães e crianças escravizadas. A dimensão desse
impacto é, todavia, mais difícil de avaliar. Tais políticas incluíram
medidas aparentemente bastante razoáveis, mas a ocasião e alcance
de sua implementação foram conformadas pelo contexto local
201
específico. George Pinckard considerou que o contexto interno se
transformou de tal maneira que “…as mulheres que tinham mais
crianças se tornaram as mais ‘valorizadas e respeitadas’” 7. Houve,
contudo, níveis diversos de mudança. Os fatores intervenientes nas
respostas específicas de cada dono de plantation estiveram ligados
à sua realidade econômica; às necessidades de trabalho daquela
unidade específica; ao estatuto residencial do dono da planta-
tion (o que, por seu turno, determinou a medida de dependência
de um grupo intermediário para sua implementação); à natureza
das relações sexuais concretas com as mulheres na plantation,
que tinha efeitos na reprodução e criação de crianças; às compli-
cações psicológicas da plantation; às presunções estereotípicas
e racistas sobre mulheres escravizadas.
No caso do segundo grupo de influência – os feitores e advoga-
dos –, podiam ocorrer grandes variações no foco dado a essas políti-
cas e sua implementação. Várias vezes, os seus próprios interesses
e os dos donos de plantation divergiam, o que produzia relações
conflitivas. 8 A influência que exerciam era agravada pelo fato de
que também tinham relações com as mulheres escravizadas nas
unidades que gerenciavam. Além disso, com frequência demonstra-
vam grau maior de cuidados em relação a seus próprios trabalha-
dores escravizados (muitas vezes contratados para trabalhar nas
plantations por eles geridas), do que àqueles pertencentes aos
donos de plantations (CATEAU, 2002, p. 108). Para complicar ainda
mais, é difícil precisar a fiabilidade dos registros. Tratava-se, no
final de contas, de empregados que queriam se apresentar sob a
melhor perspectiva possível.
Quero postular que, no contexto descrito, o terceiro grupo – o
das mulheres escravizadas – era o que, em última análise, determi-
nava a medida em que a maternidade podia, ou não, ser dirigida.
Elas configuravam o contexto local por meio de sua cultura, dos
espaços de trabalho, das redes familiares, do amor por sua prole e
outros caminhos em que podiam demonstrar sua agência. Apesar
de não serem objeto do presente artigo, os homens escravizados
também contribuíam para o desenho dessa realidade. Não obstante,
7 No original: “…women who had the most children found themselves most valued
and esteemed” (PINCKARD, 1806, v. 1, Letter XXIV, p. 289).
8 Conferir Ragatz (1971).
202
o seu papel no tocante aos casos que envolviam crianças era, na
maior parte dos casos, secundário em face das mulheres, mais
ainda no que se refere à presente discussão sobre maternidade.
Mesmo uma análise superficial dos três principais grupos
aponta para o fato que, apesar das intenções explicitadas, o papel
desempenhado pelas mulheres escravizadas no trabalho produtivo
conflitava com a ênfase dada a seu papel na reprodução da escravi-
dão. Referindo-se ao sistema de gang labor, Bryan Edwards incluía
“…meninos e meninas, mulheres em avançada gravidez e convales-
centes …” na segunda turma de trabalho 9. Lady Nugent captura
essa dimensão, mesmo após a introdução de políticas pró-natalis-
tas mais concretas. Ela observa que “Mulheres grávidas trabalham
nos campos até entrarem nas últimas seis semanas de gravidez e
voltam a trabalhar duas semanas após o parto. Em alguns raros
casos permitem-se três semanas, limite completamente máximo”.10
Na verdade, os objetivos declarados com frequência divergiam
da realidade. A intenção, portanto, não é passar a imagem de um
sistema de plantation que subitamente adotou todas as mudanças
políticas preconizadas. Qualquer avaliação de sucesso ou fracasso
terá que ser matizada por uma apreciação dos diversos graus. É
fora de dúvida, contudo, que o contexto das plantations pós década
de 1780 se tornou muito diferente do que se verificava antes.
Várias plantations relataram progressos após a década de 1780,11
e, com o tempo, uma crescente população crioula se desenvol-
veu. Há também registro, por parte dos donos de plantation e
advogados, de diversos fracassos. Muitos mostravam-se perple-
xos com o fato de que as crianças continuavam a morrer apesar
de seus “melhores” esforços (CRATON, 1971, p. 21). Sabe-se ainda
que no Caribe a população escravizada só se reproduziu natural-
mente após a emancipação. Não obstante, está fora de questão
que muitas crianças nasceram e foram criadas sob escravidão.
9 No original: “…young boys and girls, women far gone with child, and convales-
cents…” (EDWARDS, 1794, p. 128–129).
10 “Women with child work in the fields till the last six weeks, and are at work there
again in a fortnight after their confinement. Three weeks in very particular cases are
allowed, but this is the very longest time”. Citada em: Wright (2002, p. 69).
11 National Archives of Scotland, Wedderburn MS. GD 267/5/11, Dr William
Stevenson to George Home, June 6, 1804; Vanneck-Arc/3A/1790/3, Dr Turney to
Chaloner Arcedeckne, March 29, 1790.
203
É fundamental levar em conta a complexidade da situação. A
compreensão da realidade do Caribe britânico vai além do sucesso
ou fracasso estatístico. A maternidade deve ter sido um aspecto
muito significativo da vida na plantation, valorizada com o tempo.
Mães escravizadas eram de fato mães no sentido pleno do termo,
apesar da construção e perpetuação do “tema da não materni-
dade” (BROWN, 2007 apud BUSH, 2010), dos elevados níveis de
mortalidade e das condições sub-humanas. Como se abordará
adiante, a sua maternidade se realizava em espaços criados e,
em certa medida, redefinidos pelas medidas pró-natalistas da
década de 1780.
Em última análise, portanto, as experiências das mulheres
grávidas, mães e crianças eram definidas por estes três níveis de
atores e por um quarto fator, que pode ser descrito como contexto
situacional. A ênfase em um desses níveis em particular oferece
uma percepção apenas parcial destas relações. É apenas quando
se leva em conta a interação dos quatro fatores que se obtém
um quadro mais completo. Deve-se entender que esta interação
permite considerar a variação e complexidade das experiências, que
eram ainda mais diversificadas em função das práticas culturais
conservadas e adaptadas ao longo do período de escravidão.
204
de vista de Bush, de que, “apesar das duras condições, perdura-
ram concepções sobre maternidade e criação de crianças deriva-
das das vigentes em África” (BUSH, 2010, p. 70). Escritores referiram
rituais associados ao nascimento e ao cuidado das crianças. Os
exemplos incluem rituais que normalmente ocorriam nove dias
após o nascimento (BUSH, 2010, p. 71-73), o uso de amuletos e
contas, o recurso a sacerdotisas e remédios da medicina popular.
Autores coevos referem a utilização de óleos e drogas, além de atos
surpreendentes, como imergir os umbigos dos bebês. Esta ação por
vezes era temida e descrita como prejudicial (PATTERSON, 1967,
p. 101-102) pelos proprietários brancos que não tinham noção do
contexto cultural. Todavia, até este grupo aceitava algumas das
práticas cotidianas que hoje sabemos tratar-se de retenção cultural.
O Dr. Pinckard refere-se a mulheres carregando bebês na lateral
dos quadris (PINCKARD, 1806, Letter XXIX, p. 394-395) e Thistle-
wood deu a mães recentes “panos novos de amarrar”.12 Ou seja,
existia uma base cultural à qual as mulheres recorriam e que fortifi-
caram. Combinaram estes espaços com apropriação das diretri-
zes de controle e com as circunstâncias locais para criar fontes de
agência maiores e mais profundas para o exercício da maternidade.
Desta forma, pode-se defender convincentemente a importân-
cia da retenção cultural e seu emprego como dimensão fundamen-
tal na criação de crianças – um dos objetivos deste capítulo é
justamente contribuir para o aprofundamento da compreensão
deste contexto cultural e da maternidade durante a escravidão.
O outro objetivo, talvez bem mais difícil de alcançar, é precisar
algumas das dimensões centrais da relação entre a mãe escravi-
zada e seu filho. Isto é ainda complicado pelo fato das mães e
crianças escravizadas constituírem um grupo bem diversificado.
As mães e crianças escravizadas podiam ser negras ou mestiças
e temporária ou permanentemente ausentes. Havia também
uma grande diversidade de relacionamento com os pais, que
podiam ser negros, mestiços ou brancos, escravizados ou livres,
bem como situar-se num amplo leque de situações de trabalho.
Assim, qualquer reflexão sobre uma relação particular deve ser tão
matizada quanto possível. Não obstante, generalizações baseadas
12 No original: new tye cloths. Thistlewood Papers, Lincolnshire Archives, Monson
31-11, Friday 9th May, 1760, p. 87.
205
nas fontes analisadas corroboram o papel central que as mulheres
escravizadas desempenhavam, não apenas nas vidas dos seus
filhos, mas também das crianças escravizadas de um modo geral.
13 No original: in general loved their children. (LONG, 2002 [1774], v. II, p. 411).
14 No original: a kind of sovereignty over their children, which never ceases
during life; chastising them sometimes with much severity; and seeming to hold
filial obedience in much higher estimation than conjugal fidelity. Long, 2002
[1774], v. II, 414.
15 No original: “…contrary to most opinion, they loved their children so much that
master risked the ‘melancholy decline’ or even suicide of parents if children were taken
away or sold separately”. Sloane apud Michael Craton, 1978, p. 57.
206
foi “… quando o chefe pergunta para onde um negro fugiu, você
lhe diz que não sabe” (BLAKE, 1991)16. É a isso que Jones se refere
quando defende que as mulheres escravizadas equipavam suas
crianças com estratégias para sobreviverem durante a escravi-
zação (JONES, 2007, p. 93). Tais atos não devem ser interpreta-
dos como ausência de amor ou cuidado.
De fato, o oposto é que era verdade. Como Jones observa,
as mães escravizadas tentavam criar um ambiente de infância
normal por meio de proteção, cuidado, aconchego e educação.
Novamente, os testemunhos advêm de fontes e contextos inespe-
rados. Long descreveu o cuidado com as crianças por algumas
delas como “extraordinariamente exemplar”.17 O caso de Phibbah,
que viveu com Thomas Thistlewood, é ilustrativo. Phibbah era
concubina de Thistlewood, mas a casa dela parece ter sido o lugar
onde crianças e outras pessoas se escondiam quando estavam em
enrascadas (JONES, 2007, p. 97). Evolui também um desenho de
mães que constituíam uma força poderosa mesmo sob escravidão.
Mathurin Mair observa que as “mães de pickaninnies” – algo como
“negrinhos”, em português – “clamando por reparação” não eram
facilmente aplacadas (MAIR, 2007, p. 49) 18. O mesmo ocorre no
caso da Virginia, a respeito do qual Brenda Stevenson aponta que
“muitas se arriscavam em discussões com os homens e mulheres
proprietários de escravos…”, reportando sacrifícios inumeráveis e
heroicos (STEVENSON, 1996, p. 175). Tais observações são extensí-
veis ao Caribe.
Há vários vislumbres da ternura que existia entre mães e
suas crianças. Isto transparece talvez da forma mais intensa e
direta na relação de Thistlewood com Phibbah – a sua amante
de cor mista –, com quem teve um filho. A inequívoca peocupa-
ção de Phibbah com John, o filho, quando estava doente, surge
de maneira clara nos registros diários de Thistlewood sobre as
ações dela.19 Embora este comportamento fosse, em boa medida,
16 O registro original segue padrão de oralidade: “…time buckra ax you which side
neger run, you tell him me no know”.
17 No original: remarkably exemplary. Long, 2002 [1774], v. II, 414.
18 No original: picanniny Mothers clammouring for redress.
19 Thistlewood Papers, Monson 31/ 1-37, Monson 31-15, Sunday 12th August 1764,
208. See also Thursday 16th August 1764, p. 231.
207
esperável, surpreende que Phibbah se envolvesse tanto com o
apoio material ao filho e, no limite, ao próprio Thistlewood. Ela
não apenas emprestou dinheiro a Thistlewood em várias ocasiões
como, cada vez mais, lhe deu dinheiro. 20 Fica claro que Phibbah
podia recorrer à sua situação privilegiada para obter renda, mas
o aspecto mais significativo é que, após o nascimento de John, ela
deu (e não apenas emprestou) quantias importantes a Thistle-
wood, com frequência crescente. Phibbah estava, é nítido, de fato
contribuindo para a manutenção do filho dela com Thistlewood.
Eu acrescentaria que se tratava de um tipo de ação consciente
por parte dela de modo a influir na criação do filho e melhorar
suas possibilidades na vida. No final de junho de 1763, Thistle-
wood recebeu dela 11 libras, 3 xelins e 9 pence. 21 Phibbah não tinha
a vida típica das mulheres escravizadas; era mestiça, mantinha
um relacionamento com o dono da unidade, além de ter permis-
são para ganhar renda mediante trabalhos de costura, venda de
mantimentos e criação de animais 22. O relacionamento também
lhe outorgava privilégios importantes, que incluíam uma liberdade
além da usual e influência no gerenciamento da unidade. Nada
sugere, contudo, que Phibbah, embora em melhores condições do
que outras mulheres escravizadas, fosse anomalia ou exceção ao
invés de regra. Ela não deixou de ser membro ativo da comunidade
de escravizados e partilhava suas normas culturais e valores. O
que proponho é que todas as mulheres manipulavam os recursos
relativos de que dispunham para incrementar o seu bem-estar
material e de seus filhos, melhorando suas vidas como possível.
Como Stevenson descreve para a Virginia:
20 Thistlewood Papers, Monson 31-12, Saturday 28th March 1761, 45; See also
Monson 31-17, Wednesday 3 August 1764, p. 216.
21 Thistlewood Papers, Monson 31-14, 31st June 1763, p. 143.
22 Thistlewood Papers, Monson 31-11, Friday 11th January 1760, Saturday 27th
January 1760, Friday 4th April 1760.
208
garantir a sobrevivência física de seus filhos e de si
próprias… estavam determinadas a criar auto-imagens
que lhes garantissem algum controle sobre suas vidas
e usavam-nas para proteger seus filhos. (STEVENSON,
1996, p. 176-177). 23
209
natural da população escravizada, as mulheres e crianças escravi-
zadas eram encaradas como um investimento que devia gerar
dividendos. Esperava-se que esse resultado ocorresse o mais cedo
possível e que aumentasse com a idade das crianças. A vida de
uma criança escravizada é manifestação de sobrevivência apesar
de dificuldades extremas. Ou seja, mesmo quando se pensa em
melhorias de tratamento, é importante ter em mente que as mesmas
eram muito relativas. Os desafios começavam pela sobrevivên-
cia nos primeiros nove dias após o nascimento e prosseguiam
através de toda a infância. Roughley admite que as mães voltavam
ao trabalho antes de as crianças serem desmamadas. Estas mães
faziam pausas de 15 minutos para amamentar seus bebês. Até
isto era, contudo, uma melhoria em relação às práticas anterio-
res, na medida em que as crianças ficavam sob cuidados e não
precisavam ser levadas para os campos nas costas das mães como
ocorria antes (ROUGHLEY, 1823, p. 102-103).
O ingresso na força de trabalho dava-se às vezes logo aos
seis anos de idade (JONES, 2007, p. 94). Bryan Edwards descreve
o trabalho das crianças nas turmas em que tinham sido inseri-
das como “atividade suave, apenas para protegê-los dos hábitos
do Ócio”. 25 Fica claro, todavia, que as crianças eram usadas para
desempenhar trabalhos menos extenuantes, mas, ainda assim,
importantes nos campos e no cuidado de animais. Lady Nugent
observou que “… as crianças menores trabalham nos campos,
retirando ervas daninhas e pegando as canas; para o que eram
afastadas de suas mães ainda muito pequenas”.26 Outros trabalhos
incluíam o cuidado dos animais e ajuda no fornecimento de provisões
aos demais escravizados.
As experiências das crianças variavam muito, mesmo dentro
da mesma plantation. Deve-se também observar que as crianças
mestiças detinham um lugar especial e, em alguns casos, uma
existência comparativamente privilegiada, em particular se
fossem filhos de um dono de plantation ou de alguém dos grupos
25 No original: gentle exercise, merely to preserve them from the habits of Idleness
Edwards, 1794, History, Civil and Commercial, v. II, p. 129.
26 No original: the smallest children are employed in the field, weeding and picking
the canes; for which purpose they are taken from their mothers at a very early age.
(WRIGHT, 2002, p. 69).
210
intermediários ligados à administração. Estas crianças recebiam
comida e roupas melhores, acesso a treinamento, empregos e
possibilidades de alforria.
O grupo de crianças de cor mista era crescente à medida que
feitores, advogados e donos de plantation de nível médio repetida-
mente tinham relações sexuais com várias mulheres. A dimensão
disto transparece nos diários tanto de Thistlewood como de Lady
Nugent. No caso de Simon Taylor, um grande dono de plantation e
advogado na Jamaica, Nugent se refere a uma moça mestiça que
“a caseira disse [que] era filha dele próprio, e que ele tinha uma
família em praticamente cada uma de suas propriedades”. 27 Não
se deve subestimar as complicações provocadas por tais laços. O
nível de disfunção tolerada deve ter sido bastante elevado. No caso
de John, filho de Thistlewood, a sua mãe permaneceu escravizada.
Ele, todavia, foi liberto com dois anos 28 e para todos os efeitos
parece ter se tornado proprietário de seu primeiro escravizado
quando tinha cinco anos de idade. 29 Ambos tinham outros filhos.
Havia várias outras crianças deste tipo nas plantations, livres e
escravizadas. Constituíam ainda mais um grupo na teia complexa
de maternidade em escravidão.
Também fica claro que as crianças se tornavam adultos muito
precocemente. A atividade sexual podia iniciar-se aos nove ou dez
anos (BUSH, 2010, p. 78). As meninas eram os principais alvos de
abuso. Thistlewood se referia a relatos de Collgrove, que “costumava
comprar roupas boas para as meninas negras da propriedade
que eram bonitas e que elas tinham que lhe dar metade do que
obtivessem de qualquer pessoa Branca”.30 Esperava-se cargas de
trabalho de adulto a partir dos 13 aos 16 anos (BLAKE, 1991, p. 6-10).
A sobrevivência neste território convoluto ocorreu contra todas
as probabilidades. A maior parte das crianças escravizadas não
tinha contato com educação formal nem era treinada, a vida era
27 No original: the housekeeper told was his own daughter, and that he had a
numerous family, some almost on every one of his estates (WRIGHT, 2002, p. 68).
28 Thistlewood Papers, Monson 31-13, Tuesday 25th May 1762.
29 Thistlewood Papers, 31-16, Wednesday 24th July 1765.
30 No original: used to buy good Cloathes for the Negroe girls that were hand-
some on the Estate and they were to give him half of what they got from any White
person. Thistlewood Papers, Monsoon 31-4-1753, Tuesday 10th July 1753.
211
extremamente dura. Até fugir tornava-se mais difícil pela relação
entre a mãe e seus filhos: era uma faca de dois gumes, usada
de acordo com as circunstâncias particulares de cada um. Em
alguns casos, as mulheres não escapavam porque não deixariam
seus filhos (STEVENSON, 1996, p. 175), em outros, faziam-no com
eles. Há várias menções, nos documentos das plantations e em
jornais, de mulheres escravizadas que fugiram com os filhos. Em
Trinidad, por exemplo, Luce Angelle fugiu com Jeannie; Cattreen
fugiu grávida.31
Apesar disto, a educação por meio de treinamento e aprendi-
zado de ofícios especializados, quando possíveis, era buscada
com perseverança. Edwards debatia a conveniência de instruir
as crianças escravizadas em alguns ofícios. Ele detalhava que era
“comum colocá-las numa espécie de aprendizado com aqueles
dos Negros mais velhos competentes para dar a instrução”.32 Pais
escravizados aproveitavam essas oportunidades, quando existiam.
De acordo com Long, “Sabe-se de um preto tão sério e comprome-
tido com a formação de suas crianças que chegava a pagar do seu
próprio bolso por serviços de ferreiro, para manter um filho vadio
empregado durante o aprendizado nesse ofício, de modo a que não
deixasse de completar a obtenção do conhecimento necessário
por falta de demanda desses trabalhos”.33 Há também menções a
donos de plantations que enviavam crianças escravizadas a algo
semelhante a uma escola. Estas crianças normalmente eram de
paternidade mista. A natureza e amplitude destas oportunida-
des era variável. Não se tratava simplesmente de aptidão. Muito
dependia da etnicidade e da situação dos pais. O filho de Thistle-
wood foi mandado para a escola com apenas quatro anos, nela
permanecendo até completar 15 anos. Depois disso, ingressou no
aprendizado de um ofício (JONES, 2007, p. 94). Uma escolarização
longa como essa era claramente um privilégio. Os aprendizados de
31 Trinidad Gazette, 8th Sep 1824, 15th Sep 1824, 18th Sep 1824, 8th Oct 1824, (Trinidad
and Tobago National Archives), retrieved 9th Sep 2016.
32 No original: usual to place them in a sort of apprenticeship to such of the old
Negroes as are competent to give the instruction (EDWARDS, 1794, p. 78–9).
33 A Negroe has been known so earnest and sincere in the tuition of his child as
to pay money out of his own pocket for smith’s work, to keep a truant son employed
during his apprenticeship up to that business, that he might not become remiss in
acquiring a proper knowledge of it, for the want of work (LONG, 2002 [1774], p. 414).
212
ofícios para outros começavam muito mais cedo, para a maioria
das crianças quando tinha entre oito e dez anos. Assim, Sally, com
apenas nove ou dez anos, entrou no aprendizado de costureira34
e Bristol, ainda menor, com sete anos e meio (JONES, 2007, p. 94).
Tais crianças eram colocadas sob os cuidados de particulares. No
caso do treinamento como costureiras, as escolas eram dirigi-
das por mulheres. Assim, Abba e Best foram treinadas por uma
certa Sra. Emotson.35 Em alguns casos, mulheres também dirigiam
colégios internos. Nesta escolarização, John (o filho de Thistle-
wood) foi educado pelo Sr. Daniel Hughes, residindo com a Sra.
Bennett.36 Por vezes é difícil determinar a etnicidade destes profes-
sores. Iam de mestres de ofício escravizados a pessoas livres, de
cor e brancas.
Edwards caracteriza tal tutela, sob outras pessoas escravi-
zadas com elevada capacitação, como sendo acompanhada por
“sofrimento” e “dureza” (EDWARDS, 1794, v. II, p. 78-79). Não obstante,
uma leitura acurada dos registros das plantations indica que as
mulheres que ocupavam essas posições de influência devem ter tido
um papel importante no cuidado e cultivo das crianças pequenas,
junto com os pais escravizados que dispunham de recursos acima
da média. É importante lembrar que as mulheres também eram
“sobretudo empregadas no atendimento às crianças” e no “cuidado
dos doentes”, o que as tornava pessoas influentes, detentoras de
posições estratégicas no sistema escravista 37. Essa conjuntura
gestou uma rede feminina de suporte e cuidado.
A rede feminina
A dura realidade cotidiana das mães escravizadas e seus filhos
só podia ser suportada por meio da criação de um outro espaço
que oferecesse alguma proteção. A família e a comunidade escrava
213
mais ampla proviam uma rede extensa que assistia as mulheres
grávidas, mães e crianças. Esta rede operava diante das vistas dos
gestores das plantations, muito embora sua natureza e signifi-
cado plenos não fossem por eles compreendidos. A rede possuía
braços tanto não oficiais como oficiais.
Long narra que:
38 They are all married…to a husband, or wife, pro tempore, or have other family
connections, in almost every parish throughout the island, so that one of them
perhaps has six or more husbands, or wives, in several different places, by this
means they find support, when their own lands fail them; and houses of call and
refreshment whenever they are upon their travels. Thus, a general correspondence is
carried on, all over the island, amongst the Creole Blacks, and most of them become
intimately acquainted with all affairs of the white inhabitants, public as well as
private (LONG, 2002 [1774], p. 414).
39 No original: “their attachment to the descendants of old families, the ancestors
of which were the master and friends of their own progenitors is remarkably strong
and affectionate (LONG, 2002 [1774], p. 410).
214
acrescenta mais uma dimensão quando levanta a hipótese de
que estas redes femininas eram particularmente importantes no
caso de crianças órfãs (JONES, 2007, p. 6). Phibbah nitidamente
também se apoiava em uma rede familiar com sua irmã Nancy,
além de outras mulheres, visitando-a com frequência e sendo
visitada por ela.40 Havia uma movimentação considerável durante
as noites nas comunidades escravizadas e estas oportunidades
eram utilizadas pelas mulheres escravizadas menos afortunadas
do que Phibbah para reforçar suas próprias redes.
A rede feminina também funcionava abertamente, em papéis
oficiais sancionados, nas plantations. Estas mulheres operavam
como parteiras, amas de leite, curandeiras, babás, cozinheiras,
concubinas e como líderes de grupos com crianças. As partei-
ras eram parte dos arranjos médicos das plantations para lidar
com as mulheres grávidas.41 Médicos só muito raramente eram
chamados. Maureen Elgersman destaca que o diário do Dr.
Collins reflete a importância atribuída às parteiras no sistema
de plantation (1999, p. 86). Ele considerava que eram fundamen-
tais tanto para a economia da plantation como para a comuni-
dade de mulheres escravizadas. Elgersman observou ainda que
“uma razoável autoridade era oferecida a estas mulheres” (1999,
p. 90–1). Patterson emprega a expressão “grandees” (1986, p. 101–2.),
e Simon Taylor chama-as “grannys”.42 Após o bebê nascer, com
frequência uma outra mulher ficava alguns dias com a nova mãe.
No caso de Phibbah, Frankie foi mandada para cuidar dela por
alguns dias.43 As mulheres também funcionavam como amas de
leite (ELGERSMAN, 1999, p. 87).
Entre um mês e a idade adequada para serem integradas a
grupos de trabalho, as crianças eram colocadas em creches rústicas
sob os cuidados de mulheres mais velhas. Estas creches por vezes
não eram mais do que alguns tabuleiros e caixas (ELGERSMAN,
1990, p. 87). Nestas condições, eram alimentadas e cuidadas
enquanto suas mães trabalhavam. Bush traça um paralelo entre
40 Thistlewood Papers, Monson 31-6, Friday 24th January 1755, p. 16.
41 Thistlewood Papers, Monson 31-4, Monday 8th January 1753, p. 6.
42 Vanneck-Arc, 3A-1789-23, Simon Taylor to Chaolner Arcedeckne, 5th
August, 1789.
43 Thistlewood Papers, Monson 31-11, Tuesday 29th April 1760, 80.
215
essas babás e o papel de avó e considera-as centrais na criação de
crianças (2010, p. 72). Os termos utilizados para aludir às partei-
ras mencionados corroboram a ideia do papel de avó assumido
por estas mulheres experientes, em posições de inf luência. A
Velha Leondra, que cuidou de John, parece ter se desincumbido
do papel desde que ele era muito pequeno.44 As cozinheiras faziam
refeições que normalmente eram constituídas de uma mistura
de farinha de mandioca, farinha de trigo, arroz ou aveia. Às vezes
também faziam sopas. Leite era exceção, e não regra. As cozinhei-
ras, todavia, claramente influenciavam a composição das refeições
(ELGERSMAN, 1999, p. 90).
Estes arranjos, é claro, faziam parte das tentativas dos donos
de plantation de controlar as práticas de desmame e cuidado das
crianças e também de dar início aos processos de inculcação de
trabalho em grupo em suas mentes. Deve-se colocar em questão a
verdadeira natureza do que comunicavam às crianças. Para quem
estas mulheres de fato trabalhavam? Mais uma vez, não se deve
ignorar a percepção que pode ser obtida de comentários feitos
inadvertidamente por observadores da época. Com frequência
descreviam tais mulheres (e homens), normalmente mais velhos,
como tidos em “alta veneração” (ELGERSMAN, 1999, p. 82). Isto
indica o lugar de destaque que detinham na comunidade escravi-
zada e no círculo da família extensa.
Os privilegiados podiam ter babás pessoais, como no caso de John
e a Velha Leondra. As mulheres também atuavam como condutoras
do grupo de trabalho dos pequeninos, que incluía crianças entre
seis e sete anos, que realizavam tarefas mais leves (WRIGHT, 2002,
p. 69–71). As crianças interagiam igualmente com as curandeiras. No
sábado 27 de março de 1762, Abbah foi mandada para uma “Negroe
Wench”, algo como “"Jovem Preta”, que recebeu “quatro dinheiros”
para “cortar” o seu filho, que tinha a língua presa.45
Assim, estas mulheres que cercavam outras mulheres e crianças
desde a gravidez, no parto e na primeira infância, também devem
ser encaradas como parte do sistema oficial de gestão de plantation
44 Thistlewood Papers, Monson 31-17, Saturday 29th March 1766, 76.
45 A expressão “que recebeu quatro dinheiros” é no original a seguinte: who
was paid 4 bits. Thistlewood Papers, Monson 31-13, Saturday 27th March 1762, p. 51;
Monson 31-12, Sunday 25th January 1761.
216
e como figuras chave na rede feminina paralela de cuidados. O seu
impacto não deve ser subestimado. A importância que tinham
espelha-se ainda no fato de as mulheres resistirem a tentativas de
introduzir mudanças de fundo neste sistema. Não permitiam aos
donos das plantations reduzirem o período de desmame e recusa-
vam-se a utilizar casas de parto que afetassem a rede estabele-
cida (BUSH, 2010, p. 88). Essas mulheres por vezes tinham pautas
próprias e ajudavam na prática de abortos, contracepção e infanti-
cídio (BUSH, 1996, p. 206).46 Deste modo, tinham capacidade para
frustrar os planos mais cuidadosamente traçados pelo dono de
uma plantation. Há também indícios de que esta rede podia ser
estendida quando necessário. Assim, Phibbah criou amizade com
a Sra. Bennett (branca e livre) quando John começou a ficar alojado
na casa dela e o relacionamento das duas se desenvolveu com o
tempo.47 Bush propõe que esta rede local do que descreve como
“quase parentes” era uma criação caribenha, fruto de “respostas
novas e criativas a condições incapacitantes” (BUSH, 2010, p. 80).
Deve-se perceber as mulheres escravizadas como recorrendo
a todos os recursos de que dispunham de modo a garantir que
seus filhos poderiam ir além de apenas sobreviver no sistema de
escravidão. Mais do que tudo, eram movidas pela ideia de um futuro
melhor. A meta principal era a liberdade, a alforria oficial era sua
fonte suprema. Estas mulheres afetavam ainda os procedimen-
tos de controle ao conseguir alforrias para seus filhos e para elas
próprias com o auxílio de parceiros masculinos e pais brancos.
Estas alforrias oficiais normalmente eram concedidas sem maiores
dificuldades, muito embora a liberdade efetiva pareça ter sido bem
mais demorada. Quando se consegue acessá-los, os documentos
das plantations revelam vários exemplos de alforria oficial sendo
solicitada por advogados e feitores para mães escravizadas e seus
filhos.48 A rede feminina pode, pois, ser conceitualizada como
46 Bush (2010) sugere que as receitas das poções de ervas podem ter sido pas-
sadas de mãe para filha, bem como também ministradas pelas parteiras.
47 Thistlewood Papers, Monson 31-15, Wednesday 4th July to Tuesday 5th August
1764; Wednesday July 24th 1765.
48 Dundee MS, GD241-189-1, Cargen Dumfries to David Hood, 1st August 1793;
Penhryn MS 1366, Fearon to Lord Penhryn, 10th March 1805; Nisbet Papers,
Chishlome MS5476, fo. 46, James Chishlome to James Craggs, 28th April 1797.
217
um grupo que criava espaços para crianças em escravidão, por
meio da promoção de níveis de liberdade por meio da cultura;
da promoção da saúde e de cuidados; da facilitação da educação;
na criação de laços vinculadores de parentesco; ou na obtenção
de alforria oficial. As combinações específicas variavam, mas os
ingredientes eram os mesmos.
Conclusões
Em determinado nível, o gerenciamento da pauta da materni-
dade era dado pelas políticas dos donos de plantation, que incluí-
ram estratégias pró-natalistas a partir de meados do século XVIII.
Estas estratégias baseavam-se em premissas truncadas e, no fundo,
visavam essencialmente aos índices de produção futuros. Isto
transparece na maneira como os donos de plantation encaravam
as mulheres escravizadas e nas avaliações a respeito do dilema
do crescimento natural da população escravizada e suas possíveis
soluções. Acresce-se que sua aplicação cotidiana estava a cargo de
um grupo de feitores intermediários, em si envolvidos na questão
da reprodução escrava de diversas maneiras. No contexto local, isso
criava espaços nos quais as mães escravizadas, apoiadas em sua
cultura e comunidade, encontravam meios de manter a agência
sobre seu poder de reprodução e seus filhos. Em última análise,
a maternidade não podia ser controlada. Na essência, as políticas
pró-natalistas não se baseavam de fato no cuidado. As próprias
melhorias que foram introduzidas na segunda metade do século
XVIII estavam subordinadas às metas futuras de produtividade das
plantations. Desta forma, tais políticas tiveram sucesso limitado.
Os cuidados e a cultura das mães escravizadas acabaram por ser
o que teve mais efeito no desenho da lide com a maternidade
durante o período escravista.
Quando se analisa a natureza da interação dos três princi-
pais grupos da sociedade, é cabível defender que as mulheres
escravizadas foram fator de peso no exercício da maternidade
na plantation. Os donos de plantation definiam políticas, mas
nem sequer se davam conta da medida em que eram entrava-
das e, na verdade, condicionadas pelas próprias mulheres.
Todos os aspectos da Maternidade – sua abordagem, os meios
218
utilizados para aumentar a agência e até as formas emprega-
das na aceitação de alterações no seu gerenciamento – eram
determinados por mulheres e modelados por seus contextos
cultural e material.
219
Fontes Impressas
PINCKARD, George. Notes on the West Indies: written during the expedition
under the command of the late General Sir Ralph Abercromby. London:
Longman, Hurst, Rees, and Orme, 1806. v. 1. Disponível em: https://www.
biodiversitylibrary.org/page/45136283. Acesso em: 22 ago. 2021.
ROUGHLEY, Thomas. The Jamaica planter’s guide. Or, a System for Planting
and Managing a Sugar Estate. London: Longman, 1823.
Fontes Manuscritas
Estate Records:
220
Penhryn MSS – The Library, University College of North Wales, Bangor:
Coates, Denbigh, King’s Valley, and Thomas River plantations, and Bullard’s
pen, Clarendon and Westmoreland parishes, Jamaica: deeds and plans,
accounts, correspondence, and inventories, 1709-1828.
221
Referências
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Indies 1750-1810. In the Shadow of the Plantation: Caribbean History and
Legacy, p. 100-120, 2002.
CRATON, Michael. Jamaican slave mortality: fresh light from Worthy Park,
Longville and the Tharp Estates. Journal of Caribbean History, v. 3, 1971.
CRATON, Michael. Searching for the invisible man: slaves and plantation
life in Jamaica. Illustrated ed. Cambridge: Harvard University Press, 1978.
222
EDWARDS, Bryan. The history, civil and commercial, of the British colonies
in the West Indies. 2 nd ed. London: J. Stockdale, 1794. v. 2.
JONES, Cecily. “If this be living I’d rather be dead”: enslaved youth, agency
and resistance on an eighteenth century Jamaican estate. The History of
the Family, v. 12, n. 2, p. 92–103, 2007.
JONES, Cecily. “Suffer the little children”. Setting a research agenda for the
study of enslaved children in the Caribbean colonial world. Wadabagei,
A Journal of the Caribbean and its Diasporas, v. 9, n. 3, 2006.
LONG, Edward. The history of Jamaica. London: Frank Cass and Co. Ltd.,
1970, 2002. 3 v. 1st published 1774.
223
RAGATZ, Lowell. The fall of the planter class in the British Caribbean,
1863-1833. New York: Octagon Books, 1971.
224
MATERNIDADE, ALFORRIA E DIREITOS NO
CARIBE FRANCÊS (SÉCULO XIX)1
225
As leis promulgadas entre 1831 e 1845 tocaram a “arca santa” do
domínio senhorial (GATINE, 1844, p. 2). A metrópole, ao centra-
lizar o poder de legislar sobre a questão da alforria, interferiu no
direito dos senhores e abriu um flanco para a ação de pessoas
escravizadas e libertas. Assim, a quantidade expressiva de alforrias
conquistadas entre 1830 e 1847 se deve, em parte, às reformas
políticas e legislativas e às abordagens jurídicas ocorridas neste
curto período. 2
Para compreender o processo em torno do direito e da emanci-
pação nessa época, é necessário observá-lo como resultado de
tensões entre senhores, escravos, autoridades administrativas,
abolicionistas e governo metropolitano. Além disso, e sobretudo,
como as pessoas escravizadas e libertas passaram a utilizar as
arenas do direito para conquistarem – ou fazerem com que fossem
reconhecidas – suas liberdades oficiais e de suas famílias3. Esse
fenômeno ainda é pouco estudado pela historiografia que aborda
a história da escravidão no Caribe francês4, embora alguns autores
mencionem o affaire Virginie e outros processos da mesma época
(MOITT, 2001, p. 163-166; RIVIÈRE, 2020, 107-109).
O objetivo deste capítulo é apresentar uma análise sobre as
relações entre maternidade, conquista da alforria e abolicionismo a
partir de estudos de casos que envolveram principalmente mães e
filhos escravizados nas Antilhas Francesas. Em ações de liberdade
iniciadas nas colônias e finalizadas na Corte de Cassação em Paris, os
casos mais frequentes e emblemáticos foram aqueles de mulheres
que procuraram as arenas jurídicas para reivindicar suas alforrias
e de seus rebentos. Neste texto, abordarei principalmente o affaire
Virginie, caso que transformou a jurisprudência francesa sobre
226
direito à alforria nos anos finais da escravidão nas colônias. As
mães escravizadas e libertas tiveram um papel fundamental nos
processos de liberdade de suas famílias e suas ações, apoiadas
por advogados abolicionistas, provocaram mudanças importan-
tes não apenas no sistema judiciário, mas também nas relações
entre senhores e escravos e na percepção das pessoas escraviza-
das acerca da nova ordem política e jurídica.
Essa abordagem pretende, ademais, contribuir com debates
transnacionais sobre maternidade, alforria, direito, gênero e escravi-
dão nas Américas e no Caribe; é uma análise motivada por trabalhos
atuais e que procura estabelecer diálogos com Camillia Cowlling,
Sasha Turner, Maria Helena P. T. Machado, Marília B. A. Ariza, entre
outras historiadoras. De acordo com suas pesquisas, no século
XIX, a noção de maternidade como um traço fundamentalmente
humano e compartilhado, como representação máxima do devir
feminino, se tornou um tropo central na retórica abolicionista, fosse
ela francesa, inglesa ou ibérica. De norte a sul no mundo atlântico,
mulheres escravizadas, geralmente assessoradas por curadores ou
advogados abolicionistas, utilizaram o discurso que representou
as injustiças da escravidão na figura da mãe que é separada dos
filhos, e pleitearam nos tribunais o direito de exercer seus deveres
maternos, demandando sua liberdade e/ou de seus rebentos. No
Brasil, em Cuba, na Martinica e em Guadalupe, na França metropo-
litana, essa luta pela emancipação disputou os sentidos de leis
produzidas em diferentes contextos, mas sempre colocando o direito
à maternidade como experiência e argumento central pela liberdade
e a abolição da escravidão (ARIZA, 2017, p. 87–9; MACHADO, 2018,
p. 339–40; COWLING, 2013, p. 93–5; TURNER, 2017a).
227
mesmo legs de liberté, 5 mas não sabemos se ela teria sobrevi-
vido para conquistar sua alforria. Quando sua senhora morreu
dez anos depois, Virginie tinha dois filhos, nascidos depois que o
testamento havia sido feito. O mais novo, Simon, ainda estava sendo
amamentado e a filha Amélie tinha seis anos, e Virginie queria
mantê-los consigo, mas eles permaneceram como escravos dos
herdeiros de Bellecourt (GATINE, 1844, p. 3). Nas colônias france-
sas, a manumissão concedida por um proprietário somente era
considerada válida quando o liberto adquiria o título de alforria
oficial emitido pela administração colonial (CANELAS, 2017, p. 60-78).
Por isso, a alforria testamentária não poderia ser entendida como
uma liberdade condicional, como ocorria no Brasil, muito menos
ser acionada como uma brecha jurídica e utilizada estrategica-
mente por mães libertas e advogados em ações pela liberdade
dos filhos que nasciam após a alforria da mulher ter sido legada
em testamento (COWLING, 2013, p. 110-113).
Livre de fato desde 1832, Virginie apenas obteve sua carta
de alforria da administração colonial em 18 de fevereiro de 1834
(SCHOELCHER, 1847, p. 51). Ela insistiu que os filhos pequenos
permanecessem com ela, mesmo que tivesse que pagar um aluguel
aos senhores. Aparentemente, essa não era uma prática incomum
nas colônias francesas do Caribe. Em um outro caso, semelhante
ao de Virginie, uma mulher liberta da Martinica, Élia Plata, cuja
liberdade a tinha separado de seus seis filhos, todos ainda impúberes,
pagava um aluguel mensal a uma das herdeiras de sua ex-senhora
para ter ao menos as duas filhas menores consigo – quatro francos
por uma e três francos pela outra. Contudo, isso não garantia que
ao menos parte da família pudesse se manter reunida. Quando
uma de suas filhas ficou doente, Élia Plata recebeu ordens para
que retornasse as duas crianças à fazenda dos senhores (GATINE,
1844, p. 10). Provavelmente acreditavam que Plata não era capaz de
cuidar de suas próprias filhas, devido ao preconceito que sempre
impregnou a visão dos senhores e europeus sobre as famílias
escravas e libertas em sociedades escravistas na América (SLENES,
228
2011, p. 139-150; ARIZA, 2017, p. 35-68; CANELAS, 2020, p. 11-17).
No caso de Virginie, embora seus filhos fossem muito novos, os
proprietários das crianças escravizadas acreditavam que elas
não poderiam ficar com a mãe liberta nem mesmo temporaria-
mente. No processo de liberdade, argumentaram que se os filhos
de Virginie experimentassem as “vantagens” e as “doçuras” da
liberdade, ao retornarem ao poder de seus senhores, na “idade
da razão”, perceberiam a diferença entre uma condição e outra
e se tornariam escravos indisciplinados, situação indesejável “à
ordem pública das Colônias” (GATINE, 1844, p. 10).
Apenas em maio de 1837, Virginie ousaria requisitar aos herdei-
ros Bellecourt a restituição de seus filhos por meio do sistema
judiciário, iniciando uma ação no tribunal de primeira instân-
cia de Pointe-à-Pitre, em Guadalupe. Seu caso seria julgado por
esta corte somente um ano depois (SCHOELCHER, 1847, p. 51).
Desse processo em Guadalupe, obtivemos informações acerca de
parte da argumentação utilizada no julgamento e o resultado, sem
mais detalhes sobre, por exemplo, quem teria sido o advogado ou
curador de Virginie na colônia e como seu caso teria chegado à
Corte de Apelação em Paris.
Todavia, é imprescindível abordar a história de Virginie e de seus
filhos nos tribunais franceses, pois seu caso se tornou emblemá-
tico e abriu um caminho que seria trilhado por várias ações de
liberdade. O resultado de seu processo influenciaria outros que,
como o dela, batalharam por anos nos tribunais das colônias por
um desfecho que não favorecesse os senhores e que garantisse por
meio da liberdade a reunião de famílias de ex-escravos. O Code Noir
(Código Negro) proibia em seu art. 31 que os escravos pudessem
participar de qualquer processo civil (Durand-Molard, Tomo 1, 1807,
p. 48), situação que mudaria, em parte, apenas em 1845, com a Lei
Mackau. Contudo, Virginie, ao se tornar liberta em 1834, obtinha os
direitos civis e políticos garantidos pela lei de 24 de abril de 1833
(Loi concernant l’exercice des Droits Civils et des Droits politiques
dans les Colonies),6 e isso provavelmente encorajou sua empreita
ao buscar enfrentar os senhores de seus filhos nos tribunais.
229
Em sociedades escravistas como Brasil e Cuba, a separação
de famílias escravizadas, principalmente de mães e seus filhos
impúberes, foi proibida em legislações instituídas tardiamente,
nos processos de abolição gradual na segunda metade do século
XIX (COWLING, 2013, p. 105-110; ARIZA, 2017, p. 37). Já as ações
de liberdade de Virginie demonstram, sobretudo, a reinterpre-
tação de uma legislação antiga, a qual, influenciada pela missão
moralizante da igreja católica (francesa) em relação à escravidão
dos povos africanos no início da colonização das Antilhas, tinha o
objetivo de incentivar a união canônica entre os escravos e evitar
que as famílias fossem separadas nas transações entre senhores.
De maneira astuciosa e legítima, a partir do affaire Virginie, nas
décadas de 1830 e 1840, o Código Negro (1685) passaria a ser
utilizado por mães escravizadas e libertas e advogados abolicio-
nistas para conquistar a liberdade de famílias escravas inteiras.
Desse modo, o debate jurídico feito sobre o caso de Virginie e seus
filhos abordou a aplicação do art. 47 do édito de 1685, que dizia:
230
Adolphe Gatine, um relatório do Conselho Colonial de Guadalupe
sobre a situação da colônia informou que, durante 15 anos entre
1825 e 1839, 37.871 escravos foram vendidos em Guadalupe, dos
quais 7.698 (20,3%) eram crianças impúberes, ou seja, menores de
quatorze anos. Provavelmente, muitas entre elas foram vendidas
separadamente de suas mães (GATINE, 1844, p. 5).
O primeiro caso de uma ação de liberdade que recorreu ao
art. 47 do Código Negro aconteceu também em Guadalupe, em
1836. Annoncine e sua criança Adeline eram escravas do senhor
Soulés. Depois de liberta, Annoncine reivindicou que sua filha,
menor de quatorze anos, permanecesse com ela em liberdade.
O Tribunal de Primeira Instância de Guadalupe interpretou a
alforria de Annoncine como uma forma de alienação de proprie-
dade escrava e considerou que, de acordo com a ordenação de
1685, naquele caso, a criança impúbere não deveria ser separada
de sua mãe. Essa decisão inusitada foi confirmada pela Corte Real
da colônia (SCHOELCHER, 1847, p. 43). Os juízes e assessores do
sistema judiciário das possessões francesas tinham frequente-
mente ligações familiares ou financeiras com a elite branca de
proprietários de escravos, e esse fenômeno era um dos pilares
de sustentação da hegemonia senhorial e racial nas colônias.
Entretanto, o advento do novo governo sob a Monarquia de Julho
provocou alterações na magistratura colonial. Alguns dos novos
juízes nomeados, em geral aqueles vindos da metrópole, eram
críticos às condições de vida dos escravizados e aos abusos da
classe senhorial e é possível que um desses magistrados tenha
julgado a ação vitoriosa de Annoncine. Mas a experiência mais
comum vivenciada por eles era caracterizada por obstáculos para
exercer suas funções e represálias por cumprir tanto a legislação
antiga como as novas ordenações promulgadas entre as décadas
de 1830 e 1840 (SCHMIDT, 2000, p. 185-186).
O veredito favorável no processo de Annoncine provavelmente
motivou a ação de Virginie pela tutela e liberdade de seus filhos.
Segundo Gatine, Virginie invocou o art. 47 do Código Negro desde
o início de sua apelação no Tribunal de Primeira Instância de
Guadalupe (1837-1838). No entanto, em decisão de julho de 1838, o
juiz daquele tribunal decidiu que não se tratava de “uma venda da
mãe sem os filhos”, como previsto pela lei, e que o caso de Virginie
não deveria ser entendido sob “o pretexto de analogia” (GATINE,
231
1844, p. 6). Após o caso de Annoncine e Adeline, os senhores de
escravos das colônias empregaram sua influência ao Ministério
da Marinha e das Colônias para que os juízes das Cortes Reais das
possessões francesas fossem substituídos por homens favoráveis
às “necessidades do regime servil”. Em consequência, todas as
ações que recorressem ao art. 47 do Código Negro seriam refuta-
das nos tribunais coloniais (SCHOELCHER, 1847, p. 44).
Virginie não desistiu do processo e apresentou uma apelação
à Cour de Cassation (Corte de Cassação) em Paris. Em 1o de março
de 1841, este tribunal superior enunciou em suas conclusões sobre
o caso de Virginie que “as leis que, diretamente ou indiretamente,
tem por objeto a liberdade” deveriam ser julgadas em um sentido
mais amplo (SCHOELCHER, 1847, p. 45). Por isso, os juízes da Corte
de Apelação interpretaram que no art. 47 do édito de 1685, ao
prescrever a proibição de venda separada “do marido e a mulher,
e seus filhos impúberes”, quando pertenciam ao mesmo senhor,
os legisladores tinham em vista coibir qualquer separação que
pudesse ser fatal às crianças ou ferir as “leis de humanidade e os
princípios do direito natural”. Nesse sentido, deliberaram que a
interdição promulgada na legislação antiga poderia ser aplicada
tanto se o desmembramento da família escrava fosse provocado
pela alforria quanto pela venda, sobretudo se a transação envolvesse
a mãe ou seus rebentos. Por conseguinte, o caso de Virginie e de
seus filhos deveria ser julgado novamente, em outro tribunal.
Para o novo julgamento, foi indicada a Corte Real de Bordeaux
(França), escolha que pareceu temerária aos abolicionistas. Sabia-se
que os portos da costa atlântica francesa eram dominados pelos
interesses nos negócios coloniais. Esse ambiente influenciado por
senhores de escravos ou seus representantes poderia induzir os
membros da Corte de Bordeaux a uma posição contrária a toda
matéria favorável à emancipação. Além disso, fazia parte daquele
tribunal Imbert de Bourdillon, antigo procurador-geral da Martinica,
onde, de acordo com o abolicionista Victor Schoelcher, distinguiu-
se “por sua fúria contra os escravos”. Temia-se que, por conta de
sua experiência e vínculo com as colônias, Imbert de Bourdil-
lon exercesse uma influência indesejável sobre a decisão de seus
colegas em relação à ação de Virginie. De fato, a Corte Real de
Bordeaux, que poderia julgar o caso em seis semanas, pronunciou
sua deliberação apenas quinze meses depois da decisão da Corte
232
de Cassação (de março de 1841), quando à Virginie restava apenas
sua filha Amélie, para quem solicitava a liberdade, pois Simon,
com 12 anos de idade, havia falecido em poder dos seus senhores
(SCHOELCHER, 1847, p. 45-46) – não há relatos claros sobre os
motivos de sua morte. Além da separação, Virginie sofreria mais
um fardo comum à experiência de mulheres escravizadas e libertas:
o luto pela morte de seus filhos ainda impúberes (TURNER, 2017b).
Assim como se temia, em junho de 1842, a Corte de Bordeaux
decidiu por um veredito semelhante ao tribunal de Guadalupe,
afirmando que o art. 47 do Código Negro proibia a separação da
mãe e dos filhos em caso de venda e confiscação de bens, mas que
poderiam ser separados se um ou outro fosse alforriado. Ademais,
o procurador-geral da Corte de Bordeaux argumentou que os
senhores não alforriariam mais se tivessem que perder os filhos
das escravas também – e vice-versa –, prejudicando as conces-
sões de alforrias, objetivo inverso ao pretendido pelos abolicionis-
tas. Esse argumento era, inclusive, usado pelos colonos, por seus
delegados e pela imprensa que defendia os interesses coloniais e
escravistas na metrópole. O procurador-geral alegou, ainda, que
se a decisão daquele tribunal favorecesse a demanda de Virginie
comprometeria a economia das colônias, pois um grande número
de escravos reclamaria suas liberdades, “se a nova teoria da Corte
de Cassação viesse a prevalecer” (GATINE, 1844, p. 13).
No entanto, a persistente Virginie novamente recorreu à Corte
de Cassação contra as decisões dos tribunais de Guadalupe e de
Bordeaux. No novo julgamento realizado, assim como em 1841,
Adolphe Gatine foi o advogado que representou os interesses
de Virginie no tribunal de apelação. Em suas alegações, Gatine
demonstraria de maneira sagaz que o art. 47 do Código Negro era
aplicável à situação vivida pela mãe liberta e seus filhos. Primei-
ramente, afirmou que de fato não houve uma venda propria-
mente dita, seja forçada ou voluntária, mas que ocorreu um
legado de herança. Isso posto, ressaltou que a lei antiga não
enunciava apenas os termos “venda” e “confiscação de bens”, mas
também se referia de forma abrangente a “alienações voluntá-
rias”, ou seja, a toda espécie de cessão de bens. Nesse sentido, de
acordo com o art. 711 do Código Civil em vigor na década de 1840,
a herança era uma via de transmissão de bens. Consequente-
mente, segundo Gatine, conceder a alforria a uma escrava em um
233
testamento certamente era uma forma de alienação de proprie-
dade e, assim, a escrava liberta não poderia se separar de seus
filhos. De acordo com o advogado, se a herança fosse legada em
benefício de um terceiro, não haveria nenhuma dúvida quanto a
isso, pois um outro legatário que adquirisse a propriedade sobre
Virginie, reclamaria também a posse sobre os filhos impúbe-
res da escrava. Como a disposição do testamento foi feita em
benefício de Virginie, a coisa legada e o legatário coincidiam; ela
mesma havia adquirido a propriedade de seu corpo e poderia, da
mesma forma que outros “herdeiros”, requisitar que seus filhos
lhe fossem entregues, “como sendo inseparáveis de sua mãe”
(GATINE, 1844, p. 6). Segundo Gatine, o Código Negro preconi-
zava no art. 47 de forma ampla o “princípio da indivisibilidade
da família” (escrava), ao menos até a puberdade das crianças. A
questão era saber se este “princípio” deveria cessar assim que a
mulher escrava alcançasse uma condição melhor, como quando
conquistava sua alforria (GATINE, 1844, p. 9).
Essa interpretação da essência do art. 47 do Código Negro
como um princípio da indivisibilidade da família escravizada surgiu
pela primeira vez nessa defesa de Gatine à causa de Virginie e
seus filhos na Corte de Cassação em 1844. Nesse julgamento, o
advogado abolicionista recorreu ao “direito natural” e ao “direito
de pessoas” para aprofundar a definição do fundamento em
questão, e utilizou a obra do jurista alemão Samuel Pufendorf
(1632-1694), Droit de la nature et des gens, capítulo “Du pouvoir
paternel” (Liv. 6, chap. 2),7 do qual citou a passagem que afirma
que “toda mulher se torna ao mesmo tempo mãe e senhora da
criança que ela coloca no mundo”. Gatine argumentou, então, que o
direito à maternidade era “um direito anterior àquele dos colonos
das Antilhas, um direito inalienável, inviolável”. Nesse “direito
sagrado”, estavam entremeados seus deveres e suas alegrias: a
mãe deveria amamentar seus filhos, criá-los, protegê-los, velar
sobre eles a todo momento. Segundo a interpretação de Gatine,
234
no sentido do direito natural, os direitos e deveres da materni-
dade eram centrais na definição e na aplicação do princípio da
indivisibilidade da família expresso no art. 47 do Código Negro
(GATINE, 1844, p. 8-9).
A Corte de Cassação mais uma vez foi favorável à aplicação
abrangente da disposição do Código Negro, contra a separação da
mãe e dos filhos em caso de alforria. A deliberação final do tribunal
recorreu a uma argumentação semelhante àquela apresentada
por Gatine na defesa à causa de Virginie, como a alegação sobre
a herança entendida como alienação e, assim, a própria alforria
testamentária reconhecida como uma forma de transferência
de bens. A decisão da Corte de Cassação ressaltou ainda, assim
como o advogado abolicionista, os direitos e deveres da materni-
dade em relação à fragilidade da primeira idade das crianças e,
invocando o respeito à “moral pública” e “ao benefício que se liga à
liberdade”, determinou que se interpretasse em um sentido mais
amplo “uma legislação toda de exceção”, garantido um retorno aos
“princípios do direito natural”8. Por fim, sentenciou que a interpre-
tação do art. 47, sobre a indivisibilidade das famílias escravas,
seria aplicável também no caso em que o senhor se despojasse
de sua propriedade, mãe de um ou vários filhos impúberes, por
meio da alforria, criando uma jurisprudência histórica, que seria
marcante nas ações de liberdade nos últimos anos de escravi-
dão nas colônias francesas. Nesse julgamento de 1844, a Corte de
Cassação ainda anulou as decisões dos tribunais de Guadalupe e
de Bordeaux e reenviou o caso de Virginie à Corte Real de Poitiers
(GATINE, 1845, p. 7-8).
A Corte de Poitiers (França), considerada bem menos sensível
às influências coloniais que a Corte de Bordeaux, não mudaria
a decisão da Corte de Cassação em sua essência, mas iria mais
longe. Finalmente, reconheceu como livre a filha de Virginie que
havia sobrevivido, Amélie, já com 18 anos na época, determinando
que ela deveria ser imediatamente enviada ao encontro de sua
mãe. A decisão do tribunal acrescentou, ainda, algo inusitado
235
para a época. Considerando que Virginie havia sofrido danos
excessivos devido à recusa dos herdeiros de lhe deixar com seus
filhos, condenava todos os beneficiários da sucessão da senhora
Bellecourt a pagarem uma indenização de quinze mil francos à
mãe, além de arcarem com todas as custas dos processos que
haviam ocorrido em Guadalupe, Bordeaux e Poitiers. Os herdei-
ros Bellecourt contestariam a decisão de Poitiers e não sabemos
se Virginie realmente recebeu a indenização devida (SCHOEL-
CHER, 1847, p. 51-53).
A condenação pecuniária, sentenciando os ex-senhores a
uma indenização por danos causados aos libertandos, era um
elemento extremamente novo e raro. De acordo com o abolicio-
nista Victor Schoelcher, essa questão, que mexia mais a fundo
no bolso dos proprietários, poderia mudar seus cálculos acerca
da manutenção ilegal de indivíduos escravizados, como no caso
dos filhos de Virginie (SCHOELCHER, 1847, p. 54). É interes-
sante destacar que nos debates sobre indenização dos senhores
de escravos em caso de uma abolição geral da escravidão nas
possessões francesas, Cyrille Bissette foi o único abolicionista
a argumentar que os libertos deveriam ser indenizados, e não
os proprietários. Mesmo Schoelcher estimava que uma forma
de compensação deveria ser paga à classe senhorial se a França
decidisse pela emancipação universal (JENNINGS, 2010, p. 76).
A despeito dessa questão da indenização, a liberdade da filha
de Virginie foi decretada e a jurisprudência sobre a interpreta-
ção ampla do art. 47 do Código Negro, no caso de separação de
mães e filhos escravos pela alforria, estava concretizada.
236
A história da ação de liberdade de Virginie e seus filhos foi
narrada em textos e compilações de processos publicados por
Adolphe Gatine, Cyrille Bissette e Victor Schoelcher. Foi possível
ter acesso apenas à defesa montada por Gatine e comentários
de Bissette e Schoelcher em libelos sobre esse caso, além dos
textos das decisões do tribunal superior e do tribunal real de
Poitiers (França), publicadas pelo advogado abolicionista. Gatine,
como advogado da Corte de Cassação na França, representou
os interesses de Virginie nos processos que chegariam a este
tribunal superior em Paris em 1841 e em 1844.
Além da importância das redes de relações com pessoas
livres e libertas, o papel exercido por curadores e advoga-
dos, nas colônias e na metrópole, foi fundamental nas ações
de liberdade de mães cativas e libertas e suas famílias. Keila
Grinberg aponta a importância de redes de solidariedade e
reconhecimento social para que pessoas escravizadas pudessem
angariar o apoio de advogados e curadores que intercedes-
sem judicialmente por elas (GRINBERG, 2008, p. 35-40). As
fontes que tivemos acesso ressaltam principalmente a atuação
de Adolphe Gatine que, embora menos célebre que abolicio-
nistas como o francês Victor Schoelcher, exerceu um papel
importante na luta pelos direitos civis e políticos da classe dos
“livres de cor” e pela emancipação de pessoas escravizadas.
Jacques Adelaïde-Merlande aponta que Adolphe Gatine –
nascido em Paris, 1805 – teria se empenhado bem cedo às causas
coloniais, atuando como advogado nos Conselhos reais e na Corte
de Cassação na França. O historiador presume que foi a aproxi-
mação com Cyrille Bissette e Louis Fabien que teria impulsionado
Gatine a se empenhar na defesa dos direitos dos “livres de cor” e
das pessoas escravizadas das colônias (ADÉLAÏDE-MERLANDE,
2012, p. 7). Cyrille Bissette e Louis Fabien eram homens negros e
nascidos livres na Martinica, que viviam o exílio em Paris desde
1828, devido a perseguições sofridas nas colônias caribenhas
(THÉSÉE, 1997, p. 147-189). Depois de um período na prisão, a
partir de 1830, Bissette liderou um grupo de homens “livres de cor”
antilhanos que também viviam exilados na metrópole, atuando
juntos pelos direitos civis e políticos de sua classe nas colônias e
por reformas quanto à situação das pessoas escravizadas e sua
emancipação (CANELAS, 2017, p. 231-265; JENNINGS, 2010, p. 39).
237
De acordo com Adelaïde-Merlande, o processo que tornou
Adolphe Gatine célebre nos meios abolicionistas foi o caso de
Virginie (ADÉLAÏDE-MERLANDE, 2012, p. 8), mas ele se envolveu
em diversas ações antiescravistas e por direitos civis e políticos
para a população negra livre em parceria com Bissette e outros
abolicionistas antilhanos entre as décadas de 1830 e 1840. O
vínculo e a amizade entre Bissette e Gatine são evidenciados em
dois documentos publicados pelo abolicionista martinicano. Em
uma carta de 1845 destinada ao procurador da Corte de Cassação,
Bissette se refere a Gatine como seu “honorable ami”, encarre-
gado de defender as apelações de mães e filhos escravizados que
reivindicavam suas liberdades na Corte de Cassação (BISSETTE,
1845a, p. 20). Gatine escreveu o prefácio de uma coletânea de
cartas políticas escritas por Bissette na década de 1840, no qual
o advogado abolicionista caracteriza Bissette como um “soldado”
persistente na luta em defesa de “seus irmãos”, procurando “cada dia
uma brecha, para conseguir a liberdade de alguns pobres negros”
(BISSETTE, 1845b, p. 5-8).
Embora o trabalho de Gatine nas arenas do direito e do
abolicionismo francês tenha sido fundamental para as ações
de liberdade que discutimos neste capítulo, sua atuação foi
essencialmente informada e fomentada pelas redes de solida-
riedade e comunicação estabelecidas entre os abolicionistas
negros exilados em Paris e seus contatos nas colônias. Nas décadas
de 1830 e 1840, o abolicionismo se revigorou e ganhou força na
França, mas os atores negros geralmente são quase invisibiliza-
dos na historiografia que aborda tal processo histórico (SCHMIDT,
2000, p. 247–65). No entanto, existem indícios que apontam a
importância essencial da comunicação entre libertos e escravos
das Antilhas Francesas e abolicionistas negros franco-caribe-
nhos que viviam na Metrópole nas décadas finais do sistema
escravista francês (CANELAS, 2017, p. 231-265). Em 1845, Cyrille
Bissette escreveu uma carta a Dupin, deputado e procurador-
geral da Corte de Cassação, na qual narrou vários casos de filhos
impúberes separados de suas mães devido à alforria das crianças,
denunciando a administração e a justiça colonial por dificul-
tarem o acesso à liberdade e desrespeitarem a jurisprudên-
cia criada pelo tribunal superior no affaire Virginie (BISSETTE,
1845a). Provavelmente, os relatos de Bissette sobre essa conjuntura
238
eram informados por seus interlocutores nas ilhas do Caribe,
em geral pessoas da classe dos “livres de cor”.9
Como observado no caso de Virginie, o sistema judiciário das
colônias, influenciado pelo poder senhorial, era uma pedra no
caminho das ações de liberdade. Em um julgamento realizado
nas colônias em 1842, relatado por Bissette e comentado por
Gatine, sobre o caso da liberta Azède e seus filhos que permane-
ciam em cativeiro, o juiz acusou a mãe de preferir sua liberdade,
tendo “violado os laços de família”. Nesse sentido, o magistrado
concluiu que Azède não tinha o direito de reclamar seus dois
filhos, pois era sua falta ter se “separado voluntariamente” deles.
Gatine ironiza a decisão do juiz, afirmando que “falta estranha
[Azède] ter preferido a liberdade à escravidão!” (GATINE, 1844,
p. 11). Observa-se nesse caso que o sistema judiciário da colônia
utilizava a noção emergente de maternidade burguesa da forma
que era conveniente ao domínio senhorial. Os deveres do ideal de
maternidade eram salientados em detrimento da liberdade e do
“direito natural” que ligava mães e filhos. A jurisprudência criada
no affaire Virginie foi considerada subversiva nas colônias, contrá-
ria ao direito colonial; assim, mesmo que as ações de liberdade
conseguissem às vezes uma deliberação favorável aos escravos e
escravas nos tribunais coloniais de primeira instância, as decisões
que acatavam a interpretação do art. 47 conforme a orientação da
Corte de Cassação frequentemente eram anuladas pelas Cortes
Reais de Guadalupe e da Martinica (GATINE, 1846, p. 3).
De acordo com o advogado abolicionista, as pessoas escravi-
zadas e seus defensores, ao receberem as sentenças negativas,
tinham o desejo de recorrer ao tribunal superior na Metrópole,
mas um primeiro obstáculo era a falta de recursos financeiros
para tocar o processo. “Tarifa-se a fonte das alforrias judiciá-
rias”, afirma Gatine. Uma apelação à Corte de Cassação exigia o
desembolso de uma taxa de 165 francos ou a requisição de um
certificado de indigência (GATINE, 1846, p. 6). Para se ter ideia de
239
como o valor dessa taxa era alto, observe que as estimativas de
preços de crianças escravizadas na Martinica, na faixa etária de
1 a 10 anos, variavam entre 80 e 500 francos, aproximadamente
(CANELAS, 2017, p. 147). O ponto central da crítica de Gatine era
que não deveria haver dúvidas sobre a situação de pobreza de uma
pessoa recém-egressa da escravidão que solicitava judicialmente
a alforria de um parente, por isso deveria receber da administra-
ção colonial o “certificado de indigência” para não ter que arcar
com as custas processuais (GATINE, 1846, p. 6). Na explanação
de Gatine, fica evidente que, além das famílias, também outros
sujeitos, quase que exclusivamente pessoas “livres de cor”, auxilia-
vam libertas e libertos nas ações pela liberdade de seus familia-
res que permaneciam no cativeiro. Em uma declaração feita para
apoiar a obtenção de um certificado de indigência no caso de Marie
Noël — cuja liberdade era reclamada por seu filho liberto —, cinco
homens negros, livres e “respeitáveis” de Saint Pierre 10 (Martinica)
assinaram o documento, afirmando que era de seu conhecimento
a situação de “pobreza a mais extrema” daquela família (GATINE,
1846, p. 6). Contudo, a administração local, geralmente as prefei-
turas dos municípios, atravancavam a certificação do estado de
pobreza de pessoas como Marie Noël e seu filho, dificultando dessa
maneira que dessem continuidade aos processos, sem despesas.
Na Martinica, em 1845, segundo informações recebidas por
Gatine, o governo colonial negou o certificado de pobreza para
os filhos impúberes de outras três mulheres escravizadas, além
de Marie Noël, que, separados de suas mães pela alforria, deseja-
vam iniciar um processo de liberdade por suas progenitoras, com
o apoio de um adulto livre. Eram eles, Louisy Trebmy, 13 anos, filho
de Antoinette Trebmy; Alexandre Niflo, 5 anos, filho de Eugénie;
240
Émile Monbeau, 3 anos, filho de Rosella; Anténor, 11 anos, filho de
Marie Noël. O representante da administração colonial justificou
que não poderia considerar aqueles menores de 14 anos “indigen-
tes” porque alguns estavam sob a tutela de seus pais e recebiam
deles os cuidados necessários em sua idade, outros estavam sob a
proteção de um patrono (ou patrona) que, ao solicitar sua alforria,
havia se responsabilizado por prover todas as necessidades da
criança liberta (GATINE, 1846, p. 7). Esses casos ilustram como
o primeiro passo para iniciar uma ação de liberdade no tribunal
superior na metrópole não era facilmente ultrapassado por aquelas
pessoas que não tinham recursos suficientes.
Durante os oito anos que decorreu o processo de Virginie
(1837-1844), apenas uma outra apelação de natureza semelhante
teria sido levada à Corte de Cassação, o caso de Marie Luce, sobre
o qual Gatine não forneceu mais detalhes (GATINE, 1844, p. 17).
No entanto, depois do resultado do affaire Virginie, essa situação
mudaria consideravelmente. Em 1847, Gatine listou vários processos
de liberdade cujos resultados positivos decorriam do Arrêt Virginie
e observa-se que em três anos (1844-1847), 34 famílias, contando
um total de 120 indivíduos, foram beneficiadas pela jurisprudência
criada pela Corte de Cassação: em Guadalupe, 5 famílias (contando
a de Virginie), somando 16 indivíduos; na Martinica, 25 famílias,
somando 100 indivíduos (GATINE, 1847, p. 1-2). Mesmo no Senegal,
onde o Código Negro nunca havia sido promulgado — mas reconhe-
cia-se que várias das disposições do édito de 1685 eram aplica-
dos na colônia na África pelos usos e costumes, constituindo o
“direito de escravidão no Senegal” —, algumas mães conquista-
ram a liberdade de suas crianças por meio da jusrisprudência do
caso Virginie.11 De acordo com Gatine, a cada dia aumentava mais
o número de “liberdades do art. 47”, resultando de julgamentos
ou ainda de “resgates facilitados”. Algumas famílias escravas, cuja
situação permitia a aplicação da interpretação do art. 47, consegui-
ram negociar suas alforrias por intermédio do resgate forçado,
241
regulamentado pela Lei Mackau de 1845, preferindo acertar um
valor sobre suas liberdades que esperar o resultado de longos
processos (CANELAS, 2017, p. 381-419). Segundo informações que
havia obtido, Gatine estimava que o número de “liberdades do
art. 47” poderia chegar a 1.200 alforrias naquele ano (GATINE,
1847a, p. 3).
Muitos casos se distinguiam daquele de Virginie, embora
a grande maioria se referisse a famílias formadas por mães e
seus filhos. Bissette narra, na carta enviada ao deputado Dupin
em 1845, vários processos nos quais crianças libertas, represen-
tadas por seus pais ou outra pessoa responsável por elas após
a alforria, solicitavam nos tribunais das colônias a liberdade de
suas mães que haviam permanecido na escravidão. Em agosto
de 1840, o senhor Lavau, proprietário da habitation Petit Marigot
em Guadalupe, vendeu o menino Alcide, de oito anos de idade,
à senhora Augustin Amédée, tia da criança, pelo preço de 500
francos. A alforria de Alcide foi solicitada pela senhora Amédée
e concedida pelo governo de Guadalupe em outubro de 1842.
Um ano depois, a viúva Amédée, em nome de Alcide, reclamou a
liberdade da mãe do menino, Cécé, que permanecia como escrava
de ganho em Basse-Pointe, pagando suas jornadas de trabalho ao
senhor Lavau. A alegação da ação de liberdade se baseava no fato
de que mãe e filho menor de idade haviam sido separados por um
ato de venda seguido de alforria, recorrendo ao art. 47 do Código
Negro. Como a administração colonial não fez nada para encami-
nhar a solicitação da senhora Amédée, a própria Cécé se dirigiu
pessoalmente ao Procurador do Rei da colônia para pedir que
tomasse as medidas necessárias sobre a demanda de sua alforria.
Contudo, os funcionários do governo não encaminharam seu caso
até 1844, quando, por conta da insistência de Cécé e sua família,
o senhor Lavau foi convocado diante do tribunal para responder
se consentia a alforria de sua escrava. Lavau respondeu que a
autorizaria sob a condição de que Cécé lhe pagasse 500 francos,
mas a escrava rejeitou esta proposta e continuou insistindo em
seu direito à liberdade. No entanto, quando Bissette narrou essa
história de Cécé e Alcide, seu caso ainda não tinha sido resolvido
(BISSETTE, 1845a, p. 2-4).
No ato da venda de Alcide a sua tia, Lavau teria feito registrar
que realizava aquela venda “sob a condição expressa” de que a
242
senhora viúva Amédée se comprometia a alforriar seu sobrinho no
prazo de um ano. Se não o fizesse, ele teria o direito de retomar a
propriedade sobre Alcide, devolvendo à senhora Amédée duzentos
francos a menos do valor da venda. Bissette ironiza a atitude de
Lavau, que além de cobrar um valor alto pela criança escravizada,
ainda se apresentava no documento como o benfeitor responsável
pela promessa de liberdade a Alcide (BISSETTE, 1845a, p. 2). Talvez
o senhor dos escravos acreditasse que assim evitaria configu-
rar a transação como uma venda separada de mãe e filho, o que
possibilitaria uma demanda de alforria posterior, como de fato
ocorreu. É possível, ainda, que a atitude de Lavau fosse uma reação
ao fato de que em Guadalupe e na Martinica a alforria como parte
de uma política de domínio senhorial já vinha sofrendo pertur-
bações desde 1831. Como afirma Chalhoub em relação ao Brasil,
“um dos pilares da política de controle social na escravidão era
o fato de que o ato de alforriar se constituía numa prerrogativa
exclusiva dos senhores” (CHALHOUB, 1990, p. 99-100). Na situação
da alforria de Alcide, sua liberdade deveria partir da vontade de
seu senhor e ser reconhecida como um benefício concedido por
ele. Dessa maneira, talvez Lavau tentasse evitar que seu domínio
sobre o cativeiro ou a liberdade de sua propriedade escrava não
fosse abalado pela ação de uma mulher “livre de cor” – a senhora
Amédée –, que, ademais, ainda tinha laços de parentesco com seus
escravos. Contudo, sua atitude se tornou duplamente improfícua
quando Cécé e a senhora Amédée passaram a batalhar juntas pela
alforria da primeira, ação que demonstra mais uma vez como os
escravos, sobretudo as mulheres escravizadas e libertas, estavam
lutando pela liberdade nos últimos anos do sistema escravista nas
colônias francesas, confrontando a classe senhorial e dando seu
bocado ao processo histórico de abolição da escravidão.
Camillia Cowling, em seu estudo sobre ações de liberdade
realizadas em Cuba e no Rio de Janeiro no século XIX sob uma
abordagem de gênero, afirma que as mulheres eram mais propen-
sas que os homens a buscarem as alforrias para seus parentes,
particularmente para seus filhos, como uma parte fundamental
de suas lutas judiciárias. Essa predominância ocorria, em parte,
devido ao princípio do partus sequitur ventrem, que garantia o
registro escrito da relação de parentesco entre mães e filhos,
documentação que pôde ser acionada quando as legislações das
243
sociedades escravistas e os discursos abolicionistas sobre materni-
dade começaram a oferecer alguma proteção teórica contra a
separação das famílias. Essas ferramentas jurídicas e discursivas
possibilitaram que as mulheres recorressem ao sistema judiciário
para unir as famílias na liberdade mais frequentemente do que
os homens. No entanto, elas não agiam sozinhas, pois suas redes
de relações, especialmente com familiares, foram fundamentais
para que conseguissem chegar aos tribunais, e um importante
suporte nesses processos era dado pelos pais de seus rebentos.
De acordo com Cowling, os homens, cativos ou libertos, apareciam
menos que as mulheres como principal reclamante da liberdade
de seus filhos por várias razões, mas principalmente porque eram
separados de suas crianças pela venda de escravos mais frequen-
temente que as mães. Além disso, em Cuba e no Rio de Janeiro, as
estruturas burocráticas e legais ajudaram a silenciar o papel dos
amigos e das famílias daqueles que demandavam suas alforrias,
deixando um “quadro de lutas atomizadas pela alforria indivi-
dual”. Raramente, por exemplo, a fonte do dinheiro oferecido pela
mulher escravizada pela liberdade de suas crianças é discutida,
entretanto, sabe-se que, além do trabalho e do pecúlio da mãe,
parte dos fundos para comprar a alforria eram contribuições de
parentes. As relações familiares tanto em Cuba como no Brasil
se estendiam para além das ligações sanguíneas, em redes mais
amplas de famílias adotivas, nas quais geralmente as madrinhas
eram as figuras mais propensas a iniciar ações legais por seus
afilhados, representando as mães que estavam incapacitadas de
fazer isso por elas mesmas (COWLING, 2013, p. 138-142).
Dessa forma, observamos que os processos de liberdade
envolvendo mulheres negras e seus filhos, nas Américas e no Caribe,
são frequentemente apenas uma parte da história, pois, parentes
e toda uma rede de apoios as auxiliavam em suas batalhas nos
tribunais, como no caso da escrava Cécé e a viúva liberta Amedée.
Em relação às ilhas de Martinica e Guadalupe, Cyrille Bissette narra
alguns casos de crianças vendidas aos seus pais naturais, enquanto
as mães permaneciam na escravidão, e que depois de alforriar o
filho, o homem solicitava a liberdade da mulher. Estes homens
também enfrentavam a resistência da administração e do sistema
judiciário das colônias, mas disputaram a liberdade de suas famílias
procurando utilizar a nova interpretação do art. 47 do Código Negro
244
instituída na década de 1840. O abolicionista conta a história de
Claude Pontif, um liberto, carpinteiro, que prestava serviços ao
senhor Lespinasse, em sua propriedade rural em Trois-Rivières,
na ilha de Guadalupe. Certamente havia conseguido comprar sua
liberdade deste senhor, mas sua mulher Zabeth e seus nove filhos
ainda viviam como escravos de Lespinasse. Em outubro de 1839,
o senhor Lespinasse vendeu à Pontif seu filho mais novo, Saint-
Saint, de três anos, como pagamento pelos serviços prestados
pelo liberto na fazenda, no valor de 600 francos (BISSETTE, 1845,
p. 8), preço alto para uma criança escravizada daquela faixa etária.
Pontif provavelmente evitou discutir o montante cobrado, pois
havia conseguido dessa forma que o senhor autorizasse a alforria
de seu rebento, obtendo o registro da liberdade oficial de Saint-
Saint em outubro de 1842. Além de Zabeth e os outros filhos que
seguiam como escravos de Lespinasse, uma outra filha do casal
tinha sido vendida pelo proprietário da família, em 1827, ao senhor
Corneille-Marcel, quando ela tinha apenas seis anos de idade.
Em 1844, Pontif solicitou as alforrias de Zabeth e de suas
crianças em nome de seu filho liberto que havia sido vendido
separadamente de sua mãe, contrariando o art. 47 do Código Negro.
O Procurador do Rei escreveu, então, ao senhor Marius Courtois,
genro e herdeiro da sucessão de Lespinasse, informando sobre
as intenções de Zabeth e sua família. Na resposta de Courtois
ao procurador, ele explicita sua visão paternalista senhorial ao
lamentar a atitude ingrata de Zabeth e Pontif em relação ao falecido
senhor Lespinasse, afirmando que Zabeth vivia de tal forma na
fazenda, com seu casebre e suas “pequenas mordomias”, que ele
acreditava não haver “liberdade melhor no mundo” que a dela. O
herdeiro de Lespinasse pediria mais tempo ao Procurador do rei,
antes que desse prosseguimento ao processo, e o caso de Zabeth
e seus filhos também seguia sem nenhum encaminhamento até
a época que Bissette escreveu a Dupin (BISSETTE, 1845, p. 9).
Houve também processos que envolveram famílias extensas,
nos quais a mulher liberta demandava a liberdade de seu marido,
filhos e netos, baseando-se ainda em outras leis para justificar o
direito à alforria, além do art. 47 do Código Negro. Em 1847, Gatine
representou na Corte de Apelação um caso marcante devido à quanti-
dade de alforrias solicitadas para uma única família. Marie Sainte
Platon, liberta na Martinica, reclamava a liberdade de quatorze
245
pessoas: seu marido, seus nove filhos e quatro netos (GATINE, 1847b).
No caso de Virginie, ela era uma escrava urbana que trabalhava
como doméstica, tinha proximidade com sua senhora e, assim,
provavelmente teve mais oportunidades de provar sua dedica-
ção e negociar sua alforria pelos serviços prestados. No entanto,
o caso de Marie Sainte se sobressai, pois além da quantidade de
liberdades requisitadas, sua família vivia e trabalhava no meio
rural em um extenso engenho de cana-de-açúcar. Alguns historia-
dores e historiadoras, que abordam processos de liberdade em
outras sociedades escravistas da América e do Caribe, destacam
ações realizadas sobretudo por escravos e escravas que viviam no
meio urbano,12 e são mais raras as análises de histórias de lutas
judiciárias pela liberdade como esta vivenciada por trabalhado-
res escravizados do campo.13
Marie Sainte e François eram escravos da fazenda de
cana-de-açúcar Casse-Cou, propriedade indivisível de vários
coproprietários, no município Le François, na ilha de Martinica.
A união do casal lhes deu numerosos filhos. Marie Sainte, com
46 anos de idade quando foi alforriada, teve com François dez
crianças. Como afirma Gatine, “nos antigos hábitos coloniais,
uma tal fecundidade teria por recompensa ordinária a alforria
gratuita” (GATINE, 1847, p. 2). No final do século XVIII, práticas e
propostas pró-natalistas foram incorporadas às políticas e legisla-
ções coloniais dos impérios europeus com o intuito de incenti-
var a reprodução da população escrava em suas possessões nas
Américas e no Caribe (TURNER, 2017a, p. 18-43; GAUTIER, 2010,
p. 99-108). As Ordenações Reais outorgadas na França entre 1784
246
e 1786, que regulamentaram as funções dos gerentes das proprie-
dades rurais nas colônias caribenhas, determinaram medidas
que tocavam diretamente o papel das mulheres escravizadas
como trabalhadoras, reprodutoras e mães. Doravante, as “negras
grávidas” e as mães com recém-nascidos deveriam ser colocadas
no eito da lavoura de forma “moderada”. Ademais, as escravas que
tivessem seis crianças deveriam ser gratificadas com um dia livre
do trabalho na lavoura, e a cada ano que apresentassem sua meia
dúzia de filhos saudáveis ao gerente da fazenda ganhariam mais
um dia, até que fossem completamente liberadas do trabalho na
plantação de cana (DURAND-MOLARD, 1810, Tomo 3, p. 699).
Dessa forma, se por um lado várias leis setecentistas restrin-
giam o direito senhorial de conceder a alforria a suas escravas
e seus escravos sem autorização da administração colonial, por
outro instituiu-se uma condição de “liberdade de savana” das mães
escravizadas que tivessem muitos filhos. Essa era uma forma de
liberdade precária e irregular vivida na área rural, restrita às terras
do engenho e que poderia ser revogada se uma das seis crianças
falecesse antes dos dez anos (CANELAS, 2017, p. 154-158). Félix
Patron, proprietário de terras e escravos em Guadalupe, revela
que esta prática de conceder uma forma de liberdade não oficial
às mulheres escravizadas que tivessem uma certa quantidade de
filhos não era incomum nas Antilhas francesas ainda no século
XIX. No entanto, aparentemente, a “meta” se tornou mais difícil
de ser atingida, a despeito daquelas ordenações de 1784 e 1786.
Ele afirma em um texto de 1831 que “toda mulher que tenha oito
filhos não precisa mais trabalhar para o senhor e se torna livre
de savana, isto é, a ela é cedida sua casa e a liberdade de cultivar
como ela quiser uma roça tão extensa quanto sua força possa
suportar” (PATRON, 1831, p. 8).
No caso de Marie Sainte, se de fato ela vivia como uma livre
de savana, a partir da “Ordenação Real relativa às alforrias dos
escravos” de 12 de junho de 1832 (Bulletin des Actes Administratifs
de la Martinique, 1832, p. 318-121), seus proprietários poderiam ter
reconhecido sua condição e declarado sua manumissão para que
o governo colonial lhe concedesse um título de alforria oficial,
contudo, não foi isso que ocorreu. Talvez Marie Sainte tivesse a
liberdade para cultivar sua roça e cuidar de sua família todos os
dias da semana, mas não era considerada livre ou liberta. Com
247
a ajuda de um pecúlio formado com a contribuição de toda a
família — Gatine se refere a um “pecúlio comum” —, Marie Sainte
pôde comprar sua liberdade (GATINE, 1847b, p. 2). É possível que
os parentes de Marie Sainte tenham ponderado que alforriar a
matriarca livraria da escravidão a futura geração da família.
O resgate de Marie Sainte foi consentido pelo senhor Desver-
gers de Chambry, um dos coproprietários, administrador dos
negócios da fazenda e representante dos outros herdeiros. De
Chambry talvez tenha concordado com a venda e alforria de Marie
Sainte por alguns cálculos. Pelo fato dela ter “contribuído” com
a propriedade, gerando vários filhos, e por pagar um preço que
não era baixo para uma mulher em sua idade. O ato de resgate foi
registrado em março de 1840, realizado na forma de uma venda
da escrava Marie Sainte ao senhor Michel Aristote, pelo valor de
1.000 francos (GATINE, 1847b, p. 2). Michel Aristote provavelmente
era um homem liberto, amigo ou parente da família de escravos,
que os auxiliava na transação pela liberdade de Marie Sainte. O
sobrenome de Michel, que faz referência ao nome do filósofo
grego Aristóteles (“Aristote”, em francês), é um indício de que
talvez ele fosse até mesmo um recém egresso do cativeiro. A Lei
de 29 de abril de 1836, que regulamentou sobre “os sobrenomes e
nomes dados aos libertos nas colônias”, estabeleceu no art. 6 que
seriam apenas reconhecidos como prenomes, para registros no
estado civil, “os nomes em uso no calendário gregoriano, e aqueles
de pessoas conhecidas da história antiga” (Bulletin Officiel de la
Martinique, 1836, p. 161-163; COTTIAS, 2003, p. 165-166). É possível
que alguns libertos seguissem a mesma regra para escolherem
seus sobrenomes. Outra coincidência é que Marie Sainte seria
registrada com o sobrenome Platon (Platão), também nome de
um filósofo grego. Essas evidências podem indicar uma relação
de parentesco entre Michel e Marie Sainte ou seu marido.
Sua alforria oficial foi publicada no Bulletin Officiel de la Martini-
que, em 5 de fevereiro de 1841: “Marie-Sainte, negra crioula de 46
anos, attaché à la culture [escrava da lavoura], nascida e residente
em Le François, escrava, [alforriada] pelo senhor Michel Aristote,
proprietário em Le François”, registrada no estado civil como Marie
Sainte Platon. Permaneceram no cativeiro seu companheiro, seus
netos e seus filhos, entre eles, três ainda impúberes. Marie Sainte e
François aspiravam legitimar sua união assim que conquistassem
248
suas alforrias. Contudo, em 1842, François foi tomado por uma
grave doença e, devido à insistência do casal, conseguiram do
senhor Desvergers de Chambry o consentimento necessário para
o casamento religioso. A cerimônia religiosa foi celebrada rapida-
mente em 8 de novembro de 1842, na própria habitation Casse-Cou,
realizada pelo padre da paróquia de Le François. Estavam presentes
os senhores Desvergers de Maupertuis e Desvergers de Chambry,
coproprietários do casal e dos filhos, e assinaram com o pároco
o registro canônico. Os proclamas do casamento religioso, feitos
nas missas dominicais anteriores a sua realização no município
de Le François, onde residiam nove dos dezessete coproprietá-
rios da habitation Casse-Cou, não provocaram nenhuma oposição
ao matrimônio anunciado e celebrado (GATINE, 1847b, p. 2-3).
De acordo com Gatine, nesses fatos se encontravam ao menos
duas causas que justificariam a liberdade da família escrava. A
princípio, nos termos da ordenação de 11 de junho de 1839, François,
escravo, ao se casar com uma pessoa livre, tornava-se “liberto de
direito”, assim como as crianças originadas da união do casal ainda
na escravidão14. Além disso, nos termos do art. 47 do Código Negro,
sob a jurisprudência criada pelo caso Virginie, os três filhos impúbe-
res separados de sua mãe quando esta foi alforriada deveriam se
tornar livres com ela. Uma ação de liberdade, apoiada sobre este
duplo fundamento, foi apresentada por Marie Sainte Platon no
tribunal de primeira instância de Saint-Pierre (Martinica). Após o
julgamento dessa ação, em maio de 1846, o juiz declarou “libertos
de direito” François, os nove filhos e os quatro netos do casal: Jean
Philippe, 30 anos; Alexandre, 24 anos; Sainte-Catherine, 23 anos;
Sainte-Croix, 22 anos; Adrien 21 anos; Elisa, 20 anos, e seu filho,
Eldof, 5 meses; Marie Luce, 16 anos; Hedwige, 14 anos; Anatole, 10
anos; e os filhos de Nancy dita Annecy (falecida em dezembro de
1845), Anna, 7 anos, Noël 5 anos, e Cléry, 2 anos (GATINE, 1847, p. 3).
A maioria dos coproprietários da fazenda Casse-Cou aceitaram
essa notável sentença de liberdade de toda uma família escrava da
14 “Art. 1. São libertos de direito, nas colônias da Martinica, Guadalupe e de-
pendências, Guiana Francesa e Ilha do Bourbon, […] 2o. O escravo que, com o
consentimento de seu senhor, contrai casamento com uma pessoa livre. Nesse
caso, os filhos naturais que, anteriormente, seriam fruto de ambos os cônjuges, são
igualmente libertos de direito” (Bulletin Officiel de la Martinique, 1839, p. 188-194).
249
área rural da Martinica. No entanto, seis dos dezessete proprie-
tários – os cinco herdeiros Gallet e a senhora De La Pommeraye
– apresentaram uma apelação contra a sentença na Corte Real de
Saint-Pierre e conseguiram a anulação da decisão. Marie Sainte
e sua família não desistiram do processo de alforria e consegui-
ram levar seu caso para a Corte de Cassação na metrópole.
Adolphe Gatine defendeu a apelação de Marie Sainte Platon
no tribunal superior em Paris. Segundo o advogado, o julgamento
da Corte Real da Martinica violava com sua decisão a ordenação
de 11 de junho de 1839, mesmo que o casamento realizado tenha
sido apenas religioso. Essa era uma das principais argumenta-
ções dos coproprietários para a anulação do primeiro julgamento,
porque Marie Sainte e François tinham realizado apenas a cerimô-
nia religiosa, sem o registro civil, e, ainda assim, utilizaram esta
união como justificativa para a “alforria de direito” de toda a família,
apoiando-se na lei de 1839.
Na Corte de Cassação, Gatine argumentou sobre a validade
legal do casamento canônico dos escravos. Sob a regulamenta-
ção do Código Negro, até a lei de 18 de julho de 1845, o escravo era
apenas considerado “coisa”, um “bem móvel”, sem personalidade
civil. Contudo, isso não impedia que os escravos pudessem se casar,
porque na antiga legislação o casamento era um sacramento, antes
de ser um contrato. Nesse sentido, o Código Negro não lhes recusava
nenhum dos benefícios da religião, permitindo que pudessem se
casar, e seu casamento seria celebrado “nas formas observadas pela
igreja”, sob o consentimento do proprietário (DURAND-MOLARD,
Tomo 1, 1807, p. 43). No casamento misto, entre livres e escravos,
seguia-se as mesmas solenidades. Depois da Revolução Francesa,
a França laicizou os registros de nascimento, casamento e morte,
função exercida pela igreja católica durante o Antigo Regime, e
o matrimônio se tornou um contrato essencialmente civil, e não
poderia mais produzir efeitos legais se não fosse celebrado diante
de oficiais públicos (COUSSEAU, 2009, p. 78–84). No entanto, nas
colônias, esses novos princípios não foram aplicados aos escravos,
pois não eram cidadãos livres; sendo incapazes de contratar o
casamento civilmente, eram regidos pelo Código Negro sobre
essa matéria.
A Lei Mackau – “Lei relativa ao regime dos Escravos nas colônias
francesas”, de 18 de julho de 1845 – conferiu aos escravos certos
250
direitos, tornando-os “pessoas não livres”, mas como indivíduos
ainda ligados e sob a incapacidade civil da servitude. Apenas a
emancipação os tornaria capazes de selar um contrato civil como
pessoas livres. Dessa maneira, Gatine concluiu que as normas
do casamento escravo não eram as mesmas estabelecidas pelo
Código Civil e, como ainda não havia outra ordenação que regula-
mentasse essa situação, o casamento celebrado entre escravos
e entre livres e escravos ainda deveriam seguir as prescrições
do Código Negro, isto é, “nas formas observadas pela igreja”.
Desse modo, um casamento canônico seria válido e “suscetível
de produzir o efeito” desejado pela ordenação de 1839 sobre as
alforrias de direito (GATINE, 1847b, p. 6-7). O casamento de Marie
Sainte Platon e François, celebrado diante da igreja, não poderia
ser anulado, por nenhuma razão, pois fora realizado de acordo
com as solenidades requisitadas, e com o consentimento dos
senhores dos escravos.
O tribunal de primeira instância de Saint-Pierre, reconhecendo
o casamento como válido, declarou toda a família como livre de
direito, nos termos da ordenação de 1839, negligenciando ainda a
aplicação do art. 47 do Código Negro. Ao considerar a aplicação da
outra lei como absoluta sobre o caso, era inútil observar que Marie
Luce, Hedwige e Anatole eram impúberes, sendo desnecessário
se ocupar da questão das crianças menores de 14 anos separa-
das da mãe pela alforria. Na Corte Real da Martinica, ao contrá-
rio, considerando o casamento nulo, a liberdade de direito foi
desfeita e o juiz deveria avaliar, então, a possibilidade de as três
crianças impúberes se tornarem livres como inseparáveis da mãe.
Contudo, isso não foi feito, pois o magistrado recusou a reclama-
ção de liberdade em termos absolutos, mesmo em relação aos
impúberes — ignorando a aplicação do art. 47 do Código Negro
—, e simplesmente anulou a deliberação da primeira instância
(GATINE, 1847b, p. 14-15).
No entanto, a apelação de Marie Sainte Platon, solicitando o
reconhecimento das alforrias de toda sua família, foi vitoriosa na
Corte de Cassação em Paris em 1847. Gatine cita seu caso na lista
de causas que havia defendido naquele tribunal cujo resultado
tinha sido favorável à alforria de várias pessoas escravizadas nas
colônias (GATINE, 1847-a, p. 2). Infelizmente, não encontramos
nenhuma menção ao título de alforria oficial dos membros da
251
família, que deveria ser concedido pelo governo, nos periódi-
cos oficiais da Martinica. É possível que o decreto de abolição de
1848 15 tenha libertado a família de Marie Sainte antes que eles
fossem registrados como libertos no État-Civil do município de
Le François (Martinica). Contudo, isso não invalida ou diminui a
história de luta da trabalhadora rural Marie Sainte no sistema
judiciário para conquistar a liberdade de seu marido, filhos e
netos, utilizando as leis e se colocando contra a escravização
ilegal de sua família.
Por um lado, a análise dessas ações de liberdade, que transcor-
riam das colônias caribenhas à França metropolitana, revela os
obstáculos intensos e persistentes que eram enfrentados pelas
mulheres e suas famílias: a hegemonia e o poder dos senhores
brancos sobre a administração e o sistema judiciário das colônias
— e mesmo sobre alguns tribunais na metrópole —; a longa duração
dos processos de liberdade; o investimento financeiro tanto na
compra da alforria como para pagar as custas processuais; a
separação entre as mães e seus rebentos; o luto pela morte de
filhos que morriam antes que a família se unisse em liberdade.
Por outro lado, as histórias narradas neste capítulo demonstram
tanto a complexidade como a importância das redes de solida-
riedade e de atuação política em torno das ações de liberdade
que envolveram mães e filhos, escravizados e libertos. A materni-
dade, as relações familiares, a conquista e o reconhecimento da
liberdade se revelam experiências fundamentais para aquelas
pessoas que viviam sob o jugo da escravidão. Além disso, esses
processos demonstram como os significados de maternidade
se entrelaçaram com as experiências de conquista da liberdade
e com ações abolicionistas nos últimos anos de escravidão nas
Antilhas Francesas. Por outro lado, as histórias narradas neste
capítulo demonstram tanto a complexidade como a importân-
cia das redes de solidariedade e de atuação política em torno das
252
ações de liberdade que envolveram mães e filhos, escravizados
e libertos. A maternidade, as relações familiares, a conquista e o
reconhecimento da liberdade se revelam experiências fundamen-
tais para aquelas pessoas que viviam sob o jugo da escravidão.
Além disso, esses processos demonstram como os significados de
maternidade se entrelaçaram com as experiências de conquista da
liberdade e com ações abolicionistas nos últimos anos de escravi-
dão nas Antilhas Francesas.
253
vendidas para longe dos seus familiares (MORGAN, 2004, p. 8-11;
ROTH, 2017, p. 253-274; PATON, 2017, p. 262-263).
Desse modo, as pesquisas sobre maternidade e escravidão
demonstram que, no que diz respeito às mulheres escravizadas, as
experiências de gestação, parto e criação de rebentos ocorreram
em condições complexas e contraditórias. A condição de proprie-
dade escrava e o princípio do partus sequitur ventrem garantiam aos
senhores o direito de se apropriarem de suas vidas reprodutivas,
reivindicando também seus filhos como propriedade. Permitiam,
além disso, a intervenção senhorial nas práticas de gestação, controle
de natalidade, amamentação, puericultura, criação e vender e
separar mães e filhos (SCHWARTZ, 2006; COWLING, 2013; ARIZA,
2017; MACHADO, 2012; ROTH, 2017; TELLES, 2018).
Seria necessário um estudo mais aprofundado sobre as
experiências de laços familiares entre escravos na Martinica e
em Guadalupe para compreender as experiências e visões de
família e maternidade que influenciaram Virginie, Marie Sainte
Platon e outras mulheres escravizadas e libertas que lutaram
pela liberdade dos seus filhos no século XIX. No entanto, em um
“contexto em que a maternidade era alçada ao posto de represen-
tação máxima do devir feminino” (ARIZA, 2017, p. 89), aquelas
mulheres pleiteavam na justiça, por intermédio de advogados
abolicionistas, o “direito sagrado” e “natural” da maternidade.
Como afirma Adolphe Gatine, nesse direito estavam entremea-
dos seus deveres e suas alegrias, pois a mãe deveria amamentar
seus filhos, criá-los, protegê-los, velar sobre eles a todo momento.
Nesse sentido, segundo a interpretação de Gatine, os direitos e
deveres da maternidade eram centrais no princípio da indivisi-
bilidade da família expresso no art. 47 do Código Negro.
A Corte de Poitiers, no processo de Virginie, enunciou em
sua deliberação que era necessário “favorecer a família entre
os escravos, e conservar as crianças sob os cuidados de seus
pais” (SCHOELCHER, 1847, p. 52). De acordo com Myriam Cottias,
os abolicionistas franceses fundaram suas críticas ao sistema
escravista em parte na ausência da família no seio da população
escrava, “ao menos a ausência de uma família estruturada em
torno de um homem e registrada oficialmente por meio de uma
certidão de casamento”, pois o matrimônio era visto como uma
“aspiração cidadã” que “funda a família, torna o trabalho possível
254
e eficaz, e estabiliza a propriedade” (COTTIAS, 2008, p. 37-58). De
fato, Gatine afirmou em suas alegações no processo de Virginie
que era necessário “sobretudo constituir a família, para iniciar o
escravo na liberdade”, para que o novo liberto pudesse dizer “minha
mulher é minha, meus filhos são meus”, e assim “se moralizar,
cuidar dos seus e do futuro, se libertar enfim da longa degrada-
ção” (GATINE, 1844, p. 20).
No momento de aprofundamento das tensões envolvendo
a abolição gradual, a maternidade se estabeleceu como tema
fundamental de disputas sociais em torno dos direitos de cidada-
nia e dos significados da emancipação conquistada por mulheres
e seus filhos, de maneira similar aos processos que ocorreriam
em outras sociedades escravistas no século XIX (COWLING, 2013;
ARIZA, 2017). Os casos narrados neste capítulo demonstram como
as escravas e libertas do Caribe francês procuraram usar as leis e
a justiça para garantir a liberdade de seus filhos, de suas famílias.
Além disso, revelam a importância de seu papel no processo de
emancipação dos escravos nos últimos anos de escravidão, pois
abriram precedentes importantes sobre as transformações em
curso nas colônias francesas. De acordo com Gatine, por conta
do processo de Virginie, os proprietários procuraram contestar a
aplicação do art. 47 do Código Negro, afirmando que jamais esta
lei tinha sido entendida da forma que ocorreu naquele caso. No
entanto, como afirma o advogado abolicionista, a interpretação
dos colonos sobre a antiga lei nunca havia sido contestada por
reclamações de alforria diante dos tribunais, situação que passava
por mudança (GATINE, 1846, p. 13).
Victor Schoelcher, apesar de reconhecer a importância
daquelas ações, ainda considerava limitada a amplitude de seus
resultados, pois acreditava que apenas um pequeno número de
escravos conseguiria atingir a liberdade por essa via (SCHOELCHER,
1847, p. 64). Ele não deixa de ter razão, sobretudo em seu papel de
militante abolicionista, e com o objetivo de justificar a importân-
cia de uma abolição imediata e geral. Em 1847, as colônias france-
sas “à esclaves” – Martinica, Guadalupe e dependências, Guiana
Francesa e Bourbon, ou seja, sem considerar as colônias na África
e na Índia – contavam com um total de mais de 250 mil pessoas
escravizadas (MINISTÈRE DE LA MARINE ET DES COLONIES, 1851,
p. 10-11). Se considerarmos os números otimistas apontados por
255
Adolphe Gatine, em 1847 em torno de 1.200 escravos chegariam
a ser alforriados por ações de liberdade, ou resgates facilitados,
nas colônias e na metrópole, devido aos precedentes criados pelo
caso de Virginie e de outras mulheres escravizadas e libertas. Isso
representava em torno de 0,5% dos escravos das quatro colônias
de produção agrícola.
Embora seja uma porcentagem pequena de indivíduos em
relação à grande população cativa das colônias francesas, comparado
a qualquer outro período, a utilização do sistema legislativo e
judiciário pelas pessoas escravizadas foi um evento marcante e
transformador, especialmente nas ações de liberdade. Nesse sentido,
destaca-se a influência que processos como aqueles analisados
neste texto imprimiram sobre a questão da emancipação, das
relações entre senhores e escravos, da percepção das pessoas
escravizadas sobre a nova ordem política e jurídica, marcando o
processo de desestruturação do sistema escravista francês nos
últimos anos de escravidão nas colônias. Aquelas mulheres e as
ações pela liberdade de suas famílias, ainda que individualmente
pequenas, foram cumulativamente significativas e ajudaram a
moldar o curso da emancipação.
256
Fontes
BISSETTE, Cyrille. Lettres politiques sur les colonies, sur l’esclavage et sur
les questions qui s’y rattachent. Paris: Ebrard Libraire, 1845b.
257
GATINE, Adolphe. Cour de cassation. Causes de liberté. Marie Sainte Platon,
de la Martinique, réclamant les quatorze libertés de son mari et des ses
enfants ou petits-enfants. Paris: Imprimerie de Ph. Cordier, 1847b.
PATRON, Félix. Des noirs, de leur situation dans les colonies françaises.
L’esclavage n’est-il pas un bienfait pour eux et un fardeau pour leurs
maîtres? Paris: Charles Mary Libraire, 1831.
258
Referências
CANELAS, Letícia Gregório. “Eles não são livres, e eles não tem senhores; eles
não são escravos, e eles não são cidadãos”: liberdade precária e clandestina
no Caribe Francês (Martinica, século XIX). In: SECRETO, Maria Verónica;
FREIRE, Jonis (orgs.). Formas de liberdade: gratidão, condicionalidade e
incertezas no mundo escravista nas Américas. Rio de Janeiro: MauadX,
Faperj, 2018. p. 43–70.
259
COUSSEAU, Vincent. Population et anthroponymie en Martinique du
XVIIe siècle à la première moitié du XIXe siècle. Étude d’une société
coloniale à travers son système de dénomination personnel. 2009.
Tese (Doutorado em História) — Université des Antilles et de la Guyane,
Martinica, 2009.
260
MOITT, Bernard. Women and slavery in the French antilles, 1635-1848.
Bloomington: Indiana University Press, 2001.
PATRON, Félix. Des noirs, de leur situation dans les colonies françaises.
L’esclavage n’esti-il pas un bienfait pour eux et un fardeau pour leurs
maîtres? Paris: Charles Mary Libraire, 1831.
RIVIÈRE, Alix. “Directing the Upcoming generation’s mind in the right direction”:
enslaved children in the French Emancipation Project in Martinique, 1835-1848.
Histoire Sociale / Social History, v. 53, n. 107, p. 91–112, maio 2020.
261
TELLES, Lorena Féres da Silva. Pregnant slaves, workers in labour: amid
doctors and masters in a slave-owning city (nineteenth-century Rio de
Janeiro). Women’s History Review, v. 27, n. 6, 2018.
TURNER, Sasha. The nameless and the forgotten: maternal grief, sacred
protection, and the archive of slavery. Slavey & Abolition, v. 38, n. 2, p. 232–50,
2017b.
262
EXPERIÊNCIAS MATERNAS NO
CATIVEIRO: GÊNERO, FAMÍLIA E TRABALHO
NAS GRANDES PLANTATIONS CAFEEIRAS
DO VALE DO PARAÍBA (XIX)
Mariana Muaze
263
Todas as manhãs, ao romper da aurora os negros saem,
um a um, e vão se acocorar ou formar uma linha no
terreiro. O feitor e seus capatazes, despertados pelo sino
ou corneta, chegam, contam as cabeças, distribuem o
serviço detalhado pelo administrador ou senhor, e, tomado
o café, os negros seguem para os campos. […] Chegados
à estancia do trabalho […], homens e mulheres, cada um
segundo a sua incumbência, e isto dura até às 9 ou 10
horas (RIBEYROLLES, 1859, p. 41-42).
264
das grandes propriedades do Vale do Paraíba Fluminense, apesar
das diferentes tentativas de controlar a produção e a reprodu-
ção femininas, as mulheres escravizadas resistiram apoiadas
em laços familiares ou tecidos no interior de suas “vizinhanças
escravas” (KAYE, 2007).
O presente capítulo faz um percurso reflexivo contendo três
partes integradas. A primeira apresenta a dinâmica escravista do
Vale do Paraíba Fluminense enfatizando a formação de famílias
e de vizinhanças escravas nos grandes complexos cafeeiros. A
segunda analisa o discurso dos manuais de administração de
fazenda em relação às mulheres escravizadas e como esse era
vivenciado na prática, ressaltando o papel da resistência feminina
neste pêndulo de forças. Por fim, estuda-se o assassinato de um
feitor com a intenção de perceber como a mulher implicada no
evento foi vista pelos escravizados, pelo senhor e pelos agentes
do Estado, por meio do Poder Judiciário. Comparando o caso com
outras ações cíveis e criminais, enfatizam-se as disputas de discur-
sos em relação às mulheres escravizadas e seu direito ao exercí-
cio da maternidade.
265
complexos cafeeiros do Vale, foi necessária uma política da
escravidão que garantisse o abastecimento de mão de obra,
primeiro por intermédio do tráfico legal de africanos e, após a lei
de 1831, pela rede ilegal deste comércio no Atlântico (PARRON,
2011). Segundo Tamis Parron (2011, p. 164), a região centro-
sul (Rio-Vale-Minas) absorveu 78% do total dos cativos aporta-
dos em todo o Brasil entre 1831 e 1850, tornando-se a maior
densidade escravista do Império.
Foi, portanto, durante o tempo histórico da chamada “segunda
escravidão” (TOMICH, 2011) e no espaço das grandes (entre 50
e 99 cativos) e mega propriedades (mais de 100 cativos), que
reuniam juntas mais de 70% da população cativa do Vale do
Paraíba (SALLES, 2008), que as mulheres escravizadas tratadas
neste artigo viveram.1 Assim, grande parte de suas vidas, de seus
filhos e familiares, se passou no interior do complexo cafeeiro em
que habitavam e também das fazendas adjacentes, onde realiza-
vam serviços rotineiros. 2 O trabalho de roça foi a tarefa princi-
pal da maioria da população escrava feminina e masculina da
266
região. Contudo, seja para trabalharem, seja para participarem
de festas religiosas, funerais e batizados coletivos de escravos ou
mesmo levar recados, a espacialidade conhecida pelos cativos e
suas famílias ultrapassava os limites exatos da plantation onde
viviam. Ao transitarem entre diferentes espaços, teciam solida-
riedades, conf litos, relações amorosas e maritais, reconheci-
das ou não pelos seus senhores, estabelecendo um espaço de
experiência e relações sociais, que Anthony Kaye (2008) denomi-
nou de “vizinhança escrava”. 3
Contudo, a vizinhança escrava não foi vivenciada da mesma
forma por todos os agentes sociais. O gênero influiu decisivamente
nesta experiência de várias formas, a exemplo da mobilidade
espacial, mais restrita às mulheres devido aos grandes desloca-
mentos serem difíceis e até perigosos para elas por motivo de
assédio sexual, de cuidados com a prole e tarefas domésticas
(CAMP, 2004; MATTOS, 2013; COWLING, 2013; SAMPAIO, 2021).4
Além disso, as vivências familiares também eram tensionadas por
relações de gênero. Para as mulheres, a constituição de família e
a maternidade traziam desafios extras – gravidez, parto, puerpé-
rio, lactação, criação dos filhos, aumento de tarefas domésticas,
medo da separação – além de uma dupla sujeição ao senhor e
ao marido, como atentou Maria Helena Machado (2018, p. 335).
Estudos anteriores já comprovaram fartamente a existên-
cia da família escrava na região estudada afirmando sua maior
267
possibilidade e incidência em grandes planteis de escravos
(SLENES, 1999; FLORENTINO; GÓES, 1997; MATTOS, 2013; SALLES,
2008) e uma composição complexa que poderia alcançar até
a terceira geração e envolver diferentes laços de parentesco
(MUAZE; SALLES, 2017). Para o escravo ou escrava, a origem
familiar significava resistência por meio da (re)estruturação de
laços afetivos, de solidariedade e a possibilidade de conquis-
tar benefícios, como a permissão para ter pequenas roças,
criar animais, possuir moradia autônoma, preparar o próprio
de alimentos etc. (SLENES, 1999). Para os senhores, era uma
chance de aumentar a pacificação nas senzalas, reduzir as fugas
e promover o aumento vegetativo do número de escravos, por
meio de uma concessão senhorial, que poderia ser removida a
qualquer momento (FLORENTINO; GÓES, 1997). Desta forma, a
família cativa significava, a um só tempo, resistência escrava
e controle senhorial, e a balança pendia mais para um lado ou
outro a depender de fatores internos e externos àquela comuni-
dade de plantation (MUAZE; SALLES, 2017).
Em termos de composição, durante a montagem da estrutura
produtiva no Vale do Paraíba até o fim do tráfico ilegal, a popula-
ção masculina foi sempre majoritária, da ordem de 70% ou mais
(SALLES, 2008), dificultando, sobremaneira, as uniões devido à
pouca disponibilidade de mulheres. Contudo, a partir da década
de 1850, aumentou a preocupação dos senhores em importar
mão de obra feminina, incentivar a formação de famílias e a
reprodução natural. Ou seja, o valor reprodutivo da mulher escrava,
sua capacidade de gerar e criar filhos, sofreu uma valorização
e foi agregado à sua aptidão produtiva já contabilizada. Como
resultado, a partir de meados da década de 1860, configurou-se
uma melhora no equilíbrio entre homens e mulheres, 60% e 40%,
respectivamente, e um aumento no número de casamentos entre
os escravos do mesmo complexo cafeeiro. Aos poucos, o cresci-
mento demográfico da população escrava se tornou suficiente
para garantir a manutenção do sistema sem a inserção de novos
cativos via tráfico, configurando aquilo que o historiador Ricardo
Salles (2008) denominou de “escravidão madura”. 5 Neste novo
268
contexto, a proporção entre africanos e crioulos, que já havia
sido de 70% e 30% do total de escravos, tendeu a uma inversão
a partir de 1850 e atingiu a esfera de 68% dos escravos nascidos
no Brasil e 32% “de nação” africana nos anos de 1870 (SALLES,
2008, p. 181–182).6 Tal dinâmica aponta alguns aspectos gerais
sobre a família escrava no Vale do Paraíba.
Primeiro, o alto índice de africanidade na região, certamente,
conformou vivências e formas de organização familiar com influên-
cia de tradições da África Centro Ocidental, em grande parte de
cultura banto, que ainda precisam ser mais bem estudadas.7 Maria
Helena Machado (2018, p. 339) cita a crença de que famílias grandes
eram uma benção em sociedades camponesas africanas e que
as recriar em situação de cativeiro pode ter sido uma forma de
resistir ao duro cotidiano. Segundo, apesar de as pesquisas com
inventários só encontrarem 9,07% dos escravos com registro de
casados ou viúvos, este número era bem maior (SALLES, 2008;
MUAZE; SALLES, 2017). Havia outras formações familiares entre
os escravos que, por não serem consagradas na igreja ou oficial-
mente reconhecidas pelos senhores, ficaram invisibilizadas em
fontes como inventários e livros paroquiais.8
Muito embora os modelos de família nuclear com mãe, pai e
filhos, e extensa que reunia avós, avôs, tias, tios e primos existis-
sem nas grandes fazendas, houve composições que incluíam
269
laços de compadrio e até parentes adotivos.9 Além disso, outras
associações amorosas mais breves, consensuais ou não, também
geraram prole. Assim, famílias com apenas um dos progenito-
res, a maioria chefiada por mulheres, ou uniões temporárias
com muitos filhos eram incorporadas às famílias extensas da
comunidade de plantation a que pertenciam. Portanto, a família
escrava foi o resultado tanto de relacionamentos mais duradouros,
quando de laços mais abertos. A variedade das relações íntimas
permitia que mães solteiras e seus filhos formassem famílias
enteadas, famílias mistas e extensas, mesmo que estas passas-
sem despercebidas aos olhos dos senhores e seus prepostos.
Concordando com Antony Kaye (2008, p. 55), pode-se dizer que
as famílias escravas tinham que se reinventar a todo momento,
para incorporarem os recém-chegados pelo comércio, protege-
rem-se das imposições dos proprietários e acolherem uniões
íntimas temporárias.
O terceiro aspecto a ser ressaltado é que a família escrava,
sua organização e vivências, podia variar dependendo do lugar,
tempo, tamanho e procedência da escravaria, f luxo do tráfico
interno e externo, equilíbrio de gênero e a atividade agrária em
que a mesma estava inserida. No plantio de fumo na Virgínia,
por exemplo, poucos escravos eram necessários em uma única
fazenda. Como consequência, os cônjuges tinham donos diferen-
tes, viviam separados em propriedades distintas e necessitavam
de autorizações de visitas para verem as esposas e os filhos uma
ou duas vezes por semana (KAYE, 2007). Situação parecida ocorria
no Missouri, onde a maioria dos senhores possuía menos de 20
escravos (BURKE, 2010). Já nas localidades onde a grande planta-
tion foi a regra e a quantidade de escravos por complexo agrícola
estava acima da média nacional, a exemplo do Mississippi e de
outras regiões de plantation do sul dos Estados Unidos (KAYE, 2008;
JOHNSON, 2003; KING, 1996; WEST; SHEARER, 2018; CAMP, 2004),
Jamaica (TURNER, 2017; PATON, 2017), Cuba (COWLING, 2013) e
do Vale do Paraíba aqui estudado (SALLES, 2008; PESSOA, 2019;
9 Este último aspecto foi citado pela historiadora Sasha Turner (2017, p. 104-5)
que, ao analisar as mulheres escravas nas plantations jamaicanas, encontrou ca-
sos em que, com o falecimento de mães escravas, as crianças órfãs eram entregues
a mulheres escravas com filhos pequenos para que cuidassem dos bebês.
270
MORENO, 2013; SANTOS, 2011; FREIRE, 2009; FARIAS 2021), isto
não ocorria. O pertencimento a um mesmo dono e os eventuais
meios de comunicação entre as fazendas, muitas contíguas umas
às outras, favoreciam a tessitura de laços de sociabilidade mais
diversificados que, potencializavam a formação de famílias entre
escravos do mesmo senhor (MUAZE; SALLES, 2017, p. 41). Assim,
como descreveu Deborah White (1999), as relações entre homens
e mulheres cativos no contexto da escravidão eram complexas,
multifacetadas, e sofriam forte influência das investidas do poder
e controle dos senhores e seus prepostos.
271
material dos escravos, aconselhando os senhores sobre a quanti-
dade e qualidade da comida a ser oferecida, a distribuição de
roupas, os tipos de moradia, o tempo de trabalho e descanso, e
davam orientações sobre disciplina, castigos e vida familiar dos
cativos. Havia, portanto, uma clara intenção de garantir cuidados
mínimos para implementar uma dada racionalização do trabalho
e maximizar a capacidade produtiva dos escravos. Contudo, havia
uma diferença de conduta em relação aos gêneros. No caso das
mulheres, a preocupação senhorial com sua aptidão produtiva se
agregava à capitalização de sua capacidade reprodutiva, por meio
de ditames sobre fertilidade, gravidez, puerpério e criação dos
filhos, que buscavam controlar o corpo feminino (CAMP, 2004).
Assim, os cuidados com o nascimento e a saúde daqueles que
vinham ao mundo de ventres escravos tinham o propósito de
zelar pela prosperidade da riqueza senhorial.
No manual Ensaio sobre o fabrico do açúcar, Miguel Calmon
du Pin (1834) falava claramente em “promover a conservação da
vida dos atuais escravos e a sua reprodução” (p. 59) e, para isso,
listava sete pontos fundamentais na administração da escravaria,
dentre os quais estavam o estímulo para que os cativos vivessem
em família e as crianças fossem bem cuidadas. Já Carlos Augusto
Taunay, que publicou o Manual do agricultor brasileiro (1839),
enfatizava o equilíbrio entre homens e mulheres nas senzalas
preconizando a formação de casais e a “docilização” de seus filhos:
“com bem poucas compras conservará a sua escravatura completa
e a transmitirá aos filhos melhor, mais dócil e mais adestrada, se
souber convenientemente educar e tratar os crioulos” (p. 277).11
272
Contudo, o manual com maior circulação e influência no Império
foi de Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, barão de Paty, intitu-
lado Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do
Rio de Janeiro (1847). A obra saiu em vários artigos do jornal
Auxiliador da Indústria Nacional, em 1847, e depois foi publicada
como livro no mesmo ano, recebendo novas edições em 1863 e
1878. O autor aconselhava o uso de cubículos de senzala próprios
para as famílias, os cuidados com a salubridade da moradia, a
atenção especial às mulheres grávidas e aos recém-nascidos,
recomendando, inclusive, o auxílio de amas secas para que as
mães pudessem trabalhar nos campos. Portanto, a disciplina,
o controle sobre o corpo e a capacidade reprodutiva da mulher
escrava davam a tônica deste tipo de literatura:
273
mesmo, a aplicação de castigos físicos durante a gestação. Muito
embora os relatos de viajantes estrangeiros sejam fontes que
carregam uma visão de mundo, não raras vezes, etnocêntrica
e racista, eles ajudam a conhecer certas práticas cotidianas
que contrariavam as regras presentes na literatura normativa.
No que concerne ao parto, por exemplo, o príncipe Alberto da
Prússia, quando esteve na enfermaria de uma grande fazenda em
Cantagalo, Vale do Paraíba, encontrou uma escrava “deitada em
sua esteira de palha amamentando seu filho negro nascido na
noite anterior” (PRÍNCIPE, 2002 [1847], p. 130), e foi informado
pelo médico, Dr. Bismark, que em dois dias ela voltaria à roça.
Já a francesa Madame Adèle Toussaint-Samsson (1883), com
palavras carregadas de preconceito, se referiu a três semanas
de puerpério e uma dieta alimentar especial para as mães na
primeira semana:
274
do leite e, consequentemente, à saúde do bebê.12 Para além da
amamentação precária, o alemão Carl Schlichthorst (1824-25)
afirmava ser comum no Brasil encontrar "uma mulher negra
carregando seu filho nas costas, dando-lhe o seio no ombro ou
embaixo do braço" enquanto trabalha (SCHLICHTHORST, 1943,
p. 131).13 Situação semelhante foi contada por Elizabeth Agassiz
(1865), quando descreveu os múltiplos usos e funções do pano
da costa, por ela denominado de “xale”: “quando é preciso, esse
xale serve também de berço; enrolado frouxo em volta da cintura,
recebe nas suas dobras o filhinho que, montado nas costas de sua
mãe, adormece docemente” (p. 112). A cena da mulher negra com
o filho amarrado às costas, prática de tradição africana, era tão
exótica aos olhos estrangeiros e nacionais que foi registrada por
diversos pintores e fotógrafos.14
Considerando o que foi exposto, alguns elementos podem ser
apontados. Primeiro, as regras preconizadas nos manuais sobre
os cuidados com a mulher e a maternidade escrava serviram de
parâmetro a ser seguido, mas, coexistiram com as antigas práticas
há muito arraigadas no cotidiano das fazendas. Seu grau de adesão
dependeu bastante da vontade senhorial, do tamanho da escravaria,
da produtividade da fazenda, do fluxo do tráfico etc. Portanto, se a
regra era o descanso e os trabalhos leves até uma ampla recupera-
ção da parturiente, encontramos o retorno ao trabalho em apenas
três dias ou três semanas. Ou, se o aconselhado era aguardar o
período de amamentação dos bebês para garantir-lhes a saúde e a
vida, havia a alimentação precoce com papas de amido em substi-
tuição ao leite materno e a liberação da mãe para o roçado.
12 Diz o autor: “[…] após o parto, essas mulheres foram forçadas a trabalhar nas
plantações sob o sol forte e, quando puderam voltar para os filhos, carregavam
um leite com defeito. Como poderiam resistir a essa cruel miséria?” (HILAIRE,
1974 [1833], p. 201).
13 Sobre o ato de amamentar por baixo dos ombros, Jennifer Morgan (1997)
discute que muitos viajantes relataram este costume para outras sociedades
escravistas do Mundo Atlântico, sendo a mesma parte de um discurso racializado
sobre o corpo da mulher escrava.
14 Pieter de Moraes, Giovanni de Montecuccolo, Hermenegildo Capelo, Roberto
Ivens e outros viajantes que estiveram na África são alguns dos que relatam o
costume entre as mulheres de trabalhar com o filho atado ao corpo em diferentes
nações e regiões do continente (COSTA E SILVA 2012, p. 170, 223, 431).
275
Desta forma, o início da vivência da maternidade nas mulheres
escravas obedecia, sobretudo, ao tempo da produtividade da planta-
tion, e não à necessidade da criança ou da mãe. Assim já aponto o
segundo elemento, seja nos manuais seja nos relatos dos viajantes
aqui expostos, o corpo da mulher escrava era central na narrativa
por ser este o loci reprodutivo do sistema escravista e do poder
senhorial, principalmente depois de findo o tráfico Atlântico
(MACHADO, 2018; TURNER, 2017; JONES-ROGERS, 2017). Todavia,
não se tratava apenas de um elemento do discurso, mas de uma
forte disputa de poder que se configurava na vida cotidiana. E, no
caso da mulher escravizada marcava sua própria existência.
Por sua capacidade produtiva e reprodutiva, as mulheres eram
entendidas como passíveis de serem controladas por senhores,
senhoras, capatazes, feitores e médicos, esses últimos se tornaram
personagens cada vez mais presentes no cotidiano das fazendas
cafeeiras, a partir da segunda metade do século XIX (PROENÇA,
2019; BARBOSA, 2014; VIANA, 2009; SANGLARD, 2007; PIMENTA,
2017). Neste período, foram construídas enfermarias e hospitais
nas grandes e megapropriedades cafeeiras, as quais contavam
com os chamados “médicos de partido”, que visitavam pacientes
de tempos em tempos, além de cativos especializados nos ofícios
de enfermeiros(as) e parteiras.15 O médico Manoel Monte Godinho,
residente em Cantagalo, por exemplo, cobrou 300$000 pelo parto e
a extração de placenta de uma escrava, cujo bebê estava em posição
podálica, sentado, salvando-se tanto a mãe quanto o filho (BARBOSA,
2014, p. 230), demonstrando que os senhores estavam dispostos a
pagar boas quantias para não perderem suas escravas. Já a viscon-
dessa do Arcozelo, proprietária de três fazendas em Paty do Alferes,
tinha um médico de partido e um enfermeiro escravo para atende-
rem seus doentes. Ela, assim como sua prima viscondessa de Ubá,
possuía um caderno de anotações onde registrava gastos pessoais
e administrativos da fazenda (MAUAD; MUAZE, 2004). No ano de
1887, anotou 17 nascimentos e 7 mortes de escravos, sendo 5 devido
15 Segundo Barbosa (2014), a porcentagem de dias que os escravos perdiam, por
doença, em um ano: primeiro trimestre (jan-mar) 6,3; segundo trimestre (abril-
jun) 5,9; terceiro trimestre (jul-set) 5,2 e quarto trimestre (out-dez) 4,6. Uma média
anual de 5,5 dias. Logo, a escravidão era bastante lucrativa até a década de 1870,
mesmo retirados os gastos com saúde, alimentação, vestimenta e moradia.
276
a um surto de sarampo que durou cerca de um mês e contaminou
mais de 40 escravos. O médico foi, portanto, um aliado essencial
dos senhores na tentativa de controlar a saúde e a fertilidade das
mulheres escravas. Contudo, não se pode desprezar o papel das
senhoras que, mediante uma precisa contabilidade sobre “as gentes
da fazenda”, auxiliavam no governo da casa e comando das mulheres
escravas (GLYMPH, 2008; FOX-GENOVESE, 1988; MUAZE, 2008).
Na contramão das tentativas de controle senhorial, as
mulheres escravizadas resistiam cotidianamente, com as possibi-
lidades que tinham, no interior de suas vizinhanças escravas e
famílias. Como atenta Sasha Turner (2017), práticas como aborto
(provocados ou espontâneos), infanticídio, coito interrompido,
uso de ervas contraceptivas, dificilmente podem ser mensura-
das, mas limitavam sobremaneira a interferência senhorial sobre
a vida reprodutiva feminina. Além disso, várias gravidezes foram
descontinuadas antes mesmo que ficassem aparentes ou que os
senhores e prepostos pudessem contabilizá-las. Muitos destes
atos foram, ao mesmo tempo, uma recusa em servir de reposi-
ção de mão de obra tendo em vista o valor de mercado dos filhos,
uma tentativa de interromper a cadeia de escravização para as
gerações futuras, uma percepção da múltipla jornada e aumento
do trabalho, além da negação em se tornar uma potencial ama de
leite ou outro ofício que a separasse do próprio filho (TURNER,
2017). Também é possível conjecturar que a taxa de fertilidade
fosse baixa ou que o ciclo menstrual fosse irregular, devido à baixa
qualidade nutritiva oferecida, ao stress e outros fatores (TURNER,
2017). Por meio destas e de outras brechas, as mulheres escravas
garantiam uma certa autonomia sobre suas vidas reprodutivas.
O parto auxiliado por parteiras, referidas de forma desqualifi-
cada por Adèle Toussaint-Samsson como “velhas”, certamente era
uma possibilidade de dar à luz com maior acolhimento cultural e
afetivo. Contudo, infelizmente, até mesmo isso correu riscos na
segunda metade do XIX, com a campanha negativa que as parteiras
sofreram durante a institucionalização da medicina como ciência
(ROTH, 2020; PIMENTA, 2017; COSTA, 1989).
Muitas escravas vivenciaram a maternidade ainda bem jovens,
logo depois de assumirem atividades de trabalho correspondentes à
277
vida adulta.16 O fim da infância foi descrito em narrativas de afro-a-
mericanas como traumático e pontuado por trabalhos pesados,
estupro, assédio sexual e violência física (SAMPAIO; ARIZA, 2019).17
Apesar de não termos narrativas autobiográficas de escraviza-
das semelhantes para o Brasil, outras fontes demonstram que a
situação de forte opressão e assédio não foi diferente.18 Além das
dificuldades de toda a ordem para ter e criar os filhos, as mães
escravas enfrentavam o “silenciamento”, por vontade senhorial
e aceitação social, do exercício da maternidade (MUAZE, 2018,
p. 363). Ou seja, o afastamento das mães escravas de seus filhos
não foi, durante muito tempo, um problema moral para a sociedade
imperial.19 Tal prática buscava incidir nos espaços mais caros à
natureza humana das mulheres negras, buscando desacreditá-las
para, assim, enfraquecer suas resistências (TROUILLOT, 1995). Os
exemplos neste sentido são muitos:
278
Vende-se um lindo molequinho de 2 anos e meio por
128$000, anda muito desembaraçado, brinca sozinho e
não chora; é muito limpo, perfeito, é próprio para dar-se
de presente ou de festas a algum afilhado: na Rua do
Lavradio 23 (Jornal do Commercio, 27/02/1840).
20 “Deixo forro os meus escravos Bento de nação Congo e sua mulher Claudina
parda, José Maria de nação Benguela, Diogo de nação Angola, Vitorino de nação
Congo e sua mulher Feliciana de nação cabinda, Ana crioula que amamentou meu
filho Francisco, Cristina Conga que foi ama de minha filha Rita, Joana velha ama
de minha filha Joaquina. E sendo de minha intenção libertar da escravidão todas
279
há outros gestos quase imperceptíveis que reforçam a mercanti-
lização dos corpos. O inventário de Brás de Oliveira Arruda, que
possuía 163 escravos somente na fazenda Cachoeira, permite
traçar a história da costureira e engomadeira Apolinária, mãe
de “Barbara, crioula, de idade de 1 mês, dada à herdeira Maria
Francisca e avaliada pela quantia de 40$000”. A pequena Barbara
foi privada da mãe, do pai João e do irmão Julio, de 3 anos, quando
ainda era alimentada ao seio materno. Seu baixo preço aponta,
entre outras coisas, que a separação não se deu por divisão de
herança, já que 40$000 não faria nenhuma diferença em tamanha
fortuna, mas para atender a vontade de uma mulher branca em
criá-la. Neste caso, o fato de ser uma escrava doméstica, pode
ter deixado Apolinária mais vulnerável a ter seu bebê desejado
por uma senhora.
As justificativas para o afastamento de mães e filhos escraviza-
dos ia além do direito de propriedade e circularam por intermédio
de discursos de diferentes origens. O médico Reinold Teuscher,
em sua tese apresentada na Academia de Medicina, afirmava:
“as mãos, pouco cuidadosas ou mal esclarecidas, contribuem
geralmente antes para fazerem os seus filhos doentes, do que para
conservarem-lhes os seus filhos a saúde, e estorvam o tratamento
em lugar de ajudarem” (BARBOSA, 2014, p. 11). Carlos Costa,
também médico e redator do jornal A Mãi de Família, estudado
por Karoline Carula (2012), ao incentivar o aleitamento materno
distribuía críticas à criação que as mulheres negras davam às
crianças brancas por serem repletas de vícios. A viajante Adèle
Toussaint-Samsson chegou a dizer que, para as mulheres escravi-
zadas era indiferente que seus filhos vivessem ou morressem,
que negligenciavam sua criação deixando-os sujos, e “se gritavam
demais e impediam suas mães de trabalhar, não era raro ver
aquelas criaturas depravadas ensinarem o vício aos filhos para
mantê-los tranquilos e adormecê-los” (1883, p. 123125).
Desta forma, conformava-se um discurso social que transformava
as amas que criaram o restante de meus filhos os quais já foram partilhadas com
alguns herdeiros por isso que autorizo ao meu testamenteiro a diante nomeado
para que por seu justo valor pague indenização a qualquer dos herdeiros a quem
lhes de direito pertençam, possam lhes providenciar as cartas de liberdade, e
aos referidos herdeiros rogo do atendimento a este meu pedido”. Testamento de
Caetano Alves de Oliveira. Comarca de Piraí, 1º/04/1844.
280
as vítimas da escravidão em terríveis criminosas, acusando-as de
negligentes, sujas, depravadas e bêbadas; o que, em última instân-
cia, justificava a separação das mães escravas de seus filhos. Tal
pensamento, como vimos, não se restringiu aos senhores, ele era
compartilhado por médicos, jornalistas, políticos, juízes, viajan-
tes estrangeiros e outros membros das classes dominantes, tendo,
portanto, um forte recorte racial e de classe. Apesar de possuírem
armas tão desiguais, as mulheres escravizadas resistiam e buscaram
fazer valer sua maternidade e laços familiares seja cotidianamente
em sua vizinhança escrava, seja na justiça.
21 A fazenda Mato Dentro, contava com uma comunidade de plantation com-
posta por 118 escravos, 63 homens e 55 mulheres, em 1870, num período de “es-
cravidão madura” (SALLES, 2008). Processo Crime 068, 1870 (Vassouras). Arquivo
do Iphan Vassouras. Inventário da baronesa de Massambará, 1868, notação 474.
Arquivo do Iphan Vassouras.
281
a escrava Guilhermina do ocorrido, que imediatamente informou
ao barão de Massambará. Martha, que continuou escondida no
mato com medo do castigo, só soube do assassinato bem mais
tarde. No dia seguinte, seu esposo Manoel se entregou esponta-
neamente na delegacia de polícia da cidade de Vassouras.
O casal Martha e Manoel estava junto há menos de 9 anos.
O processo não detalha o número de filhos que possuíam, mas
sempre se refere a eles no plural. Ele havia saído para o cafezal
antes mesmo de tocar o sino, ela ficou na senzala cuidando das
crianças para depois apresentar-se ao trabalho. Sua jornada era
dupla, como a da imensa maioria das escravas com prole. No
depoimento, Martha menciona que o feitor não gostava quando
preparava mingau para os filhos. Ou seja, mesmo sabendo que
Francisco não permitia, ela continuava fazendo e, provavelmente,
aquela não era a primeira vez que ele a castigava por isso. No
relato do esposo Manoel, a ideia de recorrência também aparece
quando ele diz que, ao escutar os gritos, já imaginava serem da
mulher e dos filhos. Ou seja, havia uma desobediência cotidiana
da mãe, que protegia a alimentação das crianças daquele núcleo
familiar e o feitor percebia sua atitude como uma ameaça a sua
autoridade.
Há em comum nos testemunhos do réu Manoel e dos outros
cativos, a visão de que Francisco era um “malfeitor” (na dupla
conotação das palavras), que tinha implicância com Martha e a
perseguia: “porque costumava fazer mingau pra as crianças”. Mas,
quando foram interrogados pelas autoridades judiciais se havia
rixas entre os envolvidos ou se o feitor e Martha tinham relações
ilícitas, sempre responderam negativamente. Esse questionamento
era recursivo em crimes que envolviam mulheres escravas nas
fazendas do Vale do Paraíba como comprovado por Thaís Sampaio
(2021), numa tentativa de desonrá-las e implicá-las parcialmente
a culpa, por meio de um comportamento dito imoral e desonrado
(CAULFIELD, 2000). Portanto, as representações e, neste caso, ações
que pretendiam transformar as vítimas da escravidão em crimino-
sas, foram amplamente compartilhadas, inclusive nas instân-
cias jurídicas do estado imperial. Como um “contradiscurso”, os
interrogados ressaltavam a maternidade, o cuidado de Martha com
os filhos, e a defesa da família empreendida por Manoel, com a
intenção de dirimir a pena do réu. Ao fazê-lo, os membros daquela
282
vizinhança escrava também buscavam defender a sua própria
forma de viver em família e o direito ao exercício da materni-
dade, neste caso expresso no ato de alimentar os filhos pequenos.
Além disso, mostraram grande familiaridade com as espaciali-
dades da fazenda (cafezais novos e velhos, rancho, pomar velho,
senzala, cozinha, casa grande foram as citadas), os matos dos
arredores e da vila de Vassouras, onde Manoel foi se entregar. A
voz do senhor também quis se fazer ouvir. No correr do processo,
o barão de Massambará enviou uma carta ao delegado: “desde já
previno a VS. que não desisto do pleno direito que tenho, tanto de
intervir no processo crime, que se tem de formar contra o referido
assassino, com o de propriedade que tenho sobre este, que me é
garantido pelas leis do país”. 22 Seu argumento, ao contrário dos
escravos que testemunharam e ressaltaram os vínculos familia-
res, se baseava no direito de propriedade para evitar a perda dos
1$200,000 investidos na compra de Manoel. Todavia, o réu foi
condenado à pena de galês perpétuas em 30 de novembro do
mesmo ano.
Os processos-crimes, se analisados em suas múltiplas possibi-
lidades, permitem entrever as dificuldades de criar os filhos em
situação de cativeiro. Apesar das redes de solidariedade e cuidados,
que iam desde o auxílio de parteiras até o de cuidadoras das crianças
pequenas, que poderiam ser as escravas mais velhas ou meninas,
como as já citadas Guilhermina e Eulália, as tensões eram constan-
tes. Em 1878, um outro caso de agressão envolvendo mães e seus
filhos escravizados ocorreu. O feitor Joaquim Ferreira da Silva,
português de 47 anos, trabalhador da fazenda Boa Esperança de
Santa Cruz de Mendes, “desceu ao terreiro e dirigiu-se à senzala
das pretas para saber que barulho era que ali estava se fazendo”.23
Eram 6 horas da tarde, já havia sido dado o toque de recolher e
ele estava “muito incomodado com o choro das crianças”. Entrou
na senzala das mulheres solteiras e perguntou se era a filha de
Serena quem chorava. Não se confirmando, dirigiu-se à senzala
de Carolina. A forma com a qual os depoentes escravos falam da
“senzala de Carolina” em comparação à “senzala das pretas” dá
283
a entender que ela tinha um cubículo familiar com um parceiro
e filhos, pois os casais geralmente tinham esta prerrogativa. Ao
entrar, não foi saldado com a “obrigação de tornar louvado”, muito
provavelmente porque Carolina estava ocupada com o filho que
chorava e foi surpreendida. O feitor gritou pela louvação a ponto
de todos escutarem nas outras senzalas e bateu com a palmatória
na cabeça de Carolina. Foi então que o escravo Anastácio gritou:
“Ah, senhor Joaquim, o senhor quebrou-lhe a cabeça!”. A mulher
faleceu imediatamente. As palavras de Anastácio foram relata-
das pelo escravo Conrado, de 19 anos, pois ele próprio não foi
arrolado como testemunha. Anastácio deveria ser o companheiro
de Carolina e pai das crianças que choravam, pois era o único adulto
mencionado como presente no cubículo de senzala da família no
momento do crime, além do réu e da vítima.
Em ambos os casos criminais, temos duas famílias escravas
desfeitas. A primeira por prisão e a segunda por assassinato de um
dos cônjuges. Mas, esta história era longa e ainda podia se dar por
venda, aluguel, divisão de bens em espólio, suicídio, infanticídio,
fuga, obrigatoriedade de servir como ama de leite e até “adoção
forçada”, como no caso da bebê Barbara já citado. E, como grande
parte das famílias era monoparental, composta de mulheres com
seus filhos, esse foi um drama majoritariamente feminino. Contudo,
mesmo nas freguesias do Vale do Paraíba, maior reduto escravista
do Império e com forte influência senhorial junto aos órgãos de
justiça, há caso de mães e pais que recorreram à justiça, por meio
de ações de liberdade, para livrarem seus filhos do cativeiro. Foi
isto o que fez a preta Alexandrina, que entrou com uma ação de
liberdade na freguesia de Vassouras contra Joaquim Fernandes
de Andrade Guimarães para libertar a si e seus filhos em 8 de
outubro de 1864. 24 Assim também procedeu a mãe de Malaquias,
um escravo doméstico de 22 anos, em 21 de abril de 1887, na
freguesia de Valença; a escrava Rosa, em 24 de março de 1884,
que teve seu processo aberto em Piraí, e outras mulheres que
tentaram libertar seus filhos, mas que a não sobrevivência da
documentação não nos permite estimar. O sonho da liberdade
vinha de muito longe para as famílias escravas. Raimundo, pai
284
de Benedita, iniciou a compra de liberdade de sua filha em 31
de junho de 1867, entregou um título da dívida pública no valor
de 397$480 com juros de 1% ao ano, a João Soares Brito, que
prometeu dar a mãe (proprietária da escrava) e fechar o acordo
do restante para a alforria. 25 No entanto, em 1887, como nada
havia sido resolvido, Raimundo recorreu à justiça, apresentou o
comprovante do pagamento e, apesar das contestações, Benedita
foi liberta por 800$000, sendo o título 397$480 e juros descon-
tados do valor final estipulado. 26
Esse artigo mostrou o papel do gênero e da maternidade na
conformação de diferentes vivências e experiências no cativeiro.
A mulher escrava estava no centro da reprodução do sistema
escravista, aspecto que foi exacerbado com o fim do tráfico e o
estímulo da formação de famílias. Na visão senhorial, ela era, ao
mesmo tempo, produtora e reprodutora de riquezas. Esse entendi-
mento esteve presente nos cuidados com as mulheres grávidas
e com seus bebês apresentados por uma literatura normativa
expressa tanto nos manuais de administração de fazendas, quanto
nos discursos médicos e higienistas com forte disseminação no
período. Apesar das regras, várias prerrogativas não eram aplica-
das no cotidiano, como demonstrado nas análises das narrati-
vas dos viajantes, testamentos e processos crimes. Para “silenciar
a maternidade escrava”, ao mesmo tempo que se incentivava a
procriação, referiam-se às mães escravas como viciosas, descui-
dadas, negligentes e sujas.
Contudo, não só como um “contradiscurso”, mas no campo da
ação cotidiana, as escravizadas formulavam suas próprias noções
de maternidade e família, que incluíam valores compartilhados em
suas vizinhanças escravas, vínculos afetivos com outras mulheres
25 Keila Grinberg demonstra que, para a compra da liberdade, muitos escravos
usaram as cadernetas de poupança para juntarem pecúlio e libertarem a si e a
seus filhos (2011).
26 Para a freguesia de Piraí, Vale do Paraíba fluminense, foram encontradas no
Arquivo Municipal 25 processos de ações de liberdade, sendo nove até 1880 e 16
de 1880-1888, comprovando o crescimento, mas não a exclusividade, deste tipo de
ação judicial durante a crise da escravidão, como já demonstrou a historiografia
(GRINBERG, 1994; CHALHOUB, 1990). Deste total, nove processos foram encabe-
çados por homens e 16 por mulheres, sendo que duas mulheres entraram para
libertarem a si e aos filhos.
285
na hora do parto e da criação da prole, e a valorização da alimen-
tação dos filhos. Posto que, garantir a alimentação dos filhos (ao
seio ou fora dele) era garantir sua sobrevivência, era um gesto de
amor. Por isso, Martha não abria mão de fazer o mingau, mesmo
sabendo que podia ser castigada. Por isso, Manoel suspeitou que os
gritos de socorro eram de sua esposa. Por isso, a escrava Carolina
levou uma forte pancada na cabeça, quando acudia sua criança
que chorava. Houve, portanto, uma luta cotidiana, calculada nos
limites do possível, para fazer valer a maternidade e a família como
um direito, buscando fugir da mercantilização dos corpos a que
estavam sujeitas. Essa luta das mulheres escravas, em alguns casos,
extrapolou as fronteiras das fazendas e dos complexos cafeeiros e
chegou à justiça, seja como ação criminal, seja como ação civil de
liberdade. Mesmo sendo exceções à regra, esses recursos revelam
um outro lado da mulher escrava. Ela não era somente produtora e
reprodutora de riquezas, como queria o discurso senhorial capturado
pela fotografia das mães escravas de Ferrez, mas uma lutadora
contra uma opressão cotidiana que insidia sobre si, seus filhos e
famílias nas suas múltiplas formas de organização.
286
Fontes
Documentos Impressos
287
SCHLICHTHORST, Carl. O Rio de Janeiro como ele é: 1824-1826. Rio de
Janeiro: Editora Getúlio Costa, 1943.
Documentos Manuscritos
288
Referências
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American capitalismo. New York: Basic Books, 2014.
289
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New York: Pantheon Books, 1982.
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Letras / Penguin Books, 2012.
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famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, 1790-1850. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
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kingdom. Cambridge: Harvard University Press, 2003.
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Atens: University of Georgia Press, 1996.
291
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letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
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William and Mary Quarterly, v. 54, n. 1, p. 167-192, 1997.
292
MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo (org.). O Vale do Paraíba e o Império do
Brasil nos quadros da Segunda Escravidão. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015.
PALMER, Jennifer. Intimate bonds: family and slavery in the French Atlantic.
Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2016.
293
(Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas e Sociais, Univer-
sidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), 2020.
294
United States. Women’s History Review, v. 27, n. 6, p. 1.006-20, 2018.
295
PARA ALÉM DO CONCEITO DE “CHATTEL”:1
SEXUALIDADE, CASAMENTO E LEGITIMIDADE
SOB A ESCRAVIDÃO EM CUBA NO PERÍODO
COLONIAL TARDIO2
Karen Y. Morrison
296
Unidos mostraram que, ainda assim, em contextos de chattel slavery
havia nuances nas relações de poder entre os proprietários e os
escravizados.
Em regiões onde a propriedade escrava era de alguma forma
limitada, tais nuances nas relações de poder eram ainda mais
nítidas. Esse é o caso de Cuba no período colonial, onde o governo
espanhol, algumas autoridades da Igreja Católica e os próprios
escravos operaram para restringir o poder dos proprietários.
Tais tensões ganharam contornos mais evidentes à medida que
a historiografia desviou seu foco inicial das estruturas legais da
escravidão e passou a deter-se nas ações dos proprietários e, mais
recentemente, dos próprios escravizados. Nesta última aborda-
gem, a sexualidade tem sido encarada como um espaço singular
de agência escrava, que escapa ao controle total dos proprietários.
O presente capítulo recorre a pesquisas desse tipo para mostrar
que mulheres cubanas escravizadas utilizavam de tais conflitos
na tentativa de preservar alguma forma de autocontrole sobre o
uso sexual de seus corpos, sobre a criação de famílias e sobre o
nascimento e cuidado das crianças. De modo mais específico, este
capítulo busca entender diversas perspectivas de poder pessoal
e institucional que podem explicar o enorme declínio, a partir
de meados do século XVIII e durante o século XIX, nos índices de
legitimidade de crianças escravas cubanas. A quem atribuir maior
responsabilidade por tal mudança? Aos escravizados, à mudança
nas prioridades econômicas dos proprietários de escravos ou às
falhas institucionais, quer do Estado colonial espanhol quer da
Igreja Católica em nível local? O que observaremos a seguir é
que, em meados do século XIX, as forças institucionais cubanas,
em conjunto, ou tornaram o casamento escravo inatingível, ou
minaram sua utilidade social entre pessoas escravizadas.
297
Já em 1967, o historiador norte-americano Herbert Klein recorreu
a dados sobre casamentos em Cuba para evidenciar o contraste
com sua ausência na chattel slavery na Vírginia. Destacou que, de
1752 a 1755, na Catedral de Santiago houve 55 casamentos escravos,
número não muito inferior ao de 75 casamentos entre brancos
livres na mesma paróquia no período. Santiago tinha então uma
população de 5.765 escravos e 6.525 brancos. Ou seja, um entre 104
escravos se casou nesses quatro anos, quando um entre 87 brancos
o fez (KLEIN, 1967, p. 96).3
De forma análoga, no tocante à ilha como um todo, setenta
anos mais tarde, o total de casamentos celebrados em 1827 foi:
1.868 casamentos entre brancos, 1.381 casamentos entre escravos
e 385 casamentos entre pessoas livres de cor. Ao correlacionar
estes números com os dados populacionais por raça obtém-se
que um casamento foi celebrado para cada 166 pessoas brancas,
um para cada 207 escravos e um para cada 236 pessoas livres de
origem mista. O pior índice é o de negros livres, com um casamento
para cada 347 pessoas (KLEIN, 1967, p. 97). Os dados indicam que,
em contraste com os afrodescendentes livres, tanto os escravos
como seus proprietários investiam os casamentos entre escravos
de um significado espiritual e social semelhante ao atribuído a
casamentos entre brancos.
Ao analisar os casamentos entre escravos ao longo do século
XIX, dados censitários de Cuba indicam que, para os anos de 1827,
1841, 1846 e 1860, representaram, respectivamente, 38%, 34%,
23% e 8% do total de casamentos em Cuba. Nesses mesmos anos,
os escravizados representavam 41%, 43%, 36% e 27% do total da
população da ilha. O índice de seus casamentos mostrou, assim,
nítido declínio (MORRISON, 2015, p. 89).
1827 38 41 92,7
1841 34 43 79,1
1846 23 36 63,9
1860 8 27 29,6
Fonte: Calculado a partir de Marrero (1972, p. 14–43, 47) e Kiple (1996, p. 5–7).
299
Políticas legais sobre sexualidade
e reprodução escrava no início da
colonização espanhola
A legitimidade da descendência, como ocorre em todas as
estruturas de ordem legal, fundamenta-se nas práticas do Estado.
Para o período colonial tardio em Cuba, desde o século XVIII, as
mudanças tocaram tanto à ideologia de governo como às priori-
dades políticas, à medida que uma burguesia emergente fez com
que a monarquia absolutista assumisse caráter liberal, na década
de 1820. Durante a maior parte do período colonial, até então, a
experiência de parentalidade para as mulheres e homens escravi-
zados no âmbito do império hispano-americano era marcada pelas
estruturas legais e políticas que antepunham a sobrevivência da
monarquia aos desejos econômicos dos proprietários privados
de escravos. Uma indicação do conflito entre estes objetivos é o
fato que, antes de 1789, os monarcas espanhóis colocavam limites
severos ao transporte legalizado de africanos cativos para seus
territórios. O lucro não era a prioridade. Para além das restri-
ções imperiais ao ambiente mercantilista, isto era decorrência
de um controle firme sobre imigração de um modo geral para
a América espanhola, com exigência de autorizações estatais
para todas as chegadas. Apenas ibéricos e católicos de nações
não hostis eram permitidos. De fato, em 1570, um mandado real,
provavelmente dirigido aos ladinos, ou escravos espanicizados,
da coroa de Espanha, proibia o transporte de homens escravi-
zados para as Américas a não ser que fossem acompanhados
por suas mulheres e crianças (FERRER DE COUTO, 1864, p. 44).
Este édito parece opor-se à racionalidade mercantil, imperial, e
representava uma limitação evidente aos direitos de propriedade
privada dos donos de escravos, privilegiando uma leitura católica
da sexualidade reprodutiva restrita ao âmbito do casamento.
Embora a autoridade dos monarcas espanhóis do início
do período moderno fosse absoluta, sua prática com frequên-
cia acompanhava os ditames da teoria jurídica preexistente. As
estruturas legais ligadas à escravidão hispano-americana tinham
raízes históricas profundas, invulgares em comparação com outros
impérios europeus, à exceção de Portugal. É consabido que essas
300
leis provinham de uma mescla de legislação romana e canônica,
consolidadas nas famosas Siete Partidas de meados do século
XIII. Esta data precoce tem três implicações significativas, que
dão origem a diferenças importantes em termos das estruturas
legais da servidão integral por comparação a outros impérios.
Primeiramente, capitalismo não foi parte do desenho original das
Siete Partidas. Em segundo lugar, a lógica imperial, mais do que
a situação concreta das Américas, subjazeu às avaliações legais
e à intervenção estatal nas práticas escravocratas na Espanha
colonial. Em terceiro lugar, talvez mais importante, no âmbito do
império espanhol, raça – e, mais especificamente, pressupostos
racistas a respeito de africanos – não esteve no bojo da concei-
tuação inicial ibérica sobre escravidão, como ocorreu em outros
impérios europeus do início do período moderno.
Nas Siete Partidas a escravidão era encarada como um mal
necessário para a sustentação das economias medievais ibéricas e
como instrumento social de conversão dos inimigos muçulmanos
em potenciais aliados católicos durante o período da Reconquista.
O enquadramento católico das Siete Partidas levava em conta a
salvação das almas e a humanidade dos escravizados. Os elemen-
tos de comodificação e desumanização da chattel slavery estavam
presentes, mas com menor intensidade. Nesse sentido é que, por
exemplo, era ilegal mulheres escravas serem forçadas por seus
donos a se prostituir. Em contraste com a definição do conceito
da chattel slavery apontada no início deste artigo, uma outra
escravização existia na América Latina, numa forma que não era
definida como controle e direito absolutos sobre o corpo e no qual
aos escravizados eram atribuídos direitos por meio de leis e/ou
quando havia reconhecimento de que autoridades, para além da
do proprietário de escravos, podiam ser chamadas a intervir em
prol do escravizado em determinadas situações.
As Siete Partidas proviam este tipo de garantias legais. Deixavam
claro que os proprietários não podiam abusar ou matar impune-
mente. Na esfera da reprodução, as pessoas escravizadas tinham
o direito de casar-se com parceiros quer livres quer escravizados
e ser alojadas suficientemente perto de seus esposos de modo a
poder manter as relações conjugais que a Igreja Católica tanto
prezava. Além disso, todas as pessoas escravizadas tinham o direito
de procurar outros donos no caso de violência desmedida ou de
301
impedimentos graves a sua vida conjugal. Tinham ainda o direito
de comprar sua liberdade em prestações, estando os donos obriga-
dos a negociar preços razoáveis. A responsabilidade pela aplica-
ção destas leis recaía nos ocupantes de um cargo governamental
mais ou menos equivalente ao de defensor público, que cobria
uma determinada vila ou pequena região. Na América colonial
espanhola, a denominação destes cargos oscilou entre procura-
dor general, procurador de pobres, procurador síndico, defensor de
menores e protector de esclavos (VARELLA, 2011).5 Ainda, os clérigos
católicos locais ofereciam uma camada adicional de vigilância
de operação dos direitos dos escravos.
Mesmo no contexto destas estruturas legais, o acesso dos
escravos a tais direitos só ocorria de fato quando membros livres
das comunidades em que viviam se dispunham a sustentá-los.
Nas áreas rurais, poucas pessoas respeitavam essas leis, de modo
que os escravos dessas zonas tinham muito menos proteção e
oportunidade para exercer seus direitos do que os que moravam
nas cidades. De qualquer forma, nos dois tipos de ambientes,
a crueldade e a violência eram comuns, não obstante as salva-
guardas legais.
A coroa espanhola tinha diversas razões para encorajar o
casamento de escravos. Os funcionários das colônias encaravam
tais casamentos como um método de pacificação dos homens
escravizados. Os que tinham famílias eram menos propensos a
se rebelar. De forma mais significativa, nas colônias americanas,
raça e reprodução racialmente segregada tornaram-se elemen-
tos-chave do gerenciamento corporativo da sociedade colonial. As
leis eram claramente discriminatórias e aplicavam-se de modo
diverso para cada casta, ou grupo racial, muito embora todos os
sujeitos fossem considerados vassalos da monarquia. Conside-
rava-se que as famílias brancas eram as que davam origem aos
sujeitos mais leais ao império, ao passo que as populações indíge-
nas e negras contribuíam com o fornecimento de trabalho, com
potencial de se agregarem aos brancos na defesa do império.
Contrariamente ao que ocorria nos impérios holandês e inglês,
nos quais a definição de propriedade escrava dependia de rigoro-
sas barreiras raciais impostas à sexualidade e reprodução, no
302
império espanhol de inícios do período moderno não havia restri-
ções legais deste tipo. Ao invés disso, a racialização da reprodu-
ção era encorajada por meio de diversas estratégias sociais. O
governo e os funcionários do Estado continuavam a recompensar
a reprodução dos cristãos velhos e brancos por meio de limita-
ções do acesso às posições importantes estatais, eclesiásticas
e militares aos que podiam comprovar sua pureza por várias
gerações, sua limpieza de sangre. Os baixos índices de imigra-
ção feminina branca para Cuba acrescentavam exclusividade à
reprodução de branquitude e produziam uma situação demográ-
fica que limitava o acesso dos homens brancos às socialmente
aprovadas parceiras conjugais de mesma raça. O seu acesso a
mulheres afrodescendentes livres e escravizadas encontrava
menos restrições e permitia uma série de interações sexuais
reprodutivas, que incluíam estupro, encontros consensuais
esporádicos, relações de longo prazo e alguns, poucos, casamen-
tos formais. Conquanto estas experiências sexuais interraciais
tenham dado origem a crianças, mais ilegítimas do que legíti-
mas, antes do século XIX as proporções eram pequenas quando
comparadas com a progênie legítima de mãe e pai afrodescen-
dentes (MORRISON, 2015, p. 91).
6 “Que no venda ninguna esclava negra del envío de los asientos, sino que procure que
se casen con los esclavos para evitar amancebamientos y pecados públicos.” Archivo
General de Indias, fondo Santo Domingo, expediente 1122, L.5, F.124V-125V.
303
Na América espanhola, os direitos sobre a propriedade escrava
eram limitados de modo geral e no que dizia respeito à possibili-
dade de que os proprietários forçassem as mulheres escraviza-
das a cometerem pecados sexuais. As injunções legais contra a
prostituição escrava eram nítidas desde as Siete Partidas e foram
reiteradas por novas diretrizes reais ao longo de todo o período
colonial.
A oposição da monarquia à prostituição escrava contras-
tava com a aceitação legal das mulheres livres se prostituírem.
Quando homens de destaque de Havana no século XVII apresen-
taram queixas de que a prostituição de mulheres negras livres
corrompia a cidade, omitiram referência ao mesmo comporta-
mento amplamente praticado por mulheres brancas empobre-
cidas, tampouco condenaram a prostituição ilegal recorrente de
mulheres escravas que provia rendimento para seus proprietários.
As autoridades estatais e eclesiásticas também desencorajavam
de forma ativa as relações consensuais de longo prazo, punindo e
até colocando na cadeia uma ou ambas as partes envolvidas. Este
controle aplicava-se a uniões entre homens brancos e mulheres
escravas, bem como à população em geral. Nos casos com que
Herman Bennett se deparou em sua pesquisa sobre o período
inicial do século XVII no México, a maior parte dos homens não era
proprietário das mulheres escravas (BENNETT, 2011, p. 41-5). Para
a Colômbia no século XVIII, Roger Pita Pico menciona a existência
de vários procedimentos criminais envolvendo filhos de proprie-
tários de escravos (PITA PICO, 2020).
Em caso de 1785, na Colômbia, Josef María Moreno era pai de
três crianças com uma mulher de posse do seu próprio pai, quando
os vizinhos apresentaram queixa às autoridades locais do comporta-
mento “ilícito” deles. O prefeito da pequena vila e o padre inicialmente
o admoestaram por se envolver nesse relacionamento “proibido”.
As autoridades instaram a família a intervir, mas ninguém o fez.
No depoimento que obtiveram da escrava, María Antonia, Josef
não tinha apenas prometido libertá-la, tinha também prometido
casar-se com ela. Um processo criminal foi movido contra ambos,
Josef e María Antonia foram retirados de casa e encarcerados em
uma vila próxima. Após vários meses, Josef tentou resolver o seu
dilema legal por meio do casamento com María Antonia. O juiz não
se deu por satisfeito e impôs multas a Josef e a seu pai, quanto a este
304
último por ter ignorado os “escandalosos crimes” em sua própria
casa. A moralidade cristã sobrepunha-se aos direitos do proprie-
tário de escravos. Nestas situações, as mulheres escravas podiam
até ser forçosamente vendidas dos infratores (PITA PICO, 2020).
Se uma criança nascesse de tal relacionamento, algumas
mulheres escravas acreditavam que podiam mover uma ação pela
liberdade de ambos. Não havia lei que sustentasse essa suposi-
ção. Em 1862, quando a escrava crioula Juana Sánchez y Sánchez
buscou auxílio de um síndico procurador em Havana, ela talvez
não estivesse ciente que a lei não respaldava sua pretensão de
que, por ser mãe de um filho do seu dono, tanto ela como a criança
deviam ser libertos. O síndico levou o caso ao tribunal, apesar da
falta regulamentar de testemunhas do relacionamento. Antes do
caso poder ser descartado, o dono de Juana deu liberdade à criança
e estabeleceu um preço bem razoável para que Juana comprasse
a sua. Ele considerou que essa atitude era menos prejudicial do
que enfrentar um julgamento que tornaria o escândalo público.7
Embora as autoridades coloniais demonstrassem preocu-
pação a respeito de pecado sexual entre pessoas escravizadas, o
mesmo não pode ser dito a respeito da violência sexual exercida
sobre mulheres escravizadas. Nos arquivos históricos da América
Latina, aparecem pouquíssimos processos criminais relativos a
queixas de estupro ou abuso sexual. As elites colonais da região
não estenderam as ideias de inocência e honra, que baseavam
essas queixas, às mulheres escravas. Os raros casos de proces-
sos por abuso sexual ou perda de virgindade de mulher escrava
foram apresentados pelos donos ofendidos, não pelas próprias
mulheres.8
305
a coroa espanhola não se afastou muito das Siete Partidas e das
limitações aí impostas aos direitos de propriedade privada dos
senhores de escravos. Todavia, aos poucos, fissuras começaram
a aparecer no sistema. Após perdas importantes para os ingleses
ao longo da Guerra dos Sete Anos (1755-1762), a coroa espanhola
defrontou-se com duas forças políticas internas, que pareciam
requerer mudanças na legislação sobre escravidão bem como
outras medidas em termos populacionais. A primeira era o poder
e riqueza da Igreja Católica. Os ideais do Iluminismo reimagina-
ram a igreja como uma ameaça ao Estado, ao invés do parceiro
que antes fora. A segunda era a riqueza emergente e as demandas
associadas por maior influência política da classe dos produtores
e comerciantes. A gradual capitulação da monarquia espanhola
aos capitalistas acabou por tornar seu sucesso diante da Igreja
em parte irrelevante. Contudo, nestas disputas, a agência dos
escravizados tanto pode operar novas brechas como se confron-
tou com a repressão de antigos costumes sociais.
A fase inicial do confronto com a Igreja derivou das tentati-
vas da coroa de liberar a riqueza mantida nos cofres das institui-
ções da Igreja, como mosteiros, seminários e conventos. Fazia
parte da lógica por detrás da expulsão, em 1767, dos jesuítas de
todo o império espanhol. A companhia era então a maior proprie-
tária de escravos em Cuba, dona de pelo menos 29 propriedades
fundiárias na ilha e de 423 escravizados na província de Havana
(TORRES CUEVAS; LEIVA, 2011). Estes bens foram confiscados e
vendidos pelo governo.
Tais tensões com a Igreja estavam presentes quando a Coroa
editou mais uma política estatal que visava a reforçar as antigas
categorias feudais face à ascendência social de uma classe capita-
lista que se consolidava. A Real Pragmática de 1776, sobre casamento
desigual, foi promulgada pela monarquia espanhola para manter
o estatuto social da sua nobreza, ao permitir a membros da família
contestar casamentos potenciais com plebeus. A riqueza crescente
da burguesia tornava-se, assim, insuficiente para obter ascensão
social através do casamento. A nova lei também colocava o Estado
num terreno antes circunscrito à regulamentação eclesiástica, o
que exacerbava os conflitos entre ambos.
A aplicação da Pragmática teve efeitos bem além do seu desígnio
original no impacto sobre as possibilidades de casamento para os
306
negros e mulatos da Espanha colonial, tanto livres como escraviza-
dos. A oposição de membros da família à legitimação de relações
supostamente desiguais tornou a raça elemento-chave. Quando
buscavam seus próprios avanços na hierarquia social, setores
médios brancos procuravam distinguir-se dos grupos de estatuto
inferior, racialmente marcados. Famílias brancas aumentaram suas
objeções a casamentos inter-raciais, que antes não eram objeto
de restrição pelo Estado. Muito embora existissem muito mais
uniões entre homens brancos e mulheres afrodescendentes fora
do que dentro do casamento, a Pragmática reduziu ainda mais a
proporção destes casamentos. Aumentou a ilegitimidade da prole
destas uniões, em particular para os filhos de mães escravas. Até
os casamentos entre pessoas de cor foram afetados, na medida
em que os que buscavam alçar-se aos setores médios se afasta-
vam da ancestralidade escrava e o colorismo associado induzia
os de cor mais branca a se distanciarem socialmente das pessoas
mais escuras, supostamente mais próximas da escravidão e da
herança africana (MARTINEZ-ALIER, 1974).
A luta de poder entre a coroa espanhola e uma classe de
comerciantes, que emergira em larga medida da produção agrícola
e do comércio de longa distância, no seu início desenrolou-se
por meio de uma série de compromissos por parte da coroa nos
finais do século XVIII. A coroa passou de uma política econômica
mercantilista, fortemente controladora, para uma redução dos
monopólios estatais e para o livre comércio desejado pelos mercado-
res. Liberalizou aos poucos o comércio de escravos e, quase em
simultâneo, buscou impor uma regulamentação mais unificada a
respeito de tratamento mais humano e economicamente eficiente
do influxo esperado de cativos. Em toda a América Espanhola, a
classe capitalista emergente se uniu para impedir a implementa-
ção do novo conjunto de leis de 1789, o Código negro carolino. Foi
encarado como uma interferência excessiva no controle dos escravos.
Isto ocorreu apesar do aumento de autoridade que concedia aos
brancos em geral e aos donos de fazendas, em particular sobre o
trabalho de negros e mulatos, tanto livres como escravizados. As
leis chegavam mesmo a especificar que todos os negros e mulatos
precisavam agir com deferência face aos brancos.
A rejeição colonial ao novo código representou uma nítida
contestação da autoridade da coroa. Não obstante, o historiador
307
espanhol Lucena Salmoral considera importante ter precaução
diante da perspectiva historiográfica que considera este cenário
expressão de um poder capitalista irrestrito. Ele lembra que, sem
o Código, leis mais antigas, baseadas sobretudo nas Siete Partidas,
permaneciam em vigor (LUCENA SALMORAL, 2011). Contudo, à
medida que a monarquia cerceava o papel social da Igreja, esta
última supervisionava menos a aplicação das leis ligadas à escrava-
tura. Um dos objetos centrais com que o código lidava também
se perdia, o encorajamento da reprodução natural da população
escrava. Com a nova possibilidade obtida de comerciar escravos
livremente, a reprodução escrava foi em grande medida descar-
tada em favor da compra continuada. Trinta anos se passariam
antes de voltar a se tornar uma preocupação efetiva da classe dos
proprietários de fazendas cubanos.
308
atender às exigências governamentais a respeito de gênero, um
grupo de comerciantes de escravos reclamou amargamente que, em
1805, apesar de ter trazido 80 mulheres africanas para venda em
Cuba, não conseguiu encontrar compradores. Estes simplesmente
preferiam homens e não achavam que as mulheres podiam ser
trabalhadoras eficientes nos campos de cana-de-açúcar. Todavia,
em 1815, a percentagem de homens entrantes tinha voltado a
66,14 (TORNERO TINAJERO, 1996, p. 60-6).
Inicialmente, estas mudanças tiveram pouco impacto nos
índices de casamentos escravos e de ilegitimidade. Entre 1803
e 1820, em Santiago, a segunda maior cidade de Cuba no século
XIX e capital da colônia no seu início, os casamentos para as
pessoas de cor livres e escravas eram 62% do total de casamen-
tos, numa época em que essa população correspondia à maioria
dos residentes da cidade (DUMOULIN, 2002, p. 154-8). As pesquisa-
doras cubanas Aisnara Perera Díaz e Maria de los Angeles Meriño
Fuentes desenvolveram vários estudos na região provincial de
Havana de Bejucal que evidenciam um número importante de
casamentos entre escravos, uniões consensuais duradouras e laços
de paternidade significativos nesta área rural. Quanto ao período
entre 1792 e 1826, 78,4% das crianças escravas desta região foram
batizadas como legítimas. É apenas a partir da década de 1830 que
os índices de casamento e legitimidade começam a cair signifi-
cativamente (PERERA DÍAZ; MERIÑO FUENTES, 2006, p. 163).
Nesta ocasião, várias transformações de porte no império
espanhol afetaram as famílias escravas. A nação do Haiti, liderada
por negros, emergira de uma imensa revolta escrava no lado
francês da ilha de Hispaniola, vizinha de Cuba, não muito a leste.
A ameaça sempre presente de uma ocorrência análoga em Cuba
incitou os proprietários de escravos a endurecerem o controle.
Na própria Espanha, o governo liberal parlamentar substituíra a
autoridade absoluta do monarca. Espanha perdera as suas colônias
americanas, à exceção de Cuba e Porto Rico. Cuba tornara-se a
salvaguarda econômica de um império profundamente reduzido,
com o que a classe dos fazendeiros-comerciantes ganhou grande
influência política, que freou sentimentos abolicionistas em curso
na metrópole. Embora o rei Ferdinand VII tenha aquiescido à
pressão britânica para abolir o comércio de escravos para Cuba
em 1820, a burguesia cubana manteve força suficiente para que
309
o comércio de contrabando continuasse essencialmente sem
confronto por parte das autoridades locais.
Um exemplo da mudança nos padrões de formação familiar
presente nas muitas famílias escravas multigeracionais mostrado
por Perera e Meriño é o de José María Lucumí e María del Rosario
Rodríguez Carabalí. Embora fossem inicialmente posse de diferen-
tes proprietários, eles se casaram em 1795. Apesar das residên-
cias separadas, tiveram vários filhos legítimos juntos. As crianças
receberam o sobrenome materno “Rodríguez”, na medida em que
eram também propriedade do dono da mãe delas. Para facili-
tar a vida marital dos dois, o dono de José Maria, o Marquês de
Cárdenas de Monte Hermoso, comprou María del Rosario em
1804 e em 1805 ela ganhou sua liberdade. Duas crianças do casal
nascidas posteriormente foram batizadas com o sobrenome de
Cárdenas, o que podia significar o reconhecimento da paterni-
dade de José María ou o destaque social de seu proprietário,
apesar de terem nascido livres.
Liberdade e legitimidade familiar como símbolos de respei-
tabilidade social também foram operados pela geração familiar
seguinte. A filha deles, María Luisa Cardenas, que tinha nascido
escrava, ganhou liberdade aos 20 anos. Enquanto trabalhava como
escrava na mesma plantation do proprietário original de seu pai,
María Luisa deu início a um relacionamento com um “Kongo”
africano livre, Cecilio Hernández. Casaram-se e posteriormente
tiveram cinco filhas nascidas livres. É interessante observar que
a preocupação familiar com a legitimidade parece ter declinado
rapidamente na geração seguinte. Várias filhas de María Luisa
tiveram filhos fora de casamento, diferentemente de seus pais
e avós. Neste sentido, a família acompanhou o padrão geral de
crescente ilegitimidade no século XIX entre os afro-cubanos, tanto
livres como escravizados.
Decerto, sempre existiram várias motivações pessoais por
detrás da legitimação de qualquer união sexual e seus frutos.
Ainda assim, percebe-se que as pessoas escravizadas também
empregaram as estruturas legais ibéricas associadas à “família”
para criar laços permanentes, que poderiam, juridicamente, evitar
a ameaça constante de separação oriunda em razão de venda
decorrente das necessidades econômicas de seus proprietários.
Da mesma forma, fizeram-no para forjar alianças em busca de
310
liberdade. Como no caso citado de José María Lucumí e Maria del
Rosario, escravos casados ou em ligações duradouras desenvol-
viam estratégias para comprar primeiro a liberdade de um, o qual
passava a ter então maior possibilidade econômica de financiar
a liberdade do outro. Em casamentos de pessoas com estatu-
tos mistos, os esposos livres procuravam libertar os parceiros
escravizados. Pais livres faziam o mesmo para crianças escravi-
zadas, assim como crianças livres para seus pais escravizados.
As petições de declaração de paternidade no século XIX nos
arquivos da arquidiocese de Havana revelam detalhes sobre alguns
destes casos. Num exemplo, quando Angel Herrera buscou legiti-
mação de seu filho de 24 anos, ofereceu vários detalhes de sua vida
pregressa. Tinha sido sequestrado da Nigéria para Cuba, na década
de 1810. Sob escravidão, em 1819, inicialmente se casou com uma
mulher escrava do Congo. Em algum momento da relação deles, a
propriedade dela foi transferida para o filho do dono de Angel. Não
fica claro se viviam juntos. Após a morte dela, Angel entrou num
relacionamento duradouro com outra mulher escrava, Ambrosia
Villalonga. O filho deles nasceu em 1827. Quando se casaram, em
1854, Ambrosia às portas da morte, todos estavam livres. Ambrosia
discorre sobre a importância do casamento, “tanto por tranqui-
lizar a consciência quanto por haver tido naturalmente com ele
[Angel] um filho”9. A declaração de Ambrosia é bem representativa
das poucas que existem de mulheres escravizadas nos arquivos,
ao falar aos representantes da Igreja sobre a profundidade de seus
valores religiosos. Muito embora possam ter existido, por razões
óbvias estão ausentes pensamentos não conformistas.
Escolhas pessoais dos escravizados combinaram-se a diversos
outros fatores no declínio dos índices de casamento. Para além
de influências da Coroa Espanhola, de autoridades da Igreja e de
interesses materiais dos próprios escravos, deve-se reconhecer
a existência generalizada de formas de intervenção dos proprie-
tários de escravos nesta questão. Herbert Gutman descreveu
várias destas práticas no seu estudo sobre famílias escravas nos
Estados Unidos no contexto de chattel slavery. Incluem a medida
9 No original: tanto por transquilizar en conciencia cuanto por haber tenido na-
turalmente con el [Angel] un hijo. Archivo del Arzobispado de la Habana, Fondo
Legitimaciones y Reconocimientos, legajo 7 expediente 28, 1864.
311
em que os proprietários permitiam a formação de laços íntimos
ou em que tentavam controlar diretamente a sexualidade escrava;
determinantes geográficos e demográficos de acesso a parcei-
ros íntimos potenciais; e o espaço social para criar laços com os
descendentes. Dentro destes parâmetros, existiu uma diversidade
de comportamentos sexuais escravos e de formações familiares.
Quando estes atos produziam crianças, os laços entre as mães e
seus bebês e filhos pequenos parecem ter sido respeitados pela
via das práticas corriqueiras.
Todavia, a emissão, pelo governo liberal espanhol de então,
do 1842 Reglamento aumentou de maneira dramática a fiscaliza-
ção estatal das relações entre proprietários e escravos. Continha
uma série de medidas relativas às famílias escravas e ao controle
da sexualidade pré-marital. Uma delas estabelecia que “Os donos
de escravos deverão evitar os comportamentos ilícitos de ambos
os sexos, fomentando os casamentos; não impedirão que se casem
com os de outros donos, e proporcionarão aos casados a reunião
sob o mesmo teto” 10 (LUCENA SALMORAL, 2011, p. 1.261). Tratava-
se mais de uma sugestão do que de uma exigência. Casamento
significaria uma restrição cara à faculdade dos proprietários de
escravos de venderem sua propriedade humana. É somente com
este conjunto de leis que o governo liberal espanhol determina
que crianças com três anos ou menos não podiam ser separadas
de suas mães. Conexões intergeracionais eram a parte da vida dos
escravos mais transtornada pelos proprietários. Por outro lado,
o Reglamento também fortalecia as funções do síndico procura-
dor (LUCENA SALMORAL, 2011, p. 1.258–64). Aumentou a quanti-
dade de queixas apresentadas por pessoas escravizadas contra
seus proprietários a respeito do direito a controlar sua própria
sexualidade e família.
Não havia consenso em meados do século XIX entre os proprie-
tários de escravos cubanos a respeito do valor da reprodução
natural. Tinham noção que as práticas britânicas de abolição
do tráfico se vinham tornado mais rigorosas e que seu forneci-
mento africano ilegal podia desaparecer por completo a qualquer
10 “Los dueños de esclavos deberán evitar los tratos ilícitos de ambos sexos, fo-
mentando los matrimonios; no impedirán el que se casen con los de otros dueños, y
proporcionarán a los casados la reunión bajo un mismo techo.”
312
momento. Para muitos, o incentivo direto à reprodução natural
escrava era uma prática cara, mas necessária. A questão que
tinham era se o casamento escravo facilitava ou dificultava obter
o melhor resultado.
Vale considerar rapidamente o argumento do renomado
historiador cubano Manuel Moreno Fraginals, segundo o qual
senhores extrairiam ganhos reprodutivos e econômicos da
promiscuidade sexual de escravos. Permitir que tal comporta-
mento continuasse era uma das várias razões para desencorajar
a educação religiosa e o casamento. Tais observações conjumi-
navam-se à hipótese, hoje desacreditada, de que a sobrevivência
de famílias escravas era incompatível com o sucesso econômico
das plantations açucareiras (MORENO FRAGINALS, 1964, vide
também BARCIA ZEQUEIRA 2010). Uma leitura diversa das ações
dos proprietários na limitação da sexualidade pré-marital escrava
é apresentada por um viajante francês nos inícios do século XIX.
François Depons observou que nas colônias da América espanhola
as mulheres escravas ficavam trancadas desde os 10 anos até se
casarem. Cuidava-se de vigiá-las de modo a prevenir a atividade
sexual para que os proprietários acreditavam que eram predispos-
tas.11 Estas observações de 1804 deram-se no período de tráfico
atlântico irrestrito, ou seja, quando a maioria dos proprietários
considerava que o nascimento e a criação de jovens escravos
eram mais caros do que a compra.
Quando, em 1862, um manual instrutivo sobre as plantations
açucareiras circulou entre os gerentes das fazendas cubanas, o
tráfico era mais instável. Sob uma efígie de moralidade, a Cartilla
practica del manejo de ingenios o fincas aponta as vantagens e
desvantagens de encorajar os casamentos escravos e da educação
religiosa associada. O autor começa por dizer que
313
os nossos. Compraremos os dois casos, para concluir qual
deles é mais conveniente aos interesses dos fazendeiros.
Conclui:
314
Suerte, as suas escravas María de la Cruz e Paula são
flageladas com pancadas com cacetes e chicoteadas. E
por quê? Porque recusam submeter-se a ele.13
Conclusões
O respeito pelos casamentos de escravos foi uma limita-
ção empregada pelo Estado colonial espanhol, bem como pela
315
Igreja Católica local, para restringir o poder dos proprietários
de escravos e seus potenciais lucros. Para além das regras da
chattel slavery praticadas em contextos como os norte-americanos,
indivíduos escravos em Cuba se associaram a estas instituições
no recurso ao casamento como forma de afirmar seus direitos e
sua humanidade. Talvez tenham agido no mesmo sentido quando
cada vez mais escolheram formar famílias sem laços matrimo-
niais durante o século XIX. Estas preferências deram-se à medida
que o Estado se tornava mais secular. As leis da época continua-
vam a exprimir uma retórica moral no tocante aos casamentos
entre escravos, mas, de um modo geral, o Estado diminuiu o
papel da Igreja na sociedade cubana e a pressão religiosa sobre
os proprietários de escravos. O interesse dos proprietários era
contra promover os casamentos entre escravos, que restringi-
ria a possibilidade de vender pessoas à vontade. Estas questões,
todavia, não eram novas.
Um pedido escravo incomum por reconhecimento de paterni-
dade revela tanto o desejo de sanção legal e eclesiástica dos laços
familiares como os obstáculos enfrentados para obtê-la. Em 1876,
em Havana, o escravo africano Francisco Mariano Sevillano justifi-
cou a demora de dez anos para reconhecer seus filhos. Não teve
ajuda de seu proprietário com os custos.
14 No original: […] los recursos para costear una escritura de reconocimiento ante
Escribano, el testimonió de ella, el papel para una y otro, el preciso para la instancia
al Obispado y por último los derechos en este y lo que es más la suma a veces creci-
dísima que se hacen pagar los agentes en esta clase de negocios, sobre que podrán
e informar a V.S.Y. los empleados que el Obispado intervienen en estos asuntos.
316
Independentemente destas dificuldades, as pessoas escravi-
zadas amavam e tinham suas famílias como fonte de felicidade.
Uma europeia em visita a Cuba em 1851 dá testemunho: “E as mães,
com seus colares no pescoço, seus panos multicoloridos enrolados
como turbantes ao redor de suas cabeças, parecem muito bem,
com seus olhares amorosos e seus dentes brancos como pérolas,
quando brincam com seus filhos viçosos” 15 (BREMER, 1995, p. 100).
Resultado que sobre la clase pobre pesa tal calauridad: Y aún hay más todavía
verificado el matrimonio si no satisfacen esos requisitos quedan par siempre con la
calidad de hijos de padres ignorados. Archivo del Arzobispado de la Habana, Fondo
Legitimaciones y Reconocimientos, Leg. 41 exp 94, 1876.
15 “Y las madres, con sus collares al cuello, sus pañuelos multicolores enrollados
como turbantes alrededor de sus cabezas, tienen muy buen aspecto, con sus mira-
das amorosas y sus dientes blancos como perlas, cuando juegan con sus lozanos
niños.”
317
Fontes
318
Referências
FUENTE GARCIA, Alejandro de la. Slaves and the creation of legal rights in
Cuba. “coartación” and “papel”. The Hispanic American Historical Review,
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321
O LONGO CAMINHO: USOS DA LEI DO
VENTRE LIVRE POR MÃES LIBERTAS
(SÃO PAULO, DÉCADA DE 1880)
Marília B. A. Ariza
322
Cornelia deixado o filho em São José do Paraíso por não conseguir
vencer a recusa do empedernido ex-proprietário a entregar-lhe
a criança? Teria ela partido sozinha a outras paragens em busca
de autonomia para depois, em situação mais confortável, trazer
Francisco para sua companhia? Se tais conjecturas não podem ser
tomadas como certeza, o fato é que, ao solicitar que o pequeno
fosse entregue às autoridades mineiras para que estas o apresen-
tassem ao Juízo paulistano – que poderia então, segundo a petição,
deliberar sobre seu destino “de acordo com o direito”–.1 Cornelia,
por meio de seu advogado, amparava-se em leis positivas e noções
de direitos maternos e proteção infantil a elas associadas:
1 O direito, nesse caso, emanava das Ordenações Filipinas, que regiam os temas
relativos à tutela de menores de idade orfanados – isto é, crianças sem pai vivo ou
legítimo, filhas de mulheres solteiras ou descasadas. Sublinhe-se que as atribui-
ções de tutor de menores órfãos eram incumbências exclusivamente masculinas,
podendo ser designadas a mulheres somente em raras circunstâncias – como no
caso de mulheres viúvas e não recasadas, com meios para sustentar os filhos. A
legislação e jurisprudências imperiais relativas ao tema estão em: Carvalho (1856).
2 Arquivo Público do Estado de São Paulo – Juízo de Órfãos (APESP – JO), Autos
de petição, C05428, / 10787, 1888.
323
Livre de 1871, cujo parágrafo 4º do art. 1º previa textualmente
que: “Se a mulher escrava obtiver liberdade, os filhos menores
de 8 anos que estejam em poder do senhor dela […] lhe serão
entregues, exceto se preferir deixá-los, e o senhor anuir a ficar
com eles” (BRASIL, 1871).
Esgrimindo um vocabulário emocional que espelhava valores
de proteção materna e vulnerabilidade infantil, a petição convocava
a lei de 1871 tanto em seus sentidos práticos – quais fossem, a
garantia da união entre mães libertas e seus pequenos filhos –
como simbólicos. De fato, como vêm, nos anos recentes, demons-
trando importantes pesquisas, sob influência do abolicionismo
britânico e norte-americano a maternidade tornara-se fundamen-
tal campo de embates em torno da condução dos processos de
abolição em diversos contextos escravistas do mundo atlântico
(COWLING, 2013; COWLING et al., 2020; MACHADO, 2018a). Esta
poderosa valência simbólica de que era investida a maternidade,
representada em tintas que destacavam seu caráter de natureza
feminina, vocação corporificada, e sua substância doce e abnegada,
ganhou peso e força diante do acirramento do abolicionismo da
década final da escravidão no Império do Brasil. Materializava-se,
nessas circunstâncias e entre outras coisas, na interposição de ações
de liberdade e demais petições à justiça nas quais os argumentos
para demandar a emancipação de mães e filhos apoiavam-se em
noções sentimentalizadas de prerrogativas maternas e fragilidades
infantis e do elo indissolúvel entre esses elementos, apresenta-
das numa linguagem de direitos positivos (COWLING, 2013; COTA,
2013; ARIZA, 2020) .3
Mesmo antes da década final da escravidão, porém, a Lei
do Ventre Livre, a que recorria a solicitação de Cornelia, teve
papel fundamental no reconhecimento simbólico da materni-
dade e infância escravizadas deslegitimadas e negligenciadas
324
na prática social – por exemplo, por meio da separação de mães
e filhos por venda, dos impedimentos aos cuidados maternos e
consequente fragilização da vida de crianças escravizadas, bem
como de representações culturais da impropriedade materna de
mulheres cativas, sobretudo africanas.4 Ao romper o princípio
do partus sequietur ventrem que fundamentava a reprodução da
escravidão nas Américas, a lei acabou por projetar mulheres e
crianças escravizadas a lugar de importância fundamental para
o destino periclitante da instituição no Império, produzindo uma
espécie de virada simbólica – um tanto efêmera, por certo – que
requalificou papéis e representações sociais da maternidade e
infância sob o cativeiro (MACHADO, 2018b; ARIZA, 2021).
É bem verdade, contudo, que seus efeitos práticos foram
amplamente ambivalentes. Por um lado, ao fraturar a prerroga-
tiva exclusiva do arbítrio e controle senhorial sobre a propriedade
escrava, formalizando mecanismos para a aquisição de alforrias
e eliminando a possibilidade de sua reprodução natural. A Lei
do Ventre Livre deu margem para que pessoas como Cornelia –
que, mesmo após a abolição, recorria à regulação para reclamar
direitos que lhe assistiriam como pessoa livre – disputassem formal-
mente sua emancipação (CHALHOUB, 1990). Por outro lado, no
entanto, a materialização das possibilidades anunciadas na lei
em experiências efetivas de emancipação foi vacilante e custosa,
para dizer o mínimo. Proprietários de escravos frequentemente
ignoravam a lei e seus muitos dispositivos, obstando previsões
que admitiam a sujeitos escravizados, destacadamente mulheres e
crianças, acessos formais à liberdade. Não raro, fraudavam registros
de batismo, fazendo ingênuos passarem por crianças nascidas
antes do famigerado 28 de setembro de 1871, ou os vendiam em
separado da mãe. Quando os reconheciam protocolarmente como
ingênuos, seguiam a eles dispensado o tratamento de proprie-
dade escrava ilimitada – explorando-os à exaustão, outras tantas
vezes ignorando o mesmo parágrafo 4º, art. 1º a que se referia a
petição de Cornelia.5 Sua reclamação ao Juízo ilumina as dificul-
4 Sobre o tema, ver, entre outros: Morgan (2004); Machado (2018a); Telles (2018);
Wallace-Sanders (2009).
5 Sobre o tratamento dispensado aos ingênuos, ver, entre outros: Papali (2003,
2007); Geremias (2005); Souza (2015). Sobre registros de batismo e venda de
325
dades práticas encontradas por mulheres libertas para fazer valer
a prerrogativa de levar consigo, para onde fossem, os filhos de até
oito anos. Disputada na prática social, a medida esteve longe de
ser arranjo pacificado entre legisladores, proprietários e mulheres
escravizadas.
Nas atas das comissões da Câmara dos Deputados de 1870 e
1871 encarregadas de avaliar os projetos de libertação do ventre
encaminhados pelo governo imperial, as discussões sobre o tema
misturavam argumentos diversos, por vezes contraditórios, para
justificar sua inclusão entre as várias previsões da futura lei. O
parecer de 1870 referia-se à necessidade de observar a preserva-
ção da integridade da família escrava, apresentando o expediente
em questão como providencial extensão do Decreto n. 1.695 de
15 de setembro de 1869, que proibia a venda em separado de pais
escravizados e seus filhos menores de 15 anos de idade. Asseverava,
em conclusão, que “O princípio, portanto, altamente moral, desta
disposição já se acha consagrado em nossa legislação”6. Todavia,
alertando para a necessidade de respaldar a elaboração da lei e suas
previsões indenizatórias em recenseamentos e cuidadosa aprecia-
ção das taxas de crescimento e diminuição da população escrava
no Império, o mesmo documento dava a entender que crianças
– e, por extensão, suas mães – em condições de serem benefi-
ciadas pela elevada proposição talvez não somassem número tão
expressivo a ponto de tornar-se preocupante. Sublinhando a alta
mortalidade de recém-nascidos e crianças na primeira infância, o
parecer argumentava que “até os 7 anos de idade a vida da criança é
muito precária, segundo as leis que presidem a natureza humana”.
Embora reconhecendo que também a população livre, “onde deve
supor-se mais cuidado e inteligência na criação”, era atingida pela
miséria do perecimento da infância, o parecer indicava que tais
ingênuos, ver, entre outros: Perussato (2010); Motta (2012, 2016). Explorando o
mercado de aluguel de amas de leite na Corte, Lorena Telles refere-se ao abandono
ou venda de pequenos ingênuos, separados das mães: Telles (2018).
6 Parecer e Projecto de Lei Apresentado à Camara dos Senhores Deputados
na sessão de 16 de agosto de 1870. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1870,
p. 28-9. O parecer discorre sobre a validade da medida recorrendo a exemplos de
políticas semelhantes aplicadas em domínios coloniais britânicos e espanhóis,
demonstrando a importância e circularidade da questão para a administração de
medidas de emancipação gradual em perspectiva atlântica.
326
vulnerabilidades assolavam sobretudo a crianças escravizadas,
sendo “fato averiguado que na raça escrava 50% dos nascidos
vêm a perecer antes dos 8 anos de idade”.7
Já assumindo a incorporação do expediente em questão ao
texto final da lei, o arrazoado de 1871, por sua vez, sugeria uma
pequena, mas significativa alteração ao teor do parágrafo 4º, art.
1º, do novo projeto encaminhado pelo governo à apreciação da
comissão. Recomendava que, ao destaque que propunha o direito
de mulheres libertas levarem consigo os filhos menores de oito
anos, a passagem “independente de indenização” encontrada no
original fosse suprimida do texto final, justificando-o da seguinte
maneira:
327
Ainda que o incremento do preço de alforrias de mulheres escravi-
zadas com filhos pequenos não tenha se convertido em política
compulsória e oficial, como poderiam querer alguns deputados,
muitos foram os óbices colocados por senhores para que tais mulheres
pudessem usufruir da prerrogativa que lhes era legalmente assegu-
rada10. Petições e árduas disputas pelo direito sobre filhos pequenos
de libertas, como aquela envolvendo Cornelia, não foram infrequen-
tes no Juízo de Órfãos de São Paulo na década da abolição – e não
há razão para suspeitar que essa fosse exceção à regra de grandes
cidades escravistas nas quais a população forra então se avoluma-
va.11 Escorada no argumento da sacralidade materna, apelando à
empatia do Juízo para com a sorte miserável dos recém-saídos do
cativeiro, invocando as leis de 1871 e 1888 e recorrendo à primeira
para confirmar a validade da segunda, a solicitação de Cornelia é
reveladora do tecido frágil da liberdade que foi, muitas vezes, experi-
mentada por mães libertas e, extensivamente, tantos outros sujeitos
egressos da escravidão, antes e após 1888. Não obstante, é também
depoimento dos múltiplos recursos de que tais mulheres lançavam
mão para garantir formas autônomas de cuidado de filhos e gestão
familiar uma vez formalmente livres do cativeiro.
Nessas contendas, que devem ser entendidas no contexto
tumultuário da década de 1880, mulheres libertas mobilizavam
10 Embora não discrimine o sexo dos alforriados nem se refira de forma específica
ao caso de mulheres com filhos, Enidelce Bertin aponta um crescimento bastante
discreto (3%) do preço cobrado por alforrias onerosas na cidade de São Paulo entre
as décadas de 1860 e 1870 – aumento muito inferior àquele que vinha se acumulan-
do desde a década de 1830. (BERTIN, 2004, p. 90). Em estudo sobre o Vale do Paraíba
Paulista entre 1867-1884, José Flávio Motta indica que os preços de venda de mulhe-
res cativas com filhos eram inferiores àqueles praticados na venda de mulheres sem
filhos (MOTTA, s/d). Heloisa Maria Teixeira observa padrão semelhante em Mariana,
província de Minas Gerais, sinalizando que a discrepância entre os valores atribuídos
a homens e mulheres cativos em inventários de proprietários falecidos, superiores
no primeiro caso, teria se acentuado após 1871, ainda que muitas mulheres fossem
avaliadas junto de seus filhos (2001). O desinteresse de proprietários pelos filhos
de mulheres escravizadas após 1871 é notado em estudos não especificamente
referidos a preços, como: Lima; Venâncio (1988); Moreira (2013); Telles (2018).
11 A cidade de São Paulo, cujo crescimento urbano foi tardio, como se sabe, teve
população escravizada proporcionalmente menor do que a de grandes centros
urbanos escravistas como Rio de Janeiro e Salvador, e experimentou precoce-
mente seu declínio. Ainda assim, a escravidão desempenhou papel fundamental
na cidade. Sobre o tema, ver: Bertin (2004); Machado (2004).
328
o capital político e simbólico da maternidade e o vocabulário das
leis em solicitações como aquelas encontradas entre os papéis
do Juízo de Órfãos de São Paulo.12 Demonstração da dimensão
pública e dilatada de queixas que, à primeira, vista poderiam ser
tomadas por pequenos excertos de trajetórias apenas individuais,
é o engajamento de destacados abolicionistas da cidade em litígios
relacionados ao controle sobre os filhos menores de oito anos de
idade de mães libertas.
Não surpreende que Luiz Gama fosse um deles. Seu nome
esteve envolvido num sem-número de petições, ações de liberdade
e demais interposições à justiça em defesa de um amplo espectro
de sujeitos subalternizados na cidade – com destaque para homens
e mulheres escravizados e egressos da escravidão, frequentemente
mulheres com filhos ingênuos 13. Em 1880, ele assinava, a rogo de
Vicência, uma petição solicitando que Joanna, sua filha menor de
oito anos, fosse-lhe restituída por Jose Cazes – seu proprietário
até 1879, quando a liberta dele comprara a alforria com fundos
emprestados pelo próprio Gama 14 . Uma vez privado da posse
sobre a mãe, Cazes carregou consigo a pequena numa mudança
para a Corte que em tudo contrariava as explícitas determina-
ções da Lei do Ventre Livre, há quase uma década em vigor: ilicita-
mente, impedia que a mãe liberta mantivesse em sua companhia
a filha ingênua menor de oito anos, a quem seguia tratando como
extensão da propriedade escrava perdida. Exemplo da combina-
ção de argumentos legais que recrutavam, além da Lei n. 2.040,
o decreto de 1872 que a regulamentara, bem como a valorização
das faculdades e responsabilidades maternas, a solicitação dizia
que “[…] querendo a Suplicante tomar a si sua filha para tratá-la,
educá-la conscientemente, vem com o devido respeito requerer
[…] que seja apreendida, devolvida para esta Cidade, sua dita filha,
nos termos do Direito Lei n. 2040 – 28 de Setembro de 1871, art.
1º, parag. 4º; Decreto n. 5135 – 13 de Novembro de 1872”.15
12 Sobre tal contexto, ver, entre outros: Machado (1994); Chalhoub (2009); Mattos
(2013).
13 Sobre Luiz Gama e sua atuação em São Paulo, ver: Azevedo (2005).
14 APESP – JO, Autos de Diligência, C05360 / 09, 1880.
15 O art. 9° do decreto dizia textualmente que “A mulher escrava, que obtiver sua
liberdade, tem o direito de conduzir comsigo os filhos menores de 8 annos (Lei
329
Iniciado em janeiro daquele ano, o processo arrastou-se por
meses, durante os quais uma alhada de precatórias e embargos
expedidos pelas partes nas duas jurisdições – Corte e São Paulo
– concorreram, a despeito das claras determinações estabele-
cidas e confirmadas em 1871 e 1872, para determinar o destino
de Joanna. Denunciando o aviltamento dos direitos maternos
pelo espírito escravista, Gama, então nomeado tutor da criança,
acusava Jose Cazes de “[…] transportar a menor para a Corte, no
intuito malvado e reprovado, de inutilizar o direito da pobre liberta
que, até nisto, encontra a malevolência de seu ex-Senhor!”. De
sua parte, Cazes e seu advogado esforçavam-se para refutar as
acusações recebidas e manter a pequena ingênua no município
neutro, escarafunchando os princípios do direito e esgarçando
a realidade. Protestavam contra a nomeação de Luiz Gama como
tutor de Joanna, fiando-se em artigos do Decreto n. 5.135 para
argumentar que a ingênuos somente poderiam ser dados curado-
res, agentes a serviço do Juízo de Órfãos.16 Além do mais, e mais
importantemente, recorriam ao mesmo art. 1º, § 4º da Lei n. 2.040
para questionar o fundamento da petição de Vicência, assistida por
Gama: reiterando que “a mulher escrava que obteve a liberdade
só lhe assiste o direito de levar consigo os filhos menores de 8
anos”, alegavam que “teria quase 10 anos a ingênua em questão”,
não se verificando nenhuma legitimidade no pedido da liberta.
Não sendo apensadas provas aos autos, a mentira imputada
à Vicência e seu advogado terminou sem efeito, soando mais
como argumento desesperado do suplicado do que como infração
da suplicante. Meses se passariam, porém, até que o Juízo da
Corte finalmente despachasse a favor de Vicência – foi apenas
nos últimos dias daquele ano que se deu o reencontro entre
mãe e filha: em 28 de dezembro, foi expedido no Rio de Janeiro
– art. 1º § 4º), os quaes ficarão desde logo sujeitos á legislação commum. Poderá,
porém, deixal-os em poder do senhor, se este annuir a ficar com eles” (BRASIL,
1872).
16 Referiam-se aos arts. 18 e 19 do decreto, os quais estabeleciam os únicos
casos em que ingênuos poderiam ser liberados da prestação de serviços antes
da maioridade: se fossem objeto de castigos excessivos, se fossem privados de
alimentação ou sujeitos a “atos imorais” provocados pelos senhores das mães.
Somente nestas circunstâncias, ficariam sob a responsabilidades de curadores e
depositários (BRASIL, 1872).
330
mandado de apreensão de Joanna; no dia 31, lavraram-se os autos
de entrega da menina. O desfecho vitorioso foi provisório: no
início do ano seguinte, quando a pequena já vivia em companhia
da mãe em São Paulo, o juiz de órfãos da cidade decidiu pela
concessão de seus serviços à soldada em benefício de terceiros.
Uma vez que retornara ao poder da mãe liberta, não podendo
mais ser considerada ingênua e, desse modo, não mais adstrita
ao domínio senhorial de Cazes, tornava-se, por força da lei e aos
olhos da justiça, criança órfã.
Nessas circunstâncias, em despacho expedido em 13 de
março de 1881, afirmava o juiz em tom de ameaça: “Sendo a órfã
de condição a ganhar soldada, requeiro que se intime o seu tutor
para em prazo breve indicar pessoa com quem se faça o contrato
de soldada, sob pena de ser essa providência tomada pelo Juízo”.
De nada adiantaram os apelos de Luiz Gama, para quem tendo a
mãe “capacidade para educá-la [a filha] convenientemente com
o fruto de seu trabalho, me parece contrário ao sentimento de
humanidade que se lhe tire para dá-la a soldadas […]”. A sentença
era comum a muitas crianças de diferentes matizes da pobreza
urbana, filhas de mulheres sós, grande parte delas libertas; para
Vicência e Joanna, como para tantas outras mães egressas da
escravidão e seus filhos naqueles anos, traduzia-se no fato de
que a emancipação era um projeto ainda incompleto.
No ano seguinte ao imbróglio envolvendo Vicência e Joana,
outro alentado processo mobilizou os mesmos recursos da Lei
do Ventre Livre contrapondo acusações à sanha escravista de
senhores cruéis, reclames pelos justos direitos de mulheres
libertas e seus filhos e denúncias de alegada desonestidade dos
sujeitos egressos da escravidão. Neste caso, o caráter duvidoso
pertencia a Roza, mãe do pequeno Aragão, representada por José
Fernandes Coelho, advogado frequentador do círculo de Luiz
Gama. Em petição apresentada em 23 de outubro de 1882, Roza
e seu advogado requeriam a entrega do pequeno Aragão, ilegal-
mente conduzido à cidade de Casa Branca, no interior da provín-
cia, pelo ex-proprietário da mãe 17. Roza, reclamava a solicitação,
era “vítima de cruel ilegalidade”: o antigo senhor lhe arreba-
tara o filho sem desfrutar de seu consentimento, como previa
331
a lei. Nascido em março de 1873, Aragão era ingênuo e contava
seis anos à época em que a mãe adquirira a própria liberdade.
Nessas condições, a mãe reclamava a prerrogativa legalmente
instituída de, estando livre do cativeiro e “alugando-se por sua
conta”, ter o filho em sua companhia para “educá-lo com o fruto
de seu trabalho”. Num primeiro momento, foi atendida pelo Juízo,
que apenas dois dias depois expediu mandado de apreensão
do ingênuo. Um detalhe, contudo, perturbava a estabilidade de
seu pleito: a liberdade de Roza lhe fora conferida, em maio de
1879, em caráter condicional, estando subordinada à prestação
de serviços. Fazendo menção às eventuais complicações que
seu estatuto transigente poderia trazer ao pleito apresentado,
a própria petição afirmava, de partida, que
332
outros debates e à prática jurídica – em 1875, quatro anos depois
de instituída a libertação do ventre pela Lei nº 2.040, um parecer
do Ministério da Agricultura em resposta a consulta de agentes
públicos da Província da Bahia teve de reafirmar a interpretação
prevalente nas discussões da década de 1850 (DIAS PAES, 2019).
Os receios que a solicitação de Roza insinuava espelhavam,
em grande medida, a continuidade de indeterminações jurídicas
bastante anteriores à aprovação da Lei do Ventre Livre.19 Se estatuía
que mulheres tomadas como libertas poderiam levar consigo os
filhos menores de oito anos, ingênuos ou não, a regra nada dizia
a respeito da possibilidade de que as mães cuja manumissão não
tivesse, ainda, satisfeito todas as exigências implicadas em sua
aquisição — podendo, no limite, tornar-se objeto de disputa —
usufruíssem as mesmas prerrogativas. No limite, criava condições
para que polêmicas antigas acerca dos filhos das statuliberi se
reacendessem em novo contexto: as indefinições sobre o estatuto
destas crianças, se escravas, livres ou ingênuas, seguiam abrindo
flancos para contestações.
Essas e outras vulnerabilidades em torno do estatuto de Roza e
seu filho, bem como da validade de sua solicitação à justiça, seriam
intensamente exploradas por seu antigo proprietário. A alforria
condicional fora-lhe concedida pela esposa do ex-senhor, então
divorciados, com quem o mesmo litigava pela administração de
bens sobre os quais a ex-mulher, não sendo cabeça de casal, estava
impedida de exercer qualquer poder de alienação. Nestes termos
e em suas palavras, a concessão de carta de liberdade condicio-
nal a Roza era produto de “sedução de pessoas mal interessadas”,
“infernal plano de seus inimigos”, fruto de espírito vingativo que
em nada poderia autorizar a mãe a carregar consigo, em condição
de falsa liberdade, o filho ingênuo. Subindo o tom das acusações,
encarnando o papel de proprietário distinto ofendido em seus
direitos fundamentais, o “cavaleiro Imperial da Ordem da Rosa,
333
negociante e eleitor” ia além de pleitear direitos sobre Aragão:
denunciava a liberta como escrava fugitiva.
Em representação apresentada ao Juízo no mesmo mês e ano,
na qual se referia a Roza tão somente como sua cativa, o proprie-
tário afirmava que “não lhe dera carta alguma de liberdade, nem
autorizara pessoa alguma a passá-la” – e se agora “a dita escrava
do suplicante” se apresentava pela cidade e ao Juízo “como Roza
de tal […] liberta, pedindo entrega de seu filho”, era porque o Chefe
de Polícia, a quem recorrera o vitimado cidadão para ordenar
sua captura, não pudera localizá-la e detê-la em suas veleidades
de mulher livre. Incansável na defesa de suas próprias liberda-
des, o proprietário continuava envidando esforços na persegui-
ção, anunciando-a como escrava fugida em jornais da cidade e
fazendo “[…] todas as diligências, a ver se pode descobrir ao certo
a casa onde tem estado a dita sua escrava acoitada, protestando
por todos os prejuízos, perdas e danos, contra quem de direito
for, visto que é propriedade certa do suplicante […]”.
Retorquindo os ataques, Roza e seu advogado desafiavam a
confiabilidade da indignada narrativa. Em nova petição, atestavam
que somente apenas depois de feita a diligência de apreensão de
Aragão, fracassada pela recusa de seu ex-senhor a entregá-lo aos
oficiais de justiça, ele teria acorrido ao Juízo declarando “que a
suplicante era escrava e se achava fugida”. Mais, segundo informava
o documento, a suplicante teria deliberadamente esperado três
meses – três meses passados, sublinhe-se, longe o filho – para
voltar à carga no Juízo de modo a demonstrar
334
efeito de não poder [ela] exercer o direito que resulta do gozo de
sua liberdade […]” poderiam ser respondidas com “mandado de
manutenção, se o suplicado estender suas pretensões de capturá-
-la como escrava”. 20 Encerrava reiterando pedidos pela apreen-
são do Aragão, requerendo que o ex-proprietário fosse instado
a dar notícias do destino do menino remetido, sem autorização
materna, à São José dos Campos, também interior da província.
A situação posta, portanto, era a do embate entre acepções que
misturavam a doutrina jurídica a discursos de alta carga política
sobre o que se deveria compreender como direitos e justiça em
tempos críticos de desagregação da escravidão (MENDONÇA, 1999;
GRINBERG, 2002; AZEVEDO, 2005). De sua parte, a suplicante Roza
parte e seu advogado reclamavam a primazia de mecanismos de
alforria consolidados na prática e confirmados, ao menos parcial-
mente, pela lei, sobre os argumentos a favor da escravização –
fazendo menção, inclusive, à possibilidade de interpor ação de
manutenção de liberdade diante da eventual renitência daquele
que se queria, ainda, seu senhor. Este, no entanto, escudava-se
na invocação do sempre lembrado direito à propriedade privada
– o qual, como já notaram tantos pesquisadores, foi a grande e
última trincheira de defesa da escravidão nas décadas finais de
sua desagregação no Império (MACHADO, 1994; CHALHOUB, 1990;
MATTOS, 2013). Naqueles anos conturbados em que homens e
mulheres negociavam alforrias, acionavam a justiça propondo
ações de liberdade, peticionando pela libertação de filhos, parentes
e de si próprios — quando não adotavam medidas mais extremas,
à moda dos grandes levantes e insubordinações (MACHADO, 1994,
2009) — seu fundamento jurídico, embora discutível, era robuste-
cido por valores políticos e morais. A tais qualidades, senhores de
escravos ameaçados por projetos de emancipação como o de Roza
e seu filho se agarravam fervorosamente: os ânimos escravistas
respondiam à mesma altura dos avanços do abolicionismo na
imprensa e nos tribunais e do atrevimento dos escravizados nas
cidades e áreas rurais.
Para fins deste capítulo interessa observar, mais detida-
mente, como tais embates se comportaram quando acionado o
335
dispositivo da Lei do Ventre Livre que garantia às mães libertas o
direito sobre os filhos de pouca idade, ingênuos ou não. Convocado
a se posicionar cinco meses depois da primeira petição de Roza, o
curador-geral de órfãos oferecia parecer indicando as interpreta-
ções que os conflitos entre direito à liberdade, direito à proprie-
dade e o cumprimento do parágrafo 4º, art. 1º da referida lei
poderiam assumir no âmbito do Juízo de Órfãos de São Paulo.
Dizia o seguinte:
336
altura, talvez em companhia da mãe, talvez empregado a serviço
de terceiros —, ordenando sua entrega ao antigo proprietário. 21
A querela em torno do estatuto civil dúbio de Roza, e, por
extensão, de seu filho Aragão, não lançava novas interpretações
ou instilava contendas de fato surpreendentes em torno da defini-
ção dos direitos de libertos condicionais – já há muitas décadas
debatidos entre juristas, operadores da lei e agentes públicos,
bem como negociados entre proprietários e escravizados no
Império. Por certo, silente a respeito do significado preciso da
tutela sobre filhos de mulheres condicionalmente libertas, a Lei nº
2.040 pouco contribuía para que elas pudessem garantir direitos
sobre os rebentos menores de oito anos. Como se viu nos casos
de Cornelia e Vicência, contudo, mesmo entre aquelas explici-
tamente enquadradas na lei, tais direitos precisavam, ainda, ser
disputados na prática social. Além dos embates pela materializa-
ção de prerrogativas formalmente anunciadas, a história de Roza
demonstra que o recurso à lei — neste caso, especificamente a
seu parágrafo 4º, art. 1º — como parte de esforços pela emanci-
pação familiar poderia tornar mãe e filho ainda mais vulneráveis:
colocada entre a cruz e a caldeirinha, ao pleitear a liberdade de
Aragão, Roza viu a sua própria em perigo. Se antes desfrutava de
alguma autonomia na condição de liberta condicional, vivendo
longe de antigos proprietários, alugando-se por conta própria,
via, ao mesmo tempo, limitadas as suas possibilidades de exercí-
cio da maternidade – ainda que entendido em moldes muitos
diversos da norma familiar então emergente (COSTA, 2004; ARIZA,
2017, 2020). Expandir os significados materiais e simbólicos de
sua liberdade implicava incluir em seu espectro também a de seu
filho. Como tantas outras, contudo, a sua era uma trajetória de
emancipação em que sucessivas etapas acenavam com conquis-
tas futuras, mas, também, com riscos cumulativos.
A vulnerabilidade da emancipação experimentada por sujeitos
libertos era velha conhecida, e não se resolveria com a irrevoga-
bilidade das alforrias determinada, também, pela Lei n. 2.040; no
caso das mulheres, poderia se insinuar perigosamente quando das
337
disputas pelo destino de seus filhos (GRINBERG, 2006). Signifi-
cativo é o exemplo de “crioula Thimotea”, que, em junho de 1886,
pleiteava a concessão dos direitos sobre a filha Izabel com base
no mesmo artigo e parágrafos apropriados pelas outras mulheres
aqui retratadas. Como elas, liberta há pouco, Timothea reclamava
prerrogativas da lei para ter consigo a filha ingênua menor de
oito anos, que ficara em posse do antigo proprietário – com a
diferença de que sua petição indicava como tutor apropriado para
Izabel o pai da menina, liberto condicional que a havia perfilhado
após o batismo. 22
Depois de um vai e vem de petições e pareceres e de agressiva
manifestação do ex-senhor desqualificando mãe e pai como
cuidadora e tutor apropriados para a menina, a solicitação foi
desaconselhada pelo curador geral de órfãos, que era da opinião
de que “a ingênua de cor preta, regulando quase oito anos de idade
e mostrando pelo seu aspecto físico estar sadia e bem tratada”,
ficaria melhor em poder do ex-proprietário peticionado do que
de seus pais. Perdida a segunda batalha no curso da emancipação
de sua família, Thimotea retornaria ao Juízo pedindo a devolu-
ção da carta de liberdade que anexara ao pedido de apreensão de
Izabel. Assim como os direitos legalmente assegurados sobre a
filha haviam sido ostensivamente negligenciados, também a sua
própria alforria poderia estar sob risco num ambiente em que a
lei parecia contar pouco contra os predicados de moral exemplar
e urbanidade de membro da camada proprietária.
Grandes projetos de emancipação abrangendo múltiplos
sujeitos e alforrias e capitaneados por mulheres que, ao se liberta-
rem, passavam a investir energias na emancipação de suas redes
familiares, destacadamente de seus filhos, tinham como horizonte
final a conquista da liberdade formal e da autonomia efetiva
(MACHADO; ARIZA, 2018). Sua concretização, contudo, cobrava de
mulheres como Roza, na cidade de São Paulo e outras localidades,
o empenho de esforços diversos e articulados, diuturnos, pacien-
tes e ambiciosos. 23 Bom exemplo disso encontra-se na trajetória
da “parda liberta” Rita que, em agosto de 1880, dirigiu-se ao Juízo
22 APESP – JO, C 05361/10, 1886. Sobre o papel dos pais e demais figuras mascu-
linas em pleitos do gênero, ver: Cowling (2013); Ariza (2020).
23 Conferir, entre outros: Cowling (2013); Urruzola (2014); Ariza (2020).
338
de Órfão para demandar nos seguintes termos a entrega do filho
pequeno, ainda sob domínio de seu antigo senhor:
339
em busca de liberdade nas últimas décadas de escravidão. Rita,
informam os autos, obtivera alforria por meio de ação de liberdade
por arbitramento, e em seguida procedera ao resgate do filho.
Os contornos da contenda que então estabeleceria com o antigo
proprietário eram comuns aos de tantos outros processos como
o seu: visitado pelo oficial de justiça para fazer a entrega de Elias,
o ilegítimo guardião do menino alegava não o ter em seu poder.
Mais tarde, instado pela justiça a prestar esclarecimentos, Barboza
repetiria arenga comum a senhores expropriados, dizendo que
Rita era inepta para os cuidados do filho, ao passo que ele e sua
esposa seriam verdadeiramente interessados e capazes da criação
e educação do ingênuo – por isso pleiteando sua contratação à
soldada. 26
Novamente, contudo, seu apelo fora recusado pelo Juízo, que
pouco depois atribuiria a soldada de Elias a um sujeito chamado
Jeronimo Mendes. A despeito da frequentemente opressiva
interdição das experiências maternas de mulheres libertas pelo
Juízo de Órfãos de São Paulo, que alimentava as casas de famílias
abastadas e remediadas da cidade com a mão de obra de crianças
negras à revelia de seus desejos e dos de suas mães, a nomeação
de Mendes parecia ser obra de Rita, e não de insensíveis autorida-
des públicas. O credor de sua liberdade fora ele mesmo – dele viera
o montante arbitrado pela justiça para aquisição de sua alforria.
As circunstâncias em que a liberta e seu credor se aproximaram
e articularam tal acordo não ficam esclarecidas no processo. As
condições do arranjo, contudo, são mais fáceis de imaginar: desde
a década de 1870, multiplicavam-se na cidade arranjos de locação
de serviços por meio dos quais sujeitos escravizados, muitos deles
mulheres, financiavam suas liberdades, tomando empréstimos
para pagar alforrias e tornando-se devedores de serviços para
quitá-los (ARIZA, 2014).
Ainda que arranjos de alforria condicional tenham sido, via
de regra, acenos longínquos da liberdade almejada (BERTIN, 2004;
LIMA, 2005), essa parece ter sido a primeira pernada de Rita rumo
à liberdade de fato. A segunda seria justamente trazer para si o
340
filho – e ela, aparentemente, o fez ao costurar novo acordo com
Mendes, convencendo-o a contratar também os serviços de Elias.
Na solicitação de soldada apresentada ao Juízo, o pleiteante alegava
que, “tendo consigo a parda Rita”, queria, “pela conveniência que
há de ter o filho perto da mãe, tomá-lo à soldada”, e oferecia, para
tanto, remuneração de cinco mil réis mensais e “obrigação de
educar o dito menor, tratá-lo e mandar-lhe ensinar um ofício
qualquer, que lhe garanta um futuro”. Por trás do interesse do
contratante pelos serviços de Elias e dos benefícios, não poucos,
que deles poderia extrair, restava, contudo, o engenho de sua mãe.
A que exatamente se referia Mendes ao mencionar a “conveniên-
cia” de ter filho e mãe próximos? A valorização destes vínculos
fazia parte de um repertório cultural aburguesado em ascensão
que, desde a metade do século, reestabelecia e papeis e signifi-
cados para a maternidade e a infância, forjando um vocabu-
lário socialmente partilhado que não escaparia ao contratante
(ARIZA, 2020). De outra sorte, contudo, a conveniência em questão
poderia também ser produto dos esforços de convencimento
de Rita para que o filho fosse trazido à sua companhia, entre
apelos encarecidos e eventuais manifestações de insubordina-
ção. Subscrevendo o tom adotado pelo pleiteante, o curador-
geral de órfãos recomendava ao juiz a concessão da soldada, “já
porque se trata de conservar o órfão junto de sua mãe, já pela
quantia oferecida a soldada”.
Uma vez lavrado o contrato, um paralelismo se estabelecia
entre mãe e filho e os unia em mais uma etapa de seu projeto
de emancipação. Empregados pelo mesmo contratante, os dois
passavam a integrar o universo contingente do trabalho livre que
sucedia à escravização, no qual os laços de tutela e dependência
substituíam a efetiva autonomia. No caso de libertos condicionais
e locadores de serviços, as interdições da liberdade de fato eram
óbvias: restrições à possibilidade de arranjar-se desembaraça-
damente melhores arranjos de vida e trabalho, continuidade de
práticas de exploração assemelhadas a experiências do cativeiro,
atritos cotidianos para renegociar as regras do jogo em disputa
eram constantes. No caso dos pequenos assoldadados, as mesmas
interdições se somavam ao afastamento compulsório de suas
mães e outros parentes e ao cotidiano violento que se revelava
sob o véu dos mais respeitáveis interesses de contratantes na
341
educação e cuidado destes trabalhadores. Insubordinações eram
fatos corriqueiros tanto num quanto noutro caso. Em ambos, do
mesmo modo, a linha tênue e transigente que inscrevia sujeitos
como Rita e Elias no mundo da liberdade formal como trabalha-
dores tutelados apontava para um horizonte algo distante de
emancipação, que lhes empurrava à permanente reelaboração
e negociação dos significados de sua condição e da substância
de sua autonomia27.
Para a família chefiada por Rita – sobre a qual sabemos pouco
além da existência de mãe, filho e compadres – imaginar o futuro
de efetiva emancipação exigia planejar possibilidades, lidando
com as adversidades pelo caminho. O percurso começara com a
alforria da mãe, disputada na justiça e seguida do engajamento
em arranjo de trabalho dependente; depois, apoiada no disposi-
tivo da Lei nº 2.040 que atendia a mães de crianças menores de
oito anos de idade, viria a retomada do filho à sua companhia,
ainda que os direitos sobre ele permanecessem fraturados pelo
arbítrio do tutor e contratante que, pela lei, prevaleciam sobre a
autonomia de mulheres sós e suas famílias (CARVALHO, 1865).
O plano, contudo, ainda não estava completo. Em 1884, expirado
o prazo estabelecido para execução do contrato de soldada de
Elias, Mendes remetia ao Juízo solicitação para descontinuar tais
obrigações, “por que o dito órfão se acha em companhia da mãe e
esta não quer pagar o ordenado de 3 mil réis por mês [pelo] que
o suplicante é responsável […]”. Da petição sucinta, algo cifrada,
depreendem-se algumas certezas: primeiro, a dívida de serviços
de Rita para com o credor de sua alforria estava quitada; segundo,
então efetivamente liberta, estava reunida ao filho em novas
circunstâncias, ambos longe da tutela de Mendes, escapando a
seu domínio. Embora soando disparatada, a referência do agora
ex-contratante à recusa da mãe em assumir o pagamento mensal de
soldada pelos serviços do filho é bastante elucidativa das liberda-
des maternas que a lei agora lhe oferecia. Mãe de um menino
342
pobre, tido como “carente de adequada instrução”, e desprovida
dos atributos legais necessários ao exercício da função de tutora
do filho, Rita deveria, para mantê-lo em sua companhia, assumir
a estranha incumbência de empregadora do menino – condição
insólita para mães em geral, inviável sobretudo para uma mulher
empobrecida como ela.
A epopeia seguiria, assim, com o engajamento de Elias em
ainda dois outros arranjos de soldada. Naquele 1884, foi contratado
por um sujeito identificado nos autos como “casado e empregado
público”, símbolos de distinção de que Rita, após anos ainda identi-
ficada como “liberta e ex-escrava de Manoel Barboza”, não dispunha.
Adotando os moldes costumeiros de arranjos de soldada registra-
dos na cidade, o novo contrato terminava por estabelecer que o
beneficiário da prestação de serviços se obrigava a “não infligir-
lhe [a Elias] castigo algum e [que] somente exigirá do referido
menor os serviços domésticos compatíveis com sua idade”, 12
anos – sinal claro das vulnerabilidades que ainda ameaçavam
a liberdade do jovem trabalhador e, por extensão, de sua mãe, a
quem os autos cessam de se referir a partir de então.28 Finalmente,
em 1887, o contratante pedia ao Juízo baixa da soldada de Elias,
recomendando que o adolescente, então contando entre 15 e 16
anos, desfrutasse “melhor sorte aprendendo ofício mecânico na
Estrada de Ferro do Norte” – em que, ao lado de outros contra-
tados e também de escravizados, comporia mão de obra muito
representativa da constituição das dinâmicas e protocolos do
trabalho livre em uma sociedade escravista (LAMOUNIER, 2000).
Percorrendo caminhos distintos, Vicência, Roza, Timothea
e Rita partilharam – entre si, mas também com tantas outras
mulheres em condições iguais às suas – experiências semelhan-
tes a caminho da concretização de projetos coletivos de liberdade,
nos quais a maternidade exercia papel determinante. Todas
estiveram engajadas em processos de emancipação dilatados no
tempo e cuidadosamente costurados em sucessivas tentativas de
requalificar os sentidos da liberdade formalmente conquistada
– a sua e a de seus filhos. Para Vicência, Rita, Roza, a caminhada
incluiu a mobilização de contatos com a forte rede de advogados
28 Conferir, entre outros, Alaniz (1994), Papali (2003, 2007), Geremias (2005) e
Souza (2015).
343
abolicionistas formada na cidade, a compra da própria alforria —
contenciosamente, num dos casos que envolveu a interposição de
ação de liberdade —, e o posterior engajamento em arranjos de
trabalho dependentes. 29 Para Thimothea e Cornelia, a libertação
viera aparentemente sem ônus, por alforria ou efeito da abolição.
Para nenhuma delas, contudo, a liberdade formal trouxera consigo,
espontaneamente, a autonomia materna desejada. Para todas,
a reclamação de poderes sobre os filhos pequenos, contestados
por ex-proprietários e, não raro, por agentes públicos, apoiou-
se num mesmo dispositivo da Lei do Ventre Livre e espelhou a
mobilização de um vocabulário político de direitos e valorização
da maternidade apropriado por mulheres libertas que se tornavam
agentes importantes do processo de abolição naquela conturbada
década de 1880 (COWLING, 2013). Os resultados destas disputas
nem sempre foram os desejados – a afirmação de suas legítimas
prerrogativas, mesmo quando atendidas, ensejou a continuação
de projetos de emancipação que demandariam, ainda, incessante
energia para que pudessem garantir a possibilidade de cuidar dos
filhos e gerir suas famílias.
A atenção detida a uma questão à primeira vista menor no
amplo espectro de possibilidades e disputas por alforria motiva-
das pela lei de 1871 oferece entrada interessante à consideração
de dificuldades experimentadas por mulheres cujos projetos de
emancipação eram combinados aos desafios da maternidade vivida
sob a escravidão. Não se trata de procurar, por meio de trajetó-
rias individuais, relatos anedóticos do fim da escravidão e seus
descaminhos – mas, antes, de entendê-las como percursos nos
quais empenho pessoal e agência individual estiveram articula-
dos aos conflitos mais amplos entre desagregação da escravidão
e esforços institucionais e privados investidos em seu prolon-
gamento, cujas dimensões estendiam-se para além do espaço
limitado de São Paulo e ganhavam dimensões propriamente
atlânticas. 30 A Lei do Ventre Livre e especificamente o parágrafo
4º de seu art. 1º, nessa medida, é aqui tomada como suporte para
344
consideração dos desafios enfrentados por mulheres egressas da
escravidão num contexto de acirramento das tensões em torno do
encaminhamento da emancipação gradual. Longe de apresentar
toda a sorte de percalços que mães libertas poderiam encontrar
nos pós-emancipação, trajetórias de mulheres que se lançavam à
negociação dos significados da dita lei em seu nome e em nome
dos filhos são representativas do empenho extensivo e longevo
que precisavam dedicar ao desejo de tornarem-se livres – um
“caminho a ser percorrido, mais do que realidade estática”; um
fazer contínuo e cotidiano das dimensões materiais e simbólicas
de liberdade e maternidade (CARVALHO, 1998, p. 214; MACHADO;
CASTILHO, 2015).
ver o interessante exemplo de Scott e Hebrard (2014). Ver também, Cowling et al.
(2020).
345
Fontes
BRASIL. Lei nº 2040 de 27 de setembro de 1871. [S.l.: s.n.], 1971. Disponível em:
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim2040.htm. Acesso em: 20 fev. 2021.
346
Referências
347
CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo.
Recife, 1822-1850. Recife, CE: Editora Universitária da UFPE, 1998.
COTA, Luiz Gustavo Santos. Ave, libertas: abolicionismos e luta pela liberdade
em Minas Gerais na última década da escravidão. 317 f. Tese (Doutorado
em História Social) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ: 2013.
348
GRINBERG, Keila. Reescravização, direitos e justiças no Brasil do século
XIX. In: LARA, Silvia Hunold; MENDONÇA, Joseli Maria N. (org.) Direitos e
justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas, SP: Ed. Unicamp,
2006. p. 101-128.
LIMA, Lana Lage das Gama; VENÂNCIO, Renato Pinto. Órfãos da lei:
o abandono de crianças negras no Rio de Janeiro após 1871. Estudos
Afro-Asiáticos, v. 15, p. 24-33, 1988.
349
MACHADO, Maria Helena P. T. Teremos grandes desastres se não houver
providências enérgicas e imediatas: a rebeldia dos escravos e a abolição da
escravidão. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (org.). O Brasil Imperial,
1870-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 367–400.
MOTTA, José Flávio. A lei, ora a lei! Driblando a legislação no tráfico interno
de escravos no Brasil (1861-1887). História e Economia, v. 10, p. 15-28, 2012.
MOTTA, José Flávio. Tráfico interno de cativos: o preço das mães escravas
e sua prole. In: Encontro Nacional de Estudos Populacionais do ABEP, 11.,
s/d. Anais […]. [S.l.: s.n.], s/d.
350
PAPALI, Maria Aparecida. Escravos, libertos e órfãos: a construção da
liberdade em Taubaté (1871-1895). São Paulo: Annablume, 2003.
SOUZA, Ione Celeste de. “Porque um menor não deve ficar exposto a ociosi-
dade”: tutelas e soldadas e o trabalho de ingênuos na Bahia (1870-1890).
In: MACHADO, Maria Helena; CASTILHO, Celso (orgs.). Tornando-se livre:
agentes históricos e lutas sociais no processo de abolição. São Paulo:
Edusp, 2015. p. 189–211.
351
(Mestrado em História Social) – Escola de História, Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro, 2014.
352
SOBRE AS(OS) AUTORAS(ES)
Florencia Guzmán
Doutora em História pela Universidad Nacional de La Plata e pesquisa-
dora do Consejo de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET), com sede
no Instituto Ravignani, Universidad de Buenos Aires. É fundadora e coorde-
nadora do Grupo de Estudios Afrolatinoamericanos (GEALA) e membro do
Afro-Latin American Research Institute at the Hutchins Center - Harvard.
Suas pesquisas problematizam intersecções entre categorias raciais, de
classe e gênero, mestiçagem, alteridades e trabalho em Buenos Aires e no
interior da Argentina durante os séculos XVIII e XIX. É autora de Los claros-
curos del mestizaje. Negros, indios y castas en la Catamarca Colonial (Grupo
Editor, 2010); coorganizou Cartografías Afrolatinoamericanas. Perspectivas
situadas para análisis transfronterizos (Editorial Biblos, 2013); Cartografías
Afrolatinoamericas. Perspectivas situadas en Argentina (Editorial Biblos,
2016); Dictionary of Caribbean and Afro-Latin American Biography (Argentina,
Uruguay y Paraguay) (Oxford University Press, 2016) e El asedio a la libertad.
Abolición y Posabolición en el Cono Sur (Editorial Biblos, 2020).
Heather Cateau
É PhD em História pela University of West Indies e senior lecturer em
História do Caribe na mesma Universidade, no campus St. Augustine. É a atual
diretora da Faculty of Humanities and Education e presidente da Association
of Caribbean Historians. Suas pesquisas propõem uma abordagem renovada
do sistema de plantation escravista no Caribe. Entre suas publicações, estão:
Turning Tides-Caribbean intersections in the Americas and beyond, com Mila
Riggio; Beyond tradition- Reinterpreting the Caribbean historical experience,
com Rita Pemberton; e Caribbean in the Atlantic World, com John Campbell.
Foi Visting Fellow na University of Iowa e na University of Cambridge.
353
The Sexual Economy of Social Identities, 1750-2000 (2015) ganhou o prêmio
Marysa Navarro de melhor livro, concedido pelo New England Council of Latin
American Studies. Foi Fulbright Research Scholar no Brasil no ano acadêmico
2015-2016, oportunidade em que iniciou pesquisas para um segundo projeto
de livro, em andamento, o qual explora as conexões entre orgulho negro,
hibridismo racial e embranquecimento no Rio de Janeiro pós-abolição.
Karoline Carula
Professora do Departamento de História da Universidade Federal
Fluminense (UFF), doutora em História Social pela Universidade de São
Paulo, possui pós-doutorado pela UFF e pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, é pesquisadora Jovem Cientista do Nosso Estado da
Faperj e bolsista produtividade do CNPq. Suas pesquisas giram em torno
dos temas: escravidão, gênero, raça, ciência, intelectuais e imprensa.
Publicou artigos e capítulos, é autora dos livros Darwinismo, raça e gênero:
projetos modernizadores da nação em conferências e cursos públicos
(Rio de Janeiro, 1870-1889) (Editora da Unicamp, 2016) e A tribuna da
ciência: as Conferências Populares da Glória e as discussões do darwin-
ismo na imprensa carioca (1873-1880) (Annablume, 2009); coorganiza-
dora de Raça, gênero e classe: trabalhadores(as) livres e escravizados(as)
no Brasil (Mauad X, 2020), Tensões políticas, cidadania e trabalho no
longo Oitocentos (Alameda, 2020) e Os intelectuais e a nação: educação,
saúde e a construção de um Brasil moderno (Contra Capa, 2013).
Letícia Canelas
Professora colaboradora e pesquisadora de pós-doutorado do
Departamento de História da Universidade de São Paulo. Doutora em
História pela Universidade Estadual de Campinas, onde defendeu a
tese intitulada Escravidão e liberdade no Caribe francês: a alforria na
Martinica sob uma perspectiva de gênero, raça e classe (1830-1848), na
qual abordou a história da escravidão (séc. XVIII e XIX) nas Antilhas
Francesas. Durante sua pesquisa, ainda realizou um doutorado sanduíche
na França, vinculada ao CIRESC (Centre International de Recherches sur
Esclavages) – EHESS (França). Publicou artigos e capítulos de livros
sobre escravidão, liberdade e gênero no Caribe francês.
Lorena F. da S. Telles
Doutora e mestre em História Social pela Universidade de São Paulo
(USP). Suas pesquisas e publicações abordam a história das mulheres
354
negras, africanas e descendentes, relações de gênero, trabalho doméstico,
maternidade, medicina, escravidão e pós-abolição. É autora dos livros
Libertas entre sobrados: mulheres negras e trabalho doméstico em São
Paulo 1880-1910 (Alameda, 2013) e Teresa Benguela e Felipa Crioula estavam
grávidas: maternidade e escravidão no Rio de Janeiro (1830-1888) (Editora
da Unifesp, 2021), este se trata de sua tese de doutorado, vencedora do
Prêmio Tese em Ciências Sociais pela LASA (Latin American Studies
Association), Seção Brasil/2020, e do Prêmio História Social do Programa
de Pós-Graduação em História Social da USP, edição 2019.
355
Mariana Muaze
Professora do Departamento de História da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro, doutora em História pela Universidade
Federal Fluminense, com pós-doutorado pela University of Michigan e
pela Universidade de São Paulo, e bolsista de produtividade do CNPq.
Suas principais obras são: As Memórias da Viscondessa: família e poder no
Brasil Império (Zahar, 2008), livro autoral que recebeu o prêmio Arquivo
Nacional de Pesquisa e a menção honrosa no prêmio Jorge Zahar em
2006; O Vale do Paraíba e o Império do Brasil (7 Letras, 2015) e A segunda
escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica (Casa Leiria,
2020), organizados em parceria com Ricardo Salles; e O 15 de Novembro e
a queda da Monarquia (Chão Ed, 2019), coorganizado com Keila Grinberg.
Marília B. A. Ariza
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, com
pós-doutorado em Antropologia Social pela mesma instituição. É autora
dos livros “O ofício da liberdade: trabalhadores libertadores em São Paulo e
Campinas, 1830-1888” (Alameda, 2014) e “Mães infames, filhos venturosos:
trabalho e pobreza, escravidão e emancipação no cotidiano de São Paulo,
século XIX” (Alameda, 2020) - este recebeu, em 2021, menção honrosa do
Prêmio Sérgio Buarque de Holanda de Melhor Livro em Ciências Sociais,
atribuído pela Latin American Studies Association (LASA), e o segundo lugar
do Prêmio Literário da Biblioteca Nacional, na categoria Ensaio Social. É
também autora de diversos capítulos e artigos que abordam as intersecções
entre trabalho, representações sociais, emancipação, gênero, maternidade
e infância no Brasil Império. Atualmente, atua como docente de graduação
e pós-graduação do Departamento de História da USP.
356
“Combinadas no espaço de cada corpo feminino
escravizado e sua trajetória, projetando-se como
realidade ampla e partilhada por mulheres cativas
e libertas em diferentes tempos e lugares, formas
diversas de expropriação, violação e agência
espelharam um universo multíplice de imbricações
entre escravidão, maternidade, marcadores sociais
e raciais, relações e representações de gênero.
Escravidão e maternidade no mundo atlântico: corpo,
saúde, trabalho, família e liberdade nos séculos XVIII
e XIX mergulha neste quadro complexo por meio
de onze estudos que endereçam especificidades e
circularidades dos desafios da maternidade escrava
e sua relação com corpo, saúde, trabalho, família
e emancipação entre Brasil, Cuba, Caribe inglês e
francês, e Argentina.”
ISBN 978-65-5831-086-0
9 786558 310860