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Fernando da Silva Rodrigues

José Miguel Arias Neto


(ORGANIZADORES)

Anais do II SIMPÓSIO NACIONAL DE


HISTÓRIA MILITAR

Textos Completos

1ª Edição
Niterói
ASOEC - UNIVERSO
2017
ISBN 9788587879141

Anais do II SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA


MILITAR

Textos Completos

RIO DE JANEIRO

2017
II Simpósio Nacional de História Militar (x: 2017: Rio de Janeiro)

Textos Completos / Anais do II Simpósio Nacional de História


Militar. Organização: Paulo André Leira Parente, José Miguel
Arias Neto, Fernando da Silva Rodrigues, Francisco Eduardo Alves
de Almeida, Carlos André Lopes da Silva, Fernando Velôzo Gomes
Pedrosa, e Pierre Paulo da Cunha Castro - Rio de Janeiro:
Diretoria de Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha,
Escola de Guerra Naval, Escola de Comando e Estado Maior do
Exército, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro;
Niterói: Universidade Salgado de Oliveira; Londrina: Universidade
Estadual de Londrina, 2017.

Texto em português

ISBN 9788587879141
1. História Militar. 2. Teoria e Metodologia. 3. Historiografia. 4.
Política e Sociedade.
Anais do II SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA MILITAR

COMISSÃO ORGANIZADORA

Carlos Roberto Carvalho Daroz


Fernando da Silva Rodrigues
José Miguel Arias Neto
Paulo André Leira Parente
Ricardo Pereira Cabral

PROMOÇÃO
Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha
Escola de Comando e Estado Maior do Exército
Escola de Guerra Naval
Universidade Estadual de Londrina
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Universidade Salgado de Oliveira

APOIO
GT HISTÓRIA MILITAR – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA / SEÇÃO
RIO DE JANEIRO
GRUPO DE PESQUISA: HISTÓRIA MILITAR E FRONTEIRAS (UNIVERSO)
GRUPO DE PESQUISA: ESTUDOS CULTURAIS, POLÍTICA E MÍDIA (UEL)
LABORATÓRIO DE HISTÓRIA DO PODER E DAS IDEOLOGIAS (LAHISPI-
UFF)

Comissão Científica
Adriana Barreto de Sousa - Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro
Alair Figueiredo Duarte – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro
André Átila Fertig – Universidade Federal de Santa Maria
Carlos André Lopes da Silva - Diretoria de Patrimônio Histórico
e Documentação da Marinha
Dennison de Oliveira – Universidade Federal do Paraná
Fernando da Silva Rodrigues – Universidade Salgado de Oliveira
Fernando Velôzo Gomes Pedrosa - Escola de Comando e Estado
Maior do Exército / PPG em História Comparada - UFRJ
Francisco César Ferraz - Universidade Estadual de Londrina
Francisco Eduardo Alves de Almeida - Escola de Guerra Naval
José Miguel Arias Neto - Universidade Estadual de Londrina
Luiz Cláudio Duarte – Universidade Federal Fluminense
Marcello José Gomes Loureiro - Diretoria do Patrimônio
Histórico e Documentação da Marinha
Maurício Vicente Ferreira Júnior – Diretor do Museu Imperial –
IBRAM / IHGB / IHP
Manuel Rolph Cabeceiras - Universidade Federal Fluminense
Paulo André Leira Parente - Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro
Paulo Knauss - Diretor do Museu Histórico Nacional -
IBRAM/IHGB/UFF
Paulo Pereira Santos – Universidade da Força Aérea
Pierre Paulo da Cunha Castro - Diretoria de Patrimônio
Histórico e Documentação da Marinha
Ricardo Cabral - Escola de Guerra Naval
Rodrigo Turin - Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro
Vágner Camilo Alves - Universidade Federal Fluminense

Comissão Organizadora Executiva


Carlos Roberto Carvalho Daróz - Programa de Pós-Graduação em
História/Universidade Salgado de Oliveira
Edina Laura Nogueira da Gama - Diretoria do Patrimônio
Histórico e Documentação da Marinha
Jose Miguel Arias Neto – Universidade Estadual de Londrina
Marcelo Loureiro - Diretoria do Patrimônio Histórico e
Documentação da Marinha
Raquel Medeiros Deliberador – Universidade Estadual de Londrina
Régis Ribeiro Andrade - Escola de Comando e Estado Maior do
Exército
Wagner Luiz Bueno dos Santos - Diretoria de Patrimônio
Histórico e Documentação da Marinha / Programa de Pós-Graduação
em História - UFRJ

Secretaria
Bruno Lelis – Universidade Estadual de Londrina
Diana Peruci Vitor – Universidade Estadual de Londrina
Gabriel Ignacio Garcia – Universidade Estadual de Londrina
José Victor Joly – Universidade Estadual de Londrina
Lincon Gonçalves Jacomin – Universidade Estadual de Londrina
Luiz Filipe Negrão de Souza – Universidade Estadual de Londrina
Thiago Fernandes – Universidade Estadual de Londrina

Editores
Prof. Dr. Fernando da Silva Rodrigues
Universidade Salgado de Oliveira

Prof. Dr. José Miguel Arias Neto


Universidade Estadual de Londrina
APRESENTAÇÃO

A organização desse evento buscou congregar em um mesmo


fórum, acadêmicos, docentes, militares, estudantes,
pesquisadores de História Militar e demais profissionais.
Tratou-se de buscar a articulação da área de História
Militar, tratar da pesquisa na área, da utilização dos arquivos
militares no Brasil e na América do Sul.
Também visou a discussão de temas fundamentais para a
ampla concepção de História Militar tais como: é possível a
cooperação intelectual entre acadêmicos e militares para a
consolidação da História Militar como campo de pesquisa?
Buscou-se, portanto, reunir e debater os estudos sobre
a história militar em curso no Brasil através de conferências,
de mesas e de simpósios durante o evento, e por meio de
publicações impressas e digitais dos resultados obtidos nesse
fórum.
A fragmentação temática nos estudos contemporâneos na
área de História é um fato que vem se estabelecendo no meio
acadêmico ao longo dos últimos anos. O profissional de história
moderno vem procurando tornar-se multidisciplinar a partir do
momento que busca estabelecer conexões teóricas ou
metodológicas com outras disciplinas, visando alcançar um
resultado mais expressivo e consistente na sua pesquisa.
Conforme é destacada por José D’Assunção Barros 1, essa
fragmentação temática vem ocorrendo de forma acentuada nos
últimos anos em consequência de duas situações: a contínua
especialização do historiador e a possibilidade de perspectivas
múltiplas sobre um mesmo problema.
A produção da história militar e seu desenvolvimento
como disciplina se deu de forma diferente em função dos
diferentes contextos. Nos países europeus ela ocupa lugar de
destaque porque a história da formação dessas nações se
confunde com suas próprias guerras. As Forças Armadas são um
grupo social que concentra em suas mãos o poder por excelência

1
BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens.
Petrópolis: Vozes, 2004, p. 11.
– o poder das armas – e cuja função específica é, como define
Huntington2, a administração da violência. Contudo, a história
militar não abrange unicamente o fenômeno da guerra, e por
isso, não pode ser percebida apenas pelas visões dos militares,
apesar destes serem seus principais agentes. Sendo assim, a
administração da força militar, e não somente da violência,
caracteriza-se como objeto principal da história militar, que,
consequentemente, acaba abrangendo a organização das
instituições militares, a aquisição e a manutenção do seu
material e capital humano e, principalmente, a forma como são
utilizados, devendo ser este objeto compreendido dentro de um
contexto político e social mais amplo, como extensão de outras
abordagens, domínios e dimensões que lhe servem de referência
teórica e metodológica. Segundo os críticos a historiografia
militar tradicional não concebia o militar e as instituições
militares dentro dos contextos social, cultural, psicológico e
geográfico. Não eram entendidos como receptores e agentes de
transformação social. Desconsiderava ainda, o diálogo constante
com as correntes de um todo social, sem qualquer
problematização.3
Francisco Falcon afirmou que a partir de 1929/30
4
começou de fato o declínio da História Política , levando
consigo a História Militar tradicional. Os historiadores dos
Annales foram incisivamente críticos da História Política, e a
impossibilidade de desvincular a guerra dos fenômenos políticos
fez com que essas críticas fossem também dirigidas aos estudos
dos fenômenos militares. Sendo estes partes da política, ou a
política por outros meios, a história militar foi tão
negligenciada quanto à história política na renovação
historiográfica da primeira metade do século XX5. Contudo, o
campo anglo-norte-americano foi uma exceção, mantendo certo
distanciamento desses inovadores franceses.

2
HUNTINGTON, Samuel P. O soldado e o estado: teoria e política das relações entre
civis e militares. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2006.
3
CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik (Orgs.). Nova História Militar
Brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004, pp. 23-26.
4
FALCON, Francisco. História e Poder. In: Domínios da História. 5a edição. Rio de
Janeiro: Campus, 1997, p. 68.
5
BURKE, Peter. A Escola dos Annales – 1929-1989. A Revolução Francesa da
Historiografia. São Paulo: UNESP, 1991, pp. 17-22.
Para os historiadores dos Annales, a História Política
exigia pouco, ao prestigiar eventos descritivos, sem
problematizações, e enaltecer vultos históricos e batalhas
militares. Os Annales trouxeram novas interpretações e visões
que transformaram a História Política em um campo
desprestigiado, sem atrativos e tão poucos desafios.
Acompanhando essa queda, a História Militar aos poucos foi
sucumbindo. Esses acontecimentos se deram particularmente na
França, e o Brasil, sofrendo forte influência francesa, seguiu
essa tendência. Praticamente abandonada pela academia, esta
área acabou restrita aos meios militares, num processo que
limitou muito seu estudo independente. Essa assimetria entre a
história acadêmica e os programas de história militar das
forças armadas foi uma das razões do retraimento do estudo
histórico da guerra para uma área marginal de especialização.
Esse afastamento da academia permitiu que as organizações de
historiadores ligados aos departamentos de história das Forças
Armadas em diversos países, inclusive no Brasil, estendessem
seu poder sobre o campo através do controle dos arquivos e do
conhecimento técnico (“technical expertise”), cuja importância
crescia com a industrialização da guerra6. Esse processo
aumentou ainda mais a distância com o meio acadêmico, pois
geralmente esses departamentos oficiais de publicação tinham
uma característica apologética ou de orientação política que
comprometia a visão que o profissional da historiografia
adotava para o estudo militar e, em razão disso, os
historiadores acadêmicos por muito tempo hesitaram em se
envolver com história militar.7
Nesse quadro, os historiadores militares que se
arriscavam a enfrentar as dificuldades que lhe eram impostas
eram vistos com suspeita tanto pelos seus colegas de profissão
quanto pelos militares. Segundo Gordon Craig8, a suspeita

6
PARET, Peter. “The history of war and the nem military history”. In: Understanding
war: essays on Clausewitz and the history of military power. Princenton: 1993,
p. 215.
7
TALLET, Frank. War and societyin early-modern Europe, 1495-1715. London:
Routledge, 1992, p. 1.
8
CRAIG, Gordon A. “Delruck: the military historian”. In: Makers of modern Strategy:
from Machiavelli to the Nuclear Age. Princenton: Princenton University Press,
1986, p. 352
militar seria do desprezo natural do profissional pelo amador,
enquanto a suspeita dos seus pares apresentava raízes mais
profundas: a crença, em especial nos países democráticos, de
que a guerra é uma alienação no processo histórico e que,
consequentemente, seu estudo não seria frutífero, nem decente.
Além disso, nos países latino-americanos, onde o regime militar
foi instaurado nas décadas de 1960 e 70, as divergências entre
a classe militar e os acadêmicos que foram perseguidos também é
uma variável que pode ser somada aos motivos elencados por
Craig.
Há que se considerar, no entanto, que países como
Inglaterra e Estados Unidos, com forte tradição acadêmica, os
efeitos negativos proporcionados pela Escola dos Annales foram
mais moderados. Universidades desses países continuaram a
produzir um grande número de investigações originais no campo
da História Militar9, embora que não tivessem programas
específicos de História Militar nos seus cursos de pós-
graduação. Com isso, no final do século XX, ocorreu o que se
chama de “retorno” da história política, que por meio da
redefinição do seu objeto houve uma revalorização desse
domínio. Tais renovações metodológicas também estão sendo
aplicadas ao estudo dos fenômenos militares, o que se permite
renovar as investigações nesse campo de estudos, resultando em
novas produções. Em outras palavras, atualmente os esforços
estão voltados para analisar o fenômeno militar sob novas
perspectivas, a partir de novos objetos e interrogações.
Segundo Paulo André Leira Parente “os estudos produzidos no
campo de investigação da História Militar devem estar atentos
aos novos métodos e procedimentos de investigação surgidos nas
ciências sociais.”10
Além disso, os militares foram protagonistas da vida
pública no Brasil desde o século XIX, e tomaram parte de
maneira decisiva dos mais importantes eventos de nossa história
política. Logo, a partir da compreensão dos fatos históricos

9
MORILLO, Stephen; PAVKOVIC, Michael. What is Military History. Cambridge: Polity,
2006.
10
PARENTE, Paulo André Leira. “Uma nova História Militar? Abordagens e campos de
investigação”. In: A Defesa Nacional, no 806, 3o Quadrimestre de 2006, p.69.
que se passaram em diversas regiões, pretende-se contribuir
para um entendimento de períodos da história nacional, pois,
segundo Knox11, só será possível entender a História Nacional,
partindo de suas particularidades regionais. Os trabalhos
denominados de História Regional são constantemente
questionados pelo fato de que toda pesquisa aborda determinado
espaço, daí todas as pesquisas serem regionais, não
necessitando de enfatizar a metodologia. Porém, é necessário
entender que a história regional demonstra seu valor acadêmico
quando colabora para preencher uma história maior seja
espacialmente, seja por períodos históricos mais abrangentes,
seja pela aplicação de leis e princípios gerais da ciência
histórica.
Assim, num país que se busca cada vez mais consolidar
um Estado democrático, a compreensão da temática militar é
importante para a sua própria consolidação. Como destacou
Castro12, a história militar acadêmica seguiu uma trajetória
difícil no Brasil, pois o envolvimento militar na política
desencorajou a pesquisa acadêmica sobre as Forças Armadas e a
maioria dos trabalhos voltou sua atenção ao estudo de seu
envolvimento na política.
No âmbito militar, a construção desse campo também não
ficou isento de tendências e ideologismos. Embora o imaginário
militar busque na Batalha de Guararapes suas raízes históricas,
é muito difícil falar numa história militar genuinamente
brasileira antes do século XIX. Até esse momento, a história
militar da América portuguesa era considerada um subcampo da
“vida militar” portuguesa, embora as instituições e práticas
militares europeias tenham sofrido alterações no processo de
implementação no Novo Mundo.13
Embora a História Militar ainda se apresente como um
campo modesto dos estudos históricos no Brasil, limitado a um
grupo pequeno de pesquisadores, este projeto se justifica pela

11
KNOX, Miridan Britto Falci. História Regional – conceitos, métodos e problemas.
Revista do IHGRJ. Rio de Janeiro: 2001, p. 4.
12
CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik (Orgs.). Nova História Militar
Brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 13.
13
CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik (Orgs.). Nova História Militar
Brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 12.
necessidade de reunir acadêmicos, profissionais e discentes de
diversas Áreas do Conhecimento que se interessam pelo estudo de
questões ligadas à presença dos militares no Brasil,
favorecendo o acesso à informação e da construção de um
pensamento histórico baseado nas ações desenvolvidas por esses
agentes de transformação social e política no território
brasileiro. Ainda há muito que se produzir no campo da História
Militar. Por isso, é preciso ter consciência de que
negligenciar o diálogo com os outros campos da história, como a
história política, social, cultural, econômica, das ideias, por
exemplo, é contribuir para a construção de um conhecimento
estanque e pouco esclarecedor.
O resultado das reflexões realizadas no I Simpósio
Nacional de História Militar poderá somar-se às ideias e
propostas dos demais profissionais, pesquisadores e
organizações ligados ao tema, abrindo caminho para a celebração
em conjunto de propostas de cooperação e pesquisas em conjunto
sugeridas durante o Fórum. As novas propostas de cooperação e
pesquisas em conjunto deverão constituir um dos produtos finais
do mesmo, e um parâmetro de contribuição para os próximos
passos na direção da efetivação, consolidação e disseminação de
uma proposta contínua para as pesquisas temáticas.
Compreendendo o papel estratégico da cooperação entre
instituições acadêmicas na busca de consolidar o processo de
estudos e pesquisas sobre a História Militar, o consórcio se
apresenta como um espaço convergente aos ideais da pesquisa,
colocando-se como um organismo incentivador de investigação no
Brasil.

Comissão Organizadora
https://josemiguel2009a.wixsite.com/iisnhm
PROGRAMAÇÃO GERAL
29 (terça-feira) 30 (quarta-feira) 31 (quinta-feira)
Museu Naval Universidade do Estado do Rio de Universidade do Estado do Rio de Janeiro
R. Dom Manoel, Janeiro Av. Pasteur, 436 - Urca. Rio de Janeiro, RJ
15. Pça. XV – Av. Pasteur, 436 - Urca. Rio de
Centro, RJ Janeiro, RJ

Simpósio
Simpósio Simpósio Sessão de
Temático 1 Simpósio
Temático 3 Temático 4 Comunicações
História Militar: Temático 2
9h30 - História da Historiografia, de Iniciação
teoria, Militares na
12h Guerra e das Memória e Científica
9h30 VAGO metodologia e Política e na
Instituições Patrimônio Para
- 14h fontes de Sociedade.
Militares. Militar. Graduandos
pesquisa.

12h -
ALMOÇO ALMOÇO
13h30

MESA DE Coordenadores: Coordenadores: Coordenadores: Coordenadores: Coordenadores:


ABERTURA Prof. Dr. Profª Drª Prof. Dr. Ricardo Prof. Dr. Prof. Dr. Alair
Representantes Fernando da Adriana Barreto Pereira Cabral Francisco Figueiredo
das Instituições Silva Rodrigues de Souza (AMAZUL-EGN) Eduardo Alves Duarte (UERJ)
14h - (UNIVERSO) (UFRRJ) Prof. Dr. Vagner de Almeida Profa. Me. Edina
promotoras do
14h30 CF Pierre Paulo Prof. Dr. Luiz Camilo Alves (EGN) Laura Nogueira
evento: UNIRIO,
DPHDM, EGN, da Cunha Castro Cláudio Duarte (UFF) Prof. Dr. Paulo da Gama
UNIVERSO, (DPHDM) (UFF-Campos) Prof. Dr. Manuel André Leira (PPGEM-EGN)
ECEME e UEL. CC (T) Carlos Prof. Dr. André Rolph Cabeceiras Parente
André Lopes da Átila Fertig (UFF) (UNIRIO)
13h30
Silva (DPHDM) (UFSM) Prof. Dr. Rodrigo
CONFERÊNCIA DE - 16h
Turin (UNIRIO) Comunicações
ABERTURA
14h30 Comunicações (20min)
- Comunicações Comunicações (20min)
Prof. Dr.
15h30 (20min) (20min) Comunicações
Francisco
(20min)
Eduardo Alves de
Almeida (EGN)
15h30
- INTERVALO
15h40

MESA-REDONDA
1
Patrimônio e
Identidade
Militar

Moderador: Prof.
Maurício Vicente
Ferreira Júnior MESA-REDONDA 2
(Diretor do A Historiografia Militar Brasileira: CONFERÊNCIA DE ENCERRAMENTO
15h40
Museu Imperial - entre o acadêmico e o profissional. 16h-
- 17h Prof. Dr. Paulo André Leira Parente
IBRAM/IHGB/IHP) Local: Auditório Paulo Freire 17h
Debatedores: (UNIRIO/IGHMB)
Prof. Dr. Paulo Moderador: Prof. Dr. Dennison de Local: Auditório Paulo Freire
Knauss (Diretor 16h - Oliveira (UFPR)
do Museu 17h45 Debatedores:
Histórico Nacional Prof. Dr. José Miguel Arias Neto
- (UEL)
IBRAM/IHGB/UFF) Cel (R/1) Prof. Me. Fernando Velôzo
Cel R1 Prof. Dr. G. Pedrosa (ECEME/PPGHC-UFRJ)
Paulo Pereira
Santos (UNIFA)

17h
17h - LANÇAMENTO DE ASSEMBLEIA
-
18h LIVROS
18h
PROGRAMAÇÃO SIMPÓSIO TEMÁTICO 1
HISTÓRIA MILITAR: TEORIA, METODOLOGIA E FONTES DE PESQUISA.

Coordenadores:
Carlos André Lopes da Silva – DPHDM
Fernando da Silva Rodrigues - UNIVERSO
Pierre Paulo da Cunha Castro - DPHDM

DIA 30 DE AGOSTO DE 2017 – MANHÃ

RENATA CARDOSO DE
A GUERRA COMO CATALISADORA DE RELAÇÕES ÉTNICAS DENTRO DA
SOUSA SOCIEDADE HELÊNICA.

MANUEL SILVESTRE DA COTIDIANO DA NAVEGAÇÃO NO BRASIL HOLANDÊS: 1630-1644.


SILVA JÚNIOR

LUIZA NASCIMENTO DE
PLANTAS DE FORTIFICAÇÃO DO RIO DE JANEIRO SETECENTISTA: UMA
OLIVEIRA DA SILVA LINGUAGEM DE DEFESA

LOURISMAR DA SILVA
REAL FORTE PRÍNCIPE DA BEIRA: A IMPORTÂNCIA DE SEUS FOSSOS.
BARROSO

RICARDO GEORGE A FORMAÇÃO DO CORPO DE SAÚDE DA ARMADA E O HOSPITAL


MULLER CENTRAL DA MARINHA (1833 – 1890).

FÁBIO ANDRÉ DA SILVA


INSTITUIÇÕES MILITARES NO BRASIL OITOCENTISTA: FONTES PARA A
MORAIS HISTÓRIA DA GUARDA NACIONAL DA PROVÍNCIA DO CEARÁ

GUSTAVO FIGUEIRA CORRESPONDÊNCIAS DE UMA GUERRA: UMA ANÁLISE METODOLÓGICA


ANDRADE SOBRE AS CORRESPONDÊNCIAS PESSOAIS DO GENERAL JOCA TAVARES
DURANTE A REVOLUÇÃO FEDERALISTA DE 1893-1895 NO RIO GRANDE
DO SUL.
WAGNER LUIZ BUENO COMBINANDO HEGEMONIA E BIOPODER: AS RELAÇÕES ENTRE O
DOS SANTOS RECRUTAMENTO PARA AS COMPANHIAS DE APRENDIZES-MARINHEIROS
E AS FAMÍLIAS NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

DIA 30 DE AGOSTO DE 2017 - TARDE

GUILHERME NICOLINI
POSSIBILIDADES E LIMITES DO GÊNERO BIOGRÁFICO PARA ANÁLISE E
PIRES MAIS ESCRITA DA HISTÓRIA MILITAR

ANDERSON DE RIETI
O “ROMPANTE” DO ALGOZ: REPRESENTAÇÕES ACERCA DE SOLANO
SANTA CLARA DOS LÓPEZ EM UMA COMPOSIÇÃO MUSICAL NA GUERRA DA TRÍPLICE
SANTOS ALIANÇA CONTRA O PARAGUAI

EDGLEY PEREIRA DE O USO DA CARICATURA COMO ARMA DE GUERRA NO SÉCULO XIX:


PAULA COMO BRASILEIROS E PARAGUAIOS UTILIZARAM A IMPRENSA NA
GUERRA DA TRÍPLICE ALIANÇA (1864 – 1870).
ALEXANDRE
AS CONDIÇÕES DE SAÚDE E A REALIDADE DO COTIDIANO NOS
FLORENCIANO ALONSO ACAMPAMENTOS DA GUERRA CONTRA O PARAGUAI.

FÁBIO NEVES LUIZ DIÁRIO PESSOAL DO ALMIRANTE VISCONDE DE INHAÚMA DURANTE A


LAURENTINO GUERRA DA TRÍPLICE ALIANÇA: ASPECTOS DE OPERAÇÕES BÉLICAS POR
OCASIÃO DOS 150 ANOS DA ORDEM DO DIA NÚMERO 1, DE 22 DE
DEZEMBRO DE 1866.
PAULO MARCOS ESSELIN
OS CENTO E CINQUENTA ANOS DA RETIRADA DA LAGUNA: LOGÍSTICA,
GEOGRAFIA E COMBATE.

JOSÉ LUIZ PEREIRA


O PENSAMENTO MILITAR EUROPEU IMPORTADO E CONSUMIDO
REBÊLO INFORMALMENTE PELA OFICIALIDADE DO EXÉRCITO BRASILEIRO NO
SÉCULO XIX.

MARCELO LOUREIRO
“TEMPO DE GUERRA, MENTIRAS POR MAR E POR TERRA”: OPINIÃO,
MURMURAÇÃO, E TUMULTOS EM TORNO DOS ACORDOS DE PAZ ENTRE
PORTUGAL E HOLANDA (1648

DIA 31 DE AGOSTO DE 2017 – MANHÃ

ADELAR HEINSFELD
A ENTRADA DO BRASIL NA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E OS EFEITOS
SOBRE A IMPRENSA ARGENTINA E CHILENA

ISABEL LOPEZ ARAGÃO


NAVIOS – PRISÕES: ESPAÇOS DE TORTURA E MORTE

MARCUS FERNANDES
OS IMPACTOS DA REVOLUÇÃO DE 1930 NA ESCOLA DE ESTADO-MAIOR
MARCUSSO DO EXÉRCITO.

HEITOR ESPERANÇA A FORÇA AÉREA BRASILEIRA (FAB) NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL:


HENRIQUE ORIGEM SOCIAL DOS PILOTOS.

CRISTAL MAGALHÃES DA
HISTÓRIA E PATRIMÔNIO DOCUMENTAL BRASILEIRO: A IMPORTÂNCIA
ROCHA DAS FONTES DA FEB.

FERNANDO RIBAS DE
FOTOGRAFIAS COMO FONTES PARA A HISTÓRIA MILITAR: O CASO DA
MARTINI CONSTRUÇÃO NAVAL BRASILEIRA DAS DÉCADAS DE 1930 E 1940

JORGE LUIS GREGORIO DE


RAÍZES, CONFLITOS E MUDANÇAS: A PARTICIPAÇÃO DA ACADEMIA
ALMEIDA MILITAR DAS AGULHAS NEGRAS NO GOLPE MILITAR DE 1964.

SANDRO HELENO MORAIS


A APLICAÇÃO DA DOUTRINA POWELL NAS OPERAÇÕES ESCUDO DO
ZARPELÃO DESERTO E TEMPESTADE DO DESERTO DOS EUA CONTRA O IRAQUE, EM
1990.
DIA 31 DE AGOSTO DE 2017 – TARDE

24
RAPHAEL BARROSO A ESTRATÉGIA PSICOSSOCIAL DA DITADURA MILITAR (1964- 13:30
GRACIANO 1985): A PARTIR DAS OBRAS DO GENERAL FERDINANDO DE
CARVALHO. 13:45

25
FREDERICO JORGE OS V JOGOS MUNDIAIS MILITARES NO BRASIL: A REINSERÇÃO 13:45
SAAD GUIRRA DO ESPORTE MILITAR NA POLÍTICA ESPORTIVA NACIONAL.
14:00
LINO CASTELLANI
FILHO

26
SYLVIO DOS SANTOS INOVAÇÃO, TECNOLOGIA, CULTURA E PODER 14:00
VAL
14:15

27
CLAUDIUS GOMES DE DESCENDO DOS CÉUS: MILITARES PARAQUEDISTAS, ANTES DO 14:15
ARAGÃO VIANA PARAQUEDISMO MILITAR
14:30

28
JOÃO MARCOS TENSÕES CIVIS MILITARES NA QUARTA REPÚBLICA DEPUTADO 14:30
LEITÃO SANTOS AURÉLIO VIANA E A CRISE ESG/CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1959
14:45

29
GUSTAVO QUERODIA RELAÇÕES ENTRE A “POLÍTICA DA BOA VIZINHANÇA” 14:45
TARELOW
PROMOVIDA PELOS ESTADOS UNIDOS E A FACULDADE DE 15:00
MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO NO PERÍODO DE
1938 A 1944

30
BRUNO DE MELO O BRASIL VAI PARA OS ARES: OS DEBATES SOBRE AVIAÇÃO 15:00
OLIVEIRA MILITAR NAS
15:15
ANDRÉA SILVA DA CHARGES DOS PERIÓDICOS FLUMINENSES (1911-1914)
COSTA

JAIRO DE PAULA
BATISTA
PROGRAMAÇÃO SIMPÓSIO TEMÁTICO 2
MILITARES NA POLÍTICA E NA SOCIEDADE.

Coordenadores:
Profa. Dra. Adriana Barreto de Souza – UFRRJ
Prof. Dr.André Átila Fertig – UFSM
Prof. Dr. Luiz Claudio Duarte - UFF

DIA 30 DE AGOSTO – MANHÃ

FÁBIO FERREIRA ECOS DO LIBERALISMO PORTUGUÊS NA REGIÃO DO


RIO DA PRATA: O CASO DOS MILITARES
PORTUGUESES NA MONTEVIDÉU DE D. JOÃO VI, REI
DE PORTUGAL, BRASIL E ALGARVES

ANA PAULA PEREIRA COSTA MOBILIZAÇÃO BÉLICA DE AFRICANOS E SEUS


DESCENDENTES PARA O BOM GOVERNO DA

REGIÃO DE SERRO FRIO: NOTAS PRELIMINARES

ÂNDERSON MARCELO SCHMITT MILITARES E MILICIANOS NOS OITOCENTOS: O CASO


DE SANTA CATARINA

LAURA OLIVEIRA MOTTA ENTRE A ORDEM E O MEDO: A UTILIZAÇÃO DA


GUARDA NACIONAL NO POLICIAMENTO DO RIO DE
JANEIRO OITOCENTISTA (1831-1840)

GUILHERME DE MATTOS POLÍTICA E SOCIABILIDADE NO SÉCULO XIX: A


GRÜNDLING RELAÇÃO ENTRE O VISCONDE DE

PELOTAS E O MARQUÊS DO HERVAL

SERGIO WILLIAN DE CASTRO O RISO COMBATENTE: A SÁTIRA E O ESCÁRNIO NOS


OLIVEIRA FILHO PERIÓDICOS PARAGUAIOS DURANTE A GUERRA DA

TRÍPLICE ALIANÇA

VINÍCIUS TADEU VIEIRA CAMPELO A LEI 2556 E A SUBVERSÃO AO RECRUTAMENTO


DOS SANTOS MILITAR NO NORDESTE DA PROVÍNCIA DE SÃO
PAULO (1875-1889)

DIA 30 DE AGOSTO – TARDE

CLÉCIA MARIA DA SILVA O REGIMENTO DO CONDE DE LIPPE: UM BREVE


OLHAR SOBRE O PRINCÍPIO DA DISCIPLINARIZAÇÃO E
A TROPA DE LINHA DE PERNAMBUCO
PEDRO HENRIQUE SOARES SANTOS ENTRE CASTIGOS CRUEIS E CASTIGOS
CONSTITUCIONAIS: AS PRÁTICAS DE PUNIÇÃO DO
EXÉRCITO IMPERIAL EM DEBATE

CHRISTIANY FRASSON DA SILVA O EMBATE POLÍTICO ENTRE O MARECHAL E O


SOUZA ADVOGADO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

VITOR LEANDRO DE SOUZA ANTONIO GERALDO DE SOUSA AGUIAR: TRAJETÓRIA


MILITAR E INSERÇÃO POLÍTICA NO RIO DE JANEIRO DA
PRIMEIRA REPÚBLICA

RAFAEL ROESLER “GÊNESE E CULTURA POLÍTICA NAS ESCOLAS


MILITARES NA PRIMEIRA REPÚBLICA”

DANTE RIBEIRO DA FONSECA RONDON E O SPI EM GUAJARÁ-MIRIM (RO) NA


DÉCADA DE 1930.

JAMYLLE DE ALMEIDA FERREIRA RAÍZES HISTÓRICAS DO MESTRADO DA ESCOLA


SUPERIOR DE GUERRA
LUIZA GOMES DAS NEVES

DIA 31 DE AGOSTO – MANHÃ

DIRCEU CASA GRANDE JUNIOR AS RELAÇÕES ENTRE CIVIS E MILITARES E A TESE DA


POLÍTICA DE ERRADICAÇÃO DE

EDMUNDO CAMPOS COELHO

MAURO MARCOS FARIAS DA AS FRONTEIRAS ÉTNICAS NO EXÉRCITO BOLIVIANO:


CONCEIÇÃO
A INCORPORAÇÃO INDIGENA À GUERRA DO CHACO
(1932-1935)

VALTERIAN BRAGA MENDONÇA AS RELAÇÕES CIVIS-MILITARES NO BRASIL DURANTE A


PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL (1914-1918)

GUILHERME PIGOZZI BRAVO EM GUARDA CONTRA O LATIFÚNDIO: TENENTISMO E


A QUESTÃO AGRÁRIA (1930-1935)

SANDRO GOMES DOS SANTOS A DIREITA MILITAR E OS MOVIMENTOS DE


JACAREACANGA E ARAGARÇAS: AS REVOLTAS, OS
PERSONAGENS E OS PRECEDENTES HISTÓRICOS.

VIRGÍLIO CAIXETA ARRAES A INFLUÊNCIA MILITAR NA POLÍTICA EXTERNA DOS


ESTADOS UNIDOS DESDE A GUERRA FRIA
ALOYSIO CASTELO DE CARVALHO LIBERALIZAÇÃO POLÍTICA DO REGIME MILITAR DE
1964

DIA 31 DE AGOSTO – TARDE

NOME TÍTULO

CÍNTIA VIEIRA SOUTO A MISSÃO MILITAR BRASILEIRA DE INSTRUÇÃO NO


PARAGUAI: COOPERAÇÃO E DIPLOMACIA

PRICILA NICHES MÜLLER. A POLÍTICA EXTERNA DO GOVERNO GEISEL (1974-


1979) NA RELAÇÃO BRASIL-CHINA.

FELIPE RAMOS GARCIA POLÍTICA E POLÍCIA: UMA ANÁLISE DAS


CORPORAÇÕES PAULISTAS

ELAINE BORGES DA SILVA TARDIN GUERREIRAS DA PAZ: AS MILITARES BRASILEIRAS NO


SÉCULO XXI EM PERSPECTIVA.

CARLOS HENRIQUE SANTOS RUIZ A REVOLTA QUE NÃO HOUVE: ADEMAR DE BARROS E
A ARTICULAÇÃO CONTRA O GOLPE CIVIL-MILITAR
(1964-66)

ENIO VITERBO MARTINS O GOLPE PREVENTIVO DO GENERAL LOTT NO


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, O 22 DE NOVEMBRO
DE 1955.

KELVIN EMMANUEL PEREIRA DA O NOVO PROFISSIONALISMO DA BRIGADA MILITAR


SILVA DO RIO GRANDE DO SUL

JORGE ANTONIO DIAS SALVADOR JOSÉ MACIEL E JOAQUIM JOSÉ RODRIGUES


TORRES - DIFERENTES DIZERES DE DIFERENTES
SUJEITOS EM TEMPOS DIVERSOS: A CRIAÇÃO DAS
COMPANHIAS FIXAS DE APRENDIZES DE
MARINHEIROS EM 1836.

JOSILENE PEREIRA PACHECO NAS FILEIRAS DO EXÉRCITO: MILITARES NEGROS NA


PROVÍNCIA DA PARAÍBA DO NORTE (1850-1864)
PROGRAMAÇÃO SIMPÓSIO TEMÁTICO 3
HISTÓRIA DA GUERRA E DAS INSTITUIÇÕES MILITARES.

Coordenadores:
Prof. Dr. Manuel Rolph Cabeceiras – UFF
Prof. Dr. Ricardo Cabral – EGN
Prof. Dr. Vágner Alves Camilo - UFF

DIA 30 DE AGOSTO DE 2017 – MANHÃ

JOÃO CLAUDIO PLATENIK


O FIM DA BLITZKRIEG
PITILLO

CAROLINE MALVEIRA PINTO PLANO DE MOBILIZAÇÃO DE EMBARCAÇÕES DO APOIO MARÍTIMO


ALVES

RAQUEL ANNE LIMA DE


“TENTÁCULOS” DA ESPIONAGEM: UMA DESCRIÇÃO DOS SERVIÇOS
ASSIS SECRETOS BRITÂNICO E AMERICANO NA II GUERRA

CARLOS ROBERTO “PRECISAMOS DE AÇÃO”: A MOBILIZAÇÃO DE PESSOAL NAS PÁGINAS


CARVALHO DARÓZ DOS JORNAIS DURANTE A REVOLUÇÃO DE 1932

SAULO ÁLVARO DE MELLO


O ARSENAL DE MARINHA DE MATO GROSSO NA HISTÓRIA

THIAGO SOARES DE A RECONQUISTA DE SALVADOR E A ARMADA DE OQUENDO: UM


MACEDO SILVA ESTUDO COMPARADO DO ESFORÇO DE GUERRA LUSO-ESPANHOL
CONTRA O PODERIO NEERLANDÊS NO BRASIL
RICARDO MARGALHOPRINS RUMO A UMA HISTÓRIA MILITAR DA CYBER GUERRA? UM ESTUDO
DOS CASOS ESTÔNIA, LITUÂNIA E GEÓRGIA

DIA 30 DE AGOSTO DE 2017 - TARDE

GLAUDIONOR GOMES
ECONOMIA, POLÍTICA E GUERA: APONTAMENTOS SOBRE A
BARBOSA PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA NA “GRANDE GUERRA” (1914-1918)

ALEXANDRE DOS SANTOS


O GENERAL GÓIS MONTEIRO E SUAS CONTRIBUIÇÕES À ESTRUTURA
GALLERA DO EXÉRCITO BRASILEIRO (1937-1943)

LEIDIANE DE CASTRO A GUARDA REAL DE POLÍCIA DA CORTE: A CRIAÇÃO DO PRIMEIRO


GONÇALVES CORPO DE POLÍCIA NO RIO DE JANEIRO JOANINO (1808-1821)

ANAILZA GUIMARÃES
EDUCANDO PARA A GUERRA: AS INSTRUÇÕES PARA SOLDADOS
COSTA NORTE-AMERICANOS E INGLES NA II GUERRA MUNDIAL, UMA
ANÁLISE COMPARATIVA (1942-1945)

RODRIGO DE ALMEIDA PAIM A CONSTRUÇÃO DA PRESENÇA DO EXÉRCITO BRASILEIRO NA


AMAZÔNIA
LEONARDO DE ANDRADE
O INTERCÂMBIO ALEMÃO E A MISSÃO MILITAR FRANCESA: UM
ESTUDO DA INFLUÊNCIA ESTRANGEIRA NO ENSINO MILITAR DO
ALVES EXÉRCITO BRASILEIRO NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX

JUAN CARLOS FLORES SOTO


A INFLUÊNCIA DO TREINAMENTO DE SELVA DO EXÉRCITO
EQUATORIANO NO RESULTADO DO CONFLITO DO CENEPA (1995)

DIA 31 DE AGOSTO DE 2017 - MANHÃ

LUIS OTAVIO DE AZEVEDO


A MULHER NA GUERRA E SUAS REPRESENTAÇÕES: EXEMPLOS
BARRETO HISTÓRICOS E MITOLÓGICOS

ANDREA HELENA
DE FEVEREIRO A AGOSTO DE 1942, NAVIOS BRASILEIROS FORAM
PETRYRAHMEIER TORPEDADOS. QUAL É A ESTRATÉGIA ALEMÃ PARA TAIS AÇÕES
CONTRA UM PAÍS NÃO BELIGERANTE?

PAULO CHRISTIAN MARTINS


PEDIDES ET EQUITES: O LUGAR DO INFANTE NORMANDO NA BATALHA
MARQUES DA CRUZ DE HASTGINS (1066)

RAQUEL ANNE LIMA DE “TENTÁCULOS” DA ESPIONAGEM: UMA DESCRIÇÃO DOS SERVIÇOS


ASSIS SECRETOS BRITÂNICO E AMERICANO NA II GUERRA

ÁLVARO ALFREDO
MARCIALIDADE GERMÂNICA DA ANTIGUIDADE AO SÉCULO XI –
BRAGANÇA JÚNIOR APONTAMENTOS HISTÓRICO-LITERÁRIOS

ANTÔNIO MODESTO DOS


AS FORÇAS ARMADAS NO ESTADO NOVO: TENSÕES POLÍTICOS
SANTOS JÚNIOR MILITARES NA CRIAÇÃO DA FORÇA AÉREA BRASILEIRA

RODRIGO MUSTO FLORES


FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA: ENTRE MEMÓRIA E HISTÓRIA

DIA 31 DE AGOSTO DE 2017 - TARDE

CHRISTIANE FIGUEIREDO
AS REFORMAS MILITARES POMBALINAS E OS GRUPOS ARMADOS
PAGANO DE MELLO LOCAIS NAS REGIÕES NORTE E SUDESTE DA AMÉRICA PORTUGUESA

FERNANDO DA SILVA
A GUERRA BOLIVIANA-PARAGUAIA NO CHACO BOREAL VISTA ATRAVÉS
RODRIGUES DOS DOCUMENTOS SIGILOSOS PRODUZIDOS PELO ESTADO MAIOR DO
EXÉRCITO BRASILEIRO (1932-1938)
MARCELO SANTOS PRISIONEIROS DA GUERRA DO PARAGUAI (1864-1923)
RODRIGUES

MARIA JULIANA DE FREITAS


COLONIZAÇÃO MILITAR EM GOIÁS NO SÉCULO XIX: OS PRESÍDIOS DO
ALMEIDA SERTÃO DE AMARO LEITE

FRANCISCO CÉSAR ALVES O SERVIÇO MILITAR E A SELEÇÃO DE EXPEDICIONÁRIOS BRASILEIROS


FERRAZ PARA A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

ORLANDO MATTOS SPARTA


A CONSTRUÇÃO DA PRESENÇA DO EXÉRCITO BRASILEIRO NA AMZÔNIA
DE SOUZA

HIRAM ALEM
A REVOLUÇÃO MILITAR DE EDUARDO III – O EXÉRCITO INGLÊS NA
GUERRA DOS CEM ANOS

RICARDO PEREIRA CABRAL


MISSÃO NAVAL AMERICANA 1922-1942
PROGRAMAÇÃO SIMPÓSIO TEMÁTICO 4
HISTORIOGRAFIA, MEMÓRIA E PATRIMÔNIO MILITAR.

Coordenadores:
Prof. Dr. Francisco Eduardo Alves de Almeida - EGN
Prof. Dr. Paulo André Leira Parente - UNIRIO

DIA 31 DE AGOSTO DE 2017 – MANHÃ

PEDRO AUGUSTO AUBERT


A PAX ARMADA NO RIO DA PRATA: DA QUEDA DE ROSAS À GUERRA DO
PARAGUAI (1852-1864)

ARLINDO PALASSI FILHO NOVA HISTÓRIA MILITAR: UM BREVE BALANÇO DA RECENTE PRODUÇÃO
HISTORIOGRÁFICA MILITAR BRASILEIRA (1990-2014)

DANIEL ALBINO DA SILVA


A JORNADA DO PRACINHA: ANÁLISE INTRODUTÓRIA SOBRE A MEMÓRIA
DA PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

BARBARA TIKAMI DE LIMA


MAR DE CONTRADIÇÕES: A EXCEPCIONALIDADE E NORMALIDADES
PRESENTES NA TRAJETÓRIA DO MARINISTA EDOARDO DE MARTINO

EDINA LAURA C. AS ORIGENS, O LUGAR E O TEMPO HISTÓRICO DE THEOTONIO


NOGUEIRA DA GAMA MEIRELLES DA SILVA: ANOTAÇÕES PARA UMA ANÁLISE DA
HISTOTIOGRAFIA NAVAL BRASILEIRA NOS OITOCENTOS
JESSICA DE FREITAS E
A ARMADA IMPERIAL E A DEFESA DA FRONTEIRA DE MATO GROSSO
GONZAGA DA SILVA CONTRA A REPÚBLICA DO PARAGUAI (1854-1865)

SANDRO TEIXEIRA MOITA ENTRE MARTE E MINERVA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A ARTE MILITAR E
HISTÓRIA ESTRATÉGICA
EMILIO MACIEL O EXÉRCITO E A FAXINA
EIGENHEER

IANKO BETT PATRIMÔNIO BÉLICO MILITAR E A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO


HISTÓRICO: DIÁLOGOS POSSÍVEIS A PARTIR DO ACERVO DE BLINADADOS
DO MUSEU MILITAR DO CMS
MARCOS ANDRÉ A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA MILITAR “REFLETIDA” NA PRAÇA DOS EX-
PINTO/ELAINE CRISTINA COMBATENTES EM SÃO GONÇALO (1970)
FERREIRA

ROMULO SANTIAGO DE FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA E A DEFESA QUÍMICA, BIOLÓGICA E


LIMA GARCIA NUCLEAR NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

DURVAL AUGUSTO DA A DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL NA HISTORIOGRAFIA


COSTA NETO
DIA 31 DE AGOSTO DE 2017 - TARDE

ERIKA MORAIS
“HOMENS DE CARNE E OSSO”. BIOGRAFIAS E RITOS DE HEROICIZAÇÃO
CERQUEIRA NA PRIMEIRA REPÚBLICA

ALDONES NINO SANTOS HISTORIOGRAFIA MILITAR E CULTURA: FUNARTE, UMA


DA SILVA LACUNA

RODRIGO PEREIRA PINTO EXPEDIÇÕES MILITARES E DIPLOMACIA – HISTORIOGRAFIA


DA CONFIGURAÇÃO DAS FRONTEIRAS DA AMAZÔNIA
BRASILEIRA
HENRI FRANCIS T. DE
QUANDO A TROPA É O MANIFESTANTE: O MOVIMENTO DAS ESPOSAS
OLIVEIRA DE POLICIAIS MILITARES DO PARANÁ

MARIO JOSÉ MAESTRI “DESTINADAS” E “RESIDENTAS”. O RELATO DE MADAME DUPRAT DE


FILHO LASSERRE SOBRE A SORTE DAS “DESTINADAS” PELO GOVERNO
PARAGUAIO QUANDO DA CAMPANHA DA CORDILHEIRA
JEFFERSON EDUARDO DA
PAISAGENS DO PASSADO: O ACERVO DE FOTOS AÉREAS DO MUSEU
S. MACHADO AEROESPACIAL

MONICA DE PAULA P. DA
HOSPITAL REAL MILITAR DE VILA BOA DE GOIÁS (1746- 1827)
SILVA AGE
Textos Completos
ÍNDICE
ALEXANDRE FLORENCIANO ALONSO
ALINE SOUZA DE VASCONCELLOS DO VALLE
ALOYSIO CASTELO DE CARVALHO
ÂNDERSON MARCELO SCHMITT
ANAILZA GUIMARÃES COSTA
BÁRBARA TIKAMI DE LIMA
CARLOS ROBERTO CARVALHO DARÓZ
CHRISTIANE FIGUEIREDO PAGANO
CLAUDIUS GOMES DE ARAGÃO VIANA
CLÉCIA MARIA DA SILVA
DIRCEU CASA GRANDE JUNIOR
ELAINE CRISTINA VENTURA FERREIRA
EMÍLIO MACIEL EIGENHEER
FÁBIO NEVES LUIZ LAURENTINO
FREDERICO JORGE SAAD GUIRRA
GUSTAVO FIGUEIRA ANDRADE
JOÃO CLAUDIO PLATENIK PITILLO
JOSÉ VICTOR JOLY
LOURISMAR DA SILVA BARROSO
LUÍS FILIPE NEGRÃO DE SOUZA
LUIZA NASCIMENTO DE OLIVEIRA DA SILVA
MANUEL SILVESTRE DA SILVA JÚNIOR
MARIA JULIANA DE FREITAS ALMEIDA
MATHEUS MORETO GUISSO RODRIGUES
PEDRO HENRIQUE SOARES SANTOS
RAPHAEL BARROSO GRACIANO
RAQUEL ANNE LIMA DE ASSIS
RODRIGO MUSTO FLORES
RODRIGO PEREIRA PINTO
THIAGO SOARES DE MACEDO SILVA
VALTERIAN BRAGA MENDONÇA
AS CONDIÇÕES DE SAÚDE E A REALIDADE DO COTIDIANO NOS
ACAMPAMENTOS DA GUERRA CONTRA O PARAGUAI

Alexandre Florenciano Alonso


Mestre em História Social - UNIVERSO

A Guerra do Paraguai marcou profundamente o processo histórico do Brasil. O


conflito envolveu quatro nações: Argentina, Brasil e Uruguai, formando a Tríplice Aliança
contra o Paraguai entre o período de 1865 a 1870. Mas a movimentação da guerra foi a partir
de dezembro de 1864 com a invasão de tropas paraguaias no sul do Brasil. O Império do
Brasil teve que assumir o controle da guerra em quase todo o conflito.
E a questão da saúde no Exército na guerra contra o Paraguai é um fator importante
para compreendermos o cotidiano dos soldados na guerra. Para analisar as condições de saúde
das tropas do Exército em campanha, foi elaborada uma planilha com os dados obtidos da
fonte impressa, Ordens do Dia, dos anos de 1865 e 1866, sob o comando do general Osório;
assim como colocadas todas as informações importantes, tais como: o número da ordem do
dia, nome e posto do militar, batalhão de origem, data da ocorrência e observações relevantes,
se necessário, para cada item ou nome do militar mencionado na ordem do dia. Essas ordens
eram relatórios emitidos pelo comando do Exército com as ocorrências nos acampamentos
durante a guerra, inclusive a inspeção de saúde e internações nos hospitais de campanha.
Foram utilizados para a planilha os dois livros das Ordens do Dia impressos pela
Biblioteca do Exército na coleta de dados de todas as inspeções de saúde no período
mencionado, contendo os dias e locais em que foram efetivadas as ordens. A maior
dificuldade foi estabelecer um parâmetro, devido à grande quantidade de dados levantados na
fonte com o objetivo de detalhar os dados observados nas ordens do dia.
No primeiro livro foram abordados 2.565 registros, ou seja, ocorrências com os nomes
das praças e oficiais mencionados em cada ordem do dia publicada até o final do ano de 1865.
No segundo livro, correspondendo às ordens do dia referente à primeira metade do ano de
1866, foram abordados 4.125 registros, todos sob o comando do general Osório, o marquês do
Herval. Fazendo um levantamento estatístico, verificou-se que através dos dados analisados os
corpos do Exército brasileiro foram formados, mediante as convocações de voluntários nas
províncias do Brasil, para preencher os vazios devido às altas ocorrências de enfermidades
nos acampamentos e já com a guerra em plena atividade de combate.
Através dos dados quantitativos com as informações da inspeção de saúde nas ordens
do dia foi observada a grave situação da saúde nos acampamentos brasileiros e as seguidas
baixas nos hospitais de campanha em todo o conflito da guerra contra o Paraguai. As
dificuldades e o cotidiano das tropas, juntamente com o grande número de licenças
concedidas para tratamento, formou um expressivo contingente de enfermos.
Outro constatação importante foi a dificuldade do Exército para implementação dos
exames de saúde no momento da incorporação dos voluntários. Este encargo deveria ser
realizado desde as convocações nas províncias e que ficavam muito a desejar ou não eram
realizados no ato da incorporação das praças. Dessa forma, o Exército recebeu, devido à
ausência do serviço de avaliação médica, voluntários e Guardas Nacionais com moléstias e
deformidades que incapacitavam o serviço militar.
Buarque de Macedo, em discurso na câmara em 1865, disse que ninguém desconhecia
que outras causas poderiam acarretar a diminuição no número das praças de um exército. 14 O
desenvolvimento de moléstias epidêmicas no exército é uma delas (SOUSA, 1996, p. 43). O
general Polidoro reconheceu a necessidade de medidas mais criteriosas para melhorar as
condições de atendimento sanitário, baixando instruções para regular o serviço no hospital de
sangue (CUNHA, 2000, p. 82).
Cada província no Império do Brasil dava sua cota de voluntários em conformidade às
baixas que aconteciam na campanha militar como foi verificado no relatório, em outubro de
1866, do primeiro vice-presidente Drº Manoel Jansen Ferreira da província do Maranhão ao
presidente da mesma província o Drº Antônio Alves de Souza Carvalho. No referido relatório,
mostra a necessidade de manter a convocação para o alistamento, devido ao número de baixas
em decorrência de doenças.
Apesar de todos os esforços do governo, a fim de ter no teatro de guerra a
força suficiente para a sustentação da honra nacional, havendo os repetidos,
mas gloriosos combates do nosso exército, as enfermidades produzidas por
um clima estranho, e outras causas, colocando o governo na indeclinável
necessidade de fazer um novo apelo para o patriotismo brasileiro, convidei
os cidadãos mais importantes desta capital a se reunirem em palácio no dia 9
de setembro, a fim de prestarem seu concurso, para que esta província
continue a sustentar a brilhante posição, que tomou entre as que mais têm
auxiliado o governo na guerra atual contra o ditador do Paraguai. 15

Neste tema sobre a inspeção de saúde em campanha contra o Paraguai, além do


número de ordem, data, nome e posto, há dados sobre a causa da internação, se o doente é
curável ou não curável; acrescido de uma observação relevante à inspeção de saúde do
enfermo se estava apto ou fora dos serviços do Exército. Dessa forma, é possível levantar uma
estimativa preliminar das condições sanitárias e de saúde da guerra contra o Paraguai,
mostrando um quadro hospitalar nos acampamentos militares e um quantitativo de doenças
mais comuns que abatiam os quadros do Exército brasileiro naquele tempo histórico.
Fazendo um levantamento da ordem do dia sob o comando do general Osório, no
período dos anos de 1865 a 1866, o Exército já vinha sofrendo com o grande número de
moléstias que atingiam todos os corpos militares, devido ao clima, às condições sanitárias e à
14
As praças eram soldados pertencentes aos corpos militares ou pelo alistamento dos corpos de Voluntários da
Pátria.
15
Relatório do 1º Vice-presidente ao presidente da Província do Maranhão em outubro de 1866. Disponível em:
<http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u335/000006.html>. Acesso em: 10 de setembro de 2011.
insalubridade dos terrenos em que acampavam. Verificou-se, também, o questionamento por
parte do corpo de saúde sobre a tarefa penosa dos médicos de serviço em passar revista aos
corpos do Exército para inspeção de saúde, como mencionado na ordem do dia nº 29 de 03 de
junho de 1865, no Uruguai, junto ao arroio S. Francisco. Na mesma ordem, ficou determinado
que cessassem as revistas, que eram prejudiciais ao serviço médico do hospital e, se houvesse
praças que se queixassem de qualquer enfermidade, fossem remetidos diretamente ao primeiro
médico do hospital, sem a necessidade de inspeção direta nas revistas as tropas militares. 16
Em outra ocorrência transcrita na ordem do dia nº 43 de 24 de junho de 1865, com as tropas
acampadas no arroio Daiman, próximo a cidade de Salto, no Uruguai e, através de ordem
expedida pelo comandante em chefe, o general Osório mencionou que continuava em vigor a
praxe dos médicos passarem em revista a inspeção de saúde todos os corpos do Exército,
cessando os motivos apresentados na ordem do dia de número 29.
O corpo de saúde do Exército reivindicava melhores condições para o trabalho, devido
ao grande número de entrada nos hospitais provisórios. O procedimento de revistas médicas
nas tropas do Exército gerou insatisfação do corpo de saúde e tal procedimento, além da
ocupação que a revista que acarretava, atrasava o próprio serviço dentro dos hospitais de
campanha.
Na tentativa de encaminhar três soldados para o hospital de Buenos Aires, através da
canhoneira Belmonte, conforme ofício de junho de 1865, pelo comandante interino da
canhoneira, primeiro tenente Francisco Manoel Barroso, notificou o falecimento dos três
soldados do corpo provincial de Niterói, Manuel Ignácio de Oliveira Pimentel, Manoel
Alexandre Ramos e Marcelino José Teixeira Ruiz por febre tifoide. 17 Com a variedade de
doenças acometidas nos acampamentos, os hospitais de campanha não comportavam a grande
quantidade de doentes que era necessário acomodarem nas enfermarias.
A dificuldade em arrumar um edifício onde funcionasse o Hospital Militar brasileiro,
em território da Argentina para receber a grande quantidade de enfermos do Exército e da
Armada brasileira foi solucionado com ajuda da Sociedade Beneficente Italiana que ofereceu
ao governo argentino e este ao Exército brasileiro. Conforme relatório do chefe de saúde
Carlos Frederico, em 25 de junho de 1865, ao comandante das forças navais visconde de
Tamandaré, já na inauguração do referido hospital com treze enfermarias, foram recebidos, no
dia 26 de junho de 1865, trezentos e cinquenta e três doentes de diferentes enfermidades e
feridos em combate, mostrando a necessidade de ampliar a capacidade de leitos hospitalares. 18
Em ordem do dia nº 111 de 25 de dezembro de 1865, no acampamento de Lagoa Brava
no Uruguai, através de aviso do Srº Ministro da Guerra do dia 30 de setembro de 1865, era
16
Ordens do dia sob o comando do Marquês do Herval na Guerra do Paraguai, vol. I, 1865, p. 126.
17
Biblioteca Nacional/RJ – AM/CMB, 34A, 03, 005 n° 062, (?/06/1865).
18
Arquivo Nacional/RJ, códice 547, volume 6, folhas 140-142, Fundo coleção diversos: correspondências sobre
a Guerra do Paraguai, (25/06/1865).
pedido para que procedesse à minuciosa inspeção nas praças doentes nas enfermarias, para
verificar os incapazes e os que não tinham concluído o tempo de serviço, para fossem
encaminhados às companhias de inválidos do Rio de Janeiro ou Rio Grande, assim como
baixas, sujeito à aprovação do governo para aqueles enfermos que requeressem,
proporcionando o devido transporte.
Na ordem do dia nº 113 em 30 de dezembro de 1865, o General Osório mostrando-se
preocupado com as condições dos enfermos nos hospitais de campanha, determina que as
autoridades e os fornecedores satisfizessem todas as solicitações da parte do cirurgião-mor do
Exército Drº Manoel Feliciano Pereira de Carvalho no hospital de Corrientes ou vizinhanças,
como se as requisições fossem do próprio comando do Exército.
Houve o questionamento do quartel general sobre os enfermos que já estavam curados
e que ainda continuavam nas enfermarias, além de um número expressivo de soldados que não
tinham moléstia aparente e estavam aptos para o serviço. Neste quadro, mantinham-se nos
leitos dos hospitais soldados aptos que prejudicavam o contingente das forças imperiais
brasileiras.
Em correspondência, datada de 31 de maio de 1866, junto ao Passo da Patria no
território argentino, o médico Manuel Feliciano Pereira de Carvalho responde ao comandante
general Osório algumas observações sobre a visita do coronel Pecegueiro às enfermarias de
campanha. Respostas às implicações sobre os médicos que deixam ficar no hospital praças
que simulam moléstias, que se encontram como doentes e os que, pretendidos doentes, entram
no hospital e não voltam mais para os batalhões são encaminhadas para o comandante,
esclarecendo o que o Drº Manuel Feliciano Pereira de Carvalho chama de embaraços e
contrariedades.
Afirmo a V.Exª que os médicos não deixam neste Hospital praças com
moléstias simuladas. Isto seria um grande crime, porque desfalcando o nosso
Exército lhe prepararia uma derrota, ou que é o mesmo um triunfo ao
inimigo. [...] Eu tenho também examinado os doentes: os que presentemente
se acham neste Hospital e são realmente. Reconheço que há um grande
número de doentes. Isto, porém, explica pela natureza insalubre do clima e
das circunstâncias do nosso Exército exposto muitas vezes as intempéries
atmosféricas e as demais fadigas da guerra. Males estes inerentes a mesma
guerra, e que outros exércitos têm sofrido em maior escala, por isso com a
mais profunda convicção médica digo a V. Exª que se nos demoramos
muitos meses entre tantos pântanos, sem água potável e no meio de tantos
animais mortos, o número dos doentes será indeterminado. 19

Também estava em pauta a manutenção da ordem nos hospitais de sangue do Exército


brasileiro, pois além de sua finalidade específica na cura dos enfermos que entravam no hospital,
principalmente pela inspeção de saúde às tropas, havia a necessidade de organizar as funções do corpo
médico das forças militares. Toda a estrutura do Exército, naquele momento, estava se reestruturando

19
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – ACP/CGO, lata 263, mss. 13542, (31/05/1866).
com o decorrer da guerra. Os números da inspeção de saúde são o reflexo da falta de organização nas
províncias do Império do Brasil, que cederam contingentes para o preenchimento dos batalhões.
Na tabela 1, segue um levantamento geral da inspeção de saúde no período inicial da guerra de
um ano, antes da invasão do território paraguaio pelas tropas da Tríplice Aliança. O quadro mostra um
quantitativo de militares inspecionados, incluindo os que foram constatados sem moléstia alguma, mas
que solicitaram internação alegando problema de saúde. Outros dados estão inseridos como licenças e
baixas por vários razões e as licenças que foram concedidas devido à inspeção de saúde chegam a
79,73% do total das licenças concedidas para os militares. Outro ponto a considerar são as baixas dos
serviços do Exército que incluí, também, a baixa autorizada pela inspeção de saúde perfazendo 21,58%
do total das baixas no período analisado. Todos os laudos dos médicos e cirurgiões do corpo de saúde
do Exército são dados que se referem tanto para doenças como para ferimentos em combate. As
doenças são diversas, com grande número de dados relacionados à hérnia inguinal, sífilis,
estreitamento de uretra, tuberculose, reumatismo e problemas gastrointestinais.

TABELA 1-Mapa demonstrativo da inspeção de saúde entre 1865 a 1866.


Inspeção de saúde no período de março de 1865 a março de 1866 durante a Guerra do Paraguai:
Total de homens inspecionados: 1.514 homens.
Total constatado com nenhuma moléstia: 168 homens perfazendo 11,10% do total.
Total de militares licenciados: 148 homens.
Total de militares licenciados pela inspeção de saúde: 118 homens 79,73% do total de licenciados.
Total de militares que tiveram baixas dos serviços do Exército: 278 homens.
Total de militares com baixas pela inspeção de saúde: 60 homens 21,58% do total de baixas.
Mapa: Número total da inspeção de saúde nas Ordens do Dia sob o comando do General Osório na Guerra do
Paraguai, período de 1865 e 1866.

Problemas reumáticos e gastrointestinais estão mais relacionados às diferenças


culturais e de costumes dos voluntários de regiões variadas das províncias do Império do
Brasil que, naturalmente, sentiram as diferenças de clima mais frio e, em alguns momentos,
presenciaram geadas - comuns da região pampeira - ocasionando algumas mutilações de
artelhos dos pés e mãos, devido ao intenso frio e a falta de vestuário adequado para enfrentar
as variações climáticas da região em que as tropas marchavam e acampavam.
Em correspondência confidencial de Francisco Otaviano a Ângelo Muniz da Silva
Ferraz, em missão especial no dia 8 de julho de 1866, comunica as péssimas condições, a falta
de profissionais e o mau planejamento das enfermarias em Corrientes. Os feridos e os
enfermos chegam em vapores vindos de Corrientes sem acomodações necessárias, sem
recursos fármacos, sem roupa branca, ou seja, limpa e até sem alimentos. O conselheiro
Francisco Otaviano fretou e aparelhou um vapor em melhores condições para transporte dos
enfermos para os hospitais em Montevidéu e Buenos Aires e, em suas considerações sobre o
Exército em Corrientes, comenta a grande confusão a respeito da administração com conflitos
pessoais, falta de discriminação regular das funções dos empregados, de gastos excessivos nos
depósitos e nos hospitais; nos depósitos, onde não havia nenhum tipo de classificação.
Estavam misturados gêneros alimentícios junto com fardamento e munição de guerra: “nos
obrigam a mim e ao marechal Polydoro a assumir a responsabilidade de darmos
provisoriamente algumas providências no sentido de cortarmos tanto abuso.” 20 Quanto ao
hospitais, Otaviano mantém suas observações sobre as péssimas condições do alojamentos
dos enfermos.
Os galpões, em geral, foram construídos sem as condições higiênicas. Nas do
Saladero [hospital] havia sempre entre tábua e tábua uma larga fresta de alto
a baixo, por onde o frio e a umidade das noites de inverno no mês de junho,
vieram acabar de matar muitos dos feridos das gloriosas jornadas de maio. 21

Nos hospitais localizados nas cidades de Montevidéu e Buenos Aires, acumulavam-se


médicos na proporção de 16 médicos para 200 doentes e outros com 6 médicos para 80
doentes como sucedia nos hospitais de Calla-Bolivar e Belgrano em Buenos Aires. Assim foi
constatado pelo ministro João Lustosa da Cunha Paranaguá em correspondência confidencial
destinada ao marquês de Caxias, datado em 27 de outubro de 1866, concluindo que os
médicos estritamente necessários, deveriam ficar nos hospitais das capitais aliadas e os que
não fossem necessários seguissem para Corrientes, pois os médicos contratados e
estabelecidos nesses hospitais não queriam sair das capitais aliadas. Conforme Decreto nº
1900 de 7 de março de 1857, os hospitais de campanha são definidos como provisórios ou
temporários para prevenir a insuficiência dos hospitais permanentes. Valendo-se do decreto,
Paranaguá considera diante das circunstâncias que, desde Montevidéu até Corrientes, todos
são hospitais provisórios e os médicos contratados que se recusasse a prestar serviço,
deveriam ter seus contratos rescindidos. 22
No mesmo Decreto, sobre o novo regulamento do corpo de saúde do Exército, o artigo
nº 228 trata das condições em que os hospitais temporários devem estar alocados, situados em
lugares salubres “e que ofereçam todas as condições que a ciência aconselha; exceto nos casos
em que as vicissitudes da guerra, reconhecidas pelo general em chefe do Exército obrigar ao
sacrifício de colocá-los.”23 O artigo nº 228 foi posto em prática, principalmente, nos anos
iniciais da guerra e, com o comando do marquês de Caxias, se verificou uma melhor estrutura
e organização para o corpo de saúde do Exército.
A concentração excessiva de médicos contratados para o serviço nos hospitais de
campanha na guerra contra o Paraguai, nas capitais da Tríplice Aliança, motivada pela
comodidade que um grande centro urbano oferece, em vez da locação em um meio insalubre
onde eram localizados os hospitais do Exército brasileiro. Segundo Paranaguá, a proporção de
médicos para doentes nos hospitais provisórios, que se encontravam na região de Corrientes,

20
BN/RJ – AM/CMB, 34A, 03, 003 n° 020, (08/07/1866).
21
Ibidem.
22
BN/RJ – AM/CMB, 34A, 03, 001 n° 046, (27/10/1866).
23
Ibidem.
ficava muito a desejar e as dificuldades de provimento para o serviço médico; provavelmente,
não era nada animador para o engajamento do serviço médico na retaguarda do Exercito.
O atendimento do corpo de saúde nos dois primeiros anos da guerra contra o Paraguai
ficou muito a desejar. As condições precárias e de improviso nos hospitais de campanha
elevou o índice de morte no Exército, devido à deficiência nos hospitais de sangue, à falta de
medicamentos, à falta de barracas apropriadas para os doentes, à falta de carretas de
transportes dos feridos e enfermos e ao número reduzido de médicos e enfermeiros (CUNHA,
2000, p. 80-82).
As tabelas 2 e 3 mostram dados sobre variações das doenças assinaladas pelas
inspeções de saúde entre o período de março de 1865 a março de 1866. Foi constatada uma
grande variedade de doenças e complicações de saúde, tanto adquiridas durante a marcha e
pela localidade dos terrenos em que as tropas ficaram estacionadas ou quanto pela falta de
uma inspeção de saúde, já no recrutamento para as fileiras do Exército, nas províncias do
Brasil engajadas para a guerra. O que se viu foi um recrutamento deficiente em relação à
organização da saúde dos voluntários que, em muitos casos, chegavam aos batalhões em
território estrangeiro, com sérias complicações de saúde.
Do montante de dados listados, foram separadas as cinco maiores ocorrências
verificadas dentro do período analisado nas ordens do dia sob o comando do general Osório
nos anos de 1865 e 1866. Tanto na tabela 2 quanto na tabela 3, verificou-se que a maior
incidência de casos constatados foi na classificação do soldado com nenhuma moléstia que
perfazem o somatório de 224 casos nos dois períodos analisados. Houve um aumento de 52
casos na classificação nenhuma moléstia, ou seja, uma variação de 37,68% da diferença entre
os totais desta classificação nos dois períodos de inspeção de saúde.
Já havia uma preocupação do general Osório, como visto anteriormente, com o alto
índice de entrada nas enfermarias dos hospitais de campanha de soldados sem moléstia
aparente ou que tenham simulado alguma moléstia para fugir dos serviços do Exército. O
voluntário que foi engajado para a guerra procurava alternativas para não prestar o serviço
militar para a guerra; se possível, uma baixa do serviço ou uma concessão de licença. Foi uma
prática de resistência que se prolongou durante toda a guerra. O mesmo voluntário que outrora
estava esperançoso e ávido pelos benefícios que o Decreto nº 3.371 de 1865 lhe garantia, não
mostrava o mesmo ânimo para combater uma guerra que já estava se prolongando a custo de
muitas vidas, inclusive fora dos combates.
Um exemplo da falta de vontade para lutar pela foi dado pelo soldado Miguel Pinto da
Silva que ficara de guarda no acampamento em Curupaiti, encontrava-se embriagado e deu
um tiro na própria mão com espingarda. O ofício enviado pelo comandante do 32º corpo de
voluntários da pátria, Antônio Enéas Gustavo Galvão, para o coronel Fernando Machado de
Sousa da 11ª brigada de infantaria: “essa praça tem requerido por duas vezes inspeção de
saúde e como não tenha obtido da mesma a incapacidade, que deseja, julgo ter procurado esse
meio para mutilar-se, o que peço ao conhecimento de V.Sa para os devidos fins”. 24
A alta incidência de reumatismo nas duas tabelas está relacionada à mudança regional
e de temperatura chegando a zero grau no Uruguai e na Argentina. Muitos voluntários
brasileiros não estavam acostumados. Das províncias do nordeste e norte do Império do Brasil
provinha bom número do contingente para a guerra contra o Paraguai. Dessas províncias de
climas mais quentes com cultura e alimentação diferentes das fronteiras do sul do país,
fizeram-se muitas baixas nos corpos do Exército, principalmente, na estação de inverno de
baixas temperaturas e geadas. Outro importante dado a ser observado é sobre a hérnia
inguinal. A hérnia inguinal acomete mais os homens e está relacionado a vários fatores e um
deles é o esforço físico que aumenta a pressão abdominal que percebe um inchaço na virilha,
também conhecida de quebradura, podendo ser hereditária ou a pré-disposição para a
doença.25 Nesta situação, o recurso do corpo de saúde era julgar a incapacidade para o serviço.
Essa doença acarretou muitas baixas no serviço do Exército durante a guerra contra o
Paraguai.
TABELA 2-Mapa das principais ocorrências da inspeção de saúde no período de março/1865 a
dezembro/1865.

Inspeção de saúde Doenças Quantidade de Porcentagem


(mar/1865- dez/1865) doentes da ocorrência

01 Nenhuma moléstia 86 31,39%


02 Reumatismo 59 21,53%
03 Hérnia inguinal 51 18,61%
04 Tuberculose 42 15,33%
05 Ferimento (combate) 36 13,14%
Total de ocorrência: 274 100%
Fonte: Mapa estatístico das maiores ocorrências de doenças pela inspeção de saúde (mar/1865-dez/1865). In:
Ordem do Dia da Guerra do Paraguay – 1º Corpo de Exército sob o comando do Marquês do Herval, vol. I 1865.

Na tabela 3, constam, como a quinta maior incidência, as complicações gástricas.


Neste período o comando do Exército mantinha a dieta de churrasco, pouca farinha e erva
mate (CERQUEIRA, 1980, p. 137), base alimentar comum da região pampeira. A falta de
variedade do rancho foi um fator para problemas estomacais graves nos soldados que não
tinham culturalmente, a dieta de carne bovina diária no início da guerra. Na mesma tabela,
nota-se uma maior incidência de tuberculose que, neste período, passa para a segunda posição
em comparação a tabela 2 em quantidade de ocorrências. O agrupamento de grande número

24
BN/RJ – AM/CMB, 34A, 05, 007 n° 008, (20/07/1868).
25
CHERNOVIZ, Pedro Luiz Napoleão. Dicionário de Medicina Popular. São Paulo. Disponível em: <
http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario>. Acesso em: 10 de outubro de 2012.
de praças nos acampamentos, confinados em barracas nos meses de frio e chuva na região de
Corrientes, aumentaram os casos de tuberculose nos corpos do Exército.
TABELA 3-Mapa das principais ocorrências da inspeção de saúde no período de novembro/1865
a março/1866.

Inspeção de saúde Doenças Quantidade de Porcentagem da


(nov/1865- doentes ocorrência
mar/1866)
01 Nenhuma moléstia 138 32,39%
02 Tuberculose 90 21,13%
03 Reumatismo 70 16,43%
04 Hérnia inguinal 68 15,96%
05 Gastrointerite 60 14,09%
Total de ocorrência: 426 100%
Fonte: Mapa estatístico das maiores ocorrências de doenças pela inspeção de saúde (nov/1865-mar/1866). In:
Ordem do Dia da Guerra do Paraguay – 1º Corpo de Exército sob o comando do Marquês do Herval, vol. II
1866.

Desde a derrota de Curupaiti, em outubro de 1866 até a tomada da fortaleza de


Humaitá, em julho de 1868, o comandante Caxias conviveu com altas taxas e perdas de
soldados provocadas pela cólera. Esta fase teve um declínio nos índices de recrutamento
acompanhado pelo recrudescimento do alistamento forçado nas províncias brasileiras,
acarretando baixas taxas de voluntariado (MENDES, 2010, p. 98).
As doenças durante a guerra contra o Paraguai foram umas das motivações para novas
arregimentações para os corpos do Exército. A insalubridade dos territórios em que as tropas
se encontravam e as condições dos hospitais de campanha, ceifando mais do que as armas de
fogo e também ocasionaram atos de insubordinações.
Essas considerações, mesmo que pouco pesquisado, são relevantes para compreender a
situação da saúde naquele período de 1865 a 1870. Outro aspecto foi observar as ocorrências
epidemiológicas que eram mais corriqueiros naquelas imediações. Assim como compreender
as doenças mais corriqueiras. Tais inspeções foram relacionadas nas ordens do dia do Exército
e mantinham informados os números necessários para novos alistamentos de corpos de
Voluntários da Pátria.
Estas abordagens levantadas ajudam a conhecer e a classificar as enfermidades naquele
momento do século XIX. Também, entender os procedimentos médicos nos hospitais de
campanha.

Referências Bibliográficas
CERQUEIRA, Dionísio. Reminiscências da Campanha do Paraguai. Rio de Janeiro:
BIBLIEX, 1980.
CUNHA, Marco Antônio. A chama da nacionalidade: ecos da Guerra do Paraguai. Rio de
Janeiro: BIBLIEX, 2000.
MENDES, Fábio Faria. Recrutamento militar e construção do Estado no Brasil Imperial.
Belo Horizonte: Argvmentvm Editora Ltda, 2010.
Ordem do Dia da Guerra do Paraguay – 1º Corpo de Exército sob o comando do Marquês do
Herval, vol. I 1865.
Ordem do Dia da Guerra do Paraguay – 1º Corpo de Exército sob o comando do Marquês do
Herval, vol. II 1866.
SOUSA, Jorge Luiz Prata de. Escravidão ou morte: os escravos na Guerra do Paraguai. Rio
de Janeiro: Mauad/ADESSA, 1996.

Referência da Internet
CENTER for Research Libraries. Disponível em: <http://www.crl.edu/brazil>. Acesso em: 10
de setembro de 2011.
CHERNOVIZ, Pedro Luiz Napoleão. São Paulo: Dicionário de Medicina Popular. Disponível
em: <http://www.brasiliana.usp.br/pt-br>. Acesso em: 10 de outubro de 2012.
PUBLICAÇÃO, Conselho de Estado sobre negócios relativos ao Ministério da Guerra 1842-
1872. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/bbd>. Acesso em: 21 de agosto de 2012.
O EMBATE POLÍTICO ENTRE O MARECHAL E O ADVOGADO
NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Aline Souza de Vasconcellos do Valle


Doutoranda - Universidade Federal do Espírito Santo

Milena Dalla Bernardina


Doutoranda - Universidade Veiga de Almeida

Christiany Frasson da S. Souza


Mestranda-Pós-Graduação em Estudos Marítimos - Escola de Guerra Naval

INTRODUÇÃO

É notória a participação do Poder Judiciário na História Política brasileira, com a


influência de suas decisões e posicionamentos junto aos demais poderes da nação, com papel
predominante do Supremo Tribunal Federal (STF) na realização do controle de
constitucionalidade das ações e regramentos emanados pelo Executivo e pelo Legislativo.
Assim, ainda hoje é possível notar o crescimento da atuação política dos tribunais
nacionais, fenômeno intrinsecamente ligado ao processo de judicialização dos conflitos e do
judiciarismo. A jurisdição constitucional consiste na utilização de mecanismos processuais
para proteger preceitos normativos previstos no interior da Carta Magna. Esses mecanismos
fazem parte dos controles difusos e concentrados de constitucionalidade. O primeiro pode ser
realizado por qualquer ação e ser objeto de análise de qualquer magistrado. O segundo,
obrigatoriamente, será impetrado na corte máxima da justiça brasileira, respeitando o rol de
legitimados para ingressar com as ações próprias. O controle concentrado não entrará neste
estudo, pois foi criado por Kelsen, no Direito austríaco, anos antes da Segunda Guerra
Mundial, portanto não faz parte do recorte proposto, que consiste na análise do controle difuso
de constitucionalidade do fim do Século XIX e início do século XX e a sua utilização como
ferramenta para frear os atos do executivo durante os primeiros anos da República no Brasil.
A pesquisa se fundamentou em documentos históricos como: leis, acórdãos do Supremo
Tribunal Federal, sentenças judiciais, petições protocoladas e discursos parlamentares da
época.
Assim, o artigo apresentará aspectos referentes a atuação de Rui Barbosa perante o
Judiciário e o governo de Floriano Peixoto, durante a Primeira República brasileira, tendo
como foco os caminhos percorridos por este intelectual para a implementação do sistema de
freios e contrapesos pelo Supremo Tribunal Federal após a promulgação da Constituição de
1891.
O JUDICIARISMO DE RUI BARBOSA E A REPÚBLICA DA ESPADA
Rui Barbosa produziu grandes contribuições para o Direito e para a política brasileira,
uma vez que foi um dos principais elaboradores da Constituição Republicana de 1891. Nela,
ajudou a incorporar institutos como o presidencialismo, a federação, a suprema corte e,
principalmente, a jurisdição constitucional. As ideias de Rui eram lançadas através de artigos
publicados em jornais, em cartas enviadas da Inglaterra, defesas no STF e discursos no
Congresso, preocupando-se não apenas com a compilação de grandes obras, mas com a
consequência prática de suas ideias, tentando difundi-las ao grande público.
Contudo, os primeiros anos da República foram marcados por um intenso militarismo,
para conter várias revoltas como a Revolta da armada em 1903, a Revolta da Vacina em 1904,
a Revolta da Chibata em 1910 e os bombardeios ocorridos contras as capitais dos estados do
Amazonas e da Bahia, tornando frequentes o uso da intervenção federal e do estado de sítio
que ficava a cargo do chefe do Poder Executivo, com a devida ratificação do Congresso
Nacional. Durante esse período, o estado de sítio foi decretado onze vezes, levando a atuação
de Rui Barbosa que impetrou Habeas Corpus e ingressou com ações civis questionando ações
de natureza política no Supremo Tribunal Federal.
A sucessão de poder entre Deodoro e Floriano se deu sem grandes embates militares. Com
a renúncia de Deodoro, seu vice Floriano Peixoto assumiu o cargo. Neste momento, a
Constituição Federal de 1891 determinava o seguinte: “Art 42 - Se no caso de vaga, por
qualquer causa, da Presidência ou Vice-Presidência, não houverem ainda decorrido dois anos
do período presidencial, proceder-se-á a nova eleição”. Com a renúncia de Deodoro da
Fonseca em 1891 e a chegada de Floriano Peixoto ao poder, inicia-se o debate em torno da
necessidade de convocação de novas eleições presidenciais por Floriano.
Contudo, numa manobra interpretativa, Floriano Peixoto passou a alegar que a mesma
Constituição previa a eleição do presidente e vice-presidente pelo voto direto. Assim, uma vez
a eleição de Deodoro e Floriano havia se dado por meio do voto da própria Assembleia
Constituinte, Floriano não estaria submisso à regra constitucional, pois a ela faltaria o
requisito de ter sido eleito pelo voto direto do povo.
Logo surgiram protestos contra a permanência de Floriano no poder, tendo como resposta
a instauração do Estado de sítio na cidade do Rio de janeiro. Nesse momento, ocorreu a prisão
de senadores, deputados, coronéis e almirantes, e demais indivíduos que realizassem oposição
ao governo, inaugurando um governo marcado pela arbitrariedade com uma política que
baseava a legitimação de seus atos pelo uso da força para neutralizar seus opositores, tendo
como defesa de seus atos a necessidade de amenizar o cenário de turbulência deixado pelo
governo de Deodoro por meio de uma política de “Salvação Nacional”, que se caracterizou
por apresentar vários aspectos de uma ditadura.
Durante a ditadura florianista, para Rui Barbosa existiam apenas dois partidos: os que
defendiam o governo das leis e aqueles coligados com as atrocidades políticas cometidas pelo
governo. Assim, assume uma postura de enfrentamento ao ditador, ingressa com Habeas
Corpus a favor dos desterrados e contra a decisão de Floriano de detê-los, assumindo seu
lugar de oposição ao governo (VIANA FILHO, 2008, p. 321).
Essa foi a primeira vez que Rui inseriu questões de natureza política para serem julgadas
pelo Supremo Tribunal Federal. Contudo, o contexto social e político da época não era
favorável à implementação da jurisdição constitucional e do judiciarismo ruiano, uma vez que
o fim da monarquia proporcionou o fortalecimento das oligarquias estaduais e o facciosismo,
além da ausência de uma tradição de participação do Poder Judiciário em decisões
consideradas de natureza política no Brasil até aquele momento.
Diante da decretação do estado de sítio por diversas vezes, Rui salientava o prejuízo
político decorrente de tais medidas, visto que para este pensador a ação discricionária do
poder público poderia resultar em uma degradação das garantias constitucionais. Apesar da
posição de destaque atribuída ao STF pela Constituição de 1891, a prática política indicava a
hipertrofia do Poder executivo, levando Rui Barbosa a defender a inversão desta realidade,
fazendo com que o STF tomasse posição destaque no controle de constitucionalidade difuso.
Na fundamentação de suas ações, esse jurista destacou algumas informações importantes
que deveriam ser levadas em consideração pelo Supremo Tribunal Federal na hora de emitir
sua decisão. Uma delas era a temporariedade de medidas autoritárias realizadas em relação à
data da publicação do decreto que legitimava tal ação. Em um desses casos, o decreto quanto
ao estado de sítio foi publicado no dia 10 de abril de 1892, e a prisão dos opositores ao
governo foi determinada na noite anterior, ferindo o princípio da legalidade, visto que o
decreto não poderia surtir efeito antes de sua publicação, principalmente quando abarcava a
seara penal. Para esse jurista, jamais o estado de sítio decretado abarcaria a determinação da
prisão de pessoas, antes mesmo de sua decretação.
Felizmente, graças a uma regra geral de direito, que não pode sofrer exceção ao bel
prazer da autoridade, fácil determinar o termo inicial deste estado de sítio, senão
quanto as horas, ao menos quanto o dia. Os atos do Poder Legislativo, ou do
Executivo, que criam, extinguem ou suspendem obrigações, ou direitos, para os
cidadãos especialmente em matéria penal, não tem existência legal, senão do
momento de sua publicação em diante. Logo, o decreto em questão não podia ter
vigor jurídico, senão a contar do momento da sua promulgação. Isto é, da manhã de
11, em que o Diário Oficial o estampou. Portanto, as prisões do dia ou da noite de
10, antecipadamente efetuadas à sombra do estado de sítio, ainda não promulgado,
são, de suas origem, nulas e insubsistentes. (BARBOSA, 1956, p. 119).

O decreto publicado mencionava: “Declara em estado de sítio o Districto Federal e


suspende as garantias por 72 horas” (BRASIL, 1892). Nessa ação, o constitucionalista
propositor criticava a forma como o ato foi determinado, sem mencionar o termo inicial e
final da referida suspensão das garantias individuais. Assim, passou a criar suposições sobre o
momento da instauração do período excepcional vivido no governo do Presidente Marechal
Floriano Peixoto, destacando que o estado de sítio findou em 13 de abril daquele ano, jamais
podendo o Senador e Almirante Eduardo Wandenkolk ser preso, após esse período, estando
no gozo de suas garantias individuais e com a imunidade parlamentar que lhe era conferida
pela Constituição de 1891. Logo, as irregularidades das decisões políticas tomadas pelo
executivo se estendiam desde a anterioridade da decretação do estado de sítio até o período
posterior ao seu termo final.
Rui Barbosa ainda destacou que o Supremo Tribunal Federal deveria agir em defesa de
toda a sociedade, concedendo o habeas corpus que patrocinava, pois os pacientes não haviam
afrontado ou ameaçado as instituições para que o sítio fosse instaurado. Afirma que diante do
ineditismo de tal decisão, visto que as instituições republicanas brasileiras estavam iniciando
sua formação, seria necessário mirar as jurisprudências americanas para fundamentar as
referidas decisões de concessão do remédio constitucional por ele utilizado para defender
pessoas ilegalmente presas. Segue a sua fundamentação nessa ação:
Resultando da essência do sistema, esses princípios aplicam-se “a qualquer
constituição escrita, sob a qual existir um poder judiciário independente e um poder
legislativo com atribuições limitadas”. E a nossa constituição atual os adotou,
conferindo ao Supremo Tribunal Federal a competência de sentenciar em instância
definitiva, “nas questões resolvidas pelos juízes de tribunais federais (art.59, inciso
III, §1°), entre as quais se abrangem “as causas em que alguma das causas fundar a
ação, ou a defesa, em disposições da constituição federal” (Art.60, a).
A Constituição americana, a jurisprudência americana e as autoridades
constitucionais americanas são, portanto, as fontes de interpretação entre o novo
regime entre nós; uma vez que, com mais razão do que se dizia, em 1860, na
convenção da república da Argentina, onde, aliás, a Constituição de 1853, já era
cópia da dos Estados Unidos, havendo de reconhecer que o direito público
federativo, carece totalmente de antecedentes históricos no país. (BARBOSA, 1956,
p. 133).

Apesar dos esforços desse constitucionalista em aplicar na prática a interferência do


Poder Judiciário nas demais esferas de poder para salvaguardar a Constituição, esse habeas
corpus foi negado. O acórdão da Suprema Corte brasileira foi sucinto, objetivo, e negou os
pedidos dos pacientes coagidos. Foi consultado o inteiro teor dessa decisão histórica para
entender a crítica realizada pelo autor acima mencionado:
Considerando que, pelo art. 80, § 3º, combinado com o art. 34, § 21 da Constituição,
ao Congresso compete privativamente aprovar ou reprovar o estado de sítio
declarado pelo Presidente da República, bem assim o exame das medidas
excepcionais, que ele houver tomado, as quais para esse fim lhe serão relatadas com
especificação dos motivos em que se fundam;
Considerando, portanto, que, antes do juízo político do Congresso, não pode o Poder
Judicial apreciar o uso que fez o Presidente da República daquela atribuição
constitucional, e que, também, não é da índole do Supremo Tribunal Federal
envolver-se nas funções políticas do Poder Executivo ou Legislativo;
[...] Considerando, finalmente, que a cessação do estado de sítio não importa, ipso
facto, na cessação das medidas tomadas dentro dele, as quais continuam a subsistir,
enquanto os acusados não forem submetidos, como devem, aos tribunais
competentes, pois do contrário, poderiam ficar inutilizadas todas as providências
aconselhadas em tal emergência por graves razões de ordem pública; (BRASIL,
1892, grifo nosso).

A análise dessa sentença proporcionou chegar às seguintes conclusões: a primeira ação


judicial que visava à atuação política do Supremo Tribunal Federal negou o pedido do autor.
Todavia, suas ideias foram disseminadas, como sementes em um campo fértil, pois estavam
presentes no dia de sua defesa representantes políticos do mais alto escalão. O ministro relator
dessa ação, Joaquim da Costa Barradas, anos mais tarde, já aposentado da função ligada à
magistratura e no exercício da advocacia, seguiu o exemplo do jurista aqui mencionado.
Protocolou uma ordem de habeas corpus em favor de congressistas e militares presos em
Fernando de Noronha (NOGUEIRA, 1996).
Rui Barbosa e seu posicionamento favorável à atuação política do Supremo não
enfrentou oposição apenas dentro da Suprema Corte Brasileira, mas também entre intelectuais
como Felisbelo Freire (FREIRE, 1919). Médico e político atuante, tendo inclusive participado
da elaboração da Constituinte de 1891, afirmava que o Direito Americano era muito diferente
do Direito no Brasil, logo não havia possibilidade de tomar por base as decisões lá proferidas
aqui em nosso país, principalmente em relação a esse caso de habeas corpus, no qual a prisão
foi decretada pelo chefe do Poder Executivo (NOGUEIRA, 1996).
Existiam outros jornalistas da época que não compartilhavam das ideias judiciaristas
ruianas. Além de Felisbello Freire, colocaram-se contra a interferência judicial nos demais
poderes os jornalistas Aristides Lobo, que apoiou a decisão em um texto publicado no Fígaro.
Macedo Soares seguia a mesma posição de Felisbello e Aristides, em uma revista jurídica por
ele editada, destacava:
Até o presente, ilustrado impetrante do Habeas Corpus está só. O congresso, a
imprensa, os publicistas, todos quanto estudaram o assunto sob seus múltiplos
aspectos, dão plena razão ao Supremo Tribunal Federal, quando se declarou
incompetente conhecer da espécie que a constituição da República reservou
expressamente ao conhecimento do Poder Legislativo. (BARBOSA, 1956, p. 43).

Enquanto isso, Rui assumia a direção do Jornal do Brasil e publicava vinte e um


artigos sobre a forma de direção do Estado, pelo então presidente, e sobre o acórdão publicado
pelo STF. Dessa maneira, estabeleceu uma franca oposição ao governo desse Marechal. Nesse
mesmo momento, a marinha se opôs ao exército, e o presidente recebeu o apelido de Marechal
de Ferro. No Sul, agitava-se o caudilhismo, sendo os principais líderes políticos Gumercindo
Saraiva e Silveira Martins. Wandenkolk, um dos desterrados, rumou em uma embarcação
chamada Júpiter para o porto do Rio Grande. O estadista autoritário mandou interceptar o
navio e prendeu todos que estavam lá dentro, inclusive os civis alheios ao conflito.
Rui Barbosa mais uma vez se utilizou de um mecanismo judicial para desfazer uma
ação produzida pelo chefe do executivo, que lesionava claramente o direito de ir e vir de
cidadãos nacionais e estrangeiros. O Habeas Corpus impetrado em favor dos civis que se
encontravam no navio Júpiter seria o primeiro caso em que a atuação política do tribunal
produziria frutos positivos. Assim dissertava em sua petição inicial:
Com as maiores dificuldades lutou o impetrante para obter o roll das vítimas de tão
grosseiro e monstruoso constrangimento; visto que um sistema de sigilo penetrável,
adotado quer em relação aos nomes dos pacientes, quer a respeito da causa da prisão,
envolve na espécie a mais profunda obscuridade, frustrando quaisquer esforços,
accessíveis ao peticionário, para alcançar a lista dos presos e a explicação oficial da
violência, a que estão submetidos. [...] Quarenta e oito cidadãos, brasileiros e
estrangeiros, sem processo, sem juiz. Sem arrimo de autoridade, que os ouça, nem
meio de invocá-lo, sem uma ansiedade sem limites, os dias de uma prisão indefinida,
hermética, absoluta. São culpados? Quem pode sabê-lo? Quando se saberá, se o
regime em que os inumaram proscrever a investigação da verdade, convertendo a
suspeita em sentença? (BARBOSA, 1983, p. 319).

Através do ativismo judicial ruiano, o STF proferiu o acórdão que concedia a liberdade
a esses cidadãos, anulando a decisão emitida pelo Poder Executivo. Seria a primeira vez que o
judiciário brasileiro inflaria sua esfera de atuação para defender garantias individuais
ameaçadas pelo Presidente da República. Assim, 45 dos 48 presos foram soltos,
permanecendo na prisão apenas o almirante Wandenkolk e mais dois outros prisioneiros.
Nesse processo, Rui conseguiu duas vitórias, tendo logrado a libertação dos prisioneiros civis,
além de conseguir arregimentar uma corrente jurisprudencial que assegurava a atividade
política do STF. Contudo, continuou atuando neste caso, no intuito de conseguir a libertação
do Almirante Wandenkolk, Bacelar e do Tenente Antão. Em relação ao primeiro, levou a
questão para ser debatida no Senado. Wandenkolk era senador e fazia jus à imunidade
parlamentar, não podendo ser julgado por um tribunal militar, como o próprio Rui
mencionava:

O Senado reconhecendo, de acordo com os fundamentos do parecer, a competência


do foro civil, em presença do art.20 da constituição da República, perante o qual
deve responder o membro do congresso, delibera que, mediante requisição ao Poder
Executivo, sejam remetidos os papéis concernentes ao caso do senador almirante
reformado Eduardo Wandenkolk às justiças comum, onde se lhe deve formar a
culpa, e proceder o respectivo julgamento. (BARBOSA, 1983, p. 341).

Em relação à Bacelar e Antão Correa, as coisas eram um pouco mais difíceis, pois não
eram parlamentares, sendo julgados por tribunais militares, o que Rui não considerava
oportuno na ocasião. Devido a isso, passou a argumentar que os dois oficiais já estavam
reformados, por isso já não faziam mais parte da carreira militar e como consequência, suas
ações não eram ações militares. Ao contrário do que aconteceu no julgamento do Habeas
Corpus protocolado em favor dos civis do navio Júpiter, as partes envolvidas no litígio não
puderam comparecer, mesmo com a solicitação dos ministros do STF. No dia da análise dessa
nova ação em favor dos três envolvidos nesse mesmo caso, os pacientes se faziam presentes.
A sala estava lotada de curiosos. Rui subiu ao púlpito e apresentou seus argumentos,
entretanto, amargou mais uma derrota. Os ministros sentenciaram a favor da seguinte tese:
“[...] considera os oficiais reformados, posto que exonerados do serviço ativo, ainda como
praças alistadas no exército, formando uma de suas classes, gozando de todas as suas isenções
e privilégios, e sujeitos à jurisdição militar nos crimes militares” (BRASIL, 1893b, online).
Assim, caiu por terra sua principal argumentação.
A ditadura florianista se aprofundava e a norma quanto à submissão do governante à
Constituição era constantemente desrespeitada. Mais uma vez as arbitrariedades do chefe do
Poder executivo gerariam vítimas, desta vez professores e militares que foram retirados de
seus cargos sumariamente. Mais uma vez o procurador da ação anterior tentaria utilizar o
Poder Judiciário para frear a atuação exacerbada do poder executivo (NOGUEIRA, 1996).
Engana-se quem imagina que as questões políticas eram lançadas ao debate pelo Poder
Judiciário apenas por via do Habeas Corpus, sendo a porta de entrada o Supremo Tribunal
Federal. Ao pleitear a reparação por danos materiais causados pelo governo a esses
funcionários públicos, através de uma ação civil comum, protocolizada perante as varas da
justiça Federal, esse advogado vai continuar fazendo o Poder Judiciário agir em prol de limitar
a atuação do Poder Executivo. Todavia, Rui não recebeu os resultados dessas ações em terras
brasileiras, visto que se encontrava fora do Brasil, fugindo das perseguições florianistas. Neste
momento histórico, algumas classes políticas passaram a se revoltar contra os desmandos
florianistas, o que resultou na Revolta da Armada.
Floriano determinou a apreensão de Rui Barbosa em 05 de novembro, sendo
comunicado da decisão presidencial pelo Coronel Sebastião Bandeira, motivo pelo qual
refugiou-se na embaixada chilena seguindo posteriormente para a residência do Ministro
Francisco Castro. Naquele momento, Floriano havia decretado o estado de sítio mais uma vez,
portanto não era sensato permanecer no Brasil. Para fugir, Rui Barbosa embarcou em um
navio mercante Inglês denominado “Madalena”, que estava a caminho de Buenos Aires
(NERY, 1955).
Enquanto isso, os conflitos armados se intensificavam no Brasil, com os revoltosos da
marinha sendo fuzilados, assim como alguns líderes do caudilhismo. O fugitivo político
permaneceu em Buenos Aires por seis meses, em seguida embarcou para Portugal, depois
para a França e por fim, para a Inglaterra (NERY, 1955).
Nesse momento, Rui teve que se afastar do ativismo político, passando a advogar na
Inglaterra e servir de correspondente internacional para alguns jornais brasileiros. Mas, as
noticias chegavam do Brasil, entre elas estava um telegrama anônimo que mencionava:
“Vitória juiz seccional reformas militares. Hurrah maior campeão liberdades civis militares
tempo legalidade” (BARBOSA, 1952, p. 36). Deduziu que havia alcançado a vitória naquele
processo, logo o juiz da primeira seccional do Distrito Federal havia deliberado a seu favor na
ação relacionada aos professores destituídos de seus cargos e dos militares reformados
imotivadamente. Em carta enviada da Inglaterra, o próprio Rui destacava:
Vejo que venci a questão dos generais e lentes demitidos, perante a justiça federal. É
um triunfo, que me surpreendeu, atenta a desmoralização geral do País. Noutra terra
esse aresto seria recebido como a primeira conquista, séria para a liberdade
constitucional. No Brasil não sei se ele terá merecido as honras e os comentários.
(BARBOSA, 1952, p. 36).

Anos mais tarde, tal sentença foi ratificada pelo Supremo Tribunal Federal. Assim, Rui
desconstruiu toda a argumentação contrária, defendendo que tanto o Congresso quanto a
presidência da república deveriam respeitar o conteúdo constitucional e em caso de
desrespeito, caberia à Justiça Federal retirar os efeitos dos atos praticados. Assim, percebe-se
que os rumos interpretativos da argumentação ruiana esteve em difundir a ideia de um Estado
de Direito, retirando os rumos da política nacional do arbítrio dos governantes e estabelecendo
o governo das leis no Brasil.

CONCLUSÃO
O objetivo principal da realização deste estudo científico foi averiguar como se
concretizou o princípio da separação dos poderes no Brasil e dentro dessa perspectiva como
ocorreu a formação do Supremo Tribunal Federal, a existência de uma participação política
dessa entidade no sistema de freios e contrapesos instaurados no início da República, por meio
da atuação de Rui Barbosa perante este Tribunal. Após as configurações políticas que levaram
ao fim da monarquia e ao início da república no Brasil, capitaneada por Deodoro da Fonseca
como primeiro presidente da República, a aproximação entre o presidente e Rui Barbosa
permitiu a ampla participação do jurista na elaboração da Constituição Fundante do novo
Estado Republicano, tendo como consequência a inserção de importantes modificações na
realidade jurídica brasileira, com o estabelecimento de três poderes (executivo, legislativo, e
judiciário), inserção do controle difuso de constitucionalidade, bem como a possibilidade de
estabelecimento de governos excepcionais, que foram o estado de sítio e a intervenção federal.
Todavia, o inicio do governo republicano foi marcado pela concentração de poderes no
âmbito do Poder executivo, com a prevalência dos momentos de instauração de estado de sitio
e intervenções federais. Neste contexto, não obstante as previsões constitucionais quanto à
atuação da Suprema Corte no Brasil, sua atuação se caracterizava por excluir questões de
fundo político de sua competência. Corroborando tal exclusão de competência, muitos
intelectuais da época questionavam a possibilidade da Suprema Corte em se imiscuir em
questões políticas, visto que seus magistrados não advinham de pleitos eleitorais.
Rui Barbosa acreditava que as garantias constitucionais sempre deveriam ser
respeitadas, defendendo que a Constituição estava acima das deliberações do Congresso
Nacional e da sanção ou veto do presidente da república, visto que em seus escritos afirmava
que os ministros do Supremo deveriam realizar a reavaliação dos atos realizados pelos demais
poderes, passando a atuar como advogado por meio de ações que exigiam a prática das teorias
por ele defendidas e previstas na Constituição que havia ajudado a elaborar, assumindo
postura de oposição ao governo de Floriano Peixoto e à sua política salvacionista, além de
lutar pela criação de novas jurisprudências no sentido da atuação da Suprema Corte brasileira
em questões políticas, contribuindo para o posicionamento político do Judiciário e para a
promoção da efetivação do sistema de freios e contrapesos após a promulgação da
Constituição Federal de 1891.

REFERÊNCIAS
BARBOSA, Rui. Discursos Parlamentares. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui
Barbosa, 1973. (Obras completas de Rui Barbosa, v. XLL, t. I).
______. Os Atos Inconstitucionais do Congresso. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa,
1952. (Obras completas de Rui Barbosa, v. XX, t. V).
______. O Direito do Amazonas ao Acre Setentrional. Obras completas de Rui Barbosa.
Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983. (Obras completas de Rui Barbosa,
v. XXXVII, t. V).
______. Trabalhos Jurídicos: Estado de Sítio. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui
Barbosa, 1956. (Obras completas de Rui Barbosa, v. XIX, t. III).
______. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de
1891. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em:
17 ago. 2017.
______. Decreto nº 791, de 10 de abril de 1892. Declara em estado de sitio o Distrito
Federal e suspende as garantias por 72 horas. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-791-10-abril-1892-506799-
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Julgamentos Históricos. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico/anexo/HC300.pd
f>. Acesso em: 19 jul. 2017.
______. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 406, de 2 de agosto de 1893a.
Julgamentos Históricos. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico/anexo/HC406.pd
f>. Acesso em: 19 jul. 2017.
______. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 415, de 2 de setembro de 1893b.
Julgamentos Históricos. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico/anexo/HC415.pd
f>. Acesso em: 19 jul. 2017.
FREIRE, Felisberto. A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil
Interpretada pelo Supremo Tribunal. Rio de Janeiro: [s.n.], 1919.
NERY, Fernando. Rui Barbosa: Ensaio Biográfico. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa,
1955.
NOGUEIRA, Rubem. O Advogado Rui Barbosa: Momentos Culminantes de Sua Vida
Profissional. 4. ed. Belo Horizonte: Nova Alvorada Edições, 1996.
VIANA FILHO, Luiz. A Vida de Rui Barbosa. 13. ed. Bahia: Assembleia Legislativa do
Estado da Bahia, 2008.
A LIBERALIZAÇÃO DO REGIME MILITAR AUTORITÁRIO DE 1964

Aloysio Castelo de Carvalho


Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense

Este trabalho investiga a origem da liberalização do regime militar autoritário,


iniciada em 1974 pelo governo do general Geisel. Estratégia de poder executada por mais de
dez anos, a distensão/abertura tem suscitado controvérsias em inúmeras questões. Entre elas,
uma é do nosso interesse: o que explica a elaboração desse projeto de poder? O que motivou
os dirigentes a realizar mudanças liberalizantes?
Nosso argumento é que a proposta de liberalização ressurgiu durante o governo
Médici, em um contexto de questionamento do modelo político institucional adotado após a
decretação do AI-5. O autoritarismo militar adotou, após dezembro de 1968, um tipo de
regime repressivo que anulava os traços do modelo político liberal conservador, expresso na
Constituição de 1967 (Cruz, S. e Martins, C. E., 1983). Como decorrência, diversas forças que
o apoiavam, passaram a pedir a reorientação dos seus rumos. Produz-se, nesse tempo, um
balanço das transformações modernizadoras. Encontram-se aí importantes elementos para
desvendar por que ocorreram mudanças na ordem institucional.
Para realizar a pesquisa, recuperamos nos arquivos da Escola Superior de Guerra
as palestras realizadas por militares, representantes políticos e autoridades do governo,
durante o período Médici. Dados extraídos dos arquivos da Escola Superior de Guerra
evidenciam que, durante o governo Médici, duas indagações estiveram em pauta. Primeira: ao
fim desse governo, as Forças Armadas completariam dez anos na condução do Estado.
Deveria haver um tempo limite, um termo final para a intervenção dos militares ou esta
deveria ser permanente, sem prazo preciso? Segunda: considerando que o recrudescimento do
autoritarismo após o AI-5 agravou o desprezo por um modelo político com a participação das
instituições representativas liberais, comumente aceito no ocidente, qual deveria ser a
estratégia a adotar para organizar o regime?
Esse debate começou a tomar corpo em meados do ano de 1970, mas vamos
considerá-lo aberto em novembro de 1969 com o discurso do senador Milton Campos da
Arena, proferido no Senado logo após a posse de Médici na presidência da República. Um dos
fundadores da UDN e ativo participante do movimento político e militar de 1964, o ex-
ministro da Justiça de Castelo Branco defendeu “que a revolução corrigisse seus erros, não se
desvirtuasse e não perdesse seu sentido O senador tomou a tribuna parlamentar para propor
que se distinguisse a revolução do seu processo: “a revolução há de ser permanente como
ideia e inspiração para que, com a colaboração do tempo, invocada pacientemente, possa
produzir seus frutos (...) O processo revolucionário há de ser transitório e breve, porque sua
duração tende à consagração do arbítrio” 26.
O tempo de permanência dos militares na direção do Estado constituiu-se desde
1964 num ponto de divergência entre os dirigentes. Sempre foi uma questão em debate o
papel que os militares deveriam cumprir no processo de reorganização político-institucional
aberto após a queda de Goulart.
O recrudescimento das formas autoritárias de poder com a decretação do AI-2, do
AI-5 e a expansão das ações repressivas comandadas pelas forças de segurança criaram um
clima de que seria longa, até eterna para alguns, a permanência das Forças Armadas na esfera
política. Isso explica porque o tempo dos militares no controle do poder se tornou durante o
governo Médici um dos assuntos discutidos na Escola Superior de Guerra, ganhando
publicidade na imprensa. Em palestra na ESG em julho de 1970, noticiada pelo Jornal do
Brasil, Alfredo Buzaid procurou sensibilizar as áreas políticas e militares para a ideia de que a
institucionalização da revolução não podia ter um termo final. Tampouco estava preocupado
em fazer a distinção entre revolução como ideário e como processo, tal como o senador
Milton Campos. No crescer da euforia econômica e com a oposição enfraquecida pela
ampliação das medidas repressivas, o ministro da Justiça do governo Médici, defensor
irrestrito da permanência do AI-5, sustentou que “a revolução que deseja alcançar seus
supremos objetivos e desenvolver em toda a plenitude sua filosofia não deve promover a
fixação de prazos e datas; uma revolução em marcha é uma revolução sem termos”.27
Dirigentes comprometidos com uma posição mais moderada com relação à
institucionalização do autoritarismo mantiveram o discurso construído logo após o golpe de
64, segundo o qual a intervenção militar deveria ser limitada no tempo. Em palestra proferida
na ESG em setembro de 1971, Roberto Campos articulou a demanda de diminuição do
componente de coação do Estado com a ideia de que uma longa permanência das Forças
Armadas acabaria por colocar em risco sua capacidade de veto e arbitragem em momentos de
crise. Os militares, em 1964, tinham uma missão e não uma função. O ex-ministro do
Planejamento no governo Castelo Branco esclareceu que “o papel de missão seria limitado no
tempo e preciso nos seus objetivos: corrigir a indisciplina social, estancar a inflação, minorar
os desequilíbrios sociais, lançar as bases para a retomada do desenvolvimento e compatibilizar
a instituição com o reforço da segurança (...). Em contrapartida, acentuou o ex-ministro, as
“Forças Armadas assumindo uma função política seriam o verdadeiro partido do
desenvolvimento”. Roberto Campos explicou que, no âmbito do pensamento militar, “a

26
Diário do Congresso Nacional (Seção III), novembro de 1969, Sábado 8 – 0271.
27
A declaração do ministro Alfredo Buzaid respondeu a uma pergunta de um estagiário da ESG sobre a
institucionalização da revolução, formulada durante conferência realizada pelo ministro nessa instituição sobre o
tema Marxismo e Cristianismo. “BUZAID diz na ESG que a revolução não tem prazo”. Jornal do Brasil,
04jul1970, p.4.
primeira escola era denominada de cirúrgica e a segunda de tutelar”, sendo que para esta
última escola, “a restauração democrática não deveria ter calendário preciso”. Observou ainda
que a intervenção das Forças Armadas ultrapassara o caráter tradicional de intervenção
moderadora, deslocando-se, então, para uma intervenção estabilizadora no plano político e
reformista nos planos econômico e social. O ex-ministro não só chamou a atenção para o grau
inédito de intervenção militar assumido após 1964, como também ressaltou a necessidade de
se estabelecer limites para o processo em curso. Na sua compreensão as “Forças Armadas não
desejam uma escalada da intervenção estabilizadora para um tipo de intervenção autocrática”,
pois isso abriria a “perspectiva de uma reconsideração do problema da institucionalização
política”. 28
O discurso que preservava o compromisso com o fim do ciclo militar e o
restabelecimento do caráter profissional dos membros das Forças Armadas foi novamente
introduzido no debate público, no final do ano de 1971, pelo chefe do Estado Maior do
Exército. Partidário de Castelo Branco (Corrêa; Marcos, 1977, p.66) e comandante da IV
Região Militar no governo do ex-presidente, o general Souto Malan sustentou que “(...) está à
vista o momento em que a existência de quadros suficientemente amplos (...) permitiria aos
militares concentrar-se no exercício de sua profissão (...) podemos pois permitir-nos
prospecções sobre o processo que se chamaria de desengajamento controlado das Forças
Armadas”.29 Esta declaração veiculada pelo Jornal do Brasil teve grande repercussão na
opinião pública, alimentando expectavivas de que haviam setores do regime mobilizados no
esforço de restabelecer os princípios originais que antes haviam orientado os processos de
governo.
O debate durante o governo Médici sobre os rumos que deveria tomar o regime
apareceu também vinculado aos feitos e realizações no campo econômico. Com o fechamento
do Congresso após a crise de 1968 e a suspensão do projeto de institucionalização
manifestado na Constituição de 1967, a estratégia de alcançar a legitimação principalmente
pelo desempenho econômico tomou força. Os resultados favoráveis na economia
contribuíram para que os representantes do autoritarismo apresentassem avaliações e
propostas diante das controvérsias sobre os benefícios do modelo político instituído após o
AI-5. Para o senador Filinto Müller, presidente da Arena e líder do governo no Congresso, o
30
AI-5 era indispensável na fase de “consolidação da obra revolucionária”. O deputado
federal Etelvino Lins da Arena-PE apontou três fatores responsáveis pela estabilidade política.
“A popularidade do presidente Médici, a força e a unidade da Arena, ao lado do sucesso
econômico, asseguravam de antemão o êxito total e rápido a quaisquer iniciativas no sentido
28
CAMPOS, Roberto. Instituições Políticas nos países em desenvolvimento, palestra realizada na ESG em 18 de
setembro de 1971.
29
MALAN vê os civis capazes de assumir o poder. Jornal do Brasil, 15dez1971, p.3.
30
MÉDICI acha estranho que a oposição fale em nome do povo. Jornal do Brasil, 27mai1971, p.3.
de consolidar as experiências vitoriosas de oito anos revolucionários”. 31 Essas declarações
favoráveis ao continuísmo autoritário somavam-se à do senador Mem de Sá, ao despedir-se da
vida pública em dezembro de 1970. Deputado e senador como membro do extinto Partido
Libertador e, posteriormente, da Arena-RGS, ele afirmou que a "democracia plena, a que é
estável e liberta de subversões, golpes e eclipses (...) esta apenas nos chegará através do
desenvolvimento econômico". Identificado como um político solidário às teses do poder, o
ministro da Justiça de Castelo Branco na fase pós-AI-2 reiterava, assim, a necessidade de
manter a prioridade do econômico sobre o político e apontava o caminho do fortalecimento do
governo, de modo a assegurar a continuidade do desenvolvimento 32.
O surgimento dos indicadores positivos na economia foi acompanhado por
declarações de representantes do autoritarismo que enfatizavam o tema da restauração das
liberdades. Luís Viana Filho, governador da Bahia, concordava que “tinha sido realizada uma
obra excepcional no setor econômico-financeiro e no administrativo”, mas ressaltava que a
“revolução devia ao povo brasileiro a instituição de um regime democrático, principal razão
do movimento deflagrado em março de 1964”.33 Inúmeros editoriais do Jornal do Brasil
também argumentavam que “A aspiração da normalidade constitucional, com a volta ao
Estado de direito, ganha ênfase na medida em que o governo acerta em tantos setores
administrativos e consegue com êxito evidente conduzir o Brasil pelo caminho do
desenvolvimento firme e acelerado”.34 Esse tipo de formulação discursiva que vinculava as
realizações no plano financeiro à ideia de normalização institucional tinha endereço certo.
Chamava a atenção para o fato de que alguns objetivos preconizados pelo movimento de 1964
haviam sido alcançados, não mais se justificando a intensa restrição imposta às liberdades
políticas.
Entre os pré-requisitos para a normalização do regime, a que se referiu Roberto
Campos na ESG, encontrava-se também o término da contestação política como condição
para a ampliação das liberdades políticas. O principal foco de preocupação relacionado às
atividades contestatórias eram as forças de esquerda que estavam dispostas a realizar ações
militares.
Quanto à questão dos focos militaristas de esquerda, há informações de que, desde
o início do ano de 1970, suas ações estavam em declínio. Ainda em janeiro, os organismos
policiais e militares incumbidos da segurança interna anunciaram o êxito das medidas
repressivas. A Operação Bandeirantes dava como praticamente extinta as ações organizadas
pela esquerda armada.35 A avaliação dos órgãos de segurança teve grande repercussão na

31
ETELVINO acha clima propício para conciliação. Jornal do Brasil, 17jan1972, p.3.
32
PODER econômico destrói liberdade, diz Men de Sá. Jornal do Brasil, 22dez1970, p.3.
33
LUÍS Viana quer líderes na luta pela democracia. Jornal do Brasil, 13jan1971, p.3
34
QUESTÃO de ritmo. Jornal do Brasil, 13jan1971, p.6.
35
SEGURANÇA unida contra subversão sem liderança. O Estado de São Paulo, 06jan1970. p.16.
imprensa, como podemos observar no editorial do Jornal do Brasil, segundo o qual “não há
como negar que todos os retrocessos políticos nas tentativas de reintegrar o Brasil no seu
destino democrático acusavam a presença da subversão (...) Assim, o anúncio do êxito da
Operação Bandeirantes transcendia, na visão do jornal, “o sentido da operação repressiva para
adquirir dimensão política, capaz de marcar o fim do processo que nos arrastou às vicissitudes
antidemocráticas”. Uma vez que estava “estancada esta fonte de inquietação e de
anormalidade política” podia-se “esperar como pleitear em maior segurança uma escalada
democrática”. 36
Em palestra proferida na ESG em agosto de 1970, a equipe do Centro de
Informações da Marinha confirmou esse diagnóstico sobre as organizações de esquerda no
Brasil. A VPR e a VAR-PALMARES constituíam, naquele momento, as mais perigosas e
ativas organizações. Esse organismo de inteligência tinha informações corretas e uma
avaliação real da capacidade de ação da VPR e da VAR-PALMARES, que estaria
enfraquecida no que diz respeito à quantidade de seus membros. No seu levantamento, as duas
organizações teriam no máximo, em conjunto, aproximadamente 300 militantes e
simpatizantes.37 Como a tendência em curso de desmantelamento da esquerda armada não foi
alterada, Roberto Campos, em palestra na ESG em setembro de 1971, chamou a atenção para
o progresso alcançado na exigência dos pré-requisitos da normalização. Outro fator positivo,
assinalou, era a “contenção da guerrilha revolucionária e a diminuição da intensidade do
terrorismo urbano”. Todavia, o ex-ministro fez uma ressalva: não sabia se tratava-se de um
“recuo tático ou de real esgarçamento do movimento subversivo”. 38
Apesar do enfraquecimento das ações militaristas, vimos os organismos
comprometidos com o aparato de segurança, como a OBAN, pedirem, no ano de 1970, a
continuidade das ações repressivas para que a esquerda armada não pudesse se reorganizar. O
presidente Médici, em aula inaugural na ESG, em março de 1970, proferida logo após a
comunicação em janeiro do mesmo ano dos êxitos da OBAN, exaltou os “agentes injustiçados
de segurança que enfrentavam o perigo aberto da contestação” e afirmou que, no atendimento
da tranquilidade, “até que esteja seguro de que o terrorismo não mais perturba o esforço
nacional pelo desenvolvimento”, usaria “em plenitude os poderes que a Constituição colocara
39
em suas mãos.” Os poderes que a Constituição de 1967 colocou à disposição de Médici
eram bem superiores aos dos presidentes anteriores. Mais do que em qualquer outro período, a
ordem institucional, com o AI-5, sobrepunha-se à ordem constitucional, modificada e

36
OPERAÇÃO-DEMOCRACIA. Jornal do Brasil, 26fev1970, p.6.
37
CENIMAR. Atuais movimentos subversivos no Brasil. Conferência proferida pelo órgão de segurança na
ESG em 13 de agosto de 1970, p.20.
38
CAMPOS, Roberto. Instituições políticas, palestra na ESG, op. cit, 18set1971.
39
MÉDICI convoca todos para construir um país livre. Jornal do Brasil, 11mar1970, p.5. Ver: Aula inaugural
pronuncia pelo presidente Médici na ESG, 10 de março de 1970, p.14 e 15
outorgada pela Emenda de outubro de 1969, quando foi ampliada no texto a noção de
segurança nacional (Borges, Nilson, 2003) . A mudança refletia a prioridade em fortalecer o
aparelho repressivo voltado para a defesa da segurança interna. A convivência do AI-5 com a
Constituição vigente se tornou a principal controvérsia no governo Médici. Que tipo de
regime os dirigentes pretendiam institucionalizar?
Para enfrentar o dilema da coexistência das duas ordens jurídicas, Etelvino Lins,
deputado pela Arena-PE, defendeu, em agosto de 1971, a incorporação do AI-5 e de toda
legislação excepcional ao texto constitucional, transformando-a em medida permanente, mas
de aplicação transitória. De acordo com o político pernambucano, ex-governador de
Pernambuco e um dos organizadores do extinto PSD nesse estado, deveria se retirar o caráter
de excepcionalidade desse instrumento, o AI-5, de modo a propiciar a institucionalização do
regime, com a manutenção das suas garantias legais. 40
A proposta de Etelvino Lins, visando institucionalizar o autoritarismo, era apenas
uma entre as várias que alimentaram o debate político da época, sobretudo entre os integrantes
da Arena, indicando o esforço desse partido em buscar fórmulas políticas. As lideranças da
Arena, durante o governo Médici, estiveram envolvidas nos debates sobre mudanças no
regime político. Em conferência na ESG em julho de 1971, o líder do governo pela Arena na
Câmara dos Deputados, Geraldo Freire, não considerava oportuna a construção de um novo
modelo. Para Geraldo Freire, deputado pela extinta UDN em Minas Gerais, o modelo estava
pronto e “tinha por base a Constituição que era a revolução de 1964 institucionalizada”. Um
dos pontos desse modelo referia-se à organização partidária, que após as eleições de 1970,
com a vitória da Arena, estimulava avaliações de que o país tinha se tornado um regime de
partido único. Freire afirmou que “tudo contribui para que, sob a égide da Constituição e das
41
Leis, tenhamos confiança na nossa organização partidária (...)”. A manutenção do sistema
bipartidário, porém dinamizado, era também aconselhada por Roberto Campos que propôs
durante palestra na ESG, em setembro de 1971, “a restauração da Constituição de 1967 como
42
meio de melhorar a institucionalização política e preservar o sistema revolucionário”. Para
responder esse último objetivo, deveria se reduzir o coeficiente de arbítrio. Entretanto, a
mistura da Constituição com Ato não fazia parte da proposição de Pereira Lopes, presidente
da Câmara dos Deputados. O ex-deputado federal pela UDN de Minas Gerais defendia que o
decurso do tempo tornasse o último extinto em favor de uma Constituição sem exceção. Em

40
BRANCO, Carlos Castello. Coluna do Castelo. O Ato e seu transplante. Jornal do Brasil, 24ago1971, p.4.
41
SILVA, Geraldo Freire de. Organização e dinâmica partidária. Conferência proferida na ESG, em 27 de agosto
de 1971, p.24.
42
CAMPOS, Roberto. Institucionalização política nos países em desenvolvimento, palestra realizada na ESG.
em 18 de setembro de 1971.
palestra na ESG em setembro de 1971, o deputado da Arena-SP sugeriu que se compreendesse
o AI-5 como medida de exceção que não pode aspirar à permanência. 43
Desde 1964 o regime vivia a ambiguidade de ter retirado a autonomia do
Congresso e, ao mesmo tempo, esperar da instituição a legitimação das decisões do poder
Executivo. Embora controlado em suas atividades, o Legislativo representava parte da
legitimidade que o regime procurava alcançar ante a opinião pública (Rego, Antonio, 2008).
Todavia, a decretação do AI-5 agravou a perda de credibilidade da instituição parlamentar, o
que levou a pergunta sobre o papel que ela deveria cumprir após 1968. Eis porque a
permanência do AI-5 estimulou o debate sobre o “Modelo Político para o Brasil”. A expressão
teria sido cunhada pelo jurista e partidário da extinta UDN Darcy Bessone, 44 segundo o
jornalista Carlos Castello Brando, do Jornal do Brasil.45 O modelo político imaginado por
Bessone, de acordo com sua conferência na ESG em agosto de 1970, previa a "integração do
Legislativo e do Executivo" que, na sua avaliação, já vinha ocorrendo, por conta das "leis, a
sanção, o voto e sobretudo, o poder regulamentar, que outorga ao Executivo a prerrogativa de
participar da elaboração legislativa".
Roberto Campos, em palestra na ESG em junho de 1970, defendeu que a
democracia representativa brasileira permaneceu formal, incapaz de promover uma taxa
acelerada de desenvolvimento econômico e possibilitar oportunidades de acesso social. Os
interesses regionalistas, clientelistas e personalistas anularam as vantagens da democracia
representativa. Dessa forma, Campos defendeu que a opção política que convêm ao Brasil é
pelo "sistema consensual de democracia participante com Executivo Forte, inaugurado pela
"Revolução de 1964".
O deputado da Arena Célio Borja afirmou na ESG, em agosto de 1971, que o
modelo político para a democracia brasileira estava definido na "Constituição e nas
instituições políticas que a história nos deu". O Ato Institucional, na sua visão, era marcado
pela transitoriedade e teria assumido a "natureza e o tomo das normas constitucionais em
razão da excepcionalidade do momento em que foi editado." A defesa da Constituição e do
regime democrático deveria ser permanente e duradoura, uma vez que interessava aos homens
públicos, bem como aos militares e agentes da segurança nacional. 46
Às reflexões sobre o modelo político brasileiro na ESG, iniciadas no ano de 1970,
corresponderam os pronunciamentos públicos de diversos representantes do Legislativo e do

43
LOPES, Pereira. O Poder Legislativo, A Câmara dos Deputados. Conferência proferida na ESG em setembro
de 1971.
44
Darcy Bessone foi signatário do Manifesto dos Mineiros, fundador e dirigente da UDN, desligando-se deste
partido em 1952. Ver : http://www.almeidamelo.com.br/index.php/discursos/8347-centenario-de-darcy-bessone
45
BRANCO, Carlos Castello. Coluna do Castello, Jornal do Brasil, 09ago1971, p.4.
46
BORJA, Célio de Oliveira. Um modelo político para o Brasil. Conferência proferida na ESG, 31agosto 1971,
p.15. Ver: Borja afirma na ESG que Constituição já define modelo político do país. Jornal do Brasil, 1set1971,
p.3.
Executivo em torno da questão. O ministro do Exército, general Orlando Geisel, declarou
durante as solenidades do Dia do Soldado, em agosto de 1970, que a "Revolução brasileira
47
prossegue...sem copiar modelos de outras terras e de outras gentes". O presidente nacional
da Arena, deputado Batista Ramos atribuía ao partido o papel de apoiar Médici no seu plano
de desenvolvimento. Ex-deputado federal de São Paulo pelo PTB, Batista Ramos defendeu,
em setembro de 1971, a posição de “ao seu tempo, firmar raízes para a institucionalização de
um modelo político tipicamente brasileiro”, que não se baseie em nenhum outro e não seja
transitório.48
Apresentadas as evidências, podemos retomar nossa questão. No âmbito dos
debates sobre propostas para reorganizar o regime político, ainda no governo Médici,
devemos pensar o resgate da ideia de liberalização, considerada neste trabalho uma estratégia
amadurecida e articulada que visava amenizar o grau de coerção, mas buscava garantir a
institucionalização do autoritarismo.
Vimos que no plano institucional militar, a Escola Superior de Guerra promoveu
debates sobre o modelo político. Responsável pela preparação ideológica e técnica dos
quadros militares e civis que assumiram posições dirigentes no Estado após 1964, a ESG
tornou-se durante o governo Médici um centro de aferição e difusão de propostas no campo
político-institucional. Atores comprometidos com o regime – parlamentares, autoridades do
Executivo e militares – apresentaram as diferentes visões sobre a estratégia que pensavam
adotar para institucionalizá-lo, dividindo-se entre a permanência e a extinção do AI-5. Embora
restrito, o debate acabou ultrapassando os marcos da instituição militar e, em alguns
momentos, ganhou repercussão na imprensa.
Com efeito, questões como o tempo de intervenção das Forças Armadas, avaliação
da conjuntura econômica, segurança do Estado, incluindo as atividades da esquerda armada e
o AI-5 adquiriram prioridade na agenda de discussão da ESG. Contribuíram para a
constituição de um campo de forças que questionava a permanência do modelo político
instituído após dezembro de 1968 e pedia a redução do coeficiente de arbítrio, tal como
preconizava o comandante da ESG, general Rodrigo Otávio, que utilizou o termo imobilismo
constitucional para caracterizar a situação política brasileira. Ao assumir o comando da ESG
em maio de 1971, o general defendeu como única estratégia válida o desenvolvimento
econômico com liberdade política. Ele fundamentou sua posição com a afirmação de que
existia no país uma cultura política consagrada, apoiada na "convicção democrática, vocação
liberal e formação cristã".49

47
GEISEL diz que Revolução não pretende imitar. Jornal do Brasil, 26ago1970, p.3.
48
BATISTA afirma que modelo brasileiro deve vir sem cópia de “defuntos”. Jornal do Brasil, 15set1971,p.4.
49
RODRIGO Otávio quer progresso com liberdade. Jornal do Brasil, 29mai1971, p.15.
As declarações dos protagonistas do autoritarismo que se tornaram de domínio
público, somadas à articulação do grupo intragovernamental de apoio à candidatura de Geisel,
são claros sinais de que a dinâmica do processo político durante o governo Médici foi
marcada por disputas em torno de posições na corrida sucessória e por intensas polêmicas
sobre o tipo de modelo político a ser institucionalizado. Mostram também que alguns
segmentos próximos aos centros de poder estavam defendendo uma clara estratégia de
resistência aos rumos que o Estado tomara após a decretação do AI-5. Ao questionar a
manutenção de um tipo de autoritarismo mais dependente do apoio das Forças Armadas, que
desacreditava por completo as tradicionais mediações institucionais, a corrente castelista
acabou galvanizando opiniões que ultrapassavam as fronteiras do aparelho de Estado. Alguns
representantes da grande imprensa liberal, que antes haviam apoiado o golpe em 1964,
pronunciaram-se sobre a evolução do regime durante o governo Médici. Apesar da forte
censura a qual estavam submetidos, construíram um discurso de aproximação com os grupos
favoráveis à diminuição do grau de coerção estatal.

Considerações finais
A liberalização do regime sempre esteve presente no universo ideológico do
autoritarismo militar de 1964, sob a hegemonia do Exército. A transição política iniciada pelo
governo Geisel, em 1974, deve ser entendida como o resultado do conflito interno de um
sistema de poder orientado pela concepção de que a expansão dos mecanismos de coerção
sobre a sociedade garantiria as condições para a retomada do desenvolvimento econômico no
país. Orientados pela Doutrina de Segurança Nacional elaborada pela ESG, com base na teoria
do "inimigo interno" e na existência de uma guerra revolucionária comunista, os dirigentes
criaram, ao longo dos sucessivos governos militares, entre 1964 e 1973, um Estado com vasto
aparato repressivo de controle político e social, no qual foram cometidas violências contra os
direitos humanos e quase eliminadas as antigas estruturas institucionais representativas
herdadas do modelo liberal democrático.
Com efeito, o tipo de autoritarismo erguido após o AI-5 desacreditava por
completo os tradicionais canais liberais de mediação do Estado com a sociedade e atribuía
maiores responsabilidades às Forças Armadas no esquema de poder. A expansão da
intervenção das Forças Armadas na condução da política abriu mais espaço para eventuais
disputas entre facções das corporações militares, instaladas nos diversos órgãos do Estado,
inclusive naqueles responsáveis pela repressão aos grupos sociais oposicionistas. O fato de as
Forças Armadas brasileiras se comprometerem com a organização e execução das tarefas
repressivas provocou uma avaliação negativa do regime, em função das denúncias de torturas
praticadas nos estabelecimentos militares, que ganharam expressão na mídia internacional.
Além do desgaste da imagem dos militares, observamos que a maior autonomia conquistada
pelo sistema repressivo, no combate às ações da esquerda armada, estimulou órgãos de
segurança a rejeitar a cadeia oficial de comando a qual deveriam submeter-se e prestar contas.
A politização no interior das Forças Armadas e a erosão dos princípios de hierarquia e
disciplina obrigaram os dirigentes a colocar na agenda do governo a necessidade de
revalorização das funções profissionais dos militares, com a volta aos quartéis.
A liberalização outorgada pelo regime representa, em linhas gerais, a retomada do
programa castelista, do qual Geisel fora um dos artífices. A institucionalização do regime
autoritário, do seu ordenamento jurídico, foi uma meta perseguida desde 1964, sobretudo após
1974, no decorrer das mudanças que amenizaram o grau de repressão e preparavam a retirada
dos militares do exercício direto do poder, com a transferência do governo aos aliados civis.
Portanto, o resgate da ideia de liberalização, no âmbito da liderança militar e civil autoritária,
vai ao encontro da linha de abordagem que enfatiza a autonomia do núcleo dirigente e sua
capacidade de assumir a iniciativa das mudanças, manifestada nas articulações para
impulsionar a candidatura de Geisel e na consciência de que, para além dos resultados
econômicos favoráveis obtidos nos início dos anos 70, emergia o problema da legitimidade
das regras políticas (CARVALHO, Aloysio,2005).

Bibliografia
BORGES, Nilson de. (2003), “A Doutrina de Segurança Nacional e os Governos Militares”.
In: FERREIRA, J. e DELGADO, L. de A. N. (orgs.), O Tempo da Ditadura: Regime Militar
e Movimentos Sociais em Fins do Século XX – O Brasil Republicano. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, vol. 4.
CARVALHO, Aloysio Castelo de. “Geisel, Figueiredo e a liberalização do regime autoritário
(1974-1985)”. In: Revista Dados, vol. 48 no 1, Rio de Janeiro, Jan/Mar. 2005.
CRUZ, Sebastião e MARTINS, C. E. “De Castelo a Figueiredo: uma incursão na Pré-História
da Abertura”. In: SORJ, B. e ALMEIDA, de M. H. T. (orgs.), Sociedade e Política no Brasil
Pós-64. São Paulo, Brasiliense, 1983.
REGO, Antonio Carlos Pojo do. O Congresso brasileiro e o regime militar (1964-1985). Rio
de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 2008.
MILITARES E MILICIANOS NOS OITOCENTOS: O CASO DE SANTA CATARINA

Ânderson Marcelo Schmitt


Doutorando em História – UFSC

Orientador: Prof. Dr. Paulo Pinheiro Machado

Este estudo propõe apresentar algumas observações sobre as características das forças
milicianas e militares existentes no território de Santa Catarina nos momentos iniciais de
criação do Estado nacional brasileiro, após a independência política formalizada no ano de
1822. Da mesma forma, entende que a província foi local logisticamente importante, pois
permitia que as forças imperiais fossem abastecidas ou permanecessem no sul durante algum
tempo, assim como a estratégia das tropas brasileiras poderia ser pensada levando-se em
consideração este importante ponto de apoio no caminho para as operações ao sul. Para isso,
partilha das premissas teórico-metodológicas da Nova História Militar, ao entender que as
características das instituições militares fogem ao simples controle das autoridades e da
legislação, mas são balizadas pela interação constante com a sociedade que a cerca. Dessa
forma, se propõe encontrar os indícios desta interação entre instituições e sociedade, em um
contexto político-militar específico.50 Para além, entende que as ações voltadas às atividades
beligerantes auxiliam a dão contornos a instituições e corpos políticos que participam destas
preparações e sentem as consequências dos resultados dos conflitos. 51
Após o processo de independência brasileiro culminar na ruptura política em 1822,
poucas foram as modificações estruturais realizadas na base militar brasileira. 52 Por sua vez,
em 1831, as milícias e as ordenanças foram extintas, dando surgimento a uma nova instituição
paramilitar, que passou a representar a 2ª linha das tropas brasileiras: a Guarda Nacional. Nela
poderiam ingressar, segundo a sua lei de criação e o decreto que lhe complementou no ano
seguinte, sujeitos que possuíssem determinada renda (100 ou 200 mil réis anuais) 53, portanto,

50 Considerações sobre a mutação teórico-metodológica da pesquisa em História Militar podem ser


encontradas em: SOARES, Luiz Carlos; VAINFAS, Ronaldo. Nova história militar In: CARDOSO, Ciro F.;
VAINFAS, Ronaldo (Orgs). Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 113-133.
51 A despeito de suas diferentes interpretações sobre locais e tempos históricos específicos, exemplos
desta corrente teórica são Charles Tilly e Miguel Angel Centeno. CENTENO, Miguel A.. Blood and Debt: War
and Taxation in Nineteenth-Century Latin America. American Journal of Sociology. Volume 102. Number 6
(May 1997), 1565–1605; TILLY, Charles. War Making and State Making as Organized Crime. In: EVANS,
Petter.; RUESCHEMEYER, Dietrich; SKOCPOL, Theda (Orgs.). Bringing the State Back in. Cambridge:
Cambridge University Press, 1985.
52 A maior exceção, talvez, tenha sido o Decreto de 1º de dezembro de 1824, que reorganizou os corpos
de 1ª e de 2ª linhas existentes no Brasil. BRASIL. Decreto de 1º de dezembro de 1824. Disponível em:
http://www.camara.leg.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/Legimp-G_31.pdf#page=2. Acesso em
setembro de 2017.
53 BRASIL. Lei de 18 de agosto de 1831. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37497-18-agosto-1831-564307-publicacaooriginal-
88297-pl.html. Acesso em setembro de 2017; BRASIL. Decreto de 25 de outubro de 1832.
se conformando em uma arma diferenciada da 1ª linha, inclusive com seus membros sendo
“qualificados” para o serviço, e não “recrutados” como para o Exército profissional. 54 Sendo
submetida ao Ministério da Justiça, e não mais ao da Guerra, a Guarda Nacional foi o esteio
de sobrevivência do Império brasileiro até a Guerra do Paraguai. A Guarda Nacional é
normalmente apontada, principalmente após a sua reorganização de 185055, como força
eleitoreira nas províncias, onde facções políticas lutavam pelo poder nas diversas regiões do
Império, condicionadas pelas trocas de gabinetes ministeriais no jogo político central. Assim,
pode-se acreditar que em Santa Catarina ela também tenha sido empregada para tal. Portanto,
sua utilização deixa de ser indispensável para a manutenção da paz, mas para garantir que
determinadas facções políticas possuíssem vantagens em momentos políticos decisórios.
Análises neste sentido, para outras regiões do país, podem ser encontradas nas obras de
Richard Graham56 e André Fertig57.
Não ocorreu uma reorganização efetiva das tropas brasileiras após a independência, a
ponto que tornasse possível uma reformulação política e social visível. Portanto, o Estado
brasileiro independente acabou por permitir a continuação das relações pré-existentes no bojo
das suas armas. Sem apresentar - como os atuais exércitos profissionais - a racionalização e
corporativismo característico, as tropas “dependiam de lealdades anteriores, e o quadro de
oficiais era composto menos pela formação profissional do que pelas hierarquias sociais
vigentes, dependendo de favorecimentos clientelares”. 58 A base organizacional portuguesa – e
posteriormente brasileira – foi o que permitiu, no limite, que as relações sociais se
transferissem para a organização dos exércitos: uma vez que não existia numerário para
pagamento de soldados profissionais em todos os cantos da colônia e do Império, se permitia
que mandões locais se sobrepusessem aos demais, realizando recrutamentos quando

http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/1824-1899/decreto-37342-25-outubro-1832-563877-
publicacaooriginal-87927-pl.html. Acesso em setembro de 2017.
54
Sendo seguidamente associada a ideias retrógradas, a 1ª linha do Exército – Exército profissional – foi
reduzida pela regência já em 1831, quando teve seu número comprimido de 30.000 para 14.342 homens, segundo
informações de Werneck Sodré. SODRÉ, Nelson Werneck. A História Militar do Brasil. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1979, p. 130.
55 BRASIL. Lei nº 602, de 19 de setembro de 1850. Disponível em:
http://linker.lexml.gov.br/linker/processa?urn=urn:lex:br:federal:lei:1850-09-
19;602&url=http%3A%2F%2Flegis.senado.gov.br%2Flegislacao%2FListaPublicacoes.action%3Fid%3D80189
%26tipoDocumento%3DLEI%26tipoTexto%3DPUB&exec. Acesso em setembro de 2017.
56
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p.
200.
57
FERTIG, André. Clientelismo político em tempos belicosos: A Guarda Nacional da Província de São
Pedro do Rio Grande do Sul na defesa do Império do Brasil (1850-1873). Santa Maria: Ed. da UFSM, 2010.
58
COMISSOLI, Adriano. Ajudado por homens que lhe obedecem de boa vontade: considerações sobre
laços de confiança entre comandantes e comandados nas forças militares luso-brasileiras no início dos
oitocentos. In: COMISSOLI, Adriano; MUGGE, Miquéias (Orgs). Homens e Armas: recrutamento militar no
Brasil, século XIX. São Leopoldo: Oikos, 2011, p. 25.
necessário e ganhando, para isso, cargos e vantagens do governo português ou brasileiro,
afirmando um caráter litúrgico de formação das tropas. 59
Nesta configuração, a província de Santa Catarina se conformou como um importante
local ao se pensar as atividades castrenses ao sul do Império. Desde os primeiros momentos
da independência as autoridades estiveram com a atenção voltada à segurança do território
meridional do Império brasileiro. A Junta Provisória de Governo de Santa Catarina, criada
ainda em 1821, mas organizada na província apenas em 1823, manteve postura favorável à
quebra constitucional com Portugal e à autonomia brasileira. 60 Nos anos seguintes, as
autoridades preocuparam-se em organizar corpos que permitissem fazer frente a possíveis
invasões que poderiam vir, segundo os contemporâneos, da região do Rio da Prata. 61
Dois anos após a independência teve início a Guerra da Cisplatina, conflito entre
Brasil e Argentina, que acabou no ano de 1828, com a assinatura do acordo de paz mediado
pela Inglaterra. Esta guerra, que mobilizou contingentes de todos os cantos do Império,
também refletiu na província catarinense. A Intendência da Marinha em Santa Catarina, criada
em 1817, teve papel destacado na logística de guerra quando do desenrolar deste conflito. Era
na província que eram cortadas as árvores para o conserto de navios que se encontravam em
trânsito para o sul, ou vindo de lá. Em Santa Catarina também eram aprovisionados os navios
comerciais ou de guerra. Aproveitava-se a diversidade de alimentos que poderia ser
encontrada na ilha e em seus arredores para abastecer de mantimentos frescos os viajantes de
passagem. Além disso, a Intendência da Marinha auxiliou de forma concreta com a
patrulhamento dos mares do sul, impedindo que corsários de países inimigos pudessem ter
maiores sucessos na tomada de embarcações com bandeira imperial. 62 Os trabalhos da
Intendência, porém, foram prejudicados por atrasos de remessas de gêneros da corte, pela
“falta de verbas, a precariedade das comunicações, o mercado local restrito e sujeito a altas”,
uma vez que os produtos inflacionavam em momentos de necessidade. Além disso, os
“choques burocráticos entre os órgãos públicos da província e a centralização administrativa
da Corte”, também “tumultuavam o andamento normal das atividades e prejudicavam o
suprimento as Tropas”.63 Estas dificuldades geravam a falta de abastecimento às tropas
estacionadas em Montevidéu, causando insubordinações nas fileiras imperiais.

59
IZECKSOHN, Vitor. Ordenanças, tropas de linha e auxiliares. In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro;
GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Brasil Colonial, vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
60 SILVA, Sandra Oenning da. Estado Monárquico (des)centralizado: a dinâmica política em torno dos
conselhos provinciais de Santa Catarina (1824/1834). Florianópolis: UFSC, 2013 (Dissertação de Mestrado).
61 Os diversos ofícios trocados entre a Junta Governativa Provisória e os presidentes de província com o
Governador das Armas são testemunhos desta postura neste momento. Arquivo Público do Estado de Santa
Catarina (APESC). Registros de Correspondências Recebidas pelos Comandantes/Governadores das Armas.
1822-1834. 03 vols. Código GA, Local 58.
62 BALDIN, Nelma. A Intendência da Marinha de Santa Catarina e seu papel na ocupação da Província
Cisplatina (1817-1832). Florianópolis: UFSC, 1979 (Dissertação de Mestrado).
63 Idem, p. 133-134.
Neste conflito, algumas tropas também ficaram estabelecidas em Santa Catarina,
utilizando-se das precárias condições de recebimento e alojamento de centenas de soldados
que defendiam o Império – mas que não eram, necessariamente, brasileiros. Os relatos
deixados pelo oficial suíço-alemão Carl Seidler, que passou pela província durante a guerra,
são extremamente elucidativos sobre as relações que poderiam ser travadas entre os soldados
e a sociedade que a cercava. Seidler relatou visitas a casas de moradores e envolvimentos com
outras tropas que defendiam o Império, mas que vinham de região norte do Brasil. Relatou,
também, a estadia que tiveram em uma Armação de pesca baleeira e da lógica de
funcionamento destas atividades em momento de constante trânsito de tropas pela província. 64
Ainda se tratando de tropas estrangeiras, soldados que foram contratados nos
principados germânicos para fazer a guerra contra a Argentina foram desmobilizados quando
do fim do conflito.65 Muitos deles permaneceram em Santa Catarina, em especial na recém-
criada colônia de São Pedro de Alcântara, local considerado estratégico pelas autoridades
provinciais, pois permitia a defesa contra ameaças externas, mas, também, pretendia resolver
questões internas, visto que a região mais distante do litoral ainda assistia a conflitos
constantes entre europeus e seus descendentes com indígenas. 66
No ano de 1831, ocorreu a transformação das milícias e Ordenanças em Guarda
Nacional, fato que foi marcado por conflitos em algumas províncias. 67 Em Santa Catarina, a
organização da Guarda Nacional não foi menos conturbada. A documentação dos juízes de
paz – autoridades responsáveis pela qualificação dos cidadãos – demonstra que por inúmeras
vezes os sujeitos buscavam subterfúgios para não participar da instituição e,
consequentemente, das atividades que advinham desta participação. 68 Isso em razão, em
grande parte, da Guarda Nacional ser uma instituição na qual o soldado não recebia soldo.
Desta forma, deveria manter seus afazeres para sustentar a si e família. Obviamente, perder
alguns dias por mês para treinamento junto a oficiais de 1ª e 2ª linha, prejudicava seu trabalho.
Portanto, participar da Guarda Nacional poderia ser prejudicial aos seus participantes.

64 SEIDLER, Carl. Dez anos no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2003.


65 LEMOS, Juvencio Saldanha. Os Mercenários do Imperador: A primeira corrente imigratória alemã no
Brasil. Porto Alegre: Palmarinca, 1993.
66 Uma análise mais aprofundada neste sentido pode ser encontrada em: BRÜGGEMANN, Adelson A. A
sentinela isolada: o cotidiano da colônia de Santa Thereza (1854-1883). Florianópolis: UFSC, 2013 (Dissertação
de Mestrado).
67
José Iran Ribeiro demonstrou isso em dois trabalhos, para o caso do Rio Grande do Sul. RIBEIRO, José
Iran. Quando o serviço os chamava: milicianos e guardas nacionais no Rio Grande do Sul (1825-1845). Santa
Maria: Editora da UFSM, 2005; FARINATTI, Luís A.; RIBEIRO, José I. Interesses em disputa: a criação da
Guarda Nacional numa localidade de fronteira (Alegrete, Rio Grande do Sul). In: COMISSOLI, Adriano;
MUGGE, Miquéias (Orgs). Homens e Armas: recrutamento militar no Brasil, século XIX. São Leopoldo: Oikos,
2011. No segundo dos trabalhos citados, Ribeiro e Farinatti atentam para o fato de que a transformação das
milícias e ordenanças em Guarda Nacional não foi conturbada por disputas entre os chefes das duas instituições,
mas sim porque os referidos chefes eram de facções políticas diferentes, gerando atritos até o momento em que o
chefe da Guarda Nacional nomeado fosse da mesma facção do ex-chefe miliciano.
68 Arquivo Público do Estado de Santa Catarina (APESC). Ofícios do Juízo de Paz para Presidência da
Província. 1832-1833. 04 vols. Código JPAZ-PRESP. Local 65.
Quando ainda se organizavam os contingentes da Guarda Nacional, eclodiu no Rio
Grande do Sul a Guerra dos Farrapos (1835-1845), que possuiu influência direta no território
catarinense, em especial em Laguna, que foi tomada pelos rebeldes sul-rio-grandenses e onde
foi proclamada a efêmera República Juliana. Nos primeiros momentos da invasão, no ano de
1839, parte da população e das autoridades dos locais invadidos se juntou aos farroupilhas.
Porém, meses depois os rebeldes foram expulsos pelas forças imperiais, não sem antes
sofrerem um rechaço de parte da população catarinense.69 Obviamente, os laços clientelares
que faziam com que os chefes militares e milicianos do Rio Grande do Sul fossem respeitados
na província mais meridional, não existiam em Santa Catarina. Assim, poucos meses após a
invasão, os farroupilhas acabaram perdendo seu apoio, e viram-se obrigados a arregimentar
compulsoriamente, o que teve efeito contrário. As singularidades dos territórios sulinos não
permitiram levar a cabo os projetos federalistas dos líderes farroupilhas.
Nos momentos iniciais de criação do Estado nacional brasileiro, até mesmo falar em
Santa Catarina pode ser algo problemático. Não se deve ter por base os recortes geográficos
constituídos político-juridicamente na atualidade. A província ainda não estava delimitada da
forma como está hoje em dia. No século XIX, as ações das autoridades – dentre elas também
as autoridades militares -, foi a tentativa de conhecer, proteger e delimitar os espaços a oeste
da porção litorânea. Exemplo claro e específico é a criação da colônia militar Santa Thereza,
no ano de 1854. Com este e outros estabelecimentos semelhantes, o governo imperial
intentava “levar a lei e a ordem para áreas interioranas e fronteiriças. Desse modo, pretendia
transformar os índios hostis, fugitivos da justiça e outros elementos marginais da sociedade
em cidadãos produtivos, submetendo-os ao regime militar”.70 Portanto, a questão militar em
Santa Catarina no século XIX deve ser entendida pelo viés das fronteiras, tanto internas
quanto externas.
De forma geral, ao buscar falar das especificidades sociais e políticas catarinenses,
pode-se observar o quanto a província esteve imbricada ao próprio caráter imperial, e o quanto
ela foi específica, uma vez que o próprio “imperial” poderia ser uma presença bastante
dispersa.

Referências Digitais
BRASIL. Decreto de 1º de dezembro de 1824. Disponível em:
http://www.camara.leg.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/Legimp-
G_31.pdf#page=2. Acesso em setembro de 2017.
BRASIL. Lei de 18 de agosto de 1831. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37497-18-agosto-1831-564307-
publicacaooriginal-88297-pl.html. Acesso em setembro de 2017;
69
COSTA, Gustavo Marangoni. Entre Contrabandos e Ambigüidades: outros aspectos da República
Juliana – Laguna/SC – 1836-1845. Florianópolis: UFSC, 2006 (Dissertação de Mestrado); BOITEUX, Henrique.
A República Catharinense: notas para sua história. Rio de Janeiro: Xerox, 1985.
70 BRÜGGEMANN, op. cit. p. 45.
BRASIL. Decreto de 25 de outubro de 1832.
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/1824-1899/decreto-37342-25-outubro-1832-
563877-publicacaooriginal-87927-pl.html. Acesso em setembro de 2017.

Manuscritos
Arquivo Público do Estado de Santa Catarina (APESC). Registros de Correspondências
Recebidas pelos Comandantes/Governadores das Armas. 1822-1834. 03 vols. Código GA,
Local 58.
Arquivo Público do Estado de Santa Catarina (APESC). Ofícios do Juízo de Paz para
Presidência da Província. 1832-1833. 04 vols. Código JPAZ-PRESP. Local 65.

Impresso
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Bibliografia
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EDUCANDO PARA GUERRA: AS INSTRUÇÕES PARA SOLDADOS NORTE-
AMERICANOS E INGLESES NA II GEURRA MUNDIAL, UMA ANÁLISE
COMPARATIVA (1942-1945)

Anailza Guimarães Costa


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED/UFS)
Bolsista Capes
E-mail: anailza@getempo.org

Orientador: Dr. Dilton Santos Cândido Maynard (DHI/UFS)

Introdução
A II Guerra (1939-1945) parece ser um tema de pesquisa inesgotável. Em diversas áreas o
assunto é abordado, seja nos cinemas com um número elevado de filmes, na literatura através
de variados livros ou até mesmo em jogos. De fato, a II Guerra marcou o século XX e trouxe
várias mudanças de ordem política, econômica e social para o mundo. Diferente da I Guerra
Mundial (1914-1918), a segunda propagou-se por toda Europa, revolucionou os recursos
táticos através de novos armamentos com capacidade de destruição total e trouxe o
fortalecimento de regimes fascistas.
Essa Guerra uniu países antes rivais por posições ideológicas. De um lado União Soviética
(socialista), Grã-Bretanha e Estados Unidos (capitalistas) representando o grupo dos Aliados
e, do outro, o grupo do Eixo formado por Alemanha, Itália e Japão. Inicialmente a guerra
começou sem Hitler precisar disparar um tiro. Com extrema habilidade conseguiu desmantelar
o Tratado de Versalhes, conquistou o rearmamento pra o Reich e a anexação de territórios
como o da Áustria. Enquanto isso, os países europeus apenas assistiam as manobras de Hitler
com passividade. Apenas quando os alemães invadiram a Polônia em 1° de setembro de 1939
foi que França e Grã-Bretanha reagiram e declararam guerra a Alemanha em 3 de setembro do
mesmo ano.
Os Estados Unidos só entrou de fato na Guerra depois do ataque japonês a sua base
aeronaval em Pearl Harbor em 1941. Após isso, os norte-americanos deixaram sua política
isolacionista e declararam guerra ao Japão. Em seguida, Alemanha e Itália declaram guerra
aos norte-americanos e assim iniciava-se o apoio militar total dos Estados Unidos aos países
Aliados. Por conta de todo esse contexto de Guerra, do avanço cada vez maior dos alemães, já
com a França ocupada desde 1940, os governos britânico e americano sentiram cada vez mais
a necessidade de união para lutarem contra o inimigo maior, a Alemanha.
O primeiro foi produzido pelo Departamento de Guerra dos Estados Unidos em 1942
chamado de Instructions for American Servicemen in Britain e logo depois os britânicos,
através do seu Escritório de Política de Guerra, produziram um material semelhante visando
orientar seus soldados na França de 1944. Neste último caso, o originalmente chamado
Soldier’s Guide to France foi rebatizado Instructions for British Servicemen in France. Neste
trabalho, nosso objetivo é realizar um estudo comparado dos manuais Instructions for
American Servicemen in Britain 1942 e Instructions for British Servicemen in France 1944,
observando como ambos abordaram o desafio de pensar o comportamento de seus soldados
visando educar suas ações em terras estrangeiras num contexto de guerra.
Para análise desses manuais, utilizamos o método da História Comparada. Temos
sociedades diferentes, Estados Unidos, Inglaterra e França, com algumas analogias e próximas
no tempo (1942-1945). Neste trabalho identificamos as semelhanças e também as diferenças
nas ordens de comportamento, pois, “sem analogias, e sem diferenças, não é possível se falar
em uma autêntica História Comparada” (BARROS, 2007). Ainda buscamos as possíveis
influências de um manual sob o outro e analisamos um problema comum: Como os Estados
norte-americano e britânico educaram os soldados da II Guerra Mundial?
Neste trabalho foi utilizado Marc Bloch como principal aporte metodológico. Bloch
foi um dos pioneiros e um dos principais defensores da abordagem comparada e fez críticas
aos historiadores que se dedicavam exclusivamente à história nacional. Para Bloch (1992),
estes mantinham um diálogo de surdos, pois, migravam de uma história nacional para outra
sem que se ouvissem mutuamente. Assim, a História Comparada nos possibilitou encontrar e
compreender que tipo de educação era dada ao soldado e quais os meios empregados para
isso.
Bloch (1992), ainda definiu dois tipos possíveis de comparação: 1) Aquela que
apresenta similaridades entre os fatos observados, ou seja, estudar sociedades separadas no
tempo e no espaço por distâncias; 2) Estudar sociedades às vezes vizinhas e contemporâneas,
constantemente influenciadas umas pelas outras. Deteremos nossas análises neste segundo
tipo de comparação, escolhemos sociedades próximas, Estados Unidos, Inglaterra e França
num mesmo contexto histórico, a Segunda Guerra Mundial.

Os manuais em meio a uma Guerra de ideias


A Segunda Guerra Mundial foi uma guerra moderna não só pelas novas armas e
rapidez com que foi travada, mas também pelo uso de novos recursos para se vencer o
conflito, uma grande mobilização, que incluía combates físicos e ideológicos. A esta guerra
com significativa mobilização chama-se de Guerra total.
O segundo conflito mundial foi total em amplos sentidos, com enorme capacidade de
mobilização material e humana. O holocausto praticado pelos nazistas, contava com
sofisticada estrutura que incluía transportes, seleção, organização de busca. Em 1945, os
norte-americanos lançaram as bombas atômicas sobre as cidades japonesas, demonstrando seu
amplo poder de destruição e durante toda a Guerra, foram utilizados os melhores recursos
tecnológicos disponíveis. Milhões de combatentes e trabalhadores, incluindo homens e
mulheres foram recrutados. Tudo era produzido em grande escala e também destruído em
massa. Assim, era total porque o inimigo deveria ser combatido e rendido até o final (TOTA,
2011).
Isso acabava exigindo de um soldado uma estrutura física, emocional e ideológica.
Corpo e mente estavam totalmente ligados. Reconhecendo essa importância, os Aliados
criaram verdadeiras estruturas de preparação para Guerra e investiram na “Guerra de ideias”,
munindo a mente dos seus combatentes. Dentro dessa Guerra de ideias, estava a preocupação
com os livros. Apesar de já terem sido usados em guerras anteriores, em nenhuma outra
tiveram a mesma distribuição como na Segunda Guerra Mundial. Segundo Manning,

Diante de uma crise moral, de uma necessidade de educar os recrutas, sobre


o porquê de estarem em treinamento, e de uma carência de livros didáticos
modernos que permitissem que os mais ambiciosos estudassem e
melhorassem sua patente, o Exército priorizou a modernização de seus
acervos de livros (MANNING, 2015, p. 39).

Nos Estados Unidos, a partir do final de 1940, o Exército começou a planejar e


adquirir dezenas de livros e construir bibliotecas nos campos de treinamento. Antes dos norte-
americanos entrarem na Guerra, campanhas pedindo doações de obras eram feitas, chamadas
de NDBC (Campanha Nacional de Defesa do Livro). Após a entrada dos estadunidenses a
NDBC passou a se chamar Victory Book Campaign (VBC), uma alusão à entrada dos Estados
Unidos na guerra.
De1943 até 1946, a editora Armend Services Editions (ASE), atuou nos Estados
Unidos. Criada durante a Segunda Guerra se especializou em publicar livros para os soldados
em campos, lançando um total de 1.200 títulos. Foi com a ASE que passou a serem utilizados
os livros com formatos pequenos, os chamados livros de bolsos, com capa brochura, o que
possibilitava com que o soldado pudesse carregar entre uma batalha e outra e, assim
adaptando as publicações aos poucos recursos que a Guerra oferecia.
Na Grã-Bretanha, em 1945, os editores britânicos começaram a vender livros de capa
brochura que tinha semelhança com o formato de livros da Armend Services Editions.
Segundo a autora Molly G. Manning (2015, p. 166 e 167), esses livros publicados pelas
editoras britânicas podiam ser facilmente confundidos com os livros da ASE e suas
publicações em muito se deram pela boa impressão que os livros norte-americanos deixaram
com os soldados britânicos que tiveram a oportunidade de lê-los.
Para os soldados, a leitura tinha significativa importância a ponto de muitos
escreverem cartas às editoras agradecendo e pedindo por mais títulos. Os soldados liam
enquanto esperavam para uma nova batalha, enquanto estavam debilitados se recuperando ou
até mesmo como uma distração, já que a Guerra, além do esforço físico, exigia também o
psicológico. Manning diz que,

Os livros desempenharam papel especial na guerra. Consolaram corações e


mentes perturbados e conseguiram isso em áreas onde outros passatempos
fracassaram. Eles eram a redenção para inúmeros combatentes, como
confirmado em vários relatos de todos os fronts (MANNING, 2015, p. 123).

Os títulos que iam parar nas mãos dos soldados não eram escolhidos sem nenhum tipo
de pretensão. Passavam por toda uma análise de um conselho que escolhia os conteúdos,
como por exemplo, havia um cuidado com trechos que poderiam ser ofensivos aos aliados dos
norte-americanos, que poderiam ajudar os inimigos, que entrassem em conflito com os ideais
de democracia dos Estados Unidos ou que podiam ser ofensivos a grupos de minorias étnicas,
raciais ou religiosos.
Os manuais estudados nessa pesquisa, Instructions for American Servicemen in Britain
(1942) e Instructions for British Servicemen in France (1944), estão inseridos nesse contexto.
Fizeram parte de uma estrutura, de uma Guerra de ideias criada para vencer o Eixo na
Segunda Guerra Mundial. O Departamento de Guerra dos Estados Unidos foi o responsável
por criar a editora especializada em publicar livros para os combatentes, a Armend Services
Editions, assim como, também foi responsável por criar o primeiro manual em 1942, o
Instructions for American Servicemen in Britain (1942).
Para os Aliados, era preciso preparar de todas as formas possíveis os soldados, o que
incluía livros e manuais de Guerra. Ressaltamos que quando se trata de um conflito que teve
proporções mundiais, como a Segunda Guerra, civis são convocados de várias classes sociais.
Ou seja, pessoas que dificilmente teriam se imaginado lutando numa Guerra, que não tinham
preparo psicológico e que até mesmo nunca tinham saído de seu país. Pensando nisso, os
Estados americano e britânico viram como necessário a criação de manuais de instruções para
polir as ações dos soldados de acordo com os interesses do governo.
Assim, seguiremos o válido conselho do historiador Marc Bloch
(2001), quando diz que os documentos só falam se soubermos lê-los, interrogá-los e provocá-
los. Assim, de acordo com os manuais Instructions for American Servicemen in Britain (1942)
e Instructions for British Servicemen in France (1944), quais instrumentos utilizados pelos
Estados britânico e norte-americano para educar os soldados em Guerra?

A educação do soldado cidadão norte-americano


Inicialmente observamos que a forma do Estado ensinar a ser soldado cidadão
cosmopolita através dos manuais tinha direções específicas. Para quem iria atuar na Grã-
Bretanha era um manual e para quem iria atuar na França outro. Os Aliados poderiam ter
adotado simplesmente um manual geral de instruções para os soldados, entretanto, este não
iria conter as especificidades de cada país, a cultura, política, moeda, preferências e nem a
história.
Dessa maneira, se ensinava a ser o soldado cidadão cosmopolita para o Estado norte-
americano através de ordens direcionadas, claras e diretas, para que pudessem dar aos
combatentes norte-americanos a visão mais clara possível dos costumes britânicos e de como
os soldados deveriam se portar diante disso. Todas as informações que pudessem acrescentar
sobre os costumes, normas britânicas deveriam ser estudadas pelos soldados:

Embora você leia em muitos jornais e papéis sobre lordes e senhores, a Inglaterra é
ainda um dos maiores berços da democracia e também o berço da liberdade
americana. Algumas leis e regras pessoais dos reis já estão extintas há milhares de
anos. Hoje o rei reina, mas não governa. O povo britânico tem grande apreço pelo
monarca, mas tem retirado dele praticamente todo poder político. Hoje o poder do
rei tem sido transferido para o parlamento, o primeiro ministro e seu gabinete. O
parlamento britânico tem sido chamado de mãe de todos os parlamentos porque
quase todos os corpos representativos do mundo tem copiado o modelo britânico71.

A maneira de ensinar o cidadão soldado cosmopolita deveria, além do óbvio, fazer


vencer a Guerra, manter as características de cada um. O manual Instructions for American
Servicemen in Britain 1942, reconhecia que o inimigo era comum, mas a cultura entre os
Aliados não. Assim, distinguia as diferenças entre britânicos e norte-americanos:

Você derrota a propaganda inimiga não negando as diferenças existentes, mas sim as
admitindo abertamente e então tentando entende-las, por exemplo: os britânicos são
frequentemente bastante reservados em sua conduta. Numa pequena, mas, populosa
ilha onde 45 milhões de pessoas vivem, cada pessoa aprende a preservar sua
privacidade com muito cuidado e principalmente a não invadir a privacidade dos
outros; portanto se britânicos sentam nos trens ou ônibus sem conversar com você,
não significa que eles são mal educados ou antissociais, mas provavelmente para não
te incomodar ou parecer intruso; mas eles estão prestando atenção em você, muito,
72
mas do que você imagina .

71
Do original: “Although you‘ll read in the papers about “lords” and “sirs”, England is still one of the great
democracies and the cradle of many American liberties. Personal rule by the Kings has been dead in England
for nearly a thousand years. Today the King reigns, but does not govern. The British people have great
affection for their monarch but they have stripped him of practically all political power. Today the old power
of the King has been shifted to Parliament, the Prime Minister, and his Cabinet. The British Parliament has
been called the mother of parliaments, because almost all the representative bodies in the world have been
copied from it” (Idem, p. 12 e 13).
72
Do original: “You defeat enemy propaganda not by denying that these differences exist, but by admitting them
openly and then trying to understand them. For instance: The British are often more reserved in conduct than
we. On a small crowded island where forty-five million people live, each man learns to guard his privacy
carefully – and is equally carefull not to invade another man’s privacy” (Idem, p. 04 e 05).
O soldado norte-americano precisava antes de tudo, ser verdadeiramente um Aliado.
Em todo manual está presente à preocupação com a união entre os países. Por mais que a
cultura fosse diferente, por mais que os combatentes estadunidenses tivessem em um país
desconhecido, todas as ordens no fim tinham o objetivo de orientá-los, sobretudo, a manter a
união entre eles.

Afinal, “é inevitável, sem dúvida, que duas nações tão diferentes, a despeito dos ideais
comuns que as animam, tenham dificuldades para se conhecer, se compreender e,
consequentemente, se estimar” 73. O historiador nos disse essas palavras com respeito à relação
entre ingleses e franceses durante a Segunda Guerra, porém, se adequa também a relação entre
os Estados Unidos e Grã-Bretanha, países com histórias que se ligaram em alguns momentos,
mas nações com costumes e culturas diferentes.
Para o Estado norte-americano, através dos manuais, utilizou-se da estratégia de
orientar os soldados por meio de regras claras, diretas e específicas, bem direcionadas aos
soldados que foram lutar na Grã-Bretanha. Reconhecia-se que o inimigo era o mesmo, mas a
cultura não, por isso, teve ordens com o objetivo de manter a união entre os combatentes com
a população local de destino.
Em cada capítulo, percebemos ordens claras que mostra que o Estado direcionava para
um soldado cordial. No segundo, intitulado de “O povo – costumes e maneiras”, mais uma
vez o governo colocava semelhanças entre ambos os países, mas também advertia para as
diferenças de costumes não deixarem o soldado norte-americano como o mal educado.
Diferenças como, que os britânicos dirigem do lado direito, não do esquerdo ou que bebem
cerveja quente. Além disso, não bastava ser soldado aliado, o norte-americano precisava ser
amigo. O manual dá orientações nesse sentido, como podemos observar:
A melhor maneira de se dar bem na Grã-Bretanha é muito semelhante com a maneira
americana. A mesma fonte de cortesia, decência e cordialidade que se adequa na
América se adequará na Grã-Bretanha. Os britânicos têm visto o lado bom da
América e gostam dos americanos. Eles vão apreciar a franqueza e cordialidade e
esperam também generosidade. Eles não são de dar tapinhas nas costas e são tímidos
em demonstrar sentimentos. Mas, uma vez se tornando seu amigo, será o melhor do
mundo74.

74
Do original: “THE BEST WAY to get on in Britain is very much the same as the best way to get on in
America. The same sort of courtesy and decency and friendliness that go over big in America will go over big in
Britain. The British have seen a good many Americans and they like Americans. They will like your frankness as
long as it is friendly. They will expect you to be generous. They are not given to back-slapping and they are shy
about showing their affections. But once they get to like you they make the best friends in the world” Idem, p.
14.
Como um bom “visitante” que não conhece o país para o qual será enviado, o
combatente norte-americano, para o Estado, precisava saber quais entretenimentos os
britânicos gostavam e quais as atrações eram mais comuns na Grã-Bretanha. Além de
conhecer, eles também precisavam ser companheiros nos esportes. Por isso, o manual informa
que em relação aos esportes, os britânicos são bem entusiasmados, gostam de jogar tiro ao
alvo, equitação, aposta em corrida de cavalos, caça, pesca e futebol. No entanto, adverte que
se o soldado norte-americano estiver num jogo, devem ter cuidado para não insultar os
britânicos com expressões de jogo que são comuns nos Estados Unidos.
A fim de moldar esse soldado cidadão, o manual orienta que os combatentes fiquem
fora de discussão e pedem que não sejam críticos em relação à Guerra. Ainda exorta, “no pubs
você vai ouvir conversas dos cidadãos de críticas ao governo e da conduta da guerra. Não dê
opinião sobre tais assunto. Não se intrometa; isso é assunto deles e não seu”.75
Dessa maneira, o Estado norte-americano ensinava ao soldado a ser o cidadão soldado
cosmopolita cordial. Aquele que não deveria criticar em hipótese alguma qualquer costume,
cultura, língua, política, história e táticas de Guerra. Deveria ser além de soldado, amigo, que
frequentaria os mesmos lugares que os britânicos, beberiam sua bebida, praticaria os mesmos
esportes, iria à igreja, não faria piadas em nenhuma circunstância e deveria ter a consciência
de que estavam numa Guerra, portanto, compreenderem a situação da Grã-Bretanha com o
racionamento e falta de itens básicos, como combustíveis e comida. Para os soldados
britânicos, também existiram formas de se ensinar, como veremos a seguir.

A educação do soldado cidadão britânico

No caso do manual dado aos soldados britânicos que se dirigiam para França, o
Instructions for British Servicemen in France 1944, observamos estratégias de se ensinar a ser
o cidadão soldado semelhantes, com algumas diferenças adaptadas por causa do contexto
histórico da França ocupada pelos alemães desde 1940, e a percepção de adaptar as ordens à
história, política e cultura do povo francês.
Diante de uma população com ânimo baixo, os nazistas se aproveitavam para infiltrar
suas ideias dentro da França e cabia aos livretos orientar os soldados a ficarem alertas contra
as intrigas pregadas pelos alemães.

As páginas que se seguem são dedicadas aos franceses e não aos alemães que
têm sido de um comportamento de mau trato em muitos países, mas na
França eles têm usado a estratégia de um melhor comportamento para tentar
conquistá-los para a nova ordem nazista pela Europa. Mas isso é apenas
parte de um plano. O francês não tem sido vencido nem convencido disso.

75
Do original: “In the pubs you will hear lotto of Britons openly criticizing their government and the conduct of
the war. That isn’t an occasion for you to put in your two-cents worth”. Idem, p.19.
Eles sabem bem o que essa nova ordem significa e toda dor e crueldade que
ela tem causado. A única coisa que eles almejam é ver os alemães e sua nova
ordem fora de seu país e bem longe. 76

O Estado britânico, orientava os soldados a propagandearem a autoimagem dos


britânicos. Terem soldados cidadãos cosmopolitas, representava o país na busca pelos ideais
de liberdade, colocava os britânicos como aqueles que iriam ajudar a retirar os inimigos do
território francês. Pelo fato da Grã-Bretanha estar ocupada pelos alemães, traz algumas
mudanças nas ordens de comportamento, algumas adaptações. Além do soldado cordial
cosmopolita, o soldado britânico também precisava ser o soldado cuidadoso, que iria enfrentar
Hitler mais de perto e ajudar a salvar os franceses,

Você irá pessoalmente ajudar a retirar os alemães desse país e mandá-los de volta
para o lugar a que eles pertencem. Você provavelmente não está encontrando os
franceses pela primeira vez, mas com certeza encontrando franceses invadidos e
subjugados ao domínio alemão por mais de sete anos. Tenha isso em mente e
77
aprenda o que isso significa

Em meio a um contexto militar, conservador, o folheto alerta ao soldado britânico para


não acreditar em falsos boatos, como, por exemplo: “há boatos na Inglaterra que têm muitos
gays em Paris e que as pessoas são frívolas, imorais e sem convicções. Isso é uma mentira,
principalmente em tempos atuais onde eles têm vivido de forma sofrida e penosa”78
(Instructions for British Servicemen in France 1944, p.25).
Ensina também aos soldados britânicos para não questionarem a moral dos franceses e
respeitar as mulheres: “se você pensar que qualquer mulher sorrindo nas ruas é mulher para se
levar para cama, você trará problemas sérios e graves para você e muitos problemas nas
relações com os franceses”79 (Instructions for British Servicemen in France 1944, p.26).
Dessa forma, o Estado educava através do manual, a ser o cidadão soldado britânico
cordial no trato com os franceses, bem informado a respeito da História, geografia, clima,
política, costumes, entretenimento, comida, bebida, em como deveria tratar as mulheres, ser
respeitoso, ser compreensível com as condições da França numa Guerra ocupada pelos

76
Do original: “The pages which follow are devoted to the French and not the Germans, who have incidentally
behaved far worse in other countries than in France. Indeed, the individual German soldier has behaved, on the
whole, remarkably correctly in France. He was ordered to do so. It was part of a plan for winning France over to
the Nazi “New Order” for Europe. But the French have not been won over (Idem, p. 04).
77
Do original: “A NEW B.E.F., which includes you, is going to France. You are to assist personally in pushing
the Germans out to France an back where they belong. In the process, you will meet the Frecnh, maybe not for
first time, be seeing a country which has been subjected to German occupation for several years. This is a point
worth fixing in your mind. You will learn what it means”.
78
Do original: “there is a fairly widespread belief among people in Britain that the French are a particularly gay,
frivolous people with no morals and few convictions. This is especially untrue at the present time, when the
French have been living a life of hardship and suffering”.
79
Do original: “If you should happen to imagine that the first pretty French girl who smiles at you intends to
dance the can-can or take you to bed, you will risk stirring up a lot of trouble for yourself - and for our relations
with the French”
alemães desde 1940 e estar alerta com a falsa propaganda alemã, sendo ensinados a manterem
a união entre eles.

Considerações Finais

A II Guerra Mundial para além de uma guerra sangrenta, com novos tipos de
armamentos, bombas, foi também uma Guerra de ideia. Os Aliados lançaram diversos livros
para combater o preconceito, a intolerância, a crueldade, estimular seus soldados a vitória e
também moldá-los, instruí-los. Foi nessa perspectiva que surgiram os manuais dados aos
soldados Aliados durante a II Guerra. Eram manuais com claro intuito de unir os combatentes,
de tentar diminuir a distância entre as culturas diferentes e de incutir neles o sentimento de
ajuda mútua e até mesmo de irmandade.
Nos manuais de instrução Instructions for British Servicemen in France e Instructions
for British Servicemen in France vemos claramente em ambos a preocupação central em
alertar os soldados para as diferenças culturais e preconceitos que poderiam prejudicar a união
entre os países. A História, a política, a moeda, os locais de diversão, o que fazer e não fazer,
tudo isso foi abordado, a fim de que o soldado seguisse o comportamento que era idealizado
pelo governo.
Os soldados que foram para Guerra em sua maioria eram civis, não tinham ainda
enfrentado um campo de front de batalha. Esse foi um dos motivos que levaram os países
Aliados, sobretudo os Estado Unidos, a criar verdadeiras estruturas para prover de livros seus
soldados. Campanhas de doações de livros foram feitas, editoras como a Armend Services
Editions se especializaram em publicações para os fronts de guerra.
Os estados britânico e norte-americano através dos manuais procuraram polir, moldar
o comportamento dos soldados, exercendo um controle através da mobilização da palavra
escrita. Estes soldados, além de fazerem vencer a Guerra, foram instruídos a serem soldados
cidadãos cosmopolitas, que deveriam vender a autoimagem de países civilizados, unidos,
mesmo durante uma Guerra que massacrou a todos.

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Bárbara Tikami de Lima


Mestranda / PPGH – UNISINOS

Orientador: Prof. Dr. Marcos Antônio Witt.

O século XIX, momento de grande dissenso do pensamento moderno (BAUMER,


1990), foi um período extremamente promissor para a produção da arte brasileira. Em 1808 a
transferência da corte portuguesa trouxe grandes transformações para o país. Dentre essas
mudanças a contratação da Missão Artística Francesa e a fundação da Academia Imperial de
Belas Artes alteraram significativamente o cenário artístico nacional (BISCARCI e ROCHA,
2006). A centúria também foi marcada pela constante presença de pintores estrangeiros, dos
quais destacamos Edoardo de Martino. Suas pinturas de marinha adquirem grande
importância, quando analisadas conjuntamente ao espírito que a Marinha Brasileira pretendia
incutir em seus homens. Assim, pretendemos demonstrar como as subjetividades deste
indivíduo marcaram de excepcionalidade e normalidade sua trajetória, imprescindível para
compreendermos a relação que existiu entre a força armada e as imagens produzidas pelo
pintor.
Edoardo de Martino nasceu em Meta di Sorrento no ano de 1838. Veio para a América
do Sul como segundo tenente da Marinha de Guerra Italiana. De acordo com Ana Maria de
Morais Belluzzo (1988), abandonou seu posto em 1868, devido ao acidente ocorrido próximo
a Montevidéu em 07 de maio de 1866, pelo qual o pintor foi responsabilizado. Por isto, passou
a se dedicar a atividade artística nas cidades de Montevidéu, Buenos Aires e Porto Alegre. No
período em que esteve no Brasil, o artista teve uma carreira bastante prolífica, foi nomeado
pintor oficial da Guerra do Paraguai por dom Pedro II e participou das importantes exposições
da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro.
Apesar do sucesso profissional e de ter se casado com uma brasileira, Edoardo de
Martino partiu para a Inglaterra por volta do ano de 1875, onde faleceu em 21 de maio de
1912. Sua carreira na corte britânica também foi notória, em 1889 foi nomeado Marine
Painter in Ordinarice to Her Majesty Queen Victoria, após a morte da rainha continuou sendo
pintor da corte de Eduardo VII e Jorge V (BELLUZZO, 1988).
Até o momento a bibliografia que explana acerca da obra e trajetória de Edoardo de
Martino não a relaciona com o projeto de construção cultural da Marinha Brasileira, uma das
principais comitentes do pintor.
I.
A fusão entre os estudos biográficos e a história da arte está presente desde a criação
da disciplina, quando Giorgio Vassari parte de uma doutrina simultaneamente histórica e
estética para unir os interesses de seu catálogo a uma narrativa em sequência (ANDRÉ
CHASTEL, 1981 APUD DOSSE, 2009). Desta maneira o autor inseriu o sujeito produtor da
arte em um campo literário, antes, restrito a figuras heroicas. Tal inovação permitiu olhar o
artista como um indivíduo extraordinário – devido ao exímio domínio do material que utiliza
para compor a arte – e problematizar a narrativa que contempla a ligação entre as obras de arte
e a biografia de seus produtores (DOSSE, 2009).
Ao problematizar a relação entre: a Marinha Brasileira, a obra, e a trajetória de
Edoardo de Martino nós não podemos nos deixar levar pela tendência de tratar a arte como
algo que flutua no ar, exterior e independente da vida do artista ou de sua sociedade (ELIAS,
1995). Esta ressalva traz a necessidade de vermos cada obra com a devida cautela
metodológica, para que possamos nos libertar das armadilhas do simples olhar sobre uma
imagem. Pois, do ponto de vista heurístico “(...) nunca se saberá olhar um quadro. É que saber
e olhar não tem absolutamente o mesmo modo de ser”. Deste modo, o estudioso que se voltar
para a análise de imagens precisa vê-las em detalhes, “pois ver sabe melhor aproximar-se,
antecipar ou então imitar por mímica o ato, supostamente soberano do saber” (DIDI-
HUBERMAN, 2015, p. 297).
Para vermos em detalhes as imagens produzidas por Edoardo de Martino, devemos
encarar o artista como um indivíduo paradoxalmente excepcional e normal. Excepcional,
porque possui singularidades e comportamentos de exceção, que o distingue dos demais.
Porém, simultaneamente normal, pois não está isolado do tecido social, não pode ser
considerado um lócus de particularidades (WITT, 2016). Para compreendermos tais
características paradoxais é fundamental conhecermos alguns dados biográficos do pintor.
Aqui cabe explanarmos acerca da diferença entre biografias e trajetórias. Sendo que, a
“biografia seria um estudo mais abrangente – total – da vida de um biografado” enquanto na
“trajetória/trajetórias, o estudo contemplaria aspectos, recortes, determinados da vida do
investigado” (WITT, p.289).

II.
Voltados para a trajetória do artista pelo Brasil podemos apontar os dados trazidos pela
bibliografia sobre a chegada de Edoardo de Martino ao país. André Toral (2001), Belluzzo
(1988) e Laudelino Freire (1916) afirmam que o pintor chegou à América do Sul junto da
Marinha de Guerra Italiana abordo da Fragata Èrcole. Em 07 de maio de 1866 houve um
acidente próximo a Montevidéu, pelo qual, o ainda segundo tenente, Edoardo de Martino foi
responsabilizado. Para não ir a julgamento ele desertou em 1868.
Embora o século XIX seja um período de grande circulação de pintores estrangeiros,
decorrente da repercussão causada pela Missão Francesa, à chegada do italiano não pode ser
atribuída a este fato, como afirmou José Maria dos Reis Júnior (1944). Ela deriva de sua
atividade militar. Dentro deste panorama também devemos destacar que a escolha de Edoardo
de Martino pela atividade artística decorre da necessidade de sobrevivência devido ao
abandono da carreira náutica. Assim, em relação aos de mais pintores do período, Edoardo de
Martino teve um caráter excepcional, devido ao modo como chegou ao Brasil e
posteriormente escolheu a carreira artística.
Enquanto a chegada ao Brasil e a escolha da atividade pictórica marcam de
excepcionalidade a trajetória do pintor. Sua formação artística leva-o para a normalidade dos
fatos, comuns a carreira de outros pintores do período.
Belluzzo (1988) e Toral (2001) explanam sobre a formação militar de Edoardo de
Martino na Escola Naval de Nápoles. Para eles, o currículo desta escola proporcionou sua
formação em desenho, dada à necessidade de realizar registros cartográficos e notas sobre
paisagem. Tal fato é caracterizado pela normalidade, já que no Brasil as primeiras pinturas de
marinha foram realizadas majoritariamente por estrangeiros, e estavam vinculadas a
cartografia ou a ilustração de ordem militar (OLIVEIRA, 2007).
Sobre a formação em pintura do italiano, Belluzzo (1988) cita a existência de indícios
de que ele tenha estudado pintura com Juan Manuel Blanes, durante o período em que esteve
no Uruguai. Reis Júnior (1944), Quirino Campofiorito (1983) e Toral (2001) afirmam que o
artista foi autodidata em pintura. Enquanto Walter Luiz Pereira (1999) reitera que Edoardo de
Martino frequentou o Instituto de Belas Artes de Nápoles. Esse grande dissenso existente
entre os autores não anula o caráter de normalidade do artista, pois todas as hipóteses
apresentadas pela bibliografia são comuns a outros pintores do período.
Entender o percurso do napolitano é importante quando olhamos para o artista inserido
em uma dinâmica relação com a sociedade, na qual ele utiliza a arte como mecanismo para
produzir o novo, ao assumir papel de sujeito histórico e agente de mudanças (KERN, 2010).
Seguindo a direção dada por Norbert Elias (1995) lançamos nosso olhar sobre o dom
especial de Edoardo de Martino. Tal “gênio” não deve ser entendido como algo inato ao
artista, mas sim, como um fato social. Isto implica a necessidade de tratar a arte como
dependente das vidas societárias dos diferentes indivíduos. Para tanto, é primordial
rompermos com a tendência que separa o artista do ser humano. O que implica na quebra da
noção comum que aponta a criação de obras de arte como objetos que independem da
existência social de seu criador.
Este olhar sob as obras de arte não diminui nossa compreensão das realizações
artísticas ou os sentimentos de felicidade que se tem diante de uma obra. Ao contrário, nossas
paixões aumentam na medida em que tentamos captar o elo entre a obra e a vida de seu
produtor, que está inserido em determinado grupo. Assim, é necessário “um quadro claro das
pressões sociais que agem sobre o indivíduo” para que possamos construir “um modelo
teórico verificável da configuração que uma pessoa (…) formava, em sua interdependência
com outras figuras sociais da época” (ELIAS, p.19 1995).
Deste modo, destacamos o relacionamento de Edoardo de Martino com o alto
oficialato da Marinha Brasileira. Já que o passado como oficial italiano permitiu que o artista
possuísse “certos relacionamentos que só serviam para ajudar” (CAMPOFIORITO, 1983,
p.90). O círculo de importantes amizades associadas à “aptidão para a arte na reprodução da
temática histórica” (PEREIRA, 1999 p.150) levou o imperador D. Pedro II a nomear o
napolitano pintor oficial durante a Guerra do Paraguai. Esta nomeação só é mencionada nas
obras de Pereira e Campofiorito, embora os outros autores afirmem que o artista esteve
presente no conflito bélico.
Freire (1916) reitera que Edoardo de Martino colheu material junto ao quartel liderado
pelo General Caxias, a bordo das embarcações: Fragata Imperatriz, em Curupaiti e Lima
Barros, que fazia a guarda avançada de Humaitá. Posteriormente, este percurso do artista foi
confirmado por Belluzzo (1988) e questionado por Toral (2001), que acrescenta opiniões
divergentes sobre o período e itinerário do artista durante o conflito.
Mesmo com divergências bibliográficas a passagem de Edoardo de Martino pelo
cenário da Guerra do Paraguai pode ser encarada pelo viés da excepcionalidade. Isto se dá,
porque apenas ele e Vitor Meirelles estiveram na região do conflito como pintores oficias do
Império Brasileiro. Paradoxalmente o trânsito do italiano na região da Prata também é
marcado pela normalidade. Pois, durante o século XIX e XX a prática de enviar artistas e
fotógrafos para testemunhar e registrar eventos bélicos foi institucionalizada (TORAL, 2001).
A exibição das pinturas de Edoardo de Martino em importantes exposições artísticas,
como as promovidas pela Academia Imperial de Belas Artes, reflete novamente a
excepcionalidade e normalidade que marcam sua trajetória. Este fato caracteriza o artista
como um indivíduo excepcional, devido à capacidade de manipular um determinado material,
“sem perda de espontaneidade, dinamismo ou força inovadora” (ELIAS, p. 61). Ao mesmo
tempo, a presença do pintor nas exposições artísticas do final século XIX indica a
normalidade de sua trajetória, pois outros artistas também participaram destas.
III.
Problematizar as obras de Edoardo de Martino e sua relação com a cultura naval 80
ainda é um campo fértil, pois a bibliografia que explana acerca do artista só menciona a
Marinha Brasileira como uma de suas principais comitentes. Deste modo, podemos reiterar
que o trabalho de Edoardo de Martino foi produzido em uma dinâmica relação com a
sociedade. Tal fato nos faz considerar a possibilidade de suas obras expressarem: a intenção
do artista, do financiador e de todo o grupo social envolvido na produção (SCHMITT, 2007).
Assim, para analisar as imagens produzidas pelo napolitano precisamos ter em foco o
complexo contexto do século XIX. No qual, “campanhas externas como as que o Brasil travou
nas Guerras da Cisplatina e do Paraguai reforçariam a consolidação da ideologia nacionalista
(…) em pleno processo de constituição, envolvendo a criação de múltiplos imaginários”
(BARREIRO, 2005, p.3). Nesta conjuntura, o recém-fundado Estado Brasileiro – marcado
pela instabilidade política e heterogeneidade dos modos de pensar – careceu tornar visíveis e
concretos alguns conceitos ligados à identidade nacional. Esta necessidade não escapou à
Marinha Brasileira, que também precisou tirar da abstração alguns valores específicos
(BURKE, 2004).
De acordo com José Carlos Barreiro (2005) a necessidade de criação de uma cultura
naval está associada a duas confrontações que marcaram o ambiente dos navios: a dos homens
mediante os perigos e grandiosidade da natureza, e a do conflito entre os indivíduos,
decorrente da rígida disciplina e estrutura hierárquica. Para o autor, somente a disciplina e o
comportamento homogêneo dos indivíduos poderiam neutralizar os conflitos e proporcionar
as condições de sobrevivência da tripulação.
Para aprofundarmos as reflexões sobre a relação entre Edoardo de Martino e a Marinha
Brasileira é necessário considerarmos a existência de um fluxo de ideias, por vezes
materializado em forma de criações artísticas. Estas ideias, em constante e dinâmica relação
com a sociedade são absorvidas quase automaticamente pelos indivíduos em seu ambiente
mental (BAUMER, 1977). Assim, ao abordar o pensamento público expresso nas imagens
produzidas por Edoardo de Martino podemos encarar a cultura naval como um importante
indicativo sobre a maneira como os homens da Marinha Brasileira pensavam a respeito de si
próprios e de seu universo (BAUMER, 1977).
A existência de determinadas doutrinas ou ideias no seio da força armada pode ser
observada por uma série de medidas que foram tomadas “(…) visando o preparo do pessoal, a
recomposição da frota, a reforma administrativa, etc.” (DIAS, 1910, p. 353). Dentre essas
medidas, que carecem de maior espaço para análise, podemos citar a reforma do currículo das
escolas de formação, a criação do museu naval em 1868, a compra das pinturas Batalha Naval

80 O Decreto-lei no 4.116 de 14 de março de 1868 estabelece a criação do Museu Naval com a finalidade
de recolher objetos que interessavam à cultura naval.
do Riachuelo e Passagem de Humaitá de Vitor Meirelles 81, a edição de publicações como a
Revista Marítima Brasileira 82 além das diversas encomendas feitas à Edoardo de Martino.
Olhar as obras de Edoardo de Martino como imagens, pelo prisma da ligação entre
clima, paisagem e povo permite associá-las à cultura naval que a Marinha Brasileira pretendia
construir. Isto nos leva supor que a instituição militar se apropriou do gênero de paisagem
histórica, difundido na Academia Imperial de Belas Artes (MIGLIACCIO, 2000). Tal fato
gerou a produção de uma iconografia oficial marcada pela “paisagística marinha” e pode ser
associada à necessidade da instituição difundir valores morais (ARAÚJO, 2007) capazes de
enaltecer as virtudes dos homens do mar, fundamentais para neutralizar os conflitos existentes
no tenso ambiente dos navios (BARREIRO, 2005).
A relação da Marinha Brasileira com o pintor italiano e sua obra podem ser enfatizadas
quando o Museu Naval expôs vinte e nove pinturas, sendo quinze de Edoardo de Martino83.
Este dado pode ser ligado ao pensamento de Jean-Claude Schmitt (2007). No qual, o autor
desconstrói a noção de imagem como expressão de um significado pré-existente para enfatizar
a participação imagética na construção desse significado. Tal associação nos leva a interpretar
a exposição de várias obras do artista no Museu Naval, como indício de um vínculo entre sua
produção e um projeto ideológico da Marinha Brasileira.
A nota sobre o centenário de morte de Edoardo de Martino 84 pode trazer
estranhamento, pois o texto destaca mais seus feitos militares do que artísticos. Se nos
voltarmos para o pensamento de Piaget – onde o autor afirma existir uma troca afetiva para a
formação de um valor – o elogio à carreira náutica do pintor suscita interpretações que
caminham para a valorização de sua formação militar (PIAGET, 1954 apud ARAÚJO, 2007).
Assim, tendo em consideração que Edoardo de Martino vivenciou as especificidades do
trabalho dos homens do mar esta valorização pode ser associada ao desejo de estabelecimento
de uma cultura naval pela Marinha Brasileira.

IV.
Os dados apresentados ressaltam a importância de ultrapassarmos a análise formalista
para vermos em detalhes as obras de Edoardo de Martino (DIDI-HUBERMAN, 2013).

81 Processo no 06.33 do Museu Histórico Nacional, disponível:


http://docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?
bib=MHN&pasta=Processos%20de%20Entrada%20de%20Acervo&pesq=06.31.
82 A Revista Marítima Brasileira é um periódico editado pela Diretoria do Patrimônio Histórico e
Documental da Marinha, que circula de 1881 até hoje. Está disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?
bib=008567x&pasta=ano%20188&pesq=.
83 AMZALAK, Leão. Catalogo historico e descriptivo do Museu Naval 1901. Rio de Janeiro: Typographia
Leuzinger, 1901. e CATALOGO historico e descriptivo do Museu Naval 1910. Rio de Janeiro: Imprensa Naval,
1910.
84 Revista Marítima Brasileira, 2012. v. 132 n.04/06 abr./jun. 2012.
Para tanto, é preciso ter em consideração que as imagens produzidas pelo artista estão
“inseridas em um campo mais geral de problemas que nos remetem ao intrincado jogo de
definições, atribuições e sentido” (ROSSI, 2011, p.30). Este tipo de problematização nos leva
aos interesses da Marinha Brasileira – uma das principais comitentes do artista – em
estabelecer uma cultura naval, capaz de minimizar os conflitos existentes no ambiente dos
navios (BARREIRO, 2005).
A esse respeito, é imprescindível notar que as imagens produzidas pelo artista
“funcionam em espaços sociais articulados” (SCHMITT, 2007, p.20). Tais espaços não
podem ser considerados simples cenários. Eles precisam ser entendidos como “um modelo
teórico verificável da configuração que uma pessoa (…) formava em sua interdependência
com outras figuras sociais da época” (ELIAS, 1995, p.18). Assim, também precisamos ir além
da narrativa factual e exclamatória sobre a trajetória de Edoardo de Martino. Pois, por mais
que elucidemos as excepcionalidades do artista não podemos ignorar suas normalidades em
meio ao quadro de pressões sociais.
Devido à complexidade da excepcional e normal trajetória de Edoardo de Martino, sua
numerosa produção imagética e a rede de relações que foi estabelecida com a Marinha
Brasileira. Assim precisamos ver em detalhes a conexão existente entre imagem, artista e
comitente de modo a nos aproximarmos de um ideal de saber.

Referências:
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Typographia Leuzinger, 1901.
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Contribuição Para o Processo Cultural Sul Riograndense. Porto Alegre: Globo, 1971.
DIAS, DIAS, Arthur. Nossa marinha: notas sobre o renascimento da marinha de guerra do
Brazil no quatriennio de 1906 a 1910. Rio de Janeiro: Liga Marítima Brazileira, 1910.
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Brasil (1824-1893). História Unisinos. 20(3):287-299, Setembro/Dezembro 2016.
“PRECISAMOS DE AÇÃO”: A MOBILIZAÇÃO DE PESSOAL NAS PÁGINAS DOS
JORNAIS DURANTE A REVOLUÇÃO DE 1932

Carlos Roberto Carvalho Daróz


PPGH – Universidade Salgado de Oliveira

INTRODUÇÃO
Como em todos os processos históricos, a guerra civil travada em São Paulo em 1932
foi o resultado de um conjunto de eventos que envolveram diferentes sujeitos históricos, além
das estruturas políticas do Brasil no primeiro terço do século XX, particularmente a partir da
década de 1920.
Sendo os jornais de maior circulação na capital federal e na capital paulista,
respectivamente, o Correio da Manhã e o Estado de S. Paulo não poderiam ficar à margem
dos acontecimentos. Com expressiva tiragem e elevada capacidade de circulação, os jornais
constituíam-se em importantes veículos de propaganda e mobilização.
Em São Paulo, o jornal de Júlio Mesquita Filho desempenharia papel central,
trabalhando para aglutinar a opinião pública em torno dos ideais constitucionalistas. Em nome
do “sacrifício” representado pelo MMDC 85, eram convocados os “bravos paulistas”,
trabalhadores e “herdeiros” do espírito bandeirante.
No Rio de Janeiro, o diário dirigido por Paulo Bittencourt daria voz ao Governo
Provisório e, embora com menor ênfase do que seu concorrente paulista, apoiaria as forças
governamentais e os grupos políticos alinhados com Getúlio Vargas. O periódico daria ao
conflito uma feição nacional, apresentando para seus leitores uma luta de todo o Brasil contra
o estado paulista rebelado.
Os jornais chamariam para a luta e procurariam manter elevado o moral dos soldados
durante os meses de conflito, e trabalharam, de maneira distinta, no sentido de mobilizar os
recursos humanos necessários à condução da guerra.

A MOBILIZAÇÃO DE PESSOAL NAS PÁGINAS DOS JORNAIS

Mesmo sendo uma potência econômica, sem o apoio dos demais estados São Paulo
teria que enfrentar uma guerra desigual contra o Governo Provisório, que tinha à sua
disposição os recursos militares e as forças policiais de praticamente todas as unidades da
federação.

85
No dia 23 de maio de 1932, quatro manifestantes paulistas foram mortos em um confronto contra membros da
Legião Revolucionária, liderada por Miguel Costa. As mortes em praça pública serviram para eliminar as poucas
diferenças partidárias que ainda persistiam e para aglutinar a sociedade paulista. A sigla formada pelas iniciais de
Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo, os nomes dos estudantes mortos, se tornou sinônimo do sacrifício por
São Paulo.
A realidade de que precisaria contar somente com seus próprios meios criava
perspectivas sombrias para os paulistas. 786 Do lado oponente, Vargas ameaçava empregar
todos os recursos armados do país para debelar a rebelião.
Para ter alguma chance de sucesso, as lideranças paulistas precisariam contar com o
voluntariado e, para isso, se serviriam de características componentes de sua cultura política
própria, que propagava uma luta “pela lei e por São Paulo”, e contariam com o apoio da
imprensa, particularmente o jornal O Estado de S. Paulo, que realizaria intensa campanha em
prol do alistamento.
O alistamento de voluntários civis ficou a cargo da Sociedade MMDC 87, que, antes
mesmo da eclosão do movimento, organizou comissões de propaganda cívica e alistamento
por todo o estado, contando com o apoio das prefeituras e da polícia. Uma semana antes da
precipitação dos acontecimentos em São Paulo, o Correio da Manhã publicou uma dessas
ações de propaganda, ocorrida em Jundiaí e realizada com o apoio de um avião: “Um avião
militar, que evoluiu sobre Jundiaí, distribuiu, em profusão, boletins convidando o povo para se
alistar em batalhões civis.” 88
O MMDC conclamava os soldados à batalha; as “esposas, mães e irmãs” ao trabalho
voluntário na confecção de uniformes, ou como enfermeiras; os jovens a trabalharem na
fabricação de capacetes e armamentos, entre outras atividades; e as crianças eram incentivadas
a se organizarem em “batalhões” mirins. Aos homens coube o papel principal de combaterem
pela “causa da lei”.
A análise dos diferentes cartazes de propaganda elaborados pela Sociedade MMDC
para mobilização e, principalmente, recrutamento de pessoal para a guerra que se avizinhava,
permite identificar diversas representações de características que podem formar uma cultura
política específica, na qual ritos e símbolos próprios desempenham papel significante de um
discurso codificado.89

86
Memória n° 3-Estado Maior do Exército (Efetivo existente na 2ª Região Militar), de 8 de julho de 1932.
Acervo do Arquivo Histórico do Exército.
87
De acordo com CARVALHO (1933, p.147), o anedotário corrente no Rio de Janeiro dizia que MMDC
significava “Mata Mineiro, Degola Carioca”.
88
ORGANIZAÇÃO de batalhões provisórios em São Paulo. Correio da Manhã, n.11.522, Rio de Janeiro, 3 jul.
1932, p.4.
89
BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (Orgs.). Para uma
História Cultural. Lisboa: Estampa, 1998, p.349-363, p.351.
Figura 1 – Cartaz MMDC “Você tem um Figura 2 – Cartaz MMDC “Eles estão a sua
dever a cumprir” espera”

Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo

O cartaz da Figura 1, claramente inspirado em um cartaz de recrutamento


estadunidense utilizado na 1ª Guerra Mundial no qual aparecia a figura do “Tio Sam”, mostra
um soldado constitucionalista apontando diretamente para quem o lê, indicando uma
responsabilidade individual para com a causa paulista, esta representada pela bandeira
alvinegra do estado ao fundo. A mensagem veiculada é de um forte apelo emocional,
remetendo à consciência de cada um e o dever a cumprir em prol do movimento. Também é
possível fazer uma leitura de um alinhamento dos liberais de São Paulo com a referência
mundial em liberalismo, os EUA (“Tio Sam”), em oposição à ditadura varguista.
O segundo cartaz (Figura 2) estampa uma mensagem explícita de recrutamento
trazendo uma expressão que termina com um verbo no imperativo afirmativo: “Para
completar o batalhão, ALISTE-SE.” A bandeira do Brasil diante da paulista procura mostrar
que o movimento não tem caráter separatista, mas representa uma correção nos rumos que o
país vinha tomando com o Governo Provisório. A chamada à responsabilidade também se faz
presente, informando ao leitor do cartaz que “eles”, os quatro soldados que já se alistaram,
“estão à sua espera”. Todos os soldados representados possuem o mesmo rosto, induzindo a
sociedade paulista a se alistar e se comportar como um só corpo na luta contra o Governo
Provisório. Além disso, os quatro soldados representam, simbolicamente, os quatro
manifestantes mortos (Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo), cujas iniciais MMDC serviram
como mote para o movimento.
A partir do momento em que estampou como manchete de capa “O movimento
revolucionário constitucionalista empolga a consciência cívica de S. Paulo” 90, O Estado de S.
Paulo iniciou sua campanha de mobilização. Nesse sentido, o jornal inaugurou colunas
diárias, como a “Milícia Civil MMDC”, que registrava os trabalhos de recrutamento
realizados pela organização, e publicou, até o final do conflito, apelos à consciência cívica da
sociedade paulista. A título de exemplo, em 15 de julho o jornal publicou na coluna um
relatório sobre a mobilização nas cidades do interior do estado

Assim é que ontem, somente de 22 cidades, ela [a comissão de alistamento


do MMDC] pôs à disposição da Segunda Região Militar e do comando da
Força Pública 3.526 homens, cujo transporte está sendo providenciado [...].
Chegam notícias do interior de que é indiscutível o entusiasmo em toda a
parte.91

Uma breve análise desses números permite visualizar a amplitude e o alcance do


trabalho do MMDC e da mobilização cívica empreendida pelo jornal. Em apenas um dia, em
algumas poucas cidades do interior paulista, a campanha obteve o alistamento de cerca de
50% do efetivo inicial das unidades da 2ª Região Militar.
Na capital paulista o alistamento voluntário atingiu cifras significativas, também com
o apoio do jornal. Anúncios de diversas categorias e entidades publicados resultaram na
formação de batalhões de voluntários classistas, como o da Associação de Funcionários
Públicos, que dizia: “Os associados que quiserem alistar-se no ‘Batalhão da Associação’,
devem dirigir-se à sede social [...] onde se encontrarão todos os dias pessoas incumbidas do
alistamento [...].”92 Outro da Associação Paulista de Medicina conclamava os médicos a
trabalharem em prol da revolução: “Continua aberta na secretaria da Associação Paulista de
Medicina uma lista de inscrição para os associados que desejarem oferecer os seus serviços à
causa revolucionária.”93
Outro artifício utilizado pelo jornal foi a publicação de anúncios solicitando a
inscrição de voluntários, como o mostrado na Figura 3 pedindo o alistamento para a Escola de
Granadeiros e Guarnições para Morteiros, um serviço especializado, porém, arriscado.

Figura 3 – Anúncio solicitando voluntários para a


Escola de Granadeiros e Guarnições para Morteiros

90
O MOVIMENTO revolucionário constitucionalista empolga a consciência cívica de S. Paulo. O Estado de S.
Paulo, São Paulo, 12 jul. 1932, p.1.
91
MILÍCIA civil MMDC. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 jul. 1932, p.4.
92
BATALHÃO da Associação dos Funcionários Públicos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 12 jul. 1932, p.2.
93
NA ASSOCIAÇÃO Paulista de Medicina. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 12 jul. 1932, p.3.
Fonte: O Estado de S. Paulo, São Paulo, 6 set. 1932, p.2

Com efeito, foram organizados diversos batalhões de voluntários, nomeados de


acordo com a origem de seus integrantes, com eventos ligados ao próprio movimento, ou,
ainda, fazendo referência à história paulista, em particular aos bandeirantes, um apelo
recorrente às características componentes de sua cultura política. 94 Nomes como Batalhão
Esportivo, Batalhão de Ferroviários, Batalhão de Operários de Santos, Batalhão Acadêmico,
Batalhão 9 de Julho, Batalhão Amador Bueno, Batalhão Borba Gato, Batalhão Paes Leme,
dentre outros. Algumas dessas unidades foram integralmente organizadas com recursos das
entidades de classe, como foi o caso do Batalhão 9 de Julho, composto por 480 homens,
completamente equipados pelo Instituto do Café. 95
Tão logo foi organizado o exército constitucionalista, O Estado de São Paulo
publicou um pronunciamento do governador Pedro de Toledo no qual agradecia o
voluntariado e expressava sua confiança na vitória:

Soldados da Constituição!
[...] [O Governo de São Paulo] com justificado orgulho sente a vibração
entusiástica com que o povo paulista segue vossa vitoriosa avançada,
verificando cada cidadão exultar por possuir entre vós um amigo, um filho,
um irmão. Vê, comovido, o ardor com que, junto dos postos de
recrutamento, todos procuram disputar lugar de honra e glória que vos coube
[...].96

Carregado de apelo emocional, o discurso do governador trazia um duplo sentido: ao


mesmo tempo em que declarava o orgulho pelos voluntários já alistados, lembrava aos ainda

94
BERSTEIN, Serge. A cultura política..., p.361.
95
PARTIDA do Batalhão “9 de julho”. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17 jul. 1932, p.4.
96
SAUDAÇÃO do governo de S. Paulo ao exército constitucional. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 jul.
1932, p.1.
não alistados a importância do voluntariado, marcado pela exultação das famílias que já
haviam ofertado seus filhos para a guerra.
A toada cívica e festiva que conseguiu arregimentar milhares de voluntários, no
entanto, diminuiu de ímpeto conforme a luta foi avançando e as baixas em combate
crescendo. Sob o ponto de vista de alguns soldados na trincheira, era preciso que fosse
ampliada a parcela de contribuição pela sociedade paulista. Uma impactante e veemente carta
de um soldado, que não teve o nome revelado, foi publicada na primeira página de O Estado
de S. Paulo, com o objetivo claro de estimular o alistamento e levar alguns a fazerem a
passagem da retórica para a trincheira:

Soldado da 9ª Companhia do 5° RI [regimento de infantaria], que há dias se


encontra no “front” paulista, por intermédio desse matutino faço um apelo
veemente à mocidade paulista para que se inscreva, imediatamente, no
Exército ou na Força Pública a fim de, nas trincheiras, conseguirmos a
redenção do Brasil. Deixemos de discurso, de apoios aos batalhões
patrióticos e de festas. Precisamos de ação.
Ficarão em casa os covardes e os inválidos. Os próprios velhos farão a defesa
das cidades. Deixemos o instinto de conservação e teremos em breve a
vitória.97

Utilizando o mesmo tom elevado, um editorial publicado no início de agosto, quando


a situação do exército constitucionalista não era das mais favoráveis, comparou a omissão a
uma traição a São Paulo: “Não haverá, por isso, perdão para quem quer que [...] se deixe ficar
à margem da corrente e não ponha a totalidade se suas energias ao serviço da causa que S.
Paulo defende. A indiferença será, nesta hora, um começo de traição.”98
O assunto do voluntariado voltou a ser tema de editorial de Plínio Barreto, que
explicou a necessidade de manter o fluxo de alistados devido à extensão da guerra e à
necessidade de recompletamento de pessoal.

Com a renovação constante das tropas em combate, o sacrifício geral fica


reduzido a proporções mínimas. Além disso, é grande a extensão do
território paulista em que se trabalha para prover a necessidade da guerra.
Em todas as regiões faz-se mister número elevado de combatentes. 99

Apesar de algumas resistências, a campanha desenvolvida pelo MMDC e pelo jornal


O Estado de S. Paulo foi bem-sucedida, e possibilitou a rápida mobilização de reservistas e
voluntários, que engrossaram as fileiras do exército constitucionalista que chegou a possuir

97
UMA VOZ nas trincheiras. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 jul. 1932, p.1.
98
NOTAS e informações. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 4 ago. 1932, p.5.
99
NOTAS e informações. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 13 ago. 1932, p.4.
20.000 combatentes.100 Na realidade, havia mais soldados do que armas disponíveis,
motivando outras campanhas de mobilização de material, também com participação intensa
do jornal, que trataremos mais adiante.
Ao contrário da situação em que se encontrava São Paulo, Getúlio Vargas pôde
dispor da maior parte do exército, da totalidade da Marinha e das forças policiais de
praticamente todos os estados do país para fazer frente à Revolução Constitucionalista.
Assim, diferente com o que ocorreu com O Estado de S. Paulo, no Rio de Janeiro o Correio
da Manhã não foi utilizado para fazer campanha pelo alistamento de voluntários, mas apoiou
a causa do Governo Provisório noticiando os apoios recebidos e, principalmente, a chegada de
tropas para combater os paulistas.
A solidariedade dos interventores espalhados por todo o território nacional
materializou-se por meio do envio de tropas do exército sediadas nos estados e de suas
polícias, além de um considerável número de batalhões provisórios, formados por voluntários.
Na edição de 13 de julho, o Correio da Manhã publicou matéria de capa registrando a
chegada do 3° BC (batalhão de caçadores), procedente do Espírito Santo, ao Rio de Janeiro.
Também divulgou telegrama do capitão Nelson de Mello, interventor interino de Pernambuco,
relatando as providências iniciais tomadas por seu estado:

Situação Pernambuco ótima, 21° BC deverá embarcar hoje para aí, a bordo
“Itapagé”, estando diante do quartel uma multidão que deseja alistar-se para
também seguir.
Brigada Militar está pronta para atender à primeira ordem. 101

Considerando a necessidade de ocultar do adversário os movimentos das tropas e


unidades militares e o poder exercido pelos censores, a deliberada publicação no jornal do
deslocamento de tropas de todo o Brasil para a região de operações pode ser interpretada
como uma forma de o Governo Provisório pressionar os paulistas, uma demonstração de força
no sentido de retirar sua disposição em prosseguir com o movimento.
Outro compromisso veio do Rio Grande do Sul, um dos estados que os paulistas
esperavam a cooperação, com um telegrama do interventor Flores da Cunha para o ministro
Oswaldo Aranha, também devidamente tornado público pelo Correio da Manhã: “Avise a
chegada aí do 9° Regimento de Infantaria. [...] Amanhã pelo ‘Pará’ seguirão mais três
regimentos. Precisarão de mais alguns? Temos quantos quiserem.”102

100
HILTON, Stanley. 1932: a guerra civil brasileira. São Paulo: Nova Fronteira, 1982, p.104.
101
A SOLIDARIEDADE de Pernambuco ao Governo Provisório. Correio da Manhã, n.11.531, Rio de Janeiro,
13 jul. 1932, p.3.
102
FORÇAS gaúchas à disposição do governo federal. Correio da Manhã, n.11.534, Rio de Janeiro, 16 jul. 1932,
p.1.
Olegário Maciel também teve sua cooperação registrada pelo jornal, oferecendo a
Força Pública de Minas Gerais (FPMG) e organizando batalhões de voluntários para combater
a rebelião:

Vivamente empolgado em organizar nesse estado, para cooperar na


manutenção da ordem nacional, cinte batalhões patrióticos, que deverão
cooperar com a Força Pública, e pretendendo mobilizar vinte mil homens,
dentro de poucos dias [...].103

Apesar de não conseguir atingir essa meta, em fins de julho Minas Gerais havia
mobilizado e enviado para a zona de operações 8.000 homens da FPMG, que correspondiam
ao efetivo de dez batalhões, e mais de 4.000 voluntários enquadrados em batalhões
provisórios.104
Incentivados por Juarez Távora, o “tenente” nomeado por Vargas para coordenar as
interventorias do Nordeste do país, muitos estados da região enviaram tropas federais e
polícias estaduais para darem combate aos revoltosos. No fim de julho, o Correio da Manhã
noticiou a chegada ao Rio de Janeiro de parcela dessas tropas:

Desembarcaram ontem, nesta capital, procedentes do norte do país, diversos


contingentes que se destinam aos setores em operações. Essas tropas, vindas
do norte, são as seguintes: 24° BC, do Maranhão; 1.053 praças [...] de
Alagoas e Pernambuco. Os contingentes desses dois estados nordestinos se
destinam a completar o efetivo de guerra do 20° BC e 21° BC.105

O contato entre tropas paulistas e nordestinas expôs de maneira inequívoca a faceta


do sentimento de superioridade característico da cultura política de São Paulo. Em editorial de
31 de julho, O Estado de S. Paulo publicou o seguinte:

Como [São Paulo] se bate por essa causa? Mandando para as fronteiras, para
as linhas de fogo, a flor de sua mocidade [...]. E a ditadura? Despejando
contra a mocidade de S. Paulo, contra os estudantes, os médicos, os
advogados, os engenheiros, os comerciantes, os fazendeiros, os homens de
trabalho e os homens de inteligência uma jagunçada colhida nos sertões,
arrebanhada nas fronteiras e aliciada até fora do país. Contra um povo
civilizado lança levas de facínoras. (grifos nossos)106

103
TELEGRAMAS trocados entre os srs. Getúlio Vargas e Olegário Maciel. Correio da Manhã, n.11.534, Rio
de Janeiro, 16 jul. 1932, p.3.
104
O NÚMERO de soldados mineiros mobilizados. Correio da Manhã, n.11.539, Rio de Janeiro, 22 jul. 1932,
p.3.
105
MAIS tropas que chegam a esta capital. Correio da Manhã, n.11.547, Rio de Janeiro, 31 jul. 1932, p.1.
106
NOTAS e informações. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 31 jul. 1932, p.5.
Nessa visão reducionista e preconceituosa, o Governo Provisório estaria lançando
desqualificados “jagunços”, “facínoras”, contra o povo “civilizado” de São Paulo, no texto
caracterizado por profissionais liberais, “homens de trabalho” e “homens de inteligência”.
Uma luta da barbárie contra a civilização que mal disfarçava a superioridade da “raça
paulista”.
Até o último dia do movimento, o Governo Provisório mobilizou tropas e enviou
unidades para combater os paulistas. Estima-se que o exército federal tenha reunido cerca de
55.000 soldados para enfrentar aproximadamente 30.000 constitucionalistas. No dia 28 de
setembro, poucos dias antes da rendição dos paulistas, embarcou em Porto Alegre com destino
ao Rio de Janeiro o 7° BC, unidade sediada no estado do Rio Grande do Sul. 107
Durante todo o período em que durou a revolução, o Correio da Manhã publicou o
constante fluxo de tropas que afluíam de todo o país, inclusive estampando em sua primeira
página diversas fotografias dos contingentes que chegavam ao Rio de Janeiro, pressionando os
adversários do Governo Provisório e contribuindo, a seu modo, com a mobilização de pessoal
para o exército federal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisando em retrospecto, é possível verificar que os dois jornais objeto do presente
estudo representaram grupos políticos específicos, participaram, cada qual a seu modo, da
mobilização da sociedade e contribuíram com o esforço de guerra.
Embora fosse favorável a algumas ideias defendidas pelos paulistas, o Correio da
Manhã fez de suas páginas uma trincheira do Governo Provisório. Mantendo basicamente sua
estruturação de tempo de paz, continuou a veicular notícias internacionais, culturais e sociais,
em paralelo com o noticiário de guerra que, frequentemente, consumia de três a cinco páginas.
Com manchetes sóbrias, deu publicidade a ofícios, telegramas e outros documentos oficiais, e
não trouxe muitos editoriais de opinião.
Sob o aspecto estrutural e gráfico, a primeira página foi reservada às notícias do
conflito, geralmente, ilustrada por fotografias. Mesmo submetido à censura e praticando a
propaganda de guerra, na cobertura do conflito o Correio da Manhã contou com um enviado
especial à frente de combate, que atuou junto ao Destacamento de Exército Leste do general
Góes Monteiro. Suas reportagens aproximaram o combate dos leitores e apresentaram, em
cores vivas, a crueza da guerra.
O Estado de S. Paulo ocupou a trincheira oposta durante a revolução. Como seus
dirigentes Júlio de Mesquita Filho e Plínio Barreto estavam diretamente ligados ao
movimento constitucionalista, o jornal se converteu em verdadeiro instrumento de motivação,
107
VEM para a zona de operações o 7° de Caçadores. Correio da Manhã, n.11.597, Rio de Janeiro, 28 set. 1932,
p.1.
propaganda e mobilização. Seu tamanho foi reduzido para 4-5 páginas, em média, nas quais a
prioridade de publicação eram as campanhas de mobilização e a prestação de contas à
sociedade paulista. Diversas cruzadas foram apoiadas pelo periódico e se converteram em
colunas regulares, como a do “ouro para a vitória”, “capacete de aço”, “armas e munições”,
“pão de guerra”, “milícia civil MMDC”, “correio militar”, entre outras, nas quais eram
publicadas as listas de doadores e donativos. Com a proibição de circular no Rio de Janeiro e
o consequente fechamento de sua sucursal naquela cidade, a coluna “notícias do Rio” foi
descontinuada e, quando produzida, dependeu de viajantes e informantes. Diariamente, nas
páginas interiores, era publicado o editorial “notas e informações”, normalmente redigido pelo
próprio chefe de redação Plínio Barreto, no qual era feita a defesa e a legitimação do
movimento, além de ataques ao Governo Provisório e a mobilização de segmentos da
sociedade.
A atualização das notícias relativas às operações militares foi assegurada com a
publicação de três comunicados diários (11, 18 e 21 horas), que resumiam, na primeira
página, as ações de combate. Por entender que não deveria oferecer informação valiosa para o
inimigo, o periódico quase nunca divulgou o informou sobre o movimento de tropas, no
entanto, facilitado pelo censor do movimento ser seu próprio redator-chefe, praticou
intensamente a propaganda de guerra e foi um dos responsáveis por São Paulo, mesmo
isolado, ter resistido por três meses contra todo o aparato bélico do Governo Provisório.
Cada qual a seu modo, os jornais utilizaram sua capacidade de penetração e
circulação na sociedade, e, com suas propagandas e campanhas, procuraram influenciar no
resultado do conflito, tornando-se instrumentos do esforço de guerra.

FONTES PRIMÁRIAS:
- Arquivo do Jornal O Estado de S. Paulo
- Biblioteca Nacional – Jornal Correio da Manhã

BIBLIOGRAFIA:
BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François
(Orgs.). Para uma História Cultural. Lisboa: Estampa, 1998, p.349-363.
CAPELATO, Maria Helena. O movimento de 1932: a causa paulista. São Paulo: Brasiliense,
1981.
CAPELATO, Maria Helena; PRADO, Maria Lígia. O bravo matutino - imprensa e ideologia:
o jornal O Estado de São Paulo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1980.
CARVALHO, José Murilo. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
DONATO, Hernani. A revolução de 1932. São Paulo: Círculo do Livro, 1982.
HILTON, Stanley. 1932: a guerra civil brasileira. São Paulo: Nova Fronteira, 1982.
LUCA, Tânia Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla
Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2006, pp.111-153.
LUCA, Tânia Regina; MARTINS, Ana Luíza (orgs.). História da imprensa no Brasil. São
Paulo: Contexto, 2008.
McCANN, Frank. Soldados da pátria: história do exército brasileiro 1889-1937. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
VILLA, Marco Antônio. 1932: Imagens de uma revolução. São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2009.
VISCARDI, Cláudia. O teatro das oligarquias: uma revisão da “política do café com leite”.
AMAZÔNIA PORTUGUESA: AS DEFESAS NO PERÍODO POMBALINO

Christiane Figueiredo Pagano de Mello*


Professora Associada do Departamento de História - UFOP

Tratados e Tensões
Durante a segunda metade do século XVIII, a busca do governo português por uma
maior centralização político-administrativa provocou mudanças nas instituições políticas e
militares outrora dotadas de certa autonomia 108. Essa política régia se estendeu pelos domínios
ultramarinos portugueses e foi implementada por seus representantes: Vice-Rei, Capitães-
Generais e Governadores das Capitanias.
O Estado do Grão-Pará e Maranhão, fundado em 1751 e que compreende hoje em dia
os estados da federação brasileira do Pará, Maranhão, Piauí, Roraima, Amapá e Amazonas,
foi uma das áreas de grande tensão ao longo do século XVIII, visto que os limites eram
manifestamente indefinidos. Zona estratégica de primordial importância, como assinala Maria
Isabel da Silva, o Estado dava acesso, através da bacia hidrográfica do Amazonas, as minas
existentes na colônia que importava defender; e representava uma fonte de recursos naturais
que pareciam proporcionais à sua grandeza 109.

Como lembra Elis Miranda, as terras a oeste da Amazônia, segundo o Tratado de


Tordesilhas (1494) eram de domínio da Espanha e o Tratado de Madri em 1750 veio legitimar
a expansão portuguesa para as terras a oeste do tratado anterior, pois o Tratado de Madri era
baseado na ocupação efetiva do território, coisa que o Estado Português já praticava desde o
século XVII110.
Em 1761, devido aos problemas de aplicação do Tratado de Madri, é assinado o
Tratado de El Pardo cancelando o primeiro. Essa situação colocou as regiões de fronteira da
Amazônia com as colônias de Espanha em estado de risco, de disputa. Além disso, a Guerra
dos Sete Anos na Europa iria acirrar ainda mais a tensão entre as duas Coroas. Era necessário
Portugal preparar devidamente suas defesas em caso de prováveis ataques espanhóis na
região.
No que se refere às fronteiras entre os domínios coloniais portugueses e franceses na
América do Sul, o Tratado de Utrecht (1713) definiu os limites entre a Guiana Francesa e a

108
Para a abordagem da política pombalina, um trabalho clássico é FALCON, Francisco José Calazans. A época
pombalina. São Paulo: Ática, 1982.Além deste, ver. Maxwell, K. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
109
RODRIGUES, Maria Isabel da Silva Reis Vieira. O Governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado no
Grão-Pará e Maranhão (1751-1759), Dissertação de Mestrado, Universidade de Lisboa, 1997
110
MIRANDA, Elis. Cametá:marcas da presença portuguesa na Amazônia. In: Atas do Congresso Internacional
«Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades» Lisboa 2 a 5 de Novembro de 2005 FCSH/UNL
Capitania do Cabo Norte, pertencente a Portugal. Entretanto, a partir de meados de 1720 os
franceses passaram a questionar tais limites e a reivindicar a posse da região do Cabo Norte. O
problema da posse da região permaneceria pendente nas relações entre as duas Cortes
trazendo inquietação constante com a defesa do território.

Defesa e Ocupação

Para pôr em prática seu projeto na Amazônia, Pombal nomeou, para Governador e
Capitão-General do Estado do Grão-Pará e Maranhão, seu irmão Francisco Xavier de
Mendonça Furtado (1751-1758). Inúmeras medidas foram adotadas: o levantamento
cartográfico e formação de comissões de demarcação de limites, a mudança da sede do
governo para Belém do Pará, a organização das capitanias subalternas ao Grão-Pará e
Maranhão, a criação da Capitania de São José do Rio Negro; a construção de fortalezas, a
criação da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, a introdução de negros na região, a
expulsão dos jesuítas.

No que diz respeito à política territorial, de acordo com Christian Púrpura em “Formas
de existência em áreas de fronteira”111, o governo de Francisco Xavier Mendonça Furtado,
nos anos 50 do século XVIII, não operou uma ruptura tão radical com os governos anteriores,
como quer uma corrente interpretativa bastante aceita na historiografia. Segundo o autor,
mesmo antes de Mendonça Furtado, a formação de uma rede de fortificações foi uma medida
importante de afirmação da autoridade portuguesa no interior da Amazônia. Sobretudo, nos
últimos anos do século XVII. Nesse sentido, são importantes as pesquisas de Arthur Cezar
Ferreira Reis em que as fortalezas são entendidas como “afirmações de soberania” e
“marcavam a fronteira”112. As fortalezas foram instrumentos para a construção de um
território político.
Entretanto, além das fortalezas, Mendonça Furtado e outros governantes da época
pombalina viam no povoamento uma das grandes armas de defesa do território. Nesse sentido,
Renata Malcher Araújo entende que, os principais critérios da gestão do território, na ótica
pombalina, foram fundamentados na criação de uma linha de defesa por meio das
fortificações e na ocupação da terra pela fundação de povoações. Com a atividade

111
PÚRPURA, Christian. Formas de existência em áreas de fronteira: a política portuguesa do espaço e os
espaços de poder no oeste amazônico (séculos XVII e XVIII). Dissertação (Mestrado). Faculdade de História,
Universidade de São Paulo, 2006.
112
REIS, Artur Cézar Ferreira. A Amazônia que os portugueses revelaram. Rio de Janeiro, MEC, 1956.
fortificatória, assegurava-se o controle dos limites exteriores do território e por meio da
estratégia interior, investia-se na ocupação efetiva do domínio colonial113.
Praticamente toda a Amazônia foi “cercada” por povoações e fortificações. No
noroeste foi construído o Forte Príncipe da Beira-Rondônia-, em frente à atual Bolívia, no
Amapá foi construída a Fortaleza de São José de Macapá, além da Vila de Macapá, a Vila
Nova de Mazagão e a Vila Vistosa da Madre de Deus.
Acevedo Marin observa que, além da defesa militar ocorrida através das construções
de fortes e fortalezas, ocorreu também a projeção da estrutura agrária e camponesa, que tinha
como finalidade o controle da população da região e a defesa das fronteiras contra os inimigos
externos114. A autora desenvolve uma análise bastante interessante sobre o cultivo do arroz
como projeto de ocupação e aproveitamento da região do Macapá. Observa que a região
necessitava ser protegida das ameaças francesas; na condição de fronteira, era necessário que
o Macapá se tornasse uma área de destaque agrícola, haja vista, que a França perdera, em
1763, a região em litígio para o Brasil. Nesse projeto de colonização do Macapá que, ao
mesmo tempo, era militar e agrícola, o colono, assume, assim, a dupla função de colono e
soldado. Dessa forma, de acordo com a autora, a agricultura no Macapá representou muito
mais do que uma simples tentativa do cultivo de um produto agrícola em uma região
primordial para a garantia do controle de fronteira.

Nesse sentido, vale destacar que, muitos estudos, ainda hoje, enfatizam apenas a
economia extrativista na região Amazônica. A autora demonstra a importância do historiador
que evita cair nos grandes ciclos econômicos e critica a história tradicional que estuda as
regiões a partir de modelos pré-elaborados que fogem à própria historicidade, no caso, a
Amazônia. Há, portanto, a preocupação em situar a região em suas particularidades para poder
depois compreendê-la num contexto macro. É essa escrita histórica que permite não se fazer
história a partir de concepções que apresentam a região como área periférica115.

Assim, a organização da sociedade colonial na região amazônica, no contexto das


demarcações, deu-se em torno da comercialização dos produtos da natureza, em sua forma
extrativista e, também, contando com uma produção agrícola considerável, como por
exemplo, o cacau, argumento defendido por Dauril Alden116.

113
ARAÚJO, Renata Malcher. As cidades da Amazônia no século XVIII. Belém, Macapá e Mazagão. Porto,
Faup publicações, 1998.
114
ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. A escrita da história paraense. Belém: Universidade Federal do Pará,
1998.
115
CARDOSO, Francinete. Resenha: “Acevedo Marin, Rosa Elizabeth. A escrita da história paraense. Belém,
NAEA-UFPA, 1998”, Novos Cadernos NAEA vol. 2, nº 2 - dezembro 1999.
116
ALDEN, Dauril. O Significado da produção de cacau na região amazônica no fim do período colonial:um
ensaio de história econômica comparada. Belém: UFPA; NAEA, 1974.
Nesse mesmo sentido, José Ubiratan Rosário, também recusando a concepção de uma
economia colonial amazônica reduzida ao extrativismo, afirmou que o cultivo próspero do
cacau na região teria sido responsável por orientar algumas das políticas pombalinas de
reforço das fronteiras e da construção do Diretório dos Índios, objetivando garantir mão-de-
obra e defesa das plantações117.
Em termos gerais, como destaca Flavio Gomes, paulatinamente, a ocupação da região
Amazônica foi ganhando forma, e a característica marcante foi a militarização da região,
especialmente no século XVIII. Colônia agrícola e guarnição militar, faces contraditórias e, ao
mesmo tempo, complementares da ocupação portuguesa. Nesse contexto, destaca-se o papel
dos colonos-soldados destinados a estas praças estratégicas, onde se encontravam em regime
de disponibilidade compulsória para servir como militares118. O que, vale destacar, provocou
uma intensa deserção por parte de vários destes colonos-soldados.
As origens e as motivações das freqüentes deserções de soldados no Grão-Pará
colonial podiam ser muitas. Índios, brancos pobres e negros – de maneira geral – fugiam do
recrutamento militar e do trabalho compulsório 119 nas fortalezas e vilas. Como observa Flavio
Gomes, os desertores e fugidos procuravam proteção nas áreas de fronteiras de ocupações
coloniais. Mais do que a floresta propriamente dita, era a região da fronteira o lugar seguro
para fugitivos. A busca de apoios, de alianças e de solidariedades nesta região não tinha,
literalmente, limites territoriais. Nesse contexto, os fugitivos
“negros, índios e soldados desertores – foram protagonistas de uma original
aventura, na qual reinterpretaram os sentidos da colonização. Com suas próprias
ações, reinventaram significados e construíram visões sobre escravidão, liberdade,
ocupação, posse, fronteiras e domínios coloniais. Inventaram a geografia de suas
ações. Mais do que isto, marcaram as experiências da colonização e ocupação de
vastas regiões amazônicas, principalmente aquelas das fronteiras coloniais
internacionais”120.

Como afirma Almir Diniz, as fronteiras da colônia portuguesa na Amazônia se


entrelaçavam numa rede complexa formada por inúmeros atores: indígenas, brancos, negros e

117
ROSÁRIO, José Ubiratan da Silva. Amazônia, processo civilizatório: apogeu do Grão-Pará. Belém: Editora
da UFPA, 1986. Sobre esse debate, ver: COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar. Um estudo sobre a
experiência portuguesa na América, a partir da Colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). São Paulo:
Universidade de São Paulo, Tese de Doutorado, 2005, pp. 98-100.
118
GOMES, Flávio dos Santos. (Org.) Nas terras do Cabo Norte: fronteiras, coloni a o e escra id o na
Guiana rasileira, s culos -XIX. Belém, Editora Universitária, 1999.
119
Sobre a escravidão africana na Amazônia Ver: SALLES, Vicente. O Negro no Pará. Brasília: Ministério da
Cultura; Belém: Secretaria de Estado da Cultura, 1988. [1971]; VIRGOLINO-HENRY,Anaiza & FIGUEIREDO,
Napoleão. A Presença africana na Amazônia colonial: uma notícia histórica. Belém: Arquivo Público do Pará,
1990. ACEVEDO MARIN, Rosa & CASTRO, Edna. Negros do Trombetas. Guardiães das matas e rios. Belém:
Cejup, 1998. FUNES, Eurípedes. Nasci nas matas, nunca tive senhor. História e memória dos mocambos do
Baixo Amazonas. São Paulo, 1995. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, entre outros.
120
QUEIROZ, Jonas Marçal de e GOMES, Flavio dos Santos. Amazônia, fronteiras e identidades.
Reconfigurações coloniais e pós-coloniais (Guianas – séculos XVIII-XIX). Revista Lusotopie, Lisboa, 2002.
mestiços de variadas matizes. A constituição deste espaço de convivência deu-se através do
fluxo de seu movimento contínuo e da dinâmica das negociações121.

Índios e Militares
O historiador português, José Manuel Azevedo e Silva em “O Modelo Pom alino de
Coloni a o da Ama ônia”, observa que a maior parte dos jovens soldados recrutados em
todo o Reino de Portugal para formarem e renovarem os três regimentos criados em 1753, no
Pará e Maranhão, eram dadas terras de sesmarias e concedidos outros privilégios no caso de
casarem com as índias. Como destaca o autor, “é a convicção política de que a defesa do
território, para ser eficaz, deveria ser feita pela articulação das forças militares com a fixação
efetiva de colonizadores”122.

De acordo com Ângela Domingues, o processo legislativo relacionado ao casamento


entre os vassalos naturais e os reinóis no Grão-Pará e Maranhão e na Índia e em Macau era
similar. “A intenção era semelhante: formar um grupo de indivíduos que fizessem a ligação
entre as duas sociedades, a colonial e a indígena, tanto pelo nascimento, quanto pela
formação”123. É bom lembrar que, o início desse processo é muito anterior a esse período, pois
dele faz parte, também, aquilo que então se denominava “casamento pela lei da natureza” ou,
dito de outro modo, concubinato ou mancebia, que talvez seja a sua verdadeira gênese.

Vale lembrar que, na aplicação das novas disposições da política pombalina, ganhou
importância estratégica a secularização das missões e a declaração da lei de “Liberdade dos
Índios” em 1755. E, também a aplicação de um instrumento tutelar das populações indígenas
aldeadas: o “Diretório que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará e Maranhão”,
implementado em 1757.

Com base na releitura que se faz hoje sobre as questões da Colônia, é válido afirmar
que as leis de 1755 concebidas em Portugal para a Amazônia sofreram adaptações no contexto
colonial, até tomarem a forma do Diretório dos Índios de 1757. Como afirma Mauro Coelho:
“o Diretório dos índios é uma lei nascida na Colônia, formulada em resposta aos conflitos
vividos durante o governo de Francisco Xavier de Mendonça Furtado”124. Segundo Patrícia
Sampaio, essa legislação interferiu nos mais diferentes níveis da vida sócio-econômica,

121
CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz de, “A magia do novo. Índios cristãos nas fronteiras da Amazônia
colonial” In: Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Debates, 2011.
122
AZEVEDO E SILVA, José Manuel.O modelo pombalino de Colonização da Amazônia. Universidade de
Coimbra. Disponível em http://www.uc.pt/chsc/rhsc/rhsc_texto.pdf Acesso em 10/04/2010
123
DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de poder no Norte do Brasil
na segunda metade do século XVIII. Lisboa: CNCDP, 2000.
124
COELHO, Mauro Cezar. Do Sertão para o Mar – Um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a
partir da Colônia: o caso do Diretório dos índios (1750-1798). Tese (Doutorado) - São Paulo: Universidade de
São Paulo, 2005.
cultural e política das populações amazônicas 125.

Ao longo de todo o período de vigência do Diretório dos Índios, as populações


indígenas foram incorporadas à sociedade colonial, por meio da inclusão nas forças militares,
na condição de ajudantes, alferes, sargentos mores, capitães e mestres de campo. Alguns
poucos índios exerceram as ocupações de Meirinho e Diretor. Essas incorporações
representaram, em vários casos, uma chance de mobilidade, para os índios aldeados126.

A Defesa e a Companhia Geral de Comércio

No contexto da reorganização do sistema de defesa dos territórios amazônicos na


segunda metade do século XVIII, deve-se destacar, ainda, o importante papel da Companhia
Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Foi uma empresa privilegiada, de caráter
monopolista, criada pelo Marquês de Pombal, destinada a controlar e promover a atividade
comercial do Estado do Grão-Pará e Maranhão. Kenneth Maxwell destaca que a Companhia
fora criada para atender os anseios tanto de ordem econômica, como militar: de vigilância das
fronteiras com o Império Colonial Espanhol. A Companhia teve grande importância no campo
da defesa do território do Estado do Grão Pará e Maranhão, uma área que necessitava de
constante vigilância em razão do assédio de: ingleses, franceses, espanhóis e holandeses 127.
Assim, a Companhia ao defender o seu patrimônio, acabou por colaborar com a defesa
do patrimônio da Coroa portuguesa. Não tendo condições financeiras para defender suas
colônias, Portugal contou com a ajuda financeira e militar da Companhia para preservar suas
conquistas.
A Companhia construiu fortalezas e foi responsável pelo pagamento da folha militar e
secular. Embora não exercesse a administração do Estado do Grão-Pará e Maranhão, forneceu
assistência financeira e ficou incumbida de montar e manter uma rede militar permanente.
Segundo Nunes Dias, a Companhia ajudou o Estado português a manter o domínio político
sobre tais territórios, tornando-se assim, uma instituição vital para a monarquia128.

Finalizando, como afirma Patrícia Melo Sampaio, os esforços da administração


portuguesa, ao longo segunda metade do século XVIII, na região passariam pelo reforço
militar às áreas de “soberania duvidosa”, pelas inúmeras tentativas de consolidar tanto a

125
SAMPAIO, Patrícia Melo. Cidades desaparecidas na Amazônia portuguesa. Poiares, séculos XVIII e XIX,
História Social, Campinas - SP no 10, 2003.
126
COELHO, Mauro Cezar, O Diretório dos Índios e as Chefias indígenas: uma inflexão. Revista Campos,
n.7(1),2006.
127
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
128
DIAS, Manuel Nunes. Fomento e mercantilismo: a companhia geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778).
Pará: Universidade Federal do Pará, 1971.
produção de alimentos quanto a coleta de drogas do sertão, pelo estabelecimento das
populações indígenas através dos descimentos nas povoações, garantindo as fronteiras e a
necessária mão-de-obra à sustentação da economia colonial129.

Bibliografia:
ALDEN, Dauril. O Significado da produção de cacau na região amazônica no fim do período
colonial:um ensaio de história econômica comparada. Belém: UFPA; NAEA, 1974.
ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. A escrita da história paraense. Belém: Universidade
Federal do Pará, 1998.
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Mazagão. Porto, Faup publicações, 1998.
AZEVEDO E SILVA, José Manuel.O modelo pombalino de Colonização da Amazônia.
Universidade de Coimbra. Disponível em http://www.uc.pt/chsc/rhsc/rhsc_texto.pdf Acesso
em 10/04/2010
CARDOSO, Francinete. Resenha: “Acevedo Marin, Rosa Elizabeth. A escrita da história
paraense.Belém, NAEA-UFPA, 1998”, Novos Cadernos NAEA vol. 2, nº 2 - dezembro 1999.
CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz de, “A magia do novo. Índios cristãos nas fronteiras da
Amazônia colonial” In: Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Debates, 2011.
COELHO, Mauro Cezar. Do Sertão para o Mar – Um estudo sobre a experiência portuguesa
na América, a partir da Colônia: o caso do Diretório dos índios (1750-1798). Tese
(Doutorado) - São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005.
_____, O Diretório dos Índios e as Chefias indígenas: uma inflexão. Revista Campos,
n.7(1),2006.
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Maranhão (1755-1778). Pará: Universidade Federal do Pará, 1971.
DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de poder no
Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: CNCDP, 2000.
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escra id o na Guiana rasileira, s culos -XIX. Belém, Editora Universitária, 1999.
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2009.
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2 a 5 de Novembro de 2005 FCSH/UNL.
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ANPHLAC, Vitória, 2008, p. 1-3
PÚRPURA, Christian. Formas de existência em áreas de fronteira: a política portuguesa do
espaço e os espaços de poder no oeste amazônico (séculos XVII e XVIII). Dissertação
(Mestrado). Faculdade de História, Universidade de São Paulo, 2006.
QUEIROZ, Jonas Marçal de e GOMES, Flavio dos Santos. Amazônia, fronteiras e
identidades. Reconfigurações coloniais e pós-coloniais (Guianas – séculos XVIII-XIX).
Revista Lusotopie, Lisboa, 2002.

129
SAMPAIO, Patrícia Melo. Cidades desaparecidas na Amazônia portuguesa. Poiares, séculos XVIII e XIX,
História Social, Campinas - SP no 10, 2003.
RODRIGUES, Maria Isabel da Silva Reis Vieira. O Governador Francisco Xavier de
Mendonça Furtado no Grão-Pará e Maranhão (1751-1759), Dissertação de Mestrado,
Universidade de Lisboa, 1997.
REIS, Artur Cézar Ferreira. A Amazônia que os portugueses revelaram. Rio de Janeiro, MEC,
1956.
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Belém: Editora da UFPA, 1986.
SAMPAIO, Patrícia Melo. Cidades desaparecidas na Amazônia portuguesa. Poiares, séculos
XVIII e XIX, História Social, Campinas - SP no 10, 2003.
DESCENDO DOS CÉUS: MILITARES PARAQUEDISTAS, ANTES DO
PARAQUEDISMO MILITAR

Claudius Gomes de Aragão Viana


PPHPBC/CPDOC/FGV

Orientador: Prof. Dr. Celso Correa Pinto de Castro

Parafraseando E. P. Thompson: este texto possui um título desajeitado e, como


ocorre nesses casos, necessita de explicações. Pois bem: defenderei a ideia de que mesmo
antes da criação da Escola de Paraquedistas, núcleo original da Brigada de Infantaria
Paraquedista do Exército Brasileiro130, a prática do paraquedismo já possuía um campo em
evolução nas Forças Armadas e, desse modo, existiam militares paraquedistas em um
momento anterior à implantação do paraquedismo militar no Brasil. Embora uma
determinada tradição tenha consagrado o capitão Roberto de Pessôa e o argelino Charles
Astor como pioneiros das atividades aeroterrestres no país, o fato é que ambos foram
precedidos por personagens que também contribuíram para o desenvolvimento dessas
atividades, mas que tiveram seus papéis olvidados ao longo do tempo.
De modo geral, carecemos de uma bibliografia mais precisa sobre a história do
paraquedismo no Brasil, onde a literatura sobre o assunto é falha e escassa: há algumas
monografias produzidas na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, outras poucas
informações espalhadas pela web e só. Mesmo uma referência aparentemente mais confiável,
como o Atlas do esporte no Brasil, editado pelo Conselho Federal de Educação Física,
propaga incorreções no seu verbete paraquedismo, afirmando, por exemplo, que o primeiro
salto de paraquedas aconteceu nos Estados Unidos, em 1901 (Bittencourt et al, 2006: 13.9);
equivoca-se ao afirmar que “o paraquedismo se iniciou no Brasil em 1920, quando o
americano Spencer Stanley realizou seu primeiro salto em São Paulo” (idem); afirma, também
incorretamente, que um segundo-tenente da Força Pública de São Paulo, João Pereira Lima,
foi o primeiro brasileiro a realizar um feito semelhante, em 1925, e que Rosa Helena
Schorling, do Espírito Santo, tornou-se a primeira mulher paraquedista ao saltar, em 1940, no
Campo de Marte, em São Paulo.
Outras figuras recorrentes são os já citados Roberto de Pessôa, que em 1944
realizou o curso da Airborne School em Fort Benning, nos Estados Unidos, e o argelino
Charles Astor, que foi instrutor da Escola de Aeronáutica a partir de meados da década de
1940. Ambos são os personagens principais da literatura produzida nas corporações militares

130
Decreto-Lei nº 8.444, de 26 de dezembro de 1945 Cria no Ministério da Guerra a Escola de Paraquedistas e
dá outras providências.
em suas tentativas de elaboração de uma história do paraquedismo militar no Brasil, e com
frequência são apontados como “pioneiros” dessa história, mormente nas narrativas da
“criação” da Brigada de Infantaria Paraquedista. Entretanto, no curso do desenvolvimento de
minha tese de doutoramento, venho buscando uma perspectiva diversa dessas linhas
narrativas, pesquisando fatos e recuperando trajetórias biográficas que permitam uma releitura
das versões existentes sobre a origem dos saltos de paraquedas pelos militares no país.
Parto da premissa de que o aperfeiçoamento dos equipamentos e das técnicas de
paraquedismo caminhou em conjunto com os avanços da navegação aérea, inicialmente com
as ascensões aerostáticas e em seguida com a aviação. Recorrendo então às fontes primárias, a
primeira referência encontrada a um voo em território nacional será na data
surpreendentemente remota de 1855, quando Eduardo Heill, um comerciante de artefatos de
bronze do Rio de Janeiro, realizou duas ascensões em um grande balão de seda envernizada.
A primeira foi em 11 de novembro de 1855131 e contou com o testemunho do próprio
imperador D. Pedro II. Heill decolou da chácara do Senado 132, e durante cerca de meia hora
percorreu um trajeto aéreo até o Saco do Alferes 133, sob os olhares assombrados de milhares
de espectadores. Sua segunda ascensão, embora contasse novamente com a presença do
imperador, foi mais tímida. Iniciou-se pouco após as seis horas da tarde de um domingo, 2 de
fevereiro de 1856, e durou cerca de quinze minutos, até que o balão murchou e caiu no mar,
próximo à praia de São Lázaro134.
Em 1867, cerca de doze anos após as apresentações de Heill, o governo brasileiro
adquiriu dos Estados Unidos dois balões aerostáticos, para utilizá-los como postos de
observação na região do Tuiuti, durante a Guerra da Tríplice Aliança. O equipamento e seus
operadores chegaram ao local do conflito em 31 de maio de 1867, e a primeira ascensão
ocorreu em 24 de junho, quando um dos balões foi inflado e subiu a 330 metros. Algumas
outras ascensões foram efetuadas, mas as observações foram prejudicadas por nevoeiros e
pelas inúmeras fogueiras que os paraguaios acendiam para produzir fumaça e dificultar a
visão de suas posições (Doratioto, 2002).
Assim como os voos de balão de Heill, os primeiros registros de saltos de
paraquedas no Brasil também são de espetáculos públicos. Em 1876 ocorreram as
demonstrações de Theodulo Ceballos, um mexicano que prometia executar “ascensões
aerostáticas” e “números de paraquedismo” em uma apresentação mambembe que percorria
diversos países. Ceballos realizou exibições em Curitiba 135 e em São Paulo 136. A performance

131
Jornal do Commercio, 11 de novembro de 1855, p. 4.
132
A localidade ficava ao sul do atual Campo de Santana.
133
Próximo de onde se localiza hoje a Rodoviária Novo Rio.
134
Jornal do Commercio, 3 de fevereiro de 1856, p. 1.
135
Dezenove de Dezembro, 22 de janeiro de 1876, p. 4.
136
Correio Paulistano, 29 de abril de 1876, p. 3.
era inocente. A um balão eram afixados cabos com argolas, nas quais o aeronauta se
pendurava para executar acrobacias. O número de paraquedismo era por vezes anunciado para
ser executado por “seu companheiro de viagem” e em outras por “um habitante da cidade”.
Tratava-se de um engodo: Ceballos levava na ascensão um pequeno cão, que era equipado
com um paraquedas e lançado sobre o público.
A primeira apresentação real de paraquedismo no Brasil seria exibida no Rio de
Janeiro pela norte-americana Alma Beaumont e pelo inglês Stanley Spencer, que
programaram uma série de exibições na então capital brasileira. Após duas tentativas
frustradas, o salto foi levado a cabo em 23 de fevereiro de 1890. Naquela tarde, miss
Beaumont, sob aplausos da assistência, embarcou no balão Star of the West e decolou do
Derby Club, elevando-se até as nuvens e saltando da pequena nacelle, realizando assim o
primeiro salto de paraquedas no país. Conduzida pelo vento, a heroína foi cair no telhado de
uma casa em Vila Isabel, de onde desceu carregada nos braços pelo povo eufórico. O balão,
por sua vez, foi cair próximo ao mar, para os lados do morro da Providência, onde foi
resgatado por um carroceiro, que o devolveu aos seus donos137.
Nas décadas seguintes os esforços de evolução da navegação aérea seriam
redirecionados para os aeroplanos, relegando os aeróstatos, senão ao abandono, ao menos ao
segundo plano. E foi saltando de um aeroplano da Escola de Aviação Militar que o tenente
Carlos Chevalier se tornou o primeiro brasileiro a se lançar de paraquedas, fato continuamente
ignorado pelos historiadores da aeronáutica e do paraquedismo nacional.
Nascido em 27 de junho de 1898, Carlos Saldanha da Gama Chevalier sentou
praça em 5 de julho de 1915, matriculando-se no curso de Artilharia da Escola Militar do
Realengo. Em 1921, foi designado para o curso de piloto observador oferecido pela Escola de
Aviação, sendo diplomado juntamente com outros oito oficiais 138 em 11 de julho do mesmo
ano. Pouco após a conclusão do curso, foi promovido ao posto de primeiro-tenente e
transferido para o 3º Regimento de Artilharia Montada, em Curitiba, no Paraná.
O jovem aviador não seguiria para a nova unidade. Permaneceu na Escola de
Aviação compondo a “Esquadrilha Anhangá” – um grupo de pilotos que se adestrava em
conjunto e participava de longos voos interestaduais, os raids aéreos. Sua excentricidade
começaria a se manifestar no início de 1922, quando solicitou ao Ministério da Guerra
autorização para reproduzir uma sequência de acrobacias assistidas nos filmes dos tenentes
Bret e Lockhear, aviadores norte-americanos que executavam loopings, parafusos e passeios
sobre as asas dos aviões em voo139.

137
Diário de Notícias, 24 de fevereiro de 1890, p.1.
138
Os outros integrantes da turma eram o capitão Newton Braga e os tenentes Eduardo Gomes, Ivo Borges,
Amílcar Velloso Pederneiras, Gervásio Duncan de Lima Rodrigues, Ajalmar Vieira Mascarenhas, Sylvino
Elvidio Bezerra Cavalcante e Plínio Paes Barreto.
139
Correio da Manhã, 12 de fevereiro de 1922, p. 4.
A permissão provavelmente foi negada, uma vez que não há notícias da realização
de tal performance. Mas não demorou para o tenente realizar uma exibição pública de suas
habilidades. Nos primeiros anos da Escola de Aviação, as comitivas de autoridades
estrangeiras em visita ao país eram convidadas a conhecer suas instalações e a assistir às
demonstrações de manobras aéreas. Uma dessas comitivas, formada pelos adidos naval e
militar norte-americanos, pelo adido argentino e por militares franceses, encontrava-se no
Campo dos Afonsos no final de julho de 1923, compondo uma plateia a qual se somavam
membros da própria Escola de Aviação, da imprensa e moradores da vizinhança, que tinham
nas manobras das aeronaves uma singular diversão.
Dessa feita, um salto de paraquedas havia sido incluído nas demonstrações. A
ideia pode ter vindo do coronel De Séguin, diretor da Missão Militar Francesa de Aviação,
que no ano anterior havia se lançado de um avião durante uma exibição no Derby Club, por
ocasião dos festejos do Centenário da Independência. Também é preciso lembrar que há quase
um mês os jornais vinham destacando a chegada do italiano Umberto Ré, que prometera
apresentar aos cariocas o “salto da morte”. Uma vez que as telas de cinema já haviam certa
vez lhe servido de inspiração, não é improvável que Chevalier tenha desejado copiar o
italiano. Em todo caso, na data marcada para o salto Ré não apareceu, realizando a prova
somente em 28 de julho, um dia depois do tenente.
Eram dez e meia da manhã do dia 27 de julho de 1923, quando decolou o Breguet
Nº 2 pilotado pelo primeiro-tenente Haroldo Borges Leitão, conduzindo a bordo o tenente
Chevalier e o major Vallo 140, da seção fotográfica do Serviço Geográfico Militar. A aeronave
atingiu a altura de 2.000 metros e então, em pleno voo, eis que dela se destaca a silhueta de
um homem contra o céu: abandonando o assento do Breguet, Chevalier se atira no espaço
munido de um paraquedas Huz de fabricação austríaca, que logo infla e o conduz até o solo.
Preocupado em aparentar serenidade, o tenente ainda acrescentaria um detalhe pitoresco à
cena: acenderia um cachimbo, que veio fumando em atitude blasé durante a descida.
Aparentemente, obteve o efeito desejado, visto que os jornalistas presentes ao evento se
referem ao pormenor, concordando que haviam testemunhado “o primeiro oficial do Exército,
aliás, o primeiro brasileiro” a realizar a “estupenda e sensacionalíssima proeza”. Os cronistas
prosseguem em tom entusiasmado, descrevendo como o paraquedista, ao chegar ao solo, foi
abraçado por seus colegas e pelos oficiais estrangeiros, que o louvavam pelo “admirável
sangue frio e a audácia maravilhosa141.
Os anos seguintes seriam turbulentos para o tenente. Em julho de 1924, ele foi
preso por suspeita de cumplicidade com a ação revolucionária em São Paulo e encarcerado no
140
O Major Eduardo Vallo era consultor técnico de aerofotografia da Missão Cartográfica Imperial Militar
Austríaca, contratada para executar o treinamento dos oficiais do Exército Brasileiro no emprego de técnicas
aerofotogramétricas. (Silva, 2011: 1).
141
Revista da Semana, nº 32, 4 de agosto de 1923, p. 18-19.
porão de um navio fundeado na Baía de Guanabara, sendo depois transferido para a Casa de
Correção do Rio de Janeiro. Conseguiu fugir em novembro, permanecendo na clandestinidade
durante os meses seguintes. Nesse período, articulou com outros oficiais a derrubada do
presidente Artur Bernardes, mas em janeiro de 1925 142 uma denúncia anônima levou a polícia
a desbaratar o complô e prender os envolvidos. Embora não tenha sido capturado na ocasião,
Chevalier foi reconhecido na rua e preso novamente no final de novembro 143. Condenado a 7
meses de prisão, foi recolhido ao quartel do 1º Regimento de Cavalaria Divisionária, tentando
realizar nova fuga na madrugada de 22 de abril de 1926, juntamente com Eduardo Gomes e
Juarez Távora, que também se encontravam presos. O trio serrou uma das grades da cela, mas
a dificuldade de cortar uma segunda grade e a chegada do oficial-de-dia frustraram suas
intenções, e foram todos então transferidos para a Ilha de Trindade, na costa do Espírito
Santo144. A pena terminaria em junho, mas o Ministro da Guerra determinaria sua
prorrogação, em virtude do estado de sítio sob o qual se passou grande parte do governo de
Artur Bernardes. Assim, somente em novembro foi autorizado o regresso ao Rio de Janeiro.
Debilitado pela dura estadia na ilha, Chevalier foi levado para o Hospital de
Marinha e em 3 de janeiro de 1927, ainda durante a internação, redigiu Abaixo as máscaras,
texto no qual tecia duras críticas ao general Rondon, acusando-o de traição ao movimento de
1922. O fato foi interpretado como grave indisciplina e o tenente recebeu uma nova pena de
trinta dias de prisão 145. Posto em liberdade, foi transferido para o 5º Regimento de Artilharia
Montada, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, para onde embarcou em 2 de fevereiro. Vinte
dias depois retornou ao Rio de Janeiro, apresentando-se novamente na Escola de Aviação e lá,
em 1º de outubro de 1927, repetiria a façanha de quatro anos antes, atirando-se desta vez da
altura de 800 metros sobre o Campo dos Afonsos, equipado com um paraquedas Heinecke,
cedido pela firma Otto Renard & Cia 146.
O salto serviria de inspiração para outro aviador, o tenente Menna Barreto
Monclaro, que tentaria reproduzi-lo em 18 de outubro de 1927. A oportunidade era um evento
festivo: a chegada da aeronave Nungesser-Coli, pilotada pelos franceses Costes e Le Brix, que
executavam o primeiro voo direto entre a África e a América do Sul. Às duas horas da tarde
Menna Barreto embarcou no Breguet 14 pilotado pelo capitão Átilla Silveira e pelo tenente
Salustiano Franklin da Silva, pronto para se atirar do céu. A demonstração seria uma atração
para os convidados que esperavam os franceses, mas pouco após a decolagem o Breguet
entrou em parafuso e caiu, matando seus ocupantes147.

142
Jornal do Brasil, 14 de janeiro de 1925, p. 8.
143
Correio da Manhã, 24 de novembro de 1925, p. 2.
144
Disponível em http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/chevalier-carlos-de-sal danha-
da-gama> Acesso em 9 abr. 2017.
145
A Rua, 4 de fevereiro de 1927, p. 2.
146
Correio da Manhã, 2 de outubro de 1927, p. 4.
147
O Jornal, 18 de outubro de 1927, p. 3.
O irrequieto Chevalier planejou um terceiro salto, anunciando que cortaria as
cordas do paraquedas em plena descida, para demonstrar o acionamento do paraquedas
reserva. Sua intenção era realizar essa apresentação em 10 de julho de 1929, na festa do 10º
aniversário de criação da Escola de Aviação Militar, que contaria com um público numeroso,
visto que uma programação de acrobacias aéreas e demonstrações de voo vinha sendo
divulgada na imprensa. Entre as atrações prometidas, constava o lançamento de cargas
equipadas com paraquedas de fabricação francesa, adquiridos através da missão militar
daquele país. A prudência de lançar apenas fardos podia ser um reflexo do acidente de dois
anos atrás, e a precaução foi oportuna: dos três lançamentos, apenas um teve sucesso,
enquanto os outros dois se despenharam com os paraquedas fechados, para constrangimento
dos oficiais da missão militar e dos fornecedores franceses presentes.
O vexame aumentaria com a inesperada aproximação de uma aeronave Clemenn,
pertencente ao Aero Club do Rio de Janeiro, que havia alçado voo fora da programação
oficial. A bordo estava Chevalier, que se lançou equipado com um paraquedas de fabricação
alemã, sendo recebido e aclamado no solo pela multidão eufórica. Mas a proeza que despertou
a admiração da assistência também acendeu a ira do general Guilherme Mariane, diretor da
Aviação Militar, que determinou a prisão imediata do inopinado paraquedista. Embora não
houvesse cumprido a promessa de cortar as cordas do paraquedas, a demonstração era um
evento imprevisto: de fato, havia sido divulgada pelo Aero Club sem autorização da Escola de
Aviação. Além disso, o mal-estar das autoridades militares brasileiras aumentava frente ao
embaraço dos franceses pelo insucesso de seus equipamentos face aos de origem alemã
utilizados por Chevalier. Alegando ferida a disciplina, o diretor da escola, Otto Santos, se
aproximou do tenente, ainda rodeado pela multidão, e deu-lhe voz de prisão148.
A interpretação de que o ato constituía desobediência às prescrições militares foi
aceita pelo Ministro da Guerra, que determinou ao aviador o cumprimento de trinta dias de
prisão. Contra a decisão, Chevalier impetrou um habeas corpus junto ao Supremo Tribunal
Militar 149, que foi julgado em 30 de julho, quando o militar já estava recolhido a vinte dias.
Durante sua defesa, Chevalier esclareceu que após a ordem de prisão havia sido escoltado
para a sala do estado-maior da Escola de Aviação, onde aguardou até o anoitecer sem receber
maiores explicações. Conseguindo finalmente uma entrevista com o diretor, ouviu que seu
recolhimento se devia ao fato de haver “saltado de paraquedas sem licença”, ao que refutou
que o salto fora o “meio de locomoção” pelo qual exercia o intuito de comparecer à festa e
“prestar homenagens” aos seus camaradas. Seu argumento foi desconsiderado e no dia

148
Correio da Manhã, 11 de julho de 1929, p. 3.
149
A denominação “Supremo Tribunal Militar” vigorou até a Constituição de 1946, quando o órgão teve seu
nome alterado para “Superior Tribunal Militar”. Fonte: verbete “SUPREMO TRIBUNAL MILITAR”,
disponível em <http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/SUPREMO%20TRIBU
NAL%20MILITAR%20(STM).pdf.>. Acesso em 21 mar. 2017.
seguinte o tenente foi levado ao Departamento da Guerra, onde a acusação foi confirmada.
Recebido pelo general Mariane, Chevalier repetiu suas justificativas, acrescentando que as leis
não restringiam a escolha do seu meio de transporte. Como resposta, ouviu um inacreditável
“então o senhor está preso porque estragou a festa”, ao qual contra-argumentou que não seria
possível um simples tenente provocar um dano tão grande, e que além disso seus intuitos
também eram festivos. Contra a réplica do tenente, a autoridade apresentou um terceiro
motivo: “então o senhor está preso porque foi à festa sem ser convidado”. Confrontado com
essa terceira alegação, Chevalier desistiu do diálogo e pediu permissão para se retirar da breve
audiência 150.
A nota de prisão de Chevalier foi transcrita no boletim 165 do Departamento de
Guerra, com o seguinte teor:
Prendo por 30 dias, por ter no dia 10 do corrente, em traje civil, sem
permissão das autoridades militares competentes, tomado uma aeronave
particular e munido de seu paraquedas soltando-se do aparelho sobre o
aeródromo militar, em momento de intenso movimento para fazer a
experiência perigosa, interrompendo e perturbando a execução do programa
de festas organizado, em flagrante desobediência às prescrições observadas
quanto aos voos naquele aeródromo, ato que poderia trazer riscos à
assistência e aos aparelhos que em grande número evoluíam, aterravam e
decolavam continuamente sobre o campo.

O tenente havia dispensado advogados e apresentava sua defesa por conta própria.
Explorando a falta de regulamentação para a atividade de paraquedismo no Exército,
aproveitava para destilar ironia e críticas sobre a Diretoria e sobre a Escola de Aviação:

(...) quando se salta de um paraquedas, não se sabe onde vai cair. Paraquedas
não é dirigível. Assim é que tendo eu caído dentro do campo, poderia tê-lo
feito fora, o que já me aconteceu uma vez. Ainda, se certeza houvera do
lugar onde deveria cair, por certo o senhor general Mariane teria ordenado
que o saco de areia atirado pouco antes da minha chegada caísse dentro do
campo, e não sobre o telhado de uma casa, com risco de vida para os
moradores e prejuízo monetário para a escola, que terá que custear o
conserto151.

O tom irônico prossegue, repelindo agora a acusação de haver ingressado sem


autorização no local da festa:

(...) como militar, não me poderia ser negada a entrada em qualquer


repartição militar, em dia de festa ou mesmo sem o ser, salvo motivos
especiais que não existem no meu caso. O que se exige do militar ao entrar
nas referidas repartições é achar-se devidamente uniformizado e a sua

150
Correio da Manhã, 1º de agosto de 1929, p. 2.
151
Jornal do Brasil, 1º de agosto de 1929, p. 9.
apresentação ao comando respectivo, o que foi por mim feito, recebendo
nessa ocasião a ordem de prisão152.

A referência ao “intenso movimento” de aeronaves durante o festejo forneceria


outra oportunidade para Chevalier destilar seu sarcasmo, assegurando que as esquadrilhas da
escola eram formadas por três aviões apenas, constituindo uma circunstância notável a reunião
de um grupo de cinco aparelhos. Por fim, concluiria que seu ato não podia ser qualificado
como uma “experiência”, muito menos uma “experiência perigosa” por se tratar já de seu
terceiro salto de paraquedas153.
Posto em votação, o habeas corpus teve resultado desfavorável ao aviador.
Embora o próprio relator, o marechal Mendes de Moraes, entre elogios à cultura e à bravura
do tenente, declarasse que em seu entendimento a prisão era ilegal, os princípios de
salvaguarda da hierarquia e da disciplina dominantes na instituição militar, aliados à
necessidade de preservação da autoridade do general que determinara a prisão, tiveram maior
peso. Posicionando-se pela liberdade do réu, Moraes protagonizou ainda uma fala inusitada ao
rebater a acusação de que o tenente havia entrado no aquartelamento por local proibido: “ora,
e por onde deve entrar no campo um oficial aviador em serviço de voo? Penso que pelo
ar...”154. Mas, com apenas dois votos favoráveis e cinco contrários à sua liberdade, Chevalier
foi escoltado de volta à já conhecida prisão do 1º Regimento de Cavalaria Divisionária, a fim
de cumprir o restante da pena.
Em julho de 1930, Chevalier foi promovido a capitão e aderiu à Aliança Liberal.
Nos meses seguintes, tomou parte na deposição de Washington Luís e foi nomeado pelo
governo provisório como delegado do Departamento de Polícia, mas deixou o cargo em
poucos dias. No final de 1931, concluiu o curso de aperfeiçoamento de oficiais, e no ano
seguinte assumiu a função de adjunto da Diretoria de Aviação, um cargo burocrático que lhe
prenunciava enfim um futuro tranquilo.
Foi promovido a major em 1933, mas teve sua carreira precocemente encerrada
em abril do ano seguinte, quando foi transferido administrativamente para a reserva 155, como
resultado de uma sindicância que concluiu pela sua incapacidade moral para o serviço militar.
Chevalier chegou a solicitar ao Ministro da Guerra a revisão do ato, mas teve seu pedido
indeferido. Recorreu ao Supremo Tribunal Federal, alegando que a motivação de sua exclusão
teria sido uma tentativa de aliciar um colega de caserna para participar do movimento
revolucionário, o que enquadraria seu caso na anistia para crimes políticos contida na

152
Idem.
153
Idem.
154
Idem.
155
Decreto do Ministro da Guerra de 19 de abril de 1934, publicado no Diário Oficial da União nº 92, de 23 de
abril de 1934.
Constituição de 1934156; mas em pouco tempo veio a público a verdadeira razão do seu
afastamento: o envolvimento com uma quadrilha que produzia selos de consumo falsificados.
Outra estadia na cadeia, uma passagem pelo manicômio judiciário e a liberdade em outubro de
1937 encerraram melancolicamente mais de uma década de ousadias aéreas e conspirações
revolucionárias157.
Seu afastamento da aviação se daria em um período de franco desenvolvimento do
paraquedismo no Brasil. Por todo o país, eram realizadas exibições durante os raids, os
meetings e as “tardes de aviação”, eventos geralmente patrocinados pelo governo, pelos
aeroclubes ou pelas nascentes empresas de aviação civil. Durante essas apresentações, pilotos
e paraquedistas civis e militares, profissionais e amadores, nacionais e estrangeiros, dividiam
os céus entre si, e o interesse comum pela aeronáutica e pelo paraquedismo era uma condição
para a construção de redes de influência e sociabilidade entre esses personagens.
Foi nesse campo favorável, de certo modo desbravado por Carlos Chevalier, que
no final de 1942 o comandante da Escola de Aeronáutica, Henrique Fontenelle, enviou a São
Paulo dez cadetes do terceiro ano, a fim de que participassem de um estágio de paraquedismo
organizado por Charles Astor. No curso, realizado entre 23 de dezembro de 1942 e 8 de
janeiro de 1943, cada aluno recebeu a instrução técnica e realizou três saltos de paraquedas 158,
demarcando em pleno curso da Segunda Guerra Mundial a primeira formação oficial de
paraquedistas da Força Aérea Brasileira, anterior mesmo à criação da Escola de Paraquedistas
no Ministério da Guerra. Nesse período, surgiria até mesmo a ideia precoce da criação de uma
tropa de paraquedistas brasileiros: segundo uma entrevista concedida por Astor a Assis
Chateaubriand, já haveria em janeiro de 1943 um batalhão de paraquedistas militares em
organização no Rio de Janeiro, sob a orientação técnica do major Joaquim Soares d’Ascensão.
O argelino também citaria uma relação de oficiais “partidários entusiastas do paraquedismo”:
o brigadeiro Gervásio Duncan, comandante da IV Zona Aérea, em São Paulo; o major
Hildeberto Vieira de Melo, então superintendente da Delegacia de Ordem Política e Social; o
Ministro da Aeronáutica, Joaquim Pedro Salgado Filho e o coronel Júlio Américo dos Reis 159.
Ignorando esses personagens, a historiografia do paraquedismo militar no Brasil
apresenta uma série de falhas. A primeira e mais persistente delas é localizar o marco de
origem e evolução do paraquedismo nacional em terras estrangeiras, junto à tropa de
paraquedistas dos Estados Unidos da América, a partir da brevetação do capitão Roberto de

156
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934. Art. 19 - É concedida anistia
ampla a todos quantos tenham cometido crimes políticos até a presente data.
157
Carlos de Saldanha da Gama Chevalier faleceu no Rio de Janeiro, em 29 de maio de 1983, e foi sepultado no
cemitério São João Batista, na Zona Sul da cidade.
158
Tratava-se dos seguintes cadetes: Francisco Aurélio Figueiredo Guedes, João Edson Rebelo e Silva, José de
Araújo Figueiredo, Leon Roussolieres Lara de Araújo, Owerbeck Bolick da Silva, Pedro Augusto Valente do
Couto, Roland Rittmeister, Silvio Constantino de Carvalho, Valter Feliu Tavares e Valter da Silva Barros.
159
Diário de Pernambuco, 17 de janeiro de 1943, p. 4.
Pessôa em Fort Benning. Esse pioneirismo deve ser enxergado nas ações de Carlos Chevalier,
nas quais já pode ser discernido ao menos o esboço do grande interesse que o paraquedismo
despertaria nos militares nas décadas seguintes a seu feito. Além disso, as iniciativas de
diversos outros antecessores também podem ser tomadas como um prenúncio, uma
antecipação do desenvolvimento do paraquedismo militar no Brasil no período após a
Segunda Guerra Mundial, tanto nos aspectos técnicos quanto nos componentes de seu
universo simbólico.

Referências bibliográficas
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O REGIMENTO DO CONDE LIPPE: UM BREVE OLHAR SOBRE O PRINCÍPIO
DA DISCIPLINARIZAÇÃO E A TROPA DE LINHA EM PERNAMBUCO

Clécia Maria da Silva


PCR-UNESCO160

A Europa Central, Oriental e Mediterrânea, especificamente os países denominados de


Dinamarca, Suécia, Prússia, Áustria, Rússia, os reinos das duas Sícílias, o Grão-ducado da
Toscana, o ducado de Milão, a Espanha e Portugal viveram, na segunda metade do século
XVIII, o Despotismo Ilustrado que, segundo Francisco Falcon (1986), corresponde ao que
muitos historiadores chamam de Absolutismo Ilustrado, compreendido como um sistema
político europeu, típico do momento de transição Feudal-Capitalista, onde reis e príncipes
procuraram colocar em prática alguns princípios da ilustração sem perder o absolutismo, ou
melhor, reforçando-o. Ele teve uma existência breve, pois foi vivenciado apenas na segunda
metade do século XVIII.
Em Portugal o Absolutismo Ilustrado começou a ser praticado durante o reinado de D.
João V (1706-50) quando houve um período de fortalecimento do poder real e depois durante
o governo de D. José I e seu ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de
Pombal (1750-1777). Nesse segundo momento, foram feitas reformas políticas, sociais e
econômicas sempre idealizadas e realizadas de cima para baixo, ou seja, que partiam do
Estado para a Sociedade, com o intuito de fortalecer e racionalizar o Estado português. Essas
reformas vêm sendo estudadas e revisitadas há décadas, entretanto, privilegiando alguns
aspectos, como o religioso, o educacional e o político em detrimento de outros como o militar.
Nesse contexto, este artigo pretende traçar algumas linhas sobre a reforma militar
implementada pelo Marquês de Pombal, que pretendia ter um exército forte, pois era um dos
pilares de uma monarquia absolutista ilustrada (FALCON, 1986).
Essa reforma foi idealizada na segunda metade do século XVIII, a partir da observação
de Pombal da fragilidade das forças lusitanas no contexto da Guerra dos Sete Anos e norteou
a administração militar no Brasil até o ano de 1831, quando houve uma desmobilização e
redução dos efetivos para a formação da Guarda Nacional. A reforma militar procurava
promover a uniformização das Tropas de Primeira Linha como também a cooperação entre as
capitanias.
A reforma promovida por Wilhelm Graf von Shaumberg-Lippe foi de tamanha
importância porque ela perdurou por quase setenta anos e abrangeu uma diversidade de
espaços seja na Europa, na América e nas demais possessões lusitanas. A durabilidade dessa
reforma é proveniente de diversos fatores: o primeiro corresponde à continuação da política

160
Mestre em História pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Professora da Escola Municipal
Professor Florestan Fernandes assossiada da UNESCO (PCR-UNESCO).
pombalina durante o governo de D. Maria I, D. João VI e D. Pedro I devido ao seu caráter
estruturalista e ao impacto proporcionado por elas para além da conjuntura na qual foram
criadas. Apesar de alguns estudiosos referirem-se ao governo de D. Maria como o período da
Viradeira, uma política de reação ao governo do Marques de Pombal, as reformas feitas pelo
mesmo não foram modificadas. Ao contrário, foram reforçadas por meio de Cartas e Decretos
Régios como os de 1766, 1787 e 1791 sobre o preenchimento dos postos vagos nas Tropas
Pagas. Um segundo fator foi a formação e o envio para o Brasil de uma burocracia alinhada
com as ideias de Pombal, como os oficiais Johann Heinrich Böhmo, austríaco, e o sueco
Jacques Funck, que haviam participado de campanhas militares conduzidas por Graf Lippe
para comporem a chefia do Estado-Maior e da engenharia e artilharia brasileira, com o intuito
de realizar a reorganização militar no Brasil. Somam-se ainda os aristocratas como Dom Luis
de Souza, o morgado de Mateus e o marquês do Lavradio com a missão de promover a
cooperação entre as diversas capitanias “assim cada uma delas a tem de ajudar-se uma à outra
[...] Nessa união recíproca de poder consiste essencialmente a maior força do Estado e na falta
dela toda a sua fraqueza”(MAWELL,1996: 128).
A elaboração do Regulamento para o Exército, disciplina dos Regimentos de Cavalaria
dos Exércitos de Sua Majestade Fidelíssima pelo Conde de Reinante de Schaumburg Lippe
constituiu um dos pilares da governança pombalina para atender as necessidades da política
externa e interna da nação portuguesa. Esse documento passou a ser formulado para atender à
mudança do alvo das políticas militares, o qual foi direcionado para as capitanias do sul e do
oeste, pois ao longo deste período foram desenroladas as guerras contra os espanhóis e seus
súditos para a delimitação das fronteiras entre os dois domínios nas regiões do Rio Grande,
Santa Catarina e o Mato Grosso, além da descoberta do ouro na região de Minas Gerais.
Somam-se ainda outras frentes de batalhas que existiram na América Portuguesa do
setecentos como: os limites ao norte do Amazonas, disputados com os franceses, os quais
pretendia alargar suas conquistas de Caiena até o Rio Amazonas, além da disputa interna com
os indígenas no interior das províncias do norte, para efetivar a conquista dos sertões na
conhecida Guerra dos Bárbaros. Por meio desses confrontos bélicos, ficaram mais
perceptíveis aos olhos da Corte Lusitana as fragilidades, os vícios e as necessidades da força
existente no Brasil, dos quais destacamos: reduzido efetivo regular, deserção, falsificação das
folhas de serviço, apropriação indevida dos recursos destinados à reforma das fortificações,
atraso no pagamento dos soldos, distribuição indiscriminada de títulos, atraso na manutenção
de armas, víveres e mantimentos.
A formulação do Regimento do Conde de Lippe também visou a atender a política de
reforma administrativa proposta pelo Marquês de Pombal que pretendia reduzir os custos,
bem como submeter o exército de ambos os lados do Atlântico à mesma lei, tornando-os,
assim, únicos: “constituir um... exército sob o mesmo regulamento com idêntica disciplina e
sem diferença alguma” (RIHGB, 1872: 227-236). Assim o século XVIII pôde assistir a uma
rápida aceleração da política de centralização que no exército configurou-se na modernização
da sua estrutura, ou seja, uma organização que pretendia aperfeiçoar as aptidões militares do
soldado para que ele agisse com mais eficiência, não só em sua ação individual como também
na coletividade, além de torná-lo o mais obediente possível.
Segundo Kalina Silva, esse objetivo teria começado a ser atingido por meio do
aprimoramento das táticas de guerra iniciadas na Europa do século XVII, caracterizada pelo
“adestramento burocrático moderno” (SILVA, 2001: 33), o qual compreendemos como sendo
uma “aplicação prática da disciplina [a qual] sujeita o soldado ao mesmo tempo que o torna
eficiente” (SILVA, 2001: 33). Uma forma de se exercer o poder através do controle do corpo
e das ações dos homens, ou melhor, do militar. Contudo, a prática da disciplina não foi
exclusiva dos militares. Ela foi exercida em outras instituições como escolas, hospitais etc.
A disciplinarização consiste numa dominação “que permite o controle minucioso das
operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma
relação de docilidade-utilidade” (FOUCAULT, 1987: 118), ou seja, toma como princípio o
crescimento das forças dominadas e o aumento da força e da eficácia de quem as domina por
meio da submissão, dissociando o poder do corpo, aumentando por um lado a habilidade e,
por outro, procura diminuir a energia resultante da mesma, fazendo dela uma relação de
sujeição estrita (FOUCAULT, 1987: 118). Esse método de poder deveria ser denso, rígido,
constante e meticuloso para que pudesse transformar um aglomerado de pessoas confusas,
dispersas, sem utilidade e ao mesmo tempo perigosa em um conjunto organizado e
sistematizado.
O controle se daria por meio de um regimento disposto em vinte capítulos e que
versavam sobre o quantitativo, a formação dos recrutas, os exercícios a pé e a cavalo, o
manejo das armas, conservação dos instrumentos bélicos, dos serviços nos quartéis e
guarnições, da ordem, dos artigos de guerra, dos castigos, dos interrogatórios, da fidelidade e
dos juramentos. Neles são perceptíveis pontos que enfatizam a elaboração de um corpo dócil e
os recursos para o bom adestramento (referência do documento).
No primeiro daqueles itens disciplinadores, a elaboração de um corpo dócil, é formado
através de uma hierarquia técnica onde, em primeiro lugar, insere em uma escala, a qual busca
trabalhar o corpo de forma detalhada e intensa a ponto de deixá-lo próximo da mecanicidade.
Em seguida, toma o objeto de poder disciplinador visando à eficácia do movimento e de sua
organização, por fim a modalidade impõe uma sujeição ininterrupta e constante para enfatizar
o processo de como se chegou ao efeito. É como retrata o trecho retirado do capítulo III – do
exercício a cavalo e dos elementos das evoluções:
[...] 4 O soldado deve governar o cavalo principalmente com os joelhos e as
barrigas das pernas, tendo a mão esquerda com a rédea sempre baixa, e a
rédea curta sem se apegar a ela ou a puxar, deixando jogar o freio: é
necessário que um pequeno movimento da mão esquerda, fazendo impressão
no freio, faça conhecer ao cavalo, para que parte deve voltar, mas devem
evitar sempre as sofreadas. O cavalo nunca deve sentir a mão do cavaleiro,
senão quando houver de voltar ou parar ou andar mais devagar. Quando o
cavaleiro quiser voltar a galope deve carregar fortemente com a barriga da
perna da parte para onde quer voltar, e estender a outra perna para afastar do
cavalo, levando ao mesmo tempo a mão esquerda insensivelmente para a
mesma parte e inclinando o corpo para a mesma banda observando apertar os
joelhos e ficar fora sela (LIPPE, 1768).

É importante na constituição dessa docilidade a distribuição dos homens no espaço, a


qual se processa por meio: da demarcação do espaço que propõe especificar um local para a
execução e acomodação da força para evitar arruaças, deserção e controlar as despesas; na
clausura, a qual visa enquadrar o indivíduo em uma função, em um lugar “[...] Se as
companhias estiverem nos seus quartéis, então as esquadras irão às Praças de Armas
particulares, cavalo dois a dois na frente, formando uma pequena coluna: cada companhia se
(LIPPE, 1768:03)
forma em duas divisões e marcham nesta ordem. . A especificação do espaço
também permite aos locais com finalidades específicas buscar um espaço livre propício a
vários usos e utilidades como por exemplo uma residência particular servir como hospital,
como descreve o capítulo XIX – da escolha dos cirurgiões e do cuidado que deve haver dos
soldados enfermos "[...] Nas Guarnições de uma ou muitas Companhias servirá de hospital
uma casa particular” (LIPPE, 1768).
O controle das atividades é feito por meio da regulamentação do horário de entrada e
saída, a cronometração das ações, da correlação entre o gesto e o corpo para eficácia e
rapidez, articulação corpo-objeto, que define a articulação entre o corpo e os objetos
manipulados por ele, utilização exaustiva e intensificada de cada instante do tempo, onde no
máximo de rapidez se consegue o máximo de eficiência. É como retrata o fragmento retirado
do capítulo II – formatura do Regimento em esquadrões:

13 O Timbaleiro e Trombeta se postam nos lados. NB. Para tirar a espada e a


embainhar. 14 O comandante manda: (voz) ‘Esquadrão ou Companhia,
sentido’. O soldado, ou Oficial inferior do lado, sai á frente quatro passos
para fazer sinais. Tira a espada – três tempos. No primeiro levam os soldados
rapidamente mão direita por cima da esquerda, que tem a rédea, e empunham
a espada. No segundo tiram vivamente a espada, e a põe direita com a guarda
a duas polegadas defronte dos olhos. No terceiro tempo abaixam o punho
direito até junto ao qual o quadril direito, a ponta da espada defronte da
espádua a três polegadas (LIPPE, 1768:).

A vigilância constitui num ponto de significativa importância, pois vai ser exercida
através do olhar, deixando visível por meios da coerção sobre quem se aplica a observação:
“12 Quatro oficiais inferiores se postarão na retaguarda de cada Esquadrão para fazer observar
a ordem na última fileira e impedir que algum soldado fique para trás” (LIPPE, 1768:04). Aos que
não seguem a regra estritamente, cometem o crime da inobservância. Penalidade criada pelo
sistema de normalização. A estes infratores são aplicados castigos que têm o objetivo de
corrigir através da repetição do exercício, é assim observado nas notas do terceiro e quarto
capítulo § do ensino dos recrutas:

O Cabo na lição quer dar ao soldado de Recruta dos princípios de obrigação,


deve mostrar-lhe o método de executar qualquer coisa que lhe estiver
ensinando, fazendo-a ele primeiramente e depois mandando-lha fazer até
estar perfeito nela, de forma que deve saber muito bem uma, antes que
aprenda outra (LIPPE, 1768).

A punição é ligada por um sistema de gratificação-sanção que define as características


da penalidade entre boa e má, esta passa a se integrar ao ciclo de conhecimento do indivíduo
como assim determina o capítulo X – dos castigos:

1 Os delitos maiores e sobretudo o motim, o homicídio premeditado, e a


traição hão de Ter pena de morte. O réu passará pelas Armas, será enforcado
ou padecerá morte mais severa nos casos extraordinariamente atrozes,
conforme julgar o Conselho de Guerra em conseqüência dos Artigos
Militares, ou Leis civis, nos casos dos crimes puramente civis cometidos
pelos militares. Os delitos graves que não forem contudo capitais, se
castigarão mandando-se trabalhar os réus nas Fortificações por meses, ou
anos, conforme a gravidade do delito. Estes criminosos trabalharão com
grilhão no pé e na mão direita e um rótulo nas costas que declare o seu delito
(LIPPE, 1768)
.

Por fim a disciplinarização procura recompensar com promoções e pune rebaixando ou


degradando:
Devendo o ponto de honra animar aos oficiais mais do que outro algum
motivo, todo oficial de patente assinada pela Real Mão será reputado nobre e
não poderá exercitar alguma espécie de emprego, nem fazer outro algum
serviço, que não seja o real, para assim se fazer digno do honorífico posto,
que se lhe confiar. E se suceder que algum oficial envileça e desacredite o
seu posto por um procedimento contrário a esta disposição, será expulso e
declarado indigno de servir nos Exércitos de Sua Majestade (LIPPE, 1768).

O regimento disciplinar elaborado pelo Conde de Lippe almejava assim exercer o controle
sobre os corpos dos militares como os gestos e a eficácia para poder retirar ao máximo tempo,
trabalho, disciplina e diminuir seu potencial de revolta. Como já mencionamos, o regimento
teve como foco principal as regiões de fronteiras devido às guerras de demarcação das
fronteiras coloniais das nações europeias. Entretanto, as capitanias do norte também ficaram
submetidas ao mesmo rigor disciplinar porque tinham que fornecer homens, armas e
provimentos para aqueles locais de conflito, como também lutar contra os tapuias na
conquista do sertão.
Assim, em Pernambuco, a historiografia setecentista e oitocentista menciona de forma
muito superficial as queixas dos militares em relação aos rigores disciplinares. No entanto,
percebemos uma ausência de estudos que dedique mais atenção aprofundando na vivência
destes militares no interior dos quartéis, como também em seus campos de batalha. Ao
fazermos um levantamento na documentação do Arquivo Histórico Ultramarino, encontramos
a carta do Brigadeiro do Regimento de Artilharia da Capitania de Pernambuco, D. Jorge
Eugênio de Lócio Seiblitz ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Rodrigo de Souza
Coutinho, em 5 de janeiro de 1800, tratando do envio das instruções e ordens para a formação
militar na capitania de Pernambuco.
A carta do Brigadeiro Seiblitz é um documento rico sob diversos aspectos. O primeiro
deles corresponde ao tempo que foi executado em Pernambuco. Conforme o Brigadeiro,
colocava em prática suas próprias instruções há cerca de 25 anos:

Pretendo mandar imprimir as abreviadas instruções sobre a sólida, e boa


criação dos Militares, e também algumas regras gerais para verdadeiro
conhecimento das evoluções, e todas as Ordens com que criei, e regulei
desde o ano de setenta e cinco o Regimento de que sou chefe [...] (AHU,
1800: 02).

O segundo aspecto, corresponde aos princípios e práticas da disciplinarização


expressos nas orientações sobre os exercícios do fogo, do alvo, a forma de batalha, as marchas
(bem detalhadas e enfatizadas), o serviço no interior dos quarteis, a importância da música e
dos músicos, ordens ao cirurgião-mor, entre outras. Por fim, chama a atenção para alguns
pontos que nos levam a entender estarem ao nível de uma sugestão ou mesmo de uma crítica
sutil ao rigor disciplinar mesmo, que sempre mencione sua importância.
Apesar da ênfase do Brigadeiro em afirmar a autoria das instruções, percebemos uma
proximidade com os princípios normatizadores do Regimento do Conde Lippe, como também
a menção ao mesmo. Partiremos, dessa forma, para a observação da produção de um corpo
dócil, que une a realização das atividades de forma detalhada, constante e breve e o não
cumprimento corresponde à falta de disciplina:
O preceito mais importante, de que devem ter os Senhores Oficiais o maior
cuidado, é o de unir a brevidade a ordem, como por exemplo na ação de
carregar, e escorvar, a rapidez dos movimentos deve acompanhar a ordem
dos tempos, sem o qual nada poderá ser perfeita a sua execução. [...] Todo
Corpo Militar, que no espaço de um minuto, não escorva, carrega e dá fogo
ao menos três vezes, não é bem disciplinado (AHU, 1800:8-9)

A execução do exercício do fogo é precedida do bom desempenho do exercício do


Alvo, pois “O Exercício do Alvo é tão necessário em todo o Corpo Militar que sem ele fica
sendo quase irrisório o exercício do fogo” (AHU, 1800:9). A concepção e importância do
espaço é mencionada tanto no reconhecimento, no treinamento quanto na representação
figurativa:
[...] se consiga avançar-se terreno o mais que for possível [...] Sexto, que se
excute de sorte, que fatigue aos soldados. Em todos os terrenos cavados de
difícil acesso no sub [restante da palavra ilegível porque está sob o carimbo]
pedras, de grandes lamaçais, e outros semelhantes embaraços, [...] É
igualmente necessário que todos os indivíduos, que formam qualquer Corpo
Militar, conheçam o lugar que lhes compete, e as partes que são daquele todo
(AHU, 1800:8-9).

A marcação do tempo regulava a entrada e a saída do quartel, bem como as atividades


desempenhadas no interior dos mesmos:

Os Senhores Oficiais das Companhias farão uma exata escala dos seus
oficiais inferiores, para por elas serem nomeados para as revistas do quartel
nas quais entraram à precisa hora das oito da manhã e serão inseparáveis dos
quartéis dos soldados as vinte e quatro horas da sua revista. [...] Logo depois
do toque da Alvorada o Oficial Inferior da Revista, fará levantar todos os
soldados, que sem demora devem sacudir, e arrumar as Esteiras e varrer o
quartel, de sorte que fique no maior asseio (AHU, 1800:18).

O Brigadeiro chama a atenção para a dupla punição versos beneficiamento, afirmando que
todo oficial deve valorizar e premiar a menor atitude de merecimento compreendido como
subordinação e a disciplina:

Todo o Senhor Oficial, que não tiver por Sistema inalterável o castigar
sempre ainda a mais leve culpa, regularmente louvar, e premiar o mais
pequeno merecimento, jamais conseguirá progressos atendíveis no Corpo do
seu comando (AHU, 1800:06).

Ao mesmo tempo em que ele estimula a premiação, alerta para as punições, afirmando
que as mesmas não podem ser algo central nas atitudes de um oficial porque é um sistema
oposto à razão e causa sentimento de revolta, que pode provocar a mudança de um sistema
político-social:

Devem os Senhores Oficiais terem particular cuidado em destacar o terrível


prejuízo, que grassa na maior parte dos Súditos, capacitando-se, que a
repreensão ou castigo ofende o seu melindre: Sistema horroso oposto a toda
arazão. [...] Prevenir e evitar o Crime, é por tudo mais louvável, e mais
heróico do que castigá-lo; a primeira ação é toda de humanidade, e faz a
glória de um homem sensato: a segunda, ainda que justa, sempre causa
sentimento [...] o rigor do castigo, pode modificar os ânimos, e alterados até
os fazer dobrar ao jugo da escravidão [...](AHU, 1800:04/05)

Porém, o Brigadeiro Seiblitz deixou claro que “Nenhum Oficial deixara de cumprir
exatamente a palavra que der aos seus Súditos, por que a prática desta respeitável máxima os
conduz ao ponto de maior respeito” (AHU, 1800:06). Contudo, mesmo tendo que praticar o
castigo, este deve ser feito de forma paternal:

É indispensavelmente necessário que os Senhores Oficiais cuidem com


particularidade nos seus súditos de pior conduta, pois que estes mais
necessitam dos paternais desvelos do seu bom chefe [...] Todos os Senhores
Oficiais devem capacitar aos seus súditos que ainda nas ocasiões de os
castigarem, o fazem sempre como bons Pais, aborrecendo a falta, e não o
indivíduo (AHU, 1800:05/06)
Em suas “Abreviadas Instruções”, o senhor D. Jorge Eugênio de Lócio Seiblitz
chamou a atenção dos oficias que iriam fazer uso de suas instruções para questões que não
estavam inseridas nos rigores disciplinares e aqui volto a afirmar que ele se propusera a fazer
uma crítica sutil à prática que vinha obedecendo e exercendo desde 1775. Acredito que tal
postura tenha sido feita devido ao contexto político da capitania de Pernambuco, pois em toda
a segunda metade do século XVIII, a governança desta porção da América Portuguesa foi
desempenhada por governadores que eram militares de carreira e, no princípio do século XIX,
Caetano Pinto de Miranda foi a única exceção porque não era militar e sim jurista, o que nos
sugere um afrouxamento na disciplinarização.
D. Seiblitz alertou para os seguintes pontos: o espírito de honra, a união de amizade, o
entusiasmo e o ânimo marcial.

O primeiro e mais essencial cuidado Senhores Oficiais, será influir a todos os


seus subordinados; aquele espírito de honra, que deve ser inseparável da
Profissão Militar. Não se pode conseguir este importante fim, sem se fazer
conhecer aos súditos, que só se estimam os que são dotados de honra e
prontos para o desempenho dela em qualquer ocasião. (AHU, 1800:04)
Todos os Senhores Oficiais devem cuidadosamente conservar nos Corpos
dos seus Comandos uma perfeita união de amizade: as vantagens dessa
necessária máxima por todos os lados se faz patente: Ela conserva o credito
da Corporação, ela os faz ligar, nas ocasiões de perigo, e brilhar em todas as
funções Militares. A necessária e louvável emulação que levantam ânimos
nobre amor da gloria e faz nascer desejos de se excederem mutuamente até
tocar o ponto da perfeição é portanto o objeto digno do incessante cuidado
dos Senhores Oficiais, nos quais só o entusiasmo, igualmente infundido
sobre os seus subordinados, é que lhe pode sustentar perfeitamente os
respeitáveis Caracteres de que são resvestidos. Para qualquer Corpo Militar
mostre aquele ânimo marcial, que deve ser dele inseparável, é necessário que
a maior parte dos indivíduos que o formam sejam dados de uma presença de
espírito nas ocasiões de maior perigo. Este dom tão necessário se alcança
quando se conhece a infalível verdade de que é melhor acabar a vida coroado
de glória, do que ficar vergonhamente vencido (AHU, 1800:06)

Essas questões, segundo Seibltz, são tão importantes e também mais difíceis de
serem aplicadas, pois as evoluções e práticas disciplinares são conquistadas com a
continuidade, com a execução rotineira:

A obrigação de influir no espírito dos subordinados o entusiasmo do valor, é


o que os habilita para toda a ação bizarra, e é muito mais importante do que a
prática de todas as Evoluções, que os Soldados devem saber executar por não
ser dificultoso chegarem ao ponto de perfeição, ou ao menos de suficiência,
porque com a continuação do ensino, se consegue a boa execução de todo o
mecanismo (AHU, 1800:07)

Assim, podemos concluir que a disciplina, os exercícios seriam mais facilmente


conquistados em sua plenitude ou mesmo em sua suficiência pela rotina do que a criação de
uma figura ou imagem do militar, tanto para os próprio militares quanto para a sociedade da
época. Compreendida sob a perspectiva de “uma dinâmica imperial” (FRAGOSO; GÔUVEA,
2010:15).
A compreensão dessa sociedade consiste em pensá-la a partir dos valores e das
normas do Antigo Regime, em conjunto com a sua concepção coorporativa da sociedade, que
foram trazidos da Europa Meridional. Isto nos leva a afirmar que foi construído um sistema
social composto por regras compartilhadas, as quais se mostravam incoerentes, flexível e
ligada à vivência das pessoas que o compunha, ou melhor, uma sociedade cujas brechas
permitiram “aos sujeitos atuarem e se valerem dessas incoerências para assim engendrarem
suas estratégias de vida e com isso produzirem a sua história como processo generativo
(FRAGOSO; GÔUVEA, 2010: 15).
Corroborando com tal afirmativa, José Eudes (GOMES, 2009: 39) afirma que “as
forças armadas” estiveram, desde a sua formação, inseridas no emaranhado da política de
doação régia de mercês, honras, distinções e privilégios, que serviram de sustentação para o
império pluricontinental. Nesse contexto, as forças armadas luso-brasileiras atuaram como
“referencial simbólico de legitimação e representação de poder” (GOMES, 2009: 39), como
também em mecanismos de resistência à reprodução de valores, atitudes, comportamentos e
práticas sociais.

FONTES
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meirinhos: a administração no Brasil colonial. 2ªEd. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985 p.
109.
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Majestade Fidelíssima pelo Conde Reinante de Schaumburg Lippe, Marechal General. Anno
de 1768 – Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro.
Relação das Instruções, RIHGB,35, ptI, 1872, pp227-236. Apud: MAXWELL, Kenneth.
Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996 p. 128.

BIBLIOGRAFIA
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Rio de Janeiro, Editora FGV, 2015.
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PUNTONI, Pedro. A arte da Guerra no Brasil: tecnologia e estratégia militares na expansão
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SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial:
militarização e marginalidade na capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVII. Recife:
Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001.
AS RELAÇÕES ENTRE CIVIS E MILITARES E A TESE DA POLÍTICA DE
ERRADICAÇÃO NO BRASIL IMPERIAL

Dirceu Casa Grande Junior


Doutorando em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (Assis) / Professor do Ensino Básico Técnico e Tecnológico
da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (Cornélio Procópio)

Orientador: Professor Dr. André Figueiredo Rodrigues

Introdução
A tese da erradicação dos militares foi proposta pelo sociólogo brasileiro Edmundo
Campos Coelho em sua obra, Em Busca da Identidade: O Exército e a Política na Sociedade
Brasileira, publicado em 1976. Em seu livro, Coelho trata das relações entre civis e militares
enfatizando que tais relações se basearam efetivamente em processos contínuos de alijamento
político dos militares pela elite política civil, desde o Império até a Revolução de 1930.
Segundo o autor, a política de erradicação dos militares se desenvolveu de forma consistente e
reiterada desde a Independência do Brasil em 1822, quando se revestiu de formas violentas e
particularmente agressivas. No Segundo Reinado e na República Velha, a violência e a
agressividade da elite política civil cederam lugar à dissimulação e a esforços constantes de
cooptação das lideranças militares. Segundo Coelho:
O que Huntington chamou de política de erradicação descreve com
propriedade as atitudes básicas e o comportamento da elite política civil
brasileira com relação ao Exército até a revolução de 1930. A forma
particularmente violenta de que se revestiu esta política durante o Primeiro
Império apenas acentua a natureza mais dissimulada de suas manifestações
no segundo Império e durante a República Velha. Sem perda de eficácia a
política da erradicação evoluiu da hostilidade aberta para as formas mais
prudentes de marginalização do Exército, no segundo Império, e de
cooptação da liderança militar, na República Velha. (COELHO, 1976, p. 34)

Para Coelho, a política de erradicação caracterizou-se pelas atitudes hostis a existência


de uma força militar permanente e profissional, desencadeada no seio de uma elite culta e
letrada influenciada pelo pensamento liberal europeu e norte-americano. Na base das
hostilidades contra o elemento militar estavam a repulsa da população pelo elemento militar,
cujas referências mais próximas eram as tropas coloniais portuguesas, bem como, os esforços
das classes políticas regionais em impor ao centro, ou melhor, à Corte, seus desejos de
autonomia política e liberdade econômica.
Para fundamentar sua tese e sustentar a posição, Coelho utilizou inicialmente o texto
do Projeto Constitucional de 1823 e os discursos dos parlamentares na Assembleia Nacional
Constituinte. Mais adiante, lançou mão dos documentos de fixação das forças militares e os
valores transferidos pelo governo para as forças armadas para os exercícios financeiros de
cada ano desde 1826. Ademais, atribuiu à criação da Guarda Nacional em 18 de agosto de
1831 e o emprego de cidadãos em uma força paramilitar, a coroação do esforço erradicador,
perpetrado pelas elites políticas civis.
O objetivo desse trabalho é apresentar de forma sucinta os principais aspectos e
elementos que conformam a tese da política de erradicação dos militares pela elite política
civil.

A tese da política de erradicação


No texto constitucional de 1823, conforme destacou Coelho em seu livro sobre as
relações entre civis e militares no Brasil, ficou explícito, entre outros fatores, o esforço de
“constitucionalização” da monarquia. Tal esforço imprimiu no projeto a orientação para
desarmar o Executivo tanto quanto possível, impedindo que o Imperador pudesse agir ou
reagir com violência aos conflitos e disputas políticas. A ideia dos parlamentares civis era
estabelecer um rígido controle sobre as forças militares através de instrumentos bastante
específicos, como a fixação dos efetivos e os recrutamentos para as forças de mar e terra e
definição do montante de recursos financeiros destinados a essas forças.
Notadamente, todas essas disposições sublinham as desconfianças que a elite política
civil mantinha em relação ao Imperador e seus Ministros, bem como, aos militares. Pairava
naquele momento, na percepção dos políticos, sobretudo os liberais, um forte temor do
emprego que o Executivo pudesse fazer das forças militares. No texto do projeto, estava
assegurado a descentralização do controle das Forças Armadas.
Se de um lado muitos dos membros da Assembleia se esforçavam para constituí-la ou
convertê-la em uma espécie de juiz supremo aos atos do Executivo, por outro, ensejava
transferir o controle das Forças Armadas aos presidentes das províncias. A proposta
consagrava, desde cedo, a preferência dos parlamentares e das elites políticas regionais por
milícias formadas por cidadãos soldados, cujos postos de comando deveriam ser eletivos.
Assim, controlando a eleição para os postos das forças milicianas e o acesso de indivíduos de
sua escolha e confiança, as elites regionais garantiriam a fidelidade dos corpos dessas forças,
utilizando-as de acordo com seus critérios e vontades.
As elites civis trabalharam insistentemente desde a primeira hora para impor ao
Executivo sua visão de Estado. Nessa visão, “o espírito antimilitar manifestava-se mais
agressivo nos pronunciamentos dos parlamentares” (1976, p. 38). Coelho fez uso contínuo
desses pronunciamentos para fundamentar a tese da política de erradicação. Preferiu,
evidentemente, os pronunciamentos mais exaltados, cujas vozes salientavam como as nações
haviam se tornado escravas de forças militares profissionais ao permitir a criação e a
existência de exércitos permanentes. Outros destacavam que a destinação de recursos
financeiros para manter as forças armadas sugavam todo o dinheiro dos cofres da nação,
inviabilizando demandas mais urgentes.
O certo é que a classe política do Império, sobretudo os liberais, jamais se
acomodou com a existência de uma força militar permanente, disciplinada e
profissional, ou seja, com a existência de um Exército nacional. A sua
preferência sempre fora por uma milícia civil, uma força de cidadãos-
soldados sob o comando regional (1976, p. 39).

Com o 7 de abril e a Abdicação de Dom Pedro I em 1831, Coelho deu à tese da


política de erradicação o impulso necessário para a estabelecer na historiografia nacional. As
bases para a consolidação da versão erradicadora foram a lei de criação da Guarda Nacional,
de 18 de agosto de 1831, e a redução drástica dos efetivos do Exército e os cortes no
orçamento dos Ministérios da Guerra promovidos pelos governos regentes, exceto nos
períodos marcados por revoltas internas.
É razoável supor que tendo podido a classe política reduzir o Exército,
numericamente, à sua expressão mínima, tivesse tido também condições para
restabelecer a disciplina e a unidade militar rompida. Mas se a indisciplina
era a ameaça real a ordem pública, um Exército coeso e disciplinado
constituía para ela um perigo maior, pois supostamente, ameaçava a
existência da ordem civil (1976, p. 40).

É possível perceber que Coelho trabalhou para escalar a tese da política de erradicação
a partir de um conjunto bastante significativo de fontes. O autor detalhou a evolução dos
efetivos desde 1830 até a década de 1920. Demonstrou também o comportamento das
despesas do governo com o Ministério da Guerra desde 1823, no Primeiro Reinado, passando
pelas Regências e seguindo até 1845, no Segundo Reinado, ano que marca o fim das
campanhas do Exército no sul do país. Fica claro que as despesas caíram substancialmente
entre 1829 e 1836, período em que o Brasil foi governado por políticos civis, na maior parte
do tempo, de orientação liberal. De acordo com os políticos liberais, os militares e as forças
permanentes e pagas representavam grande perigo a ordem civil.
A política de erradicação culminou portanto, com um lento e doloroso processo de
retraimento militar, marcado pelo recolhimento voluntário aos quartéis das tropas que não
haviam sido desmobilizadas, bem como, “a adoção de comportamentos puramente rotineiros,
objetivando não despertar a atenção” (1976, p. 45). O Exército literalmente se adaptou
rapidamente a hostilidade do cenário no qual estava atuando e, após a abdicação, reduziu suas
aspirações enquanto organização com o intuito de preservar a própria existência.

Discussões sobre a tese da política de erradicação na historiografia nacional


A tese da política de erradicação dos militares pela elite política civil rapidamente
encontrou adeptos. Entre seus sócios mais famosos, José Murilo de Carvalho sustenta que no
período imperial o Exército sofreu virtualmente com a erradicação. A motivação principal, na
visão de Carvalho, era de que os liberais alimentavam forte “ojeriza” a Exércitos profissionais
e permanentes, temendo que suas forças pudessem fazer surgir “pequenos Bonapartes”, como
ocorreu em países vizinhos como a Argentina de Rosas e o México de Santa Anna. Além
disso, forças militares numerosas deslocam grandes contingentes de mão de obra do trabalho
para a ociosidade do quarteis ou para a guerra, prejudicando a economia de uma país. Por
outro lado, era preciso conter a ação política dos militares no parlamento e nos Ministérios,
movimento que os liberais souberam conduzir de modo eficiente durante todo o Império.
O Exército só voltou a agir politicamente na Questão Militar após a Guerra do
Paraguai. Durante todo o período sofreu o que Edmundo Campos, usando a
expressão de Samuel P. Huntington, chamou de política de erradicação por parte da
elite civil (CARVALHO, 2003, p. 122).

Carvalho argumenta que durante as Regências, parte importante do Exército, mais


especificamente os praças, foi combatido violentamente em virtude da adesão dos soldados às
revoltas urbanas. Nas cidades, esses indivíduos, oriundos das camadas mais pobres da
sociedade e normalmente recrutados à força, foram identificados pelo governo como o
“principal núcleo insurgente” durante as revoltas regenciais (2003, p. 127). Para o governo
regente, o Exército era uma instituição formada por grupos bastante distintos. De um lado os
oficiais portugueses, a maior parte deles alimentando o sonho da restauração do trono de
Pedro I ou mesmo a reconolonizacão. Do outro, os oficiais brasileiros, em sua maioria leais ao
governo. E de outro lado ainda, os soldados, rebelados nas cidades e causadores de tumultos.
A saída, segundo Carvalho, foi a redução dos efetivos e a compressão ou alijamento
político dos setores das forças armadas contrárias as ao governo. Outro expediente, foi a
criação da Guarda Nacional, cujo projeto serviu, na concepção de Carvalho para licenciar
definitivamente os militares e formar um força pública capaz de substituir as tropas
profissionais.
Outro historiador que também corroborou a versão erradicadora é o brasilianista John
Schulz. Para ele,
A regência trina, que incluía o General Francisco de Lima e Silva, era
antimilitar e virtualmente desmantelou o exército. Uma lei fielmente
observada até 1837, proibia a promoção de qualquer um acima de segundo-
tenente, ao mesmo tempo que outras leis ofereciam “reforma” imediata, com
metade do soldo, a todos os oficiais que assim o desejassem, e reformavam,
compulsoriamente, oficiais para os quais não encontrassem um posto
(SCHULZ, 1994, p. 131).
A tese de Schultz desenvolve, entre outros aspectos, o tema das relações entre a
sociedade e seus governantes civis e os militares, buscando identificar as origens dos
movimentos de intervenção militar na política. Sua preocupação é explicar, tal qual Campos
Coelho (1976), como se formaram, no interior das forças armadas, as orientações políticas e
ideológicas que culminaram com as sucessivas intervenções na política nacional. Para esses
autores, a posição antimilitar das elites políticas civis do império forjaram sentimentos e
formaram valores identitários que determinaram as posições das Forças Armadas na política.
Ele definiu que a política de erradicação, expressão da postura civil em relação aos militares,
foi o movimento precursor da formação da identidade de uma organização que impôs,
oportunamente, sucessivos regimes de força ao país.
Estudos mais recentes, porém, apontam para outras possibilidades de analise. Adriana
Barreto de Souza afirmou que “a elite política não era contrária ao Exército. Ela, na verdade,
elaborou e pôs em prática um vasto projeto de reformas das forças de primeira linha” (1999,
p. 183). Não é possível negar que, durante o período monárquico, existia de fato preocupação
e temor em relação ao Exército. Todavia, tais temores vinculavam-se mais à conjuntura
política e social do período em questão do que necessariamente a um projeto de erradicação e
extinção das Forças Armadas, sobretudo o Exército. Não havia o interesse de desmantelar,
mas de modernizar a organização e torna-la mais efetiva no cumprimento de seus funções e
deveres.
Diante disso, é possível perceber nos pronunciamento de ministros e parlamentares
uma postura diferente daquelas descritas por Coelho para fundamentar a tese da política de
erradicação. Em 1832, o Ministro da Guerra, Manoel Fonseca de Lima e Silva, por ocasião
dos debates para a fixação das forças de mar e terra para o ano financeiro de 1833, realçou a
necessidade da nação pensar, através de seus representantes eleitos e governantes, sobre um
modelo de Exército para a nação. Nesse sentido, o Ministro argumenta que,
Em tempos ordinários, e quando a paz residir em todos os ângulos do
Império, reconhece o Governo a desnecessidade de hum Exército numeroso,
bastando a conservação de Corpos, que sirvão como Escolla normal de
subordinação e rigorosa disciplina militar; porque as Guardas Nacionaes nas
Províncias onde estiverem organizadas, e os Corpos de Segunda Linha onde
subsistirem, prestarão grande auxílio, e coadjuvarão com energia e
verdadeiro interesse na defesa do Estado (1831, p. 2).

O efetivo do Exército passou de pouco mais de 30 mil homens em 1830 para cerca de
14 mil em 1831, ou seja, uma redução de 52% de um exercício para outro. De acordo com o
Ministro, a redução possuía dois objetivos: o primeiro, reduzir as despesas ordinárias; e o
segundo, melhorar as condições de recrutamento e atuação dos conscritos, além de preencher
as fileiras do Exército com “pessoas mais interessadas na segurança do Paiz” (1831, p. 2).
O governo não podia abrir mão do Exército, sobretudo em um período em que a
construção de um Estado e todos os seus aparatos e instituições estavam nas mãos dos
brasileiros. Diante disso, nos parece mais prudente pensar que, após a independência, a elite
política composta por políticos civis de várias orientações políticas, bem como, pelos
bacharéis, padres e necessariamente pelos militares, estavam diante do desafio de construção
do Estado e consolidação da nação e o Exército constituia, seguramente, uma instituição
fundamental para cumprir tal intento.

Considerações Finais
Ao propor a tese da política de erradicação dos militares pela elite política civil desde a
Independência até a Revolução de 1930, Coelho destacou o perfil antimilitar dos grupos
políticos civis, sobretudo os de orientação liberal que assumiram o governo do Brasil após a
Abdicação de Dom Pedro I. Para subsidiar a referida tese, Coelho utiliza o texto do projeto
constitucional de 1823 e o esforço de “constitucionalização” da monarquia como ponto de
partida para justificar e fundamentar o alijamento de uma força armada profissional e
permanente. Nessa dinâmica, desarmar o Imperador e limitar o “poder de fogo” do Executivo
no campo político e institucional, passavam necessariamente por anular a atuação do Exército,
reduzindo seu tamanho e limitando seus recursos.
De igual modo, Coelho identificou nas falas de alguns dos muitos parlamentares a
tendência de combater a existência de forças armadas permanentes e promover a formação de
corpos de milícias formadas por cidadãos soldados, como ocorreu em 1831 com a criação da
Guarda Nacional. Finalmente, Coelho enxergou na redução dos efetivos da força e nos cortes
no orçamento dos Ministério da Guerra pelos governos regentes a partir de 1831, como a
materialização dos anseios antimilitaristas foram alimentados e colocados em prática pelos
políticos civis de orientação liberal. A equação estava dada: o espírito antimilitar e a redução
dos efetivos somados a criação de uma milícia civil, configuravam a política de erradicação
dos militares pela elite política civil imperial.
Entretanto, estudos mais recentes, bem como, o aparecimento de novas fontes e a
elaboração de novas versões sobre a Independência do Brasil, as forças e os movimentos
políticos que construíram o Estado e contribuíram para a formação da Nação, demonstram que
Coelho ignorou, voluntária ou involuntariamente, uma série de requisitos de analise e
elementos históricos importantes. Para explicar as relações entre civis e militares no Brasil e
compreender como os militares desenvolveram valores para formar uma identidade e uma
organização capaz e com disposição suficiente para intervir na política nacional em vários
momentos, Coelho se apoiou no que Samuel Huntington denominou erradicação ou
extirpação dos militares. Para Coelho, a erradicação promovida pelos militares durante
décadas desde a Independência, explica os movimentos de intervenção militar na política, o
que não nos parece verdade.
Os desafios desse estudo estão em conhecer e explorar os aspectos da narrativa de
Coelho sobre o Exército para, em um segundo momento, identificar seus pontos positivos e
consistentes, bem como, as inconsistências teóricas e metodológicas do seu trabalho sobre
História das relações entre civis e militares no Brasil. Nesse sentido, cumpre estudar as
versões mais recentes sobre nossos objetos e o período em questão, visitar as fontes,
principalmente aquelas que não foram utilizadas por Coelho e elaborar uma tese que dê conta
de dialogar com a tese da política de erradicação em outros termos, ou seja, reconhecendo
seus pontos fortes e criticando e anulando os elementos que não se sustentam.

Referências
BRASIL. Relatório da Administração do Ministério da Guerra: apresentado na Augusta
Câmara dos Senhores Deputados. 1831. Rio de Janeiro: Typographia Patriótica D’Astreia,
1832. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/u2181/00002/html>. Acesso em: 25.jun.2017.

CARVALHO, José Murilo. A construção da Ordem: a elite política imperial; Teatro de


Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
COELHO, Edmundo Campos. Em busca da identidade: o exército e a política na sociedade
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SCHULZ, John. O Exército na Política: as origens da intervenção militar, 1850-1894. São
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SOUZA, Adriana Barreto de. O Exército na consolidação do império: um estudo histórico
sobre a política militar conservadora. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999.
A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA MILITAR “REFLETIDA” NA PRAÇA DOS EX-
COMBATENTES EM SÃO GONÇALO (1970).

Elaine Cristina Ventura Ferreira


Doutoranda em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Marcos Ramos
Doutorando em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo refletir a construção da memória militar na Praça dos
Ex-Combatentes, situada, no município de São Gonçalo no Rio de Janeiro. A partir da discussão
“memória e patrimônio”, buscamos analisar como esta memória construída irá representar a
presença militar no Município, na década de 1970, momento de sua construção.
A noção de “patrimônio” remete a ideia de herança, esta por sua vez, pode ser material
representado pelos bens materiais de valor financeiro ou não. E podem ser imateriais caracterizados
por seu valor apenas simbólico, contudo, as duas formas são dotadas de valores emocionais e
afetivos. Para os historiadores Sandra Pelegrini e Pedro Paulo Funari (2006), com a formação do
Estado Nacional, veio à necessidade de “inventar” que o conjunto de cidadãos, deveriam
compartilhar uma língua, uma cultura e um território comum, ou seja, forjavam-se as relações de
pertencimento a uma nação. Diante da abordagem exposta nos perguntamos: Qual o lugar do
patrimônio neste momento? Segundo os autores, deste momento em diante, o conceito de
patrimônio saía do âmbito de sua compreensão do privado, religioso, passando a ser compreendido
em uma categoria mais ampla, isto é, como bem nacional161.

A relação entre patrimônio, sociedade e história nacional tem sua gênese no contexto da
Revolução Francesa momento em que os bens do clero ficaram à disposição da nação. Como
explicar as razões desta política? A resposta a este questionamento é explicada no trabalho de
Françoise Choay (2006) que ao refletir o momento, observa que as políticas de preservação e
reconhecimento do patrimônio foram integrados como monumentos históricos a serviço da
construção dos valores nacionais.
A reflexão da autora abre chance para identificar que o patrimônio se tornou instrutor da
nação dotado de funções cívicas e pedagógicas cujo fim, seria a educação histórica dos cidadãos162.
A mesma discussão e contexto são feitos pelo historiador Dominique Poulot (2009), que aponta
que a história e reconhecimento do patrimônio estão associados a seus usos sociais, isto é, suas

161
PELEGRINI, Sandra, FUNARI, Pedro Paulo. Patrimônio Histórico e Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2006.
162
CHOAY, Françoise. A Alegoria do patrimônio. São Paulo: UNESP, 2006, pp. 95-106.
funções cívico-pedagógicas e instrumento de reafirmação das identidades nacionais. Para o autor, o
patrimônio de uma nação delimita suas fronteiras culturais, reforçam seus laços de pertencimento e
identidades coletivas. O patrimônio insere o passado no presente, momento em que este passado
passa a ser tomado como referência e explicação histórica163.
Ao analisar a relação entre memória e presença do passado, o historiador Manoel Salgado
Guimarães (2009) problematiza que a produção historiográfica restrita ao século XIX, não deu
conta de explicar a complexidade das ações humanas na sociedade. Diante deste fato, o autor
mostra que dentre tantos empréstimos teóricos e conceituais feito pelos historiadores desde então,
destaca-se o de representação que busca compreender por meio da cultura simbólica, as relações de
poder e as práticas geradas em torno da produção material humana. E neste sentido, para o autor,
este passado simbolicamente representado e escrito se torna mais um objeto para reflexão e
produção do conhecimento histórico164. A reflexão realizada pelo autor perpassa um olhar sobre o
patrimônio, e como destacado em seu pensamento, as formas de musealização e a
patrimonialização do passado se torna um projeto de Estado no que se refere ao investimento na
lembrança e na construção de narrativas sobre o passado das sociedades.
A discussão entre memória e patrimônio é analisada pelo historiador François Hartog
(2013) e para ele, o estudo das sociedades a partir de seu patrimônio significa a abertura da história
para novos objetos e fontes de investigação. O autor observa a expansão das políticas de
patrimônio nas sociedades contemporâneas e remete este fato, ao investimento nas lembranças e a
necessidade de inserção do passado no presente. Para o autor, nesta nova configuração, o
patrimônio se torna território da memória e ambos operam na construção de identidades. Hartog
(2013) aponta que por meio do patrimônio, as sociedades passaram a ter uma cultura histórica
(relação e formas de tratar o passado), contribuindo com a construção de suas identidades
coletivas. A política de preservação do patrimônio se refere ao medo do esquecimento e em
torno deste, é agregado valor simbólico, tendo em vista que sua perspectiva é construir uma
memória e uma história para fins nacionais. Na medida em que o patrimônio se consolidava
como elemento da identidade, sedimentava-se o novo regime de historicidade, ou seja,
momento em que a história-memória cede seu lugar para a história-patrimônio 165.
No Brasil a política de reconhecimento e preservação do patrimônio ocorreu no
governo de Getúlio Vargas no estado novo a partir da implantação do decreto lei 25 de
novembro de 1937. A proposta deste decreto era salvaguardar os bens materiais de valor
histórico. Conforme Assunção (2003), coube ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico

163
POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente, século XVII – XXI. São Paulo: Estação
Liberdade, 2009.
164
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Política, História e Memória. In: GONTIJO, Rebeca. SOIHET, Rachel.
ABREU, Marta. Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. (orgs). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007, pp. 23-41.
165
HARTOG, François. Regimes de Historicidade presentismo e experiências no tempo. Belo Horizonte:
Autêntica, 2013, pp. 193 -245.
Nacional – SPHAN, hoje conhecido como Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – IPHAN ser o órgão representativo do governo para desenvolver esta política. As
intenções do órgão era “guardar” todos os bens que fossem capazes de remeter o passado
nacional e assim, ser reconhecidos como importantes para construção da identidade
nacional166.
No caso brasileiro, as políticas de preservação e reconhecimento do patrimônio tem
sua associação com os interesses do Estado. E segundo Mendonça 167 (1995), à política de
preservação do patrimônio se relacionou em meio a um jogo de interesses entre intelectuais e
o estado que a partir do patrimônio forjaram políticas para construção da nação. Nessa
política, o nacionalismo como discurso evocado, serviu como retórica da preservação, o
patrimônio neste sentido, consolidou o nacionalismo e a cultura política do Estado. Para
Chuva (2003), a política de preservação do patrimônio no Brasil foi um projeto do Estado
Novo. E os intelectuais do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN a
serviço do estado construíram a política de patrimônio para atender aos interesses deste. Esta
política, também se vinculou ao um projeto de exaltação do passado colonial e consagrou na
ocasião, valores estéticos; o “Barroco”, por exemplo, foi consagrado por estes intelectuais
como a referência de patrimônio histórico nacional 168.
As discussões levantadas abre caminho para percebermos as dimensões do fazer
historiográfico, tendo em vista que o patrimônio se tornou um novo objeto para compreensão
e explicação do passado das sociedades. O estudo do patrimônio em diálogo com o conceito
de representação cunhado pelo historiador Roger Chartier 169 (1990), por exemplo, permite
refleti-lo como o estabelecimento de uma relação entre memória e poder. Além disso, nos
permite perceber o patrimônio como agente de uma narrativa não neutra que está em disputa
por memórias e seus usos sociais geram diferentes formas de práticas e relação com o
passado.

A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA MILITAR “REFLETIDA” NA PRAÇA DOS EX-


COMBATENTES EM SÃO GONÇALO (1970).

Neste item buscamos refletir o jogo de interesses que conduziram à criação da Praça
dos Ex-Combatentes em São Gonçalo, levando em consideração o posicionamento político do

166
ASSUNÇÃO, Paulo. Patrimônio. São Paulo: Edições Loyola, 2003, pp.68-69.
167
MENDONÇA, Sônia Regina de. Por uma sócio- história do Estado no Brasil. In: CHUVA, Márcia Regina
Romeiro. A invenção do Patrimônio: Continuidade e ruptura na constituição de uma política oficial de
preservação no Brasil. (org). Ministério da Cultura/ IPHAN, Departamento de Promoção, Rio de Janeiro, 1995,
pp. 67-80.
168
CHUVA, Márcia. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado. Rio de
Janeiro: Revista Topoi, volume. 4, número. 7, julho – dezembro. 2003, pp. 313-333.
169
ROGER, Chartier. Construção do Estado Moderno e formas culturais. Perspectivas e questões. In: A história
cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Difel, 1990, pp. 215 – 231.
idealizador da Praça, tendo em vista sua ligação com o partido do regime civil militar –
Aliança Renovadora Nacional - ARENA que no mesmo contexto, criou uma Escola
Municipal em homenagem ao Presidente Humberto de Alencar Castelo Branco. Além disso,
pretendemos discutir as relações pessoais que facilitaram a criação deste monumento que
passa neste trabalho, a ser pensado como um conjunto de representações simbólicas na
construção da memória militar “refletida” na construção da praça dos ex – combatentes.
Segundo entrevista concedida por Alexandre Martins formado pela Escola de Belas
Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ desde (1995) e Presidente da
Sociedade de Letras e Artes de São Gonçalo desde (2006), a Praça dos ex- combatentes foi
idealizada e teve sua construção iniciada pelo ex-prefeito Osmar Leitão e finalizada na gestão
do prefeito José Alves Barbosa em 24 de outubro de 1970 170.
Filho de Manoel Leitão Rosa e de Arlete de Souza Leitão Rosa, Osmar Leitão Rosa
nasceu em São Gonçalo, em 10 de junho de 1937. Casou-se com a senhora Regina Coeli de
Carvalho Caravana Leitão Rosa, são seus filhos Osmar Antônio, Maximiliano Antônio Mário
(médicos) e Priscila Cândido (especialista em informática). Fez primário no Curso Benjamin
Constant, no Porto Velho, de 1945 a 1948. O antigo ginasial e o curso técnico de
contabilidade (segundo grau) foram feitos no Ginásio Nilo Peçanha, no Largo do Barradas,
Niterói, Rio de Janeiro, de 1949 a 1955. Formou-se em Direito pela Universidade Federal
Fluminense (UFF) na turma de 1965. Em 1957, foi secretário do prefeito Joaquim Lavoura e
Chefe de Gabinete, de 1963 a 1966.
Ingressou na política em 1954, participando da campanha de Joaquim Lavoura à
prefeitura. Em 1958 foi candidato a vereador pelo Partido Democrata Cristão (PDC) e ficou
na primeira suplência. Em 3 de outubro de 1962 foi eleito vereador, pelo Partido Libertador
(PL), para o mandato de 1 de fevereiro de 1963 até o fim da Legislatura. Exerceu o cargo de
Chefe de Gabinete do Prefeito Joaquim Lavoura de 1 de fevereiro de 1963 a 14 de maio de
1966. No pleito de 15 de novembro de 1966 foi eleito prefeito, pela Aliança Renovadora
Nacional (ARENA), tendo exercido o mandato de 1 de fevereiro de 1967 a 14 de maio de
1970, quando construiu o primeiro ginásio público mantido por uma prefeitura em solo
fluminense, o hoje, Colégio Municipal Presidente Castelllo Branco, além de outras
realizações.
Segundo Nunes (2012), foi eleito deputado federal nas eleições de 15 de novembro de
1970, 1974, 1978, 1982 e 1986 (tendo sido as três primeiras eleições pela ARENA e as duas

170
Entrevista concedida à Elaine Cristina Ventura Ferreira na Sociedade de Artes e Letras de São Gonçalo – SAL
em 03 de maio de 2017.
últimas pelo Partido Democrático Social, PDS, e pelo Partido da Frente Liberal), (PFL). Na
eleição de 1990, ficou como suplente e assumiu mandato durante o ano de 1994171.
No trabalho monográfico de Rogério Fernandes da Silva (2003) verifica-se que o
prefeito Osmar Leitão mandou construir a Praça dos Ex-Combatentes no fim de seu governo e
que esta decisão representou uma vitória na luta dos ex - pracinhas na construção de sua
memória172. A Praça dos Ex – Combatentes está localizada no Município de São Gonçalo na
Rua Francisco Portela. O terreno no qual foi construída a praça pertenceu a Companhia
Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro - CEDAE e a doação definitiva feita pelo
governador do Estado do Rio de Janeiro Geremias de Matos Fontes cujo número do ofício foi
320/ 1975 e a escritura foi transmitida a Associação de São Gonçalo dos ex-combatentes de
acordo com a lei 7636, de 07 de janeiro de 1975173. Segundo Rogério, a criação da praça foi
resultado de uma rede de relações pessoais entre, os ex - pracinhas, políticos locais de São
Gonçalo e o próprio Estado.

A Praça dos Ex-Combatentes foi erguida em homenagem aos Combatentes da 2° Guerra


Mundial integrantes da Força Expedicionária Nacional (FEB). Ela é composta por um obelisco,
um mastro central para quatro bandeiras, mapa do Brasil e Brasões oficiais, além de um tanque,
uma hélice e munições de guerra. No monumento aos soldados mortos, ficou a mensagem para
os vivos. Conforme os relatos orais feitos pelos membros da Associação dos Ex-Combatentes
de São Gonçalo, os monumentos vieram diretamente da guerra. As razões de criação da Praça
passam por diferentes hipóteses, a reafirmação do poder militar no Município; a ligação do
idealizador com o partido da ARENA; a construção da memória dos ex - pracinhas e a praça
como instrumento de poder.

IMAGEM 1: Fotografia do acervo dos Ex-Combatentes de São Gonçalo.

171
NUNES, Jorge Cesar Pereira. (org). Dirigentes Gonçalenses Perfis (1890 – 2011). Niterói: Nitipress, 2012, pp.
123 – 124.
172
SILVA, Rogério Fernandes da. A praça dos ex – combatentes memória e esquecimento. Rio de Janeiro:
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ/ FFP, 2003, p. 28.
173
Decreto, número 16718 de 13 de março de 1975.
IMAGEM 2: Fotografia do acervo dos Ex- Combatentes de São Gonçalo

IMAGEM 3: Fotografia do acervo dos Ex- Combatentes de São Gonçalo

IMAGEM 4: Fotografia do Acervo Sociedade de Artes e Letras de São Gonçalo – ano 1960
IMAGEM 5: Fotografia do acervo dos Ex-Combatentes de São Gonçalo

IMAGEM 6: Imagem da Praça do Ex-Combatentes na atualidade.


Fotografia do acervo dos Ex-Combatentes de São Gonçalo
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A leitura das imagens nos permite identificar a função cívica militarizada na praça e a
mesma, como uma forma de combate ao esquecimento; nesta reflexão é possível discutir a
relação entre memória e poder materializada nos monumentos.
As lutas pela conservação e preservação da memória dos ex-combatentes da II Guerra
Mundial, em São Gonçalo, constituem uma parte importante da história da cidade, e ao mesmo
tempo reflexo emblemático de um período histórico importante para o próprio país. No
entanto, em nossa pesquisa, foi possível verificar que, o poder público de São Gonçalo não tem
demonstrado interesse na conservação e preservação da Praça dos Ex-Combatentes. Deixando
claro o foco em outras prioridades dentro da cidade.
Outro ponto importante é a pouca documentação e as dificuldades de se ter acesso a ela,
que inviabilizam muitas vezes, a concretização de trabalhos de pesquisa sobre este tema.
Um exemplo disso, foram as nossas tentativas de se ter acesso a documentação
específica da época da idealização e construção da Praça dos Ex-Combatentes. Um dos nossos
objetivos era conseguir a planta original da construção da Praça, mas não obtivemos êxito. Não
conseguimos na Associação dos Ex-Combatentes e nem na Prefeitura de São Gonçalo. E na
busca por mais informações sobre a Praça, descobrimos que havia um local onde existem
documentações acerca da mesma, em âmbito privado: o caso da documentação de difícil acesso
armazenada na biblioteca do IBEU – Curso de Inglês, localizado em São Gonçalo. Neste caso
específico, tentamos por inúmeras vezes estabelecer contato para agendar uma visita ao local do
acervo, e não nos foi concedido retorno.
Porém, mesmo com tanta dificuldade de acesso à uma documentação mais precisa, o
pouco que resta das "memórias" da Praça dos Ex-Combatentes, nos remete a uma gratificante
descoberta das linhas do passado em que os seus personagens históricos atuaram.
E é no que restou de monumentos e objetos materializados na própria Praça (mesmo
esta não tendo uma conservação e preservação adequada), que podemos verificar os "vultos"
que restaram da memória dos Ex-Combatentes Gonçalences, constituindo-se assim, o seu maior
patrimônio.
Por fim, ressaltamos a importância da conservação e preservação da Praça dos Ex-
Combatentes como forma de recuperar a história dos militares da II Guerra Mundial e ao
mesmo tempo, da própria cidade de São Gonçalo. Acreditamos que, só com o interesse público
é que será possível essas ações se efetivarem, propiciando assim, a perpetuação de valores dos
militares Ex-Combatentes de Guerra às novas gerações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSUNÇÃO, Paulo. Patrimônio. São Paulo: Edições Loyola, 2003.
CHOAY, Françoise. A Alegoria do patrimônio. São Paulo: UNESP, 2006.
CHUVA, Márcia. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e
civilizado. Rio de Janeiro: Revista Topoi, volume. 4, número. 7, julho – dezembro. 2003.
DECRETO, NÚMERO 16718 de 13 de março de 1975.
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Política, História e Memória. In: GONTIJO, Rebeca.
SOIHET, Rachel. ABREU, Marta. Cultura política e leituras do passado: historiografia e
ensino de história. (org.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
HARTOG, François. Regimes de Historicidade presentismo e experiências no tempo. Belo
Horizonte: Autêntica, 2013.
MENDONÇA, Sônia Regina de. Por uma sócio- história do Estado no Brasil. In: CHUVA,
Márcia Regina Romeiro. A invenção do Patrimônio: Continuidade e ruptura na constituição
de uma política oficial de preservação no Brasil. (org). Ministério da Cultura/ IPHAN,
Departamento de Promoção, Rio de Janeiro, 1995.
NUNES, Jorge Cesar Pereira. (org). Dirigentes Gonçalenses Perfis (1890 – 2011). Niterói:
Nitipress, 2012.
SILVA, Rogério Fernandes da. A praça dos ex – combatentes memória e esquecimento.
Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ/ FFP, 2003.
PELEGRINI, Sandra, FUNARI, Pedro Paulo. Patrimônio Histórico e Cultural. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente, século XVII – XXI. São
Paulo: Estação Liberdade, 2009.
ROGER, Chartier. Construção do Estado Moderno e formas culturais. Perspectivas e
questões. In: A história cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Difel, 1990.

Entrevista Realizada
Entrevista com Alexandre Martins concedida à Elaine Cristina Ventura Ferreira na Sociedade
de Artes e Letras de São Gonçalo – SAL, em 03 de maio de 2017.
O EXÉRCITO BRASILEIRO E A FAXINA

Emílio Maciel Eigenheer


Faculdade de Formação de Professores
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

Introdução
Por força da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída pela lei 12.305 de
02.10.2010, as Organizações Militares (OM) devem elaborar Planos de Gerenciamento de
Resíduos Sólidos.
Em decorrência, primeiro, de sua tradição de limpeza, zelo e conservação de seus
espaços e equipamentos, e segundo, por abranger todo o território nacional, abrigar milhares
de pessoas das mais diversas camadas sociais e renovar anualmente significativa parte de seus
membros, as OM estão em situação privilegiada para a elaboração e execução desses planos.
Incorporando práticas, entre outras, de redução de resíduos sólidos, coleta seletiva, logística
reversa e compostagem. O gerenciamento de resíduos sólidos é parte importante de uma
agenda ambiental.
Por ser uma escola de cidadania, deve cumprir também, nesta questão, o papel de
exemplo para a sociedade como um todo. A ideia do Exército como escola cívica é antiga.

“O ex rcito do tempo de pa tornou-se então a escola em que os cidadãos


aprendem o primeiro de seus deveres cívicos – a defeza da Pátria: e ahi
adquirem hábitos de obediência, que vão depois reflectir-se beneficamente na
disciplina social”.174

Regimento Interno e dos Serviços Gerais–R–1 (RISG)

A leitura do RISG (de 19/12/2003) do Exército Brasileiro é suficiente para se entender a


eficácia dos serviços de limpeza nas OM.

Cada setor (cozinha, refeitório, escritórios, dormitórios, enfermarias, paiol, oficinas) tem
suas responsabilidades bem estabelecidas. As áreas comuns, por sua vez, ficam a cargo do
pessoal do serviço de dia (sob a responsabilidade do cabo da faxina). São também garantidas a
mão de obra e a fiscalização necessárias para a execução das atividades.

Basicamente não há espaços nos quartéis para os quais não haja normas bem específicas
e claras para conservação e limpeza.

A limpeza geral e a conservação são parte das atividades de faxina, assim definidas no
RISG:

174
A DEFEZA NACIONAL, Rio de Janeiro, ano 1, n. 2, 10 nov. 1913. p.37.
“Art.183 Faxinas s o todos os tra alhos de utilidade geral, executados no
quartel ou fora dele, compreendendo limpeza, lavagem, capinação,
arrumação, transporte, carga ou descarga de material e outros semelhantes,
regulados pela NGA/U.”175

Em relação à destinação final dos resíduos sólidos urbanos, o RISG orienta que isto
deve estar a cargo das Prefeituras Municipais com as quais as OM devem manter os
necessários entendimentos. Temos aqui um complicador, já que, em parcela considerável dos
municípios brasileiros, a destinação final ainda é precária.
Também a implementação da coleta seletiva, prevista na PNRS, pressupõe ações dos
serviços municipais e, de alguma forma no caso brasileiro, de cooperativas de catadores,
assim como de um mercado comprador. A disseminação da coleta seletiva no país enfrenta
dificuldades, principalmente pelos altos custos. Caso as OM queiram desenvolver esta ação,
vão depender de compradores locais. A Logística Reversa, por sua vez, pressupõe sistemas
coletores implantados pelas indústrias, e em alguns casos já opera com sucesso (óleo
combustível, embalagens de agrotóxicos, etc.). Em muitas OM a coleta seletiva já foi
implantada.
Seguindo uma tendência nacional, a compostagem, apesar de sua importância como
forma de tratamento de resíduos orgânicos, ainda é pouco difundida nas OM, podendo a
introdução desta prática se constituir em mais uma decisiva contribuição do Exército
Brasileiro.
A limpeza e a conservação são tratadas nas OM do Exército Brasileiro tradicionalmente
sob a perspectiva de pelo menos dois aspectos, a saber, da higiene e do garbo, fundamental
para o ethos militar.
O termo ‘faxina’ nas Forças Armadas, como visto no RISG, possui significados diversos
e mais amplos do que na esfera doméstica dos lares brasileiros, onde é usado basicamente
como sinônimo de limpeza geral mais acurada.
O vocábulo designa originalmente um instrumento militar usado desde a antiguidade
até, pelo menos, a I Guerra. O Diccionario Contemporaneo da Lingua Portugueza, em sua
edição de 1881, data próxima ao final da Guerra do Paraguai, indica:

Fachina (fa-xi-na), s.f. mólho de paus curtos ou ramos com que se entupem os
fossos de uma praça ou se cobrem os parapeitos de uma bateria e que se
empregam em usos nas campanhas militares, especialmente no ataque ou
defesa das praças. // (Mil.) Serviço da limpeza da caserna, da conducção do
rancho para as guardas e outros ser i os d’esta nature a. // (Archict. ci .)
Feixes de ramagem com que se entulham estradas, quebradas, pantanos sobre
os quaes ha a fazer construcções, represas de aguas, etc. // Estar de fachina,
fazer o serviço de fachina nos quarteis. // Tocar a fachina, chamar pelo toque

175
Regulamento Interno e dos Serviços Gerais–R–1 (RISG) de 2003, art. 183, p. 57.
de corneta ou tambor os soldados que no quartel devem fazer o serviço de
fachina. // Lenha miuda, gravetos. // Fazer fachina, colher bom resultado ou
proveito, provêr-se bem do necessario. // (Fig.) Estrago, destroço: Apanhou-o
fóra e fez-lhe fachina no dinheiro. // (Bot.). Planta agreste da provincia de
Pernambuco da familia das rubiaceas (canthiumalongatum). //--, s.m. o
soldado que está encarregado do serviço da faxina. // F. lat. Fascina176.

Imagem 1: Faxina

Fonte: Lello Universal

Imagem 2: Faxina em trincheiras

Fonte: Lello Universal

Os significados apresentados, portanto, são basicamente militares, sendo o mais


importante o que indica o feixe de paus de uso em campanhas. Em dicionários mais recentes,
estes usos são mantidos, e o significado é ampliado também para a limpeza doméstica.
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, de 2001:

Faxina“1 conjunto de gravetos; lenha miúda 2 feixes de ramos, ou de paus,


que nas campanhas militares serve para entulhar fossos, cobrir parapeitos de
bateria etc., e com que se entulham terrenos a fim de fixá-los para construções
3 PE conjunto de varas flexíveis, trançadas, com as quais se constroem cercas
4 MAR MIL qualquer trabalho braças de interesse administrativo, marinheiro ou

176
VALENTE, Antonio Lopes dos Santos (org.). Diccionario Contemporaneo da Lingua Portugueza. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1881.
militar 5 (sXIX) serviço completo de limpeza; limpeza geral (mandou fazer uma
faxina na casa) ...”177
Como o instrumento militar já não é usado de longa data, acabou caindo no
esquecimento, sendo hoje o significado de limpeza doméstica o mais empregado.
Para compreendermos os usos ainda correntes do termo nas OM, é necessário que nos
voltemos à história militar. Se tomarmos como referência a Guerra do Paraguai, decisiva para
a constituição do Exército Brasileiro (1860-1870), podemos mostrar a relevância tanto da
faxina, quanto das inúmeras atividades dos faxineiros.
A importância das faxinas, ainda no século XIX, pode ser aquilatada no quadro Vista do
interior de Curuzú (1866)178, onde se observa, registrado pelo artista, um amontoado delas,
prontas para uso.

Imagem 3: Detalhe do quadro Vista do interior de Curuzú, de Candido Lopes

Fonte: Museu Nacional de Belas Artes, Argentina

Além de produzir as faxinas, os faxinas ou faxineiros (soldados) tinham múltiplas


funções: buscar madeira para fogo, armar barracas e barracões, fazer a manutenção e a
limpeza do acampamento, recolher despojos no campo de batalha, etc. Ou seja, os soldados
encarregados de produzir as faxinas, tinham também outras importantes responsabilidades.
Para exemplificar este fato, o livro de Dionísio Cerqueira, que participou de quase todo o
período da Guerra do Paraguai, é bastante ilustrativo.

“Os soldados do ra am nas faxinas, cortando leivas onde havia gramados,


tirando cipós para trançar cestões, arrumando ramúsculos e enfeixando
177
HOUAISS, Antonio; VILAR, Mauro de Salles. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,
2001.
178
LOPES, Candido. Vista do interior de Curuzu. Coleção Museu Nacional de Belas Artes, Argentina.
salsichões, cortando madeira para ranchos e enfermarias, limpando os nossos
reais, abrindo valetos para escoamento das águas e tudo mais que acudia à
mente elosa e sempre ocupada do chefe exemplar”179.
“No dia seguinte, em cedo, saíram faxinas a enterrar os mortos e os canhões
tomados ao inimigo, arrecadar o armamento esparso pelo campo, recolher os
feridos prisioneiros e inutilizar as carretas, que não fosse possível conduzir ou
não valesse a pena fazê-lo”180.
Deve-se notar que o termo é usado para designar ora o feixe de uso na campanha, ora os
soldados, ora as diversas atividades por eles executadas. Os faxineiros também tinham
funções de apoio aos oficiais.

“Reparti as minhas duas li ras de mesada com o faxineiro, que o sargento me


concedeu. Cozinhava a nossa bóia e dava-me a metade, lavava-me a roupa,
que não ia além de uma só muda, açacalava-me o armamento e cuidava do
meu equipamento. Era um crioulo alto e musculoso, gingando muito quando
andava, com uma trunfa pontiaguda no alto da larga testa luzidia. Era muito
limpo – fazia gosto ver a chapa do seu cinturão e os botões a reluzir. Afamado
fabricante de cigarros, vendia-os aos oficiais. Gostava muito de cantar”181.

Cabe ainda assinalar que, segundo um dicionário alemão (verbete Faschinen), de 1923,
as tropas terrestres usavam na antiguidade uma faca curta e larga, portada lateralmente,
chamada Faschinenmesser, usada principalmente para derrubar arbustos e produzir faxinas182.

Conclusões

Com as referências apresentadas, é possível compreender a extensão do uso do conceito


de faxina, tal como empregado no RISG. O fato do feixe não ser mais utilizado em ações
militares reforça, portanto, o significado de serviço geral.
Por outro lado, o significado de faxina como limpeza geral pode estar relacionado
também ao fato de serem as vassouras antigas feitas de feixes amarrados a um cabo,
assemelhando-se a uma faxina, sendo usadas tanto nas atividades domésticas como na limpeza
urbana.

Imagem 4: Vassoura, 1434

179
CERQUEIRA, Dionisio. Reminiscências da Campanha do Paraguai, 1865-1870. Rio de Janeiro: Biblioteca
do Exército, 1980. p.181.
180
CERQUEIRA, idem, p.329.
181
CERQUEIRA, idem, p.147.
182
Brockhaus-Handbuch des Wissens (in vierBänden). Leipzig: F. A. Brockhaus, 1923. V.2, p.18.
Fonte: HÖSEL, Gottfriede. Unser Abfall aller Zeiten.

Imagem 5: Vassouras

Fonte: Lello Universal

Vale ressaltar também a relação da faxina com os Fascies, símbolo de poder dos
cônsules romanos e do fascismo.

Imagem 6: Fascies

Fonte: Lello Universal

Finalmente, é importante resgatar a origem, a evolução, o emprego e a eficácia da faxina


como instrumento militar secular.
Referências
BRASIL. Exército. Regulamento Interno e dos Serviços Gerais–R–1 (RISG) de 2003.
Separata de: Boletim do Exército, Brasília, n. 51, 19 dez. 2003. 123 p.
BROCKHAUS-HANDBUCH des Wissens (in vier Bänden). Leipzig: F. A. Brockhaus, 1923.
V. 2, p. 18.
CERQUEIRA, Dionisio. Reminiscências da Campanha do Paraguai, 1865-1870. Rio de
Janeiro: Biblioteca do Exército, 1980. p. 181.
A DEFEZA NACIONAL, Rio de Janeiro, ano 1, n. 2, 10 nov. 1913. p. 37.
HÖSEL, Gottfriede. Unser Abfall aller Zeiten. München : JehleVerlag, 1990. p. 48.
HOUAISS, Antonio; VILAR, Mauro de Salles. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001.
LELLO Universal em 4 volumes: Novo Diccionario Encyclopédico Luso-Brasileiro.
Organizado e publicado pela Livraria Lello sob a direcção de João Grave e Coelho Netto.
Porto: Lello & Irmãos, [193-].
LOPES, Candido. Vista do interior de Curuzú. 1891. 1 original de arte, óleo sobre tela, 48,5 x
15,2 cm. Coleção do Museu Nacional de Belas Artes, Buenos Aires, Argentina.
VALENTE, Antonio Lopes dos Santos (org.). Diccionario Contemporaneo da Lingua
Portugueza. Lisboa: Imprensa Nacional, 1881.
DIÁRIO PESSOAL DO ALMIRANTE VISCONDE DE INHAÚMA DURANTE A
GUERRA DA TRÍPLICE ALIANÇA: ASPECTOS DE OPERAÇÕES BÉLICAS POR
OCASIÃO DOS 150 ANOS DA ORDEM DO DIA NÚMERO 1, DE 22 DE DEZEMBRO
DE 1866

Fábio Neves Luiz Laurentino183


Mestrando Interuniversitário em História Militar
Universidade de Lisboa

Introdução.

Em dezembro de 2016, completam-se 150 anos da chegada do então Chefe-de-


Esquadra Joaquim José Ignácio de Barros, o futuro Barão e Visconde com Grandeza de
Inhaúma, ao teatro de operações da Guerra da Tríplice Aliança contra o Governo do Paraguai,
como Comandante da Força Naval em Operações no Rio da Prata (primeiro de forma interina,
sendo efetivado semanas depois) cargo máximo concedido pela Marinha Imperial brasileira ao
comando operacional de sua Esquadra durante o conflito. Esteve à frente das operações da
Esquadra brasileira de dezembro de 1866 até janeiro de 1869, onde voltaria ao Rio de Janeiro
por motivos de saúde, bastante debilitado, vindo a falecer dois meses depois, em 8 de março
de 1869.
Joaquim José Ignácio de Barros foi designado ao referido posto em 3 de dezembro
de 1866, pelo Marquês de Caxias, que assumira a condição de comandante-em-chefe de todas
as forças brasileiras em operações contra o Governo do Paraguai, sendo a Força Naval
brasileira subordinada diretamente à Caxias, um comando independente, e não ao
Comandante Geral dos Exércitos Aliados, cargo exercido pelo Presidente da República
Argentina, General Bartolomeu Mitre, mantendo-se o que era previsto no Tratado da Tríplice
Aliança. Sua Ordem do Dia número 1, de 22 de dezembro de 1866, escrita a bordo do vapor
Isabel, em frente ao forte de Curuzu, marca o período inicial do seu comando e clara
proximidade ao novo comandante das forças militares brasileiras, como se lê em seu diário:
“viva o querido da vitória, o primeiro dos brasileiros entre nós, o nobre General Marquês de
Caxias!”.184

183
Mestrando em História Militar pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (ULisboa). Atua como
Pesquisador em História no segmento editorial. Em 2016, publicou, junto à Marinha do Brasil, os livros: “50
anos da Base Aérea Naval de São Pedro da Aldeia (1966-2016)” (ISBN 978-85-7047-112-3) e “ iagem de
Instrução de Guardas-Marinha – 30 anos de História – Navio-Escola Brasil” (ISBN 978-85-7047-115-4). Tem
artigos publicados relacionados à História Militar brasileira em diversas instituições e congressos no Brasil,
Argentina, Paraguai e Bulgária. E-mail: fabio891@gmail.com
184
FROTA, Guilherme de Andrea. Notas para servir a uma biografia do Visconde de Inhaúma. In: INHAÚMA,
Visconde de. Diário pessoal do Almirante Visconde de Inhaúma durante a Guerra da Tríplice Aliança. Rio de
Janeiro: Guilherme de Andrea Frota, 2008.
Figura 1: óleo sobre tela do pintor argentino Cândido López “desembarque do Exército argentino em frente às
trincheiras de Curuzu, em 12 de setembro de 1866”. À esquerda, nota-se navios de guerra com bandeira
brasileira. Acervo do Museu Nacional de Belas Artes da Argentina.

É válido observar que o início da Guerra da Tríplice Aliança contra o Governo do


Paraguai se caracterizou pela falta de unidade no comando por parte dos Aliados, até mesmo
nos exércitos, onde esta posição cabia formalmente ao General Bartolomeu Mitre. As Forças
Navais brasileiras não estavam diretamente subordinadas ao General Mitre. Intencionalmente
era previsto no Tratado da Tríplice Aliança que não haveria essa subordinação. O comando
das Forças Navais brasileiras, que representavam boa parte do Poder Naval dos países
Aliados, era exercido pelo Almirante Visconde de Tamandaré, que também não estava
subordinado ao comando das Forças Terrestres brasileiras. Assim, as operações bélicas que
participavam as forças navais e terrestres eram caracterizadas como conjuntas, sem unidade de
comando.
O motivo pela qual propositalmente foram elaboradas separações na cadeia de
comando assinadas no Tratado da Tríplice Aliança foram os recentes embates na região do
Rio da Prata, como é sabido, brasileiros e argentinos se viam com desconfiança, inimigos
recentes que buscavam a supremacia de seu Poder Naval nos conflitos anteriores da ‘Questão
Platina’, durante grande parte da primeira metade do século XIX. Em seu livro,
“Reminiscências da Guerra do Paraguai” 185, o oficial da Marinha Imperial brasileira, Artur
Silveira da Mota, o futuro Barão de Jaceguai, (que durante o conflito exerceu a função de
Ajudante de Ordens do Almirante Tamandaré) era bastante claro neste aspecto. E, Richard
Burton, em seu livro “Cartas dos Campos de Batalha do Paraguai”, escreve que a aliança
entre brasileiros e argentinos era uma “amizade de cão e gato”.186
Joaquim José Ignácio de Barros assume o comando interino da Esquadra Imperial
brasileira após o revés em Curupaiti. A estratégia selecionada para esta batalha envolvia

185
MOTA, Artur Silveira da. Reminiscências da Guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação
da Marinha, 1982.
186
BURTON, Richard Francis. Cartas dos campos de batalha do Paraguai. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 1997.
atacar os fortes de Curuzu e Curupaiti, situados à margem direita do Rio Paraguai, tendo como
objetivo principal ameaçar a fortaleza de Humaitá. Tendo o ataque iniciado de surpresa,
Curuzu foi conquistada pelas tropas do General Manuel Marques de Sousa, então Barão de
Porto Alegre, a 3 de setembro de 1866. Mas, Curupaiti resistiu ao assalto de soldados
brasileiros e argentinos, tendo morrido cerca de 5 mil dos soldados aliados. Apesar de ter
apoio de fogo da Esquadra Imperial brasileira sob o comando do Almirante Tamandaré, não
se evitou a derrota.

Figura 2: óleo sobre tela do pintor argentino Cândido López “Ataque da Esquadra brasileira as baterias de
Curupaiti, em 22 de setembro de 1866”. Neste momento, a Força Naval brasileira ainda estava sob comando do
Almirante Tamandaré. Acervo do Museu Nacional de Belas Artes da Argentina.

Os desentendimentos entre os comandantes aliados demonstraram que as ações


estratégicas não estavam conduzindo as forças à vitória. Buscou-se uma mudança nas
lideranças, e o Marquês de Caxias surge como personagem natural para assumir a condução
das forças brasileiras.
Neste artigo, convenciono delimitar a campanha naval brasileira na Guerra da
Tríplice Aliança em dois momentos: o primeiro momento, do início do conflito até dezembro
de 1866, sob o comando do Almirante Joaquim Marques de Lisboa, o Marquês de Tamandaré,
caracterizada por ações conjuntas com Exército Imperial no Rio Paraná e Rio Paraguai,
obtendo derrotas como o assalto a Curupaiti e, vitórias como a Batalha Naval do Riachuelo
(que destruiu boa parte do Poder Naval paraguaio e mudou o rumo da guerra a favor dos
aliados, cessando os primeiros avanços das tropas paraguaias) e o desembarque do Passo da
Pátria (exigindo um grande esforço logístico, transportando mais de 40 mil soldados aliados e
seus equipamentos para pisar em solo paraguaio). E o segundo momento, a partir de dezembro
de 1866, até janeiro de 1869, comandados pelo Almirante Joaquim José Ignácio de Barros, o
Visconde de Inhaúma, notável pelas ações combinadas com o Marquês de Caxias e o General
Osório no Rio Paraguai, até a chegada a capital paraguaia, Assunção.
Na historiografia brasileira sobre o conflito, de um modo geral, são desiguais as
proporções de fontes como os diários pessoais e reminiscências sobre a Guerra da Tríplice
Aliança entre as forças terrestres e as forças navais. É limitada a quantidade de relatos que se
refere à Marinha Imperial brasileira e as operações navais em relação as operações militares,
que julgo de importante valia para o trabalho do investigador histórico, dada a topografia do
teatro de operações, que em sua fase decisiva, foi travada no eixo do Rio Paraguai. Para as
forças terrestres encontramos relatos do Duque de Caxias, Marechal Osório, Visconde de
Taunay, Dionísio Cerqueira, André Rebouças, Benjamin Constant e tantos outros, enquanto
que sobre as forças navais limitam-se a escritos de características como o livro do Visconde
de Ouro Preto “A Marinha de Outrora”187 (que descreve o trabalho de organização e
aparelhamento da força, mas não as operações navais na guerra) e relatos como o de Teotônio
Meireles188 e de Artur Silveira da Mota189.
Quanto às operações navais, em uma breve análise sobre a quantidade de relatos e
estudos contidos na revista “Su sídios para a História Marítima do Brasil” (publicada pela
Marinha do Brasil de 1938 a 1963, sendo sucedida pela revista “Na igator”), Armando de
Senna Bittencourt afirma190 que, há uma maior atenção dada ao período em que o Visconde de
Tamandaré exerceu o Comando da Força Naval em Operações no Rio da Prata em relação ao
período exercido pelo Visconde de Inhaúma. Segundo ele, um fato curioso, porque
exatamente nessa segunda fase de comando da guerra é que ocorreram as operações
combinadas mais relevantes, tendo a participação do Exército Imperial brasileiro, progredindo
em meio ao Rio Paraguai, transportando tropas e ultrapassando fortificações, em direção a
capital do inimigo.
Deste modo, o objetivo deste trabalho é difundir o diário pessoal do Almirante
Visconde de Inhaúma durante a guerra como fonte histórica, acrescentando mais uma
perspectiva, a perspectiva das ações navais, a fase que efetivamente definiu o conflito, que vai
das operações de Curupaiti e Humaitá e a Campanha da Dezembrada em 1868, mostrando o
entendimento de Inhaúma com Caxias e Osório, e as operações combinadas com o Exército
Imperial brasileiro.

Joaquim José Ignácio de Barros, o Visconde de Inhaúma.


Nascido em Lisboa, Portugal, em 30 de julho de 1808, foi batizado na igreja de
Nossa Senhora dos Anjos, também na cidade de Lisboa. Filho de Maria Izabel de Barros e do
Segundo-Tenente da Marinha Real portuguesa José Victorino de Barros. No contexto da
Guerra Peninsular, inserida nas Campanhas Napoleônicas, é posto em prática o plano da

187
OURO PRETO, Visconde de. A Marinha de Outrora (subsídios para a história). 3ª edição. Rio de Janeiro:
SDM, 1981.
188
MEIRELES, Teotônio da Silva. A Marinha de Guerra brasileira em Paissandu e durante a campanha do
Paraguai. Rio de Janeiro, 1876.
189
MOTA, Artur Silveira da. De Aspirante a Almirante. Rio de Janeiro: SDM, 1984.
190
Narrativas, biografias e fontes da Guerra da Tríplice Aliança: subsídios para a História Marítima do Brasil.
DPHDM. Rio de Janeiro: SDM, 2 volumes, 2016.
transmigração do Estado português para o Brasil ao final do ano de 1807, após Portugal ser
invadido por tropas francesas e espanholas. É neste momento, dois anos mais tarde, em 1810,
que a família de Joaquim José Ignácio de Barros chega ao Rio de Janeiro, tendo o seu pai
embarcado na fragata D. Carlota.
Instalada a família no Rio de Janeiro, teve Joaquim José Ignácio seus primeiros
estudos de português no Seminário de São José, latim com o Padre Felizardo Forte e filosofia
com o Cônego Januário da Cunha Barbosa, um dos fundadores do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro aonde, anos mais tarde, viria Joaquim José Ignácio virar membro. Seu
estudo secundário se deu no Seminário São Joaquim, construindo sólida cultura e
conhecimentos humanísticos. Segundo o diário 191, seu pai faleceu no Rio de Janeiro em 1823
e sua mãe, após 1854.
Em 1822, assentou praça de aspirante a Guarda-Marinha na Academia Real de
Marinha, estabelecimento educacional formador de oficiais do Corpo da Armada. Foi
promovido a Guarda-Marinha por Aviso de 5 de dezembro de 1823. No ano seguinte,
embarcou na nau Pedro I, sob o comando do Primeiro Almirante Lord Thomas Cochrane.
Esteve em Pernambuco, participando da Guerra de Independência do Brasil. Aos 17 anos, em
1825, foi promovido ao posto de Segundo-Tenente.
Durante o ano de 1826, esteve na fragata Imperatriz, nas corvetas Jurujuba e
Duquesa de Goyas e no brigue União, em comissões de defesa da Colônia do Sacramento. Por
suas ações contra as forças argentinas do Almirante Brown no Rio da Prata, é promovido ao
posto de Primeiro-Tenente e feito Cavaleiro da Ordem de Cristo em 1829, quando regressa ao
Rio de Janeiro. Até os anos de 1831, passou pela fragata Paraguaçu e brigue Caboclo. Em
março de 1831, casa-se com Maria José de Mariz Sarmento, filha do Capitão de Fragata Pedro
Mariz de Sousa Sarmento, português, e sua esposa Ana Luiza, e foi batizada na freguesia de
São Tiago de Inhaúma, no Rio de Janeiro. Ainda em 1831, em 22 de dezembro, nascia à
primeira filha Anna Elisa. No ano seguinte, nasceu Joaquim José Ignácio Júnior.
Nos meses finais do ano de 1831, no comando da escuna Jacuípe, participa do
confronto contra soldados revoltosos aquartelados na Ilha das Cobras, liderados pelo Capitão
José Custódio e pelo Alferes Camilo José Ribeiro, instigados pelo Dr. Cypriano José Barata
de Almeida, que se encontrava preso na ilha. As forças governamentais responderam com um
grupo de soldados do Exército e da Guarda Nacional, liderados pelo Coronel João Paulo dos
Santos Barreto, tendo como subcomandante o Major Luis Alves de Lima e Silva, o futuro
Duque de Caxias. A repressão naval do governo nesta pequena sedição contou ainda com

191
FROTA, Guilherme de Andrea. Notas para servir a uma biografia do Visconde de Inhaúma. In: INHAÚMA,
Visconde de. Diário pessoal do Almirante Visconde de Inhaúma durante a Guerra da Tríplice Aliança. Rio de
Janeiro: Guilherme de Andrea Frota, 2008.
emprego de artilharia sob o comando do Chefe de Divisão John Taylor. Em 7 de março 1835,
nascia seu filho Antônio Carlos de Mariz e Barros (futuro Primeiro-Tenente da Marinha
Imperial brasileira, morto em 28 de março de 1866, após a batalha do Passo da Pátria, durante
a Guerra da Tríplice Aliança).
Nos anos de 1837, comanda a barca Urânia e o brigue Constança. Conduziu o líder
da Revolução Farroupilha Bento Gonçalves para Salvador, Bahia, para cumprir sua pena no
Forte de São Marcelo. Joaquim José Ignácio foi promovido a Capitão-Tenente em 7 de
setembro de 1837. Durante o movimento da Sabinada, ainda em Salvador, participou do
bloqueio à cidade com seu brigue Constança.
Em 1840, foi designado como Inspetor dos Arsenais de Marinha da Província do Rio
Grande do Sul, ainda sob o conflito da Revolução Farroupilha. Promovido a Capitão de
Fragata em 15 de março de 1844, recebeu a comenda da Ordem de São Bento de Avis no dia
27 de março. No ano seguinte, se tornou comandante da fragata Constituição, navio em que
conduziu o Imperador Pedro II em viagem ao sul do Brasil, sendo esta viagem de caráter
amistoso, consolidando a paz obtida pelo Conde de Caxias. Em outubro de 1845, é
condecorado com a Imperial Ordem da Rosa pelo próprio Pedro II.

Viaja para a Inglaterra em agosto de 1846, para reparos na fragata Constituição, no


porto de Plymouth. Em Londres, encontra-se com o Ministro brasileiro José Marques Lisboa
(irmão de Joaquim Marques Lisboa, futuro Visconde de Tamandaré) e com o Almirante Lord
Thomas Cochrane, Marquês do Maranhão. Retorna ao Brasil em maio de 1847, sendo
encarregado, pelo Aviso de 21 de junho, de integrar uma comissão de revisão do regimento
provisório da Armada e organizar um projeto de promoções para o Corpo da Armada.
Promovido ao posto de Capitão de Mar e Guerra em 1849, assumiu o comando da fragata
Paraguassu.
Acumulando as funções de Inspetor do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro com o
de Capitão do Porto no ano de 1850, foi construída na sua gestão a corveta Imperial
Marinheiro, brigue Maranhão, brigue-escuna Toneleiro e o Vapor Ypiranga, sendo reformada
também a corveta Bahiana, lançada ao mar em 1851. Em 3 de março de 1852, é promovido
ao posto de Chefe de Divisão, aos 44 anos de idade. Segundo Guilherme de Andrea Frota192,
Joaquim José Ignácio não participou das ações militares contra os governos de Manoel Oribe
e Juan Manuel Ortiz Rosas. Neste período, encontrava-se em funções de direção e

192
FROTA, Guilherme de Andrea. Notas para servir a uma biografia do Visconde de Inhaúma. In: INHAÚMA,
Visconde de. Diário pessoal do Almirante Visconde de Inhaúma durante a Guerra da Tríplice Aliança. Rio de
Janeiro: Guilherme de Andrea Frota, 2008.
melhoramento do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, tendo, inclusive, prestado auxílio ao
navio português D. Maria II, que pertencia à Companhia Luso Brasileira. Por estes serviços,
foi lhe concedido à comenda de Cavaleiro da Ordem da Torre e Espada.
Assumindo trabalhos administrativos e comissões de melhoramentos e
aperfeiçoamento da Marinha Imperial brasileira entre os anos de 1855 e 1856, é promovido ao
posto de Chefe de Esquadra. Foi lhe concedido o título de Fidalgo Cavaleiro da Casa Imperial,
título honorífico, que o colocara em destaque entre os oficiais militares de patente menor e
uma futura titulação nobiliárquica. Em 28 de dezembro de 1857, é promovido a Comendador
da Ordem de Cristo. Pelo decreto de 24 de julho de 1858, foi eleito membro do Conselho
Naval. Em 14 de março de 1860, foi promovido a Comendador da Ordem de São Bento de
Avis. Assumiu as funções de Ajudante de Ordens do Ministro da Marinha, sendo também
Encarregado do Quartel Geral de Marinha. Em 3 de outubro de 1860, recebeu do Imperador
Napoleão III a Comenda da Legião de Honra, sendo o documento original encontrado
atualmente no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro.
Em 2 de março de 1861, convidado pelo Marquês de Caxias, novo Chefe do
Conselho de Ministros, assumiu o Ministério da Marinha (sendo pela primeira um oficial do
Corpo da Armada a exercer a função) e, organizou e exerceu até abril do mesmo ano o cargo
de Ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Pelo governo português, foi
concedida a Comenda da Real Ordem Militar Portuguesa da Torre e Espada do Valor,
Lealdade e Mérito, em 1862.
No decorrer do ano de 1865, no período em que já envolvia a Guerra da Tríplice
Aliança, foi enviado para o norte do país, embarcado no vapor Isabel, para ser encarregado do
alistamento de praças para a Marinha Imperial. Há, neste referido diário, durante os anos de
1865 e início de 1866, fragmentos de cartas de Joaquim José Ignácio para seu filho, Tenente
Antônio Carlos de Mariz e Barros, assinando sempre ao final das cartas como “seu pai e
amigo”. Servia o Tenente Mariz e Barros no teatro da guerra sob as ordens do Vice Almirante
Joaquim Marques de Lisboa, o Barão de Tamandaré. São comoventes suas palavras
orgulhosas sobre heroicidade, abnegação, carinho e sobre caráter militar para com o filho. No
dia 27 de março de 1866, Antonio Carlos de Mariz e Barros, no comando do encouraçado
Tamandaré, é atingido por fogo inimigo enquanto atacava o forte paraguaio de Itapiru.
Levado ao Hospital de Sangue faleceu logo após amputação de uma perna fraturada.
Meses após destes últimos acontecimentos é iniciada a escrita do seu diário de
campanha, com sua partida para o teatro de operações, vem a relatar o cotidiano da Esquadra,
descrevendo desde condições do tempo e de acontecimentos a bordo de vários navios, até
relações estabelecidas com militares do Exército, apoio logístico e contato com o inimigo.
Figura 3: Visconde de Inhaúma, por Sebastien Auguste Sisson. Acervo Biblioteca Nacional do Brasil.

As primeiras ações: Curupaiti e Humaitá.


Promovido ao posto de Vice Almirante por decreto de 5 de fevereiro de 1867, feito
Grã Cruz da Ordem de São Bento de Avis e confirmado no comando efetivo da Esquadra em
21 de fevereiro, inicia os preparativos para atacar a fortificação de Curupaiti. Humaitá,
importante fortaleza que protegia a cidade de Assunção, ganha status de principal defesa do
país após 1855, devido entre outras questões, ao conflito diplomático com o Império do
Brasil. 193 Dentre as correspondências trocadas com o Marquês de Caxias nota-se uma grande
preocupação de não empreender seguidamente um ataque à fortaleza de Humitá, preferindo
ganhar posição entre as fortalezas e ter ao seu favor o abrigo de seus canhões contra as
baterias de Humaitá. Em carta endereçada ao Vice Almirante Joaquim José Ignácio com data
de 12 de agosto de 1867, o Marquês de Caxias autoriza o ataque ao forte de Curupaiti e
concorda com as observações feitas pelo Vice Almirante: “toda cautela é pouca para não
sofrermos algum revés”.194
Em 15 de agosto de 1867, deu ordem o Vice Almirante para iniciar a passagem sobre
o forte de Curupaiti. Presenciou todo o acontecimento a bordo do encouraçado Brasil, seu
navio capitânia. Ao final da manhã, como consta em seu diário, apenas o encouraçado Lima

193
NAKAYAMA, Eduardo. & NAKAYAMA, Mateo. Ponencia correspondiente a Paraguay: El perímetro
fortificado de Humaitá. Reconstrucíon virtual. 5º Encuentro Internacional de história sobre las operaciones
bélicas durante La Guerra de La Triple Alianza. Montevideo, octubre de 2013.
194
FROTA, Guilherme de Andrea. Notas para servir a uma biografia do Visconde de Inhaúma. In: INHAÚMA,
Visconde de. Diário pessoal do Almirante Visconde de Inhaúma durante a Guerra da Tríplice Aliança. Rio de
Janeiro: Guilherme de Andrea Frota, 2008. Pg 30.
Barros se encontrava com maior avaria, o Capitão de Fragata Elisiário Barbosa tinha sido
gravemente ferido, mas, a passagem teria sido realizada com sucesso. Como reconhecimento
do Governo Imperial, através do Decreto de 27 de setembro de 1867, o Vice Almirante
Joaquim José Ignácio é feito Barão de Inhaúma, região do Rio de Janeiro frequentada por ele
e sua família. A partir da passagem de Curupaiti, Inhaúma mantém a fortaleza de Humaitá sob
constante bombardeio. Suprimentos eram recebidos de Porto Elisiário, a partir de um caminho
de ferro construído para dar apoio a Esquadra.
O constante bombardeio efetuado pelos navios da Esquadra conseguiu também
afundar quatro pequenas embarcações paraguaias que sustentavam as correntes que
bloqueavam de uma margem a outra a navegação dos navios brasileiros, como obstáculo em
frente à fortaleza de Humaitá.
Entre as intensas conversações sobre a preparação ou não dos navios brasileiros para
atacar Humaitá pelos comandantes aliados (Caxias, Inhaúma e Bartolomeu Mitre), em 14 de
janeiro de 1868, com a morte do Vice Presidente argentino Marcos Paz, Bartolomeu Mitre
regressa à Buenos Aires para reassumir a Presidência da República, passando o Comando em
Chefe das Forças Aliadas para o Marquês de Caxias. Com a chegada de três monitores
brasileiros (construídos no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro) ao final de 1867 à Porto
Eliziario, juntando-se a Força Naval brasileira, Inhaúma enxerga uma maior possibilidade de
sucesso para atacar Humaitá.
A primeira passagem de Humaitá aconteceu na madrugada de 19 de fevereiro de
1868 (a segunda passagem aconteceria no dia 21 de julho, no qual o monitor Piauí, e o
encouraçado Silvado e Cabral forçaram novamente a fortaleza). A Divisão comandada pelo
Capitão de Mar e Guerra Delfim Carlos de Carvalho, genro do Barão de Inhaúma, depois
Almirante e Barão da Passagem, continha os navios encouraçados Tamandaré, Barroso,
Bahia e os monitores Rio Grande, Pará e Alagoas. Artur Silveira da Mota, Joaquim Antonio
Cordovil Maurity, Antônio Joaquim, Joaquim Marques Baptista de Leão, Custódio de Mello e
tantos outros oficiais destacaram-se por bravura e coragem no comando de seus navios.
Inhaúma em seu diário enaltece constantemente os “feitos sublimes”195 praticados pelo
Tenente Maurity, comandante do Alagoas. Em relatórios e Ordens do Dia escritas após o
combate, o Almirante Joaquim José Ignácio congratula todos os chefes, oficiais e praças
participantes do ataque. Em destaque na Ordem do Dia número 120, agradece pela proteção
dada aos seus comandados e comemora o feito vitorioso: “tendo a fortuna de ser cristão, não
posso deixar de atribuir a mais decidida proteção de Deus o tão alto favor desta grande vitória,
que bem pouco sangue precioso dos nossos bravos nos custa!”.

195
INHAÚMA, Visconde de. Diário pessoal do Almirante Visconde de Inhaúma durante a Guerra da Tríplice
Aliança. Rio de Janeiro: Guilherme de Andrea Frota, 2008. Pg 170.
Ao final da manhã, os navios chegaram a Taji, depois de passar pelo forte paraguaio
do Timbó. Sofreram graves avarias os navios Tamandaré, Pará e Alagoas. Forças do Exército
Imperial comandadas pelo próprio Comandante em Chefe, o Marquês de Caxias, após um
intenso combate de treze horas tomaram a localidade chamada Estabelecimento, posto
avançado da Fortaleza de Humaitá. Foram aprisionados mais de mil soldados paraguaios e
apreendidas quinze peças de artilharia. O episódio de Humaitá é de crucial importância na
Guerra da Tríplice Aliança a favor dos aliados. Uma medalha foi cunhada em homenagem a
batalha, promoções e aumento de soldo fizeram parte das gratificações do Governo Imperial
pelo importante feito naval.
Após a passagem, tropas paraguaias recuam para o Rio Tebiquari. Em seguida,
concentram-se as defesas em Piquisiri, próximo a capital Assunção. A nova linha de defesa
paraguaia possuía cerca de 100 canhões e tinha como apoio a fortificação de Angostura. A
partir de então, as operações combinadas entre a Marinha e o Exército Imperial brasileiro são
de grande importância para a conclusão do conflito.

Figura 4: ilustração comemorativa aos “heróis da campanha do sul”. Oficiais da Marinha Imperial brasileira,
participantes dos combates de Curupaiti e Humaitá, com esboços das batalhas no canto superior do desenho. Ao
centro, a figura do Visconde de Inhaúma. Em seguida, Delfim Carlos de Carvalho, Artur Silveira da Mota,
Joaquim Maurity, Marques de Leão, Antônio Joaquim, João Fontes e Antônio Francisco Velho Junior. Acervo da
Biblioteca Nacional do Brasil, publicada originalmente na Revista Semana Ilustrada.
A Campanha da Dezembrada e a participação naval brasileira, a partir do Diário do
Visconde de Inhaúma.
Por reconhecimento aos serviços prestados ao Império do Brasil, o Imperador Pedro
II eleva o título de nobreza de Joaquim José Ignácio à Visconde com Grandeza, pelo Decreto
de 3 de março de 1868. É aprovado seu nome para compor o quadro de sócios do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, em maio do mesmo ano. Apesar das recentes vitórias,
mantém-se concentrado em continuar com a missão de apoio ao Exército Imperial brasileiro
para chegar a capital do Paraguai. Segue com o bombardeio e ataque a fortificação de
Angostura. Tendo a 2º Divisão da Esquadra atacado as posições de Pisiquiri e Vileta, optou o
Marquês de Caxias por uma operação combinada que envolveria enviar os soldados do
Exército Imperial pela margem direita do Rio Paraguai, pelo Chaco, terreno pantanoso e
sujeito a alagamentos. Foi construída uma estrada de 11 quilômetros de extensão, para
avançar com os soldados de maneira surpreendente.
O objetivo era encontrar os soldados com a Força Naval para serem transportados
para a margem esquerda. No início de dezembro, os navios designados para transportar as
tropas para a margem esquerda, na retaguarda dos paraguaios, iniciaram a missão. O
desembarque foi feito em San Antonio, acima de Vileta. Segundo Visconde de Ouro Preto196,
este local foi cuidadosamente escolhido por Caxias e Inhaúma em reunião a bordo do
encouraçado Brasil. Durante a madrugada de 5 de dezembro, os primeiros 8 mil homens
comandados pelo General Argolo foram transportados nos encouraçados.
Com o final dos cinco dias de operações combinadas, haviam desembarcado 17 mil
soldados comandados pelo Marechal Osório e o Marquês de Caxias. Continuou em seguida o
trabalho da Esquadra brasileira de transporte dos “pesados abastecimentos”. 197A partir desta
ação, possibilitou o inicio da Campanha da Dezembrada para as forças aliadas, sendo os
combates de Itororó, Avaí, Lomas Valentinas e a Rendição de Angostura a derrocada do
Exército paraguaio.
Dias depois do desembarque do Exército, o Marquês de Caxias comanda a vitória
em Itororó. Descreve o Vice Almirante Joaquim os acontecimentos em Itororó e o combate da
capela Ypané mesmo sob um ângulo distante, porém, com muita coerência. Como consta nas
anotações em seu diário no dia 6 para 7 de dezembro198: “apareceu o Sr. Marquês de Caxias,
de espada desembainhada, animando os soldados” . Ao final da batalha, conta Dionísio
Cerqueira que as bandas de música tocaram o hino nacional seguido dos toques de alvorada
alegre, pelos corneteiros que permaneceram vivos. Em seguida, Joaquim José Ignácio

196
OURO PRETO, Visconde de. A Marinha de Outrora (subsídios para a história). 3ª edição. Rio de Janeiro:
SDM, 1981. Pg 395.
197
Ordem do Dia número 194, do Vice Almirante Joaquim José Ignácio, de 14 de dezembro de 1868.
198
INHAÚMA, Visconde de. Diário pessoal do Almirante Visconde de Inhaúma durante a Guerra da Tríplice
Aliança. Rio de Janeiro: Guilherme de Andrea Frota, 2008. Pg 261.
comenta sobre fazer fogo a partir do encouraçado Brasil, sem atingir as posições destinadas
devido à distância. Termina as anotações do dia relatando visita feita aos generais brasileiros
feridos durante a batalha, que se recuperavam a bordo dos navios da Marinha.
Nos preparativos para o ataque subsequente, a batalha do Avaí, em reunião com o
Vice Almirante Joaquim, o Marquês de Caxias anuncia que vai marchar sobre Vileta e
Angostura. Consta em seu diário199 que Caxias pede auxilio da Esquadra para fazer forte
bombardeio em Angostura. Enquanto era feito o ataque por terra, a Marinha lançava fogo
através dos encouraçados Bahia, Lima Barros e Silvado.
Passaram as batalhas do Avaí e Lomas Valentinas com sucesso das cargas de
cavalaria e avanço da infantaria brasileira no decorrer do mês de dezembro de 1868. É notado
nos escritos do Vice Almirante grande cansaço pelos acontecimentos da guerra. Sob ordens do
Vice Almirante Joaquim, é constante o trabalho do Barão da Passagem em transportar
batalhões e víveres para o Exército do Chaco para Vileta. São inúmeras as passagens no diário
do Vice Almirante Joaquim para que a Esquadra auxilie a logística da campanha com os
encouraçados e os monitores. Do dia 21 para o dia 22 de dezembro, consta no diário 200 um
pedido do Marechal Osório para que pudessem ceder alguns marinheiros para reforçar a
guarnição de Vileta. Com uma curta frase, “ao que não anuí”, escreve como resposta o Vice
Almirante Joaquim sobre o fato. Não se tem mais detalhes sobre esse episódio.
Nos dias finais do ano de 1868, narra o Vice Almirante Joaquim a rendição de
Angostura. Relata que no dia 30 de dezembro recebe a visita de um parlamentar paraguaio,
oferecendo a rendição das forças paraguaias neste sítio. Combinada as condições, são presos
mil e duzentos soldados e oitocentos civis, entre mulheres e crianças. São os comandantes de
Angostura Lucas Carrillo (primo de Solano López) e o inglês George Thompson. São
conquistadas treze peças de artilharia de calibre 68 e mais seis de calibre menor. Termina seu
relato diário afirmando 201 que “a guerra do Paraguai esta moralmente terminada”.
No dia 3 de janeiro de 1869 fundeou toda a Esquadra brasileira no porto de
Assunção, ocupada desde o dia 1º pelo Brigadeiro Hermes da Fonseca, transportados nos
navios da 1ª Divisão sob o comando do Barão da Passagem. Em suas anotações sobre o mês
de janeiro, o Vice Almirante Joaquim faz observações sobre sua saúde debilitada e cansaço
devido os 2 anos de comando em meio a guerra. Pede exoneração do cargo “visto já não ter a
Esquadra fortificações a destruir, nem navios a combater”, em suas palavras. Por seus feitos
pela Marinha Imperial o Governo elevou o seu título nobiliárquico ao grau de Visconde com
Grandeza, também o promoveu ao posto de Almirante, condecorando-o com o título de Grã
Cruz da Imperial Ordem da Rosa. Deixando o Paraguai, chegou a Montevidéu, e em seguida,
199
INHAÚMA, Visconde de. Diário pessoal do Almirante Visconde de Inhaúma durante a Guerra da Tríplice
Aliança. Rio de Janeiro: Guilherme de Andrea Frota, 2008. Pg 263.
200
Idem. Pg 267.
201
Idem. Pg 272.
no dia 18 de fevereiro, desembarcou no Rio de Janeiro bastante enfermo. Faleceu poucos dias
depois, em 8 de março de 1869.

Figura 5: Planta do teatro de operações da Marinha Imperial brasileira na Guerra da Tríplice Aliança desde o
forte Curuzu (à direita), até a fortaleza de Humaitá (à esquerda). Indica a posição das forças brasileiras em junho
de 1868. Acervo da Biblioteca Nacional do Brasil.

Conclusão.
Para a Marinha Imperial brasileira sob o comando do Almirante Visconde de
Inhaúma as grandes operações teriam ficado para trás, a partir de janeiro de 1869. O Marquês
de Caxias passara o comando em chefe das forças brasileiras ao Príncipe Imperial Gastão de
Orleans, o Conde D’Eu. Caberia ainda a Marinha Imperial, agora sob o comando do Chefe de
Esquadra Eliziário Antonio dos Santos, uma última missão: perseguir pequenos grupos e
embarcações que auxiliaram a fuga de Solano López para a Cordilheira paraguaia.
Eliziario Antonio dos Santos e o Conde D’Eu realizam trabalhos combinados cujo
objetivo era destruir a pequena flotilha de seis vapores paraguaios que havia anteriormente se
refugiado no Rio Mandurivá durante a perseguição e chegada do Barão da Passagem à cidade
de Assunção. Sob comando do Capitão de Fragata Jaronymo Gonçalves, pertencente à 1º
Divisão da Esquadra, um grupo composto pelos monitores Santa Catarina, Piauí e Ceará
foram escolhidos para realização da missão. Nas proximidades de Caraguatay, os navios
paraguaios são encontrados encalhados. Após ultrapassar o forte de Garayo, retorna o grupo
brasileiro ao local de partida sem encontrar mais hostilidades.
Concluo, mostrando a participação em operações combinadas de forma ativa e eficaz
pela Marinha Imperial durante a Campanha da Cordilheira, fazendo a garantia de uma base de
operações avançada, fornecendo recursos para o Exército Imperial, privando os paraguaios de
uma possível vantagem garantida pelos rios do Alto Paraná até Jejuí, tornando o acesso
possível para as provisões de logísticas (de transporte de artilharia à feridos e civis
paraguaios). Como exemplo a essas ações, cito o trabalho do Capitão Tenente Eduardo
Wandenkolk, percorrendo o Rio Jejuí com os monitores Santa Catarina e Pará para
estabelecer comunicação com as tropas do General Câmara, que atuava ao norte do Rio
Manduvirá.
Segundo as palavras202 do Ministro da Marinha à época da guerra, o Barão de
Cotegipe, ao fim do conflito, “a Marinha Imperial brasileira ultrapassou com honra as
dificuldades que lhe foram impostas durante o conflito. Paisandú, Riachuelo, Mercedes,
Cuevas, Corrientes, Uruguayana, Passo da Pátria, Itapirú, Curuzu, Humaitá, Timbó,
Angostura e Monduvirá foram degraus gloriosos para sua marcha vitoriosa. Jovens oficiais
foram formados em combate, e os chefes os comandaram com a competência e segurança já
esperadas”. O Almirante Visconde de Inhaúma sem dúvida foi um dos principais personagens
que possibilitaram a difícil vitória, travada em território hostil, onde o Rio Paraguai era
fundamental para a logística das operações e continuidade do conflito. Tarefa grandiosa, que
carece de maior atenção e estudo, principalmente o papel desempenhado pela Marinha
Imperial no conflito. Neste contexto, um detalhe de fundamental importância para um
desfecho vitorioso do conflito, foi o entendimento e cooperação entre o Visconde de Inhaúma
e o Marquês de Caxias.

Bibliografia
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do Paraguai. In: RODRIGUES, Fernando. & PEDROSA, Fernando Velôzo Gomes (Orgs.).
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DORATIOTO, Francisco F. M. O conflito com o Paraguai: a grande guerra do Brasil. São
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202
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NAKAYAMA, Eduardo. & NAKAYAMA, Mateo. Ponencia correspondiente a Paraguay: El
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história sobre las operaciones bélicas durante La Guerra de La Triple Alianza. Montevideo,
octubre de 2013.
OS V JOGOS MUNDIAIS MILITARES NO BRASIL E A REINSERÇÃO DO
ESPORTE MILITAR NA POLÍTICA ESPORTIVA NACIONAL: O PROGRAMA
ATLETAS DE ALTO RENDIMENTO

Frederico Jorge Saad Guirra


Faculdade de Educação Física / UFMT

Lino Castellani Filho


Faculdade de Educação Física / UnB

Em 02 de outubro de 2009, o Brasil ficou extasiado, ao receber o anúncio de que


seria, em 2016, a próxima sede dos Jogos Olímpicos de Verão. À cerimônia na capital da
Dinamarca, além do Presidente Luís Inácio Lula da Silva estiveram presentes alguns
personagens que constituiriam, a partir de então, um importante grupo de coalizão para o
desenvolvimento do sonhado projeto olímpico brasileiro, como Jacques Rogge, presidente do
COI, Carlos Arthur Nuzman, presidente do COB, Mike Lee, o marqueteiro da campanha, Eike
Batista, o principal patrocinador, Orlando Silva, ministro do esporte, Sérgio Cabral e Eduardo
Paes, respectivamente, o governador do Estado e o prefeito da cidade do Rio de Janeiro.
(MASCARENHAS, 2012).
Tão logo se definiu o projeto para a realização do sonho olímpico brasileiro, vimos
aportar no Brasil uma série de megaeventos esportivos que se legitimam como caminho muito
bem articulado pelo governo brasileiro, num momento de reposicionamento do país no
cenário mundial, dando visibilidade a ele e provocando a abertura de uma janela 203 de
oportunidades político-econômicas e de sua inserção, de forma protagônica, nesse cenário,
utilizando como estratégia para atingir esse objetivo os megaeventos esportivos. Além disso,
tais oportunidades propiciam, cada vez mais, a legitimação do discurso das entidades
conservadoras do campo esportivo brasileiro, por meio do qual acreditam incluir o país entre
as principais potências do esporte internacional.
No que tange à vinda das principais competições esportivas do planeta ao Brasil,
uma delas mereceu nossa especial atenção, os V Jogos Mundiais Militares, os Jogos da Paz,
(GUIRRA; CASTELLANI FILHO, 2014), realizados no Brasil, em julho de 2011, na cidade
do Rio de Janeiro. Nossa atenção se intensificou quando se tornou perceptível que o Brasil
não tinha nenhuma tradição no esporte militar, fato comprovado tanto na legislação esportiva
brasileira, como pelas colocações conquistadas pelas delegações brasileiras nas quatro edições

203
Termo utilizado por André Singer em entrevista ao Instituto Humano Usininos em 29 de novembro de 2010.
Entrevista na íntegra no endereço eletrônico:
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3674&secao=352.
Acessado em 08/06/2013.
anteriores dos Jogos (35ª, 22ª, 15ª e 33ª). Portanto, para buscar o entendimento de como um
país, sem nenhum tipo de tradição no esporte fardado, de repente se tornou sede de uma
edição dos JMMs, fez-se premente olhá-lo pela lente dos principais atores interessados na
vinda desse megaevento ao Brasil: o Governo Federal, as Forças Armadas e o Comitê
Olímpico Brasileiro, buscando o entendimento do quais seriam os verdadeiros interesses ali
envolvidos.
Para o Governo Federal, principal financiador dos Jogos, a liberação de um
investimento na casa de R$ 1,5 bi, ínfimo, se comparado aos valores investidos com a Copa
do Mundo FIFA - 2014 e com os Jogos Olímpicos, em 2016, significou o cumprimento da
parte a ele destinada, no arranjo com as entidades de administração do esporte nacional pela
legitimação de suas ações dentro do campo esportivo. Para as Forças Armadas, significaram o
reconhecimento, pelo campo esportivo, do Esporte Militar, dando a ele visibilidade
internacional diante das grandes potências militares esportivas, conquistada, principalmente,
pelo resultado alcançado no quadro geral de medalhas, por meio de uma forjada “Tropa de
Elite” formada por atletas civis incorporados ao meio militar, como também pela sua
participação em importantes programas esportivos do Governo Federal, cujo principal intuito
vai muito além da retórica propalada pelos militares, tendo como principal objetivo dar
sustentação ao esporte de alto rendimento nacional.
Já para o Comitê Olímpico Brasileiro, entidade máxima de administração do
esporte olímpico nacional e maior representante da fração conservadora do campo esportivo
brasileiro, a realização dos JMMs no Brasil serviu principalmente para colocar o campo
militar como importante instância de sustentação dos interesses da comunidade olímpica
brasileira, por meio da destinação de suporte logístico, físico e de treinamento dos atletas
olímpicos via militarização. Diante de tais constatações, o presente artigo tem por principal
objetivo analisar a estratégia de militarização de atletas do alto rendimento nacional nas
Forças Armadas, por meio da criação do PAAR – Programa Atletas de Alto Rendimento -,
criado no ano de 2009 pelo Governo Federal, com vistas ao atendimento dos anseios da
comunidade olímpica nacional visando os Jogos Olímpicos no Rio em 2016.

A criação do PAAR: a elite do alto rendimento nacional nas Forças Armadas


O Brasil esteve presente em todas as edições dos Jogos Mundiais Militares.
Entretanto, as colocações conquistadas não foram satisfatórias, fato que preocupou a
Comissão Desportiva Militar Brasileira, o que ocasionou uma mudança no planejamento para
os Jogos no Brasil. Isso, na visão dessa Comissão, devia ser encarado com um olhar
diferenciado daquele adotado para a participação nas edições anteriores, pois se tratava de
elevar os padrões de desempenho das equipes militares que representariam o país.
Assim, para atender a essa expectativa de elevar os padrões de competitividade e de
desempenho esportivo, foi pensada uma estratégia para incorporar atletas de alto rendimento
do esporte brasileiro às Forças Armadas, por meio de edital público, sendo realizadas, desde
2009, seletivas para sua escolha, à procura dos melhores, para se tornarem militares
temporários, com contratos que variavam de quatro a oito anos. Nesse sentido, a partir da
escolha brasileira para sediar os Jogos, a CDE – Comissão de Desportos do Exército - órgão
responsável pela preparação das equipes, realizou um trabalho para que fosse autorizada a cria
de vagas para sargentos técnicos temporários e especialistas em Educação Física e Desporto
de Alto Rendimento. Foram lançados três editais de convocação para atender às diversas
modalidades desportivas. Obedecendo à ordem de publicação dos editais, os atletas
ingressaram em três etapas, sendo o primeiro edital lançado em 09 de novembro de 2009, o
segundo, em 1º de março de 2010 e o terceiro, em 1º de março de 2011204.
Esses atletas adquiriram as patentes pelo período de um ano, renováveis por mais sete,
com os salários variando de R$ 1,5 mil a R$ 2,8 mil mensais, sendo que na Marinha os atletas
foram incorporados como praças de 2ª classe da reserva (RM2), área de treinamento físico
militar; no Exército, como Sargento Técnico Temporário, no campo do desporto de alto
rendimento. No caso da Aeronáutica 205, todos os atletas são profissionais de carreira e também
foram atraídos, além do soldo, pela possibilidade das viagens, a infraestrutura esportiva, o
plano de saúde e os horários para treinamento, conforme afirmado pelo Vice-almirante
Gambôa, Presidente à época da CDMB206, “[...] eles foram incorporados para serem atletas,
somente atletas, portanto, com disponibilidade de tempo e estrutura para treinar”.
Bastaram apenas quatro anos para que a estratégia militar desse resultado, quando o
selecionado brasileiro, “engrossado” pelos novos “militares” advindos do alto rendimento,
levou ao lugar mais alto do pódio as Forças Armadas brasileiras, deixando para trás o 33º
lugar dos Jogos em Hyderabad e protagonizando um feito fantástico, qual seja, conseguir o 1º
lugar no quadro geral de medalhas. A conquista de 114 medalhas desbancou equipes com
tradição em Jogos Militares, como a China, a Itália, a França e a Alemanha, que possuem
militares de carreira na sua composição.
Motivo de orgulho para as Forças Armadas, a militarização de atletas do alto
rendimento nacional e os resultados obtidos foram justificados pela CDMB como fato comum
em outros países207, e que o modelo deveria ser seguido, pois esse procedimento era

204
Fonte dos dados Revista Verde-Oliva – Ano XXIX – Nº 213 – Especial de Dezembro de 2011.
205
A militarização de atletas de alto rendimento na Aeronáutica ao contrário do Exército e da Marinha, só tem
início em 2014. Dados retirados do sítio:
http://www.militar.com.br/modules.php?name=Noticias&new_topic=34. Acessado em 14/07/2012.
206
Texto na íntegra no endereço eletrônico: http://www.militar.com.br. Acessado em 15/07/2012.
207
As Forças Armadas brasileiras se apossaram desse discurso como forma de justificar a manobra de incluir
atletas do alto rendimento nacional à hoste militar. É fato que em países com grande tradição militar -
principalmente os do Leste europeu, essa tradição era comum durante a Guerra Fria, pois havia a existência de
completamente legal, lícito, e, portanto, não se estava desrespeitando nenhuma norma. Ainda
foi apontado o caso dos países do leste europeu que sempre se utilizaram desse artifício, e que
nem mesmo os Jogos Olímpicos possuíam mais essa restrição, permitindo que profissionais
participassem da competição e recebessem salários e patrocínios, pois os atletas precisavam
sobreviver e sustentar suas famílias e, nesse sentido, o esporte não poderia mais ser somente
amador, deveria ser remunerado pelo serviço prestado.
Para além dos JMMs no Brasil, o planejamento da militarização de atletas do alto
rendimento nacional rumo ao Rio – 2016, teria então como principais objetivos, o Pan de
Guadalajara, em 2011, no México, Londres-2012, o Pan do Canadá, em 2015, os Jogos
Mundiais Militares na Coreia, em outubro de 2015, e a edição brasileira dos Jogos Olímpicos
e Paralímpicos de Verão, em 2016, conforme detalharemos nas linhas a seguir.

O campo militar a serviço da comunidade olímpica nacional


Como parte do planejamento, ainda em 2011, acontece no México o Pan de
Guadalajara, sendo que 13% da delegação brasileira que totalizava 552 atletas (70 atletas),
foram militares incorporados e responsáveis por 40, das 141 das medalhas conquistadas pelo
Brasil, sendo 14 de ouro, 12 de prata e 16 de bronze. Desses atletas, 58 são do exército e 12 da
Marinha, e apenas 14 são de carreira militar. Naquele ano, foram incorporados às Forças
Armadas 320 atletas, 200 do Exército, e 120 da Marinha, sendo que a Aeronáutica, até esse
momento, não havia aderido à estratégia de incorporação de atletas da elite nacional aos seus
quadros.
Um ano após a realização dos JMMs no Brasil, a “tropa de elite” do esporte militar
nacional vê pela frente o seu primeiro maior desafio, os Jogos Olímpicos de Verão em
Londres – 2012 -, quando, dos 256 atletas que compuseram a delegação brasileira, 51 eram
incorporados às Forças Armadas, e participaram de 12 modalidades esportivas, entre elas,
atletismo, esgrima, tiro, natação, pentatlo, judô e taekwondo. Em Londres, o Brasil chegou ao
número de 17 medalhas, três de ouro, cinco de prata e nove de bronze, sendo que destas, 5
foram conquistadas por atletas incorporados à Marinha e ao Exército, com ouro no judô.
Nesse ponto, torna-se, perceptível, desde a criação do PAAR, em 2009, a existência de
um caminho muito bem articulado e planejado pelo Governo Federal, via Forças Armadas,
para que os atletas da elite nacional incorporados à hoste, recebessem apoio logístico,
condições de treinamento adequadas, visando o fortalecimento do esporte olímpico nacional e
o cumprimento das competições existentes em seu calendário. Desde então, o programa
denominado Atletas de Alto Rendimento ganhou alta visibilidade nos planos da agenda Rio-

dois caminhos para ascender economicamente: o Exército ou a fuga para o exterior. Esses atletas então viviam
nas vilas militares, cumprindo rotina militar, o que não acontece no caso brasileiro.
2016, o que levou o Governo Federal, via Ministério da Defesa, a destinar uma grande soma
em dinheiro para bancar os salários dos atletas, que variam de R$ 1.000 a R$ 3.000 mensais.
Logo após a realização dos Jogos de Londres – 2012 -, e como parte do acordo
estabelecido entre o Comitê Olímpico Brasileiro e as Forças Armadas, esses atletas,
prosseguiram dando sequência a sua agenda de treinamentos em seus clubes de origem,
momento em que se percebeu que a agenda civil se adaptou à militar. Na tentativa de justificar
a não permanência desses atletas em seus quartéis de origem, as Forças Armadas justificaram
essa sincronia como uma estratégia pensada para que eles não ficassem sem ritmo de
competição, pois seria necessário não perder o foco, visando sempre à conquista de bons
resultados.
Portanto, a alegação das Forças Armadas de que, ao militarizar atletas de alto
rendimento, estavam seguindo o modelo de países do Leste europeu cai por terra, pois, nesse
caso, os atletas cumpriam a rotina da caserna e realizavam seus treinamentos, sendo atletas
militares de carreira, o que não acontece no caso brasileiro, em que os atletas não cumprem
rotina nos quartéis, estando alheios às especificidades da caserna. O fato pode ser comprovado
na fala dos próprios militares, como do General-de-Brigada Décio dos Santos Lopes, quando
diz que esses atletas “[...] retornam aos seus quartéis de incorporação de tempos em tempos,
apenas para fazer uma reciclagem, participar de competições militares e, com isso, adquirem
uma melhora em seu condicionamento físico e de preparação, o que também é um fruto desse
trabalho”. 208
Nos anos 2013 e 2014, o PAAR continuou a passos largos o processo de incorporação
de atletas do alto rendimento nacional. O Exército Brasileiro, por meio da EsEFEX, no dia 19
de abril de 2013, data em que comemorou o dia do Exército, incorporou uma nova turma com
12 atletas de alto rendimento ao quadro das Forças Armadas, sendo sete Sargentos e cinco
Soldados, nas modalidades de judô, taekwondo, tiro esportivo, vôlei feminino, boxe, atletismo
e futebol, todos atletas de ponta e muito bem colocados no ranking nacional e internacional, e
que já concluíram o Estágio Básico. Fazem parte dessa turma nomes como o do atirador
esportivo Felipe Almeida Wu, Claudia Bueno da Silva, convocada para a Seleção Brasileira
de Vôlei e Esquiva Falcão Florentino, medalhista de prata em Londres, em 2012.
Já no ano de 2014, os atletas civis incorporados às Forças Armadas continuaram
revezando suas participações entre o calendário civil e o militar, mesmo a Comissão de
Desporto do Exército não tendo apresentado o calendário de competições, como feito no ano
de 2013, fato comprovado no mês de março, quando aconteceram em Santiago do Chile os X
Jogos Desportivos Sul-Americanos, competição em que a Marinha do Brasil foi representada

208
Entrevista com o General-de-Brigada Décio dos Santos Lopes para a revista Diálogo do Exército brasileiro.
http://dialogo-americas.com/pt/articles/rmisa/features/regional_news/2013/03/20/feature-ex-4014. Acessado em
20/05/2013.
por 34 atletas nas seguintes modalidades: atletismo, boxe, judô, levantamento de peso
olímpico, lutas associadas, natação, vela e taekwondo, conquistando 26 medalhas, sendo 11 de
ouro, 6 de prata e 9 de bronze. Vale ressaltar que, desde a incorporação dos atletas civis às
Forças Armadas, por meio da criação do Programa Atletas de Alto Rendimento, em 2009, ao
contrário do Exército e da Marinha, a Força Aérea Brasileira não havia ainda participado
dessa incorporação, fato que só acontece em janeiro de 2014, quando uma nota de rodapé no
site da Força Aérea Brasileira informa estarem abertas, “[...] desde terça-feira, as inscrições
para um processo seletivo que visa a ‘contratação’ de 136 atletas de alto rendimento para
comporem os quadros da Aeronáutica Brasileira”. O fato estranho e que nos chamou a atenção
foi que:
[...] até o início da tarde desta sexta-feira, nem o ministério do Esporte nem o Comitê
Olímpico Brasileiro (COB) haviam divulgado a existência do edital. A própria
assessoria do Ministério do Esporte confirma que Aldo Rebelo não tinha
conhecimento da abertura do edital. Aliás, ninguém parece saber do mesmo.209

Esse acontecimento demonstra que a estratégia usada pela FAB não fugiu ao padrão
dos parceiros do Exército e da Marinha, utilizando-se da abertura de um edital, sem muito
alarde, para a contratação de atletas do meio civil para ocupar vagas destinadas àqueles que
desejam seguir a carreira militar. Quando questionada, a Instituição alegou que “[...] 10 dias
são suficientes e que não há nada que impeça, legalmente, um edital ser lançado no dia de
abertura de inscrições para um concurso público”.
Um ano mais tarde, em 2015, apenas um ano antes dos Jogos no Rio-2016, o PAAR
atinge a marca de 708 atletas incorporados ao quadro das Forças Armadas, sendo 167 de
carreira e 541 temporários, sendo que desde o ano de 2009 o programa lançou oito editais,
ainda não sendo definidas quantas vagas serão oferecidas, nem em que modalidades 210. O
Diretor do Departamento de Desporto Militar – DDM -, Major-Brigadeiro Carlos Amaral
frisou que o Programa se tornou um grande atrativo para os atletas da elite nacional no
últimos anos, principalmente pelos benefícios que ele traz: “Esses atletas têm direito a soldos,
13º salário, locais para treinamento, recursos humanos qualificados nas comissões técnicas,
participação nas competições do Conselho Internacional do Esporte Militar (CISM), além de
plano de saúde, atendimento médico, odontológico, fisioterápico, alimentação e alojamento”.
Lembra ainda o Major que os atletas também são beneficiados pelas bolsas Pódio e
pelas categorias Olímpica, Internacional e Nacional do Ministério do Esporte211. Com base
nos números cedidos pelo Portal Brasil, em setembro de 2015, O Bolsa Pódio foi criado para

209
Matéria retirada do endereço eletrônico: http://blogs.estadao.com.br/olimpilulas/aeronautica-faz-procura-
secreta-por-136-atletas-de-alto-rendimento/. Acessado em 19/06/2014.
210
Disponível em: http://www.ebc.com.br/noticias/2015/08/atletas-do-exercito-recebem-medalha-por-
participacao-no-pan-de-toronto
211
http://www.brasil.gov.br/esporte/2015/06/brasil-tera-123-atletas-militares-no-pan-americano-do-canada-1
incentivar os atletas com chances de disputar medalhas nos Jogos Olímpicos Rio-2016.
Atualmente, existem mais de 220 atletas de modalidades individuais (olímpicas e
paralímpicas) patrocinados com bolsas que variam de R$ 5 mil a R$ 15 mil. Dos 555
competidores definidos para representar o Brasil nos Jogos Pan-Americanos e Parapan-
Americanos de Toronto, no Canadá, 397 eram bolsistas do governo federal, o que representa
71,5%212.
Assim, no mês de julho de 2015, aconteceu a XXVII edição dos Jogos Panamericanos,
em Toronto, no Canadá, momento em que os atletas militares conquistaram 48% do total de
medalhas da delegação nacional, que ficou com a terceira colocação, subindo 67 vezes ao
pódio, o que significa a conquista de quase metade das medalhas obtidas pela delegação
brasileira (141). Dos 590 atletas brasileiros que participaram do Pan, 123 estão ligados
diretamente à Marinha, ao Exército ou à Aeronáutica, dentro do Programa de Alto
Rendimento dos Ministérios da Defesa e do Esporte. Isso significa que dos militares
participantes da competição, 54% deles subiram ao pódio 213. Nessa competição um fato em
especial chamou a atenção, quando os atletas militarizados, ao subirem ao pódio, prestaram
continência, como forma de respeito e saudação, como Mayra Aguiar, sargento da Marinha e
medalha de prata no judô, que, ao ser entrevistada, contou que "[...] é um orgulho poder
prestar essa homenagem e lembrar quem está nos ajudando"214.
Diante de tudo isso, a dúvida que fica é: a atitude tem sido espontânea, ou houve um
pedido dos militares para que o gesto ganhasse repercussão nacional? Segundo o site
esportes.terra.com, o assunto gera polêmica,

[...] já que acontece em um momento conturbado da política nacional, com protestos


nas ruas em algumas cidades pedindo intervenção militar. Alguns podem levar para
o lado político da situação, e outros, como se fosse um agradecimento pelo apoio
financeiro recebido pelas Forças Armadas. Claramente, os atletas mostram que o
discurso não está afiado e divergem quando o tema é perguntado. “ Na verdade eles
pediram para fazer, mas é uma coisa que vem da gente. Ficamos na parte de
iniciação um mês lá dentro, aprendemos muita coisa, pegamos o espírito do
militarismo e isso ajudou muito a gente. É um orgulho poder estar prestando essa
homenagem e lembrando as pessoas o quanto eles estão nos ajudando com isso,
afirmou a judoca Mayra Aguiar, dando a entender que houve uma recomendação”.215

Sob esse clima, a delegação militar seguiu em outubro de 2015 para a VI edição dos
JMMS, em Mungyoug, na Coreia, ficando em segundo lugar, atrás apenas da Rússia, e uma
posição abaixo da conquistada nos Jogos Militares do Rio em 2011, quando conquistou o

212
http://www.brasil.gov.br/esporte/2015/09/governo-beneficia-mais-13-atletas-com-o-bolsa-podio
213
Matéria retirada do endereço eletrônico, disponível em: http://www.defesa.gov.br/noticias/16387-atletas-
militares-conquistam-48-das-medalhas-brasileiras-nos-jogos-pan-americanos-de-toronto
214
http://www.defesa.gov.br/noticias/16387-atletas-militares-conquistam-48-das-medalhas-brasileiras-nos-jogos-
pan-americanos-de-toronto
215
Texto na integram disponível em: http://esportes.terra.com.br/jogos-pan-americanos/por-que-atletas-fazem-
continencia-no-podio-do-pan-terra-explica,f4061816ccc6546349ec4c1c9a625dfc8e8zRCRD.html
primeiro lugar. A equipe brasileira esteve presente na disputa com 282 atletas. Segundo
o chefe da delegação do Brasil, brigadeiro Carlos Augusto Amaral, a delegação nacional
superou as expectativas. De acordo com ele, o objetivo estabelecido pelo Ministério da Defesa
era ficar entre os cinco primeiros colocados. O militar ainda afirmou que: “[...] a meta é de
que pelo menos 100 desses atletas militares estejam nos Jogos Rio 2016. Para isso, as Forças
Armadas desenvolvem o programa Atletas de Alto Rendimento, que patrocina atletas para se
dedicarem integralmente às modalidades que praticam”. O convênio garante R$ 15 milhões do
Ministério da Defesa e outros R$ 25 milhões em investimentos do Ministério do Esporte. O
programa contempla 23 modalidades olímpicas e o incentivo faz parte de um esforço do
governo federal para que atletas brasileiros tenham boa colocação nas Olimpíadas do Rio 216.

Conclusão
A realização dos V Jogos Mundiais Militares no Brasil só se justifica se olhada sob a
lente dos interesses dos principais atores envolvidos nesse processo, como o Governo Federal,
o Comitê Olímpico Brasileiro e as Forças Armadas, e como cada um desses atores poderia se
beneficiar com as benesses deixadas por ele. Seria um grande erro acreditar que os JMMs
aportaram no Brasil, assim como os demais megaeventos, de forma despretensiosa e
descontextualizada, pois todas as suas ações foram estrategicamente pensadas e executadas
para atingir os objetivos traçados pela agenda Rio-2016, ou seja, servir como instância de
sustentação para o esporte de representação nacional.
Não por acaso, o interesse em formar uma delegação militar com atletas civis acontece,
em 2009, no mesmo instante em que o Brasil foi escolhido para sediar os Jogos Olímpicos em
2016, momento em que o Governo Federal, em parceria com o COB e as Forças Armadas
percebe uma grande possibilidade de, por meio da realização de um megaevento militar,
elaborar uma trama sem precedentes na história esportiva brasileira, com a justificativa de que
outros países se utilizariam desse mesmo expediente para formar suas delegações militares.
Como forma de alcançar tal intento, tornou-se necessário elevar os padrões de desempenho da
tropa, de forma muito distinta das demais participações anteriores, pois seria um verdadeiro
pesadelo sediar uma edição dos Jogos Militares e não figurar entre os vencedores,
principalmente porque o Brasil sediaria, logo em seguida, os dois maiores eventos esportivos
do planeta, a Copa do Mundo FIFA, em 2014, e os Jogos de Verão, em 2016.
Uma das principais formas de elevar os padrões de desempenho se deu por meio da
criação do PAAR – Programa Atletas de Alto Rendimento - que visa a incorporação de atletas
da elite do esporte nacional às Forças Armadas, iniciado em 2009, e que vem caminhando a

216
Matéria na íntegra no endereço eletrônico disponível em: http://www.brasil.gov.br/esporte/2015/10/brasil-
termina-em-2-lugar-nos-jogos-mundiais-militares
passos largos rumo ao seu objetivo principal, ou seja, trajar uma série de atletas civis com
roupas militares, destinando a eles suporte logístico, físico e de treinamento, via militarização.
Se não houvesse a incorporação desses atletas à caserna, o Brasil teria terminado os JMMs em
oitavo ou nono lugar, o que não seria nada vergonhoso e teria sido até muito mais honroso,
pois teriam participado realmente da competição apenas aqueles que vivem o dia a dia do
mundo militar e que nunca tiveram seus resultados divulgados, por não possuírem um nome
de expressão no cenário esportivo nacional, sendo muitos deles atletas detentores de títulos
mundiais em suas modalidades em competições militares, e também não haveria a
necessidade de forjar um tropa, não pertencente aos quadros militares.
Dessa forma, o campo militar dá a sua contribuição à lógica estipulada pelo modelo
piramidal elaborado para o esporte brasileiro, balizado agora pelo sonho olímpico, que
motivou a III Conferência Nacional de Esporte e Lazer e a elaboração de um Plano Decenal,
cuja meta a ser alcançada era colocar, em 10 anos, o Brasil, entre as 10 maiores potências
esportivas mundiais. Portanto, os argumentos aqui levantados demonstram a realização dos
Jogos Mundiais Militares em solo pátrio, como sendo um caminho intencional e
extremamente interessante não só aos anseios militares de visibilidade nacional e
internacional, mas também de cumprimento ao estabelecido pelo Governo brasileiro junto ao
setor conservador do campo esportivo, com vistas ao cumprimento do definido em sua
agenda.
Referências
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brasileiras nos Jogos Pan-Americanos de Toronto. Disponível em
<http://www.defesa.gov.br/noticias/16387-atletas-militares-conquistam-48-das-medalhas-
brasileiras-nos-jogos-pan-americanos-de-toronto>. Acessado em 27/07/2015.
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assunto; fato é que, em meio a momento conturbado da política nacional, ato gera polêmica.
Disponível em < http://esportes.terra.com.br/jogos-pan-americanos/por-que-atletas-fazem-
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procura-secreta-por-136-atletas-de-alto-rendimento. Acessado em 10/01/2014.
CORRESPONDÊNCIAS DE UMA GUERRA: UMA ANÁLISE METODOLÓGICA
SOBRE AS CORRESPONDÊNCIAS PESSOAIS DO GENERAL JOCA TAVARES
DURANTE A REVOLUÇÃO FEDERALISTA DE 1893-1895 NO RIO GRANDE DO
SUL

Gustavo Figueira Andrade

Doutorando PPGH / UFSM

INTRODUÇÃO

Os estudos de correspondências têm recebido bastante impulso nos últimos anos e


criado um espaço para o estudo de novos atores e novas temáticas, especificamente no âmbito
da História Política e da História Militar. Ao tornar possível o estudo das tramas das relações
de poder social e familiar, do estabelecimento de redes (LANDÉ, 1977), das negociações, dos
sujeitos envolvidos, das trocas clientelísticas e estratégias sociais dos indivíduos também
dentro das forças armadas, torna possível relacionar o que antes ficava restrito à caserna ao
social, entendendo os militares enquanto sujeitos que representam importantes aspectos da
cultura, economia e da política de uma sociedade na qual os indivíduos estão (TEIXEIRA,
1995).
As cartas, também entendidas enquanto escritas de si, consiste em códigos carregados
de sentidos para uma época “na qual o público e o privado se entrelaçam, constituindo a
singularidade do indivíduo numa dimensão coletiva” (MALATIAN, 2013, p. 200) ao mesmo
tempo em que reafirmam a diacronia do tempo no qual investigador se encontra para com o
tempo do evento ocorrido.
Neste sentido, este estudo apresenta os resultados de nossa dissertação de Mestrado, a
qual se utilizou por fontes 369 cartas e 135 telegramas, diário de campanha, além partes de
combates e ordens do dia do General João Nunes da Silva Tavares (joca Tavares), tendo como
critério de escolha, as que possibilitaram uma melhor análise dos diversos aspectos das vida
do sujeito durante a Revolução Federalista de 1893. A partir destes elementos, construímos
sua trajetória de vida a partir de dados biográficos e das correspondências trocadas com chefes
federalistas e legalistas no espaço fronteiriço entre Brasil e Uruguai e Argentina,
compreendendo como este personagem construiu sua trajetória política e suas relações de
poder a partir das suas relações pessoais (familiar, política e militar) no período de 1892-1895.
Sobre nosso personagem, Joca Tavares, nasceu em 1816 na vila de São João Batista do
217
Herval , estado do Rio Grande do Sul, filho de João da Silva Tavares (Visconde do Serro
Alegre) e de Umbelina Nunes, era antigo chefe político do Partido Conservador na cidade de

217
Atualmente denomina-se cidade de Herval, Rio Grande do Sul.
Bagé durante o Império, lutou em diversas campanhas militares 218 ao longo do século XIX,
destacando-se na Guerra do Paraguai em 1865. Após o término do conflito, recebeu o título de
Barão do Itaqui e exerceu por diversas vezes o Comando da Fronteira e Guarnição de Bagé,
assim como também o Comando Superior da Guarda Nacional nesta mesma cidade. Ainda em
1886, também foi nomeado pelo Imperador Dom Pedro II, vice-presidente da Província do
Rio Grande do Sul.
Com a Proclamação da República, havia abdicado o título de Barão do Itaqui, logo se
manifestou em favor do novo regime que se instaurara em 1889, declarando-se republicano.
Em 1892, foi um dos principais nomes envolvidos na fundação do Partido Federalista, na
cidade de Bagé, colocando-se como oposição ao Partido Republicano Rio-grandense (PRR)
de Júlio de Castilhos. Foi vice-governador do Rio Grande do Sul em 1892, vindo a assumir o
governo por poucos dias, até ser deposto por um golpe articulado entre militares do Exército e
do PRR, período em que se refugia no Uruguai juntamente com outras lideranças federalistas
e de onde passa a organizar a invasão do Rio Grande do Sul, dando início, em 1893, à
Revolução Federalista de 1893-1895.

A ABORDAGEM QUANTITATIVA
A partir de uma prévia leitura das fontes, tornou-se preciso realizar uma descrição do
suporte e das condições destes documentos. As cartas, em sua maioria eram escritas em papéis
específicos para correspondências, outras em pequenos pedaços de papel ou em folhas de
cadernos. As marcas presentes nos papéis, algumas devido ao de seu envelhecimento, em
geral estavam em ótimo estado de conservação, muitas apresentavam o logotipo da empresa
que as fabricava, outras apresentam pequenos furos, apresentando certa sequencia ao longo do
texto, o que pode evidenciar a utilização de cifras ou códigos secretos em clara preocupação
de protegê-las caso caísse nas mãos do inimigo. Os telegramas, grande parte escritos a lápis,
em formulário especial dos postos de telégrafo onde eram enviados e recebidos, apresentavam
a data, emissor e receptor, a cidade de onde era enviado e a sua classificação como urgente,
urgentíssimo, reservado, entre outras formas utilizadas, diferem das correspondências quanto
à forma como são escritas, sem a utilização de preposições ligando as palavras.
Após a descrição, uma segunda etapa consistiu na realização de uma leitura do material
possibilitando identificar os assuntos tratados e os personagens envolvidos, precedendo a um
fichamento de todos os assuntos. Nesse sentido procuramos separar por anos os assuntos, logo
passando a identificar a correspondência ativa e passiva entre os evolvidos no pacto epistolar.
No que tange à frequência que as cartas eram enviadas ou recebidas, estipulamos uma
padronização para analisa-las: eventual, regular e assídua, dividas entre os anos de 1892,
218
Participou como militar na Revolução Farroupilha, em 1835, ao lado das forças imperiais e também da
campanha contra Oribe e Rosas em 1851.
1893, 1894 e 1895. O total de cartas enviadas pelo General Tavares no período em análise foi
de 131 cartas, contrastando com um total de 238 recebidas por ele. Quanto aos telegramas, 6
foram enviados por ele e 129 recebidos oriundos de outros líderes federalistas. A partir dessa
divisão, pudemos estabelecer a função de mediação ocupada por Joca Tavares nesse contexto
da guerra civil.
Ao falar sobre a mediação desempenhada pelo General Tavares, referimo-nos ao
entendimento trazido por José Maria Imízcoz (2011), o qual assevera que as cartas permitem
observar “o capital relacional e seu uso, as funções de mediação, o desenvolvimento da ação,
a mobilização dos atores implicados nela, a transmissão da informação, os intercâmbios de
bens e serviços, a circulação de favores, o poder de influência efetivo, as conexões com as
instituições” (2011, p. 107). A solicitação de favores aos mediadores, criam, segundo Angela
de Castro Gomes (2000), “uma confiança depositada em seu destinatário [...] transformando-o
em seu protetor”, conformando o que a autora definiu como sendo uma retribuição
clientelística podendo ser na esfera pessoal quanto na impessoal (GOMES, 2000, p. 32-33).
Ainda sobre a mediação, Imízcoz (2011, p. 123) assevera que esta é responsável por
ligar grupos e subgrupos, por onde os mediadores atuariam como pontes que teriam o controle
da comunicação, revelando interações diretas – não mediadas institucionalmente entre atores
sociais (2011, p. 101). Essa situação é evidenciada a partir dos números que demonstram a
superioridade do número de cartas e telégrafos recebidas pelo General Joca Tavares entre
1892 a 1895 sobre as enviadas, destacando a sua atuação enquanto mediador dentro do grupo
social no qual estabeleceu suas redes, realizando a ligação entre grupos distintos, nesse caso
em estudo, das diversas lideranças e apoiadores federalistas de diversas localidades,
atendendo seus pedidos e emanando ordens.
Na busca por identificar as correspondências ativas e passivas para uma compreensão
quantitativa direcionou-nos a uma busca pelos principais nomes envolvidos, a frequência com
que eram enviadas as correspondências, a distância e o tempo que estas demoravam para
alcançar seu destino, os meios pelos quais eram transportadas, os vínculos existentes entre os
envolvidos e a natureza destes correspondências. Essa metodologia permitindo-nos
demonstrar constatando as afirmações realizadas e assim atingir um dos principais objetivos
dos dados quantitativos que é auxiliar a realização de uma análise qualitativa, de modo que
uma complemente a compreensão da outra.
Dentre os principais nomes envolvidos, elencaremos alguns destes, tais como o general
legalista Inocêncio Galvão de Queiróz219 e o Coronel Carlos Telles220, os chefes militares e

219
General que assumiu em 1895 o Comando em Chefe das Forças do Exército Brasileiro em operação no Rio
Grande do Sul, o qual por ordem do Presidente Prudente de Morais, propôs e passou a tratar diretamente com o
General Joca Tavares da pacificação da Revolução Federalista de 1893 (MEDEIROS, 2005).
civis federalistas Aparício Saraiva 221, Gumercindo Saraiva222, Gaspar Silveira Martins223, Luís
Saldanha da Gama224, evidenciando a extensão das redes de relações e o prestígio que o
General Tavares possuía nesse contexto da guerra civil.
De acordo com Teresa Malatian (2013) a análise das correspondências trocadas permite
compreender “as redes de sociabilidade nas quais os indivíduos se inserem e os vínculos
existentes entre os correspondentes [...] para a compreensão da inserção social do remetente
em posições familiares, profissionais, de amizade, etc” (MALATIAN, 2013, p. 203).
Essas redes abrangem uma região territorializada225 pelo indivíduo, possível de ser
identificada a partir das correspondências, principalmente a partir dos telégrafos, muitos dos
quais possibilitam compreender esta amplitude a qual envolve também a construção de seu
poder simbólico226 enquanto chefe político e militar federalista. Num total de 135 telégrafos,
muitos deles enviados de diversas localidades como Rio de Janeiro, Bagé, Uruguaiana, São
Borja, Porto Alegre, Canguçu, Piratini, Herval, Pelotas, Jaguarão, Dom Pedrito, Santana do
Livramento, Rosário do Sul, São Gabriel no Brasil e Montevidéu, Minas de Corrales, Melo,
Taquarembó, Paysandú, Salto, Rivera, dentre outras cidades na República Oriental do Uruguai
e também das cidades de Buenos Aires, Concórdia, e de algumas localidades da Província de
Corrientes na República Argentina. Um destes telégrafos, datado de 13 de dezembro de 1891,
enviado da cidade de Rosário pelo Major Alencastro, diz: “Pronto manter ordem e
consolidação República Federal. Não Podendo continuar anarquia atual intervenha com vosso
prestígio reestabelecimento paz Estado” (Acervo Particular da senhora Yara Maria Botelho
Vieira, Bagé, RS. Transcrição de Gustavo F. Andrade, 2016).
Existem alguns elementos presentes nas cartas do General Tavares que possibilitam
compreender como era construída a imagem de Joca, os vínculos existentes entre os
envolvidos no pacto epistolar (GOMES, 2004, p. 19), revelando a natureza destas
correspondências. Para tal análise, observamos o que Ângela de Castro Gomes (2000, p. 41)
220
Irmão do General João Telles, comandou o 31º Batalhão de Infantaria, foi Comandante da Fronteira e
Guarnição de Bagé durante o cerco da cidade que durou de novembro de 1893 a janeiro de 1894, resistindo às
investidas federalistas (PORTO ALEGRE, 1917).
221
Importante caudilho e liderança política do Partido Blanco na República Oriental do Uruguai, comandou
assim como seu irmão de Gumercindo Saraiva, uma divisão do Exército Libertador durante a Revolução
Federalista de 1893 (DOBKE, 2015).
222
Importante caudilho e antigo chefe político Liberal na cidade de Santa Vitória do Palmar ainda no Império.
Na República sofreu perseguições e veio a comandar uma divisão do Exército Libertador, a qual chegou até o
Paraná (LOPEZ, 2005).
223
Membro do Conselho de Estado ainda no Império, foi Conselheiro do Imperador, chegando a ser Presidente
da Província do Rio Grande do Sul. Com a República sofreu exílio, retornando em 1892, quando fez parte da
fundação ainda no mesmo ano, do Partido Federalista em Bagé. Foi importante caudilho e chefe politico da
Revolução (ROSSATO, 2014).
224
Almirante que se juntou aos federalistas após a dissidência com Floriano Peixoto, veio a ser Comandante em
Chefe do Exército Libertador em 1894 até ser morto batalha no ano de 1895 (AXT; COSTA, 2009).
225
ARRIOLA, A. T. Propuesta de definición histórica para región. Estúdios de Historia Moderna y
Contemporânea de México, Ciudad de Mexico, n. 35, p. 181-204, jan./jun. 2008.
226
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand, 1998. 61
destaca que “as formas de tratamento a ele conferidas, os termos com que os missivistas se
despedem do destinatário e todas as menções realizadas às suas características de
personalidade”. Esse tratamento ainda segundo a autora, diz respeito a maneira como a ele se
referem, podendo ser de dois tipos: o tratamento pessoal e o tratamento formal (GOMES,
2000, p. 41).
O tratamento pessoal envolve manifestações de apreço, saudações, uso de expressões de
cunho mais íntimo, como “amigo”, “compadre” por exemplo. O tratamento formal se dá pela
utilização do missivista de pronomes de tratamento como, por exemplo, “Excelentíssimo
Senhor General Comandante em Chefe do Exército Libertador” ou “Ilustríssimo Senhor
General João Nunes da Silva Tavares” entre outras formas de manifestar formalidade. Essa
pessoalidade ou a formalidade pode também dizer respeito à maneira como o público e
privado eram tratados, o quanto os interesses da Revolução diziam respeito aos seus interesses
pessoais.
No que tange ao poder que Joca exercia num determinado espaço, este estava ligado a
capacidade de negociação que dispunha e para a conformação de estratégias sociais, tais como
a de compadrio, clientelismo e matrimônios, conformando laços de parentesco 227, o tenham
ajudado formar uma ampla rede de relações que lhe permitira conciliar e articular diversos
agentes históricos entorno da revolução. Por outro lado, essa rede evidencia um território que
abrange uma região o qual ultrapassa os limites políticos, ressaltando o perfil transfronteiriço
de Joca Tavares e a influência do espaço platino em suas ações e suas táticas militares durante
o conflito. Possivelmente esse conhecimento fizesse parte de um espaço de experiência
(KOSELLECK, 2006, p. 309) adquirido pelo indivíduo ao longo de sua vida, o que veio a
capacitá-lo para exercer o posto de General em Chefe do Exército Libertador/Federalista.
A distância da qual era enviada as cartas pelo remetente determinava o tempo que esta
demoraria a chegar a seu destinatário ao mesmo tempo em que evidencia a amplitude da
região conformada pelo individuo. Muitas destas poderiam ser enviadas, recebidas,
respondidas e reencaminhadas no mesmo dia, outras, porém, poderiam demorar diversos dias
para chegar ao seu destino principalmente devido à diversas variáveis, tais como o tempo, o
espaço geográfico e o posicionamento do inimigo.
O tempo que uma carta demoraria para achegar ao seu destinatário pode ser analisado
através de carta enviada por Joca Tavares no dia 18 de outubro de 1894, o qual estava
próximo a Dom Pedrito, ao Almirante Saldanha da Gama que se encontrava em Montevidéu,
diz: “Exmo. Sr. Almirante Saldanha da Gama. Estou de posse da carta de Vossa Excelência,
datada de 9 do corrente [outubro], da qual foi portador o Sr. Guarda-Marinha Agérico de
227
GRAHAM, R. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Tradução de Celina Brandt. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 1997. Para Graham, existiria um entendimento de que os laços familiares ultrapassariam os laços
consanguíneos. Essa família extensa do século XIX envolvia os apadrinhamentos, ser afilhado de alguém
importante, as relações de compadrio, o que implicaria a existência de obrigações entre os envolvidos.
Souza [...]” (TAVARES, 2004, p. 115). Por ser uma guerra caracterizada pelo movimento,
dificilmente os comandantes militares permaneceriam muito tempo em determinada
localidade, logo o tempo nem sempre entre uma comunicação e outro poderia ser igual. No
caso em que carta que apresentamos acima, trocada entre Joca Tavares que se encontrava no
município de Dom Pedrito, e o Almirante Saldanha da Gama que estava em Montevidéu, o
tempo foi de 9 dias.
Quanto ao transporte das cartas, este era realizado através de mensageiros a cavalo, de
estrita confiança de seus comandantes, no caso em estudo, poderiam muitas vezes ser seus
próprios filhos. Estes deveriam também ser exímios conhecedores do terreno que transitariam
para evitar cair nas mãos do inimigo, e muitas vezes realizavam os percursos à noite sem
iluminação alguma. Estas questões podem ser percebidas através da carta enviada por
Marcelino Pina e recebida por Joca Tavares em 2 de outubro de 1894, na qual assevera “[...] o
portador, que é meu filho, vos informará de tudo e explicará as circunstâncias”
(TAVARES, 2004, p. 106. Grifos realizados pelo autor).
Diversas destas cartas eram cifradas e existiam maneiras de evitar que as informações
fossem obtidas pelo inimigo em caso de captura dos mensageiros. Esse cuidado é evidenciado
através de uma carta na qual Joca Tavares na qual afirma em carta do dia 15 de setembro de
1894, a partir da carta enviada pelo o Almirante Saldanha da Gama a este, na qual afirma que
“[...] O General Piragibe completará o escrito e sentido desta carta, dizendo-vos de viva-
voz a Vossa Excelência o que não convém, neste momento, confiar no papel” (TAVARES,
2004, p. 102. Grifos realizados pelo autor).
Quanto aos telegramas, devido a grande velocidade com que as informações eram
transmitidas à longas distâncias, as informações eram muito mais céleres. No entanto,
demandaria que os comunicantes que se deslocassem de seus acampamentos por meio de
cavalos até uma estação de telégrafo, muitas vezes em localidade distante, para então, levar ou
receber uma comunicação, a qual deveria ser autenticada sua veracidade.
Diante dessas possibilidades que as cartas oferecem, a análise quantitativa permite-nos
demonstrar constatando as afirmações realizadas e assim atingir um dos principais objetivos
dos dados quantitativos que é auxiliar a realização de uma análise qualitativa, de modo que
uma complemente a compreensão da outra.

UMA ABORDAGEM QUALITATIVA


Pudemos identificar onze temas diferentes nas cartas, muitos dos quais não aparecem
isolados e se interligam, como, por exemplo, as cartas com assuntos políticos, geralmente
aparecem sendo tratados juntamente a correspondências apresentam temas sobre a estratégia e
os destinos da revolução. Dentre os temas identificados estão: Questões militares/
movimentações militares / ordens 228; Reclamações; Questões militares/ estratégia; Questões
militares/ inteligência229; Vandalismo; Assuntos políticos; Assuntos financeiros; Assuntos
internacionais; Assuntos pessoais e outros assuntos.
É importante destacar o teor militar das correspondências, considerando o período de
guerra civil e da graduação de General ocupada por Joca Tavares. Nesse sentido,
concentravam-se neste personagem, além de preocupações militares, as atribuições de uma
atuação política, pois ainda sim era membro do Partido Federalista e deveria comandar
grandes efetivos de soldados, muitos destes correligionários políticos, em determinados
espaços geográficos, o que o levava a entrar em contato com outros chefes militares e
autoridades políticas a quem está subordinado ou que estão subordinadas a sua pessoa.
Somados a estes assuntos, estavam também as questões pessoais e o forte envolvimento da
família Silva Tavares no conflito.
Tendo em vista o grande número de temas a serem observados, iremos apresentar a
seguir uma análise sobre os assuntos pessoais. Elencar as que tratassem do aspecto pessoal de
Joca Tavares, não apenas durante a Revolução fui uma tarefa difícil, pois também envolvem
muitas vezes assuntos políticos. Algumas tratam diretamente, outras indiretamente, no entanto
podemos compreender o grau de proximidade entre o emissor e o receptor principalmente pela
própria escrita das cartas, na maneira de se referir, formal ou mais informal, na recorrência de
assuntos familiares, envolvendo problemas de saúde dos envolvidos, parabenizando por
vitórias pessoais ou mesmo manda recomendações à família. Dentre as cartas que apresentam
esse aspecto pessoal das correspondências, nas quais as formas de tratamento expressam a
proximidade entre o remetente e o receptor, para exemplificar o que expomos acima,
escolhemos uma carta do dia 17 de janeiro de 1895, entre o hervalense General José Maria
Guerreiro Victória e o General Tavares:

Passo dos Carros, arroio Candiota, 17 de janeiro de 1895. Amigo General Tavares.
Terei particular satisfação se o meu velho amigo gozar saúde. Eu continuo sofrendo
a minha paralisia, mas disposto a continuar nossa nobre missão [...] Nunca vi tanta
ambição de comando e postos e tantos pretensiosos [...].General Guerreiro Victória
(TAVARES, 2004, p. 184-185. Grifos realizados pelo autor).

Estas cartas possibilitam ter acesso a esse aspecto de sua vida pessoal, poderiam ser de
familiares, amigos, políticos em geral, ou mesmo de “protegidos” políticos deste chefe. Em
carta do dia 1 de novembro de 1893, o Cônego João Inácio de Bittencourt e Pedro Rodrigues

228
Embora na contagem dos números tenhamos chegado ao número de 36 cartas para o ano de 1893, na análise
qualitativa chegamos a uma contagem diferente exatamente por em algumas cartas existiram diversos assuntos
que nos utilizamos para separar as temáticas em uma mesma missiva.
229
Quando utilizamos o termo inteligência, nos referimos às atividades que envolvem o conhecimento de
informações vitais, obtidas sem o conhecimento do inimigo, abrangem assuntos estratégicos, táticos ou de
operações desenvolvidas no âmbito político/militar/civil federalista ou legalista que possam ajudar as lideranças
na tomada de ações e coordenar as movimentações militares procurando obter vantagem sobre o inimigo.
de Borba, escrevem ao General Tavares, além de passar informações, colocando-se sob sua
proteção:

Exmo. Sr. General Tavares. Há pouco chegamos de Bagé e podemos saber que Raul
Maurell, de Pelotas, está detido por envenenador. Garantimos que tendo pleno
conhecimento desse moço que veio somente ajudar a defender a nossa causa.
Saudamos a Vossa Excelência e sentimos grande prazer em estarmos debaixo da
vossa proteção. De Vossa Excelência etc, etc. João Inácio de Bittencourt e Pedro R.
de Borba (TAVARES, 2004, p. 65).

Esta correspondência evidencia a existência de redes de relações clientelísticas do


General Tavares. Na guerra, esse clientelismo enquanto uma política de trocas de favores,
para com seus subordinados, seus amigos, podem ser entendidos enquanto parte de sua
atuação política no conflito. Principalmente se considerarmos sua experiência militar, Ana
Frega (2015) ao falar sobre as experiências militares e as identidades sociais e politicas,
permite compreender que, por não ser uma relação que envolve o Estado, o próprio desafio de
manter seus soldados engajados e a adesão dos colaboradores da Revolução, envolvia uma
relação contratual (FREGA, 2015, p. 26), necessitando, portanto, atender aos interesses dos
diversos envolvidos no conflito como parte da liderança que fosse efetiva.
Além das cartas trocadas com seus irmãos, considerando o grande envolvimento da
família Tavares na Revolução, alguns chefes federalistas tinham maior proximidade com o
General Silva Tavares. Aproximadamente 19 cartas ao entre os anos de 1892 a 1895 abordam
esse tema, do total das 369 cartas, alguns telégrafos e cartões postais que estavam no seu
arquivo, algumas aparecem também em meio a assuntos militares e políticos. Em carta
enviada por sua sobrinha em Cecília Facundo, filha de seu irmão José Facundo da Silva
Tavares, o qual havia sido perseguido por membros do Partido Republicano Rio-grandense
em 1892, na companhia de sua família em Porto Alegre, por ordem de Júlio de Castilhos,
expressa o seguinte:

Porto Alegre, 5 de novembro de 1892. Tio Joca – [...] No dia 1º deste, ainda não
eram 5 horas da madrugada, acordamos, sobressaltados, com baques horríveis na
porta. Papai saltou da cama e levantou a janela do quarto dele, que abria para a rua,
para ver o que era e foi agarrado pelos braços aos gritos de “Agarra! Agarra!”
[...]”(MORITZ, 2005, p. 354-355).

Essa carta evidencia o terror que tomou conta do Rio Grande do Sul no período que
antecede a guerra civil, o qual levou a um êxodo de federalistas para o Uruguai e Argentina
ainda em 1892, diante da forte perseguição realizada pelos partidários de Júlio de Castilhos
contra os federalistas e oposicionistas ao seu governo. Essa carta também apresenta o
envolvimento da família e os interesses pessoais de Joca Tavares misturando-se aos da
Revolução, pois tentou por diversas vezes ao longo do conflito, fazer com que seu irmão fosse
solto por meio de diversas negociações, todas sem sucesso, somente no final desta é que isso
ocorreu.
CONCLUSÃO
A importância do estudo de correspondências para os estudos no âmbito da História
Política e Militar decorre, principalmente, da possibilidade da análise das relações de poder
como algo presente em todas as relações humanas e como privilegiadas fontes para
compreender a complexidade dos indivíduos ao mesmo tempo que apresenta as características
de uma época, sua sociedade e as dimensões culturais dos envolvidos.
Nesse sentido a análise quantitativa permitiu identificar o volume de correspondências
tanto enviadas quanto recebidas, identificando que o número de recebidas era bem superior ao
de enviadas, demonstrando o papel de mediador do General Tavares e importante articulador
dentre as lideranças federalistas. Foi possível evidenciar também a extensão de sua influência
e a utilização de seu prestígio na territorialização do poder dentro de uma região maior que
ultrapassa os limites nacionais. Por outro lado, a análise qualitativa das cartas tornou possível
compreender como a imagem de chefe político de Joca Tavares perpassava o militar, ao
mesmo tempo em que torna possível compreender a mistura constante entre os interesses
pessoais e os da própria Revolução, evidenciadas na maneira como era tratado pelos seus
iguais e mais próximos, ou por seus adversários e como se reportava a eles, na maneira como
expunha suas ideias evidenciando a forte imbricação dos interesses familiares com os
políticos, correlacionando os interesses privados aos da Revolução.

REFERÊNCIAS
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(Joca Tavares): família, comunicação e fronteira. Dissertação (Mestrado História). Santa
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Nacional. n. 768, abr.-maio-jun., p. 83-96, 1995.
O FIM DA BLITZKRIEG

João Claudio Platenik Pitillo


Doutorando em História Social pela UNIRIO

Orientador: Vanderlei Vazelesk

Durante a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) as operações alemãs denominadas


“blitzkrieg”230 chamaram muito atenção. Com movimentos rápidos e profundos, a infantaria
motorizada apoiada pela força aérea, causava grandes estragos nas linhas inimigas, impedindo
uma resposta rápido por parte dos atacados. Esses impetuosos ataques alemães, uma novidade
para a época, cortavam as linhas de defesas inimigas e criavam bolsões de tropas
desmembradas, que logo em seguida eram cercadas e aniquiladas pela infantaria e artilharia.
Caso esses bolsões formassem focos de resistência, eles eram cercados pela infantaria
no primeiro momento e impedidos de se reagruparem ao grosso de suas forças, liberando
assim os blindados para concluírem seus avanços profundos, cortando assim as linhas de
defesa. Essa interação entre as forças terrestres e aéreas permitiam aos alemães fazerem um
movimento de “vai e vem” entre as linhas inimigas, rompendo-as em vários pontos distintos.
Concluído o avanço, a “blitzkrieg” se voltava aos bolsões para ataca-los pela retaguarda,
impedindo assim contra-ataques.
Tida como irresistível, a “blitzkrieg” foi exitosa por empregar grande quantidade de
aviões e blindados. Essa combinação de armas mostrou-se letal logo em 1939 com a invasão
da Polônia pelas forças nazistas. Contudo, a consagração da referida tática deu-se na França
em 1940, onde em menos de um mês o grandioso exército francês foi completamente
derrotado. O sucesso da “blitzkrieg” seguiu pela Europa em direção à Leste. Até meados de
1941, Áustria, Tchecoslováquia, Dinamarca, Holanda, Iugoslávia, Bélgica, Noruega,
Luxemburgo e Grécia estavam em mãos nazistas graças à “blitzkieg” e seus desdobramentos.
As operações militares alemães no formato de “blitzkrieg” também se desdobraram para o
Norte da África a partir de 1941.
A “blitzkrieg” logo proporcionou aos alemães o mito da invencibilidade, já que de 1939
a 1941 os nazistas dominaram toda a Europa Ocidental, parte significativa da Europa
Oriental(Estados Bálticos, Ucrânia e Bielorrússia) e o Norte da África sem perder nenhuma
batalha. Tendo como um dos seus grandes feitos a expulsão do continente Europeu das forças
anglo-francesas na Batalha de Dunquerque em 1940. Dois grandes generais alemães
receberam os créditos principais pelo êxito da “Blitzkrieg”, foram Erich Von Manstein (1887
– 1973) e Heiz Wilhelm Guderian (1888 – 1954).
A precisão que a “blitzkrieg” demonstrou no início da Guerra, chocou a todos, a
imprensa do mundo todo noticiou o avanço estrondoso das forças nazistas pela Europa e deu
230
Guerra relâmpago.
grande notoriedade aos comandantes alemães. Isso não só popularizou a “blizkrieg” como a
transformou em sinônimo de vitória militar. A moderna tática de ataque produzida pelos
alemães sagrou as Divisões Panzer 231, grandes unidades de infantaria blindada atuando em
consonância com a Luftwaffe.232
Os desenhos abaixo mostram o desenrolar da primeira “blitzkrieg”, desenvolvida contra
o exército polonês em 1 de setembro de 1939. As setas pretas representando o exército alemão
mostram a eficácia da tática móvel combinando forças blindadas e aéreas. As forças polonesas
não foram capazes de fazer frente aos nazistas, em menos de quinze dias foram aniquiladas,
acarretando na anexação de parte da Polônia pelos nazistas.

Figura 01 – Blitzkrieg na Polônia


Fonte: JUKES, Geoffrey. A Defesa de Moscou, Rio de Janeiro, Editora Renes, 1975.

Mesmo a Alemanha tendo perdido a guerra e suas táticas superadas pelos seus
adversários, o mito por trás da invencibilidade da “blitzkrieg” ainda ecoa pelo mundo. Isso se
faz presente principalmente por não termos de maneira clara e corrente a historiografia
soviética, já que foi o Exército Vermelho o maior algoz dos nazistas e sem dúvida a força que
mais combateu a “blitzkrieg”, sendo também, os maiores atingidos pela sua amplitude.
É imensamente sabido a origem da “blitzkrieg” e o seu desenrolar, porém o seu fim
pouco é discutido. Essa escassez de estudos que mostrem detalhadamente onde e porque a
“blitzkrieg” deixou de ser desenvolvida, tem levado a interpretações errôneas de que a mesma
foi prática até o fim do conflito (1945) pelas forças alemãs. Quando não, as operações de
“blitzkrieg” foram desenvolvidas na Europa Ocidental até meados de 1941 com a Invasão da
Grécia. Os combates envolvendo alemães e Aliados no teatro de operações europeus a partir
de 1943 com a Invasão da Sicília não mais tiveram a forma de “blitzkrieg” por parte dos
alemães.

231
“Panzerkampfwagen” (Veículo blindado de combate).
232
Força Aérea Alemã.
Na África do Norte, os alemães desenvolveram a “blitzkrieg” durante a Operação Caso
Branco (1941). Essa operação visava socorrer os italianos que estavam à beira de um colapso
devido às sucessivas derrotas causadas pelos Aliados. Contudo devemos comparar os números
para entender o que se passou na África. Para invadir a Polônia a “blitzkrieg” utilizou cerca de
1.500.000 de homens233, para combater na África do Norte, toda a campanha utilizou cerca de
170.000234 homens, para dominar a França a “blitzkrieg” utilizou cerca de 2.800.000
homens235, já a invasão da URSS a “blitzkrieg” mobilizou cerca de 4.600.000 alemães e mais
900.000 tropas aliadas do Reich236. Isto é, não podemos classificar a ação alemã na África
como uma “blitkrieg”.
Esses números mostram que a “blitzkrieg” teve seu inicio triunfal na Polônia em 1939,
porém o seu ápice foi na URSS em 1941, já que nenhuma outra operação alemã a partir dessa
data teve tamanha envergadura. Foi também na URSS que a Alemanha operacionalizou as
suas armas mais avançadas, elevando assim o nível de complexidade da “blitzkrieg”. As
Batalhas de Moscou, Stalingrado e Kursk tornaram se famosas pela grande quantidade de
armas e homens envolvidos, mas também por terem caracterizado as derrotas mais
significativas da Alemanha. Porém, a “blitzkrieg” se limitou a primeira parte da campanha na
URSS, isto é, a iniciar a Batalha de Moscou os alemães já tinham sofrido um brutal desgaste
que o impossibilitou de organizar a “blitzkrieg” contra a capital soviética.
É importante precisar como foi o desenvolvimento da “blitzkrieg” e seus desafios desde
a invasão do solo soviético em 22 de junho de 1941 até o início da Batalha de Moscou em 30
de setembro do mesmo ano. Para que a primeira derrota nazista acontecesse, nas portas de
Moscou, as ações soviéticas anteriores em formato de defesa em profundidade foram
imprescindíveis. Mesmo tendo os alemães imprimido um avanço veloz para dentro da URSS,
prendendo, aniquilando e desbaratando grandes contingentes de tropas e armas soviéticas, a
“blitzkrieg” denominada Operação Barba-Ruiva não foi capaz de cumprir o prazo
estabelecido pelo Comando Alemão de nove semanas para a vitória sobre o Exército
Vermelho.

Blitzkrieg na URSS

Para cumprir a tarefa de aniquilar a URSS o governo alemão destacou 83% de suas
tropas terrestres, sendo 86% de suas divisões blindadas e 100% de suas divisões motorizadas,

233
Almanaque Abril Coleção II Guerra Mundial 60 Anos, São Paulo, Editora Abril, 2005. P.76.
234
MACKSEY, Kenneth. Afrika Korps Rommel no Deserto, Rio de Janeiro, Editora Renes, 1974.
235
Almanaque Abril Coleção II Guerra Mundial 60 Anos, São Paulo, Editora Abril, 2005. P.129.
236
KULKOV, E. RJECHEVSKI, O. TCHELICHEV, I. A Verdade e a Mentira Sobre a Segunda Guerra Mundial,
Lisboa, Edições Avante, 1ª Edição, 1984. P. 111.
Quatro das cindo frotas aéreas e 192 dos seus 217 navios de guerra 237. Esses números
totalizavam mais de 4.600.000 homens. Esse era o maior contingente militar organizado para
um só ataque na história da guerra. O material bélico alemão era o mais moderno até o
momento e contava com experientes combatentes no seu manuseio. A Alemanha também
contava com cerca de uma dezena de países aliados e seus recursos econômicos.
As defesas soviéticas que foram acionadas para a fronteira ocidental contavam com
2.680.000 homens238. Nas direções dos principais golpes, a correlação de forças chegou a ser
seis vezes superior em favor dos nazistas. A “blitzkrieg” se desenrolou a partir de três grandes
exércitos, o Grupo de Exércitos Norte se encaminhou para cercar Leningrado, o Grupo de
Exércitos Centro investiu contra Moscou e o Grupo de Exércitos Sul rumou para a região de
Donbass.

Figura 02 – Blitzkrieg na URSS


Fonte: http://www.defesanet.com.br/ecos/noticia/19526/1941--Alemanha-de-Hitler-invade-a-URSS/

Cumprindo os desígnios da “blitzkrieg”, milhares de aeronaves nazistas invadiram a


URSS em uma profundidade de 250 a 300 Km, atacando diversas cidades nos Estados
Bálticos, Bielorrússia, Ucrânia e Moldávia. Os golpes mais duros foram nas bases aéreas,
onde cerca de 900 aeronaves soviéticas foram destruídas, diversas linhas e centros de
comunicações também foram inutilizados, deixando assim parte significativa das forças
soviéticas desarticuladas. Contudo, os postos fronteiriços defendidos pelos soviéticos tiveram
um desempenho excepcional, causando muitas baixas aos nazistas e retendo boa parte da
infantaria alemã.
Ao cruzar a fronteira da URSS as forças nazistas utilizaram cerca de 4.300 blindados e
cerca de 5.000 aviões, essa junção de armas desencadeou um devastador ataque de proporções
épicas. Os guardas de fronteira soviéticos (13º Destacamento Fronteiriço) que receberam os
237
IREMEEV, Leonid. O Exército Soviético na II Guerra Mundial, Rio de Janeiro, Editora Renavan, 2ª Edição,
1995. P.24.
238
KULKOV, E. RJECHEVSKI, O. TCHELICHEV, I. A Verdade e a Mentira Sobre a Segunda Guerra Mundial,
Lisboa, Edições Avante, 1ª Edição, 1984. P. 111.
primeiros ataques na fortaleza de Brest, armados com equipamentos leves resistiram por onze
dias o cerco imposto pelos nazistas. Essa resistência abnegada do Exército Vermelho causou
perplexidade entre os alemães.
O general alemão Franz Halder escreveu em seu diário no dia 24 de junho de 1941:
“Cumpre assinalar a tenacidade de certas unidades russas nos combates. As
tropas do Grupo de Exércitos Norte, quase em toda a frente... repeliram
fortes contra-ataques de tanques inimigos... De um modo geral, agora tornou-
se claro que os russos não pensam em recuar”.239

Nesse momento da guerra os soviéticos perceberam que não poderiam vencer a


“blitzkrieg” em um combate franco e nem de forma convencional. A Força Aérea Vermelha
priorizou atacar os bombardeiros nazistas e as tropas terrestres decidiram atacar os flancos das
colunas invasoras, a ideia era evitar o cerco e o terror dos ataques interarmas dos nazistas.
Mesmo assim, a superioridade numérica dos nazistas conseguiu na maioria das vezes isolar os
núcleos de defesa soviética e ataca-los pela retaguarda. Entre os dias 23 e 25 de junho, os
nazistas já estavam com suas colunas blindadas a 130 km dentro da URSS, no dia 29
alcançaram os arredores de Minsk. 240
Diante de um exército superior em homens e armas, os soviéticos decidiram combinar
ações de defesa estática e contra-ataques aos flancos dos agrupamentos nazistas, tendo a
perspectiva de sempre que possível recuar para leste. De 23 a 27 de junho os soviéticos
desferiram sete contragolpes e envolveram os nazistas em uma grande batalha de blindados no
eixo Lutsk - Brodi – Rovno (Ucrânia Ocidental) que durou uma semana, essas ações
resultaram em muitas perdas aos nazistas, provocando atraso no avanço das colunas blindadas
da “blitzkrieg”.
Importante registrar a ação contundente dos soviéticos no Circulo Polar, onde a sua
Marinha atuando em conjunto com o Exército Vermelho defenderam o porto de Murmansk 241.
A Frota do Báltico também em combinação com as forças terrestres soviéticas evitou que a
base marítima de Liepaia242 caísse nas mãos nazistas em junho de 1941.243 A Marinha
Vermelha teve um papel determinante nessa primeira fase da guerra, suas ações evitaram que
navios alemães desembarcassem tropas e desenvolvessem a “blitzkrie” em portos estratégicos,
como o de Murmansk, local de ligação com os Aliados.
No final de junho o STAVKA percebeu que as forças na região fronteiriça não seriam
capazes de deter o inimigo, decidiu então trazer para a linha de frente grande contingentes da

239
IREMEEV, Leonid. O Exército Soviético na II Guerra Mundial, Rio de Janeiro, Editora Renavan, 2ª Edição,
1995. P.32.
240
MINASIÁN, M. La Gran Guerra Patria de La Union Soviética, Moscú, Editorial Progreso, 1ª Edição, 1975.
P.55.
241
Círculo Polar Ártico.
242
Principal base soviética no Mar Báltico, localizada no litoral da Letônia.
243
KULKOV, E. RJECHEVSKI, O. TCHELICHEV, I. A Verdade e a Mentira Sobre a Segunda Guerra Mundial,
Lisboa, Edições Avante, 1ª Edição, 1984. P. 116.
reserva estratégica, que estavam acantonados no interior do país. Uma forte linha defensiva
foi montada no rio Berezina244 pelos soviéticos da Frente Ocidental. De imediato surtiu efeito
a contramedida soviética, na referida região os unidades avançadas do Grupo de Exércitos
Centro foram detidas. Com grande quantidade de blindados, entre eles os modernos KV1 e T-
34, os soviéticos imobilizaram os nazistas por 48 horas nas margens do rio Berezina. Nesse
momento os soviéticos perceberam a superioridade de seus carros de combate frente aos
alemães, porém, as fabricas soviéticas não as produzia em número suficiente.
As três primeiras semanas da guerra foram fundamentais para o Exército Vermelho
identificar o tamanho do problema que tinham pela frente. As forças nazistas avançavam de
20 a 30 quilômetros por dia em direção à Moscou 245. Mas essas primeiras semanas serviram
também para os nazistas perceberem que a vitória na URSS não seria fácil como Hitler por
muitas vezes brandiu. As forças nazistas notaram que a resistência soviética endurecia a cada
passo e que a animosidade da população civil, convertia-a em guerrilheiros. Isto é, a história
de que a URSS era uma estrutura podre que estava prestes a cair, bastava um pé na porta, mais
do que uma figura de linguagem, era uma grande mentira 246.
Em meados de julho o Alto Comando Soviético 247 começou a reorganizar as suas forças,
passado o susto iniciou da invasão, novas tropas e equipamentos foram enviados para frente
de combate. Sem o domínio dos céus, as forças soviéticas começaram a desenvolver defesas
mais sólidas com o uso de artilharia. Contudo, a infantaria soviética continuava a ser tragada
pela “blitzkrieg”. As mudanças que o STAVKA fez começou a surtir efeito, na segunda
metade de julho os nazistas avançavam somente de 3 a 8 quilômetros por dia. A linha de
defesa montada pelo Exército Vermelho no caminho para Leningrado imobilizou por três
semanas o Grupo de Exércitos Norte.
Ao mesmo tempo as forças soviéticas estabeleceram uma forte barreira em Smolensk,
que envolveu o Grupo de Exércitos Centro em um combate urbano por cerca de dois meses.
Impedindo assim que os alemães continuassem a desenvolver a sua ofensiva em direção à
Moscou por mais de um mês.248 As táticas defensivas do Exército Vermelho eram
entremeadas com contra-ataques que utilizavam infantaria e grande quantidade de armas
antitanques, isso deu grande poder de fogo a infantaria e de certo modo atenuou a falta de
cobertura aérea.

244
Importante rio da Bielorrússia.
245
KULKOV, E. RJECHEVSKI, O. TCHELICHEV, I. A Verdade e a Mentira Sobre a Segunda Guerra Mundial,
Lisboa, Edições Avante, 1ª Edição, 1984. P.117.
246
Frase constantemente dita por Hitler para explicar como seria a campanha alemã na URSS.
247
STAVKA
248
KULKOV, E. RJECHEVSKI, O. TCHELICHEV, I. A Verdade e a Mentira Sobre a Segunda Guerra Mundial,
Lisboa, Edições Avante, 1ª Edição, 1984. P. 117.
Smolesnk

O fato dos soviéticos decidirem reforçar o eixo Smolensk-Moscou criou um problema


para o OKH249, que foi obrigado a priorizar o avanço do Grupo de Exércitos Centro em
detrimento dois outros Grupos Sul e Norte. Com isso o avanço nazista em uma longa frente
fora reduzido. No início da Batalha de Smolensk os nazistas superavam os soviéticos em
quase 100%, tinham mais de 140% em canhões e morteiros e cerca de 300% de superioridade
em aeronaves, somente em blindados os contendores se equivaliam250.
Depois da Batalha de Smolensk os nazistas perceberam que o caminho para Moscou
seria muito difícil e que o objetivo de derrotar o Exército Vermelho a oeste da Linha Dniper-
Divina mostrara-se inatingível. O Exército Vermelho apesar de derrotado em Smolesnk e de
ter sofrido perdas graves, não viu o resultado de todo como insatisfatório. Eles conseguiram
reduzir a velocidade do avanço nazista e aprenderam a encarar a “blizkrieg”, apesar de sua
defasagem de aviões e blindados. As defesas em linhas apoiadas por uma vigorosa artilharia e
uma aviação que começava a ser recuperar entusiasmaram o STAVKA.
Foi em Smolensk que os soviéticos estrearam a famosa bateria de lança-foguetes
Katyusha, que tanto terror causou as forças do Eixo. Nesta batalha os soviéticos também
utilizaram seus bombardeios de longa distancia, ajudando a deter as colunas Panzer. A vitória
tática soviética se deu no aprendizado do emprego coordenados das diversas armas a partir da
radiofonia. Outro elemento singular foi a determinação do combatente soviético, seja como
militar ou guerrilheiro, fizeram a diferença em Smolensk, fruto do trabalho político do
PCUS251. Foi em Smolensk que as grandes debandadas e rendições que tinham marcado o
Exército Vermelho no início da guerra terminaram.
A Batalha de Smolensk que se desenrolou de 10 de julho de 1941 a 10 de setembro do
mesmo ano, teve uma importância estratégica para os nazistas. O fato de a referida cidade
estar a cerca de 400 km de Moscou e estar localizada na confluência de rodovias e ferrovias
no eixo Moscou-Kiev-Minsk, possibilitou a edificação de uma boa base de abastecimento para
os nazistas. Entretanto, o preço pago foi alto demais, já que a batalha que estava prevista para
durar duas semanas durou dois meses e as baixas foram bem além da expectativa. A Batalha
de Smolensk foi um choque de realidade para os nazistas, principalmente para o Grupo de
Exércitos Centro, que em 30 de julho teve que interromper sua marcha para Moscou e passar
para a defensiva depois que Hitler emitiu a Diretiva 34 em 30 de julho de 1941.

249
Oberkommando des Heeres (Alto Comando do Exército Alemão)
250
MINASIÁN, M. La Gran Guerra Patria de La Union Soviética, Moscú, Editorial Progreso, 1ª Edição, 1975.
P.64.
251
Partido Comunista da União Soviética.
Kiev
O Grupo de Exércitos Sul que rumava para Kiev também teve grandes dificuldades para
conquistar toda a Ucrânia no prazo determinado. Três semanas depois de ter começado a
guerra estavam eles travando duros combates com as forças soviéticas na margem direita do
rio Dnieper, ainda distantes de Kiev. Os entraves criados pelas tropas fronteiriças soviéticas
aos Panzer nazistas foram fundamentais para que o Exército Vermelho pudesse montar linhas
de defesa cobrindo os objetivos nazistas e também evacuar suas cidades, como foi o caso de
Odessa.
Considerando Odessa um ponto vital, o STAVKA ordenou que a referida cidade deveria
ser defendida até o último homem. Os combates duraram cerca de dois meses, mesmo os
nazistas usando bombardeiros aéreos e grupos de assalto, a defesa soviética permaneceu
firme. Dos combates participaram a Frota Soviética do Mar Negro e grande continente de
civis que se negaram a fugir. Os soviéticos fizeram dos combate urbano um grande trunfo
contra a “blitzkrieg”.
Outra grande barreira soviética foi a cidade portuária de Sebatopol, atacada no dia 30 de
outubro de 1941, resistiu ao avanço nazista até julho de 1942. A Feroz resistência soviética na
Criméia tinha por objetivo impedir o avanço nazista ao Cáucaso, região rica em petróleo, gás
e minérios.
O comandante da 7º Divisão Panzer coronel Hasso Von Manteuffel, que lutou na Frente
Leste em dois momentos afirmou:
“O Grupo de Exércitos Centro, que desfechara golpes violentos contra as
forças inimigas numa série de grandes operações de cerco, deveria ter
atacado Moscou através de Minsk-Smolensk-Vyazma, mas foi incapaz de
romper a resistência inimiga. Os velozes avanços empreendidos pelas
colunas Panzer, que diante de seu sucesso nas campanhas anteriores, eram o
presságio de uma rápida vitória, não tiveram o mesmo efeito no Leste”. 252

Preocupado com a falta de rendimento da “blitzkrieg” nas primeiras semanas da guerra,


Hitler emitiu a Diretiva 33 a 19 de julho de 1941. Hitler ordenou que Moscou deixasse de ser
o principal objetivo do Grupo de Exércitos Centro e ordenou que as forças nazistas fossem
divididas. Unidades do Grupo de Exércitos Centro foram enviadas para o sul, a fim de
ajudarem o Grupo de Exércitos Sul que rumava para Kiev com dificuldade e atraso. A Batalha
de Kiev foi outro amargo contratempo para os nazistas. Os soviéticos defenderam Kiev com
muita determinação, os encarniçados combates duraram de 23 de agosto de 1941 a 26 de
setembro do mesmo ano, quando os nazistas se apossaram da cidade a um custo alto de
homens e máquinas.

252
JUKES, Geoffrey. A Defesa de Moscou, Rio de Janeiro, Editora Renes, 1975. P.6.
A vitória nazista em Kiev não teve efeito prático, já para os soviéticos, mesmo com a
derrota, puderam atrasar e desgastar as forças Panzer que rumavam em direção à Moscou,
dando tempo suficiente para que as defesas da capital soviética pudessem ser edificadas. Kiev
como toda a Ucrânia se converteu em uma região repleta de guerrilheiros que operavam atrás
das linhas nazistas. Esse “Exército de Sombras” fustigou o invasor durante toda a guerra,
somente em julho de 1941 cerca de 200.000 moradores de Kiev e redondeza formaram 11
agrupamentos guerrilheiros253.
Leningrado
No dia 19 de julho o OKW254 mandou interromper o ataque à Leningrado até que o
grosso do Grupo de Exércitos Norte alcançasse o rio Luga.255 Em visita à Frente Leste no dia
23 de julho de 1941, Hitler expôs a necessidade de se tomar Leningrado a fim de acabar com a
interferência da Marinha Vermelha no Báltico. Disse também que Moscou era um “acidente
geográfico” sem maior importância naquele momento. Ouviu de Brauchitsch256 e Halder257
que nos últimos dias as operações soviéticas duplicaram. Halder também notificou que a
capacidade da infantaria nazista era 80% e os Panzer 50% do que fora em 22 de junho de
1941. Disse também que a marcha para Moscou corria o sério risco de fracassar. 258
A resistência soviética nos meses de julho e agosto causou grande perturbação entre o
Comando nazista, Hitler teve que adiar a decisão de quando e como tomariam Moscou, até os
seus três grupos de Exércitos estivessem livre dos contratempos causados pelos soviéticos na
Ucrânia e na Bielorrússia. No dia 21 de agosto Hitler detalhou as tarefas a serem cumpridas
até o inicio do inverno. Afirmou que tomar Moscou não era prioridade, prioritário era ao sul,
se apossar da Criméia e da Bacia do Donets, como também a interceptação das linhas de
abastecimento de petróleo do Cáucaso. Ao norte, deveriam os nazistas sitiar Leningrado e
estabelecer contato com os finlandeses.
No dia 31 de julho de 1941, forças finlandesas atacaram as cercanias de Leningrado, as
forças soviéticas conseguiram estabilizar a frente próxima ao Istmo de karélia, de onde os
finlandeses não conseguiram mais avançar. Ao norte da cidade, próximo ao lago Llmen as
forças nazistas atacaram com um efetivo três vezes maior que o dos soviéticos. No dia 9 de
setembro os nazistas fizeram um grande ataque contra Leningrado, usaram grandes efetivos de
artilharia e aviação.
Os soviéticos construíram uma poderosa defesa antiaérea na cidade, assim como
grandes núcleos de defesas anticarro, impedindo o avanço dos blindados. No final de

253
MINASIÁN, M. La Gran Guerra Patria de La Union Soviética, Moscú, Editorial Progreso, 1ª Edição, 1975.
P.75.
254
Oberkommando der Wehrmacht (Estado Maior das Forças Armadas Alemã)
255
Rio que nasce na Rússia e desagua no Golfo da Finlândia.
256
Heinrich A. H. W. Von Brauchitsch, comandante-em-chefe da Wehrmachat.
257
Franz Halder, chefe de pessoal do OKH
258
JUKES, Geoffrey. A Defesa de Moscou, Rio de Janeiro, Editora Renes, 1975. P.55.
setembro a frente se estabilizou diante de Leningrado, os nazistas não tinham como tomar a
cidade, já que as defesas soviéticas eram bem sólidas, sem contar o temor dos alemães com
mais um combate urbano.259
Leningrado permaneceu sitiada por cerca de 900 dias até a sua libertação em janeiro de
1944. Na cidade pereceram mais de 1.000.000 de pessoas por fome e doenças. Outras
2.000.000 permaneceram na cidade lutando e produzindo, já que as fabricas continuaram em
atividade. Mesmo com as duras condições de vida, a população não se rendeu, continuaram a
resistir, impedindo que finlandeses e alemães formassem uma frente comum 260.
A Blitzkrieg deixa de existir
No final de setembro de 1941, a situação geral operativo-estratégica era desfavorável
para os soviéticos. As tropas nazistas tinham chegado às portas de Leningrado, na direção
oeste tomaram a cidade Vitebsk 261 e ao sul a linha Melitopol262. Isto é, tinham controlado os
Estados Bálticos, a Bielorrússia, a Ucrânia e quase toda a Crimeia e se preparavam para
conquistar o Cáucaso. Nesse momento Hitler designou o marechal-de-campo Von Bock para
atacar Moscou, o mesmo comandaria o Grupo de Exércitos Centro que possuía mais de
1.000.000 de homens e mais de 1.700 canhões e blindados. 263
As forças nazistas que iniciaram a Batalha de Moscou em 30 de setembro de 1941 em
nada lembravam os impetuosos e destemidos combatentes de 22 de junho passado.
Aprenderam da pior maneira que a história dos eslavos serem uma raça inferior era um mito.
A campanha de nove semanas estava na décima nona e todos sabiam que estava longe de
acabar. Com a aproximação do inverno o pessimismo e a apatia aumentaram entre os alemães
e seus aliados. Outro detalhe ajudava a aumentar o clima de terror, a percepção geral de que o
espirito combativo dos soviéticos melhorava a cada dia.
O assalto à Moscou era tarefa do Grupo de Exércitos Centro, a maior força de combate
da história até aquele momento. Porém, estavam eles privados de fazer uso de sua “blitzkrieg”
na forma clássica. Isto é, os alemães mesmo tendo domínio dos céus, não poderiam se
beneficiar de grandes vagas de bombardeiros, já que as defesas antiaéreas de Moscou eram
impecáveis e os alemães também tinham problemas com a logística aeronáutica, devido a
distancia de suas bases. Seus Panzer também não puderam fazer grandes investidas, as defesas
soviéticas e o terreno húmido e lamacento não ajudavam.

259
MINASIÁN, M. La Gran Guerra Patria de La Union Soviética, Moscú, Editorial Progreso, 1ª Edição, 1975.
P.55.
260
PITILLO, João C. P. Aço Vermelho Os Segredos da Vitória Soviética na Segunda Guerra Mundial, Rio de
Janeiro, Editora Multifoco, 2014. P.74.
261
Região sul da Bielorrússia.
262
Sudeste da Ucrânia.
263
SHTEMENKO, Serguei. El Estado Mayor General Soviético Durante La Guerra, Volumes 1, Moscú,
Editorial Progreso, 1ª Edicion, 1985. P.41.
O uso combinado de blindados e infantaria também estava comprometido, já que as
defesas externas de Moscou eram bem robustas e estavam acompanhadas de grandes
contingentes de armas antitanques. Com isso a infantaria nazista não poderia se expor em
campo aberto de forma incisiva. O modelo de ataque que os alemães usaram contra Moscou,
priorizava as barragens de artilharia e os pequenos grupos móveis de blindados,
acompanhados de infantaria. Mesmo com todos esses problemas, as forças nazistas eram
maiores e mais bem equipadas do que os soviéticos e ainda tinham a iniciativa da guerra.
Essa superioridade fez diferença, os combates tiveram início em 30 de setembro, com as
forças nazistas conquistando Orel e chegando a cidade de Tula, considerada a porta de entrada
de Moscou. No dia 8 de outubro as forças soviéticas estavam esgotadas e a população temia
que os nazistas irrompessem por Moscou a qualquer momento. A aviação nazista garantiu a
penetração de suas forças terrestres nas linhas soviéticas. Em meados de outubro os batalhões
operários foram mobilizados, cerca de cinco divisões foram enviadas para frente de combate.
Muitas repartições públicas foram evacuadas, a eminência da queda de Moscou já era
discutida pela população moscovita264.Outubro terminou com os nazistas ainda na iniciativa
dos combates, porém houve um esmorecimento no teor dos ataques.
Novembro iniciou com os alemães tomando a cidade de Rostov, entretanto os soviéticos
começaram a multiplicar os seus contra-ataques graças a chegada de reforços vindos do
oriente. Paulatinamente as ofensivas nazistas foram diminuindo durante a segunda metade de
novembro. As duras defesas soviéticas absorveram bem os golpes e se mantiveram de pé,
mesmo com muitas baixas. Em dezembro as tropas nazistas estavam exauridas e com graves
problemas de logística, ao norte e aos sul do eixo central do ataque a Moscou, os alemães
permaneceram estáticos, sem condições de atacar.
Percebendo essa inatividade, o Exército Vermelho iniciou uma série de contra-ataques.
Apoiados por uma quantidade maior dos modernos blindados T-34 e KV-1, além das
aeronaves Il-2 e MIG-3, os soviéticos reconquistaram várias cidades satélites nos arredores de
Moscou. Percebendo o momento propício, o STAKVA montou uma poderosa operação que
rechaçou os alemães para até 300 km de Moscou. Os nazistas chegaram a estar a cerca de 20
km de Moscou, mas depois de dezembro de 1941 passaram para a defensiva e perceberam que
Moscou tinha se tornado um objetivo longe demais.
No final de dezembro de 1941 o general alemão Gunther Blumentritt afirmou:
“do ponto de vista político, o nosso maior erro foi o de atacar este país. Desta
vez, tivemos que combater com um inimigo mais forte do que aqueles que
havíamos enfrentado até agora...” E mais adiante: “Ao tomar esta trágica
decisão, a Alemanha perdeu a guerra”.265

264
PITILLO, João C. P. Aço Vermelho Os Segredos da Vitória Soviética na Segunda Guerra Mundial, Rio de
Janeiro, Editora Multifoco, 2014. P28.
265
IREMEEV, Leonid. O Exército Soviético na II Guerra Mundial, Rio de Janeiro, Editora Renavan, 2ª Edição,
1995. P.31.
A Batalha de Moscou foi a primeira derrota nazista na Guerra. Ela acarretou no
aniquilamento de 38 divisões alemãs, incluindo 15 divisões de blindados. O Grupo de
Exércitos Centro sofreu enormes perdas, de 22 de junho de 1941 até o princípio de abril de
1942, quando o governo soviético decretou que Moscou não corria mais perigo, os alemães
perderam 796.000 homens266.
Os soviéticos tiveram a capacidade de aprender a neutralizar a “blitzkrieg”, tarefa muito
complicada, já que o ineditismo da referida tática dificultava sua compreensão. A partir de
combates com resultados adversos, os soviéticos montaram um sistema defensivo profundo e
tenaz, que em seis meses comprometeu por completo a capacidade dos alemães em continuar
a usar a referida tática. A partir de 1942 os soviéticos passaram a ter a iniciativa da guerra e a
Frente Leste se tornou o tumulo do nazismo, onde mais 75% de suas forças pereceram.
O marechal Chuikov, comandante das forças soviéticas na Batalha de Stalingrado
afirmou:
“A inquebrantável convicção do nosso povo na vitória sobre o inimigo se
baseava na consideração profunda da superioridade política, econômica e
moral do regime socialista sobre o capitalismo, na consideração das
possibilidades combativas das Forças Armadas Soviéticas que defendiam os
interesses vitais dos trabalhadores, a liberdade e independência da Pátria
socialista”.267

Bibliografia:
CHUIKOV, V. I. E RIABOV, V. S. A Grande Guerra Patriótica da URSS (1941 – 1945). São
Paulo: Edições Nova Cultura, 2016.
HERRIDGE, Charles. Segunda Guerra Mundial História Fotográfica do Grande Conflito.
Volume 01. São Paulo: Editora Rideel Ltda.
IREMEEV, Leonid. O Exército Soviético na II Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Editora
Renavan, 1995.
JUKES, Geoffrey. A Defesa de Moscou. Rio de Janeiro: Editora Renes, 1975.
KULKOV, E. RJECHEVSKI, O. TCHELICHEV, I. A Verdade e a Mentira Sobre a Segunda
Guerra Mundial. Lisboa: Edições Avante, 1ª Edição, 1984.
PITILLO, João C. P. Aço Vermelho Os Segredos da Vitória Soviética na Segunda Guerra
Mundial. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2014.
MACKSEY, Kenneth. Afrika Korps Rommel no Deserto. Rio de Janeiro: Editora Renes, 1974.
MINASIÁN, M. La Gran Guerra Patria de La Union Soviética. Moscú: Editorial Progreso,
1975.
SHTEMENKO, Serguei. El Estado Mayor General Soviético Durante La Guerra. Volumes 1
e 2. Moscú: Editorial Progreso, 1985.

266
KULKOV, E. RJECHEVSKI, O. TCHELICHEV, I. A Verdade e a Mentira Sobre a Segunda Guerra Mundial,
Lisboa, Edições Avante, 1ª Edição, 1984. P.120.
267
CHUIKOV, V. I. E RIABOV, V. S. A Grande Guerra Patriótica da URSS (1941 – 1945), São Paulo, Edições
Nova Cultura, 2016. P.32.
O JORNAL “O SOLDADO” COMO AGENTE DE REIVINDICAÇÃO POLÍTICA

José Victor Joly268

José Miguel Arias Neto269


Universidade Estadual de Londrina

Este artigo tem como objetivo apresentar os resultados da uma pesquisa de iniciação
científica “Imprensa Militar no século XIX: Um estudo dos periódicos navais – 1851 – 1882”.
Nesta buscou analisar o periódico O Soldado criado no Rio de Janeiro em 1881.
Apresentamos as principais reivindicações dos militares, já que se trata de um jornal criado
por esta classe, e quais eram as justificativas que motivaram a criação desse órgão de
imprensa. Procuramos entender como as reformas políticas promovidas pelas autoridades
imperiais afetavam diretamente a classe militar.
Como os assuntos políticos foram abordados em suas 36 edições, neste artigo foram
destacadas algumas reformas políticas que afetaram os militares e como estes se
posicionavam diante das leis, decretos e reformas realizadas pelo imperador. O Soldado vai
“tomar em consideração e dar publicidade a todas as reclamações fundamentadas, que nos
forem enviadas por militares graduados ou subalternos” 270, pretendendo assim construir "uma
classe militar" que se caracterizaria ao mesmo tempo como "grupo profissional e político.”
Periódicos militares devem ser vistos como objeto de estudo a partir do seu contexto
histórico, principalmente no que diz respeito a uma inovação historiográfica. O surgimento da
Escola dos Annales (1929), pode ser considerado um fator que impulsionou novas
perspectivas, novas abordagens, novos objetos buscava
[...] Em primeiro lugar, a substituição da tradicional narrativa de
acontecimentos por uma história-problema. Em segundo lugar, a história de
todas as atividades humanas e não apenas da história política. Em terceiro
lugar, visando completar os dois primeiros objetivos, a colaboração com
outras disciplinas, tais como a geografia, a sociologia, a psicologia, a
economia, a lingüística, a antropologia social, e tantas outras” (BURKE,
2010, p.12).
Uma das maiores contribuições feita pelos Annales, que vale destacar aqui, é um
aprimoramento do fazer história. É a ampliação de temáticas e abordagens que segundo
Carlos Henrique Ferreira Leite (2016)
“[...] contribuiu para a proliferação do universo das fontes, e a imprensa que
antes era tida como suspeita e sem credibilidade, passou a ser considerada
como um material de pesquisa valioso e uma das principais fontes de
informação e de pesquisa histórica. (Leite, 2016, p.3,4).

268
Graduando em História pela Universidade Estadual de Londrina.
269
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e professor associado de História Contemporânea
do curso de História na Universidade Estadual de Londrina.
270
O Soldado, ano I, edição n. 1, 15 de março de 1881, p. 1.
As inovações iniciadas pela primeira geração dos Annalesnão ficou restrito somente
numa revolução historiográfica, em pensar novos modos de se fazer história. Como
observaram Luiz Carlos Soares e Ronaldo Vainfas “[...] Entre o novoe o velho, porém, há
muitas continuidades que as propostas de inovação preferem ocultar ou minorar, e o mesmo se
dá no campo da história militar, cuja novahistória brotou na década de 1970 para se afirmar
nos últimos trinta anos como campo específico”. 271
Assim a pesquisa sobre a imprensa militar em geral e sobre o jornal O Soldado em
particular encontra-se na fronteira entre a renovação da abordagem da imprensa e da história
militar.
No século XIX, como resultado da revolução industrial, as transformações
tecnológicas produziram um grande impacto nos armamentos. Estas transformações foram
amplamente discutidas em jornais produzidos por militares no Brasil e no exterior. No caso
brasileiro, esta discussão incluiu também projetos de renovação das estruturas das Forças
Armadas, da carreira, dos salários, do ensino e dos equipamentos. Em suma os jornais
passaram a discutir itens fundamentais para a defesa nacional.
Tendo em vista a análise do periódico militar O Soldado, foi considerada durante toda
a pesquisa a importância que a imprensa adquiriu nos últimos trinta anos como campo de
produção científica. Para Carlos Henrique Ferreira Leite (2016) “Asfontes da imprensa variam
entre jornais locais, regionais, diários, revistasespecializadas, militantes, alternativos ou de
humor, que podem ser analisados em seuseditoriais, colunas sociais, artigos, cartas aos
leitores, crônicas, noticias, fotografias euma infinidade de outras possibilidades” (Leite, 2016,
p.1). Portanto
“[...] torna-se necessário compreender, aprofundar e problematizar os
recentes debates entre os historiadores da imprensa nas últimas décadas do
século XX e início do século XXI, que abrangem a revolução historiográfica
marcada pela “Nova História”. O olhar aprofundado dos historiadores para a
imprensa como fonte e objeto de pesquisa histórica tem como marco inicial a
década de 1970” (Leite, 2016, p.1).

Para uma análise cuidadosa do periódico militar, foram levados em considerações


alguns aspectos principais. Foi observado quem eram o(s) proprietário(s), quando foi
produzido, para qual público eram direcionados, quais eram seus objetivos e intenções.
Também foram passíveis de observação o seu título, data de publicação, periodicidade, preço,
circulação, além dos atores envolvidos em sua constituição como proprietários,produtores,
diretores, e redatores. Como escreve Carlos Henrique Ferreira Leite (2016) o jornal pode ser
estudado desde o ponto de vista dos editoriais até o das colunas sociais, passando pela

271
VAINFAS, Ronaldo. In: CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo (orgs). Novos Domínios da
História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
diversidade de outros espaços que o compõem. Segundo a historiadora Maria Helena Rolim
Capelato (1988)
O editorial é o texto que expressa a opinião do Jornal, ou seja, dos sujeitos que estão por
trás de sua produção, e “os pesquisadores que se dedicam às análises político-ideológicas
privilegiam os editoriais e artigos, que constituem, por excelência, a parte opinativa do jornal.
[...] Os jornais oferecem vasto material para o estudo da vida cotidiana. Os costumes, as
práticas sociais, o folclore, enfim, todos os aspectos do dia-a-dia estão registrados em suas
páginas. Neste tipo de abordagem o pesquisador pode recorrer às colunas sociais, aos “faits
divers”, às ilustrações, às caricaturas e as diferentes seções de entretenimento (CAPELATO,
1988, p. 20 apud LEITE, 2016, p. 5).
O jornal O Soldado, fonte de toda esta pesquisa,é um periódico militar que surgiu na
cidade do Rio de Janeiro iniciando suas atividades ligadas à imprensa no dia 15 de março de
1881. Ocupando um espaço específico na imprensa do país, suas publicações
envolviamassuntos relacionados à defesa dos interesses do exército e da armada. O Soldado
que se publicava as terças e sextas-feiras, teve sua última edição no dia 15 de outubro de
1881. Seu redator chefe era alferes Honorário do exército Candido Reinaldo da Rocha do
corpo de Voluntários da Pátria, durante a guerra do Paraguai. Seu custo avulso era de 40 réis.
Na sua primeira edição, o periódico afirma que a sua “missão”é propugnar pelos direitos do
grupo que intitula como“classe militar”, formando um órgão de legítima defesa da suposta
classe. Afirma o jornal, ainda, que não possui filiação política. Diante disso, o artigo intitulado
“nossa missão” resume de forma clara os objetivos deste jornal. Neste sentido,
“Como uma luz opaca, sem outra pretensão que não a de defender os
interesses do exército e armada, e das demais classes militares, vem hoje o
Soldado ocupar um espaço na imprensa do país. Mais adestrados aos
manejos as armas do que as lutas do pensamento, nos apresentamos
modestamente, conquistando um lugar no meio dos combates da palavra
escrita.” 272

Pretendem, com isso, discutir também todas as leis, decretos e regulamentos, advogando
a favor da classe militar.
Na mesma direção que O Soldado coloca seus objetivos, na sua segunda edição na
coluna intitulada “Expediente” é também observado de forma clara mais um dos objetivos do
periódico reforçando a defesa dos interesses da “classe militar” dando voz a todos os que
quiserem contribuir de forma ativa para a reivindicação dos direitos do exército e da armada.
Desta forma, o jornal coloca que aceitarão e darão “publicidade a todas as reclamações, que
273
vierem do exército e armada e mais corpos militares” . Segundoo autor, o periódico surge

272
O Soldado, ano I, edição n.1, 15 de março de 1881, p.1.
273
O Soldado, ano I, edição n.2, 18 de março de 1881, p.1.
como resultado direto das conseqüências que tem sofrido a “classe militar”. Por isso faz-se
necessário a sua existência para tornar público todas as reclamações.
Após uma análise de suas 36 edições, foi possível observar que o periódico O
Soldadobuscava assim a mobilização dos militares em torno de algumas
reivindicaçõespolíticas, contribuindo assim para o processo de constituição dos militares
como "classe" profissional e política. Na visão do periódico, como resultado dos prejuízos
sofridos pela classe, torna-se fundamental a mobilização pública em torno deste tema. Os
prejuízos que são apontados pelo periódico são leis e decretos baixados pelo governo imperial
que não cumpridos. Dessa forma, “Nos illudem com promessas hypotheticas para garantirem
a sua estabelidade, com a força de nossas armas. Reconhecem a nossa utilidade e calcam os
nossos interesses. Somos, finalmente, uma classe olhada com o indifferentismo de todos.” 274
Em função disso, aparecem nos periódicos discussõesacerca da Reforma Eleitoral feita
pelo decreto de número 3.029 do dia 9 de janeiro de 1881, sobre a lei número 2.556 da
Conscripção Militar do dia 26 de setembro de 1874 e sobre o decreto n. 3.371 de sete de
janeiro de 1865 que cria corpos para o serviço de guerra em circunstancias extraordinárias
com a denominação de - Voluntários da Pátria -, estabelece as condições e fixa as vantagens
que lhes ficam competindo. As justificativas apresentadas pelo jornal ressaltam a importância
da atuação dos militares na guerra contra o Paraguai, e que em função disso, a classe merece
ter a atenção dos políticos e do Imperador para a valorização dos serviços prestados à pátria.
“Nós, que somos os legítimos defensores da pátria; nós, que constituímos
a garantia da ordem; nós, que somos sustentáculos da dignidade e honra
nacional, não podemos ficar indiferentes ao movimento que se opera.” 275

A lei da Reforma Eleitoral feita pelo decreto de número 3.029 do dia 9 de janeiro de
1881 tinha o objetivo de fazer uma reforma na prática eleitoral do país. No primeiro artigo
deste decreto, é estabelecidoque as nomeações de senadores e deputados para a assembléia
geral, legislativas, provinciais e quaisquer autoridades eletivas serão feitas por eleições
diretas. O mesmo decretoé coloca ainda que só terão acesso ao voto somente as pessoas que
atenderem aos requisitos dos artigos 6º, 91 e 92 da Constituição do Império.O
descontentamento da “classe militar” referente a este decreto é que os praças de pret do
exército, da armada e dos corpos policiais, e os serventes das repartições e estabelecimentos
276
públicos estão excluídos da prática eleitoral. Por isso justificam que não podem ficar
indiferentes. A lei eleitoralcontraria a todos os princípios de liberdade e justiça, colocando os

274
O Soldado, ano I, edição n1, 15 de março de 1881, p.1.
275
O Soldado, ano I, edição n. 1, 15 de março de 1881, p. 1.
276
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Último acesso em:
26/07/2017, às 14h42min.
soldados em posição de defesa dos legítimos direitos do exército, da armada e das demais
“classes militares” do Brasil.
No artigo intitulado “O Soldado e o Povo” o jornal acusa: “Uma lei aristocrática, e
contraria a todos os princípios liberaes, arredou das urnas eleitoraes o povo e as praças de
277
pret, como se estes não tivessem os mesmos direitos inherentes ao cidadão brasileiro.” E
278
reafirma que “O voto não é uma doação, é um direito inalienável adquirido pelo cidadão.”
A lei número 2.556 da Conscripção Militar é do dia 26 de setembro de 1874. Ela
aboliu o recrutamento e estabeleceu a conscripção militar. A partir disso ficava abolido o
recrutamento forçado, portanto nenhum cidadão poderia ser mais admitido como praça
recrutada. Abaixo contém alguns artigos da nova lei – a Conscripção Militar – que estabelecia
a nova forma de recrutamento para o Exército e a Armada. O periódico militar escreve, no
entanto, que não é necessariamente contra esta lei que se manifestam publicamente contrário,
mas sim pelo fato dela não ser cumprida. Ou seja, no papel a lei se mostra como algo positivo
à “classe militar”, porém ela nunca foi cumprida. O periódico aponta a existência de praças
recrutadas após a execução da lei e que portanto devem ser considerados como voluntários.
Abaixo segue trecho de seus artigos:
LEI N. 2556 – DE 26 DE SETEMBRO DE 1874.
Art. 1.º O recrutamento para o exercito e armada será feito:
1. º Por engajamento e reengajamento de voluntários;
2. º Na deficiência de voluntários, por sorteio dos cidadãos
brazileiros alistados annualmente na conformidade da presente
Lei. 279

A lei ainda continha algumas isenções para pessoas de diversas classes. Segundo
Rafael Roesler (2015) “[...] a lei permitia várias exceções e deixava o alistamento e o sorteio a
cargo das juntas paroquiais, presididas pelo juiz de paz e complementadas pelo pároco e pelo
subdelegado, o que a transformou em um grande fracasso.” (ROESLER, 2015, p. 26). O
Soldado alerta para a possibilidade de militarização do país em caso de guerra, pois, em
função das isenções, o serviço cairia sobre as pessoas sem recursos financeiros e/ou políticos
como está descrito nos seguintes artigos:
No caso de guerra interna ou externa, não se achando reunidas as
camaras legislativas, e não concorrendo voluntários ou não sendo
sufficientes as reservas do § 2. º do art. 4 . º para completar as forças
extraordinárias decretadas nas respectivas leis, ou si nestas não estiver
especificado o modo de preencher as ditas forças, o Governo chamará para
esse fim os alistados nas condições da primeira parte deste artigo, preferindo
quanto fôr possível os das classes mais modernas até as mais antigas pela
seguinte ordem:

277
O Soldado, ano I, edição n. 4, 23 de março de 1881, p. 2.
278
O Soldado, ano I, edição n. 4, 23 de março de 1881, p.2.
279
Lei nº 2.556, de 26 de setembro de 1874. Coleção de Leis do Império do Brasil – 1874.Disponível em
http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/18606,último acesso em 26/07/2017 às 15h07min.
1. º Os solteiros e viúvos sem filhos ;
2. º Os casados, que viverem separados das mulheres e não
tiverem filhos a seu cargo ;
3. º Finalmente, os casados que em filhos, depois de esgotadas
as categorias de nºs1. º e 2. º280

O decreto de sete de janeiro de 1865 também foi publicamente escrito pelo Soldado
que contrariava totalmente os seus interesses. Aparentemente é um decreto que se mostra
favorecedor, já que assegura algumas garantias à classe militar. Porém a insatisfação da classe
está no fato de que são garantias que nunca foram concedidas. O seu artigo 9 decreta que “Os
voluntários terão direito aos empregos públicos, de preferência, em igualdade de habilitações
a quaesquer indivíduos.”281Neste caso O Soldado aponta para o fato de que o artigo deste
decreto é aparentemente bom para a classe, porém ressaltam que os afilhados e protegidos do
governo concorrem e ganham preferência a estes cargos. Por outro lado,em seu 10 artigo está
colocado que “As famílias dos voluntários que fallecerem no campo de batalha, ou em
conseqüência de ferimentos recebidos nella, terão direito a pensão ou meio soldo, confforme
se acha estabelecido para os officiaes e praças do exército.” 282 Porém nesta mesma publicação
o periódico aponta que são muitos os voluntários da pátria que andam inutilizados sem que o
governo olhe para eles.Em seu artigo 12 é colocado que “O governo concederá, em attenção
aos serviços relevantes prestados pelos voluntários, graduações de officiaes honorários do
exército ; e solicitará do corpo legislativo autorisação para conceder-lhes vitaliciamente o
soldo por inteiro, ou em parte correspondente aos seus postos.”283 Diante dos artigos
estatuídos por este decreto surge o seguinte questionamento pelo Soldado: qual validade de
uma lei que aparentemente traz consigo alguns benefícios constitucionais à classe militar que
ao menos é observada e cumprida? O jornal escreve “Quando foi cumprida a disposição deste
artigo? Onde estão estas garantias, ostentadas luxuosamente em um decreto,que apenas foi
publicado para mostrar desejos humanitários?” 284

Portanto o periódico militar O Soldado, como imprensa, se torna um aliado muito


importante dos militares pós Guerra da Tríplice Aliança com o Paraguai e no fim do império
brasileiro. É a partir dessas publicações que começam a aparecer de forma nítida as
insatisfações que atingem o corpo do exército e da armada e as lutas por direitos coletivos,
entendidos como direito de “classe”. Suas justificativas fundamentam-se nas ideias-
argumentos de que seriam os militares responsáveis pela manutenção da legalidade, da

280
Lei nº 2.556, de 26 de setembro de 1874. Coleção de Leis do Império do Brasil – 1874. Disponível em
http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/18606,último acesso em 26/07/2017 às 15h07min.
281
O Soldado, ano I, edição n. 4, 23 de março de 1881, p. 1.
282
O Soldado, ano I, edição n. 4, 23 de março de 1881, p. 1.
283
O Soldado, ano I, edição n. 27, 17 de junho de 1881, p. 1.
284
O Soldado, ano I, edição n. 5, 29 de março de 1881, p. 1.
integridade territorial e, portanto, da unidade nacional. Por isso é que na sua primeira edição o
jornal já mostra qual será seu objetivo contra as medidas tomadas pelo governo imperial: “[...]
a nossa missão está synthetisada em duas palavras: batalhar e reagir.”285
Para concluir, retornemos para a principal fonte desta pesquisa. Ao observar de forma mais
abrangente o período em que surgiu O Soldado como órgão da classe militar, é preciso
compreendê-lo em seu contexto. O Soldadofoi criado no final dos Oitocentos, após a Guerra
da Tríplice Aliança contra o Paraguai, num contexto em que surgiram tambémoutros
periódicos redigidos por voluntários da Pátria. Esse fato, no entanto, mostra a política
Oitocentista de reivindicações e busca por direitos daqueles que se identificavam como classe
militar.
Portanto O Soldado serviu ativamente como instrumento de reivindicação política para
a construção de uma classe militar.Os prejuízos sofridos pela classe em função das alterações
e criações de leis no final dos Oitocentos, no pós-guerra, foram asjustificativasdo periódico ter
saído em defensa do exército e da armada. Nessa perspectiva, reformas constitucionais,
decretos, novas leis, tudo aquilo que envolvesse temas políticos que afetavam os interesses
desses grupos,O Soldadotratariade emitir suas opiniões. É nesse sentido que em sua primeira
edição o jornal escreve que irão “reclamar, perante os poderes competentes, contra as
arbitrariedades de que sejam victimas os militares de patentes e graduados, e contra os
castigos injustos infringidos aos subalternos;” 286

Fontes
O SOLDADO. Rio de Janeiro, 1881.
Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
Último acesso em: 28/07/2017, às 13h48min.
Collecção das Leis do Imperio do Brazil de 1874.
Disponível em: http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/18606,
Último acesso em: 23/05/2017, às 22h05min.

Referências Bibliográficas
BURKE, Peter, 1937 - A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da
hitoriografia / Peter Burke; tradução Nilo Odalia. – 2. ed. – São Paulo: Editoria Unesp, 2010.
FLAMARION, Ciro Cardoso e VAINFAS, Ronaldo (organizadores). Novos domínios da
história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
ROESLER, Rafael. O impulso renovador: a atuação da Missão Indígena na Escola Militar do
Realengo (1919-1922). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: FGV, 2015. 170 f.
FERREIRA LEITE, C. H. O uso dos jornais para o conhecimento histórico: teoria e
metodologia. IN: II CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA UEPG-UNICENTRO, 2,
2015, Ponta Grossa. Anais História, público e leitores, Ponta Grossa, 2015.

285
O Soldado, ano I, edição n. 1, 15 de março de 1881, p. 1.
286
O Soldado, ano I, edição n. 1, 15 de março de 1881, p. 1.
REAL FORTE PRÍNCIPE DA BEIRA: A IMPORTÂNCIA DE SEUS FOSSOS

Lourismar da Silva Barroso287


Academia de História Militar Forte Príncipe da Beira

O presente artigo tem como proposta trazer à luz da sabedoria, discussões sobre os
efeitos da colonização portuguesa no Vale do Guaporé, destacando um dos primeiros
monumentos de defesa na região e suas particularidades em relação ao fosso interno e externo
da fortaleza. Nesse contexto, serão explorados os processos de migração dos colonizadores
por ocasião da construção da Fortaleza e do estabelecimento da mineração, principal agente
motivador do projeto colonial português para a região.
Para Napp/Telles/Silva a cultura material que os indivíduos manejam “é um meio para
executar estas inserções; e no caso dos bens culturais é mais evidente. O que se consome serve
como marcador de diferenças e semelhanças entre os pertencentes a um grupo e entre os
grupos” (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2006, p. 77), desde as culturas “menos complexas” às
mais sofisticadas (Id, Ib., p. 64-76). Há então artefatos que delimitam algo mais que sua
“função”, o artefato torna-se um bem, ou seja, traz em si mais que suas propriedades físicas.
Sobre essas propriedades, executam-se valorações e simbolizações que o caracterizam como
algo que pode ser interpretado como portador de mensagens (BAKTHIN, 1997, p. 33-35).
Essa apropriação dos artefatos caracteriza um tipo específico de domínio que é o das
ideologias (Id., Ib., p. 35). Artefatos que reúnem e afastam conforme se possa ostentá-los ou
usá-los.
Qualquer que seja o objeto que um grupo eleja como representante de uma
manifestação que se deseja preservar, na esfera oficial esse passará por um processo de
pesquisa onde serão levantadas informações desse “candidatado a patrimônio” para saber se
os valores que o grupo reclamante atribui ao objeto estão em consonância com os valores
necessários para se declarar oficialmente que ele merece ser mantido sob os cuidados do
Estado, preservado com recursos do erário público. Tomemos o exemplo de um objeto
cotidiano que se tornou patrimônio, algo que podemos utilizar como símbolo de uma
concepção de história que se utiliza da legitimação oficial para se perpetuar, sendo o caso do
fosso do Real Forte príncipe da Beira.

287
Professor de História da rede pública de Ensino do estado de Rondônia desde 1997. Graduado em História
pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Especialista em Arqueologia da Amazônia pela Faculdade São
Lucas. Mestre em História Pela PUCRS - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Pesquisador do
GEPIAA / UNIR. Professor da Pós-Graduação da Faculdade Católica de Rondônia. Atualmente atua como
Professor Formador Regional do Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio. E-mail:
barrosolourismar@gmail.com
Erguido às margens do rio Guaporé entre os anos de 1775 a 1783, com a missão de
defender e resguardar o espaço português na Amazônia, o fortim foi o mais bem projetado
dentre as nove288 fortalezas construídas ao longo da linha de Tordesilhas entre Portugal e
Espanha como figura abaixo (Fig. 1), época em que o Tratado de Madri de 1750 ditava suas
regras com o Uti Possidetis, tendo como seu defensor Alexandre de Gusmão, de que a terra
pertence a quem a ocupa e não a quem a descobre.

Imagem 1 – Divisão através do Tratado de Madri


Fonte: Histórico do Real Forte Príncipe da Beira – Yeda Bozakov. 1983

O tratado de Madri quebrava regras até então estabelecidas por seus antecessores 289,
Oponente e bem preparado para resguardar o território Português na América, o Real Forte
Príncipe da Beira guarda em seus cômodos escuros e sombrios, histórias e segredos de uma
guarnição que vigiou e protegeu o espaço português, de uma sociedade escrava que
288
1 - Forte Jesus, Maria e José – RS; 2 – Forte Iguatemi – MS; 3 – Forte Coimbra – MS; 4 – Forte Príncipe da
Beira – RO;5 - Forte de Tabatinga – AM; 6 - Forte São Gabriel AM; 7 – Forte São José de Marabitanas – AM;
8 – Forte São Joaquim - RR; Forte de Macapá – AP. Histórico do Real Forte Príncipe da Beira 1983. Pág. 1.
289
Segundo Tratado de Utrecht - 1715. Firmado entre Portugal e a Espanha, restabelecendo a posse da Colônia
de Sacramento para Portugal.
- Tratado de Madri - 1750. Também entre Portugal e a Espanha, estabeleceu os limites entre as colônias dos dois,
na América do Sul, respeitando a ocupação realmente exercida nos territórios e abandonando inteiramente a
"linha de Tordesilhas". (A Colônia de Sacramento passaria para o domínio da Espanha).
- Tratado do Pardo - 1761. Tornaram nulas todas as disposições e feitos, decorrentes do Tratado de Madri.
- Tratado de Santo Ildefonso - 1777. Ainda entre Portugal e Espanha. Seguiram em linhas gerais os limites
estabelecidos pelo Tratado de Madri, embora com prejuízo para Portugal no extremo sul do Brasil.
- Tratado de Badajoz - 1801. Estabelece as condições de paz na Península Ibérica (sem fazer menção aos limites
das colônias de Portugal e da Espanha na América do Sul). Com isto tornou nulas, na prática, todas as
disposições a respeito - entre estes dois países -, permitindo a expansão da ocupação gaúcha até o rio Uruguai.
Positivo 2010 - página 17.
afugentada pelo trabalho, viveu e morou ao redor da grandiosa muralha, com seus costumes e
rituais, viu passar o tempo em que a grande sombra das paredes de pedra trazia descansos e
segurança aos seus moradores que ali envelheciam juntos com o progresso pombalino
implantado na Amazônia.
Hoje, essas histórias são transmitidas de forma oral para a geração futura, na esperança
de se manter viva a tradição, fazendo recortes dos fatos corriqueiros que levantaram dúvidas
quanto a sua veracidade, esses fatos, são em si recontados de diversas formas e maneiras.
Passado de geração a geração em respeito à cultura local como forma de preservar e
manter a historicidade, suas marcas são deixadas por aqueles que viveram e fizeram história
no Vale do Guaporé, em especial aos prisioneiros que foram trancados atrás daquelas grades
que com o objetivo de um dia serem lembrados, resolveram então deixar suas marcas nas
paredes da úmida e solitária masmorra. Várias inscrições foram feitas com objetos
perfurantes, algumas permanecem legíveis mesmo através da ação do tempo, outras, os blocos
já se desprenderam da parede e vieram ao chão. Poemas e lamentações de vida sofrida foram
deixados como símbolo da memória, com respeito a caligrafia de seus mentores, se tem
escrito: “nesta triste e horrorosa prisão vive o pobre e Enfeliz Pacheco, com grossa e
comprida corrente ao pescoço”, outro poema é assinado pelo prisioneiro Juvino: “A Deus
ingrata prizão, de ti me despesso obriozo, tendo suportado gostozo, em ti a mais dura
aflição”.
Um poema é de causar curiosidade de todos que adentram na masmorra, sendo
desconhecida a origem de seu autor, chamando atenção pela eloquência das palavras:
“Mato Grosso me prendeo
A Fortaleza me cativou
Preso e cativo estou
De quem tanto me favoreceo
Grande satisfação tevi
Quando em liberdade
Agradecer a boa vontade
Com quem alguns senhores
Me fazem seus favores
Nesta minha advercidade
Neste desterro desgraçado
Em que a corte me lançou
Muito agradecido estou
A tropa e povo honrado
Agradecido e obrigado
As esmolas que me tens feito
Capitão Cunha em meu peito
O teu nome tenho gravado
E nele será, conservado

Cá ahonde do Brasil
O reino principia
Província de Mato Grosso
Assim chamada
Nesta abobada imunda inabitada
Noite e dia
Com graça e comprida
Corrente fria
Tem seu colar
Do pescoço pendurada
Com dois mantos
Escolhidos e emprestados
Pelos maiores
Que na terra havia”.290

Essas escritas são hoje estudadas e debatidas no meio acadêmico, buscando uma
interpretação mais plausível da história passada e vivida sobre quatro paredes, talvez para
muitos tivesse sido seus últimos momentos de vida. Para outros que, de certa forma prestaram
serviço militar no Real Forte Príncipe, protegendo e servindo a coroa portuguesa na fronteira
como também contribuindo na construção ou até mesmo morando e vivendo próximo à
grandiosa muralha sendo soldado do progresso.
Desde os preparativos para a sua construção, o projeto da fortaleza veio demostrando
problemas de caráter orçamentário e de contingente de mão de obra para a coroa, sendo os
mesmos recrutados nas principais capitais do Brasil em pleno século XVIII, como era
intenção dos Lusitanos:

“A soberania e o respeito de Portugal impõem que neste lugar se erga um


Forte, e isso é obra e serviço dos homens de El-Rei nosso Senhor e, como tal,
por mais duro, por mais difícil e por mais trabalho que isso dê... É serviço de
Portugal. E tem que se cumprir” 291.

Sem obter informação sobre o local, os trabalhadores eram recrutados e embarcados


rumo ao Guaporé na esperança de vida melhor, mas quando aqui chegavam, viam que a ilusão
acabava com os sonhos de muitos que buscavam ter o mínimo para viver. Para a construção
do Real Forte Príncipe da Beira, não se tem um número preciso quanto ao quantitativo de
operários que trabalharam em sua construção, sabemos que aproximadamente 1000 escravos
livres e de ganho trabalharam na obra, 200 carpinteiros que vieram de Belém do Pará, São
Paulo e do Rio de Janeiro para concretizar o sonho do governo português, tivemos também a
participação de índios que habitavam na fronteira e próximo ao local, sendo arregimentados
como trabalhadores. Para Denise Meireles, em sua obra guardiães da fronteira menciona que:
“a maioria dos trabalhadores que foi enviado para as obras era formada de sentenciados”
(MEIRELES, 1989).

290
Histórico do Real Forte Príncipe da Beira. 1983 – pág.17
291
D. Luiz de Albuquerque Mello Pereira e Cáceres, 4º Capitão General da Capitania de Mato Grosso – junho de
1776.
Em comparação ao forte anterior de Nossa Senhora da Conceição que foi construído
em 1760 com frágeis estacas, arrastado pela primeira enchente das águas do rio Guaporé em
1771, por ter sido feito em terreno baixo e de péssima localização. Subindo dois quilômetros
acima do antigo fortim, em um local estratégico e bem mais seguro das águas, se ergueu a
poderosa fortaleza, sendo utilizada para a sua construção a pedra canga, que a princípio se
tentou encontrar nas proximidades da região. Onde seria feita a construção, um pouco mais
acima da região de Albuquerque se encontrou em abundância a matéria prima. Para servir de
rejunte entre as pedras, se utilizou a pedra cal que fazia a função de cimento.
As pedras cangas eram trazidas de certa distância sob-roletes de madeira e ao chegar
ao local sofriam alguns cortes de forma precisa, depois passavam a ser entalhadas no chão e
de uma por uma era dado o acabamento necessário, em seguida eram empilhadas uma sobre a
outra. Terminada a primeira fase de levantamento das paredes interna e externa, a fortaleza
recebeu a cobertura feita de telha de barro, onde foram encontrados alguns exemplares e
resíduos das mesmas em seu interior. No entanto, após o seu abandono “provavelmente” em
1889, os vizinhos bolivianos a invadiram e saquearam seus pertences, levando para além da
fronteira quase todo material que foi utilizado para a sua construção, incluindo telhas e caibros
de madeira de lei. No interior dos aposentos dos soldados e oficiais, o piso foi revestido de
tijolinhos encaixados de forma simétrica, podendo hoje ser notado apenas na área da capela
que resistindo à ação do tempo e de vândalos, permanece escondido sobre os ramos de capim
rasteiros.

O FOSSO INTERNO
O seu interior ainda é motivo de especulações e de curiosidades, talvez por falta de
um levantamento mais preciso que seja concreto e sistemático, deixando as pessoas que não
tem conhecimento científico e técnico dos fatos, a ilusão de que haveria uma passagem secreta
que interligava a fortaleza com seu lado oeste ou que daria refúgio para o rio.
Em história narrada pelo senhor Saldanha que ouviu de um velho chamado Inácio
morador há muitos anos na região do Guaporé, acima da localidade da Ilha das Flores, o
mesmo relatou que serviu como soldado no Forte Príncipe da Beira ano em que de lá saiu o
último contingente deixando o local em 1895. O soldado Inácio relata a história de um poço,
que ficava no centro do pátio da fortaleza, sendo bem profundo, e á meia altura do mesmo,
tinha duas entradas, com saletas para ventilação e também um posto de guarda próximo ao
local, declara ainda que havia duas saídas subterrâneas, uma em direção a serra, que se
correspondia com a casa da pólvora (paiol) e a outra em direção ao rio. No caso de um ataque
surpresa dos espanhóis pelo rio, a saída pelo fosso 292 em direção a serra permitia a fuga rápida

292
Fosso: Cavidade para fechar um espaço, para defender uma praça ou fazer escoar as águas.
pelo fundo, sendo que pouco adiante existia uma bifurcação em forma de trincheira, aonde se
chegava a Lamego, frente à foz do rio Machupo.
O que vimos na imagem (Fig.2/3/4/ e 5) é totalmente contrário do que foi dito pelo
senhor Inácio, o “poço” no qual menciona o antigo soldado do forte se trata de um fosso que
fica bem no centro do pátio interno da fortaleza, sendo criado para armazenar água para servir
aos seus ocupantes, que no período da chuva, esse fosso passava a encher a ponto de
transbordar para dentro da fortaleza, por isso que no interior do “poço” havia uma saída e não
duas como menciona senhor Inácio justamente para servir de sangradouro, evitando assim o
alagamento em seu interior. Sua estrutura é feita de pedra canga (laterítica) na base e na parte
superior da boca do fosso, pequenos tijolos formando um design de meia lua, a sensação que
se tem ao está dentro do fosso é de está olhando para o teto da Capela Sistina de Roma.

Imagem 02: Teto da Cisterna Imagem 03:Parede lateral da Cisterna


Fonte: Sgt. Guacira
3
Fonte: Sgt. Guacira
2

Imagem 04: Buraco abaixo da cisterna Imagem 05: Sangrador da Cisterna


Fonte: Sgt. Guacira Fonte: Sgt. Guacira

Para especialistas em estudo de fortificações, a referida passagem tem fundamento


quando se aplica ao propósito de servir como uma rota de fuga caso o inimigo invadisse seu
interior, até porque no projeto original do Real Forte Príncipe da Beira, em sua planta se vê o
que seria de fato a passagem secreta, o que não foi colocado em prática, talvez por algum
motivo, pois o que se observa é uma espécie de reservatório de água para captação de água da
chuva, para servir aos habitantes da fortaleza, ou seja, com sua entrada estreita medindo
40X40 cm, ficaria impossível passar um homem com mais de 90 centímetros de
circunferência, conforme imagens 6 e 7 abaixo, caso houvesse uma fuga, seria impossível
levar armamento e mantimento, correria o risco de ficar entalado na boca do fosso.

Imagem 06: Entrada principal Cisterna Imagem 07:Planta da Cisterna


Fonte: Sgt. Guacira Fonte: Sgt. Guacira

Toda a lateral do fosso é revestida de pedra canga, com uma profundidade de 3,50 cm,
sua largura na entrada é de 40 centímetros e na parte interna é um quadrado de 4 metros de
diâmetros. Já chegando à parte superior do fosso, se percebe um canal de pedra que sai em
direção à saída lateral, depois vai beirando a muralha interna e some por debaixo da grande
muralha externa de proteção.
No local percebemos a passagem estreita do canal feito de pedra para interligar o fosso
interno, conforme imagens 8 e 9 abaixo, o que nos leva concluir que o córrego se trata de uma
espécie de sangradouro , permitindo a saída da água que ficaria acumulada no interior da
fortaleza, que ao alcançar certo nível, passaria a despejar para fora toda água excedente,
ficando apenas alguns metros do líquido para o abastecimento interno, descartando a hipótese
de que aquele fosso interno se tratasse de uma saída rápida caso os invasores espanhóis
adentrassem na fortaleza, ou que, a alternativa, fosse de evadir- se rumando em direção às
montanhas, lugar do paiol, pois ali poderiam se armar e resistir à invasão espanhola, até
porque, os soldados da fortaleza estariam em um terreno privilegiado e estratégico.
Por falta de documentação no pequeno museu instalado no pelotão Especial de
Fronteira (PEF-1932) em frente ao forte, que poderiam sanar algumas dúvidas que pairam
sobre sua construção, as interpretações e imaginações são sustentadas pelo vício do erro que
alimentam seus visitantes quanto à construção da fortaleza.
Imagem 8: Entrada do fosso interno Imagem 9: Saída lateral do fosso
Fonte: Lourismar Fonte: Lourismar

A referida passagem como se vê na imagem 7, foi abordado pelo escritor Manuel


Pontes Pinto que resolveu escrever algumas linhas sobre o assunto e conclui que:
“No centro há uma grande cisterna com os escoadouros necessários para o
excesso de água, cuja abertura de saída é vista na barranca do rio, como um
corredor quebrado, de dois palmos de face, fechado por uma grade de ferro”
PINTO - pág. 49.

Notamos que essa passagem mencionada por alguns autores não condiz como saída da
fortaleza ou como passagem secreta que daria acesso a montanha caso houvesse uma invasão
por parte do inimigo, essas histórias orais sem embasamento teórico e científico só tem
aumentado a curiosidade de seus moradores que repassam aos seus visitantes.
Em outra história contada por um índio nhambiquara, por nome de Antônio Guaporé,
que tinha como missão suprir de gêneros alimentícios o pessoal que trabalhava na fazenda,
esse índio se perdeu quando estava perseguindo uma vara de porco do mato, ficando sem
paradeiro na mata, sendo encontrado no quarto dia todo estropiado, trôpego e faminto. Em seu
linguajar nhambiquara, contou aos colegas que quando estava perdido na mata, se deparou
com uma casa toda de pedras com janelas altas, ferro grosso e uma única porta de ferro,
fechada com enorme e estranho cadeado, aproximou-se para olhar entre as guarnições de
ferro, mas não conseguiu devido à altura e por estar cheia de maribondos. Portanto, passado
15 dias o índio e seus companheiros resolveram fazer uma nova investida ao local, procurando
passar cuidadosamente pelos mesmos lugares na esperança de encontrar a tal casa, mas não
tiveram êxito.

O FOSSO EXTERNO
Paralelo às investigações do fosso interno, há também outro questionamento referente
ao fosso externo. Para quem chega ao local da construção do Real Forte Príncipe da Beira,
como foi o caso da expedição de Rondon em 1911, encontraram o local em total abandono e
tomada pela mata, percebe-se certo desnível de terra que não condiz com a paisagem em torno
do mesmo, a paisagem apresenta uma formação de serrito justamente onde foi cavado para
sua construção, conforme imagem 10 abaixo. Estando próxima a lateral oeste da fortaleza, a
diferença de altura se torna mínima diante dos 10 metros de altura que tem a muralha, é
perceptível a diferença, dando a entender que toda a terra que foi retirada do lado de fora está
em seu interior servindo de lastro.

Imagem 10: Fosso externo


Fonte: Lourismar.

A parte externa que foi escavada acabou sendo de propósito um fosso externo com
larguras variáveis, guardando, porém, efetiva a profundidade de dois metros à frente e flanco
esquerdo é de 32 metros de lado. Em frente ao portão principal, atravessaria uma ponte de 31
metros, parte da qual na extensão de quase quatro metros era levadiça e se recolheria ao forte.
Se a intenção do projeto original fosse colocado em prática, toda a lateral da fortaleza seria
tomada por água, dificultando a entrada em seu interior. Entretanto, o que se percebe
visivelmente ao estar no local da construção, é que o Real Forte príncipe da Beira tem uma
semelhança com as fortalezas de Luiz XIV, rei francês que adorava criar obstáculos aos seus
inimigos. Recorrente a isso, se tem comprovado que a engenharia portuguesa na Amazônia foi
colocada em prática por Marquês de Pombal a mando do Rei D. José I e o responsável pelo
desenho das plantas das fortalezas brasileiras foi Sébastien Le Prestre, mais conhecido como o
Marquês de Vauban (1633 - 1707), onde o aspecto principal do sistema Vauban era o
emprego de fortificações temporárias - trincheiras e aterros para proteger a progressão da
tropa o que se comprova indo no local.
Podemos concluir que a intenção de armazenar água do lado de fora da muralha era de
suma importância, mas não teve efeito, visto que o armazenamento que temos hoje é de
pequenas poças de água oriundas da chuva, seu fosso externo deu lugar a um campo com
grama baixa, onde cabritos e carneiros pastam em seu arredor.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BARROSO, Lourismar da Silva, Real Forte Príncipe da Beira: ocupação oeste da capitania
de Mato Grosso e seu processo construtivo (1775-1783). Dissertação de Mestrado. Rio
Grande do Sul: PUCRS, 2015.
BAKHTIN, M. – VOLOCHÍNOV, V.N. Marxismo e teoria da Linguagem. São Paulo:
HUCITEC, 1997.
DOUGLAS, M. e ISHERWOOD, B. O mundo dos bens. Para uma antropologia do consumo.
Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2006.
MEIRELES, Denise Maldi. Guardiões da Fronteira. Rio Guaporé, século XVIII. Petrópolis:
Vozes. 1989.
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PINTO, Emanuel Pontes. Rondônia evolução histórica. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura,
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TEIXEIRA, Marco Antônio Domingues. Campesinato Negro de SANTO Antônio do Guaporé,
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TEIXEIRA, Marco Antônio Domingues. Dos campos d’ouro à cidade das ruínas. Grandeza e
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Dissertação de Mestrado em História. Belém: FFLCH/UFPA, 1997.
TEIXEIRA, Marco Antônio Domingues e Dante Fonseca. História Regional (Rondônia). 2ª
Edição. Boa Vista: Editora Rondoniana, 2000.
OS DIÁLOGOS ENTRE A MARINHA E AS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS DO II
IMPÉRIO (1840-1889) A PARTIR DO PERIÓDICO “O BRASIL MARÍTIMO”

Luís Filipe Negrão de Souza


Graduando de Licenciatura em História – Universidade Estadual de Londrina

Orientador: Prof. Dr. José Miguel Arias Neto

INTRODUÇÃO
Este trabalho visa a apresentar os principais resultados alcançados ao longo de um ano
de abordagens em relação ao periódico militar “O Brasil Marítimo”, lançado na Bahia em
Dezembro de 1853. Foram analisadas as 24 primeiras edições do jornal, correspondendo à
totalidade do primeiro ano de sua circulação. Buscou-se, principalmente, o estudo dessa fonte
primária como objeto essencial para reflexões acerca da inserção da Marinha nas discussões a
respeito dos temas ciência, tecnologia, modernização e política, os quais estavam em pleno
debate no período.
O periódico “O Brasil Marítimo” teve sua primeira publicação datada em 01 de
Dezembro de 1853 e permaneceu ativo até o ano de 1859. As nove primeiras edições do jornal
foram produzidas pela “Typographia do Jornal da Bahia”, sendo que a partir da décima, essa
atribuição passou à “Typographia do Diario de Pernambuco”, sem que houvesse mudanças
significativas em relação à sua organização gráfica. O jornal contava com a colaboração de
oficiais da Marinha e era redigido pelo 1º Tenente Euzebio José Antunes e pelo 2º Tenente
Francisco Manoel Alvares de Araujo. Mesmo apresentando essas informações iniciais, o
periódico segue em suas edições uma linha de não apresentar as assinaturas de seus
colaboradores. Salvo raras exceções, a regra geral era de que quando aparecia algum tipo de
identificação, tratava-se apenas das iniciais do autor. Em seu primeiro artigo, o “Brasil
Marítimo” cita a “Revista Marítima” (fundada em 1851) como sua antecessora, não
economizando elogios em relação a essa e indicando a necessidade de um novo canal de
divulgação dos principais interesses da Marinha.
Logo na capa da edição pioneira, o periódico indica seus objetivos primordiais, os
quais serão abordados nas principais matérias do jornal:
Propagação dos conhecimentos maritimos, e dos melhoramentos feitos na
difficil arte de navegar. Legislação, organisação. Direção e administração da
Marinha de guerra nacional. Historia dos grandes homens do mar, Poesia,
Romance, Noticias e Variedades. (BRASIL MARÍTIMO, ed. 01)

Focou-se nessa pesquisa, principalmente, em artigos que se relacionavam aos temas


“Ciência”, “Tecnologia” e “Política”, buscando-se dessa forma compreender como a Marinha
se portava diante das ações do Império Brasileiro relacionadas a um contexto de apelo à
“modernização” do aparato militar do país. Dessa forma, as matérias foram analisadas a partir
do questionamento central da maneira pela qual a Armada se posicionava frente a essa
realidade.
Assim, como evidenciado, o objeto essencial da pesquisa foi a imprensa militar, campo
ainda pouco explorado pela historiografia brasileira. É importante destacar que tanto a
História Militar quanto a utilização de jornais como fontes históricas passam por importantes
reavaliações a partir da década de 1970. Como indica Marcos Sanches (2010 apud SOARES;
VAINFAS, 2012, p.114), a partir desse período a História Militar passa a apresentar
novidades e, dentre elas, destaca-se uma ampliação de seus objetos e abordagens, com a
guerra não sendo mais tida como o único enfoque possível. É nesse sentido que insere-se a
seguinte pesquisa, visto que temas como tecnologia, ciência e política foram o enfoque central
em detrimento dos conflitos bélicos em si. Além disso, a análise do “Brasil Marítimo”
enquanto fonte primária faz parte desse movimento em que são propostos novos objetos para
o estudo da História Militar.
Também a imprensa enquanto fonte histórica passa por relevantes transformações a
partir da década de 1970, como aponta Carlos Ferreira Leite (2015). Antes tidos apenas como
“fontes suspeitas” ou então “repositórios da verdade” (CAPELATO, 1988 apud FERREIRA
LEITE, 2015), os jornais foram ganhando destaque como importantes objetos para o estudo
dos mais variados aspectos históricos. Com base em uma metodologia crítica que leva em
conta, por exemplo, as intencionalidades do grupo produtor um determinado veículo
impresso, toma-se a imprensa como força ativa em relação ao contexto histórico no qual está
inserida, e não como uma mera difusora de informações.
Foi a partir dessas perspectivas que a seguinte pesquisa se desenvolveu. “O Brasil
Marítimo”, enquanto um periódico editado por membros da Marinha Brasileira da década de
1850 é um objeto muito pertinente para o estudo dessa instituição durante esse período.
Apresentando-se como um veículo impresso, o qual tem seus objetivos e expressa um
determinado posicionamento, esse periódico pôde ser analisado como uma força ativa dos
membros da Armada frente à realidade de seu tempo, algo que se insere plenamente enquanto
uma possível abordagem relativa à História Militar.

METODOLOGIA
Como fonte primária e essencial da pesquisa foi utilizado o periódico “O Brasil
Marítimo” e, dessa forma, lançou-se mão de uma metodologia que buscou ampliar as
potencialidades de análise do objeto em questão. O primeiro ponto a ser ressaltado é que,
realmente, como já citado nesse artigo, a imprensa enquanto fonte histórica vem ganhando
espaço em trabalhos recentes e a seguinte produção segue a linha de analisá-la seguindo a
perspectiva de que essa:
[...] não apenas interfere nas questões políticas, mas em diversos setores da
vida social, na articulação e disseminação de ideias, valores, referências,
memórias, ideologias, modos de pensar e agir em sua historicidade, o que a
torna uma fonte inesgotável de pesquisa e estudo. (FERREIRA LEITE,
2015, p. 5)

Entre os pontos que favoreceram de maneira essencial essa expansão do uso dos
periódicos enquanto fonte histórica, segundo Ferreira Leite (2015), podem ser destacadas a
restauração e manutenção dos jornais em diferentes centros de preservação. Dessa forma,
torna-se presente a facilidade de acesso a essas fontes por parte dos historiadores, via meios
tanto físicos, quanto digitais. Na presente pesquisa, essa possibilidade foi fundamental, uma
vez que todas as edições analisadas foram disponibilizadas como arquivo digital pela
Hemeroteca Digital, a qual permite a organização dos jornais conforme as datas de
publicação.
Uma vez acessadas as fontes, foram estudadas as 24 edições do primeiro ano (1854) do
“Brasil Marítimo”, totalizando 202 páginas e 138 artigos analisados. Como sugere Ferreira
Leite (2015, p. 14), foram recolhidas informações básicas e essenciais quanto ao periódico
como sua data de produção e veiculação, seu público, seus produtores e também os objetivos
principais. A partir dessas informações primordiais, a análise de outras questões se tornou
mais clara. Assim, cada um dos artigos publicados foi esmiuçado já com esses elementos
básicos relacionados à fonte devidamente conhecidos, o que possibilitou que suas informações
fossem exploradas de maneira mais segura.
Os artigos do jornal foram todos quantificados e classificados a partir de seus
principais objetivos e informações, seguindo o modelo tipológico utilizado por José Miguel
Arias Neto (2016, p. 09 e 10) em sua pesquisa sobre o também periódico militar da segunda
metade do século XIX “Revista Marítima Brasileira”. Com isso, a categorização se constituiu
em seis grandes áreas, quais sejam Política (matérias ligadas a um anseio específico dos
militares, bem como textos em que se desenvolve um diálogo direto com instituições do
Império, como a Câmara dos Deputados); Organização (artigos em que são demonstradas as
carências, como as de infraestrutura, da Marinha); História (textos relacionados à história das
guerras e instituições militares); Ciência (artigos que tratavam de temas que envolviam a
concepção de Ciência do século XIX, englobando áreas como a geografia, matemática e
relatos de viagens); Tecnologia (matérias em que ficavam explícitos os resultados da
aplicação prática do conhecimento científico); Outros (temas diversos). Essa classificação foi
essencial para a análise dos principais objetivos do periódico, uma vez que permitiu a
quantificação dos artigos relacionados a determinados temas, como, por exemplo, política e,
assim, ficaram explícitas certas tendências do “Brasil Marítimo” que serão expostas
posteriormente nesse texto.
O estudo dos artigos e do periódico como um todo se deu a parir de algumas questões
norteadoras, como a necessidade de posicionamento crítico em relação a esse tipo de fonte,
pelo qual é essencial:
[...] Reconhecer seus limites, problemas e historicidade, é pensar o jornal
como um produto resultado de conflitos e interesses no interior de uma
sociedade, manipulado e produzido dentro de forças conflitantes, sujeito a
interferências internas e externas, regulado por leis e regras de conduta,
produzido por um grupo de pessoas para um estabelecido público, em uma
situação específica, em um determinado lugar e época [...] (FERREIRA
LEITE, 2015, p. 13)

Outro aspecto importante foi a inserção da pesquisa no movimento indicado por Luiz
Carlos Soares e Ronaldo Vainfas (2012, p. 113 e 114), pelo qual há a “[...] relativização da
guerra como objeto exclusivo da história militar [...]”. Assim, o que mais se buscou ao longo
da pesquisa não foi a análise dos artigos estritamente ligados a conflitos bélicos, e sim os
textos que indicavam, principalmente, as posições dos membros da Marinha em relação às
transformações tecnológicas por que o Brasil e o mundo passavam naquele período, além da
inserção da Armada em discussões de cunho político ao longo da década de 1850, por meio do
“Brasil Marítimo”.
Essa linha interpretativa vai ao encontro do que Capelato (1988, p.34 apud
FERREIRA LEITE, 2015) propõe em relação ao estudo da imprensa enquanto fonte histórica.
Segundo a autora, as concepções políticas e sociais de determinada época podem ser avaliadas
a partir dos periódicos relacionados a esse contexto. Além disso, os artigos publicados pelos
jornais permitem o aprofundamento relativo a questões econômicas, envolvendo também
aspectos como as “relações e lutas sociais”. Foi justamente essa a preocupação da pesquisa,
uma vez que “O Brasil Marítimo”, enquanto objeto principal de estudo, foi tido como um
meio privilegiado para a obtenção de informações como as disputas, intenções e
reivindicações de determinado grupo social do II Império Brasileiro (1840-1889), no caso, os
membro da Marinha.

O “Brasil Marítimo” enquanto instrumento de reivindicação


Como já explicitado anteriormente, o periódico analisado traz como um de seus
objetivos a ideia de transmitir a seus leitores as novidades no campo marítimo, relacionadas,
muitas vezes, aos avanços científicos. Dessa forma, grande parte de seus artigos são
direcionados a temas como normas técnicas ligadas à navegação e inovações tecnológicas no
campo marítimo-militar. A partir do levantamento feito nessa pesquisa, percebe-se que cerca
de 20% dos textos são dedicados à Ciência ou à Tecnologia, de acordo com a classificação
anteriormente discutida nesse artigo. Portanto, fica evidente a preocupação dos editores do
“Brasil Marítimo” em situar seu público em relação às principais novidades “modernizantes”
da época, propondo a aplicação de muitas delas à realidade da Armada brasileira.
Essa consideração está ligada a um contexto mundial da segunda metade do século
XIX, marcado pela grande quantidade de inovações no campo tecnológico em geral e
também, especificamente, ligado à navegação. Segundo Arias Neto (2016, p. 1),
[...] Entre os anos de 1850 a 1880 os navios deixaram de ser construídos em
madeira e passaram a ser construídos de aço, a artilharia deixou de ser
composta por canhões de almas lisas e granadas sólidas e passou a ser
composta por armamentos de almas raiadas e granadas ocas, bem como
houve a introdução da radiotelegrafia, entre outros melhoramentos. Essas
transformações aceleradas provocaram, entre os oficiais de Marinha e as
altas autoridades, debates sobre a necessidade e os modos de implementá-las
frente a diferentes contextos [...]
No caso do periódico em questão são encontrados artigos relacionados, por exemplo, a
história e a aplicação prática do vapor, da pólvora, do magnetismo, sendo que os dois
primeiros ganham um número considerável de artigos e exigem que as matérias tenham
continuação em edições posteriores. Além disso, relatos de viagens marítimas e o trajeto feito
por meio dessas também recebem a atenção dos editores, ainda que em menor escala. É
interessante notar que, em relação a esses avanços científico e tecnológicos e à ideia de
modernização, fica clara a posição do “Brasil Marítimo” em estabelecer a Inglaterra e a
França como os principais modelos a serem seguidos pela nação brasileira. Vários são os
artigos traduzidos ou do inglês ou do francês, e não só relacionados à Ciência em si, mas
também matérias relacionadas à organização militar desses países, como é o caso de uma série
de textos (nove, no total) que tratam de alguns colégios militares da França. Como exemplo
dessa situação em que os dois países são postos como exemplo à Marinha brasileira, temos já
na primeira edição e no segundo artigo do periódico a reivindicação pela introdução no Brasil
de um Conselho de Almirantado aos moldes dos da Inglaterra e da França.
Este corpo tão necessario, e cuja creação tem sido tão reclamada pela Revista
Maritima Brazileira, que n’isto tem servido de echo á armada inteira, é o
Conselho de Almirantado, que tanto na Inglaterra como na França é
incumbido da legislação maritima, da organisação das esquadras, do modo
de abastecer os arsenaes, dos trabalhos e construções maritimas, emfim da
direcção e emprego das forças navaes. [...] (BRASIL MARÍTIMO, 1853,
ED.01, p.2)
Ao longo desse primeiro ano de publicações do periódico, percebe-se uma grande
preocupação de seus editores e colaboradores em indicar mudanças necessárias para a
introdução de melhorias relacionadas a diversos âmbitos referentes à Marinha, como
organização dos quadros e promoções, modernização, aumento dos soldos, entre outras.
Assim, é evidente a intenção de que a Armada pudesse se fortalecer como instituição do
Império e várias críticas são apresentadas à situação dessa naquele período. As justificativas
para tal iniciativa do jornal também podem ser verificadas com a leitura de alguns de seus
artigos. Destaca-se, por exemplo, a crença de o Brasil deveria ocupar uma posição
preponderante em relação à América e até ao “Velho Mundo” por suas riquezas naturais e
posição geográfica. Esse patamar só seria atingido a partir da existência no país de “uma boa
marinha” (BRASIL MARÍTIMO, 1853, ED.01, p.2). Aqui já se faz presente uma das
principais preocupações do periódico, a qual é justamente a afirmação do corpo militar
brasileiro em relação a outros países.
Nesse sentido, destaca-se a posição brasileira frente, principalmente, aos países do Rio
da Prata (Paraguai, Uruguai e Argentina) e também aos Estados Unidos. No artigo intitulado
“A creação das estações navaes”, presente na sétima edição do jornal, há referências à
necessidade de investimentos na Marinha brasileira como uma consequência da “politica
agressiva e desleal” que o presidente argentino Rozas vinha aplicando na região. Assim, o
autor do texto afirma que “[...] Hoje a conservação de uma força naval respeitável no Prata é
indispensável [...]” (BRASIL MARÍTIMO, 1854, Ed.07, p. 59). Já no artigo “Força Naval”,
da edição número 12, o Brasil é apresentado como a “segunda potencia marítima da
América”, atrás apenas dos Estado Unidos, e não deveria possibilitar uma situação em que se
tornasse muito inferior a esse país para que pudesse responder à altura qualquer tipo de
agressão. São citadas nesse texto as supostas “[...] intenções civilisadoras dos nossos amigos
Yankees sobre o fertil e grandioso Amasonas [...]” (BRASIL MARÍTIMO, 1854, Ed. 12, p.
97). Portanto, o periódico busca posicionar, em diferentes artigos, o Brasil como uma nação
com grande potencial para exercer sua soberania e seus interesses em relação ao território do
continente americano. Porém, para isso, seriam necessários investimentos e melhorias
referentes à Marinha.
Dessa forma, entra-se em um campo essencial na análise em relação ao “Brasil
Marítimo”, qual seja o grande número de artigos que reivindicam diversos tipos de mudanças
e avanços para a Armada brasileira. Em muitos desses textos, há contatos, diretos e indiretos,
com a política da época, sendo que as decisões governamentais são muitas vezes comentadas,
elogiadas e criticadas e, por vezes, busca-se o diálogo com deputados e ministros.
Embora na capa da primeira edição do jornal, já citada nesse trabalho, não esteja
presente como foco do jornal a política, vários são os artigos com essa conotação ao longo
desse primeiro ano do periódico. Nesse sentido, classificamos como “políticos” os artigos que
tratam da “[...] mobilização dos militares em torno de alguma reivindicação específica [...]”,
englobando também “[...] os artigos que dizem respeito ao diálogo específico do periódico
com os organismos de Estado como o Senado e Câmara de Deputados.” (ARIAS NETO,
2016, p. 09). Em um levantamento com 24 edições, tem-se 27,5% de artigos dedicados à
política, ou seja, mais de um quarto dos textos publicados se referem a esse tema. Como
“reivindicações específicas” apresentadas pelos colaboradores e redatores do “Brasil
Marítimo”, podem ser destacadas a busca por um renovado quadro de promoções, lutas por
melhores rendimentos para os marinheiros, emprego de diferentes inovações técnicas,
reformas no ensino da Marinha, entre outros.
Além de uma contradição relacionada aos objetivos enumerados na capa já citada, o
tratamento dado pelo “Brasil Marítimo” à política também vai de encontro a um dos trechos
também da primeira edição: “O Brasil Maritimo, unicamente dedicado aos interesses da classe
militar, de forma alguma tratará da politica: a mais pronunciada imparcialidade presidirá á
analyse, que houver de fazer ás medidas tomadas pelo governo [...]” (BRASIL MARÍTIMO,
1853, ed.01, p.01). Como afirmado anteriormente, o periódico tem um envolvimento
significativo em questões “políticas”. Além disso, não faltam críticas a membros do governo
em seus artigos, como pode-se notar em um texto da quarta edição no ano de 1853, em que
são feitas críticas fortemente ligadas à política ministerial. Nesse artigo (“Estudo sobre a
nossa Marinha de Guerra. Art. II - Do Estado Maior”), é dado um destaque negativo
especialmente à Câmara de Deputados, a qual, segundo o autor, daria pouca importância aos
baixos soldos pagos aos marinheiros. Além disso, é apontada a falta de representatividade
enfrentada pela Marinha em relação ao órgão legislativo, sendo que essa só seria lembrada
“nas occaziões criticas”, quando “ amparam-se com ella, e então não ha elogios, que lhe não
sejam espontaneamente leitos.” (BRASIL MARÍTIMO, 1854, ed.04, p. 35).
Portanto, é evidente que o periódico se refere efetivamente à política imperial do
período, sendo presentes diversas críticas à forma como essa era conduzida, principalmente
em assuntos relacionados à Marinha. Porém, também são encontrados casos nos quais o jornal
se direciona de maneira elogiosa a certos políticos e mesmo a decisões que teriam favorecido
os marinheiros. Nesse caso, é notória a maneira respeitosa e solene pela qual o imperador D.
Pedro II era invocado nas páginas do “Brasil Marítimo”. Na décima edição do ano de 1854
(p.81), tem-se a seguinte frase, retirada do artigo “Estudos sobre a nossa Marinha de Guerra”:
“nosso adorado Monarcha pela prosperidade de Seu rico Império; prova que o nosso Joven
Inoperante está convencido de que na marinha repousa a futura grandesa do Brasil”. Nas
outras vezes em que o imperador é citado, tem-se um ar de legitimidade e submissão
consideráveis. Não foi encontrado um só artigo em que a Monarquia em si fosse questionada
ou se propusesse outro sistema de Governo. Pelo contrário, em “Parlamento Discussão dos
negócios da Marinha”, publicado na décima sétima edição do jornal (p. 138), a Monarquia
brasileira é tida como possibilitadora da “excepcionalidade” e da “preponderância” do país
frente a seus vizinhos republicanos. Esse tratamento em relação a D.Pedro II e à Monarquia
também não deixa de ter sua conotação política, a partir de uma opção dos próprios redatores,
o que contradiria a pretensa noção de “imparcialidade”.
CONCLUSÃO
Ao longo da pesquisa, ficou evidente o quanto o periódico buscou inserir-se enquanto
força ativa em relação aos fatos marcantes de sua época. Assim, a partir das próprias
intencionalidades do “Brasil Marítimo”, pôde-se analisá-lo não simplesmente como um
veículo de informações, mas sim como um instrumento à disposição de membros da Marinha
os quais lutavam por determinadas reivindicações. Percebe-se a preocupação dos editores e
colaboradores do jornal com a situação da Armada brasileira do período, gerando diversos
artigos em que melhorias são propostas. Dessa forma, realmente, o periódico, ao longo de
suas vinte e quatro primeiras edições, apresenta-se ao público como um agente combativo por
transformações relacionadas à Marinha.
Por meio da classificação em que foram enquadrados os artigos do periódico, foi
possível a percepção dos principais temas norteadores de suas publicações. Com isso,
destacam-se as matérias relacionadas às categorias Ciência, Tecnologia e Política (67,5%), o
que demonstra o interesse dos editores em situar seus leitores quanto às inovações da época,
bem como reivindicar a adoção de muitas delas na Marinha brasileira por meio de artigos em
que se estabelecem diálogos com órgãos do governo. Assim, é notável a contextualização do
“Brasil Marítimo” a um período marcado mundialmente pelas transformações e inovações
técnico-científicas, assim como a ação do jornal em busca da inserção da Armada brasileira
nessa realidade.
Portanto, seguindo a tendência que tem se consolidado em relação à “Nova História
Militar” (SOARES; VAINFAS, 2012), essa pesquisa não se orientou essencialmente no
estudo da Marinha relacionando-a a conflitos bélicos. Buscou-se, a partir da imprensa militar
como fonte primária, analisar temas que muitas vezes não se relacionam estreitamente à
guerra em si, como a organização da Marinha e as reivindicações dos marinheiros por
melhores soldos e promoções. Dessa forma, os estudos e resultados aqui demonstrados foram
obtidos a partir de uma perspectiva que possibilitou uma vasto campo de percepções sobre a
Armada brasileira e as motivações de alguns de seus membros durante a década de 1850.

Fonte analisada
O Brasil Marítimo. 1853-1854. Disponível em: http://bndigital.bn.br/acervo-digital/brasil-
maritimo/814903

Referências Bibliográficas
ARIAS NETO, José Miguel. Imprensa Militar: ciência, tecnologia e política no Império. 2016
LEITE, Carlos H. Ferreira. Teoria, Metodologia e possibilidades: os jornais como fonte e
objeto de pesquisa histórica. Escritas. Vol.7 (2015) ISSN 2238-7188 p. 3-17
SOARES, Luiz Carlos; VAINFAS, Ronaldo. Nova História Militar. In: CARDOSO, Ciro
Flamarion; VAINFAS, Ronald (Orgs.). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier,
2012.
PLANTAS DE FORTIFICAÇÃO DO RIO DE JANEIRO SETECENTISTA:
UMA LINGUAGEM DE DEFESA

Luiza Nascimento de Oliveira da Silva


Doutoranda em História - PPGHIS/UFRJ

Orientador: Antônio Carlos Jucá de Sampaio


Coorientadora: Heloisa Meireles Gesteira

1. Introdução
O objetivo do presente artigo é propor uma reflexão acerca das formas de interpretação
dos desenhos de plantas de fortificação. Tratados de arquitetura militar e documentos da
administração régia (A.H.U.) nos auxiliaram nessa análise. Esse último acervo nos mostrou a
dimensão dos usos da ciência da arquitetura militar na prática cotidiana do engenheiro. A
escolha dos tratados “Da Arquitetônica, ou Arquitetura Militar, ou Fortificação das Praças”
(ca. 1705) e “Exame Militar” (1703) está calcada no ineditismo e na posição social tanto de
Manuel de Azevedo Fortes, possuidor do primeiro manuscrito, quanto de Luiz Gonzaga autor
do segundo, ambos atuantes nas Cortes de D. Pedro II e D. João V. Desse modo, poderemos
ter acesso a um melhor entendimento da história da defesa, e das práticas de defesa
desenvolvidas à luz da ciência da arquitetura militar, no Rio de Janeiro.
Em nossa análise provamos que o "Tratado da Arquitetônica" se trata de um escrito
inédito de autoria ainda desconhecida e anterior a 1740, apesar de atribuída ao engenheiro-
mor do reino Manuel de Azevedo Fortes. Tais hipóteses estão baseadas em análise da fonte,
sendo possível constatar mais de uma citação ao próprio Azevedo Fortes, e que a única
explicação que nos foi fornecida pelo Arquivo Nacional Torre do Tombo para a autoria foi de
que o nome de Manuel de Azevedo Fortes está na folha após a capa, podendo ser uma obra de
propriedade de Azevedo Fortes e não de sua autoria. Além disso, a citação a seguir indica que
um dos contemporâneos do autor foi o engenheiro militar espanhol Sebastián Fernández de
Medrano, que morreu em 1705. Sendo esta, portanto, a data máxima possível para a
elaboração do manuscrito. “Finalmente até o presente tem saído Bombelle, Blondel,
Medrano, Ozanam, Padre Finger, o Autor da nova maneira de fortificar, o Anônimo com – o
método de Vauban, Abbade de Fay, Mauleon; até aqui os AA desta matéria; e novamente
Manuel de Azevedo Fortes” 293.
Autor do tratado de arquitetura militar “Exame Militar”, Luiz Gonzaga nasceu em
Lisboa em 1666 e ingressou na Companhia de Jesus aos 17 anos. Já aos 20, lecionava Latim e
cursava Filosofia na Universidade de Évora, curso que tinha a duração de quatro anos. Entre

293
AUTOR DESCONHECIDO. “Tratado da Arquitetônica”, ca. 1705, p. 9 – grifos nossos.
os anos de 1695 e 1699, enquanto estudava teologia, lecionou ciências matemáticas no
Colégio de Jesus. Em 1700, de volta a Lisboa, assumiu a regência da “Aula de Esfera” do
Colégio de Santo Antão, de onde posteriormente seria reitor. Com Portugal envolvido na
guerra da Sucessão da Espanha, Gonzaga recebeu ordens de D. Pedro II que ditasse o tratado
da arquitetura militar na referida Aula do Colégio de Santo Antão. Ensinou também no
294
palácio real aos príncipes D. João (futuro rei D. João V), D. Francisco e D. António .
Morreu em 1747, aos 81 anos de idade.

2. A cidade do Rio de Janeiro: expressões de defesa


Ao analisarmos as expressões do tema da defesa em cartas, ofícios, decretos e pareceres do
acervo do Arquivo Histórico Ultramarino (via Projeto Resgate) para a cidade do Rio de
Janeiro da primeira metade do século XVIII, as características da defesa desenvolvidas na
referida cidade puderam ser identificadas nas demandas do ultramar, bem como nas respostas
da monarquia portuguesa e vice-versa. Ao estudarmos o tema da defesa, somos direcionados
tanto para a sua teoria – ensino expresso nos tratados de arquitetura militar portugueses –,
quanto para a prática nos desenhos de plantas de fortificação. Especificamente, as fortalezas
da Baía de Guanabara e seu entorno serão verificadas na documentação que ora se apresenta a
partir das dimensões do seu desenho e das conjecturas acerca da defesa proposta. São elas:
Fortalezas de São João, de Santa Cruz e da Lage. Bem como, a fortaleza da Ilha das Cobras.
Começaremos com uma espécie de relatório do sistema defensivo da cidade de São Sebastião
do Rio de Janeiro na carta (de 21 de Maio de 1735) do governador interino do Rio de Janeiro,
brigadeiro José da Silva Paes, ao rei D. João V. Podemos perceber nesta correspondência o
quanto a defesa do espaço da “entrada da barra” do Rio de Janeiro era útil. Iremos nos ater aos
aspectos da experiência, da conveniência, da necessidade e da utilidade, bem como em alguns
dos parâmetros norteadores da defesa daquela cidade, presentes nos tratados analisados.
O relatório do sistema defensivo da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro na carta
(de 21 de Maio de 1735) do governador interino do Rio de Janeiro, brigadeiro José da Silva
Paes, ao rei D. João V, aborda a temática da defesa a partir dos seguintes parâmetros.
Começando com a descrição da defesa da entrada da barra da Baía de Guanabara, composta
pelas fortalezas de São João, Lage e Santa Cruz, Paes afirma ser está última a principal entre
as três. Pelo oeste, a fortaleza de São João possuía duas baterias [locais de disposição da
artilharia], com material bélico suficiente para o momento, segundo Paes, com trinta e nove
peças de artilharia de vários calibres, sendo oito de bronze e trinta e uma de ferro. Com alguns
problemas nos parapeitos e nas muralhas, deveria ser reedificada apenas nesses pontos. Sobre
a fortaleza da Lage, o autor do relatório salienta que possuía dez peças de artilharia de ferro,

294
In.: Dicionário Verbo, 1969.
necessitando de mais cinco do mesmo calibre ou de dezesseis, conforme a Coroa pudesse
enviar. Também lhe eram necessários um quartel, já o parapeito, o armazém para pólvora e a
cisterna a prova de bomba estavam em construção.
A fortaleza de Santa Cruz, tida por Paes como a melhor entre as três da barra, como
vimos, está na parte leste. Com o arsenal aceitável de quinze peças de artilharia de bronze e
quarenta e cinco de ferro de diferentes calibres, causava grandes dificuldades ao inimigo que
se aproximava devido às suas características. Para entrarem seguros na barra, os navios
precisavam passar junto à edificação, e por ser em um monte, a entrada era bastante
295
dificultosa. Era necessária a construção de um “baluarte de bronze de altura de quatro
palmos, e duas polegadas, e meia de grosso” 296. Pois, a experiência mostrou que a maresia do
mar consumia as peças de ferro. Como possuíam o material necessário, já podiam realizar as
obras do armazém e da cisterna a prova de bomba. Além de uma pequena parte da muralha
que faltava.
Destacamos ainda a Fortaleza da Ilha das Cobras, com a necessidade de “atar a
297
tenalha, e mais obra que desenho na mesma Ilha” . A tenalha é representada nos desenhos
geométricos do Autor desconhecido. As figuras 19 e 20 a seguir são, respectivamente, a
tenalha simples e a dobre.

Figura 1: Tenalha simples e dobre

Fonte: Autor desconhecido, ca. 1705, Estampa 3ª.

295
Figura formada pela face, pelo flanco e pela cortina, marca o advento da fortificação moderna.
296
AHU_ACL_CU_ 017, Cx. 27, D. 2899.
297
Idem.
Em parecer de 17 de Outubro de 1735, sobre a carta do governador interino do Rio de
298
Janeiro, brigadeiro José da Silva Paes , o Conselho Ultramarino delibera que dois
engenheiros portugueses ou não fossem enviados para o Rio de Janeiro, ainda com Paes como
governador interino, a fim de que esse pudesse fiscalizar as obras que desenhou e impedir o
que já havia, segundo o próprio Conselho, ocorrido, a realização de “fortalezas inúteis”.
Talvez devido à pressão exercida pelos governadores sobre os engenheiros, e estes acabarem
acatando decisões equivocadas, ainda de acordo com o Conselho. O ideal seria que “para que
se não demore a Fortificação de uma praça, e Porto [do Rio de Janeiro] que é do objeto da
inveja de todas as nações da Europa será conveniente que Vossa Majestade se viva tomar
299
pronta resolução nesta matéria” . A conveniência para a Coroa estava em impedir a perda
da cidade que era causa de inveja em toda a Europa, a cidade de São Sebastião do Rio de
Janeiro.
300
Em nova carta ao Conselho Ultramarino , antes mesmo do parecer exposto
301
acima, Silva Paes intenta a construção de um muro para cercar a cidade . A conveniência do
muro seria para impedir qualquer invasão inimiga. Afirma também ter posto como
“defensável” a Ilha das Cobras, e apesar da irregularidade daquele terreno, ter conseguido
desenhar a planta cuja obra realizou, fazendo as baterias para a parte do mar, “que é o que
necessita, ficando tão inacessível por aquela parte, que só querendo lhe entregar, a poderão
perder” 302.
A dita inacessibilidade alcançada na Ilha das Cobras pelo desenho e edificação
do engenheiro brigadeiro José da Silva Paes é uma questão interessante na medida em que,
nos faz refletir sobre os parâmetros de defesa que esse engenheiro propôs. Um exemplo está
em Paes salientar a importância da tenalha para a defesa daquele sítio, como podemos
observar nas imagens a seguir. Apesar do primeiro recorte ser uma cópia da “Planta da
303
Fortaleza do Patriarca São José” de Silva Paes, não há obras exteriores, como a tenalha.
304
Apenas na “Planta da Fortaleza da Ilha das Cobras” , de autoria desconhecida (recortada
nas imagens subseqüentes), podemos observar a intenção de se obrar a tenalha, por se tratar de
desenhos em amarelo, o que designava reformas − obras a construir 305.

298
AHU_ACL_CU_ 017, Cx. 28, D. 2948.
299
Idem.
300
AHU_ACL_CU_ 017 – 1, Cx. 37, D. 8617. Carta de 03 de Junho de 1735.
301
O engenheiro inglês João Massé já havia feito tal proposta em 1713.
302
AHU_ACL_CU_ 017 – 1, Cx. 37, D. 8617. Carta de 03 de Junho de 1735.
303
Figura 1 em anexo.
304
Figura 2 em anexo.
305
Sobre as cores, trabalhei em minha Dissertação de Mestrado: “Plantas de Fortificação do Rio de Janeiro:
arquitetura militar e a defesa do Império (1700-1730)ˮ. PUC − Rio, 2014.
Importante frisar que a direção Norte nessas duas Plantas da fortaleza da Ilha das Cobras está invertida, o que
podemos constatar pela indicação da Rosa dos Ventos em ambos os casos. Por isso, a diferença entre os
desenhos.
Figura 2: Recorte da “Planta da Fortaleza do Patriarca São Joséˮ

Fonte: Arquivo Histórico do Exército do Rio de Janeiro.

Figura 3: Recorte da “Planta da Fortaleza da Ilha das Cobrasˮ

Fonte: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (Cart326434)

Figura 4: Recorte da “Planta da Fortaleza da Ilha das Cobrasˮ, com as setas pretas indicando os
contornos da tenalha dobre

Fonte: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (Cart326434)


Figura 5: Recorte da “Planta da Fortaleza da Ilha das Cobras”. As setas pretas apontam para a tenalha
dobre e a seta vermelha indica a tenalha simples. O mesmo modelo se repete na parte inferior do
desenho

Fonte: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (Cart326434)

Como obra exterior, a tenalha (identificamos 2 tenalhas dobres e 2 tenalhas simples)


simples tem dois ângulos salientes para a campanha, e um reintrante, e dois ramais. Já a
dobre, tem três ângulos salientes, dois reitrantes, e dois ramais, o que vem a ser quase duas
tenalhas simples, nas palavras do Autor desconhecido. E, tinha por premissa fazer parte da
306
defesa quando a praça não permitia o desenho do hornaveque , devido às dimensões do sítio
da praça ou por dispor de pouco tempo para edificar o horanveque, tido por perfeito no texto
do Autor desconhecido. Talvez por isso, o autor da “Planta da Fortaleza da Ilha das Cobrasˮ
apresentada tenha realizado a mesma escolha, melhor defesa em menos tempo, e, por isso
optou pela tenalha, com a tenalha dobre defendendo a tenalha simples.
Ao nos dispormos, em alguma medida, a traduzir a linguagem da matemática na
ciência em questão, somos munidos de um saber que forjou a urbanização da cidade do Rio de
Janeiro. Portanto, terminologias a priori difíceis nos darão o suporte necessário para a
compreensão da intenção de cada edificação defensiva, as propostas políticas de defesa e os
referenciais teóricos para cada embate. Exemplo disso, foi o exposto acerca da obra exterior
tenalha.
Nós podemos pensar em camadas defensivas até o núcleo da fortificação. O objetivo
era a defesa de todos os lados (através da matemática). O recorte da “Planta da Fortaleza da
Ilha das Cobras” de autoria desconhecida, nos mostra os moldes da edificação intencionada
(figura 3). Alguns elementos ainda não incluídos, os desenhados em amarelo (obras novas),
como o polígono de quatro lados, composto de quatro baluartes, é o retrato da imagem ideal
da “Santa Cidade de Jerusalém Celeste” 307, cercado pelas tenalhas – 2 simples e 2 dobres.
Os motivos da menção à Cidade Santa estão nos seguintes trechos do Autor
desconhecido:
Da 1° cidade edificada, e do princípio da guerra

306
Figura 3 em anexo.
307
Nas palavras do Autor desconhecido.
O incompreensível Deus criador de tudo no princípio do tempo em um, e o
mesmo instante criou o céu, e a Terra conforme o gênesis [?] criou Deus colum,
terra, a saber o céu dos céus,isto é o Império, a que São João no Apocalipse livro 21
chama Cidade Santa, que tem um muro grande, e alto em que se dão 12 portas; três
para o oriente, outras tantas para o Norte três para o Sul, e as mais para o ocidente,
sendo quadrada [com quatro lados] a figura da cidade 308.

Questão 4°
Se a Fortificação é de grande dignidade?
Responde-se afirmativamente. Prova-se porque a Arquitetura militar é ciência, como
vimos na questão antecedente; mas toda a ciência é de grande dignidade (que dirão
os ignorantes, e presumidos); logo a Fortificação o será também.
Confirma-se; porque muitos príncipes soberanos se tem aplicado a esta ciência, e
todos os da Europa lhe dão estimação: logo é evidente, que ela tem grande
dignidade. Também se podia provar com o que propusemos acerca da Santa
Cidade de Jerusalém Celeste 309.

Em um primeiro momento o tratadista explica os motivos do princípio da criação e a


defesa proposta ao apontar como o modelo ideal de quatro lados deveria ser inspirado na
figura da cidade santa. E, posteriormente, para provar a dignidade da fortificação, mais uma
vez o autor faz menção ao modelo celestial, e de como os príncipes soberanos lançavam mão
da arquitetura militar. Tais perspectivas também podem ser observadas no texto “Exame
Militar” (1703) de Luiz Gonzaga na medida em que,“o Céu com a sua muralha aprova” a
310
ciência da arquitetura militar . Tudo isso quer dizer a elaboração de um ensino calcado nas
explicações bíblicas e, ainda mais, legitimado pela história do céu que se encontra na Bíblia.
Ao retornarmos aos elementos do desenho, há a dimensão do equilíbrio, da
regularidade possível. O que está em consonância com o ensinado sobre o céu, pois havia a
dimensão do equilibro entre as partes, bem como com o ensino do arquiteto da Roma Antiga,
311
Vitruvio e o conceito de decoro . No caso das obras a serem construídas na planta de
fortificação da Ilha das Cobras em análise, estamos falando de um polígono exterior com
quatro lados. O que no texto do Autor desconhecido possui as seguintes explicações através
da Figª 23 a seguir: aprendemos que a medida do polígono exterior é marcada pela linha AB,
ou seja, pelas pontas dos baluartes, o que delimitará os lados dos polígonos.

308
AUTOR DESCONHECIDO. “Tratado da Arquitetônica”, ca. 1705, p. 3 e 4 – grifos nossos.
309
AUTOR DESCONHECIDO. “Tratado da Arquitetônica”, ca. 1705, p. 12 – grifos nossos.
310
GONZAGA, Luiz. "Exame Militar", 1703, p. 6.
311
Temática abordada em outros trabalhos.
Figura 6: Figª. 23

Fonte: Autor desconhecido, ca. 1705, Estampa 3ª

312
De acordo com a medida da planta de fortificação em estudo , o lado do polígono
exterior mediria aproximadamente 600 pés por 450 pés, (com cada braça sendo igual à 6 pés),
o que se adéqua ao ensino do Autor desconhecido que variava entre 600 e 1.000 pés como
parâmetro daquele elemento do desenho. Sendo, ainda, por essa medida, caracterizada pelo
Autor desconhecido como Praça real, ou fortificação real, aquela capaz de resistir, em
oposição à de Campanha, capaz de atacar 313.
Da mesma forma, acerca da medida da linha da defesa fechante:
Escólio
[...] Assim por Praça, ou Fortificação Real se entende na opinião de muitos
modernos aquela, cuja linha da defensa fechante for de 600 pés para cima, porém
sendo para baixo se chama fortificação de Campanha.
Outros dividem a Praça Real em grande, mediana, e pequena, atendendo ao
lado do polígono exterior. Assim Pagan faz a Praça Real grande, sendo a qual lado
de 200 toesas [200 braças, aproximadamente]; a mediana, se ele for de 180 toesas
[180 braças, aproximadamente]; a pequena, se o mesmo se tomar de 160 toesas [160
braças, aproximadamente]; porém outros tomam outros lados.
[...] Contudo parece, que tudo isto é questão de nome, e assim por Praça
Real entendemos aquela, que é capaz de resistir 314.

A linha da defesa fechante é a “Linha fechante, ou da defensa fechante, ou da maior


defensa é a reta BC, que se considerar do termo C da cortina até o ângulo B principal do
315
baluarte oposto” . No caso ora analisado mede 85 braças por 60 braças o mesmo que [x 6]
510 pés por 360 pés, a enquadrando, à princípio, também como fortificação real, já que
estamos lidando com aproximações.

312
Medida obtida através da aproximação da braça inscrita no desenho com o lado do polígono exterior.
313
AUTOR DESCONHECIDO. “Tratado da Arquitetônica”, ca. 1705, p. 46.
314
Idem, p. 46.
315
AUTOR DESCONHECIDO. “Tratado da Arquitetônica”, ca. 1705, p. 29.
Também a partir da figª. 23. Estampa 3ª. Figura 6 deste trabalho.
316
Outra possibilidade seria como no ensino de Pagan de ser a classificação da praça
real apenas em grande, mediana ou pequena, de acordo com a medida do lado do polígono
exterior: para a praça real grande a medida seria de 200 braças, [x 6= 1.200 pés], a mediana de
180 braças [x 6= 1.080 pés] e a pequena de 160 braças [x 6= 960 pés]. Então, temos a “Planta
da Ilha das Cobras” em destaque classificada no padrão de Pagan como mais próxima da
fortificação real pequena por possuir 600 pés por 450 pés de lado do polígono exterior. Então,
estamos falando de um praça real (capaz de resistir) pequena. Em outra oportunidade,
compararemos com diferentes plantas de fortificação, o que nos dará a dimensão, nos termos
de Pagan e de outros teóricos, da defesa proposta para a cidade do Rio de Janeiro.

Referências bibliográficas
Fontes
AUTOR DESCONHECIDO. “Tratado da Arquitetônica, ou Arquitetura Militar, ou
Fortificação das Praças (ca. 1705)”.
GONZAGA, Luiz. “Exame Militar, (1703)”.
Plantas de Fortificação
“Planta da Fortaleza do Patriarca São Joséˮ, sem data. Arquivo Histórico do Exército do Rio
de Janeiro.
“Planta da Fortaleza da Ilha das Cobrasˮ (17--). Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
(Cart326434).
Arquivo Histórico Ultramarino
AHU_ACL_CU_ 017, Cx. 27, D. 2899.
AHU_ACL_CU_ 017, Cx. 28, D. 2948.
AHU_ACL_CU_ 017 – 1, Cx. 37, D. 8617.

Livro, dicionário e dissertação


Dicionário “Verbo: enciclopédia luso-brasileira de cultura” (1969); volume 9 (GAC – HER).
MENESES, Ulpiano Bezerra de. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, nº 45, 2003,
pp. 11-36.
OLIVEIRA, Luiza Nascimento de. Dissertação de Mestrado: “Plantas de Fortificação do Rio
de Janeiro: arquitetura militar e a defesa do Império (1700-1730)ˮ. PUC − Rio, 2014.

316
Trata-se de Blaise François Pagan. A sua intensa experiência como combatente começou aos doze anos. “O
Conde de Pagan escreveu, e inventou o seu método, o qual é dar nº, e de luz ambos desenhos dos AA. e assim
correu no mundo com celebridade, e séquito”. Autor desconhecido. “Tratado da Arquitetônica”, ca. 1705, p. 405.
In Pimentel: “Appendiz I. Pagan resumido", p. 481-532 . – “Appendiz II. Das obras do Conde de Pagan...”, p.
533-545 . – “Trigonometria practica rectilinea”, por Luís Serrão Pimentel, p. 547-644 . – “Compendio de alguns
problemas de Geometria practica, & Theoremas da especulativa”, p. 645-666.
ANEXOS

Figura 1: “Planta da Fortaleza do Patriarca São Joséˮ

Fonte: Arquivo Histórico do Exército do Rio de Janeiro.

Figura 2: “Planta da Fortaleza da Ilha das Cobrasˮ (17--)

Fonte: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (Cart326434).


Figura 3: Inscrição em H (recorte da figª 21)

Fonte: Autor desconhecido, ca. 1705, Estampa 1ª.


COTIDIANO DA NAVEGAÇÃO NO BRASIL HOLANDÊS: 1630 – 1644

Manuel Silvestre da Silva Júnior


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História (UFPE)

Orientador: Rômulo Luiz Xavier do Nascimento


Coorientador: Carlos Celestino Rios e Souza

EXPANSÃO NAVAL HOLANDESA


Antes de escrevermos sobre a navegação holandesa no Brasil Holandês, é necessário
entender como os Países Baixos se tornaram a maior potência marítima no século XVII. A
partir dos finais do século XVI, o crescimento econômico holandês foi fundamental para os
rumos que a navegação iria tomar no período. Para Immanuel Wallerstein, a Holanda foi a
primeira hegemonia da economia-mundo capitalista. Para o autor, a hegemonia é uma
condição rara, até hoje somente “a Holanda, Grã-Bretanha e os Estados Unidos foram
potências na economia-mundo capitalista, e cada uma delas manteve-se nessa posição durante
um período relativamente curto [...]”.317
É bom frisar que na segunda metade do século XVI, os Países Baixos se tornaram
independentes da Espanha. O descontentamento dos holandeses pela alta política de impostos
aplicada pela coroa de Castela e o representante desta nos Países Baixos, o Duque de Alba,
gerou o conflito que ficou conhecido como Guerra dos Oitenta Anos. Já no final do século
XVI, as Províncias Unidas Neerlandesas ratificaram a União de Utrecht, com um regime
federativo baseado nos Estados Gerais. 318
A estreita ligação da Holanda com o mar se origina por volta de 1400, com a captura
de peixes. No século XV, é inventado a embarcação de nome haringbuis, um barco de pesca
com maior navegabilidade e velocidade, permitindo um maior afastamento da costa holandesa
para a prática da pesca. Entre as espécies de peixes comercializadas estavam o arenque,
pescado no Mar do Norte, o bacalhau, este pescado na Islândia, e até a pesca de baleias, as
quais forneciam o óleo oriundo deste animal, bastante utilizado para a fabricação de sabão. 319
De acordo com Luiz Carlos de Carvalho Roth, “os Países Baixos viriam a
incrementar a sua expansão marítima principalmente no século XVI, após as lutas de
libertação das Sete Províncias Unidas do Norte do domínio espanhol, na chamada Guerra dos

317
WALLERSTEIN, Immanuel. O sistema mundial moderno. Vol. II: o mercantilismo e a consolidação da
economia-mundo europeia, 1600-1750. Afrontamentos, 1974. pág.46.
318
NASCIMENTO, Rômulo Luiz Xavier do. “Pelo lucro da companhia: aspectos da administração no Brasil
Holandês, 1630-1639. Dissertação de Mestrado. UFPE, 2004. pág.31.
319
WALLERSTEIN, Immanuel. Op. Cit. pág.47-48.
Oitenta Anos (1568-1648)”.320 Posteriormente, com a criação da Companhia das Índias
Orientais (VOC) em 1602 e da Companhia das Índias Ocidentais (WIC) em 1621, a marinha
holandesa estava presente em boa parte do mundo através do mar. De acordo com Rômulo
Luiz Xavier do Nascimento:
“As companhias holandesas das Índias Orientais e Ocidentais têm origens
numa tendência já verificada na Europa Ocidental desde a segunda metade do século
XVI. São as chamadas sociedades de capitais, apelidadas pelos ingleses de Joint
Stock Companies (Sociedades por ações) [...] Uma condição para o sucesso das
grandes companhias de comércio que concordamos ter sido imprescindível: a
concessão de privilégios por parte do Estado”.321

A primeira companhia, VOC, era administrada por mercadores de Amsterdã e tinha


poderes para administrar, defender, explorar o comércio de especiarias no oriente, como
também colonizar territórios no além-mar. Com a VOC, os holandeses conseguiram formar
feitorias em diversas partes da Ásia, entre elas estão Pérsia, Índia, China, Japão e Ilhas
Molucas. 322
Já a WIC ficaria responsável pelo comércio no atlântico. Charles Ralph Boxer, no
livro The Dutch Seaborne Empire: 1600-1800, diz que a WIC recebeu o monopólio de toda
navegação e comércio holandês na América e na África Ocidental, ao mesmo tempo que teve
autorização para fazer guerra e paz com os indígenas nessas regiões, manter forças navais e
militares, como também exercer funções administrativas e judiciais. 323
Jan Glete, na sua obra Warfare at Sea, 1500-1650: maritime conflicts and the
transformation of Europe, diz que as potências ibéricas não possuíam um sistema comparável
como as duas companhias holandesas, e que várias tentativas para imita-las falharam na
década de 1620. Ainda de acordo com o mesmo autor:
“The federal Dutch Republic, its navy and its advanced maritime
technology, the Dutch supremacy in the world trade, the world entrepôt and the
empire, were all created as parts of efforts to win na economic and political war with
the huge Spanish empire. The state was created by na elite of capitalist entrepreneurs
in trade and industry who looked upon Europe and the world as a series of
opportunities for investiment and, in a process that has striking similarities with
entrepeneurial efforts to exploit unexpected opportunities, the Dutch gradually
created the maritime instruments suited to the different types of war they fought – in
home waters, along the European trade routes, and in trans-oceanic areas”.324

Continuando sua análise, diz Jan Glete:

320
ROTH, Luiz Carlos de Carvalho. O renascimento do Atlântico: os grandes impérios marítimos. Capítulo
3. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; DE ALMEIDA, Francisco Eduardo Alves; SCHURSTER,
Karl. Atlântico: A história de um oceano. Civilização Brasileira, 2013. pág.101.
321
NASCIMENTO, Rômulo Luiz Xavier do. O desconforto da governabilidade: aspectos da administração
no Brasil Holandês (1630-1644). Programa de Pós-Graduação em História. UFF. Rio de Janeiro. 2008. pág.63-
64.
322
CHACON DE ALBUQUERQUE, Roberto. A Revolução Holandesa; origens e projeção oceânica. 1. ed.
São Paulo: Editora Perspectiva, 2014. pág.88.
323
BOXER, C.R. The dutch seaborne empire, 1600-1800. Penguin Books, 1990. pág.27.
324
GLETE, Jan. Warfare at sea, 1500-1650: maritime conflicts and the transformation of Europe.
Routledge, 2002. pág.167.
“The decentralisation of the navy into five provincial admiralties was also
a reflection of the Dutch attitude to warfare at sea. It has often been regarded as a
weakness but if seen as a part of the mechanism by which the Dutch society
mobilised resources and monitored how the state used them it may have been
efficient. It was a way for the powerful trading interests to ensure that the navy was
used for trade protection in a way that suited these interests, which after all were
responsible for financing the war through taxes and loans. Whatever the
shortcomings of the Dutch system it compares favourably with the Iberian system
where the state taxed the trade and protected it in a way that suited the nonmercantile
elite groups. The result was that Iberian maritime and mercantile power declined
dramatically”.325

EMBARCAÇÃO E CONSTRUÇÃO NAVAL HOLANDESA


É fator fundamental que a chave da hegemonia holandesa no comércio marítimo é o
poder de construção naval dos holandeses. Muitas embarcações “eram capazes de distribuir e
reunir cargas ao longo de rios e lagos em pouco tempo. E o resultado foi a mais eficiente rede
de transporte internos da Europa, que atingiu o máximo de tráfego na década de 1660”. 326
Havia no país fábricas de equipamentos e cartas náuticas. Os holandeses, a partir do Báltico,
conseguiam madeira suficiente para a construção das embarcações.
O custo da construção naval holandesa era baixo, e há seis vantagens que permitem
tão barateio, sendo elas: primeiro, habilidade dos mestres construtores holandeses; segundo,
economia na utilização de materiais; terceiro, aparelhos que poupavam mão-de-obra; quarto,
produção estandardizada em grande escala; quinto, compra de materiais em grande escala; e
sexto, transporte barato dos materiais de construção em barcos holandeses. 327
Dentre as principais embarcações holandesas no século XVII estão a pinaça, o iate e
o fluit (ou fluyt). O primeiro, de acordo com William Carmo Cesar, os holandeses
desenvolveram a partir do galeão português, sendo “um pouco mais robusta e muito
empregada nas escoltas a comboios mercantes [...]”.328 O grande objetivo para a criação do
iate foi a sua velocidade, tanto que foi usado também pela Inglaterra.329
O fluit holandês foi concebido para ser uma embarcação ágil e rápida na navegação e
para o transporte de carga, sendo muito eficiente nesse objetivo. Podia comportar algumas
peças de artilharia para defesa. De acordo com Hermann Wätjen, o fluit era “aparelhado de
três mastros, eram desprovidas de castelos e tinham pequeno calado”.330 Citamos
anteriormente o barco de pesca haringbuis, mas também havia o ventjagers, os quais
transportavam os peixes oriundos do haringbuis para a costa holandesa.

325
Ibid. pág.169.
326
WALLERSTEIN, Immanuel. Op. Cit. pág.62.
327
WALLERSTEIN, Immanuel. Op. Cit. pág.62.
328
CESAR, William Carmo. Velas e Canhões no expansionismo holandês no século XVII. Revista Navigator.
pág.25.
329
MELLO, Evaldo Cabral de Mello. A vitória da barcaça. In: Um Imenso Portugal – História e Historiografia.
São Paulo, Editora 34, 2002. pág.204.
330
WÄTJEN, Hermann. O domínio colonial hollandez no Brasil: um capítulo da história colonial do século
XVII. Companhia editora nacional, 1938. pág.526.
INVASÃO HOLANDESA AO BRASIL: 1630-1636
Em 1630, decidiu a WIC empreender uma invasão ao território brasileiro. Os
administradores da companhia não estariam interessados somente nas capitanias do Nordeste,
ricas em açúcar e demais produtos. A ideia de possuir os metais preciosos que enriqueciam a
Coroa Ibérica, fez com que planos fossem arquitetados para, futuramente, conquistar o porto
do Rio de Janeiro que, depois controlada a conquista no Nordeste, serviria para um controle
maior do comércio marítimo no Brasil, além de aproximar os holandeses da região do Rio da
Prata, uma localidade por onde passava a prata extraída de Potosí. Convém lembrar que as
capitanias, principalmente as da região Nordeste, estavam em uma posição geoestratégica de
extrema importância, além de serem mais próximas do território africano, fonte de mão de
obra escrava.
Nos primeiros anos de invasão, os holandeses não conseguiram sair de Olinda e
Recife. Importante destacar a estratégia adotada de bloqueio naval e sítio no início da
ocupação. Pensava os neerlandeses que, com uma força marítima muito mais poderosa,
poderiam dominar com facilidade os portos do litoral. Segundo Evaldo Cabral de Mello, a
preferência da WIC pela estratégia de bloqueio naval + sítio das praças fortes era
compreensível, pois “permitiria tirar partido da superioridade naval, da artilharia e engenharia
neerlandesas, que exigiria menores despesas, poupando gastos com tropa numerosa”.331
A partir de 1632, a estratégia holandesa de contraguerrilha ganhou força. Através do
cerco naval no rios, portos e engenhos, a WIC iria sufocando a resistência luso-brasileira. As
embarcações de pequeno porte passariam a ter papel fundamental, pois eram utilizados para
bloqueios de barras e incursões aos rios para fins da assalto e saque, facilitando aos
holandeses vencer os desafios naturais e militares necessários para a administração.332 A tática
de operações ribeirinhas passaria a acontecer em toda a costa nordestina, pois os holandeses,
após dois anos de ocupação, estavam agora conhecedores de fato da malha hidrográfica da
região.
As embarcações holandesas patrulhavam o litoral e os rios, e ao se depararem com
navios luso-brasileiros fundeados, estes tinham a carga recolhida e eram imediatamente
incendiados. Como exemplo do resultado dessa patrulha, em 13 de abril de 1635, entrou no
porto do Recife, oriunda de Itamaracá, uma chalupa de nome “Dui end een”, com carga de
320 cocos.333

331
MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada: Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630-1645. São Paulo,
Editora 34, 2007. pág.51-52.
332
NASCIMENTO, Rômulo Luiz Xavier do. Op. Cit. pág.135.
333
(Monumenta Hyginia – Notulen Dagelijkse / coordenação Marcos Galindo; leitura paleográfica Lodewijk
Hulsman; tradução Pablo Marcyl Bruijns Gallindo, Ann Blokland e Judith de Jong. – Recife: IAHGP/UFPE,
2005. pág.66.
As patrulhas também serviam para impedir a chegada de reforços inimigos a terra.
A conquista de novos territórios na localidade é constantemente alvo de relatórios
dos membros da WIC. Um desses membros, Jean Walbeeck, o qual foi almirante da costa do
Brasil e conselheiro político, ao retornar à Holanda no ano de 1633, escreveu um relatório
sobre a situação da ocupação neerlandesa na região, principalmente entre o Rio São Francisco
e a Paraíba. Walbeeck escreve no relatório a necessidade de ocupar mais territórios, como o
Cabo de Santo Agostinho, o qual era considerado o principal porto ainda em posse pelos luso-
brasileiros:
“à conquista desta região consiste na conquista e anexação do Cabo de
Santo Agostinho, do Recife, da Ilha de Itamaracá e da cidadela em Paraíba, pela
realização que toda a costa poderá ser fechada ao comércio com Portugal. Entre
esses pontos mencionados, não se encontra nenhum porto de alguma importância,
que nos possa ser-nos prejudicial [...] o Cabo de Santo Agostinho, situado a igual
distância entre Santo Aleixo e o Recife de Pernambuco, tem o porto de Nossa
Senhora de Nazaré e os dois rios Ipojuca e Santo Antônio de Cabo aí se lançam no
mar [...] por ele o arraial é provido de farinha e comestíveis, que pequenas barcas,
navegando entre os recifes, trazem do Sul (provavelmente da Capitania da Bahia),
sem que os nossos cruzadores possam impedi-lo.”334

Com isso, vemos que Walbeeck sabia que para uma maior efetivação da ocupação
era necessário aos holandeses conquistar outros territórios, e a partir de 1633 houve diversas
incursões realizadas com os objetivos propostos por pelo conselheiro. Nesse mesmo ano, a
Ilha de Itamaracá era conquistada, e nos anos posteriores seguiu-se uma série de conquistas
que colocaria os batavos controladores de um extenso litoral: Rio Grande do Norte no final de
1633; Paraíba em 1634; e finalmente o Cabo de Santo Agostinho em 1635.

PERÍODO NASSOVIANO: 1637-1644


Com o sucesso militar que Mauricio de Nassau obteve nos Países Baixos na guerra
contra a Espanha, ainda em 1636, Nassau seria escolhido para governado do Brasil Holandês.
De acordo com Charles Ralph Boxer, “não sabemos em quantas pessoas teriam pensado os
Heeren XIX na presente conjuntura antes de fazer a escolha final; sabemos, porém, que após
haverem consultado os Estados Gerais e o stadtholder (governador) a escolha recaiu em Johan
Maurits, conde de Nassau-Siegen”. 335 Continua o autor afirmando que Nassau seria a melhor
escolha, pois possuía iniciação prematura na carreira das armas. 336
Foram redigidas as condições propostas pela WIC para Nassau assumir o comando
das forças holandesas no Brasil. Entre estas condições, estavam a concessão do título de
conde, como também de governador, capitão e almirante-general de todas as localidades

334
Relatório do conselheiro político no Brasil Jean de Walbeeck, apresentado aos diretores da Companhia
das Índias Ocidentais à 2 de julho de 1633, lido pelos Estados Gerais a 11 de julho de 1633. In: Documentos
Holandeses.pág.126-127.
335
BOXER, Charles Ralph. Os holandeses no Brasil, 1624-1654. Companhia Editora Nacional, 1961. pág.93.
336
Ibid. pág.94.
conquistar e as que vierem a ser conquistadas pela WIC.337 As principais tarefas confiadas a
Nassau seriam a organização administrativa do Brasil Holandês e a reativação da economia
açucareira depois de sete anos de guerra.338
De acordo com Evaldo Cabral de Mello, a vinda do Conde Mauricio de Nassau ao
Brasil constituiu uma relativa paz, chamando o período de Idade de Ouro do Brasil
Holandês.339 Sua comitiva foi composta por pintores e cientistas, os quais tinham o objetivo
de documentar o cotidiano da vida na colônia, como a fauna e a flora. Entre os pintores,
destaca-se Frans Post, que contribuiu com inúmeras pinturas do período.340
Quando Nassau chegou ao Brasil Holandês, de acordo com Romulo Xavier do
Nascimento, “não havia um só curso d’água, entre o rio São Francisco e o Rio Grande do
Norte, que não fosse conhecido pelos holandeses. Pouco a pouco foi-se estabelecendo uma
malha de navegação, tanto pelo litoral, como pelos rios da costa do Nordeste [...]”.341
No mesmo ano da sua chegada, Nassau reconquistou Porto Calvo dos luso-brasileiros
e já no ano seguinte, 1638, decidiu atacar a Bahia. Essa decisão, entretanto, não permitiu que a
WIC enviasse os reforços navais e terrestres necessários para o sucesso da empreitada. A
importância de conquistar à Bahia era descrita pelo cronista holandês Gaspar Barlaeus:
“o principal refúgio dos portugueses; era ali que se dava a máxima
atenção à resistência contra o invasor e a honra do rei da Espanha; em nenhuma
outra parte havia mais engenhos de açúcar e presa mais rica; com aquela vitória
poderia o Brasil dentro em breve estar todo sujeito à Holanda, e nenhuma outra
cidade galardoaria mais dignamente os vencedores e causaria danos mais certos aos
adversários”.342

A frota holandesa que partiu de Recife em direção à Bahia era composta de 36


embarcações, com 3600 homens (europeus e índios). 343 Mesmo com o cerco em Salvador
durante quase um mês, Nassau não conseguiu cumprir com o objetivo de conquistar a cidade,
retornando posteriormente a Recife. Um dos possíveis motivos seria a falha do conde de
aproveitar o controle marítimo que possuía, pois permitiu que os luso-brasileiros recebessem
via mar mantimentos necessários a resistência da cidade. Nassau, posteriormente, em cartas
aos Estados Gerais, explicava a decisão de tentar tomar a cidade de Salvador e porque falhou
na tentativa:
“As razões que me moveram a esta expedição foram as seguintes.
Primeiramente, as numerosas cartas que recebemos da pátria, todas tratando da
Bahia, sem, contudo, considerarem a exiguidade das nossas forças. Outras foram as

337
GUEDES, Max Justo. As Guerras Holandesas no Mar: Parte I. In: História Naval Brasileira. Rio de
Janeiro, Serviço de Documentação Geral da Marinha. 1990. v.2. t.1a. pág.203.
338
MELLO, Evaldo Cabral de. O Brasil Holandês. São Paulo: Penguin Classics, 2010. pág.165.
339
MELLO, Evaldo Cabral de Op. Cit. pág.161.
340
Ibid. pág.162.
341
NASCIMENTO. Rômulo Luiz Xavier do. Op. Cit. pág.133.
342
BARLAEUS, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. Recife,
Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1980. pág.33.
343
MELLO, Evaldo Cabral de. Op. Cit. pág.189. Max Justo Guedes diverge do número de embarcações enviadas
por Nassau, afirmando que foram 22 navios. GUEDES, Max Justo. Op. Cit. pág.213.
falsas informações que nos deram da fraqueza do inimigo, da sua pequena provisão
de víveres e munições, da disposição dos habitantes dali desejosos, segundo se dizia,
de passarem para o nosso lado, à vista do bom tratamento que portugueses gozam
entre nós, e da discórdia entre o governador da Bahia e o conde de Bagnuolo [...].
Não duvidamos também do prometido auxílio vindo da pátria, o qual esperamos
antes da nossa expedição, mas, receando com a espera perderemos a ocasião e o
tempo, seguimos sem duvidar inteiramente que ele nos fosse enviado, o que porém
não sucedeu e não pouco nos desconcertou”.344

Em 1639, uma armada de socorro hispano-lusitana, comandada pelo Conde da Torre,


foi enviada ao Brasil. Tinha como objetivo restaurar o Nordeste. Era composta por 87
embarcações, a força naval mais poderosa a ser enviada à região. No entanto, a armada
permaneceu em Salvador por mais de um ano.345 Em 1640, entrou em combate as forças
navais da WIC contra a Armada do Socorro comandada pelo Conde da Torre, no que fica
conhecido pela historiografia como a Batalha Naval de 1640. 346 Entretanto, o comando
hispano-lusitano acabou por desistir de retomar o Nordeste, consequência dos combates
navais contra os holandeses, que apesar de resultados indecisos, seu conjunto favoreceu a
marinha neerlandesa.347
Um dos acontecimentos mais importantes para o Brasil Holandês foi a Restauração
Portuguesa de 1640, com a ascensão do duque de Bragança d. João IV a rei. Nassau,
juntamente com o vice-rei no Brasil, marquês de Montalvão, negociou o fim das hostilidades
entre holandeses e luso-brasileiros. Entretanto, antes do pedido de cessação das hostilidades
que seria feito pelos portugueses juntos aos Estados Gerais nos Países Baixos, Nassau,
apoiado pela WIC, a qual via a fraqueza militar de Portugal após a restauração, anexou
Sergipe e enviou armadas que conquistariam São Luís no Maranhão, Luanda em Angola e a
Ilha de São Tomé.348
Posteriormente, em janeiro de 1641, Nassau já demonstrava descontentamento com
sua estadia no Brasil. Novamente em cartas aos Estados Gerais,
“em várias de minhas cartas anteriores, tomei a liberdade de importunar
Vossos Altos Poderes a respeito de meus próprios assuntos particulares, isto é,
minha volta à pátria. Não tendo, porém, recebido ainda decisão a esse respeito, vejo-
me na necessidade de lembrar esse assunto a Vossos Altos Poderes, tanto mais
quanto se aproxima a época em que devem expirar meus cinco anos de serviço. Ouso
esperar, e peço mui humildemente a Vossos Altos Poderes que não levam a mal
minha importunação, e ainda menos não creiam que eu não esteja mais disposto a
servi-los, assim como a minha pátria. Mas, que Vossos Altos Poderes se dignem de
considerar, ao contrário, que não só aceite com sincero devotamento as funções que
julgaram conveniente confiar-me nestas regiões por cinco anos, senão que me tenho
esforçado por cumpri-las zelosa e ativamente, e do melhor modo possível”.349

344
Cartas Nassovianas. In. MELLO, Evaldo Cabral de. Op. Cit. pág.189.
345
MELLO, Evaldo Cabral de. Op. Cit. pág.196.
346
GUEDES, Max Justo. Op. Cit. pág.280.
347
MELLO, Evaldo Cabral de. Op. Cit. pág.197-198.
348
Ibid. pág.215-216.
349
GOUVÊA, Fernando da Cruz. Maurício de Nassau e o Brasil Holandês: correspondência com os Estados
Gerais. Recife, Editora Universitária da UFPE, 1998. pág.119.
Nessa mesma carta, Nassau escrevia sobre a chegada de 16 embarcações com os
tenentes-almirantes Lichthardt e Jol, mas muitas delas em mau estado e carcomidos.350
Entretanto, no mesmo ano, Nassau teve os serviços prolongados no Brasil Holandês.
Considerou os Estados Gerais que o conde prestava valiosos serviços a administração do
território.
Nassau, inúmeras vezes pediu por reforços militares, de tropas e embarcações que
pudessem garantir a segurança e administração do Brasil Holandês. Talvez venha dessa
situação sua indisposição com os membros do Conselho dos XIX, os quais estavam mais
preocupados em obter lucro no território. Quando recebeu a carta de dispensa da WIC, Nassau
recusou-se a cumpri-la, esperando o documento correspondente dos Estados Gerais,
ocorrendo em 30 de setembro de 1643, terminando sua administração no Brasil Holandês em
1644.

REFERÊNCIAS
BOXER, C.R. Os holandeses no Brasil, 1624-1654. Companhia Editora Nacional, 1961.
___________. The dutch seaborne empire, 1600-1800. Penguin Books, 1990.
CESAR, William Carmo. Velas e Canhões no expansionismo holandês no século XVII.
Revista Navigator.
CHACON DE ALBUQUERQUE, Roberto. A Revolução Holandesa; origens e projeção
oceânica. 1. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2014.
GLETE, Jan. Warfare at sea, 1500-1650: maritime conflicts and the transformation of
Europe. Routledge, 2002.
GUEDES, Max Justo. As Guerras Holandesas no Mar: Parte I. In: História Naval Brasileira.
Rio de Janeiro, Serviço de Documentação Geral da Marinha. 1990. v.2. t.1a.
MELLO, Evaldo Cabral de. O Brasil Holandês. São Paulo: Penguin Classics, 2010.
______________________. Olinda Restaurada: Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630-1645.
São Paulo, Editora 34, 2007.
______________________. A vitória da barcaça. In: Um Imenso Portugal – História e
Historiografia. São Paulo, Editora 34, 2002.
NASCIMENTO, Rômulo Luiz Xavier do. Pelo lucro da companhia: aspectos da
administração no Brasil Holandês, 1630-1639. Dissertação de Mestrado. UFPE, 2004.
__________________________________. O desconforto da governabilidade: aspectos da
administração no Brasil Holandês (1630-1644). Programa de Pós-Graduação em História.
UFF. Rio de Janeiro. 2008.
ROTH, Luiz Carlos de Carvalho. O renascimento do Atlântico: os grandes impérios
marítimos. Capítulo 3. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; DE ALMEIDA, Francisco
Eduardo Alves; SCHURSTER, Karl. Atlântico: A história de um oceano. Civilização
Brasileira, 2013.
WALLERSTEIN, Immanuel. O sistema mundial moderno. Vol. II: o mercantilismo e a
consolidação da economia-mundo europeia, 1600-1750. Afrontamentos, 1974.
WÄTJEN, Hermann. O domínio colonial hollandez no Brasil: um capítulo da história colonial
do século XVII. Companhia editora nacional, 1938.

350
Ibid. pág.120.
FONTES PRIMÁRIAS IMPRESSAS

BARLAEUS, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no
Brasil. Recife, Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1980.
Documentos Holandeses. 1 vol. Ministério da Educação e Saúde, 1945.
Monumenta Hyginia – Notulen Dagelijkse: coordenação Marcos Galindo; leitura paleográfica
Lodewijk Hulsman; tradução Pablo Marcyl Bruijns Gallindo, Ann Blokland e Judith de Jong.
– Recife: IAHGP/UFPE, 2005.
COLONIZAÇÃO MILITAR EM GOIÁS NO SÉCULO XIX: OS PRESÍDIOS DO
SERTÃO DE AMARO LEITE351

Maria Juliana de Freitas Almeida


UEG/Câmpus Porangatu

O presente artigo tem por objetivo apresentar o projeto de Colonização Militar,


implantado pelo Governo Imperial à partir da década de 1850, em diversas regiões do
território brasileiro, com o objetivo de ocupação das fronteiras territoriais, fossem elas
internas ou externas. E ainda mostrar como este mesmo projeto chegou à Província de Goiás e
ao Sertão de Amaro Leite.
Preliminarmente é importante salientar que sobre a colonização militar existem poucos
estudos. A implantação de presídios era uma prática comum no Brasil, desde o início da
colonização, e em Goiás, desde o século XVIII, mas, o que torna peculiar os presídios
implantados após 1850 no território goiano é o fato dos mesmos, serem parte de uma política
de ocupação e controle territorial, encabeçada pelo Governo Imperial.
Conforme Adelson André Brüggemann (2013) a literatura sobre a colonização militar
no Brasil, é escassa, dois trabalhos importantes foram produzidos no início da década de 1970,
o historiador norte- americano David Lyle Wood, em 1972, defendeu sua tese Abortive
Panacea: brazilian military settlements, 1850 to 1913, que via na colonização militar um
remédio de efeitos malsucedidos, e no mesmo ano a defesa da tese de Maria Apparecida
Silva, Itapura: estabelecimento naval e colônia militar (1858 – 1870) que destaca o
surgimento do núcleo urbano de Itapura.
Entre os poucos trabalhos que discutem a política de ocupação territorial através dos
presídios militares em Goiás está a tese de Maria Regina da Cunha Rodrigues Simões de
Paula, intitulada O presídio de Santa Leopoldina do Araguaia e sua importância em termos
de colonização:1850-1865, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
da USP, no ano de 1972.
Para compreender os fatores que determinaram a implantação da Colonização Militar,
é necessário retroceder até o ano de 1822, e os novos problemas surgidos em decorrência da
independência. Entre as questões se destaca a necessidade de afirmar a ideia do Brasil como
um novo Estado Nacional.
Diante de tamanha heterogeneidade da população brasileira - formada por negros,
indígenas e descendentes de europeus - e das fissuras causadas por tal fato, a constituição da
nação e da unidade nacional é dirigida ao território brasileiro, que também não era coeso:

351
Texto adaptado da dissertação de mestrado”O Sertão de Amaro Leite no Século XIX” (TECCER/UEG).
No momento da ruptura dos laços coloniais, o novo Império brasileiro não dispunha
de um território unificado prévio, mas de um conjunto heterogêneo de territórios
coloniais herdados da colonização. A unidade territorial aparece, então, como um
desafio e um programa histórico. Esse programa, contudo, correspondia aos
interesses concretos gerados pela marcha de apropriação e valorização de terras
empreendida pelos colonos. [...] A unidade territorial não estava nem de longe
assegurada no momento da ruptura com a metrópole portuguesa. Na verdade, o
poder imperial no Brasil surge como resposta à ameaça da desintegração
republicana: como instrumento da unidade política e territorial. (MAGNOLI, 2003,
p. 7).

Personificado como o “segundo corpo” do rei (MORAES, 2005, p. 55), esse “corpo
unificado” tinha quase dois terços de seu território desconhecido, estando os territórios
presentes em mapas mais por suposição do que por conhecimento (GARCIA, 2010, p. 11).
Durante o Império, o projeto nacional se orienta no sentido de construir o país, mantendo a
integridade territorial herdada da colônia. “Construir o país é levar a civilização aos sertões,
ocupar o solo é subtrair os lugares da barbárie, [...]” (MORAES, 2005, p. 95). Os “selvagens”
se tornam um obstáculo para o progresso e a civilização (ROCHA, 1998, p. 39) e, para a
consolidação desse projeto, são necessários a integração e o povoamento das áreas remotas:
Diante da necessidade de conhecer e integrar o território; “civilizar” os indígenas e
obrigar que brancos e negros pobres se tornassem mão de obra disponível para os projetos de
expansão da lavoura cafeeira; bem como, subordinar as áreas periféricas (juntamente com
suas populações) aos centros econômicos, por meio da produção de alimentos; e a interdição
das chamadas terras devolutas (conforme estabelecido na Lei de Terras), fez com que o
governo imperial lançasse mão de uma política de ocupação, que pretendia, pela implantação
de colônias e presídios militares, o controle territorial, promovendo a interiorização da
colonização, sob o controle do Governo Imperial, que foi implantado nas províncias pela
atuação dos presidentes das Províncias. O projeto imperial previa estimular o povoamento do
interior do território, porém, de forma que pudesse controlar esse movimento.
A implantação da colonização militar se dá a partir de meados do século XIX e tem
seu marco inicial com a Lei n. 555, de 15 de junho de 1850, que, em seu artigo 11, § 5º,
autoriza o governo a “estabelecer onde convier, presídios e colônias militares dando-lhes a
mais adequada organização” (BRASIL, 1850a, p. 54); seguida da Lei n. 601, de 18 de
setembro de 1850, conhecida como Lei de Terras, que, em seu artigo 12, determinava que: “O
Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessárias: 1º, para a colonisação dos
indigenas; 2º, para a fundação de povoações, abertura de estradas, e quaesquer outras
servidões, e assento de estabelecimentos publicos: 3º, para a construção naval” (BRASIL,
1850a, p. 310).
A Colonização Militar acontece em um momento em que se pretendia impor mais
controle sobre o território, inclusive mediante a gestão dos fundos territoriais. Trata-se dos
“sertões”, das “fronteiras”, dos lugares ainda sob domínio da natureza ou dos “naturais”,
promovendo a centralização política e a articulação entre as várias regiões do Império, sem,
claro, excluir a política indigenista.
Em virtude do tamanho do território do Brasil e das especificidades regionais, a
colonização militar sofreu variações, inclusive na nomenclatura: presídios e colônias
militares, que conforme Luiz Pedreira do Coutto Ferraz, Ministro do Império em 1854, “os
presídios prepararão terreno para futuras colônias” (BRASIL, 1855, p. 40). Importante
ressaltar também que as primeiras ocorrências se deram em províncias fronteiriças aos países
vizinhos e, posteriormente, esta é também implantada em regiões centrais do território, como
pode ser observada na Figura 1, a seguir.

Figura 1 – Mapa da Colonização Militar no Brasil, 1861


Fonte: Brasil (1862, p. 29-39).

Como salienta Faria (2011, s.p.), a colonização militar no Brasil Império foi
implantada para permitir “o enfrentamento dos “inimigos” de além das fronteiras, como dos
“inimigos internos”, ou seja, os índios que não se deixavam dominar, os quilombolas e os
livres pobres considerados vadios, [...]” (aspas no original), ou, mais precisamente, conter os
grupos que, de alguma forma, se estabeleceram à margem do sistema vigente e que
representavam empecilhos ao projeto civilizador do governo imperial. Na Província de Goiás
foi adotada a implantação de presídios militares, inicialmente às margens do Rio Araguaia.
Percebia-se no século XIX, com mais nitidez do que anteriormente, que a nação
abria-se em duas frentes de ação: de um lado as ideias ligadas ao mundo urbano do
litoral, voltado para fora e procurando “civilizar-se” pelo contato com os ares
europeus; do outro, as ideias voltadas para o mundo interiorano, procurando
conhecer seus territórios e incorporá-los às tentativas de elaboração de projetos
nacionais. Desses dois movimentos surgiu uma mescla que resultou em uma nação.
(GARCIA, 2010, p. 12).

O decreto n. 750, de 2 de janeiro de 1851 (BRASIL, 1852, p. 1-14), principia a


colonização militar em Goiás. Simões de Paula (1972) ressalta que a colonização militar era
uma política de alcance tridimensional, que visava ocupar os vazios demográficos, controlar
os povos indígenas e favorecer a navegação. Mas é necessário lembrar que do projeto original
à execução eram feitas adaptações, com o predomínio de um aspecto sobre os demais, claro,
sem excluí-los.
Os presídios da Província de Goiás estavam submetidos aos preceitos contidos no
decreto n. 750, de 2 de janeiro de 1851, expressos no Regulamento para os Presídios
Militares Fundados ás margens do Rio Araguaya na Provincia de Goyaz, que vigorou, com
exclusividade, até 1854, quando o Governo Imperial, por meio do Ministério do Império,
entendendo as especificidades da implantação da colonização militar, autoriza a criação de
regulamentos diferenciados.
A autorização para criação de regulamentos individualizados expõe, na prática, aquilo
que era percebido: a multiplicidade de instituições e a heterogeneidade de objetivos,
vinculados à colonização militar. Por outro lado, também é um elemento de enfraquecimento
do sistema, uma vez que, tornava o controle à distância muito mais difícil, ou quase
impossível, em vista de não mais haver um parâmetro de acompanhamento.
Em 1854, os presídios do Araguaia ainda se encontravam frágeis, mas há a
continuidade da política colonizadora, com o abandono temporário dos presídios já fundados e
a criação de novos presídios, agora com foco no Sertão de Amaro Leite, zona de inluência do
rio Tocantins.
Os motivos que levaram à escolha da localidade pelo engenheiro Ernesto Vallée não
são claros, mas é importante salientar a centralidade da região, como pode ser observado na
Figura 2 a seguir, e a delicada situação política da Província, convulsionada por um
movimento separatista, desde 1822, e a grande atividade de povos indígenas, especialmente os
Avá-Canoeiro, conhecidos pela obstinação com que defenderam seus territórios durante
grande parte do século XIX.
A colonização militar, no Sertão de Amaro Leite, que pode ser observado na Figura 2
abaixo, inicia uma nova fase dos presídios na província de Goiás, estabelecidos em conjunto,
com menor distância entre um e outro para que eles pudessem se proteger mutuamente, e
próximo aos povoados de Pilar, Amaro Leite, Descoberto, Traíras e Peixe. Os presídios
fundados no Sertão de Amaro Leite foram denominados Santa Bárbara, Santo Antônio e Santa
Cruz.

Figura 2 – Sertão de Amaro Leite, 1809

Fonte: Teixeira Neto (2009) e Memórias Goianas 6 (1997).

A implantação dos presídios do Sertão de Amaro Leite foi seguida da abertura de


estradas, que proporcionaram a ligação aos núcleos urbanos existentes em suas proximidades,
bem como às regiões mais distantes, como Porto Imperial e a capital, pela Estrada do Norte,
que passando pelos três presídios do Sertão reduziria a distância, da capital a Porto Imperial,
de 180 léguas para 127 léguas (MEMÓRIAS GOIANAS 6, 1997, p. 240-253).
A construção dessas estradas, juntamente com o fato dos novos presídios do Sertão de
Amaro Leite estarem localizados em áreas menos isoladas, próximos a pequenos núcleos
urbanos, permitiram que colonos se dirigissem para suas imediações para estabelecerem suas
roças (MEMÓRIAS GOIANAS 6, 1997, p. 248), aumentando a população. Conforme pode
ser observado na Tabela 1.
Tabela 1  População dos presídios do Sertão de Amaro Leite (1854-1864)

Ano Santa Bárbara Santo Antônio Santa Cruz

1854352 56 59 52
1856 50 60 48
1858 64 Não consta 76
1859 100 120 89
1861 117 110 68
1862 148 95 103
1863 151 100 121
1864 - - Extinto
Fonte: Relatórios de Presidentes da Província (Memórias Goianas).

Entre os fatores que contribuíram para o rápido aumento populacional, podemos


destacar a maior segurança devido aos presídios e sua guarnição, a incorporação de novas
áreas mediante a expulsão dos povos indígenas, a abertura de estradas e picadas e também a
nomeação de um capelão para o presídio de Santa Cruz.
A vida nas instituições coloniais não foi fácil. Além dos constantes conflitos com os
indígenas, destacam-se a carência de alimentos causada principalmente pelo pouco
conhecimento dos terrenos escolhidos para a implantação das instituições, vulneráveis a
enchentes, como em Santo Antônio e Santa Cruz, e a falta de água, como em Santa Bárbara.
Mas, a despeito das dificuldades, é evidente que, a colonização militar conseguiu promover e
conservar populações em áreas até então desabitadas por não indígenas.
A política de colonização militar, com a implantação de presídios colonizadores,
antecedeu a qualquer política de ocupação territorial dirigida pelo Governo em toda a
Província de Goiás e futuro estado de Goiás. Seu principal atributo foi favorecer a ocupação
de áreas interiores, proporcionando que toda essa região passasse por um sistemático processo
de transformações, efetivadas pela ação humana, criando as condições para que, a partir do
século XX, ela fosse incorporada como uma nova fronteira ao território goiano. Os presídios
militares e seus efeitos podem ser considerados, dessa maneira, uma marca pioneira do tipo de
intervenção efetuada no século XX, antecipando projetos posteriores, como a própria “Marcha
para o Oeste”, nos anos 1930.
Apesar de incapaz de alterar substancialmente a economia da Província, a colonização
militar conseguiu impor mais controle sobre o território ao direcionar o fluxo de imigrantes
pelos caminhos abertos; drenando a população das áreas de ocupação antiga, menos férteis,

352
Os primeiros habitantes dos Presídios do Sertão de Amaro Leite foram as praças e suas famílias
(MEMÓRIA GOIANA 6, 1997, p. 141).
para novas áreas, com mais capacidade produtiva. As estradas abertas direcionavam o
caminho a seguir. É necessário salientar que algumas estradas presentes no atual estado de
Goiás tiveram seus contornos delineados ainda no século XIX, exatamente interligando
antigas áreas de mineração às novas áreas de colonização militar. A colonização militar fez
sentir seu impacto por seu potencial integrador das várias regiões do Império. Como pode ser
observado na figura 3, abaixo.

Figura 3 – Caminhos, estradas e picadas

Fonte: LEITÃO, 2012 (transcrito de ROCHA, 2001); SIMÕES DE PAULA, 1972; TEIXEIRA NETO, 2009;
CUNHA MATTOS, 1836; JARDIM, 1874.

O Sertão de Amaro Leite foi a localidade na qual a colonização militar contou, entre as
instituições implantadas em Goiás, com mais regularidade, não sofrendo nenhuma alteração
até o ano de 1864, quando o Presídio de Santa Cruz foi extinto. Mesmo que os demais
presídios do Sertão, Santo Antônio e Santa Bárbara, tiveram o seu contingente reduzido em
virtude da Guerra do Paraguai, isso também se deu, muito provavelmente por já haver
diminuído consideravelmente o poder de reação dos grupos indígenas locais, sendo
transferidos de localidade apenas ao final do período estudado, possivelmente para locais de
ocupação mais recentes e em que a presença indígena, ou quilombola, ainda era mais sentida.
Deve ser considerado que a extinção ou mudança da localidade de um presídio não
significava a desocupação da localidade anterior, mas somente a retirada do aparato
governamental, e, provavelmente, a diminuição do fluxo populacional, devido a efetiva
ocupação das terras, o que fica evidente pela manutenção de vários desses núcleos de
povoamento, que atingiram o século XXI.
O projeto de colonização militar implantado na Província de Goiás conseguiu atrair e
aumentar consideravelmente a população das áreas coloniais, ampliou as áreas de ocupação
não indígena, interligou diferentes localidades, ao mesmo tempo em que conseguiu diminuir,
e até extinguir, alguns povos indígenas, e, por algum tempo, promoveu a navegação a vapor
do rio Araguaia. Pode-se afirmar que esse foi, do ponto de vista dos objetivos, um projeto de
sucesso implantado pelo Governo Imperial; o mesmo não se pode afirmar com relação aos
povos indígenas ou sobre o meio ambiente, nos quais os efeitos negativos são evidentes ainda
na atualidade. Muitos aspectos sobre a Colonização Militar em Goiás, e mais especificamente
no Sertão de Amaro Leite ainda aguardam por pesquisas.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Maria Juliana de Freitas. O Sertão de Amaro Leite no século XIX. 149f. 2016.
Dissertação (Mestrado em Território e Expressões Culturais no Cerrado) – Universidade
Estadual de Goiás, Campus de Ciências Socioeconômicas e Humanas, Anápolis.
ATAÍDES, Jézus Marco de. Documenta indígena do Brasil Central. Goiânia: Ed. da UCG,
2001.
BERTRAN, Paulo. História de Niquelândia: do Distrito de Tocantins ao Lago de Serra da
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A COMPOSIÇÃO SOCIAL DA FEB: UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE AS
FICHAS DE RESERVISTAS DA FEB E O CENSO DEMOGRÁFICO DE 1940353

Matheus Moreto Guisso Rodrigues


Universidade Estadual de Londrina

Victor Hugo Bento da Costa Traldi


Universidade Estadual de Londrina

Orientador: Prof. Dr. Francisco César Alves Ferraz


Universidade Estadual de Londrina

1. INTRODUÇÃO
A participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial despertou interesse em inúmeros
historiadores, jornalistas e pesquisadores em geral desde meados da década de 1940 e a
curiosidade sobre o tema persiste no século XXI, configurando-se como uma área com uma
ampla gama de abordagens possíveis. Prova disso é que existem mais de 1200 títulos – entre
livros, capítulos de livros, teses, artigos, entre outros – com diversas temáticas relacionadas à
atuação da Força Expedicionária Brasileira na Itália e o contexto brasileiro do período 354. No
presente artigo – que está inserido nesse rico campo de estudos –, desenvolvemos uma análise
comparativa entre as fichas de reservistas dos soldados dos 4º e 5º escalões da Força
Expedicionária Brasileira e o Censo Demográfico do IBGE de 1940.
Nosso objetivo é refletir sobre a composição social da FEB e sobre a própria sociedade
brasileira, levando em conta questões étnicas, educacionais e profissionais. A partir de nossa
análise, traçamos um perfil aproximado do soldado dos 4º e 5º escalões da Força
Expedicionária Brasileira a partir das fontes conhecidas: as fichas de reservistas. Ao fazermos
a comparação de tal perfil com as estatísticas do Censo Demográfico, buscamos entender se o
resultado da seleção desses dois escalões refletiu de modo proporcional o corpo social
brasileiro de 1940.

2. DESENVOLVIMENTO
2.1. FONTES
Antes de entrarmos na análise propriamente dita, é necessário descrever as fontes
utilizadas, refletir sobre seus contextos de elaboração, levantar hipóteses sobre a maneira

353
Este trabalho é resultado de atividades desenvolvidas no projeto de pesquisa Do Recrutamento à
desmobilização: problemas e polêmicas historiográficas da Força Expedicionária Brasileira, sob orientação do
Prof. Dr. Francisco César Alves Ferraz, na Universidade Estadual de Londrina.
354
Tal número é provisório, e foi alcançado a partir de um levantamento bibliográfico realizado no projeto de
pesquisa supracitado. É provável que esse número seja maior, já que a pesquisa se encontra em andamento.
como as informações foram preenchidas – no caso das fichas – ou coletadas – no caso do
Censo – e apontar problemas metodológicos no trato dessas fontes.
As 1156 fichas de reservistas dos 4º e 5º escalões da FEB se encontram disponíveis
para consulta no Arquivo Histórico do Exército, situado na cidade do Rio de Janeiro, e contêm
uma grande variedade de informações sobre o reservista355. A análise das informações se deu
a partir da divisão das fichas entre nove integrantes do projeto de pesquisa. Cada um
contabilizou as diversas respostas às categorias ano de nascimento, estado de origem,
lê/escreve, profissão, cor, graduação militar e altura – sendo que o foco de nosso artigo
reside apenas nas cinco primeiras. A razão desse recorte dentre as categorias é a possibilidade
de compreender de forma mais acurada a seleção e a composição dos dois últimos escalões
em sua faceta social.
Ao longo do processo de revisão dos números alcançados pelos nove integrantes do
projeto em relação às categorias presentes nas fichas, foram encontrados erros de contagem e
problemas metodológicos que poderiam comprometer o resultado final das estatísticas.
Primeiramente, notou-se uma grande discrepância entre o levantamento dos integrantes e os
números revisados das categorias cor e profissão. Isso se deu pelo fato de que foi necessário
reunir as respostas das fichas nos critérios do Censo Demográfico de 1940 para que a
comparação fosse possível. Contudo, os integrantes do projeto interpretaram os dados de tais
categorias de formas diferentes – ou seja, não adotaram uma maneira única de agrupar as
respostas das fichas nos critérios do Censo –, o que não permitia que os números fossem
simplesmente compilados.
Em segundo lugar, é provável que tenha havido falta de atenção por parte de alguns
integrantes durante o levantamento. Feita a revisão, constatou-se um número menor de
respostas “sem informação” em relação aos resultados alcançados em um primeiro momento
nas categorias ano de nascimento e graduação militar. Dessa forma, supõe-se que o integrante
pode não ter encontrado as respostas a tais categorias na região usual da ficha, que poderiam
aparecer em outra parte do documento.
Um terceiro ponto de divergências nos números está relacionado ao fato de termos
trabalhado com fotografias das fichas dos reservistas. Algumas das fotos estavam embaçadas
ou tremidas – o que ora dificultava a identificação das respostas das categorias ora impedia-a
totalmente. A identificação da resposta foi impossível em um pequeno número de fichas, e,

355
As informações que constam nas fichas são: data do nascimento, natural de (estado e cidade de origem),
lê/escreve, profissão, cor (da pele), nome do reservista, ano de alistamento, ano de incorporação, descrições
físicas (altura, cabelo, olhos, nariz, rosto, boca, barba, bigode e “sinais particulares”), local onde serviu, tempo de
serviço militar, especialidade, graduação militar, provável endereço ao qual iria morar quando voltasse da guerra,
destino de mobilização, seção de mobilização, centro de mobilização, número de mobilização, local, dia, mês e
ano (de preenchimento da ficha). Além disso, havia espaços para a assinatura e a impressão digital do reservista.
A maioria das fichas apresenta carimbos, rasuras e anotações datilografadas ou manuscritas, sendo que não há
nas mesmas algo que indique o momento e o motivo pelo qual tais anotações foram feitas. Não há indícios de
quem foi o responsável pelo preenchimento das fichas.
nesses casos, contabilizamos como sem informação356 para que o resultado final tivesse a
menor interferência possível. As soluções a esse problema seriam trabalhar com as fichas em
si ou com fotografias em melhor resolução. Por fim, houve casos nos quais a caligrafia do
responsável pelo preenchimento ou o caractere datilografado dificultaram ou impossibilitaram
a identificação da resposta – principalmente quando se tratava de números.
A outra fonte utilizada em nossa análise foi o Censo Demográfico – População e
Habitação, que se constitui no Volume II da Série Nacional do quinto Recenseamento Geral
do Brasil, realizado em 1940. Segundo Marcílio (1974 apud PIZA; ROSEMBERG, 2002, p.
94), o Censo de 1940 faz parte da era estatística da demografia brasileira e inaugurou o
período no qual passou a se realizar “censos periódicos, por métodos modernos de coleta e
publicados sistematicamente por um órgão especializado – o IBGE”. Os resultados desse
Censo foram publicados somente uma década após o seu levantamento, pois sofreram
problemas na sistematização dos dados. Alguns dos motivos pontuados pelo IBGE para tal
atraso foram
a demora na devolução do material de coleta preenchido, o que foi motivado
sobretudo pela extensão territorial do país e dificuldades de transporte; a
necessidade da formação de pessoal técnico para as diversas fases dos
trabalhos; a extensão do plano estabelecido para as apurações, talvez
excessivas, mas que impunha para suprir o desconhecimento estatístico de
certos aspectos da realidade nacional então observados; e principalmente, a
deficiência do equipamento mecânico [...]. (IBGE, 1950, p. xiv)

As principais informações coletadas pelo IBGE dizem respeito aos quadros de


habitação, sexo, idade, cor, estado conjugal, nacionalidade e naturalidade, língua, religião,
instrução, atividade profissional357, propriedade imobiliária, seguros privados e sociais,
sindicalização, fecundidade, defeitos físicos, migrações internas, estado de prédios e
domicílios. Para o âmbito de nossa pesquisa, levaremos em conta somente as informações
relativas a sexo, idade, cor, instrução, atividade profissional e naturalidade.

2.2. ANÁLISE COMPARATIVA: CENSO x FICHAS


O ponto central de nosso artigo consiste em uma comparação dos dados revisados do
levantamento das respostas às categorias ano de nascimento, estado de origem, lê/escreve,
profissão e cor das fichas dos reservistas dos 4º e 5º escalões da FEB com, respectivamente,

356
Portanto, em nossa análise, sem informação abrange os casos nos quais não havia resposta alguma à categoria
e nos quais havia, mas era impossível lê-la. A perda de informações decorrente desses últimos casos gira em
torno de 2% do total de fichas.
357
As atividades profissionais foram divididas pelo IBGE em doze ramos: 1) agricultura, pecuária e silvicultura;
2) indústrias extrativas; 3) indústrias de transformação; 4) comércio de mercadorias; 5) comércio de imóveis e
valores mobiliários, crédito, seguros e capitalização; 6) transportes e comunicações; 7) administração pública,
justiça e ensino público; 8) defesa nacional e segurança pública; 9) profissões liberais, culto, ensino particular,
administração privada; 10) serviços, atividades sociais; 11) atividades domésticas, atividades escolares; 12)
condições inativas, atividades não compreendidas nos demais ramos, condições ou atividades mal definidas ou
não declaradas. O Censo de 1940 apresenta as profissões que se encaixam em cada ramo (IBGE, 1950, p. 38-41).
as estatísticas apresentadas nos quadros do Censo de 1940 relativas a idade, naturalidade,
instrução, atividade e cor.
Segundo o Censo de 1940, a população brasileira era de 41.236.315 habitantes. Desse
total, 20.614.088 (49,9%) eram homens – sendo que 3.485.153 deles (16,9% da população
masculina) tinham entre 20 e 29 anos. Portanto, comparamos as estatísticas relativas às 1156
fichas com os números do IBGE referentes à população total e ao número de homens com a
idade entre 20 e 29 anos. Tal recorte é justificado pelo fato de que 95,5% dos reservistas se
encontravam nesse intervalo etário quando da convocação.
Primeiramente, é possível notar uma diferença na distribuição regional358 (Tabela 1)
dos reservistas se comparada ao panorama nacional. Enquanto 67,8% dos brasileiros natos
eram naturais de estados das regiões Sul e Este, 81,6% dos reservistas dos 4º e 5º escalões
vieram dessas regiões. Por outro lado, 32,2% dos brasileiros natos eram das regiões Norte,
Nordeste e Centro-Oeste. Nas fichas, é possível notar uma diminuição da presença de
reservistas dessas regiões: 17,7%. Percebe-se, então, que as fichas apresentam uma maior
proporção de reservistas provenientes das regiões Sul e Este se comparadas aos dados do
Censo.
Tabela 1: Porcentagens relativas à população total de brasileiros natos, à população masculina de brasileiros
natos em idade militar e aos reservistas do 4º e 5º escalões da FEB, segundo a região de origem.

População Fichas de
População total de masculina de reservistas do 4º
brasileiros natos brasileiros natos e 5º escalões da
em idade militar FEB

Norte 3,5% 3,7% 2,8%

Nordeste 26% 24,8% 13%

Este 39,4% 40% 44,7%

Sul 28,4% 28,5% 36,9%


Centro-Oeste 2,7% 2,7% 1,9%
Sem informação - - 0,7%
TOTAL 100% (39.822.487) 100% (3.392.301) 100% (1156)
Fonte: os próprios autores, a partir de dados do Censo Demográfico de 1940 e do levantamento estatístico das
informações das fichas.

358
É importante ressaltar que a divisão das regiões administrativas do Brasil era diferente dos dias atuais.
Segundo o Censo, as regiões e seus respectivos estados em 1940 eram: Norte (Acre, Amazonas e Pará), Nordeste
(Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas), Este (Sergipe, Bahia, Minas
Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Distrito Federal), Sul (São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande
do Sul) e Centro-Oeste (Goiás e Mato Grosso). Os territórios dos atuais estados de Tocantins, Roraima e Amapá
faziam parte, respectivamente, dos estados de Goiás, Amazonas e Pará. Já os territórios de Rondônia e Mato
Grosso do Sul faziam parte de Mato Grosso.
No quesito instrução (Tabela 2), há uma grande discrepância entre o quadro nacional e
os reservistas febianos. Segundo o Censo, apenas 32,2% da população sabiam ler e escrever
em 1940. No recorte da população masculina na faixa dos 20 anos, o nível de alfabetização
sobe para 51,6%. Por outro lado, 91,7% das fichas contêm a informação de que o reservista
sabia ler e escrever. Portanto, a seleção dos dois últimos escalões da FEB conteve uma grande
maioria de alfabetizados – o que não era verificado na população total brasileira. Entretanto,
deve-se levar em consideração que o fato de um habitante ou um reservista responder ao
Censo ou na ficha de reservista que sabe ler e escrever não diz muito a respeito da qualidade
de sua alfabetização.
Tabela 2: Porcentagens relativas à população total brasileira, à população masculina em idade militar e aos
reservistas do 4º e 5º escalões da FEB, segundo o grau de instrução.

Fichas de
População
População total reservistas do
masculina em
brasileira 4º e 5º escalões
idade militar
da FEB

Sabe ler e escrever 32,2% 51,6% 91,7%


Não sabe ler e
67,3% 48,2% 6,1%
escrever
Rudimentar - - 0,8%
Sem informação/não
0,5% 0,2% 1,4%
declarado
TOTAL 100% (41.236.315) 100% (3.485.153) 100% (1156)
Fonte: os próprios autores, a partir de dados do Censo Demográfico de 1940 e do levantamento estatístico das
informações das fichas.

Em relação à profissão ou atividade profissional (Tabela 3), a seleção dos dois últimos
escalões da Força Expedicionária Brasileira também traz uma proporção diversa da
evidenciada pelo Censo de 1940. Para efeito de facilitar a análise, dividimos os ramos
profissionais entre profissões rurais – que englobam as atividades dos dois primeiros ramos
descritos pelo IBGE – e profissões urbanas – que consistem nas atividades contidas nos
outros ramos, com exceção de condições inativas, atividades não compreendidas nos demais
ramos, condições ou atividades mal definidas ou não declaradas, considerado separadamente.
Os números alcançados mostram que 39% da população total brasileira – que
corresponde a 55,4% das pessoas com 10 anos ou mais – desempenhavam atividades urbanas.
No recorte etário da população masculina entre 20 e 29 anos, a porcentagem de trabalhadores
do meio urbano cai para 31,1%. Já nas fichas analisadas, a tendência se inverte novamente:
66,8% dos reservistas trabalhavam na zona urbana. De forma inversa, na população total
brasileira os trabalhadores rurais se constituem em 23,8% - 33,8% das pessoas com 10 anos
ou mais. Entre os homens de 20 a 29 anos, a proporção aumenta para 65,4% e nas fichas a
porcentagem diminui novamente, alcançando 26%. Pode-se perceber, portanto, que nos 4º e 5º
escalões da FEB há uma maior proporção de profissionais urbanos do que na sociedade
brasileira de 1940.
Tabela 3: Porcentagens relativas à população total brasileira, à população masculina em idade militar e aos
reservistas do 4º e 5º escalões da FEB, segundo o ramo de atividade profissional.

Fichas de
População
População total reservistas do
masculina em
brasileira 4º e 5º escalões
idade militar
da FEB

Profissões rurais 23,8% 65,4% 26%

Profissões urbanas 39% 31,1% 66,8%


Condições inativas,
atividades não
compreendidas nos
demais ramos,
7,5% 3,5% 1,3%
condições ou
atividades mal
definidas ou não
declaradas
Pessoas de menos de
29,6% - -
10 anos
Sem informação - - 5,9%
TOTAL 100% (41.236.315) 100% (3.485.153) 100% (1156)
Fonte: os próprios autores, a partir de dados do Censo Demográfico de 1940 e do levantamento estatístico das
informações das fichas.

Por fim, a categoria cor (Tabela 4) suscita diversas reflexões, mas se constitui como o
quesito do qual se pode extrair conclusões com o menor grau de convicção. Lançando um
primeiro olhar aos dados, percebe-se que a distribuição de cores tanto na população total
quando no recorte da população masculina entre 20 e 29 anos é quase idêntica: cerca de
63,5% de brancos, 14,6% de pretos, cerca de 21% de pardos, 0,6% de amarelos e 0,1% de cor
não declarada. Entre as 1156 fichas, nota-se a proporção de 64,5% de brancos, 5,3% de pretos,
27,3% de pardos, 0% de amarelos e 2,9% de fichas sem informação 359. Portanto, em um
primeiro momento, fica evidente um aumento na proporção de brancos e, principalmente, de
pardos e uma redução na porcentagem de pretos e amarelos. A seleção dos 4º e 5º escalões da
FEB, dessa maneira, teria privilegiado os setores mais “embranquecidos” da sociedade
brasileira?

359
Nesse caso, sem informação também corresponde a casos nos quais havia a foto do reservista, mas estava
ausente a resposta escrita à categoria. Essa iniciativa teve como objetivo não imputar às fontes nossas próprias
interpretações sobre a cor do reservista e, portanto, não comprometer a análise.
Tabela 4: Porcentagens relativas à população total brasileira, à população masculina em idade militar e aos
reservistas do 4º e 5º escalões da FEB, segundo a cor.

Fichas de
População
População total reservistas do 4º
masculina em idade
brasileira e 5º escalões da
militar
FEB

Brancos 63,5% 63,7% 64,5%

Pretos 14,6% 14,6% 5,3%

Pardos 21,2% 21% 27,3%

Amarelos 0,6% 0,6% 0%

Não declarado 0,1% 0,1% -

Sem informação - - 2,9%

TOTAL 100% (41.236.315) 100% (3.485.153) 100% (1156)

Fonte: os próprios autores, a partir de dados do Censo Demográfico de 1940 e do levantamento estatístico das
informações das fichas.

Não é possível chegar a uma resposta sem refletir sobre a coleta dos dados do Censo e
o preenchimento das fichas e como o branqueamento influenciou a constituição das fontes.
Segundo Edith Piza e Fúlvia Rosemberg (2002, p. 96), o Censo de 1940 “[...] estabelece o
critério de atribuir as cores branco, preto, pardo e amarelo à população brasileira”. Contudo,
as autoras afirmam que a maneira como o IBGE apresenta as instruções sobre o procedimento
de coleta de cor é ambígua, já que não fica claro se quem responde ao quesito cor é o
declarante ou o recenseador. A instrução do IBGE era que o recenseador perguntasse a cor ao
declarante e inserisse na denominação pardo todas as outras respostas ao quesito que não
fossem branco, preto e amarelo. Além disso, na nota prévia do Censo consta que os
indivíduos que não declararam sua cor teriam “uma reserva à declaração expressa de
mestiçagem”. (IBGE, 1950, p. xxi apud PIZA; ROSEMBERG, 2002, p. 101). A conclusão
alcançada pelas autoras é que “os pardos formaram um grupo de cor criado a posteriori, a
partir desses dois critérios de resposta. Parte das respostas sobre pardos foi dada pelos
declarantes, parte foi inferida pelos coletores e analistas do IBGE”. (PIZA; ROSEMBERG,
2002, p. 102).
Piza e Rosemberg apontam motivos que justificariam o porquê de ter que se levar em
conta o branqueamento ao lidar com estatísticas do Censo Demográfico:
Em países de população miscigenada, o quesito cor pode resultar em
respostas que reflitam apenas os significados sociais que a cor apresenta
nessa população; seja para os aplicadores do quesito, seja para os
respondentes do censo. Corre-se o risco [...] de os respondentes falsearem a
cor, afiliando-se ao grupo que tenha mais prestígio social [...]. (PIZA;
ROSEMBERG, 2002, p. 100).

Portanto, deve-se considerar que as respostas dadas ao Censo podem estar ligadas à
intenção – do declarante ou do recenseador – de atribuir uma cor que possua um melhor
significado perante a sociedade. Ou seja, as próprias estatísticas do Censo podem ter
branqueado a sociedade brasileira.
Outras problemáticas em relação à coleta do quesito cor dizem respeito à “[...]
dinâmica do relacionamento entre entrevistador e respondente, [na qual] pode ocorrer a
atribuição de cor pelo coletor do IBGE, quando os dados fenotípicos lhe pareçam
suficientemente ‘objetivos’” (PIZA; ROSEMBERG, 2002, p. 104) – o que se constituiria em
um erro, já que não há algo que possa ser chamado de objetivo quando se trata de atribuição
de cor no Brasil. Por fim, como o processo de coleta dos dados era exaustivo e automatizado,
o recenseador também poderia atribuir a cor para agilizar seu trabalho.
O Censo Demográfico de 1940 traz indícios de que a cor era autodeclarada e que o
recenseador atuava na medida em que constituía a categoria pardo. Já em relação às fichas de
reservistas, não há como saber se a cor era autodeclarada ou não. Contudo, podemos afirmar
com convicção que as respostas ao quesito cor nas fichas passavam necessariamente pela
interpretação de quem as preenchia, independentemente de questões de auto declaração.
Os indícios para tal afirmação são a ocorrência de termos como caboclo, mulato,
moreno – compilados em pardo – e amarelo no Censo e ausência dessas denominações nas
fichas. Como essas expressões foram utilizados para auto atribuição de cor no Censo,
inferimos que as mesmas deveriam aparecer nas fichas – o que não acontece. Supondo que a
cor fosse autodeclarada e esses termos tiverem sido utilizados pelos reservistas como resposta,
o que justificaria a ausência dessas denominações seria uma interferência nos resultados por
parte do responsável pelo preenchimento da ficha. Nesse cenário, embora a cor tivesse sido
autodeclarada, quem preencheu a resposta pode ter “traduzido” tais expressões e as colocado
em outras categorias. Supondo que a cor não tenha sido autodeclarada, obviamente, a
atribuição não ficava a cargo do reservista. Portanto, de qualquer forma, houve interferência
do encarregado pelo preenchimento.
Dessa forma, não é possível chegar a um parecer definitivo no quesito cor, pois tanto
os critérios de coleta do Censo quanto a forma de preenchimento das fichas são questionáveis.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final de nossa análise, podemos afirmar que, a partir das 1156 fichas de reservistas,
o perfil do soldado do 4º e 5º escalões da Força Expedicionária Brasileira não reflete de
maneira proporcional a sociedade brasileira. A seleção desses escalões apresenta uma maioria
de soldados das regiões Sul e Este e menor do Norte, Nordeste e Centro-Oeste se comparada
com a distribuição da população total pelo território brasileiro. A grande maioria dos
reservistas era alfabetizada, o que não acontecia na sociedade como um todo. Praticamente
dois terços dos reservistas desempenhavam profissões urbanas, proporção maior se comparada
aos dados relativos população total e dos homens em idade militar. Por fim, a categoria cor
traz alguns problemas: a proporção de homens brancos na população total e nas fichas é
semelhante, mas há uma divergência na parcela de pretos e pardos devido às questões de auto
declaração e branqueamento.
Nosso artigo complementa pesquisas semelhantes que tratam da Força Expedicionária
Brasileira e que apresentam dados relativos à sua composição social. Chegamos a conclusões
parecidas com as alcançadas em trabalhos como Morrer na Guerra: a sociedade diante da
morte em combate, de Adriane Piovezan (2017). Tratando de todos os escalões da FEB, a
autora afirma que a maioria dos reservistas era dos estados do Centro-Sul do país,
“[...] indivíduos oriundos das regiões do Brasil onde fenômenos como a
industrialização e urbanização tinham impacto substancial sobre a realidade
local. Esta constatação já indica um descolamento inicial dos integrantes da
FEB em relação ao que seria a média da população brasileira”. (PIOVEZAN,
2017, p. 58).

Embora trate apenas dos expedicionários paranaenses, Piovezan (2017, p. 63) também
atesta a maior proporção de profissões urbanas e afirma que a “predominância de indivíduos
de origem urbana entre os recrutados deve ser tomada como a norma em se tratando dos
padrões históricos de recrutamento do Exército Brasileiro [...]”. Além disso, a autora também
leva em consideração as questões de branqueamento ao analisar a problemática da cor em seu
estudo. Ao analisar o perfil dos mortos da FEB, indaga:
Pode-se aqui colocar então as seguintes questões: teriam sido ‘branqueados’
alguns dos falecidos em ação da FEB? Em caso afirmativo, que interesse
teriam os membros do PS [Pelotão de Sepultamento] em ‘branquear’ os
mortos da FEB? E, caso essa colocação tenha algum fundamento, em que
proporção isso teria acontecido? Deve-se levar em conta que o
‘branqueamento’ da população brasileira é um antigo projeto das elites
políticas brasileiras pelo menos desde o final do II Império. Existe abundante
literatura descrevendo e interpretando os esforços realizados em superar a
tradição cultural e o biótipo prevalente de negros, índios e mestiços em prol
de um Brasil ‘branco’, ‘europeu’ e ‘moderno’ [...]. (PIOVEZAN, 2017, p.
69).

Por fim, o trabalho com estatísticas possibilita o levantamento de questões


relacionadas ao trato das fontes. A elaboração de documentos como o Censo atende a uma
necessidade que visa uma perspectiva a longo prazo. Já fontes como as fichas de reservistas
não eram criadas com o intuito de serem objetos de uma análise historiográfica posterior, mas
serviam para um propósito específico no período. Dessa forma, em todo trabalho de cunho
historiográfico, é necessário refletir sobre como as fontes foram produzidas, seus contextos de
elaboração, suas intencionalidades e finalidades.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico, 1940 –
População e Habitação. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, 1950.
FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA/Depósito de Pessoal. Fichas de Reservistas.
Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro.
PIOVEZAN, Adriane. Igreja e Exército. In:______. Morrer na Guerra: a sociedade diante da
morte em combate. Curitiba: Editora CRV, 2017. p. 47-92.
PIZA, Edith; ROSEMBERG, Fúlvia. A Cor nos Censos Brasileiros. In: CARONE, Iray;
BENTO, Maria Aparecida Silva (Org.). Psicologia Social do Racismo: estudos sobre
branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 91-120.
ENTRE CASTIGOS CRUEIS E CASTIGOS CONSTITUCIONAIS: AS PRÁTICAS DE
PUNIÇÃO DO EXÉRCITO IMPERIAL EM DEBATE

Pedro Henrique Soares Santos


Mestre em História pela Universidade de Brasília
Secretaria de Educação do Distrito Federal

As práticas de punição dentro do Exército passaram, tal como várias outras instituições
e práticas miltiares, por discussões e debates bastante prolíficos no Primeiro Reinado, e pela
mesma razão: a adequação desses mecanismos ao mundo constitucional que despontava no
Império. Esse processo encontra-se referenciado num quadro maior de reorganização do
sistema criminal e processual penal, iniciado na década de 1820 e finalizado na década
seguinte com o Código Criminal e o Código de Processo Penal. Nesse grande contexto, as
discussões giravam em torno dos limites de ação do Estado na execução da justiça, os limites
da punição e o que se buscava no momento de punir. Quais seriam os castigos aceitáveis para
os cidadãos? A punição deveria ser exemplo para os demais da sociedade, deveria levar o
desviante a refletir sobre sua conduta ou simplesmente retirar um elemento perigoso do
convívio social? De outro modo, quais punições corporais eram aceitas e quais passaram a ser
condenadas como “bárbaras”? Até onde era permitido ao Estado ir sem que ferisse as
garantias individuais dos cidadãos?
Muitas foram as respostas e os projetos apresentados sobre o tema. No entanto, o que
perpassava a todos era a preocupação em “humanizar”, “civilizar” e trazer as “Luzes” para a
legislação penal brasileira, ainda que as definições do que era considerado “humano” e, em
contrapartida, “cruel”, variassem entre as diversas ideias e projetos apresentados. Mesmo os
dispositivos constitucionais, que à primeira vista poderiam parecer muito claros e objetivos,
foram objetos de disputa parlamentar durante a primeira legislatura.
Dentro do vasto universo destas questões, o objetivo deste texto é analisar duas
discussões realizadas na Câmara dos Deputados em 1827 e 1828 sobre as práticas de punição
aceitáveis na força militar terrestre. Tratam-se do debate entre Cunha Mattos e Queiroz
Carreira sobre um relatório da Comissão de Guerra que abordava os castigos para desertores
de 5ª deserção e uma discussão acerca de decretos do Executivo que mandavam punir os
soldados desertores com chibatadas.
Em 17 de julho de 1827, entrava na ordem do dia das discussões parlamentares um
ofício enviado pelo ministro da guerra em que pedia esclarecimentos, em nome do governador
das armas do Maranhão, quais deveriam ser as penas aplicadas a soldados que houvessem
desertado pela quinta vez. A resposta da comissão de guerra foi a de que se deveria utilizar
como punição o estabelecido no artigo 14 de guerra, isto é:
Todo aquele que desertar ou que entrar em conspiração de deserção; ou que
sendo informado dela a não delatar; se for em tempo de guerra, será
enforcado: e aquele que deixar a sua companhia ou Regimento, sem licença,
para ir ao lugar do seu nascimento ou a outra qualquer aprte que seja, será
castigado com pena de morte, como se desertasse para fora do reino; e sendo
em tempo de paz, será condenado por sei aos a trabalhar nas fortificações. 360

O relatório foi posto em discussão nos dias 11 e 13 de agosto e foi votado no dia 27 do
mesmo mês. Destacou-se então um embate técnico entre dois oficiais superiores e
conhecedores das leis militares: Cunha Mattos e Queiroz Carreira. Nos primeiros debates
foram esboçadas algumas opiniões sobre a punição cabível à deserção e aos crimes militares
em geral.
Para Cunha Mattos, que era um dos membros da comissão que assinou o parecer, não
havia castigo suficiente que corrigisse um soldado que tivesse desertado pela segunda vez,
tanto pior pela quinta. Em sua opinião, o degredo, determinado pela ordenança de 1805 citada
na resposta da comissão, era a punição ideal. Sendo expulso do país depois de sua terceira
deserção, o desertor não voltaria ao serviço das armas e, portanto, não haveria quarta ou
quinta fugas. O problema ressurgiu com a carta régia de 1807, já que esta estabelecia que o
desertor, mesmo após sua terceira tentativa de abandonar as fileiras, deveria retornar às
bandeiras. Por tais razões, ele defendia que os desertores, nos casos de quarta ou quinta
deserções, deveriam ser punidos com os trabalhos nas fortificações, utilizando grilhões no pé
e na mão direita e com um rótulo nas costas informando seu crime. Como disse em 13 de
agosto:

A carta régia [de 1807] comuta a pena de degredo para a Índia em trabalhos
de fortificação e promete novo alistamento ao réu de 3ª deserção. Em virtude
da carta régia pôde existir 4ª deserção, mas para esta não há leis que arbitrem
penas e por isso é que eu disse que a semelhantes agressores deve ser aplicada
a pena do 14º artigo de guerra dos novos regulamentos. Porque se eu tivesse
autoridade, procederia por outro modo a respeito do soldado que houvesse
cometido 3ª deserção: eu diria a este soldado “meu amigo, vai para tua casa,
Deus te ajude, não serves para isto”.361

Esse posicionamento foi questionado por Queiroz Carreira nos dias de discussão. O
deputado se opunha ao parecer por entender que a pena a ferros e correntes, tanto quanto o
rótulo nas costas, haviam sido abolidos pela Constituição. Conforme se pronunciou:

Acaso estarão os militares fora da constituição? Acaso se há de ainda


consentir que um réu, porque teve a infelicidade de desertar, ainda
além de todos os trabalhos forçados, ande com uma corrente grossa a
qual é pelo dito artigo, presa do pé a mão direita, e ainda em cima
um rótulo nas costas em que se declara o seu crime: lei de ferro! Lei
pior que a mesma morte! A morte não será tão repugnante ao homem
como a injúria e aflição de um rótulo nas costas! Essas penas

360
LIPPE, Conde de. Regulamento para o exercício e disciplina dos regimentos de Infantaria dos Exércitos de
Sua Majestade Fidelíssima. Secretaria de Estado: Lisboa, 1763.
361
BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados (ACD). Sessão de 13 de agosto de 1827, tomo IV, p. 124.
infamantes estão abolidas pela constituição, e esta era de tal
repugnância que já por si tinha caído e já se não executava mesmo
antes da constituição (...).362

Diante da acusação de ter trabalhado contrariamente à Constituição, Cunha Mattos


revidou o argumento de Queiroz Carreira, iniciando, pela primeira vez, até onde se pôde
constatar, o debate sobre as penas cruéis:

O nobre deputado clama contra os castigos fortes e diz: que os ferros


estão proibidos pela constituição! Sr. Presidente, eu não acho tal
proibição na Constituição; ali só se proíbem as penas cruéis: o
castigo de ferros em sentenciados de crimes atrozes nunca foi
considerado cruel em nação alguma; na Inglaterra, França, Estados
Unidos e em outros países, os facinorosos trabalham com ferros nos
pés e nas mãos; e, França, ainda os castigos contra os desertores são
mais severos do que entre nós; os simples desertores trazem bigode
raspado à navalha. Penas cruéis são as da roda, mutilação, extração
de olhos e outros, mas a prisão em corrente nunca foi reputada cruel.
Os castigos de abstinência poderão ser reputados cruéis, porque nada
há que tanto mortifique o homem do que privá-lo dos alimentos
necessários à vida.363

Observa-se aqui uma disputa interpretativa dentro da Câmara dos Deputados acerca da
Constituição. A partir de uma linguagem aparentemente simples do inciso XIX do artigo
179,364 surgem díspares entendimentos que guiam distintos projetos políticos.
É significativo as compreensões dadas a “pena cruel” pelos dois deputados. Queiroz
Carreira parece colocar sob a expressão o conjunto de penas fisicamente pesadas e
moralmente humilhantes. A ênfase que pôs na ideia de que era preferível a morte ao rótulo do
crime nas costas é veemente. Poder-se-ia dizer que sinaliza que a humilhação pública, ao
destruir a honra do homem – mesmo de um desertor – era pena cruel e típica de Estados não-
constitucionais. Cunha Mattos, por sua vez, simplifica o entendimento de pena cruel para
aqueles castigos fisicamente excruciantes e aqueles que levam à mutilação do corpo. No
entanto, também é perceptível que ele considera as penas ligadas à honra como muito severas.
Isso fica claro com sua descrição de que, na França, os desertores tinham seu bigode raspado.
Ora, se se entender o uso do bigode como símbolo de virilidade e honra masculina, o Estado,
ao retirá-lo, também extirpa esses atributos definidores do homem viril e adulto. 365 Tem-se,
portanto, que ambos reputam as penas contra a honra como pesadas, mas enquanto Cunha
Mattos as aceita, Queiroz Carreira as considera cruéis.
A discussão acerca do parecer terminou com a votação de um projeto de lei proposto
por Holanda Cavalcante. Nele, ficava estipulado que o soldado que desertasse pela terceira
vez não seria admitido em serviço novamente (art. 1º), mas aqueles desertores que já
362
Idem, sessão de 11 de agosto de 1827, tomo IV, p. 112.
363
Idem, sessão de 13 de agosto de 1827, tomo IV, p. 124.
364
Lê-se neste inciso: “XIX. Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as
mais penas crueis.”. BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil. Acessível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm>
365
MATOS, Maria Izilda S. de. Cabelo, barba e bigode: masculinidades, corpos e subjetividades. Locus: revista
de história, Juiz de Fora, v. 17, n.02, 2011, p. 138.
estivessem sendo julgados pelos crimes de 4ª ou 5ª deserção sofreriam as penas estabelecidas
para a 3ª deserção (art. 2ª). O projeto foi aprovado em 27 de agosto de 1827, com a declaração
de voto em separado de Queiroz Carreira. 366
A questão dos castigos e das penas cruéis retornou ao plenário da Câmara em 1828 em
decorrência da edição de decretos e portarias do governo mandando punir os desertores com
chibatadas. Em 17 de junho foi apresentado um parecer da comissão de guerra sobre um
projeto de resolução do deputado Castro e Silva. O projeto pedia a suspensão dos decretos de
4 de junho de 1823, 28 de maio de 1824 e 3 de setembro de 1825 e demais ordens expedidas
para punição corporal com chibatadas de réus desertores. Outrossim, pedia que se colocasse
em vigor as determinações da ordenança de abril de 1805 referida anteriormente.
Em sua resposta, a comissão criticou asperamente as portarias e decretos do Executivo
porque, em sua opinião, não resolviam o problema e o teriam tornado pior, aumentando o
número de deserções, diminuindo o moral das tropas além de ser reputada ilegal:
[A comissão] acha-se obrigada a informar a esta augusta câmara que estando
demonstrado que o castigo das chibatadas e açoites, rodas de pau e pancadas
de espada, tanto no Exército como na armada, em vez de ser útil à
conservação da disciplina da tropa e marinhagem, serve mais para estragar o
físico e o moral dos homens do que de os compelir a procederem como bons
cidadãos, conhecendo mais que o ministro da guerra não podia sem notório
abuso de autoridade suspender por uma simples portaria a execução da
ordenação de 9 de abril de 1805, a qual não obstante seus palpáveis defeitos e
os resultados que teve opostos à intenção do legislador (...) não devera ser
anulada por um modo tão irregular (...); e estando com efeito provado que as
deserções eram menos frequentes antes do que depois da publicação da
ordenação sobredita e que muito mais frequentes se tornaram depois que se
expediu a portaria de 3 de setembro de 1825, chegando a relaxação de muitos
soldados até ao ponto de desertarem por mero divertimento e o abuso dos
chefes a decidirem sem conselho da natureza dos crimes e da qualidade ou
gravidade dos castigos, o que bem prova que as providências do governo
tiveram um resultado inverso dos fins que se propôs, visto ser
desproporcionada a pena à grandeza do delito: pois que sendo constante que
muitos comandantes de corpos, por falta de leis mais providentes, mandam
punir a seu arbítrio com 100, 200 e até 800 (sic) chibatadas a quaisquer
soldados por culpas cometidas contra a disciplina econômica e particular dos
mesmos corpos (...) de modo nenhum se podem reputar 60 ou 100 chibatadas
como suficiente castigo do crime de deserção (reputado um dos mais graves
do Exército) daquele soldado relaxado, a quem por culpas muito menos se
aplicam mais severos castigos, não só pelos comandantes dos corpos e das
companhias, mas ainda por um sargento ou outros oficiais inferiores. Tais são
os efeitos da nossa atual legislação militar! (...) nem por isso a comissão se
opõe ao projeto do Sr. Castro e Silva, reservando para ocasião mais oportuna
a total abolição dos castigos de chibatadas, açoites, rodas de pau e pancadas
de espada, tanto no Exército como na armada.367

É relevante que esse parecer tenha sido apresentado poucos dias após a sublevação dos
mercenários estrangeiros no Rio de Janeiro. Entre os dias 9 e 11 de junho, os batalhões de
alemães e irlandeses sublevaram-se na capital e somente com muita dificuldade o governo
imperial – com a ajuda de ingleses e franceses – conseguiu retomar a ordem. Após o ocorrido,

366
ACD, sessão de 13 de agosto de 1827, tomo IV, p. 125.
367
ACD, sessão de 17 de junho de 1828, tomo II, p. 143
a Câmara pediu explicações imediatas ao governo sobre as causas do motim e recebeu a
resposta no dia 25 de junho, num relatório feito pelo ministro da guerra, o Conde do Rio
Pardo. Segundo o ministro, a insubordinação iniciou-se após um soldado se recusar a receber
100 chibatadas do major de seu batalhão, Pedro Francisco Drago. Diante da recusa, o major
aumentou a punição para 220 chibatadas, fazendo com que o 2º Batalhão de Granadeiros, em
apoio ao camarada, se sublevasse. Em seguida, o batalhão composto de irlandeses se juntou ao
movimento.
Percebe-se, assim, que as reflexões foram realizadas a partir de problemas bastante
concretos pelos quais passava o Império durante seus anos iniciais. Em meio às discussões
dessas questões objetivas, no entanto, os parlamentares se muniam de princípios gerais para
propor soluções. E é assim que se vê aparecer o argumento da utilidade e da finalidade das
penas em contraposição à ideia de punição exemplar. A grande quantidade de chibatadas
prescrita pelos comandantes a seus subordinados não evitava novas fugas – o que parecia ser o
objetivo do castigo –, mas, em vez, parecia contribuir para aumentá-las ao destruir o moral
dos soldados e, como será analisado adiante, ao submeter-lhes à situação análoga a dos
escravos. Ou seja, a punição era inútil e estava levando a fins contrários daqueles pensados
pelos legisladores.
Também é significativo notar a preocupação pelo princípio da proporcionalidade entre
o crime e sua correspondente punição. Embora o arbítrio e o abuso dos comandantes na
dispensa do número de chibatadas tenham sido criticados, a quantidade estabelecida pelos
decretos do governo também o foi, já que, para os deputados da comissão, sendo a deserção o
pior crime dentro Exército, 60 ou 100 dessas chibatas não seriam suficientes, já que para
outros desvios havia castigos piores. Igualmente importante é observar que, não obstante a
defesa da comissão pelo fim das penas corporais graves, ela não argumentou a partir da
constituição e sua proibição das penas cruéis. Também é notório o fato de que o debate de
todos esses aspectos jurídicos foi realizado poucos anos antes da discussão e aprovação do
Código Criminal.368
Por fim, e este aspecto é bastante significativo, os deputados estavam propondo que se
formalizasse uma legislação anterior ao mundo constitucional como uma maneira de melhor
resguardar as garantias individuais propostas pela constituição de 1824. Os parlamentares não
associaram a lei de 1805 ao “despotismo” do “Antigo Regime”, tal como fizeram com outras
peças legislativas. Nesse exemplo, percebe-se então a intricada relação entre as experiências
atualizadas dos legisladores e o projeto de construção de uma sociedade nova marcada pelo
constitucionalismo.

368
SLEMIAN, Andrea. “À nação independente, um novo ordenamento jurídico: a criação dos Códigos Criminal
e do Processo Penal na primeira década do Império do Brasil.” In: RIBEIRO, Gladys Sabina (Org.). Brasileiros e
cidadãos. São Paulo: Alameda, 2008, p. 175-206.
Todos esses tópicos foram colocados no centro do debate na Câmara quando o parecer
entrou na pauta da Casa em 1º e 10 de julho de 1828. No arrazoado que se seguiu sobre o
tema não houve voz contrária à abolição das chibatadas e quando o parecer entrou em votação
foi aprovado sem demora. Isso é indício forte de que a maioria dos deputados estava
empenhada em abolir as penas corporais graves da instituição militar. Em 1º de julho, foi
iniciada a discussão do parecer e do projeto proposto por Castro e Silva. O debate foi curto e
Cunha Mattos o dominou, apresentando dois longos discursos e contundentes argumentos
contra as chibatadas. Em suas falas, demonstrou seu grande conhecimento histórico sobre as
diversas punições existentes em Portugal em períodos anteriores e também aquelas
empregadas em outros países. Sua preocupação em pensar formas específicas de castigo para
os soldados brasileiros passou por uma reflexão crítica dessas diferenças histórico-regionais
como também a partir das categorias mencionadas anteriormente: utilidade, finalidade e
proporcionalidade.
Sr. Presidente, eu creio que só pessoas bárbaras e só pessoas que não tenham
compaixão de ver derramado o sangue humano se poderão acomodar com
ideia de chibatadas em soldados; é verdade que os alemães são levados a pau
e que os soldados na Inglaterra são assim castigados, porém estas ideias são
opostas aos sentimentos de outras nações. Os franceses são opostos a esse
castigo das chibatadas; finalmente este castigo é oposto aos sentimentos dos
americanos. Eu, Sr. Presidente, tenho sido soldado e tenho mandado dar
chibatadas, não porque eu quisesse, mas porque as leis ordenavam que se
castigasse e isto com pau que verga; estas chibatadas são piores que os
açoites; são uns verdadeiros açoites de escravos; antes da época em que as
tropas inglesas estiveram em Portugal, não havia este castigo e só ao depois é
que se adoptou este método de castigar, que sempre será odioso (...). Nós
temos outros castigos sem que seja o de dar pancadas nem chibatadas; por
isso que o duque de Lafões conhecendo esta barbaridade passou uma ordem
circular para que se não desse mais pancadas com chibatas; porém chegando
os ingleses a Portugal, introduziram o castigo usado em Inglaterra, de dar
açoites (...) e vão-se dando essas chibatadas por arbítrio dos comandantes dos
corpos, e porque o governo assim entendeu estabelecer esta disciplina como
mais abreviada, para que os soldados não estivessem nos calabouços e que
deste modo estariam mais prontos para o serviço; tendo ordenado que aqueles
soldados que cometessem deserção simples fossem castigados com 50
chibatadas e aqueles da 2ª deserção com 100 chibatadas, o que aconteceu?
(...) conheceu-se que essas deserções se aumentaram depois que se introduziu
o castigo das chibatadas: porque o soldado perde a moral e o brio depois que
leva as primeiras chibatadas e o que chega a levar duas vezes perde de todo a
vergonha e não serve para mais nada; (...) O governo não podia anular aquela
lei de 1805 e estabelecer o castigo das chibatadas; entre nós qualquer oficial,
qualquer cabo de esquadra, quebra o corpo de um soldado com essas
chibatadas; e ainda há quem diga que são indispensáveis (...); julgam aqueles
que intimidados os soldados talvez deixem vazios os calabouços; está
conhecido que 50 chibatadas não intimidam os soldados, é arruiná-los e
perdê-los; o que devia o governo ter estabelecido entre nós eram as casas de
correção e de disciplina, aonde os soldados que cometessem esses pequenos
crimes fossem trabalhar e fazer exercício de manhã e de tarde: deve ser
admitido o castigo do jejum de pão e água e por este modo não são castigados
os soldados imoralmente e nas circunstâncias das nossas leis de recrutamento,
forçosamente havemos de ter homens imorais; e não é com chibatadas, mas
sim com castigos morais que se faz desenvolver o estímulo, porque o castigo
em usança, vilipendiando-o aos olhos de seus camaradas, faz necessariamente
perder a vergonha e o estímulo de bom soldado portanto, sejam quaisquer que
forem as razões que se possam produzir contra os meus argumentos, eu me
oporei: não é com estes castigos que se fazem bons soldados (...) tempo virá
que se não castiguem soldados por outra forma que não seja por meio da
disciplina correcional: nós devemos olhar para esses soldados como cidadãos
livres: chibatadas são só próprias de vis escravos e fazer perder o brio, perder
a honra e até a virtude. Deus nos livre de semelhantes ideias (...).369

Depois de breves falas apresentadas por Queiroz Carreira e Souza Mello, também
contra as penas físicas, Cunha Mattos voltou à ofensiva e pintou um quadro ainda mais grave
dos castigos no Exército:

Não existe lei alguma que mande castigar o soldado com certo número de
chibatadas, mas há lei que manda que sejam castigados com espada de
prancha os soldados incorrigíveis, e, entretanto que se abole o castigo das
chibatadas, fica subsistindo outro pior que é o castigo das espadeiradas, que
levavam quase todos eles à sepultura, porque eram dadas por homens maus
com esse instrumento de ferro; até muitos lançavam sangue pela boca e
passavam do lugar do castigo para o cemitério; (...) imitemos os americanos
que não têm este castigo e sigamos o caminho do brio e da honra porque o
contrário torna o soldado um biltre e um homem vil, que está desonrando as
bandeiras do Exército.370

Em seguida, Paula e Souza pediu a Cunha Mattos que apresentasse um projeto com
ideias para “que de modo algum se verifique os castigos das chibatadas”, 371 o que levou ao
adiamento da discussão, retornando somente no dia 10 de julho de 1828. Mais uma vez, o
debate foi iniciado por Cunha Mattos, afirmando que o castigo das chibatadas, “em vez de
trazer o militar à boa disciplina, nada mais faz que relaxar a sua moral e contribuir para que o
estado perca um cidadão”.372 Imediatamente depois, o deputado Ferreira França pôs-se a
questionar a validade constitucional das chibatadas posto que os “açoites” estavam proibidos
pelo inciso XIX do artigo 179. Asseverou ele:
Ora, eu pergunto se chibatadas são açoites ou não? Creio que são açoites ou
seja chibatadas ou espadeiradas ou seja o que for. Se isto é assim, nada mais
justo como esta resolução, mas será preciso que primeiro se entenda se
também são açoites as pancadas dadas com espadas, eu creio que sim. (...) é
preciso que quem aplicar estas penas repare o dano primeiro e dê a pena para
exemplo e não para afligir, porque a pena é para educar o criminoso, para ele
bem obrar, porque ninguém é autorizado a fazer aflição a outro; eu não posso
matar um matador e nem o público o pode, o que pode fazer é reparar o dano
quanto for possível e educar o tal homem muito criminoso para ele bem
obrar, e isto é que é o justo. Portanto, eu quero que se mostre que chibatadas,
espadeiradas etc. são açoites.373

Esse pedido de esclarecimento de Ferreira França encontra eco na sinonímia


apresentada entre as palavras nos dicionários. 374 Seu entendimento procura unificar os vários

369
ACD, sessão de 1 de julho de 1828, tomo III, p. 21-22.
370
Ibidem, p. 22-23.
371
Ibidem, p. 23.
372
ACD, sessão de 10 de julho de 1828, tomo III, p. 83.
373
Idem.
374
Pesquisando no Diccionario da lingua portuguesa de Rafael Bluteau acrescido por Antonio Moraes Silva de
1813, descobriu-se que as palavras “chibata” e “açoite” são sinônimas. No verbete da primeira, lê-se “Vara de
cipó, ou outra delgada, que os cabos militares trazem para castigar os soldados”, enquanto que em “chibatada”
consta: “açoite, golpe com chibata”. Disponível em:
<http://www.brasiliana.usp.br/bbd/search?filtertype=*&filter=Diccionario+da+lingua+portugueza+comp
osto+pelo+padre+D.+Rafael+Bluteau%2C+reformado%2C+e+accrescentado+por+Antonio+de+Moraes+
Silva+natural+do+Rio+de+Janeiro&submit_search-filter-controls_add=Buscar>
castigos físicos que implicam em pancadas sob a alcunha de “açoite”, de modo que todos
viessem a ser abolidos por serem inconstitucionais. Cunha Mattos, no entanto, apresentou
uma tênue diferença entre ambos os castigos. Afirmou que os açoites são aplicados nas
nádegas, enquanto que as chibatadas ou pancadas de espadas o são nas costas.375 Em seguida,
os parlamentares criticaram ainda o castigo das sentinelas duplas e o de carregar armas, ambos
considerados abusivos. Propôs então o deputado Holanda Cavalcante, no lugar penas físicas
citadas, a prisão e a restrição alimentar a pão e água para os crimes militares leves.376 Finda a
discussão, o projeto foi encaminhado para a comissão de redação e posteriormente colocado
em votação e aprovado no dia 21 de julho.
Esse debate leva a múltiplas frentes de análise. Em seus primeiros discursos, Cunha
Mattos apresenta, em termos gerais, a ideia de um novo modelo de Exército formado de
“cidadãos livres” aos quais não cabem as penas típicas de “vis escravos”. Essa força armada
deveria se basear em sentimentos positivos de valor e brio e não no medo da punição física,
ideia de organização das forças armadas que estava sendo pensada na Europa daquele
momento.377
A crítica de muitos parlamentares aos modos de punição física pode ser encarada como
uma tentativa similar de transformar o princípio motivador do serviço militar. Ora, nada mais
contrário à ideia da honra como estímulo do que os castigos previstos para os combatentes no
Exército. Ao punir o soldado com pesadas penas corporais, algumas das quais similares às
aplicadas aos escravos, o homem perdia por completo a honra, era humilhado e tornava-se
inútil ao Estado. Daí que a reforma proposta por Cunha Mattos e Castro Silva de abolir essas
penas não estava fundada somente num quadro maior de reforma penal, mas também numa
proposta de novo modelo de força armada, qual seja, uma formada por cidadãos e não por
escravos.
Além da defesa desse modelo de Exército mais “virtuoso”, Cunha Mattos retoma os
argumentos expostos em discursos anteriores acerca da necessidade de tornar as penas
proporcionais aos crimes cometidos e da finalidade das punições, qual seja, a de emendar os
homens. Os princípios elencados por Cunha Mattos refletem um conjunto de ideias
apresentadas por pensadores e filósofos de fins do século XVIII e inícios do século XIX,
dentre os quais podemos citar Cesare Beccaria e Jeremy Bentham. 378
Ao propor reformas nas penas dispensadas aos membros das forças armadas, os
políticos do período lançavam argumentos que entrariam novamente em disputa na

375
ACD, sessão de 10 de julho de 1828, tomo III, p. 83.
376
ACD, sessão de 10 de julho de 1828, tomo III, p. 84-85.
377
COSTA, Fernando Dores. O bom uso das paixões: caminhos militares na mudança do modo de governar.
Análise Social, vol. XXXIII (149), 1998 (5º).
378
SANTOS, P.H.S. Recrutamento, castigo e direitos do cidadão no Exército do Primeiro Reinado.
Universidade de Brasília: dissertação de mestrado, 2016.
formulação dos Códigos penal e processual penal da década de 1830. Percebe-se, assim,
entremeando-se as discussões sobre o serviço das armas e o contexto político mais geral
acerca da cidadania e da reorganização do Estado imperial brasileiro.
Em suma, é notória a maneira como a Casa lidou com os decretos do governo em que
se mandava punir com chibatadas os soldados desertores. Desde o princípio, defenderam com
zelo a abolição das penas corporais, utilizando uma abundância de argumentos que iam desde
sua inconstitucionalidade, passando pela inumanidade dos castigos e chegando a reflexões de
caráter teórico, tais como a proporcionalidade e utilidade. Nas falas dos deputados, pôde-se
entrever que as finalidades das penas não eram o exemplo, mas, antes, o afastamento de um
elemento perigoso da sociedade e a reforma do réu. Penas meramente aflitivas não convinham
a esse modelo.
Em meio a todas essas discussões, distingue-se a defesa de um modelo de Exército que
já vinha sendo advogado na Europa, qual seja, a valorização do serviço das armas por meio do
estímulo à honra e não ao medo. Para tanto, os soldados deveriam ser tratados como cidadãos
livres com direitos assegurados e não como “vis escravos”, de quem só se espera a obediência
cega. Para se alcançar tal modelo seria necessária uma reforma estrutural das forças armadas
que passasse por uma mudança nos modos de punição dessa instituição.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLAKE, Augusto Vitorino Sacramento. Dicionário bibliográfico brasileiro. Rio de Janeiro:
Tipografia Nacional, 1883. Disponível em:
<http://www.brasiliana.usp.br/bbd/search?fq=dc.contributor.author:%22Blake,+August
o+Victorino+Alves+Sacramento,+1827-1903%22>.
BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Disponível em:
<http://imagem.camara.gov.br/pesquisa_diario_basica.asp>.
BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao24.htm>.
COSTA, Fernando Dores. O bom uso das paixões: caminhos militares na mudança do modo
de governar. Análise Social, vol. XXXIII (149), 1998 (5º).
LIPPE, Conde de. Regulamento para o exercício e disciplina dos regimentos de Infantaria
dos Exércitos de Sua Majestade Fidelíssima. Secretaria de Estado: Lisboa, 1763.
MATOS, Maria Izilda S. de. “Cabelo, barba e bigode: masculinidades, corpos e
subjetividades.” Locus: revista de história, Juiz de Fora, v. 17, n.02, 2011.
SANTOS, P.H.S. Recrutamento, castigo e direitos do cidadão no Exército do Primeiro
Reinado. Universidade de Brasília: dissertação de mestrado, 2016.
SLEMIAN, Andrea. “À nação independente, um novo ordenamento jurídico: a criação dos
Códigos Criminal e do Processo Penal na primeira década do Império do Brasil.” In:
RIBEIRO, Gladys Sabina (Org.). Brasileiros e cidadãos. São Paulo: Alameda, 2008, p. 175-
206.
A ESTRATÉGIA PSICOSSOCIAL DA DITADURA MILITAR (1964-1985): A
PARTIR DAS OBRAS DO GENERAL FERDINANDO DE CARVALHO.

Raphael Barroso Graciano


Licenciatura em Filosofia pela Faculdade São Bento do Rio de Janeiro

INTRODUÇÃO:
No dia 31 de março de 1964 ocorreu o golpe civil-militar que derrubou o Presidente
eleito João Goulart. Porém, diferentemente de outras intervenções militares realizadas ao
longo da historia política do Brasil, essa não teve o objetivo de ser “cirúrgica”. Dessa vez, os
militares golpistas tinham um projeto de poder ao qual desejavam aplicar.
Tratava-se do projeto de poder da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), ao qual
descrevia que era necessário preservar a aliança do Brasil com os países do bloco ocidental
para o enfrentamento dos países do bloco oriental-comunista, pois os dois blocos teriam
valores antagônicos e irreconciliáveis. Nessa lógica, considerava-se que o país estaria sendo
ameaçado pelo comunismo, ao qual agia conforme as táticas daquilo que foi definido como
guerra total e permanente, que abrangia todos os setores da sociedade. Como consequência,
para o desenvolvimento seguro do Brasil era necessário agir contra o perigo do “totalitarismo
vermelho”, mas de maneira contraditória, a tática de defesa nacional visava o controle
totalitário da sociedade, através da divisão dela metodicamente nos campos (poderes da
Nação): político, militar, econômico e psicossocial.379
Nesse sentido, a DSN seguia os preceitos dos seus formuladores, os militares e civis da
Escola Superior de Guerra (ESG), um grupo de intelectuais orgânicos bastastes influenciados
pelas estratégias de combates na Guerra Fria, desenvolvidas pelos militares franceses e norte-
americanos. No entanto, a doutrina só se tornou hegemônica nos meios militares após o golpe
civil-militar de 1964, pois antes disso, havia uma fragmentação nas forças armadas, uma
pluralidade de grupos guiados por diversos interesses ideológicos.
As instituições exército e marinha não somente eram incapazes de isolar as
interferências da sociedade nas forças armadas, como muitas vezes faziam exatamente o
oposto, reproduzindo os antagonismos das classes econômicas e exprimindo dentro das
hierarquias militares os seus valores opositores de classes. 380 Não coseguiram com isso,
homogeneizar os valores em torno de um ideal que deveria ser compartilhados por todos da
hierarquia militar, dês do subalterno até o general. Assim, estavam desgastadas pelas diversas

379
Nos manuais ao qual esse artigo se baseia, o campo (poder da Nação) da tecnologia da Doutrina de Segurança
Nacional ainda não era independente, nisso, se encontrava dentro dos quatros campos.
380
CARVALHO. José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. Páginas: 63- 82.
rebeliões e manifestações dos subalternos e pelos diversos envolvimentos em golpes políticos
dos oficiais superiores, ocorridos ao longo da história republicana. 381
Havia com isso uma mentalidade unificadora, um desejo de uniformidade nas forças
armadas, que a DSN preencheu de duas maneiras. A primeira foi através do processo de
expurgação dos militares democratas e associados ao governo Jango, além daqueles militares
que foram contra o Estado de Segurança Nacional durante a ditadura militar. 382 A segunda, foi
à medida de concentrar o poder nos altos postos a fim de homogeneizar as forças armadas de
cima para baixo. Com isso, houve uma convocação dos grupos de militares que embora
fossem diferentes entre si, tinham ideais em comum com os da DSN, assim, a junção foi dês
do militar moderado até o militar anticomunista. Nessa lógica, tratava-se da estratégia que
Goês Monteiro já aplicava no Estado Novo, que era fazer a política do exercito para não fazer
política no exército383, pois ao moldar a sociedade se buscava também moldar o exército. Era
com isso, um processo de construção e autoconstrução, realizado através das estratégias
ditadas de cada campo (poder) da Nação.
O campo de poder que mais visava isso, e ao qual esse artigo pretende abordar, é o
campo psicossocial. Nele, os militares que apoiaram o regime buscaram influenciar a
sociedade, impor seus valores aprendidos ou reforçados no exército. Para isso, os militares
não apenas censuraram aquilo que consideraram como imoral, que enfraquecessem a Nação,
mas também divulgaram seus ideais por diversos meios.
Nesse sentido, esse artigo pretende analisar as obras de divulgação de um oficial que
compartilhavam dos ideais da DSN, o General Ferdinando de Carvalho. A fim de demonstrar
que suas obras literárias de ficção, os Setes Matrizes do Vermelho (SMV) e os Setes Matrizes
do Rosa (SMR), se encaixavam na lógica da guerra total, através da estratégia psicossocial da
ditadura militar. .
Dessa forma, esse artigo analisará o que ele escreveu em relação à noção de família,
para demonstrar a importância que ela tinha dentro da lógica da guerra total. Assim, o
primeiro capítulo analisará o que Carvalho considerava como uma boa formação e para que
essa formação servia. Enquanto que no segundo capítulo, será mostrado qual o modelo de
família que Carvalho definiu que deveria ser seguido como forma de reproduzir os ideais do
regime e evitar a infiltração comunista.

CAPITULO I: FORTALECIMENTO MORAL COMO FORMA DE PREVENÇÃO


CONTRA A SEDUÇÃO COMUNISTA
Embora as obras de Carvalho (SMV e SMR) tivessem diferenças, elas eram
complementares e unidas em um grande objetivo traçado pelo autor. Como a palavra em

381
SODRE, Nelson Werneck. História Militar no Brasil. Páginas: 393.
382
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Páginas: 64.
383
CARVALHO. José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. Página: 92.
comum “matrizes” sugere, tratar-se de obras que descrevia diferentes tipos de tons de cores, o
primeiro da cor vermelha e o segundo da cor rosa. Dessa maneira, Carvalho de forma
metafórica catalogava os seus inimigos, os comunistas e os seus colaboradores. Os membros
do primeiro grupo, os vermelhos, seriam aqueles que já estariam envolvidos demais com o
“partidão”, cumprindo as funções de agentes do partido. Enquanto os segundos, os rosas,
seriam os simpatizantes e colaboradores, massas de manobra dos primeiros. Sendo que
nenhum deles seria branco, algo puro ou bom. E conforme o individuo se aperfeiçoasse no
marxismo, e passasse a militar mais, estaria em um processo de decadência humana. O
próprio Carvalho utilizar uma passagem do Gênesis no prefacio de seu livro, como forma de
mostrar essa ideia:
O Senhor reconheceu que a maldade dos homens era grande na Terra, que
todos os seus pensamentos e desejos tendiam sempre unicamente para o mal.
E o Senhor arrependeu-Se de ter criado o homem sobre a Terra, e o Seu
Coração sofreu amargamente.384

Tratava-se com isso, de uma noção de que existiam valores a priori sobre o certo e o
errado, e estes, deveriam virar modelos de condutas para todos da sociedade. Dessa maneira,
Carvalho estava compartilhando dos ideais da DSN que definia que “o menosprezo por certos
princípios éticos” geraria “conflitos sociais e movimentos de rebeldia,” que acabariam “por
tirar a vitalidade do desenvolvimento”385. Mas é necessário destacar que esses valores morais
não seriam totalmente transcendentais e imóveis, pois se de um lado:

a vida de uma nação consiste, sobretudo, em manter os valores tradicionais,


gerando objetivos de conservação, equilíbrio e ordem, contidos na expressão
Segurança. Por outro lado, há que se atualizar, renovar e inovar valores,
gerando objetivos de engrandecimento, aperfeiçoamento, aprimoramento e
progresso da nação como um todo e de cada indivíduo, o que se contém na
expressão Desenvolvimento. 386

Neste sentido, o projeto de poder da ditadura militar teria um aspecto modernizador-


conservador, tendo como princípios as noções de Segurança e Desenvolvimento, que também
abrangia as áreas dos valores morais. De maneira contraditória, existiriam valores que eram
históricos, mas que deveria ser preservados como se fossem a-históricos. E caberia aos
intelectuais orgânicos do regime, como Carvalho, cumprirem os papeis de intérpretes “dos
interesses e aspirações nacionais, para levá-los ao nível da formulação governamental dos
Objetivos Nacionais.” Além de infundirem e difundirem no povo, “os altos valores da
convivência social e a melhor percepção dos autênticos interesses e aspirações.”387

384
CARVALHO, Ferdinando. Os setes matrizes do Vermelho. Página: 9
385
ESTADO-MAIOR DAS FORÇAS ARMADAS; Escola SUPERIOR DE GUERRA; DEPARTAMENTO DE
ESTUDOS. Manual Básico. 1976. Página: 473.
386
Idem: Página: 222.
387
Idem: Página 227.
Assim, é possível verificar que os personagens universitários, Osvaldo e Henrique,
eram expressões literárias dos ideais da DSN. Eram com isso, personagens que deveriam
servir como exemplos a serem seguidos, pois foram universitários que conseguiram resistir à
sedução comunista quando foram tentados.

Mas suas capacidades de “resistência moral” se davam por serem criados nos bons
valores. Osvaldo tinha sido criado no interior,388 que Carvalho sempre associava como um
lugar onde existiam valores morais tradicionais que estariam em decadências na cidade. Além
de que teve sua formação bastante influenciada pelo padre Solovik, exilado político da Polônia
Comunista que passou a militar no Brasil contra o comunismo. 389 Já Henrique, era filho de um
pequeno industrial de papel que ajudou na “preparação do movimento revolucionário de 31 de
Março”.390

Os dois conviviam na universidade com professores e alunos “tons de rosas”,


convenientes e simpatizantes do comunismo, que Carvalho categoriza como criptocomunista e
contestadores. Os criptocomunistas, um tipo mais vermelho, seriam os “comunistas não
confessos por medo ou conveniência”, 391que Carvalho associava na maioria das vezes aos
professores. Eles cumpririam as funções de criarem e reforçarem aqueles que estavam um
grau abaixo deles, os contestadores, que para Carvalho seriam os alunos rebeldes que “através
de sua ação negativista ou destrutiva” 392 atacavam os valores e as instituições tradicionais.

As universidades, nesse sentido, seriam ambientes não controlados devidamente pela


ditadura militar, onde se falava mais de política do que estudava, enquanto que “os estudantes
desfrutavam exagerada autonomia”393. Assim, seriam para Carvalho locais onde os alunos de
esquerdas eram favorecidos, a fim de que se tornassem constatadores, criptcomunistas e
comunistas. Enquanto que os alunos de direita eram pressionados a se “converterem” para
esquerda, através da pressão acadêmica realizada através de notas baixas e reprovações
mesmo a alunos que fosse inteligente como Osvaldo.394 Nesse sentido, Carvalho considerava
as universidades como locais onde os bons valores dos estudantes estavam sendo atacados,
através das exposições de teorias contrarias aos do regime militar e de uma atmosfera de
rebeldia em relação aos padrões institucionais. 395

388
CARVALHO. General Ferdinando de. Os Setes Matizes do Rosa. Página: 19
389
Página 19; 24
390
Idem. Página: 140.
391
Idem: Página: 18.
392
Idem: Página: 139.
393
Idem. Página 20.
394
Idem: Página: 25.
395
Idem. Página: 25
A noção de que os comunistas usavam táticas de desconstrução moral não só expunha
o anticomunismo de Carvalho, como também mostrava a influencia dos ideais e dos conceitos
do campo psicossocial da DSN. A estratégia do campo psicossocial definia que era necessário
neutralizar a “penetração ideológica adversária”, e fortalecer a “consciência política do povo
pela educação contra a propaganda adversária.”396.Além de que era necessário influenciar a
opinião publica, a fim de fortalecer “os padrões morais e culturais” dos indivíduos, como
forma de prevenção contra os “perigos da subversão” e dos “inimigos externos”397
(comunistas). As ações que era contra as tradições, com isso, eram vistas como perigosas
tanto para Carvalho e tanto para DSN, porém, é necessário destacar que existiam
antagonismos dentro do projeto modernizador-conservador da DSN quando essa abrangia as
universidades.398 Porque a noção de Desenvolvimento exigia uma atualização das
universidades, e com isso das técnicas e dos profissionais que fariam parte da máquina do
Estado, logo, exigia que elas fossem locais de livre circulação de ideia e de liberdade de
opinião. Entretanto, a noção de Segurança colocava um limite na liberdade que poderia existir
nas universidades, pois elas deveriam ser controladas a fim de não permitirem a penetração
ideológica de ideias contrarias ao do regime, assim, novas ideias passaram a serem associadas
como ideias marxistas ou como ideais auxiliares do marxismo. Dessa maneira, embora os
intelectuais orgânicos dos regimes fossem contrários a livre circulação de ideais de esquerdas
nas universidades, divergiam entre si em relação até onde deveria ser permitida a liberdade de
expressão e de opiniões dentro delas. Assim, alguns intelectuais orgânicos (os mais
moderados) colocaram a noção de Desenvolvimento em primeiro lugar, defendendo uma
maior liberdade, enquanto outros defendiam um maior controle (Segurança), 399 como o
General Ferdinando de Carvalho.
É possível ver essa postura mais ortodoxa da DSN de Carvalho, em um trecho entre a
conversa do personagem exemplar Osvaldo com o pai de um estudante que morreu atropelado
em uma manifestação estudantil (pai do Alberto):
PAI DO ALBERTO - Quando meu filho foi atropelado, estava sob o efeito
de maconha. Os comunistas o viciaram. Eles sabem que o jovem viciado fica
na dependência dos fornecedores das drogas e fazem tudo o que eles
impõem.
OSVALDO - O senhor tem razão. Quase a metade dos estudantes de minha
Faculdade fumam cigarros de maconha. Alguns usam mesmo tóxicos ainda
mais fortes. As drogas e o sexo são explorados para desfibrar a juventude e
torná-la alvo mais fácil para a doutrinação dos comunistas. Eles começam a
impregná-la com idéias muito atraentes, acenando com a perspectiva de um

396
ALMEIDA, Gastão Guimarães; Lima, Floriano Peixoto Faria. Andreazza, Mario David. Estágio de Revisão
para os Diplomados do Curso Superior de Guerra: A Estratégia Nacional. Página: 25-27.
397
ESTADO-MAIOR DAS FORÇAS ARMADAS; ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA; DEPARTAMENTO
DE ESTUDO. Manual Básico. 1976. Página:111.
398
O conceito de projeto modernizador-conservador realizado pela ditadura militar nas universidades foi retirado
do livro: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As Universidades e o Regime Militar. Capitulo: I.
399
Idem. Capítulo: VII.
regime de liberalidade e de prazeres, onde todos são felizes com um mínimo
de sacrifícios, onde a vida é um mar de rosas sem restrições legais, tornando
os moços descontentes contra as imposições da sociedade atual400.
Para Carvalho, essas táticas de desconstrução moral seriam utilizadas para o
favorecimento do surgimento dos contestadores, aqueles que se tornariam massas de
manobras para as ações do partido. Os professores, com isso, eram vistos como os alvos
principais, aqueles que deveriam ser constantemente vigiados, pois eram a principal escolha
dos comunistas como meio de recrutar e doutrinar jovens para o partido. Mas, embora o foco
principal seja neles, existiriam outros tipos de recrutadores do “partidão”, ao qual seduziriam
os indivíduos “moralmente enfraquecidos”, como ocorreu com Henrique na sua frase de
contestadora (rebelde). Onde ganhou uma passagem para o Décimo Festival da Juventude em
Berlim, “investimento” esse feito por indicação de Rosa Maria, uma jovem membro do
partido comunista.401
O fato do recrutamento de Henrique ser realizado por uma pessoa do sexo oposto é
esclarecedor, pois Carvalho durante a história deixa claro que embora os dois não fossem
namorados, eram atraídos sexualmente um pelo outro.402 Neste sentido, esse estado emocional
de tensão sexual seriam indicações elucidativas do imaginário anticomunista, porque
demonstra que para Carvalho o comunismo seria algo erótico, sedutor, que não somente
atraiam os contestadores, como também excitava os recrutadores comunistas para que se
atraíssem pelos contestadores, facilitando com isso a subversão. Por consequência, a
associação do comunismo com a atração sexual, também refletia os ideários da guerra total,
ao qual definia que a sociedade passava por uma “guerra de tricheiras”, e qualquer área
poderia ser um espaço utilizado pelo inimigo, para ganhar essa guerra. Logo, os “soldados”
seriam todos os cidadãos, mas que não teriam a capacidade de racionarem por contra própria,
assim sendo, a escolha por ideologias contrarias nunca seria fruto de uma verdadeira reflexão
racional, pois na lógica da guerra total, tudo o que era contrario ao que o regime militar
pregava seria irracional, logo, errado.
Assim, a atração sexual vez com que Henrique fosse indicado por Rosa Maria para o
Décimo Festival da Juventude em Berlim, ao qual ele compareceu. Mas foi a “razão” que vez
que retornasse como anticomunista, em vez de comunista, cumprindo com isso os objetivos
do autor de passar uma lição aos leitores: de que era necessário educar os jovens nos valores
do regime, a fim de que eles pudessem resistir à tentação comunista. Entretanto, Carvalho faz
questão de enfatizar na ultima conversa dos dois, (quando Henrique já era anticomunista) a
real posição de Rosa Maria:

400
O personagem do pai de Alberto seria uma alusão ao pai do estudante Edson Luiz. Assim, Carvalho estaria
absolvendo a repressão da ditadura militar pela morte de Edson Luiz. CARVALHO. General Ferdinando de. Os
Setes Matizes do Rosa. Página: 31.
401
Idem. Página: 145
402
Idem. Página: 144 e 145.
ROSA MARIA- Nós somos contestadores. Nossa função é contestar. Toda
realidade tem pontos positivos e pontos negativos. Toda moeda tem duas
faces. A função Social da juventude moderna é descobrir as debilidades e
contradições da sociedade atual e atacá-las.
HENRIQUE- Para construir o quê?
ROSA MARIA- Não estamos pensando em construção. Precisamos
inicialmente derrubar o que existe, para depois pensar em reconstruir.
HENRIQUE- Quem pôs essas ideias loucas, em sua linda cabecinha? -disse
ele sorrindo
ROSA MARIA- Foi à vida, fui eu mesma. 403
A falta de argumentação teórica e a autodeclaração de contestadora de Rosa Maria,
mostra que apesar dela ser membro do partido comunista, ela não faria parte do grupo dos
vermelhos, e sim do grupo dos tons de rosa. Acontece que Carvalho era machista e mesmo
tendo chefiado em inquéritos policiais militares (IPM), vendo as ações das guerrilheiras, não
considerava que as tomadas de decisões poderiam partir das mulheres 404. Uma de suas outras
personagens, Maria da Conceição, também recrutou outro personagem do sexo masculino
para o comunismo, Sebastião, através de diálogos ateístas.405 Mas após dois anos separados
um do outro, Sebastião reencontrou com Maria da Conceição, porém, convertida ao
cristianismo. 406
Nesse sentido, as mulheres subversivas seriam instrumentos utilizados para o
recrutamento, mas jamais seriam efetivamente membros dos grupos subversivos. Porque elas
não seriam capazes de decidirem por contra própria, pois seria da própria essência natural da
mulher ser conformistas e voltadas para os valores espirituais. Por consequência, as mulheres
também não seriam capazes de evitarem que as subversões ocorressem dentro de casa, logo,
caberia aos homens assumirem esse papel de protetor da família contra a subversão. Assim,
conforme será analisado no segundo capitulo, é através da posição de gênero que Carvalho
definiu os modelos de famílias que deveriam ser implantados numa sociedade em que estaria
numa guerra total.

CAPITULO II: FATORES QUE LEVAM OS JOVENS A VIRAREM COMUNISTAS.


Como já mencionado, os livros de Carvalho tenta envolve todos os setores da
sociedade e todos os tipos de comunistas. Assim, dentro de todos os capítulos existem relatos
das origens dos personagens comunistas escritos de maneiras diferentes. Mas em cada relato
de origem existem fatores que se repetem, como o fator de classe econômica, pois todos os

403
CARVALHO. General Ferdinando de. Os Setes Matizes do Vermelho. Página: 86.
404
HESSMAN. Dayane Rúbila Lobo. Mulheres Vermelhas: A escrita masculina sobre a mulher comunista
durante a ditadura civil-militar brasileira (1965-1985). Página: 7.
405
CARVALHO. General Ferdinando de. Os Setes Matizes do Vermelho. Página: 85-86.
406
O General Carvalho citar cristianismo, mas não especifica qual seria a religião baseada na fé de Jesus Cristo.
CARVALHO. General Ferdinando de. Os Setes Matizes do Vermelho. Página: 96
personagens comunistas eram originários das classes baixas-médias, associando classes
dominadas com classes vulneráveis à sedução comunista.407
Desse modo, os fatores determinantes para se tornar comunista eram classistas, porém,
também estariam voltados para a figura do pai, pois todos os personagens comunistas também
seriam frutos de famílias onde ocorreu uma falta de aplicação do poder paterno-patriarcal.
Para Carvalho, a ausência de uma educação moral realizada pelo pai tornariam os filhos em
jovens rebeldes e com isso, presas fáceis para as ideias comunistas. Mas a ausência paterna
não seria apenas uma ausência física, poderia ser inclusive resultado de uma castração
realizada pela mãe no pai. Discordar da tomadas de decisões do marido, não somente em
relação à educação dos filhos, mas em relação a praticamente tudo, geraria filhos com
personalidades favoráveis ao comunismo. Além disso, as personalidades dos filhos também
poderia ser consequência da natureza genética, assim, a ausência paterna (física ou anulada
pela presença da mãe) faria que esses jovens não fossem ajustados de acordo com as normas
da sociedade.
A ausência paterna física como causadora de comunismo pode ser observada na
história de Sebastião, professor comunista doutrinador. Aos oito anos Sebastião ficou órfão de
pai, e sua mãe casou-se novamente com um amigo do seu pai que não assumiu a
responsabilidade paterna e o enviou para um colégio interno. Lá, ele sofreu um acidente na
perna o que causou um defeito no seu andar, tornando-se motivo de gozação para os outros
alunos. Assim, Sebastião virou um adulto inseguro, o que fez que quando fosse acolhido pelos
alunos de esquerda na universidade, e seduzido pela comunista ateia Maria Conceição, se
tornasse comunista.408
Já Oscar Araújo, comunista que agia através da infiltração, era filho de lavradores que
se mudaram para Campinas. Sua mãe era católica e seu pai espírita, indicação que Carvalho
considerava que o ecumenismo religioso entre os pais poderiam atrapalhar na formação moral
dos filhos, pois pluralizava os valores morais da família. Além disso, ele era o filho predileto
entre cinco irmãos, o que representava uma falta de rigor na criação dos pais, ao qual foi
potencializada na fase da sua vida em que adoeceu e foi morar na casa de parentes de sua mãe
em Belo Horizonte, onde não teve a supervisão indispensável e “conviveu com bicheiros,
prostitutas e outros elementos semelhantes.” Isso vez que quando crescesse, vivesse numa
vida “indolente” e fosse incapaz de conhecer sua vocação profissional, gerando um estado de
vida de insatisfação cotidiana, até se tornar comunista.409

407
Desse modo, Carvalho estava dialogando com os ideais das DSN de que os inimigos surgiam de baixos, já
que a noção do papel de intérpretes da Nação (que os manuais da DSN nomeiam com a palavra “elite”)
valorizava os intelectuais orgânicos das classes dominantes e de seus assimilados vindos de baixo.
408
Idem: Página: 83-96.
409
Idem: Página: 63- 79.
Nessa mesma lógica, a ausência paterna de Rafael foi o fator principal para que ele se
tornasse comunista, mas dessa vez a ausência foi causada pela castração da mãe. A mãe de
Rafael o mimava demais e o defendia das admoestações do pai, isso fez que ele tivesse uma
personalidade introspectiva juntamente com uma mentalidade autoritária em que se via acima
dos outros, como um “líder dominador e autoritário”, até ser recrutado pelo comunismo. 410
De maneira semelhante, podemos observar a historia de Ariosto. Sua mãe tinha irmãos
operários que eram lideres sindicalistas responsáveis pela organização de inúmeras greves.
Num certo dia, houve uma discussão política dos seus irmãos contra o seu marido, que era
antisindicalista e antigrevista, e ela apoiou os irmãos. A consequência foi que o pai de Ariosto
a agrediu, fazendo com que ela o abandonasse para ir morar com a irmã, deixando-o
juntamente com Ariosto. A falta da obediência da mãe de Ariosto, a sua intromissão na
educação dos filhos e nas ideias de certo e errado, simultaneamente com um marido incapaz
de manusear a sua família, fez que Ariosto desenvolvesse a rebeldia hereditária da família da
mãe (“genes rebeldes”) seguindo os passos dos tios e se tornando um sindicalista radical, para
depois virar um comunista.411
O traço da “genética” como a causadora das posições políticas, ademais, foi reforçado
por Carvalho, como se alguns indivíduos nascessem com tendências comunistas. Assim,
Carvalho modificava a noção de guerra total, sem quebrar a filiação com ela. Os meios ainda
influenciariam na formação de subversivos, mas existiriam indivíduos com tendências
hereditárias que seriam atraídos mais facilmente para a subversão, como pode ser observado
na história de Argemiro.
Filho de uma família humilde do interior de Minas, 412 Argemiro e os seus noves
irmãos passaram por privações quando seu pai se aposentou por causa de um acidente de
trabalho. Mas no ensino primário, Argemiro e seus irmãos foram educados nos valores cívicos
e morais pela professora D.Clara. Porém na maturidade, “só ele teve vocação política e se
tornou ateu e comunista”, enquanto os seus noves irmãos continuaram católicos e casaram.
Isso ocorreu, porque somente ele não se conformou com a situação em que vivia, e após a
morte de seu pai, resolveu viajar para cidade. E sem a supervisão paterna, frequentou boates e
hotéis junto de uma namorada que logo depois descobriu que já não era “moça seria”. Assim,
se tornou rebelde para logo depois virar membro do partido comunista por influência do pai
de um amigo, que era um intelectual simpatizante do comunismo. 413 Por tanto, é possível
concluir que Carvalho não apenas compartilhava dos ideais da DSN, mas também o
modificava, adaptando as outras áreas da sociedade.

410
Idem: Páginas: 143- 154
411
Idem: Páginas:99-114.
412
Como já mencionado, o interior do país seria para Carvalho local aonde os bons valores morais ainda eram
preservados, enquanto que na cidade esses valores estavam em decadência.
413
Idem:45-62
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS:
ALMEIDA, Gastão Guimarães; LIMA, Floriano Peixoto Faria; ANDREAZZA, Mario David.
Estágio de Revisão para os diplomados do Curso Superior de Guerra: A Estratégia Nacional.
Estado-Maior das Forças Armadas; Escola Superior de Guerra. 1964.
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Vozes, 1989.
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Biblioteca do Exército-Editora, 1977.
CARVALHO. General Ferdinando de. Os Setes Matizes do Rosa. Rio de Janeiro: Biblioteca
do Exército-Editora, 1978.
CARVALHO. José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge
ZAHAR Editor. 2005.
ESTADO-MAIOR DAS FORÇAS ARMADAS; ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA;
DEPARTAMENTO DE ESTUDOS. Manual Básico. 1976.
HESSMANN, Dayane Rúbila Lobo. Mulheres Vermelhas: A escrita masculina sobre a
mulher comunista durante a ditadura civil-militar brasileira (1965-1985). Fazendo Gênero 9,
Diásporas Diversidades, Deslocamentos. 23 a 26 de agosto de 2010.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As Universidades e o Regime Militar. Rio de Janeiro: Zahar: 2014
SODRÉ, Nelson Werneck. História militar do Brasil. Rio de Janeiro, Editora Civilização
Brasileira S. A., 2.a edição, 1965. Coleção "Retratos do Brasil", Vol. n.o 40.
“TENTÁCULOS” DA ESPIONAGEM: UMA DESCRIÇÃO DOS SERVIÇOS
SECRETOS BRITÂNICO E AMERICANO NA II GUERRA

Raquel Anne Lima de Assis


Mestre em História Comparada pela UFRJ/PPGHC
Integrante do Grupo de Estudo do Tempo Presente (GET/UFS/CNPq)
Email: raquel@getempo.org

Em pleno contexto da Segunda Guerra Mundial, para vencer, uma forma


complementar para auxiliar na elaboração de estratégias foi o uso de agências de inteligência
e espionagem. A meta era coletar e analisar informações, além de empreender operações
especiais e clandestinas. Diversos países beligerantes utilizaram destes órgãos, dentre eles
estavam o norte-americano Office of Strategic Service (OSS) e os britânicos Secret
Intelligence Service (SIS) e o Special Operations Executive (SOE). São estes serviços secretos
que iremos estudar neste trabalho. Sendo assim, neste texto iremos apresentar a organização e
o funcionamento das agências de espionagem norte-americana e britânica durante a II Guerra
Mundial. Para isto, alguns questionamentos nos nortearam como: o que foram e quais seus
objetivos? Como nasceram? Quais motivos para terem surgido? Como estavam organizadas?
A importância da inteligência na guerra pode ser verificada na derrota da França para
os Alemães em 1940. Não foi o único fator, nem determinante, mas inegavelmente contribuiu.
Como afirmou Marc Bloch em A Estranha Derrota: “O fato de que nossos chefes nunca
soubessem perfeitamente as verdadeiras intenções do inimigo e, talvez, pior ainda, suas
possibilidades materiais, pode ser explicado pela má organização de nossos serviços de
informação” (2011, p. 48). Bloch (1886-1944) foi historiador, capitão do exército francês e
membro da Resistência Francesa. Esta obra é ao mesmo tempo um testemunho de época,
escrito em 1940, e um trabalho historiográfico que analisa os fatores que levaram a França
perder e ser ocupada pelo exército alemão.
A informação de que na Noruega, que foi invadida pela Alemanha em 1940, estava
sendo produzida água pesada para a produção de uma possível bomba atômica alemã e os
planos para evitar que isto ocorresse, bem como o isolamento da Bretanha em pleno
desembarque da Normandia (Dia D), evitando a chegada de reforços alemães, mostram o
papel desempenhado pelo OSS e pelo SOE (WILLMOT, 2008, p. 228). A utilização de suas
ações em atividades de inteligência, sabotagem e propaganda em países ocupados pelo Eixo
foi estratégica e pensada como parte fundamental da vitória final dos Aliados.
Ambas as agências empreendiam serviços de espionagem e inteligência para dificultar
a ocupação do território pelo inimigo. Essas agências procuravam incentivar a resistência
pela própria população local nos países dominados pelo Eixo, instigando ações de sabotagem
e propaganda. Em territórios ocupados pela Itália e pela Alemanha, assim como em zonas
invadidas pelos japoneses, a ação dos movimentos de resistência foi fundamental para
dificultar o trabalho do inimigo e ajudar na vitória final dos Aliados. Para isso, as agências de
inteligência britânica e norte-americana procuraram empreender ações de espionagem,
sabotagem e propaganda.
Estados Unidos e Inglaterra tiveram, no contexto dos seus respectivos serviços
secretos, trajetórias muito semelhantes, chegando a desenvolver parcerias. Evidência desta
cooperação pode ser observada no fato de que coube aos agentes britânicos prepararem os
americanos em um centro de treinamento no Canadá (chamado Camp X), ou ainda pelo fato
do OSS fornecer suprimentos e inteligência ao SOE em algumas oportunidades. Este é um dos
pontos de cruzamento na história de ambos os países e seus serviços secretos. Como nos
mostra José D’Assunção Barros, a História Cruzada dialoga com a História Comparada
(BARROS, 2014, p. 149). Desta forma, ao comparar estas sociedades notamos o quanto elas
estavam interconectadas. O mesmo pode ser observado em ações conjuntas nos teatros de
guerra como ocorreu no Dia D.
Neste cenário, o SOE e o OSS criaram e utilizaram manuais que deveriam cumprir a
função de material didático aos agentes secretos para o planejamento de operações reais em
serviços de inteligência. Era a estes espiões que as obras deveriam capacitar para que ações de
espionagem, sabotagem e propaganda fossem realizadas em território inimigo. Eles deveriam
ensinar estas técnicas à população local para formar a resistência. Estes materiais eram
produzidos com propósitos administrativos internos ou como literatura de treinamento e não
tinham como objetivo o grande público (BULL, 2013, p. 22).
Essa necessidade de produzir suportes didáticos para os agentes em formação ajudaria
a evitar coisas como, por exemplo, o uso de documentação incompleta ou de um tipo de
vestimenta inadequado ao local, conforme explicava o livreto Manual of Disguise (Manual de
Disfarce,) de 1944. Ou conforme o Sten Gun Manual (Manual da Sten Gun), também de 1944,
que orientava sobre o uso da metralhadora mais comum entre os membros da resistência,
capaz de 550 disparos por minuto. Podemos mencionar também os manuais, assim como os
leaflets (folhetos), que orientavam sobre como produzir poison pen letters (falsos
documentos), como difundir rumores, como criar uma black radio (emissão radiofônica de
informações falsificadas), entre outros414.

414
OFFICE OF STRATEGIC SERVICES, Manual of Disguise, 1944; OFFICE OF STRATEGIC SERVICES,
Simple Sabotage Field Manual, 1944; THE WAR OFFICE, Sten Gun Manual, 1944.
1.0 - O que, como e por que: conhecendo as agências Secret Intelligence Service (SIS) e
Special Operations Executive (SOE)
1.1 - O que foram e quais os objetivos do SIS e do SOE?
Para falarmos de agência de espionagem e inteligência britânica temos que pensar em
duas instituições: o Secret Intelligence Service (SIS) e o Special Operations Executive (SOE).
A primeira, conhecida também como MI6, era voltada principalmente para a coleta de
informações no exterior. A segunda, para operações especiais em países ocupados pelo Eixo
através de sabotagem, propaganda e guerrilha. Diferenciando, assim, do Office Of Strategic
Services (OSS), que uniu essas atividades em um único órgão. Devido à essa separação era
frequente tensões entre o SIS e o SOE em alguns momentos pelo controle de áreas de
influência.
O principal objetivo do SIS quando nasceu, em 1909, era coletar informações sobre a
Alemanha. Foi um período marcado pelo imperialismo e pelas tentativas hegemônicas dos
alemães que pretendiam dominar novos territórios, o que colocava os interesses ingleses em
risco. Sendo assim, os britânicos procuravam informações econômicas e militares a fim de se
preparar para uma possível guerra. Inclusive mantiveram parceria com os franceses que
possuíam os mesmos propósitos.
Por sua vez, o objetivo do SOE era dificultar a ocupação do território pelo inimigo.
Essa agência procurava, assim como o OSS, incentivar a resistência pela própria população
local nos países dominados pelo Eixo, organizar e auxiliar movimentos de resistência e
instigar ações de sabotagens e propaganda. Mas, isso não excluiu o fato do SOE também
produzir inteligência, como fizeram na Holanda e no Extremo Oriente. Entretanto, M.R.D.
Foot afirma que para o chefe do OSS, William Donavan, o SOE era fraco em coletar
informações (1991, p. 296). Isso sugere a possibilidade de que o principal objetivo do SOE
eram as Operações Especiais mais do que a Inteligência Secreta.

1.2 - Como e por que nasceram?


O SIS nasceu 1909 sob o comando de Mansfield Cumming. Seu surgimento foi lento
e embrionário e sob as condições de um pequeno orçamento. Apesar das tentativas de controle
de setores militares, durante os anos da Primeira Guerra Mundial (1914-1919), a instituição
angariou sua autonomia, ficando sob a supervisão do Foreign Office (Ministério das Relações
Exteriores). Consequentemente, Mansfield Cumming ganhou a confirmação como Chefe do
Serviço Secreto (Codinome “C”), tendo total controle da espionagem e contraespionagem no
exterior.
No período da Primeira Guerra este órgão começou a crescer. Por isso, aumentou a
preocupação com a profissionalização e o desenvolvimento de técnicas. Buscavam pessoal
qualificado, realizavam treinamentos e incentivavam pesquisas científicas. Também se
expandiu por diversos países. Conforme Keith Jeffery, neste período a agência possuía 1024
funcionários e agentes espalhados pelo mundo e com organizações em países neutros (2010,
p. 68).
Com os ingleses focados cada vez mais na Alemanha devido à sua expansão e ameaça
a hegemonia britânica, a parceria com os franceses se desenvolveu. Compartilhavam
informações e o departamento de criptografia francês, com a contribuição dos poloneses,
forneceu documentos sobre o Enigma, máquina de criptografia dos alemães que por muito
tempo tornou suas mensagens transmitidas indecifráveis, impossibilitando, desta forma,
coletar informações de transmissões interceptadas. Mas, durante a II Guerra, estudiosos a
serviços dos britânicos inventaram uma máquina chamada Ultra, capaz de decifrá-la e
descobrindo, assim, alvos dos nazistas e impedindo seu sucesso em algumas batalhas,
principalmente no Atlântico entre a Royal Navy (Marinha Real Britânica) e os U-boots
(submarinos) alemães. Segundo Max Hasting, “a decifração de códigos alemães e japoneses
prestou uma contribuição colossal para a vitória” (2012, p. 386).
Com o início da II Guerra Mundial a agência passou a se chamar também MI6, tornou-
se mais sistematizada e profissional e aumentou seu orçamento. Foi também neste período,
1939, que Coronel Stewart Graham Menzies assumiu como novo “C” (Chefe do Serviço
Secreto). Neste contexto que surgiu o Special Operations Executive (SOE), nascido em 1940,
impulsionado pela crise em Dunquerque 415 e pela falha do SIS em uma operação de
sabotagem na Suécia em uma instalação portuária de exportação de minério. Políticos,
burocratas e espiões britânicos perceberam a necessidade de organizar os diversos
mecanismos de sabotagem, propaganda e resistência em um único corpo para trabalhar no
exterior de forma reconhecida.
Seu surgimento foi consequência da vontade de Winston Churchill em “incendiar a
Europa”. Criada por Neville Chamberlain e Hugh Dalton, Minister for Economic Warfare
(Ministro da Economia de Guerra), e liderada pelo diretor executivo Colin Gubbins 416, cujo
codinome era “M”. Como Dalton reportou ao secretário dos Negócios Estrangeiros, Lord
Halifax, em 2 de julho:
O que é necessário é uma nova organização para coordenar, inspirar, controlar e
assistir aos cidadãos dos países oprimidos, que devem ser participantes diretos.
Precisamos de sigilo absoluto, um certo entusiasmo fanático, disposição para

415
Falamos aqui da evacuação dos soldados ingleses na cidade francesa de Dunquerque em 1940 mediante a
ocupação nazista. Cf.: HASTINGS, Max. Inferno: o mundo entre guerra 1939-1945. Trad.: Berilo Vargas. Rio
de Janeiro: Intrínseca, 2012.
416
Estudou em Cheltenham College e em Sandhurst, lutou na Primeira Guerra Mundial na França, na Bélgica e
no Norte da Rússia, ganhando a Cruz Militar. Cf.: WEST, Nigel. The A to Z of British Inteligente. Lanham,
Toronto, Plymouth, UK: The Scarecrow Press, Inc, 2009, p. 225.
trabalhar com pessoas de diferentes nacionalidades, confiabilidade política
completa” (Tradução nossa) (BULL, 2013, p.12).417.

Portanto, perceberam a necessidade de intensificar as operações especiais. Conforme


Sir Robin Brook, o SOE foi dividido em duas faces: a primeira, em operações clandestinas de
agentes de forma individual ou redes que trabalhavam em movimentos de resistência entre a
população ocupada; a segunda, em operações militares por agentes secretos em conjunto com
tropas oficiais (1991, p.69). Todavia, observou-se que essas atividades, principalmente de
sabotagem e propaganda, se fossem uma ação de sucesso poderia provocar o aumento da
segurança do inimigo. Isso colocaria em perigo as atividades necessárias para aquisição de
inteligência, causando, assim, tensões entre o SO (Operações Especiais) e o SI (Inteligência
Secreta). Isso indica que possivelmente existiam choques de interesses entre o SOE e o SIS
em alguns momentos.
Entre 1940 e início de 1941 houve uma relação mais ou menos satisfatória entre ambas
as agências. Porém, as tensões continuaram, pois uma atrapalhava o trabalho da outra. Além
do incomodo gerado pela expansão do SOE como, por exemplo, por ter adquirido sua própria
comunicação por wireless (JEFFERY, p. 354). Tal fato significava a independência do SOE
em suas redes comunicação, elemento essencial em seu trabalho. Essa expansão do SOE
também pode ser verificada pelo fato de seus escritórios e centros de treinamento de agentes
se espalharem por diversos países, como Inglaterra, Escócia, Canadá e Egito (BULL, 2013, p.
13). Além de operações na França, Países Baixos, Suécia, Norte da África e Extremo Oriente,
entre outros. A agência chegou a empregar cerca de 13.000 pessoas em 1944, entre
planejadores, agentes, pesquisadores, treinadores, pessoal do administrativo etc.

1.3 - O que foi e quais os objetivos?


O Office of Strategic Service (OSS), que foi o precursor da CIA (Agência Central de
Inteligência), era uma agência de serviço secreto norte-americana com o objetivo de coletar
informações, fornecer inteligência e empreender operações especiais e clandestinas no teatro
da Segunda Guerra Mundial para dificultar a ocupação do território pelo inimigo (BULL,
2013, p. 06-7). Tal instituição agia em: guerra clandestina; setores de pesquisas e análises;
ações de espionagem; operações especiais; inteligência secreta e em grupos operacionais que
agiam em operações militares de guerrilha. Uma das formas utilizadas era tentar incentivar a
resistência pela própria população local nos países dominados pelo Eixo, instigando e
desenvolvendo ações de sabotagens e propaganda. Seu campo de ação era a Europa, Norte da

417
“What is needed is a new organisation to co-ordinate, inspire, control and assist the nationals of the opressed
countries who must themselves be direct participants. We need absolute secrecy, a certain fanatical enthusiasm,
willingness to work with people of different nationalities, complete political reliability”
África e Ásia, chegando a 40 escritórios no exterior. Enquanto a América Latina e a própria
segurança interna dos Estados Unidos, isto é, a contraespionagem, eram responsabilidades do
FBI.
1.4 - Como nasceu o OSS?
O Office of Strategic Service (OSS), criado pela Casa Branca durante o governo de
Franklin Roosevelt, surgiu em julho de 1941. Inicialmente chamado Co-ordinator of
Information (Coordenação de Informação ou COI), tendo sua mudança de nome para o OSS
(1942) depois da entrada do país na guerra diante do ataque japonês a base de Pearl Harbor no
Havaí, em 1941, que culminou na declaração de guerra, foi idealizado e liderado pelo
milionário William Joseph Donavan. Esse surgimento foi marcado pela relutância dos
militares em aceitar a agência.
Donavan foi enviado para a Inglaterra para analisar o poderio militar e o serviço de
informação britânico. Segundo Ladislas Farago, no seu retorno detalhou ao presidente
informações sobre operações e o serviço secreto britânico (1961, p. 200). Em seguida, teve a
ideia de criar uma agência de inteligência e espionagem americana para a segurança nacional
frente à guerra contra o Eixo. Roosevelt aprovou e criou a Coordenação de Informação, se
tornando posteriormente o Office of Strategic Service.
É perceptível a influência da inteligência britânica no surgimento da agência
americana. Ian Fleming aconselhou e apoiou Donavan na criação da COI fornecendo
informações sobre a estrutura e funcionamento do sistema de inteligência britânico. Além de
incentivar uma relação próxima entre a inteligência americana e o MI6. Também Sir William
"Little Bill" Stephenson, chefe de inteligência da Grã-Bretanha nos Estados Unidos, em
tempos de guerra, ajudou o Chefe OSS com informações sobre os métodos e organização do
Serviço Secreto Britânico (MCDONALD, 1991, p.83).
Como uma instituição civil, a COI foi inicialmente composta por especialistas de
diversas áreas, como história, antropologia, economia, entre outras. Entre eles estavam
professores e assistentes, conhecidos como “Cem Professores” (FARAGO, 1961, p. 193) com
o objetivo de colher informações. Realizavam este trabalho através de fontes geralmente
negligenciadas, como fotografias de viagens em épocas de paz de países que se tornaram
inimigos durante a guerra ou ainda através de conversas com viajantes estrangeiros. Mas,
neste momento ainda não era uma agência que poderia ajudar a vencer a guerra. Para Farago,
o seu amadurecimento ocorreu com a mudança de nome para Office of Strategic Service em
1942, também sob a chefia de Donavan, composto além de especialistas, também por espiões
e sabotadores.
Quando surgiu, a COI possuía 1.600 em sua equipe, enquanto o OSS 12.718
(MCDONALD, 1991, p.81). Todavia, ao longo da guerra o OSS empregou cerca de 24.000
funcionários com uma variedade de profissões, entre eles “soldados, atores, historiadores,
advogados, atletas, professores, repórteres. Mas por vários anos durante a II Guerra Mundial,
eles eram conhecidos simplesmente como os OSS” (TIMES, 2008). Inclusive havia algumas
personalidades famosas, como o historiador Arthur Schlesinger Jr., o ator Sterling Hayden e
os filhos do Presidente Theodore Roosevelt, Quentin e Kermit Roosevelt.
Conforme Tim Weiner, entre a equipe havia aqueles que “saltavam sobre as linhas
inimigas, brandindo armas, explodindo pontes, conspirando contra nazistas juntamente com o
movimento de resistência da França e dos Balcãs” (WEINER, 2008, p. 22).

1.5 - Por que surgiu o OSS?


Antes dos EUA entrarem na guerra em 1941, o presidente Franklin Roosevelt tentou se
preparar para um possível conflito, pois a ameaça do Eixo era iminente. Os americanos já
mantinham relações próximas com a Inglaterra, com parcerias econômicas, fornecendo
material bélico entre outros produtos e representavam o principal obstáculo para dominação
japonesa no Pacífico. Foi nesta ocasião que ele percebeu que seu sistema de inteligência era
ineficiente. Segundo Waldo Heinrichs, os estadunidenses não possuíam informações para
montar uma estratégia adequada na preparação para a guerra (1991, p.08-9). Inclusive já havia
espionagem japonesa nos EUA antes mesmo do ataque a Pearl Harbor (FARAGO, 1961, p.
166-7), enquanto os próprios americanos não acreditavam que os japoneses fossem atacá-los.
Neste sentido, o ataque a Pearl Harbor representou uma falha no serviço de
inteligência. Os EUA conseguiram decifrar algumas mensagens em código do Japão, sabiam
que o ataque poderia acontecer, mas imaginaram que os japoneses não teriam coragem em
uma aposta tão alta. O código era tão secreto que não foi compartilhado com os comandantes
de campo e as rivalidades entre setores militares fizeram com que informações fossem
divididas, escondidas e não repassadas (WEINER, 2008, p. 24). Desta forma, não
conseguiram perceber a situação como um todo.

1.6 - Como estava organizado o OSS?


Para executar a coleta e análise de informações estratégicas, empreender inteligência
secreta, planejamento e execução de missões de sabotagem e subversão moral contra o
inimigo e apoiar operações militares no conflito, o OSS se organizou de forma dinâmica, se
adaptando às necessidades e condições peculiares dos teatros de operações da guerra. Para
isto, a agência foi dividida em diversos setores, cada um com suas respectivas funções,
espalhadas por diferentes países. Tendo, inclusive, algumas alterações de tempos em tempos,
mas mantendo seu padrão e seu objetivo básico.
Trata-se de um complexo organismo que pode ser verificado em um documento
produzido para agentes em treinamento no OSS. Este livreto chama-se Office of Strategic
Services (OSS): Organization and Functions (Escritório de Serviço Estratégico: Organização
e Função). Produzido pelo Schools & Training Branch (Setor de Educação e Treinamento) em
junho de 1945. Seu objetivo era complementar palestras sobre a organização do OSS. O texto
oferece uma visão detalhada do funcionamento da agência, com organogramas e
apresentações de cada setor, bem como suas respectivas funções. Era um material de estudo
sigiloso para aqueles que estavam em preparação para se tornar um agente ou funcionário
OSS.
Dentre essas informações sigilosas observamos como o OSS estava dividido. As duas
principais funções da agência eram o Serviço de Inteligência e o Serviço Estratégico de
Operações, administradas por dois diretores-adjuntos. No âmbito de cada função haviam
diferentes setores responsáveis por atividades específicas no teatro de operações com seus
respectivos representantes trabalhando em conjunto com os comandantes oficiais locais de
cada teatro da guerra.
No Serviço de Inteligência encontramos diversos setores, entre eles temos, por
exemplo, a Inteligência Secreta (SI – Secret Intelligence), responsável por obter inteligência
através de espionagem em países neutros ou ocupados pelo inimigo. Essas informações eram
obtidas através de outras agências aliadas ou redes de agentes que tinham como fontes grupos
clandestinos e guerrilheiros. Outro fundamental era o Setor de Pesquisa e Análise (R&A -
Research and Analysis), importante para o esforço de guerra, produzia inteligência de
natureza estratégica, política, geográfica e econômica através do estudo de diversas fontes
(Office of Strategic Service (OSS): Organization and Function, 1945, p. 06).
Na sua outra função, de Serviço Estratégico de Operações, o OSS também se dividia
em alguns setores. Um deles era o Setor de Operações Especiais (SO - Special Operations),
que organizava e auxiliava operações de sabotagem atrás das linhas inimigas, por meio de
agentes preparados, comunicações e suprimentos para grupos clandestinos e de guerrilha.
Também organizavam equipes especiais que eram mandadas com o objetivo de destruir alvos
específicos, obter informações e promover guerra de guerrilha. Agiam em diversos países
como Noruega, França, Dinamarca, norte da Itália, China etc (Ibidem, p. 06). Entre outros
havia ainda o Comando de Grupos Operacionais (OG - Operational Group) que organizava e
operava forças de guerrilhas em operações de penetração profunda. Eles treinavam e
comandavam guerrilheiros no exterior, como na China, por exemplo. Já na França,
imediatamente antes e após o Dia D (1944), este Comando articulou e apoiou os Maquis,
guerrilheiros franceses que lutavam contra a ocupação alemã.
Observando toda a estrutura do OSS, conforme Lawrence H. McDonald, a agência
estava organizada em um modelo semelhante ao britânico, tanto referente ao serviço de
inteligência (SI), como às operações secretas (SO). O OSS combinou quatro funções das
organizações britânicas em uma agência: Secret Intelligence Service (SIS ou MI6), Special
Operations Executive (SOE), Political Warfare Executive (PWE), e o Foreign Office
Research Department (MCDONALD, 1991, p. 85). Ainda segundo o autor, “o OSS não só
adicionou unidades operacionais para dar prosseguimento à guerra clandestina e sabotagem,
mas também assumiu total responsabilidade por todo o ciclo de inteligência” (Ibidem, p. 87).
No organograma abaixo podemos observar essa estrutura em um quadro comparativo:

(Organograma criado pela autora)

Com esta comparação encontramos semelhanças ao empreender as mesmas funções


(SI e SO), possivelmente devido à influência do modelo britânico de inteligência sob a criação
do serviço norte-americano, mas também suas especificidades (concentração no OSS o que
quatro agências faziam na Grã-Bretanha). Para chegar a essa conclusão, os procedimentos da
História Comparada através das ideias de Jürgen Kocka nos ajudaram a observar aspectos
difíceis de serem notados se a análise ocorresse apenas em uma das sociedades; identificar e
responder questões de causas; encontrar singularidades e ampliar nosso campo de análise
(KOCKA, 2003, p. 39-40). Com isso verificamos como o SIS, o SOE e o OSS construíram
“tentáculos”, isto é, uma cadeia de setores com diferentes funções, mas que estavam
conectados para o funcionamento do todo e gerando trocas entre si. A partir de um centro
foram construindo ramificações para atuações em diferentes operações e atividades no teatro
de guerra e elaboração de estratégias.
Considerações finais
Feitas as apresentações da organização e funcionamento dos serviços secretos
britânico e norte-americano, podemos concluir que as duas agências nasceram de forma
semelhante. Surgiram em países que já mantinham alguns serviços de espionagem e
inteligência, mas que diante de crises seus políticos perceberam a necessidade de concentrar
suas atividades em um órgão que pudesse agir no exterior com maior excelência.
Semelhança também pode ser encontrada nas suas funções, pois em ambos os países
procuravam agir no serviço de inteligência e de operações especiais, chegando a trabalhar em
conjunto em algumas situações. Ao comparar observamos que suas estruturas foram montadas
com diferentes setores, com suas respectivas funções para que o todo pudesse funcionar de
maneira coordenada, formando “tentáculos. Contudo, ao passo que nos EUA estas atividades
estavam concentradas em uma única instituição, o OSS, na Grã-Bretanha estavam separadas
entre SIS e SOE.

Fontes
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FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA: ENTRE HISTÓRIA E MEMÓRIA

Rodrigo Musto Flores


Mestrando em História e Patrimônio
Universidade Federal de Viçosa

Luiz Lima Vailati


Mestrando em História e Patrimônio
Universidade Federal de Viçosa

O historiador que se dedica à análise da memória e sua dinâmica de significação, deve


partir como pressuposto de que as memórias são pontos fundamentais da identidade de todo
ser humano e grupo social. Uma análise da memória requer um esforço de compreensão das
dinâmicas que se situam não só entre as suas perspectivas distintas, mas também das disputas
em torno de um discurso que contemple a maioria dos indivíduos.
Este artigo, portanto, é fruto das reflexões iniciais obtidas com a projeto de pesquisa
intitulado: “As Associações de Ex-Combatentes e a construção de uma memória sobre a Força
Expedicionária Brasileira (1946 – 2017) ”. No qual analisando a desmobilização e
reintegração social dos ex-combatentes brasileiros da Segunda Guerra Mundial, buscamos
entender o processo de desmobilização, ressocialização e construção de um discurso sobre a
Força Expedicionária Brasileira, bem como analisar as disputas para a difusão e manutenção
das memórias desse grupo de pessoas. Adotando uma perspectiva em voga na história cultural
a qual diz respeito ao estudo da memória social. Tal perspectiva tem como ponto fundante os
trabalhos do sociólogo francês Maurice Halbwachs418 que, a partir de suas análises, inicia uma
reflexão sobre a memória e aponta o exercício de uma memória coletiva considerando a
memória é sempre construída socialmente.
Sabe-se que episódios de conflitos geram uma série de feridos, doentes, mutilados e
traumatizados que após o término das hostilidades, retornaram como puderam às suas vidas.
Estes combatentes uma vez desmobilizados e possuindo seus relatos empíricos sobre os
horrores vivenciados em um cenário de guerra na qual a descrição de episódios como: a
tomada do Monte Castelo, as duras batalhas em Montese, o terror frente as constantes rajadas
das metralhadoras MG-42 e o rigoroso frio italiano são os relatos mais marcantes, os ditos
relatos, contato a partir da perspectiva de diversos combatentes brasileiros são pontos
fundamentais do amálgama que envolve o discurso da memória e sua relação com o
surgimento de uma identidade de grupo.

418
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2003. 224p
O sentimento de grupo, então, concebido no campo de batalha, se consolida
posteriormente quando esses indivíduos percebem que compartilham uma série de
características comuns que extrapolam, por exemplo, o conceito de nacionalidade. Esses
homens e mulheres são agora sobreviventes, e cabe a eles mesmos a divulgação e difusão de
suas experiências como uma forma de dar continuidade a suas memórias. Não obstante as
lembranças um tanto quanto comprometedoras do lado vil que somente um episódio de
conflito revela, faz aflorar em alguns desses o silêncio.
Sirlei de Fátima Nass aponta que a desmobilização relâmpago da FEB, colabora para
uma reversão ao tratamento natural ao veterano de guerra no Brasil segundo a autora: “A
imagem de Heróis de Guerra foi, de um instante para outro, invertida, pois os mesmos
passaram a ser vistos como vilões, turistas, aproveitadores, culpados de algo que não
conseguiam entender. Ser um ex integrante da FEB não era motivo de orgulho, mas sim de
desprezo”.419
Francisco César Alves Ferraz, aponta que uma série de medidas foram tomadas para
diminuir o impacto da chegada dos expedicionários ao Brasil. Desde a desmobilização da
FEB outorgada ainda em solo italiano por meio do Aviso Nº 217-185 de 06 de julho de 1945,
até a proibição do uso de uniformes, distintivos, medalhas, condecorações ou qualquer outro
adereço que fizesse referência a campanha da Itália. Outra deliberação do governo brasileiro
que recai sobre os expedicionários é a proibição de relatar suas experiências nos campos de
batalha na Itália através do Aviso Nº 197-166 emitido em 11 de junho de 1945.420
Ao se considerar as implicações políticas em torno da chegada da tropa expedicionária
no Brasil, podemos considerar que este processo não era extremamente confortável para o
sistema político vigente. Getúlio Vargas, governava o país sob um regime ditatorial e a
estreita relação entre o discurso que envolvia o retorno da Força Expedicionária e a
redemocratização do país estava em voga. Segundo Ferraz: “Tal Identidade entre a luta da
FEB e aquela pela restauração das rotinas democráticas não era nova. Há muito, a FEB já
tinha entrado nas cogitações dos atores políticos, seja como símbolo poderoso, seja como
aliada, seja como alvo de inquietação. Os debates de expedicionários na Itália, os discursos de
exaltação das lutas antifascistas no Brasil, a corrida dos grupos políticos para identificarem
com os “soldados da democracia” estavam na ordem do dia no período de entre julho e
outubro de 1945. Mas os expedicionários, quando chegaram não puderam se incorporar ao

419
NASS, Sirlei de Fátima. Legião paranaense do expedicionário: Indagações sobre a reintegração social dos
febianos paranaenses (1943-1951), Dissertação (Mestrado em História) - Setor de Ciências Humanas, letras e
artes. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2005. 150p.
420
FERRAZ, Francisco Cézar Alves. A guerra que não acabou: a reintegração social dos veteranos da Força
Expedicionária Brasileira.(1945 – 2000). Londrina: eduel, 2012. p.94
“cordão” democrático do qual eles teriam sido seu “abre-alas”. Rapidamente foram
desmobilizados e dispersos pelo território nacional, a cuidar de sua vida pessoal”. 421
As disputas em torno do que seria lembrado sobre a FEB e de como essas memórias
seriam utilizadas, são inerentes a esse processo conturbado de desmobilização. Dessarte sua
análise se faz uma temática produtiva de pesquisa, já que, possibilitaria compreender mais
sobre as disputas em torno dessa memória e os discursos que estavam em voga durante a sua
construção na qual, a formação das associações de ex-combatentes, a instituição de
monumentos e, em suma, as disputas em torno da memória são pontos extremamente
importantes sobre a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial.
Muito em voga no contexto atual, o estudo da memória tem chamado atenção de
historiadores e sociólogos devido ao constante apelo a uma cultura de preservação e o fervor
patrimonial presente na sociedade contemporânea. Segundo Ulpiano T. Bezerra de Menezes:
“o surgimento desses discursos é fundamental para a organização, preservação e conservação
de indicadores empíricos preciosos para o conhecimento de fenômenos relevantes e
merecedores de análise e apreensão histórica”. 422
Dessa formal, a memória como fato social permeia a construção de uma identidade e
pode ser utilizada como prisma para o estudo de diferentes grupos sociais, já que, o seu
caráter ao mesmo tempo pessoal e coletivo é o elemento principal para a sustentação desses
grupos.
David Lowenthal, considera que as memórias são pontos fundamentais para a tomada
de conhecimento do próprio ser. Para o autor: “Não há nada tão pessoal para um homem do
que suas próprias lembranças”.423 Dessa maneira o esforço de relembrar é fundamental para
saber o que fomos e confirmar o que somos. Portanto entende-se que as memórias são
formadas por um processo de lembranças e esquecimentos seletivos, escondemos fatos do
nosso passado que as vezes podem de alguma forma nos denegrir, ao passo que evidenciamos
outros que julgamos mais importantes. Nesse contexto e devido ao caráter seletivo inerente da
memória entendemos que o processo de esquecimento se faz tão importante quanto o de
rememoração.
Sobre a análise da memória social e sua relação com a formação da identidade de um
grupo, o trabalho do historiador austríaco Michael Pollak é também fundamental para a
compreensão desse processo. Pollak afirma que: “a memória é um elemento constituinte do
sentimento de identidade”.424 Sabe-se que assim como a memória individual o processo de

421
Ibidem. p. 107
422
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. História, Cativa da Memória? Para um mapeamento da memória no
campo das Ciências Sociais. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, v. 34. p. 9, 1992
423
LOWENTHAL, David. Como Conhecemos o Passado. Projeto História, São Paulo, no. 17, nov. 1998. p. 78
424
POLLAK, Michael. Memória e Identidade social. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992. p.
204
construção de identidade também passa por inúmeras negociações e é alvo de uma disputa
constante, já que, a construção deste perpassa a relação do ser com o mundo em que vive, de
tal forma, que a memória estabelece relação intrínseca frente ao momento em que ela é
articulada e expressa.
Considerar o momento no qual a memória está sendo analisada, constitui um ponto
extremamente importante para qualquer análise da memória social seja está localizada no
âmbito pessoal ou coletivo. Ao se tratar da perspectiva coletiva da memória, percebe-se uma
constante disputa política em torno do que vai ser lembrado ou esquecido; datas,
acontecimentos, indivíduos e representações. Todo esse processo de negociações influência
nas sensações que essa memória irá provocar.
A construção da memória coletiva nacional, não perpassa um amálgama de inúmeras
memórias individuais heterogêneas, mas sobressai nesse discurso as versões ou impressões de
um determinado grupo dominante em detrimento de outros. Novamente neste ponto
observamos o exercício da memória diretamente ligado ao esquecimento. Esse processo de
suprimir ou evidenciar versões possui um caráter um tanto quanto perverso à medida que a
memória social, principalmente aquela engendrada no âmbito nacional, pode apresentar um
caráter prejudicial as reminiscências dissidentes quando essa relação entre as memórias (a
hegemônica e a das minorias) se torna desigual.
Em se considerando o caráter negociado das memórias e sua característica
fundamental como construção da identidade apontado pelos autores acima. Buscaremos
através das pesquisas que estão sendo realizadas juntamente com as associações de ex-
combatentes, identificar os meandros desses discursos, as adaptações que são realizadas
acompanhando o contexto político-social da época e como essas associações e seus membros
atuaram para construir uma memória típica dos ex-combatentes, bem como coletar e analisar
alguns meios pelos quais essa memória circulou e circula.
Ao atuar juntamente com os núcleos das associações, entende-se que a análise
decorrente da pesquisa consiga esclarecer a relação dos expedicionários com os locais de
memória e a participação dos veteranos como agentes que moldaram o discurso. O objetivo
principal das associações segundo a obra do autor Francisco César Alves Ferraz, já citado no
corpo do presente artigo, era: “Promover a reintegração social entre os veteranos de guerra,
representar seus interesses coletivos diante das autoridades, preservar e promover a memória
dos feitos dos brasileiros na Segunda Guerra Mundial, oferecer dentro de suas possibilidades,
assistência social e jurídica àqueles companheiros em dificuldades e lutar pela valorização da
paz nas relações sociais e internacionais”. 425

425
FERRAZ, Francisco Cézar Alves. Op Cit. p. 213
As fontes coletadas até o momento nos arquivos da ANVFEB de Juiz de Fora,
referem-se a: atas das reuniões entre os associados, panfletos veiculados pela própria
instituição e matérias de jornais sobre a associação e a FEB. As questões colocadas até o
presente momento nesta pesquisa, visam analisar as articulações entre a política local e a
distinta associação, bem como sua atuação e políticas desenvolvidas para a ressocialização
dos veteranos. As atas ajudam o pesquisador a compreender qual discurso será atribuído a
memória da instituição e quais grupos dominantes atuam na associação e nas políticas de
sacralização da memória, já os panfletos e materiais produzidos fornecerão fontes
importantíssimas sobre as comemorações e políticas de veiculação da memória.
A instrumentalização da memória merece uma atenção especial, já que, é através dela
que se identifica o jogo de interesses nos quais o discurso memorialístico está inserido.
Helenice Rodrigues da Silva em seu artigo intitulado “Rememoração”/Comemoração: As
utilizações sociais da memória, aponta que: “O uso perverso da seleção da memória coletiva
encontra-se, portanto, nesse processo de “rememoração” social, cuja função é justamente a de
impedir o próprio esquecimento. Apagam-se da lembrança as situações constrangedoras (por
exemplo, nos “500 anos do Brasil”, os massacres indígenas, a escravidão negra, as violências
na história), e privilegiam-se os mitos fundadores e as utopias nacionais (o “paraíso tropical” e
o “país do futuro”) ”.426 Ainda segundo a mesma autora, comemorar significa reviver de
forma coletiva algo que julgamos ser um acontecimento ou ponto importante, mas tal
comemoração não passa de uma seleção arbitrária da memória, ou seja, essa seleção é uma
imposição de uma versão em detrimento de tantas outras existentes.
No imediato retorno dos combatentes as festas e a recepção calorosa dos escalões pelo
povo no Rio de Janeiro, mascararam o descaso das instituições militares em relação ao
gerenciamento de pessoal e no cuidado com as experiências de guerra dos ex-combatentes da
FEB. Essa preocupação surgirá somente a partir da década de 1950. Dessa forma, perceber
através das análises das fontes os motivos para o surgimento desse interesse súbito, bem
como, os usos que foram delegados à essa memória são alguns dos objetivos específicos do
projeto de pesquisa em andamento.
Característica inerente à memória, sua fluidez e mutabilidade tornam-na uma das
chaves para que lancemos nosso olhar ao passado. A memória coexiste com o presente, já
que, é no presente que se encerra o processo de rememoração. Para tanto recuperá-la em sua
totalidade é um exercício impossível, já que, o processo de recordação apresenta uma relação
extremamente próxima com o contexto vivenciado no momento em que ele ocorre,
estimulamos as lembranças para dar vida ao passado, mas também para repensa-lo com vistas
no presente.
426
SILVA, Helenice Rodrigues. Rememoração/Comemoração: as utilizações sociais da memória. In: Revista
Brasileira de História, v. 22, no. 44, São Paulo, 2002. p. 433.
Ulpiano T. B. de Meneses tece uma análise sobre a característica extremamente fluida
dos discursos de memória e a sua transformação ao longo do tempo. Segundo o autor: “A
elaboração da memória se dá no presente e para responder a solicitações do presente. É do
presente, sim, que a rememoração recebe incentivo, tanto quanto as condições para se
efetivar”.427 É essa relação intrínseca entre presente e passado que permeia toda a discussão da
pesquisa em andamento. O conhecimento acerca da memória, sua utilização e reutilização,
fazem com que o indivíduo que rememora promova: seleções, recortes, redefinições,
distorções e transformações ocasionadas em parte pelas alterações ocorridas ao passar dos
anos e em parte frente as necessidades inerentes ao presente de evidenciar alguns pontos em
detrimento de outros.
Joël Candau em seu artigo intitulado: “Bases antropológicas e expressões mundanas na
busca patrimonial: memória, tradição e identidade” e aponta que todo indivíduo possui uma
memória e que seu discurso é inteiramente preenchido por ela, assim o autor evidencia que a
memória como ponto fundamental é inerente do ser está carregado de um jogo de lembranças
e esquecimentos. Essa memória considerada de caráter individual é o ponto fundante de uma
“identidade narrativa”. 428 Esta categoria se faz presente à medida que os indivíduos encontram
uma funcionalidade para seu discurso. Funcionalidade essa que Paul Ricoeur denomina de
moldura coletiva. Dessa maneira não basta que a memória individual seja considerada
“verdadeira”, “autêntica” no sentido pessoal, ela necessita como característica inerente de uma
confirmação social.
A respeito desse processo de fundamentação social, outra contribuição importante é a
interpretação do sociólogo francês Maurice Halbwachs acerca da memória coletiva. Segundo
o autor: “Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que
se trate de eventos que somente nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós. Não é
preciso que outros estejam presentes, materialmente distinto de nós, porque sempre levamos
conosco e em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem ”. 429
Portanto, as observações de Halbwachs são importantes, à medida que inauguram as
reflexões sobre o exercício de pensar a memória e acrescentam a fundamentação para a
interpretação da relação entre os discursos, já que, é conhecido que a memória não é somente
uma construção individual, mas perpassa todo um exercício social, grande parte do que
sabemos sobre nós mesmos, são junções de memórias inseridas no contexto social e familiar.
Como já exposto promover uma análise da memória social de um grupo significa, em
suma, ponderar sobre como o referido grupo lida com o presente e com o contexto atual em
que vivem. A memória é, moldada pelo presente, mas se refere ao passado tornando-o
427
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Op Cit. p. 11
428
CANDAU, Joel. Bases antropológicas e expressões mundanas da busca patrimonial: memória, tradição e
identidade. Revista Memória em Rede, Pelotas (RS), v. 1, n. 1, dez. 2009-mar.2010. p. 48.
429
HALBWACHS, Maurice. Op Cit. p. 30
compreensível. Como já colocado anteriormente, recorremos a memória para afirmar quem
somos e é essa tomada de conhecimento do passado que nos permitirá identificar os nossos
próximos passos.
A ida às fontes e a relação da pesquisa com as associações permitirá observar como foi
o processo de construção da memória coletiva sobre a FEB. Já que devido ao papel
importantíssimo das associações de ex-combatentes no imediato processo de desmobilização
atuando no auxílio a reintegração social dos combatentes possibilitará, analisar a participação
dessas unidades como os primeiros locais de memória e também como porta-vozes de um
discurso sobre essa memória.
Ao analisar essa memória coletiva, tomaremos contato com um quadro mais amplo das
impressões dos combatentes brasileiros sobre a participação do Brasil num conflito de
tamanha magnitude. Compor esse quadro colabora para a compreensão das análises históricas
sobre a FEB e esclarece a diferença entre os conceitos de Memória e História. A primeira é,
em suma, como uma operação ideológica de um discurso de representação do próprio ser em
um coletivo. A segunda como uma operação cognitiva e forma intelectual de conhecimento,
dotada de metodologia que visa produzir uma interpretação do passado.
O historiador como produtor de conhecimento científico, não deve abandonar seu
posicionamento de criticidade em relação as suas fontes e ao passado como fato dado, bem
como, às práticas que envolvem as tentativas de recuperação deste processo em sua totalidade.
Conhecemos do passado aquilo que as fontes, carregadas de subjetividade e interpretações
pessoais nos legaram. Cabe ao historiador problematiza-las e trata-las como um discurso.
Portanto, frente a um processo cada vez mais constante de promoção de uma recordação
total, de um fervor em torno da memória, bem como, da comercialização do passado como
algo dado. O distanciamento do pesquisador em relação as suas fontes, permanece essencial,
para o processo de produção de conhecimento sobre o passado, já que, assim o trabalho do
historiador possa ser o de problematizar e continuar tecendo análises críticas sobre ele. É
evidente o processo cada vez mais crescente e o apelo constante para a valorização das
memórias hora dissidentes e suprimidas. Esse resgate vem sempre acompanhado de uma
disputa que objetiva dar voz aos que foram silenciados ou de luta em prol da sobrevivência da
memória de um grupo no imaginário coletivo. Não há como quantificar o quanto de nosso
presente é preenchido com o passado, embora a memória faça parte de nossa vida, essa deve
permanecer como um objeto de apreensão historiográfica.

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CANDAU, Joel. Bases antropológicas e expressões mundanas da busca patrimonial:
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POLLAK, Michael. Memória e Identidade social. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5,
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SILVA, Helenice Rodrigues. Rememoração/Comemoração: as utilizações sociais da
memória. In: Revista Brasileira de História, v. 22, no. 44, São Paulo, 2002. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010201882002000200008 Acesso
em: 15/04/2017.
EXPEDIÇÕES MILITARES E DIPLOMCIA – HISTORIOGRAFIA DA
CONFIGURAÇÃO DAS FRONTEIRAS DA AMAZÔNIA BRASILEIRA

Rodrigo Pereira Pinto


Curso de Altos Estudos Militares/ECEME

1. Introdução
A floresta amazônica ocupa praticamente metade do território brasileiro. Sua vasta
extensão territorial, sua fauna, sua flora, aliados aos recursos naturais existentes, fazem com
que seja uma das áreas mais importantes e estratégicas do Brasil.
O primeiro tratado que concebia uma linha de fronteira do que seria o Brasil não
contemplava o que hoje se entende por Amazônia Brasileira. A conquista e a manutenção dos
espaços amazônicos foram fruto de uma epopeia iniciada logo após o descobrimento e com
desdobramentos até o século XX.
As expedições militares desenvolvidas por Pedro Teixeira e Raposo Tavares, dentre
outros, romperam os limites existentes e permitiram a Portugal pleitear a revisão das
fronteiras com as terras espanholas na América e permitiram que o Brasil herdasse essas terras
no momento de sua independência.
A garantia do direito no âmbito jurídico internacional, entretanto, foi trabalho de
diplomatas que, desde Alexandre de Gusmão, vêm tratando o uti possidetis como a espinha
dorsal da posse da parte brasileira da Amazônia. O atual mapa do Brasil é fruto do esforço e
eloquência de Gusmão e do Barão do Rio Branco, que alinhavaram as fronteiras com seu
esforço diplomático.
Por fim, já no século XX, devido aos diversos desafios inerentes à ocupação da
Amazônia, coube às Forças Armadas – em especial ao Exército Brasileiro – a missão de
vivificar as fronteiras e levar a cabo os planos de integração da Amazônia, tão fundamentais
para a consolidação da soberania brasileira naquela região.

2. Floresta de papel – os tratados pela Amazônia


Embora ainda não tivesse sido descoberto, o Brasil teve sua primeira fronteira Oeste
designada pelo Tratado de Tordesilhas (1494), que dividiria a posse das terras americanas
entre as coroas de Portugal e Espanha. O parco conhecimento técnico e científico da época
dificultava o trabalho cartográfico, trazendo indefinição acerca da posição exata por onde
passaria a linha limite do Tratado de 1494.
Em decorrência do trabalho apresentado por uma junta de especialistas de Portugal em
1524, consolidou-se a linha do Tratado de Tordesilhas na foz do rio Amazonas, sem que
houvesse contestação espanhola (CINTRA, 2012).
Durante um largo tempo, Portugal estava mais preocupado com a posse da Colônia do
Sacramento e a definição dos limites ao Sul do que os de Norte, onde a Selva Amazônica
tornava as expedições excessivamente difíceis e custosas.
As ações que se seguiram ao descobrimento e durante todo o século XVI, entretanto,
fizeram com que os domínios portugueses na Amazônia ultrapassassem o limite legal imposto
pelo Tratado de Tordesilhas. Essas ações serão explicadas nos capítulos subsequentes.
O fato é que sem a intervenção portuguesa, a Amazônia seria exclusividade espanhola e
de suas colônias, pois mesmo antes da descoberta oficial do Brasil já se fazia referências à
presença espanhola na Amazônia, afinal “o primeiro europeu a pisar as terras amazônicas, o
espanhol Vicente Pinzon (em janeiro de 1500), percorreu a foz do Amazonas, conheceu a ilha
de Marajó" (LOUREIRO, 2002).
O resultado das ações portuguesas para Oeste do limite imposto pelo Tradado de
Tordesilhas foi o descompasso entre o que preconizava a regra e o que existia na prática. Um
fator complicador nesse processo foi o período de Unificação Ibérica (1580-1640), em que a
união das casas reais portuguesa e espanhola deixou sem propósito o limite de Tordesilhas e
desintegrou o sentimento de divisão territorial existente.
Coube a Alexandre de Gusmão a responsabilidade por restabelecer a divisa entre
Portugal e Espanha na América do Sul, tecendo as linhas da nova fronteira que vinha a se
estabelecer. Seu trabalho foi consolidado no Tratado de Madri (1750).

O Brasil da sua época, de acordo com a linha de Tordesilhas, começava na altura de


Belém do Pará e terminava em São Francisco do Sul (SC). Graças ao Tratado de
Madri, Gusmão conseguiu empurrar nosso território na Amazônia até as faldas dos
Andes. (MARIZ, 2014)
Por fim, a Amazônia foi sendo explorada e conquistada por intermédio de expedições e
tratados que envolviam militares, comerciantes, catequizadores e diplomatas portugueses que
se empenharam em garantir a posse da Amazônia para Portugal e, em última análise, para o
Brasil. Foi assim que o mapa da Amazônia brasileira – e do Brasil propriamente dito, foi
formado.
A posteriori, em 1777, o Tratado de Santo Ildefonso assegurou a posse portuguesa da
Amazônia já acordados no Tratado de Madri.

Pelo texto firmado em San Ildefonso, Portugal cedia a Colônia do Sacramento,


perdendo também os direitos sobre a região dos Sete Povos das Missões, [...] mas
mantinha a posse dos territórios do centro-oeste e da Amazônia, acordada no Tratado
de Madri. (REZENDE, 2006, p. 280)
Assim, incluindo o acordado no Tratado de Badajoz, de 1801, o Brasil herdou a maior
parte das áreas conquistadas por Portugal ao ultrapassar o Tratado de Tordesilhas na direção
do Oeste, mantendo as áreas amazônicas sob sua posse.

“A conquista da Amazônia por Portugal foi reconhecida pelo Tratado de Madri de


1750 e pelo de Santo Ildefonso, de 1777, e herdada pelo Brasil em 1822, com nossa
independência”. (BENTO, 2003)
3. Expedições militares
A ação de ultrapassar a linha do Tratado de Tordesilhas e impor novos limites que
foram sendo retificados e ratificados com o passar dos anos não se deu meramente por obra
política. Os novos limites brasileiros na Amazônia forma traçados por intermédio de
expedições que tinham – evidentemente – cunho comercial com forte apelo e contingente
militar.
A ação expansionista dos colonizadores portugueses provocou, no decorrer dos séculos
XVI, XVII e XVIII, alterações substanciais na linha de fronteira que separava a América
espanhola da América portuguesa. Os homens desta época que prestavam-se a estas
expedições ficaram conhecidos por bandeirantes. Embora a maioria destes bandeirantes
morresse na viagem ou voltava para casa mais pobre do que havia partido, alguns poucos
descobriram a fama e a glória por intermédio de suas proezas e descobertas.
O legado deixado por esses homens é inequívoco: exploraram um Brasil desconhecido e
pouco falado à época; levaram brasileiros ao Brasil e trouxeram para o seio da nação que
emergia uma afinidade com a terra que deixou inquestionável a posse da Amazônia.
Desta forma, estabeleceram-se entrepostos comerciais em fortins, fortes e fortalezas que
asseguravam o deslocamento de pessoas e mercadorias pelos confins amazônicos. Esses
estabelecimentos foram sendo construídos à beira dos rios que conduziram a expansão
lusitana pela Amazônia.
Dentre as expedições militares de destaque para o reconhecimento da posse das terras da
Amazônia por Portugal e, em decorrência, para o Brasil, destacam-se as realizadas por Pedro
Teixeira e por Antônio Raposo Tavares.

3.1 A expedição de Pedro Teixeira


A data de nascimento de Pedro Teixeira é incerta, restando certeza que ocorreu em
Catanhede, Portugal, entre o ano de 1570 e 1587. Sobre sua vida, cabe destaque ao fato de que
veio para o Brasil em 1607 para atuar na defesa territorial da colônia contra as invasões
europeias que ocorriam no novo mundo, sobretudo na região da foz do rio Amazonas.
(FERNANDES; FILHO, 2014)
Em 1637 recebeu o comando de uma força militar-naval composta de “47 canoas
grandes, setenta soldados, alguns religiosos e 1200 indígenas” (FILHO, 2016, p. 32) para
subir o Rio Amazonas desde sua foz até Quito. Suas ordens vinham de Felipe IV, e consistiam
eram de fundar uma povoação (Franciscana) que fosse capaz de estabelecer o que seria um
limite entre as posses portuguesas e espanholas na Amazônia e tomar posse das terras
conquistadas para Portugal.
A expedição de Pedro Teixeira seguiu o Amazonas em outubro de 1637 e durou mais de
dois anos, retornando à foz desse rio em dezembro de 1639, ocasião em que “tomara posse do
vale amazônico, desde a foz do Aguarico, afluente do Napo até a foz do Amazonas, em nome
da Coroa de Portugal” (CORTESÃO, 2016, p. 43).
Esta expedição foi fundamental para a argumentação lusa sobre a posse das terras
amazônicas que ultrapassaram os limites do Tratado de Tordesilhas, pois tratava de assegurar
a navegação e o trânsito pelo rio Amazonas, antes que ocorresse a separação das coroas
ibéricas, “já prevista e desejada” (FILHO, 2016)
O que resultou da expedição de Pedro Teixeira foi surpreendente à época e ainda hoje.
Foi a primeira viagem oficial em que o Amazonas e seus principais afluentes foram
navegados até a nascente. Isso, obviamente, implica em uma navegação contra a correnteza,
em uma viagem de aproximadamente quatro mil quilômetros do Pará até Quito.

[...] apesar de os espanhóis reivindicarem a primazia da viagem de descobrimento de


Francisco de Orellana, ao longo do curso do rio das Amazonas, coube a Pedro
Teixeira realizar a primeira viagem oficial de descobrimento que subiu e desceu o
longo curso desse rio, do estuário quase às nascentes, nas duas direções,
reconhecendo os deltas de todos os seus grandes afluentes, levantando assim a
primeira carta mais correta do curso do grande rio. (GADELHA, 2002, p.75)
Assim, a expedição que Pedro Teixeira conduziu pelo Amazonas foi fundamental ao
estabelecer o povoado de Franciscana e explorar os confins amazônicos até a cidade de Quito.
Essas ações foram fundamentais para o registro histórico da penetração lusa pela Amazônia e
a utilização futura do uti possidetis na consolidação do território colonial e brasileiro.

3.2 A expedição de Raposo Tavares


A ação expansionista dos colonizadores portugueses provocou, no decorrer dos séculos
XVI, XVII e XVIII, alterações substanciais na linha de fronteira que separava a América
espanhola da América portuguesa. Os homens desta época que prestavam-se a estas
expedições ficaram conhecidos por bandeirantes.
Antônio Raposo Tavares é tido como um dos maiores bandeirantes brasileiros, tendo
nascido em Beja, Portugal, em 1598, vindo ainda jovem para o Brasil (1618) e se radicando
em São Paulo em 1622, onde se casou.
Sua expedição de maior destaque para os fins a que esse trabalho se destina foi levada a
cabo em entre 1648 e 1651, partindo de Itatim, São Paulo, e terminando em Belém, no Pará.
Ao todo, conta-se que tenha percorrido aproximadamente dez mil quilômetros pelo território
brasileiro e de seus vizinhos.
Mesmo sendo incontestável “que Raposo Tavares partiu para saquear as missões
religiosas dos espanhóis e capturar indígenas” (FONSECA, 2016, p.14) , sua ação não só
expulsou os espanhóis que viviam nas reduções jesuíticas da Amazônia Ocidental, como
explorou os rincões a norte do Mato Grosso.

[...] em 1651, Antônio Raposo Tavares, que partira de São


Paulo, por ordem do rei, com uma bandeira, chegava a Belém,
depois de baixar o Madeira e o Amazonas, trazendo consigo uma
nova e imensa possibilidade: alargar prodigiosamente a Ilha-Brasil
em longitude, deslocando muito para oeste do Tocantins o arco
interfluvial, formado agora pelo Paraguai e o afluente amazônico,
que mais profundamente se estendia para o sul naquela direção,
isto é, o Madeira. (CORTESÃO, 2016, p. 68)
A expedição de Raposo Tavares fechou o arco de grande parte do que se conhece por
Amazônia Legal, percorrendo à pé ou por rios os caminhos que interligavam São Paulo a
Cuiabá e de Cuiabá até a Ilha de Marajó, próximo à Belém. Assim, com algumas pequenas
mudanças na forma e no traçado, percorreu o que viriam a ser as fronteiras do Oeste
brasileiro.

4. Fortificações
A manutenção das terras desbravadas requeria a construção de instalações que
protegessem os militares e as comitivas dos ataques de indígenas. Além disso, asseguravam a
posse das terras frente aos ataques e investidas de nações europeias na Amazônia. Para tanto,
coube aos exploradores a tarefa de construir fortificações capazes de responder aos
incessantes ataques que sofriam.
Algumas dessas fortificações tiveram participação decisiva na historia da Amazônia e
da construção do Brasil, como veremos à seguir.

- Forte do Castelo (do Presépio) – 1616 – Belém.


Pedro Teixeira participou, em 1616, da expedição comandada por Francisco Caldeira
Castelo Branco que fundou o Forte que daria origem à Santa Maria de Belém do Grão-Pará
(FERNANDES; FILHO, 2014). Este forte foi uma das primeiras construções militares
portuguesas na Amazônia. Tem como principal aspecto militar o fato de ter sido a base de
partida de todas as expedições militares que expulsaram estrangeiras invasores do Baixo
Amazonas. Serviu ainda como base para pesquisas e exploração amazônica, sendo parte da
concretização da ligação terrestre Belém - São Luis.

- Fortes de Santo Antonio e São José de Macapá – 1686 – Amapá.


A exemplo de grande parte das fortificações levantadas na Amazônia, os fortes foram
criados para defender as posses portuguesas frente às invasões estrangeiras. Esse forte teve
origem nas ruínas de outro forte, tomado aos ingleses no ano de 1686. Com grande poder de
fogo, permaneceu como baluarte do sistema defensivo luso na região amazônica e foi alvo de
diversos ataques e incursões que visavam à apreensão das terras por ação militar. Marco do
esforço português em suas colônias, foi perdido e reconquistado devido aos ataques que
sofreu. A busca portuguesa pela conservação destas posses e sua efetiva ocupação foram
decisivas para o reconhecimento internacional do espaço geográfico brasileiro.

- Forte de São Joaquim do Rio Branco – 1778 – Roraima.


Há indícios de que tivera sua origem efetivamente no ano de 1719, tendo sido aludido
como marco decisório para a posse portuguesa em 1750 por ocasião do Tratado de Madrid.

- Forte Príncipe da Beira – 1785 – Rondônia.

Embora não haja registro de grandes ações militares envolvendo o Forte Príncipe da
Beira, sua presença hegemônica acaba por ser um dos maiores princípios de ocupação das
terras amazônicas por Portugal. Sua existência por si só é argumento imprescindível no estudo
da ação portuguesa no avanço para o oeste. A distância entre o Forte e qualquer outro ponto
de apoio demonstra a vocação portuguesa e brasileira para a conquista da Selva Amazônica,
demonstrando a determinação de conquistar e assegurar a posse daquele pedaço do continente.
Concluindo sobre a importância das fortificações para a construção do espaço
geográfico, acrescenta-se que algumas destas construções cresceram de tal forma que se
tornaram centros urbanos até hoje estabelecidos. A existência destas cidades comprova e
afiança o esforço depreendido pelos exploradores como e Pedro Teixeira e Raposo Tavares.

5. Diplomacia à serviço da Amazônia brasileira


É inegável a ação dos diplomatas na consolidação das linhas da fronteira brasileira. Na
Amazônia essa afirmação torna-se ainda mais verdadeira, pois assegurou a posse brasileira de
vasta região, além de consolidar a paz e a estabilidade com os vizinhos amazônicos.
Desde as ações desenvolvidas por Alexandre de Gusmão forma de capital importância
na retificação do Tratado de Tordesilhas e lavratura do Tratado de Madri, como afirma Vasco
Mariz (2014): “Graças ao Tratado de Madri, de 1750, Alexandre de Gusmão, o barão do Rio
Branco do século XVIII, assegurou à Coroa portuguesa e ao que se tornaria o Brasil vastos
territórios ao sul do país e sobretudo na Amazônia”.
O Barão do Rio Branco foi o maior expoente da diplomacia brasileira. Nascido em
família de militares, desde cedo aprendeu a Cultuar a história e os personagens de vulto da
nação brasileira. Seu gosto ímpar pela geografia e pela história brasileira foram fundamentais
na delimitação das fronteiras Amazônicas.
Dentre os trabalhos do Barão do Rio Branco que servem para os objetivos desse
trabalho, dois se destacam: o caso do Amapá e o caso do Acre.
No caso do Amapá, problemas de fronteira entre Brasil e a Guiana francesa deixaram a
região conturbada. Seus problemas remontam ao século XVII, quando lutavam pela região
portugueses e brasileiros contra franceses ou holandeses. Assim, a população da região
sempre esteve em contato com um clima de hostilidades que marcavam a posse da região.
Para tentar amenizar a situação de conflitos na região, concretiza-se em 1700 o “tratado
Provisional”, quando se considera neutro o território guiano entre o Rio Oiapoque e o estuário
do Amazonas.
As divergências permaneceram até que o Barão do Rio Branco foi chamado a atuar em
laudo arbitral, quando se valeu das cartas geográficas e mapas do século XVI e XVII para
comprovar a posição do Oiapoque, e consolidar a posição das terras brasileiras.
O laudo dá ganho de causa ao Brasil validando o direito adquirido pela conquista
desbravadora e pela diplomacia do barão do Rio Branco que contribui pela primeira vez para a
manutenção da Amazônia brasileira.
Já no caso do Acre, trata-se de uma grande área esquecida pelas autoridades do Brasil e
da Bolívia, cujos interesses passaram a ser conflitantes. Da mesma forma que o ouro fora a
razão das disputas no Amapá, a borracha foi a razão das disputas entre Brasil e Bolívia,
atentos aos interesses de outros países na região.
A posse das terras do Acre foi assegurada à Bolívia pelo Tratado de Ayacucho, assinado
na cidade de La Paz de Ayacucho em 27 de março de1867 – durante a guerra do Paraguai.
Com a determinação do governo Boliviano da retirada dos brasileiros da região do Acre
no início do século XX para que multiacionais pudessem explorar a borracha na região,
irrompe uma revolta dos trabalhadores brasileiros que há muito trabalhavam na região.
Embora a Bolívia estivesse no gozo de seu direito, na posse do território marcado no
Tratado de 1867, é determinante a presença de brasileiros que ali trabalhavam sem qualquer
ação do governo boliviano, levando ao ponto de contestarem para si a região que conheceram,
desbravaram, desenvolveram e passaram a chamar de sua.

Sendo assim, devido ao clamor popular e à urgente necessidade, Rio Branco notifica a
Bolívia em 18 de janeiro de 1903 que a República do Brasil considera, a partir de então,
aquela como sendo uma área litigiosa entre as nações, afirmando ocupar militarmente a
região.
A situação foi de todo contornada e resolvida com a assinatura do Tratado de Petrópolis
(03/12/03), quando, o Brasil incorporou o Acre e acordou a construção de uma estrada de
ferro de Santo Antonio, no Rio Madeira, até Guajará-Mirim, no Rio Mamoré.
5. Militar e diplomata – o papel do Marechal Rondon
Cândido Mariano da Silva Rondon é personagem da história brasileira cuja vida e a obra
não carecem de explicação. Seu nascimento se deu em 5 de maio de 1865, numa pequena cidade
de Mato Grosso chamada Mimoso, mas que hoje é Santo Antônio do Leverger. Dali entrou para o
Exército ainda no final do Século XIX.
Em 1889, Cândido Mariano foi nomeado ajudante da Comissão de Construção das
Linhas Telegráficas de Cuiabá a Registro do Araguaia, donde sairia para tornar-se chefe do
distrito telegráfico de Mato Grosso, em 1892. Sua comissão, já naquela época era conhecida
como Comissão de Construção de Linhas Telegráficas e Estratégicas de Mato Grosso ao
Amazonas.
Sem abandonar o esforço de seu trabalho, Rondon fez levantamentos cartográficos,
topográficos, botânicos, etnográficos e linguísticos na região amazônica, sendo responsável
pelo registro de novos rios, corrigindo o traçado de outros que haviam sido relatados ainda no
alvorecer do século XVII, além de entrar em contato com numerosas sociedades indígenas
desconhecidas, sempre de forma pacífica.
Após isso, pelos idos de 1920, dedicou-se a outros serviços de natureza militar-
diplomática, como inspeção de fronteiras, sobretudo, e novamente, na área da Amazônia
Brasileira, cuidando e catalogando dos marcos territoriais.
As expedições de Rondon contribuíram para que quinze novos rios viessem a ser
identificados na área amazônica; para que cerca de 20.000 exemplares de nossa fauna e flora
fossem inventariados; para que imensa área de quase 500.000 quilômetros quadrados fosse
integrada pela comunicação; e que mais de 200 localidades do até então desconhecidas do
norte do país pudessem ser conhecidas, por medições e cálculos astronômicos que permitiram
determinar a latitude e longitude de cada uma delas.
Assim, o Marechal Rondon possibilitou o reconhecimento pormenorizado e a integração
de parte da Amazônia brasileira, sobretudo nos atuais estados do Mato Grosso, Rondônia e
Amazonas. Interligar por telégrafo os mais distantes povoados amazônicos é uma questão de
cidadania e de soberania nacional. As ações de reconhecimento de marcos de fronteira, da
mesma forma, asseguraram em pleno alvorecer do século XX a certeza de que o Brasil e os
brasileiros tinham o conhecimento e a posse efetiva de toda a Amazônia brasileira.

6. Conclusão
Os limites da Amazônia que conhecemos hoje são fruto das expedições que
ultrapassaram os tratados e acordos históricos que delimitavam a posse das terras americanas
entre Portugal e Espanha.
Os desbravadores que iniciaram o reconhecimento das áreas amazônicas nos séculos
XVI, XVII e XVIII carregavam consigo o poder das armas para conquistar e manter as terras
frente aos diversos inimigos que se apresentavam. As expedições militares fundaram fortes
que aglomeravam pessoas e se transformaram em cidades que existem até hoje.
As ações de Pedro Teixeira e Raposo Tavares forneceram os argumentos necessários ao
uti possidetis utilizado pelo Barão do Rio Branco na resolução das questões do Amapá e do
Acre, consolidando a posse brasileira de grandes porções de terra na Amazônia.
Desta forma, conclui-se que as expedições militares e a diplomacia tiveram papel
preponderante na formação e consolidação das fronteiras brasileiras na Amazônia, sendo
responsáveis pela demarcação de mais de 50% do atual território brasileiro.

Referências
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1616/2003 – História Militar Terrestre da Amazônia. 1 ed. Resende: AHMTB – Gênesis,
2003.
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Geodésicas. v.18, n.3, p. 421-445. Jul.-set. 2012. Disponível em:
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Teixeira e a “descoberta” do Rio Branco. Revista Territórios & Fronteiras. Disponível em:
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FONSECA, Dante Ribeiro da. De Tordesilhas às Bandeiras: a expansão territorial do Brasil e
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MARIZ, Vasco. A conquista da Amazônia. Disponível em:
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período colonial: a definição das fronteiras. 2006. 336 f. Tese (Doutorado em História) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2006.
A RECONQUISTA DE SALVADOR E A ARMADA DE OQUENDO: UM ESTUDO
COMPARADO DO ESFORÇO DE GUERRA LUSO-ESPANHOL CONTRA O
PODERIO NEERLANDÊS NO BRASIL

Thiago Soares de Macedo Silva


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História (UFPE)

Rômulo Luiz Xavier do Nascimento (Orientador/UFPE)

No ano de 1624, e novamente em 1630, a Companhia Neerlandesa das Índias


Ocidentais realizou expedições contra o litoral brasileiro no intuito de invadir e tomar
Salvador e Pernambuco, respectivamente. Tal objetivo se tornou possível, grande parte, pela
conjuntura de guerras europeia vigente desde meados do século XVI e que teve seu auge na
primeira metade do século XVII.
Após a morte de D. João III, seu neto, D. Sebastião, herdou a Coroa. Em 1578, usando
grande parte das rendas do Reino, o Rei armou uma grandiosa expedição militar com o intuito
de derrotar os “infiéis” (muçulmanos) do norte do Marrocos. Na Batalha de Alcacer-Quibir,
Portugal sofreu pesada derrota, milhares foram mortos ou feitos cativos e o próprio Rei nunca
foi encontrado. D. Sebastião, que embarcara na expedição antes mesmo de casar, não havia
deixado descendência. Coube ao último varão da Dinastia de Avis, o velho Cardeal D.
Henrique assumir o trono. Contando 66 anos de idade, o Cardeal-Rei também não tinha
descendência, e sua idade avançada trouxe temores a cerca do futuro do Reino Lusitano.
Durante os poucos anos em que o Cardeal-Rei governou algumas alternativas foram
encontradas para o problema sucessório, instalando uma junta com o intuito de encontrar um
sucessor ao trono lusitano. Três descendentes da Casa de Avis foram cogitados pela junta: O
Rei de Castela, Filipe II; a Duquesa de Bragança, Dona Catarina; e o Prior do Crato, D.
Antônio. O próprio Cardeal-Rei tinha preferência pelas candidaturas de Dona Catarina e de
Filipe, tendo inimizades com o Prior do Crato em grande parte por este ser um bastardo. Antes
de se chegar a um consenso, a morte levou D. Henrique no começo de 1580, e coube à junta
governar o país enquanto o sucessor não fosse definido 430.
As cortes foram convocadas pela junta governativa para a Cidade de Setubal, onde a
nobreza deveria chegar a uma decisão sobre o futuro da Monarquia Portuguesa. Contudo, D.
Antonio, prevendo que a nobreza não elegeria sua candidatura como a vencedora resolveu se
adiantar. Na cidade de Santarém, mesmo sem o consenso da junta e da nobreza, D. Antonio é
aclamado Rei, indo para Lisboa reclamar seu trono. Esse foi o pretexto para que Filipe II,
candidato preferido da junta e da Nobreza entrasse no país para impedir que D. Antonio
430
SCHAUB, Jean-Frédéric. Portugal na Monarquia Hispânica. (1580-1640). Lisboa: Livros Horizonte, 2001.
P.16
efetivasse sua coroação. Nesse ínterim, a Duquesa de Bragança retira seu nome da disputa por
entender que o Rei de Espanha teria mais meios para chegar ao Trono. Com a frase Portugal,
yo ló heredé, yo ló compre, yo ló conquiste, Filipe II ruma a Lisboa para selar seu domínio sob
o país e garantir o governo da monarquia lusitana431.
Com um exército comandado pelo famoso Duque de Alba e uma Armada comandada
pelo Marquês de Santa Cruz, Filipe entrou em território lusitano para dar batalha as tropas
recém-recrutadas do Prior. Após várias batalhas, onde saques eram lugar-comum, as últimas
forças leais a D. Antonio foram derrotadas pelos Tercios do Duque de Alba nas portas de
Lisboa. O Prior do Crato fugiu da capital rumando para o Norte e em seguida aos Açores,
sendo Filipe aclamado Filipe I, Rei de Portugal. O prior do Crato ainda lideraria uma
resistência ao domínio filipino a partir das ilhas atlânticas até 1583, de onde partiu para a
Inglaterra e para o exílio.
As Cortes de Tomar representaram a negociação entre a nobreza governante do Reino
com o novo monarca, além de definir os limites que a União Dinástica teria no modo de
governar português. O juramento de fidelidade ao Rei, algo nunca antes requisitado por um
monarca português, serviu para garantir que a nobreza permaneceria fiel ao rei, mesmo este se
encontrando em Madri, onde residia a corte dos Habsburgo. Em Tomar foi acordada uma série
de medidas que visavam garantir uma independência jurisdicional de Portugal junto às demais
partes da monarquia compósita espanhola. Foi uma espécie de “trato informal” da aristocracia
portuguesa com a Monarquia dos Habsburgo. A nobreza portuguesa poderia estar apta a
receber um rei estrangeiro como novo monarca, mas não aceitaria a incorporação de Portugal
ao Reino de Castela. Tais garantias tinham como intuito impedir que o Reino lusitano fosse
uma mera província dos territórios governados pelos Áustrias de Madri432.
Apesar de ter as Cortes de Tomar como garantia de não incorporação ao patrimônio
Habsburgo, a política externa do Reino não poderia diferir da política de Madri, já que a
palavra do Rei era a última nessa questão, o que acabaria por levar Portugal à guerra contra
um antigo parceiro comercial: as Províncias Unidas dos Países Baixos 433. Os Países Baixos
eram, como já citados, parte do conjunto de estados sob a égide da família Habsburgo, e desde
1568 se encontravam em situação de revolta contra seu monarca, Filipe II. Uma forte aliança
entre a burguesia e a nobreza gerou cada vez mais um sentimento de autonomia ante a Coroa
em Madri. Uma série de autos contra a tolerância religiosa no país e medidas que visavam

431
COSENTINO, Francisco Carlos. Mundo português e Mundo Ibérico. In: FRAGOSO, João; GOUVEA, Maria
de Fátima (Org.). O Brasil Colonial. 1580 – 1720. Volume II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. P.112
432
COSENTINO, 2014, P.114
433
Reunião dos Países Baixos do norte: Holanda, Zelândia, Utrecht, Gueldre, Overyssel, Frísia e Gröningen.
BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII. Volume III. O tempo do
Mundo. São Paulo: Martins Fontes, 1996. P. 163
cercear o poder da nobreza local impeliram parte dessa nobreza liderada por Guilherme de
Orange à rebelião.
Desde meados do século XVI, os Países Baixos se mostravam em evidência no
comercio europeu. As relações comerciais existentes entre os Países do Báltico e os Países
Baixos, eram consideradas como o moedernegotie434 (negócio-mãe) neerlandês. Tais relações
propiciaram a criação de uma crescente marinha mercante que possibilitou para os batavos a
conquista de boa parte do comércio europeu no XVII e na ascensão de Amsterdã como uma
das principais cidades da Europa, transformando as Províncias Unidas em uma grande
potência. Os excedentes que o comércio com o Báltico gerava eram reinvestidos pelos
mercadores neerlandeses não nesse mesmo comercio, mas em novas atividades rentistas, que
permitiram aos batavos investimentos em novos mercados e novas redes de comercio.
Essas redes comerciais criadas durante os séculos XVI e XVII permitiram que os
neerlandeses se lançassem ao comércio no Oriente e mais tarde no Ocidente com grandes
vantagens em relação aos seus concorrentes ibéricos. Como afirmou Evaldo Cabral em Olinda
Restaurada, o elemento chave para a manutenção de um império desunido é a presença de
uma forte marinha, pois “não há estado tão distante que não possa ser socorrido pelas Armas
435
Marítimas” . E as monarquias ibéricas tinham um grande déficit de frotas. Mais da metade
da exportação de açúcar do Brasil era feita por navios neerlandeses 436, assim como parte da
exportação dos produtos extraídos das colônias espanholas na América. A dependência dos
navios neerlandeses e agora o estado de revolta em que essa nação se encontrava não poderia
ser benéfica para os soberanos Habsburgos.
Desde o reinado de Carlos V, as finanças espanholas, assim como as das demais
possessões Habsburgo, estavam comprometidas com o pagamento de tropas e de expedições
militares. A Guerra contra os Países Baixos dilapidou o já combalido tesouro espanhol. Por
conta das várias frentes de batalha que o exercito Habsburgo tinha de manter (já que várias
nações decidiram por auxiliar aos neerlandeses em sua luta pela independência) e por vários
desastres ocorridos (como a destruição da Invencível Armada pelos Ingleses) a bancarrota
teve de ser declarada diversas vezes, com a Coroa admitindo não ter como honrar seus
compromissos financeiros, o que levava a motins e atrasava os planos espanhóis 437.
A parceria entre os Países Baixos e Portugal remontava há muito e se concentrava na
exportação do Sal da região de Setúbal (um sal de boa qualidade de que a indústria de pesca

434
NASCIMENTO, Rômulo Luiz Xavier do. Entre os rios e o mar aberto: Pernambuco, os portos e o atlântico
no Brasil Holandês. In: VIEIRA, Hugo Coelho; GALVÃO, Nara Neves Pires; SILVA, Leonardo Dantas (Orgs.).
Brasil Holandês – História Memória e Patrimônio compartilhado. São Paulo: Alameda, 2012. P.204
435
MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada. 2ª Edição, Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. P. 26
436
EMMER, Pieter. Los holandeses y El reto Atlântico em 303l siglo XVII. In: PÉREZ, José Manuel Santos;
SOUZA, George Felix Cabral de (Org.). El desafio holandês a303l dominio ibérico en Brasil en 303l siglo XVII.
Salamanca: Aquilafuente, 2006. P.24
437
KENNEDY, Paul. Ascensão e Queda das Grandes Potências. Rio de Janeiro: Elsevier, 1989. P. 51
neerlandesa dependia), no comércio das especiarias do oriente e no refino do açúcar, um dos
principais gêneros provenientes da colônia portuguesa na América, em especial da Capitania
de Pernambuco, onde se encontrava grande parte da produção açucareira. O aumento das
exportações entre Brasil e Portugal e a insuficiência de meios de transporte deste comércio
por navios portugueses possibilitou o uso de navios de outras nacionalidades, como afirma o
historiador Jonathan Israel:
[...] La navegacion portuguesa no tenia capacidad suficiente para servir el rapido
crecimiento de las exportaciones brasileñas. Por eso era necesario para los
mercadores utilizar barcos holandeses en la ruta entre Brasil y Portugal,
frecuentemente bajo bandera flamenca o hanseática, aunque en realidad la mayor
parte de estos barcos extranjeros procediam de las Provincias Rebeldes de Holanda y
Zelanda.438

Para não perder o lucrativo comercio que as possessões do ultramar português


ofereciam, os neerlandeses resolveram tentar tomar tal comercio em suas bases de produção,
assegurando tais relações comercias. Essa estratégia se deu inicialmente com a criação de
Companhias de Comércio, em fins do século XVI, conhecidas como voor-compagnies, ou
seja, pré-companhias. A primeira a ser criada foi a Compagnie van Verre, a ‘companhia do
lugar distante’, no ano de 1594. Após essas, outras companhias foram criadas por
comerciantes das Províncias Unidas para atuar no comércio com o Oriente e o Ocidente. Com
a criação dessas varias pequenas companhias e suas sucessivas viagens para o Oriente ocorreu
um aumento no preço das especiarias nos portos de origem e uma queda nos preços destas em
Amsterdã. Isso possibilitou o surgimento da ideia de unificação de companhias maiores em
prol de um monopólio e manutenção de preços que garantissem melhor poder de barganha nos
preços das especiarias do Oriente aumentando a margem de lucro. Foi assim que, em março
de 1602, foi criada a Vereenigde Oost-Indische Compagnie, a Companhia Neerlandesa das
Índias Orientais (VOC), que corresponderia a junção das demais companhias. A VOC tentava
por em cheque o comércio das especiarias do Oriente, que por tanto tempo fora o centro da
economia portuguesa.
Em 1609, foi firmada entre a Monarquia Hispânica e as Províncias Unidas uma trégua
com validade até o ano de 1621, conhecida como “A Trégua dos Doze Anos”. Tal trégua foi
aceita pela Espanha principalmente pelo sucesso na quebra do monopólio existente das
Coroas Ibéricas com o Oriente pela recém-criada VOC439. A trégua foi efetivamente exercida
na Europa, com a continuação da Guerra entre VOC e as Coroas Ibéricas e o cada vez maior

438
ISRAEL, Jonathan I. El Brasil y la política holandesa em el nuevo mundo (1618-1648). In: PÉREZ, J.
Manuel Santos. Acuarela de Brasil, 500 años después – Seis ensayos sobre la realidad histórica y econômica
brasileña. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1999. P. 14
439
BOXER, Charles. Os Holandeses no Brasi., Recife: CEPE, 2004
predomínio desta Companhia no Estado da Índia Português440. Para os Habsburgo a trégua
serviu para reequilibrar as combalidas finanças do Estado.
Para os Países Baixos, a trégua serviu para efetivar seu controle comercial na Europa.
Durante esse período o comércio entre os portos lusitanos e os portos dos Países Baixos foi
reestabelecido. Os partidários da paz em Holanda, encabeçados pelo Landsadvocaat da
Holanda441 Johan van Oldenbarnevelt, lograram êxito na manutenção da paz. Contudo, a
execução de Oldenbarnevelt reverteu o quadro, colocando os partidários da guerra,
encabeçados pelo Príncipe de Orange, em posições-chave no governo neerlandês442.
Em Madri a situação não diferia muito. Se nos primeiros anos da Trégua, Filipe III
realizou diversos esforços para criar a Pax Hispânica se aproveitando do desafogo das
finanças espanholas por conta da Paz, no fim de seu período o sentimento na Corte Espanhola
era de que a paz apenas serviu para financiar o crescimento, através do comércio, dos
inimigos de Espanha. Surgiu assim a ideia de que reiniciando a guerra na Europa e reabrindo
um front em Flandres, os Estados Gerais teriam que desviar as atenções do ataque e
conquistas nas coloniais ibéricas, aliviando a pressão que os neerlandeses exerciam nas várias
fronteiras do Império Habsburgo. Tendo suas finanças sanadas e seu exército fortalecido, a
Corte de Madri se sentiu preparada para reiniciar os conflitos contra os Países Baixos. Sendo
assim, em 1621, os espanhóis renovaram o embargo aos navios de bandeiras neerlandesas e
reiniciaram o estado de beligerância com as Províncias Unidas 443.
Nesse mesmo ano, tendo a VOC como modelo, foi aprovada pelos Estados Gerais a
criação da Geoctroyeerde West-Indische Compagnie, a Companhia Neerlandesa das Índias
Ocidentais (WIC). Antes da criação desta, os neerlandeses lançaram algumas expedições no
Atlântico, com atividade de corso e captura de navios mercantes ibéricos, além do comércio
do açúcar e de tentativas de conquistar a Amazônia, contudo um projeto colonizador só seria
possível com o aporte de uma companhia de capital unificado em maior escala 444. Como
afirmou Rômulo Nascimento, a WIC fora criada com os mesmo princípios da VOC: “(...)
fazer guerra contra as Coroas Ibéricas e, com isso, dividir o bolo do comércio internacional de
açúcar, pau-brasil, sal e escravos. O seu cenário: o Atlântico.” 445.
Com o capital necessário reunido, a Companhia pode-se fazer ao mar. E a primeira
decisão tomada pelos dirigentes da WIC seria o cenário da primeira expedição militar da
companhia. Várias foram as hipóteses cogitadas pelos dirigentes da Companhia. Atacar o
Panamá, com o intuito de dividir as possessões espanholas em duas; atacar Cuba, para ter uma

440
A quarta clausula da trégua estabelecia que “a paz estava virtualmente confinada à Europa.”. DARÓZ, Carlos.
A Guerra do Açúcar – As invasões Holandesas no Brasil. Recife: Editora UFPE, 2014. P.32
441
Advogado Geral da Holanda, cargo que será substituído pelo Grande Pensionário em 1619.
442
DARÓZ, 2014, P.33.
443
GUEDES, 1990, P.30
444
WÄTJEN, Hermann. . O Domínio colonial holandês no Brasil. Recife: CEPE, 2004, P.72
445
. NASCIMENTO, 2004, P.29
base para lançar os ataques às frotas de prata espanholas e até mesmo saquear um porto
ibérico na Europa, em semelhança ao que ocorreu em Cádiz pelas mãos dos ingleses em 1595.
Por fim, escolheu-se a Bahia, sede do Governo Geral do Brasil, como alvo da invasão à
América portuguesa.
A escolha pela Bahia foi a que melhor reuniu o interesse em readquirir o capital
investido na companhia com o intento político-estratégico na conquista de uma importante
praça no meio do Império Ultramarino Português. A expedição se encontrava pronta para
zarpar dos portos batavos já em fins de 1623. A ideia de que a capital da principal colônia
portuguesa poderia ser alvo de ataques surgiu na corte madrilena desde fins da Trégua dos
Doze Anos. Entretanto, não se pode ver a escolha da Bahia como um ponto em separado da
estratégia neerlandesa. Estava inserida no contexto do Atlântico Sul. A tomada do Brasil não
adiantaria de nada se não se fossem garantidas as possessões portuguesas na costa da África,
as quais garantiriam a mão-de-obra necessária para o fabrico do açúcar nos engenhos446.
Em 1621 foi enviado Diogo de Mendonça Furtado como Governador Geral do Brasil,
e com ele vieram as ordens de fortificar a costa contra possíveis ataques. Em 1622, o
governador ficou em sobreaviso, pois existia o boato de que D. Cristóvão, filho do Prior do
Crato preparava uma invasão contra Salvador com a ajuda de navios neerlandeses e
franceses447. Sustado o boato, restou ao governador aguardar, até que em maio de 1624 a
Armada da WIC aparecesse defronte a cidade de Salvador, iniciando as hostilidades da
Companhia em território do Estado do Brasil.
Após uma rápida peleja, os portugueses abandonam a cidade e os neerlandeses se
descobrem senhores de Salvador. No entanto, a Companhia só conseguiu permanecer em
posse da cidade até o ano seguinte, 1625. A reação de Madri e de Lisboa foi rápida e decisiva,
reunindo uma grande armada para reconquistar a capital do Estado do Brasil sob o comando
de Dom Fadrique de Toledo. O Reino de Portugal reuniu uma armada com 22 navios, sendo 4
destes grandes galeões. Os demais reinos espanhóis reuniram uma armada com 30 navios,
sendo 21 destes galeões. Vale ressaltar que da armada conjunta, cerca de 34% do efetivo
militar e 42% dos navios provinha da Coroa de Portugal, o restante vindo da Coroa de
Espanha e seus demais territórios incorporados. Com o cerco realizado pelas tropas locais
primeiramente e depois pela Armada luso-espanhola, pouco a guarnição da cidade pode fazer
a não ser se render.
No ano de 1629, a Companhia das Índias Ocidentais iniciou os preparativos para uma
nova expedição contra os territórios de Filipe IV na América do Sul. Mais uma vez os Heeren
XIX decidiram por invadir o Brasil. Dessa vez, a cidade de Salvador fora logo escanteada por

446
NASCIMENTO, 2004, P.50
447
LENK, Wolfgang. Guerra e Pacto Colonial – A Bahia contra o Brasil Holandês (1624-1654); São Paulo:
Alameda, 2013. P.36
estar melhor fortificada que quando da expedição de 1624 , além de que a produção açucareira
na Bahia ainda estava se recompondo dos ataques feitos pela companhia nos anos anteriores.
Descartada Salvador, o maior polo econômico açucareiro do Brasil estava localizado na
capitania de Pernambuco, que logo foi escolhida pelo conselho diretor como o objetivo da
próxima expedição da WIC. Além de sua primazia econômica, a capitania de Pernambuco
ainda contava com um bom posicionamento estratégico e geográfico, estando a uma menor
distância tanto da Europa como da África, encurtando o tempo de demora entre viagens para a
metrópole ou em busca de escravos. Pernambuco ainda seria o melhor ponto para que as
armadas da companhia pudessem dominar a navegação no Atlântico Sul. Em fevereiro de
1630 a esquadra da Companhia chega a Pernambuco e conquista rapidamente Recife e Olinda,
dominando os fortes da localidade, mas não conseguindo sair dos limites da cidade, como
ocorreu em Salvador.
Durante o período que separou a invasão e reconquista de Salvador no biênio de 1624-
1625 e a invasão a capitania de Pernambuco em 1630, a monarquia dos Austrias Espanhóis
sofreu grandes revezes. Além de se encontrar em maiores conflitos do que na primeira
situação, agora os cofres Habsburgos estavam mais exauridos com a política externa adotada
pela Corte de Madri. Essa é uma das razões pela qual Filipe IV preparou rapidamente uma
grande armada de restauração a cidade de Salvador, mas não pode ajudar com o auxilio
necessário a capitania de Pernambuco quando de sua invasão. A armada de socorro enviada
pelo monarca Habsburgo seria comandada por D. Antonio de Oquendo e continha 27 navios,
sendo 17 destes galeões e apenas 5 destes eram portugueses. A participação portuguesa na
armada de Oquendo é menor ainda que na Armada de D. Fadrique de Toledo: cerca de 40%
dos navios eram da coroa portuguesa, 32% do efetivo militar e 25% da artilharia que veio
socorrer Pernambuco. Tambem diferente da Armada de Salvador, a de Oquendo não foi bem
sucedida e não conseguiu desalojar os neerlandeses dos territórios conquistados.
Gostaria de ressaltar aqui o importante papel que a Coroa espanhola teve nas tentativas
de retomada dos territórios portugueses na América. A maior participação de navios e
recursos dos reinos espanhóis nas tentativas de reconquista do território (mesmo sem ter essa
obrigação, como ficou claro nas Cortes de Tomar) evidenciam o quanto o monarca Habsburgo
achava importante a derrota das forças invasoras no Brasil, indo contra a corrente por muito
defendida da negligencia deste com os territórios da coroa lusitana. Outra particularidade que
mostra como a invasão da WIC no Recife teve impacto em Madri foi a decisão de enviar a
armada de Oquendo mesmo desguarnecendo o litoral ibérico, tendo em vista que a rapidez
com que se chegassem reforços era crucial para um quadro de vitória ou derrota.

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BRAUDEL, Fernand. Na Europa, as economias antigas de dominação urbana: Amsterdam.
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Paul. Ascensão e Queda das grandes potências: transformação econômica e conflito militar
de 1500 a 2000. Rio de Janeiro: Elsevier, 1989
LENK, Wolfgang. Guerra e Pacto Colonial – A Bahia contra o Brasil Holandês (1624-1654).
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NASCIMENTO, Rômulo Luiz Xavier do. O ‘Desconforto da go erna ilidade’: aspectos da
administração no Brasil holandês (1630-1644). Tese de Doutoramento. Rio de Janeiro: UFF,
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portos e o atlântico no Brasil Holandês. In: VIEIRA, Hugo Coelho; GALVÃO, Nara Neves
Pires; SILVA, Leonardo Dantas (Org.). Brasil Holandês: História, memória e patrimônio
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SCHAUB, Jean-Frédéric. Portugal na Monarquia Hispânica. (1580-1640). Lisboa: Livros
Horizonte, 2001
WÄTJEN, Hermann. O Domínio Colonial Holandês no Brasil. Recife: CEPE, 2004
AS RELAÇÕES CIVIS-MILITARES NO BRASIL DURANTE A PRIMEIRA
GUERRA MUNDIAL (1914-1918)

Valterian Braga Mendonça


Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal Fluminense

Orientador: Professor Doutor Eurico de Lima Figueiredo

Introdução
A Primeira Guerra Mundial conteve e sintetizou significativas mudanças políticas,
sociais, econômicas, culturais, tecnológicas, militares e ideológicas, impactando de imediato
os países que dela participaram diretamente e acabaram por influenciar as demais sociedades
do mundo civilizado, em maior ou menor grau, em função da situação particular de cada uma
delas. Decorridos cem anos de sua eclosão, a Primeira Guerra Mundial começa a ser vista
como o marco inicial de um novo século na História, se não medido cronologicamente, mas
demarcado por acontecimentos significativos para os destinos da Humanidade
(HOBSBAWM, 1995, p. 15).
Salta aos olhos o fato de a Primeira Guerra Mundial, contrariamente ao que se constata
com relação à Segunda Grande Guerra, não ter ainda despertado a devida atenção do meio
acadêmico brasileiro, tal a carência de estudos específicos sobre este tema e sobre seus
reflexos na vida nacional. Acresça-se ainda, em oposição ao que ocorre em outros países, que
a bibliografia brasileira a este respeito é bastante rarefeita, especialmente se levarmos em
conta que o Brasil foi o único país da América Latina a dela participar efetivamente, dentro de
suas modestas possibilidades. 448
Este artigo aborda as relações entre civis e militares no Brasil no período da Primeira
Grande Guerra (19114-1918) a partir de dois importantes jornais da época, com base nas
posições adotadas e nas ações empreendidas, naquela ocasião, por alguns renomados
intelectuais. Trata-se, por um lado, de examinar os editoriais sobre o assunto na imprensa do
então Distrito Federal (que correspondia mais ou menos ao atual município do Rio de Janeiro,
no Estado do mesmo nome) e na cidade de São Paulo. Por outro, trata-se também de
investigar o embate entre as ideias de preeminentes intelectuais, através de textos publicados
nessa mesma mídia, no período em questão.

448
Em termos militares, o Brasil prestou a seguinte contribuição ao esforço aliado: instalação e operação, em
Paris, de um hospital para tratamento de feridos de guerra; envio à Inglaterra, para treinamento e patrulhamento
aéreo do Canal da Mancha, de uma equipe de 10 pilotos de aviões; estágio e combate, junto ao Exército Francês,
de um grupo de oficiais brasileiros; alistamento de voluntários para lutar pelos Aliados; o envio, em auxílio à
Marinha Inglesa, para a Costa Ocidental Africana, de uma pequena frota, a Divisão Naval em Operações de
Guerra (DNOG).
A originalidade deste trabalho consiste em captar como os civis perceberam os militares
no que tange ao exercício de sua função constitucional, mormente em tempos de guerra, longe
do estigma de sua interferência na política interna. Nosso objeto de estudo, portanto, tem
como universo temporal o período que vai de meados de 1914, ano em que se iniciou a
Primeira Guerra Mundial, até o final do ano de 1918, quando de seu término. O universo
espacial compreende a cidade do Rio de Janeiro e a cidade de São Paulo onde, na época, se
concentravam a edição dos principais jornais e onde residiam os mais preeminentes
intelectuais, os mais poderosos homens de negóciose e os mais influentes políticos do País.
O objetivo principal deste trabalho é analisar, no que tange às forças armadas, o papel
dos intelectuais e da mídia impressa na tomada de decisões concernentes aos destinos do País
e suas pretensões de projeção internacional. Quer-se mostrar que, na época focalizada, foi
acentuado o envolvimento dos jornais e dos intelectuais com as questões relativas à defesa
nacional, à política externa brasileira e com o papel a ser nela desempenhado por nossas
forças armadas. Defende-se que as discussões protagonizadas por civis se constituíram em
fator preponderante para a adoção de medidas modernizadoras das instituições militares
brasileiras, vistas como instrumento necessário para atender às exigências da política externa
do País, cujo intuito consistia em projetar o Brasil na nova ordem internacional a ser definida
nos acordos de paz subsequentes àquela Grande Guerra.

Desenvolvimento
Nas primeiras décadas do século XX, o Brasil buscava se modernizar. Havia pouco o
País mudara do regime monárquico, tido como retrógrado, para o regime republicano. Ordem
e Progresso era o novo lema. Nossas capitais, com a construção de praças e teatros, com a
abertura de boulevards, se afrancesavam. Cultuava-se o hábito de frequentar
cinematógraphos, cafés e confeitarias, privilegiava-se a literatura e a indumentária da França
e da Inglaterra. Vivíamos a nossa Belle Époque.
Mas sob esta aparência de modernização, o Brasil enfrentava, amiúde, crises
financeiras, instabilidade politica e econômica com a sufocação de revoltas no campo e de
rebeliões nas cidades. Vigorava a “política do café com leite” para a escolha do presidente da
República, combinada com a “política dos governadores” a nível estadual e, no âmbito
municipal, praticava-se o “coronelismo” com seus “currais eleitorais” e “votos de cabresto”
em “eleições a bico de pena”. A desigual sociedade brasileira constituía-se de uma pequena
elite agro-industrial, uma incipiente classe média urbana, uma nascente classe operária e de
uma grande massa de desvalidos vivendo, em sua maioria, no campo. A economia baseava-se
principalmente na exportação de café. Metaforicamente, assevera o Professor Doutor Eurico
de Lima Figueiredo: “O Brasil da República Velha era uma imensa fazenda”.
A imprensa era o único meio de comunicação de massa e, em referência ao jornalismo
que aqui se praticava, Lima Barreto, na sua obra Recordações do Escrivão Isaías Caminha
(Rio de Janeiro: Ática, 1995), dizia tratar-se de um poder sutil, desprovido “dos mais
rudimentares sentimentos de justiça e honestidade”, destinado a dominar as massas, conduzir
governos e obter “lucros atrozes”. Em acréscimo, denunciava que, por trás das empresas
jornalísticas brasileiras, estavam os estrangeiros, “quase sempre indeferentes às nossas
aspirações”. (BARRETO, 1995, p. 51)
Adiante, dizia ele: “Era a Imprensa [...] o quarto poder fora da Constituição! [...] fazia e
desfazia ministros, demitia diretores, julgava juízes [...]. Participar de uma redação de jornal
era algo extraordinário, superior, acima das forças comuns dos mortais [...]”. Já com relação
ao prestígio que havia em fazer parte de um jornal, Lima Barreto afirmava que ser despedido
era o grande terror de todos quantos ali trabalhavam, porque temiam perder “a honra suprema
de pertencer ao jornalismo. Eles não valiam por si; o jornal é que lhes dava brilho”
(BARRETO, 1995, p. 65, 66, 82). Os mais destacados profissionais de então (advogados,
médicos, engenheiros, literatos, políticos e militares) se valiam dos jornais para divulgarem
suas ideias e suas obras. Escrever em jornais era uma distinção e um meio de ascensão social.
A ocorrência da Guerra da Europa (1914-1918), como era chamada até então a Primeira
Guerra Mundial, despertou intenso debate na imprensa internacional e, por conseguinte, na
brasileira. Aqui, esta conflagração ganhou mais destaque nos jornais do Rio de Janeiro e de
São Paulo do que a própria Guerra do Contestado (1912-1916), travada na região limítrofe aos
Estados do Paraná e de Santa Catarina, e do que a Seca do Quinze (1915), no Nordeste do
país, ambas vitimando milhares de patrícios. Na Capital Federal, homens notáveis e políticos
influentes, tomaram partido, em sua grande maioria, pela causa aliada na guerra. 449 Em seu
benefício, fundaram-se agremiações, ligas e clubes onde se faziam discursos, cantavam-se
hinos e canções, declamavam-se poemas e promoviam-se campanhas para a arrecadação de
contribuições e donativos.
A franca predileção pela causa aliada se explica em razão da longa influência cultural
francesa na formação da intelectualidade brasileira. Os poucos defensores da causa alemã
eram pejorativamente chamados de “germanófilos”. Estes, em contrapartida, tratavam os
glorificadores da França e seus seguidores de “galomaníacos” ou “aliadófilos”. Ambos, em
maior ou menor grau, publicaram, na mídia impressa, suas opiniões quanto ao conflito
europeu e seus reflexos na vida nacional.450

449
As partes em luta eram a Tríplice Aliança (Império Alemão, Império Áustro-Húngaro e Império Turco-
Otomano), cujos membros eram chamados de “Impérios Centrais”, e a Tríplice Entente (França, Inglaterra e
Império Russo), conhecidos genericamente como “aliados”. Mais tarde, a Bulgária aderiu aos Impérios Centrais
enquanto a Itália, os Estados Unidos da Améica e diversos outros países, dentre estes o Brasil, foram
gradativamente aderindo à causa aliada.
450
Foram notáveis admiradores da França, dentre muitos outros: Rui Barbosa (senador, advogado e orador),
Olavo Bilac (jornalista e poeta), Coelho Neto (político e escritor), Graça Aranha (escritor e diplomata), Afrânio
Com as grandes potências em guerra, o Brasil sofrou pressões políticas, financeiras e
diplomáticas, além de restrições comerciais por parte dos aliados. 451 Sua neutralidade lhe
custava caro, enquanto aliar-se aos prováveis vencedores lhe renderia dividendos. Previa-se
que o conflito europeu alteraria a ordem internacional, razão pela qual o Brasil vislumbrou se
posicionar como protagonista no cenário mundial a partir dos acordos de paz a serem
firmados no pós-guerra (VINHOSA, 1990, p. 122 e 190). Para tanto, era indispensável que se
pagasse o “tributo de dor e de luto”, sem o qual seria vexaminoso ao País, aos olhos do
mundo, deixar dúvidas quanto ao “valor moral e militar de seus filhos”, que se eximiam de
colaborar na luta, mas se faziam presentes à mesa de negociações em busca de recompensas
(CALÓGERAS, 1933, p. 17, 18). Esta situação reacendeu o debate quanto às reais condições
de nossas forças armadas, ocasião em que suas evidentes fragilidades exigiram urgentes
medidas reparadoras.
A decisão de ignorar o bloqueio submarino decretado pelo Império Alemão em resposta
ao bloqueio naval estabelecido pelos Aliados culminou com o afundamento de navios
mercantes brasileiros nos mares da Europa, episódios cruciais para o acirramento da opinião
pública em favor da entrada do Brasil na conflagração452. Nossa contribuição, além da militar,
ainda que modesta e a despeito de nossas limitadas capacidades, se deu mediante expressivo
esforço em diversos campos.453 A imprensa, nesse contexto, tornou-se o veículo propício para
tornar público o entrelaçamento de ideias e de interesses de políticos, empresários, militares e
de intelectuais, processado em discussões nas redações dos jornais, nos encontros em clubes,
associações e em eventos sociais. Neste sentido, as ideias e as atuações de Rui Barbosa (1849-
1923) e de Olavo Bilac (1865-1918), em particular, merecem ser examinadas,
comparativamente às atuações de outros autores de prestígio, como Pandiá Calógeras (1870-
1934) e Oliveira Lima (1867-1928).
Rui Barbosa de Oliveira (jurista, senador, escritor e orador) foi intelectual de notória
atuação pública, destacando-se também, durante o período em estudo, como presidente de

Peixoto (médico, político e escritor), Félix Pacheco (político, poeta e jornalista), Pedro Lessa (ministro do STF).
Entre os poucos que se posicionaram a favor da Alemanha estavam Dunshee de Abranches (político, jornalista,
romancista), Capistrano de Abreu (historiador) e Manuel Said Ali (linguista, botânico, zoólogo, geógrafo,
professor). Como intelectuais independentes, mas críticos aos excessos dos defensores da causa aliada, podemos
citar Monteiro Lobato (advogado e escritor), Assis Chateaubriand (advogado, professor e jornalista), Manuel de
Oliveira Lima (diplomata, historiador e escritor) e Alberto Torres (bacharel em direito, político e jornalista).
(Vinhosa, 1990, p. 30 a 32).
451
Dentre estas, destacam-se: criação das black lists, segundo as quais as empresas nacionais ficavam proibidas
de comercializar com empresas alemãs; fechamento de bancos e de empresas da Alemanha no Brasil; restrições
ao comércio de café; acolhimento e manutenção de belonaves inglesas em portos brasileiros, desrespeitando a
situação de neutralidade adotada pelo governo brasileiro.
452
Foram afundados os seguintes mercantes brasileiros, nas seguintes datas: Paraná (04/04/1917) e Tijuca
(20/05/1917); Lapa (22/05/1917); Macau (18/10/1917).
453
Dentre tais contribuições destacam-se: apoio político, diplomático e popular à causa aliada (com moções,
declarações e manifestações diversas); o fornecimento de gêneros de primeira necessidade (alimentos e
minérios); por afretamento à França de mercantes alemães apreendidos em nossos portos.
honra da Liga Brasileira pelos Aliados e da Liga de Defesa Nacional. 454 Seus discursos
proferidos na tribuna do Senado e suas conferências em teatros e auditórios alcançaram ampla
divulgação na impensa, principalmente no Jornal do Commercio.
O jornalista, contista, cronista e poeta Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac
empenhou-se numa “cruzada” pelas principais cidades do País e na imprensa em favor do
soerguimento cívico e moral dos jovens a partir da valorização social do serviço militar
obrigatório. Segundo ele, o material humano era a substância que dava vida às instituições
nacionais e não se teria uma nação forte apenas com forças armadas bem equipadas. Seus
soldados não poderiam ser provenientes da escória da sociedade.
O historiador, engenheiro, geólogo e político João Pandiá Calógeras, atendendo pedido
de Rodrigues Alves (1848-1919), eleito para um segundo mandato presidencial, produziu
relatório contendo impactantes observações sobre as instituições nacionais e sobre o governo.
Seus comentários e suas propostas se encontram no livro Problemas de Administração (São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933), evidenciando a necessidade de entendimento
entre civis e militares.
Manoel de Oliveira Lima, historiador e diplomata aposentado, escreveu, a partir de
Londres, a coluna “Ecos da Guerra” para o jornal O Estado de São Paulo cujo diretor, Júlio
de Mesquita (1862-1927), produziu, de Paris, sobre o referido conflito, uma série de artigos
semanais que hoje perfazem quatro volumes, um para cada ano da luta na Europa. A sólida
argumentação de Oliveira Lima se contrapunha ao posicionamento emocional dos mais
notáveis defensores da causa aliada, o que gerou para si constrangimentos e perseguições.
A relevância do papel de intelectuais por meio da mídia impressa quanto ao
posicionamento do Brasil na Grande Guerra se evidenciou com a propagação de ideias e com
o estímulo ao debate. Neste processo, tornou a emergir a discussão quanto à necessidade de
modernização das forças armadas nacionais com vistas à defesa do País e para respaldo à sua
política externa, cenário por excelência de medição de poder entre nações na definição dos
destinos dos povos. Estes debates repercutiram no meio militar atraindo a atenção dos
redatores da Revista A Defesa Nacional. Estes jovens oficiais do Exército Brasileiro,
provenientes de intercâmbio bienal junto ao Exército Alemão, sentiram-se estimulados a
também participar do debate com suas ideias e opiniões escrevendo sob pseudônimo para
diversos jornais da Capital Federal. 455

454
A Liga de Defesa Nacional, fundada por iniciativa do marechal José Caetano de Faria, com auxílio do capitão
do Exército Gregório da Fonseca, amigo de Olavo Bilac, destinava-se, principalmente, a estimular a implantação
do serviço militar obrigatório. A Liga Brasileira pelos Aliados, fundada por iniciativa de Augusto de Araújo
Gonçalves (professor, tenente da reserva da Marinha) e de Elyseu Fonseca Montarroyos (capitão do Exército),
tinha por objetivo promover e apoiar a causa aliada no Brasil.
455
O Exército da Turquia vinha passando por fase de renovação, sob iniciativa de oficiais que tinham feito
estágio junto ao Exército da Alemanha. Os oficiais intercambistas brasileiros que almejavam para o Exército
nacional idêntica revitalização foram, por isso, denominados de “jovens turcos”.
A interação entre políticos, jornalistas, intelectuais e militares, naquela época, deu-se em
diversas ocasiões (nas redações de jornais, em clubes, associações, eventos sociais,
solenidades), de diversas maneiras (por relações familiares, profissionais, de amizade, de
parentesco). Vejamos algumas particulares: Augusto de Araújo Gonçalves e Elyseu
Montarroyos, idealizadores e fundadores da Liga Brasileira pelos Aliados, eram militares
(aquele, tenente da reserva da Marinha; este, capitão da ativa do Exército). Graça Aranha,
outro ativo colaborador da Liga, era diplomata aposentado e sogro do tenente-coronel do
Exército Augusto Tasso Fragoso, que assessorava o presidente da Repúlbica. Olavo Bilac,
arauto do serviço militar e líder da Liga de Defesa Nacional, era filho de oficial-médico do
Exército e amigo do capitão Gregório da Fonseca, assistente do marechal José Caetano de
Faria, ministro da Guerra. Rui Barbosa, presidente de honra de ambas as Ligas, tinha um filho
oficial de Marinha e outro como dos primeiros voluntários de Tiro de Guerra. O chanceler
Lauro Müller era general do Exército e membro da Academia Brasileira de Letras, onde
dialogava com muitos escritores e jornalistas. Muitos destes, juntamente com o ministro Pedro
Lessa, do STF, eram membros dos Tiros de Guerra cujos treinos se davam sob orientação e
instrução de “jovens turcos”, que publicavam artigos na imprensa sob pseudônimo.
A política externa brasileira em relação à Primeira Guerra Mundial pode ser
caracterizada pelas seguintes etapas: neutralidade; rompimento de relações diplomáticas com
a Alemanha; revogação da neutralidade (inicialmente em favor dos Estados Unidos da
América e, mais tarde, em favor das demais potências aliadas); beligerância; e participação na
conferência de paz (VINHOSA, 1990, p. 14). A imprensa cobriu todas estas etapas com
crescente interesse até nossa declaração de beligerância, registrando-se acentuada queda nos
ânimos durante o período da participação militar brasileira no conflito, mas revitalizando-se
durante as negociações na Conferência de Paz.
Nota-se que o governo brasileiro, com relação à referida guerra, se demorou em cada
fase da sua política externa, mas sua transição de um estágio para outro se deu de maneira
apressada. Estas mudanças alegam-se, ocorreram em razão de afundamentos de navios
mercantes nacionais, sinistros cujas averiguações seriam, normalmente, demoradas. Acresce-
se que destas apurações sumárias adviriam decisões envolvendo elevados interesses nacionais,
mormente quando, no caso específico das relações entre Brasil e Alemanha, já não havia
representações diplomáticas de um país no outro, o que dificultava e retardava as trocas de
comunicados.456 Para o diplomata aposentado Oliveira Lima, seria imperdoável adotar uma
postura precipitada diante da possibilidade de ingressar numa guerra, quando ainda

456
As comunicações entre Brasil e Alemanha se faziam por intermédio de legações diplomáticas de nações
amigas. A Legação da Suíça em Berlim representava os interesses brasileiros na Alemanha, enquanto a Legação
dos Países Baixos no Rio de Janeiro representava os interesses alemães no Brasil. (VINHOSA, 1990, p.110)
dispúnhamos de recursos em favor da paz. Ele, que elogiara a postura neutra e pacifista do
chanceler exonerado Lauro Severiano Müller (1863-1926), condenava o belicismo do recém-
empossado chanceler Nilo Procópio Peçanha (1867-1924).
Lauro Müller (militar, político e diplomata), contrário à entrada do Brasil num conflito
que, segundo suas convicções, não nos dizia respeito, deixara o Ministério das Relações
Exteriores em 03 de maio de 1917, sob pressão da imprensa e da opinião pública. Dois dias
após, assumiu a chancelaria o advogado e político Nilo Peçanha, representante dos interesses
dos cafeicultores e tendo por conselheiro Rui Barbosa. O recém-empossado chanceler
declarou abertamente que buscaria o melhor entendimento com os Estados Unidos da
América, deixando transparecer que a entrada do Brasil na Guerra da Europa era meramente
uma questão de tempo e de ocasião.
Estes aspectos não eram discutidos nos jornais de forma aberta e transparente, mas
apenas mencionados. As análises e críticas ficavam a cargo de um ou outro cidadão comum,
de um intelectual ou “germanófilo”, às vezes em publicações custeadas pelo próprio autor. A
tônica do debate era a “luta do bem contra o mal, do direito contra a injustiça e da civilização
contra a barbárie”, como dizia Rui Barbosa, replicando o discurso dominante na imprensa
aliada. Tratava-se de confronto pela conquista de corações, não de mentes; de vencer pela
emoção, não de convencer pela razão; de influenciar pela pressão da maioria, não de deixar
espaço para a liberdade de escolha individual. Neste embate, no Brasil, Rui Barbosa foi o
grande defensor e propagandista da causa aliada tendo confessado, certa feita: “Quatro anos
há que nesta guerra quase exclusivamente se absorvem meus cuidados” (VIANA FILHO,
1987, p. 407).
O mais retumbante discurso de Rui Barbosa sobre a Grande Guerra foi proferido no
auditório da Faculdade de Direito e Ciências Sociais de Buenos Aires, a 14 de julho de 1916
(não por acaso aniversário da Queda da Bastilha, data magna da História da França).
Escolhido para chefiar a embaixada representativa do Brasil nos festejos do centenário da
Independência da Argentina, que se comemora a 09 de julho, Rui Barbosa, naquela ocasião,
alegando já ter cumprido suas tarefas na referida comissão, fugiu ao tema central de sua
atribuição diplomática e discursou por três horas e meia em alusão à Guerra de Europa. Com o
títulado “O Dever dos Neutros”, Rui se posicionava contrário à postura neutra adotada pelo
governo do Brasil. Segundo ele, a neutralidade, diante da nova realidade do mundo, devia
assumir outro significado: “não cabia neutralidade entre o direito e o crime”. Em sua ótica,
todo o direito e toda a justiça residiam na causa aliada, por isso a única neutralidade
admissível seria aquela que favorecesse aos países da Tríplice Entente.
Suas falas repercutiram longe e por longo tempo com a evidente reprovação do governo
alemão e com a feliz acolhida dos governos aliados, que reproduziram o discurso de Rui em
seus jornais. Oliveira Lima entrou na celeuma em torno deste incidente e defendeu Rui
Barbosa, ao mesmo tempo em que sutilmente o criticava. Dizia ele, inicialmente, confirmando
a tese que o próprio Rui usava em sua defesa, que nosso embaixador não havia cometido uma
gafe, pois não falara como diplomata, mas como jurista. Acrescia que Rui assim o fizera
porque tinha brilho e capacidade para muito mais. Contudo, seu discurso, que fora uma bela
peça de retórica, era falho no conteúdo, pois ia de encontro aos ensinamentos legados pela
História (GOUVÊA, 1976, p. 1279, 1280).
A entrada do Brasil na guerra deu-se a 26 de outubro de 1917, com votação no
Congresso Nacional em regime de urgência. Naquela altura dos acontecimentos, a Alemanha
buscava negociar a paz em separado com os Estados Unidos da América. O Brasil, por sua
demora em se decidir, perderia a oportunidade de se alinhar aos vencedores e de auferir
dividendos políticos e econômicos decorrentes da vitória no conflito. No projeto de lei
apresentado proclamava-se reconhecer que a Alemanha havia iniciado ações belicosas contra
o Brasil e autorizava o Presidente da República a determinar as medidas necessárias ao
preparo do País com vistas ao estado de guerra.
O jornal O Estado de São Paulo, na primeira página de sua edição de 27 de outubro de
1917, apresentou o discurso de Rui Barbosa no Senado no qual dizia: “No projeto estão
envolvidos os mais altos destinos da pátria [...]. [...] o Brasil vai defender-se a si mesmo, vai
defender a sua existência moral e a sua existência política, vai defender a estabilidade do seu
território”. Apesar de não existir nenhuma ameaça ao território nacional nem à existência
moral ou política do Brasil, o projeto foi aprovado por ampla maioria 457. Destacou o
periódico: “A aprovação do projeto provocou vibrante manifestação de entusiasmo, que se
prolongou a por mais de dez minutos, num rumor de palmas, vivas, gritos delirantes de todos
os lados e som de campainhas com que a mesa pretendia restabelecer o silêncio”.
Olavo Bilac, por esta época, já era o grande mensageiro da revitalização moral do Brasil
a partir da caserna, com a implantação do serviço militar obrigatório. Desde a Guerra do
Paraguai (1865-1870), o Brasil se ressentia da falta de um sistema eficiente de recrutamento
para suas forças armadas. Já em 1872 o governo imperial aprovara lei a este respeito que, no
entanto, não tinha vingado. Nova lei foi sancionada em 1908, mas a baixa popularidade da
medida a tornou letra morta. Somente no contexto da Primeira Guerra Mundial, o marechal
José Caetano de Faria (1855-1936) obteve o necessário apoio político e a boa acolhida
popular para a criação da Liga de Defesa Nacional, na simbólica data de 07 de setembro de
1916 (aniversário da Independência do Brasil). Multiplicaram-se os Tiros de Guerra por todo
o País e a lei do serviço militar foi, por fim, implatada com o primeiro sorteio dos conscritos

457
Apurada a votação, contabilizaram-se:149 votos contra um, com três abstenções, na Câmara dos Deputados;
40 votos a favor e nenhum contra, com duas abstenções, no Senado Federal.
se dando três meses mais tarde. Rui Barbosa, que sempre se mostrara ferrenho opositor do
serviço militar obrigatório, desta feita, diante da fervorosa exaltação de patriotismo que
dominava o país, aceitou a presidência de honra da referida Liga.
Até então, apenas a escória da sociedade acorria ao serviço das armas. Para servirem
como soldados e marinheiros, jovens eram apanhados “a pau e corda”, como se dizia à época,
sendo estes, muitas vezes, delinquentes recolhidos nas cadeias públicas dos grandes centros
urbanos, desamparados em busca de “um meio de vida” ou ainda de garotos entregues pelos
próprios pais nas portas dos quarteis, quando não os podiam sustentar ou desistiam de
discipliná-los. Este estado de coisas, com os reflexos da Grande Guerra no Brasil, em curto
tempo se alterou.
No diapasão da campanha de Bilac, fortalecia-se o lema mens sana in corpore sano:
intensificou-se a prática de ginástica nas escolas, aumentou o número de praticantes de
esportes, disputaram-se torneios desportivos entre as forças armadas, estimularam-se
competições entre clubes. Crianças e adolescentes aderiram ao escotismo, que estimulava as
atividades ao ar livre, hábitos de higiene, disciplina, prática de boas ações, respeito a valores
morais e culto aos símbolos pátrios. Moças buscavam a Cruz Vermelha Brasileira para fazer
cursos de enfermagem e de primeiros socorros. Estudantes acorriam como voluntários aos
quartéis para a prestação do serviço militar e aqueles cujos encargos ou compromissos os
tornavam menos disponíveis buscavam a instrução militar básica nos Tiros de Guerra458. Os
mais idosos aderiam aos clubes de tiro.
Na ótica de nossas lideranças políticas, a criação da Liga das Nações, da qual o Brasil
seria membro-fundador, dar-nos-ia a oportunidade de ombrear com as grandes potências, o
que significaria a abertura de novos mercados com a perspectiva de expansão dos negócios.
Esse ambicioso projeto não seria viável sem a estreita relação entre civis e militares,
respaldada pela sociedade, chamada a participar do processo de decisão política por meio de
manifestações nas ruas sob influência dos intelectuais que se valeram da imprensa como
veículo de propagação de suas ideias e iniciativas.

Conclusão
A Guerra da Europa (1914-1918), desde o princípio, despertou paixões entre os
intelectuais brasileiros, que se posicionaram, em sua expressiva maioria, a favor da causa
aliada. Por meio da imprensa, os periodistas influenciaram a opinião pública, promovendo

458
Os Tiros de Guerra, estabelecidos mediante convênios entre as prefeituras municipais e o Exército, se
destinavam a instruir jovens estudantes e trabalhadores para a defesa inicial do território nacional. Seu
treinamento consistia em instruções militares básicas ao longo de 10 meses, durante apenas três horas diárias em
quatro dias da semana.
passeatas, comícios e manifestações, em apoio às decisões políticas com vistas ao
envolvimento do Brasil no conflito.
O debate entre intelectuais sobre a Grande Guerra trouxe a política internacional para a
rotina de nossos centros urbanos, onde o assunto tornou-se tema central em conversas nos
cafés, nas confeitarias, nas praças e nos bondes. Rui Barbosa foi o arauto da causa aliada e
Olavo Bilac, o profeta do soerguimento cívico do Brasil; este atuando pela Liga de Defesa
Nacional e aquele, em prol da Liga Brasileira pelos Aliados. Rui apregoava o alinhamento do
Brasil em favor dos aliados na luta do direito, do bem e da civilização contra a injustiça, o mal
e a barbárie. Bilac pugnava pela preparação moral dos jovens por meio da prestação do
serviço militar.
O governo brasileiro, seduzido pelos Estados Unidos da América e pressionado pela
França e pela Inglaterra, deixou-se gradativamente envolver no conflito europeu. Participamos
da Primeira Guerra Mundial ao lado dos aliados prestando apoio político, diplomático, moral,
comercial e militar diante da perspectiva de se inserir na nova ordem mundial a ser
estabelecida nas conferências de paz. A política externa que se pretendia praticar dali por
diante requeriria, daquele atrasado Brasil, o respaldo de uma forte expressão militar, aspecto
para o qual despertaram a grande imprensa, o empresariado, os cafeicultores, as lideranças
políticas e os mais proeminentes intelectuais da época. Há de se realçar, todavia, o
descompasso entre as idealizações do povo, as pretensões políticas dos governantes, a retórica
dos intelectuais e as medidas exequíveis diante da realidade.
A Primeira Guerra Mundial foi o fenômeno desencadeador de um processo ímpar na
História da República Brasileira: a aproximação e a interação nas atividades políticas,
profissionais, sociais e desportivas, em diferentes graus, entre civis e militares das diferentes
camadas da sociedade. As forças armadas, por um curto período, se distanciaram da política
interna do País e se voltaram para sua preparação profissional com vistas às suas destinações
constitucionais. Governo e sociedade passaram a pensar e discutir, novamente, temas
relacionados à defesa nacional.
Todo esse processo de soerguimento do país, mormente na sua expressão militar em
respaldo ao poder político e diplomático, se desenvolveu com o debate entre intelectuais por
meio da mídia, que mobilizou a opinião pública em torno do envolvimento do Brasil no jogo
de interesses das Grandes Potências. A imprensa trouxe informação à sociedade e os
intelectuais, com suas ideias e opiniões, estimularam o debate e mobilizaram a sociedade para
a participação nos destinos do País dando nova feição, por certo período, às relações entre
civis e militares no Brasil.

Bibliografia
BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Ática, 1995. In: “A
Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro”. Disponível em http://www.bibvirt.futuro.usp.br.
Acesso em 23 de maio de 2015.
GOUVÊA, Fernando da Cruz. Oliveira Lima: uma biografia. v. 3. Recife: Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco, 1976.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: O breve século XX (1914-1991). São Paulo:
Schwarcz, 1995.
Jornal O Estado de São Paulo, edição de 27 de outubro de 1917.
VIANA FILHO, Luís. A vida de Rui Barbosa. Rio Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
VINHOSA, Francisco Luiz Teixeira. O Brasil e a Primeira Guerra Mundial. Rio de Janeiro:
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1990.

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