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ANAIS DO IV SIMPÓSIO NACIONAL DE

HISTÓRIA MILITAR

Gênero, Forças Armadas e Guerra


Período: 27 a 30 de agosto de 2019

LONDRINA

2019
IV Simpósio Nacional de História Militar

Anais / IV Simpósio Nacional de História Militar: gênero, forças armadas e guerra;


Organização: José Miguel Arias Neto; Londrina: Universidade Estadual de Londrina,
2019.

Texto em português

ISBN 978-65-00-33409-8

1. História Militar. 2. Teoria e Metodologia. 3. Historiografia. 4. Política e


Sociedade.
IV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA MILITAR
Gênero, Forças Armadas e Guerra
Período: 27 a 30 de agosto de 2019

ORGANIZAÇÃO
Coordenador

José Miguel Arias Neto - Universidade Estadual de Londrina

COMISSÃO ORGANIZADORA
Carlos André Lopes da Silva - Diretoria do Patrimônio
Histórico e Documentação da Marinha
Edina Laura Nogueira da Gama - Diretoria do Patrimônio
Histórico e Documentação da Marinha
Francisco César Alves Ferraz - Universidade Estadual de
Londrina
Francisco Eduardo Alves de Almeida - Escola de Guerra Naval
Fernando da Silva Rodrigues - Universidade Salgado de Oliveira
Gabriel Ignacio Garcia - Universidade Estadual de Londrina
Giovana Ferreira de Faria - Universidade Estadual de Londrina
Ianko Bett - Museu Militar do Comando Militar do Sul
Marcello José Gomes Loureiro - Escola Naval
Matheus Moreto Guisso Rodrigues - Universidade Estadual de
Londrina
Pierre Paulo da Cunha Castro - Diretoria do Patrimônio
Histórico e Documentação da Marinha
Raquel Fernandes Lanzoni - Universidade Estadual de Londrina
Ricardo Pereira Cabral - Escola de Guerra Naval
Rosemeri Moreira - Universidade do Centro-Oeste do Paraná
Victor Hugo Bento da Costa Traldi - Universidade Estadual de
Londrina
Wagner Luiz Bueno dos Santos - Diretoria do Patrimônio
Histórico e Documentação da Marinha

Comissão Científica
André Átila Fertig - Universidade Federal de Santa Maria
Andrea Mazurok Schactae – Instituto Federal do Paraná
Braz Batista Vaz - Universidade Federal do Tocantins
Carlos Roberto Carvalho Daróz - Universidade Salgado de
Oliveira
Celso Castro - CPDOC/FGV
Cláudia Guerra - Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro
Dennison de Oliveira - Universidade Federal do Paraná
Fernando da Silva Rodrigues - Universidade Salgado de Oliveira
Francisco César Alves Ferraz - Universidade Estadual de
Londrina
Francisco Eduardo Alves de Almeida - Escola de Guerra Naval
Ianko Bett – Museu Militar do Comando Militar do Sul
Leandro José Clemente Gonçalves - Instituto Federal de São
Paulo
Luiz Claudio Duarte - Universidade Federal Fluminense
Marcello José Gomes Loureiro - Escola Naval
Ricardo Pereira Cabral- Escola de Guerra Naval
Rosemeri Moreira Universidade do Centro-Oeste do Paraná
Sueny Diana Oliveira de Souza – Universidade Federal do Pará
Willian Gaia Farias – Universidade Federal do Pará

Secretaria Executiva
Giovana Ferreira de Faria - Universidade Estadual de Londrina
Matheus Moreto Guisso Rodrigues - Universidade Estadual de
Londrina
Victor Hugo Bento da Costa Traldi - Universidade Estadual de
Londrina

Promoção
Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina

Apoio
Programa de Pós-Graduação em História Social - UEL
Especialização em História das Religiões - UEL
Pró-Reitoria de Extensão Universitária - UEL
H2H Visual Media
GT História Militar – ANPUH - Brasil
GT História Militar – ANPUH - Paraná
GT História Militar – ANPUH - Rio de Janeiro
GT História Militar – ANPUH - Rio Grande do Sul
Laboratório História Militar, Política e Fronteiras
da Universidade Salgado de Oliveira - UNIVERSO
Grupo de Pesquisa Estudos Culturais, Política e Mídia - UEL
Grupo de Pesquisa Militares, Política e Fronteiras na Amazônia
- UFPA
APRESENTAÇÃO

É com satisfação que o Departamento de História da Universidade Estadual de


Londrina recebe pesquisadores de todo o Brasil para o IV Simpósio Nacional de
História Militar.
Em tempos de crise sem precedência na História da República, podemos
afirmar que a realização deste evento é uma vitória do grupo de pesquisadores que
culminou com a criação do GT Nacional de História Militar da Associação Nacional
de História, ANPUH-Brasil. Evidencia também que o interesse que a História Militar –
campo polissêmico que abarca diversas perspectivas teóricas e metodológicas –
vem crescendo entre nós, pesquisadores acadêmicos da área de Humanidades em
todo o Brasil. A presença de pesquisadores de todo o país também demonstra o
caráter nacional deste Simpósio, que esperamos, venha a crescer nos próximos
anos.
Agradecemos o apoio recebido da PROEX – Pró-Reitoria de Extensão, Cultura
e Sociedade da UEL, do ITEDES – Instituto de Tecnologia e Desenvolvimento
Social, do CESA – Centro de Estudos Sociais Aplicados, do CLCH- Centro de Letras
e Ciências Humanas, do Departamento de História, do Programa de Pós-Graduação
em História Social, da Especialização em História e Religiões, da COM -
Coordenadoria de Comunicação Social da UEL, da Gráfica-UEL, da EDUEL, dos
Grupos de Pesquisa em Estudos Culturais, Política e Mídia da UEL e Militares,
Política e Fronteiras na Amazônia da UFPA. Agradecemos também o apoio do grupo
Cantoria, Nossa Escolha, do CECA - Centro Esportivo de Capoeira Angola, do
Núcleo de Documentação e Pesquisa Histórica, do Museu Histórico de Londrina e da
H2H – Visual Media.
Agradecemos a todos que direta ou indiretamente contribuíram para a
realização deste evento e que não estão nominados acima e que são tantas pessoas
que nos acolheram com delicadeza e competência na resolução de questões de toda
ordem. Aos funcionários do Departamento de História e aos da Secretaria Geral bem
como, aos Monitores e pessoal da Secretaria do Evento um agradecimento especial
pela dedicação e empenho.
A todos, desejamos uma estada agradável na cidade de Londrina, na
Universidade Estadual de Londrina e uma proveitosa participação no IV SNHM.
SUMÁRIO:

O(S) FEMININO(S) EM INSTITUIÇÕES ARMADAS NA AMÉRICA Andréa Mazurok Schactae


LATINA: BRASIL E CUBA
Rosemeri Moreira

AS REFORMAS CONSTITUCIONAIS DOS GOVERNOS Gleisieli Aparecida de Freitas Luz


MILITARES: A CONSTITUIÇÃO DE 1967, A EMENDA
Mariana Schemberger Bardi
CONSTITUCIONAL DE 1969, O AI-5 E AS LIMITAÇÕES À
DEMOCRACIA NO BRASIL

OS DESTINOS DO PATRIMÔNIO CULTURAL MILITAR Adler Homero Fonseca de Castro

A COLÔNIA MILITAR DO AVANHANDAVA (1858) E OS IDEAIS Daniel Candeloro Ferrari


MILITARES NA OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO PAULISTA.
Nilson Ghirardello

NOTAS SOBRE “O QUE É SER UMA POLICIAL MILITAR”: Daniela Cecilia Grisoski
UMA DISCUSSÃO NO CAMPO DA PSICODINÂMICA DO
TRABALHO.

AS “PANTERAS ENTRARAM EM CENA”: A HISTÓRIA SOBRE O Jesiane Calderaro Costa Vale


INGRESSO DE MULHERES POLICIAIS MILITARES, NOS JORNAIS
DO PARÁ, A PARTIR DA DÉCADA DE 1980.

VIDA A BORDO: COSTUMES E HIERARQUIA NA CANHONEIRA Matheus Gomes de Lima


GUARANY – AMAZÔNIA (1885-1900)

A JUSTIÇA MILITAR DO PARÁ (1950- 1970): A INSTITUIÇÃO E OS Luana Camila da Silva Rosário
PROCESSOS CRIMINAIS NO CENTRO DE MEMÓRIA DA
AMAZÔNIA

MARINHEIROS NO PORTO DE BELÉM: CONFLITOS, AMORES, Eduarda Josefa Peixoto Alves


SOCIABILIDADE E TROCAS CULTURAIS (1889-1912)

UMA ABORDAGEM DO ETHOS MILITAR: AS DIFERENTES Fabio da Silva Pereira


VISÕES SOBRE OS VALORES CASTRENSES.

A CRISE DO CARVÃO MINERAL NO BRASIL E NA AMAZÔNIA Pablo Nunes Pereira


DURANTE A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL

ESTUPRO E GUERRA: VIOLÊNCIA SEXUAL NA BASE MILITAR Sarah de Souza Mendes Coutinho
DE VAL-DE-CANS, EM BELÉM E RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Victoria Sozinho Prado
ENTRE BRASIL E ESTADOS UNIDOS.

HEROÍNAS, GÊNERO E GUERRAS: AS MULHERES DA REVISTA Rosemeri Moreira


NAÇÃO ARMADA (1942-1945)
Andréa Mazurok Schactae

MILITARES, GEOPOLÍTICA E FRONTEIRAS Shiguenoli Miyamoto

A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL PARA ALÉM DO FRONT: A Larissa Foss Sochodolhak


POSSIBILIDADE DE PESQUISA DA PROPAGANDA DE GUERRA
ALIADA NO BRASIL ATRAVÉS DAS REVISTAS EM GUARDA E A
GUERRA ILUSTRADA (1939-1945)

A PARTICIPAÇÃO DE EDUARDO GOMES (1896-1981) NOS Lucas Mateus Vieira de Godoy


MOVIMENTOS TENENTISTAS DE 1922 E 1924: UMA DISCUSSÃO Stringuetti
ACERCA DAS FONTES DE NOSSO ESTUDO
“CAUSAS DA GUERRA COM O PARAGUAY”: A ESCRITA DA Ismael Baptista Vincensi
HISTÓRIA MILITAR E A PERSPECTIVA NACIONALISTA DE
SOUZA DOCCA EM SUA OBRA.

A SEGURANÇA HEMISFÉRICA: COOPERAÇÃO MILITAR BRASIL- Vinicius Marcondes Araújo


ESTADOS UNIDOS NO PÓS-GUERRA (1944-1945)

A MODERNIZAÇÃO NAVAL ARGENTINA NA SEGUNDA Ludolf Waldmann Júnior


GUERRA MUNDIAL
O(S) FEMININO(S) EM INSTITUIÇÕES ARMADAS NA AMÉRICA LATINA: BRASIL E
CUBA1
Andréa Mazurok Schactae
(Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná- IFPR)
Rosemeri Moreira
(Universidade Estadual do Centro Oeste UNICENTRO)

Palavras-chave: Feminilidades; Masculinidades; Instituições armadas.

Masculinidade, instituições armadas e mulheres

O século XIX e o início do século XX são marcados pela afirmação da virtude da


virilidade (força, domínio, honra, sacrifício) (COURBIN, 2013). A construção dos Estados
Nacionais, ao longo do século XIX, é parte de um processo de virilização do Estado. O
espírito de sacrifício, a abnegação, a coragem, a bravura, identificam os heróis. As mulheres
que acompanhavam os exércitos, no século XIX, são apresentadas cuidando dos feridos e
poucas são lembradas como guerreiras (BERTAUD, 2013).
Na América Latina, as guerras pela Independência colocaram a virilidade como parte
da identificação dos Estados Nacionais. Os textos, escritos no século XIX e início do XX,
sobre a participação das mulheres na Independência da América Latina (PRADO, 1999;
GONZÁLEZ, 2010), são uma representação da Nação, e apresentam mulheres que se
apropriaram de práticas identificadas como viris. As biografias das poucas mulheres que
participam das guerras, servem para reafirmar que a virilidade é domínio masculino, bem
como indicam uma ruptura nesse domínio. Ao mesmo tempo em que ao ser exceção, a
presença feminina legitima o espaço das armas como pertencente aos homens, ela também
rompe com esse espaço, ao demonstrar que a virilidade também pode ser atributo feminino.
Todavia, em um contexto constituído pela afirmação da virilidade, ocorreu o ingresso
de mulheres nos quadros permanentes das instituições armadas, do Ocidente. No início do
século XX, ingressaram as primeiras mulheres nos quadros permanentes de instituições

1
O texto tem como base os seguintes artigos: MOREIRA, Rosemeri; SCHACTAE, Andréa; SÓÑORA SOTO,
Ivette. Entre guerrilleras, soldados y policias: lo feminino en instituciones armadas de Cuba e Brasil. In:
MARTINS, Ana Paula; GUEVARRA, María de los Ángeles Arias (orgs.) Políticas de Gênero na América
Latina: aproximações, diálogos e dasafios. Jundiaí, Paco Editorial: 2015, p. 141- 170.
SCHACTAE, Andréa. “Mulheres Guerreiras” e o(s) feminino(s) nas instituições armadas na América Latina,
Dimensões, v. 36, jan.-jun. 2016, p. 82-10.
armadas, e as polícias são as primeiras instituições a permitir o ingresso de mulheres
(BOTELLO, 2000).
Em 1910, o Departamento de Polícia de Los Angeles, admitiu oficialmente a primeira
mulher como policial, porém elas atuavam de forma não oficial desde 1840, nos
departamentos prisionais. Antes de 1925, havia 210 cidades, dos Estados Unidos, que
empregavam policiais femininas, principalmente como matronas de prisão. As mulheres
policiais atuavam no cuidado de jovens e mulheres e na prevenção do crime dirigido a essa
parcela da população, mantinham o ideal de feminilidade aceito pela instituição. Nos anos de
1970, ocorreu o processo de integração das mulheres policiais nas polícias. A policial
especialista na proteção de crianças, jovens e mulheres e na atuação em crimes envolvendo
vítimas femininas e infantis ou a prática criminosa de mulheres tornou-se legalmente uma
policial, com os mesmos direitos dos policiais homens e atuando em todas as situações de
crime (GARCIA, 2003).
No México, as mulheres ingressaram na polícia na década de 1930, e até o final da
década de 1990, as atividades ocupadas pelas mulheres na polícia eram as consideradas
secundárias. Entre as atividades “femininas” estão as áreas administrativas, o patrulhamento
em parques, em museus, em escolas e na patrulha ecológica (um tipo de policiamento de
trânsito que controla os veículos que devem circular) – atividade que foi desprezada pelos
homens. Somente na década de 1990, quando as policiais foram designadas para a patrulha
ecológica, foi-lhes permitido portarem armas (BOTELLO, 2000).
Em meados do século XX, iniciou-se na América Latina um processo de inclusão das
mulheres nos quadros permanentes das forças armadas. E Cuba é o primeiro país a admitir
mulheres nos quadros permanentes das Forças Armadas e como combatentes. Porém, elas
estiveram presentes em condições de exceção, nos exércitos que lutaram pela independência,
dos diversos países da América Latina. Também é importante destacar a participação das
mulheres na Revolução Mexicana, no início do século XX (LAU JAIVEN, 1995; CANO,
2010).
Vale destacar, que é uma tendência das instituições armadas a prática da inclusão
restritiva, o que significa excluir as mulheres dos espaços de combate. Portanto, para
compreender o processo de inclusão das mulheres nesse espaço masculino é fundamental a
realização de estudos de caso, para que seja possível posteriormente estabelecer comparações
que permitam compreender as diferenças e semelhanças nas políticas de inclusão. A presença
de mulheres em instituições armadas segue sendo uma contradição, pois rompe com ideais de
feminilidade e de masculinidade. O viril ainda tende a ser percebido como atributo de homens
e os espaços das armas são lugares de afirmação e legitimação da virilidade.
Embora a presença de mulheres nas instituições armadas da América Latina remonte
ao século XIX, o debate sobre políticas públicas destinadas à inclusão de mulheres nesses
espaços, é recente. Entre as ações atuais dos Estados Ocidentais destacam-se o 1º Encontro
Internacional de Ministras de Defesas e Lideranças de Defesa, realizado no Equador, no ano
de 2013, e o 2º Encontro Internacional de Ministras de Defesas e Lideranças de Defesa,
realizado no mês de Junho de 2014, em Caracas. Esses eventos são indicativos da atualidade
do debate sobre a inclusão de mulheres nos espaços de armas (polícias e forças armadas).

Mulheres e armas:
Imagens de mulheres em instituições armadas em Cuba e Brasil (1970-1985)

O ingresso de mulheres nos quadros permanentes de instituições armadas cubanas,


como combatentes, ocorreu no final da década de 1950, ao se considerar o Pelotão Mariana
Grajares. No entanto, desde o início dos conflitos, no ano de 1953, durante o assalto ao
Quartel Moncada, em Santiago de Cuba, as mulheres atuaram nos espaços de conflito
armado.2 Antes da criação do Pelotão Feminino na Serra Maestra, inúmeras mulheres
realizaram atividades de mensageiras, enfermeiras, secretárias, transportando armas,
munições, comidas e homens da cidade para a Serra Maestra. Portanto, considerando que
muitas das mulheres que atuaram durante a guerra (1956-1959) foram incorporadas as
instituições militares cubanas na década de 1960, Cuba é um dos primeiros países na
América-Latina a permitir que mulheres ingressem no Exército.
Na década de 1960 foram criadas as Tropas de Milícias Territoriais, nas quais
ingressaram homens e mulheres – na década de 1990 aproximadamente quinhentas mil
mulheres participavam dessas milícias territoriais. No ano de 1984 foi criado em Cuba o
alistamento voluntário feminino e as mulheres puderam então ingressar como soldados ou
sargentos nas Forças Armadas.
Uma imagem publicada no ano de 1970, na Revista Mujeres3, acompanhada da
seguinte afirmação: “La defensa civil eres tu!”, apresenta a importância das mulheres para a
defesa do País, bem como indica que a defesa não é função apenas dos militares, mas também
das mulheres civis. Portanto, toda a população é convocada para defesa do território e tal

2
Durante a ação em Santiago de Cuba estiveram presentes Haydè Santamaria e Melba Hernandes.
3
Revista Mujeres, out, n. 10 , ano 10, 1970.
necessidade permite que a mulher cubana seja apresentada nas imagens das revistas analisadas
como mãe e soldado.
Nos anos de 1970, ocorreu o processo de integração das mulheres policiais nas
polícias, no Ocidente. A policial especialista na proteção de crianças, jovens e mulheres e na
atuação em crimes envolvendo vítimas femininas e infantis ou a prática criminosa de
mulheres tornou-se legalmente uma policial, com os mesmos direitos dos policiais homens e
atuando em todas as situações de crime (GARCIA, 2003). Foi nessa década que as mulheres
ingressaram na Polícia Militar do Paraná (MOREIRA, 2007; SCHACTAE, 2011.) Porém,
conforme demonstram os estudo de Rosemeri Moreira (2011), as mulheres ingressaram na
Guarda Civil de São Paulo, na década de 1950.
No México, as mulheres ingressaram na polícia na década de 1930, e até o final da
década de 1990, as atividades ocupadas pelas mulheres na polícia eram as consideradas
secundárias. Entre as atividades “femininas” estão as áreas administrativas, o patrulhamento
em parques, em museus, em escolas e na patrulha ecológica (um tipo de policiamento de
trânsito que controla os veículos que devem circular) – atividade que foi desprezada pelos
homens. Somente na década de 1990, quando as policiais foram designadas para a patrulha
ecológica, foi-lhes permitido portarem armas (BOTELLO, 2000).
No Brasil, o ingresso das primeiras mulheres no Exército ocorreu na década de 1990.
Porém, vale lembrar que durante a Segunda Guerra Mundial o Exército Brasileiro admitiu
mulheres para atuarem como enfermeira.4 Atualmente, ocupam espaços nas áreas de saúde,
administração e engenharia. Portanto, o combate permanece espaço masculino.
A primeira instituição armada brasileira a admitir mulheres nos quadros permanentes
foi a guarda civil de São Paulo, no ano de 1954, com o ingresso de um grupo feminino na
guarda civil. Na década de 1970, com a reestruturação das polícias pelos governos militares, a
guarda civil foi extinta e o efetivo passou para a Polícia Militar do Estado de São Paulo.
Portanto, entre as polícias militares brasileiras, a paulista é a primeira a admitir mulheres e, no
ano de 1977, foi criado, no Estado do Paraná, o primeiro Pelotão de Polícia Feminina, sendo

4
Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), um grupo de enfermeiras brasileiras foi treinado pelo Exército
Brasileiro e enviado para o campo de batalha. Todavia, essas mulheres não eram militares e sim civis prestando
serviço para uma instituição militar. As instituições armadas de outros países também fizeram uso dessa prática.
Ver: BERNARDES, M.; LOPES, G.; SANTOS, T. O cotidiano das enfermeiras do Exército na Força
Expedicionária Brasileira (FEB) no teatro de operações da Segunda Guerra Mundial na Itália (1942-1945). In.
Revista Latino-americana de Enfermagem, 13(3): 314-321, 2005.
essas as primeiras instituições militares brasileiras a admitirem mulheres no quadro de agentes
permanentes. A partir dos anos de 1980 e 1990 todas as policiais militares brasileiras criam
quadros femininos para receber as mulheres. Vale destacar que a inclusão das mulheres nas
polícias militares de São Paulo e do Paraná ocorreu durante a Ditadura Militar (1964-1985) e
entre os militares havia uma tendência a afirmação de um ideal de feminilidade vinculado a
maternidade, conforme destacam de Fanny Tabak (TABAK, 1983) e de Lucia Maciel Barbosa
de Oliveira. (OLIVEIRA, 2001)
No final da década de 1970, a Polícia Militar do Estado do Paraná iniciou um
processo de redação do projeto de criação da Polícia Feminina. As leis e as normas que
criaram a Polícia Feminina e instituíram a policial são textos redigidos por sujeitos que
possuem o poder de escrever em nome do Estado e da Polícia Militar do Estado do Paraná.
Esses textos construíram um significado para a presença de mulheres na instituição, um
espaço para o feminino na ordem institucional. Ao longo do período marcado pela criação da
Polícia Feminina no ano de 1977 e a sua extinção no ano de 2000, as mulheres foram
incorporadas à instituição.
Observa-se que a comparação entre os dois países – Cuba e Brasil – o ingresso de
mulheres nas instituições armadas ocorrem em diferentes contextos e a construção de uma
identificação feminina para as mulheres que ingressam nesse espaço historicamente masculino
apresenta especificidades. Ao ingressar em uma instituição militar, os homens e as mulheres
tornam-se herdeiros de uma identidade institucional – uma identidade coletiva – que consiste
em uma fantasia, pois, como afirmam Joan Scott (2002) e Stuart Hall (2006), é uma
construção histórica que transcende as identidades contraditórias e constitui uma ideia de
homogeneidade. As solenidades militares e as narrativas sobre a história institucional e sobre
os seus heróis são construtoras dessa identidade institucional, que é apresentada como
unificada e vinculada a uma tradição. Uma identidade caracterizada por um ideal de
masculinidade.
Entre os mecanismos de incorporação dessa herança identitária adotados pela
instituição estão as solenidades, construções simbólicas que representam a ordem do espaço
institucional, os códigos balizados pela hierarquia, a disciplina e a educação. Considerando as
colocações de Pierre Bourdieu, esses mecanismos são utilizados para objetivação e
incorporação da identidade, que está relacionada à função desempenhada. Dessa forma, ao
vestir o uniforme, “o seu corpo, em que está inscrita uma história, casa-se com a sua função,
quer dizer, uma história, uma tradição, que ele nunca viu senão encarnada em corpos, ou
melhor, nessas vestes habitadas por um certo habitus”.(1998, p. 88)
O habitus, entendido a partir de Pierre Bourdieu, é uma herança que orienta as
escolhas, o comportamento e a posição “de um agente em ação”. (1998, p. 61) É uma história
atualizada e assumida por agentes, “uma relação de pertença e de posse na qual o corpo
apropriado pela história se apropria, de maneira absoluta e imediata, das coisas habitadas por
essa história.” (1998, p. 83) Um princípio que gera diferenças e unifica, constituindo um
conjunto identificador e diferenciador dos agentes e da instituição, estabelecendo uma ordem
simbólica.
A incorporação dessa herança identificadora da instituição pelo agente é o
processo de construção de um “novo ser social” e se dá de forma diferente entre os agentes,
pois depende dos outros habitus incorporados por aquele que veste a farda e do poder advindo
da sua função na hierarquia institucional. Quanto mais poder um agente tiver dentro da
instituição (poder hierárquico), maior será o seu capital simbólico.5
O comportamento do militar – seus gestos, sua vestimenta, seu corte de cabelo,
seu tom de voz, sua postura, sua sexualidade, seu respeito à hierarquia, a moralidade, os bons
costumes – é construído pela disciplina do corpo, pois é nele que a honra institucional se
inscreve. O conjunto de atitudes, valores e ideias vinculados à identidade do militar torna
visível a honra do agente e da instituição. A disciplina militar é uma ferramenta de inscrição
da identidade nos corpos dos agentes, mas também de construção e de reprodução do
comportamento militar e da ordem institucional.
A imagem de mulheres polícias militares paranaenses e de mulheres militares
cubanas indicam que a feminilidade militar construída e transmitida para as herdeiras da
tradição das instituições armadas são diferentes. Portando, a construção dos valores e a
imagem identificadora do soltado está vinculada ao contexto do qual faz parte e assim, em
Cuba, símbolos identificadores do masculino – uniforme militar e arma – também se
constituem em identificadores do feminino.
Observando as imagens publicas nas revistas cubanas Mujeres e Bohemia e
comparado com as imagens vinculadas em jornais que circulam no Estado do Paraná, o qual
está localizado na região sul do Brasil, percebe-se duas diferenças centrais para a construção

5
“O capital simbólico é uma propriedade qualquer (de qualquer tipo, físico, econômico, cultural, social),
percebida pelos agentes sociais cujas categorias de percepção são tais que eles podem entendê-las (percebê-las) e
reconhecê-las, atribuindo-lhes valor. (...) Mais precisamente, é a forma que todo tipo de capital assume quando é
concebido através das categorias de percepção, na estrutura da distribuição desse tipo de capital (...)”.
BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus, 1996, p.107.
de uma identificação da mulher militar, as quais estão vinculadas a dois símbolos: o cabelo e a
arma.
A diferença marcante entre as duas imagens de mulheres que vestem uniforme de
instituições armadas está no cabelo e na posse da arma. (IMAGEM - 2 e IMAGEM - 3) Na
imagem das mulheres cubanas elas estão com cabelos compridos e soltos, o que indica que o
símbolo tradicional de sedução feminina, conforme destaca Michele Perrot (1998), estava
visível. No entanto, na imagem publicada no Brasil, as policiais estão com o cabelo preso,
tornando sua imagem próxima do padrão de cabelo do homem militar – curto –, pois a
virilidade também está vinculada a cabelo curto dentro das instituições armadas brasileiras.
O outro símbolo que diferencia as duas imagens é a arma, que historicamente é
identificadora de masculinidade. Enquanto as mulheres cubanas são apresentadas com a arma
em destaque, as brasileiras são despossuídas de tal símbolo. A imagem de mulheres armadas
em Cuba apresenta o feminino como possuidor de um poder masculino. A posse desse
símbolo indica a existência de uma reconfiguração nos divisão dos espaços de poder
masculino e feminino em Cuba, apresentando uma imagem de igualdade, bem como,
afirmando a necessidade da força feminina para defesa do território.

IMAGEM - 2 : Mulheres em desfile


IMAGEM - 3: Formatura Militar: Polícia
Militar : XX aniversário da Revolução.
Feminina do Paraná.
Fonte: Revista Bohemia, 5 de janeiro,
Fonte: Jornal O Estado do Paraná, 05 de abril,
1979 , ano 70, n. 1.
1978.
(Arquivo: Casa do Historiador, Holguín,
(Arquivo: Museu PMPR, Curitiba, Paraná)
Cuba)

Outras duas imagens do ano de 1984 afirmam essa diferença entre o feminino das
instituições armadas em Cuba e no Brasil. Observando a mulher na IMAGEM – 4, destacam-
se o cabelo, o brinco de argola e a arma, esse conjunto de símbolos, somados a vestimenta
simbólica, que remete a uma instituição militarizada, contrasta com a imagem das Policiais
Femininas, as quais se apresentam com o cabelo preso e despossuídas do poder de portar uma
arma. Enquanto a imagem da mulher cubana legitima que o poder de portar uma arma
também pertence as mulheres cubanas, a imagem das policiais paranaenses reafirma que o
poder das armas pertencente aos homens.
A comparação entre as imagens permite perceber que há diferentes construções na
normatização do visual da mulher em instituições armadas e que elas estão vinculadas ao
contexto. As imagens publicadas em meados da década de 1980 no Brasil e em Cuba
confirmam que o padrão de feminilidade militar é também definido pela apresentação da
imagem das mulheres pertencentes às instituições armadas. Enquanto no Brasil o padrão de
cabelo é curto ou comprido e preso, em Cuba, o cabelo comprido e solto ganha destaque. Essa
comparação é indicativa de que o padrão visual não é homogêneo, sendo necessário
aprofundar os estudos sobre a construção do feminino em instituições armadas.

IMAGEM 4: Mulher em Cuba IMAGEM 5: Mulheres policiais no


Fonte: Revista Bohemia, 02 de março 1984 Paraná
(Arquivo: Casa do Historiador, Holguín, Fonte: Jornal O Estado do Paraná, 08 de
Cuba) setembro 1984 (Arquivo: Museu PMPR,
Curitiba, Paraná)

A consulta aos números da Revista Mujeres, da década de 1970, e aos da Revista


Bohemia, entre o início da década de 1970 e meados da década de 1980, permitiu perceber
que as imagens de mulheres, presentes nessas revistas, constituem um ideal de feminilidade
que relacionam a figura da mãe e da guerrilheira. Nesse mesmo período no Brasil ingressam
as primeiras mulheres na Polícia Militar do Paraná – segunda instituição armada a permitir o
ingresso de mulheres no quadro permanente –, fato que ocorreu no ano de 1977, e a
instituição policial militar também constrói um ideal de feminilidade para a policial feminina.
Porém, a figura da soldado da Polícia Feminina tende a afirmar um ideal de feminilidade que
oculta a figura da combatente, ou melhor da “guerreira”.

Referências
ALVAREZ, P. T. Célia: ensayo para uma biografia. La Habana: Oficina de Publicaciones del
Consejo de Estado, 2004.
BELL, José; LÓPEZ, Delia L.; CARAM, Tania. Documentos de la Revolución Cubana
1960. La Habana: Ciencias Sociales, 2007.
BERNARDES, M.; LOPES, G.; SANTOS, T. O cotidiano das enfermeiras do Exército na
Força Expedicionária Brasileira (FEB) no teatro de operações da Segunda Guerra Mundial na
Itália (1942-1945). In. Revista Latino-americana de Enfermagem, 13(3): 314-321, 2005.
BONINO, L. Masculinidad hegemônica e identidad masculina. Dossiers feministes -
Masculinitats: mites, de/construccions y mascarades, n. 67, 2002, p. 07-36.
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus, 1996.
CABALLERO, Armando O. La mujer en el 95. La Habana: Gente Nueva, 1982.
CARIE, R. A mulher militar: das origens aos nossos dias. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército, 2002.
CHOMSKY, Aviva. História da Revolução Cubana. São Paulo: Editora Veneta, 2015.
CONNELL, R. W. JAMES, W. Hegemonic Masculinity: rethinking the concept, Gender e
Society, n. 19, 2005. Disponível em: <http://gas.sagepub.com>. Acesso em: 09 de junho de
2009.
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AS REFORMAS CONSTITUCIONAIS DOS GOVERNOS MILITARES: A
CONSTITUIÇÃO DE 1967, A EMENDA CONSTITUCIONAL DE 1969, O AI-5 E AS
LIMITAÇÕES À DEMOCRACIA NO BRASIL

Gleisieli Aparecida de Freitas Luz (Acadêmica do curso de Direito no Unicesumar -


Maringá).
Programa de Iniciação Científica sob orientação do professor Dr. Alexander Rodrigues de
Castro
Mariana Schemberger Bardi (Acadêmica do curso de Direito no Unicesumar – Maringá).
Programa de Iniciação Científica sob orientação do professor Dr. Alexander Rodrigues de
Castro

PALAVRAS- CHAVE: Carta magna; censura; repressão.

INTRODUÇÃO
A história da república iniciada no Brasil em 1889 mostrou-se sempre como um vasto
campo para investigações acadêmicas de diversas áreas do conhecimento. A ditadura militar,
em especial, é um dos assuntos mais férteis para discussões científicas e figura como assunto
frequente em questões políticas na sociedade.
A ditadura militar no Brasil teve início no ano de 1964 por meio de um golpe de
Estado que depôs o presidente João Goulart, que havia sido eleito como vice-presidente da
república e exercia seu mandato de forma legítima desde a renúncia de Jânio Quadros em
1961. Com base na alegação de que havia uma ameaça comunista no país, as Forças Armadas
estabeleceram-se no poder e o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco assumiu como
o primeiro presidente do período ditatorial.
Os governos do período militar foram caracterizados por ausência de democracia
efetiva, uso da violência como método de ação política, perseguição a opositores políticos,
censura à imprensa e a manifestações artísticas, limitação de direitos individuais, prisões
arbitrárias, tortura, exílio e etc. Ao longo de todo o regime, os presidentes militares se
empenharam em criar institutos jurídicos que legitimassem os governos e por meio da
Constituição de 1967, da emenda constitucional de 1969 e dos Atos Institucionais criaram o
arcabouço institucional de um regime autoritário destinado a durar mais de duas décadas no
país.
O regime militar se estendeu até o ano de 1985, quando Tancredo Neves foi eleito
presidente do Brasil de forma indireta pelo Colégio Eleitoral. Tancredo acabou falecendo
antes da posse e José Sarney tornou-se o primeiro presidente civil do país após mais de vinte
anos do regime ditatorial. Sabendo da importância de entender sobre a história da república
brasileira, busca-se aqui apresentar saberes a respeito da ditadura militar a partir da análise
dos dispositivos legais que colaboraram para estabelecer e efetivar os governos militares no
Brasil ao longo das décadas de 1960, 1970 e 1980.

CONSTITUIÇÃO DE 1967 E OS INSTRUMENTOS JURÍDICOS NO PERÍODO MILITAR


O estabelecimento da república ditatorial militar no Brasil na década de 1960
demonstrou, desde o início, preocupação em elaborar instrumentos jurídicos que trouxessem
caráter legítimo ao governo. Apresentando-se como vitoriosos de uma revolução, os militares
defendiam sua permanência no poder e já no mês de abril de 1964 foi elaborado o ato
institucional de nº1. Tal instrumento dispunha sobre a manutenção da Constituição de 1946 e
tratava sobre as modificações trazidas pelo poder constituinte da “revolução vitoriosa”. No
texto do referido instrumento jurídico estava disposto: “(...) a revolução não procura legitimar-
se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do
Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.” Considerava-se ser um
governo legítimo, atendendo a anseios da população.
Por meio do AI-1, o Comando Supremo da Revolução (representado pelos chefes do
Exército, Marinha e Aeronáutica), determinava, no artigo 2º, que a eleição para presidente e
vice-presidente da república seria decidida de acordo com a maioria absoluta dos votos do
Congresso Nacional. Sendo assim, não se realizariam eleições diretas por meio do voto
popular, como dispunha a Constituição elaborada ainda no governo de Eurico Gaspar Dutra e
que estava até então vigente. Além de versar sobre a eleição para os maiores cargos do poder
executivo nacional, o AI-1 dispunha a respeito de projetos de lei, da possibilidade de decretar
estado de sítio e demais questões fundamentais para a manutenção do regime ditatorial.
O governo militar editou, entre 1964 e 1966, quatro atos institucionais e quinze
emendas constitucionais. Mantiveram a Constituição de 1946, mas preocuparam-se em
elaborar outros instrumentos que permitissem a efetivação do governo ditatorial, sendo o texto
constitucional vigente superado na prática pelos atos institucionais.

O AI-1 já enunciava: “A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se


apressa pela sua institucionalização”. Essa é uma constante no pensamento dos
integrantes do movimento de 64, e é por isso que havia tanta preocupação com a
edicação de uma nova Constituição e com a manutenção do Congresso. Castelo
Branco preocupava-se intensamente com a repercussão deste ou daquele ato, desta
ou daquela Constituição “lá fora”, na Europa e nos Estados Unidos, pois a
caracterização do golpe colocaria mal o Brasil no mundo democrático. Mas essa
preocupação não nos impede de constatar que a verdadeira Constituição daqueles
anos foram os atos institucionais. (BONAVIDES, 2004, p. 433).

No ano de 1967 se deu a promulgação de uma nova constituição para a república


brasileira. Estava disposto no §1º do artigo 1º: “Todo poder emana do povo e em seu nome é
exercido”. Esse trecho constitucional, que iniciava com proclamações democráticas6, não
encontrava confirmação no decorrer do texto, já que no artigo 76 determinava-se que o
presidente da república fosse eleito pelo sufrágio de um colégio eleitoral, reforçando o que
havia sido determinado no ato institucional nº1. Embora estivesse garantido o poder do povo e
o direito ao voto, não se realizavam eleições diretas para a escolha do presidente da república.
Estava previsto no texto constitucional o “regime representativo”, mas evitaram a palavra
“democracia” ao longo de toda a Carta.
A sexta constituição brasileira entrou em vigor no mês de maio, na mesma data em que
tomava posse o presidente Costa e Silva. Ferreira Filho, em observância à Constituição de 67,
afirma:

A decepção maior que causa a Constituição está no modelo político que consagra.
Inexistiu aí qualquer espírito criador. Adotou-se um modelo formalmente
democrático mas na realidade incapaz de funcionar adequadamente nas condições
atuais do Brasil. Conservou ela o presidencialismo. Isso significa que a preeminência
política é dada ao Executivo (...) cujo chefe, o Presidente da República, é a suprema
autoridade, ao mesmo tempo chefe de Estado e chefe do Governo. (1983, pp. 25-6).

Para evitar questionamentos sobre a legalidade e a legitimidade da nova Constituição,


o governo ditatorial utilizou-se de certos artifícios para garantir que o texto fosse promulgado.
Em dezembro de 1966, apresentou-se o ato institucional de número 4, em que se afirmava que
a Constituição de 1946 já não atendia aos objetivos nacionais e não representava os ideais da
‘revolução’. Por meio desse documento, convocava-se o Congresso Nacional para discutir,
votar e promulgar o projeto de Constituição apresentado pelo presidente da república Castelo
Branco.
Bonavides (2004, p. 436) afirma que “não houve propriamente uma tarefa constituinte,
mas uma farsa constituinte”. Isso porque os ocupantes do poder legislativo não possuíam
alçada para isso, visto que não haviam sido eleitos para elaborar o texto. Além disso, estavam
eles cercados pelos atos institucionais, sendo perseguidos e tendo seus mandatos e direitos

6
O artigo 142 da Constituição de 1967 estabelecia que os brasileiros maiores de 18 anos, alistados na forma da
lei, seriam eleitores. Além disso, no artigo seguinte, determinava ser universal o sufrágio.
políticos cassados os que de alguma forma se opusessem aos mandos do então presidente da
república.
Ao longo do texto constitucional promulgado no ano de 1967, estavam elencados os
direitos e garantias individuais e a partir do artigo 150 o poder constituinte preocupou-se em
elaborar as normas que viriam a reger os direitos dos indivíduos.

Art 150 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no


Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
§ 1º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção, de sexo, raça, trabalho, credo
religioso e convicções políticas. O preconceito de raça será punido pela lei.
(...)
§ 6º - Por motivo de crença religiosa, ou de convicção filosófica ou política,
ninguém será privado de qualquer dos seus direitos, salvo se a invocar para eximir-
se de obrigação legal imposta a todos, caso em que a lei poderá determinar a perda
dos direitos incompatíveis com a escusa de consciência.
(...)
§ 8º - É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica e a
prestação de informação sem sujeição à censura, salvo quanto a espetáculos de
diversões públicas, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que
cometer. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros, jornais e
periódicos independe de licença da autoridade. Não será, porém, tolerada a
propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de
classe.
(...)
§ 14 - Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral do
detento e do presidiário.

A elaboração do texto constitucional do período militar procurava garantir certos


direitos à sociedade, mas a análise dos estudos desse período permite concluir que não eram
efetivados na prática. O §14 do artigo 150 determina de forma taxativa o respeito à
integridade física e moral de detentos e presidiários, entretanto, são inúmeras as fontes que
atestam a prática frequente da tortura nesse período, figurando o evidente desrespeito a esse
dispositivo constitucional. Como aponta Bonavides (2004), o texto constitucional procurava
atender a demandas externas, sem evidenciar o regime autoritário que aqui era exercido,
fazendo da Constituição uma mera formalidade.

ATO INSTITUCIONAL Nº5 E A LIMITAÇÃO À DEMOCRACIA

Nos últimos dias do ano de 1968 o presidente Costa e Silva sancionou o AI-5, o mais
duro instrumento jurídico do período militar. Já nesse período havia movimentos que
contrariavam o governo em exercício e o quinto ato institucional do período militar era uma
resposta a isso. A promulgação do AI-5 se deu semanas após o deputado Márcio Moreira
Alves fazer um apelo para que a população não participasse dos desfiles militares que faziam
alusão à comemoração da independência do país. Tal atitude ocorreu num discurso no
Congresso Nacional e, por ter sido considerado uma afronta radical, pediu-se que a Câmara de
Deputados iniciasse um processo contra o deputado. A votação foi realizada no dia 12 de
dezembro e teve como resultado a rejeição do pedido do governo, que no dia seguinte editou o
Ato Institucional de número 5.
Continuando a atribuir o nome de ‘revolução’ ao golpe militar, o governo aproveitou
o início do texto do AI-5 para reforçar que tais medidas buscavam atender aos interesses da
nação, assegurando o regime democrático. O artigo 1º alertava que o texto desse instrumento
não invalidava a Constituição elaborada no ano anterior.
Por meio do ato institucional de número 5, o segundo presidente do período ditatorial
concluía o projeto de efetivação do regime. Por meio do artigo 2º, instituía a possibilidade de
que o presidente decretasse o recesso do Congresso Nacional, consagrando a centralização do
poder executivo nacional. Além disso, por meio também desse instrumento, tornava possível e
lícito:

Art. 2º - O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso


Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato
Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar
quando convocados pelo Presidente da República.
(...)
Art. 3º - O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a
intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição.
Parágrafo único - Os interventores nos Estados e Municípios serão nomeados
pelo Presidente da República e exercerão todas as funções e atribuições que caibam,
respectivamente, aos Governadores ou Prefeitos, e gozarão das prerrogativas,
vencimentos e vantagens fixados em lei.
Art. 4º - No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o
Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição,
poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e
cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.
(...)
Art. 7º - O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na
Constituição, poderá decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, fixando o respectivo
prazo.
(...)
Art. 10 - Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos,
contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.

Conferir ao presidente da república poder tão extenso contribuiu para figurar ainda
mais o governo ditatorial que se pretendia. O chefe do poder executivo nacional concentrava
em si a autoridade do país, decretando o recesso do Congresso Nacional, limitando a
autonomia estadual e municipal por meio das possíveis intervenções locais, ampliando a
possibilidade de decretar estado de sítio, suspendendo direitos políticos e cassando mandatos.

O ato institucional nº5 concedeu ao Presidente da República vastíssima soma de


poderes. Embora mantivesse em vigor a Constituição, com as modificações que
introduzia, autorizou ao Presidente o poder de decretar o recesso do Congresso e das
Assembléias estaduais bem como das Câmaras de Vereadores, caso em que o
Executivo ficava investido de todos os poderes atribuídos normalmente ao
legislativo. Igualmente lhe permitiu decretar discricionariamente a intervenção
Federal em Estados e Municípios, a cassar mandatos e suspender direitos políticos
por dez anos. (...) Habilitava-o a baixar Atos Complementares para a execução desse
Ato Institucional. (FILHO, 1983, p. 30).

Por fim, o artigo 10 era mais um penoso atentado ao Estado democrático por suspender
a garantia de habeas corpus em determinadas situações. Tal instrumento jurídico é de grande
valia e existe a fim de garantir que não se opere a restrição da liberdade de um indivíduo por
meio de ilegalidade ou abuso de poder. A sua suspensão, prevista no AI-5, possibilitava e
permitia que ocorressem prisões arbitrárias, não concedendo ao indivíduo preso os direitos
individuais que haviam sido anteriormente previstos no texto constitucional.

EMENDA CONSTITUCIONAL DE 1969


A emenda constitucional nº1 foi uma alteração feita pelo governo instituído após a
morte do então presidente Artur da Costa e Silva, trazendo significativas modificações ao
texto constitucional de 1967 e contribuindo para fortalecer ainda mais o regime ditatorial
vigente. O texto dessa Emenda servia, principalmente, para incorporar ao ordenamento e
tornar legal os atos institucionais.
A importância dada a esse dispositivo legal é tamanha que levou alguns estudiosos a
afirmarem que se tratava de uma nova constituição. A respeito da emenda nº1, Bonavides
(2004, p. 447) assevera: “(...) ao substituir a Constituição de 1967, tornou-se de fato a nova
Carta, adaptando os vários atos institucionais e complementares.”. Porém, para a maioria dos
autores, a emenda não vem a ser uma nova Constituição, até porque não era esse o objetivo de
sua elaboração.
Ferreira Filho justifica a decisão do governo de elaborar a Emenda nº1 àquela época:

Politicamente, a promulgação da Emenda, e não a outorga de Ato Institucional que


editasse nova Constituição, apresentava inegáveis vantagens. Uma estava em
distinguir entre o que se destinava a durar indefinidamente – a Constituição emenda
– e as medidas, logicamente transitórias, contidas nos Atos Institucionais, permitindo
que a revogação destes, aliás prevista no próprio corpo da Emenda (art. 182,
parágrafo único), não atingisse as modificações feitas para perdurar. (FILHO, 1983,
p. 33).

Por meio dessa emenda constitucional, buscaram-se aprimorar certas questões trazidas
pela Constituição vigente, além de acentuar o poder autoritário conferido ao chefe do
executivo. A emenda nº1 serviu para reforçar a falta de autonomia dos estados, o
enfraquecimento do Congresso Nacional e do poder legislativo, restrições a direitos políticos,
aprovação dos atos institucionais e etc.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O regime militar iniciado no Brasil no ano de 1964 contou com cinco presidentes em
exercício até que fosse restabelecida a república democrática. Ao longo das mais de duas
décadas de governo ditatorial, muitos foram os dispositivos jurídicos elaborados a fim de
atender os objetivos da elite tecnocrática cívico-militar que se encontrava no poder.
Além disso, a Constituição de 67, a Emenda nº1 de 1969 e os diversos atos
institucionais serviam para criar a aparência de normalidade institucional com um simulacro
de democracia (eleições periódicas através do colégio eleitoral, mas com censura à imprensa e
perseguição a oponentes, dentre outras medidas antidemocráticas), para assim tentar atribuir
alguma legitimidade ao governo. Fazendo uso de dispositivos tais legais, o bloco de atores
civis e militares que tomou de assalto o poder em 1964 instituíam as medidas necessárias para
garantir seu controle as instituições e a sociedade brasileiras construindo uma ditadura no
Brasil sob um superficial verniz de normalidade institucional.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Ato Institucional nº1, de 9 de abril de 1964. Dispõe sobre a manutenção da


Constituição Federal de 1946 e as Constituições Estaduais e respectivas Emendas, com as
modificações introduzidas pelo Poder Constituinte originário da revolução Vitoriosa.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-01-64.htm. Acesso em: 09 out.
2019.

BRASIL. Ato Institucional nº4, de 7 de dezembro de 1966. Convoca o Congresso Nacional


para se reunir extraordináriamente, de 12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de 1967, para
discursão, votação e promulgação do projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da
República, e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-04-66.htm. Acesso em: 09 out. 2019.
BRASIL. Ato Institucional nº5, de 13 de dezembro de 1968. São mantidas a Constituição
de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições Estaduais; O Presidente da República poderá
decretar a intervenção nos estados e municípios, sem as limitações previstas na Constituição,
suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos
eletivos federais, estaduais e municipais, e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-05-68.htm. Acesso em: 09 out. 2019.

BRASIL, Constituição (1967). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,


1967.

BRASIL. Emenda Constitucional nº1, de 17 de outubro de 1969. Edita o novo texto da


Constituição Federal de 24 de janeiro de 1967. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-
69.htm. Acesso em: 11 out. 2019.

FILHO, Manuel Gonçalves Ferreira. Comentários à Constituição brasileira. São Paulo:


Saraiva, 1983.
OS DESTINOS DO PATRIMÔNIO CULTURAL MILITAR

Adler Homero Fonseca de Castro (IPHAN, CEPHIMEX, IGHMB)

Palavras chave: preservação do patrimônio cultural; museus militares; políticas públicas.

Um ponto muito citado na bibliografia referente ao patrimônio é o que trata da


origem dos movimentos de preservação desse. Na bibliografia, o patrimônio é associado ao
período da Revolução Francesa e o que ocorreu pouco depois: a fundação de um dos
primeiros órgãos de preservação, o da França, foi organizado em 1830, sendo relacionado ao
processo da instalação de um governo burguês naquele país.

No entanto, um aspecto da preservação da memória coletiva é muito mais antigo: a


valorização dos feitos militares de um grupo. Já na antiguidade clássica, era costume erigir no
campo de batalha um monumento a vitória com as armas dos vencidos. Os gregos até tinham
uma palavra específica para esses monumentos τροπαῖον – tropaîon, vindo raízes que
significam derrotar ou destroçar (um inimigo). Os romanos adotaram o costume, e a palavra
transformou-se em tropaeum no latim, que, por sua vez, deu origem ao termo troféu em
português. Hoje esse termo é mais usado para eventos esportivos, mas, em suas origens, tem
uma relação bem próxima com a comemoração de vitórias militares.

Os monumentos a vitória erguidos no campo de batalha eram temporários, mas os


objetos tomados aos inimigos eram levados para as cidades e colocados em templos,
significativamente chamados de tesouros. Além disso, os romanos, com uma preocupação
muito grande em valorizar seus feitos militares, faziam desfiles militares, os triunfos, e
construíam monumentos grandiosos sobre suas vitórias militares, inclusive alguns
reproduzindo os antigos tropaeum dos campos de batalha. Hoje sobrevivem vários desses
monumentos construídos em toda a área dominada pelos romanos, alguns muito conhecidos,
como os arcos do triunfo ou a coluna de Trajano.

Apesar da prática romana de imortalizar suas vitórias com obras monumentais ter
desaparecido durante a Idade Média, o costume de lembrar dos feitos militares continuou
sendo um costume. Pode-se dizer que a própria ideia de uma aristocracia hereditária é uma
forma de relembrar os feitos militares das pessoas, no caso, dos antepassados que receberam
seus títulos como parte da nobreza da espada. Uma distinção importante, pois os feitos
militares eram usados para justificar vantagens pessoais ou mesmo coletivas – era esse o caso
no Brasil, onde tanto os paulistas como os pernambucanos se valiam de seu passado de
conquistas militares para obterem benefícios econômicos.7

De forma mais direta, no Brasil, se considera que o primeiro documento que trata da
preservação do patrimônio cultural é uma carta de 1742 do vice-rei, Conde de Galveas, ao
governador de Pernambuco, defendendo a preservação do palácio de Friburgo, construído por
Maurício de Nassau durante o período da ocupação holandesa. O que é importante para nós é
que esse documento claramente associa a questão da preservação a das glórias militares:

[Quanto a destinação do palácio para servir de quartéis] ainda me lastima


mais que, com ela, se arruinará também uma memória que mudamente
estava recomendando às posteridade as ilustres e famosas ações que obraram
os Portugueses na Restauração dessa Capitania, de que se seguiu livrar-se do
jugo forasteiro todo o mais restante da América Portuguesa (...) são livros
que falam, sem que seja necessário o lê-los (...)8
Toda essa questão da origem da preservação do patrimônio poderia parecer
acadêmica, se não fosse o fato de ter sido utilizada como ferramenta de mobilização nacional.
Durante as guerras da Revolução Francesa (1792-1802) e, depois, das Napoleônicas (1803-
1815), a França se encontrou em uma situação desesperadora: o corpo de oficiais do seu
exército antes era formado exclusivamente por nobres, o inimigo declarado da Revolução –
basta lembrar o artigo primeiro da declaração universal dos direitos dos homens e dos
cidadãos: “Os homens nascem e permanecem livres e com direitos iguais. Diferenças sociais
só podem ser baseadas no bem comum”9. Outro efeito da revolução foi remover os direitos
feudais sobre a propriedade da terra, retirando a base econômica da aristocracia. Como
consequência, estima-se que pelo menos um terço dos oficiais foi demitido, morto ou
emigrou,10 de forma que as forças armadas perderam muito de sua eficiência em combate –
não havia líderes para a tropa.

Essa situação se tornou um problema gravíssimo na guerra da Primeira Coalisão


(1792-1797), quando um grande número de países se reuniu para combater o regicida regime
revolucionário francês. Até Portugal entrou no conflito em 1793, enviando um contingente

7
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes de sua separação e independência de
Portugal. Belo Horizonte : Ed. Itatiaia ; São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo, 1981. v. 2. pp.
47-48.
8
CARTA do vice-rei do Brasil, Conde de Galveas, ao governador de Pernambuco, Luís Pereira Freire de
Andrade, 5 de abril de 1742. BRASIL – SPHAN/Pró-Memória. Proteção e revitalização do patrimônio
cultural no Brasil: uma trajetória. Rio de Janeiro: SPHAN/Pró-Memória, 1980. p. 31.
9
FRANÇA – Déclaration des droits de l’homme et du citoyen. Agosto de 1789. (A tradução é nossa).
10
FORREST, Alan. Conscripts and Deserters the Army and French Society during the Revolution and Empire.
Oxford: Oxford University Press, 1989. p. 15.
para invadir a província francesa do Rosilhão. Forças austríacas e prussianas, invadiram o
norte da França.

Como uma forma de resolver o problema, a Revolução adotou o processo de


conscrição, o alistamento obrigatório para o serviço militar, para aumentar o tamanho dos
exércitos. Em princípio, todos deveriam participar do esforço nacional, como o próprio
decreto do recrutamento deixava claro:

Deste momento, até quando o inimigo tenha sido expulso do solo da


República, todos os franceses estão sob requisição permanente para o
serviço dos exércitos.
Os jovens irão ao combate; os casados forjarão as armas e transportarão
provisões; as mulheres farão tendas, roupas e servirão nos hospitais; as
crianças desfiarão roupas velhas em estopa; os idosos irão às praças
públicas, para encorajar os guerreiros, pregar o ódio aos reis e a unidade da
República.
Os prédios públicos serão convertidos em quartéis, as praças públicas em
oficinas de armas, o solo dos porões será lixiviado para extrair o salitre [para
pólvora].11
O esforço francês foi bem-sucedido, permitindo a montagem de um imenso exército:
segundo algumas fontes, 1.169.000 homens se alistaram até 1794,12 o que permitiu os
revolucionários a resistir a ataques simultâneos de diversos países, vindos por múltiplas
frentes. A atitude francesa serviu de exemplo para outros países: a Espanha, depois da invasão
francesa de 1808, emitiu regulamentos visando mobilizar toda a população contra o invasor, o
Reglamento de Partidas y Cuadrillas e o de Corso terrestre, de 1809. A Prússia seguiu o
mesmo caminho: depois da desastrosa derrota na batalha de Jena-Auerstadt (1806), em que
seu exército de modelo antigo, formado por soldados profissionais, foi derrotado, obrigando o
país a assinar uma paz onde o país perdeu 50% de seu território e população, foi baixado o
édito de 1813, criando a Landwehr e Landsturm, forças milicianas, que serviriam de base para
um exército popular, de conscritos.

No entanto, a mobilização dos homens não se baseava apenas em leis, essas podiam
ser desobedecidas, como de fato ocorreu,13 a formação de um exército popular era vital. Essa
era uma questão importante não apenas em termos numéricos: as fileiras dos exércitos até o
século XVIII tinham sido formados, em sua maior parte, por homens que não tinham um
compromisso maior com o serviço – é famosa a frase atribuída ao rei Frederico II da Prússia,

11
FRANÇA – Decrét qui determine le mode de réquisition des citoyens français contre les ennemis de la
France. 24 de Agosto de 1793. Artigo 1º. (A tradução é nossa).
12
VRIES, Peter. State, Economy and the Great divergence: Great Britain and China, 1680s–1850s. London:
Bloomsbury, 2015. p. 282.
13
FORREST, op. cit. pp. 43 e segs.
de que “os soldados deveriam temer mais seus oficiais do que o inimigo”. Por causa disso, as
tropas eram rigidamente controladas pelos oficiais, nobres, não se esperando muita iniciativa
por sua parte, tinham que lutar em “ordem cerrada”, em rígidas fileiras, de outra forma
desertariam. Por sua vez, a tática adotada pelos exércitos revolucionários, com formações em
ordem aberta, dependia de certa liberdade de ação para os soldados. Essa forma de combater,
muito mais flexível e, portanto, possivelmente mais eficiente, para que fosse possível,
dependia que os soldados fossem motivados, não mais por medo, mas sim por razões de moral
e nacionalismo.

A solução encontrada pelos revolucionários – e a medida foi revolucionária, sob


vários aspectos – foi motivar seus soldados. Em parte, isso era simples: lutavam contra um
regime opressor e pela defesa de seus lares, ameaçados por invasores estrangeiros, mas isso,
por si, não foi considerado como suficiente. Criaram-se mecanismos para que os homens
encarassem o sacrifício do serviço militar como algo aceitável, pois era feito em benefício do
bem comum. Daí a previsão no decreto do recrutamento em massa, de que “os idosos irão às
praças públicas, para encorajar os guerreiros, pregar o ódio aos reis e a unidade da República”
– uma forma de propaganda, que se juntou a outras que foram criadas na época.

É de 1795 a criação do Museu do Louvre, reunindo acervo apreendido da monarquia,


transformado depois em Museu Napoleão. Além dessa medida, várias outras foram tomadas
visando a formação de uma identidade nacional francesa – Napoleão sabia fazer isso muito
bem, com várias ações procurando valorizar o sentimento de pertencimento dos soldados a
uma organização maior, primeiro o exército, depois a nação. Até as medalhas, que antes não
existiam afora as ordens de cavalaria da nobreza, passaram a ser um importante elemento da
vida cotidiana dos exércitos. Napoleão teria dito, com razão: “um soldado irá lutar longa e
duramente por um pedaço de fita colorida”, referindo-se a uma medalha que reconheça seus
serviços.

O importante é que a partir da Revolução francesa, se consolidou o modelo dos


grandes exércitos de conscritos, formado pela mobilização de toda a população: na 1ª Guerra
Mundial, a Rússia mobilizou doze milhões de soldados, a França 8,4 milhões, o Império
Britânico 8,9 milhões e a Itália 5,6 milhões. Uma ferramenta fundamental para o
funcionamento desses exércitos foi a criação de um sentimento de identidade nacional que
suplantasse as lealdades meramente locais e isso foi um movimento que se pode considerar
universal na Europa e no Novo Mundo. Não afetou apenas as políticas governamentais: nas
artes, houve o movimento do romantismo, com algumas fases bem nacionalistas muito
associados à Revolução Francesa. Isso pode ser visto em diversas tipos de produção, obras
literárias, pinturas, músicas ou mesmo na arquitetura. Pinturas como a de Delacroix, a
Liberdade Guiando o Povo, é um ícone dos movimentos revolucionários; ou as Polonaises, de
Chopin, usadas como ferramentas para que os poloneses recuperassem sua independência. Na
literatura isso também fica muito claro, como no caso dos contos de Grimm, uma obra
“legitimamente alemã”, como colocavam seus autores – e isso numa época em que não existia
uma Alemanha, região então dividida em vários pequenos reinos.

No Brasil, houve reflexos claros desse movimento romântico, tanto na pintura, como
na música e literatura. Eram obras enfatizando as raízes nacionais, o passado indígena, o de
grupos formadores da nacionalidade ou mesmo a belezas do País. Foram pinturas, como a
Iracema, de José Maria de Medeiros; as óperas O Guarani e O Escravo, de Carlos Gomes; e,
principalmente, textos literários, das quais podem se citar os romances O Guarani, Iracema, O
Gaúcho e O Sertanejo, de José de Alencar, ou os poemas I-Jucá-Pirama e A Canção do
Exílio, de Gonçalves Dias. Eram todas obras que enfatizavam um sentimento nacional e
vieram junto com outras ações, como a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
em 1838.

No caso do Instituto deve-se apontar que uma das suas primeiras ações foi fazer, em
1844, um concurso sobre “como escrever a história do Brasil”, ganho pelo naturalista alemão
Karl Friedrich von Martius. No texto, o autor colocava que: “Uma obra histórica sobre o
Brasil deve (...) [ter] a tendência de despertar e reanimar em seus leitores brasileiros amor da
pátria, coragem, constância, indústria, fidelidade, prudência, em uma palavra, todas as
virtudes cívicas”.14

A efetividade dessas medidas pode ser considerada surpreendente, especialmente


tendo em vista que uma boa parte da população era analfabeta e não havia meios de
comunicação em massa tal como entendemos hoje. Um exemplo dessa eficácia pode ser visto
em uma gravura de Debret, que mostra negros barbeiros ambulantes, provavelmente escravos;
um deles está usando uma cópia de barretina, segundo o autor, costume que vinha do
momento “da fundação do império brasileiro. De fato, naquele momento de entusiasmo
nacional, as frequentes paradas espalharam o gosto militar por todas as classes da

14
MARTIUS, Karl Friedrich von. Como se deve escrever a história do Brasil. Revista Trimestral do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Nº 24, janeiro de 1845. p. 401
população”.15 O importante é que a propaganda – proposital ou não – foi suficiente para que
os valores de uma identidade nacional fossem transmitidos.

Um fator dessas iniciativas brasileiras de uso da cultura como ferramenta de criação


de uma identidade nacional é que o governo só as apoiou tardiamente: na literatura e na
música, não conseguimos vislumbrar uma ação específica de incentivo a uma determinada
linha de ação. Na pintura, esse apoio existe, mas de forma muito indireta: a Academia
Imperial de Belas Artes premiava e expunha obras de caráter nativista, mas isso não era um
objetivo governamental – de forma mais direta, a partir de 1870, o Império passou a
encomendar obras representando os feitos militares, algumas das quais se tornaram ícones da
cultura nacional, sendo reproduzidos em diversas publicações, como foram os casos da
Batalhas do Avaí e de Guararapes, de Pedro Américo e Victor Meirelles, respectivamente.

Essa situação mudaria na década de 1930. Pode-se dizer que havia uma pressão da
sociedade pela preservação do patrimônio cultural, mas um fator que foi decisivo na adoção
de uma política cultural foi a situação que se configurava no período. Em 1901, um oficial
escreveu que a nação brasileira “não estava perfeitamente definida”,16 os problemas de
analfabetismo sendo considerados muito graves, opinião compartilhada por muitos oficiais.
Como solução, propunha usar o exército como um centro formador de pessoas, alfabetizando
as que precisavam, e dando aulas de civismo além, é claro, da formação militar específica.17

Como parte de uma política militar específica, em 1917, o Brasil mudou sua filosofia
de formação das forças armadas, adotando a conscrição para a composição do Exército. Isso
implicou em mudanças na forma como a questão militar fora tratada até então, passou a existir
um cuidado maior com a situação dos alistados. Um sintoma disso é o grande programa de
construção de quartéis feitos pelo ministério de Pandiá Calógeras (1919-1921), aperfeiçoando
as acomodações da tropa. Pode-se dizer que a criação do Museu Histórico Nacional, em 1922,
se encaixa dentro dos inícios de uma nova priorização do governo na área, pois o decreto de
fundação do Museu previa que ele devia contribuir “como escola de patriotismo, para o culto
do nosso passado”.18

15
DEBRET, J. B. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Paris: Firmin Didot, 1835. p. 49.
16
DUVAL, Sérgio Ferreira Armando. Reorganização do Exército. Rio de Janeiro, 1901. p. 11. Apud MCCANN,
Frank D. The Formative Period of Twentieth-Century Brazilian Army Thought, 1900-1922. Hispanic American
Historical Review, vol. 64, nº 4, Nov. 1984. p. 741.
17
MCCANN, op. cit. p. 741.
18
BRASIL – Decreto nº 15.596, de 2 de agosto de 1922. Cria o Museu Histórico Nacional e aprova o seu
regulamento.
Uma ação mais direta e efetiva ocorreu em função das necessidades militares na
década de 1930: os militares perceberam que havia sérios problemas de integração nacional,
algo que o Presidente Vargas possuia uma experiência pessoal, de quando, como sargento do
25º Batalhão de Infantaria, fora enviado do Rio Grande do Sul para a longínqua e
praticamente abandonada fronteira de Mato Grosso do Sul em 1903.

Em 1934, o Estado Maior do Exército fez uma análise da situação do país,


concluindo que, em caso de uma nova guerra mundial, o Brasil poderia ser envolvido no
conflito, havendo problemas internos que criavam riscos para o País. Foram apontados os
seguintes grupos, com correntes expansionistas vistas como riscos sérios para a segurança
nacional:

– A Germânica – existia antes da conflagração europeia [Primeira Guerra


Mundial] e cuja ameaça explodiu de novo com a onda de intensivo espírito
racista e a filosofia científico-militar;
– A norte-americana – que é acima de tudo econômica, não ameaçando
diretamente nossa independência política, mas tendendo a fazer-nos seus
vassalos. A expansão americana, que é feita principalmente por meio de
exportação de capital e através do comércio em geral, tende a confrontar-se
aqui com a japonesa, que é feita pela exportação de mão-de-obra, cujo efeito
é mais radical e perigoso. A colisão dessas duas correntes poderia resultar
em um ataque contra nossa independência ou, pelo menos, contra nossa
integridade;
– A italiana – que é por suas origens e natureza, menos perigosa, tem se
acumulado, entretanto, demasiadamente em certas regiões do País, tendendo
indiretamente a ameaçar uma quebra na unidade nacional do povo, e a
exercer uma forte influência em parte do público no evento de uma guerra
Europeia.19
O risco não era mera paranoia do Exército: os alemães tinham o conceito de
Auslanddeutsche, “alemães no estrangeiro” ou “alemães étnicos”, pessoas que, na visão
alemã, mantinham sua nacionalidade, mesmo tendo nascido no Brasil. De fato, esse foi o
argumento usado para justificar a anexação da Tchecoslováquia em 1938, a existência de
“alemães étnicos” naquele país, mesmo que a área em disputa nunca tivesse pertencido à
Alemanha. A isso se somavam fatores locais: havia diversas comunidades que não tinham
sido incorporadas à sociedade nacional, seus membros não falavam português ou sequer se
concebiam como brasileiros.

A falta de uma real unidade nacional – ou pelo menos a percepção dessa falta – levou
a que o governo Vargas, pela primeira vez, implantasse uma política de preservação e

19
MCCANN, Frank D. Soldiers of the Pátria: a History of the Brazilian Army, 1889-1937. Stanford: Stanford
University, 2004. p. 352-353.
valorização do patrimônio, como parte de uma tentativa de resolver os problemas que eram
vistos como graves. Dessa forma, em poucos anos, foram criados três parques nacionais, por
suas belezas naturais: os de Itatiaia, Foz do Iguaçu, Serra dos Órgãos. Também foi criado o
Ministério da Educação e Saúde, subordinado ao qual havia os seguintes órgãos: Inspetoria de
Monumentos nacionais (1934); Instituto Nacional do Livro (1936); Serviço de Radiodifusão
Educativa (1937); Instituto Nacional do Cinema Educativo (1937); Serviço Nacional do
Teatro (1937), Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937); Conselho
Nacional de Cultura (1938); e o Conselho Nacional dos Símbolos Nacionais (1939). Em
termos de museologia, foram criados o Curso de museus (1932); o Museu Nacional de Belas
Artes (1937), o Museu Imperial (1940) e o Museu da Inconfidência (1944).

Na alçada do Ministério da Justiça, pouco depois da Revolução, em 1931, foi criado


o Departamento oficial de Publicidade, que depois se transformaria no Departamento de
Imprensa e Propaganda, já diretamente subordinado à Presidência da República. O órgão tinha
como responsabilidade controlar o que era produzido no Brasil, fazendo a censura de obras,
mas também tinha, entre suas funções, a de “estimular as atividades espirituais, (...) no sentido
de incentivar uma arte e uma literatura genuinamente brasileiras”.20

Outras medidas de defesa de uma identidade cultural nacional foram tomadas,


especialmente tendo em vista o risco que se via na presença de estrangeiros, mencionado no
relatório do Estado Maior. Dessa forma, o governo implantou a Campanha de Nacionalização
– a partir de 1938, o ensino foi nacionalizado, com a obrigação do ensino em Português, em
substituição das línguas usadas nas escolas de imigrantes; somente brasileiros natos poderiam
dirigir escolas; os professores deveriam ser formados em escolas brasileiras; foi proibido o
ensino de idiomas estrangeiros para menores de 14 anos; também foi vedado o subsídio de
instituições do exterior a escolas e o ensino de Moral e Cívica se tornou obrigatório. Foi
impedida a circulação de jornais que não fossem em português, assim como o uso de língua
estrangeira em nomes de ruas, letreiros e até em lápides de cemitérios. Mais tarde, chegou a se
proibir o uso de línguas estrangeiras em público.21 Durante a Guerra (1942-1945), instituições
com nomes em idiomas de países do Eixo tiveram que mudar sua denominação – é famoso o
caso do time de futebol Palestra Italia, que, em 1942, teve que alterar seu nome para
Palmeiras.

20
BRASIL - Decreto-lei nº 1.915, de 27 de dezembro de 1939. Cria o Departamento de Imprensa e Propaganda
e dá outras providências. Inciso L.
21
SEYFERT, Giralda. Os imigrantes e a campanha de nacionalização. In: PANDOLFI, Dulce. Repensando o
Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999. p. 218 e segs.
Como colocou o próprio Vargas em um discurso: “O imperialismo brasileiro
consiste, portanto, na expansão demográfica e econômica dentro do próprio território, fazendo
a conquista de si mesmo e a integração do Estado (...).”22

Pode-se dizer que a proposta do governo Vargas foi bem-sucedida. Se antes da


Segunda Guerra havia um claro problema de assimilação do interior do Brasil, não se
considera que ele tenha perdurado depois de 1945. Entretanto, vários aspectos da política
governamental foram indubitavelmente autoritários, como a censura feita pelo Departamento
de Imprensa e Propaganda. O mesmo pode ser dito com relação à campanha de nacionalização
nas áreas de colonização estrangeira, que forçou a adoção de modelos culturais que não eram
os das comunidades.

Essas posturas de assimilação forçada não foram mais aceitáveis depois de 1945 e
isso não só pela redemocratização do País: uma das consequências da Segunda Guerra
Mundial foi negar a validade de posições nacionalistas e militaristas extremadas, como as dos
regimes nazifascistas – elas foram responsáveis pela perda de milhões de vidas.

De um ponto de vista mais prático, um dos resultados da 2ª Guerra Mundial foi a


consolidação das identidades nacionais, inclusive no Brasil e, talvez mais importante, houve
uma mudança no paradigma militar causada pela mecanização da forma de fazer a guerra: os
exércitos de massa, do tipo criado na Revolução Francesa, foram lentamente substituídos por
forças militares profissionais, compostas por soldados que necessitavam de uma maior
qualificação e, por isso, não mais podiam ser formados a partir de forças de conscritos. Hoje
em dia, a maior parte dos exércitos é formada por soldados profissionais e, mesmo no caso do
Brasil, onde se manteve o recrutamento obrigatório, apenas uma pequena parcela, menos de
3%, dos jovens que atingem a idade militar são efetivamente recrutados – não há mais a
necessidade de exércitos de massa.

Como resultado dessas mudanças, ocorreu uma perda de foco nas políticas
governamentais com relação à cultura. A difusão de valores nacionais deixou de ser um
objetivo, pelo menos de forma explícita, a ação na área de cultura sendo substituída por uma
mentalidade de um serviço público que deve ser prestado por simplesmente haver uma
demanda pública para ele.

Consideramos essa postura como problemática, pois, se parte do princípio que se


deve difundir a cultura por que se considera que deve ser feito, a ação passa a ser um objetivo

22
DEPARTAMENTO de Imprensa e Propaganda. Quem foi que disse? Quem foi quem fez? s.n.t. p. 72.
em si mesmo. Isso por si, não é uma dificuldade, mas, em uma sociedade que enfrenta uma
série de problemas orçamentários, a questão da cultura pode ser – na verdade é – vista como
secundária, face a uma série de outros compromissos. Até os militares, que têm como um dos
seus valores a preservação das tradições – lembremos da frase de Napoleão sobre as medalhas
–, deixaram a área da Cultura do governo Federal à míngua durante os anos do regime de
1964-1985: na década de 1970, o Museu Histórico Nacional chegou a fechar durante algum
tempo, pois seus funcionários não eram pagos e isso enquanto o diretor era um oficial de
marinha.

Por sua vez, não conseguimos vislumbrar uma solução simples para o problema do
objetivo da área cultural. Uma aproximação como a antiga é moralmente inaceitável, quando
não ilegal: a constituição de 1988 deu ênfase à diversidade cultural e não a identidade, dando
ênfase as práticas de grupos minoritários. Por sua vez, o problema da proteção ao patrimônio
local, se não o nacional, persiste, face a uma mudança social que vem ocorrendo com a
difusão de meios eletrônicos de divulgação cultural – e não estamos falando da internet, mas
também da televisão e cinema.

Hoje em dia, o poder econômico das economias ocidentais levou a que essas
possuíssem um imenso poder de convencimento de seus objetivos sem o uso da força armada,
o assim chamado soft power.23 Essa forma de ação passa, entre outros caminhos, pela
transmissão, ou imposição de valores culturais, sem o uso da força, o que se torna
particularmente complicado quando percebemos uma falta de uma política de defesa de
valores locais. A nível anedótico, valho-me lembrar de um caso que ocorreu com uma amiga
pessoal: anos atrás, ela estava com sua filha, ainda uma criança, e passou pela estátua de
Deodoro da Fonseca, no Rio de Janeiro. A criança falou então: “mãe, sei quem é esse: é o
general Washington”. Uma colocação que não pode ser vista como estranha, pois a televisão
bombardeia as crianças com informações e valores dos Estados Unidos, enquanto a história do
Brasil é relegada a poucos programas em canais especializados e de difícil acesso.

Na conjuntura atual, cremos que a situação dos museus de história, especialmente os


voltados para a história militar, é crítica. Ficam as perguntas: para que servem? Como devem
encarar os desafios das sociedades contemporâneas? O que devem discutir? Mais importante,
pode-se até colocar a pergunta: devem continuar a existir?

23
Ver: NYE, Joseph. Soft Power: The Means to Success in World Politics. New York: Public Affairs, 2004.
Não temos condições de responder a essas perguntas, apenas as colocamos para
levantar uma discussão sobre o tema, já que consideramos que dizer que essas instituições
devem existir porque sim é apenas uma tautologia, sem significado. É necessário encontrar
um novo caminho para elas.

Referências:
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes de sua separação e
independência de Portugal. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 1981.
BRASIL – SPHAN/Pró-Memória. Proteção e revitalização do patrimônio cultural no Brasil:
uma trajetória. Rio de Janeiro: SPHAN/Pró-Memória, 1980.
FRANÇA – Déclaration des droits de l’homme et du citoyen. Agosto de 1789.
FORREST, Alan. Conscripts and Deserters the Army and French Society during the
Revolution and Empire. Oxford: Oxford University Press, 1989.
FRANÇA – Decrét qui determine le mode de réquisition des citoyens français contre les
ennemis de la France. 24 de Agosto de 1793.
VRIES, Peter. State, Economy and the Great divergence: Great Britain and China, 1680s–
1850s. London: Bloomsbury, 2015.
MARTIUS, Karl Friedrich von. Como se deve escrever a história do Brasil. Revista
Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Nº 24, janeiro de 1845.
DEBRET, J. B. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Paris: Firmin Didot, 1835.
MCCANN, Frank D. The Formative Period of Twentieth-Century Brazilian Army Thought,
1900-1922. Hispanic American Historical Review, vol. 64, nº 4, Nov. 1984.
BRASIL – Decreto nº 15.596, de 2 de agosto de 1922. Cria o Museu Histórico Nacional e
aprova o seu regulamento.
MCCANN, Frank D. Soldiers of the Pátria: a History of the Brazilian Army, 1889-1937.
Stanford: Stanford University, 2004.
BRASIL - Decreto-lei nº 1.915, de 27 de dezembro de 1939. Cria o Departamento de
Imprensa e Propaganda e dá outras providências.
SEYFERT, Giralda. Os imigrantes e a campanha de nacionalização. In: PANDOLFI, Dulce.
Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999.
DEPARTAMENTO de Imprensa e Propaganda. Quem foi que disse? Quem foi quem fez?
s.n.t.
NYE, Joseph. Soft Power: The Means to Success in World Politics. New York: Public Affairs,
2004.
A COLÔNIA MILITAR DO AVANHANDAVA (1858) E OS IDEAIS MILITARES NA
OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO PAULISTA

Daniel Candeloro Ferrari


(Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo FAAC-UNESP.)

Nilson Ghirardello
(Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo FAAC-UNESP.)

Palavras-chave: Colonização militar; Colônia militar Avanhandava; Ocupação territorial


paulista.

A questão territorial no Brasil império.


O Império herda, da antiga metrópole, um território de certa maneira fragmentado, com
a ausência de uma verdadeira unidade nacional, marcado por fortes identidades locais e
regionais. Além disso, o período imperial enfrentara inúmeros conflitos. Externos e internos.
Foram muitos os esforços para garantir as linhas fronteiriças, sejam eles por guerras,
arbitramentos ou negociações. Somente a título de exemplo: têm-se os principais conflitos
externos pela posse da Província Cisplatina (1825-1828), Guerra contra Oribe e Rosas (1851-
1852) e a Guerra contra o Paraguai (Guerra da Tríplice Aliança, 1864-1870), esta última
considerada o maior confronto armado ocorrido na América do Sul. Como exemplos de
revoltas internas: Confederação do Equador (1823-1824), Sabinada (1837-1838), Balaiada
(1838-1841), Cabanagem (1835-1840), Revolução Farroupilha (1835-1845), entre inúmeras
outras.
A realidade é que, no começo do século XIX, as fronteiras eram parcamente definidas;
internamente entre as próprias províncias, e externamente entre o Brasil e os países Platinos: a
fronteira Brasil-Argentina só irá ser definida no final do século XIX; fronteira Brasil-Paraguai
definida somente em 1872; fronteira Paraguai-Argentina definida em 1876; a única fronteira
que fora definida nas primeiras décadas do XIX era a Brasil-Uruguai, justamente pelo
processo de independência do Uruguai. Segundo Sousa Neto;
[...] a ocupação e controle do território passou a ser capital para as elites
políticas que, até a segunda metade do século XIX, ou mais precisamente,
após o fim da Guerra contra o Paraguai, sequer contavam com um Estado
consolidado. Assim, é possível que, embora não raro houvesse por parte das
elites o desejo de integrar todo o território, faltava-lhes em efetivo os meios
que iam desde o seu mais completo esquadrinhamento cartográfico às
condições materiais para executar políticas com esse fito.24
A composição do Brasil nos moldes de uma nação moderna, sobretudo no que se refere
à elaboração de uma identidade nacional, remete à necessidade que seus habitantes deveriam
reconhecer-se como partes de um todo coeso. Ora, era preciso que, nesse momento, os
“homens livres” do Império tanto se reconhecessem, quanto se fizessem reconhecer como
membros de uma “nova sociedade”: o “mundo civilizado”, que era movido pelo então ideal de
“progresso”. Os novos cidadãos não deveriam perder de vista as nações europeias e seu
poderio industrial. Além disso, de múltiplas transições entre um regime senhorial e a
formação de uma burguesia nacional, entre o trabalho escravizado, trabalho servil, e o
trabalho livre, entre um território marcadamente de tempos lentos e um território que
alternaria temporalidades diferenciadas.25 Talvez, fosse “A Era do Capital”26 que apenas se
iniciava: a expansão da economia capitalista pelo mundo anunciando profundas modificações.
Ao se afastarem da pretensão de que o Império do Brasil deveria possuir domínios
territoriais ilimitados, os dirigentes imperiais exerceram outro tipo de expansão: uma
expansão para o interior, em direção aos seus imensos fundos territoriais, considerados não
explorados pelo homem branco. Expandir-se sobre os sertões era fundamental no processo de
negociação dos limites do império com as repúblicas vizinhas, garantindo assim a soberania
do Estado imperial.27 É através da apropriação física e política que os dirigentes imperiais
tentavam superar os obstáculos que se apresentavam para a formação da nação. 28 Nas palavras
de Mattos, “O Estado imperial deveria empreender uma expansão para dentro, de modo
permanente e constante, indo ao encontro dos brasileiros que forjava.”29 E era em tal expansão
que residia o traço mais significativo na construção de uma unidade. Com base nestas
reflexões, propõe-se posicionar os planos de colonização militar dentro deste panorama, tendo
como foco a consolidação do Estado territorial a partir de meados dos Oitocentos, além da
busca constante de inserção no mundo capitalista global.

Antecedentes, origens e funções das colônias militares.

24
SOUSA NETO, Manoel Fernandes de. Planos para o Império: Os planos de viação do Segundo Reinado
(1869-1889). São Paulo: Alameda, 2012, p. 24.
25
Idem.
26
HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital, 1848-1875. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.
27
Cf. JANKE, Leandro Macedo. Território, Nação e Soberania no Império do Brasil. In: Anais do XXVI
Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011.
28
Idem.
29
MATTOS, Ilmar Rohloff de. Do Império do Brasil ao Império do Brasil. In: Faculdade de Letras da
Universidade do Porto. (Org.). Porto: Universidade do Porto, 2004, v. 2.
É interessante recordar que a maioria das antigas nações cogitou em povoar seu
território de elementos nativos, para que, dessa maneira, seus habitantes estivessem
penetrados com o sentimento de pátria, apego ao solo, ocupação continuada, e as suas
tradições. Além disso, sabe-se, pois, que tais nações serviam-se, umas mais, outras menos,
conforme as exigências de segurança, em suas fronteiras, de postos de guarda para a proteção
do seu território. Entretanto, não bastava para isso um aparato somente militar, porque tais
entrepostos passariam a viver muitas vezes de recursos locais, onde instáveis e incertos eram
os meios de subsistência. Foi a partir daí, que se tornou necessidade associar àqueles pontos
ou guardas territoriais a elementos civis, nacionais, de procedência militar, para trabalhos
agrícolas e a exploração de produtos naturais.30 Segundo Silveira de Mello,31 no Brasil
colonial, a expansão foi balizada de forma semelhante ao norte, ao oeste e ao sul, por
destacamentos militares em torno dos quais se fizeram ensaios de povoamento. Graças a estes
postos de guardas, tornou-se possível por aqueles extremos, desenhar, de certa maneira, os
contornos territoriais da época.
Com isso em mente, pode-se afirmar que uma, das diversas origens da colonização
militar brasileira, fora inspirada no império mais poderoso da antiguidade clássica: o romano.
Alguns planejadores buscaram na prática romana de, após a conquista por guerra, formar
acampamentos militares e daí colônias militares. Essas ainda eram bases de futuras cidades,
como se deu com inúmeras delas, entre os anos 300 AC e 150 DC. Ora, sendo nosso exército
do século XIX de certa maneira ultrapassado, nada mais natural em escolher aquele sistema
que tipificava a colonização militar:

Assim procederam os romanos na fronteira do Reno face às nações bárbaras


do norte. As terras, eles as repartiam em glebas e as distribuíam aos soldados
ao completarem o tempo de serviço, sob a dupla condição de ali se
estabelecerem com suas famílias e levarem seus filhos, na idade propícia, às
juntas de alistamento militar. Estes, por seu lado, depois de cumprido o
serviço das armas, deviam voltar ao teto paterno ou receber as glebas que
lhes coubessem.32

Machado D’Oliveira escreve em seu “Plano de uma Colônia Militar no Brasil” de


1846,33 sobre as colônias militares nos Governos da Rússia e Áustria. Tais sistemas eram de
uma organização metódica, e que beiravam o despotismo militar. Continua explicando que os

30
MELLO, Raul Silveira de. A Epopéia de Antônio João. Aos 100 anos da epopéia militar dos Dourados. Rio
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1969 (Coleção General Benício, v. 71, publ. 393).
31
Idem.
32
Idem, ibidem, p. 70, grifo nosso.
33
D’OLIVEIRA, José Joaquim Machado. Plano de uma Colonia Militar no Brasil. In: Revista Trimensal de
Historia e Geographia ou Jornal do IHGB. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I. P. da Costa. Tomo sétimo.
nº 26, julho de 1846, p. 239-255.
estabelecimentos se aproximavam de acantonamentos militares, onde os corpos eram
completamente organizados, com todo aparato militar disponível, e que não se relacionava
com a intenção brasileira de criar colônias objetivando a posse e o cultivo a terra. Dessa
forma, não serviria ao Brasil como modo de colonização. Os planos do inglês M. Gladstone
também foram consultados: o plano consistia no emprego de um corpo de soldados sujeito à
direção de um engenheiro geral.34 Já de acordo com Vasconcellos, em “Colônias Militares –
Memória”,35 publicado em 1867, entre todos os sistemas, o que pareceu mais regular no caso
de ser adotado, foi o proposto para a Argélia no ano de 1841 por Landemann. Este sistema,
que conforme o autor seria o mais apropriado às nossas circunstâncias, teria mais relação com
os nossos usos e costumes, com muitos mais pontos de semelhanças e de contato do que outro
qualquer; resume-se em criar colônias agrícolas, religiosas e militares na Argélia para defesa
de suas fronteiras e catequese dos indígenas.
As colônias militares propostas para o país tinham como uma das finalidades ocupar e
garantir que as terras nas quais estavam inseridas compusessem, irreversivelmente, o território
nacional. Pode-se afirmar, ainda, que algumas delas foram utilizadas como medidas
estratégicas do império brasileiro para que as nações vizinhas não reclamassem a posse das
terras em questão, além de impedir possíveis invasões. Os problemas relacionados às
demarcações fronteiriças, a partir de 1850, cresciam intensamente no Brasil, como também
aumentava a necessidade de se nacionalizar essas regiões que, na prática, ainda não estavam
inseridas no contexto brasileiro. Em suma, a colonização na perspectiva militar esteve
vinculada às diversas funções:
• Domínio dos povos indígenas considerados perigosos e amparo à catequização dos
respectivos aldeamentos;36
• Apoio aos projetos de algumas novas cidades;37
• A intensa preocupação com as fronteiras – a negociação com as repúblicas vizinhas
era delicada, ameaças vindas da Bolívia, embates com os paraguaios com recorrentes
invasões;
• Funções estratégicas de posicionamento em lugares para a colonização (já mencionado
anteriormente);

34
OURIQUE, Jacques. Colônias e Estradas militares. In: Revista do Exército Brasileiro. Anno Quarto. Rio de
Janeiro: Typ. da Revista do Exercito Brasileiro, 1885, p. 97-101.
35
VASCONCELLOS, José R. R.. Colônias Militares – Memoria. In: BRASIL. Relatório apresentado à
Assembleia Geral Legislativa pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, 1867.
36
No Paraná, por exemplo, a colônia de Jatahy foi promovida por um sistema de colonização do oeste
paranaense juntamente com apoio a um aldeamento maior e quatro menores. Cf. OLIVEIRA, Maria Luiza
Ferreira de.,2015, p. 2.
37
Em Minas Gerais a colônia daria apoio aos aldeamentos e à nova cidade de Philadelphia, parte do ambicioso
projeto de Teófilo Ottoni. Cf. OLIVEIRA, 2015, opus cit.
• Postos de proteção em áreas para informações e comunicações (estafetas, correio),
policiamento,
• Função naval;
• E até mesmo planos desenvolvimentistas de futuros centros agrícolas e comerciais.

Primeira planta para a Colônia Militar do Avanhandava

Figura 1: “Planta Topographica do Arraial da Colonia militar Avanhandava”, 5 de julho de 1861

Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo, fotografia do autor.

A Colônia Militar do Avanhandava foi criada pelo Decreto Imperial nº 2126 de 23 de


Março de 1858.38A figura 1 corresponde à primeira planta elaborada para a Colônia em 5 de
julho de 1861. Localizada próximo ao Salto do Avanhandava, no rio Tietê, o local escolhido
foi ao lado do Ribeirão Ferreira. Como não há menção de autoria no documento, supõe-se que
o desenho tenha sido feito pelo diretor da colônia Manoel Giraldo do Carmo Barros, pois este
assina os diversos ofícios anexados. Lê-se no lado direito o plano do diretor:
As ruas tem 100 palmos de largura. As quadras para casas tem 400 palmos
em cada face. O Ribeirão Ferreira que mais ou menos corre de Norte a Sul, e
a Estrada da Cidade da Constituição ao Itapura e porto do Taboado no Rio
Paraná que leva a direção de [Leste] a [Oeste] devidem o Arraial em quatro
bairros. Os dois que ficão a L. estão sendo discortinados para poderem ser
habitados.39

38
BRASIL. Collecção das Leis do Imperio do Brasil de 1858. Tomo XIX. Parte II. Rio de Janeiro: Typographia
Nacional, 1858, p. 161.
39
AVANHANDAVA, Officios Diversos. C0820, 1861, (manuscrito), Arquivo Público do Estado de S.P.
Com um desenho quadrilátero e regular, o plano para a colônia ansiava algo
efetivamente racional, que pudesse transmitir não só ordem e disciplina militar, mas também a
ideia de uma civilização que vinha para demarcar e proteger a região. Ora, o que seria
delimitar uma região senão distinguir dois ou vários lugares, atribuindo-lhes qualidades
diferentes: o meu, e aquele outro – o espaço de habitat, de segurança, de ordem, enquanto o
outro seria “perigoso”, “não humano”, “bárbaro”, “selvagem”. Fundar é sempre atribuir
qualidades a um espaço: é estabelecer uma relação de parte da extensão com o mundo,
tecendo vínculos simbólicos. Tal relação é interativa na medida em que, uma vez fundado, o
próprio lugar é, ao mesmo tempo, produto e produtor de simbologia e de sociabilidade.40
Tem-se a hipótese, portanto, que tal plano e ação de fundar, talvez possam se aproximar
ao modelo de castrum romano (figura 2) – acampamentos militares, que posteriormente, se
transformavam em cidades. Muitas vezes eram fundados com o objetivo de ocupação
territorial e garantia de domínio, ou apenas para interiorização do povoamento. O traçado em
xadrez era definido por duas ruas, norte-sul chamada cardo, e leste-oeste chamada
decumanos. Em seu cruzamento estabelecia-se o forum, onde os soldados se reuniam todos os
dias para receber as ordens, e este local tornava-se o centro da futura cidade. Ao redor do
futuro núcleo citadino, mas ainda dentro dos muros, delimitava-se o pomerium, uma faixa de
terra que representava a fronteira sagrada da cidade. O terreno interno era considerado
inviolável, ungido pelos deuses, tal rito fazia o espaço passar de um status para outro. Aos
poucos o acampamento recebia calçamento, água encanada, mercados, escolas, anfiteatros,
termas, etc.41Não se tratava somente de um ritual de fundação ou de elaboração de um
traçado, mas de um conjunto de operações deliberadas: legitimando a produção de vínculos
simbólicos por um grupo de indivíduos entre seu território e o ambiente construído. Podemos
considerar que, assim como ocorre na planta da Colônia militar, o ato de delimitar é uma
maneira de tornar um espaço seu, de apropriar-se dele ao distingui-lo dos outros espaços e de
outrem.

Figura 2: Esquerda – Planta fictícia de Verbonia42, em vermelho o cardo e decumanos. Direita –


Acampamento militar, castrum romano.

40
SEGAUD, Marion. Antropologia do espaço: habitar, fundar, distribuir, transformar. São Paulo: Edições Sesc
São Paulo, 2016, p. 138-141.
41
MACAULAY, David. Construção de uma cidade romana.São Paulo: Martins Fontes. 1989, p. 10-15.
42
Verbonia é uma cidade fictícia: típica cidade romana formada a partir da colonização militar, foi criada pelo
autor (Macaulay) para descrever tal processo. A planta e os desenhos são apenas para ilustrar como seria a
cidade.
Fonte: MACAULAY, 1989, p.10-13.
Para Mumford, as cidades militares de colonização romana, implantadas para servir de
pontos de apoio ao grande império, eram permanentemente guarnecidas de legionários e
muitas vezes de desenvolviam como cidades manufatureiras especializadas e centros
comerciais. Roma deixou suas marcas características numa série de novas colônias – essas
cidades eram talhadas segundo o modelo descrito: tipo axial, modesto em dimensões, simples
no traçado, com suas duas ruas principais que se cruzavam em ângulo reto perto do centro.43

Ter estabelecido essas novas cidades foi um feito social mais valioso do que
quaisquer benefícios conferidos por Roma a si mesma por seus rapaces
monopólios. O que faltava em tamanho às cidades novas, ganhavam elas em
qualidade e, de passagem, em autossuficiência [...], aquelas cidades
poderiam tirar a maior parte dos seus alimentos da região circunvizinha:
assim, mantinham o equilíbrio rural-urbano que lugares maiores, por causa
do seu próprio crescimento, desfaziam.44
Na planta da Colônia Avanhandava (figura 1), pode-se dizer que o Ribeirão Ferreira faz
o papel de cardo e a “Estrada que vai da cidade da Constituição ao Itapura [...]” como
decumanos, dividindo o arraial em quatro bairros, os dois da direita “descortinados” (ou seja,
estavam realizando o processo de desmatar o local, provendo um campo aberto). Ao centro
localiza-se o quartel e na região superior direita o cemitério. Em conjunto à figura 1, o diretor
anexa plantas de edifícios a se construir, que segundo ele são de urgente necessidade:
Para facilitar a prosperidade da povoação desta Colonia; regularizar a
moradia de seus empregados, que ate o presente tem estado mal
acomodados, e firmar o seu Arraial, que por ora heprovisorio e distante do
lugar designado para esse fim duas legoas e meia pelo menos proponho a V.
Exª, na forma do artigo 7º § 1º do Regulamento deste estabelecimento, a
construcção de dois edificios que a meu ver são de urgente necessidade,

43
MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, desenvolvimento e perspectivas. São Paulo: Martins
Fontes, 2ª ed., 1982, p. 229-230.
44
Id., ibid., p.231.
tanto para estabelecer a base da futura villa, como para recurço dos que por
este certão se estão domiciliando no caso de qualquer agressão; cujos
edificiosconstão das duas plantas inclusas e são os seguintes: Primeiro um
quartel [...] Segundo = Dois Cemiterios [...] e capella na parte que for
designada para os catholicos.45

Figura 3: Planta do Quartel da Colônia Militar Avanhandava, 5 de julho de 1861.

Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo, fotografia do autor.

O primeiro edifício a ser mencionado pelo diretor é o quartel, que seria implantado no
centro da colônia ao lado do Ribeirão Ferreira. Novamente vê-se um desenho simples e
regular, porém muito bem detalhado e com clara inspiração nos forums romanos: ocupando
uma quadra inteira, o quartel tem 400 palmos em cada face por 40 palmos de largura,46deveria
ser construído com madeira de lei “que facilita mais sua promptificação eoffereça duração
maior de 50 annos; cuja construcção é orçada em 16:000$000 réis em seis annos de
serviço”.47 Com duas portas, a entrada principal possivelmente volta-se para a rua/eixo
(decumanos) ao sul, e a outra para o norte. Apresenta em seu perímetro interno um pátio
avarandado “que facilita poder se percorrer todo o quadro sem expor se ao tempo”.48
O quartel teria acomodação para: residência do diretor, ajudante do diretor, capelão,
cirurgião, escrivão, agência de correio, secretaria, doze colonos de 1ª classe, duas enfermarias,
um laboratório farmacêutico, duas escolas de 1as letras, um armazém, duas prisões(para
homens e mulheres), oficinas, latrinas e cozinha. Indicado para posicionar-se no centro da
colônia, o quartel, por razões militares e sociais, era considerado o lugar mais importante.

45
AVANHANDAVA. Officios Diversos. Caixa C0820, 1859-64, manuscrito, Arquivo Público do Estado de São
Paulo, 5 de julho de 1861.
46
Caso utilizarmos a medida linear de 0,22m ou 22cm equivalente a 1 palmo: o quartel teria 88x88m (medida
inteira da quadra) por 8,8m de largura. A rua (100 palmos) teria aproximadamente 22m.
47
AVANHANDAVA, Officios Diversos, opus cit. - Planta do Quartel, 5 de julho de 1861.
48
Idem.
Figura 4: Planta da Capela e cemitérios da Colônia militar Avanhandava, 5 de julho de 1861.

Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo, fotografia do autor.

A segunda planta a ser anexada é exposta na figura 4 – dois cemitérios e uma capela
ocupando uma quadra de 400 por 400 palmos. É interessante notarmos três aspectos
principais. O primeiro é atentarmos para a localização do cemitério na figura 1 – longe do
centro, na região mais afastada possível, mas ainda assim dentro do perímetro delimitado pelo
plano. Isso acontece devido estar em voga diretrizes de um urbanismo sanitário, que teve
início na Europa no final do século XVIII, baseado principalmente em teorias provenientes
das áreas médicas como a teoria dos miasmas, ou miasmática. Para Mastromauro, tais
conceitos compreendem, de forma básica, em limpar o espaço urbano – a ideia de desinfetar,
praticar uma higiene desodorizante, pretendendo proteger o ar das emanações e ‘miasmas’,
fedores, que provêm dos corpos pútridos (também multidões, hospitais, pessoas doentes, solos
úmidos, pântanos, habitações mal construídas, etc).
Na referida teoria, quando um solo era denunciado como insalubre
(perigoso) ele devia logo ser drenado a fim de torná-lo inofensivo para os
seus arredores. As ruas deveriam ser pavimentadas para isolar a sujeira e
para que a lavagem do solo fosse facilitada. Limpar significa muito mais do
que simplesmente lavar, drenar. O ideal era assegurar o escoamento, a
evacuação, a eliminação da imundice.49
O segundo aspecto a se destacar é a divisão em duas partes do cemitério: um protestante
ao norte, e outro católico ao sul. Lembremos então do conjunto de cemitérios na cidade de

49
MASTROMAURO, Giovana C. Surtos epidêmicos, teoria miasmática e teoria bacteriológica. In: Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História, São Paulo, jul. 2011, p. 3.
São Paulo, vizinhos entre si: Cemitério da Consolação (1858), dos Protestantes (aprox. 1862)
e da Ordem Terceira do Carmo (1868) – que tiveram seus locais de implantação definidos
pelo engenheiro alemão, protestante, Carlos Rath50. Ora, percebe-se aqui, portanto, a
contemporaneidade das ideias expressas na planta e pretendidas pelo diretor da Colônia
Avanhandava – esta que ficava aproximadamente a 12 dias de viagem saindo de Piracicaba,
por meio de canoas, através do rio Tietê51 (imaginemos assim, a distância até a capital). Dessa
forma, frisamos a excelência e contemporaneidade na elaboração do desenho em que já havia
a intenção de se construir um cemitério dividido entre os católicos e os acatólicos, ou
protestantes.
O terceiro aspecto a ser apontado é a necessidade da construção da capela: época em que o
Estado imperial e Igreja eram um ente só. A religião católica estava presente na cultura dos
brasileiros, e numa região, que era preconceituosamente considerada “selvagem”, acreditava-
se no conceito que a Igreja, juntamente com o trabalho dos militares, traria os povos indígenas
para a “civilização”. A figura do padre, ou do capelão-alferes como é no caso de uma colônia
militar, se identificava com a população e seu meio, incluindo atividades políticas e
propriedade de bens. Ficava o capelão responsável por, além de suas funções paroquiais,
ensinar o catolicismo às crianças da colônia, promover as famílias com dedicação sincera,
aconselhar a moral pública e privada, a exatidão dos deveres religiosos aos colonos, o respeito
e a obediência legal e a sociabilidade.
Devido a isso, o segundo edifício a ser indicado pelo diretor da colônia é uma capela
com planta retangular divida em: corpo central (nave única), corredores laterais, duas
sacristias e capela mor. As dimensões indicadas na planta são de 80 palmos de comprimento e
60 palmos de largura, com “altura das beiras” de 20 palmos. Além dos pontos descritos, caso
atentarmos para a região à frente da capela percebe-se um espaço em branco e o símbolo da
cruz. A partir disso podemos estabelecer o seguinte pressuposto: apesar de descrever o
cemitério com 400x400 palmos (dimensão da quadrícula), o diretor ao desenhá-lo faz com
que um dos lados seja menor em comprimento. Dessa forma, talvez, tivesse a intenção de
levantar um cruzeiro defronte à capela (notar o símbolo da cruz na figura 4), criando assim um
adro, ou mesmo um pequeno largo.

50
MATRAGNOLO, Breno H. S. Formas de morrer bem em São Paulo. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) São Paulo, 2013.
51
Este é o tempo que leva o diretor e seu comboio, “que tendo sahido da Cidade da Constituição na tarde de 8 do
corrente mes cheguei a este lugar na manhã de hoje, tendo sido a viagem mais longa do que do costume por
causa [das chuvas].” In: AVANHANDAVA, Officios Diversos, opus cit., 20/02/1860.
Portanto, o objetivo é demonstrar que havia um ideal que estava além de ocupar,
demarcar, vigiar e proteger o território; mas principalmente tendo como meta implantar
estabelecimentos sob um projeto racional, cujas bases parecem vir de colônias militares
romanas. Desde a escolha do local, estrategicamente posicionado, até a elaboração de mapas e
plantas, verifica-se tal desejo. Os documentos aqui brevemente analisados explicitam um
intuito claro de ocupar um espaço que era “desconhecido” para o homem branco, mas não de
qualquer maneira, e para sua criação concorreriam os poderes civis e religiosos, parte de uma
mesma estrutura de poder. A ideia era construir no interior paulista uma cidade planejada,
inicialmente de caráter militar e agrícola, que seria a semente de futuro núcleo civil.

REFERÊNCIAS:
AVANHANDAVA, Officios Diversos. C0820, Annos 1859-1864 (Manuscrito), Arquivo
Público Estado de São Paulo.
BRASIL, Collecção das Leis do Imperio do Brasil de 1858. Tomo XIX, Parte II. Rio de
Janeiro: Typographia Nacional, 1858.

D’OLIVEIRA, José J. M. Plano de uma Colonia Militar no Brasil. In: Revista Trim. de
Historia e Geographia ou Jornal do IHGB. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I. P. da
Costa. Tomo VII. nº 26, julho de 1846, p. 239-255.

JANKE, Leandro Macedo. Território, Nação e Soberania no Império do Brasil. In: Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011.
MACAULAY, David. Construção de uma cidade romana.São Paulo: M. Fontes. 1989.
MASTROMAURO, Giovana C. Surtos epidêmicos, teoria miasmática e teoria
bacteriológica. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História, São Paulo, jul. 2011.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. Do Império do Brasil ao Império do Brasil. In: Faculdade de
Letras da Universidade do Porto. (Org.). Porto: Universidade do Porto, 2004, v. 2.
MELLO, Raul Silveira de. A Epopéia de Antônio João. Aos 100 anos da epopéia militar dos
Dourados. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1969.

MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, desenvolvimento e perspectivas. São


Paulo: Martins Fontes, 2ª ed., 1982.

OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. O Exército, a circulação e a ocupação.. In: Anais do
39º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, Minas Gerais, G17, 2015.
OURIQUE, Jacques. Colônias e Estradas militares. In: Revista do Exército Brasileiro. Anno
Quarto. Rio de Janeiro: Typ. da Revista do Exercito Brasileiro, 1885.

SEGAUD, Marion. Antropologia do espaço: habitar, fundar, distribuir, transformar. São


Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2016.

SOUSA NETO, Manoel F. Planos para o Império: Os planos de viação do Segundo Reinado
(1869-1889). São Paulo: Alameda, 2012.

VASCONCELLOS, José R. Colônias Militares – Memoria. In: BRASIL. Relatório de Estado


dos Negócios da Guerra – João L.C. Paranaguá. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1867.
NOTAS SOBRE “O QUE É SER UMA POLICIAL MILITAR”:
UMA DISCUSSÃO NO CAMPO DA PSICODINÂMICA DO TRABALHO

Daniela Cecilia Grisoski


Programa de Pós-Graduação em Psicologia (Universidade Estadual de Londrina – UEL)

Orientadora: Dra. Eneida Santiago


Programa de Pós-Graduação em Psicologia (Universidade Estadual de Londrina – UEL)

Palavras-chave: Processos de subjetivação; Polícia Militar; Gênero; Psicodinâmica do


Trabalho.

Introdução
A Polícia Militar do estado do Paraná (PMPR) possui como objetivo primordial o
policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública, integrando o sistema de Segurança
Pública e Defesa Social do Brasil. A PMPR é dividida em seis Comandos Regionais (CRPM),
que abrangem 27 Batalhões (BPM), além das Unidades Especializadas: Batalhão da Polícia de
Trânsito (BPTran), Regimento de Polícia Montada (RPMon), Batalhão da Polícia Militar de
Fronteira, Batalhão da Polícia de Guarda (BPGd) e as Companhias Independentes da Polícia
Militar (CIPM) (SESP-PR - Secretaria da Segurança Pública e Administração Penitenciária,
2019).
O presente trabalho foi realizado em um Batalhão que compõe a PMPR. Os dados aqui
apresentados e analisados são um recorte das entrevistas com integrantes deste Batalhão. Este
texto é parte de uma dissertação de mestrado iniciada no ano de 2018 pelo Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL), tendo como objetivo
principal delinear e analisar as vivências subjetivas de mulheres policiais militares atuantes
em um Batalhão de um município do estado do Paraná.
Para o desenvolvimento desta dissertação, a qual ainda apresenta-se em processo de
coleta de dados, estão sendo realizadas entrevistas individuais de caráter semiestruturado.
Como recorte desta dissertação, aqui traçamos uma linha de análise referente às respostas das
três primeiras participantes da pesquisa, a pergunta primordial à esta análise foi: “o que é ser
uma policial militar?”
A pesquisa está autorizada pelo Comitê de Ética da respectiva universidade em que a
mesma está sendo realizada52, portanto serão utilizados nomes fictícios ao se referir às falas

52
Autorização número: 2.978.926
das entrevistadas. Os nomes escolhidos atribuem-se a mulheres que fizeram parte da história
do militarismo, deixando assim suas marcas.
Os nomes escolhidos foram: Maria Quitéria, conhecida como mulher-soldado, durante
a década de 1820, tornou-se oficialmente a primeira mulher integrante de uma unidade militar
em terras brasileiras (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2019). Levando em conta seu pioneirismo,
seu nome irá condizer à primeira mulher a ter participado desta pesquisa. Joana d’Arc, a qual,
com apenas 16 anos, durante o ano de 1429, utilizando cabelos curtos e trajes considerados
masculinos, foi nomeada pelo rei Carlos VII como comandante do Exército francês, sendo
considerada uma importante personagem histórica para o estado nacional francês (BEZERRA,
2019). E a terceira entrevistada foi denominada como Jovita Feitosa, que, assim como Joana
d’Arc, cortou os cabelos e utilizou de trajes masculinos para integrar o Exército. A brasileira
alistou-se na instituição para que pudesse lutar na Guerra do Paraguai, ocorrida durante o
século XIX. Mesmo ovacionada enquanto heroína, no ano de 1865, foi impedida de lutar na
Guerra do Paraguai pelo Ministro da Guerra devido a sua condição de mulher
(ASSOCIAÇÃO DOS FUNCIONÁRIOS DO BANCO DO NORDESTE DO BRASIL -
AFBNB, 2019)
Metodologicamente, este trabalho foi desenvolvido através de um viés da
Psicodinâmica do Trabalho, abarcando conceitos e noções cunhados pelo teórico Christophe
Dejours.
A Psicodinâmica do Trabalho, campo que começou a ser desenvolvido na década de
1990 por Dejours, compreende-se como “o estudo dos movimentos psicoafetivos gerados pela
evolução dos conflitos intersubjetivos e intrasubjetivos” (DEJOURS, ABDOUCHELI e
JAYET, 2014, p. 19). Esta, abarca concepções de diferentes áreas, como a psicologia,
sociologia e ciências do trabalho, preocupando-se com o campo das relações de trabalho,
dando especial enfoque às vivências voltadas ao sofrimento e ao prazer no contexto de
trabalho e a constituição da identidade do sujeito trabalhador.
Neste sentido, foi realizada uma análise sobre as vivências subjetivas das
participantes desta pesquisa através de seus discursos. No estudo, formou-se uma linha de
análise a partir de dois tópicos que foram denominados “Identidade” e “Reconhecimento
social” onde pode-se notar pontos em comum presentes nos discursos das participantes.
Tais discursos serão apresentados e discutidos mais à frente.
Este estudo também se enquadra no campo denominado Relações de Gênero. De
acordo com a autora Joan Scott (1995), a noção de gênero caracteriza-se a partir de uma
organização social entre os sexos, dando sentindo ao funcionamento das relações sociais
humanas. Esta mesma autora ressalta que há uma íntima relação entre gênero e poder, o
que faz com que o gênero masculino, em muitas ocasiões, seja visto como o portador de
uma forma de dominação, de poder, mesmo que de forma implícita, sendo esse um poder
sucinto que está presente nas formas de cotidiano de um meio social.

Trata-se de exemplos de ligações explícitas entre o gênero e o poder, mas


estas constituem apenas uma parte da minha definição do gênero como um
modo primeiro de significar as relações de poder. Frequentemente, a atenção
dedicada ao gênero não é explícita mas constitui, no entanto, uma dimensão
decisiva da organização da igualdade e desigualdade (SCOTT, 1995, p. 09).

A partir desta ideia de funcionamento social, tem-se a noção de que há a divisão


entre papéis sociais considerados masculinos e femininos, mesmo que de forma implícita.

Da identidade ao reconhecimento: uma perspectiva da psicodinâmica do trabalho


Dejours (2004) conceitua trabalho como uma importante forma de construção e
afirmação da identidade por parte do sujeito que trabalha, visto que seus conteúdos singulares
são solicitados para a realização das tarefas ligadas aos processos de trabalho.

[...] o trabalho é aquilo que implica, do ponto de vista humano, o fato de


trabalhar: gestos, saber-fazer, um engajamento do corpo, a mobilização da
inteligência, a capacidade de refletir, de interpretar e de reagir às situações; é
o poder de sentir, de pensar e de inventar (DEJOURS, 2004, p. 27).

As formas de trabalhar são contribuintes à constituição de subjetividade de um sujeito,


assim como afirma Dejours (1993, p. 99) “[...] o trabalho é, também, um fator essencial de
nosso equilíbrio e de nosso desenvolvimento. Talvez não importe qual trabalho; talvez não
importe em que condições”.
Com esta fala, é possível a compreensão de que o autor enfoca que, através dos
cotidianos laborais, os indivíduos dão sentido às suas realidades, modificando-as de acordo
com suas experiências, histórias de vida, percalços e contextos. Assim, as relações de trabalho
interligam-se às formas de um sujeito se constituir subjetiva, social, política, histórica,
econômica e fisicamente, sendo contribuinte, desta forma, à sua identidade de sujeito.
Dejours, Abdoucheli e Jayet (2014) enfatizam que, ao chegar em um trabalho, um
indivíduo traz consigo experiências prévias de vida, desejos, motivações. “Isso confere a cada
indivíduo características únicas e pessoais” (DEJOURS, ADBDOUCHELI, JAYET, 2014, p.
24). Com isso, tais características vão constituindo a identidade. Esta noção de identidade faz
com que um sujeito se reconheça em determinado contexto social.
Todavia, é importante ressaltar o fato de que nossa sociedade contemporânea é
organizada por uma lógica capitalista, que visa a produtividade e a ampliação do capital,
voltando-se ao consumo e ao individualismo. Deste modo, há uma pressão para que as
identidades dos sujeitos se (re)constituam a partir dos princípios capitalistas. Por haver essa
tendência que faz com que os modos de vida sejam guiados por determinada lógica, as saúdes
dos sujeitos podem ser, direta ou indiretamente, afetadas, podendo ocasionar formas de
sofrimento.
Tendo em conta esta linha de raciocínio, enfatiza-se que nos contextos laborais há uma
ambiguidade entre saúde e o sofrimento. Ou seja, estes dois aspectos encontram-se
interligados, levando em consideração que a ideia de saúde não é a extinção das formas de
sofrimento, mas a reformulação dessas formas para que elas façam sentido no contexto em
que um indivíduo está inserido (DEJOURS, 1999).
O campo da Psicodinâmica do Trabalho articula a ideia de que formas de sofrimento
sempre encontram-se presentes no processo de trabalhar, todavia nem sempre estão ligados
aos aspectos negativos, possuindo tanta importância no meio laboral quanto ao desejo do
sujeito. Desta forma, Dejours, Abdoucheli e Jayet (2014), compreendem o sofrimento
dividido entre as noções de patogênico e criativo. Neste primeiro considera-se que a
frustração, o medo, o sentimento de impotência são advindos de uma relação entre o sujeito
que trabalha e o trabalho em si.
Já o sofrimento criativo, consiste na transformação do sofrimento através das relações
laborais, buscando-se, a partir delas, formas de obtenção de satisfação (DEJOURS,
ABDIUCHELI e JAYET, 2014). Um exemplo disso é o trabalho executado na rua por
policiais militares, que muitas vezes podem remeter a condições estressantes, mas pode ser
transformado em ações vistas como gratificantes aos olhos dos próprios sujeitos que as
realizam, como a prestação de socorro. Com isto, o sujeito busca constituir um equilíbrio entre
o que faz adoecer e o que faz sentir contentamento. Esta busca pelo equilíbrio foi denominada
por Dejours (1999) de ressonância simbólica.
Como formas de manutenção deste equilíbrio entre o sofrimento criativo e o
sofrimento patogênico, os sujeitos podem fazer uso de mecanismos de defesa. Os mecanismos
de defesa atuam na tentativa de diminuir a percepção do impacto daquilo que causa
sofrimento nas relações de trabalho, o que, consequentemente, pode causar adoecimentos.
“Trata-se de uma inventividade fundamental que autoriza cada operário a adaptar
intuitivamente a organização de seu trabalho às necessidades de seu organismo e às suas
aptidões fisiológicas” (DEJOURS, 1998, p. 38).
Esses mecanismos são realizados pelos trabalhadores, na maioria das vezes, como
formas de se tentar preservar a saúde mental, levando em consideração que às pressões,
ordens, repetições, entre outras ocorrências no trabalho, podem ocasionar formas de
sofrimentos, não apenas em suas relações laborais, mas em seus contextos de vida. Em
contrapartida, esses mecanismos de defesa podem assumir funções opostas ao esperado,
ocorrendo o sentido inverso. Ou seja, podem acabar intensificando o sofrimento patogênico.
É a partir desta perspectiva da Psicodinâmica do Trabalho, que este estudo terá seu
ponto de partida, formando-se assim uma linha de análise. Para tal, três mulheres foram
questionadas sobre “o que é ser uma policial militar?”, e suas respostas serão analisadas a
seguir.

Identidade
Tendo como ponto de partida a noção de identidade, relacionamos aqui como esta se
desenvolve pelos discursos das participantes:

Ser policial é você se preocupar não só com você, mas como obrigação... nós
temos a obrigação de zelar pela sociedade, pela segurança, mas não é só
obrigação, a partir do momento em que você entra na corporação, é como se
tomasse conta de você, você sente a necessidade e a vontade de fazer
(JOANA D’ARC, 2018).

Joana d’Arc vê o desempenho de suas funções não apenas como uma obrigação, mas
sente o desejo de executá-las. Este desejo está atrelado a um sentimento de realização
profissional, configurando-se pelo reconhecimento social ao cumprir suas tarefas, ao sentir-se
capaz de executar seu trabalho com êxito, o que pode proporcionar-lhe satisfação. Assim,
buscando este sentimento de realização, a participante encontra-se constituindo sua identidade
profissional.
Nota-se que a fala ressalta uma ideia de atividades gratificantes, que vem através do
zelo com o outro, com a sociedade. Em seu objetivo, o trabalho da Polícia Militar compreende
o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública (SESP-PR, 2019). Tendo em vista
este aspecto, observa-se que Joana d’Arc associa estes objetivos a uma forma de zelar da
sociedade, sendo esta uma atividade que gera um sentimento de gratificação.
Outro ponto que chamou a atenção no diálogo foi a questão da identificação com o
trabalho mesmo nos momentos em que as funções não estão sendo executadas, a qual aparece
no próximo trecho. Percebe-se que a construção de uma identidade profissional faz parte da
constituição de subjetividade desses sujeitos, não havendo uma separação entre estes aspectos,
pois o sujeito se vê como profissional, assim constrói sua identidade em um contexto social.
Neste sentido, Enriquez (1997) aponta que experiências são relacionadas aos modos de
os sujeitos se identificarem aos contextos sociais. Desta forma, levando em conta as condições
de uma sociedade de consumo e individualismo exacerbado, sujeitos estarão expostos às
formas de vida ligadas a um “controle do pensamento, controle da psique, igualmente, um
controle do corpo”. Impondo adaptações do corpo, (ENRIQUEZ, 1997, p. 24), são tais
adaptações que fazem com que o cotidiano dos sujeitos seja voltado, primordialmente, à
produção de capital.
Ainda levando em consideração a questão da identificação com o trabalho, Joana
d’Arc ressalta:

[...] mesmo depois que se aposenta, é como se você continuasse sendo


policial, você não deixa de ser policial. E você aposentado, eu acredito que
seja diferente, mas você ainda vai realizar quase as mesmas coisas, aquele
dever de segurança, aquela vontade de inibir a criminalidade, vai continuar
em você (JOANA D’ARC, 2018).

Um assunto que nos chama a atenção no trecho acima é a fala sobre a aposentadoria. A
questão do momento de se aposentar também remete à reconstituição da identidade de um
sujeito, visto que o mesmo irá sofrer modificações em sua forma de vida.
Conforme proposto por Dejours (1993), a identidade de um indivíduo é composta a
partir de suas vivências. Esta constituição subjetiva, a qual também compreende as relações de
trabalho, é notada na fala acima. Considerando Joana d’Arc, ressalta-se o estabelecimento de
uma identidade de um sujeito policial mesmo quando se deixa de ser um. Essa identidade se
mantém pelo fato de que foi constituída a partir de vivências que também envolvem
afetividades nos contextos de vida.
Assim como Dejours (1999) cita, a subjetividade é baseada na afetividade. Dessa
maneira, para a participante, sua constituição subjetiva foi voltada ao ser policial, identidade
essa que será mantida mesmo após seu processo de aposentadoria.
Outro conceito que foi identificado através das falas das participantes foi o de
ressonância simbólica. Levando em conta esta concepção, identificamos um exemplo de
ressonância simbólica presente nas falas de Maria Quitéria:

Então, pelo estresse gerado pelo trabalho, às vezes eu fico até sem fazer xixi,
porque não dá tempo [...], aquela pressão que você tem de ter que segurar a
vontade fisiológica, do teu organismo, para terminar aquele negócio que
você acha que não vai dar tempo. E isso acaba com a tua saúde (MARIA
QUITÉRIA, 2018).
Entretanto, a mesma ainda ressalta que:

Então assim, tem muita gente que chega, “Oi, tudo bem? Eu tenho um
parente policial. Nossa, que moça bonita”. Então, quando vem uma criança,
pede para tirar foto com você e fala que tem o sonho de ser policial, você
fala, “Nossa, cara, ganhei meu dia”, é bem legal, assim [...] Mas é bem
gratificante, é gostoso, é legal (MARIA QUITÉRIA, 2018).

A entrevistada comenta que considera a profissão de policial militar como desgastante.


Em contrapartida, a profissão é um motivo de orgulho, transformando-se em uma fonte de
satisfação. O que por ela foi denominado como orgulho, representa-se como a sua visão da
construção social do ser policial, que descreve como uma profissão ligada ao heroísmo,
bravura e gratificação. A tentativa de Maria Quitéria em transformar a profissão que ela vê
como desgastante em algo que lhe traga orgulho, buscando um fator de equilíbrio, pode ser
entendida como uma atuação de ressonância simbólica.
A terceira participante, Jovita Feitosa, abrange a questão do orgulho pela profissão,
entretanto, segundo ela, a Polícia Militar é tida como uma instituição em que há mais
visibilidade por parte dos homens que estão atuando. Por isso, ela enxerga a instituição como
uma fonte de orgulho às mulheres que nela estão inseridas, pois estão se destacando e
ganhando espaço. Ela expressa: “Eu sempre admirei muito essa profissão, acho ela muito
interessante, ainda mais por ser mulher e ser uma policial militar” (JOVITA FEITOSA, 2019).
Reconhecimento social
Além das falas que condizem com a ideia do reconhecimento social sobre ser uma
policial militar, as quais foram analisadas no tópico acima a partir de um discurso que envolve
uma concepção de orgulho pela profissão, também chamou-nos a atenção falas que, ao mesmo
tempo, representam certa ambiguidade a isto, referindo-se que a profissão também está ligada
ao que foi denominado pelas entrevistadas como preconceito.

Experiência negativa? Eu acho que seja o preconceito, porque muitas


pessoas tratam muito mal a Polícia Militar, os policiais, às vezes ficam até
mais a favor do criminoso do que do policial. [...] é uma profissão como as
outras, que merece respeito, e tem muita gente que não gosta da Polícia, não
gosta da presença dela (JOANA D’ARC, 2018).

Joana d’Arc, ao mesmo tempo em que descreve suas vivências na Polícia Militar a
partir da necessidade de proteção e zelo à sociedade, também compreende que esta mesma
sociedade, muitas vezes, acaba por desrespeitar policiais militares, o que, para ela, pode ser
um motivo de sofrimento, como sua fala acima destaca.
Ainda considerando esta ideia do preconceito com a profissão de policiais militares,
Maria Quitéria também comenta:
“[...] na nossa sociedade hoje existem, eu acho, 50\50, têm muitas pessoas
que tem aversão à Polícia Militar, infelizmente [...] também têm pessoas que
nem olham na sua cara, que passa, que xinga, que... nariz empinado, mesmo
você falando bom dia” (MARIA QUITÉRIA, 2018).

Neste sentido, é possível observar que essa questão é um ponto em comum entre as
participantes. A queixa em relação ao preconceito na profissão, pode ser tida enquanto uma
vivência causadora do sofrimento patogênico, visto que é um fator que afeta negativamente as
experiências laborais dessas mulheres. Conforme já citado, Dejours (1993) enfatiza que a
constituição subjetiva de um indivíduo é condizente às suas experiências. Ao relatarem o fato
de que as relações de trabalho na polícia militar são perpassadas por questões de preconceito,
as entrevistadas estão ressaltando vivências que causam-lhes desconforto, sendo, portanto,
relatos sobre o sofrimento patogênico.
Além do preconceito relatado para com a profissão de policial militar, uma ideia de
falta de reconhecimento social que esteve presente na fala das três participantes, condiz com o
preconceito em relação às mulheres:

Chegou uma mulher, as vezes a pessoa não respeita tanto, sabe? Acha que a
mulher não vai saber se sobressair em determinada situação, ou fazer a coisa
certa ali. E o parceiro masculino sente preconceito pela falta de força, talvez.
“Ah, vou trabalhar com uma mulher, será que ela vai saber reagir no
momento certo? Ou será que ela vai ter força se precisar algemar uma
pessoa?” (MARIA QUETÉRIA, 2018).

Uma concepção semelhante a esta é destacada em um fragmento da fala de Jovita


Feitosa: “[...] ainda mais por existir um certo preconceito de mulheres estarem na Polícia, não
por parte da corporação, mas até mesmo da sociedade” (JOVITA FEITOSA, 2019).
Outro ponto em comum entre os três discursos é a questão da Polícia Militar como um
local onde o machismo é visível. Para ilustrar tal afirmação, Maria Quitéria comenta:

[...] a gente tinha uma tenente mulher, que auxiliava, falava bastante sobre
vestimenta, sobre o fardamento num tamanho não muito apertado [...]
sempre era abordado esse assunto, “Ah, porque vocês vão ver que lá na rua
vocês vão ter um pouco de preconceito, porque infelizmente a nossa
sociedade é machista e tal, então tem que saber lidar com a situação [...]
(MARIA QUITÉRIA, 2018).

Já atendendo às falas de Joana d’Arc:

[...] às vezes, as pessoas olham uma mulher, elas acham que ela não vai ser
capaz de desempenhar a atividade ali, por ser mulher, dependendo da
situação. [...]Então eu acredito que as pessoas acham sim que as mulheres
não vão desempenhar tão bem as funções quanto os homens (JOANA
D’ARC, 2018).
Sobre esta perspectiva, Schactae (2016, p. 20) ilustra que as instituições militares
“reproduzem um ideal de masculinidade que é vinculado a concepção de honra identificadora
do militar e dessas instituições”. Por este ponto de vista, percebe-se no discurso das
participantes uma queixa em relação às figuras masculinas como modelos predominantes na
instituição.
De acordo com Connel (1995), existem múltiplas formas de masculinidade, sendo,
portanto, masculinidades, que se articulam de acordo com cada local e tempo histórico. Tais
masculinidades sempre estarão intervindo na produção de uma masculinidade hegemônica,
sendo esta relacionada a uma concepção de forma ideal, tendo, consequentemente, mais
visibilidade. Neste sentido há a luta pela hegemonia, “grupos de homens lutam por domínio
através da definição social da masculinidade” (CONNEL, 1995, p. 191).
Tendo em mente o contexto em que o presente estudo se encontra, identifica-se este
ideal de masculinidade, assim como citado por Schactae (2016), como produtor da honra, em
que os homens são heróis, viris, possuidores de poder.
Em contrapartida, destaca-se que “o ideal de masculinidade é o norteador da
construção da identidade institucional, e a presença do sexo feminino rompe com a ordem
estabelecida pela tradição” (SCHACTAE, 2016, p. 20). Ou seja, a instituição que antes
tradicionalmente era voltada ao masculino, mesmo que com a continuação da dominância de
um ideal de uma masculinidade hegemônica, conta com a participação de mulheres em seu
interior, modificando-se e reconstituindo-se constantemente.
É a partir desta lógica, que destacamos este trabalho como compondo-se através do
campo dos estudos de gênero. Como citado no início do texto, a caracterização de gênero
indica uma organização social entre os sexos (SCOTT, 1995). Assim, nos atentamos aos fatos
relatados pelas participantes, identificando que possa haver uma diferenciação na forma em
que os sexos organizam-se na instituição Polícia Militar, dando ênfase a um ideal de
masculinidade. Tal fato foi percebido a partir das concepções que por elas foram
caracterizadas como formas de preconceito.

Algumas considerações
O trabalho apresentado faz parte de uma dissertação de mestrado que está em
andamento. Aqui, desenvolve-se uma linha de análise sobre os tópicos denominados
“Identidade” e “Reconhecimento social”, levando em consideração concepções condizentes
ao campo da Psicodinâmica do Trabalho. Além disso, o trabalho também tratou-se de uma
produção sobre os estudos de gênero, visto que abordou perspectivas sobre como a questão de
gênero é organizada dentro da Polícia Militar, tendo como ponto de partida trechos de
entrevistas.
A partir da análise aqui realizada, foi possível identificar uma dualidade das mulheres
participantes em suas relações de trabalho. Atendendo às vivências subjetivas relatadas nos
discursos, há dois pontos em comum que se tornam muito presente em suas experiências,
sendo um deles o que foi denominado pelas participantes por “orgulho”, tido como a
gratificação, o sentimento de auxílio à sociedade e utilidade. Este ponto encontra-se ligado ao
conceito de identidade (DEJOURS, 1993), visto que está atrelado às formas das entrevistadas
reconhecerem-se em seus contextos de vida, sobretudo em seus contextos laborais.
Em contrapartida, o outro ponto foi denominado por elas como “preconceito”, descrito
como o próprio trabalho de policiais militares e a hostilidade, por parte da sociedade e de
alguns membros da instituição Polícia Militar, em relação às mulheres policias. Este ponto
pode ser identificado como o que foi descrito por Dejours (1999) como sofrimento
patogênico.
Dejours (1999) elabora a noção de que as mais variadas formas de sofrimento podem
estar interligadas, perpassando as vivências de um mesmo sujeito. Ou seja, os sofrimentos
criativo e patogênico podem estar atrelados, havendo uma ambiguidade entre ambos. Tal fato
foi abordado na linha de análise aqui estabelecida, visto que as duas formas de sofrimento
foram ilustradas nos discursos levados em consideração.
Sobre os dados aqui apresentados, cabe ressaltar que puderam ser identificados vários
aspectos da constituição subjetiva de mulheres policiais, compreendendo, dessa forma, que a
identidade das entrevistadas condiz com suas vivências laborais.
Estudos como este possuem relevância no que diz respeito a questão da visibilidade do
trabalho de policiais militares, nesse caso, dando importância às mulheres policiais. Neste
sentido, há a necessidade de aprofundamento de outras pesquisas para que demais fatores que
foram identificados nas falas das participantes possam ser abordados.

Referências
ASSOCIAÇÃO DOS FUNCIONÁRIOS DO BANCO DO NORDESTE DO BRASIL –
AFBNB. A luta da mulher: conheça a jovem Jovita Feitosa, 03/Mar./2018. Disponível em:
http://www.afbnb.com.br/a-luta-da-mulher-conheca-a-jovem-cearense-jovita-feitosa. Acesso
em: 30/Mar./2019.
BEZERRA, J. Joana d’Arc. Toda Matéria: conteúdos escolares, 23/Fev./2018. Disponível
em: https://www.todamateria.com.br/joana-d-arc/. Acesso em: 30/Mar./2019.
CONNEL, R. W. Políticas da masculinidade. Educação e Realidade. v. 20, n. 2, p. 185-206,
1995. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71725/40671.
Acesso em 02/Abr./2019.
DEJOURS, C; ABDOUCHELI, E; JAYET, C. Psicodinâmica do Trabalho: contribuições da
Escola Dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Editora Atlas,
2014.
DEJOURS, C. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
1999.
_________. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho São Paulo: Cortez,
1998.
_________. Por um trabalho, fator de equilíbrio. Revista de Administração de Empresas. v.
33, n. 3, p. 98-104, 1993. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rae/v33n3/a09v33n3.
Acesso em: 01/Abr./2019.
_________. Subjetividade, Trabalho e Ação. Revista Produção. v. 14, n. 3, p. 027-034, 2004.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
65132004000300004. Acesso em 02/Abr./2019.
ENRIQUEZ, E. O indivíduo preso na armadilha da estrutura estratégica. RAE – Eletrônica.
v.37, n.1, p. 18-29, 1997. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rae/v37n1/a03v37n1.
Acesso em: 09/Mar./2019.
MINISTÉRIO DA DEFESA – Exército Brasileiro. Cadete Maria Quitéria – quadro
complementar de oficiais. Disponível em: http://www.eb.mil.br/patronos/-
/asset_publisher/e1fxWhhfx3Ut/content/maria-quiteria-1?inheritRedirect=false. Acesso em
30/Mar./2019.
SCHACTAE, A. M. “A gloriosa Polícia Militar do Paraná”: masculinidade e identidade
institucional (século XX). In: MOREIRA, R; SCHACTAE, A. M. (Org.). Gênero e
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SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. v. 16, n. 2,
p. 05-22, 1995. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71721.
Acesso em: 01/Abr./2019.
SECRETARIA DA SEGURANÇA PÚBLICA E ADMINITRAÇÃO PENITENCIÁRIA –
SESP. Institucional. Disponível em
http://www.pmpr.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=3. Acesso em:
01/Abr./2019
AS “PANTERAS ENTRARAM EM CENA”: A HISTÓRIA SOBRE O INGRESSO DE
MULHERES POLICIAIS MILITARES, NOS JORNAIS DO PARÁ, A PARTIR DA
DÉCADA DE 1980.
Jesiane Calderaro Costa Vale

Doutora em História Social.


(Integrante do grupo de pesquisa Militares, Política e Fronteiras na Amazônia do
Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia –PPHIST/UFPA).

Palavras-chave: Mulheres. Jornais. Polícia Militar.

No estado do Pará, a admissão das primeiras mulheres na Polícia Militar, data


precisamente de 1982, ano do ingresso do primeiro grupo de mulheres na instituição,
denominado de “Pelotão Feminino”53. Naquela ocasião, era apresentado na televisão
brasileira, um seriado no qual, três belas policiais se formaram com honras na academia
de polícia e passaram a integrar a Agência de Detetives Townsend. As tais policiais que
receberam o codinome de “panteras” se mostravam bem preparadas tecnicamente,
corajosas e destemidas no enfrentamento dos diversificados crimes e investigações,
além do que se destacavam pelo visual feminino impecável.

Analogamente, anos mais tarde, um dos jornais54 de grande circulação do Pará,


relembra que o referido codinome - ‘panteras’, foi também atribuído às primeiras
policiais militares admitidas na corporação no estado:
[...] Sem dúvida que esse acontecimento da criação da Polícia Militar Feminina,
movimentou todos os segmentos da sociedade paraense, um caso inédito em
nossa querida Belém. Pois a mulher paraense quebrava um tabu de 162 anos
desde a implantação da Força Estadual, ela passava a repartir com os homens,
os direitos, as responsabilidades, os deveres, os sucessos, o cumprimento
rigoroso das normas regulamentares, tudo isso, na expectativa de um trabalho
árduo e gigantesco em função do bem-estar da comunidade paraense, hoje as
jovens milicianas ou ‘’Panteras’’ como lhes chamavam os órgãos de
comunicação da cidade, a quando da instalação, estão cobrindo ao lado dos seus
colegas homens todos os quadrantes do território paraense.(grifo nosso)

Neste artigo55, aproveito a alcunha de ‘panteras’ paraenses para colocá-las em


cena, parafraseando a historiadora Maria Izilda Matos (2013), quando se lança à análise

53
A admissão de mulheres policiais foi instituída por meio do Decreto Estadual nº 2.030/1981, pelo então
governador Alacid da Silva Nunes, em 15/12/1981. Entretanto, o ingresso de policiais do pelotão feminino
ocorreu somente em 1º de fevereiro de 1982.
54
Jornal Diário do Pará, de 26 de janeiro de 1992, p. B-7
de que “mesmo sob o contexto desfavorável do autoritarismo dos governos militares
(1964-84), as mulheres ‘entraram em cena’ e se tornaram visíveis ocupando espaços
sociais e políticos”; se descobriram como sujeitos ativos, de modo que as imagens de
passividade, confinamento do lar, ociosidade, deram lugar à múltiplas estratégias e
resistências criadas pelas mulheres para o enfrentamento no cotidiano, inclusive em
âmbito dos quartéis. (MATOS, 2013, p.6)

O mundo dos quartéis, segundo Jaqueline Muniz (1999), era idealizado como
“terra de machos” e a atuação policial militar nas ruas, estava registrada sob o signo da
bravura, da frieza e do heroísmo, “um tipo de realidade que não se deixa comover pelas
virtudes culturais atribuídas ao signo feminino”.

Nesse espaço, as cobranças estariam sempre a flor da pele, no sentido de que se a


mulher quisesse ser reconhecida como uma profissional qualificada, precisaria conviver
e superar as adversidades que se interpunham de modo sutil e velado, porque as
atividades que eram destinadas às policiais mulheres, eram “construções discursivas,
autenticamente definidoras de identidade de gênero’. (SCHACTAE,2016, p.93).

Por essa visão estereotipada e conservadora, em que o fazer feminino era sempre
posto à prova, disseminava-se a ideia de que a mulher seria inadequada para as tarefas
de policiamento, estabelecendo para ela serviços burocráticos, em âmbito interno, que
não os da atividade de rua propriamente, e deveria ser desenvolvido para um público
considerado diferenciado, no que se referia a atenção do policial masculino:
“menores”56 delinquentes ou abandonados, senhoras gestantes, parturientes, pessoas
idosas, indigentes, e do sexo feminino em geral.

Destarte, as atividades primordiais para o emprego da policial feminina, não se


destinava ao enfrentamento de crime, apontavam sobretudo para a assistência junto a
crianças e adolescentes, mulheres e idosos; policiamento em terminais rodoviários,
portos e aeroportos; nas revistas de mulheres detentas e serviços internos de secretaria,

55
Extraído em parte de um capítulo de minha tese de doutorado, intitulada: DA ACADEMIA DE POLÍCIA
MILITAR AO IESP: a Formação de oficiais da Polícia Militar do Pará (1988-2014), submetida ao Programa de
Pós-graduação em História Social da Amazônia, da Universidade Federal do Pará, 2018.
56
O termo “menor delinquente” ou “menor abandonado” ainda era utilizado no regulamento, posteriormente, com o
advento do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1992, foi considerado pejorativo e de uso inadequado pela
sociedade brasileira, passando a criança e o adolescente a serem considerados como “sujeitos de direitos” e, caso
pratiquem algum ato infracional, sejam tratados como “sujeitos em conflito com a lei” ou por “autor de ato
infracional”.
telefonia, arquivo e recepção. Essa relação das atividades previstas57 para as mulheres
policiais, via de regra, era associada à natureza feminina, reafirmando estereótipos de
gênero e a vocação assistencialista, como se pode constatar na matéria jornalística
abaixo:

Por falar em Polícia Feminina, esta tradicional subunidade da Força Estadual,


[...] que viabilizou a participação da mulher nos quadros da PMPA, vai
completar seis anos de profícua existência, sobretudo na área especifica de
suas atividades profissionais, que tem por finalidade precípua, o trabalho
com menores delinquentes ou abandonados, mulheres envolvidas em
ilícitos penais, anciões, além de certo tipo de relação com determinado
público, onde a mulher é evidência, dada a sua qualidade e preparo técnico
profissional para tal58.(grifos nossos)

Mediante à carreira hierarquizada, pela ausência de um debate sobre questões de


gênero nos quartéis, a competitividade via dominação masculina no âmbito interno da
caserna, direcionou a mulher para a realização de funções administrativas/função meio
ou dentro dos ranchos (cozinha), dando guarida à lógica da figura da mulher como
gentil, atenciosa, afetiva, sensível ou de doméstica, dona de casa e sexo frágil. Tal
situação nos possibilita examinar à luz das acepções de Pierre Bourdieu (2007):

[...] as próprias mudanças da condição feminina obedecem sempre a lógica do


modelo tradicional entre o masculino e o feminino. Os homens continuam a
dominar o espaço público e a área de poder (sobre a produção), ao passo que as
mulheres ficam destinadas (predominantemente) ao espaço privado (doméstico,
lugar de reprodução). (BOURDIEU, 2007, p.112)

Assim, constatava-se a princípio, que na corporação seguia-se a divisão


tradicional do trabalho, na qual o papel das mulheres se situava no prolongamento das
funções domésticas: como ensino, cuidados, serviços, e não exercendo autoridade sobre
o homem. Portanto, desempenhava a condição de subordinação e de auxiliar, sendo
designada ao âmbito interno, burocrático ou ao cuidado do público específico.

Máurea Leite (2013), em sua dissertação de mestrado sobre ‘as trajetórias das
primeiras mulheres policiais no estado do Pará’, analisa a existência de preconceitos
vivenciados pelas policiais de sua pesquisa, devido à sua condição de mulher, à medida
que as relegavam à função administrativa. Segundo a pesquisadora, para essas primeiras
policiais “[...] estar na área administrativa, era estar na obscuridade, mesmo quando se

57
Regulamento da Companhia de Polícia Militar Feminina (RCPMF), assinado pelo então comandante geral da
PMPA, coronel Artagnan Barbosa de Amorim Sobrinho, com cópia entregue a cada uma integrante do “Pelotão
Feminino”, em 25/03/1982. p. 2. (Cópia cedida pela Tenente Neuza Carvalho, integrante do primeiro pelotão da
PMPA, hoje na reserva).
58
Jornal Diário do Pará, de 17 jan. 1988, p. B-7.
exercia função de comando, almoxarife, chefe da Reserva de Armamento,
aprovisionadora [...] áreas imprescindíveis na execução do policiamento”. (LEITE,
2013, p.48-49)

Neste sentido, Leite analisa o preconceito, por considerar que nessa instituição
atribuía-se maior valor simbólico profissional a quem dedicava a sua atuação no campo
operacional, na execução da atividade-fim.

Por outro lado, eram constatadas as dificuldades vivenciadas pelos policiais


militares masculinos, no tocante às diversificadas demandas sociais, que envolviam
crianças, mulheres, idosos, grávidas, etc., público esse para o qual, os policiais
combatentes (masculinos), não se reconheciam devidamente habilitados, para o
atendimento, uma vez que a principal atuação policial militar fundamentava-se,
preponderantemente, em uma atividade ostensiva e repressiva, ao passo que à policial
feminino, era voltado à assistência e à proteção. Ressalta-se, contudo que, quando se
trata do tema assistência ou cuidado59, muito em voga nas políticas públicas da
assistência, historicamente nos remete à questão do gênero feminino, como
naturalmente inerente ao habitus feminino60.

O modelo de execução dos cuidados se configurou histórica e tradicionalmente


como papel da mulher, razão que influenciou sua maior permanência no espaço
domiciliar, sem reconhecimento nem valorização do serviço doméstico.

À medida que as mulheres foram entrando no mercado de trabalho mais


intensamente, somando-se às reivindicações dos movimentos feministas, pós-década de
1960, a concepção sobre o papel e atribuições femininas foram questionados e
repensados quanto à distribuição dos cuidados realizados por elas. Mais tarde, com o
surgimento do care, os cuidados deixam de ser entendidos como uma profissão
naturalmente feminina.

O discurso social mais amplo sobre a mulher como ‘sexo frágil’, ‘delicada’ e
‘sensível’, era extremamente engendrado que reverberava de modo igual à mulher
policial militar; mostrando-se fortemente arraigado na cultura organizacional. Tanto,
59
A questão do Cuidado ou a emergência do Care – palavra de origem inglesa que designa cuidado, que se
consagrou ao tornar-se uma ocupação ou atividade profissional, que passou a ser remunerada, diferenciando-se
do trabalho doméstico, que é gratuito. Ver: HIRATA, Helena; GUIMARÃES, Nadya. Cuidado e cuidadoras: o
trabalho de care no Brasil, França e Japão. Revista de Sociologia e Antropologia, v.1, n.1, 2011. p.156.
60
O conceito de Habitus revela a força da estrutura social presente nas ações individuais e a tendência do sujeito
em reproduzi-las, por terem se tornado práticas sociais incorporadas. Ver: BOURDIEU, Pierre. O Poder
Simbólico. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
que no ano em que a Polícia Feminina do Pará completava dez anos de fundação, depois
de centenas de atuações policiais diversificadas, o articulista da coluna ‘Notícias da
Polícia Militar ’, que escrevia em nome da 5ª seção do Estado Maior da corporação,
enalteceu as atividades desenvolvidas pela unidade policial, ainda sob a mesma lente
conservadora de anos atrás, acerca da delicadeza feminina, destacando a presença
“graciosa e altiva” das policiais, “as jovens milicianas ou Panteras”, “a graça e a
beleza da policial militar feminina”, conduta que agradava a sociedade paraense.

Segue-se a nota jornalística:

POLÍCIA FEMININA COMEMORA 10 ANOS DE CRIAÇÃO

A Polícia Feminina surgiu no Comando do Coronel EB/QEMA Artagnan de


Amorim Sobrinho, que na época era o Comandante Geral da Força. Sua
missão específica e operacional é fazer o policiamento nos terminais
rodoviários, aeroportos, PM-Boxes, área comercial, dentro das normas
estabelecidas pelo Comando de Policiamento da Capital, protegendo,
orientando e informando a população e, em especial as pessoas do sexo
feminino, menores e anciões, colaborando ainda nos demais órgãos que
constituem a Polícia Militar, na manutenção da ordem pública, defesa interna,
defesa civil e territorial, com total aceitação da nossa sociedade, que cada dia
que passa mais exige a presença graciosa e altiva das policiais femininas61.
(grifo nosso)

Ainda nesse campo, a ideia difundida era de que a presença feminina poderia
possibilitar maior cuidado policial com o ser humano, mais disciplina, menos corrupção,
mais sensibilidade, simpatia e capacidade de escuta. Novamente atributos que
reafirmavam estereótipos e definiam o território doméstico para a mulher policial
militar.

Celina D’Araújo (2004) refere que a relação da mulher com a vida militar esteve
por muito tempo associada a seu papel de esposa, e que, com a emergência de um
conjunto de novos direitos, “a partir de 1980, entre eles, o de a mulher poder escolher
profissões tradicionalmente tidas como masculinas, abriram-se as portas da caserna para
as mulheres” (D’ARAUJO, 2004. p. 442).

Durante vários séculos, o sujeito da história foi representado pela categoria


‘homem’, e a mulher estava caracterizada pela invisibilidade. Segundo Rachel Soihet e
Joana Pedro (2007), isso ocorria porque “acreditava-se que ao falar dos homens, as
mulheres estariam sendo igualmente comtempladas, o que não correspondia à realidade”
(SOIHET & PEDRO, 2007. p. 284).
61
Jornal Diário do Pará, de 26 de janeiro de 1992, p. B-7.
Posteriormente, como reflexo das revisões e mudanças ocorridas na
historiografia, algumas temáticas antes tangenciadas, como: loucos, operários, escravos,
mulheres etc., passaram a ser inseridas e abordadas, como discorre Michelle Perrot
(2017), em seus escritos ‘Os excluídos da história’, na França do século XIX.

No século XX, o crescimento populacional massivo, sem precedentes na história


mundial, gerou implicações enormes na vida de homens e mulheres. O conhecimento
dos padrões de gênero, de outras sociedades, outrora distantes, com aumento do
comércio e o fluxo de viagens, o acesso e a influência das novas mídias, como o cinema
e a televisão, introduziram novos elementos relacionados aos papéis masculino e
feminino, buscando modificar as desigualdades e tentando subverter as estruturas do
patriarcado.

Essa situação produzia uma notória contradição: Para o público interno, a


inserção de mulheres na instituição PM era estranha, desconfortável e desafiadora,
contudo, para o público externo, a Corporação exibia-se, fazendo questão de apresentar
o pelotão feminino como uma grande conquista e modernização institucional.

A imagem social do pelotão feminino nos diversos estados brasileiros, acabava


por repercutir de modo favorável, e a população era convencida positivamente, daquela
‘proeza’. Entretanto era notória a contradição.

Nesse sentido, a historiadora Rosemeri Moreira (2016) quando analisa o


contexto de inclusão de mulheres na Policia Militar do Paraná, a segunda corporação no
contexto da abertura política, discorre: “ironicamente o contexto de inclusão [...]
vincula-se de forma simultânea e paradoxal à ditadura militar e ao movimento feminista,
uma vez que se apresenta como dois lados de moedas diferentes: a conservação e a
transformação” (MOREIRA, 2016, p.68)

De modo assemelhado, Soares e Musumeci (2005) analisam que, aparentemente,


a presença das mulheres policiais objetivava positivar a imagem pública da Instituição,
fortemente associada à ditadura:

Observa-se que a ‘permissão’ para a entrada de mulheres nas PMs brasileiras


data do período da ditadura militar e se “associa à necessidade de cobrir
certos campos de atuação em que o policiamento masculino
(fundamentalmente repressivo) estaria encontrando ‘acentuadas dificuldades’.
Entretanto, a efetiva incorporação das PMFems, na absoluta maioria dos
estados, ocorre sobretudo a partir do início dos anos 1980, já no contexto da
abertura política e, em vários casos, após a redemocratização do país – o que
parece acrescentar-lhes outros objetivos, como o de modernizar as PMs e
‘humanizar’ sua imagem social, fortemente marcada pelo envolvimento
anterior com a ditadura. (grifos nosso). (SOARES, & MUSUMECI. 2005,
p.29.)

Sobre a inclusão de mulheres nas instituições militares, a partir do início dos


anos 1980, Rosemeri Moreira (2008) analisa a Policia Militar no Paraná, e assegura:

[...] oficializado através da produção legal, um discurso que redireciona o


sujeito feminino tradicionalmente excluído do militarismo, da capacidade
para a violência institucionalizada e da ação na esfera pública [...] em um
estado militarizado e perpassado por pressões de grupos de grupos
heteredoxos ao campo político, e que inicia a construção material e simbólica
da categoria mulher policial militar. Mulheres inclusas na corporação no
momento da denominada ‘distensão militar’ em que o executivo federal
precisa conter os grupos de pressão da sociedade civil para controlar e
direcionar a abertura política; desmantelar os mecanismos repressores;
controlar seus antigos ocupantes e, ainda restituir/mantes a imagem protetora
das instituições disciplinares, agora questionadas publicamente por diversos
segmentos sociais. (MOREIRA, 2008)

Após a consolidação da Companhia Feminina, e devido às diversificadas


demandas que surgiram, abriram-se novas oportunidades à ampliação na liderança da
mulher policial militar.

Então, em 1988 retornaram ao Pará, outras três mulheres, na condição de


aspirantes a oficiais, as quais tinham sido enviadas à Academia de Polícia Militar,
coirmã de Minas Gerais para realizar o Curso de Formação de Oficiais: Maria do Carmo
Silva de Souza, Telma Susy Moreira da Costa e Ruth Léa Costa Guimarães. Sobre estas,
o Jornal Diário do Pará divulgava a seguinte informação:

“PRIMEIRAS ASPIRANTES A OFICIAL PM FEMININAS” 62


[...] O Coronel Ailton Carvalho Guimarães, dentro da delegação de poderes que
lhe faculta a Lei Estadual nº 5.251/85, assinou portarias declarando Aspirantes
a Oficial PM [...] que concluíram com aproveitamento o Curso de Formação de
Oficiais, na Academia de Minas Gerais, pelo critério de merecimento: Maria do
Carmo Silva de Souza (1ª), Telma Susy Moreira da Costa e Ruth Léa Costa
Guimarães. As jovens oficiais, as primeiras em toda a secular história da briosa
Polícia Militar do Pará, concluíram com invulgar brilhantismo, o curso, em uma
das mais conceituadas Academias de Polícia Militar do Brasil, como é o caso
de Minas Gerais [...] deverão, a partir do dia 30, estar prontas para o expediente
na Companhia de Polícia Feminina.

Para exercer a condição de comandamento e ampliar o território de atuação, era


necessário que as mulheres oficiais estivessem preparadas em condições profissionais
equivalentes aos homens, e a Academia dava essa possibilidade, devido às instruções,

62
Jornal Diário do Pará, “Notícias da PM” de 30 de outubro de 1988, B-7.
ao treinamento, à disciplina requerida, e tudo mais que estava posto na rotina
acadêmica, tendo por finalidade a preparação da liderança, das futuras comandantes.

Com a chegada das três novas oficiais Maria do Carmo, Susy e Léa, no Pará, a
proposta era promover modificações, no tocante aos tipos de serviços e superar as
dificuldades na condição desigual em que a policial se encontrava, a despeito de ser uma
Instituição cujo lócus estava demarcado, em suas ambiguidades, pela lógica de
subordinação da mulher, com impossibilidade de realizar funções de comando sob a
justificativa da ‘falta’ de força física ou da sua “fragilidade”, visando ratificar a presença da
mulher policial militar em suas competências.

As oficiais, desde então, foram se destacando em tarefas que eram


eminentemente masculinas, realizando importantes diálogos e enfrentamentos com
outros oficiais sobre as proibições e repressões vivenciadas por outras policiais, o que
possibilitou análises e promoveu transformações na estrutura interna da Corporação, que
através de seus códigos e normatizações, invadia todos os aspectos da vida da pessoa,
inclusive questões da sua intimidade63, determinando a escolha das amizades,
relacionamentos matrimoniais, horários e locais de passeios etc.

Alguns atos normativos e transgressões previstas no regulamento da


Companhia Feminina, conferidos às policiais femininas, eram reconhecidamente
autoritários e machistas, por exemplo: Se a policial militar desejasse contrair
matrimonio, teria que solicitar autorização ao comandante-geral, com antecedência de
sessenta dias do evento, para apreciação superior; a policial não poderia optar por
viver em regime de amasiamento, porque se configurava uma transgressão disciplinar,
bem como era proibido manter relacionamento íntimo não recomendável ou
socialmente reprovável com superiores, pares ou subordinados; caso a policial
insistisse no relacionamento, uma das partes envolvidas deveria pedir desligamento
das fileiras da instituição; Se a policial militar feminina solteira engravidasse, deveria
solicitar seu licenciamento da corporação, se não o fizesse, seria excluída ex-officio.

Nesse sentido, não era difícil constatar que, em conformidade com o


Regulamento da Companhia Feminina, o relacionamento no ambiente de trabalho
policial militar era permeado de rigidez, censura, conflitos, incongruências, violência
63
No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa encontram-se vários atributos e sentidos sobre a intimidade,
relacionados ao âmago da pessoa, o que se passa nos recônditos da mente, do espírito, e que tratam de assuntos
extremamente pessoais, confidenciais, particulares ou secretos.
simbólica e baseado sobretudo, em uma moral sexual requerida especificamente da
mulher. Observava-se que a busca em humanizar e melhorar a imagem social da Polícia
para o público externo, defrontava-se contraditoriamente, com a imperiosa necessidade de
humanizar primeiramente o tratamento de seu efetivo/interno, à medida que estavam postas
à mesa, questões de natureza tão incongruentes e complexas em âmbito interno aos quartéis.

Em geral, as policiais femininas que, notadamente, buscavam se firmar como


profissionais de/na farda, romperam o silêncio, questionaram as transgressões, apontaram
incongruências, resistiram e passaram a lutar, à sua maneira, não somente para consolidar a
presença de mulheres praças e oficiais, mas, sobretudo, para obter reconhecimento dos seus
direitos, garantidos na Constituição Federal de 1988.

No decorrer dos anos, o trabalho policial tradicionalmente visto como uma tarefa
eminentemente masculina, teve por meio da inserção de mulheres nos quartéis a introdução
de uma outra dinâmica nas relações interpessoais, intra e intercírculos, provocando
reflexões, adaptações e mudanças, inclusive nas diretrizes e regulamentos institucionais e no
âmbito da caserna, não havendo na atualidade, na Policia Militar do Pará, nenhum aspecto,
cargo, posto, unidade operacional ou função, que haja restrição para a participação da
mulher policial militar.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

______. O poder simbólico. Tradução Fernando Thomaz. 14ª edição. Rio de Janeiro-
RJ: Bertrand Brasil, 2010.

D’ARAÚJO, Maria Celina. Mulheres, homossexuais e Forças Armadas. In:


CASTRO, Celso et al. Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 2004.

HIRATA, Helena; GUIMARÃES, Nadya. Cuidado e cuidadoras: o trabalho de


care no Brasil, França e Japão. Revista de Sociologia e Antropologia, v.1, n.1, 2011.

LEITE, Máurea Mendes. Origens sociais e trajetórias profissionais das primeiras


mulheres policiais pertencentes ao círculo de oficiais da Polícia Militar do Pará.
Dissertação (Mestrado em Defesa Social e Mediação de Conflitos) – Universidade do
Estado do Pará, Belém, 2013.

MATOS, Maria Izilda Santos de. História das mulheres e das relações de gênero:
campo historiográfico trajetória e perspectivas. Mandrágora, v.19. n. 19, 2013.
MOREIRA, Rosemeri. “Entre o escudo de Minerva e o manto de Penélope”: a
inclusão de mulheres na Policia Militar do Estado do Paraná (1975-1981). Dissertação
(Mestrado em História). Universidade de Maringá, 2007.

______. Entre o mito e a modernidade: a entrada de mulheres na Policia Militar do


Paraná. Ed. UNICENTRO. Guarapuava, 2016

MUNIZ, Jacqueline. Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser. Cultura e cotidiano
da polícia militar do Estado do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciência Política) –
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.

PARÁ. Decreto nº 3.181/84, de 24 de janeiro de 1984. Regulamento da Companhia de


Polícia Feminina da PMPA.

PARÁ. Decreto nº 2.030, de 15 de dezembro de 1981. Criação do Pelotão de Polícia


Feminino no Pará.

PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 2017.

PMPA, Regulamento da Companhia de Polícia Militar Feminina. 25/03/1982. p. 2.

SCHACTAE, Andrea Mazurok. Farda e Batom, Arma e Saia: a construção da Policia


Militar Feminina no Paraná (1977-2000). Tese de Doutorado. Curso de Pós-graduação
em História UFPR. 2011.

______. A arma e a saia: Definindo a atividade da policial feminina e reconstituindo


diferenças de gênero. O público e o privado. N. 28. Julho/dezembro. 2016.

SOARES, Barbara Musumeci; MUSUMECI, Leonarda. Mulheres policiais: presença


feminina na Polícia Militar do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Coleção Segurança e
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______. Polícia e gênero: participação e perfil das polícias femininas nas PMS
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SOIHET, Rachel; PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da história das


mulheres e das relações de gênero. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 27, n.
54, 2007.

VALE, Jesiane Calderaro Costa. Da Academia de Polícia Militar ao IESP: a


Formação de oficiais da Polícia Militar do Pará (1988-2014). Tese (Doutorado em
História Social da Amazônia) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2018.

.
VIDA A BORDO: COSTUMES E HIERARQUIA NA CANHONEIRA GUARANY –
AMAZÔNIA (1885-1900)

Matheus Gomes de Lima (História, UFPA)


Orientador: William G. Farias

Palavras-chave: Marinha do Brasil; Amazônia; Alimentação; Canhoneira Guarany.

I. INTRODUÇÃO

O texto que se apresenta tem a finalidade de trazer ao leitor uma reflexão acerca da
hierarquia da alimentação na Marinha de Guerra a Partir da Canhoneira Guarani, onde retrata
os conflitos culturais entre oficiais e praças que faziam parte do mesmo local de trabalho. O
interesse investigativo pela temática partiu das observações vivenciadas na Marinha do Brasil
em 2014. Na Estação Radiogoniométrica (ERMBE), que fica localizada na Avenida Augusto
Montenegro Nº1766 – Nova Marambaia, Belém-Pa. Onde o autor da pesquisa passou por uma
experiência de um ano. A observação empírica no local de trabalho possibilitou perceber a
hierarquia na alimentação no que tange a um conflito cultural. Sendo assim o objetivo dessa
pesquisa e me aprofundar sobre este assunto, porem a experiência ali adquirida serviu como
base para que minha curiosidade para que ficasse mais aguçada à respeito desse assunto. Além
de ser uma área pouco pesquisada no ramo historiográfico, a questão da hierarquia na
alimentação é um assunto no qual abre um leque de possibilidades de problemáticas, uma vez
que a alimentação é nossa principal aliada para que possamos trabalhar de maneira eficaz em
qualquer ramo ou sociedade. De 1885 a 1900, irei trabalhar com os livros de bordos com as
seguintes perguntas em minha mente: “quem come tal alimento? e por que come este
alimento?”.
Utilizaremos os Livros de Bordo da Canhoneira Guarany, uma embarcação na qual
recebeu esse nome em homenagem a esta raça de índios que habitam na América do Sul e
parte dessa população encontra-se em território brasileiro. Em 18 de setembro de 1879 foi
determinada sua construção no Arsenal da Marinha da Bahia. Algumas características da
Canhoneira: “dimensão de 35.80m de comprimento, 7.90 m de boca, 2,56 m de pontal e 1.75
m de calado. Tinha a propulsão de 2 maquinas gerando 280 hp, acionando 2 hélices.


Graduando do 6° período do curso de Licenciatura em Historia da Universidade Federal do Pará (UFPA) E-
mail: libaasc@gmail.com

Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense – Professor Adjunto da Faculdade de História
e do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Pará (UFPA). Autor da Tese de
Doutorado “A construção da República no Pará (1886-1897)” e do livro “O alvorecer da República no Pará
(1886-1897)” – (Belém: Editora Açaí, 2008). E-mail: wgaia@ufpa.br
Velocidade de 8 nós. Possuía um armamento de 1 canhão de calibre 32 e duas metralhadoras
de 25mm”. No dia 01 de agosto de 1884 foi incorporado a Armada e em 1904 teve sua baixa
da armada64
Como principal referência metodológica utilizou a noção de paradigma indiciário de
Carlo Ginzburg65 para investigar as minúcias dos documentos, a fim de elucidar os eventos já
citados. Em diversas ocasiões e práticas da historiografia, desde suas origens, foi comparada
a atividades que necessitam da análise de indícios para tecer explicações.Exemplos dessas
atividades são: a medicina, a investigação criminal, a crítica de artes plásticas, a psicanálise,
entre outras. O responsável por sistematizar esse tipo de saber no qual é utilizado em várias
áreas foi o italiano Carlo Ginzburg, que cunhou e expressão “paradigma indiciário”66 em um
ensaio intitulado Spie. Radici di un paradigma indiziario.
Assim como um médico analisa os sinais da patologia que o corpo apresenta para um
diagnóstico mais eficaz, como por exemplo, as dores no corpo, febre, hematomas ou inchaços,
utilizaremos os sinais encontrados nas documentações para esclarecer as questões nas quais
estamos querendo responder na pesquisa.

Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições, ele aprendeu a
reconstruir as formas e movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama,
ramos quebrados, bolotas de estercos, tufos de pêlos, plumas emaranhadas, odores
estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais
como fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez
fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas.
(GINZBURG, Carlo. 2002, p. 151)

Para a história, ou ciência da história, tal paradigma é imperativo, haja vista que o
objeto de estudo do historiador é o passado. E, sendo passado, não há como acessá-lo
diretamente, só há como tangenciá-lo por meio daquilo que nos ficou, dos “restos” desse
passado. Desta feita, deste modo, a história é um sabe, ou uma ciência, indireto. Nos livros de
quartos não está explicitamente escrito o tipo de alimentação que oficiais e praças comiam a
bordo. Porém, é possível fazer um mapeamento de diferentes tipos de alimentação, os quais
são possíveis fazer questionamentos com a finalidade de saber quem comia tal alimento e por
que esse alimento era submetido apenas a uma parte da tropa (oficiais)?

64
Disponível em: <www.naval.com.br>. Acessado em 13/08/2019.
65
Carlo Ginzburg é um historiador italiano, conhecido por ser um dos pioneiros no estudo da micro-história.
66
(Sinais: raízes de um paradigma indiciário), publicado na coletânea Crisi della ragione, organizada por Aldo
Gargani, que saiu pela editora Einaudi no ano de 1979.
As fontes nas quais irei utilizar são os livros de quartos da Canhoneira Guarani e
jornais periódicos da época. As documentações antigas que possuem uma data, local e um
contexto histórico, podem ser utilizadas como fonte, são vestígios historiográficos que contém
informações de determinado período. Em minha pesquisa irei utilizar os jornais e os livros de
quartos. “O abnegado historiador encanta-se ao ler os testemunhos de pessoas do passado, ao
perceber seus pontos de vista, seus sofrimentos, suas lutas cotidianas” (Bacellar, 2006, p.25).
O que nos interessa nos jornais são os preços dos produtos alimentícios que vinham expostos
nos classificados, assim, cruzando as informações com os alimentos encontrados nos livros de
bordo da Canhoneira Guarani.
O cruzamento das fontes será necessário para a seguinte questão, fazer um
comparativo de preço entre produtos considerados de “primeira linha” e produtos de
qualidades mais baixa, assim fazendo um diagnóstico da alimentação feita pelos praças e
oficiais da embarcação.
Os livros de bordo eram escritos por um Oficial de serviço que estava de plantão, os
oficiais de serviço deviam anotar os fatos mais importantes nos “livros de quarto”, uma vez
que os dias se dividiam em seis períodos de quatro horas, os chamados quartos. Cada oficial
escrevia aquilo que achava mais importante, por isso os livros se diferenciavam de acordo
com os oficiais de serviço. É possível achar várias informações nesse tipo de documentação,
desde o tempo que fazia em certo dia ao tipo de alimentação os quais eram adquiridos pela
embarcação, conforme o autor:

Ao iniciar a pesquisa documental, já dissemos que é preciso conhecer a fundo, ou


pelo menos da melhor maneira possível, a história daquela peça documental que se
tem em mãos. Sob quais condições aquele documento foi redigido? Com que
propósito? Por quem? Essas perguntas são básicas e primárias na pesquisa
documental, mas surpreende que muitos ainda deixem de lado tais preocupações.
Contextualizar o documento que se coleta é fundamental para o oficio do
historiador! (BACELLAR, 2006. p.63).

Quando digo “hierarquia na alimentação” dois problemas de imediato surgemem


nossa mente, A) a má alimentação feita pelos militares de patentes mais baixas e, as
consequências dessa má alimentação no rendimento de trabalho. B) a indignação desses
militares enquanto os oficiais se deleitam de forma mais eficiente, enquanto os mesmos
possuem um trabalho mais leve dentro da embarcação.
II RELAÇÃO ENTRE OFICIAIS E PRAÇAS

Sabe-se que, a relação de praças e oficiais não foi nada amistosa no decorrer da
história, pois essa relação foi marcada pelo racismo e conflitos culturais que ocorreram de
forma acentuada na virada do século XIX para o XX. A hierarquia militar é a base da
organização das Forças Armadas, atualmente a classificação hierárquica não é igual a do
século XIX. A seguir a Tabela 1 irá mostrar o quadro da Armada, o antes e o pós 1890, pois
nesse período a hierarquia da Marinha de Guerra sofreu alterações.

Tabela 1: Hierarquia da Marinha de Guerra

Até 1890 Pós 1890 Círculo


Almirante Almirante Oficiais Generais
Chefe de Esquadra Vice-Almirante
Chefe de Divisão Contra-Almirante
Capitão de Mar e Guerra Capitão de Mar e Guerra Oficiais Superiores
Capitão de Fragata Capitão de Fragata
Capitão de Corveta
Capitão-Tenente Capitão-Tenente Oficiais Intermediários (pós
1905)
Primeiro-Tenente Primeiro-Tenente Oficiais Subalternos
Segundo-Tenente Segundo-Tenente
Guarda-Marinha Guarda-Marinha
Sargento-Ajudante Sargento-Ajudante Oficiais Inferiores
Primeiro-Sargento Primeiro-Sargento
Furriel Segundo-Sargento
Cabo Cabo Praças
Marinheiro de 1ª classe Marinheiro de 1ª classe
Marinheiro de 2ª classe Marinheiro de 2ª classe
Marinheiro de 3ª classe Grumete
Grumete

Como percebemos na Tabela 1, a estrutura hierárquica da Marinha de Guerra sofreu


alterações após a Proclamação da República, assim como a república mudou os moldes da
sociedade brasileira, o episódio também alterou algumas estruturas no corpo da Armada.
Sabe-se que, em 1910 ocorreu entre os dias 22 e 27 de Novembro a Revolta da
Chibata, e um dos principais motivos da revolta foi justamente a forma como brancos e negros
eram tratados, com a forte presença do racismo na mentalidade dos oficiais e a péssimas
condições de trabalho dos marinheiros. No trabalho de Almeida67, o contexto se passa 20 anos
após a abolição, a partir dos relatórios dos ministros da Marinha e correspondência,
explorando o âmbito alimentar dos praças na Marinha de Guerra. O período vai de 1890 a
1910, ano que ocorreu a notória revolta das praças. A autora deixa claro que era grande a
quantidade de ex-escravizados no corpo da armada brasileira. As Forças Armadas serviria
como uma válvula de escape para quem não tinha tanta oportunidade na sociedade da época.
Ainda que houvesse um número significativo de praças de outras origens, brancos,
mestiços de indígenas, caboclos e até mesmo estrangeiros, muitas fontes indicam a
existência de um grande número de negros. Em 1911, como consequência da revolta
dos marinheiros contra os castigos corporais e por melhores condições de trabalho,
ocorridos entre novembro e dezembro de 1910, a chamada Revolta da Chibata, o ex-
tenente da Marinha Macedo Soares publica, em Paris, um trabalho, de circulação
proibida no Brasil, sob a alcunha de “Um oficial da Armada”. No texto, a partir de
suas observações pessoais, ele esboça uma estatística da cor da tribulação de
marinheiros que seria a seguinte: “50% negros, 30% mulatos, 10% caboclos, 10%
brancos ou quase brancos” (ALMEIDA. 2012. p.16).

Partindo desse pressuposto, é certo afirmamos que as condições de trabalho em 1885


a 1910, na Amazônia, também não eram nada agradáveis. A alimentação e os castigos físicos
eram presentes em todo território nacional. “A ideia de ‘progresso’ estava ligada à busca de
‘regeneração da raça’. Ainda que isto não fosse dito de forma direta pelos oficiais da
Marinha” (ALMEIDA. 2012. P.29).

As informações nos livros de bordo eram diversificadas, onde cada oficial de serviço
escrevia aquilo que os mesmos achavam mais importante em seus respectivos quartos de
serviços.

Bordo da Canhoneira Guarany no Pará, de 22 para 23 de Setembro de 1897, Quarto


das 4 às 8 da manhã. Tempo bom maré de enchente, vento fraco. Despertou-se a
guarnição, deu-se o café, esticou-se os toldos, fizeram a limpeza do amarelado.
Vieram 32 rações de pão, verduras e frutas. Ergueu-se a bandeira nacional. Sem mais
novidades (ARILOXENOS, 1897)68

Os Livros de Bordo eram escritos por oficiais para serem lidos por outros oficiais,
pois nesse período o analfabetismo no Brasil era alarmante, logo, apenas parte dos oficiais da
armada possuíam o saber de ler e escrever, sendo assim, os praças não tinham acesso aos
Livros de Bordo das embarcações da Armada, nem possuíam o acesso as leis que vigoravam
no início da República Brasileira.

67
Almeida, Silvia Capanema P. de Almeida: Professora adjunta na Universidade de Paris 13-Nord desde 2010 e
doutora em história pela École des Hautes Études em Sciences Sociales, EHESS, Paris (2009).
68
Arquivo Nacional. Série Marinha. IVM 1141. Livro de Bordo da Canhoneira Guarany. 28 de julho de 1897.
Em resposta às mobilizações populares, foi criada em 1915 a Liga Brasileira Contra
o Analfabetismo, regulamentada em 07 de setembro com o lema: “Combater o
analfabetismo é dever de honra de todo brasileiro”. A Liga lutou pela
obrigatoriedade do ensino primário e pelo objetivo de alcançar um país sem
analfabetismo em 7 anos, ou seja, lançou a meta de chegar ao centenário da
independência livre do analfabetismo. Freire (1989) explica que os grandes avanços
desta campanha contra o analfabetismo se deram mais em termos qualitativos do que
quantitativos, fazendo com que o debate em torno do analfabetismo adquirisse
grande importância entre a população brasileira. Quanto aos resultados, a redução foi
um decréscimo anual de 5%, conseguindo atingir em 1921 uma taxa de 65% de
analfabetos. (BRAGA. 2017. P.36)69

II.I O VINHO E A CACHAÇA

Analisando os Livros de Bordo, fiz um levantamento dos alimentos que encontrei


no período em questão e fiz uma pesquisa nos jornais periódicos para ter uma base de preço
de cada produto. Fiz uma segunda Tabela e organizei os produtos, apenas alguns com os
preços, pois não consegui achar o preço de todos os produtos nos jornais da época.

Tabela2: Alimentos Canhoneira Guarany

Alimentos e Bebidas Preços Jornais Datas

Café 1Kg 450 O NORTE (PA) 1908 – Sexta-Feira 09 de Outubro


Edição 00126 de 1908
Feijão 1 Kg 300 A REPÚBLICA (PA) Ano de Sexta-Feira 09 de Outubro
1892 – Edição 00807 de 1908
Carne Fresca 1$000 O NORTE (PA) 1908 – Terça-Feira 09 de Janeiro
Edição 00226 de 1908
Carne Seca 1$000 O NORTE (PA) 1908 – Sexta-Feira 09 de Outubro
Edição 00219 de 1908
Bacalhau - - -
Frutas - - -
Verduras - - -

Farinha de Mandioca 1L 200 O NORTE (PA) 1908 – Sexta-Feira 09 de Outubro


Edição 00126 de 1908
Chocolate - - -
Vinho do Porto - - -

Aguardente 1L 200 O NORTE (PA) 1908 – Sexta-Feira 09 de Outubro


Edição 00126 de 1908

BRAGA, Ana Carolina: Mestre em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
69

Filho”, Campus de Araraquara – SP, na linha de pesquisa Teorias Pedagógicas,Trabalho Educativo e Sociedade,
com ênfase da pesquisa em alfabetismo, alfabetização de jovens e adultos, programas e políticas públicas de
educação de jovens e adultos.
Foram utilizados dois jornais periódicos, sendo estes, com mais de uma edição, para
esse balanceamento de preços, os quais eram divulgados nos classificados pelos proprietários
de armazéns. Os jornais foram: O NORTE (PA)70, A REPÚBLICA (PA)71. Uma curiosidade
sobre o Vinho do Porto na qual encontrei nesses jornais, é que eles não eram comercializados
como o restante dos alimentos da Tabela 2, por isso não encontrei seu preço, o produto tinha
uma peculiaridade em relação aos demais produtos, só o encontrava para comércio nas pautas
de leilão. Como por exemplo:

Quinta-Feira, DE COGNAC A OUTRAS BEBIDAS. Por conta de uma casa


importadora, se venderá na agencia Guedes Costa no correr do martello, grande
diversidade de bebidas de diversas marcas a saber: vinho do porto, champagne,
bitter, cognac e muitas outras que estarão à venda no acto do leilão. Venda positiva.
– A’s 9 horas. (A REPÚBLICA. 1890. EDIÇÃO 00169).

Por um longo período é possível encontrar esse tipo de evento sendo divulgado por
jornais, conclui-se que, o Vinho do Porto não era um produto popular, pois era comercializado
no correr do martello, como vemos no anuncio. Isso deixa claros os locais onde oficiais
faziam presença em Belém. Diferente do Vinho, a aguardente era facilmente encontrada em
pequenas mercearias e armazéns pela cidade. Assim como a cachaça, a farinha de mandioca
era um produto facilmente localizado pelas tabernas mais populares, pois a população
amazônica tem em suas raízes essa herança cultural vinda das sociedades indígenas as quais
eram bastante expressivas na região.
É válido ressaltar o tipo de alimentação feita na região amazônica no período em
questão. Pois, a mestiçagem se fez muito presente na alimentação, assim como na cultura. “A
pesquisa revelou que, ao contrário do que se pensa, a comida regional que hoje se entende por
típica é fruto de mestiçagens ocorridas ao longo do tempo” (MACÊDO. 2016. p.4) 72. É
importante ressaltar que, a identidade da culinária paraense só foi ganhar força no imaginário
paraense a partir dos anos 40, do século XX, quando a valorização dos pratos regionais
começam a ganharum valor na região. Ou seja, no inicio do século XX, a sociedade paraense
ainda não possuíam ciência sobre “pratos típicos” ou algo do tipo em suas refeições.

70
O NORTE (PA), 09 de Outubro de 1908, edição 126, “Factos Diversos”. Disponível em: <bndigital.bn.gov>.
Acessado em 21/08/2019.
71
A REPÚBLICA (PA), 09 de Outubro de 1908, edição 807, “Factos Diversos”. Disponível em:
<bndigital.bn.gov>. Acessado em 21/08/2019.
72
MACÊDO, Sidiana da ConsolaçãoFerreira de: Professora adjunta da Faculdade Federal do Pará do Campus de
Ananindeua. Doutora em História Social da Amazônia pelo Programa de Pós-Graduação em Historia Social da
Amazônia da Universidade Federal do Pará. Com a tese intitulada “A cozinha mestiça. Uma historia da
alimentação da alimentação em Belém. (Fins do século XIX a meados do século XX).
A alimentação nas Forças Armadas era precária no inicio do século XX, essa baixa
qualidade nos alimentos irá permanecer por um bom tempo nos órgãos militares brasileiros.
Partindo desse pressuposto, afirmo que, em geral a alimentação do Corpo da Armada não era
excelente, mas analisando esses produtos, podemos dizer que apesar da alimentação não ser
de qualidade, havia certa seleção desses alimentos quando chegava o momento da distribuição
dos mesmos dentro do órgão militar. Pois, o número de praças que adquiriam patologias era
discrepante quando comparados com o número de oficiais doentes. Almeida irá trabalhar
justamente com esses dados em sua pesquisa Corpo, saúde e alimentação na Marinha de
Guerra brasileira no período pós-abolição, 1890-1910, de marujos doentes devido a má
alimentação feita na época.
Um fator bastante intrigante na qual me deparei analisando os Livros de Bordo foi a
arrecadação do Vinho do Porto e da Aguardente pela tripulação, de um lado temosos oficiais,
uma classe mais erudita, na qual se possuía um nível de intelecto mais elevado, e do outro
lado temos os praças, uma cultura totalmente diferente, onde os mesmos vinham de regiões
precárias do Brasil em busca de uma melhoria financeira, e acabavam aflitos pelos baixos
soldos da época. O vinho e a cachaça, elementos os quais ratificam essa diferença na forma de
alimentação dos militares de maneira clara. É claro que não devemos impor que oficiais não
tomavam aguardente, ou que praças não bebiam um bom vinho, porém, é certo que na maioria
dos casoso sistema cultural falava mais alto.
Oliveira73, Em seu trabalho, irá focar na alimentação da Força Expedicionária
Brasileira durante a Campanha da Itália na Segunda Guerra Mundial em 1943 a 1945. Na
relação entre Brasile EUA referentes a alimentação das tropas brasileiras além mar. O autor
irá expor a precariedade da alimentação dos militares brasileiros nesse recorte temporal, antes
deles partirem para a guerra a alimentação era péssima, e com isso os militares brasileiros
ficavam se perguntando se as coisas poderiam piorar quando partissem para Itália. Na página
128 Dennison escreve uma citação de José AlfioPiason, em um Depoimento dos Oficiais da
Reserva sobre a FEB, onde o mesmo dizia:

Durante o longo período de preparação para a guerra e té a partida da tropa para o


estrangeiro, absolutamente deficiente, especialmente em sua qualidade, foi a
alimentação a ela fornecida; já na época em que o 6º RI permanecia em sua sede
(Caçapava e Taubaté), resumia-se o cardápio praticamente a café (sem leite), pão
(sem manteiga), arroz, feijão e carne; vê-se por aí o déficit em elementos essenciais
era acentuadíssimo; isso, à monotonia (dias, meses anos a mesma coisa), fazia que

73
OLIVEIRA, Dennison de: Nasceu em 1964 no Rio de Janeiro. É professor Titular do Departamento de
Historia da UFPR. Bacharel e Licenciado em História (UFPR, 1987), Mestre em Ciências Política (UNICAMP,
1990), Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP, 1995), Pós-Doutor em Estudos Estratégicos (INEST/UFF,
2014).
os arranchados, por força dos regulamentos... mas tendo meios outros de
manutenção.... apesar de deverem comer no quartel... preferiam fazê-lo em pensões
ou bares... (PIASON. 1950. p.82 apud OLIVEIRA, p.128, 2015)

Achei válido dar esse salto para década de 40 pelo seguinte fato, tratando-se de
alimentação, baseando-me nos estudos de Oliveira, constato através de depoimentos de ex-
combatentes que, a alimentação era de baixíssimas qualidades, ou seja, voltando para o inicio
do século XX, não há duvidas quanto à procedência alimentar dos militares desse período.

III. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Logo, trafegando pelos pormenores das documentações em si, partindo de alguns


pressupostos, pode-se dizer que a alimentação feita por praças e oficiais é distinta e, esse fato
acabou gerando uma série de fatores no Corpo da Armada. O conflito cultural fica
explicitamente visível quando damos atenção aos utensílios utilizados pelos mesmos, como
por exemplo, a taça de cristal usada por oficiais e, os copos de plásticos utilizados por praças,
o rancho onde cada militar faz seu deleite, isso acontece até os dias de hoje, esses fatores estão
diretamente ligados a questão cultural e da hierarquia.
Esta é a primeira parte de uma pesquisa em andamento, ainda pretendo avançar mais
nesse campo historiográfico, envolvendo alimentação nas forças armadas e afins. Esse assunto
relacionado a alimentação ainda não foi muito explorado por nós historiadores, ainda há muito
a se descobrir a respeito e isso abre novas portas para projetos de pesquisas na história.

IV. LISTA DE FONTES

Livros De Quarto da Canhoneira Guarani:

Arquivo Nacional. Série Marinha. IVM 1141. Livro de Bordo da Canhoneira Guarany. 1897.

Arquivo Nacional. Série Marinha. IVM 2353. Livro de Bordo da Canhoneira Guarany.1899.

Arquivo Nacional. Série Marinha. IVM 2353. Livro de Bordo da Canhoneira Guarany.1900.

Jornais Periódicos:

O NORTE (PA) Sexta-Feira 09 de Outubro de 1908, edição 126, “Factos Diversos”.


Disponível em: <bndigital.bn.gov>. Acessado em 21/08/2019.
A REPÚBLICA (PA), 09 de Outubro de 1908, edição 807, “Factos Diversos”. Disponível em:
<bndigital.bn.gov>. Acessado em 21/08/2019.

O NORTE (PA) 09 de Janeiro de 1908, edição 226, “Factos Diversos”. Disponível em:
<bndigital.bn.gov>. Acessado em 21/08/2019.

O NORTE (PA) 09 de Outubro de 1908, edição 219, “Factos Diversos”. Disponível em:
<http://www.bndigital.bn.gov>. Acessado em 21/08/2019.

V. REFEÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Silvia Capanema P. de. Corpo, saúde e alimentação na marinha de guerra


brasileira no período pós-abolição, 1980-1910, História, Ciência, saúde – Manguinhos. Rio de
Janeiro, v.19, supl., dez. 2012, p.15-33.

BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Uso e mau uso dos arquivos, In: Fontes históricas.
São Paulo: Contexto; 2006.

BRAGA, Ana Carolina; MAZZEU, Francisco José Carvalho.O analfabetismo no Brasil:


Lições da história. Revista on line de Política e Gestão Educacional, [S.I], p. 24-46, jan. INSS
1519-9029. Disponível em: <https://www.periodicos.fclar.unesp.br/>Acesso em: 02 de Jul.
2019 às 14hs12min.

GINZBURG, Carlos. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. 2ª edição, 7ª


reimpressão, Companhia das letras, 1989 – tradução Frederico Carotti.

MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira de Macêdo. A cozinha mestiça: uma história da


alimentação em Belém (fins do século XIX a meados do século XX). Disponível
em:<https://www.docplayer.com.brl>. Acesso em 02 de Jul. 2019 às 13hs00mim.
Universidade Federal do Pará. Instituto de Filosofia e Ciências humanas. Tese de Doutorado
em História Social da Amazônia. 2016.

NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Marinheiros em revolta: recrutamento e disciplina na


Marinha de Guerra (1880-1910). [s.n.]
Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de
Pós-Graduação em História, 1997. Disponívelem
<http://www.repositorio.unicamp.br>.Acesso em: 01 de jul. 2019 às 15h00min.

OLIVEIRA, Dennison de. “O combatente melhor alimentado da Europa”: a alimentação


da força expedicionária brasileira e a aliança Brasil-EUA durante a segunda guerra mundial
(1943-1945). Disponível em: <https://www.dx.doi.org>. Acesso em 05 de jul. 2019 às
13hs00min.
A JUSTIÇA MILITAR DO PARÁ (1950- 1970): A INSTITUIÇÃO E OS PROCESSOS
CRIMINAIS NO CENTRO DE MEMÓRIA DA AMAZÔNIA

Luana Camila da Silva Rosário (História/UFPA)


Orientador: William G. Farias

Palavras-Chaves: Justiça Militar, Justiça Comum, Processos.

INTRODUÇÃO
As vantagens de se trabalhar em um acervo, como o Centro de Memória da Amazônia
localizado em Belém do Pará é justamente ter a oportunidade direta de se confrontar com
várias documentações que possibilitariam inúmeras pesquisas em áreas da sociologia, história,
direito, geografia, antropologia, dentre outras. O bolsista tem a responsabilidade de trabalhar
na catalogação destes documentos, então se ele optar por uma pesquisa que inclua a
documentação que ele possui constante acesso facilitará as etapas de seu trabalho.
A ideia não é falar desde a origem, já que ainda não se tem um estudo sobre a Justiça
Militar do Pará, como ela se deu ou por que decidiram criar este Órgão, além da ausência de
trabalhos sobre os crimes existentes neste acervo, têm- se estudos dessa Justiça Militar da
União ligada às forças armadas.
A Justiça Militar no Brasil veio a ser uma das primeiras formas legais que se tornou
realidade com a chegada da família real portuguesa em 1808, como analisa Souza & Silva
(2016), mas o seu histórico é longo e remete, de acordo com Univaldo Corrêa74, certamente
com a criação do Estado no mundo antigo, também consoante ao seu raciocínio, esta trajetória
se perde na história por ganhar muitos aspectos e significações.

DEBATE HISTORIOGRÁFICO SOBRE A JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO COMO


FRONTEIRA PARA REFLEXÃO DA INSTITUIÇÃO EM ÂMBITO ESTADUAL
Renato Luis do Couto Neto e Lemos, Pós Doutor em História do Brasil pela CPDOC-
FGV, coordenador do laboratório de Pesquisa sobre Militares na Política. Partindo da leitura
de seu trabalho sobre a “A Justiça Militar e a implantação da ordem republicana no Brasil” foi
importante adotar vários aspectos de sua discussão, visto que como a historiografia nessa
temática encontra-se escassa, suas contribuições de um modo geral auxiliariam e
fundamentaram o debate sobre a Justiça Militar no Pará.

74
Retirado da dissertação de mestrado pela Universidade Federal de Santa Catarina no ano de 1991. Disponível:
https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/106320
Utilizando de seu artigo foi possível desenvolver uma discussão sobre como os
aspectos dessa temática pode mudar e relação aos períodos de transições históricas, como no
caso dele, o estabelecimento dessa ordem no Brasil. Em seu artigo fala sobre a transgressão e
esse conceito foi de fundamental importância para o bom andamento do trabalho, visto que
foram necessários o estabelecimento de diferenças entre transgressão e o crime. Para Lemos
(2012), a transgressão seria a “infração relacionada com o serviço, punida facultativamente
em instância administrativa”75, portanto ela seria a prática que estaria contra o regulamento e
se resolveria apenas na instituição militar.
[...] a intolerância com a transgressão deve ser encarada como característica de uma
tropa bem disciplinada, adestrada, treinada para situações que evidenciam a
importância da minimização de riscos e margens de erro por parte de seu efetivo.
Não à toa cada Força possui seu próprio meio de tratar as transgressões internas,
aplicando punições mais específicas e admitindo a concorrência entre situações
irregulares, passíveis da correspondente apenação.76

Assim a Polícia Militar do Pará, parte do objeto desta pesquisa, deve estabelecer suas
normas, de forma a seguir um conjunto de necessidades que permearão a estrutura a
instituição. De forma diferente será o tratamento do crime, visto que ele está inscrito em um
código penal que está além da instituição.
[...] o crime — de modo geral, qualquer conduta que transgrida as prescrições do
Código Penal, punida necessariamente pelo Estado através da justiça penal — pode
ser punido com reclusão ou detenção e/ou multa. O crime militar, em sua definição
mais genérica, é a conduta tipificada no Código Penal Militar. [...]77

Na pesquisa, os usos dos conceitos de crime e transgressão foram relembrados porque, apesar
de possuírem significados diferentes, em algum momento se encontram de tal forma que se
confundiram. Não somente com os conceitos Renato Lemos irá contribuir, mas a sua
experiência e trabalhos foram por vezes solicitados para esta pesquisa. Outro caráter
apresentado por Lemos (2012) é o tipo de crime, sendo ele propriamente ou impropriamente
militar. O primeiro, de acordo com o historiador, são os crimes que apenas podem ser
cometidos pelo militar, e ele responderá a uma lei especifica para o trato jurídico das questões

75
LEMOS, Renato Luís do Couto Neto e. A Justiça Militar e a implantação da ordem republicana no Brasil.
Topoi, v. 13, n. 24, jan.-jun. 2012, p. 63. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/topoi/v13n24/1518-3319-
topoi-13-24-00060.pdf
76
OLYMPIO, Cleber. Crime militar, transgressão disciplinar e a dupla incidência punitiva. In: Revista dos
Tribunais. RT. Vol. 960, 2015.
77
Lemos (2012, p. 63).
militares. Lembrando que o historiador possui base referente à discussão da Justiça Militar da
União, que está responsável decidir, em termos, os crimes das forças armadas, no Brasil como
um todo. Por mais que ele trabalhe com esse objeto em termos nacionais, sua perspectiva foi
necessária para o estudo da instituição militar do Estado do Pará, já que ainda não possui um
debate próprio.
A definição do “crime impropriamente militar” é o caminho por onde passa a
instrumentalização política da Justiça Militar. Trata-se de uma operação conceitual
pautada por variáveis cuja percepção é extremamente plástica: “anormalidade da
época ou do tempo em que são cometidos” uma das mais ilustrativas circunstâncias
apontadas para caracterizar essa categoria de crime.78

Quem vai trabalhar também com objeto desta pesquisa é a Adriana Barreto Souza, doutora em
história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, ganhou o Prêmio Arquivo Nacional de
Pesquisa com a dissertação de mestrado “O exército na consolidação do Império: um estudo
histórico sobre a política militar conservadora”. Da mesma forma como Renato Lemos será
trabalhado na investigação dessa temática, as leituras de Adriana Souza foram solicitadas
também em vários pontos. Juntamente com Adriana Souza no debate, a historiadora Doutora
Ângela Moreira Domingues, atual vice-coordenadora do PPHPBC e editora da Revista
Estudos Históricos.
Em “A organização da Justiça Militar no Brasil: Império e República” 79, publicada pela
Revista Estudos históricos, Souza e Silva trabalham a trajetória dessa Justiça desde o império
até a República e no início de seu artigo, discutem como a abordagem histórica ainda é pouco
discutida, sendo a temática trabalhada mais na área do direito ou dos integrantes do foro
militar.
Não há um estudo sistematizado que acompanhe a história institucional da justiça
militar, e que dê conta de suas particularidades, tanto com relação à sua formalização
normativa, quanto com relação à sua atuação pragmática. No caso da história do
Brasil Império, podemos dizer que se trata de um terreno inexplorado. No caso do
Brasil República, os estudos vinculam-se mais à sua atuação durante períodos
autoritários, circunscritos ao seu desempenho como foro político (Arquidiocese de
São Paulo, 1985; Coitinho, 2012; D’Araujo, 2010; Lemos, 2004 e 2012; Mattos,
2002; Maciel, 2003; Pereira, 2010; Silva, 2007, 2011, 2014).80

78
Lemos (2012, P. 63)
79
SOUZA, Adriana Barreto; SILVA, Angela Moreira Domingues da. A organização da Justiça Militar no Brasil:
Império e República. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 29, n. 58, p. 361-380, maio-agosto 2016.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/eh/v29n58/0103-2186-eh-29-58-0361.pdf
80
Apud. Souza & Silva (2016, p. 363- 364)
Se nesse âmbito historiográfico ainda é muito escasso, no debate sobre a Justiça
Militar do Estado se torna quase nula. Mesmo nos periódicos a justiça aparece mais nos
períodos autoritários e pouco aparece sobre a temporalidade que vai de 1950 a 1970. E aqui
neste artigo as autoras vão buscar essa linha desde o império, levando em consideração a
legislação e como ela foi sofrendo alterações perante o tempo e mudando seu caráter nas
conjunturas, mas no artigo elas mostram também que as mudanças não foram abruptas,
permanecendo a instituição com heranças existentes até hoje. Portanto, buscar a herança que
liga a Justiça Militar do Estado com a Justiça Militar da União será um dos focos desta
pesquisa também.

Em suas considerações, Souza e Silva (2016, p. 376) retomam algumas lacunas que
ainda precisam ser preenchidas no estudo dessa temática dentro do campo militar que é o
entendimento ainda não ser suficiente acerca do impacto da legislação nessa junção entre o
militar e o jurídico. As autoras, possibilitam caminhos para ser seguido nessa investigação do
objeto quando consideram que é de extrema importância o estudo do cotidiano dessa Justiça
ao longo da história, possibilitando a compreensão que vai além da própria lei.

Para incluir uma discussão sobre o campo da História Militar, foram acionados os
trabalhos de Fernando Velôzo Gomes Pedrosa81 atualmente Oficial da Reserva do Exército
Brasileiro, formado em bacharelado em Ciências Militares pela Academia Militar das Agulhas
Negras, mestre e doutor em História pelo Programa de Pós- Graduação em História
comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É atualmente pesquisador do Instituto
Meira Mattos. Sua experiência também gira em torno da História Militar, Administração
Pública e Educação Militar, além de possuir experiência na área da Defesa e Estratégia. Sua
contribuição estará no fato de gerar um debate acerca de uma História Militar Tradicional e a
Nova História Militar82 e esse debate está interligado a esse objeto de pesquisa porque
trabalhar com a Justiça Militar é abrir novas temáticas e formas de se pensar uma instituição.

81
Currículo acadêmico disponível em: https://www.escavador.com/sobre/572878/fernando-velozo-gomes-
pedrosa
82
PEDROSA, Fernando Velôzo Gomes. A História Militar Tradicional e a “Nova História Militar”. In: Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho, 2011.
AS RAZÕES HISTORIOGRÁFICAS E MULTIDISCIPLINAR EM TORNO DA JUSTIÇA
ESTADUAL
Ainda não foi apresentado ao debate historiográfico um estudioso sequer para trabalhar
a Justiça Militar do Estado do Pará e são 36 processos que são interessantes em vários
aspectos, portanto, levar esse tema para fora do acervo, mostrando o que tem nele e quais os
processos mais interessantes, pode chamar a atenção de pesquisadores que nem faziam ideia
que poderiam se defrontar com essa documentação em Belém.

A história veio sofrendo várias intervenções no que se referem às abordagens,


principalmente no século XIX, com o debate de uma escola metódica, que valorizavam heróis
e acontecimentos. Em contraposição a esse tipo de abordagem tivemos a interlocução de
vários intelectuais, que não somente da História, mas das diversas áreas passaram a propor
novos debates, formas de trabalhar e se defrontar com o objeto. Dentro destas discussões,
caminhos para se criarem novos campos historiográficos foram alimentados de tal forma que
hoje, se olharmos as mudanças de perspectivas, vemos uma grande revolução historiográfica
que eram inimagináveis para o século XIX.
A ampliação do campo da História Militar é também fruto da evolução da História
como ciência no decorrer do século XX, passando de uma História tradicional, de
caráter descritivo, para uma “Nova História”, de natureza crítica. A História
tradicional era uma crônica de acontecimentos, com foco nos eventos históricos e em
busca do ideal positivista da objetividade e do registro da “verdade histórica”. Era
fundamentalmente uma história política e militar. A Escola Marxista levou o foco
para a economia e para a luta de classes, mas continuou sendo uma história política e
com a pretensão de ser uma ciência exata.

A criação do Campo da História Militar não foi diferente, sendo que de acordo com
Fernando Pedrosa a História Militar existiu como uma das primeiras formas de história, ainda
assim as mudanças que ocorrem dentro desse campo são as mais diversas possíveis e agora
com a valorização de confrontos que antes não eram debatidos, a Nova História Militar nos
traz o valor de se aprofundar não apenas em estratégia ou histórias de guerras, mas também no
papel social desempenhado por figuras que, agora representadas, são também reconhecidas
como estruturantes nas organizações do campo.
A História Militar é um conjunto de muitas coisas. É – e para muitos escritores do
passado e do presente é pouco mais do que isso – o estudo dos generais e do
generalato [...]. A História Militar é também o estudo do armamento e do sistema de
armas, da cavalaria, artilharia, castelos e fortificações, do mosquete, do arco, do
cavaleiro com armadura, do encouraçado, do bombardeiro estratégico. [...] A
História Militar é, por outro lado, o estudo das instituições, regimentos, estados-
maiores e escolas de estado-maior, dos exércitos e das marinhas em geral, das
doutrinas estratégicas adotadas na batalha [...]. A História Militar, podemos inferir
daqui, tem, em última análise, de tratar da batalha (KEEGAN, 2000: 28-30, Apud.
PEDROSA, p. 2).83

O que se precisaria era aprofundar mais temáticas esquecidas dentro desse enorme
conjunto de debate, uma vez que possuem sua devida importância e trazem riqueza para o
campo. Esses objetos que citou Pedrosa sempre estiveram presentes, não sendo, portanto,
considerados história, visto que o historiador precisaria primeiro abordá-lo. A Justiça Militar
se encaixa no estudo das instituições e o domínio do que se passava ali dentro e de que
maneira no âmbito social, econômico e político, fluía a estrutura desses espaços simbólicos.

Para a historiografia brasileira, vem sendo alimentada por vários anos com diversas
abordagens, reconhecimento de novos atores e suas participações dentro da história nacional.
Se a discussão girar em torno da História do Brasil através da História Militar, teremos uma
breve representação dessa Justiça do Estado do Pará, com sua funcionalidade valendo de
acordo com uma legislação tipificado em um código.

Celso Castro, Vitor Izecksohn e Hedrik Kraay em “Nova História Militar”84 discutem
que o fim do regime no Brasil causou o corte de estigmas que tornavam a pesquisa acadêmica
limitada depois que passaram a ter acesso aos documentos militares que não eram permitidos
terem acesso. A partir disto as possibilidades foram aumentando consideravelmente, com
novas áreas de interesses e novas perspectivas. Esses três autores são de fundamental
importância para se conhecer o Brasil a partir do debate da história militar

TRAJETÓRIA DA INSTITUIÇÃO COMO ALICERCE AO DESAFIO DE DIMENSIONAR


A ATUAÇÃO DA JUSTIÇA ESTADUAL EM OUTRA JURISDIÇÃO
Menck (2018) diz que em vários momentos foi cogitada a transferência da corte
portuguesa para os domínios americanos, sempre que Portugal enfrentava conturbações e,
desta vez, sendo ocasionada pela pressão de Napoleão. A partir da nova organização do reino,
que herda características da antiga metrópole, têm- se a criação do que antes era tido como
Conselho de Guerra, em Portugal, e se efetivado no Brasil a partir da Carta Régia de 29 de
Novembro 1806 revogado pelo Alvará de 1° de Abril de 1808, dando lugar ao Conselho

83
PEDROSA, Fernando Velôzo Gomes. A História Militar Tradicional e a “Nova História Militar”. In: Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho, 2011.
84
CASTRO, Celso. IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik. Da história militar à “nova” história militar.
In:Nova história brasileira/Organizadores: Celso Castro, Vitor Izecksohn, Hendrik Kraay. – Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2004, 460 p.
Supremo Militar e de Justiça e três entidades administrativas que viera a ser o Conselho de
Disciplina, Conselho Supremo Militar e de Justiça e Conselho de Guerra, sendo eles
independentes. De acordo com Souza e Silva (2016) em “A organização da Justiça Militar no
Brasil: Império e República”, “foram criadas em algumas províncias do norte as Juntas de
Justiça militar, única alteração realizada por D. Pedro I. Porém a instituição não era nova”,
também herdada do sistema judiciário de Portugal do século XVII, não tendo sofrido
alterações, até à Republica, sendo seu poder regulado pela carta constitucional desde 1824. “O
CSMJ nasceu no Brasil com duas seções bem demarcadas: um Conselho de Justiça, que
mantinha a função de tribunal militar, e um Conselho Militar, destinado às questões
burocráticas da caserna”.

Com a definitiva criação de uma nova constituição, em 1891, o Conselho Supremo


Militar ganha novas atribuições, e no artigo 77 ele passa ser chamado de Supremo Tribunal
Militar. Esta nova mudança passa a ter como objeto a criação de foro especial para os
militares, sendo eles da terra e do mar. “Com a sua existência prevista em todas as
Constituições, as atribuições do foro militar foram demarcadas com o seu direcionamento para
o julgamento do crime militar, e não do profissional militar, deixando margem para a
possibilidade de julgamento de civis.” A partir de uma superficial leitura sobre o foro militar a
decisão inclusa no artigo 77 da constituição, sobre a criação de um núcleo para lidar com os
crimes que envolvem as forças armadas, despertou discussões de várias alcunhas que se
referem a legalidade de se ter um tribunal só para os militares, que seriam julgados dentro de
uma legislação diferente.

Mas o objetivo não foi somente falar da Justiça Militar da União, apesar de que foi
discutida até aqui pelo fato de direcionar a pesquisa atribuindo semelhanças nessas duas
instituições. Na Justiça Militar do Estado, seria da competência da Justiça os envolvimentos
tipificados no código penal e em conjunto com os regulamentos das instituições da Polícia
Militar e do Bombeiro, uma vez que neste regulamento estariam inscritas as normas e deveres
delas, além de qualquer desvio de conduta que se referissem ao código penal.

A Justiça Militar do estado teve sua organização autorizada por lei federal em janeiro
de 1936. Porém, só foi posicionada, como componente do Poder Judiciário, pela Constituição
de 1946, que assim dispunha: "a Justiça Militar estadual, organizada com observância dos
preceitos gerais da lei federal, terá como órgãos de primeira instância os conselhos de justiça e
como de segunda instância um tribunal especial ou o Tribunal de Justiça." a Justiça Militar é
estruturada em duas instâncias: a Primeira constituída pelos Juízes de Direito do Juízo Militar
e os Conselhos de Justiça, os quais atuam nas auditorias militares; e a Segunda, pelos
Tribunais de Justiça Militar, composta por juízes que integram esses órgãos

Em cada Auditoria atuam, pelo menos, um Defensor Público e um Promotor de


Justiça, com carreiras correspondentes, estatuto próprio e atuação independente e disciplinada
por lei. O Juiz de Direito do Juízo Militar, denominação atual do Auditor, é um bacharel em
Direito, que ingressa na carreira por concurso público de provas e títulos, para o cargo de Juiz
de Direito Substituto, e tem os mesmos deveres, garantias e prerrogativas dos magistrados da
primeira instância da Justiça comum. É ele quem dirige os trabalhos dos conselhos, sendo
competente também para elaboração e prolatação das sentenças.

Então, confesso que usei e abusei de Carlo Ginzburg, com o método do paradigma
indiciário, como analisou em Morelli e Freud, Wind, Lemolief, em Arthur Conan Doyle e seu
Sherlock Holmes, para destrinchar todo o processo criminal. E eu me aproximei mais do
Sherlock porque ele já tratava do crime em si, a Justiça Militar e em Geral faz o papel de
Sherlock Holmes, e são análises bem aprofundadas de cada indício encontrado, a disposição
da arma, a quantidade de cartucho, o local de perfuração na vítima, em caso de tiro, a
descrição das áreas atingidas, o trabalho com as testemunhas, a percepção de traços suspeitos
no acusado, na vítima. Eu fiz uma discussão do método sobre o método. Não é a toa que
Ginzburg, Morelli e Freud, Lemolieff, a metodologia de Sherlock são tão valorizados,
principalmente no meu trabalho de investigação e no trabalho da Justiça.

Estudei dois processos para entender as etapas procedidas na justiça comum e na


Militar, quem foram os responsáveis para trabalhar os processos e como funcionavam as
etapas, os dois processos são de homicídio do ano de 1950. O homicídio de 1950 registrado na
2° Delegacia auxiliar da comarca da capital, vitimou Normelia Alves de Oliveira e o acusado
era José Rodrigues, um marchante de gado que a matou por ciúmes com sua mauser enquanto
seu filho estava no colo da mãe. O 2° promotor, Geraldo Farias faz a denúncia ao juiz de
direito da comarca da capital, a denúncia exige a presença de testemunhas. Encaminhada para
a delegacia auxiliar, chefiada por um bacharel são escritos os termos de declarações das
testemunhas, acompanhadas pelos bacharéis. Também é procedido o exame de corpo de
delito, pelo Serviço Médico Legal, sendo designados doutores para fazer o exame
necroscópico, que nesse caso era Gabriel Rodrigues e Albino Figueiredo. A partir das
análises começa o processo para prisão preventiva, solicitadas pelo Delegado, que pode ser
negada ou não.

Nos documentos que eu tive acesso sobre a Justiça Militar não é diferente, há toda
uma tradição para se trabalhar um crime, inclusive na nomeação dos responsáveis no
desenvolvimento do processo na Justiça. No processo da Justiça Militar que eu vou me referir
aqui, de 1950, tendo como vítima o Tenente João dos Santos Vasconcellos e como acusado o
2° sargento Hermenegildo dos Santos o Comandante Geral da polícia, um tenente Coronel,
chamado Sinésio é o nomeado pra apurar o fato, ele acompanha o processo do início ao fim,
cabe a ele o encerramento de cada etapa, sempre na presença do escrivão. É nomeado o 3°
sargento Pedro de Oliveira para escrivão, ele não só fará o autoamento, como estará por
intimar quem poderia colaborar com a resolução do processo. São nomeados também os
peritos, que nesse caso se chama André e Inácio, e o responsável pelo inquérito, que é o 1°
Tenente Antônio Amorim, os peritos estarão presentes sempre que uma nova possibilidade for
aberta.

No auto de exame do instrumento eu me lembrei do trabalho do historiador, os peritos


agem a partir de perguntas padrões ou perguntas inovadoras a fim de se tirar a conclusão
necessária baseada no objeto, as mesmas perguntas eu fiz para o processo para chegar até
aqui, fui para os detalhes sobre a estrutura, o ofício que Marc Bloch nos trouxe em apologia
da história não para lidar de prontidão com a história, já que ela vai surgir a partir da nossa
investigação e cruzamento de fontes. A justiça militar não está cheia de história, ela está
cheia de objetos que podem se transformar em fontes e dependendo do rumo, quem vai
escolher as diretrizes dessa abordagem é o historiador. Primeiro intelectual pensado foi
Cesare Beccaria porque ele nos contribui com um novo pensamento para a justiça moderna,
na sua época ainda não havia a criminologia, que é abordada no século seguinte por
Lombroso, mas mesmo assim ele já dissertava sobre sanções distintas sob a mesma pena e na
Justiça militar eu pensei no porque existia uma legislação específica capaz de criar um
tribunal especial, conselhos e auditorias para julgar os crimes militares. Percebi que essa
forma de justiça não seria criada para privilegiar militares, foi justamente porque a
instituição, como a polícia militar e o bombeiro possuíam uma legislação específica por conta
das circunstâncias que atuavam na sociedade, como o porte de arma, o homicídio que poderia
acontecer entre militares por descuido, as deserções que eram maioria. Sendo assim, seria
possível desintegrar a instituição para criar uma segunda.
REFLEXÃO SOBRE OS PROCESSOS CRIMINAIS

Carlos Barcellar (2008) abre uma das fontes que serão trabalhadas nesta pesquisa, a
fonte documental de arquivos, particularmente, do Centro de Memória da Amazônia. Os 36
processos criminais que datam do ano de 1950 até 1970 são referentes a crimes Militares
julgados na instância a Justiça Militar, além de trazer sobre os crimes, esses documentos
também oferecem algumas informações como quem era o responsável por trabalhar o crime,
por quais etapas ele passava até a conclusão do processo, quem eram as testemunhas, nos
trazem os jornais, por vezes com a publicação do crime, além da ficha do preso e seus
antecedentes.

Tendo um mínimo de domínio na hora de lidar com a fonte será preciso considerar o
que Carlo Ginzburg chama de ciência indiciária, e que pode nos contribuir com os rastros que
podem até ser imperceptíveis. Se deixarmos de notar estes indícios, estaremos perdendo uma
boa parte do trabalho pela falta de atenção em reconhecer possibilidades de pesquisa. No
capítulo “Sinais: raízes de um paradigma indiciário” da obra Mitos, Emblemas e sinais,
Ginzburg (1939), trabalha com a ideia da criação de novos paradigmas que viera a ser o
estabelecimento de padrões e modelos que podem ser empregados em várias áreas e dentro
dela a história está incluída porque “O seu objeto, de fato, constitui-se através de uma drástica
seleção destinada a se reduzir ulteriormente- dos elementos pertinentes.“ (Ginzburg, 1939).
Portanto ao se discutir as fontes, tanto do acervo, quanto as outras existentes para esta
pesquisa, deverá estar atento ao que os olhos não podem perceber de prontidão, e com uma
análise minuciosa poder descobrir, que particularidades implícitas nos processos deverão ser
acionadas por esse filtro do historiador.

Concordando com Bacellar (2008) é muito interessante ter esse olhar quando o
pesquisador está diante dessa documentação e passa a ler e imaginar esse cotidiano
acontecendo, além de começar a construir os personagens que fazem parte do processo. Com
a Justiça Militar não foi diferente, a documentação despertou a atenção, sendo lido com
cuidado para ser catalogado e disponibilizando. Mas se tratando de documento escrito, o
estabelecimento de critérios para trabalhar com esta documentação é muito necessária porque,
mesmo que sejam processos judiciais, elas ainda devem despertar as desconfianças. Esta é
fundamental para se ter perspectivas distintas referentes ao objeto, a criticidade.
Marc Bloch nos trás, em Apologia da história um assunto muito importante acerca da
imparcialidade do ser humano, quando este se encontra com seu objeto de investigação onde
se deve ter um pé atrás do que seria verdadeiro e se tratando de um processo criminais e da
instituição que giram em torno da Justiça, temos que avaliar cuidadosamente se o processo
poderia estar camuflado com tendências relacionadas às punições, privilégios pela hierarquia
na instituição, se o resultado do processo foi mais brando com um do que com o outro de
mesma origem.

CONCLUSÃO

Ter na historiografia Brasileira discussão sobre a Justiça Militar no Brasil vem a ser
enriquecedor para os estudiosos da área, mas ter um debate novo, dentro da Amazônia e para
a Amazônia, de modo particular, é um caminho que facilitaria e muito vários aspectos da
pesquisa sobre as fontes dessa Justiça porque além de se construir um conhecimento acerca
desse acervo, o pesquisador pode encontrar dentro dele novas motivações e lacunas que se
questionadas, poderiam incentivar a alimentação desta temática dentro da História Militar.

Em diálogo com a Nova História Militar, de modo a desvincular a ideia da relação


Militar/opressor, essa contribuição para com a sociedade a levaria a conhecer um pouco mais
sobre como essa Justiça Militar atuava no Pará, como ela era constituída, que papel
desempenhava na sociedade e como seria seu tratamento para com os acusados, se do ponto
de vista dos sujeitos estariam sendo injustas ou não, além de outras contribuições que
inserissem um olhar mais direcionado para com os sujeitos na instituição.
O historiador, não se deve escrever sem questionar os vários pontos, porque cada
indivíduo possui sua versão e verdade, e sobre o mesmo tema, podem discorrer de maneiras
diferentes. Mas a dúvida é importante, ela nos permite ir além das análises, permite-nos
balancear as opiniões e até discordar delas. Essa hierarquia de deveres dentro da justiça
militar, condizente com a hierarquia externa da polícia e bombeiro, traz uma reflexão sobre a
fluidez do sistema penal militar, um organismo interligado por fundamentações psicológicas,
jurídicas, social e cultural, no modo de lidar com a justiça. Nós percebemos isso através da
densa descrição dos dois homicídios.
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361-380, maio-agosto 2016.
MARINHEIROS NO PORTO DE BELÉM: CONFLITOS, AMORES, SOCIABILIDADE E
TROCAS CULTURAIS (1889-1912)

Eduarda Josefa Peixoto Alves - História (UFPA)


Orientador: William G. Farias

Palavras-chave: Porto, marinheiros, relações sociais.

INTRODUÇÃO
O trabalho surgiu a partir de reflexões sobre as relações entre mulheres e
marinheiros nos portos de Belém, entretanto o maior amadurecimento dessa reflexão me levou
a considerar não apenas os sujeitos, mas o espaço e os demais fatores, os quais formam as
relações no porto.
O período escolhido foi o de 1889 à 1912, o qual é identificado por alguns autores
como Belle Époque, já que havia uma tentativa da Paris na América, trazendo seus ideias
elitistas e intelectuais. Outro fator que me ajuda a escolher o recorte é a forte economia da
borracha, onde havia importação e exportação, intensificando a entrada e saída de
embarcações, o que intensifica também a movimentação de pessoas nos portos, e é importante
salientar que apesar da ideia inicial do trabalho se preocupar com as relações entre mulheres e
marinheiros, considero o meu principal ponto as relações no porto entre todos os indivíduos
que o frequentavam, incluindo marinheiros, mulheres, estivadores, comerciantes e outros
personagens. Durante o desenvolvimento do trabalho, busco desenvolver reflexões sobre os
sujeitos em relações de sociabilidade, adentrando também em suas próprias características e
condições de trabalho, os quais considero primordiais para entender os sujeitos e suas
relações.
Marinheiros no porto de Belém: conflitos, amores, sociabilidade e trocas culturais (1889-
1912) tem a intencionalidade de refletir as interações existentes no espaço do porto a partir de
vivências cotidianas entre os sujeitos, como feiras, festejos e dias comuns de trabalho, mas
também em relações específicas e pessoais, como amores, brigas e crimes. Sendo assim, no
trabalho são considerados diversos fatores para pensar o ambiente portuário como o recorte
temporal, a economia, os sujeitos e a representação do porto para a sociedade da Belém do
início do século XX.
DA BELLE ÉPOQUE AO PORTO

Durante a chamada Belle Époque muitas foram as mudanças governamentais vividas por
Belém, de interesses diferentes e vertentes políticas diferentes, os dirigentes da Cidade das
Mangueiras viveram e administraram um novo momento para o governo do estado, e sobretudo
a cidade. No final do século XIX e início do XX, rodeado pelas perspectivas Bellepoquianas
vividas pela elite na tentativa de “afrancesar” e até “civilizar” os costumes belenenses, as
mudanças nos costumes e na arquitetura de Belém são grandemente afetadas. Isso não significa
a mudança homogênea e singular desses fatores pela cidade, entretanto é possível sim
identificar mudança, mas jamais plural.

O que há de diferente em Belém em 1889 é que essa tentativa de tornar Belém a


“francesinha dos trópicos” movimenta costumes e condições de vida muito particulares das
pessoas da cidade ou de fora dela. É nessa afirmação que é possível pontuar a principal fonte de
economia vivida por Belém: a borracha. Durante a Belle Époque, a exportação de borracha para o
mundo e a importação de matérias para a construção física desta idealização movimentou
fortemente as vias de transporte principais da época, que são as vias marítimas. Por isso, acredito
na singularidade deste período para considerar a movimentação e sociabilidade portuária, meus
objetivos de pesquisa.

A entrada e saída de mercadoria nos portos de Belém constrói a movimentação de muitos


outros fatores além dos produtos, pois movimenta pessoas, trabalhos, interações e trocas tão
plurais que não seria possível considerar os sujeitos sem suas particularidades. Mas dentro desta
colocação de tempo e sujeitos, o que é o porto de Belém entre 1889 e 1912? Pois bem, não é
possível homogeneizar os sujeitos históricos, assim como não é possível tratar o porto como um
local só. Belém é uma cidade extremamente rodeada por água, sendo rio ou mar, esta é
delineada por vias marítimas muito ricas. Temos, por exemplo, o Rio Guamá e a Baía do
Guajará, tornando Belém zona de exportação e importação de lugares dentro e fora do país,
ampliando fortemente a gama de comercializadores com a cidade, como mostra o mapa feito
durante o governo de Senador Lemos, em 1901:
Mapa da cidade de Belém, 1901.

Percebo através das fontes que, além de possuir muitas zonas de rio, Belém possui muitos
portos, já que quase qualquer beira de rio poderia ter um trapiche a ser usado como porto para
comércio e relações. Mas em meio ao período, o que há de relação entre as mudanças da
cidade e este espaço portuário? A professora Maria de Nazaré Sarges, por exemplo, através de
sua obra Belém: Belezas produzindo a Belle Époque: 1870-1912, me permite entender como a
tentativa da construção de uma Belém à francesa fomenta relações em toda a cidade, além de
trazer outros comportamentos e interesses na elite local e no povo.
As mudanças de comportamento e interesses não se encontram apenas em novas formas de
pensar ou em mudanças na cidade para a época, mas em uma economia que além de ser
fomentada por essas modificações, se forma na economia da borracha, que intensifica e dá
outros significados a movimentação nas cidades:
A procura de goma elástica por países industrializados esbarrou em alguns entraves,
como a reduzida oferta de mão de obra, transportes para a comunicação interna e,
sobretudo, o financiamento externo para extração em larga escala da borracha, o que
vai provocar repercussões nas relações econômicas, políticas culturais e sociais na
região. (SARGES, 2010, 94)

O recorte é considerado em vista das demandas econômicas da borracha e a vinda de


materiais que fomentam a pretensão de uma Paris na América, mas é necessário a partir disso
apontar que de acordo com Sarges (2010) e considerando a via marítima a principal saída de
exportação e importação de produtos, a entrada de toda esta novidade monumental e do
fomento da economia borracheira eram grandes motivos para a movimentação dos portos na
Belém do final do século XIX e início do XX.

TRABALHO E RELAÇÕES PORTUÁRIAS NA BELÉM FRANCESA

Os sujeitos presentes no porto durante o trabalho são percebidos como de várias classes,
ocupações e vindos de diferentes locais. Os fatores que influenciam essa variada gama de
sujeitos podem ser identificados em suas ocupações e classes sociais, como é o caso de
feirantes, prostitutas, marinheiros, estivadores e pequenos trabalhadores observados em
jornais e ocorrências policiais. O oficial da Marinha e o marítimo ocupam lugares bem
distintos dentro do porto, pois enquanto o marítimo desfruta do ambiente portuário das festas
ao descanso, o oficial apresenta caráter mais reservado, é neste ponto que Pablo Nunes Pereira
em sua dissertação fala sobre as diferenças de tratamentos e trabalhos entre marinheiros na
análise da descrição de um repórter do jornal Correio da Manhã sobre a mão de um dos
cadáveres encontrados nas ruínas do encouraçado Aquidabã, no Rio de Janeiro em 21 de
janeiro de 1906:

O indivíduo que afirmara tratar-se das mãos de um oficial pelas características como
delicadeza e estética, embora anônimo, é dotado de uma consciência interessante
sobre o universo social da Marinha: se as mãos de um oficial era belas e delicadas,
considerando tal categoria, é presumível que, na mesma linha de raciocínio, as mãos
de um marinheiro fossem rudes e feias. Se os dedos de um eram finos e alongados,
do outro deveriam ser grossos e curtos. De uma maneira sutil, há a consciência de
dois universos – dos oficiais e dos praças/marinheiros – que não são distintos apenas
pelas atribuições, mas porque as mãos de um e de outro também o são: a vida militar
ou pelo menos o pertencimento a um ou outro círculo tinha marcas no próprio corpo
dos militares. (PEREIRA, 2017, p.106).

É a partir das fontes e da colocação de Pereira (2017) sobre a hierarquia no meio militar, que
busco as ausências e presenças dos sujeitos do mar durante o levantamento das
documentações analisadas no Arquivo Público do Estado do Pará, onde é possível perceber o
maior envolvimento de marítimos com crimes, e não de oficiais. Dos doze casos criminais
envolvendo marinheiros oficiais ou mercantes no porto como atores de crime possíveis de
serem analisados, apenas um envolve oficiais da Marinha. Do caso encontrado envolvendo
oficiais da Marinha, foi possível analisar o caráter cotidiano de descanso que a terra carregava
para o marinheiro85:

Comunicou que tendo estado em um botequim, à rua Aristides Lobo, bebendo com
alguns marinheiros nacionais e um praça, ao retirar-se, os marinheiros correndo atraz
deram-lhe uma paulada. Gomes caiu recebendo um profundo ferimento no lado
esquerdo do rosto, pelo que foi recolhido ao Hospital de Santa Casa.

A presença de marítimos e marinheiros não é de forma alguma a única encontrada nos portos,
pois há também a presença de trabalhadores que prestam serviços a embarcações, mas que são
pessoas do meio urbano de Belém, como é o caso de acidente de trabalho do empregado da
Oficina Camelier, João de Mello, o qual veio a óbito após queda sofrida a bordo do Vapor
Amazônia, sobre o convés deste86:

Luiz Felippe da Silva comunicou que hontem a 1 1/2h da tarde cahio desastradamente
dum par de carca de bordo do v. “Amazonia” sobre o convez do mesmo vapor,
morrendo instantaneamente devido a pancada que recebeu, o empregado da officina
Camelier, de nome João de Mello. O seu cadáver fiz recolher ao Necrotereo.

O episódio de João de Mello vem a representar que a variedade de serviços executados ali ia
muito além de chegada e partida de mercadorias e pessoas, mas também a interação da cidade
de Belém com o porto e a necessidade dessa através dos serviços. Além de pessoas da cidade,
o porto de Belém é um local de grande fluxo não só de navegações, marinheiros e
funcionários da cidade, mas também de trabalhadores e trabalhadoras de todos os tipos e
dispostos a trabalhar de diversas formas, mesmo de maneira extremamente incerta e informal
para a sobrevivência. A vida no porto não contava apenas com a presença de marinheiros,
como já citado. Mas quem são os demais sujeitos? Para responder esta pergunta, é necessário
pontuar primeiramente que o porto, de acordo com as fontes, não é um ambiente de passeio, é
um ambiente sobretudo de trabalho pesado, onde seus trabalhadores estão ali principalmente
para sobreviver onde muitas vezes a falta de emprego os consumia:

Diariamente e até duas vezes no dia, uma multidão de candidatos aglomeravam-se nos
portões dos Portos para conseguir trabalho para o dia ou até por algumas horas, Este
sistema de contratação conhecido como free call( Inglaterra), shape up (Estados
Unidos) ou “parede” (Brasil), levou à criação e manutenção de um exército

85
Arquivo Público do Pará, Ocorrências Policiais, 1912.
86
Arquivo Público do Pará, Ocorrências Policiais, 1912.
permanente de reserva na área do porto, ao qual os empregadores recorrem nos
momentos de pico do movimento do porto. ( GITAHY, 1992, p 105)

A fala de Maria Lucia Gitahy é extremamente ilustrativa para compreender que o


simbolismo do porto para as periferias belenenses da época, já que, enquanto em 1905 o
Teatro da Paz recebe sua grandiosa reforma, a qual dá a ele características muito regionais da
cultura paraense, a massa pobre da cidade trabalhava em seus portos transportando dos navios
para o porto seus materiais vindos de países como França e Inglaterra. Por isso, a intenção
Bellepoquiana movimentava o porto e as interações que ali aconteciam:

Mosaico
87
A Lenda do Muiraquitã, Hall de entrada do Teatro da Paz.

Além do fluxo de pessoas da cidade procurando trabalho no porto, é possível encontrar nas
documentações quem também vinha de longe para trabalhar nas zonas portuárias. Maria
Roseane Corrêa Pinto Lima em sua tese de doutorado discute a presença de barbadianas nos
portos de Belém:

O jornal A Província do Pará, no final de outubro de 1911, trazia a notícia sobre tal “
Lavadeira das Arábias”. Esse jornal contava a situação na qual se envolveu um senhor
chamado Oscar de Souza Martins, que solicitou os trabalhos de uma senhora, Helena
de tal, para quem ele entregou várias peças de roupa para lavar. Ficou insatisfeito com
os resultados dos serviços de Helena, e terminou em acusa-la de extravio de roupas[...]
( LIMA, 2013, p.172)

87
https://www.tripadvisor.com.br/LocationPhotoDirectLink-g303404-d2373177-i233075614-Teatro_da_Paz-
Belem_State_of_Para.html
Os episódios encontrados nas documentações me fazem perceber a grande quantidade de
tipos de relações existentes no porto. A brigas entre trabalhadores e marítimos são bastante
recorrentes nestas, sejam estas por bebedeiras ou questões de trabalho. Entretanto, pude
observar nas documentações de casamentos encontradas no Centro de Memória da Amazônia
algo muito particular dos casamentos de marinheiros, que é a autorização para acelerar o
processo de casamento para que este possa seguir em viagem. Esta questão me revela um fator
muito importante para as relações sociais, que é o fator humano. Pensar o marinheiro e o
porto, segundo a literatura de folhetins de jornais do final do século XIX, como é o caso do
romance “A Africa Mysteriosa” encontrado no jornal O Caixeiro88 me revela um imaginário
de vida no porto de muita festa e farra, excluindo a humanidade do sujeito do porto e sua vida
além deste.

Diante da economia, pude perceber nas documentações que Belém para o trabalhador
portuário ou para o marinheiro mercante de 1900 nunca chegou a ser “a francesinha dos
trópicos”, pois tanta riqueza e novos horizontes intelectuais em sua esmagadora maioria não
chegavam aos sujeitos mencionados, principalmente em um Brasil majoritariamente
analfabeto. Entretanto, o trabalho através das riquezas chegou, novas pessoas de lugares
completamente novos chegaram. Compreendo, neste estágio da pesquisa, que as relações
portuárias foram infinitamente imensuráveis, pois estas foram formadas pelas interações entre
sujeitos diferentes, vivendo condições diferentes, completamente humanas e históricas. A
Belle Époque belenense afetou o porto de forma muito singular, pois fomentou a entrada e
saída não só de marinheiros mercantes, viajantes e oficiais da Marinha, mas de costumes e
interações além dos rios.

É comum, durante a leitura de jornais do século XIX e XX, encontrar a notícia da chegada
de navios vindos de todo o mundo. Muitos cheios de mercadorias necessárias para este
desenvolvimento, e muitos outros lotados de pessoas do mundo todo, sejam para trabalho ou
passeio. A estrutura dos anúncios de jornais, de forma específica e pontual, sempre indicando
que tipo de mercadorias ou de onde as pessoas vinham nestes navios me permite analisar a
necessidade da conexão entre Belém e mundo que acontecia. Durante o governo de Augusto
Montenegro, em 1908, houve a criação do álbum do Estado do Pará, onde a obra não foi
produzida apenas em Português, mas também em inglês e francês em um mesmo livro,
demonstrando as ligações com o exterior que o governador possuía e prezava. Portanto, o

88
O Caixeiro. Ano 1890, edição 00022.
porto é a via de conexão mais importante entre Belém e mundo, onde as trocas reafirmam
relações sociais e culturais.

Conclusão
Por fim, considero que as relações portuárias vão muito além do cotidiano portuário, e estas
devem ser vistas com suas conexões, sejam elas pessoais ou políticas. A Belle Époque
paraense traz consigo idealizações elitistas que se materializam nas relações comerciais, mas
também nas pessoas. Não obstante, é necessário observar também as camadas populares e
como este período influencia seu cotidiano.

A modificação social que influencia a economia belenense é a base para a intensificação de


relações nos portos principalmente pelo aumento do fluxo de pessoas, onde o trabalho e as
interações entre eles se baseavam nas chegadas e partidas de mercadorias e indivíduos. Neste
ponto, ressaltar o papel dos oficiais da Marinha e de marinheiros mercantes é extremamente
necessário desenvolver o meu objetivo de demonstrar as relações no porto, pois é através das
embarcações que se teve o aumento do fluxo de estrangeiros e pessoas de outras localidades
mais próxima.

Contudo, procuro sempre afirmar a presença de outros sujeitos através das documentações,
pois a presença destes é vital, já que constitui estas relações. Cada indivíduo no porto é
agente, e a relação social portuária se constrói dentro do período de maneira muito própria. A
presença de marinheiros, vendedores, lavadeiras, trabalhadores e muitos outros sujeitos me
permitiu considerar e seus motivos de estar ali e suas condições de vida, as quais foram vitais
para as relações que puderam ser observadas, sejam de conflito ou comunhão, por isso,
acredito ser necessário o aprofundamento da observação dessas relações em trabalhos futuros
que darão continuidade a esta pesquisa, para melhor compreender que tipo de simbolismos
são presentes nestas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DEL PRIORE, Mary. História do cotidiano e da vida privada. In: Domínios da história:
ensaios de teoria e metodologia/ Ciro Flamarion Cardoso, Ronaldo Vainfas (orgs.). - Rio de
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interpretação das culturas. Ed 13. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais:
morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
GITAHY, Maria Lucia Caira. Ventos do Mar: Trabalhadores do porto, movimento Operário e
Cultura Urbana em Santos (1889-1914). Unesp. São Paulo, 1992.
PEREIRA, Pablo Nunes. A Marinha de Guerra na Amazônia: segurança e modernização
(1890-1918). Dissertação ( mestrado) Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, Belém,
2017.
PINSKI, Carla Bassanezi (Org). Fontes Históricas. Contexto. São Paulo, 2008.
PINTO, Maria Roseane Corrêa. Barbadianos negros e estrangeiros: trabalho, racismo,
identidade e memória em Belém de início de século XX. Tese (doutorado) Universidade
Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História,
2013.
SARGES, Maria de Nazaré. Belezas produzindo a Belle Époque (1870-1912). Ed. 3, Paka-
Tatu, Belém, 2010.
UMA ABORDAGEM DO ETHOS MILITAR:
AS DIFERENTES VISÕES SOBRE OS VALORES CASTRENSES.

Fabio da Silva Pereira


Orientador: Dr. Fernando da Silva Rodrigues
Doutorando em História (UNIVERSO)89

Palavras-chave: ethos militar; educação militar; análise do discurso.

1 INTRODUÇÃO

O estudo partiu das leituras das obras que tratam o ethos90 a partir dos discursos e das
práticas que tornam a instituição militar um órgão distinto em seu processo de formação dos
oficiais da linha de ensino militar bélico91 (LEMB). No que diz respeito à metodologia, o
presente trabalho está baseado nas contribuições de José D’ Assunção Barros (2013) e de Ciro
Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas (2012), de acordo com as seguintes classificações:
quanto ao tipo de pesquisa (ou objetivo), trata-se de uma pesquisa descritiva, e, no que diz
respeito aos procedimentos metodológicos, constitui-se num estudo de caso fundamentado em
pesquisa bibliográfica e documental.

Com a finalidade de traçar um histórico, a compreensão do conceito de ethos remonta à


antiguidade clássica e as práticas de retórica por seu idealizador: Aristóteles. O filósofo e
pensador grego trabalhou os dispositivos argumentativos que teve por finalidade apresentar
um prisma cujo objetivo não é examinar o que é persuasivo para tal ou qual indivíduo, mas
para tal ou qual tipo de indivíduos (MAINGUENEAU, 2019, p. 13). A prova pelo ethos
consiste em causar boa impressão pela forma como se constrói o discurso, com a finalidade de
proporcionar uma imagem de si capaz de convencer o auditório, ganhando sua confiança.

O conceito teórico do ethos não toca em sentidos considerados “palpáveis”, ou


concretos. No entanto, a experiência que une os indivíduos sob um contexto faz com que o
termo receba um sentido. E esse , ao ser captado pelo orador, e ser exercitado o seu discurso
através da escolha certeira das palavras, da correta entonação destas, da orquestração dos
gestos e atitudes, pode conquistar a identidade de grupos inteiros. Nesse sentido, existem

89
Fabio da Silva Pereira é professor de História Militar da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN).
Licenciado em História (UNIRIO) e Doutorando em História (UNIVERSO).
90
Dada a repetição do termo ethos em todo o corpo do artigo, optou-se por não colocar em itálico ou qualquer
outro recurso gráfico que proporcionasse destaque à palavra em si.
91
Os oficiais da LEMB são formados pela Academia Militar das Agulhas Negras e consistem de sete
especialidades: infantaria, cavalaria, artilharia, engenharia, intendência, comunicações e material bélico.
sempre alguns elementos contingentes num ato de comunicação, em relação aos quais é difícil
dizer se fazem ou não parte do discurso, mas que influenciam a construção dos ethos pelo
público ouvinte. É, em última instância, uma decisão teórica: saber se deve relacionar o ethos
ao material propriamente verbal, atribuírem poder às palavras, ou integrar-se a ele - e em
quais proporções - elementos como as roupas do locutor, seus gestos e outros detalhes que
montam um cenário próprio ao discurso que é desejável. Ou seja, o conjunto do quadro da
comunicação para a formação da cosmovisão dos eventos.

O gradiente dos níveis de percepção é sensível e, dependendo do público-alvo, requer


mais tempo entre os estágios de identificação entre os atos e a sua legitimidade perante um
grupo. O antropólogo Geert Hofstede (2003) estudou a cultura de vários países, incluindo o
Brasil nessa lista. No seu conceito de cultura, o termo é sempre um fenômeno coletivo, porque
é pelo menos parcialmente compartilhada com pessoas que vivem ou viveram dentro do
mesmo ambiente social, onde fora aprendido. A cultura consiste no “não escrito”, nas regras
do jogo social. É a programação coletiva da mente que distingue os membros de um grupo ou
categoria dos demais (HOFSTEDE, 2003, p. 15).

Em sua classificação, o país possui características de sociedades com altas distâncias do


poder, baseado por ambientes de desigualdades acentuadas e de personalismo, com a
distribuição de benefícios sem uma noção clara de mérito. Para o pesquisador Marco Túlio
Zanini, os estudos de Hofestede apresentam uma série de indicadores que caracterizam a
enorme distância entre a base e o topo da pirâmide institucional:

As pessoas com poder querem impressionar os demais; o poder baseia-se em laços


pessoais e dívida moral; a forma de mudar o sistema é feito por meio da força ou
carisma; revoluções e violência são comuns; há maior desigualdade de renda; as
religiões e os sistemas filosóficos acentuam a desigualdade; as ideologias políticas
reforçam a luta pelo poder (...). Essas sociedades podem estimular o surgimento de
líderes carismáticos e tiranos, com uso ilimitado do poder (ZANINI, 2016, p. 134).

O problema é por demais delicado, posto que o ethos, por natureza, é um


comportamento que, como tal, articula verbal e não verbal, provocando nos destinatários
efeitos multissensoriais. A simples aparência ou o estudo das técnicas de oratória, contudo,
não pode ser visto de modo simplório. Enfaticamente, não são traços "intradiscursivos” que
ligam o orador ao seu discurso somente porque, como vimos, também intervêm, em sua
elaboração, dados exteriores à fala propriamente dita. Logo, a prova pelo ethos mobiliza a
tudo que, na enunciação discursiva, contribui para destinar a imagem do orador a um dado
auditório. Tom de voz, determinado fluxo da fala, escolha das palavras e dos argumentos,
gestos, mímicas, trajes, o olhar, postura, aparência – todos esses, enquanto signos, de elocução
e de oratória, indumentários ou simbólicos, pelos quais o orador dá de si mesmo uma imagem
psicológica e sociológica (DECLERCQ, 1992, p. 48).
A enunciação presume, também, a experiência que une os indivíduos – orador e plateia
– em um corpus bem sedimentado. Do contrário, a mensagem proferida ao grupo pode ser
visto como um sofisma e, em consequência, toda a construção cairá em descrédito:
A noção de ethos remete a coisas muito diferentes conforme seja considerada do
ponto de vista do locutor ou do destinatário: o ethos visado não é necessariamente o
ethos produzido. Um professor que queira passar uma imagem de sério pode ser
percebido como monótono; um político que queira suscitar a imagem de um
indivíduo aberto e simpático pode ser percebido como um demagogo. Os fracassos
em matéria de ethos são moeda corrente (MAINGUENEAU, 2019, p. 16).

O destinatário deve, então, atribuir certas propriedades de identidade à instância que é


posta como fonte do acontecimento enunciativo. O ponto essencial está quando o discurso tem
uma natureza que confere ao orador a condição de digno de fé, persuadindo o pensamento
hegemônico92 pelo caráter93 [= ethos]. De acordo com Auchlin (2001), o ethos não encobre
somente a dimensão verbal, mas também para o conjunto de determinações físicas e psíquicas
em uma posição empírica entre o discurso oral e escrito – demonstrada pelas representações
coletivas estereotípicas. Assim, atribui-se a ele um “caráter” e uma “corporalidade94”, cujos
graus de precisão variam segundo o discurso, os textos e imagens atrelados.
Além disso, o ethos dinamiza a maneira de se mover em um determinado espaço social,
uma disciplina tática do comportamento humano (MAINGUENEAU, 2019, p. 18). Segundo a
autora, o destinatário a identifica apoiando-se em um conjunto difuso de representações
sociais avaliadas positivamente ou negativamente em estereótipos onde a enunciação do
orador ou a palavra escrita contribui para uma reação. Nesse sentido, o ethos se elabora por

92
Dos teóricos que abordam o conceito de hegemonia, Antonio Gramsci apresenta uma noção mais elaborada e
adequada para pensar as relações sociais, sem cair no materialismo vulgar e no idealismo encontrado na tradição.
O pensador italiano destaca a importância de formar uma classe dirigente que se mantenha pelo consentimento
das massas e não apenas pela força coercitiva. Ademais, sublinha a importância da direção cultural e ideológica
(ALVES, 2010, p. 73).
93
Segundo Auchlin, o “caráter” corresponde a um feixe de traços psicológicos. Nos capítulos 12 a 17 do livro II,
Aristóteles descreve os traços de caráter particulares dos homens em função de sua idade (juventude, maturidade,
velhice) e de sua fortuna (na ordem em que se apresentam: a nobreza, a riqueza, o poder e a sorte). Aristóteles
descreve, então, os diferentes traços que o orador pode encontrar em um auditório: cabe a ele escolher as
diferentes paixões que deverá suscitar. Como a virtude não é considerada da mesma maneira em todos os lugares
por todas as pessoas, é, em função de seu auditório, que o orador se construirá urna imagem, conforme o que é
considerado virtude. A persuasão não se cria se o auditório não puder ver no orador um homem que tem o
mesmo ethos que ele: persuadir consistirá em fazer passar pelo discurso um ethos característico do auditório,
para lhe dar a impressão de que é um dos seus que ali está (MAINGUENEAU, 2019, p. 15).
94 Para Auchlin, a “corporalidade” está associada a uma compleição física e a uma maneira de se vestir.
meio de uma percepção complexa, mobilizadora da afetividade do intérprete, que tira as suas
informações do material e do ambiente.
Encontramo-nos, portanto, na “Retórica” de Aristóteles, diante de dois campos
semânticos opostos ligados ao termo ethos: o primeiro, de sentido moral, engloba atitudes e
virtudes como honestidade, benevolência ou equidade; o segundo, de sentido neutro e
objetivo, o qual reúne os hábitos, modos e costumes ou caráter (EGGS, 2018, p. 30). Antoine
Auchlin traz do conceito aristotélico para o contexto prático
A noção de ethos é uma noção com interesse essencialmente prático, e não um
conceito teórico claro (...) Em nossa prática ordinária da fala, o ethos responde a
questões empíricas efetivas, que têm como particularidade serem mais ou menos
coextensivas ao nosso próprio ser, relativas a uma zona íntima e pouco explorada de
nossa relação com a linguagem, onde nossa identificação é tal que se acionam
estratégias de proteção (AUCHLIN, 2001, p. 93)

Nesse escopo, a conquista da confiança envolve um emaranhado de artefatos que


extrapolam a mera ação protagonista do discurso, da fala. Para o sociólogo alemão Niklas
Luhmann (1980), o ato de confiar deriva de valores compartilhados. A vinculação, nessa
perspectiva, atua de maneira similar à suspensão do puro desejo egoísta em favor de uma
orientação para os interesses da coletividade. Assim, para Hofestede, as diferenças culturais se
exteriorizam de várias maneiras. Dos muitos termos usados para descrever as manifestações
da cultura, os quatro seguintes juntos cobrem o conceito total de forma bastante nítida:
símbolos, heróis, ritos e valores. Na figura a seguir, elas foram retratadas como as peles de
uma cebola, indicando que a simbologia representam o mais superficial e valorizam as
manifestações mais profundas da cultura, com rituais intermediários.

Figura 1 - A cultura como cascas de cebola – Modelo de Hofstede.

Fonte: HOFSTEDE, 2003. p. 17.


Segundo Edgard Schein, a organização como um todo vivenciou experiências comuns,
pode existir uma forte cultura organizacional que prevaleça sobre as subculturas das unidades.
Ele ale atribui uma grande importância ao papel dos fundadores da organização no processo
de moldar seus padrões culturais.
Os primeiros líderes, ao desenvolverem formas próprias de equacionar os problemas
organizacionais, acabam por imprimir a sua visão de mundo aos demais e também a sua visão
do papel que a organização deve desempenhar nesse ambiente. Para esse autor, não é possível
compreender cultura sem o seu aspecto dinâmico, como é aprendida, passada para frente e
transformada, o que faz entendê-la como um processo contínuo de formação e mudança que
está presente em todos os aspectos da experiência humana (SCHEIN,1991). Dominique
Maingueneau oferece mais detalhes:
Não se trata de uma representação estática e bem delimitada, mas, antes, de uma
forma dinâmica, construída pelo destinatário através do movimento da própria fala
do locutor. O ethos não age no primeiro plano, mas de maneira lateral; ele implica
uma experiência sensível do discurso, mobiliza a afetividade do destinatário. Para
retomar uma fórmula de Gibert (século XVIII), que resume o triângulo da retórica
antiga, "instrui-se pelos argumentos; comove-se pelas paixões; insinua-se pelas
condutas": os "argumentos" correspondem ao logos, as "paixões" ao pathos, as
"condutas" ao ethos. Compreende-se, assim, que na tradição retórica o ethos tenha
sido frequentemente considerado com suspeição: apresentado como tão eficaz
quanto o logos — às vezes até corno mais eficaz do que o logos, os argumentos
propriamente ditos —, desconfia-se, inevitavelmente, que inverta a hierarquia moral
entre o inteligível e o sensível, e também entre o ser e o parecer, uma vez que o
orador pode mostrar no discurso um ethos mentiroso (MAINGUENEAU, 2019, p.
14).

Ainda, de acordo com Edgard Schein, a cultura de uma organização pode ser aprendida
em vários níveis, de acordo com o quadro a seguir:

Quadro 1 – Níveis de cultura – Modelo de Schein.

Nível Descrição

Ambiente constituído da instituição, representado por sua arquitetura, sua


tecnologia, seus comportamentos visíveis, seus manuais de instruções e
Nível dos artefatos
procedimentos, a disposição das dependências internas, a comunicação social, as
visíveis
insígnias, as medalhas, os brevês e diplomas, entre outros adornos que apontam
para a distinção do local e/ou da pessoa.

Nesse nível, os artefatos revestem-se de seu signo, governando o comportamento


das pessoas, por meio de seus códigos hierárquicos e os fundamentos para os
Nível dos valores julgamentos a respeito do que está certo e errado, ou seja, o código ético e moral
compartilhados do grupo. Está no nível intermediário, situado entre o consciente e o inconsciente,
regulado por um conjunto de princípios estatutários (leis, decretos, manuais,
regulamentos) que definem os artefatos.
É a parte mais profunda de uma cultura institucional. Paradigmas inconscientes e
invisíveis, que determinam como os membros de um grupo percebem, pensam e
Nível dos pressupostos sentem o mundo externo, a natureza da realidade, do tempo e do espaço, a
básicos natureza da atividade humana e das relações humanas. Nesse nível é percebido o
espírito de corpo, onde as características mais proeminentes do ethos são
percebidos.

Fonte: Schein, 1999. Adaptação feita pelo autor.

Portanto, através da passagem por esses níveis, a cultura torna-se consistente por meio
da história institucional, incluindo o depoimento dos heróis que a compõem, as solenidades de
recompensas para o membro destaque, os mitos utilizados, os jornais internos que transmitem
mensagens, normas, deveres e direitos dos membros (FREITAS, 1991). A utilização de
artefatos determina uma estratégia para que os membros se adaptem à cultura vigente e suas
mudanças, a fim de criar um mesmo modo de agir, pensar e sentir considerado como
adequado pelos indivíduos. Os artefatos podem ser verbais, comportamentais e físicos. Os
primeiros são os mitos, os heróis, os tabus e as histórias. Os comportamentais são os rituais e
as cerimônias, e os físicos as normas e símbolos (KILLMAN, 1988).
Os mitos, considerados artefatos verbais, relacionam-se com histórias fictícias,
amparados na historiografia patriótica, onde fornecem dados consistentes com os valores
organizacionais. São narrativas dramáticas de eventos imaginados, com o objetivo de explicar
origens e transformações das coisas. Chanlat (1993) explica o mito como um fator relevante
para a constituição das crenças, dos valores e das identidades organizacionais, podendo
emanar de civilizações, modernas ou não. Isso tem por função explicar a conexão entre o
saber e o agir, o passado e o presente, possibilitando a transformação da imaginação em rituais
que se estabelecem entre os membros da organização. Dessa forma, a cultura da confiança
baseia-se em um sistema de incentivos e valores compartilhados por normas e regras que
assumem que os indivíduos em geral são confiáveis. (ZANINI, 2016, p. 71).

2 A formação ética dos oficiais da linha de ensino militar bélico


O processo de socialização dos oficiais da LEMB inicia antes mesmo da entrada nos
portões acadêmicos. Os rígidos processos seletivos estabelecidos em editais fazem a
verificação da situação social dos candidatos, através da comprovação de não possuir
antecedentes criminais no cadastro nacional de segurança pública. Uma vez aprovado no
processo, o “ainda” candidato é submetido às noções básicas da cultura institucional durante o
período de adaptação, de aproximadamente quinze dias95. Nesse período, são distribuídos os
manuais, das quais destacam-se o Estatuto dos Militares96 (BRASIL, 1980), o Regulamento
Interno dos Serviços Gerais97 (BRASIL, 2003) e o Regulamento Disciplinar do Exército98
(BRASIL, 2002).
Além disso, o uso do uniforme e suas insígnias passam a figurar a rotina dos candidatos
a aluno em uma escola militar, onde o uso do uniforme é avaliado pelos três documentos ora
citados. No caso do aluno em um curso de formação da LEMB, as insígnias criadas revestem-
se de uma atenção especial. Isto, porque alguns uniformes foram confeccionados
especificamente para esse fim. No primeiro ano da AMAN, o então cadete 99 veste o uniforme
histórico denominado de “Azulão”. Adicionalmente, na semana do soldado (próxima ao dia
25 de agosto – data de nascimento de Luís Alves de Lima e Silva100), o cadete recebe o
espadim, uma cópia reduzida da espada que o Duque de Caxias recebeu por seus serviços
prestados ao Exército e ao Império do Brasil. Cabe destacar a atuação do Coronel José Pessoa
Cavalcanti de Albuquerque na mudança no perfil da carreira da LEMB. Segundo Celso
Castro:
Com a criação do Corpo de Cadetes, o aluno matriculado na Escola passava a ser
considerado parte de uma entidade coletiva [...]. O principal controle de que os
novos preceitos disciplinares seriam seguidos deveria ser a consciência dos próprios
cadetes, através da criação do que José Pessoa chamou, em sua autobiografia, de
“um novo estado psicológico”, que tornaria cada um “escravo da sua dignidade
pessoal” [...]. Cada cadete era prisioneiro de si mesmo. E podemos afirmar, não
havia prisão mais sólida. O objetivo principal era, portanto, atingir “a alma e o
coração” doa jovens candidatos a oficial. Por isso, suas mais importantes iniciativas
– e as mais duradouras – foram no plano simbólico [...]. Em primeiro lugar, os
uniformes dos cadetes foram mudados [...]. Foi solicitado o auxílio do artista José
Washt Rodrigues para criar o novo plano de uniformes. Adotaram-se uniformes

95
Com exceção de alguns concursos esporádicos de ingresso imediato na AMAN (2004 e 2011), o ingresso na
LEMB se dá por meio da entrada e aprovação na Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx). Nesse
estabelecimento de ensino, o aluno aprende em um ano as noções básicas da profissão militar e faz contato com
os integrantes da AMAN.
96
O presente Estatuto regula a situação, obrigações, deveres, direitos e prerrogativas dos membros das Forças
Armadas (BRASIL, 1980).
97
O Regulamento Interno e dos Serviços Gerais (R – 1 ou RISG) prescreve tudo quanto se relaciona com a vida
interna e com os serviços gerais das unidades consideradas corpos de tropa, estabelecendo normas relativas às
atribuições, às responsabilidades e ao exercício das funções de seus integrantes (BRASIL, 2016).
98
O Regulamento Disciplinar do Exército (R-4) tem por finalidade especificar as transgressões disciplinares e
estabelecer normas relativas a punições disciplinares, comportamento militar das praças, recursos e recompensas
(BRASIL, 2002).
99
O cadete, título de origem nobiliárquica e colocado em desuso no início do período republicano, ganhou novos
contornos. Em 25 de agosto de 1931 foi criado pelo Coronel José Pessoa o “Corpo de Cadetes”, em cerimônia à
qual estiveram presentes, entre outras autoridades, o Presidente da República Getúlio Vargas (CASTRO, 2002, p.
42).
100
Luís Alves de Lima e Silva – o Duque de Caxias – é o patrono do Exército Brasileiro. Nascido em 25 de
agosto de 1803, essa data é comemorada todos os anos como o dia do Soldado, acompanhada de ritos específicos
como formaturas militares, a cerimônia do juramento à bandeira nacional e o compromisso do espadim para os
cadetes do primeiro ano da AMAN.
militares do Império, principalmente da campanha de 1852 contra Rosas 101:
barretina, cordões com palmatórias e borlas, charlateiras de palma e palmatória
escarlate e emblema simbólico para a cobertura. A cor predominante passava a ser
turquesa. O elemento mais importante passava a ser o espadim (CASTRO, 2002, p.
42-43).

Além do próprio uniforme, a escolha do novo local – a cidade de Resende – reveste-se,


também do seu simbolismo, pois o pico das Agulhas Negras (ao fundo da construção,
comentário nosso), tido como o pico mais alto do Brasil na década de 1930, era visto como
um símbolo da unidade estrutural do Brasil (CASTRO, 2002, p. 44).
Em consequência da atenção dada à criação de novos dispositivos e artefatos, o cadete
passou a receber um tratamento mais rígido e sob um controle mais fechado. O sociólogo
Erwin Goffman102 afirma que a influência recíproca que os parceiros exercem sobre as suas
ações respectivas quando estão em presenças físicas uns dos outros. Na educação militar,
ocorre o processo de socialização mais intenso e longo de toda a formação técnica e superior.
O regime de internato, com mais de 10000103 (dez mil) horas de aula ou instrução de
disciplinas profissionais, é dividido por meio de manobras militares e exercícios de campo.
Este é um longo período, porque ocorre em, no mínimo, cinco anos ininterruptos, em um
sistema de isolamento comparado com uma “bolha” ou “um mundo à parte” (CASTRO,
1990).
O código de honra do cadete inicializa o militar no desenvolvimento de quatro deveres
fundamentais: a verdade, a lealdade, a probidade e a responsabilidade (BRASIL, 2014, p. 24).
Porém o Vade-Mécum de Cerimonial Militar do Exército - Valores, Deveres e Ética Militares
(BRASIL, 2002a) lista e categoriza somente dois desses quatro deveres (lealdade e
probidade). A verdade e a responsabilidade estão inseridas no plano da ética militar, mas não
possui uma definição institucional específica. Além desses deveres, o Vade-Mécum possui
outros enunciados que carecem de significado objetivo, conforme a figura abaixo:

Figura 2 – Diagrama sobre a Ética Militar

101
Juan Manuel de Rosas governou a Confederação Argentina entre 1835 e 1852, sendo derrotado pelas tropas
lideradas por Caxias na Batalha de Monte Caseros (em território argentino) em 3 de fevereiro de 1852. Esse foi o
único fato histórico em que as principais potências do continente sul-americano (Argentina e Brasil) se
enfrentaram militarmente e seu resultado influenciou na escolha do uniforme dos cadetes da AMAN.
102
No caso das instituições totais descritas por Erwin Goffman (1971), relacionada à vida fechada e com horários
definidos desde a hora de acordar – a “alvorada” - até a hora de dormir – também chamado de “silêncio” muito
comum nas escolas de formação militar, em particular na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) e suas
congêneres das outras Forças armadas, onde “todas as fases das atividades diárias são programadas dentro de
linhas estreitas, uma atividade conduzindo no tempo predisposto para a próxima” (GOFFMAN, 1971, p. 305).
103
Currículo da Academia Militar das Agulhas Negras (BRASIL, 2016).
Fonte: BRASIL, 2002a. p. 10.

Os deveres adicionais listados nesse documento são o resultado da mudança gradual no


perfil de militar desejável para atender às políticas públicas sob o contexto democrático. Esse
processo culminou com a criação do Grupo de Trabalho para a Modernização do Ensino no
EB (GTEME), de acordo com Portaria nº 26, de 6 de setembro de 1995.
Isso foi um importante passo no pensamento militar, porque por um lado representou o
cerne da mudança doutrinária voltado para as ações que estavam acontecendo naquele
momento em todo o mundo, aplicando gradativamente os conceitos das “Ações
Subsidiárias104” às escolas militares por meio de alterações curriculares. Por outro lado, a
equipe trabalhava no sentido de buscar autonomia na legislação do ensino castrense,
caminhando na contramão da integração da educação civil e militar. Em consequência disso,
as leis de ensino militares105 foram aprovadas alguns anos depois, concedendo autoridade
educacional para as três forças militares (PEREIRA, 2016, p. 49). Em entrevista, o ex-
ministro do Exército Gleuber Vieira apontou a motivação das mudanças:

Inicialmente, é necessário entender como modernização do Sistema de Ensino do


Exército, o processo contínuo de adoção de novo enfoque pedagógico. Segundo esse
modelo que se quer adotar, a escola já não pretende ensinar tudo. Seleciona um
núcleo de conhecimentos básicos para ministrar a seus alunos. Esses devem
participar ativamente do processo ensino aprendizagem, experimentando,
pesquisando e trabalhando em grupo, explorando a dúvida e o erro, manifestando

104
As Ações Subsidiárias, assim como eram chamadas naquela década de 1990, eram as novas missões que
estavam sendo conferidas aos militares no cenário mundial após a década de 1980, como o combate ao
narcotráfico e ao crime organizado, as missões de paz da ONU e as ações de cunho humanitário.
105
Lei de Ensino da Marinha - Lei nº 11.279, de 9 de fevereiro de 2006; Lei de Ensino do Exército - Lei nº
9.786, de 8 de fevereiro de 1999; e Lei de Ensino da Aeronáutica - Lei nº 12.464, de 4 de agosto de 2011.
seus talentos, usando das técnicas disponíveis na busca e seleção do conhecimento
que constroem. Busca-se o sentido holístico da educação do militar, para que ele se
capacite a manipular modelos e interaja com a sociedade a que pertence. Deve ser
flexível e adaptável às novas gerações de tecnologias. (VIEIRA, 1999, p. 5-6,
negrito feito pelo autor).

Esse conceito adaptável ao processo educacional permitiu inserir os deveres que antes
não estavam listados no Estatuto dos Militares. Na lei de 1980 estão listados somente os
valores e os princípios da ética militar, carecendo, dessa forma, dos dispositivos em forma
legal para a definição e o exercício das regras. No entanto, as inserções regulamentares
prestaram-se a preencher essa lacuna, dotando o cadete de novas regras a serem seguidas. Para
amalgamar essas inserções, a figura do herói, construído a partir da historiografia patriótica
contribui para a formação de uma identidade coletiva. A enunciação dos valores e deveres
militares inspirados em Caxias – reconhecido pelos historiadores por suas atitudes leais ao
poder vigente - possuem um papel marcante dentro da instituição castrense. Isso, porque o
herói orienta os atores institucionais na formação de uma identidade marcante e vitoriosa.
Para Deal e Kennedy (1982) os heróis nem sempre possuem uma personalidade fácil de lidar,
mas eles direcionam o comportamento dos indivíduos tornando real a possibilidade de
crescimento institucional.
Eis que a noção de ethos permite, então, “refletir o processo mais geral da adesão dos
sujeitos a determinado posicionamento” (MAINGUENEAU, 2008, p. 64). Everton Santos
afirma que “uma instituição reflete, por meio de seus ritos, seus mais profundos valores, o
mais íntimo do seu ethos, seu espírito e sua essência” (SANTOS, 2012, p. 81). Como é
próprio do discurso simbólico, o ritual destaca certos aspectos da realidade, dando um close
nas coisas do mundo social, isto é, tornando-as mais nítidas (DAMATTA, 1997, p. 76-77). As
necessidades da disciplina nas instituições castrenses revestem-se de importância quando
prestamos atenção na sua função weberiana da administração da violência. A educação
profissional militar trabalha com armamentos e equipamentos voltados para a arte da guerra,
dentro dos princípios constitucionais e conforme a legislação em vigor. Nesse aspecto, o
controle exercido pelo Estado sobre o jovem que está no processo de formação é mais intenso
e voltado para o viés das atitudes tomadas dentro de determinado ambiente operacional.
Assim, a intensidade tem relação com os dois pressupostos básicos na instituição militar: a
hierarquia e a disciplina.
O primeiro pressuposto busca selecionar e posicionar os corpos dentro de uma cadeia
hierárquica facilmente identificável por meio da enunciação dos postos e das graduações, em
que se sabe com precisão “quem deve vigiar” e “quem deve punir”. Nesse ponto, o segundo
pressuposto - a disciplina - transcorre como elemento central de manutenção dessa hierarquia,
pois se encarrega de docilizar esses corpos, moldando os comportamentos para desempenhar o
que se espera daquele militar em uma situação hipotética (Durkheim, 2002), lapidando a sua
atitude de acordo com as “normas” em vigor. Em consequência, os militares que prosseguem
na carreira devem seguir estritamente o que está previsto nos planejamentos e diretrizes
curriculares, moldando o seu interior, com vistas a externar as atitudes desejadas pelos seus
superiores, sob pena de não serem promovidos na escala hierárquica ou até mesmo serem
excluídos ou punidos sob a esfera disciplinar. Desse modo, os corpos dos alunos no processo
de formação são guiados, no seu plano consciente e inconsciente, e isso pode ter impactos no
restante da carreira. Assim, o ethos militar revela costumes, modalidades de participação,
práticas sociais e privadas que compõem a natureza da vida do soldado. Implicados nessas
práticas estão muitos dos objetivos e valores internos. Esses, por sua vez, servem claramente
ao fim da disciplina militar, possuindo um efeito na vida de um soldado que transcende as
exigências do seu ofício. Um militar leva para o mundo civil o retrato de si mesmo que ele
ganhou no Exército. Esse retrato revela o esterno dos militares, e está também imbuído de um
ethos particular que se autojustifica. O ethos, portanto, presta-se ao respeito pelo poder
estabelecido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A instituição militar pode ser visualizada como fenômeno de comunicação, uma
vez que suas culturas são criadas, sustentadas e principalmente transmitidas, através de um
processo de interação social, onde as atividades são baseadas na troca de mensagens, orais ou
não, e na interpretação e no significado que cada membro dá a mensagem recebida. As ideias
divulgadas e controladas em um ambiente quase fechado contribuem para uma peculiar
transformação do jeito de ser, investido dos valores historicamente especificados. A
contextualização da tríade filosófica abordada por Aristóteles, Logos – Pathos – Ethos, emula
um ambiente próprio na edificação dos símbolos no interior da instituição militar, onde são
destacados os atributos desejáveis à formação do futuro oficial da LEMB.
A condução dos corpos e as mudanças no ethos por meio das regras e normas militares
são apoiadas por uma série de artefatos criados para incentivar e controlar o ímpeto dos jovens
militares, amparados por um rígido sistema disciplinar dotado de recompensas e punições, sob
o intermédio do controle instituído pela fronteira física e pelos comportamentos demonstrados
ao longo de sua formação. Isto porque, à medida que as atitudes não esperadas são postas em
evidência, um arcabouço de regulamentos e ordens oferece o amparo estatal para colocar em
prática o processo de exclusão do discente.
Em virtude dos aspectos analisados, a concepção discursiva do ethos militar contribuiu
para inserir as transformações dentro do próprio sistema. Isso, sem ter a noção que alguns
deveres são novos, proporcionando o contexto da tradição, de que nem sempre fora
corriqueiro, caracterizando brevemente mais uma invenção. Nos anos 1990, o Exército
Brasileiro investiu tempo e recursos para adequar o oficial ao novo perfil desejável, onde
algumas missões que não eram da responsabilidade exclusivamente militar, foram
adicionadas. Assim, a boa imagem causada pela atitude desejável do cadete pode contribuir
para a projeção positiva da instituição perante a opinião pública, reforçada pela disciplina
acadêmica e pelas ações de comunicação social.

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A CRISE DO CARVÃO MINERAL NO BRASIL E NA AMAZÔNIA DURANTE A
PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL106

Pablo Nunes Pereira (Doutorando em História, UFPA)


Orientador: Prof. Dr. William Gaia Farias (UFPA)

Palavras-chave: Carvão; Primeira Guerra Mundial; Marinha de Guerra.

Introdução

O presente trabalho representa alguns resultados parciais do terceiro capítulo da tese


de doutorado em desenvolvimento “Os almirantes dos rios: poder fluvial e combate na
Amazônia (1868-1924)”. No referido capítulo, procuro compreender como a navegação a
vapor impactou em especial a Marinha de Guerra na Amazônia, seja do ponto de vista
tecnológico, com a gradativa substituição de embarcações a vela para vapores e,
consequentemente, os impactos nas relações hierárquicas entre os militares da força naval,
bem como do oficialato mercante e a própria dinâmica da região amazônica.

O recorte da tese, intercalando a criação da Flotilha do Amazonas (1868), primeira


efetiva unidade militar da Marinha a qual deveria receber navios armados específicos para
atuação permanente na região, com a revolta tenentista de 1924 coincidem em grande medida
com o auge da “era do vapor”, isto é, o período em que os motores à combustão de vapor
utilizando diversos tipos de carvão (principalmente de origem mineral) representou a parte
mais expressiva das inovações tecnológicas dos transportes no mundo.

A era do vapor na Amazônia também representa o auge de uma lógica de ocupação e


movimentação pela região que é denominada de “civilização do rio” por Rosa Elizabeth
Acevedo Marín107. A reflexão pressupõe a ideia de que, em primeiro lugar, as áreas mais
ocupadas da região estavam situadas às margens dos rios, tendo a velocidade das viagens e do
deslocamento por eles diminuídas sensivelmente com a introdução dos navios a vapor e,
consequentemente, a modernização das cidades da Amazônia esteve intimamente relacionada
à construção de uma infraestrutura compatível com a navegação a vapor, seja com ampliação
da capacidade portuária para carga e descarga de produtos e recepção de pessoas, cujos fluxos

106
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
107
MARIN, Rosa Elizabeth Acevado. Civilização do rio, civilização da estrada: transportes na ocupação da
Amazônia no século XIX e XX. Paper do NAEA, Belém, n. 170, maio de 2004.
aumentaram, assim como aumento de casas importadoras, depósitos de carvão e compra de
equipamentos compatíveis aos novos paquetes das companhias de navegação.

Nesse sentido, a ideia do capítulo em questão surgiu a partir da análise de uma parte do
primeiro relatório ministerial da Marinha publicado em 1916, “Marinha e os orçamentos”108,
onde o ministro Alexandrino Faria de Alencar discutira as dificuldades econômicas passadas
pela força naval com o contingenciamento do orçamento da instituição, valendo-se de três
áreas consideradas por ele estratégicas: os mantimentos em geral, o material de construção
naval e os combustíveis. Para este trabalho, focarei apenas a discussão dos combustíveis.

Segundo o almirante, “se houve um artigo cujo preço se elevou em consequência da


conflagração europeia, esse foi sem dúvida o carvão”109. O carvão mineral, especialmente o
tipo Cardiff, principal utilizado pelos navios a vapor, teve um aumento expressivo da
demanda com a Guerra, tendo o valor da tonelada aumentado de 25$000, entre 1906-1910,
para até 100$000 em 1916, segundo o relatório. Alexandrino estimava ainda que, com o
orçamento previsto para este ano, só seria possível comprar cerca de 8.500 toneladas de
carvão, 25% da quantidade em anos anteriores, complementando que “os navios de guerra não
podem ficar condenados à estagnação nos portos: com isto, só poderão perder pouco a pouco
as qualidades indispensáveis que devem ter como elementos de defesa e arrastar o pessoal à
inaptidão para manobra-los”110.

A questão levantada no relatório é interessante por conter em si um conjunto de


indagações cruciais à navegação e ao processo de modernização da força naval brasileira:
primeiramente, a falta de carvão significava um interdito ao projeto de modernização
desenvolvido desde pelo menos 1904 e alterado entre 1906 e 1910 quando da gestão de
Alexandrino; em segundo, o Brasil não havia, até o momento, desenvolvido uma produção
sólida de carvão mineral e, portanto, a fonte básica do combustível era o comércio
internacional com potências produtoras; em terceiro, ela trazia consigo a divisão clara entre
possuir navios modernos e deter a capacidade real de operá-los em uma eventual entrada no
conflito.

108
BRASIL. Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil pelo Almirante
graduado Alexandrino Faria de Alencar, ministro de Estado dos negócios da Marinha em abril de 1916, primeira
parte. Rio de Janeiro: Imprensa Naval, 1916, pp. 9-18.
109
Idem, p. 14.
110
Ibid., p. 15.
Características quantitativas da crise na Amazônia (4 laudas)

Das indagações, compreendi que não seria possível analisar de forma profunda a
questão sem precisar a existência real ou a natureza da crise orçamentária em questão e como
ela se traduziria nos orçamentos de três níveis no período compreendido da pesquisa em geral
e da década de 1910: 1- dos orçamentos federais em si; 2- do orçamento anual do Ministério
da Marinha e 3- do orçamento destinado aos combustíveis neste ministério. Dos dados
levantados segundo as leis orçamentárias anuais111, é possível observar uma variação
considerável nos orçamentos do governo federal no período.

Orçamento geral do Brasil entre 1910-1918 em contos de


réis
600000

500000

400000

300000

200000

100000

0
1910 1911 1912 1913 1914 1915 1916 1917 1918

Receita Despesa

Durante a maior parte da década de 1910, portanto, o orçamento federal fechou em


déficit, o que, baseado nessa questão, já configuraria pelo menos um tipo de crise
orçamentária da qual o próprio orçamento da Marinha passou por mudanças, tendo a parcela
do orçamento voltada para o combustível mantido uma regularidade durante o período:

Quadro 1 - Orçamento de combustíveis da Marinha, 1910-1918


Percentual relativo
Orçamento de
Ano Orçamento da Marinha no orçamento da
combustíveis
força naval
1910 40.065:726$951 1.500:000$000 3,7%

111
Todas podem ser consultadas a partir das coleções de leis que estão disponíveis em:
<https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao>. Acessado em 22/08/19.
1911 47.462:018$053 1.500:000$000 3,2%
1912 44.780:224$021 1.500:000$000 3,3%
1913 47.799:617$203 1.800:000$000 3,8%
1914 42.113:753$648 1.500:000$000 3,6%
1915 36.108:806$882 1.000:000$000 2,8%
1916 35.066:949$818 1.000:000$000 2,9%
1917 36.816:871$676 1.200:000$000 3,3%
1918 44.313:851$638 2.000:000$000 4,5%

A crise, portanto, tinha um duplo caráter: por um lado, de arrecadação e déficit


consequente do orçamento do governo federal destinado ao Ministério da Marinha e por
outro, de abastecimento. Intentei, dessa forma, a análise da situação dos navios de guerra na
Amazônia, considerando que a diminuição dos orçamentos afetou de alguma maneira todos os
órgãos da Marinha.

No caso da crise na Amazônia, verifiquei nos jornais que detinham anúncios


comerciais direcionados à carga das embarcações que chegavam no porto de Belém, no
período de 1911 a 1918, encontrando a maior parte das informações no jornal Estado do
Pará112. Escolhi o porto de Belém compreendendo que ele era o local de parada obrigatória a
todos os navios que traziam produtos importados, mesmo que o destino final fosse outra
cidade da região amazônica. Numa economia-mundo, o porto de Belém era o primeiro ponto
de contato da Amazônia com Liverpool, especialmente procedentes de Cardiff, de onde
partiam os navios com a maior parte do carvão que verifiquei até os anos mais profundos de
crise, quando embarcações vindas dos Estados Unidos, especialmente de Norfolk, Newport e
da Filadélfia, assumiram tal comércio.

Entre 1911 e 1918, verifiquei 194 embarcações trazendo carvão mineral em sua carga
no porto de Belém, consignado a firmas importadoras, a companhias de navegação ou ao
Lloyd Brasileiro, totalizando 354.610,85 toneladas de carvão mineral, distribuídos nos
seguintes anos:

112
Com todas as edições digitalizadas na Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em:
<https://bndigital.bn.gov.br/>. Acessado em 22/08/19.
Toneladas de carvão entradas no porto de Belém
90.000,00
76.760,03
80.000,00

70.000,00 63.668,00

60.000,00
49.936,09
50.000,00 45.168,23
36.815,23
40.000,00 33.307,28
30.867,00
30.000,00
18.089,00
20.000,00

10.000,00

0,00
1911 1912 1913 1914 1915 1916 1917 1918

Toneladas de carvão

Em termos quantitativos absolutos, até o final da década de 1910, houve um declínio


considerável de carvão importado para a Amazônia, tendo uma pequena recuperação em
1916, a qual tratarei adiante, que não foi superior ao ponto de maior entrada do combustível
na década, em 1913. É interessante que os dados de carvão entrado acompanham parcialmente
o período de crise da borracha na região amazônica. O ano de 1912 é bastante significativo
nesse sentido, pois após ele, o preço do látex despencou, segundo dados pesquisados por
Roberto Santos, tendo a exportação de borracha caído de mais de 35.000 toneladas para
menos de 30, com a variação do preço por quilograma variado de 14$000 para um mínimo de
pouco mais de 3$200 no mesmo período113, o que ajuda a compreender a queda da capacidade
de investimentos do lado orçamentário, de compra e produção interna.

A partir do dia 27 de março de 1915 até 30 de dezembro de 1918, praticamente todos


os navios entrados no porto de Belém vieram dos Estados Unidos, especialmente de Norfolk,
já configurando um novo eixo comercial, com quase 90 navios entrados nesse período,
quantidade expressiva considerando que de 1911 a março de 1915, foram 101 em pouco mais
de 4 anos, no entanto, a quantidade de carvão transportado pelos navios mercantes dos EUA
era menor do que os mesmos da Europa. As cargas dos navios procedentes de Norfolk
passavam pouco de 2.000 toneladas, enquanto os europeus carregavam até valores maiores

113
SANTOS, Roberto Araújo de Oliveira. História econômica da Amazônia: 1800-1920. São Paulo: T. A.
Queiroz, 1980, p. 213.
que 5.000, portanto, embora o volume de navios transportando carvão para a Amazônia
tivesse se mantido relativamente o mesmo, a quantidade diminuiu bastante.

A entrada do Brasil na Guerra e o carvão (4 laudas)

Com a deflagração da guerra, o carvão mineral se tornou desde o princípio um


elemento estratégico tanto do ponto de vista militar como diplomático. É conveniente
ressaltar, dialogando com Eric Hobsbawm, que o desenvolvimento da indústria bélica não
significava em si a inclinação a entrar em um conflito armado, especialmente considerando
que a situação econômica de todos os países envolvidos na guerra passou por turbulências
consideráveis e, portanto, a economia de guerra alterou profundamente tanto os ritmos
econômicos internos desses países quanto as suas relações comerciais com a América
Latina114. Segundo o jornal Estado do Pará:

“Presentemente a hecatombe que anniquila povos e nações, dos mais poderosos pela
indústria e pelo commercio na Europa, fez difficil a remessa deste producto de nossa
importação, já pelas difficuldades do seu transporte, já pelas necessidades
imperigosas do momento que os obrigam ao consumo todo interno. Assim, por
exemplo, a Inglaterra, a Allemanha e a França não desviam das suas minas
carboníferas o que para todas ellas constitue agora gênero de primeira necessidade.
Para se apreciar devidamente o valor deste combustível, convém que se saiba que em
tempo de paz a India arranca das entranhas da terra 16 milhões de toneladas de
carvão por anno e a Inglaterra 250 milhões de toneladas, que lhe valem talvez 70
milhões de libras!”115

Tal situação constituiu um fator determinante para que, ainda em 1915, a Grã-Bretanha
determinasse o fim da exportação de carvão mineral a partir do dia 13 de maio, exceto para as
possessões britânicas e para os países aliados116, o que, por si só, já representou um problema
considerável ao Brasil, que tinha nos ingleses os seus principais parceiros econômicos e, por
outro lado, a própria configuração beligerante afetou as relações com a Alemanha, segundo
maior parceiro comercial do Brasil, segundo Carlos Daróz117. Segundo o mesmo autor, pela
condição de neutralidade brasileira, uma grande quantidade de navios alemães pediu refúgio
em países neutros pelo medo de captura pelos países aliados. “Nesse contexto, paralelamente

114
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios (1875-1914). 12ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.
115
ESTADO DO PARÁ, 1 de março de 1915, edição 1.418, “A situação financeira e econômica da Inglaterra”.
116
ESTADO DO PARÁ, 1 de maio de 1915, edição 1.485, “Inglaterra”.
117
DARÓZ, Carlos. O Brasil na Primeira Guerra Mundial: a longa travessia. São Paulo: Contexto, 2016, p.
32.
ao decreto de neutralidade, o governo brasileiro determinou a internação de 44 navios
mercantes alemães e 2 austro-húngaros que se encontravam em portos brasileiros”118.

Ainda nesse sentido, apesar da neutralidade dos países latino-americanos, as pressões


das potências europeias e dos Estados Unidos contra as relações comerciais com a Alemanha
foram intensas. Em telegrama de Washington de 26 de abril de 1917, o jornal Estado do Pará
informou que:

“Na sessão de hontem do Congresso Nacional, o ministro do Commercio, sr.


William Redfield, apoiando a lei que regulamenta as exportações, manifestou a
necessidade de ser augmentada a vigilância sobre o carvão de pedra, pois o governo
tem denuncias sérias de que o carvão vendido pelos Estados Unidos para o exterior
está sendo recambiado para bordo dos corsários allemães, especialmente o que vae
para a Argentina. O sr. Redfield sugeriu então as medidas que lhe parecem capazes
de pôr termo a esses abusos”119.

No mesmo sentido, a intervenção estratégica no setor econômico afetou uma ordem


internacional de restrições relativamente pequenas ao comércio entre países, segundo Victor
Bulmer-Thomas120. Nesse sentido, com a guerra, a intervenção econômica dos EUA na
América Latina foi significativa inclusive para mudança de sua política nesse âmbito,
estabelecendo, por exemplo, sucursais do National City Bank em nove repúblicas da América
Latina121, além disso, tanto os EUA quanto a Grã-Bretanha delimitavam uma “lista negra” de
empresas que desconfiavam estar sob o controle de cidadãos alemães122.

O cônsul britânico em Belém, Geo B. Michell, enviou carta ao jornal Estado do Pará
em 8 de março de 1916 informando que

“De accôrdo com as instrucções recebidas do Ministerio do Exterior do Governo de


S. M. Britannica, o sr. Consul inglez tem a honra de informar aos srs proprietários de
embarcações neutras, Companhias de Navegação e ao publico, em geral, que o
governo inglez terminou a inclusão na Lista Negra de Vapores de todas as
embarcações que a seu bordo transportarem carvão e que possam ultimamente
alcançar qualquer navio allemão ou deposito de carvão allemão, ainda que taes
embarcações tenham acusado anteriormente, ou não, da Lista Branca. O sr. Consul
inglez previne portanto aos proprietários e agentes de vapores, nos seus próprios
interesses, a adoptarem as devidas precauções afim de evitar que o decreto acima
tenha execução. Consulado Britannico – Belém – 8 de Março de 1916 – Geo B.
Michell, consul inglez”123

118
Idem.
119
ESTADO DO PARÁ, 1 de maio de 1917, edição 2.183, “Washington, 26”.
120
BULMER-THOMMAS, Victor. Las economias latino-americanas, 1929-1939. In: BETHELL, Leslie (org.).
História de America Latina 11. Economía y Sociedad desde 1930. Barcelona: Crítica, 1984.
121
Idem, p. 5.
122
Ibid., p. 6.
123
ESTADO DO PARÁ, 10 de março de 1916, edição 1.792, “Ao commercio e á navegação”.
Portanto, a dimensão econômico-estratégica da guerra, sobretudo relacionada ao
carvão mineral, é fundamental para as questões relacionadas tanto à realidade do Brasil no
mundo em Guerra como na situação da navegação e seus desdobramentos. É nesse sentido
que verifiquei artigos de João Baptista de Loureiro em uma coluna por ele escrita no referido
jornal chamado “Assumptos Marítimos” cuja argumentação é interessante e crucial para a
argumentação desenvolvida no terceiro capítulo da tese em produção.

Chamo atenção ao artigo III, publicado em 1 de março de 1917, cerca de um mês antes
do rompimento da neutralidade pelos Estados Unidos com a declaração de guerra à
Alemanha. Seguindo uma linha de argumentação que criticava a postura do governo brasileiro
ante a marinha mercante nacional e a falta de interesse anterior sobre o carvão mineral,
Loureiro afirmou que “A nação que não tem carvão está sujeita a, de um momento para o
outro, ver paralisar a sua navegação a vapor e, se não tiver uma marinha a vela perfeita, não
terá nem uma nem outra navegação garantida”124.

A afirmação de Loureiro é interessante, pois compreendo a medida em que ela conduz


de maneira precisa um aparente paradoxo: se de um lado, o vapor foi o símbolo da
modernização, inclusive responsável pela construção de uma infraestrutura complexa nas
cidades da Amazônia, por outro, o processo de substituição quase completo dos navios
mercantes brasileiros da vela ao vapor em um mercado nacional dependente de um recurso
estratégico somente produzido no exterior igualmente levara a uma nova condição de
dependência com características ainda mais graves, já que a paralisação total da navegação de
um país com a estrutura rodoviária/ferroviária bastante setorizada nas proximidades do Rio de
Janeiro e boa parte da região sudeste, também significaria crises de abastecimento de
alimentos, movimentação de tropas militares e outras atividades dependentes do carvão, como
a eletricidade e a produção de gás de cozinha.

Ainda segundo João Loureiro,

“Foi assim que de 1910 a 1914 importamos, de differentes paizes, 9.218.888 toneladas cujo
custo (C.I.F.), somma á bacatella de 137.983 contos, moeda ouro.
Ora, a metade desse volume que fosse de consumo do carvão nacional, já daria 4.660
carregamentos para navios nacionaes do porte de mil toneladas, o que seria uma garantia para o
desenvolvimento da nossa reduzida marinha a vela, que os nossos modernistas consideram
como um característico de atraso. Entretanto, os Estados Unidos, que é a nação mais rica e uma
das mais adiantadas do mundo, nunca abandonaram a sua navegação a vela. Sempre
procuraram dotal-a dos mais modernos melhoramentos, simplificando o seu aparelho e
instalando machinas auxiliares para o serviço de carga e descarga, manobras etc.

124
ESTADO DO PARÁ, 1 de março de 1917, edição 2.123, “Assumptos Marítimos – III O Carvão Nacional e a
nossa navegação a vela”.
Graças a essa marinha a vela, é que não tem faltado em alguns portos do Brasil o carvão
americano.
Agora, na imminencia de declarar guerra á Allemanha, a grande nação do norte-americano
póde nos levar na sua cauda com um simples aceno.
Estamos sujeitos a trocar por carvão americano a nossa tão falada neutralidade”125

A compreensão de Loureiro da importância dos dois fatores, isto é, da exploração dos


recursos estratégicos e dos meios efetivos para sua utilização e transporte foi bastante precisa,
considerando que um mês depois, os EUA romperam a neutralidade e pouco tempo depois, o
Brasil entrou na guerra do lado dos aliados, constituindo uma esquadra de apoio ao
patrulhamento do Atlântico Sul e, portanto, mobilizando sua Marinha de Guerra com um
aumento no consumo de carvão mineral para o patrulhamento ostensivo, portanto, seja do
ponto de vista estratégico, seja do ponto de vista econômico, compreendo que uma possível
crise de abastecimento gerada pela proibição de exportações do Congresso Nacional
americano, a exemplo do inglês de 1915 para os países neutros foi um fator decisivo para a
entrada do Brasil no conflito mundial.

Considerações finais
Como parte da argumentação que compõe o capítulo, a hipótese analisada de João
Baptista de Loureiro e ratificada por mim considerando os dados apresentados e outros
presentes na pesquisa, é incidental, já que não encerra em si a tese defendida por mim no
projeto em questão, no entanto, ela é significativa também para pelo menos dois aspectos.
O primeiro deles diz respeito ao caráter da navegação brasileira em um processo de
transformações que marcou a segunda revolução industrial, isto é, a navegação a vapor é, sem
dúvidas, um dos grandes símbolos de um processo de modernização pela qual passou o Brasil
na passagem do XIX para o XX, por outro lado, se em algum momento o ato de modernizar
pressupôs um aumento da soberania nacional, já que a aquisição de uma marinha moderna
com os programas navais esteve fortemente presente nos debates do campo político e da
imprensa no Brasil das primeiras décadas do XX, inclusive estando presente na diplomacia do
Barão do Rio Branco e na defesa de Ruy Barbosa nas “Cartas de Inglaterra”, segundo coloca

125
Idem.
João Roberto Martins Filho126, esse mesmo processo significou uma realocação da
dependência brasileira (e latino-americana) em um processo de economia capitalista mundial.

O segundo aspecto diz respeito à representatividade da figura de João Baptista


Loureiro, como oficial da marinha mercante que fora um dos fundadores e presidentes tanto
do Club Naval do Gram-Pará, criado em 1891, bem como presidente da Federação Marítima
do Pará, afiliada à Federação Marítima Brasileira como órgão que reuniu interesses de
associações de marinheiros, maquinistas e oficiais mercantes da Amazônia em geral e do Pará
em particular. A produção de Loureiro é bastante representativa de uma visão nacionalista da
navegação, colocando, como segundo “assumpto marítimo” discutido, o projeto de lei de 1903
que permitiria a abertura da cabotagem à navios estrangeiros, o que, segundo ele,
representaria o fim da marinha mercante brasileira127.

A atuação do referido oficial mercante e das associações marítimas na Amazônia


compõem outro viés importante em desenvolvimento no terceiro capítulo da tese,
considerando que a crise do carvão foi responsável por alguns aspectos de solidariedade da
categoria profissional marítima notáveis, como o projeto apresentado em 1918 pela
Federação, presidida por Loureiro, ao governo do estado do Pará informando que devido à
crise, boa parte dos tripulantes dos navios das companhias de navegação estavam passando a
maior parte do ano desembarcados e com dificuldades financeiras, ao que a Federação propôs
investir, com seus próprios recursos, na “pequena construção naval, fabrico de óleos, a
indústria, pequenas lavouras e outros ramos de atividade”128, construindo a infraestrutura
necessária para isso e empregando os oficiais, marinheiros e maquinistas desempregados para
sustento, demandando para isso a propriedade de terrenos no distrito de S. João do Outeiro, o
que ainda estou investigando e será objeto de futuras pesquisas.

Referências bibliográficas

BRASIL. Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil


pelo Almirante graduado Alexandrino Faria de Alencar, ministro de Estado dos negócios da
Marinha em abril de 1916, primeira parte. Rio de Janeiro: Imprensa Naval, 1916.

126
MARTINS FILHO, João Roberto. A Marinha brasileira na era dos encouraçados, 1885-1910. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2010.
127
ESTADO DO PARÁ, 21 de fevereiro de 1917, edição 2.115, “Assumptos Marítimos II – A crise de
transporte, no passado, no presente e no futuro”.
128
ESTADO DO PARÁ, 14 de dezembro de 1918, edição 2.772, “Boletim da Federação Marítima do Pará”.
BULMER-THOMMAS, Victor. Las economias latino-americanas, 1929-1939. In:
BETHELL, Leslie (org.). História de America Latina 11. Economía y Sociedad desde 1930.
Barcelona: Crítica, 1984.

DARÓZ, Carlos. O Brasil na Primeira Guerra Mundial: a longa travessia. São Paulo:
Contexto, 2016.

HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios (1875-1914). 12ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2008.

MARIN, Rosa Elizabeth Acevado. Civilização do rio, civilização da estrada: transportes na


ocupação da Amazônia no século XIX e XX. Paper do NAEA, Belém, n. 170, maio de 2004.

MARTINS FILHO, João Roberto. A Marinha brasileira na era dos encouraçados, 1885-
1910. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.

SANTOS, Roberto Araújo de Oliveira. História econômica da Amazônia: 1800-1920. São


Paulo: T. A. Queiroz, 1980.
ESTUPRO E GUERRA: VIOLÊNCIA SEXUAL NA BASE MILITAR DE VAL-DE-CANS,
EM BELÉM E RELAÇÕES INTERNACIONAIS ENTRE BRASIL E ESTADOS UNIDOS

Sarah de Souza Mendes Coutinho (História/UFPA)


Victoria Sozinho Prado (História/UFPA)
Orientador: Willian Gaia Farias

Palavras-chave: Belém, Estupro, Pós - Segunda Guerra Mundial.

INTRODUÇÃO

Já há algum tempo, vêm sendo criticadas no campo da história militar as abordagens


que enfatizam os grandes feitos dos heróis. Em relação aos estudos sobre a Segunda Guerra
Mundial, o que mais se percebia eram narrativas que atribuíam o protagonismo do processo
histórico a um espaço restrito, a Europa, e aos principais líderes mundiais do período: Hitler,
Mussolini, Churchill, Roosevelt, Stalin. Nessa narrativa tradicionalmente conhecida sobre a
Segunda Grande Guerra ou Segunda Guerra Mundial e suas reverberações, pouco espaço resta
para as ações “do soldado raso, e não do comandante”129; na Amazônia, e não na Europa; o
que culmina na exclusão de falas e histórias preponderantes como a da mulher parda, menor
de idade e trabalhadora, não do “herói de guerra”. Neste trabalho, partiremos de uma outra
análise desse processo, por uma história vista de baixo, do ponto de vista de uma mulher com
as características elencadas anteriormente, vítima de violência sexual por um desses “heróis
de guerra”.

A ideia dessa pesquisa surgiu a partir de levantamentos documentais diversos, quando


encontramos em um acervo documental/histórico da cidade de Belém, o Centro de Memória
da Amazônia, um processo criminal com o chamativo título “Autos de inquérito policial
instaurado para apurar a responsabilidade de Bob Fry, soldado do exército norte-americano
servindo na Base de Val-de-Cans e acusado do crime de estupro, sendo vítima Terezinha de
Jesus Moraes Pegado”, cometido em 14 de setembro de 1946. O interesse por tal pesquisa
logo se fez presente pela quantidade de informações potencializadas de discussão
historiográfica: estávamos diante de uma fonte que demonstrava a presença militar norte
americana em um país latino americano, com a presença feminina no âmbito trabalhista e
familiar da década de quarenta em Belém e principalmente, estávamos diante de uma

129
Sharpe, 1992, p. 40.
representação em vias reais de ocorrência, do exercício de poder emanado por parte do país
norte americano em terras brasileiras.

Em uma leitura rápida, depreendemos algumas informações: Terezinha é uma jovem


de 16 anos, parda, que trabalhava como capataz das moças garçonetes do Hotel dos Oficiais e
Praças do Exército norte-americano em Val-de-Cans130 desde março de 1945. O estupro
ocorreu em um sábado, dia de festa na Base, perto de uma das pistas de pouso, dentro do carro
de transporte número 206. Bob Fry, o acusado, é um soldado do exército norte-americano, que
segundo rumores ouvidos por Terezinha e uma das testemunhas, foi preso devido ao estupro,
mas que não se sabia por quanto tempo. A única coisa que se sabe é que em abril de 1947, o
soldado já havia retornado aos Estados Unidos. A partir disso, surgem as perguntas: o que um
soldado norte-americano fazia em Belém? Quando e por que foi construída ali uma base
militar americana? O que uma mulher daquele perfil estava fazendo naquele ambiente? Quem
era o americano no final da Guerra? Isso se relaciona com a violência sexual? São muitos
questionamentos, que, certamente, nos levarão à uma vida de pesquisas, portanto não
pretendemos esgotá-los neste artigo. Nosso objetivo neste trabalho é compreender que tipos
de relações político-sociais permeiam esse caso, a partir da descrição densa dos
acontecimentos e das ações dos envolvidos.

ERA DA GUERRA TOTAL


A resposta a essas perguntas perpassa um conceito chave desta pesquisa: o conceito de
Guerra Total, apresentado por Hobsbawm em 1994 no livro Era dos Extremos. Hobsbawm
defende que a partir da Primeira Guerra Mundial, as guerras se diferenciam das anteriores por
alguns motivos: travam-se por metas ilimitadas, o único objetivo da guerra é a vitória total,
que na Segunda Guerra é chamada de rendição incondicional, e são travadas contra a
economia e a infraestrutura de Estados e contra suas populações civis (HOBSBAWM, 1994),
o que significa que a guerra afeta os Estados e a sociedade de maneiras que vão muito além do
confronto direto entre forças armadas.

PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA E CONSTRUÇÃO DA BASE DE VAL-DE-CANS


No caso do Brasil e de outros países periféricos, a participação na guerra é marcada
principalmente por meio do fornecimento de produtos estratégicos (matérias-primas, armas,
suprimentos). Na Segunda Guerra Mundial, o marco que fez as atenções se voltarem ao

130
Também chamado de “Mess House”, “U.S.O. Club”, “Clube dos Sargentos” e “casa de refeições”.
Atlântico Sul foi quando a Alemanha recebeu do general Pétain a autorização de operar as
instalações aéreas e portuárias da cidade de Dakar, o que permitiria um avião cruzar o oceano
e chegar ao ponto mais oriental da América do Sul em oito horas, podendo ainda utilizar as
ilhas do Atlântico como bases aéreas e portuárias (FERRAZ, 2005).
Não apenas ilhas do Atlântico foram usadas, mas também foram construídas bases ao
longo do litoral Norte, Nordeste e Sudeste brasileiro. Assim, a intenção norte americana que
se voltou ao território brasileiro veio com a premissa de nos auxiliar contra a possível ameaça
aérea que o Brasil estava a correr tendo sua costa agora tão próxima aos ataques aéreos
imprevisíveis do Eixo. No início da década de 1940, a construção dessas bases aéreas e navais
era um desejo dos Estados Unidos, que via o litoral brasileiro como estratégico no Teatro de
Operações do Atlântico. Nesse contexto, o aeroporto de Val-de-Cans é construído.

Figura 1: Escritórios da Pan American Airways na Base Militar de Val-de-Cans, circa 1942. Disponível em:
http://www.sixtant.net/2011/artigos.php?cat=u.s.-navy-bases-in-brazil&sub=u.s-navy-bases-&tag=6)usn-naf-
belem. Arquivo pessoal de Ozires Moraes, gentilmente cedidas para este trabalho.

Na Figura 1, acima, vemos a principal intermediadora dessa obra, a Pan American


Airways, ou Pan Am, cuja bandeira está ao centro da fotografia, ao lado da bandeira
brasileira, hasteada no escritório da Pan Am na base de Val de Cans. O aeroporto foi
construído pela Panair do Brasil, a subsidiária brasileira da gigante norte-americana Pan
American Airways (Pan Am), que teve um papel importante sendo a agente principal do
chamado Airport Development Program (ADP), o programa cujo objetivo era construir
aeroportos ao longo da costa brasileira, muitos dos quais posteriormente foram transformados
em bases aéreas. A Panair também agiu colaborando ativamente com o governo americano na
construção de aeroportos e repasse de informações estratégicas.
No início da década de 1940, foi transformado em uma base militar americana, com
capacidade para receber muitos aviões e hidroaviões, sendo uma das principais bases norte-
americanas do Brasil em atividade. Além disso, a cidade em si passou a ser movimentada por
consequência da Guerra e do que era assinado nos Acordos de Washington, que além de
lançar olhos a urbanização da cidade, também incluíam nesta a construção de bases, bem
como o fornecimento de minérios e principalmente, da borracha. No seu artigo de 1999,
Campos sintetiza:

“A capital do Pará era estrategicamente importante por uma dupla razão: era a porta
de entrada para a rica área de produção de borracha do vale amazônico e abrigava
um dos aeroportos militares mais importantes na rota Estados Unidos — África —
Ásia, por onde transitavam tropas e equipamentos militares. A importância militar de
Belém pode ser avaliada pela presença da base militar de Val de Cans, construída
pelo exército norte-americano na periferia da cidade. Belém foi também a primeira
cidade brasileira a receber militares norte-americanos na Segunda Guerra Mundial: o
primeiro grupo de marines ali chegou em dezembro de 1941.” (CAMPOS, 1999)

Isso nos ajuda a ter dimensão da quantidade de pessoas necessárias para colocar uma
base como a de Val-de-Cans em funcionamento, principalmente quando se fala dos
trabalhadores locais, em sua maioria pretos ou pardos, que em um contexto da Amazônia
como zona periférica do capitalismo, eram a mão de obra barata, que trabalhava descalça sob
o solo quente do clima belenense, como mostra a Figura 2. Nesse sentido, as obras
mobilizaram os trabalhadores da cidade e geraram empregos em um contexto de crise
econômica e escassez de alimentos, o que pode ter representado uma perspectiva temporária
de melhoria de vida.
Figura 2: Trabalhadores locais construindo as áreas de pouso, decolagem e reabastecimento, utilizados pelo
Exército e pela Marinha americanas e pela Força Aérea Brasileira, circa 1942. Disponível em:
http://www.sixtant.net/2011/artigos.php?cat=u.s.-navy-bases-in-brazil&sub=u.s-navy-bases-&tag=6)usn-naf-
belem. Arquivo pessoal de Ozires Moraes, gentilmente cedidas para este trabalho.

O CASO

No sábado de 14 de setembro de 1946, a jovem Terezinha de Jesus Moraes Pegado


ainda prestava serviços ao hotel da base de Val-de-Cans. Ela era, então, capataz há cerca de
um ano e, portanto, tinha cargo de chefiar as moças serventes do USO Club da base em uma
área onde a urbanização ainda andava a passos planejados porém não concretizados
(CHAVES, 2016). O bairro ainda era, em quarenta e seis, uma zona de predominância verde,
e a locomoção poderia ser um pouco mais difícil. Ela provavelmente seguiu para seu dia de
trabalho cedo da manhã para voltar tarde da noite. Para uma jovem de então dezesseis anos
havia de ser uma rotina puxada. Fato é que seu dia correu normalmente, até que pela parte da
noite, como de costume, iniciou-se uma “festa dansante no Casino dos soldados”131. Assim, as
companheiras de trabalho de Terezinha insistentemente a chamaram para ir a tal festa. Não
apenas elas como o soldado norte americano Bob Fry, que há cerca de duas semanas já havia
cortejando a moça. Seus cortejos, certamente iam de cantadas em português mal pronunciado
a ofertas de Coca-Cola, bebida nova no Brasil e mais nova ainda nas zonas menos abastadas
de Belém do Pará132, que só havia começado a ser regularmente estimulada, bem como o
hábito do brasileiro de ingerir bebidas geladas, em 1945133.

No decorrer da festa, ao perceber que já se aproximavam das dez horas da noite –


horário tarde considerando que a mãe de Terezinha não sabia que esta ficaria para alguma
festa – a jovem fez menção de querer voltar para a casa. Ao ver isso, o soldado que
demonstrava interesse por ela se prontificou em retirar o “passe” de regresso de Terezinha da
base pra a cidade de Belém novamente. Percebe-se assim que o ambiente militar apresenta
uma zona de ideais, hierarquia e regimento próprios, conformando assim um espaço a parte da
própria sociedade onde foi instalado. Retirar o passe e sair da base era uma ação aproximada a

131
Trecho retirado do termo de declarações prestadas por Terezinha de Jesus Moraes Pegado, página 6 do
documento original.
132
“Tendo o acusado oferecido à depoente e suas amigas uns copos de “Coca-Cola” o que foi aceito pela
mesma”. Trecho retirado da página 6 do documento original.
133
Ver surgimento da comercialização da Coca-Cola no Brasil, década de quarenta:
http://www.jipemania.com/coke/historia_coca_cola_br.htm
deixar uma cidade e sair de outra – ou quem sabe um país. Este passe era retirado no
lugradouro identificado no documento como “Murupú”134, um centro de recolha dos
automóveis da base de Val-de-Cans para uso dos funcionários e soldados desta.

Foi ao regressar do “Murupú” com o passe que Bob Fry viu que Terezinha conversava
com outro rapaz, e com raiva, rasgou o passe e pôs-se a beber, voltando depois à cena se
recompondo para agora sim retirar um novo ingresso e levá-la para a casa. Foi ao entrar com
Terezinha dentro do carro que o soldado inverteu a rota distanciando-se de qualquer
movimentação de pessoas naquela base. Tendo atingido determinada distância, este a
espancou e estuprou, e depois regressou ao local de retirada do passe regularmente pedindo
ainda que esta se mantivesse calma pois ele já não a faria mal algum.

Ao regressarem para o USO Club, Bob Fry novamente fez sinais de modificar a rota,
ao que Terezinha respondeu se jogando do carro em movimento e indo gritar por socorro.
Fora vista então por dois soldados da base que no dia seguinte, serviram depoimento, e a
ordem de histórias contadas por ela e por eles já não se coincidiu devidamente pelo fato de a
jovem sentir vergonha do que lhe acontecera e não querer que ninguém soubesse.

No dia seguinte esta não fora trabalhar e as agitações e murmúrios pelos pátios e
corredores da base já chamavam atenção. Assim, após o final de semana, Terezinha foi
procurada por dois investigadores da Polícia do Estado, por mais de uma vez e fora convidada
a depor.

“(...) entendeu-se com Celso Mendonça Penalber, que é o chefe dos investigadores
especiais em Val-de-Cans, o qual respondeu que não havia tomado e nem tomaria
nenhuma providencia sobre esse caso por que o mesmo tinha ocorrido com um
americano, cabendo ao Comando agir a respeito, demonstrando, assim, ou completa
ignorância de seus deveres funcionais ou conivência criminosa com o indiciado e seus
superiores (...)”135

O depoimento acima apresenta dentro do caso uma problemática infelizmente


recorrente entre os crimes sexuais de guerra praticados não somente pelo exército americano
como tantos outros, seja pelos Aliados ou pelos representantes do Eixo. A busca pela solução
do caso foi feita por um levante feito por João Carlos Damasceno, o então investigador
especial da Polícia Civil do Estado. Este tomou a frente das inquisições do caso, após ter sido
procurado por dois guardas da base que haviam presenciado a vítima manchada de sangue

134
Em aproximação fonética livre, identificamos que o “murupú” transcrito no caso poderia vir a ser na verdade
o “motor pool” da base.
135
Ver documento original, termo de declarações que faz João Carlos Dameno, pág 18 do processo.
após o crime a pedir socorro pela base. Damasceno foi inclusive, o responsável por relatar a
família da vítima e a dar cabo a polícia sobre o ocorrido.

Os desdobramentos deste caso nos fazem pensar até que ponto é exercida a justiça em
crimes sexuais em tempos de guerra. Quantos crimes cometidos de modo similar não
ocorreram e seguiram silenciados em vista da figura do herói de guerra como merecedor de
conquistas e acima de qualquer queixa do meio civil? O que se evidencia no caso é que, caso
este delegado especial não tivesse sido acometido de um senso de justiça para levar a tentativa
de resolução do caso, saindo da Base e levando a denúncia à Delegacia Especial de Segurança
Política e Social (DESPS), o nome de Terezinha só viria a constar nos registros jurídicos no
ano seguinte, em seus autos de casamento.136

A GUERRA NA BELÉM DOS ANOS 1940

A Segunda Guerra Mundial afetou a vida do belenense de diversas maneiras. A crise


do abastecimento é muito abordada na literatura, a exemplo dos trabalhos de Chaves (2016) e
Fontes (1993). Vejamos o trecho a seguir:

“A crise alimentar marcou o cotidiano da população belenense no período, alterando


as sociabilidades, a relação com o governo estadual e a imprensa, de modo a
constituir uma das questões mais encontradas na imprensa do período e uma grande
preocupação das autoridades locais.” (CHAVES, 2016, p. 96)

Isso corrobora a ideia da Guerra Total, que afeta de maneira intensa a vida da população civil.
Fontes, em sua dissertação acerca dos padeiros em Belém, segue a mesma linha, defendendo
que a Segunda Guerra Mundial agravou as condições de trabalho e de vida dos trabalhadores.
Nos depoimentos que coleta, são citados o uso dos cartões para racionamento de comida; os
blecautes e a necessidade de economizar energia; a troca do açúcar pelo caldo de cana, da
farinha de trigo pela macaxeira em 1940 e 1941; a ausência de pão durante o ano de 1941. Por
outro lado, os depoimentos também relatam a solidariedade que aflora em tempos de crise e, o
que mais nos interessa, como a mulher foi ganhando espaços, sendo permitida sua
permanência na rua até mais tarde para ficar na fila da comida, ou mesmo dormir na fila, algo
que seria impensável fora de um contexto de extrema necessidade como o que se vivia.

136
Em meio a buscas dentro do mesmo acervo, encontramos o Auto de Casamento de Terezinha de Jesus Moraes
Pegado. Neste documento, ela já não constava como capataz das moças em Val-de-Cans, mas como doméstica.
O PAPEL DA MULHER

A partir da década de 1930, a mulher começou a conquistar um espaço maior no


mundo do trabalho, paulatinamente assumindo presença na esfera pública, como secretárias,
enfermeiras, professoras, dentre outras atividades. Em um levantamento de Fontes (1993) nos
jornais de Belém, o trabalho feminino foi divido em três enfoques: tarefas domésticas;
serviços e profissões autônomas, sendo que o primeiro era o mais ofertado, tendo um público
muito específico em vista. Em um dos anúncios, no jornal Folha do Norte de 05/07/1944,
pede-se uma ama “sadia, asseada e carinhosa e de ótimas referências”, “de meia-idade” e que
“durma no emprego”. O pagamento previsto é de cem cruzeiros. Em 1946, Terezinha recebia
quinzenalmente Cr$ 415,00, o que mostra como trabalhar na Base era uma opção atrativa para
uma mulher como ela. Outra pergunta é por que Terezinha assumia a função de garçonete e
por que ela é chamada de capataz?

Trabalhar como uma garçonete e servir homens, tratando-os com cordialidade, como
ela mesma define, não é uma função que fuja do que se esperava da feminilidade da época.
Em meio ao esforço de guerra, unir a necessidade de conseguir sobreviver com a ideia de
ajudar seu país a vencer a guerra (lembremos que ela começa a trabalhar na Base no início de
1945) era unir o útil ao agradável. A resposta à segunda pergunta envolve descobrir mais
sobre esse hotel em que ela trabalhava, que recebe vários nomes nos depoimentos ao longo do
processo, sendo um deles “U.S.O. Club”. O objetivo da United Service Organizations (USO)
era ser uma casa longe de casa. Logo, o papel das mulheres que ali trabalhavam era fazer os
meninos se sentirem em casa. Diz o site da United Service Organizations: “Conforme os
papéis de gênero do período, muitos USO Clubs tiveram a posição de senior hostess. Uma
mulher estimada da comunidade local, a senior hostess coordenava as junior hostesses e as
atividades em grande escala nos USO Clubs.”137 Sobre esse ponto, concordamos com Meghan
Winchell:

“Embora remendar camisas, fazer cookies, e “escutar” dificilmente fossem tarefas


revolucionárias para as mulheres de classe média no início dos anos 1940 da mesma
forma que era trabalhar em fábricas ou alistar-se no Corpo de Mulheres do Exército
(Women’s Army Corps), as USO senior hostesses transformaram essas atividades

137
Tradução livre de “In keeping with the era’s gender roles, many USO clubs had the position of senior hostess.
An esteemed woman from the local community, the senior hostess coordinated the junior hostesses and large-
scale activities at USO clubs.”. Disponível em: <https://www.uso.org/stories/111-13-things-you-probably-did-
not-know-about-the-uso-during-world-war-ii>. Acesso em 20 out. 2019.
comuns realizadas diariamente em casa em um cumprimento público das suas
obrigações perante o estado de guerra” (WINCHELL, 2004, p. 190)138

O NORTE-AMERICANO AO FINAL DA GUERRA E A VIOLÊNCIA SEXUAL

Mary Louise Roberts, em seu livro What Soldiers Do: Sex and American G.I. in World
War II France (2013), relata o caso do prefeito de Le Havre, na França, Pierre Voisin, que no
verão de 1945 escreve uma carta ao coronel Weed, comandante regional das forças
americanas, reclamando que os G.I.s, noite e dia, protagonizavam junto às prostitutas “cenas
contrárias à decência”, inadequadas para “olhos jovens” nas ruas e praças de Le Havre. Como
prefeito, Voisin tenta lidar com a situação tirando as protitutas da cidade e levando-as para
Paris de trem. Entretanto, o dinheiro que ganhavam (entende-se: dos soldados americanos) as
possibilitava descer na primeira parada e voltar. Ademais, Voisin propõe uma solução: tendas
especiais para essa finalidade nos terrenos das Forças Armadas americanas, supervisionados
pela polícia e médicos americanos que diminuiriam a taxa de doenças venéreas e controlaria o
problema da atividade sexual em público. O comandante americano responde a carta
declarando que a prostituição na cidade é um problema de Voisin e que não iria interferir
nesta questão. A partir desse relato, Roberts defende que:

“(...) as relações internacionais do pós-Guerra, longe de estarem confinadas ao


círculo diplomático ou político, foram moldadas em todos os níveis da sociedade, e
por vezes emergiam por culturas específicas de gênero e sexualidade” 139
(ROBERTS, 2013)

Entendemos que essa frase sintetiza perfeitamente o que acontece neste caso. Por diversas
vezes no processo, observamos as relações internacionais do pós-Guerra transpassando a
esfera estritamente política/diplomática e emergindo em um inquérito policial a respeito de
uma violência sexual. Ou seja, o caso em questão simboliza também um controle que sai da
esfera de um pensamento americano enquanto um país superior a países periféricos, e
materializa-se em um crime de estupro entre um americano e uma civil de um país periférico.

138
Trecho original: “Although mending shirts, baking cookies, and ‘listening’ were hardly revolutionary
undertakings for middle-class women in the early 1940s in the same way that working in factories or joining the
Women’s Army Corps were, USO senior hostesses transformed these activities ordinarily performed daily at
home into a public fulfillment of their obligations to the wartime state.” (WINCHELL, 2004, p. 190)
139
Tradução livre do trecho a seguir: “(...) postwar transnational relations, far from being confined to diplomatic
or political circles, were shaped at every level of society, and often emerged through specific cultures of gender
and sexuality.” (ROBERTS, 2013, Edição do Kindle)
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O relato inserido no trabalho de Roberts, em conjunto com a análise do caso que aqui
apresentamos, nos leva a responder algumas perguntas. A imagem e o lugar da mulher em um
ambiente de guerra, seja numa base militar ou fora dela, é de objeto de desejo sexual. Esses
casos também mostram que a questão sexual é uma questão política. Em Paris, foi questão de
políticas públicas, e em Belém, uma questão de justiça. Acreditamos que outros casos como o
de Terezinha podem estar em acervos de Belém, Igarapé-Açu, Amapá, Natal, Recife, São
Luís, Fortaleza, Rio de Janeiro, dentre tantos outros lugares que passaram pela experiência da
presença de militares estrangeiros na Segunda Guerra Mundial, não apenas os americanos,
mas britânicos, canadenses e outros aliados que por aqui passaram.

O que discutimos aqui também nos faz pensar sobre as marcas da guerra. A guerra
dos não combatentes140 que deixa marcas além dos tiros de metralhadora. São marcas no
corpo e na mente de todos que o tempo da Guerra viveram. Marcas na forma de viver,
exemplificadas pela própria Terezinha, que em dezembro de 1947 se casa com José Soares
Couto, o homem com quem estava prometida pra casar, e nenhuma referência há ao seu
trabalho na base ou a qualquer trabalho. Terezinha agora era doméstica, dona de casa. A
mulher que trabalhava fora até depois do anoitecer, que ganhava sua remuneração quinzenal e
tinha o poder de comandar outras mulheres no seu trabalho fora deixada para trás.

Por fim, reiteramos que nossa intenção neste trabalho não é esgotar as perguntas que
fizemos na introdução. Esperamos que a reflexão que aqui engendramos incentive os leitores
a caminhar no sentido de responder algumas dessas questões e, principalmente, fazer novas
que não havíamos pensado ou que por ventura não tenhamos nos permitido trabalhar pelas
limitações da própria pesquisa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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HEROÍNAS, GÊNERO E GUERRAS: AS MULHERES DA REVISTA NAÇÃO ARMADA
(1942-1945)

Rosemeri Moreira (PPGH-UNICENTRO)


Andréa Mazurok Schactae (IFPR – Têlemaco Borba/PR)

Palavras-Chave: Imprensa Militar; Gênero; Mulheres.

Este artigo tem por foco discutir narrativas sobre mulheres na imprensa militar,
especificamente na Revista Nação Armada, entre 1942 e 1945. O objetivo é compreender qual
feminino poderia ser benquisto, acolhido e narrado na perspectiva de militares e ou
associados/as (reformados, aposentados, etc.) ao militarismo, no momento de participação do
Brasil na 2ª Guerra Mundial.
Em primeiro lugar apresento, brevemente, a revista Nação Armada, evidenciando suas
características político-militares. Na sequência, analiso os alguns textos e notícias em que
mulheres são o foco.

Uma Nação Armada


A chamada imprensa militar se configura como um importante objeto de análise
histórica ainda por se fazer, uma vez que são relativamente poucas as pesquisas que tratam da
imprensa militar como objeto histórico. A existência vigorosa de uma imprensa militar, no
século XIX e no XX, se configura como um vasto campo de pesquisa tanto para a História da
Imprensa, como para a História das instituições militares. Para Nascimento, analisar a
imprensa militar é crucial para a compreensão dos discursos sobre “ser e pertencer à classe
militar” (NASCIMENTO, 2014, p. 20).
Os periódicos militares, assim como os demais periódicos, são espaços peculiares onde
está presente uma determinada cultura política: o olhar que seus editores, jornalistas e
articuladores tem sobre de si, junto às representações sobre a vida social como um todo, estão
estampadas de forma sutil ou explicita nas páginas dos periódicos. Seja no editorial, nas
reportagens, nas notas, nas propagandas, nos logotipos utilizados, na seleção dos temas, nas
capas, etc.. As disputas econômicas, políticas e sociais estão presentes nos periódicos,
traduzidas pelo olhar de seus articuladores. Disputas estas presentes na visibilidade dada, na
ênfase direcionadora do periódico, ou pela própria negação, ausência e silenciamento.
A Nação Armada teve sua primeira edição publicada em novembro de 1939, dois
meses após o início da 2ª Guerra Mundial141, e sua ultima edição é de março de 1947. Teve
periodicidade mensal até janeiro de 1946 e após esse período passou a ser publicada de forma
irregular até seu fechamento. Denominada pelos organizadores e colaboradores como sendo
civil-militar, esse periódico não era um veículo oficial do Exército, mas, segundo o Cel.
Francisco Ruas Santos (1960), recebia subvenção estatal.
A revista contém pronunciamentos, as visitas e excursões do presidente Getúlio
Vargas; discursos do Ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra e do Chefe do Estado-Maior do
Exército, Góes Monteiro. Além dos assuntos estritamente militares (técnicos) a revista
abordava assuntos relativos ao que era considerado papel do Exército na sociedade, se
configurando como uma das principais fontes para o período do Estado Novo e o pensamento
militar brasileiro (MONTEIRO, 2010, p. 65-66). Além disso, contém propagandas e artigos,
ensaios, notícias e reportagens escritas e/ou traduzidas por militares, políticos, jornalistas e
intelectuais em geral142, os quais, segundo Vitor Monteiro, ajudavam a reforçar a ideologia do
Estado Novo, pautada no autoritarismo e no nacionalismo como valor central para a
construção da nação, permeados pelo racismo, misoginia, eugenia e antissemita, “por vezes,
fascista” (MONTEIRO, 2010, p. 43)
Esse viés representava a consolidação da união do projeto varguista e Exército
Brasileiro, na defesa de estado forte e centralizador, entrecruzado ao engrandecimento
nacional e sob a tutela militar. O estado de guerra, desde o título, o logotipo, e a linha
editorial da Nação Armada, para além da preparação interna do Exército, propiciava discursos
em que se pretendia militarizar o país, com a urgência de garantir seu êxito vindouro
(MONTEIRO, 2010, p. 64). Entretanto a revista não teve um pensamento único, uma postura
conceitual, em relação ao regime estadonovista. Para esse pesquisador, Nação Armada
representou muito mais a posição de disseminadora de ideias dos principais militares do
período: o Ministro da Guerra Gen. Eurico Gaspar Dutra e o Chefe do Estado Maior do
Exercito no Estado Novo Gen. Góes Monteiro143.

141
A invasão da Polônia pela Alemanha nazista, em 1ª de setembro de 1939, é considerado o marco inicial da 2ª
Guerra Mundial (Hobsbawm, 1994).
142
Pedro Calmon, Gustavo Barroso, Menotti del Picchia, Azevedo Amaral, dentre outros (MONTEIRO, 2010, p.
43).
143
Segundo Abreu Beloch, Dutra atingiu o generalato em 1932. Comandava a 1ª Brigada de Infantaria, quando
dos levantes de 1935. Foi Ministro da Guerra de 1936 a 1945. Ocupou a Presidência entre 1946 e 1950
(BELOCH & ABREU, 1984, p. 1126-54). General Pedro Aurélio de Góes, o Chefe do Estado-Maior do Exército
no Estado Novo, foi Ministro da Guerra de 1934 e 1935.
Como já assinalado, na Nação Armada eram publicados artigos com assuntos
militares, assinados por fundadores ou colaboradores: memória militar, armamentos em geral,
tecnologias de guerra, estratégia, psicologia do combatente, as especialidades das Forças
Armadas, a importância dos militares, etc.. Francisco Affonso de Carvalho, fundador e
diretor de Nação Armada, à época major, é descrito por Monteiro como um homem de
“encorpada vida política e literária” (2010, p. 52)144. Outro importante militar que fez parte da
equipe da Nação Armada foi o General Francisco de Paula Cidade145.
Para Monteiro (2010), em fins da década de 1930, a revista A Defesa Nacional estava
mais focada do que as demais em questões consideradas próprias ao Exército, mantendo uma
identidade não intervencionista. Revista oficial do Exército, estava sob estrito controle de
órgãos internos deste e não foi publicada entre 1939-1940, anos iniciais da revista Nação
Armada, motivo desta última ter alcançado grande e rápida importância nos meios militares.
No período que nos interessa, a Revista Militar Brasileira se configura como uma quantidade
maior de textos referentes a tecnologias e estratégias militares, na comparação com as demais
e não contém nenhuma reportagem ou noticia referente a participação de mulheres na guerra,
seja no presente ou no passado.

O (um) feminino na Nação Armada


Importante salientar que as instituições militares, principalmente, desde fins do século
XIX, se configuram como um lugar de construção da masculinidade viril (BADINTER,
1994). Um feminino/mulher, para Helena Carreiras é a categoria de uma alteridade referencial
à ideia de militar/militares e militarismo, uma vez que mulheres/feminino, nas palavras da
autora se encontram cristalizadas pela sua ausência (CARREIRAS, 2009, p. 175).
A Nação Armada, de 1942 a 1945, contém um total de 3 artigos e uma notícia referente a
mulheres: “Saudação à Caxias e Ana Nery” (1942), creditado ao Cap. Dr. Carlos Sudá (out.
1942)146; “O heroísmo feminino. Homenagem a Legião Brasileira de Assistência” (nov.
1942), longo artigo com sete paginas, assinado pelo Cap. Micaldas Correa; o texto “As

144
Affonso de Carvalho publicou em 1931, dentre outras inúmeras obras, um romance chamado “1ª Bateria,
fogo!”, descrito na capa como o “Verdadeiro Livro da Revolução”.
145
Foi um dos chamados jovens turcos. No retorno da Prússia ao Brasil, participou da fundação da revista "A
Defesa Nacional". É também um dos fundadores da Biblioteca do Exército.
146
Primeiro texto da Nação Armada que se refere diretamente a mulheres. Foi publicado em de outubro de 1942,
dois meses após a decretação da entrada do Brasil na 2ª Guerra, contra os países do eixo. O texto trata da
transcrição de um discurso que teria sido proferido pelo Cap. Dr. Carlos Sudá, em cerimônia de juramento das
chamadas Samaritanas, no dia 23 do mesmo mês, no teatro municipal do Rio de Janeiro. As samaritanas,
referência à famosa parábola cristã sobre a compaixão, eram mulheres que haviam realizado um curso de
enfermagem de apenas um ano, frente à urgência da guerra.
mulheres na guerra” (nov. 1943), de Edith McNamara147; uma dita homenagem de uma
página, intitulada “O Heroísmo das legionárias de Anna Nery!”, publicada em 1945, dois
meses antes do retorno da FEB ao Brasil148; e uma breve nota, publicada em de outubro de
1945, noticiando o recebimento da Medalha de Guerra, pela 1ª dama Darcy Vargas149. Além
disso, foi publicado um artigo de cinco páginas, escrito pelo General Paula Cidade, referente
ao sucesso da música/poema Lily Marleen (1915/1938), que trata da saudade das mulheres
dos combatentes. Devido ao limite de paginas estabelecido, discuto neste texto somente o
texto referente as heroínas militares do passado, apresentadas pelo Cap. Dr. Carlos Sudá, uma
vez que condensa a concepção de um feminino que perpassa os demais textos.
O Capitão médico inicia o texto apontando a finalidade e a preocupação com o
reconhecimento de ações de mulheres ao longo de marcos oficiais de um passado glorioso do
Exército Brasileiro, em um momento crucial de convocação às mulheres ao esforço de guerra.
As lideranças militares, bem como políticos e organizações femininas, tais como a LBA150
também se voltaram a enunciados que responsabilizavam mulheres pela defesa da Pátria.
Cap. Micaldas Correia, inicia observando que as mulheres já participavam ativamente
de amplos espaços da sociedade: “[...] Nos lares e nas escolas, nos hospitais e nos
laboratórios, nas fábricas e nos campos, em todas as atividades pacíficas, avulta a
personalidade da mulher brasileira.” (CORREIA, 1942, p. 33). Entretanto, completa: a

147
Em quatro páginas, McNamara, utilizando pesquisas de universidades estadunidenses, argumenta sobre a
necessidade e sucesso do trabalho de mulheres em fábricas nos EUA, principalmente, em fábricas de
armamentos. Condizendo ao feminismo estadunidense do período, McNamara argumenta que esse sucesso pode
ser expandido com a adoção de cargas horárias menores, que possibilitariam um melhor aproveitamento do
trabalho das mulheres mães.
148
Para além das enfermeiras que logo retornariam do front, no texto, a homenagem é para todas as “abnegadas
patrícias” que trabalharam de forma sacrificial pela pátria. A dicotomia espaço público/privado, explícita,
reafirma esses lugares como forjados pelas oposições paz/guerra, perigo/proteção, casa/rua, descanso/esforço;
prazer material e vicissitudes.
149
A nota relata que a medalha, recebida diretamente das mãos do Gen. Góes Monteiro, foi encaminhada ao
Museu Histórico, após pedido de Darcy, como homenagem a todos os civis “[...] que na retaguarda,
contribuíram com qualquer parcela para a vitória final dos soldados do Brasil.” (Nação Armada, 1945, n. 71, p.
119). Com esse gesto político, Darcy Vargas reparte com os demais civis o sucesso da empreitada de sua ação
pessoal à frente da LBA..
150
A LBA foi fundada concomitantemente a entrada do Brasil na 2ª guerra, em 28 de agosto de 1942, pela 1ª
dama Darcy Vargas, com a finalidade declarada de "[...] amparar os soldados brasileiros e seus familiares" por
parte dos “brasileiros de boa vontade” (BARBOSA, 2017). A LBA, fundada pela parceria Estado e
empresariado brasileiro, tinha como base de sustentação o chamado voluntariado feminino, abrangendo todo o
território nacional e inaugurando o que foi chamado de 1º damismo (Ver: SIMILI, 2008). Para Ana Paula Vosne
Martins, a organização da LBA, voltada a assistência social, é um indicativo de como o Estado Novo criou as
condições para o exercício do que a autora chama de “cidadania feminina”. Era a difusão da ideia e de práticas
em que as mulheres seriam de suma importância na ocupação do espaço público, utilizando a maternagem como
prática política, voltada a toda a sociedade, como já estava acontecendo nos regimes autoritários europeus:
estado novo salazarista, na Itália fascista e na Espanha franquista (MARTINS, 2011, p. 16). A crença nas
capacidades de salvaguarda moral e física de toda a família, inerentes a um feminino doméstico, privado, mas
expandido ao espaço púbico, fazia parte do debate político brasileiro, pelo menos desde fins do século XIX,
sobretudo, com a eclosão do debate sufragista (Ver: SOIHET, 2006).
situação de guerra exige um novo esforço. Nas enfermarias, curando os feridos; nas fábricas;
nos transportes e até nas milícias. Sobretudo, destaca a função das mulheres na preparação
moral dos filhos à guerra, bem como o esposo ou irmão. Na sequência, o capitão passa a
narrar, como, várias mulheres, com essa função – esteio moral -, haviam sido fundamentais a
vitórias militares do passado.
Capitão Correia aborda no texto um total de treze heroínas, descritas de forma
cronológica: quatro relativas a Batalha dos Guararapes (abril de 1648 e fevereiro de 1649);
duas sem precisão de período/evento; duas relacionadas a luta pela independência (1822);
uma referente a Guerra de Farrapos (1835-1845); 4 quatro participantes da Guerra do Paraguai
(1864-1870).
Em relação as heroínas da Batalha de Guararapes, primeiro ou segundo confronto, o
artigo enumera e descreve as seguintes mulheres: Clara Camarão, esposa de herói Potí, como
a “[...] mulher índia, lutou sempre ao lado de seu marido” (Idem, p. 33); Maria de Souza, mãe
que,

Depois de ter perdido três filhos e o genro, não se abateu. Ao contrário, cresceu-lhe o
sentimento de revolta. Restavam-lhe dois filhos, um de 13 e outro de 14 anos.
Mandou-os também para a luta, dirigindo-lhes as seguintes palavras – ‘Hoje foi
vosso irmão Estevão morto pelos holandeses; a vós agora toca cumprir o dever de
homens honrados, numa guerra em que se serve a Deus, ao Rei e à Pátria. Cingí as
espadas, e, quando vos lembrar o triste dia, em que as pondes à cintura, inspire-vos
ele não mágoa, mas no desejo da vingança que, quer vingueis vossos irmãos, quer
sucumbais como eles, não degenereis deles, nem de mim.” (Ibidem, p. 33)

A devoção das mulheres mães à defesa da pátria é posta acima da vida dos filhos. Essa
é uma narrativa que se repete em relação às demais personagens mães. A cobrança da defesa e
manutenção da honra masculina é posta como uma exigência da mãe, do feminino, aos
homens. Em relato parecido, Correia relata que Dona Ana Pais, descrita como senhora de
engenho de Pernambuco, em uma situação em que mulheres estavam reféns de soldados
holandeses e eram usadas como escudo, teria proclamado: “‘Atirem! Não se importem
conosco! Atirem!’ Resolveram então os brasileiros assaltar o engenho à arma branca,
correspondendo à abnegação das mulheres com redobrada bravura.” (CORREIA, 1942, p. 33).
A coragem das mulheres, o destemor frente à morte eminente, serve de alavanca à exigência
da coragem dos homens, os quais precisam corresponder à dita abnegação delas com a
bravura e ferocidade necessária ao embate. A narrativa de Correia sobre as chamadas
“Mulheres de Tejucupapo” segue na mesma direção:
Poucos homens válidos haviam; o mais, eram velhos, mulheres e crianças. [...] Há
um esmorecimento. Mas, uma das mulheres, com um crucifixo numa das mãos e
uma espada na outra, transfigurada, heroica, incentiva o combate. Então, as
mulheres, tomando as armas dos homens caídos, contra-atacam, investem,
desorientam e assombram o inimigo, que recua desordenado. (CORREIA, 1942, p.
34).

As Mulheres de Tejucopapo151, a partir da iniciativa de uma delas, conseguiram


desorientar os homens/inimigos quando assumiram o papel de combatentes, retirando e
usando as armas dos homens mortos ou feridos, não mais válidos. Essa narrativa, publicada
em um momento que urgia o voluntariado de mulheres para o esforço de guerra, de forma
muito semelhante, são atualmente celebradas por grupos políticos de viés opostos152.
Como já dito, duas heroínas, descritas na sequencia das demais, não tem uma
temporalidade específica. Segundo a rememoração enaltecedora do Capitão Correia, Dona
Rosa Maria de Siqueira – “paulista, ilustre, em companhia do marido” (Idem, p. 34), foi a
protagonista principal de uma vitória contra ataques consecutivos de piratas – cinco ataques -,
por não permitir o esmorecimento dos homens: “Alguns homens da tripulação pretenderam
entregar o barco, mas Dona Rosa exaltou-os, dizendo-lhes que era preferível a morte à
capitulação. Depois, trajando-se de homem, integrou-se a peleja” (Ibidem, p. 35). A bravura e
o enfrentamento de mulheres às condições adversas ao seu sexo-gênero, presentes na cultura,
exigem dos homens a assunção ou retomada de seus lugares, de sua masculinidade viril,
simbolicamente de antemão demarcada.
Outra heroína, também temporalmente não definida, é a Maria Bárbara, descrita como
esposa de um soldado humilde, mas que “sacrificou a vida pela honra conjugal, reagindo a
perseguição de um devasso que tentara seduzi-la. Assaltada pelo miserável, em lugar ermo,
resistiu valorosamente, em luta desigual e titânica, até cair assassinada.” (CORREIA, 1942, p.
35). Na sequência, o capitão transcreve um soneto que teria sido feito a ela por Tenreiro
Aranha, homenageando a pureza de uma mulher que defendeu a honra conjugal, leia-se, do
marido, com a própria morte. As heroínas que são descritas como jovens e solteiras, e de
“extrema formosura”, seguem o mesmo padrão de defesa moral que culminam na própria
morte, frente a ataques sexuais ocorridos em meio a confrontos e batalhas.
Todo o texto do Capitão Correia está entremeado com pequenos desenhos ilustrativos,
em laranja, de algumas dessas mulheres. Cronologicamente os inimigos vão mudando. Dos

151
Relatos sobre essas valentes mulheres se encontra na obra “Valeroso Lucideno", de 1648, escrita pelo frei
português Manoel Calado.
152
Celebradas por grupos de partidos de diferentes matizes políticas tais como o Portal Vermelho
(http://www.vermelho.org.br/noticia/279398-1) e cartilha do Partido Democratas http://www.mulher
democrata.org.br/download/cartilha_maio.pdf.
holandeses, invasores, para o português opressor, duas heroínas das lutas pela independência
(1822) - Soror Angélica e Maria Quitéria-, exemplificam também aquelas que não titubearam
e tomaram para si a defesa do convento, da terra, da Pátria. No famoso ataque ao convento da
Lapa, pelos portugueses, segundo a narrativa do Cap. Correia, a soror teria bramido: “Para
trás bandidos! Respeitai a casa de Deus! Antes de conseguirdes vossos infernais desígnios,
passareis por sobre o meu cadáver’ e tombou golpeada à espada” (Idem, p. 35).
Maria Quitéria, por sua vez, é descrita pelo capitão de forma breve. Talvez por se
tratar de personagem mais conhecida que as demais, mesmo em 1942153. Ela teria fugido de
casa e se alistado no Batalhão de Voluntários de Dom Pedro I, com indumentária masculina.
Em 1823, uma vez descoberta sua condição de mulher, foi recebida por Dom Pedro, o qual lhe
concedeu o soldo de alferes de linha e a condecoração de Cavaleiro da Ordem Imperial do
Cruzeiro. Sua imagem se encontra consolidada na história oficial do Exército, carecendo de
pesquisa específica.154
Na narrativa de Correia, outra personagem também consolidada na cultura histórica
sobre a Guerra de Farrapos, Anita Garibaldi, exemplifica a intervenção de mulheres em
combates e que coloca a masculinidade/virilidade dos homens em cheque:

Certa vez, num combate entre navios, descendo de um posto abrigado, atravessou
uma zona perigosa. Quiseram detê-la, ... “Vou sim, para buscar os covardes que se
esconderam lá em baixo!” Dali a pouco voltava, conduzindo um grupo de
marinheiros, que se atiraram à luta, envergonhados. (Ibidem, p. 36).

A vergonha dos homens, no chamamento à ordem, descrita por Correia, tem esse
efeito justamente por se tratar de uma exigência feita por uma mulher. Vista como espécie e
simbolicamente posta como avessa a coragem, e que, fora de seu lugar, coloca em flagrante a
situação de fraqueza de homens. O deslocamento da condição de masculinidade se dá, não
somente pela hesitação, medo e indecisão perante o combate, mas, principalmente pela
presença aguerrida de mulheres nela.
Na Itália, a Anita descrita pelo capitão, na condição de “[...] Grávida de cinco meses,
faminta e ardendo em febre, não resistiu e morreu heroicamente” (CORREIA, 1942, p. 36).
Os filhos já nascidos, ou os filhos ainda por nascer, não impedem a bravura dessas mulheres.
Muito pelo contrário. É justamente esses lugares de um feminino - mãe sacrificial e esposa

153
Maria Quitéria é “patrono” do quadro complementar de oficiais do Exército Brasileiro, desde 1996.
154
Disponível em < www.cdocex.eb.mil.br/site_cdocex/.../mariaquiteriadejesus.pdf>. Acesso em: 23Fev2017.
devotada -, que são aclamados no chamamento de outras mulheres ao esforço de uma guerra
premente, e, principalmente, na exigência de tomada de brios aos homens.
Por fim, Capitão Correia delineia a participação heroica de quatro mulheres na Guerra
do Paraguai. No chamado Ataque ao Forte de Coimbra (1864), Ludovina Portocarrero é
descrita como “[...] digna de seu marido. Incentivava os homens ao combate e chefiou um
grupo de 70 mulheres que ali permaneceram, contribuindo para a resistência, preparando e
confeccionando munição para o que usaram até as próprias roupas” (Idem, p. 37). A Francisca
Conceição, pernambucana, que com 13 anos, teria se casado com um cabo e seguido,
disfarçada de homem, junto com ele para o sul do país para lutar: “[...] ela assiste à morte do
companheiro. Jura vingá-lo” (Ibidem, p. 37). Ferida em Curupaiti (1866), no hospital
descobrem que é uma mulher. Correia termina sem nos revelar o desfecho. A história dela ali
termina. A ênfase dele é em demarcar a devoção de uma esposa que entrou em combate,
primeiro, para acompanhar o marido e, depois, para vingá-lo. Em relação a Ludovina, “digna
de seu marido”, ao ocupar lugar de comando e combate, nos mostra o despojamento de
mulheres, até das próprias roupas, para não se deixar sucumbir ao inimigo. Essas mulheres são
descritas tal qual aquelas que lutaram nos processos de independência em toda América
Latina, discutidas por Maria Ligia Prado (1999). Além disso, é importante assinalar que a
produção histórica ainda carece de pesquisas em relação ao que parece não ser tão somente
raridade: mulheres disfarçadas e/ou vestidas como homens, acompanhando os maridos/filhos,
ou não, e fazendo parte dessas tropas.
Mais uma importante personagem narrada pelo Cap. Correia, nada mais é do que a
senhora Rosa da Fonseca, mãe do Marechal Deodoro. Somente no final da narrativa sobre o
heroísmo dela, Correia dá essa informação. O fio condutor do texto coloca sua bravura e
importância histórica como sendo anterior e derivativa de seu ilustre filho:

[...] nascida em alagoas, mãe de sete filhos homens, os quais lutaram todos na guerra
do Paraguai. Cogitação de tratado de paz com o inimigo, declarou: “Prefiro não ver
mais meus filhos! Que fiquem antes todos sepultados no Paraguai, com a morte
gloriosa no campo de batalha, do que enlameados por uma paz vergonhosa para a
nossa Pátria! (CORREIA, 1942, p. 38).

Com o recebimento da notícia de que um dos filhos tinha sido morto e outros dois
feridos (um deles Deodoro), segundo o capitão, Dona Rosa chorou mais uma vez o sacrifício
da prole, mas “[...] comemorou a vitória mandando iluminar a fachada da casa e enfeitando-a
de flores e bandeiras. Nesse dia, em que se misturavam a dor e a alegria, disse ela: ‘A vitória
que a Pátria alcançou, e que todos foram defender, vale muito mais que a vida de meus
filhos.’” (Idem, p. 38). A Pátria, acima de todas as coisas, mesmo para as mães, embala as
narrativas militares sobre suas heroínas. A ideia de Pátria se mescla a ideia de uma família
coletiva, nacionalmente preparada para os sacrifícios necessários a sua manutenção e/ou
vitória, em que o decantado amor materno não poderia interferir. Longe disso. São as mães,
são as esposas, são as mulheres que conduzem, induzem, dão ânimo, a luta e ao sacrifício dos
homens.
Dona Rosa da Fonseca foi elevada a categoria de Patrono da Família Militar, em 2016.
A família militar, categoria recentemente utilizada em pesquisas sobre militares (Ver:
CASTRO, 2018), é também pelo Exército, “[...] na figura de Rosa da Fonseca, reconhecendo
a importância do espírito de sacrifício e de luta, o qual possibilita aos integrantes da Força
Terrestre alcançarem o sucesso pessoal e profissional, com o sentimento de dever cumprido,
seja qual for a missão”155. Assim como diversas heroínas, na família militar a função das
mulheres é impulsionar o brio e a valentia dos homens, sem lugar para o lamento das
inevitáveis perdas.
Relatando a história de mais uma heroína da Guerra do Paraguai, capitão Correia
escreve sobre a baiana Ana Justina Ferreira – Ana Neri – que casou com Izidoro Antonio
Neri, oficial da Marinha. Teve três filhos homens: dois médicos e um militar. Cedo enviuvou.
Com a partida dos filhos para a guerra, a mesma teria escrito ao presidente da província da
Baía, em 8 de agosto de 1865:

[...] como brasileiro [sic], não podendo ser indiferente aos sofrimentos dos meus
compatriotas, e, como mãe, no podendo resistir à separação dos objetos que me são
caros, e por uma tão longa distancia, desejava acompanha-los por toda a parte,
mesmo no teatro da guerra, se isso me fosse permitido; mas opondo-se a esse meu
desejo e minha posição e o meu sexo, não impedem, todavia, esses dois motivos, que
eu ofereça os meus serviços em qualquer dos hospitais do Rio Grande do Sul, onde
se façam precisos, com o que satisfarei ao mesmo tempo meus impulsos de mãe e os
desejos de humanidade para com aqueles que oram sacrificam suas vidas pela honra
e brio nacionais e integridade do Império. (Ibidem, p. 38)

Mãe e patriota, Ana Neri, presente na revista em publicação anterior,


contrabalançando a cruz da abnegação, tenacidade e cuidado com a espada vitoriosa de
Caxias, na carta apresentada pelo capitão, lança justamente sua “posição e sexo” como
argumento à utilização de seus serviços na proximidade da guerra, ampliando sobremaneira a
sua posição de mãe, cuidadora benfazeja, às demais pessoas. Uma mãe de toda a nação.
Segundo Cap. Correia, ela teria sido consagrada pelo Exército como a “Mãe dos Brasileiros”.

155
Portaria n. 650, de 10 de junho de 2016. (Ver: http://www.eb.mil.br/patronos//asset_publisher
/e1fxWhhfx3Ut/content/olavo-bilac-servico-milit-1?inheritRedirect=false)
Entretanto, essa alcunha lhe foi dada a partir do poema, escrito por Rozendo Muniz Barreto,
estudante de medicina, o qual teria sido testemunha da atuação de Ana Neri. Cap. Correia
destaca que aos 50 anos, durante cinco anos, ela acompanhou as campanhas “[...]
enfrentando pestes, cuidando de feridos, consolando enfermos, organizando enfermarias com
recursos próprios. Tratava aliados e inimigos com o mesmo carinho, e os doentes chamavam-
na de ‘mãe’”. (CORREIA, 1942, p. 39).
Importante assinalar que, em 1938, Getúlio Vargas havia instituído o Dia do
Enfermeiro, a ser celebrado em 12 de maio. O decreto determinava que nessa data deveriam
ser prestadas homenagens especiais a memória de Ana Neri, em todos os hospitais e escolas
de enfermagem156. a flexão de gênero nos diplomas profissionais de homens e mulheres, só
passou a ser utilizada a partir de decreto presidencial de 2012, após problematização, tanto
dos movimentos sociais quando das teorias feministas sobre a linguagem e as relações de
poder, e as críticas pós-estruturalistas ao chamado masculino universal157.
Enaltecendo um feminino relacionado a um ideal militar de mãe e esposa:
protagonistas da elevação moral dos homens, seja pelo exemplo de coragem que chega a os
envergonhar; seja pela abnegação ou até exigência do sacrifício da vida dos filhos, do marido
e de si mesma; seja pela manutenção da elevada moral e honra do marido, Capitão Correia
finda seu texto:

A colaboração feminina na família e na sociedade, marcada de bondade, inteligência,


dedicação e espirito de sacrifício, tem provado à larga o valor e a grandeza moral da
mulher brasileira. Mãe e educadora, mulher da ciência ou artista, enfermeira ou
operária, a mulher contemporânea, livre de preconceitos, emancipada e consciente
[sic], é fator decisivo nos destinos do Brasil, na preservação dos ideais de justiça e
de humanidade (Idem, p. 39).

Tal como Rosa da Fonseca, Darcy Vargas e outras tantas, o feminino possível nas
narrativas de militares é a da mãe dos brasileiros e/ou filhas de Benjamin Constant.

FONTES E REFERENCIAS
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Revista Navigator, v. 9, n. 18, 2014. p. 55-64
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BARBOSA, Michele Tupich. Legião Brasileira de Assistência (LBA): o protagonismo
feminino nas políticas de assistência em tempos de guerra (1942-1946) / UFPR

156
BRASIL. Decreto-Lei n. 2.956/1938, de 10/08/1938. Disponível em:
http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/Legislacao.nsf/viwTodos/FB211C3AA06FB3A0032569FA005BE180?O
pendocument . Acesso: 15 jul. 2018.
157
BRASIL. Lei n. 12605, de 3 de abril de 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03
/_ato2011-2014/2012/lei/l12605.htm. Acesso: jun. de 2018.
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Sul: EDUNISC, 2006.
MILITARES, GEOPOLÍTICA E FRONTEIRAS
Shiguenoli Miyamoto
Departamento de Ciência Política - Universidade Estadual de Campinas158

Palavras-chave: fronteiras brasileiras; forças armadas brasileiras; geopolítica do Brasil.

Introdução
Ao serem construídas, as muralhas da China, exercendo o papel de fronteiras ou linhas
divisórias entre soberanias, tinham uma finalidade específica: conter os inimigos. O que se
verificou depois é que elas não atingiram integralmente seu objetivo. Da mesma forma, o que
teria ocorrido com a queda de Tróia mostra que a inviolabilidade de um território sempre
esteve longe de ser plenamente assegurada, com as fronteiras sendo constantemente rompidas.
Derrubadas ou adentradas por subterfúgios, as muralhas, as fortificações e castelos,
assim como as fronteiras dos territórios nunca resistiram indefinidamente, e foram vencidas
dependendo de alguns fatores: persistência daqueles que atacam, aliada à sua capacidade
bélica e tempo disponível, além de recursos e logística apropriados.
A inexpugnabilidade dos países nos tempos contemporâneos igualmente jamais
existiu. Com o domínio dos ares e do espaço, as fronteiras viram diminuída sua capacidade de
proteger um território, uma vez que os artefatos atômicos e nucleares acabaram com a ideia do
que se pretendia ter de segurança absoluta de um Estado. (KISSINGER, 1962).
A concepção almejada de segurança absoluta por parte dos governos, com fronteiras
invioláveis, jamais poderia ser concretizada, uma vez que um território ao atingir tal
propósito, colocaria todos os demais membros da comunidade internacional em insegurança
absoluta, convertendo-se esses últimos, portanto, em reféns do primeiro.
Foi com perspectiva semelhante a essa que, na década de 1980, Washington pensou
no projeto “Iniciativa de Defesa Estratégica” (Strategic Defense Initiative – SDI), conhecido
como “Guerra nas estrelas” no governo de Ronald Reagan, mas que não foi implementado.
Em termos geopolíticos, as fronteiras são linhas divisórias, mas sempre permeáveis,
porosas, impossíveis de serem protegidas em sua integralidade, invioláveis como desejariam
os governantes. Isso se aplica, mesmo antes do advento dos equipamentos nucleares, inclusive
às fronteiras consideradas dinâmicas ou quentes, entre países com históricos litigiosos, porque

158
A produção deste texto e a participação no evento contaram com recursos do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), através de Bolsa de Produtividade em Pesquisa nível 1A
concedida ao autor.
demandariam recursos financeiros e humanos em escala considerável, onerando em demasia
os orçamentos nacionais. Além do mais, na ocorrência de um conflito, um contendor com
capacidade bélica maior dificilmente encontrará dificuldades para romper as linhas divisórias
e quebrar soberanias alheias. As fronteiras consideradas mortas, por outro lado, não se
constituem em problemas justamente pelo fato de os parceiros dos dois lados manterem
relações cordiais/amistosas, onde as segurança e defesa não se colocam como temas
prioritários de suas agendas bilaterais.

Nos tempos atuais, por razões diversas, barreiras físicas têm sido levantadas para
dificultar ou impedir a entrada de populações consideradas indesejadas verificado, por
exemplo, nos casos de Israel e dos Estados Unidos da América. É o mesmo tipo de política
adotada na época da guerra fria quando na Alemanha, a partir de 1961, se ergueram muros e
cercas de arame para evitar a fuga de pessoas de Berlim Oriental para o outro lado. Ao assim
agirem, os países justificam tais medidas enfatizando a necessidade de defender sua soberania,
procurando manter a integridade territorial e suas instituições. São consideradas políticas
realizadas no âmbito doméstico escapando, portanto, de qualquer interferência externa, ainda
que parte da comunidade internacional considere hostis posturas dessa natureza. Em termos
análogos, políticas com essa finalidade pouco diferem das adotadas por países europeus,
quando tentam impedir a entrada em seus territórios de refugiados africanos.

As fronteiras funcionam, portanto, como separadoras de soberanias, apresentando


diferenças de um lado e de outro das linhas divisórias, ainda que nem sempre essas sejam
visíveis. Mas fixam os domínios de um e de outro Estado sobre seus habitantes, com
instituições, legislações e aparatos jurídicos diferenciados. Temos, assim, a distinção entre a
política doméstica e as relações internacionais, já que se delimita a área geográfica de atuação
do governante. Nesse sentido, são interessantes as observações de estudioso das relações
internacionais ao comentar sobre “o aparecimento simultâneo do ‘interno’ e do ‘externo’ ou
‘nós’ e ‘eles’ no desenvolvimento do conceito hobbesiano de Estado” (FORSYTH, 1980, p.
67). O mesmo, portanto, se verifica em outros domínios, constituindo-se uma constelação de
interesses e territórios diferenciados, separados por linhas bem definidas, onde acaba um e
começa o outro.

As políticas de controle das fronteiras atualmente trazem elementos que sempre


existiram, embora de forma velada, acerca de tudo que vem do exterior: intolerância,
xenofobia, aversão, receio de entrada de valores não condizentes com os existentes no país,
além das dificuldades em aumentar investimentos necessários em áreas sociais, segurança
pública e infraestrutura para aqueles que ultrapassam legal ou ilegalmente as barreiras
fronteiriças dos países receptores.

Geopolítica e Fronteiras

As fronteiras se constituem em tema de excelência da geopolítica. Não é gratuitamente


que as escolas geopolíticas concedem, desde o momento em que foram concebidas como tais,
atenção especial às fronteiras. As fronteiras se tornam o objeto maior de discordância entre os
diversos Estados, quando se trata de definição de suas soberanias. Isso se verifica tanto no
plano das Relações Internacionais, quanto no âmbito doméstico, quando se trata de fixar os
limites entre as unidades federativas e mesmo dos municípios.

Autores tradicionais da geopolítica realçaram esse aspecto das fronteiras e a geopolítica.


Em uma das, por ele designadas leis de crescimento espacial dos Estados, Friedrich Ratzel
(2011, p. 147-149) explicitava o que deveria ser entendido pelo assunto: “a fronteira é o órgão
periférico do Estado e, como tal, a prova de crescimento estatal: é a força e as mudanças desse
organismo.”

A geopolítica é entendida como formadora de fronteiras. Na elaboração da estratégia


nacional, os fatores geopolíticos são altamente considerados, aqui incluindo a proteção das
fronteiras da melhor maneira possível. Este tipo de interpretação sempre se fez presente
nas políticas públicas de todos os governos. Daí, a necessidade de Forças Armadas para atuar
contra interesses que possam afetar a segurança e a soberania dos países. Percebidas como
“vivas” ou “dinâmicas” as fronteiras podem se deslocar para um ou outro lado, conforme a
belicosidade e as capacidades dos Estados. Neste caso, trata-se de um jogo de soma zero: o
que um ganha e o outro perde. Na campanha eleitoral para sua reeleição ao cargo de Primeiro
Ministro de Israel, Binyamin Netanyahu prometeu no dia 10 de setembro de 2019, anexar o
Vale do Jordão, o que equivale a cerca de 30% da Cisjordânia, com o intuito de proporcionar
ao país, pela primeira vez em sua história, fronteiras permanentes e seguras. (OESP, 2019, p.
A-12)

Mas a preocupação dos governantes não se restringe apenas às linhas demarcatórias


para definir seus territórios e suas influências. Outros aspectos são frequentemente
incorporados e que em muitos casos não eram considerados pelas tradicionais teorias
geopolíticas, mais voltadas apenas para o seu espaço físico fechado. Assim, ainda que as
Forças Armadas se constituam no bastião, na proteção do território e na defesa da soberania e
das instituições de seu país, outros mecanismos são utilizados pelos responsáveis pela
administração pública em seu planejamento global. O adensamento demográfico junto às
fronteiras torna-se, neste caso, fator importante para resguardar os interesses nacionais,
mantendo e expandindo além-fronteiras, a língua, costumes, influências econômicas e
culturais. Mecanismos como esses se apresentam mais eficazes do que o mero uso de forças
militares ao longo das fronteiras.

O preenchimento de todos os espaços ao longo das fronteiras seja com populações, seja com
culturas agrícolas , procura mostrar que não há partes do território que possam ser alvo de
disputas. Métodos como esses possibilitaram ao Brasil a incorporação do Acre em 1903, bem
como de reclamações do Paraguai nos anos 1970 e 1980, com a cultura da soja, a aquisição de
propriedades do outro lado rio Paraná e com a ida dos chamados brasiguaios ao território
guarani. (LAÍNO, 1979: 65-131; WETTSTEIN & CAMPAL, 1975).
Para Laíno (1979, p. 244) no caso latino-americano:

“é possível provar com fatos a aplicação prática e com êxito dos conceitos brasileiros
sobre fronteiras sensíveis ou fronteiras vivas e além disso descobrir amplamente, este
principio geopolítico ligado estreitamente a uma estratégia global de marcha para o
oeste. Todos os países que fazem fronteira com o Brasil sentem os efeitos da expansão
e de alguma maneira se esforçam para neutralizá-lo.”

A maior capacidade econômica do Estado brasileiro, por exemplo, é percebida através


da instalação de postos de saúde, igrejas e escolas ao longo das fronteiras com a Bolívia e
outros vizinhos, fazendo com que populações desses países se locomovam ao Brasil, em busca
de serviços inexistentes em seu território. Isso, por sua vez, tem reflexos na própria segurança
nacional, uma vez que os habitantes dos outros países passam a se identificar com aqueles que
lhes fornecem serviços, fortalecendo o idioma português que passa a ser utilizado com
frequência maior.
Representantes da geopolítica brasileira, como Golbery do Couto e Silva, Carlos de
Meira Mattos e Therezinha de Castro, entre outros, concedem espaço importante ao problema
das fronteiras, que permeia todo o desenvolvimento dessa área de conhecimento no país. Em
um modelo do que chama “Esboço de um plano de pesquisa geopolítica”, o primeiro desses
autores especifica, entre outros itens, que a geopolítica brasileira deve apresentar-se com
características de uma “geopolítica de contenção ao longo das linhas fronteiriças”. (COUTO
E SILVA, 1981, p. 260).
Este e outros geopolíticos, mesmo de anos anteriores, mas que estariam sendo
utilizados pelo governo no período militar, foram identificados como representantes de uma
política sub-imperialista brasileira, cujo objetivo seria exercer na região o mesmo papel
jogado pelos Estados Unidos da América no mundo.
A geopolítica brasileira percebida como expansionista, tentando envolver os demais
vizinhos em seus tentáculos, foi identificada como defensora das chamadas fronteiras
ideológicas, porque se apresentaria com viés interpretativo distorcido dentro do clima de
guerra fria reinante. Este tipo de literatura mostrou-se significativo no Cone Sul nas décadas
de 1960 a 1980.
Após considerar as políticas públicas brasileiras do regime militar em diversos setores,
e entender que essas caminhavam todas em direção a um claro objetivo, conhecido autor
conclui que: “Analisando a política latino-americana do Brasil dos últimos anos dos últimos
anos, verifica-se que se desenvolvem de forma rápida e eficiente os planos de incorporar os
países vizinhos à esfera política, à economia, ao modo de viver e pensar brasileiros.”
(SCHILLING, 1974, p.160).
Discursos desse calibre são recorrentes na literatura regional, como se pode,
novamente, comprovar por um dos maiores críticos da política brasileira. Na década de 1970,
o criador da revista argentina Estratégia também concluía que:
“ ... parece oportuno apontar que a atual etapa da política espacial brasileira, cujo
início é sinalizado com a transferência de sua capital para Brasília, tem como
objetivos consolidar a integração territorial com ênfase particular sobre as zonas da
Amazônia e oeste de Mato Grosso, e em manter sua tradicional projeção em direção
aos países vizinhos.” (GUGLIALMELLI, 1974, p. 69)

Em termos formais, pelo Artigo 20 da Constituição Brasileira, as fronteiras são


definidas da seguinte forma: “§ 2º - A faixa de até cento e cinquenta quilômetros de largura,
ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada
fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em
lei.” (BRASIL, 2019)

As fronteiras e o espaço brasileiro


Desde o Tratado de Tordesilhas, firmado em 1494 entre Portugal e Espanha, os países
sul-americanos passaram por inúmeras transformações, principalmente no que se refere ao seu
espaço territorial. (MACEDO SOARES, 1939)
Ao longo dos anos, os países da região enfrentaram-se em diversas oportunidades por
questões de limites, inclusive em período mais recente. Em certas ocasiões, as discordâncias
foram resolvidas através de negociações e arbitradas por instâncias internacionais. Vezes
outras, o uso da força se fez valer.
Todavia, apesar de, em momentos distintos, os países sul-americanos não terem
conseguido chegar a bom termo em suas negociações, por outro lado, pode-se dizer que,
atualmente, as chances de alterações das fronteiras com o uso das armas são bem mais
restritas do que em períodos anteriores, como ocorridos até o século XIX. O que não significa
que hipóteses nessa direção devam ser completamente descartadas.
Mas isso não é uma particularidade sul-americana. Pelo contrário. A história do Velho
Continente é recheada de exemplos sobre os conflitos que terminaram por definir o mapa
atual da União Europeia.
A Polônia localizada no centro do continente é prova das alterações sofridas ao longo
de sua trajetória. Israel nos anos 1960 ampliou significativamente seu território, enquanto no
sudeste da Ásia e em partes do continente africano mudanças foram observadas todas no
século XX, ou seja, ainda em tempos bastante próximos, quando os impérios coloniais foram
praticamente varridos de suas possessões.
No entorno brasileiro pendências inúmeras persistem ainda sobre as linhas fronteiriças,
sendo o caso boliviano o mais emblemático já que esse país se viu alijado de saída para o mar
ao ser derrotado na Guerra do Pacífico (1879-1883), constituindo-se tal reivindicação em sua
bandeira permanente nos diversos foros internacionais.
O Brasil, como membro maior da comunidade sul-americana, foi o mais beneficiado
com as políticas de ampliação de seu território desde o início da historia regional. Sob a coroa
lusitana, o Império e o início da República, o país mais do que duplicou seu espaço, de cerca
de 3 milhões de quilômetros quadrados originais para os atuais 8,5 milhões de quilômetros
quadrados.
Se posturas atualmente consideradas inadequadas foram utilizadas para ultrapassar as
fronteiras localizadas a 370 léguas das ilhas de Cabo Verde, se à custa ou não de recursos
humanos de vizinhos, ou mesmo pela aquisição de territórios, essas modalidades de política
prescindem de discussões maiores porque são episódios que fazem parte da História regional.
Sob essa perspectiva, não podem nem devem ser julgadas com padrões distintos das
épocas em que ocorreram. Caso contrário, teríamos que repensar a história da Humanidade
conceituando o que seriam comportamentos corretos ou errados segundo parâmetros
amparados em nossas atuais concepções de mundo. Nesse caso, de forma semelhante,
deveríamos arcar com o risco de sermos julgados sob padrões diferentes dos nossos no
próximo milênio, sobre as políticas atuais relacionadas com a preservação do meio ambiente,
desigualdades sociais e de gênero, guerras, genocídios, exploração da força de trabalho,
crimes, etc.
Com fronteiras terrestres de 16.886 quilômetros e litoral de 7.367 quilômetros, cercado
por 9 países e a Guiana Francesa, esse tema sempre fez parte da agenda permanente de
preocupação por parte de autoridades e entidades ligadas ao campo econômico e de
planejamento, político e diplomático, além do agente maior responsável pela sua proteção, no
caso as Forças Armadas.
Pelo menos é isso que estabelece a própria Constituição Federal de 1988 no Art. 142
ao mencionar que
“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são
instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e
na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à
defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer
destes, da lei e da ordem. § 1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a
serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas”.
(BRASIL, 2019 )

Nada de diferente do adotado pelos demais países que, da mesma forma, tem em suas
Forças Armadas o instrumento entendido como necessário para proteção de seus territórios e
de suas instituições. Daí os investimentos considerados imprescindíveis para que as mesmas
possam estar preparadas no momento em que se fizerem necessárias.
No Brasil, o tema das fronteiras esteve sempre ligado à geopolítica e aos militares
umbilicalmente. Nem poderia ser de maneira diferente. Assim como ocorre nos demais países
do mundo, excetuando a possibilidade de um conflito nuclear, ou de ataques aéreos de grande
altitude, as fronteiras sempre se constituíram na barreira primeira para tentar impedir a entrada
de inimigos. Mesmo quando o termo geopolítica não havia sido criado, a evolução da história
nacional mostra a importância do uso dos elementos geográficos na configuração do território
brasileiro e os acordos realizados para manter as áreas conquistadas.
Se a ampliação do espaço brasileiro nem sempre contou com a presença militar, é
patente, por outro, a perspectiva geopolítica para a conquista de mais e mais áreas. Nos
tempos recentes, as duas instâncias responsáveis por problemas relativos à fronteira, como os
diplomatas e os militares, estiveram sempre na linha de frente para assegurar as conquistas
obtidas ao longo dos anos.
Após a consolidação das linhas fronteiriças nacionais, diplomatas e militares passaram
a desempenhar papéis diferenciados. De um lado, o discurso de respeito às normas do Direito
Internacional e o uso de instrumentos apoiados no diálogo e nas negociações. De outro lado,
na visão castrense, a necessidade de proteção das fronteiras é pensada sob o prisma da
necessidade de instrumentos bélicos capazes de persuadir potenciais inimigos e de lhes fazer
frente, se necessário, na defesa do território, começando pelas fronteiras, ou seja trata-se de
raciocínio que leva em conta a visão conspirativa da História.

Defesa e Segurança Nacionais


Nos anos 1980 quando bradava constantemente em alto e bom som que não havia
dinheiro algum no mundo que pudesse comprar sequer um palmo de terra da Amazônia, o
então presidente José Sarney nada mais estava fazendo do que defender o que considerava
indiscutível. Nesse caso, a inviolabilidade e a soberania brasileira sobre seus recursos naturais
dentro das fronteiras nacionais.
Além-fronteiras tratar-se-ia de problemas concernentes aos demais países, mas no
território brasileiro tal discussão não se colocava. Nas reuniões realizadas no âmbito da Bacia
Amazônica defendia-se a região como patrimônio dos seus membros e não como bem comum
da Humanidade.
A questão ambiental trouxe problemas que até a década de 1970 mereceram pouca
atenção dos governos de todo o mundo, principalmente daqueles em estágios de
desenvolvimento menos avançados que faziam uso extensivo de seus recursos.
As pressões decorrentes dos países altamente industrializados, de organizações
internacionais e de organizações não governamentais obrigaram os governos, no caso que
mais nos interessa, sul-americanos a adotar medidas mais consistentes para proteger seus
recursos e, por extensão, seus domínios territoriais.
Políticas direcionadas para a proteção das fronteiras foram adotadas quando
começaram a se tornar mais insistentes as críticas dirigidas aos países que não estariam se
preocupando com a conservação do meio ambiente, colocando em risco não apenas suas
populações mas a todos de forma conjunta, já que as consequências não obedecem aos limites
geográficos fixados pelos governos.
Embora apenas nas duas últimas gerações a questão ambiental tenha se convertido em
tema de segurança, obrigando os países a assumirem políticas mais consistentes de defesa
nacional, a proteção das fronteiras ocupou parte expressiva da agenda brasileira.
Até a década de 1970 na agenda da política externa brasileira as divergências se
concentravam no Cone Sul, basicamente com a Argentina, por isso, parte expressiva dos
contingentes se localizava nas partes Sul e Sudeste do país, com o III e II Exércitos, em Porto
Alegre e São Paulo, respectivamente. Os I o IV Exércitos baseados no Rio de Janeiro e
Recife completavam as forças terrestres.
Em 1966 o próprio Ministério das Relações Exteriores chamava atenção para o
revigoramento das fronteiras, elaborando dois projetos intitulados Itamaraty I e II, voltados
para os problemas fronteiriços do Sul e da Amazônia respectivamente. Tais projetos
consistiam em adensamento populacional nessas localidades, sem mencionar porém a
necessidade de reforços militares (MRE, 1968). Se as fronteiras do Sul perdiam sua dimensão
estratégica como pensadas até os anos 1970, o mesmo não pode ser dito em relação às
fronteiras do Norte. No Sul, as tradicionais divergências com a Argentina foram em grande
parte resolvidas após a construção da barragem de Itaipu.
Adquire importância nessa parte do continente a tríplice fronteira entre Argentina,
Paraguai e Brasil basicamente nas duas últimas décadas, em face do contrabando de produtos
e armas, além de denúncias sobre a existência de grupos terroristas em Foz do Iguaçu.
Todavia, tais problemas têm ficado mais sob a alçada da Polícia Federal, embora o Ministério
da Defesa e seus comandos militares tenham ampliado, por legislações específicas, sua
presença em tais eventos.
A Amazônia por sua dimensão e pela importância de seus recursos naturais, com baixa
densidade demográfica e extensas fronteiras, ao serem alvo de interesses estrangeiros passou,
então, a partir da década de 1970 a receber atenção prioritária do governo em termos
diplomáticos e militares. No primeiro nível, através de entidades como o Tratado de
Cooperação Amazônica, firmado em 1978 com sete vizinhos e depois transformado na
Organização do Tratado de Cooperação Amazônica em 1998.
Em termos estratégico-militares iniciativas posteriores priorizaram sempre a região das
grandes florestas. A Amazônia tornou-se alvo de atenção como se pode ver pelo Projeto Calha
Norte (1985), Política de Defesa Nacional (1996 e 2005), Estratégia Nacional de Defesa
(2008) e Livro Branco de Defesa (2012). No Projeto Calha Norte, cujo nome original é
Desenvolvimento e segurança na região ao norte das calhas dos rios Solimões e Amazonas
elaborado no início do governo de Jose Sarney em 1985, ainda se verificam aspectos
relacionados com a Guerra Fria. Em carta encaminhada ao Presidente da República o general
Rubem Bayma Denys, Secretário Geral do Conselho de Segurança Nacional (SG/CSN),
chamava a atenção para a necessidade do programa para a proteção da região amazônica,
considerando o fato de que:

“trata-se de área praticamente inexplorada, correspondendo a 14% do Território


Nacional e delimitada por uma extensa faixa de fronteira praticamente habitada por
indígenas. Este último aspecto, por si só, vem acrescendo nova magnitude geral da
área, uma vez que a conhecida possibilidade de conflitos fronteiriços entre alguns
países vizinhos aliada à presente conjuntura no Caribe, podem tornar possível a
projeção do antagonismo Leste-Oeste na parte Norte da América do Sul.”
(SG/CSN,1985).

Daí a necessidade das providências para proteger a região. Na Política de Defesa


Nacional de 2005, após considerar as dificuldades para proteger convenientemente as
fronteiras amazônicas, considerou-se que “o adensamento da presença do Estado, e em
particular das Forças Armadas, ao longo das nossas fronteiras, é condição necessária para
conquista dos objetivos de estabilização e desenvolvido integrado da Amazônia.”
(MINISTÉRIO DA DEFESA, 2005, p. 10-11). Repetia o que estava estipulado nas Diretrizes
do Documento de 1996, quando esse mencionava que se devia “priorizar ações para
desenvolver e vivificar a faixa de fronteiras, em especial nas regiões Norte e Centro-Oeste.”
(PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1996, p. 10)

Na Estratégia Nacional de Defesa de 2008, na estruturação das Forças Armadas


devia-se considerar “o aumento da participação de órgãos governamentais, militares e civis,
no plano de vivificação e desenvolvimento da faixa de fronteira amazônica, empregando a
estratégia da presença.” (MINISTÉRIO DA DEFESA, 2012, p. 124)

No Livro Branco de Defesa repete-se o que se observa nos Decretos sobre os


Programas de Fronteira. O Decreto 8.903 (Programa de Proteção Integrada das Fronteiras) de
16 de novembro de 2016, que substituiu o Decreto 7496 de 8 de junho de 2011 (Plano
Estratégico de Fronteiras) é bastante amplo, tendo como um dos objetivos “ integrar e
articular ações de segurança pública da União, de inteligência, de controle aduaneiro e das
Forças Armadas com as ações dos Estados e Municípios situados na faixa de fronteira,
incluídas suas águas interiores, e na costa marítima”. (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA,
2016)

Considerações finais
Os conceitos geopolíticos apregoados pelos adeptos do determinismo que entendem o
domínio dos fatores geográficos como fundamentais para a vitória em conflitos tem validade
limitada, diante dos avanços das novas tecnologias que cotidianamente são disponibilizadas.
É certo, entretanto, que elementos geográficos são importantes na formulação e
implementação de políticas de defesa de um país. Exemplos podem ser mencionados
envolvendo a Rússia, mesmo quando essa não tinha ainda tal designação: a derrota dos
invasores germânicos em 1294 diante de Alexander Nevsky; o fracasso de Napoleão
Bonaparte em 1812 e a invasão mal sucedida feita pelo III Reich após romper o tratado
Ribbentrop-Molotov firmado em 1939. Em todos esses casos, as condições climáticas foram
importantes para o insucesso dos estrangeiros.
Mas não se pode creditar à geopolítica a vitória em todas as ocasiões. A geopolítica
sempre foi pensada e utilizada para auxiliar na formulação de uma grande estratégia nacional.
De acordo com tal perspectiva, o governo brasileiro procurou lançar mão de condições
favoráveis para planejar a defesa do território brasileiro, principalmente no que diz respeito à
questão amazônica.
O problema mais agudo que se coloca é que as dificuldades enfrentadas pelo país há
vários anos tem impossibilitado que os resultados sejam alcançados, uma vez que não dispõe
dos vetores necessários como equipamentos e armamentos modernos, além de flutuações
orçamentárias que afetam sobremaneira qualquer tipo de planejamento de médio e longo
prazo. Mesmo em curto prazo as atividades têm sido frequentemente prejudicadas.
Preocupação primeira dos militares, as fronteiras não têm sido protegidas com a
devida atenção. Em muitas ocasiões, as Forças Armadas tem sido chamadas a atividades
outras para as quais não estão devidamente preparadas, ainda que tais atividades estejam
respaldadas pelo texto constitucional sobre o seu papel e os momentos em que podem ser
mobilizadas.

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8.
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL PARA ALÉM DO FRONT: A POSSIBILIDADE DE
PESQUISA DA PROPAGANDA DE GUERRA ALIADA NO BRASIL ATRAVÉS DAS
REVISTAS EM GUARDA E A GUERRA ILUSTRADA (1939-1945)

Larissa Foss Sochodolhak (UEL- Mestrado em História Social)


Orientador: Prof. Dr. Francisco César A. Ferraz

Palavras-chave: Segunda Guerra Mundial; propaganda de guerra; periódicos.

Introdução
Durante algum tempo a guerra, objeto maior da história militar, foi tratada como se
não houvesse relações com outros setores da vida humana. Para muitos historiadores, a
história da guerra, como a história política, sofreu um desprestígio e foi relegada: “em lugar
do problemático, do caótico; em lugar do serial, o excepcional; em lugar dos saltos frutíferos
pelas alamedas régias do social e do econômico, a erupção desordenada do contingente: a
famosa ‘sorte das armas’” (AZÉMA, 2003, p. 401)
A produção acadêmica das últimas décadas, tanto internacional como observada nas
obras de Jean Jacques Becker e Antoine Prost, quanto nacional após 1990, com nomes como
Francisco César A. Ferraz, indicam novas possibilidades, metodologias e interpretações a
temas militares, direcionam para um caminho interdisciplinar e abrangente, uma transposição
a antigos pressupostos. (ZARPELÃO, 2014)
Para tanto, será exposto nesse artigo, algumas colocações e problemáticas acerca da
possibilidade do estudo da guerra, em especial da propaganda política de guerra, na História
Política e Militar renovada, bem como na intersecção com a História da Imprensa, dentro dos
preceitos de renovação teórico- metodológicas das últimas décadas, que possibilitou o contato
com outras áreas, entre elas a mídia.
A chamada Nova História Política, se desenvolveu e se fez incorporar temas, objetos
e abordagens, como exposto por Jacques Julliard, deixando de ter o Estado como objeto
principal, por consequência a restrição a eventos e seus principais representantes. Outro
aspecto, é que a historiografia dos anos 50 e 60 relegaram a História Política como sendo
secundária, mas não se ganharia nada em confundir as insuficiências de um método com seu
objeto. (JULLIARD, 1974) Afinal, como afirmou o historiador Raymond Aron, “nunca houve
razão, lógica ou epistemológica, de afirmar que os conhecimentos históricos dos fenômenos
econômicos e sociais apresentam em si um caráter mais científico do que o conhecimento dos
regimes políticos, das guerras ou das revoluções.” (ARON apud JULLIARD, 1978, p. 182)
Apesar de ter sido “deixada de lado” por muitos, a História Política continuou sendo
escrita, inclusive na França. Nas últimas décadas, a História Política foi incluída como foco de
novas reflexões, considerando que o político também é uma dinâmica importante para a
compreensão histórica.
A obra Por uma História Política, um dos marcos da renovação, organizada por um
dos principais articuladores da História Política renovada, o historiador francês René Rémond,
e escrita por diversos autores que em comum compartilham a ideia do político como domínio
privilegiado da articulação do todo social, publicada na França em 1988, aborda
considerações importantes a esse artigo, como a incorporação de novos objetos e métodos de
análise que rompem as barreiras antes colocadas.
Essa Nova História Política passou a permitir o estudo de todos os homens em suas
práticas cotidianas, colocou em cena as ideias políticas não só do Estado, mas do conjunto de
uma sociedade em suas relações de poder. Incorporou novos temas, abordagens, atores
históricos e meios de circulação, amparada em parte pela interdisciplinaridade.
É através desses pressupostos que buscaremos demonstrar a possibilidade de estudo,
com uma intersecção entre a Nova História Política, a também renovada História Militar, bem
como a interdisciplinaridade com as demais áreas. A proposta abrange o contexto histórico da
Segunda Guerra Mundial, com fontes midiáticas utilizadas pelos aliados ao Brasil com
objetivos de manter sua hegemonia no continente. Ambos são periódicos, intitulados Em
Guarda: para a defesa das Américas e A Guerra Ilustrada, produzidas pelos Estados Unidos
e Inglaterra, respectivamente.
As revistas constituem em importantes fontes para se compreender o uso político
vislumbrado por ambos os países através imprensa, que buscavam por este meio intervir no
contexto exportando concepções de guerra e atraindo aliados. Nas palavras de Rémond “[...]
os meios de comunicação não são por natureza realidades propriamente políticas: podem
tornar-se políticos em virtude de sua destinação, como se diz dos instrumentos transformados
em armas. ” (2003, p. 441), ou então, como afirma Tania Regina De Lucca “não poderia
dispensar a imprensa [a História Política], que cotidianamente registra cada lance dos embates
na arena do poder. ” (2006, p. 128)
Novas possibilidades: a propaganda de guerra dos aliados no Brasil através das revistas
Em Guarda e A Guerra Ilustrada (1939-1945)
A partir dessa ressignificação do campo político, que passa a abranger aspectos dos
mais diversos (como o cultural, social, econômico e religioso), podemos compreender o
intercambio, ou melhor, a interdisciplinaridade e a amplitude de possibilidades a outros
campos buscarem essas mudanças teórico-metodológicas, caso da Nova História Militar, que
reivindica, a partir de então, sua autonomia.
Durante a maior parte do século XIX, a História Militar foi frequentemente associada
a outros campos da história e mesmo da literatura. Seria difícil dissociá-la desses gêneros para
considerá-la um campo próprio. A chamada História Militar Tradicional dedicava-se a análise
de documentados das instituições, guerras, campanhas, batalhas e táticas, associada a datas,
nomes de líderes e forças armadas envolvidas. (CASTRO; IZECKSOHN; KRAAY, 2004) A
exemplo da temática militar da guerra, tratada como se fosse algo isolado, sem ligação com
outros setores da vida humana como a economia, a sociedade e a política interna e
internacional. (ZARPELÃO, 2014)
A Nova História Militar, abordada na América inglesa há algum tempo e expandida
no Brasil por volta da década de 90, está associada à relação entre as Forças Armadas e tudo
que se refere à temática militar com a sociedade, política, religião, cultura, economia, entre
outros. Seria difícil tratar a história militar como algo distinto da história mais ampla da
sociedade, a qual soldados e oficiais são recrutados. (CASTRO; IZECKSOHN; KRAAY,
2004)
A exemplo dessa renovação consideramos a obra História Militar: novos caminhos e
novas abordagens a qual reúne especialistas que analisam a participação das instituições
militares e seus componentes na política e na sociedade, investigando temas como
recrutamento, ensino militar, crises políticas, memória, conflitos internos, intervenções
políticas, enfim, uma gama de arquivos civis e militares, nacionais e internacionais, que
demonstram as diversas possibilidades da área. (RODRIGUES; FERRAZ; PINTO, 2015)
Deste modo, tanto a história política quanto militar, relegadas ao ostracismo no
decorrer do século XX, construíram novas possibilidades, metodologias, abordagens,
englobaram novos objetos, e estão associadas a intensa troca interdisciplinar.
Segundo Jean-Pierre Azéma, a temática das guerras do tempo presente conquistou
considerável espaço nas universidades francesas, interesse o qual também pode ser verificado
no Brasil contemporâneo.
Existem muitos temas inseridos no universo militar, mas nenhum deles talvez exerça
tamanho fascínio, preocupação e necessidade de ser estudado quanto à guerra. Ela acompanha
a trajetória humana desde seus primórdios, e o historiador não pode desprezar tudo que se
refere ao ser humano e à temática militar. Com relação a um certo preconceito ao estudo da
guerra, tida como uma história factual, associada a narrativa positivista, Ferraz (2003), um dos
expoentes em estudos de guerras do tempo presente, afirma: “[...] o que faz qualquer história,
seja ela militar, política, diplomática, social ou cultural, ‘positivista’ ou não, é o uso que se faz
das fontes e da fortuna crítica, é o esforço de síntese e compreensão. Nenhum assunto é
‘positivista’ por natureza. ” (FERRAZ, 2003, p. 621)
Assim sendo, além das batalhas, táticas, armamentos e forças de combates, passou a
ser pesquisado tudo o que é ligado a guerra, ou seja, a preparação, sua dimensão cultural,
aspectos sociais e psicológicos, bem como seu viés econômico e político, este último sendo
levado em conta como uma possibilidade de pesquisa, uma história político/militar para além
do front, buscando se compreender algumas especificidades como as estratégias de guerra,
sendo o caso das propagandas políticas midiáticas.
Afinal, como expõe Rémond, “nada seria mais contrário à compreensão do político e
de sua natureza que representá-lo como um domínio isolado: ele não tem margens e
comunica-se com a maioria dos outros domínios. ” (2003, p. 444) Portanto, a partir desses
pressupostos de ampliação do campo político compreendemos a pertinência de se estudar a
guerra através do embate político marcado pelo confronto de ideias políticas presentes em
parte nas revistas Em Guarda: em defesa das Américas e A Guerra Ilustrada.
Um conflito militar da magnitude da Segunda Grande Guerra demanda páginas e
mais páginas de bons exemplares de livros que estão nas prateleiras de bibliotecas ou sendo
produzidos. Inúmeros acontecimentos, ataques, retiradas e planos estratégicos foram
configurados. A guerra atinge os mais variados campos da sociedade, a cultura, a economia e
a política, este último um campo crucial como buscaremos evidenciar.
Diante do cenário da Segunda Guerra, a mídia teve um papel significativo, intitulado
por alguns autores como “arma de guerra” (FORNER; SILVA, 2017). Os projetos nacionais
oriundos de países participantes foram exportados a várias nações americanas e pretensos
aliados por intermédio de ferramentas midiáticas. Assim, política e propaganda se unem em
vias paralelas, a primeira se utilizando da segunda para difundir seus planos. (LOCASTRE,
2012)
Ao nos debruçarmos sobre os meios de comunicação como revistas e jornais, que
servem para nos manter informados dos últimos acontecimentos ou retomar aqueles
considerados importantes, o papel do escritor vem imbuído de certas neutralidades e
imparcialidades, para que as informações passadas sejam as mais verossímeis possíveis, com
descrição correta de fatos, pluralidade de visões e equidade de julgamento. (FORNER;
SILVA, 2017)
Mas será que em tempos de guerra onde os nacionalismos afloram, onde as
pretensões políticas e econômicas estão em destaque, à mídia pode ser utilizada
estrategicamente? Em qual sentido elas atuam? Podem ser consideradas propagandas? Se sim,
qual é a função que se propõe?
Nesse sentido, a mídia na Segunda Guerra avançou com tanta força quando os
tanques nos fronts. Não se tem apenas a força militar, mas a utilização da comunicação
enquanto importante instrumento político que vinha se forjando a partir da Grande Guerra
(STEFFANS; ROSÁRIO; COCA, 2015). Eixo e Aliados buscavam combater seus inimigos
das maneiras mais diversas. Destruir o oponente de forma midiática ao mundo era uma delas.
Mostrar as fraquezas do outro e ao mesmo tempo sua superioridade. A cultura e a propaganda
“passaram a ser consideradas materiais tão estratégicos quanto outros produtos”. (TOTA,
2000, p. 53)
A Alemanha, segundo Tota (2000), estava presente na América Latina através da
Agência Transoceânica, a qual fornecia fotos e notícias a preços acessíveis, propagandeando a
favor do Eixo. Para Hitler a propaganda exercia o papel de “vencer psicologicamente o
inimigo antes das forças armadas entrarem em ação”, (MATTELARD apud STEFFANS;
ROSÁRIO; COCA, 2015, p. 03) mostrando o papel estratégico desse instrumento.
Por outro lado, os Estados Unidos, apreensivos com os avanços nazistas na América,
que ameaçavam sua hegemonia no continente, criam em 1940 o Office of Commercial and
Cultural Relations betweem the American Republics, que passou a se chamar em 1941, Office
of the Coordinator of Inter- American Affairs (OCIAA), chefiado por Nelson Rockfeller
(1908-1979). (MAUAD, 2008)
Refletindo sobre as aspirações do (OCIAA) a historiadora Ana Maria Mauad aponta
que:

Este orgão tinha como função implantar a política de boa vizinhança norte-
americana na América Latina. Em linhas gerais a solidariedade hemisférica visava
garantir a posição estratégica dos aliados no Cone Sul, a partir do avanço das forças
do eixo no Pacífico. No Brasil Office of Inter- American Affairs contava com o apoio
da embaixada norte-americana e com a participação de grandes firmas dos EUA.
(MAUAD, 2008, p. 29)
A imprensa e a propaganda eram meios importantes para a divulgação dos princípios
do “pan-americanismo” fabricado por esse órgão, então tinha-se um departamento de
comunicação, o qual compreendia imprensa, publicações, rádio, cinema e informações.
Segundo Tota, essa divisão tinha dois objetivos:

a) difundir as “informações” positivas sobre os Estados Unidos, por intermédio de


uma rede de comunicações mantida pelo OCIAA, em estreita colaboração com os
países do continente. b) contra-atacar a propaganda do Eixo. Havia também a
preocupação de difundir nos Estados Unidos uma imagem favorável das “outras
repúblicas”. (TOTA, 2000, p. 55)

A Grã-Bretanha, também se utilizou de propagandas políticas através da mídia desde


o final da Primeira Guerra. O sucesso de suas táticas propagandísticas resultou na criação de
um órgão específico de governo, o Ministério das Informações. Segundo Rosário “esse
organismo era compreendido de vários departamentos: um responsável pela opinião
americana e aliada, outro pela opinião de países neutros, [...] e um terceiro que tinha a missão
de gerir a propaganda dos países inimigos”. (ROSÁRIO, 2015, p. 05)
Diante desse quadro percebemos a importância política da mídia na Segunda Guerra,
e do que pode ser chamado de propaganda política, um importante instrumento de guerra que
pode ser definido como a transmissão de ideias políticas, divergindo de publicidade que se
refere à difusão de produtos ou serviços. Nas palavras do escritor francês Jean Marie
Domenach:

A propaganda confunde-se com a publicidade: nisto, procura criar, transformar


certas opiniões, empregando, em partes, meios que lhe pede emprestado; distingui-se
dela, contudo, por não visar objetos comerciais e, sim, políticos: a publicidade
suscita necessidades ou preferências visando a determinado produto particular,
enquanto a propaganda sugere ou impõe crenças e reflexos, que, amiúde, modificam
o comportamento, o psiquismo e mesmo as convicções religiosas ou filosóficas.
(DOMENACH, 1963, p. 12)

Ademais, é diante da agressividade da expansão alemã que os aliados, em especial


Grã-Bretanha e os Estados Unidos desenvolvem aparatos de comunicação em massa, “era
preciso garantir posição hegemônica cultural e economicamente diante do novo cenário
geopolítico que se instaurava, onde a comunicação era ferramenta primordial”. (STEFFANS;
ROSÁRIO; COCA, 2015, p.05)
As revistas Em Guarda: para a defesa das Américas e A Guerra Ilustrada são
exemplos de periódicos estrategicamente criados no período de guerra. Ambas foram
distribuídas no Brasil entre o período de 1940 a 1945.
Em Guarda- para a defesa das Américas, é um periódico redigido pelos Estados
Unidos para ser distribuído para toda a América Latina, para isso, contava com traduções em
português, francês e espanhol.
Nessa revista, os Estados Unidos deveriam ser o “paradigma da América”,
defendendo seus negócios em detrimento das influências nazistas, bem como a disseminação
do modo de vida americano. (TOTA, 2005)
O projeto inicial da revista era denominado Em marcha, porém, essa conotação dava
um sentido de ataque, em que os Estados Unidos estariam enfrentando diretamente seus
inimigos, em especial a Alemanha nazista. Porém, não era esse o sentido que queria ser
alcançado através das relações diplomáticas, mas sim, os EUA como uma fortaleza de
democracia continental, que deveria “proteger” a América e sempre auxiliar os países
americanos. Objetivo sugerido no lema da revista “para a defesa das Américas”. (Idem, 2005)
O periódico era distribuído aos comitês regionais pelo Departamento de Imprensa e
propaganda dos Estados Unidos, uma subdivisão do OCIAA, entre os anos de 1941 até 1945.
Suas edições eram mensais e cada uma contava com cerca de quinze artigos, e uma média de
45 páginas. (Idem, 2005)
Além dos textos escritos, ao folheá-lo, é imprescindível a observação da presença das
imagens, principalmente fotográficas. O discurso visual é feito com imagens muitas vezes
coloridas, que demandavam técnicas arrojadas de impressão.
O outro periódico apresentado como fonte é a Guerra Ilustrada, uma revista de
propaganda e divulgação britânica, editada pelo Reino Unido, em língua portuguesa159, para
ser distribuída em Portugal e no Brasil. Na imagem 1, a capa do exemplar de novembro de
1941:

159
A revista original, The War Illustrated, contava também com traduções em francês e espanhol.
Imagem 1:

Fonte: A Guerra Ilustrada, capa de nov. de 1941

Sua periodicidade era mensal, com dezesseis páginas por edição. A gama imagética
se destaca pelo seu aspecto quantitativo.
O título original era The War Illustrated, e as primeiras tiragens foram produzidas
durante a Grande Guerra, entre os anos de 1914 e se prolongou até 1919. Foi uma das mais
bem sucedidas revistas do período, e como sugere o nome, não economizou quando se tratava
de ilustrações, era uma média de cinco delas por assunto.
Além do conteúdo fotográfico e ilustrativo, a revista contava com relatos
jornalísticos de eventos e batalhas, artigos de opinião, além de cronologias de guerra.
Durante a Segunda Guerra, mais edições da revista foram produzidas e traduzidas
para o português. A preocupação com a tradução chama a atenção, se precisa ser traduzido, é
porque o alcance que se quer chegar ultrapassa as fronteiras nacionais, e como percebemos
intercontinentais, chegando exemplares ao Brasil, país que estreitava suas relações com a
Alemanha nazista. (CERVO, 2001)
Esse fenômeno pode ser estudado como colocado no decorrer da discussão,
superando as dificuldades metodológicas antes colocadas. A guerra, assim como a História
Política, não se reduz apenas à vida parlamentar e as práticas exclusivamente institucionais.
Ela se correlaciona com diversas áreas da sociedade como a economia, a cultura e o social.
(ÁZEMA, 1990) Nas palavras do historiador francês Jean- Pierre Ázema “uma leitura política
da guerra parece de fato ser não só possível, mas necessária. ” (Idem, p. 409) Além de estarem
no território do político, as guerras ganham destaque no imaginário coletivo. As raízes dos
conflitos mundiais estão entrelaçadas no coração da sociedade.
Se o estudo da guerra como objeto se torna possível no campo do político renovado,
um longo caminho foi percorrido para que outras fontes, além de documentos oficiais fossem
incorporadas aos historiadores.
Ademais, as renovações no estudo da História Política, como afirma De Lucca “não
poderia dispensar a imprensa, que cotidianamente registra cada lance dos embates na arena do
poder. ” (2006, p. 128)

Considerações Finais

Estudar as pretensões políticas da guerra através de periódicos se torna necessário


para compreender as relações de poder entre os países, bem como o conteúdo que era
transmitido pelas palavras e imagens para convencer a sociedade, ajudando a forjar o
imaginário da guerra.
Sendo assim, uma análise dos elementos propagandísticos pode revelar a concepção
de guerra expressa nas revistas, além de contribuir para nossa compreensão sobre o conflito,
analisando como os Estados Unidos e a Inglaterra, em resposta a propaganda nazista,
buscaram expandir suas alianças por meio de imprensa, de certa forma em uma política de
contenção do nazismo. As fontes podem nos revelar isso, uma vez que ambas são produzidas
por órgãos oficias dos governos.
Por essa razão a nossa intenção ao analisar a propaganda de guerra contida nos
periódicos mencionados nos possibilita entender mais sobre a Segunda Guerra Mundial
estendendo seus impactos e alcances para além do front.

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A PARTICIPAÇÃO DE EDUARDO GOMES (1896-1981) NOS MOVIMENTOS
TENENTISTAS DE 1922 E 1924: UMA DISCUSSÃO ACERCA DAS FONTES DE
NOSSO ESTUDO

Lucas Mateus Vieira de Godoy Stringuetti160


Doutorando em História e Sociedade (UNESP – Assis)

Orientador – Claudinei Magno Magre Mendes


Doutor em História (UNESP – Assis)

Palavras-Chave: Eduardo Gomes; tenentismo; fontes.

Introdução

Filho de Luís Gomes Pereira e Jenny de Oliveira Gomes, Eduardo Gomes nasceu em
20 de setembro de 1896, na cidade de Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro, vindo a falecer
em 13 de junho de 1981 no Rio de Janeiro.
Em vida, Eduardo Gomes, também conhecido como Brigadeiro, teve uma trajetória
política-militar de destaque no contexto histórico do Brasil Republicano do século XX.
Iniciou seus estudos no Colégio Werneck e posteriormente ingressou no Colégio São Vicente
de Paulo, no Rio de Janeiro. Como era aluno dedicado, conquistou a posição de coronel-
aluno, Comandante do Batalhão Colegial.
Posteriormente, Gomes foi declarado Aspirante – a – Oficial, em 17 de dezembro de
1918, na Arma de Artilharia, sendo promovido a Segundo Tenente, em janeiro de 1921. Em
1922 foi servir na Escola de Aviação Militar, em Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro, para
realizar o curso de Observador Aéreo de Artilharia.
Participou dos movimentos tenentistas de 1922, no Rio de Janeiro e em 1924, em São
Paulo. Foi preso momentos antes de se juntar à Coluna Prestes e solto no ano de 1926.
Envolveu-se nas ações que derrubaram Washington Luís, após o fracasso eleitoral da Aliança
Liberal. No governo Vargas foi promovido a Capitão, em 15 de novembro de 1930; a Major
cinco dias depois; a Tenente – coronel, em 16 de junho de 1933 e Coronel, em 3 de maio de
1938.
Dentre outros momentos de destaque em sua vida militar, ainda durante o governo
Vargas, trabalhou na criação do Correio Aéreo Militar; em 1935, comandou o 1° Regimento
de Aviação contra a Revolta Comunista, tendo exonerado em 1937, do comando deste
regimento, por ser contrário à instauração do Estado Novo. Em 10 de dezembro de 1941, foi

160
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
promovido a Brigadeiro-do-Ar com a criação do Ministério da Aeronáutica. Terminado o
Estado Novo, candidatou-se às eleições presidenciais pela União Democrática Nacional
(UDN), que ocorreram em 1945, sendo derrotado por Eurico Gaspar Dutra, do Partido Social
Democrático (PSD), ex-ministro da Guerra de Vargas. Em 1950, foi novamente candidato à
Presidência da República pela UDN, sendo derrotado por Vargas, do Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB). Após a eleição, Gomes retornou à Aeronáutica, no cargo de Diretor de
Rotas Aéreas, tendo recusado o convite de Vargas para ser seu Ministro da Aeronáutica.
Mais tarde, Gomes foi Ministro da Aeronáutica por duas vezes: a primeira entre 1954 e
1955, no governo de Café Filho e Carlos Luz, e a segunda no governo de Castelo Branco,
entre janeiro de 1965 a março de 1967. Apoiou o golpe que depôs o presidente João Goulart,
em 1964, sem participar diretamente do movimento. Em 1984, foi nomeado Patrono da Força
Aérea Brasileira.
Diante de uma vida política-militar intensa e de destaque, temos o objetivo de destacar
e analisar a participação de Gomes nos movimentos tenentistas de 1922, denominado de a
Revolta dos Dezoito do Forte de Copacabana e em 1924, na chamada Revolta Paulista.
Concomitantemente, ressaltaremos nossa experiência a ida ao Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) para catalogação das fontes
para análise sobre o presente assunto, que em sua maioria eram arquivos, bem como o exame
de tais fontes e outras relativas a participação de Gomes nos movimentos tenentistas
supracitado, assim como de obras historiográficas referentes ao assunto.

A participação de Eduardo Gomes nos movimentos tenentistas de 1922 e 1924


Para Svartman (2012), a geração dos oficiais do Exército da década de 1920 em diante,
teve uma experiência tanto do profissionalismo, como do intervencionismo político, no
sentido de desenvolver entre eles, uma intuição de que apenas a atuação militar na política
asseguraria um Exército de fato profissional e a salvo das influências e cooptações da luta
política.
Svartman (2012) comenta que, os futuros participantes dos movimentos tenentistas,
especificamente Eduardo Gomes, tiveram uma formação não apenas militar, mas também
política, no sentido de discussões, e até mesmo de leituras relacionadas às questões políticas
da época, o que de fato pode ter contribuído para o início do levante militar em 1922.
Carvalho (2006) vai mais a fundo e destaca que a grande predominância numérica dos
tenentes, associada ao baixo grau de controle hierárquico deram condições necessárias a esses
oficiais para se rebelarem. Não apenas isso, mas as lentas promoções militares e suas origens
sociais humildes também incentivaram os futuros tenentes a se envolverem em lutas políticas
de caráter contestatório, se não pela força, mas pelo sistema democrático representativo, mais
tardiamente.
Diante deste contexto, apoiamo-nos nas ideias de Franco (1955), que afirma que a
primeira república teve um sistema eleitoral inadequado, possuidora de uma democracia
conduzida por congressistas, caudilhos, juízes, generais, entre outros, que não era
representativa, pois praticamente não havia eleições, sendo um processo político complexo e
irregular. O Brasil não se achava preparado para a prática efetiva de democracia
representativa e tendo essa carência de transformação política de modo legal, isto é,
constitucional, a única saída seria por meio revolucionário, levando o movimento de 5 de
julho de 1922 ao ponto de partida para um processo de transformação das instituições
políticas e sociais do país.
Todos esses fatores, relacionados à Reação Republicana, a qual ligava as oligarquias
dos estados de segunda grandeza na década de 1920, representada pelo Rio de Janeiro,
Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Sul, e que acabou lançando as candidaturas de Nilo
Peçanha e José Joaquim Seabra, sobrepondo-se a candidatura à sucessão de Epitácio Pessoa, o
qual tinha como grupos dominantes os nomes de Artur Bernardes e Urbano Santos, que
concorriam em prol de Minas e São Paulo, contribuíram para a insurreição tenentista de 1922.
Não podemos esquecer também do episódio das cartas falsas, que acabou por cumprir o seu
papel de lançar as Forças Armadas contra a candidatura oficial de Bernardes.
No que diz respeito a Revolta do Forte de Copacabana, em 1922, Silva (1964) comenta
que, momentos antes de ocorrer a sublevação, após o Marechal Hermes ser posto em
liberdade, depois das 17 horas de detenção que sofreu como punição ao seu protesto dos
crimes políticos de Pernambuco, ao assassinato do dentista Tomás Coelho Filho e às ordens
dadas a guarnição federal para intervir; fatores estes que revoltaram a mocidade militar e
contribuíram para a revolta do Forte; Eduardo Gomes, que na época era 1° Tenente de
artilharia, pertencente à 3° esquadrilha de observação, contando com apenas 25 anos de idade,
chegou na parte da tarde do dia 3 de julho ao apartamento do Marechal, para informá-lo sobre
o aviso do comandante do Forte de Copacabana, dizendo-lhe que haveria uma revolta no
Forte. Neste momento, Hermes ficou pensando sobre a operação militar que estava por
acontecer e recusando o convite de abrigar-se na fortaleza, iria à Vila Militar onde os oficiais
o queriam muito bem, assim voltaria para o Catete à frente dos seus soldados.
Em seu livro memorialístico, o General de Divisão Noronha (1924) narra como
ocorreu a revolta do Forte de Copacabana em 1922. Posicionando-se contrariamente ao
movimento tenentista, o autor descreve os acontecimentos daquele episódio, comentando que
a sublevação do Forte de Copacabana teve início na noite do dia 4 para o dia 5 de julho de
1922, onde a guarnição do Forte, parte da guarnição do primeiro regimento de infantaria, da
Vila Militar e da Escola do Realengo, iniciaram a rebelião contra as autoridades constituídas,
só não chegando à vitória, porque o governo federal contou com a maioria das forças armadas
de terra e mar.
Segundo Noronha (1924), os revolucionários queriam substituir o governo legal por
uma ditadura militar e os preparativos no Forte de Copacabana vinham sendo realizados com
bastante antecedência, com a organização de trincheiras e de uma rede de arame farpado no
local, e nos dias 3 e 4 de julho, com o reabastecimento do mesmo com viveres para um mês,
além de impedimentos de praças, mudanças de fogões e colchões do alojamento para o
interior do Forte, bem como da preparação de sacos de areia e eletrificação da rede.
À uma hora da manhã ocorreu o primeiro disparo do Forte de Copacabana contra a ilha
de Cotunduba, seguindo por mais um disparo na mesma direção. O terceiro disparo foi em
direção a rocha da base do Forte do Vigia e o quarto foi contra o 3° regimento de infantaria.
Os revolucionários declararam que os três primeiros disparos foram para anunciar a explosão
da revolta e alarmar a população, obrigando-a a se retirarem da praia, e o quarto tiro fora um
protesto. No decorrer da noite, os revolucionários trabalharam na defesa da parte exterior do
Forte, organizando sacos de areia ao lado do portão, eletrificando a rede de arame farpado e
colocando perto do portão algumas granadas de 190 mm que estavam em volta de circuitos
elétricos, destinadas a explodir com minas (NORONHA, 1924).
Por meio do processo criminal que tivemos acesso, através do livro de Hélio Silva,
Sangue na Areia de Copacabana (1964), encontra-se o depoimento do tenente Eduardo
Gomes (Processo Criminal – 8° volume – pág. 1908. In: SILVA, 1964), dado no dia 12 de
julho de 1922, tendo como encarregado do inquérito, o General de Divisão Augusto Tasso
Fragoso, juntamente com o capitão Milton de Freitas Almeida, servindo como escrivão. Por
meio do depoimento, percebe-se que Gomes, no dia cinco de julho ficou encarregado do
canhão Schneider e na noite do dia cinco para o dia seis, esteve na vigilância junto ao holofote
no alto da colina, em companhia de Siqueira Campos e alguns praças. Na manhã do dia seis,
Gomes dissera que o Capitão Euclides havia anunciado que quem quisesse sair do Forte
poderia sair, porém, Gomes resolveu não se entregar, ficando, posteriormente, na incumbência
da torre seis. Momento depois, em acordo com os outros oficiais, o Capitão Euclides saiu do
local a fim de se entender com o governo, pois havia fracassado a missão do Major Castro e
Silva, que juntamente com o tenente Pacheco Chaves, foram enviados pelo Ministro da
Guerra a parlamentar com o tenente Nilton Prado, os quais tentaram cessar a revolta, através
do diálogo, sobre promessa de dar aos revolucionários garantias de vida e trazer prisioneiros
os últimos combatentes, que concordassem em se entregar incondicionalmente.
O depoimento de Gomes (Processo Criminal – 8° volume – pág. 1908. In: SILVA,
1964), dado para o general Fragoso, encarregado do inquérito, contando com o capitão
Almeida, como escrivão, também nos permite entender que os tenentes só saíram do Forte
para não prejudicá-lo e causar mais prejuízos à cidade, quando tiveram a informação de que o
Capitão Euclides havia sido preso e que o governo exigia a rendição dos revolucionários.
Compreendemos ainda, como foi o momento final do combate entre os revolucionários contra
as tropas legalistas, e o motivo pelo qual Gomes participou desse movimento.

Quando o Capitão Euclides comunicou para o Forte, por telefone, que se achava
prêso e que o Govêrno exigia que cada um se entregasse saindo isoladamente e
desarmado do Forte os oficiais que ainda se encontravam na praça, a saber: o
depoente, os Tenentes Siqueira Campos, Nilton Prado e Carpenter, resolveram
abandonar o Forte para não sacrificá-lo nem causar mais prejuízos à cidade e ir com
o grupo de soldados que os acompanhava por último combate contra às forças do
govêrno longe do Forte, pois estavam no firme propósito de não se entregar. O
depoente crê que o grupo de oficiais vinham acompanhado por umas vinte praças,
cada homem, oficial e praça, trazia um fuzil e alguma munição. Desceram todos pela
praia de Copacabana e afinal se detiveram em frente a uma rua, aí mantiveram um
tiroteio com as fôrças opostas, o qual lhe parece ter durado cerca de uma hora e três
quartos. O depoente caiu ferido por bala de fuzil, na coxa esquerda e ali mesmo na
areia ficou deitado, até que o transportaram. Depois dele viu também caírem feridos
os Tenentes Siqueira, Carpenter e Nilton. Perguntado por que tomou parte na
rebelião contra o govêrno, respondeu que achava que o govêrno estava saindo fora
da lei com o propósito de intervir em Pernambuco e porque era desejo do país ver
afastada a hipótese da posse do Dr. Artur Bernardes (Processo Criminal – 8° volume
– pág. 1908 v. In: SILVA, 1964, p. 458).

A declaração de Gomes nos mostra que o movimento tenentista de 1922 não tinha um
programa claramente político e desenvolvido, como ocorreria posteriormente em 1924, mas
ao mesmo tempo, esclarece-nos que o caso de Pernambuco e a hipótese da vitória de
Bernardes que representaria a continuidade da República oligárquica e suas mazelas, foram
alguns dos principais motivos da revolta.
Momentos antes de os revolucionários saírem do Forte de Copacabana para
combaterem contra as tropas legalistas, no dia seis de julho, Gomes, segundo Doria (2016)
realizou uma ação difícil. Newton Prado foi encontrar seus companheiros que estavam
reunidos na sala de comando. Siqueira Campos tinha total interesse em que os militares
continuassem o bombardeio da cidade, atirando em alvos de interesse militar e quando
acabasse a munição propunha fechar o portão do Forte e colocar fogo na pólvora, ocasionando
a morte de todos, mas Gomes não concordou com isso, pois mais bombardeios matariam mais
civis, e o Forte não pertencia ao governo, mas sim ao Brasil. Deste modo, os soldados
resolveram acatar a ideia de Gomes e depois abandonaram o Forte. Após o conflito, os
revolucionários que ainda se encontravam vivos foram levados para o Hospital Central do
Exército, sobrevivendo apenas Eduardo Gomes e Siqueira Campos.
Terminado o movimento revolucionário dos Dezoito do Forte de Copacabana, os
militares planejaram a próxima revolução que ocorreu em 1924, na cidade de São Paulo. Esta
duraria cerca de um mês, do dia 5 ao dia 28 de julho. Dominando São Paulo por esse período,
o movimento conseguiu expulsar da capital paulista o governo estadual, porém foram
duramente contra-atacados e se retiraram para não serem derrotados, em direção ao sul do
estado. Assim, formariam a chamada Coluna Miguel Costa-Prestes, ficando conhecida como
Coluna Prestes, que durou de 1925 a 1927.
A revolta teve início no dia 5 de julho de 1924, o qual tanto as praças do 1° Batalhão
como as do 2° da Força Pública, estavam em sua totalidade, impossibilitadas de auxiliarem o
Governo, pois foram pegas de surpresa no recinto do jardim da Luz pelos rebeldes. Os
revoltosos contavam em torno de 950 a 1.000 combatentes, tendo a ajuda de todo o
Regimento de Cavalaria, com cerca de 500 homens; mais da metade das praças do 2° Grupo
de Artilharia Pesada, que tinha sob o comando o 1° tenente Custodio de Oliveira, levando
consigo perto de 100 homens do 4° Regimento de Quitaúna, em número aproximado de 80
praças sob Infantaria, que também tinham quartel em Quitaúna, e que estavam iniciando
exercício de campanha; 80 praças do 4º Batalhão de caçadores, que tinham sob o comando o
2° tenente Asdrubal Gayer de Azevedo, e no máximo, perto de uns 200 praças do Corpo
Escola, e do 1º e 2º batalhões da Força Pública, que logo no começo aderiram à revolta
(NORONHA, 1924).
Com relação a participação de Gomes na Revolução de 1924, destacamos alguns
momentos decisivos que contaram com o apoio do tenente. O primeiro ocorreu ao anoitecer
do dia 5 de julho, em que Gomes foi o comandante da operação em um dos pontos principais
dos revolucionários, que era a estação da Cantareira. Os outros pontos importantes dos
revolucionários foram: as estações da Luz e Sorocabana, que estava sob o comando do tenente
João Cabanas; o Hotel Terminus, que tinha o capitão Newton Estilac Leal como o
comandante; a estação do Brás, que contava com o comandante tenente Arlindo de Oliveira; e
o Quartel do 4º Batalhão de caçadores, tendo sob o comando o tenente Asdrubal Gwyer de
Azevedo (CARONE, 1975).
O segundo momento decisivo ocorreu na manhã do dia 6 de julho, em que os
revolucionários se concentravam no 4° Batalhão de Polícia e Gomes assumiu um dos postos
de artilharia, que com boa mira, derrubou com um tiro preciso a caixa d’água do quartel,
deixando seus oponentes sem água (DORIA, 2016).
Além disso, Gomes no dia 8 de julho, tendo acumulado as funções de comandante de
uma seção do 2º Grupo Independente de Artilharia Pesada, bombardeou pela manhã, o
edifício do comando geral e depois do meio dia o Palácio do Governo e os edifícios da Polícia
Central e da Secretaria da Agricultura, bem como o da zona do mercado, pontos estes que
situava-se uma forte reserva do Governo (CPDOC – Arquivo João Luis Alves – Procuradoria
Criminal da República, dez. 1924).
No dia 13 de julho de 1924, tendo forte concentração das forças legais em direção à
Penha e ao Ypiranga, não sendo possível aos revolucionários identificarem a situação das
tropas legalistas, a não ser por avião, fizeram o roubo de todos os aviões existentes em São
Paulo, guiados pelas informações dos aviadores, Antônio Reynaldo Gonçalves, tenente da
Força Pública, e Anésia Pinheiro Machado, que estavam ambos comprometidos com a
revolução. Ao tenente Eduardo Gomes coube o comando dessa nova arma do movimento,
contando com os aviadores Reynaldo e Anésia, como auxiliares, pois conheciam bem os
campos de aviação existentes na Capital, assim como todos os aparelhos de seus colegas
(CPDOC – Arquivo João Luis Alves – Procuradoria Criminal da República, dez. 1924).
Outro momento importante, que acabou não ocorrendo, foi quando os revolucionários
depois de perceberem que São Paulo estava arrasado com todo o bombardeio realizado pelos
legalistas resolveram pensar a ideia de um voo. Com um avião monomotor Curtiss Oriole de
três lugares e asa dupla, pertencente a aviadora Thereza de Marzo, com o tanque cheio,
poderia sair de São Paulo, ir para o Rio de Janeiro e ainda fazer o caminho de volta. O plano
dos revolucionários era de lançar uma poderosa carga de dinamite sobre o Palácio do Catete e
eliminar o Presidente da República. No comando do avião ficaria Eduardo Gomes e como
piloto o alemão Carlos Herdler, que havia fugido do antissemitismo europeu. Ambos
decolaram do Campo de Marte no dia 24 de julho, levando além dos explosivos, mais 30 mil
exemplares de um manifesto, dirigido aos cariocas e fluminenses. Todavia, não conseguiram
realizar o destino, pois após certo tempo de voo o avião apresentou um problema no motor e
os mensageiros tiveram que pousar em Cunha, próximo do estado do Rio, num pantanal,
deixando o avião inutilizado (CPDOC, Arquivo João Luis Alves – Procuradoria Criminal da
República, dez. 1924).
Durante o movimento tenentista os revolucionários também escreveram alguns
manifestos, que mostravam em sua maioria seus objetivos, e como integrante do movimento,
partimos do princípio de que Gomes compartilhava de tais ideais.
Podemos destacar que o movimento tenentista fazia duras críticas ao sistema político
vigente na época, e ressaltando as qualidades que consideravam essências num governo
moral, integro e honesto, para o Brasil. Ao mesmo tempo, diziam que os políticos daquele
momento, buscavam se preocupar apenas com si próprios, agindo de forma autoritária. Outro
fato importante que cabe destacar, é a forma com que essa parte do Exército agiu, colocando-
se como defensores da pátria, talvez, se inspirando no modelo de aprendizado dos jovens
turcos.
Por fim, segundo Silva (1964), os revolucionários ainda afirmavam a situação de
impotência que o povo brasileiro vivia nesse período, perante as mazelas do governo
oligárquico, dizendo também, que o Exército Nacional, com a Proclamação da República
havia jurado fidelidade à Constituição, sendo esta uma das causas do acontecimento do
movimento que não poderia ficar alheio à vida da nação.

Considerações finais

O movimento conhecido como os Dezoito do Forte de Copacabana, que teve a


participação de Gomes, foi um movimento importante dentro do cenário de acontecimentos da
década de 1920, em que seus participantes tentaram se colocar como defensores da pátria,
lutando a favor daquilo que acreditavam, pois não sendo possível uma mudança em nossa
democracia que representasse tanto de maneira justa o nosso modelo representativo, visando
ao mesmo tempo, melhores condições para o Exército; o movimento revolucionário buscou
alternativa pelas armas. No entanto, não apresentando de forma elaborada um programa de
reforma, fato este que ocorreria dois anos depois, em São Paulo; apenas se baseando nos
principais acontecimentos do período que também contribuíram para o início do levante
militar, que já destacamos, e que foram os episódios das cartas falsas, a Reação Republicana,
o caso de Pernambuco e todas as mazelas da República oligárquica, os revolucionários
optaram por esse movimento que durou apenas um dia.
Ao refletirmos sobre a Revolta de 1924, percebemos que de acordo com Stringuetti
(2018), ao analisar os manifestos dos revolucionários neste período, conclui-se que o
programa de reforma política e social dos tenentes, em 1924, se estenderia para todo o Brasil.
Deste modo, observamos o caráter nacional do movimento. Os revolucionários também
garantiram que todos os prefeitos de todas as cidades do estado, e até mesmo da Capital, iriam
ser mantidos em seus postos, este fato, juntamente com o fato de que os revolucionários
queriam convidar um civil, isto é, Conselheiro Antônio Prado, para administrar o estado
paulista, bem como a tarefa de incumbir a administração da cidade de São Paulo ao prefeito
Firmiano Pinto, que continuava em São Paulo, nos mostra a incapacidade dos revolucionários
governarem o estado, mas também o país, pois ao invés de eles próprios exercerem tais
funções, denotavam-na a outros civis.
Por meio de nossa dissertação de mestrado (STRINGUETTI, 2018) percebemos
também, que os revolucionários visavam a implantação, no Brasil, de um regime republicano
democrático, preocupando-se ao mesmo tempo, com a moralização da administração e da
justiça, bem como a difusão do ensino e o saneamento das finanças nacionais. Mas, o que nos
chama atenção é o caráter ditatorial do movimento, o qual destacava que o país seria colocado
sob uma ditadura provisória, cujo governo se prolongaria até que 60% dos cidadãos maiores
de 21 anos fossem alfabetizados. Soma-se a isso, a ideia de que seriam criadas escolas
suficientes para atender, no menor prazo possível, a alfabetização do povo brasileiro. Tal fato
nos mostra que esse plano dos revolucionários poderia demorar muito, uma vez que educar
60% dos cidadãos maiores de 21 anos, numa época em que o analfabetismo era grande,
poderia demorar muito e o país poderia ficar nas mãos de um sistema ditatorial e não de um
regime republicano democrático, como os revolucionários queriam.
Com relação a participação de Eduardo Gomes nos movimentos tenentistas de 1922 e
1924, notamos que ele esteve presente em quase todos os atos importantes dos movimentos,
sendo um de seus líderes. Fato este que o transformaria mais tarde em herói, principalmente,
dos Dezoito do Forte de Copacabana, em 1922. Contudo, por meio de nossa documentação,
observamos que algumas ações de Gomes foram extremamente radicais, não condizente com
sua imagem de herói, que foi sendo ressaltada pela historiografia ao longo do tempo. Um
exemplo, como já ressaltado, foi a tentativa dos revolucionários e a colaboração de Gomes, de
tentar, em 1924, lançar uma poderosa carga de dinamite sobre o Palácio do Catete, com o
objetivo de matar o Presidente da República, tendo Gomes como o comandante do avião.
Mas, não conseguiram realizar o intento, pois após certo tempo de voo, o avião apresentou
problema no motor e os tripulantes, que além de Gomes estava o piloto alemão Carlos
Herdler, tiveram que realizar um pouso forçado em Cunha, num pantanal.
Nossa ida ao CPDOC, localizado no Rio de Janeiro, durante o mestrado e
recentemente no doutorado, para a catalogação das fontes também foi importante, pois
conseguimos uma ampla quantidade de arquivos e outros documentos que nos ajudaram a
pensar a dissertação e ajudará na escrita da Tese, o qual continuou a pesquisa sobre Gomes
iniciada no mestrado. No entanto, com relação a participação de Gomes nos movimentos
tenentistas de 1922 e 1924, não encontramos muita documentação, pois o único arquivo que
enfatizava tal temática, foi o arquivo João Luis Alves, de 1924. A outra informação sobre a
participação de Gomes nos movimentos tenentistas da década de 1920 encontrou por meio da
historiografia ou livros de memórias de ex-combatentes dos movimentos.
É importante salientar, que mesmo não tendo encontrado muitas informações sobre a
participação de Gomes nos movimentos tenentistas em questão, por meio dos documentos
catalogados no CPDOC, obtivemos importantes documentos que foram analisados durante o
mestrado sobre a vida política de Gomes em outros momentos específicos, bem como
documentos que serão ainda analisados por nós, durante a escrita da Tese, sobre a trajetória
política de Gomes pós 1930. Além disso, cabe ressaltarmos a organização e conservação com
que os arquivos e outros documentos do CPDOC se encontram, bem como a rapidez e o bom
atendimento dos funcionários para os pesquisadores, uma vez que não encontramos nenhuma
dificuldade na busca de nossas fontes.

Arquivo consultado

FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS – FGV/CPDOC


Arquivo João Luis Alves – Procuradoria Criminal da Republica, 1924.

Referências bibliográficas

CARONE, Edgar. O Tenentismo: Acontecimentos – Personagens – Programas. São Paulo:


Difel, 1975.
CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2006.
DORIA, Pedro. Tenentes: a guerra civil brasileira. Rio de Janeiro: Record, 2016.
FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Um Estadista da República (Afrânio de Melo Franco e
seu tempo). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1955, v. II.
NORONHA, Abílio de. Narrando a verdade: Contribuição para a história da revolta em S.
Paulo. 3. ed. São Paulo: CMG, 1924.
SILVA, Hélio. 1922: sangue na areia de Copacabana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1964.
STRINGUETTI, Lucas Mateus V. de G. O Brigadeiro Eduardo Gomes: uma análise dos
seus discursos políticos (1922 – 1950). 2018. 201 f. Dissertação (Mestrado em História e
Sociedade) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2018.
SVARTMAN, Eduardo Munhoz. Formação profissional e formação política na Escola
Militar do Realengo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 32, n°. 63, 2012, p. 281-
299.
“CAUSAS DA GUERRA COM O PARAGUAY”: A ESCRITA DA HISTÓRIA MILITAR E
A PERSPECTIVA NACIONALISTA DE SOUZA DOCCA EM SUA OBRA.

Autor: Ismael Baptista Vincensi (Mestrado em História – UEL)


Orientador: José Miguel Arias Neto

Palavras-chave: Souza Docca; Guerra do Paraguai; Historiografia Militar.

INTRODUÇÃO:
A Guerra do Paraguai foi um dos principais enfrentamentos bélicos que ocorreu na
América Latina no século XIX, envolvendo a Tríplice Aliança, constituída por Brasil,
Argentina e Uruguai e do outro lado o Paraguai, governado por Solano Lopez. Este conflito
infligiu profundos impactos políticos e sociais para ambos os lados. Por um lado, o Paraguai
sai arrasado da guerra, com grandes perdas humanas, e o Brasil consolida seu papel de
potência regional e lança as bases para a sua construção de uma identidade nacional. Essa
construção passa a ser uma preocupação para o Império do Brasil ao longo do século XIX.
A partir de uma narrativa tradicional161 acerca do conflito, vamos observar na principal
obra de Emílio Fernandes de Souza Docca intitulada: “Causas da Guerra com o Paraguay”
como se constituiu a escrita da história militar da guerra e suas formas de representação,
permeado assim, por um caráter tradicional e de exposição dos eventos narrados. Historiador
militar, ou militar historiador, Souza Docca dedicou vários trabalhos à atuação do Brasil na
região do Prata, principalmente sobre questões bélicas. Nasceu em São Borja no Rio Grande
do Sul, em 16 de julho de 1884, era filho de José Fernandes de Souza Docca e Maria José de
Souza Docca, entrou para o exército em 1899 em sua cidade natal, entre 1917-1921 estudou o
curso de Administração Militar na Escola Superior de Intendência no Rio de Janeiro. Foi
poeta, escritor e historiador militar. Sócio fundador do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Sul – IHGRGS e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB. O autor
foi um dos historiadores que representou essa construção discursiva e que orientou a
abordagem historiográfica do seu tempo.

161
Peter Burke sintetizou as características principais da historiografia tradicional: ênfase num tipo de história
política, a história como narração dos grandes fatos, documentos oficiais são os que interessam ao paradigma
tradicional, o historiador tradicional explica por meio da vontade do indivíduo histórico, e, finalmente, o
paradigma tradicional considera a História uma ciência objetiva. Desta maneira, denominamos história
tradicional a que contempla essas características apontadas por Burke. Para mais informações ver: BURKE, Peter
(org.). A Escrita a historia: novas perspectivas; São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista,
1992.(Considerando as demais correntes da historiografia sobre o tema temos: a “revisionista” onde se destaca as
produções de Chiavenato e a “atual” onde é destacada nas obras de Doratioto).
Souza Docca, como militar, usa do caráter nacional para enfatizar os feitos realizados
por tais homens em seus distintos feitos na guerra, tornando-os responsáveis pelos rumos
tomados pelo Império do Brasil. A historiografia acerca da Guerra do Paraguai possui três
momentos distintos, a primeira chamada de tradicional atribuía as causas do conflito
restritamente ao ímpeto imperialista de Solano Lopez como causador único da guerra, a
segunda tendência passou a ser escrita a partir dos anos de 1960, onde considerava a
Inglaterra como grande fomentadora dos atritos, pois não queria a ascensão de uma nova
potência na região, por fim as correntes historiográficas recentes buscam revelar que as causas
do conflito estão relacionadas ao processo de construção dos Estados Nacionais.

A GUERRA DO PARAGUAI NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA:


A respeito da historiografia sobre a Guerra do Paraguai, podemos afirmar que ela
passou por mudanças desde o início do conflito, o que é inerente à historicidade da produção
de conhecimento histórico. Durante o conflito e logo após, ainda no contexto das disputas
acirradas de cunho nacionalistas, próprias da segunda metade do século XIX, a historiografia
tradicional buscou ênfase neste tipo de tendência historiográfica em explicar as causas da
guerra exclusivamente pelo ímpeto expansionista do “ditador paraguaio” Solano López e
atribuía ao país e população vizinha o status de “bárbaros”. Este momento está caracterizado
também pela afirmação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) enquanto
instituição representativa e veiculadora da historiografia brasileira. Assim, a partir dele,
construiu-se uma “Historiografia Nacional”, responsável por obras e artigos sobre o que se
deveria ler para “conhecer” a História do Brasil.
Durante a maior parte do século XIX a história militar foi frequentemente associada a
outros campos da história e mesmo da literatura. Seria difícil separa-la desses gêneros para
considera-la um campo próprio.
O que é visto como “história militar tradicional”, estudos sobre instituições, guerra e
campanhas, apareceu pela primeira vez no Brasil nos anos 1890, alcançando seu ápice na
primeira metade do século XX. Foi marcada pela maioria das vezes por ser um território de
historiadores militares, e ocasionalmente de admiradores civis. Foi somente a partir dos anos
1890, que surgiu um gênero identificável de história militar brasileira. Eram escritores
predominantemente militares, que recebiam apoio institucional do exército para publicação de
obras. A biografia foi um dos gêneros literários favoritos, porém ela teve uma tendência em
concentrar-se num pequeno número de “patronos”, Caxias e Osório sendo referenciados como
as personalidades favoritas.
Mais tarde, a partir dos anos 1960, a historiografia revisionista apresentou uma versão
em que a explicação para a guerra passava pelo papel da Inglaterra, que não queria a ascensão
de uma nação latino-americana poderosa, tal característica foi influenciada fortemente pelos
movimentos marxistas durante o período, e teve sua origem no lançamento do primeiro
volume da História geral da civilização brasileira, organizada por Sérgio Buarque de
Holanda.162 Por fim, as correntes historiográficas recentes, buscam revelar que as causas do
conflito estão relacionadas ao processo de construção dos Estados Nacionais na Região do
Prata.163
Segundo Michel de Certeau (1982), toda pesquisa histórica está vinculada a um lugar
de produção (que pode ser social, político e cultural), a uma profissão liberal, uma categoria
de letrados, um posto de observação ou de ensino, ela está, pois, submetida a imposições,
ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade. De acordo com o autor, esse lugar
determina os métodos e os documentos que são utilizados na escrita historiográfica. Assim,
devemos analisar a historiografia como uma operação que combina um lugar social (meio,
profissão, recrutamento), práticas científicas (conjunto de regras que controlam a forma de
escrever a história) e a escrita (literatura produzida).
Portanto, inspirados no autor, analisaremos a sua produção a respeito da Guerra do
Paraguai, a partir do livro “Causas da guerra com o Paraguay” publicado em 1919. Toda
concepção de história ou modo de narrar o passado faz parte de um regime de historicidade,
um plano de pensamento de longa duração ou uma ordem do tempo, que permite ou proíbe
pensar certas ideias.
O regime de historicidade é apenas uma das maneiras de articular as categorias do
passado, do presente e do futuro. Isso não implica que haja uma maneira boa e outra
ruim de articulá-las. E isso não implica que as formas que já existiram devam
sempre existir ou que devam ser impostas a outras. (HARTOG, 2012. Pg. 365.).

Com isso, torna-se possível aprender, conhecer, contemplar e reproduzir as


características fundamentais para a análise historiográfica. Sendo esse modelo de
historiografia militar, por exemplo, influenciado diretamente pelos primeiros historiadores do
Instituto Histórico e Geográfico do Brasil. Sobre conceitos, Reinhart Koselleck (2006, p.103)

162
Historiografia Revisionista: POMER, Leon. A Guerra do Paraguai, a grande tragédia rio-platense. São Paulo:
Global, 1980; CHIAVENATTO, J.J. Genocídio Americano: A Guerra do Paraguai. 14ªed. São Paulo:
Brasiliense, 1982.
163
Exemplos dessas tendências historiográficas podem ser conferidos, entre outras, nas obras:
SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: Escravidão e cidadania na formação do exército. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1990; BETHELL, L. 1995 . Guerra do Paraguai: historia e historiografia do imperialismo britânico e a
Guerra do Paraguai ., Rio de Janeiro: Relume-Dumará.In: MARQUES, M.E.C.M., org. A Guerra do Paraguai
130 anos depois; DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: Nova História da Guerra do Paraguai. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
afirma que a história dos conceitos tem uma obrigação metodológica mínima: compreender os
conflitos sociais e políticos do passado por meio das delimitações conceituais e da
interpretação dos usos da linguagem pelos atores históricos.
Koselleck estabelece uma relação entre as ações políticas e os conceitos linguísticos
mobilizados por diferentes grupos sociais. Para ele, a utilização de conceitos por determinados
indivíduos tem uma função que é capaz de extrapolar a linguagem, influenciando diretamente
a forma como grupos agem e suas ações políticas e sociais. Segundo Koselleck (2006), a
história dos conceitos pode ser uma metodologia para compreender os conflitos políticos e
sociais através da interpretação dos repertórios conceituais e da utilização da linguagem.
É possível observar em Souza Docca, como o autor busca escrever uma narrativa
nacional-patriótica, de apologia ao Estado e de caráter factual, que entende a história como
uma sequência linear e cronológica de acontecimentos e apresenta a guerra como um choque
entre civilizados e bárbaros. O crescimento significativo da História da Historiografia se deu a
partir da década de 1980, sendo os trabalhos de Manoel Luiz Salgado Guimarães referências
importantes. Turin (2013, p.83) argumenta que “a necessidade de legitimação [...], se dá
justamente quando a perda da evidência de seu conteúdo, assim como a absorção de novos,
geram uma tensão com os constrangimentos que regem seu funcionamento formal”.
Uma das noções que sintetiza essa nova forma de abordagem histórica é a postura de
“memória disciplinar”, que implica reconhecer que o próprio surgimento de enunciação, a
História da Historiografia, estava estritamente vinculado a um trabalho de memória,
submetendo o passado a uma narrativa de identidade disciplinar. Os historiadores não podem
ignorar os efeitos que sua tradição, tornada presente no próprio gênero História da
Historiografia, exerce sobre sua atividade, ao mesmo tempo possibilitando e limitando as
questões e as narrativas sobre o passado de um objeto, que cada vez mais é posto em questão.
Assim, toda a Historia da Historiografia, como toda hermenêutica, deve levar uma postura
crítica, não como simples negação da tradição, mas o reconhecimento de seus impasses,
possibilitando uma reflexão sobre a historicidade das formas de representação do passado, e o
que se tenta passar no presente trabalho.
Contudo, as discussões que são geradas pelas discordâncias historiográficas, são
sempre úteis para se construir o saber, pois com elas temos acessos a novas formas de
interpretar e analisar os fatos, porém, sempre considerando a carga ideológica utilizada no
fazer histórico. Nesse quesito, Marc Bloch (2001, p. 126) lembra: “Montaigne já nos chamara
a atenção: “A partir do momento em que o julgamento pende para um lado, não se pode evitar
de contornar e distorcer a narração nesse viés’”, podemos observar tal característica no
emprego político que a narrativa tradicional da Guerra do Paraguai queria passar com a busca
da construção da identidade nacional no período e exaltação de personalidades do Império,
juntamente com seus feitos, com isso a classe militar passou a ter uma repercussão maior,
tanto no meio social e político como também na produção historiográfica.

A ESCRITA NACIONALISTA DE SOUZA DOCCA EM SUA OBRA:


A narrativa historiográfica tradicional possui, entre suas características mais
importantes, um discurso nacionalista, de construção de heróis e a descrição minuciosa de
eventos na tentativa de transportar o leitor de tal escrita para o cenário do evento no passado.
A necessidade de se estudar o Brasil foi recorrente ao longo do século XIX, no sentido de se
fazer conhecido para dentro e para fora e uma finalidade prática para o conhecimento do
passado das terras americanas que constituíram parte importante do Império português. Sendo
assim:
Uma articulação entre conhecimento e exercício de poder, entre demandas fundadas
num conhecimento da história e do território e a implantação de um projeto de
construção nacional. (GUIMARÃES, 2006, Pg. 71).

A figura do herói passou também a fazer parte da busca da nova história nacional,
podendo assim estabelecer uma vinculação entre a participação de vários membros do IHGB
com os eventos da história brasileira Pode-se pensar que o próprio IHGB, enquanto instituição
encarne essa figura de herói, um herói que seria um agente coletivo, suas tarefas históricas
consistiriam em salvar o passado nacional e construir uma memória nacional. Januário da
Cunha Barbosa propõem um projeto biográfico ao IHGB, mas não se trata, porém de uma
posição irrefletida, mas de um sinônimo aproximado do movimento da história. O mundo se
transforma graças aos grandes homens. O projeto tem, portanto, uma verdadeira pertinência
histórica. Uma tendência geral e significativa da historiografia produzido ao longo do século
XIX e início do XX foi estar intimamente relacionada a construção do Estado Nacional,
realizava-se assim uma história oficial, patrocinada pelo poder público.
Esse projeto então prevê que a história de nossos grandes personagens seja escrita por
nossos historiadores “nacionais”. Passa a ter início uma proposta nacionalista de construção
da identidade nacional e ajudar no projeto de centralização política, prevendo o fortalecimento
do poder executivo na figura do imperador e a continuidade da ordem social baseada
principalmente no escravismo e no latifúndio. Um país recém independente precisava recordar
e criar uma memória sobre o seu passado, construindo uma identidade nacional com o intuito
de consolidar o poder institucional e do próprio Estado. Os elementos necessários para a
compreensão do passado que se buscavam apresentar do Império Brasileiro, e o projeto da
primeira geração dos letrados do IHGB, eram as demandas recorrentes da necessidade de
fundar uma nação no espaço colonial português, onde a ida ao passado tornaria uma demanda
do presente para assegurar um projeto futuro de História. E esses elementos acabaram por
auxiliar na formação da identidade nacional para os “brasileiros” e consolidar o Estado, com
uma historiografia oficial e completamente vinculada do poder imperial. O intervalo temporal
força o historiador a fingir a realidade histórica, sem falar do “acontecer” de alguma coisa.
É conferido na obra de Docca: “Causas da Guerra com o Paraguay”, exemplos nítidos
de um caráter nacionalista da narrativa, ao retratar sua visão e considerações acerca do
conflito. Tais percepções sempre passam pelo crivo de seus autores e com isso são carregados
de sentimentos, que vão desde os políticos até de paixões mais exaltadas a diferentes pontos,
como a glorificação de companheiros de farda e na exaltação patriótica. A partir da ótica de
Souza Docca enfocamos o conflito que ocorreu entre 1864 e 1870, a Guerra do Paraguai.
Souza Docca atribui quatro causas para o início do conflito, que são: a recusa de Lopez
a casar-se com umas das filhas de D. Pedro II, história inventada por Washburn, em um artigo
publicado em Nova York, em 22 de janeiro de 1870; Aumento do imposto pela erva mate que
era o maior artigo de exportação do Paraguai; A política imperialista do Brasil junto a
Argentina; e a mais defendida e exposta por Docca: os sonhos de conquista do ditador
paraguaio e sua aliança com o partido Blanco do Estado oriental. Essa defesa em considerar o
ditador paraguaio como o causador e incitador da guerra estão presentes na versão tradicional
das narrativas historiográficas sobre a guerra, nas quais se enfatiza o ataque paraguaio ao
Brasil e dá-se pouca importância à intervenção militar brasileira no Uruguai. O caráter desta
narrativa tradicional estará presente nas principais abordagens de Souza Docca sobre o
conflito.
Souza Docca cita como os causadores do conflito os que estavam a frente do governo
do Estado Oriental do Uruguai de 1861 a 1864, são eles: Bernardo Prudêncio Berro, Atanasio
Cruz Aguirre, Juan José de Herrera, Octávio Lápido, Antonio de las Carreras e José Vasquez
Sagastume. Para Souza Docca, Solano López foi o maior responsável pelo conflito. O
pretexto para declarar guerra foi a invasão por forças brasileiras no Uruguai durante a guerra
civil entre o partido Blanco e Colorado. Mais tarde, no contexto dos anos 1960, na
historiografia de caráter revisionista, os grandes “vilões” da história serão outros: a classe
dominante portenha, a Inglaterra e o Brasil imperial. Essa visão revisionista possui o
dimensionamento voltado principalmente a influência inglesa na região e ignora os motivos
específicos dos países diretamente envolvidos, como nos mostra no trecho:
“tremendo e memorável conflito, em que o insano, presumido e ambicioso Francisco
Solano Lopez representou um negregado papel, pela maneira satânica e perversa
com que se houve para provocar a luta e durante o decurso desta, longo, sangrento e
penoso, - e porque foi ao mesmo tempo causador, provocante e autor, deve por isso
ser considero como o maior réu do grande crime que foi aquela guerra”. (DOCCA,
1919, 5).

Uma das formas da narrativa que podemos observar é como a visão do “outro” era
empregada, Docca relata a percepção de como era o paraguaio no tempo de Solano Lopez,
relacionando-o a um ser destituído de vontade própria:
“movia-se ao talante do ditador, cujas ordens cumpria com rigorismo, enfrentando os
mais duros sacrifícios, lutando com os maiores obstáculos (...) Essa confiança e
dedicação únicas, infinitas, tiveram a virtude de elevar muitas vezes o soldado
paraguaio as raias do heroísmo; mas é inegável que tiveram também o poder
diabólico de o fazer, outras tantas vezes, descer até a bestialidade.” Estava ausente
qualquer consciência nacional pois lopez dominava “discricionariamente no
temporal e espiritual; sua vontade era como um decreto divino que devia ser
cumprido a risca, sem vacilações” (DOCCA, 1919: 195-7).

Souza Docca considerava Lopez um autocrata que governava sem parlamento, sem
corte de justiça, nem tribunais, considerava a tradição jesuítica a ignorância colonial estendida
por todo o território da província. Também descrevia os governos anteriores à Solano Lopez
como longa tirania, iniciada por José Gaspar Rodríguez Francia, primeiro ditador do Paraguai,
e continuada por Carlos Antônio Lopez, pai de Solano Lopez, pelo rebaixamento da moral e
política do povo paraguaio. Descrevia também Souza Docca o homem paraguaio, na era de
Lopez, um homem sem direito próprio e caracterizava o Paraguai como isolado, em uma vida
primitiva.
Delimitada a imagem do inimigo ligado a tirania e a belicosidade, também existe a
exaltação patriótica da nacionalidade quanto a reação a uma série de ultrajes recebidos pelos
paraguaios, tornando a responsabilidade da guerra não por quem faz, mas o que a torna
necessária, sendo assim, a pátria ou a nação deveria dar respostas as afrontas constituídas pelo
agressor:
O povo que não se levanta para desafrontar os brios ultrajados de sua nacionalidade
e garantir e fazer respeitar a integridade do solo pátrio, a vida de seus filhos, a honra
de seus lares – é um povo de degenerados, de pusilânimes, que envergonha a espécie
humana e que deve desaparecer do concerto universal, assim como não deve figurar
no convívio dos homens aquele dentre eles que não tiver hombridade para repeli
uma ofensa injuriosa, nem energia para defender a honra de sua esposa, a candura de
suas filhas, a pureza de suas irmãs. Quem não sabe defender a pátria é incapaz de
defender o lar” (DOCCA, 1919, 224).

A partir dos relatos contidos na obra do autor, a escrita da história Docca ainda é
tributária da concepção e modelo de história produzida no Brasil dos oitocentos a partir do
IHGB. Segundo Guimarães (1988. p. 6), “foi somente com a criação do IHGB, em 1838, que
se criou e aos poucos se fortaleceu a concepção de que a história do Brasil deveria ter a
função de auxiliar na construção de uma imagem para a Nação”. Fazia parte dessa perspectiva
historiográfica afirmar o caráter do Brasil como representante da ideia de civilização na
América do Sul, o caráter “civilizatório” possuía também grande impacto na autoafirmação
nacional, pois, como já foi visto, o conflito baseava-se em levar a luz aos “bárbaros”:
Num processo muito próprio ao caso brasileiro, a construção da ideia de Nação não
se assenta sobre uma oposição à antiga metrópole portuguesa; muito ao contrário, a
nova Nação brasileira se reconhece enquanto continuadora de uma certa tarefa
civilizadora iniciada pela colonização portuguesa. (GUIMARÃES, 1988, p. 6)

Sendo assim, em suma, instituir uma periodização e um encadeamento dos


acontecimentos à brasileira significava, no campo histórico, narrar ou explicar a fundação do
Brasil a partir do ponto de vista nacional, no caso a Guerra do Paraguai como o formador dos
alicerces necessários para que essa fundação de um “novo” Brasil nacionalista e unificado
pudesse ser desenvolvido e estudado a partir das primeiras publicações historiográficas.
Sendo que a historiografia militar passa a narrar os eventos históricos, de forma linear,
progressiva e evolutiva, numa ideia de que o tempo é homogêneo e irreversível, e estava aí a
busca da história brasileira e a seu começo primordial, sua evolução histórica e nacionalista.

CONCLUSÃO:
A historiografia constituída sobre a Guerra do Paraguai desenvolveu-se a partir dos
memorialistas e ex-militares que lutaram no conflito. A escrita da história sobre o tema era
predominantemente escrita por soldados e que com uma apologia à nação e seus heróis
formaram as principais bases e características da historiografia tradicional da guerra, sendo ela
grande responsável pelo desenvolvimento nacionalista na região do Prata e dos países
envolvidos, essa narrativa também foi usada de forma política na construção de uma
identidade nacional, que se fazia necessária no período do Séc. XIX.
Essas características foram norteadoras para as produções subsequentes da guerra,
podemos salientar sua história factual, a pretensão, a objetividade nos relatos passados pelas
obras estudadas, a cronologia linear, a narrativa com forte apelo nacional e por fim o caráter
heroico dado a seus personagens, dando uma legitimação a uma ideia elitizante de história,
onde ela seria formada pela ação de grandes homens, e seus expoentes máximos, Duque de
Caxias e General Osório.
Ao analisarmos a obra de Souza Docca observamos essa forma de narrativa: a
exaltação de heróis e da pátria, juntamente com seus feitos, passariam a formar a identidade
nacional, transmitir ao conhecimento geral os fatos e supostas verdades que constituíram a
Guerra do Paraguai. A partir da análise temos ferramentas e meios para compreender e
discutir as características essenciais dessa historiografia tradicional do conflito. Assim o
presente artigo busca apresentar a forma como a produção histórica e tradicional da guerra foi
passada essencialmente descritiva, voltada para os feitos heroicos e ações individuais, nos
relatos factuais, e que essa narrativa estaria a serviço de um projeto de nação a ser
desenvolvida.
A Guerra do Paraguai constitui em um inestimável tema histórico para os
historiadores, e que se tratou também, como uma narrativa para fins políticos, tanto na
construção historiográfica do Brasil como assentar as bases das classes militares e da
República. Não se pode analisar o conflito de um só ângulo, porém, resgatar esse passado
significa também dar voz a esses relatos e documentos históricos, pois revelam um pouco do
ideário, das condutas e comportamentos do brasileiros que lutaram no Paraguai e com isso
investigando suas informações concretas e por vezes mais modestas, trazendo a luz as
lembranças dos soldados e personagens históricos do Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BURKE, Peter. A Escrita da historia: novas perspectivas. traducão de Magda Lopes. - Sao
Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. - (Biblioteca basica)
BETHELL, L. 1995 . Guerra do Paraguai: historia e historiografia do imperialismo
britânico e a Guerra do Paraguai ., Rio de Janeiro : Relume-Dumará. In: MARQUES,
M.E.C.M., org. A Guerra do Paraguai 130 anos depois
BLOCH, Marc. Apologia da História, ou, O ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2001.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da história/Michel de Certeau; tradução de Maria de
Lourdes Menezes; *revisão técnica [de] Arno Vogel. – Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1982.
CEZAR, Temistocles. Lições sobre a escrita da história: as primeiras escolhas do IHGB.
A historiografia brasileira entre os antigos e os modernos. In: BASTOS, Lucia Maria
Bastos Pereira das; GONÇALVES, Marcia de Almeida; GONTIJO, Rebeca; GUIMARÃES,
Lucia Maria Paschoal. (Org.). Estudos de Historiografia brasileira. Rio de Janeiro, 2011, v. ,
p. 93-124.
_______, T. Lição sobre a escrita da História. Historiografia e nação no Brasil do século
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_______, T. Livros de Plutarco: biografia e escrita da história no Brasil do século XIX.
Métis: História e cultura, Caxias, n.03, jan/jun de 2003, p. 73-94.
DOCCA, Souza. Causas da Guerra com o Paraguay: Autores e responsáveis. Porto
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DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: Nova História da Guerra do Paraguai. São
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FRAGOSO, Augusto Tasso. História da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai.
Vol5. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1960.
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópicos: O Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma História Nacional. Rio de
Janeiro, Estudos Históricos 1(1) 1988.
__________, Manoel L. Salgado. “Entre as luzes e o romantismo: as tensões da escrita da
história no Brasil oitocentista”, in: Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: 7
Letras, 2006.
HARTOG, François. História, historiografia e tempo presente. Revista História da
Historiografia. Ouro Preto. Nº 10. dezembro. 2012. Pg 351-371.
A SEGURANÇA HEMISFÉRICA: COOPERAÇÃO MILITAR BRASIL-ESTADOS
UNIDOS NO PÓS-GUERRA (1944-1945)

Vinicius Marcondes Araújo


(Graduação em História, Universidade Estadual de Londrina – UEL)

Orientador: Prof. Dr. Francisco César Alves Ferraz

Palavras-chave: Brasil; Estados Unidos; Relações Internacionais;

INTRODUÇÃO
A Segunda Guerra Mundial representou um momento singular de transformações
abruptas no Sistema Internacional. Se os Estados Unidos já acumulavam condições de se
lançarem como potência mundial hegemônica pelo menos desde a Primeira Guerra Mundial, a
nível continental este papel já era exercido desde sua constituição como nação. O conflito
mundial trouxe para a região novas exigências de reconfiguração de forças e de reafirmação
do papel predominante dos EUA.
Este trabalho tem como objeto as propostas e acordos de cooperação militar firmados
entre Brasil e Estados Unidos no imediato pós-Segunda Guerra. Já nos últimos meses do
conflito, os EUA começam a se preocupar com a futura conjugação de forças mundiais,
depositando especial atenção no continente americano – região fundamental para a garantia da
“segurança hemisférica”. Sob a perspectiva da história das relações internacionais, as fontes
de origem diplomática permitem reconstruir os avanços e transformações nas negociações e
conversações de alto nível entre os dois países. Desta forma, ao se analisarem as instruções
iniciais e as definições de parâmetros e premissas para a condução das negociações bilaterais
e os pareceres e memorandos consulares, revelam-se os conflitos entre o idealismo/otimismo
das relações militares e o realismo/pragmatismo da ação diplomática. Neste momento inicial
de configuração da ordem mundial pós-Segunda Guerra, as relações conflituosas e
expectativas contraditórias entre os representantes diplomáticos e os militares já apontam para
o futuro papel de segundo plano da América Latina e do Brasil na ordem mundial
bipolarizada.

1. Os Estados Unidos e o continente americano no pós-guerra


Antes de adentrar em uma análise específica sobre as relações militares entre Estados
Unidos e Brasil no contexto imediato do pós-Segunda Guerra, faz-se necessária uma breve
exposição da história da política externa americana e de suas relações com os países da
América Latina, assim como das características da política externa brasileira no mesmo
período. Esta necessidade é reforçada pela natureza das fontes empregadas neste trabalho:
tratando-se, em sua totalidade, de documentos diplomáticos produzidos pelo serviço externo
americano, a compreensão de seu contexto de produção é tarefa fundamental para uma análise
crítica.
A análise da política externa dos Estados Unidos no pós-Guerra não pode prescindir de
uma compreensão de seu desenvolvimento histórico. Neste sentido, Cristina S. Pecequilo
(2011) ressalta que o período estudado é justamente o momento de transição entre as duas
principais etapas da política externa americana: entre o que a autora chama de fases
“histórica”, de 1776 até 1945, e “contemporânea”, de 1945 até o pós-Guerra Fria. Segundo
Pecequilo, a política externa dos Estados Unidos é historicamente marcada por um “alto grau
de continuidade” em suas estratégias, sendo “[...] caracterizada por um acúmulo de tradições
de comportamento internacional” (p.473). Essas tradições foram construídas ao longo do
período histórico, quando “[...] foram construídas as bases fundamentais da política externa
norte-americana, que foram mantidas e retrabalhadas ao longo da evolução das relações
internacionais dos Estados Unidos.” (p. 30)
Sempre visando a manutenção de sua hegemonia hemisférica, é na década de 1930 que
a política externa dos EUA para o continente viria a sofrer maiores mudanças em suas
estratégias. As intervenções custosas e contraproducentes das décadas passadas deram lugar a
uma política de defesa contra as ameaças externas e busca de estabilidade interna no
continente através da cooperação, enunciada na Política da Boa Vizinhança do presidente
Franklin D. Roosevelt (1933-1945). Esta política ativou o fluxo comercial e financeiro entre
os países latino-americanos e a potência do Norte, criando esperanças de uma mudança real e
definitiva nos padrões de relacionamento hemisférico. No entanto, a vitória dos Aliados na
Segunda Guerra Mundial juntamente com a ascensão da União Soviética passaram a exigir
dos Estados Unidos um papel mais ativo na construção da ordem internacional do pós-guerra.
O abandono definitivo do isolacionismo no cenário mundial é acompanhado por uma
deterioração das relações hemisféricas. (PECEQUILO, 2011)
Embora os anos iniciais do pós-guerra tenham sido marcados por uma relativa
indecisão na política externa americana, tanto em seu hemisfério quanto no restante do
mundo, o amadurecimento da bipolarização no cenário mundial levaram à elaboração da
doutrina da contenção, enunciada inicialmente pela Doutrina Truman (1947). A partir de
então, o foco da política externa americana se direcionaria às regiões da Europa e Ásia mais
vulneráveis ao perigo comunista, ficando o relacionamento hemisférico restrito a iniciativas e
acordos militares e econômicos sempre aquém das necessidades latino-americanas para seu
desenvolvimento. (PECEQUILO, 2011)

2. Relações militares Brasil-EUA: expectativas iniciais


As relações militares entre Brasil e Estados Unidos atingiram seu auge com a Segunda
Guerra Mundial, desenvolvendo expectativas positivas em ambos os lados. Nas palavras do
historiador Sonny Davis:
As relações militares entre o Brasil e os Estados Unidos no século XX foram únicas
na região. A partir de contatos iniciais precavidos, o relacionamento cresceu
lentamente até que a Segunda Guerra Mundial consolidou os laços entre os dois
gigantes do Hemisfério. O Brasil esperava que a aliança ajudasse a sua busca por
desenvolvimento econômico e militar, enquanto que os Estados Unidos entendiam
que o seu parceiro júnior daria a ele lealdade inquestionável nos assuntos
internacionais. (DAVIS, 2011, p.361)
Segundo Davis, as relações militares entre Brasil e Estados Unidos são marcadas pela
busca do desenvolvimento econômico e militar pelo Brasil e da lealdade internacional de seu
vizinho sul-americano pelos EUA. Essas relações têm um marco inicial em 1914, quando um
oficial da Marinha americana é destacado como instrutor da Escola de Guerra Naval Brasileira
(RJ). Em 1922, uma missão naval americana se instala no Brasil, permanecendo até 1930.
(DAVIS, 2011)
A partir da década de 1930, com as já mencionadas mudanças no comportamento
hemisférico dos Estados Unidos através da Política da Boa Vizinhança, há um momento
inicial onde o Brasil busca fazer convergir seus interesses nacionais de desenvolvimento e
cooperação militar com os EUA, mas o Departamento de Estado americano dá pouca atenção
aos apelos brasileiros por um relacionamento especial. É só com o avanço do conflito
mundial, na virada das décadas de 1930 e 1940, que são elaborados planos para visitas de
oficiais, fornecimento de veículos, aeronaves, navios e os adidos militares são aumentados no
território. A Declaração de Lima (1938) estabelece a base para as negociações militares
bilaterais, e em 1939 é feito um acordo de assistência econômica. Na década de 1940, o
Departamento de Guerra investe no aumento de verbas e de oficiais americanos presentes em
países da América Latina, com a iminência do conflito na Europa:
[...] Foi a escala, extensão e complexidade dos arranjos necessários à viabilização
das atividades militares em tempo de conflito global que levou à sensível ampliação
dos quadros de representantes, assessores e consultores militares dos EUA na
América Latina. (OLIVEIRA, 2015, p. 37)

No caso do Brasil, a visita, em 1939, da Delegação Militar Norte-Americana, chefiada


pelo General George C. Marshall e a retribuição da visita pelo General brasileiro Pedro
Aurélio de Góes Monteiro, no mesmo ano, marcou a intensificação do relacionamento militar
entre os dois países, com vistas ao conflito em escala global que se anunciava. (DAVIS, 2011)
Em 1941, as negociações avançam e o Brasil obtém, em acordo secreto com os EUA,
garantias de cooperação e defesa do hemisfério, com oferta de material de guerra, assistência
financeira e técnica. A presença de tropas americanas em solo brasileiro, no entanto,
permanece inegociável. Só em 1942, quando os ataques alemães contra embarcações
brasileiras e Pearl Harbor alinharam os interesses dos dois países é que foi estabelecido um
acordo político-militar secreto, que firmava a aliança Brasil-Estados Unidos em fraternidade
de armas e tinha vigência por 30 anos. (DAVIS, 2011)
Com a entrada dos Estados Unidos na guerra, em dezembro de 1941, e os
consequentes rompimento de relações e declaração de guerra ao Eixo pelo Brasil, no começo
de 1942, duas comissões militares e de defesa mútua foram criadas para coordenar os esforços
de guerra, discutindo e emitindo recomendações a serem entregues às autoridades políticas e
militares: a Joint Brazil-United States Defense Comission (JBUSDC), sediada em
Washington, e a Joint Brazil-United States Military Comission (JBUSMC), sediada no Rio de
Janeiro. Para Oliveira (2015), a atuação dessas comissões acabou assumindo funções ainda
mais importantes no pós-guerra:
[...] a comissão acabou por se constituir antes mesmo do término da Segunda Guerra
Mundial em uma autêntica missão militar de instrução e aperfeiçoamento do
Exército Brasileiro, comparável em importância à Missão Militar Francesa que
operou no Brasil entre 1922 e 1940 – senão mais. (OLIVEIRA, 2015, p. 37)
Entre as principais questões debatidas pelas comissões no período da guerra estavam a
“Questão do Nordeste” – região de interesse estratégico para as forças aliadas, mas que
encontrava resistência por parte do governo brasileiro em permitir a permanência de tropas
americanas -, o fornecimento de armamentos ao Brasil, as disputas e tensões no interior dos
círculos políticos e militares americanos e brasileiros, a participação direta do Brasil na
guerra, com o envio de tropas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e da Força Aérea
Brasileira (FAB) e, principalmente, as relações militares promissoras a serem desenvolvidas
no período pós-guerra:
No imediato pós-guerra [...] subsistia a esperança de que a aliança militar na guerra e
o alinhamento automático aos EUA no pós-guerra seriam suficientes para garantir ao
Brasil um tratamento privilegiado da parte do grande aliado estadunidense, uma
‘aliança especial’. (OLIVEIRA, 2015, p. 70)

A entrada conjunta no conflito trouxe aos oficiais brasileiros a expectativa de um papel


ativo. A criação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) reforçou essas esperanças de
grandeza e segurança nacional sendo alcançadas pela parceria entre os dois países. No
entanto, antes mesmo da guerra terminar já surgiam indícios de mudanças neste
relacionamento. Uma luta emergente sobre o controle da política externa dos EUA entre o
pessoal civil do Departamento de Estado e os oficiais militares atuantes no Departamento de
Guerra e nas Comissões conjuntas agouram as expectativas de mudança no relacionamento.
Prova desta esperança aparece em um memorando164 enviado pelo Embaixador
americano no Brasil, Jefferson Caffery, ao presidente Getúlio Vargas, em 10 de julho de 1944.
O documento sugeria que os governos americano e brasileiro iniciassem conversações formais
com vistas a construir o aparato de segurança do hemisfério ocidental, firmando um acordo de
segurança militar. Segundo Caffery, o governo americano se comprometeria a fornecer
material bélico ao Brasil sob condições de pagamento diferentes do Lend-Lease, considerando
seu desejo em manter eficientes e preparadas as Forças Armadas brasileiras. Para coordenar
os esforços de defesa, as Comissões Conjuntas (JBUSDC e JBUSMC) seriam mantidas, com a
função de expor recomendações concernentes às necessidades brasileiras em matéria de
equipamento bélico e outras considerações de natureza técnico-militar, como métodos de
treinamento para operação e manutenção adequada dos equipamentos.
Vargas responderia ao governo americano através de uma reunião em seu gabinete no
palácio do Catete. Em 5 de outubro de 1944, o presidente se reuniu com oficiais e adidos
militares e navais dos EUA, além de seus ministros da Guerra, Marinha e Aeronáutica, para
anunciar que estava de acordo com os termos do memorando de Caffery. Segundo Walter J.
Donnelly, encarregado de negócios da embaixada americana no Brasil que reportou o
encontro via telegrama165 ao Departamento de Estado, Vargas teria se expressado “de maneira
extremamente amistosa e sincera”, expressando confiança no sucesso das conversações e
demonstrando estar satisfeito com o pessoal selecionado para tal propósito. Portanto, o clima
entre os altos escalões governamentais brasileiros era de otimismo quanto às pretensões de
cooperação militar dos EUA.
Todavia, o restante do continente também era objeto de preocupação do governo
americano. Em 1º de agosto de 1944, o Secretário de Estado americano envia para seus
representantes diplomáticos no Peru, Chile, Cuba, Colômbia, Venezuela, Uruguai e Equador

164
Documento: (100) Memorandum by the American Ambassador in Brazil (Caffery) to the President of Brazil
(Vargas), 10/07/1944. In: U. S. DEPARTMENT OF STATE. U. S. DEPARTMENT OF STATE. Foreign
Relations of the United States [doravante citada como FRUS]: Diplomatic Papers, 1944, The American
Republics, Volume VII. Washington: United States Government Printing Office, 1967. Disponível em:
<https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1944v07/d100>.
165
Documento: (99) The Chargé in Brazil (Donnelly) to the Secretary of State, 10/10/1944. In: U. S.
DEPARTMENT OF STATE. FRUS: Diplomatic Papers, 1944, The American Republics, Volume VII.
Washington: United States Government Printing Office, 1967. Disponível em:
<https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1944v07/d99>.
uma circular onde “[...] propõe que sejam empreendidas conversações bilaterais com vistas a
lançar as bases para a contínua colaboração militar entre as Repúblicas Americanas no
período pós-guerra” 166. Caso as respostas dos governos latino-americanos fossem assertivas,
seriam enviados oficiais dos EUA para iniciar as discussões. O documento ressalta a diferença
entre as conversações mantidas no período da guerra com as do momento: nestas últimas, o
objetivo do “[...] estabelecimento de uma organização internacional geral com funções de
segurança é antecipado”.
Estas instruções confirmam a tese de Cristina Soreanu Pecequilo (2011), segundo a
qual a política externa dos EUA nos primeiros anos do pós-guerra (1945-47) foi marcada pela
sua relativa indecisão e até mesmo um clima de parceria e criação de expectativas mútuas com
relação às demais repúblicas americanas. As iniciativas para a criação de um sistema
interamericano de cooperação política e militar, como a assinatura do Tratado Interamericano
de Assistência Recíproca (TIAR), em 1947, e a fundação da Organização dos Estados
Americanos (OEA), em 1948, afirmam este clima de otimismo. No entanto, tais relações logo
caíram para o descaso, com os Estados Unidos não atendendo as expectativas de cooperação
militar dos países americanos:
[...], o estabelecimento de uma série de tratados bilaterais militares entre os Estados
Unidos e os países da região, entre os quais o Brasil, tentaram explorar tais
potencialidades, mas todas essas iniciativas estiveram muito aquém das necessidades
e das prioridades latino-americanas na época. (PECEQUILO, 2011, p. 220)

Contribuiu para este “decaimento” o fato de a América Latina não ser mais percebida
como prioritária no quadro de poder que se configurava no sistema internacional,
prenunciando a Guerra Fria. Permaneciam os ideais de cooperação e solidariedade na política
externa dos EUA para a América Latina, mas apenas na retórica. Estes ideais conduziram a
criação do TIAR e da OEA, inspirados nos ideais de segurança coletiva e cooperação política
do pan-americanismo, mas não foram capazes de superar o clima de parceria e otimismo da
Política da Boa Vizinhança, que conduziu as relações com a América Latina no período da
guerra. Com o fim desta, os EUA direcionam suas preocupações para a Ásia e Europa, mais
suscetíveis à influência soviética, e só voltam a depositar atenção na América a partir da
segunda metade da década de 1950, quando os ânimos contra os Estados Unidos se agitam no
continente.

166
Documento: (87) The Acting Secretary of State to Certain Diplomatic Representatives in the American
Republics, 01/08/1944. In: U. S. DEPARTMENT OF STATE. FRUS: Diplomatic Papers, 1944, The American
Republics, Volume VII. Washington: United States Government Printing Office, 1967. Disponível em:
<https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1944v07/d87>.
3. Relações militares Brasil-EUA: a quebra de expectativas
De fato, considerações mais “realistas” quanto ao nível e caráter da cooperação militar
já começavam a aparecer durante as conversações bilaterais antes mesmo do fim do conflito
mundial. Em 26 e 27 de julho de 1945, três relatórios foram enviados da embaixada americana
no Rio de Janeiro ao Departamento de Estado em Washington167. Assinados pelo embaixador
Aldof A. Berle Jr, os documentos continham apreciações sobre as conversações travadas entre
altos oficiais das Forças Armadas brasileiras e americanas entre março e abril daquele ano,
recebidas pelo embaixador na forma de memorandos. Cada conversação ocorreu de forma
separada, entre os oficiais de cada uma das armas (Marinha, Exército e Aeronáutica), e,
segundo Berle, não contou com a presença de um membro da embaixada. O conteúdo das
conversas anunciava as intenções dos governos americano e brasileiro em investir na
modernização e incremento das Forças Armadas brasileiras. Neste momento, as tropas da
FEB e da FAB já retornavam de sua campanha vitoriosa na Itália, e as expectativas quanto às
relações de cooperação entre Brasil e Estados Unidos no pós-guerra eram promissoras
(FERRAZ, 2012). No entanto, as considerações do embaixador mostravam-se muito mais
preocupadas com a real capacidade do Brasil em investir e manter Forças Armadas de poderio
e abrangência hemisférica.
Neste sentido, em seus três pareceres, Berle aponta que as expectativas iniciais são
além do que o Brasil precisa e do que seria interessante para o seu desenvolvimento
econômico. O embaixador admite que as melhorias propostas na Marinha, Exército e
Aeronáutica nacionais colocariam o Brasil como a maior potência militar da América do Sul,
em posição de defender e assegurar a paz no hemisfério, cooperando com a política de
segurança hemisférica dos EUA (PECEQUILO, 2011). Berle, no entanto, ressalta as
limitações econômicas do Brasil e a necessidade de privilegiar o desenvolvimento econômico
interno e a utilização civil dos recursos nacionais. Destaca principalmente a necessidade de
investimento em grandes obras de infraestrutura, como transportes ferroviários e rodoviários,
comunicações e sistema educacional. Quanto aos equipamentos solicitados para as Forças
Armadas, considera superestimadas tais requisições, recomendando a aquisição do mínimo
necessário à manutenção da segurança hemisférica, todos padronizados de acordo com as
167
Documentos: (465) The Ambassador in Brazil (Berle) to the Secretary of State, 26/07/1945; (466) The
Ambassador in Brazil (Berle) to the Secretary of State, 26/07/1945; e (467) The Ambassador in Brazil (Berle) to
the Secretary of State, 27/07/1945. FRUS: Diplomatic Papers, 1945, The American Republics, Volume IX.
Washington: United States Government Printing Office, 1969. Disponível em:
<https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1945v09/ch22>
referências americanas – sob o risco de o Brasil sofrer influência estrangeira nociva, além de
receber equipamentos obsoletos.
A correspondência da Embaixada também deixa transparecer a vontade desta em
limitar a atuação dos militares nas relações políticas com o Brasil. Adolf Berle, na
correspondência citada anteriormente, demonstra preocupações quanto ao controle militar de
elementos vitais para a vida civil, como as comunicações aéreas, e quanto à tendência entre os
oficiais americanos designados para missões de treinamento em transformar seus pelotões em
“pequenos exércitos”. Não por acaso, para evitar estes frequentes conflitos de jurisdição, o
Departamento de Estado americano e os departamentos da Guerra e da Marinha travaram
discussões que foram sintetizadas pela “Declaração de Procedimentos de Conduta em
Conversações Bilaterais de Pessoal Militar na América Latina”168, encaminhado para os
representantes militares e diplomáticos dos EUA na América Latina em dezembro de 1944.
Este documento, composto de sete princípios reguladores, deveria formar a base para o
relacionamento entre os representantes diplomáticos e militares, chamando a atenção para a
responsabilidade do Departamento de Estado nas relações exteriores e reforçando os direitos e
deveres dos embaixadores americanos. Segundo os princípios, o embaixador deveria: estar
presente ou representado em qualquer discussão, sendo integralmente informado de seus
desenvolvimentos; responsabilizar-se pelos arranjos preliminares e por qualquer contato
político; ter poder de veto ou de bloqueio a qualquer resolução, sujeito a revisão pelos
Departamentos; se abster de dar direcionamentos técnicos a assuntos específicos militares ou
navais. Para regular as relações entre o embaixador e os oficiais militares, ficavam designados
os Departamentos de Estado e da Guerra dos Estados Unidos.
Desta forma, a documentação diplomática consultada demonstra as transformações nos
parâmetros iniciais de cooperação militar dos Estados Unidos com o Brasil no pós-guerra. O
clima inicial de otimismo e altas expectativas é logo pragmaticamente substituído pelas
considerações da real capacidade e necessidade das repúblicas latino-americanas em
assumirem encargos de defesa tão elevados. Em tempos em que o continente europeu e
asiático eram objetos das maiores preocupações por parte dos EUA, a América Latina era tida
como relativamente “segura”, e os temores dos membros do serviço diplomático eram muito
mais de garantir sua participação e controle nas conversações de assuntos militares, em vistas
à preocupante autonomia dos oficiais encarregados.

168
Documento: (106) Memorandum by the Acting Director, Office of American Republic Affairs (Armour), to
the Secretary of State, 07/12/1944. In: U. S. DEPARTMENT OF STATE. FRUS: Diplomatic Papers, 1944, The
American Republics, Volume VII. Washington: United States Government Printing Office, 1967. Disponível em:
<https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1944v07/d106>.
Contudo, as insatisfações de oficiais militares e do governo brasileiro com o aparente
“descaso” do governo americano quanto à cooperação militar não tardaram em aparecer.
Procurado pelo coronel João Bina Machado em 28 de dezembro de 1945, o encarregado de
negócios da embaixada americana no Brasil (Daniels), que substituía o embaixador Berle,
alertou o Departamento de Estado via telegrama que Machado se encontrava “muito assustado
com o crescimento de sentimentos antiamericanos em altos escalões militares do Brasil”169.
De acordo com o coronel, o sentimento entre os círculos militares era de que os EUA tratavam
o Brasil como um “irmão menor”, duvidando das intenções daqueles em realmente discutirem
a política de cooperação. O ressentimento, segundo Bina Machado, tinha duas motivações:
primeiro, os três memorandos contendo as conversações entre os altos oficiais militares,
relativos à cooperação dos EUA com a modernização das Forças Armadas brasileiras,
enviados aos EUA no início do ano, não foram nem notificados de seu recebimento pelo
governo americano – e muito menos respondidos. A segunda motivação alegada era que dois
oficiais militares americanos designados para a JBUSMC haviam chegado ao Brasil antes da
apreciação e aprovação formal por parte do Ministério das Relações Exteriores.
Urgindo o Departamento de Estado a tomar atitudes imediatas, sob o risco de
prejudicar toda a futura cooperação militar com o Brasil, Daniels solicita atenção à
comunicação constante do governo americano com o Brasil via JBUSMC e o envio imediato
ao Brasil dos carregamentos de armas solicitados. Três dias depois, o Secretário de Estado
James Byrnes respondeu ao telegrama de Daniels170, reafirmando o compromisso americano
de cooperação com o Brasil e o desejo de manter suas relações de forma “íntima e amigável”,
prometendo que mobilizaria os responsável pelos assuntos americanos e o embaixador
americano no Brasil – ausentes, em férias de fim de ano – para entregar uma resposta mais
completa e satisfatória aos oficiais brasileiros. Secretamente, Byrnes informou Daniels de que
“certos elementos, talvez tanto no Brasil quanto em Washington, podem estar causando
problemas nesta questão”, admitindo possíveis erros de considerações, mas solicitando que
“em qualquer evento, será bem-vinda a franca e confidencial expressão de suas próprias

169
Documento: (468) The Chargé in Brazil (Daniels) to the Secretary of State, 28/12/1945. In: U. S.
DEPARTMENT OF STATE. FRUS: Diplomatic Papers, 1945, The American Republics, Volume IX.
Washington: United States Government Printing Office, 1969. Disponível em:
<https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1945v09/d468>.
170
Documento: (469) The Secretary of State to the Chargé in Brazil (Daniels), 31/12/1945. In: U. S.
DEPARTMENT OF STATE. FRUS: Diplomatic Papers, 1945, The American Republics, Volume IX.
Washington: United States Government Printing Office, 1969. Disponível em:
<https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1945v09/d469>.
visões”. O incidente seria apenas uma das expressões do resfriamento das relações militares
entre os dois países nos anos seguintes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da documentação disponível e a comparação com a bibliografia sobre o tema
demonstram que as relações militares entre Brasil e Estados Unidos no pós-Segunda Guerra
passaram de um momento inicial de euforia e altas expectativas para uma condição mais
realista, onde as projeções iniciais de incremento das Forças Armadas brasileiras foram
repensadas. As idas e vindas das conversações diplomáticas e entre os escalões militares dos
dois países ajudam a compreender a reconfiguração do sistema internacional que se opera
neste momento, quando a polarização entre os blocos capitalista e socialista coloca a América
Latina em segundo plano, pelo menos até o final da década de 1950. Análises mais
aprofundadas sobre o tema poderão revelar, posteriormente, os impactos desta transformação
na política interna dos países latino-americanos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DAVIS, Sonny B. As relações militares entre o Brasil e os Estados Unidos no Século XX. In:
MUNHOZ, Sidnei J.; SILVA, Francisco Carlos Teixeira da (orgs.). Relações Brasil-Estados
Unidos: séculos XX e XXI. Maringá: Eduem, 2011, p. 361-408.
FERRAZ, Francisco César Alves. A guerra que não acabou: a reintegração social dos
veteranos da Força Expedicionária Brasileira (1945-2000). Londrina: Eduel, 2012.
OLIVEIRA, Dennison. Aliança Brasil-EUA: nova história do Brasil na Segunda Guerra
Mundial. Curitiba: Juruá, 2015.
PECEQUILO, Cristina Soreanu. A Política Externa dos Estados Unidos: continuidade ou
mudança? 3.ed. ampl. e atual. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2011.
A MODERNIZAÇÃO NAVAL ARGENTINA NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Ludolf Waldmann Júnior - Doutor em Ciência Política pela UFSCar

Palavras-chave: Poder Naval; Segunda Guerra Mundial; Modernização naval - Argentina.

A neutralidade da Argentina durante a Segunda Guerra Mundial foi bastante polêmica,


gerando constantes embates e tensões tanto no cenário político doméstico como no quadro das
relações exteriores, ocorridos num período de destacada instabilidade política no país. Ao
insistir na neutralidade, mesmo após a entrada dos Estados Unidos no conflito global, a
Argentina acabou sendo isolada do restante da comunidade das repúblicas americanas,
passando a sofre pressão contínua de Washington para forçar uma revisão de sua política
externa e assegurar alinhamento sob a órbita norte-americana.
Os norte-americanos utilizaram uma série de mecanismos para forçar um alinhamento
argentino sob sua órbita, que incluíam pressão diplomática, embargos e o uso de
transferências de armas e outros equipamentos bélicos. Como diversos estudiosos apontaram
(POTASH, 1981; ROUQUIÉ, 1981, 1982; ESCUDÉ e CISNEROS, 2000; PARADISO, 2005;
SCHEININ, 2007), a questão dos armamentos tornou-se um ponto sensível na política
argentina, tanto no âmbito doméstico como externo, particularmente diante do deliberado
apoio norte-americano, via lend-lease, à modernização e fortalecimento das forças armadas
dos rivais dos platinos, Brasil e Chile, que ao final da guerra provocou uma mudança
significativa no equilíbrio de poder sul-americano.
Considerando a relevância da questão dos armamentos para o desenvolvimento da
política interna e externa argentina durante a guerra, nosso objetivo é compreender quais
foram os planos de modernização da Armada Argentina neste período. De modo geral, apesar
de salientar a importância da questão dos armamentos, a literatura sobre o período não cita
nenhum dos projetos de modernização, nem apresenta quais eram as demandas de material
bélico das forças armadas argentinas. É interessante destacar que mesmo a literatura
especializada na temática naval deixa este assunto de lado.171 Assim, buscamos elucidar parte
desta lacuna a partir da análise da documentação produzida pela marinha argentina na época e

171
O capítulo específico sobre o período na obra Historia Maritima Argentina (1991), editada pela própria
Armada, não apresenta nem os planos e nem uma discussão muito extensa sobre o seu papel na guerra. Outros
autores, como Scheina (1987), também seguem essa tendência. Uma das poucas exceções é o trabalho de
Arguindeguy e Rodríguez (1995).
que se encontra disponível, procurando entender os planos de renovação dentro dos contextos
estratégicos e políticos em que foram apresentados.

A Argentina e a Armada em 1939


Quando a guerra teve início no continente europeu, a Argentina vivia o período
chamado Década Infame. Durante aquele decênio, o país foi dominado politicamente pela
chamada Concordância, uma aliança de políticos conservadores e radicais antipersonalistas172
que se mantinham no poder graças ao uso da fraude eleitoral. Ainda que eleito por esta
coalizão em 1938, o novo presidente Roberto Ortiz, um reformista liberal talvez em busca de
maior autonomia política, passou a dar centralidade à retomada da lisura do processo eleitoral,
criando atritos com os setores oligárquico-conservadores e com seu antecessor, o general
Agustín Justo (ROUQUIÉ, 1981).
As forças armadas tornaram-se protagonistas da vida política argentina naquela década
e Ortiz foi o primeiro civil na presidência após oito anos sob os governos dos generais José
Félix Uriburu (que assumiu após liderar um golpe militar em 1930) e Justo. Este período
inaugurou uma nova fase histórica das relações civil-militares no país, já que ambos
presidentes-generais, em especial Justo, buscaram cooptar o exército e demais forças militares
argentinas e transformá-las em um dos pilares de sustentação de seus governos. Para isso,
empregaram fizeram uma série de medidas, incluindo as reformas administrativas, aumentos
de soldos, promoções de caráter político e na aprovação de recursos para aquisições de
equipamentos bélicos (POTASH, 1981; ROUQUIÉ, 1981).
O apoio aos planos de renovação material militar também era justificado pela política
externa daquele período. Em âmbito internacional, a Argentina gozava de grande prestígio
internacional e um papel de liderança regional, vislumbrado pelas elites dirigentes do país
como resultado de sua grande prosperidade econômica e qualidades raciais de seu povo. Essa
autopercepção de grandeza, que muitas vezes assumia contornos irrealistas quanto ao poder e
influência do país no cenário internacional, era acompanhada por um relacionamento
cauteloso frente aos Estados Unidos. Os dois países tinham pontos de atritos antigos em suas
relações, particularmente no protecionismo econômico norte-americano e nos temores
argentinos quanto às intenções imperialistas de Washington. Essas características foram

172
Os antipersonalistas eram os dissidentes da Unión Cívica Radical (UCR) que se opuseram à liderança de
Hipólito Yrigoyen, presidente da Argentina pelo partido em 1916-1922 e 1928-1930. A principal figura desse
grupo era o também ex-presidente Marcelo Torcuato Alvear (1922-1928).
expostas durante as conferências pan-americanas que ocorreram na década, marcadas pelo
embate entre a diplomacia argentina e norte-americana (PARADISO, 2005; ESCUDÉ e
CISNEROS, 2000).
De qualquer maneira, a Armada argentina beneficiou-se deste processo, ainda que
politicamente ela tivesse importância secundária. Desde a década de 1920 a esquadra
argentina passou por um ambicioso processo de renovação naval, que resultou naquele
momento na modernização de seus dois encouraçados Rivadavia e dos quatro
contratorpedeiros das classes Catamarca e Córdoba, além da aquisição de dois cruzadores
pesados Almirante Brown, dois contratorpedeiros Cervantes, três da classe Mendoza e três
submarinos Santa Fe. A expansão continuou durante o governo Justo, que aprovou a
incorporação de mais um cruzador da classe La Argentina e sete contratorpedeiros da classe
Buenos Aires, além de unidades menores (DESTÉFANI, 1991; ARGUINDEGUY e
RODRÍGUEZ, 1995). Essa esquadra era muito superior a todos os demais países sul-
americanos, ainda que fora incorporada após um verdadeiro sacrifício nacional (SCHEINA,
1988).
Essas ambiciosas aquisições foram norteadas pela estratégia naval do país, cujo
panorama tinha influências do pensamento de Alfred Mahan e Raoul Castex (SAHNI, 1991) e
era baseada nas ideias elaboradas pelo almirante Segundo Storni (1967) ainda durante a
Grande Guerra. Segundo ele, a principal preocupação da política naval argentina deveria ser a
proteção das linhas de comunicações marítimas vitais, já que o comércio que passava por elas
era fundamental para a prosperidade nacional. O grande desafio deste objetivo, contudo, era o
fato de que essas rotas passavam em águas brasileiras e chilenas, justamente os dois maiores
rivais regionais e possíveis inimigos de Buenos Aires. Neste sentido, Storni sugeria duas
ênfases para a política naval argentina: a proteção estratégica dos principais portos do país, no
rio da Prata e em Bahía Blanca, e posse de uma poderosa esquadra de batalha com grande raio
de ação, capaz de operar e proteger as linhas marítimas vitais mesmo em águas de seus rivais
sul-americanos. Essa perspectiva implicava que a frota argentina fosse a mais poderosa da
região, porém Storni rejeitava a adoção de two power standard; em seu lugar, propunha um
modelo baseado num princípio de “equilíbrio”, no qual a esquadra de seu país deveria ser
capaz de derrotar “isoladamente cada uma das frotas vizinhas e tornar muito problemática sua
junção em caso de guerra” (STORNI, 1967, p.113).
Da invasão da Polônia à guerra na América (1939-1942)
O início da guerra na Europa, em setembro de 1939, foi acompanhado de uma posição
cautelosa e neutra da Argentina frente ao conflito. Nesta perspectiva, houve uma notável
posição colaborativa de Buenos Aires com Washington nos primeiros meses da contenda, uma
convergência pouco comum na época graças às questões internas nos dois países que
favoreciam posições externas similares (SCHIENIN, 2007).
A experiência da Batalha do Rio da Prata, em dezembro de 1939, deixou marcas
importantes na visão argentina, que naquele momento passaram a duvidar da capacidade
norte-americana de assegurar a zona de neutralidade proclamada pela Conferência do Panamá
alguns meses antes. A imagem da luta dos cruzadores britânicos e alemão no estuário do Prata
deixou uma vívida imagem em lideranças militares e civis argentinas de que o país deveria
contar apenas com seus próprios recursos para a defesa de sua neutralidade (ROUQUIÉ,
1981).
Esse processo acabou acelerado com a surpreendente derrota francesa, em junho de
1940, que acelerou o processo de elaboração de planos de reequipamento naval e resultou na
aprovação de um crédito de 450 milhões de pesos para a marinha. A proposta final, deliberada
em julho, previa um plano de aquisições que incluíam três cruzadores ligeiros, quatro
contratorpedeiros, seis submarinos, vinte lanchas-torpedeiras e 220 aviões. Essa proposta
fundamentava-se na necessidade de renovar a defesa costeira e fluvial, adquirindo as últimas
unidades previstas pelo programa naval anterior e substituindo os navios mais antigos
(canhoneiras/encouraçados de rio classe Independencia, adquiridos ainda no século XIX, bem
como canhoneiras Rosario e os quatro contratorpedeiros classe Catamarca e Córdoba,
incorporados na década de 1910) por embarcações novas.173
Cabe ressaltar que esta proposta era vista como o mínimo necessário na visão da
Armada, meramente para remediar a situação regional do país principalmente em relação aos
seus dois principais rivais e possíveis adversários, Brasil e Chile, dando continuidade ao
pensamento de defesa existente nas décadas anteriores. Neste sentido, a marinha tomava em
conta que, dada a correlação de forças militares regionais, a hipótese mais provável de
conflito era entre Buenos Aires e uma coalização Rio de Janeiro-Santiago, ainda que agora já
tomasse a possibilidade de guerra contra uma potência extracontinental não definida.

173
Departamento de Estudios Históricos Navales (DEHN). Caixa 211, Leyes de Armamentos/Proyectos Leyes
Armamentos 1925, 1940-1, 1961. Proyecto de Ley, 2-7-1940. Os parágrafos seguintes foram baseados no
conteúdo deste projeto.
Independente de qual adversário tivesse que lutar, a Armada considerava essencial
executar nove tipos operações destinadas à proteção de seus portos e linhas de comunicação
marítimas fundamentais para o esforço de guerra: 1) impedir o transporte de tropas brasileiras
via mar, até a zona de conflito no Rio Grande do Sul; 2) a vigilância das bases inimigas no
Atlântico e Pacífico; 3) o ataque ao comércio adversário em ambos oceanos; 4) proteção das
linhas marítimas com Europa e Estados Unidos; 5) proteção das linhas de comunicação
marítimas no litoral argentino; 6) proteção da navegação fluvial; 7) defesa do Prata e bases
navais; 8) operações combinadas com o exército, particularmente no estratégico Estreito de
Magalhães, bem como transporte de tropas; 9) destruição das frotas inimigas, algo visto como
o objetivo essencial do poder naval argentino. Como se pode observar, ainda que os planos
estivessem tomando em conta também uma potência extracontinental, quase todo o
planejamento naval argentino dava continuidade à percepção das décadas anteriores, marcado
também pela influência do pensamento de Mahan (como na ênfase na batalha decisiva contra
a esquadra inimiga e a proteção das linhas de comunicação).
Para ter uma força adequada para realizar todas essas operações, a Armada
considerava ser necessária uma esquadra maior do que a existente e as aquisições
contempladas, que deveria ser composta por três encouraçados, um porta-aviões, três
cruzadores pesados, quatro cruzadores ligeiros, vinte e oito contratorpedeiros, dezoito
submarinos, quatro monitores, duas canhoneiras, vinte lanchas-torpedeiras e “um bom número
de barcos auxiliares”. Essa força era vislumbrada como a esquadra ideal, que seria capaz de
responder a qualquer ameaça em nível regional e criar uma frota adequada para fazer frente a
qualquer força extracontinental.
Enquanto o programa naval argentino era discutido e aprovado, ocorreram novas crises
políticas no país. Neste sentido, é provável que o próprio empenho de Ortiz em aprovar
recursos para a esquadra do país era uma sinalização para fortalecer seu governo frente às
críticas dos setores conservadores, irritados com as reformas políticas-eleitorais propostas, e
os setores nacionalistas autoritários, que não só se opunham ao presidente liberal no plano
interno como também em seus acenos ao campo Aliado. Doente, Ortiz acabou sendo obrigado
a deixar a presidência ao seu vice em julho de 1940. Ramón Castillo, um representante dos
setores oligárquicos e conservadores, e que se mostrava contrário ao fim do sistema da fraude
eleitoral. Ortiz ainda tentaria influenciar o governo nos meses seguintes, porém ficou cada vez
mais debilitado até falecer em 1942 (POTASH, 1981; ROUQUIÉ, 1981).
O governo Castillo ascendeu numa posição política delicada, já que o vice-presidente
não tinha uma base muito sólida em meio à crise. Neste sentido, buscou apoio em setores
diversos, aproximando-se de sua base conservadora ao defender a manutenção do sistema de
fraude eleitoral e uma estrita neutralidade no plano externo, apoiada pelos setores
agroexportadores que valorizavam os vínculos europeus, em especial com a Grã-Bretanha,
que creditavam à neutralidade a proteção e manutenção do comércio transatlântico. De outro
lado, o presidente também se aproximou dos setores nacionalistas autoritários e setores
militares, buscando cortejá-los através da liberação de recursos para renovação de
equipamento bélico (POTASH, 1981; ROUQUIÉ, 1981).
Neste cenário, houve uma ampliação das discussões sobre o programa de renovação
naval, que então foi ampliado para um valor de 712 milhões de pesos e contaria com a
previsão de aquisição de um encouraçado e modernização de bases navais em adição ao plano
de aquisições anterior. Em setembro de 1941, o governo conseguiu a aprovação da lei 12.690,
que estabeleceu o novo programa naval argentino.174 Existia uma percepção de certa urgência
na proposta desta nova legislação, já que setores no governo e na marinha entendiam que o
conflito estava próximo de seu final e queriam evitar possíveis dificuldades no pós-guerra.175
Não obstante, conforme os desenvolvimentos da guerra prosseguiam e a questão do
fornecedor dos armamentos desejados ganhou novos contornos. Ainda naquele ano houve
uma sondagem junto ao governo alemão sobre as possibilidades, tendo-se a ideia de que a
vitória nazista na Europa se encontrava próxima, porém efetivamente o único país em
condições de fornecer os armamentos eram os Estados Unidos. Se de um lado Washington
ainda se encontrava em pleno processo de seu próprio rearmamento, de outro lado o país tinha
aprovado, em março, o Lend-Lease Act, que autorizava a venda de equipamentos militares a
custos simbólicos. A grande questão, para os argentinos, era de que o acesso a estes recursos
dependia da adoção de um alinhamento prévio aos Estados Unidos, algo que dividia
profundamente as opiniões na Argentina já que implicaria no abandono da sua neutralidade e
era um tema muito sensível no país (SCHIENIN, 2007; ESCUDÉ e CISNEROS, 2000).
As primeiras conversas com os norte-americanos ocorreram ainda em 1940, porém
naquele momento elas não resultaram em nenhum avanço por causa das desconfianças
existentes, particularmente entre os militares argentinos que relutavam em tomar uma atitude
mais incisiva na cooperação de defesa, pois entendiam que tal decisão violaria a neutralidade
do país. As discussões bilaterais somente voltaram a ocorrer no ano seguinte, já diante da
aprovação do lend-lease e da disposição norte-americana em oferecer material bélico para o

174
DEHN. Caixa 211, Leyes de Armamentos/Proyectos Leyes Armamentos 1925, 1940-1, 1961. Ley 12.690,
aprobada en 9-9-1941.
175
DEHN. Caixa 211, Leyes de Armamentos/Proyectos Leyes Armamentos 1925, 1940-1, 1961. Proyecto de ley,
11-11-1940.
restante do continente. Assim, em agosto, as negociações foram retomadas e foi decidido que
uma missão militar-naval argentina, liderada pelo general Lápez e o almirante Sabá Sueyro,
que iria à Washington ainda naquele ano para acertar a transferência de material bélico.176
Após atrasos, a missão chegou ao seu destino em dezembro de 1941, já em meio ao caos
resultante do ataque japonês à Pearl Harbor e a entrada formal dos Estados Unidos na
Segunda Guerra Mundial (ESCUDÉ e CISNEROS, 2000).

Argentina em tempos de crise, 1942-1945


Diante das resoluções tomadas nos encontros pan-americanos anteriores, em janeiro de
1942 teve início uma nova conferência pan-americana, no Rio de Janeiro, no qual os Estados
Unidos requisitaram que todo o continente rompesse relações com o Eixo como forma de
demonstrar a solidariedade e união hemisférica. Não obstante, a conferência mostrou-se
polêmica, já que tanto a Argentina como o Chile recusou-se a adotar a medida, obrigando o
departamento do estado a adotar como posição apenas a recomendação de rompimento de
relações como forma de manter a unanimidade americana. Como consequências, a partir de
então os norte-americanos passaram a isolar a Argentina do restante do continente, iniciando
um longo embargo econômico-político que durou, em diferentes intensidades, até 1949
(ESCUDÉ e CISNEROS, 2000).
O resultado imediato dessa nova política foi o fracasso da missão Lápez-Sueyro e a
sistemática negação do acesso aos recursos do lend-lease à Argentina ao mesmo tempo em
que os Estados Unidos anunciavam a ofertas generosas de equipamento aos dois maiores
rivais regionais dos platinos, Brasil e Chile, como forma de pressionar a Buenos Aires a acatar
o alinhamento com os norte-americanos e abandonar a sua neutralidade. Não obstante, a
pressão de Washington acabou tendo um efeito contrário, fortalecendo os setores pró-
neutralidade (que incluíam grupos conservadores, radicais intransigentes e os nacionalistas
autoritários civis e militares) e levando a uma defesa cada vez mais insistente desta posição
(POTASH, 1981; ROUQUIÉ, 1981).
Neste sentido, o resultado prático da pressão foi a retomada de conversas secretas entre
fevereiro e outubro com os alemães, vislumbrando aquisições de material bélico germânico
através de um país neutro como Espanha e Suécia. A Armada entrou em contato com o adido
naval alemão, que foi consultado sobre a possibilidade de fornecimento de aviões,

176
Considerando que os planos de renovação naval foram aprovados, com certa urgência, em setembro, podemos
presumir que as requisições da Armada nos Estados Unidos compreendiam as aquisições estabelecidas pelo novo
programa naval.
submarinos, munições e sobressalentes; o oficial nazista tomou notas e repassou as
informações para o comando da Kriegsmarine, porém apesar de mostrarem-se favoráveis ao
negócio, os alemães apontaram que esse material não poderia ser oferecido por causa das
demandas da própria força no conflito (POTASH, 1981).
A entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em agosto de 1942, contribuiu para
ampliar a pressão sobre a Argentina em nível externo e a controvérsia interna quanto à
posição da neutralidade, em especial diante do claro rompimento de Justo com o governo e
seu explícito apoio ao Rio de Janeiro. Neste aspecto, a retórica do isolamento e da negação de
acesso aos recursos do lend-lease passaram a gerar grandes insatisfações em setores militares
argentinos, que se preocupavam com o declínio relativo e absoluto do poderio militar do país
(POTASH, 1981; ROUQUIÉ, 1982).
Diante da pressão externa, das insatisfações diversas dos setores militares em relação
ao governo Castillo e sua insistência na nomeação do impopular candidato conservador
Robustiano Patrón Casas, uma coalização de oficiais liberais (radicais), católicos,
nacionalistas autoritários e conservadores improvisou um golpe de estado em junho de 1943,
dando início a um novo regime ditatorial de caráter eminentemente castrense sob o general
Pedro Ramírez. Diante desse caráter amplo, não havia uma coesão do gabinete quanto à
neutralidade argentina, com parte dos ministros apoiando o rompimento de relações como
forma de obter o auxílio econômico e militar norte-americano, enquanto parte mostrava-se
irredutível, considerando esta medida como uma afronta e coerção norte-americana à
soberania argentina (POTASH, 1981; ROUQUIÉ, 1982).
Nesta disputa, uma das principais figuras do campo pró-aliados era o almirante
Segundo Storni, que se tornou chanceler no novo governo. Numa aparente tentativa de
fortalecer a linha pró-aliada no governo, Storni decidiu enviar uma carta à Hull no qual
requisitava a transferência de recursos do lend-lease à Argentina, pedindo que ela fosse
tratada de modo consciente com seu peso e papel no sistema de poder sul-americano. A dura
resposta de Hull, que humilhou o colega argentino, teve como repercussão a derrocada do
setor militar mais moderado e o fortalecimento do grupo nacionalista autoritário (POTASH,
1981; ROUQUIÉ, 1982).
Nos meses seguintes, houve a aprovação de novos recursos para renovação militar
argentina, incluindo o decreto 9.006, de setembro, que modificou a lei anterior e aumentou o
seu valor em mais 540 milhões de pesos, estabelecendo a aquisição de dois porta-aviões, oito
contratorpedeiros, doze submarinos, 220 aviões, armamentos antiaéreos e material necessário
para construção de fábricas militares.177 Cabe ressaltar que a ênfase dada nos armamentos
aéreos reflete a experiência e sucesso destes armamentos na guerra, tanto no Atlântico como
no Pacífico, no qual os porta-aviões assumiam um papel cada vez mais importante em
detrimento dos antigos encouraçados.
Diante da recusa sistemática norte-americana em fornecer auxílio militar, lideranças
militares do setor autoritário nacionalista novamente se voltaram para os alemães numa
tentativa arriscada de obter novos armamentos, resultando no caso Helmuth.178 Combinado
com o envolvimento argentino no golpe de estado na Bolívia em dezembro de 1943, estes
eventos enfraqueceram o núcleo mais duro dos nacionalistas autoritários, levando à queda de
vários representantes desse setor e coagindo o presidente a finalmente romper relações com
Eixo em janeiro de 1944. A decisão de Ramírez mostrou-se polêmica, corroendo sua base de
sustentação e levou à sua deposição no mês seguinte, substituído pelo general Edelmiro
Farrell (POTASH, 1981; ROUQUIÉ, 1982).
Os Estados Unidos voltaram a pressionar o novo governo, recusando-se a reconhecê-lo
e dando início a um período onde a Argentina passou a ser vista como pária e ameaça
regional. Ainda que houvesse certas divergências dentro de Washington – as forças armadas
norte-americanas divergiam do departamento de estado quanto à pressão política e negação
sistemática de recursos militares para os argentinos – a renovada pressão foi acompanhada de
novas ofertas de recursos, via lend-lease, para os tradicionais rivais dos platinos, acirrando as
tensões internas e externas relacionadas com o armamento desses países (ESCUDÉ e
CISNEROS, 2000).
Assim, a questão dos armamentos continuou a ser um assunto fundamental na política
interna argentina. Em setembro de 1944, o decreto 24.220 renovou os planos e valores para as
aquisições navais,179 porém efetivamente a Armada não tinha onde buscar as unidades
desejadas; naquela época, as forças armadas argentinas tinham recebido mais de 900 milhões
de pesos somente desde o golpe de 1943, porém tinham gasto apenas 120 milhões de pesos
(POTASH, 1981). Um meio vislumbrado como alternativa era a fabricação do equipamento

177
DEHN. Caixa 211, Leyes de Armamentos/Proyectos Leyes Armamentos 1925, 1940-1, 1961. Decreto
9.006/43, de 16-9-1943.
178
No final de 1943 a cúpula do regime argentino, então dominada pelos nacionalistas autoritários, decidiu
enviar um oficial de marinha, Osmar Helmuth, para negociar secretamente a aquisição de armamentos com os
alemães. Durante a viagem até a Europa, Helmuth, que também era um agente nazista, acabou preso pelos
britânicos em Trinidad, confessando a real intenção de sua viagem. Os Estados Unidos então utilizaram a ameaça
de divulgação dessa história caso o governo Ramírez não aceitasse romper imediatamente as relações com o
Eixo, o que ocorreu pouco depois (POTASH, 1981).
179
DEHN. Caixa 211, Leyes de Armamentos/Proyectos Leyes Armamentos 1925, 1940-1, 1961. Decreto
21.249/44, 7-8-1944.
bélico em solo pátrio, algo que ganhou prioridade durante o período em que o coronel Juan
Perón assumiu a pasta da guerra. Neste caso, mais uma vez, houve contatos com os alemães
entre abril e setembro em busca de planos e licenças para produção de material bélico. Apesar
de alguns sucessos na criação de protótipos, a produção interna simplesmente não tinha como
garantir a quantidade de material necessário (ROUQUIÉ, 1982; POTASH, 1981).
A Armada, por sua vez, tinha iniciado um processo de desenvolvimento de suas
capacidades industriais desde a década de 1930 e, após o golpe de 1943, deu passos
importantes para o estabelecimento de um estaleiro na base de Río Santiago e o início de um
momento de intensa atividade. Em 1938 foi autorizada a construção de quatro navios patrulha
da classe King, porém a falta de materiais necessários acabou impedindo que os dois
primeiros barcos ficassem prontos durante a guerra (ARGUINDEGUY e RODRÍGUEZ,
1995). No plano externo, houve novas buscas por contratorpedeiros e pequenas unidades,
particularmente através da aquisição na Espanha, Portugal e Suécia – onde foi criada inclusive
uma comissão naval em 1945180 –, mas em nenhuma dessas negociações prosperou.181
A situação começou a mudar apenas em finais de 1944, quando uma série de
alterações nos quadros políticos da Argentina (queda dos setores mais à direita e consolidação
da ascensão de Perón) e nos Estados Unidos (particularmente, na substituição de Cordelll Hull
por Edward Stettinius), além de uma crescente pressão latino-americana que insistia na
reincorporação de Buenos Aires dentro do quadro de solidariedade continental tendo em vista
o pós-guerra, abriu espaço para um novo diálogo e o abandono da posição norte-americana
mais coercitiva. Como resultado dessa retomada das negociações, a Argentina finalmente
declarou guerra ao Eixo em março de 1945, às vésperas do fim do conflito, algo que permitiu
que o embargo fosse afrouxado e o país finalmente pudesse receber os primeiros recursos
lend-lease (ESCUDÉ e CISNEROS, 2000; PARADISO, 2005).
O clima de maior colaboração, contudo, durou apenas alguns meses, já que novas
mudanças no governo norte-americano levaram ao retorno da linha dura diplomática, em
especial com a decisão da escolha de Spruille Braden como embaixador em Buenos Aires,
bem como pela repressão realizada pelo governo Farrell contra as manifestações pró-
democracia, que novamente acenderam alertas quanto à uma suposta inspiração e natureza
fascista do governo argentino. O novo imbróglio, que duraria todo o ano de 1945, acabaria
levando à retomada do embargo e ao acordo de cavalheiros dos Estados Unidos e Grã-
Bretanha que impedia que estes países fornecessem armamentos aos argentinos (ESCUDÉ e

180
Memoria del Ministerio de Marina, 1946.
181
The National Archives, Foreign Office (FO) 371/44709. Political situation in Argentina, 31-4-1945.
CISNEROS, 2000; SCHEININ, 2007), enquanto em Buenos Aires a crise no governo Farrell
acirrou-se levando aos conturbados episódios de outubro que terminaram no retorno triunfante
de Perón como candidato favorito para as eleições presidenciais do ano seguinte (POTASH,
1981; ROUQUIÉ, 1982).

Considerações finais
A experiência argentina durante a Segunda Guerra Mundial foi cercada de
controvérsias e dificuldades, resultantes tanto das disputas internas no país como da sua
conturbada relação com os Estados Unidos em âmbito externo.
Neste breve artigo, buscamos apontar e discutir brevemente os planos de
modernização naval do país, buscando contextualizá-lo com a conjuntura política doméstica e
externa em que foram preparados. As propostas de 1940 e 1941 representam uma
continuidade do pensamento de defesa argentino, focando-se na disputa regional com Brasil e
Chile, bem como a ênfase de navios de superfície. Em ambas, questões de política doméstica
tiveram peso, considerando os projetos de Ortiz e Castillo e o peso das forças armadas
argentinas no jogo político argentino. A proposta de 1943, renovada no ano seguinte, já traduz
as experiências da guerra ao dar mais ênfase para armamentos aéreos. Aqui, as questões de
política doméstica também se provaram importantes: a própria decisão de aprovar estava
relacionada com a controvérsia da questão dos armamentos, um elemento chave nesse
momento para se entender o próprio posicionamento argentino quanto à sua neutralidade e a
própria emergência da ditadura militar de 1943.

Referências bibliográficas
ARGUINDEGUY, Pablo E.; RODRÍGUEZ, Horacio. Las fuerzas navales argentinas: historia
de la flota de mar. Buenos Aires: Instituto Browniano, 1995.
DESTÉFANI, Laurio H. La Armada Argentina (1923-1950). In: HISTORIA Marítima
Argentina, tomo IX. Buenos Aires: Departamento de Estudios Historicos Navales, 1991
ESCUDÉ, Carlos; CISNEROS, Andrés. Historia General de las Relaciones Exteriores de la
República Argentina. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 2000. Disponível online
em: http://www.argentina-rree.com/historia.htm.
PARADISO, José. Um lugar no mundo: a Argentina em busca de identidade internacional.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
POTASH, Robert A. El ejército y la política en la Argentina, 1928-1945: de Yrigoyen a
Perón. Buenos Aires: Sudamericana, 1981.
ROUQUIÉ, Alain. Poder militar y sociedad política en la Argentina: hasta 1943. Buenos
Aires: Emecé, 1981.
______. Poder militar y sociedad política en la Argentina: 1943-1973. Buenos Aires: Emecé,
1982.
SCHEINA, Robert L. Latin America: a naval history, 1810-1987. Annapolis: Naval Institute
Press, 1988.
SCHEININ, David. Argentina: The Closet Ally. In: LEONARD, Thomas M.; BRATZEL,
John F. (Eds.). Latin America during World War II. Lanham: Rowman & Littefield, 2007.

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