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HISTÓRIA MILITAR
LONDRINA
2019
IV Simpósio Nacional de História Militar
Texto em português
ISBN 978-65-00-33409-8
ORGANIZAÇÃO
Coordenador
COMISSÃO ORGANIZADORA
Carlos André Lopes da Silva - Diretoria do Patrimônio
Histórico e Documentação da Marinha
Edina Laura Nogueira da Gama - Diretoria do Patrimônio
Histórico e Documentação da Marinha
Francisco César Alves Ferraz - Universidade Estadual de
Londrina
Francisco Eduardo Alves de Almeida - Escola de Guerra Naval
Fernando da Silva Rodrigues - Universidade Salgado de Oliveira
Gabriel Ignacio Garcia - Universidade Estadual de Londrina
Giovana Ferreira de Faria - Universidade Estadual de Londrina
Ianko Bett - Museu Militar do Comando Militar do Sul
Marcello José Gomes Loureiro - Escola Naval
Matheus Moreto Guisso Rodrigues - Universidade Estadual de
Londrina
Pierre Paulo da Cunha Castro - Diretoria do Patrimônio
Histórico e Documentação da Marinha
Raquel Fernandes Lanzoni - Universidade Estadual de Londrina
Ricardo Pereira Cabral - Escola de Guerra Naval
Rosemeri Moreira - Universidade do Centro-Oeste do Paraná
Victor Hugo Bento da Costa Traldi - Universidade Estadual de
Londrina
Wagner Luiz Bueno dos Santos - Diretoria do Patrimônio
Histórico e Documentação da Marinha
Comissão Científica
André Átila Fertig - Universidade Federal de Santa Maria
Andrea Mazurok Schactae – Instituto Federal do Paraná
Braz Batista Vaz - Universidade Federal do Tocantins
Carlos Roberto Carvalho Daróz - Universidade Salgado de
Oliveira
Celso Castro - CPDOC/FGV
Cláudia Guerra - Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro
Dennison de Oliveira - Universidade Federal do Paraná
Fernando da Silva Rodrigues - Universidade Salgado de Oliveira
Francisco César Alves Ferraz - Universidade Estadual de
Londrina
Francisco Eduardo Alves de Almeida - Escola de Guerra Naval
Ianko Bett – Museu Militar do Comando Militar do Sul
Leandro José Clemente Gonçalves - Instituto Federal de São
Paulo
Luiz Claudio Duarte - Universidade Federal Fluminense
Marcello José Gomes Loureiro - Escola Naval
Ricardo Pereira Cabral- Escola de Guerra Naval
Rosemeri Moreira Universidade do Centro-Oeste do Paraná
Sueny Diana Oliveira de Souza – Universidade Federal do Pará
Willian Gaia Farias – Universidade Federal do Pará
Secretaria Executiva
Giovana Ferreira de Faria - Universidade Estadual de Londrina
Matheus Moreto Guisso Rodrigues - Universidade Estadual de
Londrina
Victor Hugo Bento da Costa Traldi - Universidade Estadual de
Londrina
Promoção
Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina
Apoio
Programa de Pós-Graduação em História Social - UEL
Especialização em História das Religiões - UEL
Pró-Reitoria de Extensão Universitária - UEL
H2H Visual Media
GT História Militar – ANPUH - Brasil
GT História Militar – ANPUH - Paraná
GT História Militar – ANPUH - Rio de Janeiro
GT História Militar – ANPUH - Rio Grande do Sul
Laboratório História Militar, Política e Fronteiras
da Universidade Salgado de Oliveira - UNIVERSO
Grupo de Pesquisa Estudos Culturais, Política e Mídia - UEL
Grupo de Pesquisa Militares, Política e Fronteiras na Amazônia
- UFPA
APRESENTAÇÃO
NOTAS SOBRE “O QUE É SER UMA POLICIAL MILITAR”: Daniela Cecilia Grisoski
UMA DISCUSSÃO NO CAMPO DA PSICODINÂMICA DO
TRABALHO.
A JUSTIÇA MILITAR DO PARÁ (1950- 1970): A INSTITUIÇÃO E OS Luana Camila da Silva Rosário
PROCESSOS CRIMINAIS NO CENTRO DE MEMÓRIA DA
AMAZÔNIA
ESTUPRO E GUERRA: VIOLÊNCIA SEXUAL NA BASE MILITAR Sarah de Souza Mendes Coutinho
DE VAL-DE-CANS, EM BELÉM E RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Victoria Sozinho Prado
ENTRE BRASIL E ESTADOS UNIDOS.
1
O texto tem como base os seguintes artigos: MOREIRA, Rosemeri; SCHACTAE, Andréa; SÓÑORA SOTO,
Ivette. Entre guerrilleras, soldados y policias: lo feminino en instituciones armadas de Cuba e Brasil. In:
MARTINS, Ana Paula; GUEVARRA, María de los Ángeles Arias (orgs.) Políticas de Gênero na América
Latina: aproximações, diálogos e dasafios. Jundiaí, Paco Editorial: 2015, p. 141- 170.
SCHACTAE, Andréa. “Mulheres Guerreiras” e o(s) feminino(s) nas instituições armadas na América Latina,
Dimensões, v. 36, jan.-jun. 2016, p. 82-10.
armadas, e as polícias são as primeiras instituições a permitir o ingresso de mulheres
(BOTELLO, 2000).
Em 1910, o Departamento de Polícia de Los Angeles, admitiu oficialmente a primeira
mulher como policial, porém elas atuavam de forma não oficial desde 1840, nos
departamentos prisionais. Antes de 1925, havia 210 cidades, dos Estados Unidos, que
empregavam policiais femininas, principalmente como matronas de prisão. As mulheres
policiais atuavam no cuidado de jovens e mulheres e na prevenção do crime dirigido a essa
parcela da população, mantinham o ideal de feminilidade aceito pela instituição. Nos anos de
1970, ocorreu o processo de integração das mulheres policiais nas polícias. A policial
especialista na proteção de crianças, jovens e mulheres e na atuação em crimes envolvendo
vítimas femininas e infantis ou a prática criminosa de mulheres tornou-se legalmente uma
policial, com os mesmos direitos dos policiais homens e atuando em todas as situações de
crime (GARCIA, 2003).
No México, as mulheres ingressaram na polícia na década de 1930, e até o final da
década de 1990, as atividades ocupadas pelas mulheres na polícia eram as consideradas
secundárias. Entre as atividades “femininas” estão as áreas administrativas, o patrulhamento
em parques, em museus, em escolas e na patrulha ecológica (um tipo de policiamento de
trânsito que controla os veículos que devem circular) – atividade que foi desprezada pelos
homens. Somente na década de 1990, quando as policiais foram designadas para a patrulha
ecológica, foi-lhes permitido portarem armas (BOTELLO, 2000).
Em meados do século XX, iniciou-se na América Latina um processo de inclusão das
mulheres nos quadros permanentes das forças armadas. E Cuba é o primeiro país a admitir
mulheres nos quadros permanentes das Forças Armadas e como combatentes. Porém, elas
estiveram presentes em condições de exceção, nos exércitos que lutaram pela independência,
dos diversos países da América Latina. Também é importante destacar a participação das
mulheres na Revolução Mexicana, no início do século XX (LAU JAIVEN, 1995; CANO,
2010).
Vale destacar, que é uma tendência das instituições armadas a prática da inclusão
restritiva, o que significa excluir as mulheres dos espaços de combate. Portanto, para
compreender o processo de inclusão das mulheres nesse espaço masculino é fundamental a
realização de estudos de caso, para que seja possível posteriormente estabelecer comparações
que permitam compreender as diferenças e semelhanças nas políticas de inclusão. A presença
de mulheres em instituições armadas segue sendo uma contradição, pois rompe com ideais de
feminilidade e de masculinidade. O viril ainda tende a ser percebido como atributo de homens
e os espaços das armas são lugares de afirmação e legitimação da virilidade.
Embora a presença de mulheres nas instituições armadas da América Latina remonte
ao século XIX, o debate sobre políticas públicas destinadas à inclusão de mulheres nesses
espaços, é recente. Entre as ações atuais dos Estados Ocidentais destacam-se o 1º Encontro
Internacional de Ministras de Defesas e Lideranças de Defesa, realizado no Equador, no ano
de 2013, e o 2º Encontro Internacional de Ministras de Defesas e Lideranças de Defesa,
realizado no mês de Junho de 2014, em Caracas. Esses eventos são indicativos da atualidade
do debate sobre a inclusão de mulheres nos espaços de armas (polícias e forças armadas).
Mulheres e armas:
Imagens de mulheres em instituições armadas em Cuba e Brasil (1970-1985)
2
Durante a ação em Santiago de Cuba estiveram presentes Haydè Santamaria e Melba Hernandes.
3
Revista Mujeres, out, n. 10 , ano 10, 1970.
necessidade permite que a mulher cubana seja apresentada nas imagens das revistas analisadas
como mãe e soldado.
Nos anos de 1970, ocorreu o processo de integração das mulheres policiais nas
polícias, no Ocidente. A policial especialista na proteção de crianças, jovens e mulheres e na
atuação em crimes envolvendo vítimas femininas e infantis ou a prática criminosa de
mulheres tornou-se legalmente uma policial, com os mesmos direitos dos policiais homens e
atuando em todas as situações de crime (GARCIA, 2003). Foi nessa década que as mulheres
ingressaram na Polícia Militar do Paraná (MOREIRA, 2007; SCHACTAE, 2011.) Porém,
conforme demonstram os estudo de Rosemeri Moreira (2011), as mulheres ingressaram na
Guarda Civil de São Paulo, na década de 1950.
No México, as mulheres ingressaram na polícia na década de 1930, e até o final da
década de 1990, as atividades ocupadas pelas mulheres na polícia eram as consideradas
secundárias. Entre as atividades “femininas” estão as áreas administrativas, o patrulhamento
em parques, em museus, em escolas e na patrulha ecológica (um tipo de policiamento de
trânsito que controla os veículos que devem circular) – atividade que foi desprezada pelos
homens. Somente na década de 1990, quando as policiais foram designadas para a patrulha
ecológica, foi-lhes permitido portarem armas (BOTELLO, 2000).
No Brasil, o ingresso das primeiras mulheres no Exército ocorreu na década de 1990.
Porém, vale lembrar que durante a Segunda Guerra Mundial o Exército Brasileiro admitiu
mulheres para atuarem como enfermeira.4 Atualmente, ocupam espaços nas áreas de saúde,
administração e engenharia. Portanto, o combate permanece espaço masculino.
A primeira instituição armada brasileira a admitir mulheres nos quadros permanentes
foi a guarda civil de São Paulo, no ano de 1954, com o ingresso de um grupo feminino na
guarda civil. Na década de 1970, com a reestruturação das polícias pelos governos militares, a
guarda civil foi extinta e o efetivo passou para a Polícia Militar do Estado de São Paulo.
Portanto, entre as polícias militares brasileiras, a paulista é a primeira a admitir mulheres e, no
ano de 1977, foi criado, no Estado do Paraná, o primeiro Pelotão de Polícia Feminina, sendo
4
Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), um grupo de enfermeiras brasileiras foi treinado pelo Exército
Brasileiro e enviado para o campo de batalha. Todavia, essas mulheres não eram militares e sim civis prestando
serviço para uma instituição militar. As instituições armadas de outros países também fizeram uso dessa prática.
Ver: BERNARDES, M.; LOPES, G.; SANTOS, T. O cotidiano das enfermeiras do Exército na Força
Expedicionária Brasileira (FEB) no teatro de operações da Segunda Guerra Mundial na Itália (1942-1945). In.
Revista Latino-americana de Enfermagem, 13(3): 314-321, 2005.
essas as primeiras instituições militares brasileiras a admitirem mulheres no quadro de agentes
permanentes. A partir dos anos de 1980 e 1990 todas as policiais militares brasileiras criam
quadros femininos para receber as mulheres. Vale destacar que a inclusão das mulheres nas
polícias militares de São Paulo e do Paraná ocorreu durante a Ditadura Militar (1964-1985) e
entre os militares havia uma tendência a afirmação de um ideal de feminilidade vinculado a
maternidade, conforme destacam de Fanny Tabak (TABAK, 1983) e de Lucia Maciel Barbosa
de Oliveira. (OLIVEIRA, 2001)
No final da década de 1970, a Polícia Militar do Estado do Paraná iniciou um
processo de redação do projeto de criação da Polícia Feminina. As leis e as normas que
criaram a Polícia Feminina e instituíram a policial são textos redigidos por sujeitos que
possuem o poder de escrever em nome do Estado e da Polícia Militar do Estado do Paraná.
Esses textos construíram um significado para a presença de mulheres na instituição, um
espaço para o feminino na ordem institucional. Ao longo do período marcado pela criação da
Polícia Feminina no ano de 1977 e a sua extinção no ano de 2000, as mulheres foram
incorporadas à instituição.
Observa-se que a comparação entre os dois países – Cuba e Brasil – o ingresso de
mulheres nas instituições armadas ocorrem em diferentes contextos e a construção de uma
identificação feminina para as mulheres que ingressam nesse espaço historicamente masculino
apresenta especificidades. Ao ingressar em uma instituição militar, os homens e as mulheres
tornam-se herdeiros de uma identidade institucional – uma identidade coletiva – que consiste
em uma fantasia, pois, como afirmam Joan Scott (2002) e Stuart Hall (2006), é uma
construção histórica que transcende as identidades contraditórias e constitui uma ideia de
homogeneidade. As solenidades militares e as narrativas sobre a história institucional e sobre
os seus heróis são construtoras dessa identidade institucional, que é apresentada como
unificada e vinculada a uma tradição. Uma identidade caracterizada por um ideal de
masculinidade.
Entre os mecanismos de incorporação dessa herança identitária adotados pela
instituição estão as solenidades, construções simbólicas que representam a ordem do espaço
institucional, os códigos balizados pela hierarquia, a disciplina e a educação. Considerando as
colocações de Pierre Bourdieu, esses mecanismos são utilizados para objetivação e
incorporação da identidade, que está relacionada à função desempenhada. Dessa forma, ao
vestir o uniforme, “o seu corpo, em que está inscrita uma história, casa-se com a sua função,
quer dizer, uma história, uma tradição, que ele nunca viu senão encarnada em corpos, ou
melhor, nessas vestes habitadas por um certo habitus”.(1998, p. 88)
O habitus, entendido a partir de Pierre Bourdieu, é uma herança que orienta as
escolhas, o comportamento e a posição “de um agente em ação”. (1998, p. 61) É uma história
atualizada e assumida por agentes, “uma relação de pertença e de posse na qual o corpo
apropriado pela história se apropria, de maneira absoluta e imediata, das coisas habitadas por
essa história.” (1998, p. 83) Um princípio que gera diferenças e unifica, constituindo um
conjunto identificador e diferenciador dos agentes e da instituição, estabelecendo uma ordem
simbólica.
A incorporação dessa herança identificadora da instituição pelo agente é o
processo de construção de um “novo ser social” e se dá de forma diferente entre os agentes,
pois depende dos outros habitus incorporados por aquele que veste a farda e do poder advindo
da sua função na hierarquia institucional. Quanto mais poder um agente tiver dentro da
instituição (poder hierárquico), maior será o seu capital simbólico.5
O comportamento do militar – seus gestos, sua vestimenta, seu corte de cabelo,
seu tom de voz, sua postura, sua sexualidade, seu respeito à hierarquia, a moralidade, os bons
costumes – é construído pela disciplina do corpo, pois é nele que a honra institucional se
inscreve. O conjunto de atitudes, valores e ideias vinculados à identidade do militar torna
visível a honra do agente e da instituição. A disciplina militar é uma ferramenta de inscrição
da identidade nos corpos dos agentes, mas também de construção e de reprodução do
comportamento militar e da ordem institucional.
A imagem de mulheres polícias militares paranaenses e de mulheres militares
cubanas indicam que a feminilidade militar construída e transmitida para as herdeiras da
tradição das instituições armadas são diferentes. Portando, a construção dos valores e a
imagem identificadora do soltado está vinculada ao contexto do qual faz parte e assim, em
Cuba, símbolos identificadores do masculino – uniforme militar e arma – também se
constituem em identificadores do feminino.
Observando as imagens publicas nas revistas cubanas Mujeres e Bohemia e
comparado com as imagens vinculadas em jornais que circulam no Estado do Paraná, o qual
está localizado na região sul do Brasil, percebe-se duas diferenças centrais para a construção
5
“O capital simbólico é uma propriedade qualquer (de qualquer tipo, físico, econômico, cultural, social),
percebida pelos agentes sociais cujas categorias de percepção são tais que eles podem entendê-las (percebê-las) e
reconhecê-las, atribuindo-lhes valor. (...) Mais precisamente, é a forma que todo tipo de capital assume quando é
concebido através das categorias de percepção, na estrutura da distribuição desse tipo de capital (...)”.
BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus, 1996, p.107.
de uma identificação da mulher militar, as quais estão vinculadas a dois símbolos: o cabelo e a
arma.
A diferença marcante entre as duas imagens de mulheres que vestem uniforme de
instituições armadas está no cabelo e na posse da arma. (IMAGEM - 2 e IMAGEM - 3) Na
imagem das mulheres cubanas elas estão com cabelos compridos e soltos, o que indica que o
símbolo tradicional de sedução feminina, conforme destaca Michele Perrot (1998), estava
visível. No entanto, na imagem publicada no Brasil, as policiais estão com o cabelo preso,
tornando sua imagem próxima do padrão de cabelo do homem militar – curto –, pois a
virilidade também está vinculada a cabelo curto dentro das instituições armadas brasileiras.
O outro símbolo que diferencia as duas imagens é a arma, que historicamente é
identificadora de masculinidade. Enquanto as mulheres cubanas são apresentadas com a arma
em destaque, as brasileiras são despossuídas de tal símbolo. A imagem de mulheres armadas
em Cuba apresenta o feminino como possuidor de um poder masculino. A posse desse
símbolo indica a existência de uma reconfiguração nos divisão dos espaços de poder
masculino e feminino em Cuba, apresentando uma imagem de igualdade, bem como,
afirmando a necessidade da força feminina para defesa do território.
Outras duas imagens do ano de 1984 afirmam essa diferença entre o feminino das
instituições armadas em Cuba e no Brasil. Observando a mulher na IMAGEM – 4, destacam-
se o cabelo, o brinco de argola e a arma, esse conjunto de símbolos, somados a vestimenta
simbólica, que remete a uma instituição militarizada, contrasta com a imagem das Policiais
Femininas, as quais se apresentam com o cabelo preso e despossuídas do poder de portar uma
arma. Enquanto a imagem da mulher cubana legitima que o poder de portar uma arma
também pertence as mulheres cubanas, a imagem das policiais paranaenses reafirma que o
poder das armas pertencente aos homens.
A comparação entre as imagens permite perceber que há diferentes construções na
normatização do visual da mulher em instituições armadas e que elas estão vinculadas ao
contexto. As imagens publicadas em meados da década de 1980 no Brasil e em Cuba
confirmam que o padrão de feminilidade militar é também definido pela apresentação da
imagem das mulheres pertencentes às instituições armadas. Enquanto no Brasil o padrão de
cabelo é curto ou comprido e preso, em Cuba, o cabelo comprido e solto ganha destaque. Essa
comparação é indicativa de que o padrão visual não é homogêneo, sendo necessário
aprofundar os estudos sobre a construção do feminino em instituições armadas.
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AS REFORMAS CONSTITUCIONAIS DOS GOVERNOS MILITARES: A
CONSTITUIÇÃO DE 1967, A EMENDA CONSTITUCIONAL DE 1969, O AI-5 E AS
LIMITAÇÕES À DEMOCRACIA NO BRASIL
INTRODUÇÃO
A história da república iniciada no Brasil em 1889 mostrou-se sempre como um vasto
campo para investigações acadêmicas de diversas áreas do conhecimento. A ditadura militar,
em especial, é um dos assuntos mais férteis para discussões científicas e figura como assunto
frequente em questões políticas na sociedade.
A ditadura militar no Brasil teve início no ano de 1964 por meio de um golpe de
Estado que depôs o presidente João Goulart, que havia sido eleito como vice-presidente da
república e exercia seu mandato de forma legítima desde a renúncia de Jânio Quadros em
1961. Com base na alegação de que havia uma ameaça comunista no país, as Forças Armadas
estabeleceram-se no poder e o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco assumiu como
o primeiro presidente do período ditatorial.
Os governos do período militar foram caracterizados por ausência de democracia
efetiva, uso da violência como método de ação política, perseguição a opositores políticos,
censura à imprensa e a manifestações artísticas, limitação de direitos individuais, prisões
arbitrárias, tortura, exílio e etc. Ao longo de todo o regime, os presidentes militares se
empenharam em criar institutos jurídicos que legitimassem os governos e por meio da
Constituição de 1967, da emenda constitucional de 1969 e dos Atos Institucionais criaram o
arcabouço institucional de um regime autoritário destinado a durar mais de duas décadas no
país.
O regime militar se estendeu até o ano de 1985, quando Tancredo Neves foi eleito
presidente do Brasil de forma indireta pelo Colégio Eleitoral. Tancredo acabou falecendo
antes da posse e José Sarney tornou-se o primeiro presidente civil do país após mais de vinte
anos do regime ditatorial. Sabendo da importância de entender sobre a história da república
brasileira, busca-se aqui apresentar saberes a respeito da ditadura militar a partir da análise
dos dispositivos legais que colaboraram para estabelecer e efetivar os governos militares no
Brasil ao longo das décadas de 1960, 1970 e 1980.
A decepção maior que causa a Constituição está no modelo político que consagra.
Inexistiu aí qualquer espírito criador. Adotou-se um modelo formalmente
democrático mas na realidade incapaz de funcionar adequadamente nas condições
atuais do Brasil. Conservou ela o presidencialismo. Isso significa que a preeminência
política é dada ao Executivo (...) cujo chefe, o Presidente da República, é a suprema
autoridade, ao mesmo tempo chefe de Estado e chefe do Governo. (1983, pp. 25-6).
6
O artigo 142 da Constituição de 1967 estabelecia que os brasileiros maiores de 18 anos, alistados na forma da
lei, seriam eleitores. Além disso, no artigo seguinte, determinava ser universal o sufrágio.
políticos cassados os que de alguma forma se opusessem aos mandos do então presidente da
república.
Ao longo do texto constitucional promulgado no ano de 1967, estavam elencados os
direitos e garantias individuais e a partir do artigo 150 o poder constituinte preocupou-se em
elaborar as normas que viriam a reger os direitos dos indivíduos.
Nos últimos dias do ano de 1968 o presidente Costa e Silva sancionou o AI-5, o mais
duro instrumento jurídico do período militar. Já nesse período havia movimentos que
contrariavam o governo em exercício e o quinto ato institucional do período militar era uma
resposta a isso. A promulgação do AI-5 se deu semanas após o deputado Márcio Moreira
Alves fazer um apelo para que a população não participasse dos desfiles militares que faziam
alusão à comemoração da independência do país. Tal atitude ocorreu num discurso no
Congresso Nacional e, por ter sido considerado uma afronta radical, pediu-se que a Câmara de
Deputados iniciasse um processo contra o deputado. A votação foi realizada no dia 12 de
dezembro e teve como resultado a rejeição do pedido do governo, que no dia seguinte editou o
Ato Institucional de número 5.
Continuando a atribuir o nome de ‘revolução’ ao golpe militar, o governo aproveitou
o início do texto do AI-5 para reforçar que tais medidas buscavam atender aos interesses da
nação, assegurando o regime democrático. O artigo 1º alertava que o texto desse instrumento
não invalidava a Constituição elaborada no ano anterior.
Por meio do ato institucional de número 5, o segundo presidente do período ditatorial
concluía o projeto de efetivação do regime. Por meio do artigo 2º, instituía a possibilidade de
que o presidente decretasse o recesso do Congresso Nacional, consagrando a centralização do
poder executivo nacional. Além disso, por meio também desse instrumento, tornava possível e
lícito:
Conferir ao presidente da república poder tão extenso contribuiu para figurar ainda
mais o governo ditatorial que se pretendia. O chefe do poder executivo nacional concentrava
em si a autoridade do país, decretando o recesso do Congresso Nacional, limitando a
autonomia estadual e municipal por meio das possíveis intervenções locais, ampliando a
possibilidade de decretar estado de sítio, suspendendo direitos políticos e cassando mandatos.
Por fim, o artigo 10 era mais um penoso atentado ao Estado democrático por suspender
a garantia de habeas corpus em determinadas situações. Tal instrumento jurídico é de grande
valia e existe a fim de garantir que não se opere a restrição da liberdade de um indivíduo por
meio de ilegalidade ou abuso de poder. A sua suspensão, prevista no AI-5, possibilitava e
permitia que ocorressem prisões arbitrárias, não concedendo ao indivíduo preso os direitos
individuais que haviam sido anteriormente previstos no texto constitucional.
Por meio dessa emenda constitucional, buscaram-se aprimorar certas questões trazidas
pela Constituição vigente, além de acentuar o poder autoritário conferido ao chefe do
executivo. A emenda nº1 serviu para reforçar a falta de autonomia dos estados, o
enfraquecimento do Congresso Nacional e do poder legislativo, restrições a direitos políticos,
aprovação dos atos institucionais e etc.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O regime militar iniciado no Brasil no ano de 1964 contou com cinco presidentes em
exercício até que fosse restabelecida a república democrática. Ao longo das mais de duas
décadas de governo ditatorial, muitos foram os dispositivos jurídicos elaborados a fim de
atender os objetivos da elite tecnocrática cívico-militar que se encontrava no poder.
Além disso, a Constituição de 67, a Emenda nº1 de 1969 e os diversos atos
institucionais serviam para criar a aparência de normalidade institucional com um simulacro
de democracia (eleições periódicas através do colégio eleitoral, mas com censura à imprensa e
perseguição a oponentes, dentre outras medidas antidemocráticas), para assim tentar atribuir
alguma legitimidade ao governo. Fazendo uso de dispositivos tais legais, o bloco de atores
civis e militares que tomou de assalto o poder em 1964 instituíam as medidas necessárias para
garantir seu controle as instituições e a sociedade brasileiras construindo uma ditadura no
Brasil sob um superficial verniz de normalidade institucional.
REFERÊNCIAS
Apesar da prática romana de imortalizar suas vitórias com obras monumentais ter
desaparecido durante a Idade Média, o costume de lembrar dos feitos militares continuou
sendo um costume. Pode-se dizer que a própria ideia de uma aristocracia hereditária é uma
forma de relembrar os feitos militares das pessoas, no caso, dos antepassados que receberam
seus títulos como parte da nobreza da espada. Uma distinção importante, pois os feitos
militares eram usados para justificar vantagens pessoais ou mesmo coletivas – era esse o caso
no Brasil, onde tanto os paulistas como os pernambucanos se valiam de seu passado de
conquistas militares para obterem benefícios econômicos.7
De forma mais direta, no Brasil, se considera que o primeiro documento que trata da
preservação do patrimônio cultural é uma carta de 1742 do vice-rei, Conde de Galveas, ao
governador de Pernambuco, defendendo a preservação do palácio de Friburgo, construído por
Maurício de Nassau durante o período da ocupação holandesa. O que é importante para nós é
que esse documento claramente associa a questão da preservação a das glórias militares:
7
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes de sua separação e independência de
Portugal. Belo Horizonte : Ed. Itatiaia ; São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo, 1981. v. 2. pp.
47-48.
8
CARTA do vice-rei do Brasil, Conde de Galveas, ao governador de Pernambuco, Luís Pereira Freire de
Andrade, 5 de abril de 1742. BRASIL – SPHAN/Pró-Memória. Proteção e revitalização do patrimônio
cultural no Brasil: uma trajetória. Rio de Janeiro: SPHAN/Pró-Memória, 1980. p. 31.
9
FRANÇA – Déclaration des droits de l’homme et du citoyen. Agosto de 1789. (A tradução é nossa).
10
FORREST, Alan. Conscripts and Deserters the Army and French Society during the Revolution and Empire.
Oxford: Oxford University Press, 1989. p. 15.
para invadir a província francesa do Rosilhão. Forças austríacas e prussianas, invadiram o
norte da França.
No entanto, a mobilização dos homens não se baseava apenas em leis, essas podiam
ser desobedecidas, como de fato ocorreu,13 a formação de um exército popular era vital. Essa
era uma questão importante não apenas em termos numéricos: as fileiras dos exércitos até o
século XVIII tinham sido formados, em sua maior parte, por homens que não tinham um
compromisso maior com o serviço – é famosa a frase atribuída ao rei Frederico II da Prússia,
11
FRANÇA – Decrét qui determine le mode de réquisition des citoyens français contre les ennemis de la
France. 24 de Agosto de 1793. Artigo 1º. (A tradução é nossa).
12
VRIES, Peter. State, Economy and the Great divergence: Great Britain and China, 1680s–1850s. London:
Bloomsbury, 2015. p. 282.
13
FORREST, op. cit. pp. 43 e segs.
de que “os soldados deveriam temer mais seus oficiais do que o inimigo”. Por causa disso, as
tropas eram rigidamente controladas pelos oficiais, nobres, não se esperando muita iniciativa
por sua parte, tinham que lutar em “ordem cerrada”, em rígidas fileiras, de outra forma
desertariam. Por sua vez, a tática adotada pelos exércitos revolucionários, com formações em
ordem aberta, dependia de certa liberdade de ação para os soldados. Essa forma de combater,
muito mais flexível e, portanto, possivelmente mais eficiente, para que fosse possível,
dependia que os soldados fossem motivados, não mais por medo, mas sim por razões de moral
e nacionalismo.
No Brasil, houve reflexos claros desse movimento romântico, tanto na pintura, como
na música e literatura. Eram obras enfatizando as raízes nacionais, o passado indígena, o de
grupos formadores da nacionalidade ou mesmo a belezas do País. Foram pinturas, como a
Iracema, de José Maria de Medeiros; as óperas O Guarani e O Escravo, de Carlos Gomes; e,
principalmente, textos literários, das quais podem se citar os romances O Guarani, Iracema, O
Gaúcho e O Sertanejo, de José de Alencar, ou os poemas I-Jucá-Pirama e A Canção do
Exílio, de Gonçalves Dias. Eram todas obras que enfatizavam um sentimento nacional e
vieram junto com outras ações, como a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
em 1838.
No caso do Instituto deve-se apontar que uma das suas primeiras ações foi fazer, em
1844, um concurso sobre “como escrever a história do Brasil”, ganho pelo naturalista alemão
Karl Friedrich von Martius. No texto, o autor colocava que: “Uma obra histórica sobre o
Brasil deve (...) [ter] a tendência de despertar e reanimar em seus leitores brasileiros amor da
pátria, coragem, constância, indústria, fidelidade, prudência, em uma palavra, todas as
virtudes cívicas”.14
14
MARTIUS, Karl Friedrich von. Como se deve escrever a história do Brasil. Revista Trimestral do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Nº 24, janeiro de 1845. p. 401
população”.15 O importante é que a propaganda – proposital ou não – foi suficiente para que
os valores de uma identidade nacional fossem transmitidos.
Essa situação mudaria na década de 1930. Pode-se dizer que havia uma pressão da
sociedade pela preservação do patrimônio cultural, mas um fator que foi decisivo na adoção
de uma política cultural foi a situação que se configurava no período. Em 1901, um oficial
escreveu que a nação brasileira “não estava perfeitamente definida”,16 os problemas de
analfabetismo sendo considerados muito graves, opinião compartilhada por muitos oficiais.
Como solução, propunha usar o exército como um centro formador de pessoas, alfabetizando
as que precisavam, e dando aulas de civismo além, é claro, da formação militar específica.17
Como parte de uma política militar específica, em 1917, o Brasil mudou sua filosofia
de formação das forças armadas, adotando a conscrição para a composição do Exército. Isso
implicou em mudanças na forma como a questão militar fora tratada até então, passou a existir
um cuidado maior com a situação dos alistados. Um sintoma disso é o grande programa de
construção de quartéis feitos pelo ministério de Pandiá Calógeras (1919-1921), aperfeiçoando
as acomodações da tropa. Pode-se dizer que a criação do Museu Histórico Nacional, em 1922,
se encaixa dentro dos inícios de uma nova priorização do governo na área, pois o decreto de
fundação do Museu previa que ele devia contribuir “como escola de patriotismo, para o culto
do nosso passado”.18
15
DEBRET, J. B. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Paris: Firmin Didot, 1835. p. 49.
16
DUVAL, Sérgio Ferreira Armando. Reorganização do Exército. Rio de Janeiro, 1901. p. 11. Apud MCCANN,
Frank D. The Formative Period of Twentieth-Century Brazilian Army Thought, 1900-1922. Hispanic American
Historical Review, vol. 64, nº 4, Nov. 1984. p. 741.
17
MCCANN, op. cit. p. 741.
18
BRASIL – Decreto nº 15.596, de 2 de agosto de 1922. Cria o Museu Histórico Nacional e aprova o seu
regulamento.
Uma ação mais direta e efetiva ocorreu em função das necessidades militares na
década de 1930: os militares perceberam que havia sérios problemas de integração nacional,
algo que o Presidente Vargas possuia uma experiência pessoal, de quando, como sargento do
25º Batalhão de Infantaria, fora enviado do Rio Grande do Sul para a longínqua e
praticamente abandonada fronteira de Mato Grosso do Sul em 1903.
A falta de uma real unidade nacional – ou pelo menos a percepção dessa falta – levou
a que o governo Vargas, pela primeira vez, implantasse uma política de preservação e
19
MCCANN, Frank D. Soldiers of the Pátria: a History of the Brazilian Army, 1889-1937. Stanford: Stanford
University, 2004. p. 352-353.
valorização do patrimônio, como parte de uma tentativa de resolver os problemas que eram
vistos como graves. Dessa forma, em poucos anos, foram criados três parques nacionais, por
suas belezas naturais: os de Itatiaia, Foz do Iguaçu, Serra dos Órgãos. Também foi criado o
Ministério da Educação e Saúde, subordinado ao qual havia os seguintes órgãos: Inspetoria de
Monumentos nacionais (1934); Instituto Nacional do Livro (1936); Serviço de Radiodifusão
Educativa (1937); Instituto Nacional do Cinema Educativo (1937); Serviço Nacional do
Teatro (1937), Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937); Conselho
Nacional de Cultura (1938); e o Conselho Nacional dos Símbolos Nacionais (1939). Em
termos de museologia, foram criados o Curso de museus (1932); o Museu Nacional de Belas
Artes (1937), o Museu Imperial (1940) e o Museu da Inconfidência (1944).
20
BRASIL - Decreto-lei nº 1.915, de 27 de dezembro de 1939. Cria o Departamento de Imprensa e Propaganda
e dá outras providências. Inciso L.
21
SEYFERT, Giralda. Os imigrantes e a campanha de nacionalização. In: PANDOLFI, Dulce. Repensando o
Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999. p. 218 e segs.
Como colocou o próprio Vargas em um discurso: “O imperialismo brasileiro
consiste, portanto, na expansão demográfica e econômica dentro do próprio território, fazendo
a conquista de si mesmo e a integração do Estado (...).”22
Essas posturas de assimilação forçada não foram mais aceitáveis depois de 1945 e
isso não só pela redemocratização do País: uma das consequências da Segunda Guerra
Mundial foi negar a validade de posições nacionalistas e militaristas extremadas, como as dos
regimes nazifascistas – elas foram responsáveis pela perda de milhões de vidas.
Como resultado dessas mudanças, ocorreu uma perda de foco nas políticas
governamentais com relação à cultura. A difusão de valores nacionais deixou de ser um
objetivo, pelo menos de forma explícita, a ação na área de cultura sendo substituída por uma
mentalidade de um serviço público que deve ser prestado por simplesmente haver uma
demanda pública para ele.
22
DEPARTAMENTO de Imprensa e Propaganda. Quem foi que disse? Quem foi quem fez? s.n.t. p. 72.
em si mesmo. Isso por si, não é uma dificuldade, mas, em uma sociedade que enfrenta uma
série de problemas orçamentários, a questão da cultura pode ser – na verdade é – vista como
secundária, face a uma série de outros compromissos. Até os militares, que têm como um dos
seus valores a preservação das tradições – lembremos da frase de Napoleão sobre as medalhas
–, deixaram a área da Cultura do governo Federal à míngua durante os anos do regime de
1964-1985: na década de 1970, o Museu Histórico Nacional chegou a fechar durante algum
tempo, pois seus funcionários não eram pagos e isso enquanto o diretor era um oficial de
marinha.
Por sua vez, não conseguimos vislumbrar uma solução simples para o problema do
objetivo da área cultural. Uma aproximação como a antiga é moralmente inaceitável, quando
não ilegal: a constituição de 1988 deu ênfase à diversidade cultural e não a identidade, dando
ênfase as práticas de grupos minoritários. Por sua vez, o problema da proteção ao patrimônio
local, se não o nacional, persiste, face a uma mudança social que vem ocorrendo com a
difusão de meios eletrônicos de divulgação cultural – e não estamos falando da internet, mas
também da televisão e cinema.
Hoje em dia, o poder econômico das economias ocidentais levou a que essas
possuíssem um imenso poder de convencimento de seus objetivos sem o uso da força armada,
o assim chamado soft power.23 Essa forma de ação passa, entre outros caminhos, pela
transmissão, ou imposição de valores culturais, sem o uso da força, o que se torna
particularmente complicado quando percebemos uma falta de uma política de defesa de
valores locais. A nível anedótico, valho-me lembrar de um caso que ocorreu com uma amiga
pessoal: anos atrás, ela estava com sua filha, ainda uma criança, e passou pela estátua de
Deodoro da Fonseca, no Rio de Janeiro. A criança falou então: “mãe, sei quem é esse: é o
general Washington”. Uma colocação que não pode ser vista como estranha, pois a televisão
bombardeia as crianças com informações e valores dos Estados Unidos, enquanto a história do
Brasil é relegada a poucos programas em canais especializados e de difícil acesso.
23
Ver: NYE, Joseph. Soft Power: The Means to Success in World Politics. New York: Public Affairs, 2004.
Não temos condições de responder a essas perguntas, apenas as colocamos para
levantar uma discussão sobre o tema, já que consideramos que dizer que essas instituições
devem existir porque sim é apenas uma tautologia, sem significado. É necessário encontrar
um novo caminho para elas.
Referências:
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes de sua separação e
independência de Portugal. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 1981.
BRASIL – SPHAN/Pró-Memória. Proteção e revitalização do patrimônio cultural no Brasil:
uma trajetória. Rio de Janeiro: SPHAN/Pró-Memória, 1980.
FRANÇA – Déclaration des droits de l’homme et du citoyen. Agosto de 1789.
FORREST, Alan. Conscripts and Deserters the Army and French Society during the
Revolution and Empire. Oxford: Oxford University Press, 1989.
FRANÇA – Decrét qui determine le mode de réquisition des citoyens français contre les
ennemis de la France. 24 de Agosto de 1793.
VRIES, Peter. State, Economy and the Great divergence: Great Britain and China, 1680s–
1850s. London: Bloomsbury, 2015.
MARTIUS, Karl Friedrich von. Como se deve escrever a história do Brasil. Revista
Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Nº 24, janeiro de 1845.
DEBRET, J. B. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Paris: Firmin Didot, 1835.
MCCANN, Frank D. The Formative Period of Twentieth-Century Brazilian Army Thought,
1900-1922. Hispanic American Historical Review, vol. 64, nº 4, Nov. 1984.
BRASIL – Decreto nº 15.596, de 2 de agosto de 1922. Cria o Museu Histórico Nacional e
aprova o seu regulamento.
MCCANN, Frank D. Soldiers of the Pátria: a History of the Brazilian Army, 1889-1937.
Stanford: Stanford University, 2004.
BRASIL - Decreto-lei nº 1.915, de 27 de dezembro de 1939. Cria o Departamento de
Imprensa e Propaganda e dá outras providências.
SEYFERT, Giralda. Os imigrantes e a campanha de nacionalização. In: PANDOLFI, Dulce.
Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999.
DEPARTAMENTO de Imprensa e Propaganda. Quem foi que disse? Quem foi quem fez?
s.n.t.
NYE, Joseph. Soft Power: The Means to Success in World Politics. New York: Public Affairs,
2004.
A COLÔNIA MILITAR DO AVANHANDAVA (1858) E OS IDEAIS MILITARES NA
OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO PAULISTA
Nilson Ghirardello
(Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo FAAC-UNESP.)
24
SOUSA NETO, Manoel Fernandes de. Planos para o Império: Os planos de viação do Segundo Reinado
(1869-1889). São Paulo: Alameda, 2012, p. 24.
25
Idem.
26
HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital, 1848-1875. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.
27
Cf. JANKE, Leandro Macedo. Território, Nação e Soberania no Império do Brasil. In: Anais do XXVI
Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011.
28
Idem.
29
MATTOS, Ilmar Rohloff de. Do Império do Brasil ao Império do Brasil. In: Faculdade de Letras da
Universidade do Porto. (Org.). Porto: Universidade do Porto, 2004, v. 2.
É interessante recordar que a maioria das antigas nações cogitou em povoar seu
território de elementos nativos, para que, dessa maneira, seus habitantes estivessem
penetrados com o sentimento de pátria, apego ao solo, ocupação continuada, e as suas
tradições. Além disso, sabe-se, pois, que tais nações serviam-se, umas mais, outras menos,
conforme as exigências de segurança, em suas fronteiras, de postos de guarda para a proteção
do seu território. Entretanto, não bastava para isso um aparato somente militar, porque tais
entrepostos passariam a viver muitas vezes de recursos locais, onde instáveis e incertos eram
os meios de subsistência. Foi a partir daí, que se tornou necessidade associar àqueles pontos
ou guardas territoriais a elementos civis, nacionais, de procedência militar, para trabalhos
agrícolas e a exploração de produtos naturais.30 Segundo Silveira de Mello,31 no Brasil
colonial, a expansão foi balizada de forma semelhante ao norte, ao oeste e ao sul, por
destacamentos militares em torno dos quais se fizeram ensaios de povoamento. Graças a estes
postos de guardas, tornou-se possível por aqueles extremos, desenhar, de certa maneira, os
contornos territoriais da época.
Com isso em mente, pode-se afirmar que uma, das diversas origens da colonização
militar brasileira, fora inspirada no império mais poderoso da antiguidade clássica: o romano.
Alguns planejadores buscaram na prática romana de, após a conquista por guerra, formar
acampamentos militares e daí colônias militares. Essas ainda eram bases de futuras cidades,
como se deu com inúmeras delas, entre os anos 300 AC e 150 DC. Ora, sendo nosso exército
do século XIX de certa maneira ultrapassado, nada mais natural em escolher aquele sistema
que tipificava a colonização militar:
30
MELLO, Raul Silveira de. A Epopéia de Antônio João. Aos 100 anos da epopéia militar dos Dourados. Rio
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1969 (Coleção General Benício, v. 71, publ. 393).
31
Idem.
32
Idem, ibidem, p. 70, grifo nosso.
33
D’OLIVEIRA, José Joaquim Machado. Plano de uma Colonia Militar no Brasil. In: Revista Trimensal de
Historia e Geographia ou Jornal do IHGB. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I. P. da Costa. Tomo sétimo.
nº 26, julho de 1846, p. 239-255.
estabelecimentos se aproximavam de acantonamentos militares, onde os corpos eram
completamente organizados, com todo aparato militar disponível, e que não se relacionava
com a intenção brasileira de criar colônias objetivando a posse e o cultivo a terra. Dessa
forma, não serviria ao Brasil como modo de colonização. Os planos do inglês M. Gladstone
também foram consultados: o plano consistia no emprego de um corpo de soldados sujeito à
direção de um engenheiro geral.34 Já de acordo com Vasconcellos, em “Colônias Militares –
Memória”,35 publicado em 1867, entre todos os sistemas, o que pareceu mais regular no caso
de ser adotado, foi o proposto para a Argélia no ano de 1841 por Landemann. Este sistema,
que conforme o autor seria o mais apropriado às nossas circunstâncias, teria mais relação com
os nossos usos e costumes, com muitos mais pontos de semelhanças e de contato do que outro
qualquer; resume-se em criar colônias agrícolas, religiosas e militares na Argélia para defesa
de suas fronteiras e catequese dos indígenas.
As colônias militares propostas para o país tinham como uma das finalidades ocupar e
garantir que as terras nas quais estavam inseridas compusessem, irreversivelmente, o território
nacional. Pode-se afirmar, ainda, que algumas delas foram utilizadas como medidas
estratégicas do império brasileiro para que as nações vizinhas não reclamassem a posse das
terras em questão, além de impedir possíveis invasões. Os problemas relacionados às
demarcações fronteiriças, a partir de 1850, cresciam intensamente no Brasil, como também
aumentava a necessidade de se nacionalizar essas regiões que, na prática, ainda não estavam
inseridas no contexto brasileiro. Em suma, a colonização na perspectiva militar esteve
vinculada às diversas funções:
• Domínio dos povos indígenas considerados perigosos e amparo à catequização dos
respectivos aldeamentos;36
• Apoio aos projetos de algumas novas cidades;37
• A intensa preocupação com as fronteiras – a negociação com as repúblicas vizinhas
era delicada, ameaças vindas da Bolívia, embates com os paraguaios com recorrentes
invasões;
• Funções estratégicas de posicionamento em lugares para a colonização (já mencionado
anteriormente);
34
OURIQUE, Jacques. Colônias e Estradas militares. In: Revista do Exército Brasileiro. Anno Quarto. Rio de
Janeiro: Typ. da Revista do Exercito Brasileiro, 1885, p. 97-101.
35
VASCONCELLOS, José R. R.. Colônias Militares – Memoria. In: BRASIL. Relatório apresentado à
Assembleia Geral Legislativa pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, 1867.
36
No Paraná, por exemplo, a colônia de Jatahy foi promovida por um sistema de colonização do oeste
paranaense juntamente com apoio a um aldeamento maior e quatro menores. Cf. OLIVEIRA, Maria Luiza
Ferreira de.,2015, p. 2.
37
Em Minas Gerais a colônia daria apoio aos aldeamentos e à nova cidade de Philadelphia, parte do ambicioso
projeto de Teófilo Ottoni. Cf. OLIVEIRA, 2015, opus cit.
• Postos de proteção em áreas para informações e comunicações (estafetas, correio),
policiamento,
• Função naval;
• E até mesmo planos desenvolvimentistas de futuros centros agrícolas e comerciais.
38
BRASIL. Collecção das Leis do Imperio do Brasil de 1858. Tomo XIX. Parte II. Rio de Janeiro: Typographia
Nacional, 1858, p. 161.
39
AVANHANDAVA, Officios Diversos. C0820, 1861, (manuscrito), Arquivo Público do Estado de S.P.
Com um desenho quadrilátero e regular, o plano para a colônia ansiava algo
efetivamente racional, que pudesse transmitir não só ordem e disciplina militar, mas também a
ideia de uma civilização que vinha para demarcar e proteger a região. Ora, o que seria
delimitar uma região senão distinguir dois ou vários lugares, atribuindo-lhes qualidades
diferentes: o meu, e aquele outro – o espaço de habitat, de segurança, de ordem, enquanto o
outro seria “perigoso”, “não humano”, “bárbaro”, “selvagem”. Fundar é sempre atribuir
qualidades a um espaço: é estabelecer uma relação de parte da extensão com o mundo,
tecendo vínculos simbólicos. Tal relação é interativa na medida em que, uma vez fundado, o
próprio lugar é, ao mesmo tempo, produto e produtor de simbologia e de sociabilidade.40
Tem-se a hipótese, portanto, que tal plano e ação de fundar, talvez possam se aproximar
ao modelo de castrum romano (figura 2) – acampamentos militares, que posteriormente, se
transformavam em cidades. Muitas vezes eram fundados com o objetivo de ocupação
territorial e garantia de domínio, ou apenas para interiorização do povoamento. O traçado em
xadrez era definido por duas ruas, norte-sul chamada cardo, e leste-oeste chamada
decumanos. Em seu cruzamento estabelecia-se o forum, onde os soldados se reuniam todos os
dias para receber as ordens, e este local tornava-se o centro da futura cidade. Ao redor do
futuro núcleo citadino, mas ainda dentro dos muros, delimitava-se o pomerium, uma faixa de
terra que representava a fronteira sagrada da cidade. O terreno interno era considerado
inviolável, ungido pelos deuses, tal rito fazia o espaço passar de um status para outro. Aos
poucos o acampamento recebia calçamento, água encanada, mercados, escolas, anfiteatros,
termas, etc.41Não se tratava somente de um ritual de fundação ou de elaboração de um
traçado, mas de um conjunto de operações deliberadas: legitimando a produção de vínculos
simbólicos por um grupo de indivíduos entre seu território e o ambiente construído. Podemos
considerar que, assim como ocorre na planta da Colônia militar, o ato de delimitar é uma
maneira de tornar um espaço seu, de apropriar-se dele ao distingui-lo dos outros espaços e de
outrem.
40
SEGAUD, Marion. Antropologia do espaço: habitar, fundar, distribuir, transformar. São Paulo: Edições Sesc
São Paulo, 2016, p. 138-141.
41
MACAULAY, David. Construção de uma cidade romana.São Paulo: Martins Fontes. 1989, p. 10-15.
42
Verbonia é uma cidade fictícia: típica cidade romana formada a partir da colonização militar, foi criada pelo
autor (Macaulay) para descrever tal processo. A planta e os desenhos são apenas para ilustrar como seria a
cidade.
Fonte: MACAULAY, 1989, p.10-13.
Para Mumford, as cidades militares de colonização romana, implantadas para servir de
pontos de apoio ao grande império, eram permanentemente guarnecidas de legionários e
muitas vezes de desenvolviam como cidades manufatureiras especializadas e centros
comerciais. Roma deixou suas marcas características numa série de novas colônias – essas
cidades eram talhadas segundo o modelo descrito: tipo axial, modesto em dimensões, simples
no traçado, com suas duas ruas principais que se cruzavam em ângulo reto perto do centro.43
Ter estabelecido essas novas cidades foi um feito social mais valioso do que
quaisquer benefícios conferidos por Roma a si mesma por seus rapaces
monopólios. O que faltava em tamanho às cidades novas, ganhavam elas em
qualidade e, de passagem, em autossuficiência [...], aquelas cidades
poderiam tirar a maior parte dos seus alimentos da região circunvizinha:
assim, mantinham o equilíbrio rural-urbano que lugares maiores, por causa
do seu próprio crescimento, desfaziam.44
Na planta da Colônia Avanhandava (figura 1), pode-se dizer que o Ribeirão Ferreira faz
o papel de cardo e a “Estrada que vai da cidade da Constituição ao Itapura [...]” como
decumanos, dividindo o arraial em quatro bairros, os dois da direita “descortinados” (ou seja,
estavam realizando o processo de desmatar o local, provendo um campo aberto). Ao centro
localiza-se o quartel e na região superior direita o cemitério. Em conjunto à figura 1, o diretor
anexa plantas de edifícios a se construir, que segundo ele são de urgente necessidade:
Para facilitar a prosperidade da povoação desta Colonia; regularizar a
moradia de seus empregados, que ate o presente tem estado mal
acomodados, e firmar o seu Arraial, que por ora heprovisorio e distante do
lugar designado para esse fim duas legoas e meia pelo menos proponho a V.
Exª, na forma do artigo 7º § 1º do Regulamento deste estabelecimento, a
construcção de dois edificios que a meu ver são de urgente necessidade,
43
MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, desenvolvimento e perspectivas. São Paulo: Martins
Fontes, 2ª ed., 1982, p. 229-230.
44
Id., ibid., p.231.
tanto para estabelecer a base da futura villa, como para recurço dos que por
este certão se estão domiciliando no caso de qualquer agressão; cujos
edificiosconstão das duas plantas inclusas e são os seguintes: Primeiro um
quartel [...] Segundo = Dois Cemiterios [...] e capella na parte que for
designada para os catholicos.45
O primeiro edifício a ser mencionado pelo diretor é o quartel, que seria implantado no
centro da colônia ao lado do Ribeirão Ferreira. Novamente vê-se um desenho simples e
regular, porém muito bem detalhado e com clara inspiração nos forums romanos: ocupando
uma quadra inteira, o quartel tem 400 palmos em cada face por 40 palmos de largura,46deveria
ser construído com madeira de lei “que facilita mais sua promptificação eoffereça duração
maior de 50 annos; cuja construcção é orçada em 16:000$000 réis em seis annos de
serviço”.47 Com duas portas, a entrada principal possivelmente volta-se para a rua/eixo
(decumanos) ao sul, e a outra para o norte. Apresenta em seu perímetro interno um pátio
avarandado “que facilita poder se percorrer todo o quadro sem expor se ao tempo”.48
O quartel teria acomodação para: residência do diretor, ajudante do diretor, capelão,
cirurgião, escrivão, agência de correio, secretaria, doze colonos de 1ª classe, duas enfermarias,
um laboratório farmacêutico, duas escolas de 1as letras, um armazém, duas prisões(para
homens e mulheres), oficinas, latrinas e cozinha. Indicado para posicionar-se no centro da
colônia, o quartel, por razões militares e sociais, era considerado o lugar mais importante.
45
AVANHANDAVA. Officios Diversos. Caixa C0820, 1859-64, manuscrito, Arquivo Público do Estado de São
Paulo, 5 de julho de 1861.
46
Caso utilizarmos a medida linear de 0,22m ou 22cm equivalente a 1 palmo: o quartel teria 88x88m (medida
inteira da quadra) por 8,8m de largura. A rua (100 palmos) teria aproximadamente 22m.
47
AVANHANDAVA, Officios Diversos, opus cit. - Planta do Quartel, 5 de julho de 1861.
48
Idem.
Figura 4: Planta da Capela e cemitérios da Colônia militar Avanhandava, 5 de julho de 1861.
A segunda planta a ser anexada é exposta na figura 4 – dois cemitérios e uma capela
ocupando uma quadra de 400 por 400 palmos. É interessante notarmos três aspectos
principais. O primeiro é atentarmos para a localização do cemitério na figura 1 – longe do
centro, na região mais afastada possível, mas ainda assim dentro do perímetro delimitado pelo
plano. Isso acontece devido estar em voga diretrizes de um urbanismo sanitário, que teve
início na Europa no final do século XVIII, baseado principalmente em teorias provenientes
das áreas médicas como a teoria dos miasmas, ou miasmática. Para Mastromauro, tais
conceitos compreendem, de forma básica, em limpar o espaço urbano – a ideia de desinfetar,
praticar uma higiene desodorizante, pretendendo proteger o ar das emanações e ‘miasmas’,
fedores, que provêm dos corpos pútridos (também multidões, hospitais, pessoas doentes, solos
úmidos, pântanos, habitações mal construídas, etc).
Na referida teoria, quando um solo era denunciado como insalubre
(perigoso) ele devia logo ser drenado a fim de torná-lo inofensivo para os
seus arredores. As ruas deveriam ser pavimentadas para isolar a sujeira e
para que a lavagem do solo fosse facilitada. Limpar significa muito mais do
que simplesmente lavar, drenar. O ideal era assegurar o escoamento, a
evacuação, a eliminação da imundice.49
O segundo aspecto a se destacar é a divisão em duas partes do cemitério: um protestante
ao norte, e outro católico ao sul. Lembremos então do conjunto de cemitérios na cidade de
49
MASTROMAURO, Giovana C. Surtos epidêmicos, teoria miasmática e teoria bacteriológica. In: Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História, São Paulo, jul. 2011, p. 3.
São Paulo, vizinhos entre si: Cemitério da Consolação (1858), dos Protestantes (aprox. 1862)
e da Ordem Terceira do Carmo (1868) – que tiveram seus locais de implantação definidos
pelo engenheiro alemão, protestante, Carlos Rath50. Ora, percebe-se aqui, portanto, a
contemporaneidade das ideias expressas na planta e pretendidas pelo diretor da Colônia
Avanhandava – esta que ficava aproximadamente a 12 dias de viagem saindo de Piracicaba,
por meio de canoas, através do rio Tietê51 (imaginemos assim, a distância até a capital). Dessa
forma, frisamos a excelência e contemporaneidade na elaboração do desenho em que já havia
a intenção de se construir um cemitério dividido entre os católicos e os acatólicos, ou
protestantes.
O terceiro aspecto a ser apontado é a necessidade da construção da capela: época em que o
Estado imperial e Igreja eram um ente só. A religião católica estava presente na cultura dos
brasileiros, e numa região, que era preconceituosamente considerada “selvagem”, acreditava-
se no conceito que a Igreja, juntamente com o trabalho dos militares, traria os povos indígenas
para a “civilização”. A figura do padre, ou do capelão-alferes como é no caso de uma colônia
militar, se identificava com a população e seu meio, incluindo atividades políticas e
propriedade de bens. Ficava o capelão responsável por, além de suas funções paroquiais,
ensinar o catolicismo às crianças da colônia, promover as famílias com dedicação sincera,
aconselhar a moral pública e privada, a exatidão dos deveres religiosos aos colonos, o respeito
e a obediência legal e a sociabilidade.
Devido a isso, o segundo edifício a ser indicado pelo diretor da colônia é uma capela
com planta retangular divida em: corpo central (nave única), corredores laterais, duas
sacristias e capela mor. As dimensões indicadas na planta são de 80 palmos de comprimento e
60 palmos de largura, com “altura das beiras” de 20 palmos. Além dos pontos descritos, caso
atentarmos para a região à frente da capela percebe-se um espaço em branco e o símbolo da
cruz. A partir disso podemos estabelecer o seguinte pressuposto: apesar de descrever o
cemitério com 400x400 palmos (dimensão da quadrícula), o diretor ao desenhá-lo faz com
que um dos lados seja menor em comprimento. Dessa forma, talvez, tivesse a intenção de
levantar um cruzeiro defronte à capela (notar o símbolo da cruz na figura 4), criando assim um
adro, ou mesmo um pequeno largo.
50
MATRAGNOLO, Breno H. S. Formas de morrer bem em São Paulo. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) São Paulo, 2013.
51
Este é o tempo que leva o diretor e seu comboio, “que tendo sahido da Cidade da Constituição na tarde de 8 do
corrente mes cheguei a este lugar na manhã de hoje, tendo sido a viagem mais longa do que do costume por
causa [das chuvas].” In: AVANHANDAVA, Officios Diversos, opus cit., 20/02/1860.
Portanto, o objetivo é demonstrar que havia um ideal que estava além de ocupar,
demarcar, vigiar e proteger o território; mas principalmente tendo como meta implantar
estabelecimentos sob um projeto racional, cujas bases parecem vir de colônias militares
romanas. Desde a escolha do local, estrategicamente posicionado, até a elaboração de mapas e
plantas, verifica-se tal desejo. Os documentos aqui brevemente analisados explicitam um
intuito claro de ocupar um espaço que era “desconhecido” para o homem branco, mas não de
qualquer maneira, e para sua criação concorreriam os poderes civis e religiosos, parte de uma
mesma estrutura de poder. A ideia era construir no interior paulista uma cidade planejada,
inicialmente de caráter militar e agrícola, que seria a semente de futuro núcleo civil.
REFERÊNCIAS:
AVANHANDAVA, Officios Diversos. C0820, Annos 1859-1864 (Manuscrito), Arquivo
Público Estado de São Paulo.
BRASIL, Collecção das Leis do Imperio do Brasil de 1858. Tomo XIX, Parte II. Rio de
Janeiro: Typographia Nacional, 1858.
D’OLIVEIRA, José J. M. Plano de uma Colonia Militar no Brasil. In: Revista Trim. de
Historia e Geographia ou Jornal do IHGB. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I. P. da
Costa. Tomo VII. nº 26, julho de 1846, p. 239-255.
JANKE, Leandro Macedo. Território, Nação e Soberania no Império do Brasil. In: Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011.
MACAULAY, David. Construção de uma cidade romana.São Paulo: M. Fontes. 1989.
MASTROMAURO, Giovana C. Surtos epidêmicos, teoria miasmática e teoria
bacteriológica. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História, São Paulo, jul. 2011.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. Do Império do Brasil ao Império do Brasil. In: Faculdade de
Letras da Universidade do Porto. (Org.). Porto: Universidade do Porto, 2004, v. 2.
MELLO, Raul Silveira de. A Epopéia de Antônio João. Aos 100 anos da epopéia militar dos
Dourados. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1969.
OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. O Exército, a circulação e a ocupação.. In: Anais do
39º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, Minas Gerais, G17, 2015.
OURIQUE, Jacques. Colônias e Estradas militares. In: Revista do Exército Brasileiro. Anno
Quarto. Rio de Janeiro: Typ. da Revista do Exercito Brasileiro, 1885.
SOUSA NETO, Manoel F. Planos para o Império: Os planos de viação do Segundo Reinado
(1869-1889). São Paulo: Alameda, 2012.
Introdução
A Polícia Militar do estado do Paraná (PMPR) possui como objetivo primordial o
policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública, integrando o sistema de Segurança
Pública e Defesa Social do Brasil. A PMPR é dividida em seis Comandos Regionais (CRPM),
que abrangem 27 Batalhões (BPM), além das Unidades Especializadas: Batalhão da Polícia de
Trânsito (BPTran), Regimento de Polícia Montada (RPMon), Batalhão da Polícia Militar de
Fronteira, Batalhão da Polícia de Guarda (BPGd) e as Companhias Independentes da Polícia
Militar (CIPM) (SESP-PR - Secretaria da Segurança Pública e Administração Penitenciária,
2019).
O presente trabalho foi realizado em um Batalhão que compõe a PMPR. Os dados aqui
apresentados e analisados são um recorte das entrevistas com integrantes deste Batalhão. Este
texto é parte de uma dissertação de mestrado iniciada no ano de 2018 pelo Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL), tendo como objetivo
principal delinear e analisar as vivências subjetivas de mulheres policiais militares atuantes
em um Batalhão de um município do estado do Paraná.
Para o desenvolvimento desta dissertação, a qual ainda apresenta-se em processo de
coleta de dados, estão sendo realizadas entrevistas individuais de caráter semiestruturado.
Como recorte desta dissertação, aqui traçamos uma linha de análise referente às respostas das
três primeiras participantes da pesquisa, a pergunta primordial à esta análise foi: “o que é ser
uma policial militar?”
A pesquisa está autorizada pelo Comitê de Ética da respectiva universidade em que a
mesma está sendo realizada52, portanto serão utilizados nomes fictícios ao se referir às falas
52
Autorização número: 2.978.926
das entrevistadas. Os nomes escolhidos atribuem-se a mulheres que fizeram parte da história
do militarismo, deixando assim suas marcas.
Os nomes escolhidos foram: Maria Quitéria, conhecida como mulher-soldado, durante
a década de 1820, tornou-se oficialmente a primeira mulher integrante de uma unidade militar
em terras brasileiras (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2019). Levando em conta seu pioneirismo,
seu nome irá condizer à primeira mulher a ter participado desta pesquisa. Joana d’Arc, a qual,
com apenas 16 anos, durante o ano de 1429, utilizando cabelos curtos e trajes considerados
masculinos, foi nomeada pelo rei Carlos VII como comandante do Exército francês, sendo
considerada uma importante personagem histórica para o estado nacional francês (BEZERRA,
2019). E a terceira entrevistada foi denominada como Jovita Feitosa, que, assim como Joana
d’Arc, cortou os cabelos e utilizou de trajes masculinos para integrar o Exército. A brasileira
alistou-se na instituição para que pudesse lutar na Guerra do Paraguai, ocorrida durante o
século XIX. Mesmo ovacionada enquanto heroína, no ano de 1865, foi impedida de lutar na
Guerra do Paraguai pelo Ministro da Guerra devido a sua condição de mulher
(ASSOCIAÇÃO DOS FUNCIONÁRIOS DO BANCO DO NORDESTE DO BRASIL -
AFBNB, 2019)
Metodologicamente, este trabalho foi desenvolvido através de um viés da
Psicodinâmica do Trabalho, abarcando conceitos e noções cunhados pelo teórico Christophe
Dejours.
A Psicodinâmica do Trabalho, campo que começou a ser desenvolvido na década de
1990 por Dejours, compreende-se como “o estudo dos movimentos psicoafetivos gerados pela
evolução dos conflitos intersubjetivos e intrasubjetivos” (DEJOURS, ABDOUCHELI e
JAYET, 2014, p. 19). Esta, abarca concepções de diferentes áreas, como a psicologia,
sociologia e ciências do trabalho, preocupando-se com o campo das relações de trabalho,
dando especial enfoque às vivências voltadas ao sofrimento e ao prazer no contexto de
trabalho e a constituição da identidade do sujeito trabalhador.
Neste sentido, foi realizada uma análise sobre as vivências subjetivas das
participantes desta pesquisa através de seus discursos. No estudo, formou-se uma linha de
análise a partir de dois tópicos que foram denominados “Identidade” e “Reconhecimento
social” onde pode-se notar pontos em comum presentes nos discursos das participantes.
Tais discursos serão apresentados e discutidos mais à frente.
Este estudo também se enquadra no campo denominado Relações de Gênero. De
acordo com a autora Joan Scott (1995), a noção de gênero caracteriza-se a partir de uma
organização social entre os sexos, dando sentindo ao funcionamento das relações sociais
humanas. Esta mesma autora ressalta que há uma íntima relação entre gênero e poder, o
que faz com que o gênero masculino, em muitas ocasiões, seja visto como o portador de
uma forma de dominação, de poder, mesmo que de forma implícita, sendo esse um poder
sucinto que está presente nas formas de cotidiano de um meio social.
Identidade
Tendo como ponto de partida a noção de identidade, relacionamos aqui como esta se
desenvolve pelos discursos das participantes:
Ser policial é você se preocupar não só com você, mas como obrigação... nós
temos a obrigação de zelar pela sociedade, pela segurança, mas não é só
obrigação, a partir do momento em que você entra na corporação, é como se
tomasse conta de você, você sente a necessidade e a vontade de fazer
(JOANA D’ARC, 2018).
Joana d’Arc vê o desempenho de suas funções não apenas como uma obrigação, mas
sente o desejo de executá-las. Este desejo está atrelado a um sentimento de realização
profissional, configurando-se pelo reconhecimento social ao cumprir suas tarefas, ao sentir-se
capaz de executar seu trabalho com êxito, o que pode proporcionar-lhe satisfação. Assim,
buscando este sentimento de realização, a participante encontra-se constituindo sua identidade
profissional.
Nota-se que a fala ressalta uma ideia de atividades gratificantes, que vem através do
zelo com o outro, com a sociedade. Em seu objetivo, o trabalho da Polícia Militar compreende
o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública (SESP-PR, 2019). Tendo em vista
este aspecto, observa-se que Joana d’Arc associa estes objetivos a uma forma de zelar da
sociedade, sendo esta uma atividade que gera um sentimento de gratificação.
Outro ponto que chamou a atenção no diálogo foi a questão da identificação com o
trabalho mesmo nos momentos em que as funções não estão sendo executadas, a qual aparece
no próximo trecho. Percebe-se que a construção de uma identidade profissional faz parte da
constituição de subjetividade desses sujeitos, não havendo uma separação entre estes aspectos,
pois o sujeito se vê como profissional, assim constrói sua identidade em um contexto social.
Neste sentido, Enriquez (1997) aponta que experiências são relacionadas aos modos de
os sujeitos se identificarem aos contextos sociais. Desta forma, levando em conta as condições
de uma sociedade de consumo e individualismo exacerbado, sujeitos estarão expostos às
formas de vida ligadas a um “controle do pensamento, controle da psique, igualmente, um
controle do corpo”. Impondo adaptações do corpo, (ENRIQUEZ, 1997, p. 24), são tais
adaptações que fazem com que o cotidiano dos sujeitos seja voltado, primordialmente, à
produção de capital.
Ainda levando em consideração a questão da identificação com o trabalho, Joana
d’Arc ressalta:
Um assunto que nos chama a atenção no trecho acima é a fala sobre a aposentadoria. A
questão do momento de se aposentar também remete à reconstituição da identidade de um
sujeito, visto que o mesmo irá sofrer modificações em sua forma de vida.
Conforme proposto por Dejours (1993), a identidade de um indivíduo é composta a
partir de suas vivências. Esta constituição subjetiva, a qual também compreende as relações de
trabalho, é notada na fala acima. Considerando Joana d’Arc, ressalta-se o estabelecimento de
uma identidade de um sujeito policial mesmo quando se deixa de ser um. Essa identidade se
mantém pelo fato de que foi constituída a partir de vivências que também envolvem
afetividades nos contextos de vida.
Assim como Dejours (1999) cita, a subjetividade é baseada na afetividade. Dessa
maneira, para a participante, sua constituição subjetiva foi voltada ao ser policial, identidade
essa que será mantida mesmo após seu processo de aposentadoria.
Outro conceito que foi identificado através das falas das participantes foi o de
ressonância simbólica. Levando em conta esta concepção, identificamos um exemplo de
ressonância simbólica presente nas falas de Maria Quitéria:
Então, pelo estresse gerado pelo trabalho, às vezes eu fico até sem fazer xixi,
porque não dá tempo [...], aquela pressão que você tem de ter que segurar a
vontade fisiológica, do teu organismo, para terminar aquele negócio que
você acha que não vai dar tempo. E isso acaba com a tua saúde (MARIA
QUITÉRIA, 2018).
Entretanto, a mesma ainda ressalta que:
Então assim, tem muita gente que chega, “Oi, tudo bem? Eu tenho um
parente policial. Nossa, que moça bonita”. Então, quando vem uma criança,
pede para tirar foto com você e fala que tem o sonho de ser policial, você
fala, “Nossa, cara, ganhei meu dia”, é bem legal, assim [...] Mas é bem
gratificante, é gostoso, é legal (MARIA QUITÉRIA, 2018).
Joana d’Arc, ao mesmo tempo em que descreve suas vivências na Polícia Militar a
partir da necessidade de proteção e zelo à sociedade, também compreende que esta mesma
sociedade, muitas vezes, acaba por desrespeitar policiais militares, o que, para ela, pode ser
um motivo de sofrimento, como sua fala acima destaca.
Ainda considerando esta ideia do preconceito com a profissão de policiais militares,
Maria Quitéria também comenta:
“[...] na nossa sociedade hoje existem, eu acho, 50\50, têm muitas pessoas
que tem aversão à Polícia Militar, infelizmente [...] também têm pessoas que
nem olham na sua cara, que passa, que xinga, que... nariz empinado, mesmo
você falando bom dia” (MARIA QUITÉRIA, 2018).
Neste sentido, é possível observar que essa questão é um ponto em comum entre as
participantes. A queixa em relação ao preconceito na profissão, pode ser tida enquanto uma
vivência causadora do sofrimento patogênico, visto que é um fator que afeta negativamente as
experiências laborais dessas mulheres. Conforme já citado, Dejours (1993) enfatiza que a
constituição subjetiva de um indivíduo é condizente às suas experiências. Ao relatarem o fato
de que as relações de trabalho na polícia militar são perpassadas por questões de preconceito,
as entrevistadas estão ressaltando vivências que causam-lhes desconforto, sendo, portanto,
relatos sobre o sofrimento patogênico.
Além do preconceito relatado para com a profissão de policial militar, uma ideia de
falta de reconhecimento social que esteve presente na fala das três participantes, condiz com o
preconceito em relação às mulheres:
Chegou uma mulher, as vezes a pessoa não respeita tanto, sabe? Acha que a
mulher não vai saber se sobressair em determinada situação, ou fazer a coisa
certa ali. E o parceiro masculino sente preconceito pela falta de força, talvez.
“Ah, vou trabalhar com uma mulher, será que ela vai saber reagir no
momento certo? Ou será que ela vai ter força se precisar algemar uma
pessoa?” (MARIA QUETÉRIA, 2018).
[...] a gente tinha uma tenente mulher, que auxiliava, falava bastante sobre
vestimenta, sobre o fardamento num tamanho não muito apertado [...]
sempre era abordado esse assunto, “Ah, porque vocês vão ver que lá na rua
vocês vão ter um pouco de preconceito, porque infelizmente a nossa
sociedade é machista e tal, então tem que saber lidar com a situação [...]
(MARIA QUITÉRIA, 2018).
[...] às vezes, as pessoas olham uma mulher, elas acham que ela não vai ser
capaz de desempenhar a atividade ali, por ser mulher, dependendo da
situação. [...]Então eu acredito que as pessoas acham sim que as mulheres
não vão desempenhar tão bem as funções quanto os homens (JOANA
D’ARC, 2018).
Sobre esta perspectiva, Schactae (2016, p. 20) ilustra que as instituições militares
“reproduzem um ideal de masculinidade que é vinculado a concepção de honra identificadora
do militar e dessas instituições”. Por este ponto de vista, percebe-se no discurso das
participantes uma queixa em relação às figuras masculinas como modelos predominantes na
instituição.
De acordo com Connel (1995), existem múltiplas formas de masculinidade, sendo,
portanto, masculinidades, que se articulam de acordo com cada local e tempo histórico. Tais
masculinidades sempre estarão intervindo na produção de uma masculinidade hegemônica,
sendo esta relacionada a uma concepção de forma ideal, tendo, consequentemente, mais
visibilidade. Neste sentido há a luta pela hegemonia, “grupos de homens lutam por domínio
através da definição social da masculinidade” (CONNEL, 1995, p. 191).
Tendo em mente o contexto em que o presente estudo se encontra, identifica-se este
ideal de masculinidade, assim como citado por Schactae (2016), como produtor da honra, em
que os homens são heróis, viris, possuidores de poder.
Em contrapartida, destaca-se que “o ideal de masculinidade é o norteador da
construção da identidade institucional, e a presença do sexo feminino rompe com a ordem
estabelecida pela tradição” (SCHACTAE, 2016, p. 20). Ou seja, a instituição que antes
tradicionalmente era voltada ao masculino, mesmo que com a continuação da dominância de
um ideal de uma masculinidade hegemônica, conta com a participação de mulheres em seu
interior, modificando-se e reconstituindo-se constantemente.
É a partir desta lógica, que destacamos este trabalho como compondo-se através do
campo dos estudos de gênero. Como citado no início do texto, a caracterização de gênero
indica uma organização social entre os sexos (SCOTT, 1995). Assim, nos atentamos aos fatos
relatados pelas participantes, identificando que possa haver uma diferenciação na forma em
que os sexos organizam-se na instituição Polícia Militar, dando ênfase a um ideal de
masculinidade. Tal fato foi percebido a partir das concepções que por elas foram
caracterizadas como formas de preconceito.
Algumas considerações
O trabalho apresentado faz parte de uma dissertação de mestrado que está em
andamento. Aqui, desenvolve-se uma linha de análise sobre os tópicos denominados
“Identidade” e “Reconhecimento social”, levando em consideração concepções condizentes
ao campo da Psicodinâmica do Trabalho. Além disso, o trabalho também tratou-se de uma
produção sobre os estudos de gênero, visto que abordou perspectivas sobre como a questão de
gênero é organizada dentro da Polícia Militar, tendo como ponto de partida trechos de
entrevistas.
A partir da análise aqui realizada, foi possível identificar uma dualidade das mulheres
participantes em suas relações de trabalho. Atendendo às vivências subjetivas relatadas nos
discursos, há dois pontos em comum que se tornam muito presente em suas experiências,
sendo um deles o que foi denominado pelas participantes por “orgulho”, tido como a
gratificação, o sentimento de auxílio à sociedade e utilidade. Este ponto encontra-se ligado ao
conceito de identidade (DEJOURS, 1993), visto que está atrelado às formas das entrevistadas
reconhecerem-se em seus contextos de vida, sobretudo em seus contextos laborais.
Em contrapartida, o outro ponto foi denominado por elas como “preconceito”, descrito
como o próprio trabalho de policiais militares e a hostilidade, por parte da sociedade e de
alguns membros da instituição Polícia Militar, em relação às mulheres policias. Este ponto
pode ser identificado como o que foi descrito por Dejours (1999) como sofrimento
patogênico.
Dejours (1999) elabora a noção de que as mais variadas formas de sofrimento podem
estar interligadas, perpassando as vivências de um mesmo sujeito. Ou seja, os sofrimentos
criativo e patogênico podem estar atrelados, havendo uma ambiguidade entre ambos. Tal fato
foi abordado na linha de análise aqui estabelecida, visto que as duas formas de sofrimento
foram ilustradas nos discursos levados em consideração.
Sobre os dados aqui apresentados, cabe ressaltar que puderam ser identificados vários
aspectos da constituição subjetiva de mulheres policiais, compreendendo, dessa forma, que a
identidade das entrevistadas condiz com suas vivências laborais.
Estudos como este possuem relevância no que diz respeito a questão da visibilidade do
trabalho de policiais militares, nesse caso, dando importância às mulheres policiais. Neste
sentido, há a necessidade de aprofundamento de outras pesquisas para que demais fatores que
foram identificados nas falas das participantes possam ser abordados.
Referências
ASSOCIAÇÃO DOS FUNCIONÁRIOS DO BANCO DO NORDESTE DO BRASIL –
AFBNB. A luta da mulher: conheça a jovem Jovita Feitosa, 03/Mar./2018. Disponível em:
http://www.afbnb.com.br/a-luta-da-mulher-conheca-a-jovem-cearense-jovita-feitosa. Acesso
em: 30/Mar./2019.
BEZERRA, J. Joana d’Arc. Toda Matéria: conteúdos escolares, 23/Fev./2018. Disponível
em: https://www.todamateria.com.br/joana-d-arc/. Acesso em: 30/Mar./2019.
CONNEL, R. W. Políticas da masculinidade. Educação e Realidade. v. 20, n. 2, p. 185-206,
1995. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71725/40671.
Acesso em 02/Abr./2019.
DEJOURS, C; ABDOUCHELI, E; JAYET, C. Psicodinâmica do Trabalho: contribuições da
Escola Dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Editora Atlas,
2014.
DEJOURS, C. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
1999.
_________. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho São Paulo: Cortez,
1998.
_________. Por um trabalho, fator de equilíbrio. Revista de Administração de Empresas. v.
33, n. 3, p. 98-104, 1993. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rae/v33n3/a09v33n3.
Acesso em: 01/Abr./2019.
_________. Subjetividade, Trabalho e Ação. Revista Produção. v. 14, n. 3, p. 027-034, 2004.
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ENRIQUEZ, E. O indivíduo preso na armadilha da estrutura estratégica. RAE – Eletrônica.
v.37, n.1, p. 18-29, 1997. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rae/v37n1/a03v37n1.
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MINISTÉRIO DA DEFESA – Exército Brasileiro. Cadete Maria Quitéria – quadro
complementar de oficiais. Disponível em: http://www.eb.mil.br/patronos/-
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SCHACTAE, A. M. “A gloriosa Polícia Militar do Paraná”: masculinidade e identidade
institucional (século XX). In: MOREIRA, R; SCHACTAE, A. M. (Org.). Gênero e
Instituições Armadas. Guarapuava: Editora Unicentro, 2016, p. 17-48.
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. v. 16, n. 2,
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Acesso em: 01/Abr./2019.
SECRETARIA DA SEGURANÇA PÚBLICA E ADMINITRAÇÃO PENITENCIÁRIA –
SESP. Institucional. Disponível em
http://www.pmpr.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=3. Acesso em:
01/Abr./2019
AS “PANTERAS ENTRARAM EM CENA”: A HISTÓRIA SOBRE O INGRESSO DE
MULHERES POLICIAIS MILITARES, NOS JORNAIS DO PARÁ, A PARTIR DA
DÉCADA DE 1980.
Jesiane Calderaro Costa Vale
53
A admissão de mulheres policiais foi instituída por meio do Decreto Estadual nº 2.030/1981, pelo então
governador Alacid da Silva Nunes, em 15/12/1981. Entretanto, o ingresso de policiais do pelotão feminino
ocorreu somente em 1º de fevereiro de 1982.
54
Jornal Diário do Pará, de 26 de janeiro de 1992, p. B-7
de que “mesmo sob o contexto desfavorável do autoritarismo dos governos militares
(1964-84), as mulheres ‘entraram em cena’ e se tornaram visíveis ocupando espaços
sociais e políticos”; se descobriram como sujeitos ativos, de modo que as imagens de
passividade, confinamento do lar, ociosidade, deram lugar à múltiplas estratégias e
resistências criadas pelas mulheres para o enfrentamento no cotidiano, inclusive em
âmbito dos quartéis. (MATOS, 2013, p.6)
O mundo dos quartéis, segundo Jaqueline Muniz (1999), era idealizado como
“terra de machos” e a atuação policial militar nas ruas, estava registrada sob o signo da
bravura, da frieza e do heroísmo, “um tipo de realidade que não se deixa comover pelas
virtudes culturais atribuídas ao signo feminino”.
Por essa visão estereotipada e conservadora, em que o fazer feminino era sempre
posto à prova, disseminava-se a ideia de que a mulher seria inadequada para as tarefas
de policiamento, estabelecendo para ela serviços burocráticos, em âmbito interno, que
não os da atividade de rua propriamente, e deveria ser desenvolvido para um público
considerado diferenciado, no que se referia a atenção do policial masculino:
“menores”56 delinquentes ou abandonados, senhoras gestantes, parturientes, pessoas
idosas, indigentes, e do sexo feminino em geral.
55
Extraído em parte de um capítulo de minha tese de doutorado, intitulada: DA ACADEMIA DE POLÍCIA
MILITAR AO IESP: a Formação de oficiais da Polícia Militar do Pará (1988-2014), submetida ao Programa de
Pós-graduação em História Social da Amazônia, da Universidade Federal do Pará, 2018.
56
O termo “menor delinquente” ou “menor abandonado” ainda era utilizado no regulamento, posteriormente, com o
advento do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1992, foi considerado pejorativo e de uso inadequado pela
sociedade brasileira, passando a criança e o adolescente a serem considerados como “sujeitos de direitos” e, caso
pratiquem algum ato infracional, sejam tratados como “sujeitos em conflito com a lei” ou por “autor de ato
infracional”.
telefonia, arquivo e recepção. Essa relação das atividades previstas57 para as mulheres
policiais, via de regra, era associada à natureza feminina, reafirmando estereótipos de
gênero e a vocação assistencialista, como se pode constatar na matéria jornalística
abaixo:
Máurea Leite (2013), em sua dissertação de mestrado sobre ‘as trajetórias das
primeiras mulheres policiais no estado do Pará’, analisa a existência de preconceitos
vivenciados pelas policiais de sua pesquisa, devido à sua condição de mulher, à medida
que as relegavam à função administrativa. Segundo a pesquisadora, para essas primeiras
policiais “[...] estar na área administrativa, era estar na obscuridade, mesmo quando se
57
Regulamento da Companhia de Polícia Militar Feminina (RCPMF), assinado pelo então comandante geral da
PMPA, coronel Artagnan Barbosa de Amorim Sobrinho, com cópia entregue a cada uma integrante do “Pelotão
Feminino”, em 25/03/1982. p. 2. (Cópia cedida pela Tenente Neuza Carvalho, integrante do primeiro pelotão da
PMPA, hoje na reserva).
58
Jornal Diário do Pará, de 17 jan. 1988, p. B-7.
exercia função de comando, almoxarife, chefe da Reserva de Armamento,
aprovisionadora [...] áreas imprescindíveis na execução do policiamento”. (LEITE,
2013, p.48-49)
Neste sentido, Leite analisa o preconceito, por considerar que nessa instituição
atribuía-se maior valor simbólico profissional a quem dedicava a sua atuação no campo
operacional, na execução da atividade-fim.
O discurso social mais amplo sobre a mulher como ‘sexo frágil’, ‘delicada’ e
‘sensível’, era extremamente engendrado que reverberava de modo igual à mulher
policial militar; mostrando-se fortemente arraigado na cultura organizacional. Tanto,
59
A questão do Cuidado ou a emergência do Care – palavra de origem inglesa que designa cuidado, que se
consagrou ao tornar-se uma ocupação ou atividade profissional, que passou a ser remunerada, diferenciando-se
do trabalho doméstico, que é gratuito. Ver: HIRATA, Helena; GUIMARÃES, Nadya. Cuidado e cuidadoras: o
trabalho de care no Brasil, França e Japão. Revista de Sociologia e Antropologia, v.1, n.1, 2011. p.156.
60
O conceito de Habitus revela a força da estrutura social presente nas ações individuais e a tendência do sujeito
em reproduzi-las, por terem se tornado práticas sociais incorporadas. Ver: BOURDIEU, Pierre. O Poder
Simbólico. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
que no ano em que a Polícia Feminina do Pará completava dez anos de fundação, depois
de centenas de atuações policiais diversificadas, o articulista da coluna ‘Notícias da
Polícia Militar ’, que escrevia em nome da 5ª seção do Estado Maior da corporação,
enalteceu as atividades desenvolvidas pela unidade policial, ainda sob a mesma lente
conservadora de anos atrás, acerca da delicadeza feminina, destacando a presença
“graciosa e altiva” das policiais, “as jovens milicianas ou Panteras”, “a graça e a
beleza da policial militar feminina”, conduta que agradava a sociedade paraense.
Ainda nesse campo, a ideia difundida era de que a presença feminina poderia
possibilitar maior cuidado policial com o ser humano, mais disciplina, menos corrupção,
mais sensibilidade, simpatia e capacidade de escuta. Novamente atributos que
reafirmavam estereótipos e definiam o território doméstico para a mulher policial
militar.
Celina D’Araújo (2004) refere que a relação da mulher com a vida militar esteve
por muito tempo associada a seu papel de esposa, e que, com a emergência de um
conjunto de novos direitos, “a partir de 1980, entre eles, o de a mulher poder escolher
profissões tradicionalmente tidas como masculinas, abriram-se as portas da caserna para
as mulheres” (D’ARAUJO, 2004. p. 442).
62
Jornal Diário do Pará, “Notícias da PM” de 30 de outubro de 1988, B-7.
ao treinamento, à disciplina requerida, e tudo mais que estava posto na rotina
acadêmica, tendo por finalidade a preparação da liderança, das futuras comandantes.
Com a chegada das três novas oficiais Maria do Carmo, Susy e Léa, no Pará, a
proposta era promover modificações, no tocante aos tipos de serviços e superar as
dificuldades na condição desigual em que a policial se encontrava, a despeito de ser uma
Instituição cujo lócus estava demarcado, em suas ambiguidades, pela lógica de
subordinação da mulher, com impossibilidade de realizar funções de comando sob a
justificativa da ‘falta’ de força física ou da sua “fragilidade”, visando ratificar a presença da
mulher policial militar em suas competências.
No decorrer dos anos, o trabalho policial tradicionalmente visto como uma tarefa
eminentemente masculina, teve por meio da inserção de mulheres nos quartéis a introdução
de uma outra dinâmica nas relações interpessoais, intra e intercírculos, provocando
reflexões, adaptações e mudanças, inclusive nas diretrizes e regulamentos institucionais e no
âmbito da caserna, não havendo na atualidade, na Policia Militar do Pará, nenhum aspecto,
cargo, posto, unidade operacional ou função, que haja restrição para a participação da
mulher policial militar.
REFERÊNCIAS
______. O poder simbólico. Tradução Fernando Thomaz. 14ª edição. Rio de Janeiro-
RJ: Bertrand Brasil, 2010.
MATOS, Maria Izilda Santos de. História das mulheres e das relações de gênero:
campo historiográfico trajetória e perspectivas. Mandrágora, v.19. n. 19, 2013.
MOREIRA, Rosemeri. “Entre o escudo de Minerva e o manto de Penélope”: a
inclusão de mulheres na Policia Militar do Estado do Paraná (1975-1981). Dissertação
(Mestrado em História). Universidade de Maringá, 2007.
MUNIZ, Jacqueline. Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser. Cultura e cotidiano
da polícia militar do Estado do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciência Política) –
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.
______. Polícia e gênero: participação e perfil das polícias femininas nas PMS
brasileiras. Revista Gênero, Niterói, v. 5, n.1, 2004.
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VIDA A BORDO: COSTUMES E HIERARQUIA NA CANHONEIRA GUARANY –
AMAZÔNIA (1885-1900)
I. INTRODUÇÃO
O texto que se apresenta tem a finalidade de trazer ao leitor uma reflexão acerca da
hierarquia da alimentação na Marinha de Guerra a Partir da Canhoneira Guarani, onde retrata
os conflitos culturais entre oficiais e praças que faziam parte do mesmo local de trabalho. O
interesse investigativo pela temática partiu das observações vivenciadas na Marinha do Brasil
em 2014. Na Estação Radiogoniométrica (ERMBE), que fica localizada na Avenida Augusto
Montenegro Nº1766 – Nova Marambaia, Belém-Pa. Onde o autor da pesquisa passou por uma
experiência de um ano. A observação empírica no local de trabalho possibilitou perceber a
hierarquia na alimentação no que tange a um conflito cultural. Sendo assim o objetivo dessa
pesquisa e me aprofundar sobre este assunto, porem a experiência ali adquirida serviu como
base para que minha curiosidade para que ficasse mais aguçada à respeito desse assunto. Além
de ser uma área pouco pesquisada no ramo historiográfico, a questão da hierarquia na
alimentação é um assunto no qual abre um leque de possibilidades de problemáticas, uma vez
que a alimentação é nossa principal aliada para que possamos trabalhar de maneira eficaz em
qualquer ramo ou sociedade. De 1885 a 1900, irei trabalhar com os livros de bordos com as
seguintes perguntas em minha mente: “quem come tal alimento? e por que come este
alimento?”.
Utilizaremos os Livros de Bordo da Canhoneira Guarany, uma embarcação na qual
recebeu esse nome em homenagem a esta raça de índios que habitam na América do Sul e
parte dessa população encontra-se em território brasileiro. Em 18 de setembro de 1879 foi
determinada sua construção no Arsenal da Marinha da Bahia. Algumas características da
Canhoneira: “dimensão de 35.80m de comprimento, 7.90 m de boca, 2,56 m de pontal e 1.75
m de calado. Tinha a propulsão de 2 maquinas gerando 280 hp, acionando 2 hélices.
Graduando do 6° período do curso de Licenciatura em Historia da Universidade Federal do Pará (UFPA) E-
mail: libaasc@gmail.com
Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense – Professor Adjunto da Faculdade de História
e do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Pará (UFPA). Autor da Tese de
Doutorado “A construção da República no Pará (1886-1897)” e do livro “O alvorecer da República no Pará
(1886-1897)” – (Belém: Editora Açaí, 2008). E-mail: wgaia@ufpa.br
Velocidade de 8 nós. Possuía um armamento de 1 canhão de calibre 32 e duas metralhadoras
de 25mm”. No dia 01 de agosto de 1884 foi incorporado a Armada e em 1904 teve sua baixa
da armada64
Como principal referência metodológica utilizou a noção de paradigma indiciário de
Carlo Ginzburg65 para investigar as minúcias dos documentos, a fim de elucidar os eventos já
citados. Em diversas ocasiões e práticas da historiografia, desde suas origens, foi comparada
a atividades que necessitam da análise de indícios para tecer explicações.Exemplos dessas
atividades são: a medicina, a investigação criminal, a crítica de artes plásticas, a psicanálise,
entre outras. O responsável por sistematizar esse tipo de saber no qual é utilizado em várias
áreas foi o italiano Carlo Ginzburg, que cunhou e expressão “paradigma indiciário”66 em um
ensaio intitulado Spie. Radici di un paradigma indiziario.
Assim como um médico analisa os sinais da patologia que o corpo apresenta para um
diagnóstico mais eficaz, como por exemplo, as dores no corpo, febre, hematomas ou inchaços,
utilizaremos os sinais encontrados nas documentações para esclarecer as questões nas quais
estamos querendo responder na pesquisa.
Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições, ele aprendeu a
reconstruir as formas e movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama,
ramos quebrados, bolotas de estercos, tufos de pêlos, plumas emaranhadas, odores
estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais
como fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez
fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas.
(GINZBURG, Carlo. 2002, p. 151)
Para a história, ou ciência da história, tal paradigma é imperativo, haja vista que o
objeto de estudo do historiador é o passado. E, sendo passado, não há como acessá-lo
diretamente, só há como tangenciá-lo por meio daquilo que nos ficou, dos “restos” desse
passado. Desta feita, deste modo, a história é um sabe, ou uma ciência, indireto. Nos livros de
quartos não está explicitamente escrito o tipo de alimentação que oficiais e praças comiam a
bordo. Porém, é possível fazer um mapeamento de diferentes tipos de alimentação, os quais
são possíveis fazer questionamentos com a finalidade de saber quem comia tal alimento e por
que esse alimento era submetido apenas a uma parte da tropa (oficiais)?
64
Disponível em: <www.naval.com.br>. Acessado em 13/08/2019.
65
Carlo Ginzburg é um historiador italiano, conhecido por ser um dos pioneiros no estudo da micro-história.
66
(Sinais: raízes de um paradigma indiciário), publicado na coletânea Crisi della ragione, organizada por Aldo
Gargani, que saiu pela editora Einaudi no ano de 1979.
As fontes nas quais irei utilizar são os livros de quartos da Canhoneira Guarani e
jornais periódicos da época. As documentações antigas que possuem uma data, local e um
contexto histórico, podem ser utilizadas como fonte, são vestígios historiográficos que contém
informações de determinado período. Em minha pesquisa irei utilizar os jornais e os livros de
quartos. “O abnegado historiador encanta-se ao ler os testemunhos de pessoas do passado, ao
perceber seus pontos de vista, seus sofrimentos, suas lutas cotidianas” (Bacellar, 2006, p.25).
O que nos interessa nos jornais são os preços dos produtos alimentícios que vinham expostos
nos classificados, assim, cruzando as informações com os alimentos encontrados nos livros de
bordo da Canhoneira Guarani.
O cruzamento das fontes será necessário para a seguinte questão, fazer um
comparativo de preço entre produtos considerados de “primeira linha” e produtos de
qualidades mais baixa, assim fazendo um diagnóstico da alimentação feita pelos praças e
oficiais da embarcação.
Os livros de bordo eram escritos por um Oficial de serviço que estava de plantão, os
oficiais de serviço deviam anotar os fatos mais importantes nos “livros de quarto”, uma vez
que os dias se dividiam em seis períodos de quatro horas, os chamados quartos. Cada oficial
escrevia aquilo que achava mais importante, por isso os livros se diferenciavam de acordo
com os oficiais de serviço. É possível achar várias informações nesse tipo de documentação,
desde o tempo que fazia em certo dia ao tipo de alimentação os quais eram adquiridos pela
embarcação, conforme o autor:
Sabe-se que, a relação de praças e oficiais não foi nada amistosa no decorrer da
história, pois essa relação foi marcada pelo racismo e conflitos culturais que ocorreram de
forma acentuada na virada do século XIX para o XX. A hierarquia militar é a base da
organização das Forças Armadas, atualmente a classificação hierárquica não é igual a do
século XIX. A seguir a Tabela 1 irá mostrar o quadro da Armada, o antes e o pós 1890, pois
nesse período a hierarquia da Marinha de Guerra sofreu alterações.
As informações nos livros de bordo eram diversificadas, onde cada oficial de serviço
escrevia aquilo que os mesmos achavam mais importante em seus respectivos quartos de
serviços.
Os Livros de Bordo eram escritos por oficiais para serem lidos por outros oficiais,
pois nesse período o analfabetismo no Brasil era alarmante, logo, apenas parte dos oficiais da
armada possuíam o saber de ler e escrever, sendo assim, os praças não tinham acesso aos
Livros de Bordo das embarcações da Armada, nem possuíam o acesso as leis que vigoravam
no início da República Brasileira.
67
Almeida, Silvia Capanema P. de Almeida: Professora adjunta na Universidade de Paris 13-Nord desde 2010 e
doutora em história pela École des Hautes Études em Sciences Sociales, EHESS, Paris (2009).
68
Arquivo Nacional. Série Marinha. IVM 1141. Livro de Bordo da Canhoneira Guarany. 28 de julho de 1897.
Em resposta às mobilizações populares, foi criada em 1915 a Liga Brasileira Contra
o Analfabetismo, regulamentada em 07 de setembro com o lema: “Combater o
analfabetismo é dever de honra de todo brasileiro”. A Liga lutou pela
obrigatoriedade do ensino primário e pelo objetivo de alcançar um país sem
analfabetismo em 7 anos, ou seja, lançou a meta de chegar ao centenário da
independência livre do analfabetismo. Freire (1989) explica que os grandes avanços
desta campanha contra o analfabetismo se deram mais em termos qualitativos do que
quantitativos, fazendo com que o debate em torno do analfabetismo adquirisse
grande importância entre a população brasileira. Quanto aos resultados, a redução foi
um decréscimo anual de 5%, conseguindo atingir em 1921 uma taxa de 65% de
analfabetos. (BRAGA. 2017. P.36)69
BRAGA, Ana Carolina: Mestre em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
69
Filho”, Campus de Araraquara – SP, na linha de pesquisa Teorias Pedagógicas,Trabalho Educativo e Sociedade,
com ênfase da pesquisa em alfabetismo, alfabetização de jovens e adultos, programas e políticas públicas de
educação de jovens e adultos.
Foram utilizados dois jornais periódicos, sendo estes, com mais de uma edição, para
esse balanceamento de preços, os quais eram divulgados nos classificados pelos proprietários
de armazéns. Os jornais foram: O NORTE (PA)70, A REPÚBLICA (PA)71. Uma curiosidade
sobre o Vinho do Porto na qual encontrei nesses jornais, é que eles não eram comercializados
como o restante dos alimentos da Tabela 2, por isso não encontrei seu preço, o produto tinha
uma peculiaridade em relação aos demais produtos, só o encontrava para comércio nas pautas
de leilão. Como por exemplo:
Por um longo período é possível encontrar esse tipo de evento sendo divulgado por
jornais, conclui-se que, o Vinho do Porto não era um produto popular, pois era comercializado
no correr do martello, como vemos no anuncio. Isso deixa claros os locais onde oficiais
faziam presença em Belém. Diferente do Vinho, a aguardente era facilmente encontrada em
pequenas mercearias e armazéns pela cidade. Assim como a cachaça, a farinha de mandioca
era um produto facilmente localizado pelas tabernas mais populares, pois a população
amazônica tem em suas raízes essa herança cultural vinda das sociedades indígenas as quais
eram bastante expressivas na região.
É válido ressaltar o tipo de alimentação feita na região amazônica no período em
questão. Pois, a mestiçagem se fez muito presente na alimentação, assim como na cultura. “A
pesquisa revelou que, ao contrário do que se pensa, a comida regional que hoje se entende por
típica é fruto de mestiçagens ocorridas ao longo do tempo” (MACÊDO. 2016. p.4) 72. É
importante ressaltar que, a identidade da culinária paraense só foi ganhar força no imaginário
paraense a partir dos anos 40, do século XX, quando a valorização dos pratos regionais
começam a ganharum valor na região. Ou seja, no inicio do século XX, a sociedade paraense
ainda não possuíam ciência sobre “pratos típicos” ou algo do tipo em suas refeições.
70
O NORTE (PA), 09 de Outubro de 1908, edição 126, “Factos Diversos”. Disponível em: <bndigital.bn.gov>.
Acessado em 21/08/2019.
71
A REPÚBLICA (PA), 09 de Outubro de 1908, edição 807, “Factos Diversos”. Disponível em:
<bndigital.bn.gov>. Acessado em 21/08/2019.
72
MACÊDO, Sidiana da ConsolaçãoFerreira de: Professora adjunta da Faculdade Federal do Pará do Campus de
Ananindeua. Doutora em História Social da Amazônia pelo Programa de Pós-Graduação em Historia Social da
Amazônia da Universidade Federal do Pará. Com a tese intitulada “A cozinha mestiça. Uma historia da
alimentação da alimentação em Belém. (Fins do século XIX a meados do século XX).
A alimentação nas Forças Armadas era precária no inicio do século XX, essa baixa
qualidade nos alimentos irá permanecer por um bom tempo nos órgãos militares brasileiros.
Partindo desse pressuposto, afirmo que, em geral a alimentação do Corpo da Armada não era
excelente, mas analisando esses produtos, podemos dizer que apesar da alimentação não ser
de qualidade, havia certa seleção desses alimentos quando chegava o momento da distribuição
dos mesmos dentro do órgão militar. Pois, o número de praças que adquiriam patologias era
discrepante quando comparados com o número de oficiais doentes. Almeida irá trabalhar
justamente com esses dados em sua pesquisa Corpo, saúde e alimentação na Marinha de
Guerra brasileira no período pós-abolição, 1890-1910, de marujos doentes devido a má
alimentação feita na época.
Um fator bastante intrigante na qual me deparei analisando os Livros de Bordo foi a
arrecadação do Vinho do Porto e da Aguardente pela tripulação, de um lado temosos oficiais,
uma classe mais erudita, na qual se possuía um nível de intelecto mais elevado, e do outro
lado temos os praças, uma cultura totalmente diferente, onde os mesmos vinham de regiões
precárias do Brasil em busca de uma melhoria financeira, e acabavam aflitos pelos baixos
soldos da época. O vinho e a cachaça, elementos os quais ratificam essa diferença na forma de
alimentação dos militares de maneira clara. É claro que não devemos impor que oficiais não
tomavam aguardente, ou que praças não bebiam um bom vinho, porém, é certo que na maioria
dos casoso sistema cultural falava mais alto.
Oliveira73, Em seu trabalho, irá focar na alimentação da Força Expedicionária
Brasileira durante a Campanha da Itália na Segunda Guerra Mundial em 1943 a 1945. Na
relação entre Brasile EUA referentes a alimentação das tropas brasileiras além mar. O autor
irá expor a precariedade da alimentação dos militares brasileiros nesse recorte temporal, antes
deles partirem para a guerra a alimentação era péssima, e com isso os militares brasileiros
ficavam se perguntando se as coisas poderiam piorar quando partissem para Itália. Na página
128 Dennison escreve uma citação de José AlfioPiason, em um Depoimento dos Oficiais da
Reserva sobre a FEB, onde o mesmo dizia:
73
OLIVEIRA, Dennison de: Nasceu em 1964 no Rio de Janeiro. É professor Titular do Departamento de
Historia da UFPR. Bacharel e Licenciado em História (UFPR, 1987), Mestre em Ciências Política (UNICAMP,
1990), Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP, 1995), Pós-Doutor em Estudos Estratégicos (INEST/UFF,
2014).
os arranchados, por força dos regulamentos... mas tendo meios outros de
manutenção.... apesar de deverem comer no quartel... preferiam fazê-lo em pensões
ou bares... (PIASON. 1950. p.82 apud OLIVEIRA, p.128, 2015)
Achei válido dar esse salto para década de 40 pelo seguinte fato, tratando-se de
alimentação, baseando-me nos estudos de Oliveira, constato através de depoimentos de ex-
combatentes que, a alimentação era de baixíssimas qualidades, ou seja, voltando para o inicio
do século XX, não há duvidas quanto à procedência alimentar dos militares desse período.
Arquivo Nacional. Série Marinha. IVM 1141. Livro de Bordo da Canhoneira Guarany. 1897.
Arquivo Nacional. Série Marinha. IVM 2353. Livro de Bordo da Canhoneira Guarany.1899.
Arquivo Nacional. Série Marinha. IVM 2353. Livro de Bordo da Canhoneira Guarany.1900.
Jornais Periódicos:
O NORTE (PA) 09 de Janeiro de 1908, edição 226, “Factos Diversos”. Disponível em:
<bndigital.bn.gov>. Acessado em 21/08/2019.
O NORTE (PA) 09 de Outubro de 1908, edição 219, “Factos Diversos”. Disponível em:
<http://www.bndigital.bn.gov>. Acessado em 21/08/2019.
V. REFEÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Uso e mau uso dos arquivos, In: Fontes históricas.
São Paulo: Contexto; 2006.
INTRODUÇÃO
As vantagens de se trabalhar em um acervo, como o Centro de Memória da Amazônia
localizado em Belém do Pará é justamente ter a oportunidade direta de se confrontar com
várias documentações que possibilitariam inúmeras pesquisas em áreas da sociologia, história,
direito, geografia, antropologia, dentre outras. O bolsista tem a responsabilidade de trabalhar
na catalogação destes documentos, então se ele optar por uma pesquisa que inclua a
documentação que ele possui constante acesso facilitará as etapas de seu trabalho.
A ideia não é falar desde a origem, já que ainda não se tem um estudo sobre a Justiça
Militar do Pará, como ela se deu ou por que decidiram criar este Órgão, além da ausência de
trabalhos sobre os crimes existentes neste acervo, têm- se estudos dessa Justiça Militar da
União ligada às forças armadas.
A Justiça Militar no Brasil veio a ser uma das primeiras formas legais que se tornou
realidade com a chegada da família real portuguesa em 1808, como analisa Souza & Silva
(2016), mas o seu histórico é longo e remete, de acordo com Univaldo Corrêa74, certamente
com a criação do Estado no mundo antigo, também consoante ao seu raciocínio, esta trajetória
se perde na história por ganhar muitos aspectos e significações.
74
Retirado da dissertação de mestrado pela Universidade Federal de Santa Catarina no ano de 1991. Disponível:
https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/106320
Utilizando de seu artigo foi possível desenvolver uma discussão sobre como os
aspectos dessa temática pode mudar e relação aos períodos de transições históricas, como no
caso dele, o estabelecimento dessa ordem no Brasil. Em seu artigo fala sobre a transgressão e
esse conceito foi de fundamental importância para o bom andamento do trabalho, visto que
foram necessários o estabelecimento de diferenças entre transgressão e o crime. Para Lemos
(2012), a transgressão seria a “infração relacionada com o serviço, punida facultativamente
em instância administrativa”75, portanto ela seria a prática que estaria contra o regulamento e
se resolveria apenas na instituição militar.
[...] a intolerância com a transgressão deve ser encarada como característica de uma
tropa bem disciplinada, adestrada, treinada para situações que evidenciam a
importância da minimização de riscos e margens de erro por parte de seu efetivo.
Não à toa cada Força possui seu próprio meio de tratar as transgressões internas,
aplicando punições mais específicas e admitindo a concorrência entre situações
irregulares, passíveis da correspondente apenação.76
Assim a Polícia Militar do Pará, parte do objeto desta pesquisa, deve estabelecer suas
normas, de forma a seguir um conjunto de necessidades que permearão a estrutura a
instituição. De forma diferente será o tratamento do crime, visto que ele está inscrito em um
código penal que está além da instituição.
[...] o crime — de modo geral, qualquer conduta que transgrida as prescrições do
Código Penal, punida necessariamente pelo Estado através da justiça penal — pode
ser punido com reclusão ou detenção e/ou multa. O crime militar, em sua definição
mais genérica, é a conduta tipificada no Código Penal Militar. [...]77
Na pesquisa, os usos dos conceitos de crime e transgressão foram relembrados porque, apesar
de possuírem significados diferentes, em algum momento se encontram de tal forma que se
confundiram. Não somente com os conceitos Renato Lemos irá contribuir, mas a sua
experiência e trabalhos foram por vezes solicitados para esta pesquisa. Outro caráter
apresentado por Lemos (2012) é o tipo de crime, sendo ele propriamente ou impropriamente
militar. O primeiro, de acordo com o historiador, são os crimes que apenas podem ser
cometidos pelo militar, e ele responderá a uma lei especifica para o trato jurídico das questões
75
LEMOS, Renato Luís do Couto Neto e. A Justiça Militar e a implantação da ordem republicana no Brasil.
Topoi, v. 13, n. 24, jan.-jun. 2012, p. 63. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/topoi/v13n24/1518-3319-
topoi-13-24-00060.pdf
76
OLYMPIO, Cleber. Crime militar, transgressão disciplinar e a dupla incidência punitiva. In: Revista dos
Tribunais. RT. Vol. 960, 2015.
77
Lemos (2012, p. 63).
militares. Lembrando que o historiador possui base referente à discussão da Justiça Militar da
União, que está responsável decidir, em termos, os crimes das forças armadas, no Brasil como
um todo. Por mais que ele trabalhe com esse objeto em termos nacionais, sua perspectiva foi
necessária para o estudo da instituição militar do Estado do Pará, já que ainda não possui um
debate próprio.
A definição do “crime impropriamente militar” é o caminho por onde passa a
instrumentalização política da Justiça Militar. Trata-se de uma operação conceitual
pautada por variáveis cuja percepção é extremamente plástica: “anormalidade da
época ou do tempo em que são cometidos” uma das mais ilustrativas circunstâncias
apontadas para caracterizar essa categoria de crime.78
Quem vai trabalhar também com objeto desta pesquisa é a Adriana Barreto Souza, doutora em
história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, ganhou o Prêmio Arquivo Nacional de
Pesquisa com a dissertação de mestrado “O exército na consolidação do Império: um estudo
histórico sobre a política militar conservadora”. Da mesma forma como Renato Lemos será
trabalhado na investigação dessa temática, as leituras de Adriana Souza foram solicitadas
também em vários pontos. Juntamente com Adriana Souza no debate, a historiadora Doutora
Ângela Moreira Domingues, atual vice-coordenadora do PPHPBC e editora da Revista
Estudos Históricos.
Em “A organização da Justiça Militar no Brasil: Império e República” 79, publicada pela
Revista Estudos históricos, Souza e Silva trabalham a trajetória dessa Justiça desde o império
até a República e no início de seu artigo, discutem como a abordagem histórica ainda é pouco
discutida, sendo a temática trabalhada mais na área do direito ou dos integrantes do foro
militar.
Não há um estudo sistematizado que acompanhe a história institucional da justiça
militar, e que dê conta de suas particularidades, tanto com relação à sua formalização
normativa, quanto com relação à sua atuação pragmática. No caso da história do
Brasil Império, podemos dizer que se trata de um terreno inexplorado. No caso do
Brasil República, os estudos vinculam-se mais à sua atuação durante períodos
autoritários, circunscritos ao seu desempenho como foro político (Arquidiocese de
São Paulo, 1985; Coitinho, 2012; D’Araujo, 2010; Lemos, 2004 e 2012; Mattos,
2002; Maciel, 2003; Pereira, 2010; Silva, 2007, 2011, 2014).80
78
Lemos (2012, P. 63)
79
SOUZA, Adriana Barreto; SILVA, Angela Moreira Domingues da. A organização da Justiça Militar no Brasil:
Império e República. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 29, n. 58, p. 361-380, maio-agosto 2016.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/eh/v29n58/0103-2186-eh-29-58-0361.pdf
80
Apud. Souza & Silva (2016, p. 363- 364)
Se nesse âmbito historiográfico ainda é muito escasso, no debate sobre a Justiça
Militar do Estado se torna quase nula. Mesmo nos periódicos a justiça aparece mais nos
períodos autoritários e pouco aparece sobre a temporalidade que vai de 1950 a 1970. E aqui
neste artigo as autoras vão buscar essa linha desde o império, levando em consideração a
legislação e como ela foi sofrendo alterações perante o tempo e mudando seu caráter nas
conjunturas, mas no artigo elas mostram também que as mudanças não foram abruptas,
permanecendo a instituição com heranças existentes até hoje. Portanto, buscar a herança que
liga a Justiça Militar do Estado com a Justiça Militar da União será um dos focos desta
pesquisa também.
Em suas considerações, Souza e Silva (2016, p. 376) retomam algumas lacunas que
ainda precisam ser preenchidas no estudo dessa temática dentro do campo militar que é o
entendimento ainda não ser suficiente acerca do impacto da legislação nessa junção entre o
militar e o jurídico. As autoras, possibilitam caminhos para ser seguido nessa investigação do
objeto quando consideram que é de extrema importância o estudo do cotidiano dessa Justiça
ao longo da história, possibilitando a compreensão que vai além da própria lei.
Para incluir uma discussão sobre o campo da História Militar, foram acionados os
trabalhos de Fernando Velôzo Gomes Pedrosa81 atualmente Oficial da Reserva do Exército
Brasileiro, formado em bacharelado em Ciências Militares pela Academia Militar das Agulhas
Negras, mestre e doutor em História pelo Programa de Pós- Graduação em História
comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É atualmente pesquisador do Instituto
Meira Mattos. Sua experiência também gira em torno da História Militar, Administração
Pública e Educação Militar, além de possuir experiência na área da Defesa e Estratégia. Sua
contribuição estará no fato de gerar um debate acerca de uma História Militar Tradicional e a
Nova História Militar82 e esse debate está interligado a esse objeto de pesquisa porque
trabalhar com a Justiça Militar é abrir novas temáticas e formas de se pensar uma instituição.
81
Currículo acadêmico disponível em: https://www.escavador.com/sobre/572878/fernando-velozo-gomes-
pedrosa
82
PEDROSA, Fernando Velôzo Gomes. A História Militar Tradicional e a “Nova História Militar”. In: Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho, 2011.
AS RAZÕES HISTORIOGRÁFICAS E MULTIDISCIPLINAR EM TORNO DA JUSTIÇA
ESTADUAL
Ainda não foi apresentado ao debate historiográfico um estudioso sequer para trabalhar
a Justiça Militar do Estado do Pará e são 36 processos que são interessantes em vários
aspectos, portanto, levar esse tema para fora do acervo, mostrando o que tem nele e quais os
processos mais interessantes, pode chamar a atenção de pesquisadores que nem faziam ideia
que poderiam se defrontar com essa documentação em Belém.
A criação do Campo da História Militar não foi diferente, sendo que de acordo com
Fernando Pedrosa a História Militar existiu como uma das primeiras formas de história, ainda
assim as mudanças que ocorrem dentro desse campo são as mais diversas possíveis e agora
com a valorização de confrontos que antes não eram debatidos, a Nova História Militar nos
traz o valor de se aprofundar não apenas em estratégia ou histórias de guerras, mas também no
papel social desempenhado por figuras que, agora representadas, são também reconhecidas
como estruturantes nas organizações do campo.
A História Militar é um conjunto de muitas coisas. É – e para muitos escritores do
passado e do presente é pouco mais do que isso – o estudo dos generais e do
generalato [...]. A História Militar é também o estudo do armamento e do sistema de
armas, da cavalaria, artilharia, castelos e fortificações, do mosquete, do arco, do
cavaleiro com armadura, do encouraçado, do bombardeiro estratégico. [...] A
História Militar é, por outro lado, o estudo das instituições, regimentos, estados-
maiores e escolas de estado-maior, dos exércitos e das marinhas em geral, das
doutrinas estratégicas adotadas na batalha [...]. A História Militar, podemos inferir
daqui, tem, em última análise, de tratar da batalha (KEEGAN, 2000: 28-30, Apud.
PEDROSA, p. 2).83
O que se precisaria era aprofundar mais temáticas esquecidas dentro desse enorme
conjunto de debate, uma vez que possuem sua devida importância e trazem riqueza para o
campo. Esses objetos que citou Pedrosa sempre estiveram presentes, não sendo, portanto,
considerados história, visto que o historiador precisaria primeiro abordá-lo. A Justiça Militar
se encaixa no estudo das instituições e o domínio do que se passava ali dentro e de que
maneira no âmbito social, econômico e político, fluía a estrutura desses espaços simbólicos.
Para a historiografia brasileira, vem sendo alimentada por vários anos com diversas
abordagens, reconhecimento de novos atores e suas participações dentro da história nacional.
Se a discussão girar em torno da História do Brasil através da História Militar, teremos uma
breve representação dessa Justiça do Estado do Pará, com sua funcionalidade valendo de
acordo com uma legislação tipificado em um código.
Celso Castro, Vitor Izecksohn e Hedrik Kraay em “Nova História Militar”84 discutem
que o fim do regime no Brasil causou o corte de estigmas que tornavam a pesquisa acadêmica
limitada depois que passaram a ter acesso aos documentos militares que não eram permitidos
terem acesso. A partir disto as possibilidades foram aumentando consideravelmente, com
novas áreas de interesses e novas perspectivas. Esses três autores são de fundamental
importância para se conhecer o Brasil a partir do debate da história militar
83
PEDROSA, Fernando Velôzo Gomes. A História Militar Tradicional e a “Nova História Militar”. In: Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho, 2011.
84
CASTRO, Celso. IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik. Da história militar à “nova” história militar.
In:Nova história brasileira/Organizadores: Celso Castro, Vitor Izecksohn, Hendrik Kraay. – Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2004, 460 p.
Supremo Militar e de Justiça e três entidades administrativas que viera a ser o Conselho de
Disciplina, Conselho Supremo Militar e de Justiça e Conselho de Guerra, sendo eles
independentes. De acordo com Souza e Silva (2016) em “A organização da Justiça Militar no
Brasil: Império e República”, “foram criadas em algumas províncias do norte as Juntas de
Justiça militar, única alteração realizada por D. Pedro I. Porém a instituição não era nova”,
também herdada do sistema judiciário de Portugal do século XVII, não tendo sofrido
alterações, até à Republica, sendo seu poder regulado pela carta constitucional desde 1824. “O
CSMJ nasceu no Brasil com duas seções bem demarcadas: um Conselho de Justiça, que
mantinha a função de tribunal militar, e um Conselho Militar, destinado às questões
burocráticas da caserna”.
Mas o objetivo não foi somente falar da Justiça Militar da União, apesar de que foi
discutida até aqui pelo fato de direcionar a pesquisa atribuindo semelhanças nessas duas
instituições. Na Justiça Militar do Estado, seria da competência da Justiça os envolvimentos
tipificados no código penal e em conjunto com os regulamentos das instituições da Polícia
Militar e do Bombeiro, uma vez que neste regulamento estariam inscritas as normas e deveres
delas, além de qualquer desvio de conduta que se referissem ao código penal.
A Justiça Militar do estado teve sua organização autorizada por lei federal em janeiro
de 1936. Porém, só foi posicionada, como componente do Poder Judiciário, pela Constituição
de 1946, que assim dispunha: "a Justiça Militar estadual, organizada com observância dos
preceitos gerais da lei federal, terá como órgãos de primeira instância os conselhos de justiça e
como de segunda instância um tribunal especial ou o Tribunal de Justiça." a Justiça Militar é
estruturada em duas instâncias: a Primeira constituída pelos Juízes de Direito do Juízo Militar
e os Conselhos de Justiça, os quais atuam nas auditorias militares; e a Segunda, pelos
Tribunais de Justiça Militar, composta por juízes que integram esses órgãos
Então, confesso que usei e abusei de Carlo Ginzburg, com o método do paradigma
indiciário, como analisou em Morelli e Freud, Wind, Lemolief, em Arthur Conan Doyle e seu
Sherlock Holmes, para destrinchar todo o processo criminal. E eu me aproximei mais do
Sherlock porque ele já tratava do crime em si, a Justiça Militar e em Geral faz o papel de
Sherlock Holmes, e são análises bem aprofundadas de cada indício encontrado, a disposição
da arma, a quantidade de cartucho, o local de perfuração na vítima, em caso de tiro, a
descrição das áreas atingidas, o trabalho com as testemunhas, a percepção de traços suspeitos
no acusado, na vítima. Eu fiz uma discussão do método sobre o método. Não é a toa que
Ginzburg, Morelli e Freud, Lemolieff, a metodologia de Sherlock são tão valorizados,
principalmente no meu trabalho de investigação e no trabalho da Justiça.
Nos documentos que eu tive acesso sobre a Justiça Militar não é diferente, há toda
uma tradição para se trabalhar um crime, inclusive na nomeação dos responsáveis no
desenvolvimento do processo na Justiça. No processo da Justiça Militar que eu vou me referir
aqui, de 1950, tendo como vítima o Tenente João dos Santos Vasconcellos e como acusado o
2° sargento Hermenegildo dos Santos o Comandante Geral da polícia, um tenente Coronel,
chamado Sinésio é o nomeado pra apurar o fato, ele acompanha o processo do início ao fim,
cabe a ele o encerramento de cada etapa, sempre na presença do escrivão. É nomeado o 3°
sargento Pedro de Oliveira para escrivão, ele não só fará o autoamento, como estará por
intimar quem poderia colaborar com a resolução do processo. São nomeados também os
peritos, que nesse caso se chama André e Inácio, e o responsável pelo inquérito, que é o 1°
Tenente Antônio Amorim, os peritos estarão presentes sempre que uma nova possibilidade for
aberta.
Carlos Barcellar (2008) abre uma das fontes que serão trabalhadas nesta pesquisa, a
fonte documental de arquivos, particularmente, do Centro de Memória da Amazônia. Os 36
processos criminais que datam do ano de 1950 até 1970 são referentes a crimes Militares
julgados na instância a Justiça Militar, além de trazer sobre os crimes, esses documentos
também oferecem algumas informações como quem era o responsável por trabalhar o crime,
por quais etapas ele passava até a conclusão do processo, quem eram as testemunhas, nos
trazem os jornais, por vezes com a publicação do crime, além da ficha do preso e seus
antecedentes.
Tendo um mínimo de domínio na hora de lidar com a fonte será preciso considerar o
que Carlo Ginzburg chama de ciência indiciária, e que pode nos contribuir com os rastros que
podem até ser imperceptíveis. Se deixarmos de notar estes indícios, estaremos perdendo uma
boa parte do trabalho pela falta de atenção em reconhecer possibilidades de pesquisa. No
capítulo “Sinais: raízes de um paradigma indiciário” da obra Mitos, Emblemas e sinais,
Ginzburg (1939), trabalha com a ideia da criação de novos paradigmas que viera a ser o
estabelecimento de padrões e modelos que podem ser empregados em várias áreas e dentro
dela a história está incluída porque “O seu objeto, de fato, constitui-se através de uma drástica
seleção destinada a se reduzir ulteriormente- dos elementos pertinentes.“ (Ginzburg, 1939).
Portanto ao se discutir as fontes, tanto do acervo, quanto as outras existentes para esta
pesquisa, deverá estar atento ao que os olhos não podem perceber de prontidão, e com uma
análise minuciosa poder descobrir, que particularidades implícitas nos processos deverão ser
acionadas por esse filtro do historiador.
Concordando com Bacellar (2008) é muito interessante ter esse olhar quando o
pesquisador está diante dessa documentação e passa a ler e imaginar esse cotidiano
acontecendo, além de começar a construir os personagens que fazem parte do processo. Com
a Justiça Militar não foi diferente, a documentação despertou a atenção, sendo lido com
cuidado para ser catalogado e disponibilizando. Mas se tratando de documento escrito, o
estabelecimento de critérios para trabalhar com esta documentação é muito necessária porque,
mesmo que sejam processos judiciais, elas ainda devem despertar as desconfianças. Esta é
fundamental para se ter perspectivas distintas referentes ao objeto, a criticidade.
Marc Bloch nos trás, em Apologia da história um assunto muito importante acerca da
imparcialidade do ser humano, quando este se encontra com seu objeto de investigação onde
se deve ter um pé atrás do que seria verdadeiro e se tratando de um processo criminais e da
instituição que giram em torno da Justiça, temos que avaliar cuidadosamente se o processo
poderia estar camuflado com tendências relacionadas às punições, privilégios pela hierarquia
na instituição, se o resultado do processo foi mais brando com um do que com o outro de
mesma origem.
CONCLUSÃO
Ter na historiografia Brasileira discussão sobre a Justiça Militar no Brasil vem a ser
enriquecedor para os estudiosos da área, mas ter um debate novo, dentro da Amazônia e para
a Amazônia, de modo particular, é um caminho que facilitaria e muito vários aspectos da
pesquisa sobre as fontes dessa Justiça porque além de se construir um conhecimento acerca
desse acervo, o pesquisador pode encontrar dentro dele novas motivações e lacunas que se
questionadas, poderiam incentivar a alimentação desta temática dentro da História Militar.
INTRODUÇÃO
O trabalho surgiu a partir de reflexões sobre as relações entre mulheres e
marinheiros nos portos de Belém, entretanto o maior amadurecimento dessa reflexão me levou
a considerar não apenas os sujeitos, mas o espaço e os demais fatores, os quais formam as
relações no porto.
O período escolhido foi o de 1889 à 1912, o qual é identificado por alguns autores
como Belle Époque, já que havia uma tentativa da Paris na América, trazendo seus ideias
elitistas e intelectuais. Outro fator que me ajuda a escolher o recorte é a forte economia da
borracha, onde havia importação e exportação, intensificando a entrada e saída de
embarcações, o que intensifica também a movimentação de pessoas nos portos, e é importante
salientar que apesar da ideia inicial do trabalho se preocupar com as relações entre mulheres e
marinheiros, considero o meu principal ponto as relações no porto entre todos os indivíduos
que o frequentavam, incluindo marinheiros, mulheres, estivadores, comerciantes e outros
personagens. Durante o desenvolvimento do trabalho, busco desenvolver reflexões sobre os
sujeitos em relações de sociabilidade, adentrando também em suas próprias características e
condições de trabalho, os quais considero primordiais para entender os sujeitos e suas
relações.
Marinheiros no porto de Belém: conflitos, amores, sociabilidade e trocas culturais (1889-
1912) tem a intencionalidade de refletir as interações existentes no espaço do porto a partir de
vivências cotidianas entre os sujeitos, como feiras, festejos e dias comuns de trabalho, mas
também em relações específicas e pessoais, como amores, brigas e crimes. Sendo assim, no
trabalho são considerados diversos fatores para pensar o ambiente portuário como o recorte
temporal, a economia, os sujeitos e a representação do porto para a sociedade da Belém do
início do século XX.
DA BELLE ÉPOQUE AO PORTO
Durante a chamada Belle Époque muitas foram as mudanças governamentais vividas por
Belém, de interesses diferentes e vertentes políticas diferentes, os dirigentes da Cidade das
Mangueiras viveram e administraram um novo momento para o governo do estado, e sobretudo
a cidade. No final do século XIX e início do XX, rodeado pelas perspectivas Bellepoquianas
vividas pela elite na tentativa de “afrancesar” e até “civilizar” os costumes belenenses, as
mudanças nos costumes e na arquitetura de Belém são grandemente afetadas. Isso não significa
a mudança homogênea e singular desses fatores pela cidade, entretanto é possível sim
identificar mudança, mas jamais plural.
Percebo através das fontes que, além de possuir muitas zonas de rio, Belém possui muitos
portos, já que quase qualquer beira de rio poderia ter um trapiche a ser usado como porto para
comércio e relações. Mas em meio ao período, o que há de relação entre as mudanças da
cidade e este espaço portuário? A professora Maria de Nazaré Sarges, por exemplo, através de
sua obra Belém: Belezas produzindo a Belle Époque: 1870-1912, me permite entender como a
tentativa da construção de uma Belém à francesa fomenta relações em toda a cidade, além de
trazer outros comportamentos e interesses na elite local e no povo.
As mudanças de comportamento e interesses não se encontram apenas em novas formas de
pensar ou em mudanças na cidade para a época, mas em uma economia que além de ser
fomentada por essas modificações, se forma na economia da borracha, que intensifica e dá
outros significados a movimentação nas cidades:
A procura de goma elástica por países industrializados esbarrou em alguns entraves,
como a reduzida oferta de mão de obra, transportes para a comunicação interna e,
sobretudo, o financiamento externo para extração em larga escala da borracha, o que
vai provocar repercussões nas relações econômicas, políticas culturais e sociais na
região. (SARGES, 2010, 94)
Os sujeitos presentes no porto durante o trabalho são percebidos como de várias classes,
ocupações e vindos de diferentes locais. Os fatores que influenciam essa variada gama de
sujeitos podem ser identificados em suas ocupações e classes sociais, como é o caso de
feirantes, prostitutas, marinheiros, estivadores e pequenos trabalhadores observados em
jornais e ocorrências policiais. O oficial da Marinha e o marítimo ocupam lugares bem
distintos dentro do porto, pois enquanto o marítimo desfruta do ambiente portuário das festas
ao descanso, o oficial apresenta caráter mais reservado, é neste ponto que Pablo Nunes Pereira
em sua dissertação fala sobre as diferenças de tratamentos e trabalhos entre marinheiros na
análise da descrição de um repórter do jornal Correio da Manhã sobre a mão de um dos
cadáveres encontrados nas ruínas do encouraçado Aquidabã, no Rio de Janeiro em 21 de
janeiro de 1906:
O indivíduo que afirmara tratar-se das mãos de um oficial pelas características como
delicadeza e estética, embora anônimo, é dotado de uma consciência interessante
sobre o universo social da Marinha: se as mãos de um oficial era belas e delicadas,
considerando tal categoria, é presumível que, na mesma linha de raciocínio, as mãos
de um marinheiro fossem rudes e feias. Se os dedos de um eram finos e alongados,
do outro deveriam ser grossos e curtos. De uma maneira sutil, há a consciência de
dois universos – dos oficiais e dos praças/marinheiros – que não são distintos apenas
pelas atribuições, mas porque as mãos de um e de outro também o são: a vida militar
ou pelo menos o pertencimento a um ou outro círculo tinha marcas no próprio corpo
dos militares. (PEREIRA, 2017, p.106).
É a partir das fontes e da colocação de Pereira (2017) sobre a hierarquia no meio militar, que
busco as ausências e presenças dos sujeitos do mar durante o levantamento das
documentações analisadas no Arquivo Público do Estado do Pará, onde é possível perceber o
maior envolvimento de marítimos com crimes, e não de oficiais. Dos doze casos criminais
envolvendo marinheiros oficiais ou mercantes no porto como atores de crime possíveis de
serem analisados, apenas um envolve oficiais da Marinha. Do caso encontrado envolvendo
oficiais da Marinha, foi possível analisar o caráter cotidiano de descanso que a terra carregava
para o marinheiro85:
Comunicou que tendo estado em um botequim, à rua Aristides Lobo, bebendo com
alguns marinheiros nacionais e um praça, ao retirar-se, os marinheiros correndo atraz
deram-lhe uma paulada. Gomes caiu recebendo um profundo ferimento no lado
esquerdo do rosto, pelo que foi recolhido ao Hospital de Santa Casa.
A presença de marítimos e marinheiros não é de forma alguma a única encontrada nos portos,
pois há também a presença de trabalhadores que prestam serviços a embarcações, mas que são
pessoas do meio urbano de Belém, como é o caso de acidente de trabalho do empregado da
Oficina Camelier, João de Mello, o qual veio a óbito após queda sofrida a bordo do Vapor
Amazônia, sobre o convés deste86:
Luiz Felippe da Silva comunicou que hontem a 1 1/2h da tarde cahio desastradamente
dum par de carca de bordo do v. “Amazonia” sobre o convez do mesmo vapor,
morrendo instantaneamente devido a pancada que recebeu, o empregado da officina
Camelier, de nome João de Mello. O seu cadáver fiz recolher ao Necrotereo.
O episódio de João de Mello vem a representar que a variedade de serviços executados ali ia
muito além de chegada e partida de mercadorias e pessoas, mas também a interação da cidade
de Belém com o porto e a necessidade dessa através dos serviços. Além de pessoas da cidade,
o porto de Belém é um local de grande fluxo não só de navegações, marinheiros e
funcionários da cidade, mas também de trabalhadores e trabalhadoras de todos os tipos e
dispostos a trabalhar de diversas formas, mesmo de maneira extremamente incerta e informal
para a sobrevivência. A vida no porto não contava apenas com a presença de marinheiros,
como já citado. Mas quem são os demais sujeitos? Para responder esta pergunta, é necessário
pontuar primeiramente que o porto, de acordo com as fontes, não é um ambiente de passeio, é
um ambiente sobretudo de trabalho pesado, onde seus trabalhadores estão ali principalmente
para sobreviver onde muitas vezes a falta de emprego os consumia:
Diariamente e até duas vezes no dia, uma multidão de candidatos aglomeravam-se nos
portões dos Portos para conseguir trabalho para o dia ou até por algumas horas, Este
sistema de contratação conhecido como free call( Inglaterra), shape up (Estados
Unidos) ou “parede” (Brasil), levou à criação e manutenção de um exército
85
Arquivo Público do Pará, Ocorrências Policiais, 1912.
86
Arquivo Público do Pará, Ocorrências Policiais, 1912.
permanente de reserva na área do porto, ao qual os empregadores recorrem nos
momentos de pico do movimento do porto. ( GITAHY, 1992, p 105)
Mosaico
87
A Lenda do Muiraquitã, Hall de entrada do Teatro da Paz.
Além do fluxo de pessoas da cidade procurando trabalho no porto, é possível encontrar nas
documentações quem também vinha de longe para trabalhar nas zonas portuárias. Maria
Roseane Corrêa Pinto Lima em sua tese de doutorado discute a presença de barbadianas nos
portos de Belém:
O jornal A Província do Pará, no final de outubro de 1911, trazia a notícia sobre tal “
Lavadeira das Arábias”. Esse jornal contava a situação na qual se envolveu um senhor
chamado Oscar de Souza Martins, que solicitou os trabalhos de uma senhora, Helena
de tal, para quem ele entregou várias peças de roupa para lavar. Ficou insatisfeito com
os resultados dos serviços de Helena, e terminou em acusa-la de extravio de roupas[...]
( LIMA, 2013, p.172)
87
https://www.tripadvisor.com.br/LocationPhotoDirectLink-g303404-d2373177-i233075614-Teatro_da_Paz-
Belem_State_of_Para.html
Os episódios encontrados nas documentações me fazem perceber a grande quantidade de
tipos de relações existentes no porto. A brigas entre trabalhadores e marítimos são bastante
recorrentes nestas, sejam estas por bebedeiras ou questões de trabalho. Entretanto, pude
observar nas documentações de casamentos encontradas no Centro de Memória da Amazônia
algo muito particular dos casamentos de marinheiros, que é a autorização para acelerar o
processo de casamento para que este possa seguir em viagem. Esta questão me revela um fator
muito importante para as relações sociais, que é o fator humano. Pensar o marinheiro e o
porto, segundo a literatura de folhetins de jornais do final do século XIX, como é o caso do
romance “A Africa Mysteriosa” encontrado no jornal O Caixeiro88 me revela um imaginário
de vida no porto de muita festa e farra, excluindo a humanidade do sujeito do porto e sua vida
além deste.
Diante da economia, pude perceber nas documentações que Belém para o trabalhador
portuário ou para o marinheiro mercante de 1900 nunca chegou a ser “a francesinha dos
trópicos”, pois tanta riqueza e novos horizontes intelectuais em sua esmagadora maioria não
chegavam aos sujeitos mencionados, principalmente em um Brasil majoritariamente
analfabeto. Entretanto, o trabalho através das riquezas chegou, novas pessoas de lugares
completamente novos chegaram. Compreendo, neste estágio da pesquisa, que as relações
portuárias foram infinitamente imensuráveis, pois estas foram formadas pelas interações entre
sujeitos diferentes, vivendo condições diferentes, completamente humanas e históricas. A
Belle Époque belenense afetou o porto de forma muito singular, pois fomentou a entrada e
saída não só de marinheiros mercantes, viajantes e oficiais da Marinha, mas de costumes e
interações além dos rios.
É comum, durante a leitura de jornais do século XIX e XX, encontrar a notícia da chegada
de navios vindos de todo o mundo. Muitos cheios de mercadorias necessárias para este
desenvolvimento, e muitos outros lotados de pessoas do mundo todo, sejam para trabalho ou
passeio. A estrutura dos anúncios de jornais, de forma específica e pontual, sempre indicando
que tipo de mercadorias ou de onde as pessoas vinham nestes navios me permite analisar a
necessidade da conexão entre Belém e mundo que acontecia. Durante o governo de Augusto
Montenegro, em 1908, houve a criação do álbum do Estado do Pará, onde a obra não foi
produzida apenas em Português, mas também em inglês e francês em um mesmo livro,
demonstrando as ligações com o exterior que o governador possuía e prezava. Portanto, o
88
O Caixeiro. Ano 1890, edição 00022.
porto é a via de conexão mais importante entre Belém e mundo, onde as trocas reafirmam
relações sociais e culturais.
Conclusão
Por fim, considero que as relações portuárias vão muito além do cotidiano portuário, e estas
devem ser vistas com suas conexões, sejam elas pessoais ou políticas. A Belle Époque
paraense traz consigo idealizações elitistas que se materializam nas relações comerciais, mas
também nas pessoas. Não obstante, é necessário observar também as camadas populares e
como este período influencia seu cotidiano.
Contudo, procuro sempre afirmar a presença de outros sujeitos através das documentações,
pois a presença destes é vital, já que constitui estas relações. Cada indivíduo no porto é
agente, e a relação social portuária se constrói dentro do período de maneira muito própria. A
presença de marinheiros, vendedores, lavadeiras, trabalhadores e muitos outros sujeitos me
permitiu considerar e seus motivos de estar ali e suas condições de vida, as quais foram vitais
para as relações que puderam ser observadas, sejam de conflito ou comunhão, por isso,
acredito ser necessário o aprofundamento da observação dessas relações em trabalhos futuros
que darão continuidade a esta pesquisa, para melhor compreender que tipo de simbolismos
são presentes nestas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ensaios de teoria e metodologia/ Ciro Flamarion Cardoso, Ronaldo Vainfas (orgs.). - Rio de
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interpretação das culturas. Ed 13. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
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morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
GITAHY, Maria Lucia Caira. Ventos do Mar: Trabalhadores do porto, movimento Operário e
Cultura Urbana em Santos (1889-1914). Unesp. São Paulo, 1992.
PEREIRA, Pablo Nunes. A Marinha de Guerra na Amazônia: segurança e modernização
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2017.
PINSKI, Carla Bassanezi (Org). Fontes Históricas. Contexto. São Paulo, 2008.
PINTO, Maria Roseane Corrêa. Barbadianos negros e estrangeiros: trabalho, racismo,
identidade e memória em Belém de início de século XX. Tese (doutorado) Universidade
Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História,
2013.
SARGES, Maria de Nazaré. Belezas produzindo a Belle Époque (1870-1912). Ed. 3, Paka-
Tatu, Belém, 2010.
UMA ABORDAGEM DO ETHOS MILITAR:
AS DIFERENTES VISÕES SOBRE OS VALORES CASTRENSES.
1 INTRODUÇÃO
O estudo partiu das leituras das obras que tratam o ethos90 a partir dos discursos e das
práticas que tornam a instituição militar um órgão distinto em seu processo de formação dos
oficiais da linha de ensino militar bélico91 (LEMB). No que diz respeito à metodologia, o
presente trabalho está baseado nas contribuições de José D’ Assunção Barros (2013) e de Ciro
Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas (2012), de acordo com as seguintes classificações:
quanto ao tipo de pesquisa (ou objetivo), trata-se de uma pesquisa descritiva, e, no que diz
respeito aos procedimentos metodológicos, constitui-se num estudo de caso fundamentado em
pesquisa bibliográfica e documental.
89
Fabio da Silva Pereira é professor de História Militar da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN).
Licenciado em História (UNIRIO) e Doutorando em História (UNIVERSO).
90
Dada a repetição do termo ethos em todo o corpo do artigo, optou-se por não colocar em itálico ou qualquer
outro recurso gráfico que proporcionasse destaque à palavra em si.
91
Os oficiais da LEMB são formados pela Academia Militar das Agulhas Negras e consistem de sete
especialidades: infantaria, cavalaria, artilharia, engenharia, intendência, comunicações e material bélico.
sempre alguns elementos contingentes num ato de comunicação, em relação aos quais é difícil
dizer se fazem ou não parte do discurso, mas que influenciam a construção dos ethos pelo
público ouvinte. É, em última instância, uma decisão teórica: saber se deve relacionar o ethos
ao material propriamente verbal, atribuírem poder às palavras, ou integrar-se a ele - e em
quais proporções - elementos como as roupas do locutor, seus gestos e outros detalhes que
montam um cenário próprio ao discurso que é desejável. Ou seja, o conjunto do quadro da
comunicação para a formação da cosmovisão dos eventos.
92
Dos teóricos que abordam o conceito de hegemonia, Antonio Gramsci apresenta uma noção mais elaborada e
adequada para pensar as relações sociais, sem cair no materialismo vulgar e no idealismo encontrado na tradição.
O pensador italiano destaca a importância de formar uma classe dirigente que se mantenha pelo consentimento
das massas e não apenas pela força coercitiva. Ademais, sublinha a importância da direção cultural e ideológica
(ALVES, 2010, p. 73).
93
Segundo Auchlin, o “caráter” corresponde a um feixe de traços psicológicos. Nos capítulos 12 a 17 do livro II,
Aristóteles descreve os traços de caráter particulares dos homens em função de sua idade (juventude, maturidade,
velhice) e de sua fortuna (na ordem em que se apresentam: a nobreza, a riqueza, o poder e a sorte). Aristóteles
descreve, então, os diferentes traços que o orador pode encontrar em um auditório: cabe a ele escolher as
diferentes paixões que deverá suscitar. Como a virtude não é considerada da mesma maneira em todos os lugares
por todas as pessoas, é, em função de seu auditório, que o orador se construirá urna imagem, conforme o que é
considerado virtude. A persuasão não se cria se o auditório não puder ver no orador um homem que tem o
mesmo ethos que ele: persuadir consistirá em fazer passar pelo discurso um ethos característico do auditório,
para lhe dar a impressão de que é um dos seus que ali está (MAINGUENEAU, 2019, p. 15).
94 Para Auchlin, a “corporalidade” está associada a uma compleição física e a uma maneira de se vestir.
meio de uma percepção complexa, mobilizadora da afetividade do intérprete, que tira as suas
informações do material e do ambiente.
Encontramo-nos, portanto, na “Retórica” de Aristóteles, diante de dois campos
semânticos opostos ligados ao termo ethos: o primeiro, de sentido moral, engloba atitudes e
virtudes como honestidade, benevolência ou equidade; o segundo, de sentido neutro e
objetivo, o qual reúne os hábitos, modos e costumes ou caráter (EGGS, 2018, p. 30). Antoine
Auchlin traz do conceito aristotélico para o contexto prático
A noção de ethos é uma noção com interesse essencialmente prático, e não um
conceito teórico claro (...) Em nossa prática ordinária da fala, o ethos responde a
questões empíricas efetivas, que têm como particularidade serem mais ou menos
coextensivas ao nosso próprio ser, relativas a uma zona íntima e pouco explorada de
nossa relação com a linguagem, onde nossa identificação é tal que se acionam
estratégias de proteção (AUCHLIN, 2001, p. 93)
Ainda, de acordo com Edgard Schein, a cultura de uma organização pode ser aprendida
em vários níveis, de acordo com o quadro a seguir:
Nível Descrição
Portanto, através da passagem por esses níveis, a cultura torna-se consistente por meio
da história institucional, incluindo o depoimento dos heróis que a compõem, as solenidades de
recompensas para o membro destaque, os mitos utilizados, os jornais internos que transmitem
mensagens, normas, deveres e direitos dos membros (FREITAS, 1991). A utilização de
artefatos determina uma estratégia para que os membros se adaptem à cultura vigente e suas
mudanças, a fim de criar um mesmo modo de agir, pensar e sentir considerado como
adequado pelos indivíduos. Os artefatos podem ser verbais, comportamentais e físicos. Os
primeiros são os mitos, os heróis, os tabus e as histórias. Os comportamentais são os rituais e
as cerimônias, e os físicos as normas e símbolos (KILLMAN, 1988).
Os mitos, considerados artefatos verbais, relacionam-se com histórias fictícias,
amparados na historiografia patriótica, onde fornecem dados consistentes com os valores
organizacionais. São narrativas dramáticas de eventos imaginados, com o objetivo de explicar
origens e transformações das coisas. Chanlat (1993) explica o mito como um fator relevante
para a constituição das crenças, dos valores e das identidades organizacionais, podendo
emanar de civilizações, modernas ou não. Isso tem por função explicar a conexão entre o
saber e o agir, o passado e o presente, possibilitando a transformação da imaginação em rituais
que se estabelecem entre os membros da organização. Dessa forma, a cultura da confiança
baseia-se em um sistema de incentivos e valores compartilhados por normas e regras que
assumem que os indivíduos em geral são confiáveis. (ZANINI, 2016, p. 71).
95
Com exceção de alguns concursos esporádicos de ingresso imediato na AMAN (2004 e 2011), o ingresso na
LEMB se dá por meio da entrada e aprovação na Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx). Nesse
estabelecimento de ensino, o aluno aprende em um ano as noções básicas da profissão militar e faz contato com
os integrantes da AMAN.
96
O presente Estatuto regula a situação, obrigações, deveres, direitos e prerrogativas dos membros das Forças
Armadas (BRASIL, 1980).
97
O Regulamento Interno e dos Serviços Gerais (R – 1 ou RISG) prescreve tudo quanto se relaciona com a vida
interna e com os serviços gerais das unidades consideradas corpos de tropa, estabelecendo normas relativas às
atribuições, às responsabilidades e ao exercício das funções de seus integrantes (BRASIL, 2016).
98
O Regulamento Disciplinar do Exército (R-4) tem por finalidade especificar as transgressões disciplinares e
estabelecer normas relativas a punições disciplinares, comportamento militar das praças, recursos e recompensas
(BRASIL, 2002).
99
O cadete, título de origem nobiliárquica e colocado em desuso no início do período republicano, ganhou novos
contornos. Em 25 de agosto de 1931 foi criado pelo Coronel José Pessoa o “Corpo de Cadetes”, em cerimônia à
qual estiveram presentes, entre outras autoridades, o Presidente da República Getúlio Vargas (CASTRO, 2002, p.
42).
100
Luís Alves de Lima e Silva – o Duque de Caxias – é o patrono do Exército Brasileiro. Nascido em 25 de
agosto de 1803, essa data é comemorada todos os anos como o dia do Soldado, acompanhada de ritos específicos
como formaturas militares, a cerimônia do juramento à bandeira nacional e o compromisso do espadim para os
cadetes do primeiro ano da AMAN.
militares do Império, principalmente da campanha de 1852 contra Rosas 101:
barretina, cordões com palmatórias e borlas, charlateiras de palma e palmatória
escarlate e emblema simbólico para a cobertura. A cor predominante passava a ser
turquesa. O elemento mais importante passava a ser o espadim (CASTRO, 2002, p.
42-43).
101
Juan Manuel de Rosas governou a Confederação Argentina entre 1835 e 1852, sendo derrotado pelas tropas
lideradas por Caxias na Batalha de Monte Caseros (em território argentino) em 3 de fevereiro de 1852. Esse foi o
único fato histórico em que as principais potências do continente sul-americano (Argentina e Brasil) se
enfrentaram militarmente e seu resultado influenciou na escolha do uniforme dos cadetes da AMAN.
102
No caso das instituições totais descritas por Erwin Goffman (1971), relacionada à vida fechada e com horários
definidos desde a hora de acordar – a “alvorada” - até a hora de dormir – também chamado de “silêncio” muito
comum nas escolas de formação militar, em particular na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) e suas
congêneres das outras Forças armadas, onde “todas as fases das atividades diárias são programadas dentro de
linhas estreitas, uma atividade conduzindo no tempo predisposto para a próxima” (GOFFMAN, 1971, p. 305).
103
Currículo da Academia Militar das Agulhas Negras (BRASIL, 2016).
Fonte: BRASIL, 2002a. p. 10.
104
As Ações Subsidiárias, assim como eram chamadas naquela década de 1990, eram as novas missões que
estavam sendo conferidas aos militares no cenário mundial após a década de 1980, como o combate ao
narcotráfico e ao crime organizado, as missões de paz da ONU e as ações de cunho humanitário.
105
Lei de Ensino da Marinha - Lei nº 11.279, de 9 de fevereiro de 2006; Lei de Ensino do Exército - Lei nº
9.786, de 8 de fevereiro de 1999; e Lei de Ensino da Aeronáutica - Lei nº 12.464, de 4 de agosto de 2011.
seus talentos, usando das técnicas disponíveis na busca e seleção do conhecimento
que constroem. Busca-se o sentido holístico da educação do militar, para que ele se
capacite a manipular modelos e interaja com a sociedade a que pertence. Deve ser
flexível e adaptável às novas gerações de tecnologias. (VIEIRA, 1999, p. 5-6,
negrito feito pelo autor).
Esse conceito adaptável ao processo educacional permitiu inserir os deveres que antes
não estavam listados no Estatuto dos Militares. Na lei de 1980 estão listados somente os
valores e os princípios da ética militar, carecendo, dessa forma, dos dispositivos em forma
legal para a definição e o exercício das regras. No entanto, as inserções regulamentares
prestaram-se a preencher essa lacuna, dotando o cadete de novas regras a serem seguidas. Para
amalgamar essas inserções, a figura do herói, construído a partir da historiografia patriótica
contribui para a formação de uma identidade coletiva. A enunciação dos valores e deveres
militares inspirados em Caxias – reconhecido pelos historiadores por suas atitudes leais ao
poder vigente - possuem um papel marcante dentro da instituição castrense. Isso, porque o
herói orienta os atores institucionais na formação de uma identidade marcante e vitoriosa.
Para Deal e Kennedy (1982) os heróis nem sempre possuem uma personalidade fácil de lidar,
mas eles direcionam o comportamento dos indivíduos tornando real a possibilidade de
crescimento institucional.
Eis que a noção de ethos permite, então, “refletir o processo mais geral da adesão dos
sujeitos a determinado posicionamento” (MAINGUENEAU, 2008, p. 64). Everton Santos
afirma que “uma instituição reflete, por meio de seus ritos, seus mais profundos valores, o
mais íntimo do seu ethos, seu espírito e sua essência” (SANTOS, 2012, p. 81). Como é
próprio do discurso simbólico, o ritual destaca certos aspectos da realidade, dando um close
nas coisas do mundo social, isto é, tornando-as mais nítidas (DAMATTA, 1997, p. 76-77). As
necessidades da disciplina nas instituições castrenses revestem-se de importância quando
prestamos atenção na sua função weberiana da administração da violência. A educação
profissional militar trabalha com armamentos e equipamentos voltados para a arte da guerra,
dentro dos princípios constitucionais e conforme a legislação em vigor. Nesse aspecto, o
controle exercido pelo Estado sobre o jovem que está no processo de formação é mais intenso
e voltado para o viés das atitudes tomadas dentro de determinado ambiente operacional.
Assim, a intensidade tem relação com os dois pressupostos básicos na instituição militar: a
hierarquia e a disciplina.
O primeiro pressuposto busca selecionar e posicionar os corpos dentro de uma cadeia
hierárquica facilmente identificável por meio da enunciação dos postos e das graduações, em
que se sabe com precisão “quem deve vigiar” e “quem deve punir”. Nesse ponto, o segundo
pressuposto - a disciplina - transcorre como elemento central de manutenção dessa hierarquia,
pois se encarrega de docilizar esses corpos, moldando os comportamentos para desempenhar o
que se espera daquele militar em uma situação hipotética (Durkheim, 2002), lapidando a sua
atitude de acordo com as “normas” em vigor. Em consequência, os militares que prosseguem
na carreira devem seguir estritamente o que está previsto nos planejamentos e diretrizes
curriculares, moldando o seu interior, com vistas a externar as atitudes desejadas pelos seus
superiores, sob pena de não serem promovidos na escala hierárquica ou até mesmo serem
excluídos ou punidos sob a esfera disciplinar. Desse modo, os corpos dos alunos no processo
de formação são guiados, no seu plano consciente e inconsciente, e isso pode ter impactos no
restante da carreira. Assim, o ethos militar revela costumes, modalidades de participação,
práticas sociais e privadas que compõem a natureza da vida do soldado. Implicados nessas
práticas estão muitos dos objetivos e valores internos. Esses, por sua vez, servem claramente
ao fim da disciplina militar, possuindo um efeito na vida de um soldado que transcende as
exigências do seu ofício. Um militar leva para o mundo civil o retrato de si mesmo que ele
ganhou no Exército. Esse retrato revela o esterno dos militares, e está também imbuído de um
ethos particular que se autojustifica. O ethos, portanto, presta-se ao respeito pelo poder
estabelecido.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A instituição militar pode ser visualizada como fenômeno de comunicação, uma
vez que suas culturas são criadas, sustentadas e principalmente transmitidas, através de um
processo de interação social, onde as atividades são baseadas na troca de mensagens, orais ou
não, e na interpretação e no significado que cada membro dá a mensagem recebida. As ideias
divulgadas e controladas em um ambiente quase fechado contribuem para uma peculiar
transformação do jeito de ser, investido dos valores historicamente especificados. A
contextualização da tríade filosófica abordada por Aristóteles, Logos – Pathos – Ethos, emula
um ambiente próprio na edificação dos símbolos no interior da instituição militar, onde são
destacados os atributos desejáveis à formação do futuro oficial da LEMB.
A condução dos corpos e as mudanças no ethos por meio das regras e normas militares
são apoiadas por uma série de artefatos criados para incentivar e controlar o ímpeto dos jovens
militares, amparados por um rígido sistema disciplinar dotado de recompensas e punições, sob
o intermédio do controle instituído pela fronteira física e pelos comportamentos demonstrados
ao longo de sua formação. Isto porque, à medida que as atitudes não esperadas são postas em
evidência, um arcabouço de regulamentos e ordens oferece o amparo estatal para colocar em
prática o processo de exclusão do discente.
Em virtude dos aspectos analisados, a concepção discursiva do ethos militar contribuiu
para inserir as transformações dentro do próprio sistema. Isso, sem ter a noção que alguns
deveres são novos, proporcionando o contexto da tradição, de que nem sempre fora
corriqueiro, caracterizando brevemente mais uma invenção. Nos anos 1990, o Exército
Brasileiro investiu tempo e recursos para adequar o oficial ao novo perfil desejável, onde
algumas missões que não eram da responsabilidade exclusivamente militar, foram
adicionadas. Assim, a boa imagem causada pela atitude desejável do cadete pode contribuir
para a projeção positiva da instituição perante a opinião pública, reforçada pela disciplina
acadêmica e pelas ações de comunicação social.
REFERÊNCIAS
ALVES, A. R. C. O conceito de hegemonia: de Gramsci a Laclau e Mouffe. In: Lua Nova, n.
80. São Paulo: CEDEC, 2010, p. 71 – 96. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ln/n80/04.pdf. Acesso em: 16 mar. 2019.
AMOSSY, Ruth. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In: AMOSSY, Ruth (Org.).
Imagens de si no discurso: a construção do ethos. Tradução Dilson Ferreira da Cruz, Fabiana
Komesu e Sírio Possenti. São Paulo: Contexto, 2018.
AUCHLIN, A. Ethos et experiénce du discours: quelques remarques. In: M. Wauthion; Simon
(éds). Politesse et idéologie. Rencontres de pragmatique et de rhéthorique conversationalle.
Louvain: Peeters, 2001.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Lei nº 6880, de 9 de dezembro de 1980. Disponível em:
http://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/1/550/1/L6880.pdf. Acesso em 30 mar. 2019.
BRASIL. Ministério da Defesa. Exército Brasileiro. Academia Militar das Agulhas Negras
(AMAN). Separata ao Boletim do Exército nº 49 – Regulamento Interno da AMAN (R-70).
Brasília: SGEx, 2014. Disponível em:
http://www.sgex.eb.mil.br/sistemas/be/copiar.php?codarquivo=228&act=sep. Acesso em 18
mar. 2019.
BRASIL. Ministério da Defesa. Vade-Mécum de Cerimonial Militar do Exército Valores,
Deveres e Ética Militares (VM 10). Brasília: SGEx 2002a. Disponível em:
http://www.eb.mil.br/documents/10138/6563889/Vade+M%C3%A9cum+Valores.pdf/f62fb2
bb-b412-46fd-bda0-da5ad511c3f0. Acesso em 7. fev. 2019.
CARDOSO, C. F; VAINFAS, R. Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012,
335 p.
Introdução
106
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
107
MARIN, Rosa Elizabeth Acevado. Civilização do rio, civilização da estrada: transportes na ocupação da
Amazônia no século XIX e XX. Paper do NAEA, Belém, n. 170, maio de 2004.
aumentaram, assim como aumento de casas importadoras, depósitos de carvão e compra de
equipamentos compatíveis aos novos paquetes das companhias de navegação.
Nesse sentido, a ideia do capítulo em questão surgiu a partir da análise de uma parte do
primeiro relatório ministerial da Marinha publicado em 1916, “Marinha e os orçamentos”108,
onde o ministro Alexandrino Faria de Alencar discutira as dificuldades econômicas passadas
pela força naval com o contingenciamento do orçamento da instituição, valendo-se de três
áreas consideradas por ele estratégicas: os mantimentos em geral, o material de construção
naval e os combustíveis. Para este trabalho, focarei apenas a discussão dos combustíveis.
108
BRASIL. Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil pelo Almirante
graduado Alexandrino Faria de Alencar, ministro de Estado dos negócios da Marinha em abril de 1916, primeira
parte. Rio de Janeiro: Imprensa Naval, 1916, pp. 9-18.
109
Idem, p. 14.
110
Ibid., p. 15.
Características quantitativas da crise na Amazônia (4 laudas)
Das indagações, compreendi que não seria possível analisar de forma profunda a
questão sem precisar a existência real ou a natureza da crise orçamentária em questão e como
ela se traduziria nos orçamentos de três níveis no período compreendido da pesquisa em geral
e da década de 1910: 1- dos orçamentos federais em si; 2- do orçamento anual do Ministério
da Marinha e 3- do orçamento destinado aos combustíveis neste ministério. Dos dados
levantados segundo as leis orçamentárias anuais111, é possível observar uma variação
considerável nos orçamentos do governo federal no período.
500000
400000
300000
200000
100000
0
1910 1911 1912 1913 1914 1915 1916 1917 1918
Receita Despesa
111
Todas podem ser consultadas a partir das coleções de leis que estão disponíveis em:
<https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao>. Acessado em 22/08/19.
1911 47.462:018$053 1.500:000$000 3,2%
1912 44.780:224$021 1.500:000$000 3,3%
1913 47.799:617$203 1.800:000$000 3,8%
1914 42.113:753$648 1.500:000$000 3,6%
1915 36.108:806$882 1.000:000$000 2,8%
1916 35.066:949$818 1.000:000$000 2,9%
1917 36.816:871$676 1.200:000$000 3,3%
1918 44.313:851$638 2.000:000$000 4,5%
Entre 1911 e 1918, verifiquei 194 embarcações trazendo carvão mineral em sua carga
no porto de Belém, consignado a firmas importadoras, a companhias de navegação ou ao
Lloyd Brasileiro, totalizando 354.610,85 toneladas de carvão mineral, distribuídos nos
seguintes anos:
112
Com todas as edições digitalizadas na Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em:
<https://bndigital.bn.gov.br/>. Acessado em 22/08/19.
Toneladas de carvão entradas no porto de Belém
90.000,00
76.760,03
80.000,00
70.000,00 63.668,00
60.000,00
49.936,09
50.000,00 45.168,23
36.815,23
40.000,00 33.307,28
30.867,00
30.000,00
18.089,00
20.000,00
10.000,00
0,00
1911 1912 1913 1914 1915 1916 1917 1918
Toneladas de carvão
113
SANTOS, Roberto Araújo de Oliveira. História econômica da Amazônia: 1800-1920. São Paulo: T. A.
Queiroz, 1980, p. 213.
que 5.000, portanto, embora o volume de navios transportando carvão para a Amazônia
tivesse se mantido relativamente o mesmo, a quantidade diminuiu bastante.
“Presentemente a hecatombe que anniquila povos e nações, dos mais poderosos pela
indústria e pelo commercio na Europa, fez difficil a remessa deste producto de nossa
importação, já pelas difficuldades do seu transporte, já pelas necessidades
imperigosas do momento que os obrigam ao consumo todo interno. Assim, por
exemplo, a Inglaterra, a Allemanha e a França não desviam das suas minas
carboníferas o que para todas ellas constitue agora gênero de primeira necessidade.
Para se apreciar devidamente o valor deste combustível, convém que se saiba que em
tempo de paz a India arranca das entranhas da terra 16 milhões de toneladas de
carvão por anno e a Inglaterra 250 milhões de toneladas, que lhe valem talvez 70
milhões de libras!”115
Tal situação constituiu um fator determinante para que, ainda em 1915, a Grã-Bretanha
determinasse o fim da exportação de carvão mineral a partir do dia 13 de maio, exceto para as
possessões britânicas e para os países aliados116, o que, por si só, já representou um problema
considerável ao Brasil, que tinha nos ingleses os seus principais parceiros econômicos e, por
outro lado, a própria configuração beligerante afetou as relações com a Alemanha, segundo
maior parceiro comercial do Brasil, segundo Carlos Daróz117. Segundo o mesmo autor, pela
condição de neutralidade brasileira, uma grande quantidade de navios alemães pediu refúgio
em países neutros pelo medo de captura pelos países aliados. “Nesse contexto, paralelamente
114
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios (1875-1914). 12ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.
115
ESTADO DO PARÁ, 1 de março de 1915, edição 1.418, “A situação financeira e econômica da Inglaterra”.
116
ESTADO DO PARÁ, 1 de maio de 1915, edição 1.485, “Inglaterra”.
117
DARÓZ, Carlos. O Brasil na Primeira Guerra Mundial: a longa travessia. São Paulo: Contexto, 2016, p.
32.
ao decreto de neutralidade, o governo brasileiro determinou a internação de 44 navios
mercantes alemães e 2 austro-húngaros que se encontravam em portos brasileiros”118.
O cônsul britânico em Belém, Geo B. Michell, enviou carta ao jornal Estado do Pará
em 8 de março de 1916 informando que
118
Idem.
119
ESTADO DO PARÁ, 1 de maio de 1917, edição 2.183, “Washington, 26”.
120
BULMER-THOMMAS, Victor. Las economias latino-americanas, 1929-1939. In: BETHELL, Leslie (org.).
História de America Latina 11. Economía y Sociedad desde 1930. Barcelona: Crítica, 1984.
121
Idem, p. 5.
122
Ibid., p. 6.
123
ESTADO DO PARÁ, 10 de março de 1916, edição 1.792, “Ao commercio e á navegação”.
Portanto, a dimensão econômico-estratégica da guerra, sobretudo relacionada ao
carvão mineral, é fundamental para as questões relacionadas tanto à realidade do Brasil no
mundo em Guerra como na situação da navegação e seus desdobramentos. É nesse sentido
que verifiquei artigos de João Baptista de Loureiro em uma coluna por ele escrita no referido
jornal chamado “Assumptos Marítimos” cuja argumentação é interessante e crucial para a
argumentação desenvolvida no terceiro capítulo da tese em produção.
Chamo atenção ao artigo III, publicado em 1 de março de 1917, cerca de um mês antes
do rompimento da neutralidade pelos Estados Unidos com a declaração de guerra à
Alemanha. Seguindo uma linha de argumentação que criticava a postura do governo brasileiro
ante a marinha mercante nacional e a falta de interesse anterior sobre o carvão mineral,
Loureiro afirmou que “A nação que não tem carvão está sujeita a, de um momento para o
outro, ver paralisar a sua navegação a vapor e, se não tiver uma marinha a vela perfeita, não
terá nem uma nem outra navegação garantida”124.
“Foi assim que de 1910 a 1914 importamos, de differentes paizes, 9.218.888 toneladas cujo
custo (C.I.F.), somma á bacatella de 137.983 contos, moeda ouro.
Ora, a metade desse volume que fosse de consumo do carvão nacional, já daria 4.660
carregamentos para navios nacionaes do porte de mil toneladas, o que seria uma garantia para o
desenvolvimento da nossa reduzida marinha a vela, que os nossos modernistas consideram
como um característico de atraso. Entretanto, os Estados Unidos, que é a nação mais rica e uma
das mais adiantadas do mundo, nunca abandonaram a sua navegação a vela. Sempre
procuraram dotal-a dos mais modernos melhoramentos, simplificando o seu aparelho e
instalando machinas auxiliares para o serviço de carga e descarga, manobras etc.
124
ESTADO DO PARÁ, 1 de março de 1917, edição 2.123, “Assumptos Marítimos – III O Carvão Nacional e a
nossa navegação a vela”.
Graças a essa marinha a vela, é que não tem faltado em alguns portos do Brasil o carvão
americano.
Agora, na imminencia de declarar guerra á Allemanha, a grande nação do norte-americano
póde nos levar na sua cauda com um simples aceno.
Estamos sujeitos a trocar por carvão americano a nossa tão falada neutralidade”125
Considerações finais
Como parte da argumentação que compõe o capítulo, a hipótese analisada de João
Baptista de Loureiro e ratificada por mim considerando os dados apresentados e outros
presentes na pesquisa, é incidental, já que não encerra em si a tese defendida por mim no
projeto em questão, no entanto, ela é significativa também para pelo menos dois aspectos.
O primeiro deles diz respeito ao caráter da navegação brasileira em um processo de
transformações que marcou a segunda revolução industrial, isto é, a navegação a vapor é, sem
dúvidas, um dos grandes símbolos de um processo de modernização pela qual passou o Brasil
na passagem do XIX para o XX, por outro lado, se em algum momento o ato de modernizar
pressupôs um aumento da soberania nacional, já que a aquisição de uma marinha moderna
com os programas navais esteve fortemente presente nos debates do campo político e da
imprensa no Brasil das primeiras décadas do XX, inclusive estando presente na diplomacia do
Barão do Rio Branco e na defesa de Ruy Barbosa nas “Cartas de Inglaterra”, segundo coloca
125
Idem.
João Roberto Martins Filho126, esse mesmo processo significou uma realocação da
dependência brasileira (e latino-americana) em um processo de economia capitalista mundial.
Referências bibliográficas
126
MARTINS FILHO, João Roberto. A Marinha brasileira na era dos encouraçados, 1885-1910. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2010.
127
ESTADO DO PARÁ, 21 de fevereiro de 1917, edição 2.115, “Assumptos Marítimos II – A crise de
transporte, no passado, no presente e no futuro”.
128
ESTADO DO PARÁ, 14 de dezembro de 1918, edição 2.772, “Boletim da Federação Marítima do Pará”.
BULMER-THOMMAS, Victor. Las economias latino-americanas, 1929-1939. In:
BETHELL, Leslie (org.). História de America Latina 11. Economía y Sociedad desde 1930.
Barcelona: Crítica, 1984.
DARÓZ, Carlos. O Brasil na Primeira Guerra Mundial: a longa travessia. São Paulo:
Contexto, 2016.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios (1875-1914). 12ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2008.
MARTINS FILHO, João Roberto. A Marinha brasileira na era dos encouraçados, 1885-
1910. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
INTRODUÇÃO
129
Sharpe, 1992, p. 40.
representação em vias reais de ocorrência, do exercício de poder emanado por parte do país
norte americano em terras brasileiras.
130
Também chamado de “Mess House”, “U.S.O. Club”, “Clube dos Sargentos” e “casa de refeições”.
Atlântico Sul foi quando a Alemanha recebeu do general Pétain a autorização de operar as
instalações aéreas e portuárias da cidade de Dakar, o que permitiria um avião cruzar o oceano
e chegar ao ponto mais oriental da América do Sul em oito horas, podendo ainda utilizar as
ilhas do Atlântico como bases aéreas e portuárias (FERRAZ, 2005).
Não apenas ilhas do Atlântico foram usadas, mas também foram construídas bases ao
longo do litoral Norte, Nordeste e Sudeste brasileiro. Assim, a intenção norte americana que
se voltou ao território brasileiro veio com a premissa de nos auxiliar contra a possível ameaça
aérea que o Brasil estava a correr tendo sua costa agora tão próxima aos ataques aéreos
imprevisíveis do Eixo. No início da década de 1940, a construção dessas bases aéreas e navais
era um desejo dos Estados Unidos, que via o litoral brasileiro como estratégico no Teatro de
Operações do Atlântico. Nesse contexto, o aeroporto de Val-de-Cans é construído.
Figura 1: Escritórios da Pan American Airways na Base Militar de Val-de-Cans, circa 1942. Disponível em:
http://www.sixtant.net/2011/artigos.php?cat=u.s.-navy-bases-in-brazil&sub=u.s-navy-bases-&tag=6)usn-naf-
belem. Arquivo pessoal de Ozires Moraes, gentilmente cedidas para este trabalho.
“A capital do Pará era estrategicamente importante por uma dupla razão: era a porta
de entrada para a rica área de produção de borracha do vale amazônico e abrigava
um dos aeroportos militares mais importantes na rota Estados Unidos — África —
Ásia, por onde transitavam tropas e equipamentos militares. A importância militar de
Belém pode ser avaliada pela presença da base militar de Val de Cans, construída
pelo exército norte-americano na periferia da cidade. Belém foi também a primeira
cidade brasileira a receber militares norte-americanos na Segunda Guerra Mundial: o
primeiro grupo de marines ali chegou em dezembro de 1941.” (CAMPOS, 1999)
Isso nos ajuda a ter dimensão da quantidade de pessoas necessárias para colocar uma
base como a de Val-de-Cans em funcionamento, principalmente quando se fala dos
trabalhadores locais, em sua maioria pretos ou pardos, que em um contexto da Amazônia
como zona periférica do capitalismo, eram a mão de obra barata, que trabalhava descalça sob
o solo quente do clima belenense, como mostra a Figura 2. Nesse sentido, as obras
mobilizaram os trabalhadores da cidade e geraram empregos em um contexto de crise
econômica e escassez de alimentos, o que pode ter representado uma perspectiva temporária
de melhoria de vida.
Figura 2: Trabalhadores locais construindo as áreas de pouso, decolagem e reabastecimento, utilizados pelo
Exército e pela Marinha americanas e pela Força Aérea Brasileira, circa 1942. Disponível em:
http://www.sixtant.net/2011/artigos.php?cat=u.s.-navy-bases-in-brazil&sub=u.s-navy-bases-&tag=6)usn-naf-
belem. Arquivo pessoal de Ozires Moraes, gentilmente cedidas para este trabalho.
O CASO
131
Trecho retirado do termo de declarações prestadas por Terezinha de Jesus Moraes Pegado, página 6 do
documento original.
132
“Tendo o acusado oferecido à depoente e suas amigas uns copos de “Coca-Cola” o que foi aceito pela
mesma”. Trecho retirado da página 6 do documento original.
133
Ver surgimento da comercialização da Coca-Cola no Brasil, década de quarenta:
http://www.jipemania.com/coke/historia_coca_cola_br.htm
deixar uma cidade e sair de outra – ou quem sabe um país. Este passe era retirado no
lugradouro identificado no documento como “Murupú”134, um centro de recolha dos
automóveis da base de Val-de-Cans para uso dos funcionários e soldados desta.
Foi ao regressar do “Murupú” com o passe que Bob Fry viu que Terezinha conversava
com outro rapaz, e com raiva, rasgou o passe e pôs-se a beber, voltando depois à cena se
recompondo para agora sim retirar um novo ingresso e levá-la para a casa. Foi ao entrar com
Terezinha dentro do carro que o soldado inverteu a rota distanciando-se de qualquer
movimentação de pessoas naquela base. Tendo atingido determinada distância, este a
espancou e estuprou, e depois regressou ao local de retirada do passe regularmente pedindo
ainda que esta se mantivesse calma pois ele já não a faria mal algum.
Ao regressarem para o USO Club, Bob Fry novamente fez sinais de modificar a rota,
ao que Terezinha respondeu se jogando do carro em movimento e indo gritar por socorro.
Fora vista então por dois soldados da base que no dia seguinte, serviram depoimento, e a
ordem de histórias contadas por ela e por eles já não se coincidiu devidamente pelo fato de a
jovem sentir vergonha do que lhe acontecera e não querer que ninguém soubesse.
No dia seguinte esta não fora trabalhar e as agitações e murmúrios pelos pátios e
corredores da base já chamavam atenção. Assim, após o final de semana, Terezinha foi
procurada por dois investigadores da Polícia do Estado, por mais de uma vez e fora convidada
a depor.
“(...) entendeu-se com Celso Mendonça Penalber, que é o chefe dos investigadores
especiais em Val-de-Cans, o qual respondeu que não havia tomado e nem tomaria
nenhuma providencia sobre esse caso por que o mesmo tinha ocorrido com um
americano, cabendo ao Comando agir a respeito, demonstrando, assim, ou completa
ignorância de seus deveres funcionais ou conivência criminosa com o indiciado e seus
superiores (...)”135
134
Em aproximação fonética livre, identificamos que o “murupú” transcrito no caso poderia vir a ser na verdade
o “motor pool” da base.
135
Ver documento original, termo de declarações que faz João Carlos Dameno, pág 18 do processo.
após o crime a pedir socorro pela base. Damasceno foi inclusive, o responsável por relatar a
família da vítima e a dar cabo a polícia sobre o ocorrido.
Os desdobramentos deste caso nos fazem pensar até que ponto é exercida a justiça em
crimes sexuais em tempos de guerra. Quantos crimes cometidos de modo similar não
ocorreram e seguiram silenciados em vista da figura do herói de guerra como merecedor de
conquistas e acima de qualquer queixa do meio civil? O que se evidencia no caso é que, caso
este delegado especial não tivesse sido acometido de um senso de justiça para levar a tentativa
de resolução do caso, saindo da Base e levando a denúncia à Delegacia Especial de Segurança
Política e Social (DESPS), o nome de Terezinha só viria a constar nos registros jurídicos no
ano seguinte, em seus autos de casamento.136
Isso corrobora a ideia da Guerra Total, que afeta de maneira intensa a vida da população civil.
Fontes, em sua dissertação acerca dos padeiros em Belém, segue a mesma linha, defendendo
que a Segunda Guerra Mundial agravou as condições de trabalho e de vida dos trabalhadores.
Nos depoimentos que coleta, são citados o uso dos cartões para racionamento de comida; os
blecautes e a necessidade de economizar energia; a troca do açúcar pelo caldo de cana, da
farinha de trigo pela macaxeira em 1940 e 1941; a ausência de pão durante o ano de 1941. Por
outro lado, os depoimentos também relatam a solidariedade que aflora em tempos de crise e, o
que mais nos interessa, como a mulher foi ganhando espaços, sendo permitida sua
permanência na rua até mais tarde para ficar na fila da comida, ou mesmo dormir na fila, algo
que seria impensável fora de um contexto de extrema necessidade como o que se vivia.
136
Em meio a buscas dentro do mesmo acervo, encontramos o Auto de Casamento de Terezinha de Jesus Moraes
Pegado. Neste documento, ela já não constava como capataz das moças em Val-de-Cans, mas como doméstica.
O PAPEL DA MULHER
Trabalhar como uma garçonete e servir homens, tratando-os com cordialidade, como
ela mesma define, não é uma função que fuja do que se esperava da feminilidade da época.
Em meio ao esforço de guerra, unir a necessidade de conseguir sobreviver com a ideia de
ajudar seu país a vencer a guerra (lembremos que ela começa a trabalhar na Base no início de
1945) era unir o útil ao agradável. A resposta à segunda pergunta envolve descobrir mais
sobre esse hotel em que ela trabalhava, que recebe vários nomes nos depoimentos ao longo do
processo, sendo um deles “U.S.O. Club”. O objetivo da United Service Organizations (USO)
era ser uma casa longe de casa. Logo, o papel das mulheres que ali trabalhavam era fazer os
meninos se sentirem em casa. Diz o site da United Service Organizations: “Conforme os
papéis de gênero do período, muitos USO Clubs tiveram a posição de senior hostess. Uma
mulher estimada da comunidade local, a senior hostess coordenava as junior hostesses e as
atividades em grande escala nos USO Clubs.”137 Sobre esse ponto, concordamos com Meghan
Winchell:
137
Tradução livre de “In keeping with the era’s gender roles, many USO clubs had the position of senior hostess.
An esteemed woman from the local community, the senior hostess coordinated the junior hostesses and large-
scale activities at USO clubs.”. Disponível em: <https://www.uso.org/stories/111-13-things-you-probably-did-
not-know-about-the-uso-during-world-war-ii>. Acesso em 20 out. 2019.
comuns realizadas diariamente em casa em um cumprimento público das suas
obrigações perante o estado de guerra” (WINCHELL, 2004, p. 190)138
Mary Louise Roberts, em seu livro What Soldiers Do: Sex and American G.I. in World
War II France (2013), relata o caso do prefeito de Le Havre, na França, Pierre Voisin, que no
verão de 1945 escreve uma carta ao coronel Weed, comandante regional das forças
americanas, reclamando que os G.I.s, noite e dia, protagonizavam junto às prostitutas “cenas
contrárias à decência”, inadequadas para “olhos jovens” nas ruas e praças de Le Havre. Como
prefeito, Voisin tenta lidar com a situação tirando as protitutas da cidade e levando-as para
Paris de trem. Entretanto, o dinheiro que ganhavam (entende-se: dos soldados americanos) as
possibilitava descer na primeira parada e voltar. Ademais, Voisin propõe uma solução: tendas
especiais para essa finalidade nos terrenos das Forças Armadas americanas, supervisionados
pela polícia e médicos americanos que diminuiriam a taxa de doenças venéreas e controlaria o
problema da atividade sexual em público. O comandante americano responde a carta
declarando que a prostituição na cidade é um problema de Voisin e que não iria interferir
nesta questão. A partir desse relato, Roberts defende que:
Entendemos que essa frase sintetiza perfeitamente o que acontece neste caso. Por diversas
vezes no processo, observamos as relações internacionais do pós-Guerra transpassando a
esfera estritamente política/diplomática e emergindo em um inquérito policial a respeito de
uma violência sexual. Ou seja, o caso em questão simboliza também um controle que sai da
esfera de um pensamento americano enquanto um país superior a países periféricos, e
materializa-se em um crime de estupro entre um americano e uma civil de um país periférico.
138
Trecho original: “Although mending shirts, baking cookies, and ‘listening’ were hardly revolutionary
undertakings for middle-class women in the early 1940s in the same way that working in factories or joining the
Women’s Army Corps were, USO senior hostesses transformed these activities ordinarily performed daily at
home into a public fulfillment of their obligations to the wartime state.” (WINCHELL, 2004, p. 190)
139
Tradução livre do trecho a seguir: “(...) postwar transnational relations, far from being confined to diplomatic
or political circles, were shaped at every level of society, and often emerged through specific cultures of gender
and sexuality.” (ROBERTS, 2013, Edição do Kindle)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O relato inserido no trabalho de Roberts, em conjunto com a análise do caso que aqui
apresentamos, nos leva a responder algumas perguntas. A imagem e o lugar da mulher em um
ambiente de guerra, seja numa base militar ou fora dela, é de objeto de desejo sexual. Esses
casos também mostram que a questão sexual é uma questão política. Em Paris, foi questão de
políticas públicas, e em Belém, uma questão de justiça. Acreditamos que outros casos como o
de Terezinha podem estar em acervos de Belém, Igarapé-Açu, Amapá, Natal, Recife, São
Luís, Fortaleza, Rio de Janeiro, dentre tantos outros lugares que passaram pela experiência da
presença de militares estrangeiros na Segunda Guerra Mundial, não apenas os americanos,
mas britânicos, canadenses e outros aliados que por aqui passaram.
O que discutimos aqui também nos faz pensar sobre as marcas da guerra. A guerra
dos não combatentes140 que deixa marcas além dos tiros de metralhadora. São marcas no
corpo e na mente de todos que o tempo da Guerra viveram. Marcas na forma de viver,
exemplificadas pela própria Terezinha, que em dezembro de 1947 se casa com José Soares
Couto, o homem com quem estava prometida pra casar, e nenhuma referência há ao seu
trabalho na base ou a qualquer trabalho. Terezinha agora era doméstica, dona de casa. A
mulher que trabalhava fora até depois do anoitecer, que ganhava sua remuneração quinzenal e
tinha o poder de comandar outras mulheres no seu trabalho fora deixada para trás.
Por fim, reiteramos que nossa intenção neste trabalho não é esgotar as perguntas que
fizemos na introdução. Esperamos que a reflexão que aqui engendramos incentive os leitores
a caminhar no sentido de responder algumas dessas questões e, principalmente, fazer novas
que não havíamos pensado ou que por ventura não tenhamos nos permitido trabalhar pelas
limitações da própria pesquisa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
140
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WINCHELL, Meghan K. "To Make the Boys Feel at Home": USO Senior Hostesses and
Gendered Citizenship. Frontiers: A Journal of Women Studies. Vol. 25, No. 1 (2004), p. 190-
211
HEROÍNAS, GÊNERO E GUERRAS: AS MULHERES DA REVISTA NAÇÃO ARMADA
(1942-1945)
Este artigo tem por foco discutir narrativas sobre mulheres na imprensa militar,
especificamente na Revista Nação Armada, entre 1942 e 1945. O objetivo é compreender qual
feminino poderia ser benquisto, acolhido e narrado na perspectiva de militares e ou
associados/as (reformados, aposentados, etc.) ao militarismo, no momento de participação do
Brasil na 2ª Guerra Mundial.
Em primeiro lugar apresento, brevemente, a revista Nação Armada, evidenciando suas
características político-militares. Na sequência, analiso os alguns textos e notícias em que
mulheres são o foco.
141
A invasão da Polônia pela Alemanha nazista, em 1ª de setembro de 1939, é considerado o marco inicial da 2ª
Guerra Mundial (Hobsbawm, 1994).
142
Pedro Calmon, Gustavo Barroso, Menotti del Picchia, Azevedo Amaral, dentre outros (MONTEIRO, 2010, p.
43).
143
Segundo Abreu Beloch, Dutra atingiu o generalato em 1932. Comandava a 1ª Brigada de Infantaria, quando
dos levantes de 1935. Foi Ministro da Guerra de 1936 a 1945. Ocupou a Presidência entre 1946 e 1950
(BELOCH & ABREU, 1984, p. 1126-54). General Pedro Aurélio de Góes, o Chefe do Estado-Maior do Exército
no Estado Novo, foi Ministro da Guerra de 1934 e 1935.
Como já assinalado, na Nação Armada eram publicados artigos com assuntos
militares, assinados por fundadores ou colaboradores: memória militar, armamentos em geral,
tecnologias de guerra, estratégia, psicologia do combatente, as especialidades das Forças
Armadas, a importância dos militares, etc.. Francisco Affonso de Carvalho, fundador e
diretor de Nação Armada, à época major, é descrito por Monteiro como um homem de
“encorpada vida política e literária” (2010, p. 52)144. Outro importante militar que fez parte da
equipe da Nação Armada foi o General Francisco de Paula Cidade145.
Para Monteiro (2010), em fins da década de 1930, a revista A Defesa Nacional estava
mais focada do que as demais em questões consideradas próprias ao Exército, mantendo uma
identidade não intervencionista. Revista oficial do Exército, estava sob estrito controle de
órgãos internos deste e não foi publicada entre 1939-1940, anos iniciais da revista Nação
Armada, motivo desta última ter alcançado grande e rápida importância nos meios militares.
No período que nos interessa, a Revista Militar Brasileira se configura como uma quantidade
maior de textos referentes a tecnologias e estratégias militares, na comparação com as demais
e não contém nenhuma reportagem ou noticia referente a participação de mulheres na guerra,
seja no presente ou no passado.
144
Affonso de Carvalho publicou em 1931, dentre outras inúmeras obras, um romance chamado “1ª Bateria,
fogo!”, descrito na capa como o “Verdadeiro Livro da Revolução”.
145
Foi um dos chamados jovens turcos. No retorno da Prússia ao Brasil, participou da fundação da revista "A
Defesa Nacional". É também um dos fundadores da Biblioteca do Exército.
146
Primeiro texto da Nação Armada que se refere diretamente a mulheres. Foi publicado em de outubro de 1942,
dois meses após a decretação da entrada do Brasil na 2ª Guerra, contra os países do eixo. O texto trata da
transcrição de um discurso que teria sido proferido pelo Cap. Dr. Carlos Sudá, em cerimônia de juramento das
chamadas Samaritanas, no dia 23 do mesmo mês, no teatro municipal do Rio de Janeiro. As samaritanas,
referência à famosa parábola cristã sobre a compaixão, eram mulheres que haviam realizado um curso de
enfermagem de apenas um ano, frente à urgência da guerra.
mulheres na guerra” (nov. 1943), de Edith McNamara147; uma dita homenagem de uma
página, intitulada “O Heroísmo das legionárias de Anna Nery!”, publicada em 1945, dois
meses antes do retorno da FEB ao Brasil148; e uma breve nota, publicada em de outubro de
1945, noticiando o recebimento da Medalha de Guerra, pela 1ª dama Darcy Vargas149. Além
disso, foi publicado um artigo de cinco páginas, escrito pelo General Paula Cidade, referente
ao sucesso da música/poema Lily Marleen (1915/1938), que trata da saudade das mulheres
dos combatentes. Devido ao limite de paginas estabelecido, discuto neste texto somente o
texto referente as heroínas militares do passado, apresentadas pelo Cap. Dr. Carlos Sudá, uma
vez que condensa a concepção de um feminino que perpassa os demais textos.
O Capitão médico inicia o texto apontando a finalidade e a preocupação com o
reconhecimento de ações de mulheres ao longo de marcos oficiais de um passado glorioso do
Exército Brasileiro, em um momento crucial de convocação às mulheres ao esforço de guerra.
As lideranças militares, bem como políticos e organizações femininas, tais como a LBA150
também se voltaram a enunciados que responsabilizavam mulheres pela defesa da Pátria.
Cap. Micaldas Correia, inicia observando que as mulheres já participavam ativamente
de amplos espaços da sociedade: “[...] Nos lares e nas escolas, nos hospitais e nos
laboratórios, nas fábricas e nos campos, em todas as atividades pacíficas, avulta a
personalidade da mulher brasileira.” (CORREIA, 1942, p. 33). Entretanto, completa: a
147
Em quatro páginas, McNamara, utilizando pesquisas de universidades estadunidenses, argumenta sobre a
necessidade e sucesso do trabalho de mulheres em fábricas nos EUA, principalmente, em fábricas de
armamentos. Condizendo ao feminismo estadunidense do período, McNamara argumenta que esse sucesso pode
ser expandido com a adoção de cargas horárias menores, que possibilitariam um melhor aproveitamento do
trabalho das mulheres mães.
148
Para além das enfermeiras que logo retornariam do front, no texto, a homenagem é para todas as “abnegadas
patrícias” que trabalharam de forma sacrificial pela pátria. A dicotomia espaço público/privado, explícita,
reafirma esses lugares como forjados pelas oposições paz/guerra, perigo/proteção, casa/rua, descanso/esforço;
prazer material e vicissitudes.
149
A nota relata que a medalha, recebida diretamente das mãos do Gen. Góes Monteiro, foi encaminhada ao
Museu Histórico, após pedido de Darcy, como homenagem a todos os civis “[...] que na retaguarda,
contribuíram com qualquer parcela para a vitória final dos soldados do Brasil.” (Nação Armada, 1945, n. 71, p.
119). Com esse gesto político, Darcy Vargas reparte com os demais civis o sucesso da empreitada de sua ação
pessoal à frente da LBA..
150
A LBA foi fundada concomitantemente a entrada do Brasil na 2ª guerra, em 28 de agosto de 1942, pela 1ª
dama Darcy Vargas, com a finalidade declarada de "[...] amparar os soldados brasileiros e seus familiares" por
parte dos “brasileiros de boa vontade” (BARBOSA, 2017). A LBA, fundada pela parceria Estado e
empresariado brasileiro, tinha como base de sustentação o chamado voluntariado feminino, abrangendo todo o
território nacional e inaugurando o que foi chamado de 1º damismo (Ver: SIMILI, 2008). Para Ana Paula Vosne
Martins, a organização da LBA, voltada a assistência social, é um indicativo de como o Estado Novo criou as
condições para o exercício do que a autora chama de “cidadania feminina”. Era a difusão da ideia e de práticas
em que as mulheres seriam de suma importância na ocupação do espaço público, utilizando a maternagem como
prática política, voltada a toda a sociedade, como já estava acontecendo nos regimes autoritários europeus:
estado novo salazarista, na Itália fascista e na Espanha franquista (MARTINS, 2011, p. 16). A crença nas
capacidades de salvaguarda moral e física de toda a família, inerentes a um feminino doméstico, privado, mas
expandido ao espaço púbico, fazia parte do debate político brasileiro, pelo menos desde fins do século XIX,
sobretudo, com a eclosão do debate sufragista (Ver: SOIHET, 2006).
situação de guerra exige um novo esforço. Nas enfermarias, curando os feridos; nas fábricas;
nos transportes e até nas milícias. Sobretudo, destaca a função das mulheres na preparação
moral dos filhos à guerra, bem como o esposo ou irmão. Na sequência, o capitão passa a
narrar, como, várias mulheres, com essa função – esteio moral -, haviam sido fundamentais a
vitórias militares do passado.
Capitão Correia aborda no texto um total de treze heroínas, descritas de forma
cronológica: quatro relativas a Batalha dos Guararapes (abril de 1648 e fevereiro de 1649);
duas sem precisão de período/evento; duas relacionadas a luta pela independência (1822);
uma referente a Guerra de Farrapos (1835-1845); 4 quatro participantes da Guerra do Paraguai
(1864-1870).
Em relação as heroínas da Batalha de Guararapes, primeiro ou segundo confronto, o
artigo enumera e descreve as seguintes mulheres: Clara Camarão, esposa de herói Potí, como
a “[...] mulher índia, lutou sempre ao lado de seu marido” (Idem, p. 33); Maria de Souza, mãe
que,
Depois de ter perdido três filhos e o genro, não se abateu. Ao contrário, cresceu-lhe o
sentimento de revolta. Restavam-lhe dois filhos, um de 13 e outro de 14 anos.
Mandou-os também para a luta, dirigindo-lhes as seguintes palavras – ‘Hoje foi
vosso irmão Estevão morto pelos holandeses; a vós agora toca cumprir o dever de
homens honrados, numa guerra em que se serve a Deus, ao Rei e à Pátria. Cingí as
espadas, e, quando vos lembrar o triste dia, em que as pondes à cintura, inspire-vos
ele não mágoa, mas no desejo da vingança que, quer vingueis vossos irmãos, quer
sucumbais como eles, não degenereis deles, nem de mim.” (Ibidem, p. 33)
A devoção das mulheres mães à defesa da pátria é posta acima da vida dos filhos. Essa
é uma narrativa que se repete em relação às demais personagens mães. A cobrança da defesa e
manutenção da honra masculina é posta como uma exigência da mãe, do feminino, aos
homens. Em relato parecido, Correia relata que Dona Ana Pais, descrita como senhora de
engenho de Pernambuco, em uma situação em que mulheres estavam reféns de soldados
holandeses e eram usadas como escudo, teria proclamado: “‘Atirem! Não se importem
conosco! Atirem!’ Resolveram então os brasileiros assaltar o engenho à arma branca,
correspondendo à abnegação das mulheres com redobrada bravura.” (CORREIA, 1942, p. 33).
A coragem das mulheres, o destemor frente à morte eminente, serve de alavanca à exigência
da coragem dos homens, os quais precisam corresponder à dita abnegação delas com a
bravura e ferocidade necessária ao embate. A narrativa de Correia sobre as chamadas
“Mulheres de Tejucupapo” segue na mesma direção:
Poucos homens válidos haviam; o mais, eram velhos, mulheres e crianças. [...] Há
um esmorecimento. Mas, uma das mulheres, com um crucifixo numa das mãos e
uma espada na outra, transfigurada, heroica, incentiva o combate. Então, as
mulheres, tomando as armas dos homens caídos, contra-atacam, investem,
desorientam e assombram o inimigo, que recua desordenado. (CORREIA, 1942, p.
34).
151
Relatos sobre essas valentes mulheres se encontra na obra “Valeroso Lucideno", de 1648, escrita pelo frei
português Manoel Calado.
152
Celebradas por grupos de partidos de diferentes matizes políticas tais como o Portal Vermelho
(http://www.vermelho.org.br/noticia/279398-1) e cartilha do Partido Democratas http://www.mulher
democrata.org.br/download/cartilha_maio.pdf.
holandeses, invasores, para o português opressor, duas heroínas das lutas pela independência
(1822) - Soror Angélica e Maria Quitéria-, exemplificam também aquelas que não titubearam
e tomaram para si a defesa do convento, da terra, da Pátria. No famoso ataque ao convento da
Lapa, pelos portugueses, segundo a narrativa do Cap. Correia, a soror teria bramido: “Para
trás bandidos! Respeitai a casa de Deus! Antes de conseguirdes vossos infernais desígnios,
passareis por sobre o meu cadáver’ e tombou golpeada à espada” (Idem, p. 35).
Maria Quitéria, por sua vez, é descrita pelo capitão de forma breve. Talvez por se
tratar de personagem mais conhecida que as demais, mesmo em 1942153. Ela teria fugido de
casa e se alistado no Batalhão de Voluntários de Dom Pedro I, com indumentária masculina.
Em 1823, uma vez descoberta sua condição de mulher, foi recebida por Dom Pedro, o qual lhe
concedeu o soldo de alferes de linha e a condecoração de Cavaleiro da Ordem Imperial do
Cruzeiro. Sua imagem se encontra consolidada na história oficial do Exército, carecendo de
pesquisa específica.154
Na narrativa de Correia, outra personagem também consolidada na cultura histórica
sobre a Guerra de Farrapos, Anita Garibaldi, exemplifica a intervenção de mulheres em
combates e que coloca a masculinidade/virilidade dos homens em cheque:
Certa vez, num combate entre navios, descendo de um posto abrigado, atravessou
uma zona perigosa. Quiseram detê-la, ... “Vou sim, para buscar os covardes que se
esconderam lá em baixo!” Dali a pouco voltava, conduzindo um grupo de
marinheiros, que se atiraram à luta, envergonhados. (Ibidem, p. 36).
A vergonha dos homens, no chamamento à ordem, descrita por Correia, tem esse
efeito justamente por se tratar de uma exigência feita por uma mulher. Vista como espécie e
simbolicamente posta como avessa a coragem, e que, fora de seu lugar, coloca em flagrante a
situação de fraqueza de homens. O deslocamento da condição de masculinidade se dá, não
somente pela hesitação, medo e indecisão perante o combate, mas, principalmente pela
presença aguerrida de mulheres nela.
Na Itália, a Anita descrita pelo capitão, na condição de “[...] Grávida de cinco meses,
faminta e ardendo em febre, não resistiu e morreu heroicamente” (CORREIA, 1942, p. 36).
Os filhos já nascidos, ou os filhos ainda por nascer, não impedem a bravura dessas mulheres.
Muito pelo contrário. É justamente esses lugares de um feminino - mãe sacrificial e esposa
153
Maria Quitéria é “patrono” do quadro complementar de oficiais do Exército Brasileiro, desde 1996.
154
Disponível em < www.cdocex.eb.mil.br/site_cdocex/.../mariaquiteriadejesus.pdf>. Acesso em: 23Fev2017.
devotada -, que são aclamados no chamamento de outras mulheres ao esforço de uma guerra
premente, e, principalmente, na exigência de tomada de brios aos homens.
Por fim, Capitão Correia delineia a participação heroica de quatro mulheres na Guerra
do Paraguai. No chamado Ataque ao Forte de Coimbra (1864), Ludovina Portocarrero é
descrita como “[...] digna de seu marido. Incentivava os homens ao combate e chefiou um
grupo de 70 mulheres que ali permaneceram, contribuindo para a resistência, preparando e
confeccionando munição para o que usaram até as próprias roupas” (Idem, p. 37). A Francisca
Conceição, pernambucana, que com 13 anos, teria se casado com um cabo e seguido,
disfarçada de homem, junto com ele para o sul do país para lutar: “[...] ela assiste à morte do
companheiro. Jura vingá-lo” (Ibidem, p. 37). Ferida em Curupaiti (1866), no hospital
descobrem que é uma mulher. Correia termina sem nos revelar o desfecho. A história dela ali
termina. A ênfase dele é em demarcar a devoção de uma esposa que entrou em combate,
primeiro, para acompanhar o marido e, depois, para vingá-lo. Em relação a Ludovina, “digna
de seu marido”, ao ocupar lugar de comando e combate, nos mostra o despojamento de
mulheres, até das próprias roupas, para não se deixar sucumbir ao inimigo. Essas mulheres são
descritas tal qual aquelas que lutaram nos processos de independência em toda América
Latina, discutidas por Maria Ligia Prado (1999). Além disso, é importante assinalar que a
produção histórica ainda carece de pesquisas em relação ao que parece não ser tão somente
raridade: mulheres disfarçadas e/ou vestidas como homens, acompanhando os maridos/filhos,
ou não, e fazendo parte dessas tropas.
Mais uma importante personagem narrada pelo Cap. Correia, nada mais é do que a
senhora Rosa da Fonseca, mãe do Marechal Deodoro. Somente no final da narrativa sobre o
heroísmo dela, Correia dá essa informação. O fio condutor do texto coloca sua bravura e
importância histórica como sendo anterior e derivativa de seu ilustre filho:
[...] nascida em alagoas, mãe de sete filhos homens, os quais lutaram todos na guerra
do Paraguai. Cogitação de tratado de paz com o inimigo, declarou: “Prefiro não ver
mais meus filhos! Que fiquem antes todos sepultados no Paraguai, com a morte
gloriosa no campo de batalha, do que enlameados por uma paz vergonhosa para a
nossa Pátria! (CORREIA, 1942, p. 38).
Com o recebimento da notícia de que um dos filhos tinha sido morto e outros dois
feridos (um deles Deodoro), segundo o capitão, Dona Rosa chorou mais uma vez o sacrifício
da prole, mas “[...] comemorou a vitória mandando iluminar a fachada da casa e enfeitando-a
de flores e bandeiras. Nesse dia, em que se misturavam a dor e a alegria, disse ela: ‘A vitória
que a Pátria alcançou, e que todos foram defender, vale muito mais que a vida de meus
filhos.’” (Idem, p. 38). A Pátria, acima de todas as coisas, mesmo para as mães, embala as
narrativas militares sobre suas heroínas. A ideia de Pátria se mescla a ideia de uma família
coletiva, nacionalmente preparada para os sacrifícios necessários a sua manutenção e/ou
vitória, em que o decantado amor materno não poderia interferir. Longe disso. São as mães,
são as esposas, são as mulheres que conduzem, induzem, dão ânimo, a luta e ao sacrifício dos
homens.
Dona Rosa da Fonseca foi elevada a categoria de Patrono da Família Militar, em 2016.
A família militar, categoria recentemente utilizada em pesquisas sobre militares (Ver:
CASTRO, 2018), é também pelo Exército, “[...] na figura de Rosa da Fonseca, reconhecendo
a importância do espírito de sacrifício e de luta, o qual possibilita aos integrantes da Força
Terrestre alcançarem o sucesso pessoal e profissional, com o sentimento de dever cumprido,
seja qual for a missão”155. Assim como diversas heroínas, na família militar a função das
mulheres é impulsionar o brio e a valentia dos homens, sem lugar para o lamento das
inevitáveis perdas.
Relatando a história de mais uma heroína da Guerra do Paraguai, capitão Correia
escreve sobre a baiana Ana Justina Ferreira – Ana Neri – que casou com Izidoro Antonio
Neri, oficial da Marinha. Teve três filhos homens: dois médicos e um militar. Cedo enviuvou.
Com a partida dos filhos para a guerra, a mesma teria escrito ao presidente da província da
Baía, em 8 de agosto de 1865:
[...] como brasileiro [sic], não podendo ser indiferente aos sofrimentos dos meus
compatriotas, e, como mãe, no podendo resistir à separação dos objetos que me são
caros, e por uma tão longa distancia, desejava acompanha-los por toda a parte,
mesmo no teatro da guerra, se isso me fosse permitido; mas opondo-se a esse meu
desejo e minha posição e o meu sexo, não impedem, todavia, esses dois motivos, que
eu ofereça os meus serviços em qualquer dos hospitais do Rio Grande do Sul, onde
se façam precisos, com o que satisfarei ao mesmo tempo meus impulsos de mãe e os
desejos de humanidade para com aqueles que oram sacrificam suas vidas pela honra
e brio nacionais e integridade do Império. (Ibidem, p. 38)
155
Portaria n. 650, de 10 de junho de 2016. (Ver: http://www.eb.mil.br/patronos//asset_publisher
/e1fxWhhfx3Ut/content/olavo-bilac-servico-milit-1?inheritRedirect=false)
Entretanto, essa alcunha lhe foi dada a partir do poema, escrito por Rozendo Muniz Barreto,
estudante de medicina, o qual teria sido testemunha da atuação de Ana Neri. Cap. Correia
destaca que aos 50 anos, durante cinco anos, ela acompanhou as campanhas “[...]
enfrentando pestes, cuidando de feridos, consolando enfermos, organizando enfermarias com
recursos próprios. Tratava aliados e inimigos com o mesmo carinho, e os doentes chamavam-
na de ‘mãe’”. (CORREIA, 1942, p. 39).
Importante assinalar que, em 1938, Getúlio Vargas havia instituído o Dia do
Enfermeiro, a ser celebrado em 12 de maio. O decreto determinava que nessa data deveriam
ser prestadas homenagens especiais a memória de Ana Neri, em todos os hospitais e escolas
de enfermagem156. a flexão de gênero nos diplomas profissionais de homens e mulheres, só
passou a ser utilizada a partir de decreto presidencial de 2012, após problematização, tanto
dos movimentos sociais quando das teorias feministas sobre a linguagem e as relações de
poder, e as críticas pós-estruturalistas ao chamado masculino universal157.
Enaltecendo um feminino relacionado a um ideal militar de mãe e esposa:
protagonistas da elevação moral dos homens, seja pelo exemplo de coragem que chega a os
envergonhar; seja pela abnegação ou até exigência do sacrifício da vida dos filhos, do marido
e de si mesma; seja pela manutenção da elevada moral e honra do marido, Capitão Correia
finda seu texto:
Tal como Rosa da Fonseca, Darcy Vargas e outras tantas, o feminino possível nas
narrativas de militares é a da mãe dos brasileiros e/ou filhas de Benjamin Constant.
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156
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157
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MILITARES, GEOPOLÍTICA E FRONTEIRAS
Shiguenoli Miyamoto
Departamento de Ciência Política - Universidade Estadual de Campinas158
Introdução
Ao serem construídas, as muralhas da China, exercendo o papel de fronteiras ou linhas
divisórias entre soberanias, tinham uma finalidade específica: conter os inimigos. O que se
verificou depois é que elas não atingiram integralmente seu objetivo. Da mesma forma, o que
teria ocorrido com a queda de Tróia mostra que a inviolabilidade de um território sempre
esteve longe de ser plenamente assegurada, com as fronteiras sendo constantemente rompidas.
Derrubadas ou adentradas por subterfúgios, as muralhas, as fortificações e castelos,
assim como as fronteiras dos territórios nunca resistiram indefinidamente, e foram vencidas
dependendo de alguns fatores: persistência daqueles que atacam, aliada à sua capacidade
bélica e tempo disponível, além de recursos e logística apropriados.
A inexpugnabilidade dos países nos tempos contemporâneos igualmente jamais
existiu. Com o domínio dos ares e do espaço, as fronteiras viram diminuída sua capacidade de
proteger um território, uma vez que os artefatos atômicos e nucleares acabaram com a ideia do
que se pretendia ter de segurança absoluta de um Estado. (KISSINGER, 1962).
A concepção almejada de segurança absoluta por parte dos governos, com fronteiras
invioláveis, jamais poderia ser concretizada, uma vez que um território ao atingir tal
propósito, colocaria todos os demais membros da comunidade internacional em insegurança
absoluta, convertendo-se esses últimos, portanto, em reféns do primeiro.
Foi com perspectiva semelhante a essa que, na década de 1980, Washington pensou
no projeto “Iniciativa de Defesa Estratégica” (Strategic Defense Initiative – SDI), conhecido
como “Guerra nas estrelas” no governo de Ronald Reagan, mas que não foi implementado.
Em termos geopolíticos, as fronteiras são linhas divisórias, mas sempre permeáveis,
porosas, impossíveis de serem protegidas em sua integralidade, invioláveis como desejariam
os governantes. Isso se aplica, mesmo antes do advento dos equipamentos nucleares, inclusive
às fronteiras consideradas dinâmicas ou quentes, entre países com históricos litigiosos, porque
158
A produção deste texto e a participação no evento contaram com recursos do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), através de Bolsa de Produtividade em Pesquisa nível 1A
concedida ao autor.
demandariam recursos financeiros e humanos em escala considerável, onerando em demasia
os orçamentos nacionais. Além do mais, na ocorrência de um conflito, um contendor com
capacidade bélica maior dificilmente encontrará dificuldades para romper as linhas divisórias
e quebrar soberanias alheias. As fronteiras consideradas mortas, por outro lado, não se
constituem em problemas justamente pelo fato de os parceiros dos dois lados manterem
relações cordiais/amistosas, onde as segurança e defesa não se colocam como temas
prioritários de suas agendas bilaterais.
Nos tempos atuais, por razões diversas, barreiras físicas têm sido levantadas para
dificultar ou impedir a entrada de populações consideradas indesejadas verificado, por
exemplo, nos casos de Israel e dos Estados Unidos da América. É o mesmo tipo de política
adotada na época da guerra fria quando na Alemanha, a partir de 1961, se ergueram muros e
cercas de arame para evitar a fuga de pessoas de Berlim Oriental para o outro lado. Ao assim
agirem, os países justificam tais medidas enfatizando a necessidade de defender sua soberania,
procurando manter a integridade territorial e suas instituições. São consideradas políticas
realizadas no âmbito doméstico escapando, portanto, de qualquer interferência externa, ainda
que parte da comunidade internacional considere hostis posturas dessa natureza. Em termos
análogos, políticas com essa finalidade pouco diferem das adotadas por países europeus,
quando tentam impedir a entrada em seus territórios de refugiados africanos.
Geopolítica e Fronteiras
O preenchimento de todos os espaços ao longo das fronteiras seja com populações, seja com
culturas agrícolas , procura mostrar que não há partes do território que possam ser alvo de
disputas. Métodos como esses possibilitaram ao Brasil a incorporação do Acre em 1903, bem
como de reclamações do Paraguai nos anos 1970 e 1980, com a cultura da soja, a aquisição de
propriedades do outro lado rio Paraná e com a ida dos chamados brasiguaios ao território
guarani. (LAÍNO, 1979: 65-131; WETTSTEIN & CAMPAL, 1975).
Para Laíno (1979, p. 244) no caso latino-americano:
“é possível provar com fatos a aplicação prática e com êxito dos conceitos brasileiros
sobre fronteiras sensíveis ou fronteiras vivas e além disso descobrir amplamente, este
principio geopolítico ligado estreitamente a uma estratégia global de marcha para o
oeste. Todos os países que fazem fronteira com o Brasil sentem os efeitos da expansão
e de alguma maneira se esforçam para neutralizá-lo.”
Nada de diferente do adotado pelos demais países que, da mesma forma, tem em suas
Forças Armadas o instrumento entendido como necessário para proteção de seus territórios e
de suas instituições. Daí os investimentos considerados imprescindíveis para que as mesmas
possam estar preparadas no momento em que se fizerem necessárias.
No Brasil, o tema das fronteiras esteve sempre ligado à geopolítica e aos militares
umbilicalmente. Nem poderia ser de maneira diferente. Assim como ocorre nos demais países
do mundo, excetuando a possibilidade de um conflito nuclear, ou de ataques aéreos de grande
altitude, as fronteiras sempre se constituíram na barreira primeira para tentar impedir a entrada
de inimigos. Mesmo quando o termo geopolítica não havia sido criado, a evolução da história
nacional mostra a importância do uso dos elementos geográficos na configuração do território
brasileiro e os acordos realizados para manter as áreas conquistadas.
Se a ampliação do espaço brasileiro nem sempre contou com a presença militar, é
patente, por outro, a perspectiva geopolítica para a conquista de mais e mais áreas. Nos
tempos recentes, as duas instâncias responsáveis por problemas relativos à fronteira, como os
diplomatas e os militares, estiveram sempre na linha de frente para assegurar as conquistas
obtidas ao longo dos anos.
Após a consolidação das linhas fronteiriças nacionais, diplomatas e militares passaram
a desempenhar papéis diferenciados. De um lado, o discurso de respeito às normas do Direito
Internacional e o uso de instrumentos apoiados no diálogo e nas negociações. De outro lado,
na visão castrense, a necessidade de proteção das fronteiras é pensada sob o prisma da
necessidade de instrumentos bélicos capazes de persuadir potenciais inimigos e de lhes fazer
frente, se necessário, na defesa do território, começando pelas fronteiras, ou seja trata-se de
raciocínio que leva em conta a visão conspirativa da História.
Considerações finais
Os conceitos geopolíticos apregoados pelos adeptos do determinismo que entendem o
domínio dos fatores geográficos como fundamentais para a vitória em conflitos tem validade
limitada, diante dos avanços das novas tecnologias que cotidianamente são disponibilizadas.
É certo, entretanto, que elementos geográficos são importantes na formulação e
implementação de políticas de defesa de um país. Exemplos podem ser mencionados
envolvendo a Rússia, mesmo quando essa não tinha ainda tal designação: a derrota dos
invasores germânicos em 1294 diante de Alexander Nevsky; o fracasso de Napoleão
Bonaparte em 1812 e a invasão mal sucedida feita pelo III Reich após romper o tratado
Ribbentrop-Molotov firmado em 1939. Em todos esses casos, as condições climáticas foram
importantes para o insucesso dos estrangeiros.
Mas não se pode creditar à geopolítica a vitória em todas as ocasiões. A geopolítica
sempre foi pensada e utilizada para auxiliar na formulação de uma grande estratégia nacional.
De acordo com tal perspectiva, o governo brasileiro procurou lançar mão de condições
favoráveis para planejar a defesa do território brasileiro, principalmente no que diz respeito à
questão amazônica.
O problema mais agudo que se coloca é que as dificuldades enfrentadas pelo país há
vários anos tem impossibilitado que os resultados sejam alcançados, uma vez que não dispõe
dos vetores necessários como equipamentos e armamentos modernos, além de flutuações
orçamentárias que afetam sobremaneira qualquer tipo de planejamento de médio e longo
prazo. Mesmo em curto prazo as atividades têm sido frequentemente prejudicadas.
Preocupação primeira dos militares, as fronteiras não têm sido protegidas com a
devida atenção. Em muitas ocasiões, as Forças Armadas tem sido chamadas a atividades
outras para as quais não estão devidamente preparadas, ainda que tais atividades estejam
respaldadas pelo texto constitucional sobre o seu papel e os momentos em que podem ser
mobilizadas.
Referências bibliográficas
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HOBBES, T. Leviatã. São Paulo: Abril S.A., 1974.
Introdução
Durante algum tempo a guerra, objeto maior da história militar, foi tratada como se
não houvesse relações com outros setores da vida humana. Para muitos historiadores, a
história da guerra, como a história política, sofreu um desprestígio e foi relegada: “em lugar
do problemático, do caótico; em lugar do serial, o excepcional; em lugar dos saltos frutíferos
pelas alamedas régias do social e do econômico, a erupção desordenada do contingente: a
famosa ‘sorte das armas’” (AZÉMA, 2003, p. 401)
A produção acadêmica das últimas décadas, tanto internacional como observada nas
obras de Jean Jacques Becker e Antoine Prost, quanto nacional após 1990, com nomes como
Francisco César A. Ferraz, indicam novas possibilidades, metodologias e interpretações a
temas militares, direcionam para um caminho interdisciplinar e abrangente, uma transposição
a antigos pressupostos. (ZARPELÃO, 2014)
Para tanto, será exposto nesse artigo, algumas colocações e problemáticas acerca da
possibilidade do estudo da guerra, em especial da propaganda política de guerra, na História
Política e Militar renovada, bem como na intersecção com a História da Imprensa, dentro dos
preceitos de renovação teórico- metodológicas das últimas décadas, que possibilitou o contato
com outras áreas, entre elas a mídia.
A chamada Nova História Política, se desenvolveu e se fez incorporar temas, objetos
e abordagens, como exposto por Jacques Julliard, deixando de ter o Estado como objeto
principal, por consequência a restrição a eventos e seus principais representantes. Outro
aspecto, é que a historiografia dos anos 50 e 60 relegaram a História Política como sendo
secundária, mas não se ganharia nada em confundir as insuficiências de um método com seu
objeto. (JULLIARD, 1974) Afinal, como afirmou o historiador Raymond Aron, “nunca houve
razão, lógica ou epistemológica, de afirmar que os conhecimentos históricos dos fenômenos
econômicos e sociais apresentam em si um caráter mais científico do que o conhecimento dos
regimes políticos, das guerras ou das revoluções.” (ARON apud JULLIARD, 1978, p. 182)
Apesar de ter sido “deixada de lado” por muitos, a História Política continuou sendo
escrita, inclusive na França. Nas últimas décadas, a História Política foi incluída como foco de
novas reflexões, considerando que o político também é uma dinâmica importante para a
compreensão histórica.
A obra Por uma História Política, um dos marcos da renovação, organizada por um
dos principais articuladores da História Política renovada, o historiador francês René Rémond,
e escrita por diversos autores que em comum compartilham a ideia do político como domínio
privilegiado da articulação do todo social, publicada na França em 1988, aborda
considerações importantes a esse artigo, como a incorporação de novos objetos e métodos de
análise que rompem as barreiras antes colocadas.
Essa Nova História Política passou a permitir o estudo de todos os homens em suas
práticas cotidianas, colocou em cena as ideias políticas não só do Estado, mas do conjunto de
uma sociedade em suas relações de poder. Incorporou novos temas, abordagens, atores
históricos e meios de circulação, amparada em parte pela interdisciplinaridade.
É através desses pressupostos que buscaremos demonstrar a possibilidade de estudo,
com uma intersecção entre a Nova História Política, a também renovada História Militar, bem
como a interdisciplinaridade com as demais áreas. A proposta abrange o contexto histórico da
Segunda Guerra Mundial, com fontes midiáticas utilizadas pelos aliados ao Brasil com
objetivos de manter sua hegemonia no continente. Ambos são periódicos, intitulados Em
Guarda: para a defesa das Américas e A Guerra Ilustrada, produzidas pelos Estados Unidos
e Inglaterra, respectivamente.
As revistas constituem em importantes fontes para se compreender o uso político
vislumbrado por ambos os países através imprensa, que buscavam por este meio intervir no
contexto exportando concepções de guerra e atraindo aliados. Nas palavras de Rémond “[...]
os meios de comunicação não são por natureza realidades propriamente políticas: podem
tornar-se políticos em virtude de sua destinação, como se diz dos instrumentos transformados
em armas. ” (2003, p. 441), ou então, como afirma Tania Regina De Lucca “não poderia
dispensar a imprensa [a História Política], que cotidianamente registra cada lance dos embates
na arena do poder. ” (2006, p. 128)
Novas possibilidades: a propaganda de guerra dos aliados no Brasil através das revistas
Em Guarda e A Guerra Ilustrada (1939-1945)
A partir dessa ressignificação do campo político, que passa a abranger aspectos dos
mais diversos (como o cultural, social, econômico e religioso), podemos compreender o
intercambio, ou melhor, a interdisciplinaridade e a amplitude de possibilidades a outros
campos buscarem essas mudanças teórico-metodológicas, caso da Nova História Militar, que
reivindica, a partir de então, sua autonomia.
Durante a maior parte do século XIX, a História Militar foi frequentemente associada
a outros campos da história e mesmo da literatura. Seria difícil dissociá-la desses gêneros para
considerá-la um campo próprio. A chamada História Militar Tradicional dedicava-se a análise
de documentados das instituições, guerras, campanhas, batalhas e táticas, associada a datas,
nomes de líderes e forças armadas envolvidas. (CASTRO; IZECKSOHN; KRAAY, 2004) A
exemplo da temática militar da guerra, tratada como se fosse algo isolado, sem ligação com
outros setores da vida humana como a economia, a sociedade e a política interna e
internacional. (ZARPELÃO, 2014)
A Nova História Militar, abordada na América inglesa há algum tempo e expandida
no Brasil por volta da década de 90, está associada à relação entre as Forças Armadas e tudo
que se refere à temática militar com a sociedade, política, religião, cultura, economia, entre
outros. Seria difícil tratar a história militar como algo distinto da história mais ampla da
sociedade, a qual soldados e oficiais são recrutados. (CASTRO; IZECKSOHN; KRAAY,
2004)
A exemplo dessa renovação consideramos a obra História Militar: novos caminhos e
novas abordagens a qual reúne especialistas que analisam a participação das instituições
militares e seus componentes na política e na sociedade, investigando temas como
recrutamento, ensino militar, crises políticas, memória, conflitos internos, intervenções
políticas, enfim, uma gama de arquivos civis e militares, nacionais e internacionais, que
demonstram as diversas possibilidades da área. (RODRIGUES; FERRAZ; PINTO, 2015)
Deste modo, tanto a história política quanto militar, relegadas ao ostracismo no
decorrer do século XX, construíram novas possibilidades, metodologias, abordagens,
englobaram novos objetos, e estão associadas a intensa troca interdisciplinar.
Segundo Jean-Pierre Azéma, a temática das guerras do tempo presente conquistou
considerável espaço nas universidades francesas, interesse o qual também pode ser verificado
no Brasil contemporâneo.
Existem muitos temas inseridos no universo militar, mas nenhum deles talvez exerça
tamanho fascínio, preocupação e necessidade de ser estudado quanto à guerra. Ela acompanha
a trajetória humana desde seus primórdios, e o historiador não pode desprezar tudo que se
refere ao ser humano e à temática militar. Com relação a um certo preconceito ao estudo da
guerra, tida como uma história factual, associada a narrativa positivista, Ferraz (2003), um dos
expoentes em estudos de guerras do tempo presente, afirma: “[...] o que faz qualquer história,
seja ela militar, política, diplomática, social ou cultural, ‘positivista’ ou não, é o uso que se faz
das fontes e da fortuna crítica, é o esforço de síntese e compreensão. Nenhum assunto é
‘positivista’ por natureza. ” (FERRAZ, 2003, p. 621)
Assim sendo, além das batalhas, táticas, armamentos e forças de combates, passou a
ser pesquisado tudo o que é ligado a guerra, ou seja, a preparação, sua dimensão cultural,
aspectos sociais e psicológicos, bem como seu viés econômico e político, este último sendo
levado em conta como uma possibilidade de pesquisa, uma história político/militar para além
do front, buscando se compreender algumas especificidades como as estratégias de guerra,
sendo o caso das propagandas políticas midiáticas.
Afinal, como expõe Rémond, “nada seria mais contrário à compreensão do político e
de sua natureza que representá-lo como um domínio isolado: ele não tem margens e
comunica-se com a maioria dos outros domínios. ” (2003, p. 444) Portanto, a partir desses
pressupostos de ampliação do campo político compreendemos a pertinência de se estudar a
guerra através do embate político marcado pelo confronto de ideias políticas presentes em
parte nas revistas Em Guarda: em defesa das Américas e A Guerra Ilustrada.
Um conflito militar da magnitude da Segunda Grande Guerra demanda páginas e
mais páginas de bons exemplares de livros que estão nas prateleiras de bibliotecas ou sendo
produzidos. Inúmeros acontecimentos, ataques, retiradas e planos estratégicos foram
configurados. A guerra atinge os mais variados campos da sociedade, a cultura, a economia e
a política, este último um campo crucial como buscaremos evidenciar.
Diante do cenário da Segunda Guerra, a mídia teve um papel significativo, intitulado
por alguns autores como “arma de guerra” (FORNER; SILVA, 2017). Os projetos nacionais
oriundos de países participantes foram exportados a várias nações americanas e pretensos
aliados por intermédio de ferramentas midiáticas. Assim, política e propaganda se unem em
vias paralelas, a primeira se utilizando da segunda para difundir seus planos. (LOCASTRE,
2012)
Ao nos debruçarmos sobre os meios de comunicação como revistas e jornais, que
servem para nos manter informados dos últimos acontecimentos ou retomar aqueles
considerados importantes, o papel do escritor vem imbuído de certas neutralidades e
imparcialidades, para que as informações passadas sejam as mais verossímeis possíveis, com
descrição correta de fatos, pluralidade de visões e equidade de julgamento. (FORNER;
SILVA, 2017)
Mas será que em tempos de guerra onde os nacionalismos afloram, onde as
pretensões políticas e econômicas estão em destaque, à mídia pode ser utilizada
estrategicamente? Em qual sentido elas atuam? Podem ser consideradas propagandas? Se sim,
qual é a função que se propõe?
Nesse sentido, a mídia na Segunda Guerra avançou com tanta força quando os
tanques nos fronts. Não se tem apenas a força militar, mas a utilização da comunicação
enquanto importante instrumento político que vinha se forjando a partir da Grande Guerra
(STEFFANS; ROSÁRIO; COCA, 2015). Eixo e Aliados buscavam combater seus inimigos
das maneiras mais diversas. Destruir o oponente de forma midiática ao mundo era uma delas.
Mostrar as fraquezas do outro e ao mesmo tempo sua superioridade. A cultura e a propaganda
“passaram a ser consideradas materiais tão estratégicos quanto outros produtos”. (TOTA,
2000, p. 53)
A Alemanha, segundo Tota (2000), estava presente na América Latina através da
Agência Transoceânica, a qual fornecia fotos e notícias a preços acessíveis, propagandeando a
favor do Eixo. Para Hitler a propaganda exercia o papel de “vencer psicologicamente o
inimigo antes das forças armadas entrarem em ação”, (MATTELARD apud STEFFANS;
ROSÁRIO; COCA, 2015, p. 03) mostrando o papel estratégico desse instrumento.
Por outro lado, os Estados Unidos, apreensivos com os avanços nazistas na América,
que ameaçavam sua hegemonia no continente, criam em 1940 o Office of Commercial and
Cultural Relations betweem the American Republics, que passou a se chamar em 1941, Office
of the Coordinator of Inter- American Affairs (OCIAA), chefiado por Nelson Rockfeller
(1908-1979). (MAUAD, 2008)
Refletindo sobre as aspirações do (OCIAA) a historiadora Ana Maria Mauad aponta
que:
Este orgão tinha como função implantar a política de boa vizinhança norte-
americana na América Latina. Em linhas gerais a solidariedade hemisférica visava
garantir a posição estratégica dos aliados no Cone Sul, a partir do avanço das forças
do eixo no Pacífico. No Brasil Office of Inter- American Affairs contava com o apoio
da embaixada norte-americana e com a participação de grandes firmas dos EUA.
(MAUAD, 2008, p. 29)
A imprensa e a propaganda eram meios importantes para a divulgação dos princípios
do “pan-americanismo” fabricado por esse órgão, então tinha-se um departamento de
comunicação, o qual compreendia imprensa, publicações, rádio, cinema e informações.
Segundo Tota, essa divisão tinha dois objetivos:
159
A revista original, The War Illustrated, contava também com traduções em francês e espanhol.
Imagem 1:
Sua periodicidade era mensal, com dezesseis páginas por edição. A gama imagética
se destaca pelo seu aspecto quantitativo.
O título original era The War Illustrated, e as primeiras tiragens foram produzidas
durante a Grande Guerra, entre os anos de 1914 e se prolongou até 1919. Foi uma das mais
bem sucedidas revistas do período, e como sugere o nome, não economizou quando se tratava
de ilustrações, era uma média de cinco delas por assunto.
Além do conteúdo fotográfico e ilustrativo, a revista contava com relatos
jornalísticos de eventos e batalhas, artigos de opinião, além de cronologias de guerra.
Durante a Segunda Guerra, mais edições da revista foram produzidas e traduzidas
para o português. A preocupação com a tradução chama a atenção, se precisa ser traduzido, é
porque o alcance que se quer chegar ultrapassa as fronteiras nacionais, e como percebemos
intercontinentais, chegando exemplares ao Brasil, país que estreitava suas relações com a
Alemanha nazista. (CERVO, 2001)
Esse fenômeno pode ser estudado como colocado no decorrer da discussão,
superando as dificuldades metodológicas antes colocadas. A guerra, assim como a História
Política, não se reduz apenas à vida parlamentar e as práticas exclusivamente institucionais.
Ela se correlaciona com diversas áreas da sociedade como a economia, a cultura e o social.
(ÁZEMA, 1990) Nas palavras do historiador francês Jean- Pierre Ázema “uma leitura política
da guerra parece de fato ser não só possível, mas necessária. ” (Idem, p. 409) Além de estarem
no território do político, as guerras ganham destaque no imaginário coletivo. As raízes dos
conflitos mundiais estão entrelaçadas no coração da sociedade.
Se o estudo da guerra como objeto se torna possível no campo do político renovado,
um longo caminho foi percorrido para que outras fontes, além de documentos oficiais fossem
incorporadas aos historiadores.
Ademais, as renovações no estudo da História Política, como afirma De Lucca “não
poderia dispensar a imprensa, que cotidianamente registra cada lance dos embates na arena do
poder. ” (2006, p. 128)
Considerações Finais
Referências Bibliográficas
Introdução
Filho de Luís Gomes Pereira e Jenny de Oliveira Gomes, Eduardo Gomes nasceu em
20 de setembro de 1896, na cidade de Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro, vindo a falecer
em 13 de junho de 1981 no Rio de Janeiro.
Em vida, Eduardo Gomes, também conhecido como Brigadeiro, teve uma trajetória
política-militar de destaque no contexto histórico do Brasil Republicano do século XX.
Iniciou seus estudos no Colégio Werneck e posteriormente ingressou no Colégio São Vicente
de Paulo, no Rio de Janeiro. Como era aluno dedicado, conquistou a posição de coronel-
aluno, Comandante do Batalhão Colegial.
Posteriormente, Gomes foi declarado Aspirante – a – Oficial, em 17 de dezembro de
1918, na Arma de Artilharia, sendo promovido a Segundo Tenente, em janeiro de 1921. Em
1922 foi servir na Escola de Aviação Militar, em Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro, para
realizar o curso de Observador Aéreo de Artilharia.
Participou dos movimentos tenentistas de 1922, no Rio de Janeiro e em 1924, em São
Paulo. Foi preso momentos antes de se juntar à Coluna Prestes e solto no ano de 1926.
Envolveu-se nas ações que derrubaram Washington Luís, após o fracasso eleitoral da Aliança
Liberal. No governo Vargas foi promovido a Capitão, em 15 de novembro de 1930; a Major
cinco dias depois; a Tenente – coronel, em 16 de junho de 1933 e Coronel, em 3 de maio de
1938.
Dentre outros momentos de destaque em sua vida militar, ainda durante o governo
Vargas, trabalhou na criação do Correio Aéreo Militar; em 1935, comandou o 1° Regimento
de Aviação contra a Revolta Comunista, tendo exonerado em 1937, do comando deste
regimento, por ser contrário à instauração do Estado Novo. Em 10 de dezembro de 1941, foi
160
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
promovido a Brigadeiro-do-Ar com a criação do Ministério da Aeronáutica. Terminado o
Estado Novo, candidatou-se às eleições presidenciais pela União Democrática Nacional
(UDN), que ocorreram em 1945, sendo derrotado por Eurico Gaspar Dutra, do Partido Social
Democrático (PSD), ex-ministro da Guerra de Vargas. Em 1950, foi novamente candidato à
Presidência da República pela UDN, sendo derrotado por Vargas, do Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB). Após a eleição, Gomes retornou à Aeronáutica, no cargo de Diretor de
Rotas Aéreas, tendo recusado o convite de Vargas para ser seu Ministro da Aeronáutica.
Mais tarde, Gomes foi Ministro da Aeronáutica por duas vezes: a primeira entre 1954 e
1955, no governo de Café Filho e Carlos Luz, e a segunda no governo de Castelo Branco,
entre janeiro de 1965 a março de 1967. Apoiou o golpe que depôs o presidente João Goulart,
em 1964, sem participar diretamente do movimento. Em 1984, foi nomeado Patrono da Força
Aérea Brasileira.
Diante de uma vida política-militar intensa e de destaque, temos o objetivo de destacar
e analisar a participação de Gomes nos movimentos tenentistas de 1922, denominado de a
Revolta dos Dezoito do Forte de Copacabana e em 1924, na chamada Revolta Paulista.
Concomitantemente, ressaltaremos nossa experiência a ida ao Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) para catalogação das fontes
para análise sobre o presente assunto, que em sua maioria eram arquivos, bem como o exame
de tais fontes e outras relativas a participação de Gomes nos movimentos tenentistas
supracitado, assim como de obras historiográficas referentes ao assunto.
Quando o Capitão Euclides comunicou para o Forte, por telefone, que se achava
prêso e que o Govêrno exigia que cada um se entregasse saindo isoladamente e
desarmado do Forte os oficiais que ainda se encontravam na praça, a saber: o
depoente, os Tenentes Siqueira Campos, Nilton Prado e Carpenter, resolveram
abandonar o Forte para não sacrificá-lo nem causar mais prejuízos à cidade e ir com
o grupo de soldados que os acompanhava por último combate contra às forças do
govêrno longe do Forte, pois estavam no firme propósito de não se entregar. O
depoente crê que o grupo de oficiais vinham acompanhado por umas vinte praças,
cada homem, oficial e praça, trazia um fuzil e alguma munição. Desceram todos pela
praia de Copacabana e afinal se detiveram em frente a uma rua, aí mantiveram um
tiroteio com as fôrças opostas, o qual lhe parece ter durado cerca de uma hora e três
quartos. O depoente caiu ferido por bala de fuzil, na coxa esquerda e ali mesmo na
areia ficou deitado, até que o transportaram. Depois dele viu também caírem feridos
os Tenentes Siqueira, Carpenter e Nilton. Perguntado por que tomou parte na
rebelião contra o govêrno, respondeu que achava que o govêrno estava saindo fora
da lei com o propósito de intervir em Pernambuco e porque era desejo do país ver
afastada a hipótese da posse do Dr. Artur Bernardes (Processo Criminal – 8° volume
– pág. 1908 v. In: SILVA, 1964, p. 458).
A declaração de Gomes nos mostra que o movimento tenentista de 1922 não tinha um
programa claramente político e desenvolvido, como ocorreria posteriormente em 1924, mas
ao mesmo tempo, esclarece-nos que o caso de Pernambuco e a hipótese da vitória de
Bernardes que representaria a continuidade da República oligárquica e suas mazelas, foram
alguns dos principais motivos da revolta.
Momentos antes de os revolucionários saírem do Forte de Copacabana para
combaterem contra as tropas legalistas, no dia seis de julho, Gomes, segundo Doria (2016)
realizou uma ação difícil. Newton Prado foi encontrar seus companheiros que estavam
reunidos na sala de comando. Siqueira Campos tinha total interesse em que os militares
continuassem o bombardeio da cidade, atirando em alvos de interesse militar e quando
acabasse a munição propunha fechar o portão do Forte e colocar fogo na pólvora, ocasionando
a morte de todos, mas Gomes não concordou com isso, pois mais bombardeios matariam mais
civis, e o Forte não pertencia ao governo, mas sim ao Brasil. Deste modo, os soldados
resolveram acatar a ideia de Gomes e depois abandonaram o Forte. Após o conflito, os
revolucionários que ainda se encontravam vivos foram levados para o Hospital Central do
Exército, sobrevivendo apenas Eduardo Gomes e Siqueira Campos.
Terminado o movimento revolucionário dos Dezoito do Forte de Copacabana, os
militares planejaram a próxima revolução que ocorreu em 1924, na cidade de São Paulo. Esta
duraria cerca de um mês, do dia 5 ao dia 28 de julho. Dominando São Paulo por esse período,
o movimento conseguiu expulsar da capital paulista o governo estadual, porém foram
duramente contra-atacados e se retiraram para não serem derrotados, em direção ao sul do
estado. Assim, formariam a chamada Coluna Miguel Costa-Prestes, ficando conhecida como
Coluna Prestes, que durou de 1925 a 1927.
A revolta teve início no dia 5 de julho de 1924, o qual tanto as praças do 1° Batalhão
como as do 2° da Força Pública, estavam em sua totalidade, impossibilitadas de auxiliarem o
Governo, pois foram pegas de surpresa no recinto do jardim da Luz pelos rebeldes. Os
revoltosos contavam em torno de 950 a 1.000 combatentes, tendo a ajuda de todo o
Regimento de Cavalaria, com cerca de 500 homens; mais da metade das praças do 2° Grupo
de Artilharia Pesada, que tinha sob o comando o 1° tenente Custodio de Oliveira, levando
consigo perto de 100 homens do 4° Regimento de Quitaúna, em número aproximado de 80
praças sob Infantaria, que também tinham quartel em Quitaúna, e que estavam iniciando
exercício de campanha; 80 praças do 4º Batalhão de caçadores, que tinham sob o comando o
2° tenente Asdrubal Gayer de Azevedo, e no máximo, perto de uns 200 praças do Corpo
Escola, e do 1º e 2º batalhões da Força Pública, que logo no começo aderiram à revolta
(NORONHA, 1924).
Com relação a participação de Gomes na Revolução de 1924, destacamos alguns
momentos decisivos que contaram com o apoio do tenente. O primeiro ocorreu ao anoitecer
do dia 5 de julho, em que Gomes foi o comandante da operação em um dos pontos principais
dos revolucionários, que era a estação da Cantareira. Os outros pontos importantes dos
revolucionários foram: as estações da Luz e Sorocabana, que estava sob o comando do tenente
João Cabanas; o Hotel Terminus, que tinha o capitão Newton Estilac Leal como o
comandante; a estação do Brás, que contava com o comandante tenente Arlindo de Oliveira; e
o Quartel do 4º Batalhão de caçadores, tendo sob o comando o tenente Asdrubal Gwyer de
Azevedo (CARONE, 1975).
O segundo momento decisivo ocorreu na manhã do dia 6 de julho, em que os
revolucionários se concentravam no 4° Batalhão de Polícia e Gomes assumiu um dos postos
de artilharia, que com boa mira, derrubou com um tiro preciso a caixa d’água do quartel,
deixando seus oponentes sem água (DORIA, 2016).
Além disso, Gomes no dia 8 de julho, tendo acumulado as funções de comandante de
uma seção do 2º Grupo Independente de Artilharia Pesada, bombardeou pela manhã, o
edifício do comando geral e depois do meio dia o Palácio do Governo e os edifícios da Polícia
Central e da Secretaria da Agricultura, bem como o da zona do mercado, pontos estes que
situava-se uma forte reserva do Governo (CPDOC – Arquivo João Luis Alves – Procuradoria
Criminal da República, dez. 1924).
No dia 13 de julho de 1924, tendo forte concentração das forças legais em direção à
Penha e ao Ypiranga, não sendo possível aos revolucionários identificarem a situação das
tropas legalistas, a não ser por avião, fizeram o roubo de todos os aviões existentes em São
Paulo, guiados pelas informações dos aviadores, Antônio Reynaldo Gonçalves, tenente da
Força Pública, e Anésia Pinheiro Machado, que estavam ambos comprometidos com a
revolução. Ao tenente Eduardo Gomes coube o comando dessa nova arma do movimento,
contando com os aviadores Reynaldo e Anésia, como auxiliares, pois conheciam bem os
campos de aviação existentes na Capital, assim como todos os aparelhos de seus colegas
(CPDOC – Arquivo João Luis Alves – Procuradoria Criminal da República, dez. 1924).
Outro momento importante, que acabou não ocorrendo, foi quando os revolucionários
depois de perceberem que São Paulo estava arrasado com todo o bombardeio realizado pelos
legalistas resolveram pensar a ideia de um voo. Com um avião monomotor Curtiss Oriole de
três lugares e asa dupla, pertencente a aviadora Thereza de Marzo, com o tanque cheio,
poderia sair de São Paulo, ir para o Rio de Janeiro e ainda fazer o caminho de volta. O plano
dos revolucionários era de lançar uma poderosa carga de dinamite sobre o Palácio do Catete e
eliminar o Presidente da República. No comando do avião ficaria Eduardo Gomes e como
piloto o alemão Carlos Herdler, que havia fugido do antissemitismo europeu. Ambos
decolaram do Campo de Marte no dia 24 de julho, levando além dos explosivos, mais 30 mil
exemplares de um manifesto, dirigido aos cariocas e fluminenses. Todavia, não conseguiram
realizar o destino, pois após certo tempo de voo o avião apresentou um problema no motor e
os mensageiros tiveram que pousar em Cunha, próximo do estado do Rio, num pantanal,
deixando o avião inutilizado (CPDOC, Arquivo João Luis Alves – Procuradoria Criminal da
República, dez. 1924).
Durante o movimento tenentista os revolucionários também escreveram alguns
manifestos, que mostravam em sua maioria seus objetivos, e como integrante do movimento,
partimos do princípio de que Gomes compartilhava de tais ideais.
Podemos destacar que o movimento tenentista fazia duras críticas ao sistema político
vigente na época, e ressaltando as qualidades que consideravam essências num governo
moral, integro e honesto, para o Brasil. Ao mesmo tempo, diziam que os políticos daquele
momento, buscavam se preocupar apenas com si próprios, agindo de forma autoritária. Outro
fato importante que cabe destacar, é a forma com que essa parte do Exército agiu, colocando-
se como defensores da pátria, talvez, se inspirando no modelo de aprendizado dos jovens
turcos.
Por fim, segundo Silva (1964), os revolucionários ainda afirmavam a situação de
impotência que o povo brasileiro vivia nesse período, perante as mazelas do governo
oligárquico, dizendo também, que o Exército Nacional, com a Proclamação da República
havia jurado fidelidade à Constituição, sendo esta uma das causas do acontecimento do
movimento que não poderia ficar alheio à vida da nação.
Considerações finais
Arquivo consultado
Referências bibliográficas
INTRODUÇÃO:
A Guerra do Paraguai foi um dos principais enfrentamentos bélicos que ocorreu na
América Latina no século XIX, envolvendo a Tríplice Aliança, constituída por Brasil,
Argentina e Uruguai e do outro lado o Paraguai, governado por Solano Lopez. Este conflito
infligiu profundos impactos políticos e sociais para ambos os lados. Por um lado, o Paraguai
sai arrasado da guerra, com grandes perdas humanas, e o Brasil consolida seu papel de
potência regional e lança as bases para a sua construção de uma identidade nacional. Essa
construção passa a ser uma preocupação para o Império do Brasil ao longo do século XIX.
A partir de uma narrativa tradicional161 acerca do conflito, vamos observar na principal
obra de Emílio Fernandes de Souza Docca intitulada: “Causas da Guerra com o Paraguay”
como se constituiu a escrita da história militar da guerra e suas formas de representação,
permeado assim, por um caráter tradicional e de exposição dos eventos narrados. Historiador
militar, ou militar historiador, Souza Docca dedicou vários trabalhos à atuação do Brasil na
região do Prata, principalmente sobre questões bélicas. Nasceu em São Borja no Rio Grande
do Sul, em 16 de julho de 1884, era filho de José Fernandes de Souza Docca e Maria José de
Souza Docca, entrou para o exército em 1899 em sua cidade natal, entre 1917-1921 estudou o
curso de Administração Militar na Escola Superior de Intendência no Rio de Janeiro. Foi
poeta, escritor e historiador militar. Sócio fundador do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Sul – IHGRGS e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB. O autor
foi um dos historiadores que representou essa construção discursiva e que orientou a
abordagem historiográfica do seu tempo.
161
Peter Burke sintetizou as características principais da historiografia tradicional: ênfase num tipo de história
política, a história como narração dos grandes fatos, documentos oficiais são os que interessam ao paradigma
tradicional, o historiador tradicional explica por meio da vontade do indivíduo histórico, e, finalmente, o
paradigma tradicional considera a História uma ciência objetiva. Desta maneira, denominamos história
tradicional a que contempla essas características apontadas por Burke. Para mais informações ver: BURKE, Peter
(org.). A Escrita a historia: novas perspectivas; São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista,
1992.(Considerando as demais correntes da historiografia sobre o tema temos: a “revisionista” onde se destaca as
produções de Chiavenato e a “atual” onde é destacada nas obras de Doratioto).
Souza Docca, como militar, usa do caráter nacional para enfatizar os feitos realizados
por tais homens em seus distintos feitos na guerra, tornando-os responsáveis pelos rumos
tomados pelo Império do Brasil. A historiografia acerca da Guerra do Paraguai possui três
momentos distintos, a primeira chamada de tradicional atribuía as causas do conflito
restritamente ao ímpeto imperialista de Solano Lopez como causador único da guerra, a
segunda tendência passou a ser escrita a partir dos anos de 1960, onde considerava a
Inglaterra como grande fomentadora dos atritos, pois não queria a ascensão de uma nova
potência na região, por fim as correntes historiográficas recentes buscam revelar que as causas
do conflito estão relacionadas ao processo de construção dos Estados Nacionais.
162
Historiografia Revisionista: POMER, Leon. A Guerra do Paraguai, a grande tragédia rio-platense. São Paulo:
Global, 1980; CHIAVENATTO, J.J. Genocídio Americano: A Guerra do Paraguai. 14ªed. São Paulo:
Brasiliense, 1982.
163
Exemplos dessas tendências historiográficas podem ser conferidos, entre outras, nas obras:
SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: Escravidão e cidadania na formação do exército. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1990; BETHELL, L. 1995 . Guerra do Paraguai: historia e historiografia do imperialismo britânico e a
Guerra do Paraguai ., Rio de Janeiro: Relume-Dumará.In: MARQUES, M.E.C.M., org. A Guerra do Paraguai
130 anos depois; DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: Nova História da Guerra do Paraguai. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
afirma que a história dos conceitos tem uma obrigação metodológica mínima: compreender os
conflitos sociais e políticos do passado por meio das delimitações conceituais e da
interpretação dos usos da linguagem pelos atores históricos.
Koselleck estabelece uma relação entre as ações políticas e os conceitos linguísticos
mobilizados por diferentes grupos sociais. Para ele, a utilização de conceitos por determinados
indivíduos tem uma função que é capaz de extrapolar a linguagem, influenciando diretamente
a forma como grupos agem e suas ações políticas e sociais. Segundo Koselleck (2006), a
história dos conceitos pode ser uma metodologia para compreender os conflitos políticos e
sociais através da interpretação dos repertórios conceituais e da utilização da linguagem.
É possível observar em Souza Docca, como o autor busca escrever uma narrativa
nacional-patriótica, de apologia ao Estado e de caráter factual, que entende a história como
uma sequência linear e cronológica de acontecimentos e apresenta a guerra como um choque
entre civilizados e bárbaros. O crescimento significativo da História da Historiografia se deu a
partir da década de 1980, sendo os trabalhos de Manoel Luiz Salgado Guimarães referências
importantes. Turin (2013, p.83) argumenta que “a necessidade de legitimação [...], se dá
justamente quando a perda da evidência de seu conteúdo, assim como a absorção de novos,
geram uma tensão com os constrangimentos que regem seu funcionamento formal”.
Uma das noções que sintetiza essa nova forma de abordagem histórica é a postura de
“memória disciplinar”, que implica reconhecer que o próprio surgimento de enunciação, a
História da Historiografia, estava estritamente vinculado a um trabalho de memória,
submetendo o passado a uma narrativa de identidade disciplinar. Os historiadores não podem
ignorar os efeitos que sua tradição, tornada presente no próprio gênero História da
Historiografia, exerce sobre sua atividade, ao mesmo tempo possibilitando e limitando as
questões e as narrativas sobre o passado de um objeto, que cada vez mais é posto em questão.
Assim, toda a Historia da Historiografia, como toda hermenêutica, deve levar uma postura
crítica, não como simples negação da tradição, mas o reconhecimento de seus impasses,
possibilitando uma reflexão sobre a historicidade das formas de representação do passado, e o
que se tenta passar no presente trabalho.
Contudo, as discussões que são geradas pelas discordâncias historiográficas, são
sempre úteis para se construir o saber, pois com elas temos acessos a novas formas de
interpretar e analisar os fatos, porém, sempre considerando a carga ideológica utilizada no
fazer histórico. Nesse quesito, Marc Bloch (2001, p. 126) lembra: “Montaigne já nos chamara
a atenção: “A partir do momento em que o julgamento pende para um lado, não se pode evitar
de contornar e distorcer a narração nesse viés’”, podemos observar tal característica no
emprego político que a narrativa tradicional da Guerra do Paraguai queria passar com a busca
da construção da identidade nacional no período e exaltação de personalidades do Império,
juntamente com seus feitos, com isso a classe militar passou a ter uma repercussão maior,
tanto no meio social e político como também na produção historiográfica.
A figura do herói passou também a fazer parte da busca da nova história nacional,
podendo assim estabelecer uma vinculação entre a participação de vários membros do IHGB
com os eventos da história brasileira Pode-se pensar que o próprio IHGB, enquanto instituição
encarne essa figura de herói, um herói que seria um agente coletivo, suas tarefas históricas
consistiriam em salvar o passado nacional e construir uma memória nacional. Januário da
Cunha Barbosa propõem um projeto biográfico ao IHGB, mas não se trata, porém de uma
posição irrefletida, mas de um sinônimo aproximado do movimento da história. O mundo se
transforma graças aos grandes homens. O projeto tem, portanto, uma verdadeira pertinência
histórica. Uma tendência geral e significativa da historiografia produzido ao longo do século
XIX e início do XX foi estar intimamente relacionada a construção do Estado Nacional,
realizava-se assim uma história oficial, patrocinada pelo poder público.
Esse projeto então prevê que a história de nossos grandes personagens seja escrita por
nossos historiadores “nacionais”. Passa a ter início uma proposta nacionalista de construção
da identidade nacional e ajudar no projeto de centralização política, prevendo o fortalecimento
do poder executivo na figura do imperador e a continuidade da ordem social baseada
principalmente no escravismo e no latifúndio. Um país recém independente precisava recordar
e criar uma memória sobre o seu passado, construindo uma identidade nacional com o intuito
de consolidar o poder institucional e do próprio Estado. Os elementos necessários para a
compreensão do passado que se buscavam apresentar do Império Brasileiro, e o projeto da
primeira geração dos letrados do IHGB, eram as demandas recorrentes da necessidade de
fundar uma nação no espaço colonial português, onde a ida ao passado tornaria uma demanda
do presente para assegurar um projeto futuro de História. E esses elementos acabaram por
auxiliar na formação da identidade nacional para os “brasileiros” e consolidar o Estado, com
uma historiografia oficial e completamente vinculada do poder imperial. O intervalo temporal
força o historiador a fingir a realidade histórica, sem falar do “acontecer” de alguma coisa.
É conferido na obra de Docca: “Causas da Guerra com o Paraguay”, exemplos nítidos
de um caráter nacionalista da narrativa, ao retratar sua visão e considerações acerca do
conflito. Tais percepções sempre passam pelo crivo de seus autores e com isso são carregados
de sentimentos, que vão desde os políticos até de paixões mais exaltadas a diferentes pontos,
como a glorificação de companheiros de farda e na exaltação patriótica. A partir da ótica de
Souza Docca enfocamos o conflito que ocorreu entre 1864 e 1870, a Guerra do Paraguai.
Souza Docca atribui quatro causas para o início do conflito, que são: a recusa de Lopez
a casar-se com umas das filhas de D. Pedro II, história inventada por Washburn, em um artigo
publicado em Nova York, em 22 de janeiro de 1870; Aumento do imposto pela erva mate que
era o maior artigo de exportação do Paraguai; A política imperialista do Brasil junto a
Argentina; e a mais defendida e exposta por Docca: os sonhos de conquista do ditador
paraguaio e sua aliança com o partido Blanco do Estado oriental. Essa defesa em considerar o
ditador paraguaio como o causador e incitador da guerra estão presentes na versão tradicional
das narrativas historiográficas sobre a guerra, nas quais se enfatiza o ataque paraguaio ao
Brasil e dá-se pouca importância à intervenção militar brasileira no Uruguai. O caráter desta
narrativa tradicional estará presente nas principais abordagens de Souza Docca sobre o
conflito.
Souza Docca cita como os causadores do conflito os que estavam a frente do governo
do Estado Oriental do Uruguai de 1861 a 1864, são eles: Bernardo Prudêncio Berro, Atanasio
Cruz Aguirre, Juan José de Herrera, Octávio Lápido, Antonio de las Carreras e José Vasquez
Sagastume. Para Souza Docca, Solano López foi o maior responsável pelo conflito. O
pretexto para declarar guerra foi a invasão por forças brasileiras no Uruguai durante a guerra
civil entre o partido Blanco e Colorado. Mais tarde, no contexto dos anos 1960, na
historiografia de caráter revisionista, os grandes “vilões” da história serão outros: a classe
dominante portenha, a Inglaterra e o Brasil imperial. Essa visão revisionista possui o
dimensionamento voltado principalmente a influência inglesa na região e ignora os motivos
específicos dos países diretamente envolvidos, como nos mostra no trecho:
“tremendo e memorável conflito, em que o insano, presumido e ambicioso Francisco
Solano Lopez representou um negregado papel, pela maneira satânica e perversa
com que se houve para provocar a luta e durante o decurso desta, longo, sangrento e
penoso, - e porque foi ao mesmo tempo causador, provocante e autor, deve por isso
ser considero como o maior réu do grande crime que foi aquela guerra”. (DOCCA,
1919, 5).
Uma das formas da narrativa que podemos observar é como a visão do “outro” era
empregada, Docca relata a percepção de como era o paraguaio no tempo de Solano Lopez,
relacionando-o a um ser destituído de vontade própria:
“movia-se ao talante do ditador, cujas ordens cumpria com rigorismo, enfrentando os
mais duros sacrifícios, lutando com os maiores obstáculos (...) Essa confiança e
dedicação únicas, infinitas, tiveram a virtude de elevar muitas vezes o soldado
paraguaio as raias do heroísmo; mas é inegável que tiveram também o poder
diabólico de o fazer, outras tantas vezes, descer até a bestialidade.” Estava ausente
qualquer consciência nacional pois lopez dominava “discricionariamente no
temporal e espiritual; sua vontade era como um decreto divino que devia ser
cumprido a risca, sem vacilações” (DOCCA, 1919: 195-7).
Souza Docca considerava Lopez um autocrata que governava sem parlamento, sem
corte de justiça, nem tribunais, considerava a tradição jesuítica a ignorância colonial estendida
por todo o território da província. Também descrevia os governos anteriores à Solano Lopez
como longa tirania, iniciada por José Gaspar Rodríguez Francia, primeiro ditador do Paraguai,
e continuada por Carlos Antônio Lopez, pai de Solano Lopez, pelo rebaixamento da moral e
política do povo paraguaio. Descrevia também Souza Docca o homem paraguaio, na era de
Lopez, um homem sem direito próprio e caracterizava o Paraguai como isolado, em uma vida
primitiva.
Delimitada a imagem do inimigo ligado a tirania e a belicosidade, também existe a
exaltação patriótica da nacionalidade quanto a reação a uma série de ultrajes recebidos pelos
paraguaios, tornando a responsabilidade da guerra não por quem faz, mas o que a torna
necessária, sendo assim, a pátria ou a nação deveria dar respostas as afrontas constituídas pelo
agressor:
O povo que não se levanta para desafrontar os brios ultrajados de sua nacionalidade
e garantir e fazer respeitar a integridade do solo pátrio, a vida de seus filhos, a honra
de seus lares – é um povo de degenerados, de pusilânimes, que envergonha a espécie
humana e que deve desaparecer do concerto universal, assim como não deve figurar
no convívio dos homens aquele dentre eles que não tiver hombridade para repeli
uma ofensa injuriosa, nem energia para defender a honra de sua esposa, a candura de
suas filhas, a pureza de suas irmãs. Quem não sabe defender a pátria é incapaz de
defender o lar” (DOCCA, 1919, 224).
A partir dos relatos contidos na obra do autor, a escrita da história Docca ainda é
tributária da concepção e modelo de história produzida no Brasil dos oitocentos a partir do
IHGB. Segundo Guimarães (1988. p. 6), “foi somente com a criação do IHGB, em 1838, que
se criou e aos poucos se fortaleceu a concepção de que a história do Brasil deveria ter a
função de auxiliar na construção de uma imagem para a Nação”. Fazia parte dessa perspectiva
historiográfica afirmar o caráter do Brasil como representante da ideia de civilização na
América do Sul, o caráter “civilizatório” possuía também grande impacto na autoafirmação
nacional, pois, como já foi visto, o conflito baseava-se em levar a luz aos “bárbaros”:
Num processo muito próprio ao caso brasileiro, a construção da ideia de Nação não
se assenta sobre uma oposição à antiga metrópole portuguesa; muito ao contrário, a
nova Nação brasileira se reconhece enquanto continuadora de uma certa tarefa
civilizadora iniciada pela colonização portuguesa. (GUIMARÃES, 1988, p. 6)
CONCLUSÃO:
A historiografia constituída sobre a Guerra do Paraguai desenvolveu-se a partir dos
memorialistas e ex-militares que lutaram no conflito. A escrita da história sobre o tema era
predominantemente escrita por soldados e que com uma apologia à nação e seus heróis
formaram as principais bases e características da historiografia tradicional da guerra, sendo ela
grande responsável pelo desenvolvimento nacionalista na região do Prata e dos países
envolvidos, essa narrativa também foi usada de forma política na construção de uma
identidade nacional, que se fazia necessária no período do Séc. XIX.
Essas características foram norteadoras para as produções subsequentes da guerra,
podemos salientar sua história factual, a pretensão, a objetividade nos relatos passados pelas
obras estudadas, a cronologia linear, a narrativa com forte apelo nacional e por fim o caráter
heroico dado a seus personagens, dando uma legitimação a uma ideia elitizante de história,
onde ela seria formada pela ação de grandes homens, e seus expoentes máximos, Duque de
Caxias e General Osório.
Ao analisarmos a obra de Souza Docca observamos essa forma de narrativa: a
exaltação de heróis e da pátria, juntamente com seus feitos, passariam a formar a identidade
nacional, transmitir ao conhecimento geral os fatos e supostas verdades que constituíram a
Guerra do Paraguai. A partir da análise temos ferramentas e meios para compreender e
discutir as características essenciais dessa historiografia tradicional do conflito. Assim o
presente artigo busca apresentar a forma como a produção histórica e tradicional da guerra foi
passada essencialmente descritiva, voltada para os feitos heroicos e ações individuais, nos
relatos factuais, e que essa narrativa estaria a serviço de um projeto de nação a ser
desenvolvida.
A Guerra do Paraguai constitui em um inestimável tema histórico para os
historiadores, e que se tratou também, como uma narrativa para fins políticos, tanto na
construção historiográfica do Brasil como assentar as bases das classes militares e da
República. Não se pode analisar o conflito de um só ângulo, porém, resgatar esse passado
significa também dar voz a esses relatos e documentos históricos, pois revelam um pouco do
ideário, das condutas e comportamentos do brasileiros que lutaram no Paraguai e com isso
investigando suas informações concretas e por vezes mais modestas, trazendo a luz as
lembranças dos soldados e personagens históricos do Brasil.
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A SEGURANÇA HEMISFÉRICA: COOPERAÇÃO MILITAR BRASIL-ESTADOS
UNIDOS NO PÓS-GUERRA (1944-1945)
INTRODUÇÃO
A Segunda Guerra Mundial representou um momento singular de transformações
abruptas no Sistema Internacional. Se os Estados Unidos já acumulavam condições de se
lançarem como potência mundial hegemônica pelo menos desde a Primeira Guerra Mundial, a
nível continental este papel já era exercido desde sua constituição como nação. O conflito
mundial trouxe para a região novas exigências de reconfiguração de forças e de reafirmação
do papel predominante dos EUA.
Este trabalho tem como objeto as propostas e acordos de cooperação militar firmados
entre Brasil e Estados Unidos no imediato pós-Segunda Guerra. Já nos últimos meses do
conflito, os EUA começam a se preocupar com a futura conjugação de forças mundiais,
depositando especial atenção no continente americano – região fundamental para a garantia da
“segurança hemisférica”. Sob a perspectiva da história das relações internacionais, as fontes
de origem diplomática permitem reconstruir os avanços e transformações nas negociações e
conversações de alto nível entre os dois países. Desta forma, ao se analisarem as instruções
iniciais e as definições de parâmetros e premissas para a condução das negociações bilaterais
e os pareceres e memorandos consulares, revelam-se os conflitos entre o idealismo/otimismo
das relações militares e o realismo/pragmatismo da ação diplomática. Neste momento inicial
de configuração da ordem mundial pós-Segunda Guerra, as relações conflituosas e
expectativas contraditórias entre os representantes diplomáticos e os militares já apontam para
o futuro papel de segundo plano da América Latina e do Brasil na ordem mundial
bipolarizada.
164
Documento: (100) Memorandum by the American Ambassador in Brazil (Caffery) to the President of Brazil
(Vargas), 10/07/1944. In: U. S. DEPARTMENT OF STATE. U. S. DEPARTMENT OF STATE. Foreign
Relations of the United States [doravante citada como FRUS]: Diplomatic Papers, 1944, The American
Republics, Volume VII. Washington: United States Government Printing Office, 1967. Disponível em:
<https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1944v07/d100>.
165
Documento: (99) The Chargé in Brazil (Donnelly) to the Secretary of State, 10/10/1944. In: U. S.
DEPARTMENT OF STATE. FRUS: Diplomatic Papers, 1944, The American Republics, Volume VII.
Washington: United States Government Printing Office, 1967. Disponível em:
<https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1944v07/d99>.
uma circular onde “[...] propõe que sejam empreendidas conversações bilaterais com vistas a
lançar as bases para a contínua colaboração militar entre as Repúblicas Americanas no
período pós-guerra” 166. Caso as respostas dos governos latino-americanos fossem assertivas,
seriam enviados oficiais dos EUA para iniciar as discussões. O documento ressalta a diferença
entre as conversações mantidas no período da guerra com as do momento: nestas últimas, o
objetivo do “[...] estabelecimento de uma organização internacional geral com funções de
segurança é antecipado”.
Estas instruções confirmam a tese de Cristina Soreanu Pecequilo (2011), segundo a
qual a política externa dos EUA nos primeiros anos do pós-guerra (1945-47) foi marcada pela
sua relativa indecisão e até mesmo um clima de parceria e criação de expectativas mútuas com
relação às demais repúblicas americanas. As iniciativas para a criação de um sistema
interamericano de cooperação política e militar, como a assinatura do Tratado Interamericano
de Assistência Recíproca (TIAR), em 1947, e a fundação da Organização dos Estados
Americanos (OEA), em 1948, afirmam este clima de otimismo. No entanto, tais relações logo
caíram para o descaso, com os Estados Unidos não atendendo as expectativas de cooperação
militar dos países americanos:
[...], o estabelecimento de uma série de tratados bilaterais militares entre os Estados
Unidos e os países da região, entre os quais o Brasil, tentaram explorar tais
potencialidades, mas todas essas iniciativas estiveram muito aquém das necessidades
e das prioridades latino-americanas na época. (PECEQUILO, 2011, p. 220)
Contribuiu para este “decaimento” o fato de a América Latina não ser mais percebida
como prioritária no quadro de poder que se configurava no sistema internacional,
prenunciando a Guerra Fria. Permaneciam os ideais de cooperação e solidariedade na política
externa dos EUA para a América Latina, mas apenas na retórica. Estes ideais conduziram a
criação do TIAR e da OEA, inspirados nos ideais de segurança coletiva e cooperação política
do pan-americanismo, mas não foram capazes de superar o clima de parceria e otimismo da
Política da Boa Vizinhança, que conduziu as relações com a América Latina no período da
guerra. Com o fim desta, os EUA direcionam suas preocupações para a Ásia e Europa, mais
suscetíveis à influência soviética, e só voltam a depositar atenção na América a partir da
segunda metade da década de 1950, quando os ânimos contra os Estados Unidos se agitam no
continente.
166
Documento: (87) The Acting Secretary of State to Certain Diplomatic Representatives in the American
Republics, 01/08/1944. In: U. S. DEPARTMENT OF STATE. FRUS: Diplomatic Papers, 1944, The American
Republics, Volume VII. Washington: United States Government Printing Office, 1967. Disponível em:
<https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1944v07/d87>.
3. Relações militares Brasil-EUA: a quebra de expectativas
De fato, considerações mais “realistas” quanto ao nível e caráter da cooperação militar
já começavam a aparecer durante as conversações bilaterais antes mesmo do fim do conflito
mundial. Em 26 e 27 de julho de 1945, três relatórios foram enviados da embaixada americana
no Rio de Janeiro ao Departamento de Estado em Washington167. Assinados pelo embaixador
Aldof A. Berle Jr, os documentos continham apreciações sobre as conversações travadas entre
altos oficiais das Forças Armadas brasileiras e americanas entre março e abril daquele ano,
recebidas pelo embaixador na forma de memorandos. Cada conversação ocorreu de forma
separada, entre os oficiais de cada uma das armas (Marinha, Exército e Aeronáutica), e,
segundo Berle, não contou com a presença de um membro da embaixada. O conteúdo das
conversas anunciava as intenções dos governos americano e brasileiro em investir na
modernização e incremento das Forças Armadas brasileiras. Neste momento, as tropas da
FEB e da FAB já retornavam de sua campanha vitoriosa na Itália, e as expectativas quanto às
relações de cooperação entre Brasil e Estados Unidos no pós-guerra eram promissoras
(FERRAZ, 2012). No entanto, as considerações do embaixador mostravam-se muito mais
preocupadas com a real capacidade do Brasil em investir e manter Forças Armadas de poderio
e abrangência hemisférica.
Neste sentido, em seus três pareceres, Berle aponta que as expectativas iniciais são
além do que o Brasil precisa e do que seria interessante para o seu desenvolvimento
econômico. O embaixador admite que as melhorias propostas na Marinha, Exército e
Aeronáutica nacionais colocariam o Brasil como a maior potência militar da América do Sul,
em posição de defender e assegurar a paz no hemisfério, cooperando com a política de
segurança hemisférica dos EUA (PECEQUILO, 2011). Berle, no entanto, ressalta as
limitações econômicas do Brasil e a necessidade de privilegiar o desenvolvimento econômico
interno e a utilização civil dos recursos nacionais. Destaca principalmente a necessidade de
investimento em grandes obras de infraestrutura, como transportes ferroviários e rodoviários,
comunicações e sistema educacional. Quanto aos equipamentos solicitados para as Forças
Armadas, considera superestimadas tais requisições, recomendando a aquisição do mínimo
necessário à manutenção da segurança hemisférica, todos padronizados de acordo com as
167
Documentos: (465) The Ambassador in Brazil (Berle) to the Secretary of State, 26/07/1945; (466) The
Ambassador in Brazil (Berle) to the Secretary of State, 26/07/1945; e (467) The Ambassador in Brazil (Berle) to
the Secretary of State, 27/07/1945. FRUS: Diplomatic Papers, 1945, The American Republics, Volume IX.
Washington: United States Government Printing Office, 1969. Disponível em:
<https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1945v09/ch22>
referências americanas – sob o risco de o Brasil sofrer influência estrangeira nociva, além de
receber equipamentos obsoletos.
A correspondência da Embaixada também deixa transparecer a vontade desta em
limitar a atuação dos militares nas relações políticas com o Brasil. Adolf Berle, na
correspondência citada anteriormente, demonstra preocupações quanto ao controle militar de
elementos vitais para a vida civil, como as comunicações aéreas, e quanto à tendência entre os
oficiais americanos designados para missões de treinamento em transformar seus pelotões em
“pequenos exércitos”. Não por acaso, para evitar estes frequentes conflitos de jurisdição, o
Departamento de Estado americano e os departamentos da Guerra e da Marinha travaram
discussões que foram sintetizadas pela “Declaração de Procedimentos de Conduta em
Conversações Bilaterais de Pessoal Militar na América Latina”168, encaminhado para os
representantes militares e diplomáticos dos EUA na América Latina em dezembro de 1944.
Este documento, composto de sete princípios reguladores, deveria formar a base para o
relacionamento entre os representantes diplomáticos e militares, chamando a atenção para a
responsabilidade do Departamento de Estado nas relações exteriores e reforçando os direitos e
deveres dos embaixadores americanos. Segundo os princípios, o embaixador deveria: estar
presente ou representado em qualquer discussão, sendo integralmente informado de seus
desenvolvimentos; responsabilizar-se pelos arranjos preliminares e por qualquer contato
político; ter poder de veto ou de bloqueio a qualquer resolução, sujeito a revisão pelos
Departamentos; se abster de dar direcionamentos técnicos a assuntos específicos militares ou
navais. Para regular as relações entre o embaixador e os oficiais militares, ficavam designados
os Departamentos de Estado e da Guerra dos Estados Unidos.
Desta forma, a documentação diplomática consultada demonstra as transformações nos
parâmetros iniciais de cooperação militar dos Estados Unidos com o Brasil no pós-guerra. O
clima inicial de otimismo e altas expectativas é logo pragmaticamente substituído pelas
considerações da real capacidade e necessidade das repúblicas latino-americanas em
assumirem encargos de defesa tão elevados. Em tempos em que o continente europeu e
asiático eram objetos das maiores preocupações por parte dos EUA, a América Latina era tida
como relativamente “segura”, e os temores dos membros do serviço diplomático eram muito
mais de garantir sua participação e controle nas conversações de assuntos militares, em vistas
à preocupante autonomia dos oficiais encarregados.
168
Documento: (106) Memorandum by the Acting Director, Office of American Republic Affairs (Armour), to
the Secretary of State, 07/12/1944. In: U. S. DEPARTMENT OF STATE. FRUS: Diplomatic Papers, 1944, The
American Republics, Volume VII. Washington: United States Government Printing Office, 1967. Disponível em:
<https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1944v07/d106>.
Contudo, as insatisfações de oficiais militares e do governo brasileiro com o aparente
“descaso” do governo americano quanto à cooperação militar não tardaram em aparecer.
Procurado pelo coronel João Bina Machado em 28 de dezembro de 1945, o encarregado de
negócios da embaixada americana no Brasil (Daniels), que substituía o embaixador Berle,
alertou o Departamento de Estado via telegrama que Machado se encontrava “muito assustado
com o crescimento de sentimentos antiamericanos em altos escalões militares do Brasil”169.
De acordo com o coronel, o sentimento entre os círculos militares era de que os EUA tratavam
o Brasil como um “irmão menor”, duvidando das intenções daqueles em realmente discutirem
a política de cooperação. O ressentimento, segundo Bina Machado, tinha duas motivações:
primeiro, os três memorandos contendo as conversações entre os altos oficiais militares,
relativos à cooperação dos EUA com a modernização das Forças Armadas brasileiras,
enviados aos EUA no início do ano, não foram nem notificados de seu recebimento pelo
governo americano – e muito menos respondidos. A segunda motivação alegada era que dois
oficiais militares americanos designados para a JBUSMC haviam chegado ao Brasil antes da
apreciação e aprovação formal por parte do Ministério das Relações Exteriores.
Urgindo o Departamento de Estado a tomar atitudes imediatas, sob o risco de
prejudicar toda a futura cooperação militar com o Brasil, Daniels solicita atenção à
comunicação constante do governo americano com o Brasil via JBUSMC e o envio imediato
ao Brasil dos carregamentos de armas solicitados. Três dias depois, o Secretário de Estado
James Byrnes respondeu ao telegrama de Daniels170, reafirmando o compromisso americano
de cooperação com o Brasil e o desejo de manter suas relações de forma “íntima e amigável”,
prometendo que mobilizaria os responsável pelos assuntos americanos e o embaixador
americano no Brasil – ausentes, em férias de fim de ano – para entregar uma resposta mais
completa e satisfatória aos oficiais brasileiros. Secretamente, Byrnes informou Daniels de que
“certos elementos, talvez tanto no Brasil quanto em Washington, podem estar causando
problemas nesta questão”, admitindo possíveis erros de considerações, mas solicitando que
“em qualquer evento, será bem-vinda a franca e confidencial expressão de suas próprias
169
Documento: (468) The Chargé in Brazil (Daniels) to the Secretary of State, 28/12/1945. In: U. S.
DEPARTMENT OF STATE. FRUS: Diplomatic Papers, 1945, The American Republics, Volume IX.
Washington: United States Government Printing Office, 1969. Disponível em:
<https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1945v09/d468>.
170
Documento: (469) The Secretary of State to the Chargé in Brazil (Daniels), 31/12/1945. In: U. S.
DEPARTMENT OF STATE. FRUS: Diplomatic Papers, 1945, The American Republics, Volume IX.
Washington: United States Government Printing Office, 1969. Disponível em:
<https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1945v09/d469>.
visões”. O incidente seria apenas uma das expressões do resfriamento das relações militares
entre os dois países nos anos seguintes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da documentação disponível e a comparação com a bibliografia sobre o tema
demonstram que as relações militares entre Brasil e Estados Unidos no pós-Segunda Guerra
passaram de um momento inicial de euforia e altas expectativas para uma condição mais
realista, onde as projeções iniciais de incremento das Forças Armadas brasileiras foram
repensadas. As idas e vindas das conversações diplomáticas e entre os escalões militares dos
dois países ajudam a compreender a reconfiguração do sistema internacional que se opera
neste momento, quando a polarização entre os blocos capitalista e socialista coloca a América
Latina em segundo plano, pelo menos até o final da década de 1950. Análises mais
aprofundadas sobre o tema poderão revelar, posteriormente, os impactos desta transformação
na política interna dos países latino-americanos.
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A MODERNIZAÇÃO NAVAL ARGENTINA NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
171
O capítulo específico sobre o período na obra Historia Maritima Argentina (1991), editada pela própria
Armada, não apresenta nem os planos e nem uma discussão muito extensa sobre o seu papel na guerra. Outros
autores, como Scheina (1987), também seguem essa tendência. Uma das poucas exceções é o trabalho de
Arguindeguy e Rodríguez (1995).
que se encontra disponível, procurando entender os planos de renovação dentro dos contextos
estratégicos e políticos em que foram apresentados.
172
Os antipersonalistas eram os dissidentes da Unión Cívica Radical (UCR) que se opuseram à liderança de
Hipólito Yrigoyen, presidente da Argentina pelo partido em 1916-1922 e 1928-1930. A principal figura desse
grupo era o também ex-presidente Marcelo Torcuato Alvear (1922-1928).
expostas durante as conferências pan-americanas que ocorreram na década, marcadas pelo
embate entre a diplomacia argentina e norte-americana (PARADISO, 2005; ESCUDÉ e
CISNEROS, 2000).
De qualquer maneira, a Armada argentina beneficiou-se deste processo, ainda que
politicamente ela tivesse importância secundária. Desde a década de 1920 a esquadra
argentina passou por um ambicioso processo de renovação naval, que resultou naquele
momento na modernização de seus dois encouraçados Rivadavia e dos quatro
contratorpedeiros das classes Catamarca e Córdoba, além da aquisição de dois cruzadores
pesados Almirante Brown, dois contratorpedeiros Cervantes, três da classe Mendoza e três
submarinos Santa Fe. A expansão continuou durante o governo Justo, que aprovou a
incorporação de mais um cruzador da classe La Argentina e sete contratorpedeiros da classe
Buenos Aires, além de unidades menores (DESTÉFANI, 1991; ARGUINDEGUY e
RODRÍGUEZ, 1995). Essa esquadra era muito superior a todos os demais países sul-
americanos, ainda que fora incorporada após um verdadeiro sacrifício nacional (SCHEINA,
1988).
Essas ambiciosas aquisições foram norteadas pela estratégia naval do país, cujo
panorama tinha influências do pensamento de Alfred Mahan e Raoul Castex (SAHNI, 1991) e
era baseada nas ideias elaboradas pelo almirante Segundo Storni (1967) ainda durante a
Grande Guerra. Segundo ele, a principal preocupação da política naval argentina deveria ser a
proteção das linhas de comunicações marítimas vitais, já que o comércio que passava por elas
era fundamental para a prosperidade nacional. O grande desafio deste objetivo, contudo, era o
fato de que essas rotas passavam em águas brasileiras e chilenas, justamente os dois maiores
rivais regionais e possíveis inimigos de Buenos Aires. Neste sentido, Storni sugeria duas
ênfases para a política naval argentina: a proteção estratégica dos principais portos do país, no
rio da Prata e em Bahía Blanca, e posse de uma poderosa esquadra de batalha com grande raio
de ação, capaz de operar e proteger as linhas marítimas vitais mesmo em águas de seus rivais
sul-americanos. Essa perspectiva implicava que a frota argentina fosse a mais poderosa da
região, porém Storni rejeitava a adoção de two power standard; em seu lugar, propunha um
modelo baseado num princípio de “equilíbrio”, no qual a esquadra de seu país deveria ser
capaz de derrotar “isoladamente cada uma das frotas vizinhas e tornar muito problemática sua
junção em caso de guerra” (STORNI, 1967, p.113).
Da invasão da Polônia à guerra na América (1939-1942)
O início da guerra na Europa, em setembro de 1939, foi acompanhado de uma posição
cautelosa e neutra da Argentina frente ao conflito. Nesta perspectiva, houve uma notável
posição colaborativa de Buenos Aires com Washington nos primeiros meses da contenda, uma
convergência pouco comum na época graças às questões internas nos dois países que
favoreciam posições externas similares (SCHIENIN, 2007).
A experiência da Batalha do Rio da Prata, em dezembro de 1939, deixou marcas
importantes na visão argentina, que naquele momento passaram a duvidar da capacidade
norte-americana de assegurar a zona de neutralidade proclamada pela Conferência do Panamá
alguns meses antes. A imagem da luta dos cruzadores britânicos e alemão no estuário do Prata
deixou uma vívida imagem em lideranças militares e civis argentinas de que o país deveria
contar apenas com seus próprios recursos para a defesa de sua neutralidade (ROUQUIÉ,
1981).
Esse processo acabou acelerado com a surpreendente derrota francesa, em junho de
1940, que acelerou o processo de elaboração de planos de reequipamento naval e resultou na
aprovação de um crédito de 450 milhões de pesos para a marinha. A proposta final, deliberada
em julho, previa um plano de aquisições que incluíam três cruzadores ligeiros, quatro
contratorpedeiros, seis submarinos, vinte lanchas-torpedeiras e 220 aviões. Essa proposta
fundamentava-se na necessidade de renovar a defesa costeira e fluvial, adquirindo as últimas
unidades previstas pelo programa naval anterior e substituindo os navios mais antigos
(canhoneiras/encouraçados de rio classe Independencia, adquiridos ainda no século XIX, bem
como canhoneiras Rosario e os quatro contratorpedeiros classe Catamarca e Córdoba,
incorporados na década de 1910) por embarcações novas.173
Cabe ressaltar que esta proposta era vista como o mínimo necessário na visão da
Armada, meramente para remediar a situação regional do país principalmente em relação aos
seus dois principais rivais e possíveis adversários, Brasil e Chile, dando continuidade ao
pensamento de defesa existente nas décadas anteriores. Neste sentido, a marinha tomava em
conta que, dada a correlação de forças militares regionais, a hipótese mais provável de
conflito era entre Buenos Aires e uma coalização Rio de Janeiro-Santiago, ainda que agora já
tomasse a possibilidade de guerra contra uma potência extracontinental não definida.
173
Departamento de Estudios Históricos Navales (DEHN). Caixa 211, Leyes de Armamentos/Proyectos Leyes
Armamentos 1925, 1940-1, 1961. Proyecto de Ley, 2-7-1940. Os parágrafos seguintes foram baseados no
conteúdo deste projeto.
Independente de qual adversário tivesse que lutar, a Armada considerava essencial
executar nove tipos operações destinadas à proteção de seus portos e linhas de comunicação
marítimas fundamentais para o esforço de guerra: 1) impedir o transporte de tropas brasileiras
via mar, até a zona de conflito no Rio Grande do Sul; 2) a vigilância das bases inimigas no
Atlântico e Pacífico; 3) o ataque ao comércio adversário em ambos oceanos; 4) proteção das
linhas marítimas com Europa e Estados Unidos; 5) proteção das linhas de comunicação
marítimas no litoral argentino; 6) proteção da navegação fluvial; 7) defesa do Prata e bases
navais; 8) operações combinadas com o exército, particularmente no estratégico Estreito de
Magalhães, bem como transporte de tropas; 9) destruição das frotas inimigas, algo visto como
o objetivo essencial do poder naval argentino. Como se pode observar, ainda que os planos
estivessem tomando em conta também uma potência extracontinental, quase todo o
planejamento naval argentino dava continuidade à percepção das décadas anteriores, marcado
também pela influência do pensamento de Mahan (como na ênfase na batalha decisiva contra
a esquadra inimiga e a proteção das linhas de comunicação).
Para ter uma força adequada para realizar todas essas operações, a Armada
considerava ser necessária uma esquadra maior do que a existente e as aquisições
contempladas, que deveria ser composta por três encouraçados, um porta-aviões, três
cruzadores pesados, quatro cruzadores ligeiros, vinte e oito contratorpedeiros, dezoito
submarinos, quatro monitores, duas canhoneiras, vinte lanchas-torpedeiras e “um bom número
de barcos auxiliares”. Essa força era vislumbrada como a esquadra ideal, que seria capaz de
responder a qualquer ameaça em nível regional e criar uma frota adequada para fazer frente a
qualquer força extracontinental.
Enquanto o programa naval argentino era discutido e aprovado, ocorreram novas crises
políticas no país. Neste sentido, é provável que o próprio empenho de Ortiz em aprovar
recursos para a esquadra do país era uma sinalização para fortalecer seu governo frente às
críticas dos setores conservadores, irritados com as reformas políticas-eleitorais propostas, e
os setores nacionalistas autoritários, que não só se opunham ao presidente liberal no plano
interno como também em seus acenos ao campo Aliado. Doente, Ortiz acabou sendo obrigado
a deixar a presidência ao seu vice em julho de 1940. Ramón Castillo, um representante dos
setores oligárquicos e conservadores, e que se mostrava contrário ao fim do sistema da fraude
eleitoral. Ortiz ainda tentaria influenciar o governo nos meses seguintes, porém ficou cada vez
mais debilitado até falecer em 1942 (POTASH, 1981; ROUQUIÉ, 1981).
O governo Castillo ascendeu numa posição política delicada, já que o vice-presidente
não tinha uma base muito sólida em meio à crise. Neste sentido, buscou apoio em setores
diversos, aproximando-se de sua base conservadora ao defender a manutenção do sistema de
fraude eleitoral e uma estrita neutralidade no plano externo, apoiada pelos setores
agroexportadores que valorizavam os vínculos europeus, em especial com a Grã-Bretanha,
que creditavam à neutralidade a proteção e manutenção do comércio transatlântico. De outro
lado, o presidente também se aproximou dos setores nacionalistas autoritários e setores
militares, buscando cortejá-los através da liberação de recursos para renovação de
equipamento bélico (POTASH, 1981; ROUQUIÉ, 1981).
Neste cenário, houve uma ampliação das discussões sobre o programa de renovação
naval, que então foi ampliado para um valor de 712 milhões de pesos e contaria com a
previsão de aquisição de um encouraçado e modernização de bases navais em adição ao plano
de aquisições anterior. Em setembro de 1941, o governo conseguiu a aprovação da lei 12.690,
que estabeleceu o novo programa naval argentino.174 Existia uma percepção de certa urgência
na proposta desta nova legislação, já que setores no governo e na marinha entendiam que o
conflito estava próximo de seu final e queriam evitar possíveis dificuldades no pós-guerra.175
Não obstante, conforme os desenvolvimentos da guerra prosseguiam e a questão do
fornecedor dos armamentos desejados ganhou novos contornos. Ainda naquele ano houve
uma sondagem junto ao governo alemão sobre as possibilidades, tendo-se a ideia de que a
vitória nazista na Europa se encontrava próxima, porém efetivamente o único país em
condições de fornecer os armamentos eram os Estados Unidos. Se de um lado Washington
ainda se encontrava em pleno processo de seu próprio rearmamento, de outro lado o país tinha
aprovado, em março, o Lend-Lease Act, que autorizava a venda de equipamentos militares a
custos simbólicos. A grande questão, para os argentinos, era de que o acesso a estes recursos
dependia da adoção de um alinhamento prévio aos Estados Unidos, algo que dividia
profundamente as opiniões na Argentina já que implicaria no abandono da sua neutralidade e
era um tema muito sensível no país (SCHIENIN, 2007; ESCUDÉ e CISNEROS, 2000).
As primeiras conversas com os norte-americanos ocorreram ainda em 1940, porém
naquele momento elas não resultaram em nenhum avanço por causa das desconfianças
existentes, particularmente entre os militares argentinos que relutavam em tomar uma atitude
mais incisiva na cooperação de defesa, pois entendiam que tal decisão violaria a neutralidade
do país. As discussões bilaterais somente voltaram a ocorrer no ano seguinte, já diante da
aprovação do lend-lease e da disposição norte-americana em oferecer material bélico para o
174
DEHN. Caixa 211, Leyes de Armamentos/Proyectos Leyes Armamentos 1925, 1940-1, 1961. Ley 12.690,
aprobada en 9-9-1941.
175
DEHN. Caixa 211, Leyes de Armamentos/Proyectos Leyes Armamentos 1925, 1940-1, 1961. Proyecto de ley,
11-11-1940.
restante do continente. Assim, em agosto, as negociações foram retomadas e foi decidido que
uma missão militar-naval argentina, liderada pelo general Lápez e o almirante Sabá Sueyro,
que iria à Washington ainda naquele ano para acertar a transferência de material bélico.176
Após atrasos, a missão chegou ao seu destino em dezembro de 1941, já em meio ao caos
resultante do ataque japonês à Pearl Harbor e a entrada formal dos Estados Unidos na
Segunda Guerra Mundial (ESCUDÉ e CISNEROS, 2000).
176
Considerando que os planos de renovação naval foram aprovados, com certa urgência, em setembro, podemos
presumir que as requisições da Armada nos Estados Unidos compreendiam as aquisições estabelecidas pelo novo
programa naval.
submarinos, munições e sobressalentes; o oficial nazista tomou notas e repassou as
informações para o comando da Kriegsmarine, porém apesar de mostrarem-se favoráveis ao
negócio, os alemães apontaram que esse material não poderia ser oferecido por causa das
demandas da própria força no conflito (POTASH, 1981).
A entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em agosto de 1942, contribuiu para
ampliar a pressão sobre a Argentina em nível externo e a controvérsia interna quanto à
posição da neutralidade, em especial diante do claro rompimento de Justo com o governo e
seu explícito apoio ao Rio de Janeiro. Neste aspecto, a retórica do isolamento e da negação de
acesso aos recursos do lend-lease passaram a gerar grandes insatisfações em setores militares
argentinos, que se preocupavam com o declínio relativo e absoluto do poderio militar do país
(POTASH, 1981; ROUQUIÉ, 1982).
Diante da pressão externa, das insatisfações diversas dos setores militares em relação
ao governo Castillo e sua insistência na nomeação do impopular candidato conservador
Robustiano Patrón Casas, uma coalização de oficiais liberais (radicais), católicos,
nacionalistas autoritários e conservadores improvisou um golpe de estado em junho de 1943,
dando início a um novo regime ditatorial de caráter eminentemente castrense sob o general
Pedro Ramírez. Diante desse caráter amplo, não havia uma coesão do gabinete quanto à
neutralidade argentina, com parte dos ministros apoiando o rompimento de relações como
forma de obter o auxílio econômico e militar norte-americano, enquanto parte mostrava-se
irredutível, considerando esta medida como uma afronta e coerção norte-americana à
soberania argentina (POTASH, 1981; ROUQUIÉ, 1982).
Nesta disputa, uma das principais figuras do campo pró-aliados era o almirante
Segundo Storni, que se tornou chanceler no novo governo. Numa aparente tentativa de
fortalecer a linha pró-aliada no governo, Storni decidiu enviar uma carta à Hull no qual
requisitava a transferência de recursos do lend-lease à Argentina, pedindo que ela fosse
tratada de modo consciente com seu peso e papel no sistema de poder sul-americano. A dura
resposta de Hull, que humilhou o colega argentino, teve como repercussão a derrocada do
setor militar mais moderado e o fortalecimento do grupo nacionalista autoritário (POTASH,
1981; ROUQUIÉ, 1982).
Nos meses seguintes, houve a aprovação de novos recursos para renovação militar
argentina, incluindo o decreto 9.006, de setembro, que modificou a lei anterior e aumentou o
seu valor em mais 540 milhões de pesos, estabelecendo a aquisição de dois porta-aviões, oito
contratorpedeiros, doze submarinos, 220 aviões, armamentos antiaéreos e material necessário
para construção de fábricas militares.177 Cabe ressaltar que a ênfase dada nos armamentos
aéreos reflete a experiência e sucesso destes armamentos na guerra, tanto no Atlântico como
no Pacífico, no qual os porta-aviões assumiam um papel cada vez mais importante em
detrimento dos antigos encouraçados.
Diante da recusa sistemática norte-americana em fornecer auxílio militar, lideranças
militares do setor autoritário nacionalista novamente se voltaram para os alemães numa
tentativa arriscada de obter novos armamentos, resultando no caso Helmuth.178 Combinado
com o envolvimento argentino no golpe de estado na Bolívia em dezembro de 1943, estes
eventos enfraqueceram o núcleo mais duro dos nacionalistas autoritários, levando à queda de
vários representantes desse setor e coagindo o presidente a finalmente romper relações com
Eixo em janeiro de 1944. A decisão de Ramírez mostrou-se polêmica, corroendo sua base de
sustentação e levou à sua deposição no mês seguinte, substituído pelo general Edelmiro
Farrell (POTASH, 1981; ROUQUIÉ, 1982).
Os Estados Unidos voltaram a pressionar o novo governo, recusando-se a reconhecê-lo
e dando início a um período onde a Argentina passou a ser vista como pária e ameaça
regional. Ainda que houvesse certas divergências dentro de Washington – as forças armadas
norte-americanas divergiam do departamento de estado quanto à pressão política e negação
sistemática de recursos militares para os argentinos – a renovada pressão foi acompanhada de
novas ofertas de recursos, via lend-lease, para os tradicionais rivais dos platinos, acirrando as
tensões internas e externas relacionadas com o armamento desses países (ESCUDÉ e
CISNEROS, 2000).
Assim, a questão dos armamentos continuou a ser um assunto fundamental na política
interna argentina. Em setembro de 1944, o decreto 24.220 renovou os planos e valores para as
aquisições navais,179 porém efetivamente a Armada não tinha onde buscar as unidades
desejadas; naquela época, as forças armadas argentinas tinham recebido mais de 900 milhões
de pesos somente desde o golpe de 1943, porém tinham gasto apenas 120 milhões de pesos
(POTASH, 1981). Um meio vislumbrado como alternativa era a fabricação do equipamento
177
DEHN. Caixa 211, Leyes de Armamentos/Proyectos Leyes Armamentos 1925, 1940-1, 1961. Decreto
9.006/43, de 16-9-1943.
178
No final de 1943 a cúpula do regime argentino, então dominada pelos nacionalistas autoritários, decidiu
enviar um oficial de marinha, Osmar Helmuth, para negociar secretamente a aquisição de armamentos com os
alemães. Durante a viagem até a Europa, Helmuth, que também era um agente nazista, acabou preso pelos
britânicos em Trinidad, confessando a real intenção de sua viagem. Os Estados Unidos então utilizaram a ameaça
de divulgação dessa história caso o governo Ramírez não aceitasse romper imediatamente as relações com o
Eixo, o que ocorreu pouco depois (POTASH, 1981).
179
DEHN. Caixa 211, Leyes de Armamentos/Proyectos Leyes Armamentos 1925, 1940-1, 1961. Decreto
21.249/44, 7-8-1944.
bélico em solo pátrio, algo que ganhou prioridade durante o período em que o coronel Juan
Perón assumiu a pasta da guerra. Neste caso, mais uma vez, houve contatos com os alemães
entre abril e setembro em busca de planos e licenças para produção de material bélico. Apesar
de alguns sucessos na criação de protótipos, a produção interna simplesmente não tinha como
garantir a quantidade de material necessário (ROUQUIÉ, 1982; POTASH, 1981).
A Armada, por sua vez, tinha iniciado um processo de desenvolvimento de suas
capacidades industriais desde a década de 1930 e, após o golpe de 1943, deu passos
importantes para o estabelecimento de um estaleiro na base de Río Santiago e o início de um
momento de intensa atividade. Em 1938 foi autorizada a construção de quatro navios patrulha
da classe King, porém a falta de materiais necessários acabou impedindo que os dois
primeiros barcos ficassem prontos durante a guerra (ARGUINDEGUY e RODRÍGUEZ,
1995). No plano externo, houve novas buscas por contratorpedeiros e pequenas unidades,
particularmente através da aquisição na Espanha, Portugal e Suécia – onde foi criada inclusive
uma comissão naval em 1945180 –, mas em nenhuma dessas negociações prosperou.181
A situação começou a mudar apenas em finais de 1944, quando uma série de
alterações nos quadros políticos da Argentina (queda dos setores mais à direita e consolidação
da ascensão de Perón) e nos Estados Unidos (particularmente, na substituição de Cordelll Hull
por Edward Stettinius), além de uma crescente pressão latino-americana que insistia na
reincorporação de Buenos Aires dentro do quadro de solidariedade continental tendo em vista
o pós-guerra, abriu espaço para um novo diálogo e o abandono da posição norte-americana
mais coercitiva. Como resultado dessa retomada das negociações, a Argentina finalmente
declarou guerra ao Eixo em março de 1945, às vésperas do fim do conflito, algo que permitiu
que o embargo fosse afrouxado e o país finalmente pudesse receber os primeiros recursos
lend-lease (ESCUDÉ e CISNEROS, 2000; PARADISO, 2005).
O clima de maior colaboração, contudo, durou apenas alguns meses, já que novas
mudanças no governo norte-americano levaram ao retorno da linha dura diplomática, em
especial com a decisão da escolha de Spruille Braden como embaixador em Buenos Aires,
bem como pela repressão realizada pelo governo Farrell contra as manifestações pró-
democracia, que novamente acenderam alertas quanto à uma suposta inspiração e natureza
fascista do governo argentino. O novo imbróglio, que duraria todo o ano de 1945, acabaria
levando à retomada do embargo e ao acordo de cavalheiros dos Estados Unidos e Grã-
Bretanha que impedia que estes países fornecessem armamentos aos argentinos (ESCUDÉ e
180
Memoria del Ministerio de Marina, 1946.
181
The National Archives, Foreign Office (FO) 371/44709. Political situation in Argentina, 31-4-1945.
CISNEROS, 2000; SCHEININ, 2007), enquanto em Buenos Aires a crise no governo Farrell
acirrou-se levando aos conturbados episódios de outubro que terminaram no retorno triunfante
de Perón como candidato favorito para as eleições presidenciais do ano seguinte (POTASH,
1981; ROUQUIÉ, 1982).
Considerações finais
A experiência argentina durante a Segunda Guerra Mundial foi cercada de
controvérsias e dificuldades, resultantes tanto das disputas internas no país como da sua
conturbada relação com os Estados Unidos em âmbito externo.
Neste breve artigo, buscamos apontar e discutir brevemente os planos de
modernização naval do país, buscando contextualizá-lo com a conjuntura política doméstica e
externa em que foram preparados. As propostas de 1940 e 1941 representam uma
continuidade do pensamento de defesa argentino, focando-se na disputa regional com Brasil e
Chile, bem como a ênfase de navios de superfície. Em ambas, questões de política doméstica
tiveram peso, considerando os projetos de Ortiz e Castillo e o peso das forças armadas
argentinas no jogo político argentino. A proposta de 1943, renovada no ano seguinte, já traduz
as experiências da guerra ao dar mais ênfase para armamentos aéreos. Aqui, as questões de
política doméstica também se provaram importantes: a própria decisão de aprovar estava
relacionada com a controvérsia da questão dos armamentos, um elemento chave nesse
momento para se entender o próprio posicionamento argentino quanto à sua neutralidade e a
própria emergência da ditadura militar de 1943.
Referências bibliográficas
ARGUINDEGUY, Pablo E.; RODRÍGUEZ, Horacio. Las fuerzas navales argentinas: historia
de la flota de mar. Buenos Aires: Instituto Browniano, 1995.
DESTÉFANI, Laurio H. La Armada Argentina (1923-1950). In: HISTORIA Marítima
Argentina, tomo IX. Buenos Aires: Departamento de Estudios Historicos Navales, 1991
ESCUDÉ, Carlos; CISNEROS, Andrés. Historia General de las Relaciones Exteriores de la
República Argentina. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 2000. Disponível online
em: http://www.argentina-rree.com/historia.htm.
PARADISO, José. Um lugar no mundo: a Argentina em busca de identidade internacional.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
POTASH, Robert A. El ejército y la política en la Argentina, 1928-1945: de Yrigoyen a
Perón. Buenos Aires: Sudamericana, 1981.
ROUQUIÉ, Alain. Poder militar y sociedad política en la Argentina: hasta 1943. Buenos
Aires: Emecé, 1981.
______. Poder militar y sociedad política en la Argentina: 1943-1973. Buenos Aires: Emecé,
1982.
SCHEINA, Robert L. Latin America: a naval history, 1810-1987. Annapolis: Naval Institute
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SCHEININ, David. Argentina: The Closet Ally. In: LEONARD, Thomas M.; BRATZEL,
John F. (Eds.). Latin America during World War II. Lanham: Rowman & Littefield, 2007.