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III Encontro Nacional do Núcleo de Estudos do Mundo Atlântico (NEMAt)

I Encontro Nacional do Núcleo de Estudos de Impérios Coloniais (NEIC)

XVI-XIX

ANAIS
ELETRÔNICOS
III Encontro Nacional do Núcleo de Estudos do Mundo Atlântico (NEMAt)
I Encontro Nacional do Núcleo de Estudos de Impérios Coloniais (NEIC)

XVI-XIX

ANAIS
ELETRÔNICOS
12 a 14 de novembro de 2018
Universidade Federal de
Pernambuco
Campus Recife
III Encontro Nacional do Núcleo de Estudos do Mundo Atlântico (NEMAt)
I Encontro Nacional do Núcleo de Estudos de Impérios Coloniais (NEIC)

Impérios Atlânticos e suas Dinâmicas Históricas, séculos XVI-XIX.

Organização e Projeto
Paulo Fillipy de Souza Conti

Comissão Organizadora
Élida Nathalia Olimpio da Silva (Graduanda em História UFPE)
George Félix Cabral de Souza (UFPE)
Iviana Izabel Bezerra de Lira (Mestranda PGH-UFRPE)
Jeannie da Silva Menezes (UFRPE)
Jeffrey Aislan de Souza da Silva (Doutorando PPGH-UFPE)
Jéssica Maria Silva de Menezes (Mestranda PGH-UFRPE)
João Henrique Pereira dos Santos (Mestrando PPGH-UFPE)
Luanna Maria Ventura dos Santos Oliveira (Doutoranda PPGH-UFPE)
Moreno Elli (Mestrando PGH-UFRPE)
Paulo Fillipy de Souza Conti (Doutorando PPGH-UFPE)
Suely C. Cordeiro de Almeida (UFRPE)
Victor Hugo Abril (UFRPE)
Wildson Félix Roque da Silva (Mestrando PGH-UFRPE)

Comissão Científica
Bruno Martins Boto Leite (UFRPE)
Bruno Romero Ferreira Miranda (UFRPE)
George Félix Cabral de Souza (UFPE)
Gustavo Acioli Lopes (UFRPE)
Jeannie da Silva Menezes (UFRPE)
Marcus Joaquim Maciel de Carvalho (UFPE)
Maria Emília Vasconcelos dos Santos (UFRPE)
Mariana Albuquerque Dantas (UFRPE)
Suely C. Cordeiro de Almeida (UFRPE)
Victor Hugo Abril (UFRPE)
Virgínia M. Almoêdo de Assis (UFPE)
Catalogação na fonte:
Bibliotecária Kalina Ligia França da Silva, CRB4-1408

E56i Encontro do Núcleo de Estudos do Mundo Atlântico (3.:


2018 nov. 12-14: Recife, PE). Impérios atlânticos e suas dinâmicas
históricas, séculos XVI-XIX: Anais Eletrônicos [recurso eletrônico] /
Organização: Paulo Fillipy de Souza Conti. – Recife: Ed. UFPE, 2019.

III Encontro Nacional do Núcleo de Estudos do Mundo Atlântico


(NEMAt) e I Encontro Nacional do Núcleo de Estudos Impérios
Coloniais (NEIC).

Inclui referências.
ISBN 978-85-415-1093-6 (online)

1. História – Congressos. 2. Brasil – História – Congressos. 3.


América Latina – História – Congressos. I. Encontro Nacional do
Núcleo de Estudos Impérios Coloniais. II. Conti, Paulo Fillipy de Souza
(Org.). III. Título.
907 CDD (23.ed.) UFPE (BC2019-007)
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 11

PARTE I: ROTAS ATLÂNTICAS: COMÉRCIO, FISCALIDADE, DESCAMINHOS E


AGENTES. 13

O CONTRATO DO DIREITO DOS ESCRAVOS QUE DESCIAM DE PERNAMBUCO


PARA AS MINAS DE JERÔNIMO LOBO GUIMARÃES (1725-1728).

Luanna Maria Ventura Dos Santos Oliveira 13

MATIAS SOARES TAVEIRA: UM SENHOR COMERCIANTE DE ESCRAVOS NA


PERIFERIA DO TRÁFICO ATLÂNTICO.

Matheus Silveira Guimarães 26

TRABALHADORES DO MAR: RECRUTAMENTO PARA AS FAINAS DA MAREAÇÃO


NA CAPITANIA DE PERNAMBUCO, SÉCULO XVIII.

Wildson Félix Roque da Silva 42

“DO CAOS QUE SE EXPERIMENTA NESTA PRAÇA”: A ATUAÇÃO DE


ATRAVESSADORES NO COMÉRCIO E OS EFEITOS NO ABASTECIMENTO DA
CIDADE DO RECIFE (SÉC. XVIII).
Mateus Bernardo Galvão Couto 55

OS TÊXTEIS IMPORTADOS ENTRE OS CENTRO-AFRICANOS (SÉCULOS XVII-


XVIII).

Fabrício Leal Novaes 64

PARTE II: POLÍTICA E GOVERNANÇA NA AMÉRICA COLONIAL. 77

“QUE A DURAÇÃO DA SUA AUGUSTA VIDA CHEGUE A IGUALAR A MESMA


ETERNIDADE”: CELEBRAÇÕES PARA D. JOSÉ I EM PERNAMBUCO.

Noelly Gomes da Silva 77

“GENTIOS TRAYDORES E DESLEAES”: REVOLTAS LOCAIS E ADMINISTRAÇÃO


PORTUGUESA DURANTE A OCUPAÇÃO HOLANDESA EM ANGOLA (1641-1648).

Ana Maria Soares de Araújo 87


MODELOS DE GOVERNANÇA: A REPRESENTAÇÃO DOS TRÊS PRIMEIROS
GOVERNADORES GERAIS DO BRASIL NA OBRA DE FREI VICENTE DO SALVADOR.

Vinicius Cavalcante Melo de Lima 97

A IMPORTÂNCIA DAS MULHERES PARA A PERMANÊNCIA DO CRIPTOJUDAISMO


EM PERNAMBUCO NO FINAL DO SÉCULO XVI.

Priscila Gusmão Andrade 108

AS PROBLEMÁTICAS DA ALMOTAÇARIA NA CÂMARA MUNICIPAL DO RECIFE


NAS DÉCADAS DE 1710-1740.

João Vitor Caldas de Souza 119

O CUSTO DA GUERRA: PRODUÇÃO E ABASTECIMENTO DE VÍVERES PARA A


COMPANHIA DAS ÍNDIAS OCIDENTAIS (1630-1654).

Matheus Vila Nova Nunes 129

A INVASÃO QUE NÃO ACONTECEU: A GUERRA DOS SETE ANOS E O IMPACTO NO


SISTEMA DEFENSIVO DE PERNAMBUCO ENTRE 1762 E 1763.

Lucas Alves da Rocha; Izabela Pereira de Lima 140

NOTAS SOBRE A ATUAÇÃO DE FRANCISCO MUNIZ TAVARES NA ASSEMBLEIA


GERAL, CONSTITUINTE E LEGISLATIVA DO IMPÉRIO DO BRASIL DE 1823.

Fred Cândido da Silva 155

PARTE III: DIREITO, JUSTIÇA E ADMINISTRAÇÃO NA AMÉRICA


PORTUGUESA. 170

CONTROLE E ADMINISTRAÇÃO: AS CORPORAÇÕES DE OFICIO EM RECIFE E


OLINDA ENTRE 1773 – 1802.

Gabriel Felipe de Andrade 170

A JUSTIÇA NO SERTÃO COLONIAL DA CAPITANIA DE PERNAMBUCO (1700-1760).

Juliane Tavares Monteiro 184


“QUE POR FALECIMENTO DO SEU PAI LHE PERTENCE REQUERER: A
PATRIMONIALIZAÇÃO E A DINÂMICA DO CARGO DE JUIZ DE ÓRFÃOS NA
CAPITANIA DE PERNAMBUCO (1726-1750)”.

Jéssica Menezes 195

RAZÃO DE ESTADO: A CULTURA POLÍTICA DO ANTIGO REGIME NA RETÓRICA


DO ADVOGADO MANUEL ÁLVARES PEGAS (1671).

Juarlyson Jhones S. de Souza; Virgínia Mª Almoedo de Assis 211

A APOSENTADORIA DOS OUVIDORES (SÉCULO XVIII).

Paulo Fillipy de Souza Conti 226

PARTE IV: INDÍGENAS E MISSIONÁRIOS: FORMAÇÃO DA SOCIEDADE


COLONIAL E AÇÃO INTELECTUAL, SÉCULOS XVI-XIX. 237

ALIADOS ESSENCIAIS: TROPAS INDÍGENAS E A COMPANHIA DAS ÍNDIAS


OCIDENTAIS NO NORDESTE DO BRASIL (1630-1654).

Bruno Romero Ferreira Miranda; Lucas de Lima Silva 237

BARREIRAS DO SERTÃO: DESLOCAMENTOS DE ALDEIAS E ARREGIMENTAÇÕES


DE TROPAS INDÍGENAS NA CAPITANIA DE PERNAMBUCO ENTRE 1670-1700.

Wesley de Oliveira Silva 252

DIÁLOGOS DAS GRANDEZAS DO BRASIL: O OLHAR ALTERNATIVO DE UM


CRISTÃO-NOVO SOBRE OS GENTIOS DO BRASIL NO SÉCULO XVII.

Arthur Feller Rigaud Cardoso 266

OS DOIS MUNDOS DE DIEGO DURÁN.

Eliana da Silva 279

PRIMEIRAS NOTAS DE PESQUISA: A EXIGUIDADE DA JUSTIÇA REAL COM OS


ÍNDIOS NA AMÉRICA PORTUGUESA.

Iviana Izabel Bezerra de Lira 289

OS FILHOS BASTARDOS DA COMPANHIA DE JESUS.

Daniel Ribas Sepúlveda Alves 298


PARTE V: POLÍTICA, SOCIABILIDADE, ESCRAVIDÃO E LIBERDADE NO
SÉCULO XIX: FONTES, TEMAS E PERSPECTIVAS DE ESTUDOS. 310

HARMONIAS EM CONFLITO: MEMÓRIAS DA RIVALIDADE ENTRE AS


FILARMÔNICAS CENTENÁRIAS, CURICA E SABOEIRA, DE GOIANA-PE (1870-1889).

Marcus Vinícius da Luz Rocha Sousa 310

É PRECISO PROTEGER OS ALIADOS: CLIENTELISMO POLÍTICO E


RECRUTAMENTO MILITAR NA PROVÍNCIA DA PARAÍBA NA DÉCADA DE 1860.

Alysson Duarte Cabral 324

VAQUEIROS E TRABALHADORES LIVRES: DINÂMICAS SOCIAIS NO SERTÃO


NORDESTINO EM MEADOS DO SÉCULO XIX.

Thâmara Brenda Lopes de Souza 338

A AMA DE LEITE MÔNICA: UMA ANÁLISE DAS QUESTÕES GERACIONAIS


ACERCA DE SUAS FOTOGRAFIAS NO RECIFE DO SÉCULO XIX (1860 E 1877-1882).

Hygor Francisco Carvalho Gonçalves 348

A GENTE NEGRA NA GUARDA NACIONAL DA PARAÍBA NO SÉCULO XIX (1831-


1850).

Lidiana Emidio Justo da Costa 363

DINÂMICAS SÓCIO-RELIGIOSAS E EXPERIÊNCIAS NEGRAS NA FORMAÇÃO


REPUBLICANA (MACEIÓ, AL-1889-1900).

Lilia Rose Ferreira 378

DE OLHO NAS PRAIAS: UM ESTUDO SOBRE OS ANOS FINAIS FO TRÁFICO


ATLÂNTICO DE ESCRAVOS PARA PERNAMBUCO (1849-1855).

Aline Emanuelle De Biase Albuquerque 389

A FLOR DA INDEPENDÊNCIA: O ANIVERSÁRIO DE S.A.I. A PRINCESA D.


JANUÁRIA PÓS 1835.

Janaina Rita Silva de Souza 403


APRESENTAÇÃO

O Núcleo de Estudos do Mundo Atlântico (NEMAt) entrou em atividade no ano de


2013. Primeiramente, como iniciativa de um pequeno grupo de alunos da graduação em História
da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), interessado em estudar a História de
Pernambuco. Com a inserção do Prof. Dr. George Félix Cabral de Souza (UFPE), na condição
de coordenador, o NEMAt deu um grande passo acadêmico, tornando-se um grupo de pesquisa
com reuniões regulares e também ampliou a espacialidade a ser estudada, ingressando nos
estudos do Mundo Atlântico.
Ao inserir o núcleo de estudos em uma perspectiva mais ampla, estabeleceu-se a
sua ligação com o Programa de Pós-Graduação em História da UFPE, mais especificamente, a
sua afinidade com a linha de pesquisa Mundo Atlântico. Dessa forma, o NEMAt começou a
aparecer na vida acadêmica dos estudantes da UFPE e as propostas de estudos, discussões e
pesquisas, passaram a ser conduzidas pelos professores da Pós-Graduação e pós-graduandos do
curso de História da UFPE vinculados à linha de pesquisa mencionada. Ao mesmo tempo, o
NEMAt também se apresentou como meio de promoção de conferências e palestras de
professores e professoras da UFPE e de profissionais de outras universidades, possibilitando
trocas de conhecimento e de experiências de pesquisa.
Já o Núcleo de Estudos de Impérios Coloniais (NEIC) foi estruturado com a
composição atual a partir do ano de 2015. Formado por docentes e estudantes do Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e
dedicados à discussão sobre a produção historiográfica acerca da América portuguesa e também
dos Impérios Coloniais. Em pouco tempo, também passou a congregar novos pesquisadores
ocupados com os processos de mundialização que se intensificaram no período Moderno.
Atualmente, pesquisadores membros do NEIC se voltam para estudos que possibilitem uma
história da “governação, vida diária e comércio ultramarinos”.
Os dois núcleos compartilharam ao longo dos anos experiências em comum. Mas,
foi no ano passado que a relação entre eles se fortaleceu. Em 2017, o NEMAt, através dos seus
componentes, promoveu o seu II Encontro. Nessa ocasião, o esforço visou a reunião de
representantes de um número maior de instituições de ensino superior. Além de professores e
estudantes da UFPE, participaram em posição de destaque representantes da UFRPE, UPE,
UNICAP, UFAL, UEPB, UFF e UFRGS entre palestrantes, ministrantes de minicursos e
11
coordenadores de simpósios temáticos. E entre os participantes das diversas modalidades,
foram reunidos estudantes de um número ainda maior de universidades.
Finalmente, em 2018, o esforço de continuar alargando a comunicação entre as
universidades brasileiras e estrangeiras permanece, no entanto, já resguardados pela
confirmação da parceria fundamental com a UFRPE, através do NEIC. Desejamos que o III
ENCONTRO DO NEMAT E I ENCONTRO DOS NÚCLEOS DE PESQUISA
NEIC/NEMAT: IMPÉRIOS ATLÂNTICOS E SUAS DINÂMICAS HISTÓRICAS (XVI-
XIX) seja mais uma rica experiência acadêmica e que possamos estimular um número cada vez
maior de estudantes a ingressarem nos estudos que enfocam a dinâmicas atlânticas.

O NEMAt e o NEIC unem-se no ano de 2018 com o intuito fomentar estudos,


debates e experiências de pesquisas que contemplem diversas temáticas e temporalidades em
um recorte espacial, o Mundo Atlântico, congregando as diversas dimensões e conexões
políticas, econômicas, sociais e culturais nos espaços compreendidos nos territórios ligados
direta ou indiretamente ao complexo Atlântico. Para tal, pretende oferecer conferências, mesas
redondas, simpósios temáticos e minicursos. Atividades diversificadas não apenas nas suas
maneiras de execução, mas, igualmente pensadas para congregar estudos plurais.

A Comissão.

12
PARTE I
ROTAS ATLÂNTICAS: COMÉRCIO,
FISCALIDADE, DESCAMINHOS E AGENTES.

O CONTRATO DO DIREITO DOS ESCRAVOS QUE DESCIAM DE PERNAMBUCO


PARA AS MINAS DE JERÔNIMO LOBO GUIMARÃES (1725-1728).

Luanna Maria Ventura Dos Santos Oliveira1

Dentro do universo dos contratos ultramarinos portugueses arrematados por homens de


grosso trato do Reino, Jerônimo Lobo Guimarães se destaca em quantidade de contratos
arrematados na primeira metade do século XVIII, no Estado do Brasil.

Jerônimo Lobo Guimarães foi um grande contratador de tributos do seu tempo, ele mais
diversos fiadores e procuradores desenvolveram estratégias de administrarem várias
empreitadas dentro do Reino e da América Portuguesa. A primeira vez que encontramos
Jerônimo Lobo Guimarães aparecendo na documentação referente a Pernambuco, é na
arrematação do contrato da dízima, em 1724, ele é classificado pelos conselheiros do rei D.
João V, como “Homem de grosso trato, grande contratador das rendas do Reino e homem
fazendado da Praça de Lisboa”2

Jerônimo Lobo herdou de seu pai Pedro Lobo a experiência no universo dos contratos.
Seu pai foi contratador dos couros, produto que distinguia bem, pois exercerá a profissão de
sapateiro e conhecia como ninguém a qualidades e variações da principal matéria-prima de seu
ofício.3 Jerônimo Lobo pertenceu a uma família de negociantes que buscavam acender
socialmente encontramos, ele e seus irmãos, pedindo e conseguindo hábitos de Cristo e

1
Possui Licenciatura Plena pela Universidade Federal Rural de Pernambuco, é Mestra em História Social da
Cultura Regional pela Universidade Federal Rural de Pernambuco e atualmente é doutoranda do programa de Pós-
graduação da Universidade Federal de Pernambuco, o referido trabalho é orientado pela Prof. Dra. Suely Creusa
Cordeiro de Almeida, do Departamento de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco. E-mail:
luannaventura@gmail.com
2
AHU_ACL_CU_15, Cx. 30,D. 2686.
3
ANTT. Habilitação da Ordem de Cristo. Mç.87 np. 52; ANTT. Tribunal do Santo Ofício...dissertação Beatriz p. 13
116. Irmão do Jerônimo https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=7685777
https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=2343305
familiaturas do Santo Ofício, durante as duas primeiras décadas do XVIII. 4Todos os três irmãos
eram naturais da Vila de Guimarães, Arcebispado de Braga. 5

Morador da cidade de Lisboa, Jerônimo Lobo já era familiar do santo ofício em 1706,
como já expomos, ele tinha dois irmãos que também eram homens de negócio, o Francisco
Lobo Guimarães que também já era familiar do Santo ofício, em 1721, residente na cidade do
Porto. Seu segundo irmão era o Simão Lobo Guimarães6 que não morava no Reino e sim no
ultramar, especificamente no Estado do Brasil, através de seu pedido de habilitação do Santo
Ofício, foi possível identificar que ele era morador residente da cidade da Bahia, em 1719. 7

Na Bahia, uma das principais cidades portuárias do Brasil, Simão Lobo Guimarães era
conhecido como uma “pessoa de bons procedimentos”, era um homem abastardo, sabia ler e
escrever, solteiro e estava na casa dos trinta anos. Era um mercador de sobrado que recebia
muitas fazendas vindas de Portugal e era desse negócio que criava seu cabedal.8 Provavelmente,
essas fazendas eram enviadas por seus irmãos que, estrategicamente, residentes nas duas
principais cidades portuárias do Reino: Lisboa e no Porto. Deveriam ser seus representantes
diretos, fazendo com quer o comércio da família girasse com mais facilidade 9.

A escolha de Simão em residir na cidade de Bahia, deve ter sido pensada por ele e seus
irmãos, visto que sabemos que era no porto da Bahia, o principal porto do trato negreiro do
estado do Brasil.10 Que os lucros eram mais vantajosos no comércio tanto de fazendas, quanto
de escravos.

Segundo, Luiz Araújo o Jerônimo já aparecia como fiador dos alguns contratos de
Antônio Marques Gomes na década de vinte dos setecentos, esse Antônio Marques já trabalhava
com o trato de escravos, junto com seu irmão André Marques. A confirmação desses dois

4
Fora encontrado o defeito de seus avós maternos terem sidos curtidores. Porém, o Rei aceitou suas doações a
Fazenda Real para conseguirem as distinções necessárias. Colocar referência:
//digitarq.arquivos.pt/viewer?id=7685777
5
ANTT. Tribunal do Santo Oficio, Conselho Geral, Habilitações, Simão mç. 6, doc. 117.
6
O Simão Lobo Guimarães conseguiu a familiatura do Santo Ofício em 15 de março de 1724. ANTT. Tribunal do
Santo Oficio, Conselho Geral, Habilitações, Simão mç. 6, doc. 117.
7
Na Bahia, ele residia na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Praia. ANTT. Tribunal do Santo Oficio,
Conselho Geral, Habilitações, Simão mç. 6, doc. 117.https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=2343305 f. 0017
8
Ele tirava aproximadamente 20 mil cruzados, em 1719. ANTT. Tribunal do Santo Oficio, Conselho Geral,
Habilitações, Simão mç. 6, doc. 118.
9
ANTT. Tribunal do Santo Oficio, Conselho Geral, Habilitações, Simão mç. 6, doc. 117. 14
10
VERGE, Pierre F. Fluxo e Refluxo do tráfico de escravos entre o Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos
XVII ao XIX. Editora: Corrupio, 2002.
irmãos como comerciante de escravos, se deu através de uma solicitação de despacho de uma
galera vinda da Costa da Mina, no porto da Bahia pertencente aos dois irmãos em 1730.11

Acreditamos que o Jerônimo Lobo Guimarães deva ter experiência com trato negreiro,
igualmente aos irmãos Marques e possa também ter sido sócio dos dois irmãos no comércio
negreiro que fazia a rota Bahia-Costa da Mina, pois sabemos que é um comércio arriscado e
sempre precisava de vários investidores na armação do navio. Como seu irmão residia como
negociante na cidade da Bahia, provavelmente, ele cuidava de perto dos despachos das fazendas
e dos escravos.

Podemos cogitar que possa ter sido a experiência no comércio de escravos que tenha
proporcionado ao Jerônimo Lobo Guimarães, arrematar praticamente todos os contratos de
descida dos escravos para as minas, nos anos de 1725-1727.12 Igualmente, ao seu pai que
conhecia como ninguém o “produto” de seu contrato.13Os contratos dos direitos dos escravos,
que desciam para as Minas, nos principais portos do estado do Brasil, arrematados por
Jerônimo: Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco e Paraíba, esses dois últimos juntos.14

Devemos enfatizar que existe uma diferença entre o contrato dos escravos que desciam
para as “Minas” do Rio de Janeiro, do contrato de entrada dos escravos na alfândega de
Pernambuco. O primeiro é um contrato de responsabilidade de controle e prestação de conta da
Provedoria da Fazenda de Pernambuco, ficando especificamente dentro das suas prestações de
conta. Os oficiais responsáveis por suas anotações são oficiais da Provedoria da Fazenda Real.

No entanto, o tributo de entrada dos escravos na alfândega de Pernambuco era da alçada


da alfândega de Pernambuco, sendo os oficiais que estavam dentro dessa instituição os
responsáveis por prestarem conta, da quantidade de escravos que adentravam no porto do Recife
e cobrarem os devidos tributos, e em momentos que o contrato não fosse arrematado, era os
oficiais da alfândega que cobrariam sem o auxílio dos oficiais do contrato.

11
ARAÙJO, Luiz Antônio Silva. Dízima da Alfândega, contratos e comércio Atlântico. Pág. 99. In: CARRARA,
Angelo Alves, CAVALCANTE, Paulo( Orgs.). Alfândegas do Brasil: Rio de Janeiro e Salvador, séculos XVIII:
estudos de administração fazendária. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2016. pág. 98 e 99.
12
AZEVEDO, Beatriz Basto. Contrato como negócio: trajetórias e estratégias dos homens de negócio portugueses
na primeira metade do século XVIII. Págs: 125-128. In: SIQUEIRA, Maria Isabel...A colônia em perspectiva:
pesquisas e análises sobre o Brasil (XVI-XIX). Paco: Judiaí, 2017.
13
ANTT. Tribunal do Santo Oficio, Conselho Geral, Habilitações, Simão mç. 6, doc. 117.
14
ARAÙJO, Luiz Antônio Silva. Dízima da Alfândega, contratos e comércio Atlântico. Pág. 99. In: CARRARA, 15
Angelo Alves, CAVALCANTE, Paulo( Orgs.). Alfândegas do Brasil: Rio de Janeiro e Salvador, séculos XVIII:
estudos de administração fazendária. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2016.
Sabemos que a capitania de Pernambuco tinha uma provedoria e uma alfândega
imbricadas, como expomos na dissertação.15 No entanto, com o avançar da pesquisa,
conseguimos identificar essa especificidade dentro dessas instituições. O cargo de Provedor da
Fazenda Real e juiz da alfândega são conjugados em um único oficial, caso diferente do que
aconteceu nas capitanias da Bahia e do Rio de Janeiro, nas quais se separaram ainda na primeira
metade do século XVIII.

No entanto, as repartições estavam situadas em edifícios diferentes, próximos na vila de


Santo Antônio, mas com expedientes e oficiais diferentes que tinham suas dinâmicas internas
próprias e com suas receitas separadas e consequentemente suas prestações de contas, muitas
vezes eram feitas separadamente, com a assinatura do Provedor e juiz da Alfândega que hora
despachava na Provedoria que, o edifício tinha o nome de Casa dos Contos, e hora na
Alfândega.

Na figura abaixo, podemos identificar a Casa dos Contos e Alfândega, sinalizadas pelas
seta azul e a amarela, respectivamente. São instituições imbricadas, mas ao mesmo tempo, com
suas especificidades. São edifícios vizinhos, separados pela praça comercial do Recife que
aparece na imagem pela letra “E”. Discutiremos agora um pouco sobre a tributação nessas
instituições.

15
OLIVEIRA, Luanna Maria Ventura Dos Santos. A Alfândega de Pernambuco: História, Conflitos e Tributação 16
no Porto do Recife (1711-1738). Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura Regional) – Universidade
Federal Rural de Pernambuco, Departamento de História, Recife, 2016.pág.60.
Casa dos Contos Alfândega

Figura 1: Planta do bairro do Recife, levantada pelos engenheiros João Macedo Corte Real e Diogo da Silveira
Velosso (1733). MENEZES, José Luiz da Mota. Atlas Histórico Cartográfico do Recife. Recife: FUNDAJ, Ed.
Massangana, 1988. Página 29, Imagem do livro depositado no Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano.

No ano da reimplementação da dízima, que era um tributo da alfândega sobre os


produtos importados, mais especificamente em 27 de fevereiro de 1711, através de uma carta
escrita para o governador de Pernambuco foi exposta a liberdade de mandar negros para serem
negociados para as Minas, que estava compreendido todos os “povos do Brasil”, e não só os
habitantes do Rio de Janeiro.16
Que não deveriam ser mandados os escravos das fazendas, com exceção aos que não
fossem próprios para os engenhos e lavouras. Nessa carta ficava imposto que os negros que
descidos, vindo de Angola deveriam pagar por saída seis mil réis e que eles eram chamados
“peças da Índia”, e os que fizessem o mesmo trajeto, vindo da Costa da Mina seriam chamados
de “peças” e pagariam três mil réis.17
Seis meses, após o registro dessa ordem régia, foi criada uma provisão feita pelo vice-
rei do estado do Brasil, alterando a mudança do valor cobrado pelo descimento dos escravos,
que deveriam ser pagos por cada escravo que se desce para as Minas, 4$500 réis, sem diferença

16
Idem 17
17
ALBUQUERQUE, Francisco Bezerra Cavalcanti de. Cathalogo das Reais Ordens existentes no arquivo da
extinta Provedoria de Pernambuco, 1799. pág. 277.
de ser Angola ou da Costa da Mina, e sem a descriminação na avaliação se eram peças da Índia,
ou apenas peças, igualmente ao que estava sendo praticado na Bahia.18
Podemos perceber toda uma construção de um aparato tributário que viesse a subsidiar
uma nova dinâmica comercial que a descoberta Minas estava provocando, no Estado do Brasil.
Nesse mesmo ano, a câmara de Olinda pediu ao rei que não permitisse que os escravos
vindos de Angola e Costa da Mina descessem para o Rio de Janeiro, nem por terra, nem por
19
mar. No entanto, o rei negou esse pedido e mandou aumentar o quantitativo de escravos,
dizendo que deve-se “...introduzirem em grande abundância os escravos para as praças do
Brasil”20.
Podemos através dessa reunião do Conselho perceber a intensão de se intensificar o
comércio de escravos, durante esse primeiro quartel do século XVIII e a necessidade de mais
mão-de-obra que viessem suprir tanto as Minas, quanto as lavouras, que esse produto tivesse
em abundância no mercado, para evitar a escassez nas regiões norte do estado do Brasil.
O primeiro arrematante do contrato dos direitos dos escravos que entravam na alfândega
de Pernambuco e Paraíba, foi Manoel Correa Bandeira que arrematou no Conselho Ultramarino,
no dia 2 de setembro de 1724, “o novo contrato de entrada dos escravos” 21, referente ao “direito
de três mil e quinhentos réis por cabeça que pagão os escravos que saem de todas as partes da
Costa da Mina, São Tomé, Ilha do Príncipe, Cabo Verde e mais anexas para essa capitania, e
para a de Pernambuco”, pelo preço de quarenta e cinco mil cruzados, e cem mil réis” 22.

Além desse contrato de 3$500 réis, ele também arrematou o contrato a cobrança de
1$200 réis “imposto nos escravos, que entravam em toda América, vindos da Costa da Mina,
São Tomé, Ilha do Príncipe, Calabar, e outros...”, onde os dois seriam cobrados
conjuntamente.23

O Manuel Correa Bandeira também arrematou24, um ano antes do período de vigência


de seu contrato, em 1723, o contrato das Naos Guarda Costas do Rio de Janeiro com um velho
conhecido:

18
ALBUQUERQUE, Francisco Bezerra Cavalcanti de. Op.cit. 277 e 278.
19
Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, per094536_099.P. 86.
20
Idem
21
Arquivo Histórico Ultramarino_ Avulsos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 6, D.494F. 0412
22
Arquivo Histórico Ultramarino_ Avulsos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 6, D.494.
23
Livro da Provedoria. P. 279. Documento datado do dia 22 de setembro de 1724. No documento, do livro da
provedoria, aparece o contrato de Manuel Bandeira sendo arrematado pelo valor de 18:000$000 réis. Azevedo,
Beatriz Basto. Op. cit. Pág 128. 18
24
Ele arrematou no dia 2 de setembro de 1724, “o novo contrato da entrada dos escravos que vão da Costa da
Mina, e Cabo verde, a capitania de Pernambuco e Paraíba, por tempo de três anos, em preço, de quarenta, e cinco
[...] como o suplicante tinha contratado, o direito de 1$200 réis em cada escravo de toda
a Costa da Mina25, e mais partes declaradas nas condições e juntamente era fiador e
companheiro de outro do direito aplicado para a guarda costa do Rio de janeiro tendo
pago as propinas logo de Pernambuco que lhe foi rematado em quarenta e cinco mil
cruzados e cem mil reis fez requerimento a este concelho, declarando nele que avista
do decreto26.

Manuel Bandeira era fiador e companheiro de Jerônimo Lobo Guimarães no contrato


das naos guarda costa27, arrematado em 1723, no conselho ultramarino, sendo a primeira vez
que o Bandeira aparece nos lanços de arrematações dos contratos.28 As redes estavam bem
articuladas, no entanto, o rei baixou um decreto em que proibia que um mesmo contratador
pudesse arrematar mais de um contrato, simultaneamente.29

A solução encontrada por Manuel Correia Bandeira foi suplicar ao rei a dispensa das
fianças desse novo contrato e pedir para permanecer com ambos, dano novos fiadores. O
contratador alegava que não queria receber direito algum por seus procuradores, mas apenas da
mão do tesoureiro escolhido pelo rei para cobrar os direitos.30 Uma forma de cobrança muito
parecida com a praticada pelo tributo da dízima da alfândega, onde o contratador só recebia
depois do término do contrato, os valores apurados, onde era o tesoureiro o responsável por
cobrar e guardar os valores dos despachos.

O rei solicitou aos seus conselheiros uma análise apurada dos fiadores fornecidos por
Manuel Correia Bandeira e seus patrimônios, em caso do contrato não desses lucros. Vários
nomes foram arrolados e seus respectivos patrimônios, veremos:

O primeiro a aparecer é o Manoel da Costa e Silva que tinha propriedades de casas em


que vivia e outras em que alugava na freguesia de São Miguel de Alfama. Outro nome que
emerge nessa documentação é o de Domingos de Miranda que fora “provedor dos contos da[...]
Casa de Bragança e superintendente dele, e dos da Casa do Infantado, e ter várias fazendas em

mil cruzados; e cel mil réis em cada um deles...” Arquivo Histórico Ultramarino_Avulsos da
Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 6, D.431.
25
Acreditamos que o escrivão confundido o valor do de direito de 1$200 réis, pois no termo de arrematação que
segue em anexo no documento, aparece o valor de 3$500 réis por cada escravo. Como esse contrato é novo, pode
o escrivão ter confundido. Arquivo Histórico Ultramarino_ Avulsos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 6,
D.494
26
Arquivo Histórico Ultramarino_Avulsos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 6, D.431.
27
CARDOSO, Grazielle Cassimiro. A Luta pela estruturação da Alfândega do Rio de Janeiro durante o governo
de Aires de Saldanha de Albuquerque(1719-1725). Rio de Janeiro: UNIRIO, 2013. 186p. (dissertação de Mestrado
em História Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Pág. 118-124.
28
Como já fora exposto pelas historiadoras Graziela Cassimiro, que encontrou essa sociedade, no nosso documento
ela não é explicita, mas cruzando com o trabalho da historiadora, fica clara essa rede clientelar. Beatriz, livro, f.
140-141. 19
29
Arquivo Histórico Ultramarino_Avulsos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 6, D.431.
30
Arquivo Histórico Ultramarino_Avulsos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 6, D.431.
que entre sua quinta no termo de Sintra aonde chamam Monte Lavar, e dicas no termo desta
cidade (Lisboa), e uma em Camarate, e outra no Lumiar. 31

Além desses dois fiadores também apareceram dois ourives, o primeiro foi João Antunes
que era ourives rico, tinha uma morada de casas em Castelo Picão, e outra no Beco do Alegrete
na freguesia de São Miguel, e umas tornas em outra morada de casas na rua da Mandragoa. O
outro ourives era Antonio Bernardes, o qual não constava ter propriedades em seu nome, no
entanto, era conhecido como “ser ourives do ouro dos bem reputados na rua”32.

O mais importante depois de saber o patrimônio dos fiadores desse contrato, era
identificar o patrimônio de Manoel Correa Bandeira que “também tem uma morada de casas
em que vive, e aluga, na rua dos Cônegos, e he direito senhorio da galera Nossa Senhora das
Liveira(SIC), e Santo Antônio, e tem um quarto no navio Nogueira grande, e é tido, e havido
por homem de negócio de todo o crédito, e tem dado boa conta de si, dos contratos, que tem
tomado.33

No entanto, poucos meses depois, encontramos Manuel Correia Bandeira sendo citado
em uma carta de Dom João V e o provedor da fazenda real da Paraíba João de Abreu, onde o
rei informava que ele teria arrematado “o contrato de 3$500 réis por cabeça que pagão os
escravos que saem de todas as partes da Costa da Mina, São Tomé, Ilha do Príncipe, Cabo
verde, mais anexas para essa capitania (Paraíba) e a de Pernambuco” 34 que o contrato iria
começar no dia primeiro de janeiro de 1725, e que não se teria tempo corrente para a
comprovação das fianças, informadas pelo arrematante do contrato.

Por tanto era preciso que os direitos fossem cobrados, dando ordem ao provedor que se
iniciasse a arrecadação do dito direito e que ajudasse “os procuradores” do Manuel Correia para
administrar o contrato “...cobrando-se o produto dele pela Fazenda Real em quanto ele não
mostrar ter posto as suas fianças correntes de que vos e avisa para que assim o fáceis executar.
”35 Em reposta, o provedor informava ao que ficou advertido sobre as ordens e que iria proceder
com a arrecadação até que o contratador comprovasse as fianças.36

Porém alguma coisa aconteceu, durante esse período de comprovação das fianças, que
surge no meio do processo um requerimento que expõem que Manoel Correa Bandeira teria

31
Arquivo Histórico Ultramarino_Avulsos da Paraíba_AHU_ACL_CU_014, Cx. 6, D.431.
32
Idem
33
Idem
34
Arquivo Histórico Ultramarino_Avulsos da Paraíba _AHU_ACL_CU_014, Cx.6, D.494. 20
35
Idem
36
Idem
pedido ao Conselho da Fazenda que fosse anulado seus contratos dos direitos de entrada dos
escravos de Pernambuco e Paraíba, não fica claro através da documentação o que teria
acontecido para que o arrematador desiste do contrato. Porém o oficial que escrevia para o rei,
Lins Peres, informava que achava estranho o contratador ter desistido do lanço.37

Podemos cogitar que possa ter tido alguma querela entre o Manoel Correia Bandeira e
o Jerônimo Lobo Guimarães, visto serem sócios no contrato das naus guarda costa do RJ, em
1723, e que o Manoel, em 1724, arrematou o contrato dos escravos de Pernambuco e Paraíba,
sozinho com fiadores que não tinham tanto prestígio e patrimônios de raiz, quanto os que o
Jerônimo Lobo Guimarães utilizará, por exemplo, para o contrato da dízima que foram
adjetivados na documentação do conselho ultramarino que seus fiadores eram “pessoas de
conhecido crédito nesta praça”38 e por isso o rei acabou abrindo uma exceção para iniciar seu
contrato sem as devidas fianças.39

Na documentação o Manoel Bandeira expõe para o Conselho da Fazenda que era


incapaz de administra o contrato dos escravos que entravam no porto de Pernambuco e Paraíba,
até que ponto podemos acreditar que essa justificativa fora verdade, sabemos que o Jerônimo
Lobo Guimarães era um grande comerciante de grosso trato da praça de Lisboa, que tinha um
cabedal muito grande e é considerado pelos historiadores como um dos grandes contratadores
de tributos da primeira metade do século XVIII.

Até que ponto uma desavença com esse homem, não atrapalhou os negócios do Manoel
Bandeira, e descapitalizou esse recém iniciante no universo dos contratos ultramarinos, visto
que o Manoel só surge nos livros dos contratos a partir de 1723, junto ao Jerônimo? Também
podemos cogitar que o Manoel poderia ter sido uma testa de ferro do Jerônimo 40, no entanto,

37
Idem
38
OLIVEIRA, Luanna Maria Ventura Dos Santos. A Alfândega de Pernambuco: História, Conflitos e Tributação
no Porto do Recife (1711-1738). Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura Regional) – Universidade
Federal Rural de Pernambuco, Departamento de História, Recife, 2016. P. 109.
39
Idem
40
O Jerônimo Lobo Guimarães arrematou também o segundo contrato da dízima da alfândega de Pernambuco e
Paraíba e utilizou como “testa de ferro” José dos Santos na arrematação de (1727-1729), termo utilizado à época
e inclusive era reconhecido e explicado no Mapas dos contratos reais do Conselho Ultramarino (1641-1758). Como
segue: “[...]Se não pode saber ao certo, quais são os verdadeiros donos, e interessados em todos estes contratos;
porque a maior parte dos arrematantes são testas de ferro, e os fiadores a decima, também as vezes o são. ”
Podemos perceber através de tais explicações que era um caso recorrente o uso dos “testas de ferro” uma forma
de representantes nas arrematações dos contratos. No Livro do Mapas dos Contratos, chegam a serem expostas
famílias portuguesas que seriam “testas de ferro”, vejamos: “[...] Sabe-se porém, que os Calistos são testas de
ferro dos Bezerras, os Abreus dos Barbosas e Torres, os Souzas dos Moreiras”. In: AHU. Mapa dos Contratos
reais do Conselho ultramarino. Cód. 1269. Pág. 25. 21
1641-1758. Mapas dos contratos reais do Conselho Ultramarino. 1Vol. AHU_ACL_CU_, Contratos reais, Cód.
1269.
acreditamos ser mais plausível através da documentação que o Manoel Bandeira fez de tudo
para tentar iniciar a cobrança de seu contrato, mas pela falta de cabedal suficiente e de homens
influentes para servirem como seu fiador no contrato dos escravos que entravam nos portos de
Pernambuco e Paraíba fez com que o Manoel Bandeira, desistisse de seus contratos41

Outra possibilidade de análise, pode ter sido um jogo com cartas marcadas, visto que o
Manoel Bandeira, arrematou o contrato dos escravos de 3:500$000 réis que desciam de
Pernambuco pelo valor de 18:000$000 Contos42, valor superior a primeira arrematação do
contrato dos escravos que vão do Rio de Janeiro para as minas de 14:700$000 réis, nos anos de
1725-1727, e pouco menor que o mesmo contrato dos escravos que iam da Bahia para as Minas,
1725-1727, que foi arrematado por 20:000$000 réis.43

O relevante, a ser exposto foi que logo, após a desistência de Manoel Bandeira, o
contrato de descida dos escravos de Pernambuco e Paraíba foi também colocado em leilão,
sendo a arrematação feita por Jerônimo Lobo Guimarães, o qual foi o primeiro arrematador dos
contratos dos escravos que desciam de Pernambuco e Paraíba e o primeiro a executar o contrato.
Jerônimo Lobo Guimarães conseguiu arrematar o contrato por uma bagatela de 6:000$000 réis 44
por ano, valor bem inferior ao lance de Manoel Bandeira que equivale a um terço do valor do
contrato de entrada, feito sobre o “produto dos escravos”.

Acreditamos que o contrato de Pernambuco e Paraíba, deva ter sido escolhido para
compor a estratégia de Jerônimo Lobo Guimarães para monopolizar os principais contratos de
tributos de descimentos de escravos dos principais portos da América portuguesa: Rio de
Janeiro, Bahia, Pernambuco e Paraíba para as Minas. Não temos certezas das possibilidades
levantadas em relação a desistência de Manuel Bandeira ao contrato supracitado, se isso fora
uma estratégia dos dois, para as pessoas não terem interesses sobre esses contratos, no entanto,
percebemos que Jerônimo Lobo foi beneficiado com essa desistência com a diminuição do valor
de seu contrato.

O contrato de Jerônimo Lobo Guimarães, iniciou-se em 1 de julho de 1725, e duraria


até o dia 30 de junho de 1728. Na documentação fica exposto pelo Provedor Fazenda de
Pernambuco João do Rego Barros, a listagem dos últimos dez anos da cobrança do tributo dos

41
AHU_ACL_CU_014, Cx. 6, D. 494.
42
Documento da Provedoria p. 279.
43
Azevedo, Beatriz Basto. Contrato como negócio: trajetórias e estratégias dos homens de negócio portugueses
na primeira metade do século XVIII. Págs: 127 e 128. In: Siqueira, Maria Isabel...A colônia em perspectiva: 22
pesquisas e análises sobre o Brasil (XVI-XIX). Paco: Judiaí, 2017.
44
Idem
escravos que foram feitas na capitania de Pernambuco pela Provedoria da Fazenda Real, de
1715 até 1725, foram arrecadados o montante de 54:343 mil réis que dá uma margem de
aproximadamente 12.000 mil cativos que entraram pelo porto de Pernambuco durante esses dez
anos.45 Que representa uma média de 1.200 escravizados desembarcados anualmente pelo porto
do Recife.46

Nesse mesmo documento, é possível ter indicativos que o rei buscava saber mais
detalhes sobre a arrecadação do tributo dos escravos que desciam para as Minas, visto que possa
ter sido um dado pedido por Jerônimo Lobo Guimarães, experiente no ramo dos contratos, para
se precaver de um investimento que não fosse rentável.

Na carta, também ficava exposto o valor arrecadado no primeiro ano do contrato dos
escravos que desciam pelos portos de Pernambuco e Paraíba, que foi delimitado do dia 1 de
julho de 1725 até 30 de junho de 1726, o qual rendeu o montante de 6:930$000 réis. Se
dividimos o valor arrecadado, pelo valor cobrado por cada escravo que descia sendo de 4$500
réis, chegaremos ao quantitativo de 1540 escravizados desembarcados, nesse recorte, do
primeiro ano de vigência do contrato.47

Nas palavras do provedor da fazenda e juiz da alfândega João do Rego Barros:

[...]pela real ordem junta me há por muito recomendado, remato com esta certidão
passada pelo escrivão da Real fazenda de Vossa majestade pela qual consta haverem
rendido os direitos dos escravos que foram para as minas do rio de Janeiro em dez
anos que tiveram princípio do primeiro de julho do ano de mil setecentos e quinze até
o ultimo de junho de mil setecentos e vinte e cinco, cinquenta e quatro contos trezentos
e quarenta e três mil réis, que repartindos pelo referido tempo, vem a tocar a um ano
por outro, a cinco contos, quatrocentos trinta e quatro mil e trezentos réis. E a sem
mais se mostra que rendeu o primeiro ano do contrato destes ditos direitos que rematou
nesse reino Jerônimo Lobo Guimarães por tempo de três anos seis contos novecentos
e trinta mil réis[...]48

Se analisarmos por uma perspectiva, mas econômica, o valor arrecadado foi vantajoso
para o contratador, ele não teve perdas, visto que o contrato foi arrematado com a obrigação de
pagar 6:000$000 réis, por ano para a Fazenda Real, e o apurado foi de 6:930$000 réis que
significa 15,5% de lucro para o contratador no primeiro ano.49

45
A cobrança sobre o descimento dos escravos, começou no ano de 1715. Arquivo Histórico Ultramarino_Avulsos
de Pernambuco_AHU_ACL_CU_015, Cx. 34, D. 3121.
46
Idem
47
Idem 23
48
Arquivo Histórico Ultramarino_Avulsos de Pernambuco_AHU_ACL_015, Cx. 31,D.2865.
49
Idem
O que sabemos ao fim dessa empreitada é que Jerônimo Lobo Guimarães não teve sorte
com seu contrato dos escravos que desciam para as minas de Pernambuco e Paraíba, visto que
encontramos ele pedindo, duas vezes, para citar o procurador da fazenda sobre suas perdas
nesse contrato, ele dizia que teria experimentado grande perda “pela falta de inteiro
comprimento das condições com que foi arrematado”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Acessado em 18/01/2016, ás 17:42 min. In: http://www.maxwell.vrac.puc-
rio.br/16755/16755_6.PDF

25
MATIAS SOARES TAVEIRA: UM SENHOR COMERCIANTE DE ESCRAVOS NA
PERIFERIA DO TRÁFICO ATLÂNTICO1.

Matheus Silveira Guimarães


Doutorando, PPGH-UFPE

Introdução
No mês de janeiro de 1721, desembarcavam na Paraíba vários escravizados
africanos vindos da região da Costa da Mina. Não sabemos ao certo destino dessas pessoas. Um
patacho2 que trazia esses cativos arribou na Baía da Traição, ao norte da capital, e tudo indica
que foram levados a trabalhar ou nas lavouras de cana da Paraíba ou nas atividades auríferas
das Minas Gerais.
O navio em questão fora capitaneado por João Gomes e se chamava Nossa Senhora
das Neves, uma possível homenagem à padroeira da cidade da Paraíba3, onde morava o
proprietário da embarcação. Este chamava-se Matias Soares Taveira. Nada sabemos sobre
quem eram esses africanos desembarcados, como dissemos. Contudo, as informações sobre o
dono da embarcação são mais fartas.
O Nossa Senhora das Neves foi apenas uma das milhares de embarcações que
cruzaram o oceano Atlântico carregando africanos em péssimas condições, que foram
aprisionados em sua terra natal e tornados cativos. Logo, o caso em questão (o comércio de
africanos) era algo bastante comum no mundo do século XVIII, em especial, no cotidiano da
costa litorânea do Brasil. Entretanto, Matias Soares Taveira e seu navio negreiro eram exceções.
Isso nos chamou atenção. O caso de Matias pode nos ajudar a compreender algumas das
complexidades existentes nesse tão vasto comércio.
No decorrer do século XVIII, o negócio de escravos chegou ao seu auge. Os
cálculos mais aceitos hoje apontam para cerca de 10 milhões de pessoas que foram
transformadas em escravas, retiradas a força da África e levadas a trabalhar na América durante
aproximadamente três séculos. Desse total, quase 3,5 milhões vieram para o Brasil. Esses
números demonstram as dimensões gigantescas que assumiu o tráfico de pessoas e a posição

1
Este trabalho é faz parte de uma pesquisa, ainda em fase inicial, sobre o comércio de escravizados para as
Capitanias do Norte, sob orientação do professor Dr. George F. C. Souza.
2
Patacho é uma embarcação à vela, com dois mastros, pequena e rápida, bastante utilizada nas transações de
escravos pelo Atlântico.
3
Até o ano de 1930, a capital da Paraíba era chamada pelo mesmo nome, muitas vezes sendo escrita como 26
“Parahyba”. A cidade também, até o século XIX, era conhecida como Nossa Senhora das Neves, sua padroeira.
Desde o referido ano, a cidade passou a ser chamada de João Pessoa.
central que o Brasil teve nesse processo4. Os comerciantes luso-brasileiro eram os maiores
frequentadores dos portos da África e mediavam esse comércio com as Américas.
Dos portos do Brasil, as cidades do Rio de Janeiro, Salvador e Recife se destacaram
como os principais polos de recepção desses africanos escravizados. Seus comerciantes eram
os mais envolvidos e enriqueceram nessa atividade. Aí que o caso de Matias Taveira apresenta-
se como desviante. Ele era, assim como muitos, traficante de escravos. Porém, participava dessa
atividade a partir de uma região periférica ao comércio atlântico, seguindo um caminho distinto
de outros traficantes. O porto da Paraíba nunca foi central nas atividades atlânticas, sendo difícil
para seus comerciantes adentrarem e concorrerem com as demais regiões.
Afinal, quem era Matias Soares Taveira? Por que se envolveu no comércio atlântico
de pessoas escravizadas? Quais ações por ele empreendidas para conseguir ter vantagens nesse
comércio? O que sua história pode nos ajudar a compreender a sociedade escravista brasileira
que se constituía no século XVIII? O caso de Matias Taveira será o ponto de partida para
tentarmos compreender como se dava esse mercado a partir da Paraíba, uma capitania periférica
no tráfico.

Matias Taveira e um inglês nas rotas dos negócios da Costa da Mina


O caso acima descrito não foi comum. O desembarque dessas pessoas escravizadas
se deu a partir de um suposto acidente. Rolan Martin é um personagem que nos ajuda a
compreender o caso. Capitão de um navio inglês que comercializava escravos na Costa da Mina,
ele aguardava a devolução de seus bens que haviam sido sequestrados pelas autoridades régias
na Paraíba, quando em 1728 resolveu escrever uma carta ao Rei, pedindo que resolvesse sua
situação5. Parte dos escravizados que foram levados da África para a Paraíba na embarcação
Nossa Senhora das Neves fora negociada por ele. O que narrava Martin?
Ao fazer negócios na Costa da Mina, principal mercado de africanos no início
do século XVIII, afirmava Rolan Martin que seu patacho pegou fogo, tendo ele perdido muitos
escravos e parte do dinheiro. Nessa situação, percebeu que não teria outra alternativa a não ser

4
Esses números foram retirados do banco de dados Transatlantic Slave Trades Database disponível em
http://www.slavevoyages.org/voyage/search. Esses números foram sistematizados a partir de décadas de pesquisas
em vários lugares do mundo. Um dos primeiros estudos sobre o número de africanos escravizados para as Américas
foi feita por CURTIN, Philip D. The Trans-Atlantic Slave Trade: a Census. Madison: University of Wisconsin
Press, 1969. No Brasil, há o estudo pioneiro de GOULART, Maurício. A escravidão africana no Brasil: das
origens à extinção do tráfico. 3 ed. São Paulo: Editora Alfa-omega, 1975. Ambos apresentaram números muito
próximos ao que hoje são aceitos. Vale destacar que esses dados são aproximativos. Muitas dessas informações se
perderam e houve muito contrabando de escravos. Ou seja, é provável que a quantidade de africanos vindos para
as Américas seja ainda maior. 27
5
Em casos de crimes ocorridos contra a Fazenda Real, abria-se um processo chamado de devassa. Nessa
oportunidade, os bens dos acusados eram tomados (sequestrados) pelas autoridades régias
vender os poucos africanos que havia mantido sob seu domínio e tentar negociar seu retorno à
Europa. Ao se defrontar com várias embarcações com bandeiras portuguesas na Costa da Mina,
resolveu vender seus escravos. Encontrou, então, João Gomes, o mestre do navio Nossa
Senhora das Neves, com quem fez negócio. De acordo com o capitão inglês, a negociação ficou
em torno de 9 cruzados pelos africanos. Ele iria até a Paraíba no Nossa Senhora das Neves,
pegaria o dinheiro com o dono da embarcação, Matias Soares Taveira, e de lá seguiria viagem
para Lisboa. Não foi isso que ocorreu. Em fevereiro de 1721, foi aberta uma devassa contra os
envolvidos no desembarque desses africanos, após esta ter arribado na Baía da Traição. Todos
foram presos, incluindo Rolan Martin e o proprietário Matias Soares Taveira 6.
Em maio de 1721, o Governador Geral do Brasil, Vasco Fernandes Cesar de
Menezes, enviou uma carta para o Capitão Mor da Paraíba informando que não poderia se
envolver no processo, pois este já havia sido remetido a Lisboa, ficando sob responsabilidade
do Conselho Ultramarino7. Todos os envolvidos na compra e no transporte desses africanos
estavam presos. Ora, sendo o comércio de escravos algo absolutamente natural naquele período,
aliás, sendo uma das maiores fontes de arrecadação da Coroa portuguesa, qual crime haviam
cometido? Por que foram todos presos?8
A região que no período colonial era conhecida como Costa da Mina refere-se
hoje aos países de Gana, Togo e Benim na costa Ocidental da África9. O processo de expansão
portuguesa iniciou-se no século XV, em especial a partir de 1415, com a tomada de Ceuta,
importante entreposto comercial no norte do continente, que permitiu o avanço português sobre
a África.
Logo abaixo o deserto do Saara, a Costa da Mina era conhecida, inicialmente, como
Costa da Guiné. Em meados do referido século, o Império português em formação percebeu a
necessidade de garantir suas conquistas, instalando a Casa da Guiné e iniciando contratos de
exploração da região ocidental da África. Na década de 1480, Portugal oficializou a possessão
das terras da Guiné e, diante das disputas com outros povos europeus, construiu um forte,

6
AHU_CU. 014, Cx. 7, Doc. 558.
7
O Conselho Ultramarino foi criado em 1642 para administrar as demandas vindas das colônias portuguesas no
ultramar.
8
Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, v.85, 1949, p. 62
9
“Chamamos Costa da Mina a parte do golfo ou Baía do Benin situada entre o Rio Volta e Cotonu” In. VERGER,
Pierre. Fluxo e Refluxo do Tráfico de Escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos 28
séculos XVII a XIX. Tradução Tasso Gadzanis. 4 ed. Salvador: Corrupio, 2002, p.37.
conhecido como Castelo de São Jorge da Mina, que se tornou o principal ponto de concentração
do comércio de ouro e escravos da região10.
No decorrer do século XVII, as disputas geopolíticas entre o Império Espanhol e os
Países Baixos acabaram por envolver Portugal e suas possessões, incluindo Brasil e África. As
capitanias do Norte do Brasil foram dominadas pelos holandeses que, em seguida, partiram para
a conquista de Angola e a Costa da Mina11. Este ponto é central para compreendermos o caso,
pois, após anos de guerra, os portugueses conseguiram reconquistar o território do Brasil e seus
domínios em Angola. O mesmo não se pode dizer sobre a Costa da Mina, que se tornou um
grande dilema à Coroa lusa, pois passou a ter o controle dos holandeses e ingleses.
Na virada do século XVII para o XVIII, o tema do comércio de escravos entre a
referida Costa e o Brasil tornou-se uma constante preocupação das autoridades do Império
português. Em primeiro lugar, era constante a presença de piratas e roubos das embarcações
portuguesas que navegavam por este litoral. Em segundo lugar, para conseguir comprar
escravos nesta região, fazia-se necessário ter como mercadorias de troca o ouro (extraído das
Minas do Brasil) e o tabaco produzido nas lavouras brasileiras. Estas mercadorias, por direito,
não deveriam ser utilizadas neste comércio, mas sim para o benefício do Tesouro Real12.
Os holandeses tentaram constantemente controlar esse comércio e retirar vantagens
dos navios portugueses, não só cobrando taxas para negociar os escravos como atacando os
navios, como referimos acima. A Inglaterra, por sua vez, também tentava obter lucros nesse
negócio. O contato entre ingleses e luso-brasileiros na Costa da Mina era constante e, como diz
Verger, variou entre conflitos e acordos. Desde o final do século XVII, os britânicos
estabeleceram uma Companhia de Comércio na região, especialmente no chamado Cape Coast
Castle. Em troca de ouro do Brasil, negociavam os escravos.
Diante dessas condições, a Coroa portuguesa tentou inúmeras vezes regulamentar
tais negócios. Em vão. Eram constantes as acusações de contrabando e “descaminhos” do ouro

10
Sobre o domínio português da costa da mina, ver DIAS, Manuel Nunes. A organização da rota atlântica do ouro
da Mina e os mecanismos dos regates. Revista de História (USP). v. 21, n. 44 (1960), e SOARES, Mariza de
Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
11
Sobre as relações e interesses políticos e econômicos dos holandeses no atlântico, ver NASCIMENTO, Rômulo
Luiz Xavier. Mare clausum e mare liberum: episódios luso-neerlandeses no Atlântico sul. In: Atlântico: história
de um oceano. Org. Francisco Almeida [et al]. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, pp. 119-149;
BOXER, Charles R. O império marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
12
A documentação é constante ao relatar os possíveis contrabando de ouro e tabaco para a Costa da Mina. Cf. a
coleção Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, v.85 e 86 (1949), v. 98 (1952), v. 99 e 100
(1953). Ver também FERREIRA, Roquinaldo. “‘A arte de furtar’: redes de comércio ilegal no mercado imperial
ultramarino português (c. 1690-c. 1750)”. In: Fragoso, João; Gouvêa, Maria de Fátima Silva (orgs). Na trama das 29
redes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 203-241; sobre as várias leis regulamentando essas trocas,
ver VERGER, op. cit, 2002.
e do tabaco para o comércio com a Costa da Mina. Além disso, os navios estrangeiros eram
proibidos de entrar no Brasil. Será que Rolan Martin havia cometido contrabando? Matias
Taveira teria mandado seu mestre, João Gomes, a comercializar africanos ilegalmente? 13
Conseguimos encontrar parte da documentação do Conselho Ultramarino sobre
a continuidade do processo e decisão tomada pelas autoridades reais. O caso caiu nas mão de
Antônio Rodrigues da Costa. O conselheiro compreendeu que o capitão-mor, Antônio Fernão
Castelo Branco, havia agido com excesso, não tendo necessidade de prender os envolvidos.
Matias e todas as testemunhas admitiram que os escravos tinham sido negociados na Costa da
Mina. Enfim, então, fica claro qual era a acusação e o porquê das prisões. Em nenhum momento
se fez referência ao uso de ouro e tabaco ilegalmente (o que não impede que isso tenha
ocorrido). O capitão-mor da Paraíba informava que Matias Soares Taveira havia negociado os
escravos em terras do Brasil, ou seja, a embarcação havia desembarcado na Paraíba e lá Matias
comprara os africanos, o que era proibido. Temos, assim, a versão de Rolan Martin de que os
escravos haviam sido vendidos na África, tendo ido ao Brasil apenas pegar o dinheiro. E a
versão do capitão mor da Paraíba, de que esse negócio havia ocorrido em terras do Brasil.
Após sete meses preso na cadeia da Paraíba, uma carta do Governador Geral
Vasco Fernandes de Menezes ordenava a soltura de Matias Soares Taveira, que se concretizou
apenas em outubro do mesmo ano. Rolan Martin argumentava ao Rei que estava vivendo de
esmolas dadas pelos jesuítas desde a devassa. Em 1728, ou seja, sete anos após sua prisão,
Martim ainda esperava uma definição de seu caso. Seu pedido só foi atendido em 1729.
No decorrer desse caso, descobrimos alguns pontos importantes sobre as
relações construídas por Matias Taveira. O primeiro diz respeito ao fato de que, ao ser preso, a
Câmara da Paraíba manifestou-se contrário a tal decisão. Sendo um importante espaço de poder
local e de negociação com a Coroa, essa postura demonstra que Matias tinha boas articulações
não só no Atlântico, mas também com seus conterrâneos14.
Entretanto, não só de boas relações vivia o nosso personagem principal. Ao
responder sobre o caso, o conselheiro Antônio Rodrigues da Costa identificou algumas

13
De acordo com Verger, a orientação da Direção da Royal African Company era de “que fossem amáveis e
conciliadores com os capitães dos navios que vinham do Brasil, a fim de obter, dos mesmos, ouro de contrabando”.
VERGER, op. Cit., 2002, p. 63.
14
Sobre a importância das Câmaras como espaço de poder local e negociação com a Metrópole, ver BICALHO,
Maria Fernanda. “As fronteiras da negociação: as Câmaras municipais na América portuguesa e o poder central”
– In.: NADARI, Eunice, PEDRO, Joana M.ª e IOKOI, Zilda M. G. – Anais do Simpósio Nacional da ANPUH,
História e Fronteiras – São Paulo: Humanitas / FFLCH-USP / ANPUH, 1999, pp.
467-483. Ver também SOUZA, G. F. C. Elite e exercício de poder no Brasil colonial: a câmara municipal do
Recife (1710-1822). 1. ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2015 30
irregularidades no processo no que diz respeito às possíveis provas contra Matias e no fato de
que, esse caso não deveria ter sido enviado à Lisboa, pois poderia ter se resolvido nas instâncias
do Brasil, como o Tribunal de Relação da Bahia, o que ocorreu em seguida. O fato de ter ido à
Lisboa demorou na decisão final e, dessa forma, alongou o período de prisão dos envolvidos.
Teria o capitão-mor da Paraíba “errado” propositalmente, para manter Matias preso? Por que
ele faria isso? Afinal, quem era Matias?

Um típico senhor de Engenho na Paraíba do século XVIII


Apesar de ter sido preso em 1721 devido ao seu envolvimento com o comércio da
Costa da Mina, a década de 1720 é de grande importância para Matias Soares Taveira, momento
em que ele concretizou suas relações de poder. Além disso, ele permaneceu sendo um
importante agente no tráfico transatlântico, como veremos adiante.
Em 1724, portanto, três anos após a devassa aberta sobre ele que levou a sua
prisão, Matias enviara uma carta ao Rei de Portugal requerendo confirmação da patente de
Coronel das Ordenanças. Em anexo ao documento estava a recomendação do Capitão Mor da
Paraíba, João de Abreu Castelo Branco, indicando Matias Taveira ao cargo. O documento era
de 1723.
No referido documento, o Capitão Mor cumpria a determinação do Rei em indicar
uma importante pessoa que, por merecimento, assumisse as tropas das Ordenanças. O
documento de João de Abreu Castelo Branco muito mais do que cumprir a ordem do Rei,
demonstra as relações construídas por Matias Soares Taveira, que se concretizaram com o
recebimento do cargo. De acordo com o Capitão Mor, Matias era merecedor da mercê 15 régia,
pois nele
se achão as referidas circunstancias e todas as mais partes que se requerem
para cabal satisfação das obrigaçõens do dito posto a Si por ser das primeiras
e principais pessoas desta capitania como também pello assinallado zello do
Real serviço e do bem publico desta capitania que tem mostrado em diferentes
ocassiõens_ e com mayor distinssão16.

Ele se referia à “lealdade, zelo e prontidão” de Matias na luta contra a revolta


ocorrida em Pernambuco, a Guerra dos Mascates. Na ocasião, teria garantido em vários
momentos homens e dinheiro, ajudando a manter a ordem da capitania. Nas palavras de Castelo

15
O sistema de mercês foi construído em Portugal ainda no período medieval e, nos domínios do ultramar, ganhou
nova configuração. Essa política consistia em uma espécie de “troca de favores” em que o súdito prestava serviços 31
ao Rei e, em troca, recebia cargos e títulos.
16
AHU_CU. 014, Cx. 7, Doc 415
Branco, o seu indicado a Coronel mobilizou cerca de 40 a 50 de seus escravos e 70 a 80 homens
para defender a capitania e o Rei. Esses números demonstram a grande quantidade de escravos
e influência de Matias, tendo uma rede ampla de dependentes dispostos (ou seriam obrigados?)
a segui-lo na luta.
Em documentos posteriores, Matias Taveira é apresentado como Coronel das
Ordenanças, o que confirma o recebimento de sua patente. A organização das tropas no Brasil
estava dividida em dois regimentos: Milícias e Ordenanças17. As tropas das Ordenanças eram
lideradas por grandes proprietários de terras no Brasil e tinham a função não só de defesa e
ordem, mas fortalecia os poderes políticos desses senhores18. Dessa forma, a patente de Coronel
reforçou um poder local que Matias já vinha construindo, sobretudo, na sua posição de senhor
de engenho. Não era qualquer pessoa que assumia tal posição. De acordo com o levantamento
feito por Borges da Fonseca em seu Nobliarchia pernambucana, Matias Taveira era filho de
José Soares Teixeira (ou seria Taveira?), homem de “grossos cabedais na Parahyba”, e
Marianna Correia19. Pouco conseguimos encontrar sobre o pai de Matias. Porém, foi dele que
herdou os engenhos que possuía: o engenho Una e Tabocas20.
Estas, porém, não eram as únicas propriedades das quais era dono. Mais uma vez,
vemos a década de 1720 como importante para o fortalecimento e expansão de seus relações de
poder e seu cabedais. Nos registros de concessão de sesmarias, identificamos nove propriedades
entregues a Matias Taveira, três delas apenas na referida década. Na primeira, datada de 8 de
junho de 1725, ele conseguiu terras na ribeira da rio Araçagi. Esta sesmaria pertenceria a mais
dois primos seus, João e José Correa Ribeiro. Na segunda, do mesmo dia, recebia terras que
eram devolutas, ou seja, não haviam sido ocupadas pelo antigo proprietário. Na terceira, de 28
de julho de 1727, ficava às margens do rio Mamanguape. Desta última, interessante notar que,

17
MARIANO, S.R.C. Na Teia da Relações de Poder: As Juntas Governativas e os Militares na Paraíba (1821-
1823). Saeculum (UFPB). v. 15, p.137-148, 2006 . Ver também o clássico SODRÉ, Nelson Werneck. Historia Militar
do Brasil. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 60-66. Em alguns documentos, Matias Soares também
aparece como Mestre de Campos das forças auxiliares, mas não conseguimos o processo de como ele conseguiu
esse posto.
18
Vale ressaltar aqui que essas relações de poder eram reorganizada por gerações. Anos depois da morte de Matias,
seu genro (Amaro Gomes Coutinho, importante figura política da Paraíba) requeria o posto de mestre de campo
que havia pertencido ao seu sogro. Ver AHU_CU_014, Cx. 30, D. 2188, AHU_CU_014, Cx. 30, D. 2147,
AHU_CU_014, Cx. 30, 2192
19
BORGES DA FONSECA, Antônio José. Nobiliarquia Pernambucana. Anais da Biblioteca Nacional, vol.4,
1925, p. 445 32
20
O Engenho Una era um dos mais importantes da Várzea do rio Paraíba, sendo também um dos mais antigos da
região.
à esquerda já havia uma propriedade sua. Assim, ele conseguia ter duas propriedades vizinhas,
somando grande extensão terra21.
Além de expandir suas propriedades de terra, Matias Soares precisava fortalecer
suas relações. Para isso, não bastava receber a patente de Coronel das Ordenanças, nem ficar
mais rico. Era preciso mais. Em 1723, foi escolhido para ser o Provedor da Santa Casa da
Misericórdia da Paraíba. Antes e depois de sua experiência como Provedor da Casa, quem
ocupou o referido cargo foi nada menos do que o Capitão Mor João de Abreu Castelo Branco,
a figura política mais importante da capitania, ao qual já fizemos referência 22.
Sete anos depois, em 1730, Matias voltou a ser escolhido Provedor da Santa Casa.
Essa nomeação pode nos demonstrar uma possível característica dele: mediador de conflitos.
Em 1729, o Padre Ignacio Pereira de Azevedo (escrivão da irmandade) entrou em conflito com
Salvador Quaresma Dourado, que era Provedor da Fazenda na Paraíba. Tal conflito aprofundou-
se a tal ponto que, em ausência da mesa diretora, o Padre Ignacio conseguiu a expulsão de
Quaresma Dourado da Santa Casa da Misericórdia, causando uma crise interna na Irmandade 23.
A escolha de Matias após os conflitos internos da Santa Casa da Misericórdia pode nos leva a
acreditar em seu potencial de mediar a situação, sendo um nome que de consenso entre os
grupos em disputa?
Sem dúvidas, pela quantidade de terras, escravos e dependentes que já falamos,
além da posição de Provedor, ocupada por ele em duas oportunidades, e pela defesa dele feita
pela Câmara da Paraíba demonstra que Matias era uma pessoa bem relacionada e influente na
região. Mas será que ele era uma unanimidade, não tendo estabelecido conflitos? Um outro
capitão mor da Paraíba pode nos ajudar a responder a questão.

21
Os registros de sesmarias da Paraíba foram transcritos por João Lyra Tavares em sua obra TAVARES, João de
Lyra. Apontamentos para a história territorial da Parahyba. Mossoró: [s.n.], 1982. (Coleção Mossoroense, v.
CCXLV). [Edição fac-similar de 1910]. Estão disponíveis na internet no banco de dados http://silb.cchla.ufrn.br/;
As outras sesmarias cedidas a Matias Taveira foram: duas na década de 1730; três na década de 1740; e uma em
1751. Também encontramos suas filhas, Ana Maria Moraes e Cândida Rosa Teonora de Aragão, solicitando terras
e fazendo referências a importância de seu pai para a ocupação da Paraíba.
22
Fundadas em Portugal no final do século XV, as Irmandades de Nossa Senhora Mãe de Deus Virgem Maria da
Mercê, conhecidas como Santas Casas da Misericórdia, se espalharam pelos domínios ultramarinos portugueses.
Tais irmandades foram, juntamente com as Câmaras, as bases de sustentação do Império português, garantindo-
lhe unidade. Assumir um cargo de Provedor demonstrava importantes influência entre as elites locais e poder
simbólico, não à toa que grande parte dos provedores eram os governadores da capitania. Para mais informações
ver, Boxer, op. Cit, p., RUSSEL-WOOD, A J. R. Fidalgos e Filantropos. A Santa Casa de Misericórdia da Bahia,
1550 – 1755. Tradução de Sérgio Duarte. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. Sobre as Santa Casa
na Paraíba, SEIXAS, Wilson. Santa Casa da Misericórdia na Paraíba: 300 anos. João Pessoa: Santa Marta,
1987. 33
23
PINTO, Irineu. Datas e notas para a história da Paraíba. João Pessoa: Universitária/UFPB, 1977, vol. 1 p.
128.
Em 1743, Matias Soares Taveira entrou em conflito, ou melhor, “inimizade” – para
usar as suas palavras – com o governador da Paraíba, Pedro Macedo Monteiro. A causa dessa
inimizade estava no fato de que, na versão de Matias, o governador ter tirado terras de aldeias
dos índios Cariris. O Padre responsável pela aldeia foi orientado pelo Coronel de que essa
atitude não estava correta. O problema teria ocorrido pois o dito padre tornou pública a questão,
gerando desconforto por parte de Pedro Monteiro24.
Não conseguimos ter acesso às correspondências do governador ao Rei para saber
o que este argumentava, mas a defesa feita por Matias nos permite perceber quais foram
algumas das acusações. O senhor de engenho se defendia ao dizer que tudo que era invenção
de Pedro Monteiro. Uma delas consistia no fato de que Matias não cuidaria de seus recursos,
vivendo em casas indiferentes. Ele defendeu-se argumentando que vivia com pessoas dignas,
não ligava para o luxo e preferia cuidar de suas lavouras de cana e dar esmolas a quem precisava.
Acrescentava que gastava muito dinheiro com os índio Canindés, para garantir a ordem e a
religião cristã, convertendo-os e, até mesmo, aprendendo a ler e escrever suas línguas. Afirmava
ainda que mantinha sempre visitas ao sertão, garantindo a ordem nessa região. Outra acusação
consistia em que havia defendido, anos atrás, Domingos Fernandes de um crime, aproveitando-
se do fato de ser uma pessoa com cargos importantes. Independente se essas informações
estavam corretas ou não, o que percebemos é que Matias Taveira conseguiu construir
importantes laços de dependência a ele. Seja por presos que eram soltos, devido ao seu poder
de mestre de campo, seja pelas relações que constituía com os povos indígenas e pelas esmolas
por ele dadas25.
Ainda referente a esse documento, para confirmar sua defesa, Matias Taveira pedia
ao Rei que entrasse em contato com os governadores anteriores: João de Abreu Castelo Branco
e João da Maia da Gama. Teria Matias boas relações com esses governadores? O primeiro,
como vimos, lhe concedeu a patente de Coronel das ordenanças e várias sesmarias. O segundo,
além de ter participado da Guerra dos Mascates, da qual Matias havia participado como vimos
em sua carta patente, tinha grandes interesses no comércio de escravos da Costa da Mina.
Talvez aí tenha fortalecido suas relações com nosso personagem principal. Vejamos.

24
Pedro Monteiro não teve problemas apenas com Matias Taveira. Sua gestão foi extremamente conflituosa,
entrando em embates com várias figuras políticas da Paraíba. Ao morrer, foi enterrado na catedral de Nossa
Senhora das Neves, inscrevendo em seu jazigo “Aqui jaz Pedro Monteiro de Macedo que por governar mal esta
capitania quer que todos o pisem e a todos pede um Padre Nosso e Ave Maria”. PINTO, Op. Cit, 1977, p.148.
Sobre os conflitos de Monteiro na Paraíba, ver MENEZES, Mozart Vergetti. Sonhar o céu, padecer no inferno:
governo e sociedade na Paraíba do século XVIII. In.: BICALHO, Maria Fernanda ; FERLINI, Vera Lúcia. Modos
de governar: ideias e práticas políticas no Império português. Séculos XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005, 34
p.327-340
25
AHU_CU_014, Cx. 12, D. 982.
Um comerciante na periferia do Império
Apesar de todas essas relações construídas por Matias Soares Taveira, nosso
objetivo aqui é compreender como ele se inseriu no complexo e amplo mercado Atlântico de
pessoas escravizadas. Para isso, vamos voltar à acusação feita a Matias pelo capitão-mor
Antônio Fernão Castelo Branco que o levou à cadeia em 1721. Naquela oportunidade, foi
informado que, na embarcação Nossa Senhora das Neves, havia sete escravos do governador
holandês da Costa da Mina e quatro escravos da fortaleza da Ajuda 26. Seriam essas informações
indícios de que Matias era um negociante frequente naquela Costa e possuía boas relações com
as autoridades locais? Precisaríamos de outros documentos para aprofundarmos essa análise.
Porém, uma coisa nos é certa: Matias não era novato nesse trato e não terminou seus negócios
com a devassa contra ele aberta.
A capitania da Paraíba, no início do século XVIII, começou a despertar a
preocupação da Coroa portuguesa. Após décadas de dificuldades econômicas, as autoridades
da Metrópole começaram a tentar buscar alternativas para que a capitania voltasse a crescer.
Sem dúvida, as medidas de incentivo deveriam passar pela compra de escravos africanos para
viabilizar a retomada da produção do açúcar em boas quantidades. A situação era crítica e o
então governador, João da Maia da Gama, escrevia para o Rei informando que havia tempo que
buscava alternativas para a recuperação econômica da Paraíba27.
Assim, em 1714, enviou um patacho para a Costa da Mina, retornando com 170
escravos. Nenhum senhor de engenho se envolveu no negócio. Nenhum também comprou a
mercadoria humana. Numa segunda oportunidade, enviou outra embarcação que retornou com
190 africanos (270 foram aprisionados, 80 morreram). Mais uma vez, não houve resposta dos
senhores de engenho. O único que se animou na nova empreitada foi Matias. Como escreveu
Maia da Gama: “só Mathias Soares senhor de engenho fez um patacho, que brevemente fará
viagem para a Costa”28. Aqui foi, possivelmente, o início da vida de comerciante negreiro de
Matias Soares Taveira.
O envolvimento de particulares no mercado de africanos não era incomum. Ao
contrário, foi incentivado pela Coroa para resolver o problema da “falta de braços”. Em 1719,

26
A feitoria da Ajuda (Uidá) foi construída pelos portugueses no final do século XVII para garantir a proteção dos
negociadores lusos na região. Foi uma alternativa criada após terem sido expulsos do Forte de São Jorge da Mina
27
A falta de escravos era uma reclamação constante dos senhores de engenho não só da Paraíba, bem como de
Itamaracá e Pernambuco. Dentre os vários argumentos para justificar a dificuldade na compra de escravos, estava
a carestia destes e a dificuldade em disputar com a região das Minas. Ver por exemplo Documentos Históricos. 35
Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, v.99, 1952, Documentos 47 e 49, p. 85-87
28
AHU_CU_014, Cx. 5, D. 360; Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional,v. 98, p. 23
por exemplo, Portugal chegou a permitir que se criasse uma Companhia feita por moradores de
Goiana para comprarem escravos na Costa da Mina e em Angola, desde que todas as leis para
o referido trato fossem respeitadas, como a de enviar o tabaco para inspeção antes de ser
negociado29. Inclusive, esses moradores de Goiana foram importantes para os negócios de
Matias e para as relações da Paraíba com o mercado atlântico de escravos 30.
As relações entre a Paraíba e Goiana eram constantes e passavam pelo comércio de
africanos e, associado a isso, pela produção de tabaco. Em vários momentos vemos esta
articulação e isso pode nos apontar uma possível disputa entre esses comerciantes dessa região
com os de Recife na participação do comércio de escravos. No já referido documento sobre a
criação de uma companhia de particulares para comercializar escravos com a Costa da Mina,
os moradores de Goiana reivindicavam que seus tabacos não passassem pelo governo de
Pernambuco31. Tendo em vista que nesse período, Matias Taveira já negociava com produtores
e comerciantes de Goiana, não seria absurdo pensar que ele estava interessado nessa companhia
e que esta não dependesse de Recife. Vale lembrar que a capitania de Itamaracá, a qual pertencia
Goiana, foi alvo de disputas entre Pernambuco e Paraíba. Em 1712, o capitão-mor da Paraíba,
João da Maia da Gama, havia proposto ao Rei a anexação das capitanias do Rio Grande (do
Norte) e Itamaracá à Paraíba. No mesmo ano, o governador de Pernambuco destacava as
conveniências de que Itamaracá fosse anexada à Pernambuco32. A primeira metade do século
XVIII foi marcada pelos conflitos entre as duas capitanias o que resultou na anexação da
Paraíba em 175533.
Como falamos anteriormente, Matias não era novato no trato de escravos quando
foi preso, pois se desde 1716 João da Maia da Gama já anunciava a entrada de sua entrada
nesses negócios e em 1727 ele estava se articulando a produtores de tabaco de Goiana, temos
pelo menos uma década de atuação de Matias no trato de escravos. Não sabemos até quando

29
Ver Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, v.99, 1952, Documentos 46, p.83
30
MENEZES, Mozart Negros e indígenas na economia da Paraíba (1647-1755). In.: ROCHA, Solange Pereira da;
FONSECA, Ivonildes da Silva (orgs). População negra na Paraíba: Educação, história e política. Campina
Grande: EDUFCG, 2010, p. 47
31
Documentos Históricos. Op. Cit., 1952, Documento 46, p.83
32
Cf. AHU_CU_014, Cx. 4, D. 330 e Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, v.98, 1952,
Documento 76, p.115.
33
Sobre esses conflitos do século XVIII e a anexação da Paraíba a Pernambuco, ver OLIVEIRA, Elza Régias de.
A Paraíba na crise do século XVIII: subordinação e autonomia (1755-1799). 2 ed. João Pessoa: Editora
Universitária/UFPB, 2007; MENEZES, Mozart Vergetti. Colonialismo em ação: Fiscalismo, economia e
sociedade na capitania da Paraíba, 1647 -1755. Tese de doutorado em História Econômica. Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. 2005; CHAVES JÚNIOR, Inaldo. “As duras cadeias de 36
hum governo subordinado”: história, elites e governabilidade na Capitania da Paraíba (c.1755-1799).
Dissertação de Mestrado em História. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – UFF, 2013.
Matias atuou no comércio atlântico, mas em 1728 a presença de sua embarcação circulando
pelo Atlântico chamava a atenção das autoridades portuguesas 34.
Uma coisa nos chama atenção. Se as diversas idas à África feitas por João da Maia
da Gama não teriam dado certo; se a péssima situação dos engenhos e dificuldades em comprar
escravo da parte dos senhores era uma constante; por que, então, um senhor de escravos se
dispôs a adentrar em um novo ramo de atividades que poderia gerar prejuízo, construindo
relações mais amplas, com outros produtores e de outra capitania?
A primeira metade do século XVIII foi marcada pelo boom da descoberta de ouro
nas Minas, mudando por completo a geopolítica do Império português, alterando também sua
administração no Brasil. O impacto, obviamente, também foi econômico. Não apenas por
garantir uma inundação de ouro na Europa, como a intensificação do tráfico de escravos e
alteração de rotas de comércio internas no Brasil. As capitanias do Norte, com dificuldades de
retomar a produção do açúcar, passaram a perceber fluxos demográficos se concentrando nas
Minas35. É bem possível que Matias tenha feito a leitura desse momento e adentrou-se no
mercado de escravos. Não só para garantir a manutenção de seus engenhos, como para enricar,
vendendo africanos para as Minas. Ele fez parte de uma tendência comum, como é perceptível
na tabela a seguir.

Quadro 1 – Números de africanos importados para o Brasil, Pernambuco e Paraíba no século XVIII.
Período Importação para Importação para Africanos
o Brasil Pernambuco importados
diretamente para
a Paraíba
1676-1700 294.851 92.326 811
1701-1725 476.813 121.301 1.168
1726-1750 535.307 80.993 2.903
1751-177536 528.156 76.923 -----
1776-1800 670.655 79.835 353

34
DO OUVIDOR DA PARAHYBA. 7 de março de 1728. TT-JT, Maço 100 A, Caixa 90. Apud LOPES, Gustavo
Acioli. Negócios da Costa da Mina e comércio atlântico: tabaco, açúcar, ouro e tráfico de escravos: Pernambuco
(1654 – 1760). Tese de doutorado em História econômica. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Universidade de São Paulo. 2008.
35
Gustavo Lopes defende a tese de que essa foi uma das principais estratégias dos comerciantes de Pernambuco
se livrarem da crise econômica que a capitania vivenciava no início do século XVIII. Acreditamos que o mesmo
posse ter ocorrido em relação à Paraíba.
36
Esse foi o período de atuação da Companhia Geral de Comércio Pernambuco e Paraíba, criada pelo marquês de 37
Pombal que monopolizou o comércio das duas capitanias. Dessa maneira, a entrada de africanos nesse período era
quase toda por Recife, o que gerou vários conflitos com senhores e comerciantes da Paraíba. Cf. Guimarães(2015)
Fonte: http://www.slavevoyages.org/tast/assessment/estimates.faces. Acesso em 13 de junho de 2018.

Percebemos que o século XVIII representou um crescimento significativo na


compra de africanos para o Brasil, consequência da necessidade cada vez maior de escravos
para as atividade auríferas nas Minas. Esse aumento do comércio levou à inflação dos preços
de africanos e uma grande oportunidade de enriquecimento dos comerciantes. O segundo
quartel do século demonstra uma queda da participação de Pernambuco e um aumento (ainda
que em números absolutos, seja uma quantidade pequena) da entrada de africanos na Paraíba.
Como esta capitania estava com dificuldades na produção do açúcar e havia constantes
reclamações dos proprietários na falta de escravos, a única hipótese que nos resta seria o fato
de que estes africanos eram comprados para serem revendidos nas Minas.
O aumento do preço dos escravos apresentou-se como interessantes para os
comerciantes, mas desagradável para os senhores de engenho, que tiveram que despender mais
cabedais para conseguir manter suas produções em dia e que, constantemente, passaram a
reclamar da dificuldade em comprar escravos. Além do mais, para os comerciantes estava sendo
mais lucrativo vender para as Minas, não só por conseguirem ouro, mas porque era uma venda
certa. A câmara de Itamaracá (ou seja, da Vila de Goiana) escrevia ao Rei informando sobre
essas dificuldades para os produtores das capitanias do Norte, pois os escravos eram caros e
todos desciam para as minas37.
No ano de 1724, período de considerável participação da Paraíba no comércio
transatlântico de escravos, foram desembarcados na capitania 27 africanos. Estes haviam sido
comprados ilegalmente, pois se utilizou ouro em pó na negociação, o que era proibido até então.
Dessa forma, tais africanos foram aprisionados pelas autoridades reais e vendidos em praça
pública, devendo ir o arrecadado para os cofres reais. Contudo, houve um problema. Assim
como João da Maia da Gama reclamara anos antes da não participação dos proprietários na
compra de africanos, nessa oportunidade, nenhum senhor da Paraíba comprou os africanos. Dos
27, apenas 9 foram vendidos e não para paraibanos e sim para negociadores das Minas 38. Esse
caso demonstra uma presença de agentes comerciais vinculados às Minas na Paraíba, com
intuito de comprar africanos. A participação de Matias Taveira nesse comércio poderia, assim,
ter como intuito não vender os escravos na Paraíba, mas sim nas Minas39.

37
Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, v.99, 1952, Documentos 47 e 49, p. 85-87 38
38
AHU_CU_014, Cx. 5, D. 410
39
Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, v.99, 1952, p.174
Contudo, mesmo que oferecesse vantagem para os negociantes da Paraíba o
negócio com a Costa da Mina, este não era algo fácil. Negociar escravos a partir do Rio de
Janeiro, Salvador ou Recife era mais fácil, devido ao maior cabedal dos seus negociantes. Os
da Paraíba, em concorrência, estavam em desvantagem. O capitão-mor da Paraíba escrevia, em
1723, sobre uma embarcação que acabara de chegar na capitania vinda da Costa da Mina. Na
oportunidade, os negociantes reclamavam, pois era difícil conseguir comprar escravos diante
da concorrência do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, pois os negociantes destas possuíam
mais ouro em pó, levando vantagem na negociação. Em uma embarcação que poderia carregar
240 escravos, os negociantes da Paraíba conseguiram apenas 6040. Essa informação pode nos
ajudar a compreender como havia pouca participação de comerciantes da Paraíba no trato dos
viventes, para usar a feliz expressão de Alencastro. Comerciantes de menores cabedal e sem
grandes contatos com a África não se envolviam tão facilmente com o tráfico. Além do mais,
negociar com as Minas era um ponto chave não apenas para enricar mais, como para conseguir
mais ouro e reinvestir esse capital no comércio de escravos novamente.
No início do século XVIII, já se formulava uma disputa entre esses homens de
negócios com os proprietários de terra, sobretudo, no que diz respeito ao controle do poder
político. A historiografia tem avançado nas pesquisas sobre os negociantes de grosso trato no
século XVIII. Os estudos sobre diversas regiões do Brasil têm demonstrado traços gerais sobre
esse grupo social. Normalmente eram portugueses que se estabeleciam no Brasil e se envolviam
em várias atividades comerciais. Acumulavam riqueza e passavam a adquirir terras e usufruir
de bens simbólicos dos proprietários41.
Em estudos sobre a câmara de Recife, George Souza apresenta alguns vereadores
que eram grandes negociantes que se envolveram com o mercado atlântico de escravos. Eram
eles: José Vaz Salgado, Antônio José Brandão, Basílio Rodrigues Seixas, José de Freitas
Sacoto, Luís Ferreira de Moura, Manuel Clemente e Manuel Correia de Araújo 42. Todos estes
eram possíveis concorrentes de Matias Taveira. Em outra obra, ao fazer um levantamento dos
comerciantes da praça do Recife, uma de suas conclusões foi que “a comunidade radicada no
Recife tem em comum com outras praças a origem de seus componentes. A maioria esmagadora

40
Documentos Históricos. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, v.99, 1952, p. 231
41
Ver FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla; SAMPAIO, Antônio Jucá (orgs) Conquistadores e Negociantes:
Histórias de elites no Antigo Regime nos Trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007. 39
42
SOUZA, G. F. C. Elite e exercício de poder no Brasil colonial: a câmara municipal do Recife (1710-1822). 1.
ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2015, p.306-308
é de reinóis oriundos da região compreendida entre o vale do Douro e o vale do Minho, ou seja,
o extremo norte do Reino”43
O que podemos perceber a partir da experiência de Matias Soares Taveira é que,
diante de uma tendência ampla de enriquecimento com o negócio de escravos africanos, um
senhor de engenho, que não era negociante torna-se um. Envolve-se em um mercado
extremamente complexo e de risco para poder obter ainda mais ganhos e ampliar suas relações
de poder e riqueza. Diferente do caminho seguido pelos comerciantes de grosso trato no Brasil
do século XVIII, que ao enricarem cada vez mais, passavam a buscar títulos de Nobreza e
aproximar-se dos grupos senhoriais, Matias caminhou no sentido inverso e demonstrou as
vantagens e dificuldades de atuação no tráfico negreiro a partir de uma região que não era
central nessa atividade.

***

O caso de Matias Taveira aqui analisado nos ajuda a pensar alguns traços do
comércio atlântico de escravizados no século XVIII. Um grande proprietário de escravos e
terras, com amplas redes de dependência e poder percebeu no negócio de pessoas uma
interessante oportunidade de ampliar sua rede de poder e riqueza, além de garantir o acesso
direto aos escravos, algo difícil para um senhor de escravos da Paraíba setecentista.
O seu envolvimento no comércio respondia primeiro a necessidade de obter
escravos para o desenvolvimento de seus engenhos. Segundo como uma forma de ampliar sua
riqueza e seus contatos comprando escravos na África e vendendo-os nas Minas. Matias não
era um comerciante de ofício, mas um senhor de engenho que viu no comércio de escravos uma
oportunidade de fazer bom negócio. E possivelmente o fez, pois apesar das dificuldades e riscos
desse comércio, permaneceu por um tempo razoável.
Ao participar desse mercado, ele precisou abrir brechas em um cenário de disputas
regionais e atlânticas, que era dominado por grandes praças comerciais. Para isso,
possivelmente ampliou alianças com alguns de seus vizinhos, como os produtores de Goiana, e
estabeleceu conflitos com outros. Não sabemos exatamente quando Matias saiu desse negócio,
porém, as informações que temos sobre sua experiência no tráfico de escravos permite sabermos

40
43
SOUZA, G. F. C. Tratos e mofatras: o grupo mercantil do Recife colonial (c.1654-c.1759). Recife: editora
Universitária UFPE, 2012, p.283
que ele foi apenas mais um dos inúmeros agentes responsáveis pelo mercado de gente, tão
comum em sua época.

41
TRABALHADORES DO MAR: RECRUTAMENTO PARA AS FAINAS DA
MAREAÇÃO NA CAPITANIA DE PERNAMBUCO, SÉCULO XVIII.

Wildson Félix Roque da Silva1


Mestrando (UFRPE)
wildson_f@hotmail.com

Os marinheiros não eram figuras bem quistas dentre a urbe. Sujeitos que sob as
lentes da sociedade colonial eram tidos como gente sem nenhuma consideração, personagens
vistos, "em mui pouco, e valem menos e são bem diferentemente estimados que em Portugal,
coisa de certo mui bem merecida neles e por gente mui sobre si, de pouco amor e caridade e de
muito menos verdade, e nos maiores perigos e tormentas não têm conta com Deus e seus santos"
(BRITO, 1905 apud MICELI, 1994). Uma imagem negativa que ressoa também no anônimo
autor da Vida marítima, ou costume dos navegantes no tempo do seu embarque, texto que no
final do século XVIII se utiliza de traços típicos da vilania para retratar o trágico cotidiano dos
trabalhadores marítimos. Segundo o texto de poesia lusa, esses marinheiros:

Se obrigado da ordenagem,
Que te devo obediente,
Não viste a libertinagem,
Rito, costume, lingoagem,
Da vil marítima gente.
Gente de lei depravada,
Nunca em terra conhecida,
D'huma lei endiabrada,
No Cocito fabricada,
No mar estabelecida.2
Estes dentre outros relatos que circulavam dentre o mundo colonial valiam-se
geralmente da rudeza típica destes homens, evidente frente às necessidades e as privações tão
comuns às viagens no universo regido pelo comércio a vela; da própria frieza no trato com a

1
Este texto é parte da pesquisa realizada pelo autor, em trabalho orientado pela Profª. Drª. Suely Creusa Cordeiro
de Almeida, UFRPE 42
2
Vida maritima, ou costume dos navegantes no tempo do seu embarque. Officina de Simão Thaddeo Ferreira,
1792.
morte, companheira da realidade e da imaginação dos mareantes; como também das queixas de
insubordinação que não raramente eram feitas, sejam no mar, dos quais eram os alvos, dos
capitães, mestres e pilotos, como em terra, pelas autoridades coloniais e seus representantes
diretos, para em conjunto contribuir para com a difusão deste estereótipo envolvendo a figura
dos trabalhadores do mar e de sua permanência, com muito poucas alterações, na composição
imagética que fazia a sociedade até pelo menos o século XIX, quando das grandes
modernizações da armada. Para Jaime Rodrigues (2005) a incivilidade que rodeava a figura dos
mareantes quando demonstravam seu comportamento em terra, e que pode estar no eito para a
circulação da imagem vil destes trabalhadores eram em boa medida explicadas pela maneira
compulsória com a qual a maior parte destes homens era recrutada para as lides marinhas. 3
Esses homens rudes, empobrecidos e não raramente espoliados pelos seus próprios
capitães, eram encontrados pelos seus recrutadores em meio às tavernas próximas as ribeiras
ou oferecendo seu próprio serviço entre as embarcações ancoradas no cais e pontos ligantes das
cidades portuárias, isto é claro, quando não vinham a cair no serviço das marinhas mercantes
por meio dos traumáticos recrutamentos forçados sob quais eram submetidos pelas figuras de
autoridade coloniais ávidas de gente já habituada à faina marinha. Quando o recrutamento
ocorria de maneira voluntária, isto é, quando estes membros negociavam diretamente ou por
meio de outras figuras das ribeiras, os chamados armadores, o seu ingresso em meio à faina de
uma tripulação é de se imaginar que levassem em consideração para o seu serviço ou não nos
misteres das embarcações, seus afetos no microcosmo portuário, os conhecidos de sua rede
pessoal, a fama ou má fama que podia circular da imagem de tal ou tal capitão, as condições do
trabalho e provisões, e claro, a rota de comércio.4 Pelo menos foi deste o modo com o qual o
capitão negreiro Manoel da Fonseca e o senhorio Manoel Ferreira dos Santos Maia,
encontraram e recrutaram a tripulação que serviria no seu navio a comercializar escravos entre
a costa africana e a Bahia de Todos os Santos de meados de 1756. 5 Todavia, devido às
semelhanças dentre as dinâmicas das cidades portuárias da América portuguesa, não é forçoso
considerar que seriam também semelhantes às estratégias para o recrutamento de tripulantes
empregados entre os capitães, seus armadores, e os marujos nas suas empreitadas que partiam
do porto de Recife, uma vez que não foram encontrados dados que exponham essa prática de

3
RODRIGUES, Jaime. De Costa a Costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola
ao Rio de Janeiro (1780 – 1860), São Paulo, Companhia das Letras, 2005. p.190.
4
Ibid., p.160. 43
5
SOUZA, Cândido Eugênio Domingues de. “Perseguidores da espécie humana”: capitães negreiros da Cidade
da Bahia na primeira metade do século XVIII. 2011, p. 160.
recrutamento, entre as tripulações dos tumbeiros e seus respectivos capitães, com saída nos
portos de Pernambuco na base documental analisada.
Em terra, quando aproveitavam seu tempo em meio às tavernas dos bairros
portuários, estes trabalhadores do mar marcavam sua presença em meio a rixas, pequenos furtos
e contrabando, oferecendo por vezes sério risco à manutenção da ordem pública e não raramente
eram vistos em meio a conflitos cujas causas eram muitas das vezes das mais triviais. 6
Confrontos desta natureza, envolvendo os trabalhadores do mar e as autoridades da terra, são
recorrentes na documentação, demonstrando a prática de uma resistência dos mareantes à
sujeição a algumas figuras de autoridade, sobretudo os soldados das rondas e as autoridades do
porto, situações como esta que por vezes chegaram a exigir uma postura mais enérgica da
autoridade colonial na interseção destes casos, postura que abrandava logo em seguida, quando
do cumprimento, ou melhor, do relaxamento das penas. Como no caso ocorrido na praça do
porto do Recife em 1765, culminando com a prisão, devassa e posterior soltura dos marinheiros
e moços que serviam nas embarcações da Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e
Paraíba.7 A assuada que teve por palco o porto recifense foi iniciada quando alguns soldados
da capitania, sob o pretexto de uma “Ronda viram dar em quem dormia descansado, espoliados
com injuria do lugar que sempre descansaram, [então] os Marinheiros investiram com os
Soldados”. Não foi relatado um número exato de marinheiros que foram “espoliados” pelos
soldados da ronda enquanto dormiam no seu habitual descanso, o documento deixa claro, no
entanto, que se somaram a estes alguns outros marinheiros que estavam presentes na praça ou
observando de cima de suas embarcações o caso que tomava contornos mais agressivos,
invertendo o rumo esperado daquela contenda para o lado dos mareantes. Foi tamanha a
comoção que àquela altura já espantava os presentes, quando: “os ditos Marinheiros ao tempo
que correram atrás da Ronda haviam atirado varias pedradas, e porque algumas pessoas tinham
fugido pela dita Igreja de onde também se esconderam alguns dos soldados da ronda”. Ao fim
do embate, sem que houvesse quem se acusasse como responsável por ter iniciado a assuada
deflagrada no porto, o juiz de fora chamado ao caso tratou de enviar encarcerados todos os
trinta e seis mareantes das embarcações da Companhia que estavam ancoradas no porto para
que fosse dado andamento à devassa que aconteceria no reino. Enquanto aguardavam a sentença
do tribunal, dez deles acabaram sentenciados a morte pela fome e pelo frio, dada as condições
do lugar onde estavam encarcerados, coisa que pode e deve ter contribuído para a decisão final

6
LAPA, José Roberto do Amaral. A Bahia e a Carreira da Índia. A Bahia e a Carreira da Índia. Brasiliana, 1968,
p. 216. 44
7
ANTT. Feitos Findos, Conservatória da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, mç. 3, n.º 7, cx. 3. Autos
crime de livramento em que é autora a Justiça e réus João Francisco e Outros.
do processo, como também das ambiguidades entre as versões de alguns dos testemunhos
ouvidos sobre a intencionalidade dos mareantes na altura do conflito ou na casualidade do
embate frente à Igreja, situação que poderia em caso de entendimento negativo resultar de
sacrilégio ou atentado. No fim das contas acabaram as autoridades por absorver os réus de suas
acusações e libertá-los do cárcere às suas contas.
O próprio governador da Capitania de Pernambuco, José Cesar de Meneses,
partilhava da opinião muito clara e de certa forma recorrente quando se trata da figura dos
mareantes. Escrevendo ao Conselho Ultramarino, em abril de 1776, expressava assim a imagem
que fazia dos homens do mar: “Como pelos muitos embarques que fiz, sei que esta gente em se
achando junta, costuma fazer na América semelhantes desordens”, opinião que reiterava
quando por força das proporções tomadas por outra confusão no porto do Recife fora obrigado
a interpelar um conflito entre um grupo de marinheiros dos navios mercantes e a Guarda da
Alfândega, para o socorro do segundo grupo que haviam levado a pior no confronto e já
contavam na altura da chegada do governador de alguns feridos entre “cutilados” e sujeitos com
membros quebrados.8 Avistando a chegada do reforço armado que a delegação do governador
oferecia, o bando de marinheiros pôs-se a fugir em seus botes em meio à ordem de fogo dada
pelo comandante das tropas, tentativa frustrada, foram em seguida capturados no seu refúgio,
um navio de invocação Prazeres. Todos os dezenove marinheiros envolvidos acabaram em
calcetas, servindo em obras públicas, como da construção da Corveta de S. Majestade, a mesma
embarcação com a qual, tempos depois, devido à falta de marinheiros no porto e a alegada fuga
dos líderes da confusão, acabaram liberados da pena para alistamento no serviço da embarcação
real e de outra pertencente à Companhia Geral de Comércio.9
O desfecho deste episódio em particular é bastante claro no que tange a justificativa
do então governador de Pernambuco para o uso destes mareantes, mesmo considerados
criminosos, como força de trabalho nas lides da marinha portuguesa, tratada dada a falta
recorrente de mão de obra especializada na faina marítima sentida na capitania, como também

8
AHU_ACL_CU_015, Cx. 122, D. 9323. Recife, 22 de abri de 1776. OFÍCIO do [governador da capitania de
Pernambuco], José César de Meneses, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro,
sobre uma rebelião de marinheiros, prisão e castigo dos mesmos metendo os em calceta e no trabalho de
obrigatório.
9
AHU_ACL_CU_015, Cx. 123, D. 9386. Recife, 17 de junho de 1776. OFÍCIO do [governador da capitania de
Pernambuco], José César de Meneses, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro,
sobre as medidas tomadas a respeito dos 19 marinheiros que haviam se amotinado contra os soldados da guarda
da Alfândega da dita capitania.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 123, D. 9394. Recife, 2 de agosto de 1776. OFÍCIO do [governador da capitania de
Pernambuco], José César de Meneses, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro,
sobre os consertos na corveta real, o destino dos marinheiros amotinados que auxiliaram no referido conserto e se 45
ter aparelhado o navio que vai render a tropa de Fernando de Noronha com material da Companhia Geral de
Pernambuco e Paraíba, pois seria menos dispendioso.
do caráter pragmático das decisões que tocavam no delicado e racionalizado erário régio, pontos
que podem ter sido as principais razões para o uso recorrente deste tipo de mão de obra a serviço
do Estado. Segundo Charles R. Boxer (2000), desde pelo menos o século XVI que daqueles
crimes mais graves, aos leves, estendendo-se até então dos não julgados, como uma forma de
pena antecipada, todos eles poderiam ser punidos com o recrutamento forçado ou o degredo
útil.10 O mesmo valia para os bandos de vadios, ociosos e especialmente dos ciganos, cuja
perseguição fora intensificada durante o reinado de D, João.11 Optando pela progressão da pena
do cárcere ao serviço nas embarcações, as autoridades por sua vez não só despendiam menos
recursos com os processos e com o próprio mantimento dos mareantes, mesmo nas precárias
condições do cárcere colonial, como também aproveitavam da desta mão de obra que estava
disponível e acessível ao braço do estado português, esta situação se torna ainda mais evidente
quando dos recrutamentos movidos pelos próprios agentes do estado português.
Antes, no entanto, é interessante reiterar ao fato que mesmo sendo alvos de uma
visão negativa, e de certa forma merecida, de que faziam dos mareantes uma parcela da
sociedade que vivia em terra, expressa, sobretudo, na recorrente imagem de vilania a eles
atribuída havia em contrapartida uma grande atenção da coroa portuguesa sob estes indivíduos,
afinal de contas, com o crescimento do comércio marítimo e a generalizada carência de mão de
obra especializada nestes serviços, estes indivíduos nunca foram tão preciosos para o Estado.
As autoridades coloniais tiveram de administrar o empasse de não ter os recursos necessários
para administração de uma onerosa armada e a necessidade de compor os vasos com estes
mesmos mareantes organizados a serviço do Estado, e disto surgem as estratégias empregadas
para mobilização, organização e manutenção destes homens, o que resulta numa série de breves,
mas prolongados conflitos entre governadores, oficiais e marinheiros, onde as imagens das
deserções, motins e revoltas tornam-se cada vez mais visíveis. Paralelo a isto, a partir de meados
do século XVIII existe um processo ainda maior que dinamizava a produção de registros sobre
indivíduos e localidades, ocorridas no reinado de D. José I, tomando forma a partir das reformas
administrativas do então Conde de Oeiras, Sebastião José de Carvalho e Melo. Neste contexto
percebe-se uma guinada nas produções de leis e editos promulgados, relacionados aos mais
diversos assuntos, inclusos neles as preocupações da administração régia referentes aos seus
domínios coloniais e, sobretudo ao seu comércio, que no final das contas era o que dava aval
ao seu título de “Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, Senhor da

10
BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil, 3ª edição. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000, p. 299. 46
11
SILVA, Manoel Cícero Peregrino da. Relatório Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, v. 28, 1906, p. 344-346.
Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc.". Algumas
destas produções demonstravam a preocupação da coroa no tocante diretamente as práticas dos
mareantes, como foram, por exemplo, a imposição das matriculas de equipagens de navios que
já em seu termo de abertura proibia, sob a pena de degredo por seis anos em Angola e de serem
considerados inábeis para o serviço na navegação, os capitães e mestres das embarcações que
aceitassem dentre seus subordinados:
por marinheiro, grumete ou moço, ou debaixo de qualquer outro pretexto,
pessoa alguma que se não a legitime, mostrando a identidade da sua pessoa e
de seus pais e pátria, e justificando que é da profissão marítima e que tem
residido dentro deste Reino pelo menos três anos contínuos e sucessivos.12
Sobre esta forma de identificação e controle sob a circulação destes indivíduos
materializada nas matriculas, cabe a interpretação que fazem que alguns historiadores do
período, desta estratégia como uma tentativa dada a cabo pela coroa e seus agentes de se
reservar o trabalho entre as fainas marítimas para aqueles mareantes nascidos no reino,
garantindo desta forma a mão de obra para as camadas citadinas empobrecidas e evitando o
emprego e concorrência com os indivíduos de outras nacionalidades.13
Como visto anteriormente, as demandas do comércio atlântico pressionavam as
autoridades a comporem maiores equipagens, portanto, havia a possibilidade da própria coroa
ou a figura de seus agentes empregarem estes indivíduos, mareantes ou não, diretamente no seu
real serviço. Pairava sob estes trabalhadores do mar a possibilidade de serem ingressados nas
lides do mar por meio da disposição da administração colonial em fazer recrutas, sob a égide
dos recrutamentos forçados, bastando que a força das circunstâncias ou de alguma emergência
iminente no estado português justificasse o caso. Esse modo coercitivo de arregimentar
trabalhadores, muitas das vezes assustava até os próprios oficiais das embarcações, levando-os
a evitarem aportar nas cidades em tempos de recrutamento, pois temiam que fossem privados
dos seus tripulantes, questão que gerava alguns empasses, dado que boa parte dos gêneros
consumidos nas cidades vinha nestas embarcações.14
As tensões que pairavam a fronteira sul com a América espanhola após a suspensão
do Tratado de Madrid (1750) e a criação do tratado de El Pardo (1761), e o estreitamento
português na Guerra dos Sete Anos (1756-1763), culminantes na consequente Guerra Luso-
Espanhola entre os anos de 1761 e 1763, e nas demais hostilidades mantidas ao longo dos anos,

12
ANTT. (PT/TT/JC/A-D/6/1). "Livro 1. Matrícula de equipagens de navios" 1767-04-27 a 1768-03-23. Junta do
Comércio. liv. 1
13
RODRIGUES, Jaime. “Embarca agora a primeira vez”: marinheiros na rota Lisboa-Rio de Janeiro nos séculos 47
XVIII e XIX, Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. n.9 , 2015p. 16.
14
LAPA, José Roberto do Amaral. A Bahia e a Carreira da Índia, p. 191.
podem ter sido as justificativas cabíveis para o ingresso de homens nas lides do mar, exercendo
pressão sob a demanda para este tipo de recrutamento promovido e em seguida aperfeiçoado ao
longo dos anos seguintes.15 Em junho de 1765, sob essa forma de arregimentação o então
governador e capitão general da Capitania de Pernambuco, Antônio de Souza Manoel de
Menezes, Conde de Vila Flor, teria se utilizado para recrutar um total de trinta e cinco
marinheiros da capitania, quatro sujeitos desse montante ainda teriam conseguido evadir-se da
cadeia municipal, sendo todos os trinta e um que sobraram mandados aos poucos para o reino
nos navios mercantes que faziam a rota Pernambuco-Lisboa.16
Mais detalhes desta operação surgem dos relatos legados durante o governo de José
Cesar de Meneses, que escreve em fevereiro de 1775 ao secretário de Estado da Marinha e
Ultramar, Martinho de Melo e Castro, sobre a ordem que recebera de fazer recrutas na
capitania.17 Sem entrar em detalhes sobre onde os encontrava, descrevia por outro lado sobre a
maneira cautelosa com que costumava seguir com o recrutamento, lembra-se forçado, entre
estas gentes, evitando, por exemplo, dar alguma chance de aglomerá-los temendo “alguma
sublevação que poderia haver indo juntos tantos homens constrangidos”. No mesmo documento
o governador ainda se queixava também do fato de terem saído do porto do Recife em direção
a Angola quatro navios para comércio no trato negreiro, “dos quais poderia tirar mais alguns”
marinheiros que seriam retirados de seu oficio nas fainas do comércio de escravos para serviço
do Estado nas embarcações reais. Este ultimo trecho é bastante oportuno posto que reitera um
tanto da preferencia ou recorrência das autoridades coloniais em utilizar mão de obra já
familiarizada com o trabalho nas embarcações para compor as equipagens de sua própria
armada, como também aventa a possibilidade de ter existido uma circulação destes mesmos
sujeitos, trabalhadores do mar, dentre as fainas de mareação do comércio como também da
guerra, sobretudo em períodos de hostilidade aberta como àqueles vividos entre Portugal e
Espanha no governo de Júlio César de Meneses, quando a existência de braços disponíveis para
mareação não era apenas uma garantia de atravessadores para o comércio, mas também, uma
questão de defesa para o Estado português.18

15
SILVA, L.G. Vicissitudes de um império oceânico: o recrutamento das gentes do mar na América portuguesa
(séculos XVII e XVIII). Revista Navigator, V.3 – N.5 – 2007, p. 44.
16
AHU_ACL_CU_015, Cx 103, D. 7953. Recife, 4 de junho de 1765. OFÍCIO do Governador da Capitania de
Pernambuco, Antônio de Sousa Manoel de Meneses, Conde de Vila Flor, ao Secretário de Estado da Marinha e
Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, enviando relação dos últimos marinheiros levantados e do mapa
da carga de pau-brasil.
17
AHU_ACL_CU_015, Cx. 118, D. 9040. Recife, 17 de fevereiro de 1775. OFÍCIO do [governador da capitania
de Pernambuco], José César de Meneses, para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo
e Castro, remetendo recrutas, víveres e dinheiro para o Rio de Janeiro. 48
18
Sobre as hostilidades entre Portugal e Espanha que preocupavam o governo de Pernambuco, Cf.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 127. D. 9662. Recife, 30 de setembro de 1777. OFÍCIO do [governador da capitania de
O governador de Pernambuco, em outubro do mesmo ano, remetia ao Conselho
Ultramarino, um mapa dos sujeitos que poderiam ser postos a serviço do Estado no mar, como
marinheiros, grumetes, e pajens, enviados para os portos do Rio de Janeiro às ordens de D.
Antônio Almeida Soares Portugal, o Marquês do Lavradio, Capitão general de mar e terra e
vice-rei do Brasil.19 Tal prática que insiste mais uma vez no caráter da produção de registros
sobre os indivíduos, sobretudo dos mareantes, tratada anteriormente como marca da
administração instruída pelas reformas do agora Marquês de Pombal, Sebastião José de
Carvalho e Melo sob a égide de D. João I, e que dinamizaram aos poucos as práticas de
recrutamento na colônia. Esta ordem passada ao agente do rei na colônia seria de prontidão
atendida, segundo argumentara o governador de Pernambuco, tendo em vista a grande
quantidade de “moços vadios, robustos, e fortes de que consta nessa corte”, caso o horror com
as ações mais recentes de recrutamento não levasse boa parte dos potenciais recrutas a se
embrenharem dentre matas para fugir das autoridades abandonando suas lavouras e suas terras,
uma das formas mais comuns de resistência ao recrutamento praticado na colônia. Os poucos
restantes ao alcance dos capturadores das autoridades, não chegaram a ser remetidos a nenhuma
embarcação, sendo logo utilizados para recompor os já desguarnecidos Regimentos de Recife
e Olinda.20 O curioso desta relação documental é que ela engloba não somente os potenciais
recrutas com que foi mandado servir o governador da capitania, como também dá conta das
embarcações que circulam nos portos da capitania, e dos pescadores presentes no território.
Uma marca da intervenção do Marquês do Lavradio no reforço e optimização dos
recrutamentos, a partir da década de 1770, este mecanismo passou a ser dinamizado na América
portuguesa sob a forma das listagens passadas aos governadores locais a serem levantadas
acerca dos marinheiros, das embarcações e pescadores presentes nas capitanias que tinham
objetivo claro de mapear e garantir uma maior quantidade de recrutas, pelo menos é o que o
aumento deste número, indicado na cifra dos 108 mareantes enviados de Pernambuco por José
Cesar de Menezes para o Rio de Janeiro a serviço do Estado parece indicar.

Pernambuco], José César de Meneses, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro,
sobre a ordem de cessar as hostilidades com os navios espanhóis por causa do acordo feito entre as Cortes
Portuguesa e Espanhola.
19
AHU_ACL_CU_015, Cx. 120, D, 9196. Recife, 10 de outubro de 1775. OFÍCIO do [governador da capitania
de Pernambuco], José César de Meneses, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e
Castro, remetendo mapa das embarcações, marinheiros e pescadores que existem na dita capitania e em suas
anexas.
20
AHU_ACL_CU_015, Cx. 120, D.9201. Recife, 10 de outubro de 1775. Ofício do Governador da Capitania de 49
Pernambuco, José César de Meneses, ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro,
remetendo recrutas, provisões de boca e marinheiros para o Rio de Janeiro, conforme as ordens recebidas.
Segundo o mapa fornecido e levantado pelo governador de Pernambuco eram
apenas sete àquelas embarcações empregadas no comércio negreiro com os portos africanos,
compostas, por sua vez, de seis corvetas e uma galera, enquanto que era sessenta e nove as que
faziam exclusivamente o comércio continental, aquele entre a capitania e demais portos do
Brasil, o chamado comércio de cabotagem. Um breve parêntesis acerca do número das
embarcações, considerado reduzido, quando comparadas, por exemplo, às dezenove arroladas
em 1758, ano anterior à criação da Companhia de Comércio, pelo então governador da capitania
Luís Diogo Lobo da Silva leva a crer que esse decréscimo no número de embarcações pode ser
percebido como um dos efeitos sentidos ao longo do século XVIII para o comércio de viventes
entre Pernambuco e a costa africana, cuja queda é demonstrativo das consequências da
estratégia política cingida no combate ao contrabando que preocupava os agentes da capitania.21
O tráfico pernambucano seguia declinando devido às medidas tomadas pela coroa por meio de
cartas lei, alvarás e regimentos que promoviam a limitação destas transações vistas aos olhos
das autoridades como válvula de escape para o contrabando com a Costa da Mina, e que
beneficiavam na visão das autoridades portuguesas, apenas as nações estrangeiras que
administravam àquelas paragens, recebendo o tabaco fino de Pernambuco e da Bahia, mas,
sobretudo o ouro das Minas Gerais.22 A expressão máxima destas medidas, a criação da
Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, pretendia reaver o comércio e as práticas
centralizadas do Antigo Regime, defendendo a autonomia econômica do reino e protegendo os
grupos comerciantes reinóis dos descaminhos que a influência estrangeira, holandesa, mas,
sobretudo inglesa, tendia para com o comércio com as colônias portuguesas.
Afora as questões relativas ao declínio do comércio, o levantamento de José Cesar
de Menezes que, aliás, também não via com bons olhos a atuação da Companhia23, ainda
apresenta o que poderia ser encarado como um soldo da reserva naval da capitania, que carente
dos seus próprios marinheiros, em caso de necessidade poderia ser posto a serviço do Estado.
A lista contém uma relação daqueles sujeitos já familiarizados com as fainas mareantes, que ao
que indica o caráter pragmático da administração colonial portuguesa desde pelo menos a
segunda metade do XVIII, eram preferíveis para a ocupação dos postos de trabalho no mar.
Como por exemplo, foram arrolados “os marinheiros, Grumetes e Moços, assim livres, como

21
AHU_ACL_CU_015, Cx.87, D.7129. Recife, 12 de novembro de 1758. Ofício do [governador da capitania de
Pernambuco], Luís Diogo Lobo da Silva, ao [secretário de Estado da Marinha e Ultramar] Tomé Joaquim da Costa
Corte Real, remetendo a relação dos navios empregados no transporte dos escravos da Costa da Mina e Angola
para Pernambuco.
22
STABEN, Ana Emilia. Negócio dos escravos: o comércio de cativos entre a Costa da Mina e a Capitania de 50
Pernambuco (1701-1759). 2008, p. 86.
23
Cf. Ibid., p. 52.
escravos, que habitam neste porto, e em todos os da sua dependência; compreendidos os que
fazem o comércio de transporte pelos rios e ribeiras desta capitania”, tratando-se de um número
de 752 indivíduos, dos quais a maioria, somando 609 mareantes saíram somente do Recife,
compostos por sua vez ainda de 186 sujeitos livres e uma cifra de 423 mareantes em situação
de escravidão. Segundo esta sugestão do mapa produzido por José Cesar de Menezes, existia
uma predominância de marinheiros cativos residentes na sede da capitania e pelo que indica a
generalização do termo utilizado para arrola-los à lista, estes podiam sim incluir também
aqueles marinheiros já familiarizados com o trato negreiro, aliás, um fato nada novo para a
historiografia que se atém à temática, supondo a existência na praça recifense de marinheiros
cativos empregados no transporte de africanos escravizados. Curiosamente também foram
incluídos nas listagens “os pescadores que habitam nos referidos portos” espalhados ao longo
do litoral da capitania, a menção a estes trabalhadores ao que tudo indica, revela que em se
tratado de um recrutamento emergencial, todo e qualquer braço disponível ao trabalho poderia
ser utilizado, valendo-se neste caso mais da sua experiência no mar, do que necessariamente o
tamanho e complexidade do aparelhamento das embarcações em que trabalhavam.
Como visto não se pode negar que esta modalidade de incorporação para o serviço
nos navios do comércio, mesmo que carregados de cautela da parte das autoridades coloniais,
deveria surtir o mesmo efeito na população litorânea do que o das composições para os
regimentos militares que posteriormente atemorizaram as famílias brasileiras, e sendo assim
não é de se estranhar que sejam constantes também as fugas destes sujeitos ante a ameaça dos
recrutamentos, ou mesmo depois deles, quando por má vigilância escapavam do serviço. Longe
de cooptarem os marinheiros idealizados para as armadas, aqueles desde cedo familiarizados
com os ofícios do mar24, esse tipo de recrutamento forçado dado a cabo elas figuras de
autoridade espantava os sujeitos potencialmente requeridos para a faina no mar, levando por
outro lado, em sua maioria, pessoas pouco afeiçoadas à vida embarcada, inadequadas ao ritmo
de trabalho e a hierarquização típica da vida marítima para as frotas de guerra e do comércio,
funcionando mais como uma ferramenta das autoridades coloniais que visava transformar em
trabalho útil à defesa e ao comércio, aqueles sujeitos marginais da sociedade colonial, fossem
eles inclusive vadios ou criminosos. 25 Longe de parecer espantoso, esse emprego de trabalho
em potencial a muito vem sendo discutindo na historiografia, sobretudo na formação dos
impérios ultramarinos. O trabalho do historiador americano Peter Linebaugh (1983) faz uma

24
Cf. LAPA, José Roberto do Amaral. A Bahia e a Carreira da Índia, p. 190. 51
25
SILVA, L. G. A Faina, a festa e o rito. Uma etnografia Histórica sobre as gentes do mar (séculos XVII ao XIX).
Campinas, Papirus, 2001. p. 28-29.
reflexão pertinente a este caso, estudando a formação da força de trabalho marítima inglesa, o
autor reflete sobre a sobrevivência de uma “tradição revolucionária inglesa” nos novos mundos,
transportada junto com o comércio colonial singrando mares da África e da América, por
aqueles que seriam as vítimas das políticas de expulsão e/ou transformação das camadas mais
miseráveis em trabalho vivo e útil.26 Longe de ingressar nas questões sobre a sobrevivência ou
não de uma suposta tradição revolucionária27, a primazia desse arriscado trabalho reside
justamente na ligação por via da expropriação, do sujeito proletário ao miserável, como “os
dois lados do mesmo processo” de acumulação primária, enquanto um era útil ao nascente
sistema fabril o outro era aproveitado como colono nas possessões ultramarinas, ou seja, em
resumo das estratégias das esferas do poder via legislação trabalhista ou criminal que desde o
século XVI na Inglaterra, objeto de estudo do historiador, que objetivavam transformar em
braços úteis à economia, sobretudo nos “postos de trabalho” do novo mundo, àquela força de
trabalho livre e disponível, entre as tabernas e estradas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOXER, Charles Ralph. A idade de ouro do Brasil. 3ª edição. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 2000.

LAPA, José Roberto do Amaral. A Bahia e a Carreira da Índia. Brasiliana, 1968. Disponível
em: <http://www.brasiliana.com.br/obras/a-bahia-e-a-carreira-da-india/pagina/207>. Acesso
em: 20 dez. 2017.

LINEBAUGH, Peter. Todas as montanhas atlânticas estremeceram. Revista Brasileira de


História. São Paulo, v.6 p. 7-46, 1983.

RODRIGUES, Jaime. De Costa a Costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico


negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780 – 1860). São Paulo, Companhia das Letras, 2005.

________________. “Embarca agora a primeira vez”: marinheiros na rota Lisboa-Rio de


Janeiro nos séculos XVIII e XIX. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. n.9,
2015, p.15-29.

26
Cf. LINEBAUGH, Peter. Todas as montanhas atlânticas estremeceram. Revista Brasileira de História. São
Paulo, v.6 p. 7-46, 1983. 52
27
Cf. SWEENY, Robert. Outras canções de liberdade: Uma crítica de “Todas as montanhas atlânticas
estremeceram”. Revista brasileira de história, v. 8, n. 16, p. 205-219, 1988.
SILVA, L. G. A Faina, a festa e o rito. Uma etnografia Histórica sobre as gentes do mar
(séculos XVII ao XIX). Campinas, Papirus, 2001.

__________. Vicissitudes de um império oceânico: o recrutamento das gentes do mar na


América portuguesa (séculos XVII e XVIII). Revista Navigator, V.3 – N.5 – 2007.

SILVA, Manoel Cícero Peregrino da. Relatório Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, v. 28, p. 344-346, 1906.

STABEN, Ana Emilia. Negócio dos escravos: o comércio de cativos entre a Costa da Mina
e a Capitania de Pernambuco (1701-1759). 2008.

SOUZA, Cândido Eugênio Domingues de. “Perseguidores da espécie humana”: capitães


negreiros da Cidade da Bahia na primeira metade do século XVIII. 2011.

SWEENY, Robert. Outras canções de liberdade: Uma crítica de “Todas as montanhas


atlânticas estremeceram”. Revista brasileira de história, v. 8, n. 16, p. 205-219, 1988.

FONTES

1. Fontes Impressas

AUTOR DESCONHECIDO. Vida marítima, ou costume dos navegantes no tempo do seu


embarque. Lisboa: Na Officina de Simão Thaddeo Ferreira. 1792.

2. Manuscritas

A.H.U. Cx.87, D. 7129. Recife, 12 de novembro de 1758.

A.H.U. Cx 103, D. 7953. Recife, 4 de junho de 1765.

A.H.U. Cx. 118, D. 9040. Recife, 17 de fevereiro de 1775.


A.H.U. Cx. 120, D. 9196. Recife, 10 de outubro de 1775.
A.H.U. Cx. 120, D. 9201. Recife, 10 de outubro de 1775.
A.H.U. Cx. 122, D. 9323. Recife, 22 de abri de 1776.
A.H.U. Cx. 123, D. 9386. Recife, 17 de junho de 1776.
A.H.U. Cx. 123, D. 9394. Recife, 2 de agosto de 1776.
53
A.H.U. Cx. 127. D. 9662. Recife, 30 de setembro de 1777.
A.N.T.T. Feitos Findos, Conservatória da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, mç. 3,
n.º 7, cx. 3
A.N.T.T. Junta do Comércio, liv. 1.

54
“DO CAOS QUE SE EXPERIMENTA NESTA PRAÇA”: A ATUAÇÃO DE
ATRAVESSADORES NO COMÉRCIO E OS EFEITOS NO ABASTECIMENTO DA
CIDADE DO RECIFE (SÉC. XVIII).1

Mateus Bernardo Galvão Couto


Graduando – UFPE
mateusbgc@outlook.com

O presente trabalho é fruto de uma pesquisa PIBIC possibilitada pelo CNPq, a qual
foi intitulada: “Sistematização e análise das correspondências entre a Câmara Municipal do
Recife, o poder central e os seus representantes (séc. XVIII). Podemos afirmar dois vieses. O
primeiro: de caráter quantitativo (levantamento de dados e catalogação de missivas). O
segundo: análise da comunicação política. Dessa forma, nos eixos temáticos Econômico e
Fiscalidade diagnosticamos uma grande deficiência no sistema de abastecimento da cidade do
Recife.

Na consulta e análise das fontes do AHU e do Livro de Registro de Cartas da


Câmara Municipal do Recife, evidenciou-se a ação de atravessadores2 no comércio de gêneros
alimentícios na capitania de Pernambuco, no século XVIII, especificamente no Recife. Os
atravessadores podem ser caracterizados pelo fato de interferir nas vias de comércio de forma
danosa, prejudicando principalmente o abastecimento da cidade, o qual era realizado nas feiras
e praça. Na maioria das vezes, essas pessoas eram marchantes3, ou seja, peças-chave no
funcionamento e sucesso do comércio e abastecimento da cidade.

O comércio de gêneros alimentícios funcionava a partir do transporte fluvial e


terrestre. Os produtos vinham do interior para o litoral para serem vendidos nas praças e feiras.
Nesse trajeto, a figura do marchante era fundamental, agente responsável por realizar o
transporte da mercadoria desde o ponto inicial até o final, onde seria distribuída para o povo. O
mesmo passa a ser denominado atravessador quando desviado de sua função. Os principais
produtos atravessados eram carnes, algodões, farinhas e pescados.

Discussão historiográfica

1
Trabalho de pesquisa sob orientação do Prof. Dr. George Félix Cabral de Souza, professor Associado I da
Universidade Federal de Pernambuco (Departamento de História).
2
ATRAVESSADOR, f. m. o que compra toda a mercadoria, ou víveres para regatear, e vender a seu arbítrio ele 55
só. (BLUTEAU, Tomo I, p. 141)
3
MARCHANTE, f. m. o que trata em gado para os talhos dos açougues. (BLUTEAU, Tomo II, p. 58)
O controle do comércio competia às Câmaras Municipais em comunhão com outros
funcionários e oficiais. As municipalidades eram órgãos de poder local que estavam,
teoricamente, subordinadas e à serviço do poder central. Na prática, observamos uma certa
autonomia4 dessas câmaras até o começo do século XVIII por inúmeras razões. Seja pelo
motivo de serem espaços para afirmação de poder da elite local, limitação do poder central
devido às necessidades locais e à distância entre o reino e a colônia.

Acerca da autonomia que as câmaras gozavam, Maria Fernanda Bicalho afirma 5


que a ascensão de homens ricos aos cargos camarários contraria o critério de linhas sanguíneas,
ou melhor, “puro sangue”, como no reino. Já Maria de Fátima Gouvêa atesta que devido ao
grau de proximidade entre os enviados da coroa e o poder central, esses primeiros utilizam
desse artifício para esbanjar certa autonomia na esfera local.6

Para melhor entendimento, devemos analisar estruturalmente a pirâmide


hierárquica do ultramar português, ou seja, a composição. Charles Boxer 7 traz desde reflexões
sobre fatores externos – como a importância dos portos de Évora, Porto e Lisboa – como
também a estrutura e funcionalidade das municipalidades. Num contexto mais específico,
George Cabral8 analisa a estrutura, funcionamento, pautas e alguns personagens que
compunham a Câmara Municipal do Recife.

Denota-se maior importância para a presente pesquisa entender as redes


hierárquicas de relacionamentos, autoridades, funcionários régios e pessoas/agentes que
circundavam e participavam ativamente do comércio, as quais estão presentes nos documentos
analisados. Governadores, Ouvidores, Juiz de Fora, camarários, almotacés, marchantes e/ou
atravessadores.

No campo do controle do comércio, destaca-se a figura dos almotacés. Eram


agentes - agindo junto à Câmara - que tinham a função de fiscalizar o trajeto, distribuição de
editais, preço e vendas, garantindo o êxito no abastecimento. Além disso, o cargo de almotacé
- a depender da sua conduta – poderia resultar num posto edil (como vereador da Câmara).

4
FRAGOSO, João.; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, M. de F. (org.) O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica
imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). ed Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
5
BICALHO, p. 212
6
GOUVÊA, p. 289
7
BOXER, Charles R. Portuguese Society in the Tropics:the municipal councils of Goa, Macao, Bahia, and Luanda,
1500-1800.University of Winsconsin Press, 1965.
8
SOUZA, George Félix Cabral de. Elites e Exercício de Poder no Brasil Colonial A Câmara Municipal do Recife, 56
1710-1822. Recife: Editora UFPE, 2015.
Ser almotacé era uma tarefa árdua, pois, como bem trata Thiago Enes, eram-lhes
delegadas várias incumbências: “zelavam para que atividades cotidianas não constituíssem a
ruína dos espaços públicos e prejudicassem os moradores, fiscalizando se as medidas impostas
pela Câmara estavam sendo, de fato, cumpridas, e cobrando certos impostos que seriam
revertidos para minorar os impactos no meio urbano. Finalmente, em relação às reformas,
obravam grandes ou pequenos ajustes em passeios, casas, praças, chafarizes, caminhos e
estradas [...]”9

Analisei obras que se dedicavam - senão integralmente, boa parte – à explicação do


processo de abastecimento das respectivas localidades em questão; todas referentes ao território
luso-brasileiro colonial. As regiões são São Paulo10, Salvador11 e Rio de Janeiro12. Em todas as
ocasiões foram comuns as ações prejudiciais e monopolizadoras dos atravessadores. Mas me
atentei a uma característica não encontrada nos documentos referentes ao Recife, as figuras do
rendeiro do ver-o-peso e do meirinho no auxílio às obrigações do almotacé. Como nos diz
Georgia:

No exercício de suas funções, o almotacé atuava conjuntamente com o


rendeiro do ver-o-peso e o meirinho. O rendeiro do ver-o-peso era um cidadão
que arrematava, por concessão da Câmara Municipal, o direito de fiscalizar a
correta utilização dos instrumentos de pesagem e o de verificar se os pesos
dos produtos vendidos estavam de acordo com o valor solicitado. Era sua
função levantar e comunicar as irregularidades cometidas pelos comerciantes
ao juiz almotacé, o qual, por sua vez, ordenava ao meirinho e ao escrivão que
fossem ao local denunciado para averiguar a ocorrência, apreender os
instrumentos, produzir provas para que pudesse ser aberto processo contra o
comerciante.13

Dessa forma, percebe-se o papel fundamental do almotacé no controle do comércio.


Podemos enxergar três personagens principais para o sucesso do abastecimento: o almotacé, os
camaristas e os marchantes (que realizam e transportam a mercadoria).

A atuação de atravessadores no comércio

9
ENES, Thiago. De Como Administrar Cidades e Governar Impérios: almotaçaria portuguesa, os mineiros e o
poder (1745-1808). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2010.
10
BORREGO, Maria Aparecida de M. A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo Colonial (1711-1765).
São Paulo, 2006. pp. 62-128; bem como CÂMARA, Leandro C. Administração colonial e poder: a governança
da cidade de São Paulo (1765-1802). São Paulo:2008. pp. 64-94.
11
SOUSA, Avanete P. Poder político local vida cotidiana: a Câmara Municipal da cidade de Salvador no séc.
XVIII. Vitória da Conquista, Bahia: Edições UESB, 2013.
12
TAVARES, G. da Costa. A atuação dos marchantes no Rio de Janeiro Colonial. Estratégias de mercado e redes 57
de sociabilidade no comércio de abastecimento da carne verde 1763-1808. Rio de Janeiro, 2012.
13 TAVARES, p. 44.
Eram atravessados dos mais variados gêneros alimentícios, mas há uma maior
intensidade de gados e carnes. Esses agentes causavam dano no abastecimento às feiras e à
Praça, onde os produtos eram vendidos para a população. O fragmento seguinte retrata bem a
atuação e a dimensão dos danos causados:

Desde aquella época correrão sem freyo athe o prezente os monopolistaz, e


atravessadorez, sem haver couza, que lhes servisse de barreira, porque as
cameraz deste Pais, a quem sua Mageztade cometteu este negocio, são humaz
corporaçoens sem forçaz, e bem se pode dizer que sem aucthoridade, por ser
precária a sua jurisdicção, em quanto para execução das suaz determinaçoens,
hé necessário recorrer a outros poderez. Em sette annos, que decorrerão tem
este Povo gemido de baixo da mayor oppressão, cauzada por aquelles
inimigos communs do Genero Humano, que atravessando os gados desde os
centroz dos certoens, athe as feiraz, não há huma o rez que a ellas chegue, sem
ser revendida sinco, e seis vezes, na certeza de que os Marchantes lhas hão de
comprar a todo o preço, por isso mesmo, que podem vender, como de facto
vendem a carne à seu arbítrio por quatro, seis, e mais patacaz, sendo ainda
mais escandaloza a outra travessia, que se faz dentro das mesmaz Praçaz,
tirando mil diversaz pessoaz as carnes dos próprios assouguez para az
venderem, segundo a sua estimação a pezo de ouro, e se a cazo as cameraz
tem projectado dar alguma providencia, a este respeito recahem logo os Povoz
em peyor tortura, que a de não terem carne de qualidade alguma, por que não
havendo quem tenha obrigação de a por: logo essez Marchantes muito de
propozito não trazem gado algum aos assouguez, obrigando-nos desta sorte a
ficarmos sugeitos a leis do seu arbítrio, e da sua ambição: este o deplorave
estado excelentíssimo senhor, a que estamos reduzidos muitos annos. [...]
(BASTOS, fólio 89v)
Os atravessadores agiam de diversas formas durante o percurso do sertão para o litoral,
as principais eram: revendendo e/ou estocando e monopolizando os gêneros; acarretando em
preços exorbitantes para o povo. A exemplo do conteúdo da seguinte missiva do ano de 1792:

“valendo-se da occazião os atravessadores, e monopolistaz que sobem hoje a


numero incrivel, comprão, atravessão, e revendem essez mesmos gados, que
há desde o Centro dos Certoens the a Feira de Sorte que quando a ella chegão
a vender-se, já hé em mão de quarto e quinto comprador: daqui nascem os
exhorbitantes preços á que tem chegado os gados, e por consequencia as
carnes, que alem daz constantes faltaz, que há dellaz nos assougues, as
travessias as fazem mayorez, não bastando as providenciaz, que temos dado
nos limites da nossa jurisdição, tendo por origem ou cauzal a ponderada
travessia, que na Feira, e antes della se faz. (BASTOS, f. 75v)
Não obstante, um edital alarma a atuação de atravessadores de pescados, os quais são
vendidos ainda nas jangadas a outros atravessadores e monopolizados em casas de particulares.
Sendo assim, os preços tornam-se altos e inacessíveis. Pretendendo remediar a situação, ordena-
se que os jangadeiros tragam os pescados aos pontos de venda e os vendam a preços justos. O
edital impõe uma pena de dois mil reis, válida tanto para os atravessadores quanto para os
58
jangadeiros que ousassem vender a mercadoria para outros que não fossem os populares.
Fazemos saber que a nossa noticia chega, que pessoas viciozas, que não
attendem ao prejuízo do publico, e o que mais hé a guarda daz leis, e sua
observância contra os atravessadores dos mantimentos viveres, e pezcadoz,
que devem ser livres ao Povo, para os comprarem no lugares onde se costumão
vender [...] Mandamos que nenhuma pessoa de qualquer qualidade e condição
que seja, haja de atravessar os dittos pescados em Jangadaz, e canoaz pena de
serem condemnadas em dous mil reis, e os jangadeiros, e canoeiros, que
conduzirão os dittos pescados [...] (BASTOS, fólios 378-378v).

Aliada à atuação dos marchantes, as secas no Sertão debilitavam a pecuária. O


abastecimento da cidade estava sendo prejudicado. Para inibir a ação dos atravessadores, a
Câmara tomou algumas medidas. As multas tornaram-se comuns, como está descrita no
documento anterior. Além disso, algumas cartas foram enviadas da Câmara para os almotacés,
solicitando maior vigilância e punição aos atravessadores.

Sabe-se que o caminho do sertão para o litoral é longo e, portanto, fácil de se atravessar
os produtos. Tendo em vista a incapacidade fiscal dos almotacés, a Câmara é categórica ao
solicitar aos capitães-mores e comandantes o auxílio fiscal no decorrer do percurso dos gêneros;
sendo assim, dificultando a ação desses atravessadores. 14

Algumas denúncias afirmam que as carnes estavam sendo cortadas em casas de


particulares, não chegando às praças. Em resposta, a Câmara determina que as carnes deveriam
ser cortadas em açougues e comercializadas em feiras e praças públicas.15

Outra forma de combate coube à criação dos gados, quando a Câmara ordena que a
criação e o fornecimento desse gênero seja restrito à Fazenda, inibindo assim a participação de
marchantes – que se tornariam, eventualmente, atravessadores - no comércio e no
abastecimento.16

Como tentativa de controlar e suprir a deficiência no abastecimento, registrou-se uma


carta17 da Câmara do Recife para o governador Dom Thomas José de Melo, em 1792. O diálogo
é referente ao desembarque de mercadorias de um navio que ruma para a Ilha de Santa Catarina.
Solicita-se a descarga de farinhas no Porto do Recife.

Muitos desses marchantes e atravessadores eram contratadores. Ou seja, compravam


talho/contratos para a venda das carnes. Eram peças fundamentais, pois os cortes e as vendas

14
BASTOS, J. F. Livro de Registro de Cartas da Câmara Municipal do Recife. 1804. ff. 67v-69.
15
BASTOS, J. F. Livro de Registro de Cartas da Câmara Municipal do Recife. 1804. f. 69 59
16
BASTOS, J. F. Livro de Registro de Cartas da Câmara Municipal do Recife. 1804. F 75v
17
BASTOS, J. F. Livro de Registro de Cartas da Câmara Municipal do Recife. 1804. ff. 70 e 70 verso.
das carnes aconteciam mediante os contratos pré-fixados. Como forma de protesto e de manter
a sobrevivência dos atravessamentos, os marchantes abdicaram a participação no comércio e/ou
não compraram mais talhos e contratos para a venda. Dessa forma, o povo ficaria desabastecido.

Para não restringir os exemplos à carne, vemos numa Portaria da Câmara do Recife de
1769:

se achão nesta Praça vários atravessadorez de farinhas, comprando-as para as


hirem revender fora dezta Praça, cauzando prejuízo ao Povo.
Nota-se que o período que se acha mais intensidade na ação desses atravessadores é
durante o governo de Dom José Thomas de Melo (1787-1798). O governador troca cartas com
algumas câmaras em maior volume, tais como: Goiana, Olinda e Recife. Em todas as cartas, o
governador clama por atenção especial às atuações dos atravessadores. Por exemplo, numa carta
do Governador para a Câmara do Recife, onde pede

que ponhão na Feira rondaz para evitarem toda a dezordem, e que hajão de
examinar quem sejão os atravessadores, e vadioz, que podem perturbar os
sucego, devendo-os immediatamente prender, remetter à esta salla para os
castigar conforme as suas culpaz. (BASTOS, f. 92v)

Um caso específico é tocante à pessoa de Francisco Xavier Cavalcanti de Albuquerque,


em 1792. Constatamos que tinha considerável poder aquisitivo, pois, como bem explicita o
seguinte documento:

Finalmente suplicamos a Vossa Excelencia obrigue a Francisco Xavier


Cavalcante de Albuquerque a por nesta Praça o immenso gado que se tem
comprado e prompto; como consta da escriptura que fez na notta do escrivão
Fonceca com João de Albuquerque Maranhão e José Ignácio de Albuquerque
Maranhão lhe dar trinta mil cruzados para lhe apromptar deste corrente mez
em diante todo esse dinheiro em bois comprados pello preço de quatro mil réis
os de dez arrobas e pellos sinco mil réis os de doze, preços que sendo cortados
por seiscentos e quarenta réis a arroba taxa que tem feito este Sennado, e que
elle mesmo em outro tempo offereceu há bastante para fazer grandes lucros,
ser remediado o povo, e a Fazenda Real indemnizadas dos subsídios em que
recebe prejuízo pelas matanças feitas fora dos Assougues publicos. (BASTOS,
f. 68v)
Percebe-se que o comerciante tentou monopolizar a carne quando comprou 10 arrobas
de gado por 4 mil cruzados, vendendo-os por 30 mil. No mesmo documento, junto ao
atravessador, aparecem João Albuquerque Maranhão e José Inácio de Albuquerque Maranhão.

A principal consequência da ação dos atravessadores é a falta de produtos no


abastecimento da cidade, isso já é sabido. Mas qual o motivo para a liberdade desses
atravessadores? 60
Os documentos revelam alguns motivos. Primeiramente, as câmaras e os almotacés não
têm controle absoluto das rotas de comércio devido aos fatores geográficos: a distância e o
difícil acesso (condições das estradas). Vimos também que os almotacés eram bastante
atarefados, cabendo-lhes tarefas desde a manutenção da higiene ao controle do comércio.

As cartas não mostram qualquer outro personagem que atuasse junto aos almotacés na
questão do controle do comércio e do abastecimento; como acontece em algumas outras
localidades ao longo do território. Logo, o almotacé, no caso do Recife, encontrava-se
sobrecarregado e, por isso, ausente ou ineficiente em algumas de suas funções.

Considerações

Primeiramente, percebemos que a atuação dos atravessadores era comum ao longo de


todo o território luso-americano. Possivelmente atuavam no reino e em outras dependências do
ultramar português. No caso do Recife, o produto mais atravessado – e lucrativo – foi o gado.

Por que ocorreu um maior fluxo de cartas e diálogos no período do governo de Dom
Thomas José de Mello? Houve resistência ou revoltas populares devido ao déficit?

Quem eram esses atravessadores? Majoritariamente homens? Havia mulheres


atravessando alimentos? A que grupo social pertenciam? Eram influentes na política? Atuavam
simultaneamente nas câmaras municipais? Podemos esboçar um estudo prosopográfico desses
agentes que burlavam o comércio: dar nome, perceber as formas e estratégias de atuação, a
origem, entre outras características em comum é uma possibilidade que encaminhamos a partir
da exploração de outras fontes documentais.

Atualmente, iniciamos uma pesquisa sobre os agentes pertencentes ao grupo mercantil


do Recife (1759-1779). O objetivo é analisar de que forma se deu a relação entre os agentes
mercantis e a Companhia Geral de Comércio Pernambuco e Paraíba (CGCPP). Outrossim,
pretendemos analisar a relação entre os atravessadores e esse grupo mercantil na prática
comercial.

De que forma a monopolização de mercadorias influenciou nos negócios desse grupo?


Pessoas usaram do ramo do atravessamento para fazer fortuna e ascender socialmente?
Sabemos que uma gama de pessoas veio do reino para tentar a vida mercantil no Recife,
algumas não tiveram sucesso. Provavelmente participaram de alguma maneira do ramo do
atravessamento.
61
Por fim, sabemos que atravessar mercadorias – principalmente do gênero alimentício –
era um meio muito lucrativo e, por isso, atraente. Muitas pessoas construíram fortunas e se
estabeleceram nesse ramo. Podemos pensar na solidez dessa atividade, a princípio, numa esfera
local. Os atravessadores provavelmente construíram uma rede em Pernambuco e outras
localidades próximas.

Não podemos descartar a possibilidade de redes de atravessamento mais extensas ao


longo do território luso e/ou do ultramar português. Podemos pensar numa eventual ligação
entre atravessadores paulistas com o negócio das Minas, bem como com a atividade comercial
de Salvador e do Recife.

Referências bibliográficas

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63
OS TÊXTEIS IMPORTADOS ENTRE OS CENTRO -AFRICANOS
(SÉCULOS XVII - XVIII) 1.

Fabrício Leal Novaes


Graduando em história
Universidade Federal Rural de Pernambuco
E-mail: fabricioleal2011@gmail.com

Os têxteis eram um dos objetos-moeda mais utilizados no comércio de escravizados


na África Centro-Ocidental entre os séculos XVII e XVIII, e isso permitiu que diversos tecidos
importados adentrassem essa parte do território africano. Sendo assim, o presente trabalho tem
como objetivos compreender o papel desses têxteis na comercialização de escravizados e sua
relação com as sociedades africanas, em particular no Congo e Angola, mostrando as principais
formas de uso desses tecidos e o papel dos mesmos como formadores identitários desses povos.

A temática das relações comerciais entre a Europa e a África ainda é muito


controversa, existem autores que apontam, por exemplo, que a África estaria submissa nesse
comércio, servindo aos interesses europeus. Nessa pesquisa, ao se trabalhar com as obras A
África e os Africanos na Formação do Mundo Atlântico e O Comércio Atlântico de
Escravos dos historiadores John Thornton e Hebert Klein, respectivamente, já foi possível
encontrar uma análise do tema que permite considerar que tal comércio não favoreceu nenhum
ator nacional ou regional em especial, nem europeus à custa dos africanos (THORNTON, 2004,
p. 121).

Portugal e Espanha foram as primeiras potências expansionistas europeias a se


dirigirem à África e, conforme aponta Hebert Klein (2002, p.50), tal avanço se deu inicialmente
em 1415, quando Portugal conquistou a cidade de Ceuta, localizada no norte da África. Isso se
deu numa época de também expansão dos Turcos Otomanos e do Islã, que auxiliaram berberes
e árabes na reconquista desses territórios africanos; no entanto, o pouco tempo que os europeus
dominaram essas terras foi suficiente para estabelecerem contatos com as rotas de caravanas do
Saara e seus utilizadores subsaarianos.

Um outro ponto importante a se destacar desses primeiros contatos comerciais entre


europeus, sobretudo portugueses, e africanos, foram os avanços pioneiros que fizeram as
embarcações portuguesas pelo Atlântico Sul. As mesmas trouxeram à tona, por sua vez, a África

64
1
Pesquisa realizada sob orientação do Prof. Dr. Gustavo Acioli.
Ocidental como rota alternativa de comércio, e ainda no século XV estabeleceram ali contatos,
feitorias e fortalezas para administrar o comércio naquela área.

Finalmente é preciso discutir como cada Estado, europeu e africano, atuou frente às
suas relações comerciais. No caso dos Estados europeus, o comércio com a África era visto,
sobretudo, como uma forma de aumentar suas receitas, e deveria ser tratado com cuidado para
se ter o máximo de vantagens possível. Thornton (2004, p. 101) coloca, entre as várias
estratégias de obtenção de vantagens dos estados europeus, a adoção da taxação de produtos,
por exemplo, que aumentava a receita dos impostos, por meio do lucro de burgueses
selecionados; também havia a venda de produtos obtidos através do controle tributário e da
produção, se utilizando para isso de agentes assalariados e comissionados; alguns estados ainda
lançaram mão da criação de Companhias paraestatais licenciadas, mas, em suma, o que
aconteceu foi uma coexistência do comércio patrocinado pelo Estado e do comércio privado,
afinal os Estados perderiam dinheiro caso quisessem se apoderar sozinhos do comércio com a
África, num contexto no qual não havia segurança marítima e nem rápida comunicação.

Escrevendo especificamente sobre o caso português, Thornton (2004, p. 107-108)


trata do acordo feito com aprovação do papa acerca da soberania portuguesa com relação às
rotas comerciais do Atlântico. Apesar de muito violado, através desse tratado, Portugal impunha
tributos aos que desejavam comerciar na área. Esse Estado cria logo em seguida um Monopólio
Real para negociar ouro, escravizados, tecidos e demais mercadorias utilizadas nas trocas
comerciais do Atlântico; tal monopólio foi dividido entre particulares que deveriam pagar
rendas fixas à coroa. Essa política não conseguiu completo êxito, pois muitos dos agentes
portugueses encontravam mais vantagens aliando-se aos governantes africanos, sendo que
muitos ainda se tornavam Lançados, ou seja, comerciantes independentes.

Cabe ainda descrever como os Estados africanos tratavam o comércio com os


europeus. Primeiramente, conforme mostra Thornton (2004, p. 115), aqueles que quisessem
negociar com os africanos deveriam fazer visitas e levar presentes aos governadores e
conselheiros.

Um outro ponto peculiar do comércio com os africanos era o fato de seus


governantes iniciar ou cessar o comércio a seu bel-prazer, como por exemplo, foi o caso do rei
de Benin, que no século XVI encerrou o comércio de cativos do sexo masculino. De modo
geral, os governos africanos agiam de forma parecida à dos europeus na administração desse
65
comércio: contavam com o apoio de uma burguesia e também permitiam a atuação dos
comerciantes particulares, mediante o pagamento de impostos.

E por fim, tratando especificamente sobre o comércio de escravizados, Hebert Klein


(2002, p. 104) fala do sistema de crédito que se criou nas costas africanas, quando os
portugueses que iam em busca de escravizados ali, por precisarem passar vários meses
ancorados, precisavam comprar água e mantimentos aos mercadores locais. Os europeus
negociavam com funcionários e comerciantes locais a compra de escravizados no interior,
sendo que, muitas vezes, o europeu prometia produtos que não podia pagar; daí, resultaram
prisões e expulsões dos mesmos. No entanto, nesses Estados africanos independentes e fortes,
viam os europeus garantias de uma atividade comercial estável.

É preciso descrever de maneira mais específica como se deu o comércio Atlântico


de escravizados na África Centro-Ocidental; para isso, é importante considerar também a
história dos diferentes grupos e povos que compunham as sociedades desse local. Conforme
aponta o historiador Joseph Miller (1988, p. 7), tais áreas não eram muito populosas, haviam
muitas savanas e vales, além de rios, que foram fundamentais no comércio de escravizados
conduzidos por meio de canoas. As condições naturais da região faziam com que essas pessoas
se concentrassem em diferentes áreas dispersas. Tais populações se dedicavam a atividades
como pesca, criação de gado e agricultura sazonal, tendo participação cada vez mais ativa na
comercialização de escravizados a partir do contato com os portugueses.

Miller (1988, 22) destaca que a crescente comercialização de escravizados


promovida, sobretudo, por portugueses, fez com que os africanos passassem a se refugiar em
locais bastante insalubres, sendo essa população de refugiados constantemente atacada por
incursores, que atuavam na escravização e tráfico de homens e mulheres nesses locais.

Em seu texto, Miller (1988, p. 23) fala de vários grupos étnicos que compunham
essa região. O autor explica que aqueles conhecidos como lundas, eram descendentes daqueles
que ali introduziram a mandioca. Os grupos que se situavam sobre os afluentes ocidentais do
Alto Zambeze em pastagens planas e arenosas eram conhecidos como Ngangelas. Outros
conhecidos como Mbundas se situavam no deserto de Kalahari. Os Teke, ou tio, se distinguiram
como os ocupantes das florestas a norte e a leste do lago de Malebo. Miller (1988, p. 26) faz
ainda referência aos povos Ovambo, que se destacavam pela bovinocultura.

Haviam também grupos de canoeiros que atuavam no comércio de escravizados; 66


um dos principais grupos que dominou esse comércio no Zaire foram os Bobangi. Miller (1988,
p. 31) fala ainda da grande concentração comercial que havia ao redor do lago de Malebo, onde
não apenas se comerciaram escravizados, mas também produtos florestais, peixes, alimentos,
entre outros.

Esses povos locais foram fundamentais na sobrevivência dos agentes coloniais, pois
os mesmos se responsabilizavam pelos serviços que mais exigiam esforço físico e tinham
condições físicas para suportar o clima e intempéries do local; referindo-se especificamente a
Benguela, que é tema do texto de Mariana Candido, lá a administração colonial se utilizou
bastante dos chamados “filhos da terra”, descendentes de mulheres nativas com portugueses;
aqueles partilhavam das duas culturas e eram considerados brancos e portugueses, ainda que de
pele escura, haja vista a importância dos mesmos na conexão entre esses povos, atuando como
tradutores e comerciantes, conseguindo estabelecer bases comerciais, inclusive no Atlântico.

Candido (2013, p. 83) coloca que a administração colonial também fez uso do
serviço de degredados, que em geral serviram na cobrança de impostos, na patrulha do porto e
no ataque a sobas que resistiam à expansão portuguesa. Por fim, um outro grupo que esteve
presente na administração colonial de Benguela foram os “brasileiros”, que, segundo a autora,
além de serem mais resistentes às doenças locais, possuíam mentalidade escravista baseada no
que já conheciam no Brasil. Enfim, o comércio atlântico de escravizados que existiu na África
Centro-ocidental envolvia diversos agentes, cada um com suas particularidades, a depender dos
locais nos quais atuavam.

Resumindo o princípio da exportação de centro-africanos em volume considerável,


Joseph C. Miller (2008, p. 31) coloca que os mesmos vieram da área do baixo rio Zaire, e que
a maioria foi encaminhada para a Costa do Ouro, uma boa parte era comerciada na Ilha de São
Tomé, no golfo da Guiné, alguns se juntavam aos cativos que seguiam para Lisboa e Sevilha e
outra parte seguiu da Península Ibérica para o Caribe espanhol através do Atlântico, a partir de
1518.

O historiador Luiz Felipe de Alencastro (2000, p. 47), por sua vez, também fez um
resgate histórico dos povos que tratavam do comércio de cativos. Entre eles estavam jalofos -
primeiros a negociar escravizados com os europeus - berberes, fulas, hauçás e mandingas; estes
eram grupos que realizavam suas atividades no entroncamento do Mediterrâneo e do Sudão e
realizavam um comércio de movimento transaariano, no entanto, conforme mostra o autor,
barcos dos reinóis e de luso-africanos de Cabo Verde minaram esse comércio feito por terra,
67
drenando a economia mediterrânica através do Atlântico. E, assim como Miller, Alencastro
(2000, p. 47) traz que:

Para evitar os longos e letais transbordos nos portos europeus, a Coroa


autoriza o embarque direto de escravos para as Antilhas a partir de Cabo Verde
e São Tomé (…). Paralelamente, declina o embarque de africanos para a
Metrópole e as ilhas atlânticas.
Alencastro (2000, p. 51-53) trata ainda de outro tema fundamental no contexto do
comércio de escravizados no Atlântico. O autor afirma que foram criados mecanismos
religiosos, como a bula Romanus pontifex (1455), que justificavam essas práticas; argumentava-
se que estes escravizados, quando em Portugal ou nas colônias portuguesas, poderiam se tornar
cristãos também em contato com a fé católica. Outra questão era a do canibalismo em guerras
intertribais, neste caso, tratar-se-ia de uma salvação não somente da alma, mas também do
corpo.

Assunto discutido tanto por Vansina, (2010, p. 657-658), como por Alencastro, é a
tentativa de estabelecer um controle sobre o comércio de escravizados. O primeiro fala que
Afonso I (rei do Congo) tentou exercer esse controle através de monopólios reais, que foram
desrespeitados pelos afro-portugueses de São Tomé e dos reinos vizinhos; restou a Afonso I
proibir esse tipo de comércio, em 1526, e a partir dessa data, apenas estrangeiros e criminosos
poderiam ser escravizados. Vansina (2010, p. 659-660) argumenta que Portugal ainda
permaneceu influente no comércio do Congo e soube se aproveitar de maneira favorável do
mesmo, haja vista que os rendimentos do comércio de escravizados congolês pagavam os
técnicos e missionários portugueses, além de possibilitar aos nobres do reino estudar em
Portugal; também eram gastos na aquisição de bens de luxo, como tecidos e vinhos com fins
ostentatórios para a nobreza.

A partir da década de 70 do século XVI, com o amplo aumento da produção de


açúcar brasileiro, conforme aponta Heintze (2007, p. 244), houve uma demanda muito maior
por mão de obra escrava, que antes advinda de Guiné e do Congo, passou a vir em volume
maior de Angola, não só por ser mais barata, mas também ser mais acessível. Conforme
observou Alencastro (2000, p. 61) havia excelentes condições marítimas e bonança de ventos
nas travessias Angola - Brasil. Heintze (2007, p. 248-249) segue falando dos direitos
concedidos a Paulo Dias de Novais durante seu projeto de conquista e colonização de Angola;
entre eles, destacavam-se o terço dos direitos provenientes do comércio de escravizados e a
possibilidade de exportar 48 escravizados livres de direitos, por ano, e mais cativos, se o 68
quisesse, pagando apenas metade. No entanto, em 1573, a Mesa da Fazenda, com apoio dos
contratadores, lhe retiraram o primeiro benefício. Essa perda leva Paulo Dias de Novais a se
dedicar com mais empenho ao comércio de escravizados, fundando Luanda. Por fim, Dias acaba
falhando nos projetos iniciais ao planejar executar seu contrato; o rei do Ndongo, desconfiado
de uma sublevação portuguesa, acabou matando todos os portugueses que havia em seu
território, em 1579.

Heintze (2007, 254) também fala em vários momentos de como os jesuítas em


Angola se serviram do comércio de escravizados. A Companhia de Jesus estava isenta de
impostos em suas terras e lhe pertenciam todos os africanos que habitavam ali, lhe sendo
permitido vendê-los e exportá-los. Heintze (2007, p.261) também coloca que os Jesuítas
recebiam de seus sobas cerca de 300 escravizados, que poderiam exportar sem pagar os direitos.
Isto indica o quanto o comércio de pessoas escravizadas tornou-se central para todos os grupos
em Angola, e na África Centro-Ocidental de modo geral.

Os têxteis importados foram fundamentais nesta dinâmica comercial relatada,


haja vista que os mesmos obtiveram grande apreço entre os centro-africanos. Os navios que
chegavam as feitorias implantadas por Portugal nestes territórios, vinham carregados de
diversas mercadorias, porém havia o predomínio ali de tecidos. O historiador John Vogt (1975,
p. 625) analisa esse comércio de têxteis realizado por Portugal com a África, uma das
considerações trazidas pelo autor, é de que os portugueses chegaram a utilizar cerca de 102
tipos de têxteis diferentes nessas negociações, em sua maioria advindos de Flandres, Antuérpia
ou Inglaterra. Segundo o autor, Portugal tinha a prática de enviar agentes nos mais diversos
mercados para realizar a compra dos tecidos mais vantajosos visando atender essa demanda do
comércio com a África. Entre os têxteis que eram mais procurados pelos africanos estavam
tecidos de lã, lençóis e os panos de Holanda.

A medida que se intensificou o comércio de escravizados, mais tecidos chegaram


ao território da África Centro-ocidental, sendo utilizados como moeda de troca pelos cativos.
Para Marion Johnson (1980, p. 13), a questão da aceitabilidade dos tecidos como moeda se dá
pela sua utilidade para as populações africanas, além de ser de fácil transporte, podendo atender
os comerciantes que atuavam nas diversas feiras do interior do Congo e Angola.

Para alguns autores, a entrada desses tecidos estrangeiros no território africano


levou a uma queda na procura pelos tecidos produzidos localmente, é o caso de Joseph E. Inikori
(2009, p. 108), que aponta o seguinte no que diz respeito ao algodão:
69
There is clear evidence that by the late seventeenth and early eighteenth
century these imported European woollens and linens had replaced in Gold
Coast markets local cotton cloths previously imported from Benin, Allada,
and the Ivory Coast. The loss of the Gold Coast market was clearly a damaging
blow to cotton cloth producers in northeastern Yoruba country and Nupe who
were the suppliers of the cotton cloths that Benin traders sold to the Europeans
for export to the Gold Coast. The Benin hinterland suppliers were already in
a quasi proto-industrial relationship with the Benin traders at the time.
Together with other effects of the growth of captive procurement for export,
the loss of this important long-distance market precluded further progress
toward full-scale proto-industrial production of cotton cloths in these areas.
The same point applies more or less to producers in Hausaland and the Niger
Bend for whom the Gold Coast had been a major export market.
Partilha da mesma visão, a historiadora Phyllis M. Martin (1986, p. 4), que ao tratar
do caso de Loango, traz o seguinte: “Decline in the use of raphia cloth started in the seventeenth
century with the importation of cloth from Europe and the Indies. The same Portuguese ships
which sailed from Angola to buy raphia cloth brought foreign cloth to the Loango Coast.”

O militar português Antonio de Oliveira Cadornega, que viveu durante o século


XVII em Angola, deixou escrito um relato desse período, a História Geral das Guerras
Angolanas. Cadornega (1942, p. 230) afirmou que reis, grandes senhores e demais pessoas
abastadas de Angola, utilizavam luxuosos tecidos de seda e outros, que se tornaram mais
constantes após a chegada dos portugueses àquela região. Tal como aponta Martin (1986, p. 4-
5):

In Loango, by the mid-seventeenth century, the king and his administrators


were dressing in European cloth while continuing to wear the distinctive
animal furs and jewelry which were the more traditional marks of their status.
In the smaller kingdoms of Kakongo and Ngoyo, however, rulers were
prohibited from wearing imported cloth and continued to wear raphia cloths
into the nineteenth century.
Santos (2014, p. 48), fala que esses têxteis importados impuseram um novo
elemento à lógica econômica da África, a de tempo de durabilidade dos bens:

Quanto mais rápido se deteriorasse a mercadoria, maior a demanda pela


reposição destes produtos, adequando deste modo a voracidade do comércio
atlântico à necessidade do mercado consumidor em África. Os tecidos de
algodão, deste modo, apresentavam uma desvantagem com relação aos de
ráfia, produzidos na África.
Cabe aqui abordar também a questão de Angola, trabalhada pela antropóloga
Beatrix Heintze. Essa autora fala do plano de colonização daquele Reino com vistas a repetir o
sucesso comercial de produtos produzidos no Brasil, sobretudo açúcar, e também o plano de
encontrar metais preciosos; no entanto, nenhum deles prosperou e Angola passou a ser somente, 70
aos olhos da coroa portuguesa e de seus súditos, fornecedora de escravizados. E, assim como
na África Ocidental, o comércio escravagista em Angola era feito mediante as moedas-têxteis,
o que permite inferir uma grande circulação de têxteis importados nesse Reino.

Pode-se ler no documento “História da Residência dos Padres da Companhia de


Jesus em Angola, e Cousas Tocantes ao Reino, e Conquista”, de 1594:

São [os comerciantes angolanos] muito inclinados a feiras, e para comprarem


barato, e venderem caro, tem tantas manhas que nenhuma nação lhes faz
ventagem. Dinheiro de metal não corre entre elles, tudo hé comutação, dando
huma cousa por outra. Em algumas feiras comprão mantimentos por capões,
em outras por pedras de sal. Os portugueses comprão as cousas meudas por
empondas, que são terças de palmilha [palmeira?]. Nas feiras comprão peças
[escravos] por panos de preço, por tafetá, damasco, veludo, alcatifas,
margarideta, vinho e outras mercadorias de Portugal e da índia. (BRÁSIO,
1954, p. 560).
Isabel Castro Henriques (1996, p. 141) ao analisar o papel dessas feiras traz o
seguinte:

As feiras utilizadas pelos agentes do comércio afro-português eram feiras


africanas, integradas nas redes comerciais internas, cada vez mais marcadas
pela presença destes agentes. As feiras que irrigavam o interior africano de
mercadorias europeias, estavam instaladas nas principais estradas do comércio
africano entre os rios Dande e Kwanza, em locais onde convergiam os
múltiplos caminhos que ligavam regiões distantes do interior.
Elias Corrêa (1937, p. 160), militar brasileiro que atuou em Angola durante o século
XVIII, fala dos tecidos que eram comerciados pelas quitandeiras, aos quais chama de mavatas,
“De fazendas estrangeiras, são no paiz de Angola retalhos de 2 covados e meio, 3, ou 5. Os
negros Congos, os Sonhos, os Mossues, e os de Encôge, depois de as possuir a troco de captivos
as vem vender a esta Capital, por Gerbirita, Sal, peixe, missangas...”

Foi a busca constante de cativos no interior, sobretudo no século XVIII, o que


permitiu também a maior interiorização dos têxteis. No relato de sua viagem a territórios no
interior da África Centro-ocidental, Manoel Correia Leitão (1999, p. 317) destaca o luxo com
que se vestiam os senhores da corte do Jaga Cassange no interior de Angola, apontando para a
utilização de sedas escarlates e redes forradas de tafetás. Elias Côrrea (1937, p. 31, 35) também
fala do comércio nos sertões angolanos, destacando a figura do aviado, que saía sertões adentro
munido de tecidos importados com a missão de adquirir cativos. O cronista fala ainda que estes
aviados, por vezes, se aproveitavam da liberdade de estarem nos sertões para fazer uso dos
têxteis que deveria comerciar.

Vale salientar ainda, que para além das guerras para obtenção de cativos nos sertões,
71
Leitão (1999, p. 325) também fala em guerras para obtenção de têxteis em lugares isolados nos
quais não atuavam os pumbeiros. O viajante afirma que Matayamvoa, rei de Lunda, obteve
panos de veludo como despojo em guerra contra os povos MaLagis.

Na imagem abaixo, de meados do século XVIII, feita pelo missionário capuchinho


Bernardino Ignazio, na província de Sonho, no Reino do Congo, percebe-se o encontro entre o
missionário e o soba daquela província, que estava acompanhado de grande comitiva: destaca-
se, aí, as diferenças nas vestimentas do soba para a de seus soldados. Cavazzi (1965, p. 228),
missionário capuchinho que atuou na África Centro-ocidental durante o século XVII, destaca
as aparições do rei do Congo em público, e na descrição de sua comitiva também havia um
pajem, que portava um guarda-sol de tecidos importados semelhante ao da imagem, “Um dos
mais favoritos leva um guarda-sol de damasco carmesim, rendado de ouro, sempre aberto sobre
a cabeça do rei”.

Figura 1 – Missionário capuchinho sendo saudado pelo governante de Sogno, Reino do Congo (década de 1740)

Fonte: slaveryimages.org

O missionário também descreve muito bem a figura do rei do Congo, no seu relato
pode se ler o seguinte:

O rei do Congo (...) veste com decoro e magnificência. Está bem abastecido,
quer em qualidade, quer em quantidade, de fatos, perólas e de jóias e costuma
mudar frequentemente as alfaias (...). Cobre a cabeça com um barrete branco,
matizado com arabescos e flores de seda, à maneira dos mouros, e usa sobre
o barrete um chapéu preto, rodeado por rica e preciosa coroa real. Veste uma
camisa e sobre os ombros tem uma manta de escarlate ou outro pano nobre,
rendado a ouro e a prata. Ata aos lombos uma peça de roupa mais comprida
por trás, à maneira de cauda, riquíssima e lindíssima. Usa calçados brancos
com botões de ouro ou alguma gema preciosa. Usa meias de seda e tem nas
72
pernas, no pescoço e nos braços argolas e colares de corais ou de pérolas com
correntinhas de ouro, muito bonitas e de grande valor. Pendente do pescoço
tem também uma cruz com muitas relíquias, como sinais da fé professada.
Os tecidos já possuíam destaque nas sociedades congolesas e entre os Bantu de
forma geral, mas foi a partir desse contato mais intenso com os europeus que o vestir ganhou
ainda mais importância, sobretudo entre as classes abastadas, servindo principalmente a
finalidade de distinção social. Conforme aponta Fromont (2014, p. 105):

The king, and after him the entire upper class of a highly textile-literate
society, readily recognized the imports’ pliability to local conceptions of cloth
use and value as well as their potential to express locally hewn ideas of
prestige.
Cécine Fromont (2014, p.1), tece alguns comentários sobre as imagens de
Bernardino Ignazio; na que segue, por exemplo, ela destaca o luxo com que se vestiam os
convidados de um casamento, usando nessas ocasiões os têxteis importados de diversas partes
do mundo, em suas palavras: “A friar blesses a wedding under a veranda in front of na African
crowd dressed in luxurious textiles and garments imported from around the globe”.

Figura 2 – Celebração de um matrimônio

Fonte: comune.torino.it

Fromont (2014), destaca no decorrer de toda sua obra como tais imagens são
reveladoras no que concerne à mistura dos objetos rituais e símbolos cristãos aos eblemas,
práticas e imagens africanas.

Os centro-africanos também fizeram uso desses têxteis importados nos seus cultos
locais, há uma ocasião em que Cavazzi (1965, p. 117) narra que foram oferecidos tecidos para 73

um demônio que estaria causando uma doença no Congo. Segue o relato:


Portanto para o aplacar, ajuntaram grande quantidade de panos da Europa e
muitas outras coisas. Depois tendo feito entrar o demônio, por meio de
feiticeiros, numa mulher (...) ofereceram-lhe tudo aquilo, suplicando-lhe que
ficasse satisfeita da mortandade já produzida e que, perdoando o resto dos
sobreviventes, procurasse transpor as fronteiras.
Foi identificado por meio das fontes, que outro uso bastante comum dos tecidos
importados pelos centro-africanos, se deu na ocasião dos velórios. O missionário faz uma série
de apontamentos sobre essa questão. Entre eles, o de que até mesmo os mais pobres se viam
obrigados a pedir têxteis aos grandes senhores para enterrar com seus entes queridos, tal a
importância desse ato. Ao analisar esse fato, Phyllis M. Martin (1986, p. 6), afirma que aqueles
que pediam esses têxteis ficavam em dívida com quem os dava, sendo uma forma por meio da
qual muitos senhores reforçavam sua autoridade.

Quanto aos mais abastados desta parte da África, Cavazzi (1965, p. 124) traz o
seguinte: “Morrendo o rei ou outra pessoa qualificada, os membros da corte vestem
luxuosamente o cadáver com panos europeus (...) Além disso, os sucessores tomam
providências para que o sepulcro seja adornado com panos novos nos dias de aniversários”.
Quanto as vestimentas utilizadas nestas ocasiões Cavazzi (1965, p. 131), afirma que utilizavam
barretes de luto, que era uma forma para que se prestassem condolências aos enlutados. Até
mesmo as escravas de Portugeses que viviam em Luanda e São Salvador do Congo, se vestiam
com capuchos rijos, mostrando, segundo o autor, o interesse em aprender boas maneiras. Elias
Corrêa (1937, p. 82) também discute essa questão, trazendo o seguinte: “Os vestidos das
mulheres são tallares a Mulsumana. Os de luto são à Benedictina. As q. se honrão do alcunho
de brancas, remédão as Europeanas em quanto ao trage; más o descostume, negligencia, e
grosseria lhes diminue o sabor com q. cingem os seus panos”. O cronista também fala dos
brancos, fuscos e molatos que se vestiam segundo um estilo cristianizado em oposição às
entangas utilizadas pelos negros.

Voltando a questão dos velórios, no documento “Descrição da Batalha de Ambuíla”


de 1665, foi caracterizada a urna na qual foi sepultada a cabeça de Antonio I, rei do Congo, que
era forrada de veludo carmesim e guarnecida de renda de ouro (BRÁSIO, 1981, p. 580).

A obra de Cadornega (1942, p. 224) também faz breve menção à utilização de panos
de sedas para envolver os líderes jagas em seus sepultamentos.

Percebeu-se então a grande importância desses tecidos para as sociedades da


África Centro-ocidental, os mesmos eram carregados de significado e podiam expressar 74
informações mais diversas, sobressaindo a expressão de status e riqueza. Nesse sentido, os
tecidos também contam a história da África e se tornaram elementos fundantes na composição
da identidade desses povos.

Referências

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séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 525 p.

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11, 1980, p. 193-202.

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29 –80. 75
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1756). History in Africa, v. 26, 1999, p. 299-364.

76
PARTE II
POLÍTICA E GOVERNANÇA NA AMÉRICA
COLONIAL.

“QUE A DURAÇÃO DA SUA AUGUSTA VIDA CHEGUE A IGUALAR A MESMA


ETERNIDADE”: CELEBRAÇÕES PARA D. JOSÉ I EM PERNAMBUCO.

Noelly Gomes da Silva


(Mestra em História/Professora da Rede Municipal de Ensino
Email:noellygomes@gmail.com)

Diferentemente do seu pai, D. José I não foi um rei tão expressivo. Pode-se afirmar
que foi um monarca pouco lembrado ao longo da História. Entretanto, seu primeiro-ministro, o
famoso Marquês de Pombal e seus feitos administrativos, esses sim, encontramos em variadas
narrativas.1 A expressiva aparição de Sebastião José de Carvalho não foi algo tão específico
desse reinado. É comum vermos na História a intensa participação de ministros e conselheiros
em torno dos monarcas, exceto quando nos deparamos com reis tão ativos em seu governo,
como Luís XIV na França e o próprio D. João V, em Portugal.
Sejam quais foram às razões para o monarca ficar à sombra de seu privado, seguiremos
um caminho reverso a essa perspectiva de que o valido se sobrepõe ao rei. Trabalharemos a
figura/imagem de D. José I através de algumas celebrações feitas para o soberano que
ocorreram na Capitania de Pernambuco e que foram reflexos de eventos que aconteceram em
Portugal. Essas celebrações nos mostram que independente de qualquer ausência real, seja pela
pouca expressividade ou a própria falta física, era o monarca que estava sendo exaltado e
adorado pelos seus vassalos, como se pode observar no soneto anônimo acima escrito, dessa
forma, a ausência se caracteriza apenas para a historiografia e não para o tempo em que foi rei.
O ritual de aclamação de D. José I ocorreu em Portugal, no dia 7 de setembro de 1750.
Daí por diante, o soberano aclamado governou durante 27 anos com o auxílio e participação

1
Para citar algumas: MAXWELL, Kenneth. Pombal: o paradoxo do iluminismo. São Paulo: Paz e Terra, 1997; 77
AZEVEDO, João Lúcio de. O Marquês de Pombal e sua época. São Paulo: Alameda, 2004.
enérgica do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo. Diante do que comumente vemos na
duração dos reinados, o desse monarca pode ser considerado curto, porém os fatos que o
marcaram, os quais perpassam terremoto e atentado contra o rei, foram dignos de longos
reinados. Apesar de D. José ser um rei discreto em seus atos, o cerimonial não deixa de existir
com toda pompa e aparato dignos de um soberano tanto no reino quanto nas conquistas. Para
este artigo, selecionamos um dos momentos que marcaram aquele reinado, que foi o atentado
contra a vida do soberano ocorrido após três anos somente do terremoto que abalou boa parte
de Portugal. No dia 3 de Setembro de 1758 tiros foram disparados em direção à carruagem em
que estava D. José. O rei teve um grave ferimento no braço direito, ficando por vários dias
enfermo, sem poder ao menos despachar os assuntos de governo.
Quem assumiu durante a convalescência do monarca foi a rainha D. Mariana Vitória.
O crime de lesa majestade era considerado o ato mais grave dirigido a um rei e com isso já se
pode prever as penas aplicadas aos culpados. A acusação do atentado recaiu sobre uma distinta
família de nobres portugueses, os “Távoras”. Não nos ateremos a trabalhar detalhadamente o
“Processo dos Távoras” como ficou conhecido na historiografia. Contudo, é importante expor
que as prisões e sentenças dos acusados foram dadas em tempo recorde, onde muitos nobres
foram decapitados, alguns jesuítas também foram acusados da conspiração e até mesmo o
suposto envolvimento amoroso do rei com a marquesa de Távora, D. Leonor foi tido como uma
das hipóteses para ter havido a conspiração contra o soberano2.
José Subtil discute que independente das razões que levaram ao atentado, havia de fato
a intenção de eliminar o monarca e por consequência afastar Sebastião José. Sabe-se que a
antiga nobreza portuguesa perdeu muito prestígio e domínio de poder que antes detinham e que
Pombal foi figura central para a ocorrência dessa perda. Porém, se a nobreza intencionava voltar
aos áureos tempos, tirando o rei e o ministro do caminho, o tiro efetivamente não surtiu efeito,
visto que inúmeros nobres importantes foram mortos de forma brutal e exposto para toda
população de Lisboa. Histórias à parte, novamente Sebastião José de Carvalho mostrou-se
presente e decisivo, desta vez, empenhado em sentenciar os envolvidos o mais rápido quanto
fosse possível. Os nobres envolvidos, segundo Subtil, não apenas sofreram eliminação física,
como também aniquilamento econômico e destruição das memórias.3
As cartas escritas pela rainha D. Mariana Vitória, narram o contentamento dos vassalos
portugueses através dos gritos de “vivas” na primeira aparição do rei em público após o

2
SUBTIL, José Manuel. SUBTIL, José Manuel. O Terramoto político (1755-1759) Memória e Poder. Portugal: 78
EDIUAL, 2006. p. 137
3
Idem. pp. 137-160
ocorrido. D. Mariana chega a comentar que nem no dia da aclamação de D. José houve tanta
festa e alegria por parte do povo. Segundo Nuno Gonçalo4, após o atentado uma nova conexão
se estabeleceu entre o monarca e os vassalos. O fato de ter saído com vida da emboscada fez
com que D. José e seu governo renascessem e com isso um novo elo fora assentado entre o
reino e conquistas. Diante dos fatos, observamos como essa notícia foi recebida pelos vassalos
distantes de Pernambuco.
Na relação dos atos festivos que foram feitos pelo benefício de livrar o rei da morte, o
bispo D. Francisco Xavier Aranha inicia de forma poética como a notícia foi recebida na
Capitania:
Assim como o crepúsculo com luz escura, e sombras claras dividindo o dia da
noite deixa a terra em um estado que nem é de dia, nem é de noite; assim
aquela notícia chegou a Pernambuco daquele horrível atentado da noite de 3
de Setembro de 1758 destinado aos infernais desacatos da Augustíssima
Pessoa e preciosíssima vida no nosso Fidelíssimo Rei e Senhor D. José I
deixou os entendimentos suspensos e estáticos entre o crer, e não crer tamanho
desacato.5

Antes de expor como se processaram os dias festivos, o bispo não poupa tinta para
exemplificar casos de traição aos reis ao longo da história, simultaneamente julgando esses atos
com grande pasmo, pois segundo o mesmo a fidelidade era o dever primeiro e obrigatório que
todos os vassalos deveriam ter para com seu rei. Nesse ínterim, aproveita para destacar a
lealdade e fidelidade que Pernambuco sempre teve a Deus e aos reis: “Na América e
especialmente em Pernambuco com singularidade e digna de admiração e inveja de todas as
nações se acreditaram os pernambucanos de leais, fieis e constantes [...]” 6
Logo mais à frente destaca novamente a postura imediata dos vassalos da capitania
diante da notícia, pois assim que se certificou que o soberano escapou com vida, logo cuidaram
de realizar as demonstrações de agradecimento a Deus: “Parece dispor a providência divina se
antecipassem, entre os moradores do Brasil, os Pernambucanos nas demonstrações da dor;
talvez por serem os que mais se esmeraram sempre nos primores da lealdade.” 7
A ação de graça pela vida e saúde de D. José teve início em Pernambuco ainda na
manhã de 3 de Junho de 1759, dia de Páscoa, com uma missa celebrada na Sé de Olinda pelo
bispo D. Francisco Xavier Aranha. A tarde houve o Te Deum Laudamus e uma suntuosa
procissão com o Santíssimo Sacramento que saiu pelas ruas de Olinda. No edital de convocação

4
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. D. José: na sombra de Pombal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006.
5
A.H.U., avulsos de Pernambuco, Cx. 93, Doc. 7398, 20/04/1760. 79
6
Idem.
7
Idem.
para as celebrações foram estipuladas as presenças de “todos os sacerdotes, e pessoas
eclesiásticas seculares e regulares desta Cidade e mais pessoas, e moradores dela nossos amados
súditos, e leais portugueses, com todas as Irmandades e Confrarias e suas insígnias e
estandartes.” Conforme a descrição do ordenamento da procissão percebemos o lugar que cada
um desses membros da elite ocupou ao longo do cortejo:
[...] e concluído que fosse se preparou uma solene procissão, a que precediam
as Irmandades e Confrarias da Cidade, os religiosos mencionados da mesma,
e logo a clerezia e cabido que entoavam todos os salmos e hinos ao Santíssimo
Sacramento que levava Sua Excelência Reverendíssimo debaixo do Palio, de
que os sacerdotes levavam as varas; e logo atrás do Palio se seguia o Senado
da Câmara, o qual quis cobrir o Governador e Capitão General por se não
privar das indulgências de acompanhar o Santíssimo Sacramento, que
manifesto saia em uma procissão; que toda caminhava a dar graças ao céu pela
vida e saúde de Sua Majestade Fidelíssima; e por último escoltava a procissão
o regimento formado segundo o seu militar estilo .8

De acordo com o documento, após o Te Deum a procissão saiu pelas ruas de Olinda
com as Irmandades, Confrarias e religiosos (“Bento, do Carmo calçados e descalços, Capuchos
de S. Antônio e da Companhia de Jesus”), o bispo seguia embaixo do Palio do Santíssimo e
logo em seguida vinham a Câmara de Olinda, pelo que consta, desejava ocupar o espaço do
governador Luís Diogo Lobo da Silva no cortejo. Tal situação nos remete a explanação feita
por Kalina Vanderlei ao dizer que os espaços eram arranjados cuidadosamente em celebrações
como essas e o prestígio dos participantes das cerimônias eram “[...] estabelecidos pelo lugar
ocupado por um personagem em relação a um desses símbolos: o pálio e o Santíssimo
Sacramento são os melhores exemplos”9.
As disputas pela proximidade do símbolo foram comuns durante as festas,
principalmente entre os oficiais das câmaras e governador. Há nessa questão uma competição
na condição de representantes do rei na localidade. Se pensarmos de forma pragmática
elegeríamos como representante do rei de imediato o governador, já que esse era nomeado pelo
rei. Porém, não podemos deixar de rememorar o papel político decisivo desempenhado pelas
elites locais em diversas partes do reino, e o poder de mando que desenvolviam na localidade,
daí as inúmeras brigas com os governadores, e em muitas situações casos de desobediência às
leis e normas impostas. Se de fato foram representantes ou não, ao menos havia a pretensão e a

8
Idem.
9
SILVA, Kalina Vanderlei. “Tão bons, tão fieis e honrados vassalos”- A elite açucareira, os valores barrocos e
as celebrações públicas em Pernambuco (Sécs. XVII e XVIII). In: IV Congresso Internacional do Barroco Ibero-
americano, 2008, Ouro Preto-MG. Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Ibero-Americano. Belo 80
Horizonte: C/Arte, 2006. p.7. Disponível em:
http://www.upo.es/depa/webdhuma/areas/arte/4cb/pdf/Kalina%20Vandereli.pdf. Acesso em: 03/05/2013.
disposição para mostrarem-se como tal. A colocação de Kalina Silva reflete bem a situação dos
oficiais:
Essa situação de eterna competição com os governadores pelo privilégio de
simular a Coroa em solo americano tornava cada festa um momento de
disputa, compreensível quando se entende que o status público da elite estava
vinculado ao papel que representariam na encenação pública.10

A solenidade para o monarca encerrou-se na Catedral da Sé após muitas preces e


orações pela saúde do rei. Os moradores de Recife que a essa época já estavam com poderio
consolidado também realizaram sua solenidade com direito as pompas e circunstâncias que
vimos em Olinda. Conta-nos o documento que o governador de Pernambuco determinou que
ornasse com grande suntuosidade a Igreja dos Militares do Recife, localizada na Rua Nova,
para realização da missa de ação de graça, que ocorreu no dia 5 de Junho de 1759 no fim da
tarde. “Não se via mais que pompa, luzimento, e grandeza; ornadas as paredes, e as tribunas
das mais ricas e pomposas armações, entre elas havia mais espelhos excelentes, ricas placas, e
flamantes candeeiros que multiplicavam objetos vistosos e agradáveis.”11. Mediante o repicar
dos sinos esse dia findou-se com mais festejos “alegres” sob as luzes das luminárias espalhadas
por toda a vila rompendo o breu da noite.
No dia seguinte, 6 de Junho, novas celebrações aconteceram. Como houve com a
aclamação em Pernambuco, as celebrações de ação de graça por ocasião do atentado ocorreram
também no dia no aniversário de D. José. Por ser aniversário do monarca esse dia foi o mais
comemorado e como nos narra a relação sobre esse momento: “[...] foi ele o de maior alvoroço
e jubilo que houve nesse Recife.”12 As comemorações iniciaram logo cedo, às sete da manhã,
com os regimentos de Infantaria da guarnição de Olinda e Recife marchando para Rua Nova
em direção ao pátio da Igreja dos Militares. A marcha foi justificada de forma a dar “mais
aparato e magnificência a este ato”.13 Quase às nove da manhã, o evento conta com a
participação do bispo que foi recebido com cortejos militares pelos dois regimentos e com as
devidas reverências pelo governador da Capitania que estava à porta da Igreja juntamente com
“as pessoas principais” o esperando. Na ocasião o bispo celebrou a missa pontifical, como em
Olinda.

10
SILVA, Kalina Vanderlei. Festa e memória da elite açucareira no século XVII: a Ação de Graças pela
Restauração da Capitania de Pernambuco contra os holandeses. In: OLIVEIRA, Carla Mary S.; MENEZES,
Mozart Vergetti de; GONÇALVES, Regina Célia. (Org.). Ensaios sobre a América Portuguesa. João Pessoa:
Editora Universitária - UFPB, 2009, v. 01.p. 71
11
A.H.U., avulsos de Pernambuco, Cx. 93, Doc. 7398, 20/04/1760 81
12
Idem.
13
Idem.
Após o momento religioso, às duas da tarde houve três descargas de mosquetaria que
saíram da “Fortaleza do Brum, do Buraco, das Cinco Pontas, do Castelo do Mar e de muitas
não ancoradas”14. Logo em seguida o governador Luís Lobo ofereceu no Palácio das Torres
(região onde atualmente localiza-se o Palácio do Campo das Princesas, Teatro de Santa Isabel
e Praça da República) um grandioso jantar para os religiosos e as elites locais, onde fizeram um
brinde à saúde do rei D. José. O dia 6 de Junho exauriu-se com músicas, danças e luminárias
em homenagem a mais um ano de vida do soberano, dessa vez sendo comemorado
duplicadamente. Importante ressaltar que presenciamos, através das relações dos atos festivos,
dois momentos que coincidiram com o dia do aniversário do monarca. Nessas duas ocasiões
percebemos, através das solenidades e das palavras descritas, o nascimento e renascimento de
D. José sendo comemorados em Pernambuco em uma data em que muitos consideram como
renovação do ciclo da vida.

CONSIDERAÇÕES...

Diante das descrições do bispo podemos refletir que as festas realizadas não eram
somente imposições da coroa, como podemos pensar em alguns momentos. As festas faziam
parte da rotina do reino e dos seus domínios, já que diversos acontecimentos se transformavam
em eventos. No caso analisado, o acontecimento foi algo triste, entretanto, o evento se
processou com alegria pelo rei ter saído com vida do atentado. Nesse ínterim, esses festejos
adquiriam significados diversos, fosse para lembrar o rei e torná-lo presente naqueles momentos
ou para servir de ostentação por parte das elites locais, e esses instantes o narrador não deixou
passar despercebido, pois em todo o momento destaca a presença e os feitos das “pessoas
principais” no decorrer das cerimônias. George Cabral sintetiza os significados das festas ao
dizer que:
Las festas desempeñaron en el Brasil colonial un importante papel político.
Por un lado, era una manera de acercar y tornar familiar a los portugueses de
América del monarca, posibilitando el enaltecimento de un rey inaccesible que
así se hacia más presente e venerado. Las manifestaciones festivas del poder
monárquico fueron más frecuentes a partir de los reinados de D. João V e D.
José I [...] en las colônias, la ausencia fisica de los monarcas era de alguna
manera suplida por la constante rememoración de su soberania teatralizada en
las festividades.15

14
Idem. 82
15
SOUZA, George Félix Cabral de. Elite y ejercicio de poder en el Brasil colonial: la Cámara Municipal de Recife
(1710-1822). Universidade de Salamanca. Salamanca, 2007. (tese de doutorado). pp. 493-494
A apresentação pública significava para os participantes dos festejos reafirmarem o
poder político que detinham. Através da relação vimos o ordenamento que havia nas
comemorações, dos dias em que foram realizadas e por quem. Afinal deveriam obter sucesso
nas formas de representar o rei e homenageá-lo. Já que figuravam como autoridades políticas
deveriam mostrar-se bem afeiçoados. As vestimentas, os símbolos e a civilidade serviam para
demonstrar o estatuto que as elites sustentavam. De acordo com Chartier “[...] a civilidade é
acima de tudo uma arte, sempre controlada, da representação de si mesmo para os outros, um
modo estritamente regulamentado de mostrar a identidade que se deseja ver reconhecida” 16.
A partir da leitura das cerimônias para D. José na Capitania, observamos também que
a ausência real suscitava uma maior necessidade de aparição por parte das elites locais na
tentativa de representar o rei nessas celebrações. Festas como essas eram momentos propícios
para a publicitação do poder desses grupos que organizavam e participavam. O testemunho da
fidelidade ao rei já se iniciava nos preparativos dessas comemorações com o grande dispêndio
financeiro necessário para a materialização destes eventos. Instituições políticas e religiosas
eram responsáveis por essa parte, sendo um dos principais “promotores dos festejos”17 os
funcionários das câmaras. As festas eram “tarefa do governo, servindo para maravilhar os
súditos, incutindo-lhe ideias do poder e riqueza do Rei.”18
Esses eventos eram por todos aguardados no instante que eram momentos para serem
vistos e observar os outros. As festas começavam com as luminárias e decoração das fachadas
das casas e com elas as demonstrações de poder, pois esses itens eram vistos como uma forma
de distinção social, na medida em que se notava o esforço dos moradores das localidades onde
havia os festejos em adornar ricamente suas janelas, bem como deixa-las mais iluminadas para
que se destacassem perante as outras quando passasse o cortejo das procissões.
Notamos que diferentemente das missas e jantares que eram realizados em espaços
fechados e para um grupo seleto, as procissões eram um evento essencialmente público, no

16
CHARTIER, Roger. Forma da Privatização. In: História da vida Privada, 3: da Renascença ao Século das
luzes. Org. Roger Chartier; tradução Hildergard Feist. São Paulo: Companhia das letras, 2009. p. 165.
17
ALVES, Joaquim Jaime B. Ferreira. O “magnífico aparato”: formas da festa ao serviço da família real no
século XVIII. Separata da revista de História do Centro de História da Universidade do Porto, vol. XII, Porto,
1993. p.181. Disponível em:
http://aleph20.letras.up.pt/F/KENF6769A8R3IYC2IRPXU84V7TYIALIKRBQ4YU1FHS13BNY2E3-
21039?func=find-b&request=000024995&find_code=SYS&local_base=FLP01&pds_handle=GUEST. Acesso
em: 08/04/2013. 83
18
SANTIAGO, Camila Santiago Guimarães. As festas promovidas pelo Senado da Câmara de Vila Rica (1711-
1744). Universidade Federal de Minas Gerais. 2001. (Dissertação de Mestrado). p. 39
sentido que tomava as ruas e era vista por todos, daí as ordens “que estejam às ruas limpas e
ornadas no trânsito da procissão”19 justamente para que a encenação fosse perfeita.
Em comemorações como estas a cidade transformava-se em um teatro onde o
protagonista principal era o monarca, entretanto, como não estava presente, a representação
ocorria através dos seus vassalos distantes. Nesses momentos vimos que havia uma tentativa de
mostrar a sociedade de forma hierárquica, pois no ordenamento da festa cada um ocupava o
lugar que lhe pertencia, por isso, percebemos na escrita das relações o cuidado em destacar
quem estava presente, o que fez e qual seu comportamento. Os termos “principais”, de “honrado
nascimento”, “cidadãos”, “nobres” eram utilizados para qualificar esses homens que faziam
parte da elite local.
Peter Burke discorre que o ritual das cerimônias ocorria como uma peça teatral
encenada para incentivar a obediência, pois as impressões pessoais tem maior impacto do que
a linguagem20, ou seja, a prática se sobressai à teoria. Para Júnia Ferreira Furtado, “a procissão
era um texto para ser lido, pois estava carregada de signos que representavam as relações sociais
onde estava inserida, mas numa sociedade em construção, ela não era uma réplica fiel daquilo
que ocorria ao seu redor”21. Já que nem todos os moradores participavam efetivamente, alguns
apenas como espectadores, não podemos afirmar que era um retrato fiel daquela sociedade.
Para ser bem visto nas festividades o bom comportamento era um dos elementos
essenciais que essas elites deveriam ter. Mesmo em uma sociedade onde não havia corte e com
o rei distante, ainda assim o centro era tido como referência na maneira de como proceder
perante os outros, e por isso tentavam adequar os moldes da corte onde fosse possível. Sendo
assim, tomamos como referência algumas colocações de Norbert Elias em “A Sociedade de
Corte” para tentar compreender a importância e significados para esses grupos de se portar
perante seus pares ou não. Afinal, não só nas cortes que vemos disputas por status, como expõe
Elias: “Competições por prestígio e status podem ser observadas em muitas formações sociais;
é possível que se encontre em todas as sociedades.”22
O indivíduo precisava ser reconhecido pelos outros para que sua condição social fosse
firmada. Não bastava ser e ser visto, era necessário ser reconhecido, daí a importância das festas

19
A.H.U., avulsos de Pernambuco, Cx. 93, Doc. 7398, 20/04/1760
20
BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. 2ªed. Rio de Janeiro: Zahar,
2009. p. 19
21
FURTADO, Júnia Ferreira. Desfilar: a procissão barroca. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH,
vol. 17, n° 33, 1997. p. 255. 84
22
ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio
de Janeiro: Zahar, 2001. p.110
e da posição que ocupavam nelas para esses homens. Fazer parte de uma elite e da “boa
sociedade” era algo de grande relevância, porém o reconhecimento deveria vir atrelado a essa
condição. Ser reconhecido gerava opinião social e a sua recusa na sociedade fazia com que se
perdesse um elemento de extrema importância que era a honra. “Perdia-se a honra, perdendo
assim uma parcela constitutiva de sua identidade pessoal.23”
O reconhecimento estava intimamente interligado ao comportamento e a etiqueta, por
meio deles era possível confirmar o prestígio que possuía perante a sociedade, e uma das formas
de demonstrar seria durante as cerimônias. A organização vista nos cerimoniais, segundo Elias
não era racional, na visão que possuímos atualmente, mas sim uma ordem que tem significados
onde “cada atitude revela um sinal de prestígio, simbolizando a divisão de poder da época. 24”.
O comportamento dos participantes quando em uma festividade, principalmente
nessas em que homenageavam e representavam o rei ausente, era calculado de forma que nada
saísse do ordenamento, os atos eram pensados, os lugares eram marcados, o bom
comportamento e a etiqueta eram bem vistos. A etiqueta como um elemento de distinção social,
por muitas vezes poderia ser um fardo para esses homens, afinal deveria ser mantida
constantemente, não somente porque se exigia, mas também por que: “A importância conferida
à demonstração de prestígio, à observância da etiqueta, não diz respeito a meras “formalidades”,
mas sim ao que é mais necessário e vital para a identidade visual de um cortesão”.25 Jacques
Revel complementa que a socialização das condutas não pode ser vista sempre como algo
imposto, pois aos poucos essas regras sociais foram sendo incorporadas pelos indivíduos,
fazendo parte da natureza deles.26

REFERÊNCIAS

ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO

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“GENTIOS TRAYDORES E DESLEAES”: REVOLTAS LOCAIS E
ADMINISTRAÇÃO PORTUGUESA DURANTE A OCUPAÇÃO HOLANDESA EM
ANGOLA (1641-1648)1

Ana Maria Soares de Araújo, mestranda do Programa de Pós-


Graduação em História da Universidade Federal de Alagoas.
E-mail: anams.araujo@outlook.com2

A presença portuguesa em Angola no século XVII

A presença portuguesa em Angola foi estabelecida no final do século XVI 3, tendo o


“trato negreiro” 4
como principal finalidade. A ocupação de Angola forjou o que Manolo
Florentino aponta como ensaio colonial ímpar, apoiado num aparato burocrático e comercial,
com a finalidade de controlar as rotas de exportação de força de trabalho para o além-mar
(FLORENTINO, 2014, p. 98). Contudo, o domínio português se restringia principalmente à
costa ou às áreas próximas a ela, ficando os sobados próximos fora do controle da Coroa.
Diferentemente do Congo, região vizinha onde o poder político era centralizado no Manicongo,
Angola possuía uma política marcada pela descentralização. O Ngola – principal autoridade de
Angola – tinha seu poder vinculado ao sobrenatural e a ele cabia funções como prover a chuva
e controlar demais fenômenos da natureza (CARVALHO, 2015, p. 51). O poder na prática era
distribuído entre os sobas5, que possuíam grande autonomia em suas ações. Por esse motivo, o
principal meio de aproximação e interiorização encontrado pelos portugueses foi através do
contato com esses sobas.

O avassalamento foi usado como instrumento político de domínio dos territórios


conquistados no ultramar (HEINTZE, 2007, p. 255) e surgiu como substituto do sistema de

1
Esse trabalho é fruto de pesquisa em desenvolvimento no mestrado e orientada pela Prof.ª Dra. Flávia Maria de
Carvalho (UFAL).
2
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
3
“Oficialmente presentes em Angola desde 1575 como conquistadores e comerciantes”
(HEINTZE, 2007, p. 278).
4
“Trato negreiro” é uma expressão usada por Luiz Felipe de Alencastro para caracterizar todas as etapas que
envolviam os processos de captação, transporte, embarque e comércio dos escravos, desde sua saída do sertão
angolano, passando pela travessia atlântica, até chegar aos mercados da América Portuguesa (ALENCASTRO,
2000). 87
5
A região de Angola era dividida em sobados, governados por seus respectivos sobas (chefes locais). Esses sobas
gozavam de grande autonomia política nas suas ações governativas (CARVALHO, 2015, p. 50).
amos, vigente até o século XVII6. A partir de 1607, os angolanos passaram a ser diretamente
subordinados à Coroa portuguesa através desse sistema, que era administrado por funcionários
portugueses. O avassalamento enquanto instrumento de poder utilizado com os sobas também
se apropriou da cerimônia de undamento presente entre os africanos e utilizada na legitimação
do poder de um novo soba. O sistema de avassalamentos baseava-se em trocas. O vassalo
deveria jurar fidelidade e obediência à Coroa, se comprometer a prestar auxílio militar, abrir os
seus territórios ao comércio português, sobretudo o de escravos, pagar tributos anuais e
converter-se ao Cristianismo – embora o batismo desses sobas não tenha sido uma condição
sine qua non do avassalamento – em troca de proteção militar contra seus inimigos (HEINTZE,
2007, p. 280, 407). O avassalamento foi o meio empregado na tentativa de formar relações mais
sólidas com esses sobas e facilitar a interiorização, visto o interesse mercantil português em
buscar o desenvolvimento e controle do comércio de escravos nas regiões fora de seus
domínios.

É evidente a predominância do econômico nessas relações, sendo o comércio de


escravos o principal motor das alianças estabelecidas entre os heterogêneos grupos presentes
na região. Paul Lovejoy (2000, p. 141, 143) vê a inserção desses africanos no comércio atlântico
de escravos como causadora de profundas transformações estruturais. A demanda de escravos
teria provocado guerras e razias em larga escala para a captação de escravos; a disseminação
da anarquia, em forma de sequestros e razias em pequena escala e uma maior violência de
estado através da legitimação da escravização de pessoas como forma de punição para diversos
crimes. De forma semelhante, Manolo Florentino (2014, p. 166) afirma que quanto mais
envolvida no tráfico litorâneo estivesse uma determinada área da África Central, mais
econômicas pareciam se tornar as expedições guerreiras, independentemente dos ganhos
políticos; como sugere a ascensão dos grupos imbangala7, chamados por Lovejoy de “senhores

6
O sistema de amos consistia na distribuição de terras, inclusive sobados, para instituições e indivíduos particulares
(CARVALHO, 2015, p. 81), que se tornavam amos desses sobas e seus intermediários com a Coroa. Esse sistema
foi estabelecido durante o período do governo de Paulo Dias de Novais (1575-1588) que doou vários chefados
como propriedade hereditária a conquistadores e, principalmente, à Sociedade de Jesus, como sesmaria
(HEINTZE, 2007, p. 439).
7
Grupos nômades e heterogêneos de guerreiros que não compartilhavam ancestralidade ou etnia comuns e eram
formados predominantemente por homens jovens. Viviam de saques e pilhagens e por onde passavam agregavam
homens jovens aos seus bandos (CARVALHO, 2015, p. 76). A ruptura com a linhagem de origem os teria levado
ao abandono das formas tradicionais de organização social estruturadas em relações matrilineares e à adoção de
instituições sem vínculos de parentesco lineares, relacionadas à sua atividade essencial, a guerra (MACEDO, 2013,
p. 67). É extremamente comum a utilização do termo jaga na identificação dos grupos imbangalas nas fontes
portuguesas. Sobre isso, Mariana Candido (2014, p. 69, 75) afirma que apesar de sua preexistência (yaka), houve
uma reconfiguração de seu significado e utilização no “universo português da África Centro-Ocidental” na 88
identificação de grupos fora do controle português, que ameaçavam a existência do projeto colonial e cuja
organização política e social era desconhecida.
da guerra”, um dos principais provedores de escravos para o comércio exportador na África
Centro-Ocidental no século XVII e também a consolidação das regiões de Matamba e Cassanje,
que mantinham o monopólio dos negócios de exportação e importação e tinham a escravidão
como elemento essencial para a sustentação de suas estruturas políticas e econômicas
(LOVEJOY, 2000, p. 129-131).

Com o fim da União Ibérica inicia-se uma fase em que percebemos as tentativas da
Coroa em traçar diretrizes e estratégias voltadas para reafirmar sua autoridade junto aos seus
súditos angolanos, até então subordinados aos monarcas ibérico-espanhóis. Em meio a isso,
Portugal estava inserido em conflitos que repercutiam diretamente em suas conquistas na África
Centro-Ocidental: com o Vaticano; pelo controle da atividade missionária; com os holandeses,
pelo controle do tráfico de escravos; com a Espanha, pela soberania do império português
(BIRMINGHAM, 2004, p. 119). A ocupação holandesa em 1641, mais especificamente,
instabiliza ainda mais o controle português sobre seus vassalos angolanos. A presença
holandesa “remexera os territórios conquistados e as alianças com as comunidades nativas”,
formando outras relações de forças e outras partilhas de zonas de influência que se impunham
às autoridades (ALENCASTRO, 2000, p. 276). Nesse momento de instabilidade política, a
rebelião representava um meio de adquirir posições, interesses e privilégios nas heterogêneas
possessões do então Império Ultramarino Português (FIGUEIREDO, 2001, p. 225).

Ameaça estrangeira: holandeses e os sobas rebeldes no sertão angolano

Apesar do tratado de tréguas entre Portugal e os Estados Gerais da Holanda, assinado


em 12 de junho de 1641 em Haia, estabelecendo o fim das hostilidades, por mar e por terra,
entre os concordados por dez anos (MMA, VIII, p. 511), em agosto de 1641 os holandeses
invadiam Luanda, fazendo os moradores da região fugirem às pressas em direção às margens
do Bengo – onde permaneceram por nove meses – e, posteriormente à Massangano
(BIRMINGHAM, 2004, p. 119). A busca do monopólio do lucrativo comércio de escravos em
Angola foi o elemento basilar da invasão. Para isso, estabeleceram relações com os chefes locais
semelhantes às dos portugueses, baseando-se em negociações e alianças.

Analisando as fontes8, identificamos alguns sobas do sertão de Angola que se aliaram


aos holandeses durante o governo de Pedro César de Meneses (1639-1645), Francisco de Souto-
Maior (1645-1646), na junta governativa de António Teixeira de Mendonça, Bartolomeu de

8
CADORNEGA, Antonio de Oliveira de. História geral das guerras Angolanas: 1639-1678. Lisboa: Agência- 89
geral do Ultramar, 1972, tomo I; BRÁSIO, Padre Antonio. Monumenta Missionária Africana. Lisboa: Agência
Geral do Ultramar, vol. VIII e IX.
Vasconcelos da Cunha e João Zuzarte de Andrada (1646-1647) e no governo de Bartolomeu de
Vasconcelos da Cunha (1647-1648). Como certo soba traidor Mani-Gango, do Bengo, que teria
logo no início contado aos holandeses a localização da tropa portuguesa, atacada durante a noite
pelos invasores (CADORNEGA, I, p. 253). Ou ainda o soba do sertão Nambu a Kalombe, que,
com outros sobas seus aliados, teria montado um quilombo “com ajuntamento de muito gentio,
todos vassalos da Coroa de Portugal” já acordados com os holandeses (CADORNEGA, I, p.
261-262). César de Meneses enviou uma expedição contra Nambu a Kalombe, em 20 de janeiro
de 1642, liderada pelo capitão-mor António Bruto, que “com o dito soua, matandolhe oito mil
peçoas, prendendo ao dito Nambuacalombe, a quem logo mandei cortar a cabeça, com parecer
e votos dos souas vassalos de V. Magestade, segundo custume do Reino” (MMA, IX, p. 30).

90
Mapa 1 - Angola e o Reino do Congo, do século XVI ao XVIII

Fonte: BOXER (1981).

O governo de César de Meneses presenciou o maior número de revoltas desses sobas.


Em Ilama, “[...] este tal [soba Uakola Pupa] fazia muitos roubos em alguns Sovas daquela Provincia [Ilama]
Vassallos nossos, dando assaltos em muitas povoaçoens de gente forra e Cativa dos Portuguezes”
(CADORNEGA, I, p. 278). Nessa região, os sobas Motemo e Nambuagongo “tiranicamente
tinháo uzado de crueldades com os Portuguezes, clérigos, e mais Religiozos que em suas terras
estaváo, matando os, tomando lhes suas fazendas e fazendo outros ritos gentílicos” (MMA, IX,
p. 32), ambos teriam sido derrotados em expedição liderada pelo capitão-mor António de Abreu
91
de Miranda. Outro soba, Engombe-a-muquiama, a quem o governador enviou campanha
encabeçada pelo capitão-mor António Bruto em 1642, renunciou a vassalagem e se uniu a
outros sobas amotinados contra os portugueses (MMA, IX, p. 31). Nas terras do soba Golungo,
rebelaram-se: Golungo, Salaizongo, Dalandongo, Canzelle, e Quitalla, amaparados por
holandeses (MMA, IX, p. 33-34). Mesmo com o novo acordo estabelecido em 1643, firmando
a liberdade e abertura dos caminhos para o comércio e controle das ações dos sobas avassalados
para “que estejaõ quietos sem fazerem guerra hum ao outro e cada hum ficará dentro de seu
destrito" (MMA, IX, p. 58), as hostilidades continuaram.

A região dos Dembos/Ndembu, nas margens do rio Dande, presenciou o maior número
de revoltas dos sobas, tal como indica o relato de Cadornega acerca de uma expedição
portuguesa à região em 1642 contra os sobas Dambi Angonga e Quitexi Candambe: “chegarão
às terras daqueles Sovas que estavão mui chegados à Cidade, emparados dos Flamengos como
seus parciais, e tiveram os nossos Portugueses com os ditos Sovas hum grande encontro e
batalha, ficando mui destroçados, e bem castigados” (CADORNEGA, I, p. 287). Também se
rebelaram os sobas Ngoleme a Kaita e Kakulu Kahenda, derrotados em uma expedição liderada
pelo capitão-mor António de Abreu de Miranda e pelo sargento-mor Matias Telles Barreto, com
ajuda dos jagas quilambas9. Ngoleme a Kaita se rebelou novamente, dessa vez pediu ajuda de
Nzinga, que enviou auxílio liderado por seu “capitão geral” Nzinga Amona, muito citado nos
conflitos contra os portugueses no período, dessa vez saiu vitorioso da batalha. Nambu a
Ndongo, um dos mais poderosos chefes ndembu, contra o qual foi feita expedição liderada pelos
capitães-mores António Bruto e António de Abreu de Miranda, facilmente derrotada pelo soba,
que contou com a ajuda de 200 soldados holandeses (BIRMINGHAM, 2004, p. 121). A atuação
de Nzinga Mbandi10 nessas revoltas também é frequentemente mencionada, onde

não se descuidava em fulminar trayçoens com os Sovas Vassallos del rey nosso
Senhor, fazendoos rebelar contra a Nação Portuguesa, mandando seus Embaixadores
ao Flamengo à Cidade de Loanda com suas dadivas, fazendo com eles Confederação,
e para ficar mais á mão e não tão distante, mudou seu Quilombo 11 para entre os Sovas
Dembos. (CADORNEGA, I, p. 293)

Também no Libolo as expedições portuguesas foram frequentes, a pedido dos sobas


vassalos que “estavão muito molestados com a guerra que lhes fazião muito quilombos de

9
“Do quimbundo: kilamba, ilamba, capitães da guerra preta” (MMA, IX, p. 29).
10
Nzinga, batizada como Ana de Sousa, é uma personagem crucial na compreensão das relações estabelecidas
entre os portugueses e as chefias locais no século XVII. Após a morte de seu irmão Ngola Mbandi, rei do Ndongo,
em 1624, Nzinga teria assassinado seu sobrinho, herdeiro do trono, e assumido o poder da região. Posteriormente,
se retirou para Matamba, onde assumiu o reinado dessa região até sua morte, em 1663. Durante sua vida, aliou-se
aos imbangalas, portugueses e holandeses em momentos diferentes e de acordo com seus interesses políticos e 92
econômicos.
11
Kilombo: Conjunto de forças militares; arraial (ASSIS JR., p. 127).
Jagas” (CADORNEGA, I, p. 312). Os vassalos em questão pediam proteção aos ataques do
jaga Lulembe, que vinha, com seu bando, promovendo saques e pilhagens na região. A presença
de Nzinga como aliada ao sobas rebelados do Libolo é citada, bem como na região do
Dongo/Ndongo, onde “assombrava com sua guerra os nossos Sovas Vassallos, e todo o seu
destricto, dando alguns assaltos em o Dominio del Rey de Domgo Gola Airi, Vassallo de Sua
Magestade” (CADORNEGA, I, p. 387).

Próximo à Massangano, durante o governo do triunvirato, o soba Angola Quiaito teria


abrigado holandeses em sua banza12. Os flamengos, com o apoio desse soba, teriam tentado
invadir Massangano, mas fracassaram na empreitada e foram derrotados em uma violenta
expedição (CADORNEGA, I, p. 442). No último governo analisado, os holandeses marcharam
para o presídio de Muxima, em Quissama, “trazendo em sua ajuda muita gente daquela belicosa
Provincia” (CADORNEGA, I, p. 457). Tal ameaça mobilizou uma expedição conduzida pelo
sargento-mor Diogo Gomes Moralles, saindo os flamengos derrotados do conflito. Na região
do Lembo, os holandeses também tentaram se assentar, sem sucesso, com o apoio do capitão
geral de Nzinga (Nzinga Amona) e do soba rebelado D. Pedro Bamba Atungo (CADORNEGA,
I, p. 506).

É significativa a presença dos jagas, tanto como aliados aos portugueses nas guerras
pretas (como o caso do jaga Kabuku Kandonga e Gola Ambole, aliados aos portugueses nas expedições contra
os sobas rebelados no período de ocupação holandesa), como quanto inimigos, promovendo saques e
pilhagens aos sobas vassalos da Coroa. A maioria dos conflitos envolvia participação dos jagas
e de Nzinga, aliados aos holandeses. Esses personagens surgem como um dos principais
obstáculos ao controle português, promovendo saques e pilhagens contra sobas avassalados. A
aliança entre o rei do Congo, D. Garcia II e os holandeses também deve ser considerada. Em
12 de maio de 1642, D. Garcia envia carta a João Maurício de Nassau, jurando amizade com o
príncipe de Orange e aliança aos holandeses, “mantendo toda a fidelidade para podermos
prejudicar aos nossos inimigos e nos defendermos contra eles; licença livre e geral de fazer
fortalezas em todos os portos que me pertencem é dada aos generais de V. Ex.ª” (MMA, VIII,
p. 585); além de dificultar a presença portuguesa e o comércio destes em alguns lugares e portos
(MMA, IX, p. 15). Nesse cenário, a Coroa enfrenta uma aliança entre D. Garcia II, Nzinga, os
jagas e os holandeses. Sem o apoio desses personagens, Portugal via sua soberania política e
comercial drasticamente reduzida.

93
12
Mbanza: Residência do governador ou chefe – soba (ASSIS JR, p. 19).
A influência brasílica13 e as tentativas de restauração

É importante destacar o interesse da América portuguesa na reconquista de Angola, já


que sem Luanda para exportação a colônia americana estava condenada. De lá saíram as três
expedições para restaurar Angola. A primeira, em 1645: uma frota da Bahia, com mosqueteiros
do terço de Henrique Dias e o sargento-mor Domingos Lopes Siqueira chega em Quicombo,
norte de Benguela, com o objetivo de alcançar Massangano a pé. Caem numa emboscada dos
jagas e quase todos morrem. Outra frota saiu do Rio em 1644, liderada por Francisco de Souto
Maior (que assumiu o governo de Angola em 1645) também fracassou, mas aproveitaram a
viagem para pegar escravos. Salvador de Sá conduziu a terceira frota rumo à reconquista de
Angola, com sucesso, e teve 70% da expedição financiada por negreiros e fazendeiros
fluminenses (ALENCASTRO, 2000, p. 228, 229, 233, 234). A ligação direta entre os dois lados
do Atlântico pelo trato negreiro também pode ser percebida no envio de munições pelo
governador da Bahia (MMA, IX, p. 25) e o pedido da construção de uma fortificação na Barra
do Dande, para facilitar a chegada segura dos navios da América portuguesa, enviado por César
de Meneses ao rei de Portugal (MMA, IX, p. 38). Segundo Boxer (1981, p. 108), o escravo
africano constituía o pilar fundamental da economia agrícola em Pernambuco, Bahia e Rio de
Janeiro. Visto isso, os brasílicos mostraram-se como os principais interessados na retomada do
controle sobre a região.

Considerações finais

As revoltas eclodidas após o assalto holandês à Luanda mostram como o controle da


administração portuguesa era frágil nos sobados adjacentes, tornando-se muitas vezes abstrato
nas regiões mais interioranas, onde os sobas possuíam maior autonomia em suas relações.
Diversos personagens compunham o hinterland angolano e possuíam seus próprios interesses,
formas de organização e ligação uns com os outros. Apesar do uso do avassalamento como
meio de submeter essas chefias à Coroa, as relações mantidas eram instáveis e guiadas por
interesses econômicos, principalmente pelo tráfico negreiro. A presença flamenga surge como
uma ameaça à soberania portuguesa no comércio de escravos, componente crucial da economia
imperial; e o interesse brasílico na região demonstra o papel crucial de Angola na manutenção
da América portuguesa. Tais eventos vinham para somar à já vulnerável conjuntura política
enfrentada pela Coroa brigantina no pós-Restauração.

94
13
Termo cunhado por Alencastro (2000).
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Vinicius Cavalcante Melo de Lima 1


Graduando em História
Universidade Federal Rural de Pernambuco
vinicius.ken00@hotmail.com

INTRODUÇÃO

Vicente Rodrigues Palha nasceu por volta de 1564, durante o governo geral de Mem de
Sá, em Matoim, no Recôncavo baiano. A inserção do frei Vicente no mundo das letras foi a
partir de um sacerdote religioso, com quem os filhos dos senhores de engenho costumavam
iniciar-se nos rudimentos da leitura. Ele estudou no colégio dos jesuítas em Salvador, depois
estudou Direito Civil e Teologia na Universidade de Coimbra e lá doutorou-se em Direito
Canônico. Voltou à Bahia em 1587. Depois foi cônego da catedral e vigário geral da Bahia.
Ingressou na Ordem Franciscana em 27 de janeiro de 1599.

Em 1608 foi para Olinda, onde ele deveria ensinar, mas em 1609 outro custódio, Frei
Francisco dos Santos, ocupou a vaga. Então, Frei Vicente foi para a Bahia e em 1612 foi eleito
o guardião do Convento de Santo Antônio no Rio de Janeiro e custódio em 1614. Acabado o
mandato, ele foi para Portugal a fim de imprimir “A crônica da custódia do Brasil” que
escrevera

Se pararmos para refletir, foi nesse contexto, ou um pouco antes, que houve a difusão
da tipografia e da imprensa na Europa. O início do processo escrito atendeu às necessidades de
mercadores e nobres nos seus livros de contas e crônicas. Segundo Fernando Bouza Álvarez,
no século XV, uma das consequências da invenção da imprensa foi uma maior difusão de livros.
Não quer dizer, porém, que os manuscritos deixaram de ser produzidos ou que eles perderam
espaço dentro desse mundo publicístico. Pelo contrário, os escritos manuais adquiriram um
caráter pessoal e ainda assim algumas obras manuscritas ganharam bastante notoriedade2.

1
Orientador: Prof. Dr. Kleber Clementino da Silva, NEIC/Departamento de História - UFRPE 97
2
Ver: BOUZA ÁLVAREZ, Fernando J. Del escribano a la biblioteca: la civilizacion escrita europea en la Alta
Edad Moderna (Siglos XV-XVII). Madri: Editorial Sintesis, 1997.
A Idade Moderna ganhou o uso dessa nova forma de divulgação e não podemos pensar
que era incomum que o universo da cultura escrita estivesse atrelado ao da política; e disso frei
Vicente soube fazer proveito quando propôs escrever a Historia do Brazil. É imerso nesse
contexto que frei Vicente foi para Évora. Lá teve contato com Manuel Severim de Faria:
historiador que tinha uma vasta biblioteca e foi ele quem incitou frei Vicente a compor uma
obra histórica.

Em 1619, Vicente Palha teve que voltar para a Bahia, pois foi escolhido custódio (padre
franciscano que substituía o provincial na ausência deste) e eleito guardião da Bahia. Em 1624
foi aprisionado pelos Holandeses. Quando foi libertado, continuou a escrever a obra que tinha
começado em Portugal, mas agora no Brasil. Segundo Capistrano de Abreu, frei Vicente deve
ter morrido entre 1636-16393.

Segundo Maria Lêda Oliveira, a Historia do Brazil de frei Vicente do Salvador pode ser
considerado um marco para a historiografia da América Portuguesa 4. A política baliza grande
parte dos eventos narrados, a sucessão de eventos e o tempo da história é feito pela sucessão
dos governadores. Então, o que o discurso nos mostra, no recorte proposto pelo trabalho, é que
louvores são geralmente atribuídos àqueles que contribuíram para o projeto colonizador. Além
disso, os elementos teológicos fazem parte da escrita do autor, pois, quando os evoca sempre
tem em mente a visão “providencialista”, mas sem deixar de lado sua racionalidade como nos
mostra a Maria Lêda,

A terra do Brasil, ou como ele preferia, a Terra de Santa Cruz, tinha sido
escolhida por Deus para ser o local certo para o recobro da dignidade do
Império Português diante do resto da cristandade. A Historia do Brazil era, na
verdade, a demonstração de como esta potencialidade, oferecida amavelmente
pelo divino, estava sendo desperdiçada devido às más práticas políticas da
época. Traçou este seu projeto político bem ao compasso das idéias
compartilhadas pelos letrados dos Estados católicos. Dentro da Historia, os
ecos da Boa Razão de Estado fazem-se ouvir e são, no fundo, a alma da
narrativa. Unem-se à Boa Razão de Estado as doutrinas econômicas também
em voga entre os católicos peninsulares, principalmente aquelas defendidas
por João Botero. Eis a Historia que frei Vicente concede a Portugal 5.

3
SALVADOR, Vicente do. Historia do Brazil. Edição e prefácio de Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro: Editora
Itatiaia, 1982, p. 36.
4
OLIVEIRA, Maria Lêda. A história do Brazil de Frei Vicente do Salvador: história e política no Império
Português do Século XVII – Rio de Janeiro: Versal; São Paulo: Odebrecht, 2008, 2v, p. 11. 98
5
OLIVEIRA, Maria Lêda. A história do Brazil de Frei Vicente do Salvador: história e política no Império
Português do Século XVII – Rio de Janeiro: Versal; São Paulo: Odebrecht, 2008, 2v, p. 13.
Bem como,

Aquele Brasil em forma de pomba era realmente, para ele, a geografia


abençoada para que Portugal resgatasse a sua honra e voltasse a comandar a
cristandade. O local onde se deveria instalar o rei e a Corte era o coração dessa
pomba mística. Aquela mesma Bahia por onde o apóstolo São Tomé, o gêmeo
do Salvador, havia passado e ofertado a raiz da mandioca aos gentios. Tudo
estava pronto, portanto, e bastava apenas pôr a geografia abençoada ao
compasso do que fora determinado por Deus 6.

Feitas essas contextualizações pontuais, focarei no objetivo principal do trabalho: a


representação dos três primeiros governadores gerais do Brasil na obra escrita por frei Salvador,
seguindo os moldes da historiografia da época. A escrita da história nos séculos XVI e XVII,
postulava oferecer legitimações políticas para os governantes da época. Conta-nos Maria Lêda
que o livro histórico deveria responder a questões como: qual a justificativa da narrativa e para
que utilidade seriam narrados os eventos7.

EXEMPLOS DE GOVERNADORES

Frei Vicente do Salvador faz uso da escrita com detalhes para descrever os feitos de
Tomé de Sousa, principalmente quando trata da guerra, do povoamento e da construção da
cidade de Salvador. O primeiro governador do Brasil chegou em 1549 depois que o rei ficou
sabendo da morte de Francisco Pereira Coutinho que era capitão da terra. Em sua representação,
Vicente do Salvador tenta fazer dele um governador apreciado e cortês. Relatou que Tomé de
Sousa ajudava “a levar a seus ombros os caibros e madeiras pera as casas, mostrando-se a todos
companheiro afável (parte mui necessária nos que governam novas povoações)” 8. Além disso,
não mediu esforços para ter a Bahia como centro administrativo do Império Português. Posto
que gastou, com ajuda da fazenda real, “mais de trezentos mil cruzados em soldos”9 edificando
Sés, casas, investindo em artilharia e ornamentos.

6
Idem, Ibidem, p. 13.
7
Idem, Ibidem, p. 93.
99
8
SALVADOR, Historia do Brazil, Op. cit., p. 144.
9
SALVADOR, Historia do Brazil, Op. cit., p. 144.
Era Tomé de Sousa, segundo frei Vicente, um homem muito experiente e intrépido nos
assuntos de guerra. “Nas guerras de África e da Índia, onde estivera, tinha se mostrado valoroso
cavalheiro”10. Essa história exemplar, que extraia a essência dos fatos a fim de alcançar um
poder legitimador através de um gozo retórico, mostra-se como uma das formas de aceitação
histórica no Seiscentos, invocando, também a filosofia e a teologia. Segundo Kleber
Clementino,

A historiografia do Seiscentos é um instrumento bem adequado – ou, melhor


dizendo, é um dispositivo primorosamente instrumentalizado – para dar
respostas às solicitações que os muitos atores e partidos, então, lhe dirigem.
Importa-nos lê-la com esta prevenção, em vista do papel que se esperava vê-
la cumprir, no próprio século XVII e no que seria sua posteridade 11.

Vicente do Salvador fez de Tomé de Sousa um bom governante, mostrando, no triênio


que passou à frente do “cargo”, seus feitos enquanto homem de poder: “Edificou, povoou e
fortificou a cidade, que chamou do Salvador”12. Contudo, mesmo exibindo as ações desse
governante, não deixa de falar dos “rogos e importunações”13 que Tomé de Sousa lançava ao
rei para voltar ao reino, pois estava ele “agro e enfadava-se de labutar com degradados”14.
Vicente dedicou ao governo de Tomé de Sousa dois capítulos do seu III livro e, em
contrapartida, dedicou onze capítulos a Mem de Sá, de quem falarei mais adiante.

Em seguida, escreveu sobre a vinda do substituto de Tomé de Sousa: D. Duarte da Costa.


Segundo ele, saiu do Reino em 1553, trazendo consigo seu filho (D. Álvaro) e José de Anchieta.
Chegando nas terras brasílicas, de imediato, lutou, laboriosamente, na defesa da Bahia “contra
os bárbaros gentios, que se levantaram e cometeram grandes insultos”15. O discurso que emenda
sobre esse governante constrói uma imagem de que era habilidoso na arte da guerra, mas
também na conversão dos nativos. Visto que, “dissimulando alguns com prudência e castigando
outros com armas, matando-os e castigando-os em guerra que lhe fez, [...], o qual em todas se
houve valorosamente”16.

10
Idem, Ibidem, p. 146.
11
CLEMENTINO, Kleber. Política e historiografia nas narrativas lusocastelhanas seiscentistas da guerra
holandesa no Atlântico Sul. 2016. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de Pernambuco, CFCH,
Programa de Pós-Graduação em História, 2016, p 209.
12
SALVADOR, Historia do Brazil, Op. cit., p. 144.
13
Idem, Ibidem, p. 147.
14
Idem, Ibidem, p. 146. 100
15
Idem, Ibidem, p. 147.
16
Idem, Ibidem, p. 147.
Segundo frei Salvador, era D. Duarte da Costa um homem íntegro, capaz de disciplinar
os “gentios” sem que fosse preciso matá-los ao labor da guerra. O autor almeja a colocar esses
feitos como um aspecto memorável já então associado à colonização da terra. É um personagem
que na sua contribuição moralizante acentuou o que frei Vicente tinha dito quando tratou de
mostrar que o Brasil tinha portas abertas a todos17. Era um governante benigno, afável, como
mostra ao falar, no capítulo quinto do seu III livro, de uma nau que chegou à Bahia. Nela,
desembarcaram fidalgos e o capitão-mor e, de imediato, Duarte da Costa “agasalhou,
banqueteou e deu pousadas à sua vontade, e o mesmo fez a toda a mais gente da nau, a que deu
mantimento todo o tempo que ali esteve”18.

Face às diversas contribuições de D. Duarte da Costa e Tomé de Sousa, é importante


destacar que, em algumas partes da sua obra, Vicente do Salvador faz digressões, seja para
reiterar aquilo que já vem sendo construído na obra – o desejo de ser centro e não mais periferia
– seja pela visão “mundial” que ele tinha à época. Pois, trata da morte de Carlos Quinto, da sua
renúncia e da escolha do futuro herdeiro ao trono imperial19. A construção das representações
que, aos poucos, vai sendo tecida na obra, se entrelaça a uma visão “planetária” do século XVII,
o que a Maria Lêda Oliveira traz como uma “mundivivência” 20 regrada pelo seu ordenamento
religioso.

Era capaz de elucidar, por um lado, questões dos direitos civil e canônico e de
discorrer sobre assuntos políticos e administrativos, dando mostras de seus
conhecimentos intelectuais e da percepção acurada; por outro, de contar fatos
risíveis, incluindo nisto a pitada certeira de sua perspicácia 21.

Foi D. Duarte da Costa um grande colaborador régio na Bahia. Além de todas as outras
qualidades já apontadas aqui, sob a visão de frei Vicente, tinha outra muito importante: ser
muito pacato.

E é que sofria com paciência as murmurações que de si ouvia, tratando mais


de emendar-se que de vingar-se dos murmuradores, como lhe aconteceu uma
noite que, andando rodando a cidade, ouviu que em casa de um cidadão se
estava murmurando dele altissimamente, e depois que ouviu muito lhes disse
de fora: Senhores, falem baixo, que os ouve o governador 22.

17
Idem, Ibidem, p. 76.
18
Idem, Ibidem, pp. 150-151.
19
Idem, Ibidem, pp. 148-151.
20
OLIVEIRA, Historia do Brazil de frei Vicente do Salvador: história e política no Império Português do
século XVII, Op. cit., p. 152. 101
21
Idem, Ibidem, p. 146.
22
SALVADOR, Historia do Brazil, Op. cit., p. 151.
Louvado pelos seus feitos na conversão, paciente com os demais que dele falavam mal,
grande colaborador do rei; Vicente do Salvador, em seu discurso laudatório sobre D. Duarte da
Costa, mostrou por que podemos colocá-lo nessa seara de “espelhos de governança”.

Dos governantes, Mem de Sá é aquele sobre quem Frei Vicente mais acuradamente
criou uma narrativa heroica e cheia de bravura. Era merecedor de ter uma história louvável e
que estivesse presente na memória coletiva por muito tempo. Primou frei Vicente por escrever
uma história particular a Mem de Sá; que chegou ao “Brasil” para substituir D. Duarte da Costa
em 1557. Logo no capítulo sexto do livro III, diz que “com razão pode ser espelho de
governadores do Brasil, porque concorrendo nele letras e esforço, se sinalou muito na guerra e
justiça”23. Foi muito hábil na guerra e na justiça, se fez mediador da paz entre os colonos e os
nativos. De imediato obedeceu a ordens do rei ligadas à religião cristã, e nisso foi bastante
firme. Quando não estava tratando de assuntos de guerra, assentava “o bom governador na
administração da justiça”24.

Foi Mem de Sá um governante “exemplar”, sabendo a hora certa de punir e castigar,


mas também sabendo como perdoar e educar os índios; proibiu os colonos de castigarem e
prendê-los; e ordenou a todos que libertassem aqueles indígenas que fossem tratados, perante a
lei, como escravos. Ainda segundo nosso autor, era um homem sensível e de bom coração com
os pobres: “se era o devedor pessoa pobre, pagava por ele, ou fazia que o credor lhe esperasse
pela dívida, pois fiara de quem sabia que não tinha por onde lhe pagar”25.

Como supracitado frei Vicente direciona onze capítulos a Mem de Sá, os quais, na sua
maioria, trata das lutas e bravuras que esse governante conseguiu lograr êxito. No capítulo
oitavo do livro III, ele mostra como o governador fez guerra aos franceses no Rio de Janeiro.
Devido às boas condições geográficas do Rio de Janeiro e à boa produtividade da terra, os
franceses, em 1556, se aliaram aos nativos e fortificaram uma fortaleza. Até que, em 1559, a
rainha D. Catarina enviou um oficio para Mem de Sá a fim de que ele socorresse o Rio de
Janeiro. O governador, em 1560, partiu para o território ocupado pelos franceses. Mem de Sá,
hábil na arte da guerra, logo apreendeu uma nau francesa e, junto com outros valentes soldados
portugueses, conseguiu derrotar os franceses.

23
Idem, Ibidem, p. 151. 102
24
Idem, Ibidem, p. 152.
25
Idem, Ibidem, p. 152.
Caso semelhante aconteceu com o grupo familiar que se fixou na região do
Rio de Janeiro, por via do terceiro governador-geral do Brasil, Mem de Sá. A
sua saga de bravura, honestidade, prudência e liberalidade foi bem referida
pelo historiador Vicente do Salvador, principalmente no desenvolvimento das
ações durante a expulsão dos franceses do Rio de Janeiro26.

Regressado à Bahia depois de ter fundado a cidade de São Sebastião, a quem deixou
como governante Salvador de Sá, seu sobrinho, ele escreveu à Rainha e ao Infante D. Henrique
das suas virtudes e vitórias que obteve no Rio de Janeiro. Em troca, pediu que lhes mandassem
um sucessor para voltar ao reino. Contudo, não foi atendido e permaneceu no cargo, nos conta
Salvador. A fabricação da imagem de Mem de Sá como valoroso na guerra, douto e íntegro na
justiça foi reforçado pelo caráter religioso e obediente. No plano político foi audacioso quando
da construção e fortificação da cidade de São Sebastião e do Rio de Janeiro27.

O caráter por vezes futurante já demonstrado em algumas passagens da obra


não é ucrônico. Frei Vicente pensava num projeto concreto, pautado por um
programa político bem ordenado e desenvolvido para um lugar, este
igualmente já bem concreto. O seu projeto, posto em prática, automaticamente
reverteria o presente, redimensionaria o papel político, tanto da terra como
desta chamada “nobreza da terra”. A periferia torna-se-ia centro, a “nobreza
local” junta-se-ia à “primeira nobreza”, com presença na Corte e
consequentemente no poder. Passariam pelo processo camaleônico. Uma
“nobreza” cristalizada não pela “origem”, mas pelo serviço, pela “bravura”,
pelo “valor”, pela “lealdade” e pelas pelejas enfrentadas no Novo Mundo 28.

Em 1571 Mem de Sá morreu. Até quando trata da morte dele, frei Vicente traz à luz o
fato de que foi sepultado numa capela que ele havia ajudado a erguer. Mem de Sá foi um
homem, na visão do autor, sagaz e prudente. Soube governar, durante seus quatorze anos, com
a erudição e disposição que um governante deveria ter. Foi intrépido no que foi lhe proposto.
Foi zeloso, honrou a religião cristã, era muito aclamado e devotado. Era o Doutor Mem de Sá
aquele que trouxe as mais diversas colaborações para o reino; foi quem “morreu gozoso” 29 de
suas vitórias.

26
OLIVEIRA, Historia do Brazil de frei Vicente do Salvador: história e política no Império Português do
século XVII, Op. cit., p. 150.
27
SALVADOR, Historia do Brazil, Op. cit., pp. 154-167.
28
OLIVEIRA, Historia do Brazil de frei Vicente do Salvador: história e política no Império Português do
século XVII, Op. cit. 152. 103
29
SALVADOR, Historia do Brazil, Op. cit., p. 176.
REFLEXÕES CONCLUSIVAS

Portanto, o historiador Vicente do Salvador soube dar aos três governantes uma
representação específica, que segue práxis do bom governo. Foram “heróis” simbólicos e
premiados com esse discurso laudatório de exaltação de si e dos seus feitos. Os ritmos da
narrativa vão sendo balanceados pelas suas façanhas, nas mais diferentes facetas. Seja na
guerra, na conversão, na fortificação de cidades, na cordialidade, na administração, eles foram
modelos. Mas ficam no ar inquietações e hipóteses do porquê atribuiu a Mem de Sá o palanque
mais alto dos três que tratei.

Pela forma como vai sendo construída a narrativa sobre Mem de Sá e pelos assuntos que
ele aborda, os quais, claro, permeiam o contexto de seu governo, podemos conceber que Vicente
teve acesso a fontes mais detalhadas acerca dos acontecimentos de que ele narra; diferente de
quando trata de seus antecessores. Mas, como dito acima, as ações políticas é que vão nortear
a escrita de frei Salvador e isso não podemos deixar de abordar, pois, constitui, de forma clara,
seu ideal enquanto homem de seu tempo, que luta por uma centralidade desse espaço colonial30.
É nesse sentido que a obra de frei Vicente do Salvador, torna-se uma importante fonte de análise
para o estudo da escrita e da história do Brasil. Discurso idealizado, cujo tom se manifesta no
desejo de mostrar a capacidade dessa periferia. Com efeito, o primeiro livro ambiciona registrar
sua abundante fauna e flora, com que das árvores e do solo podem sair riquezas para Portugal.
Pois, no período em que viveu, houve a junção das duas coroas Ibéricas, e, nesse contexto, havia
disputas tanto da metrópole quanto da América portuguesa em busca de se tornar a capital do
Império31. Seu texto foi mantido em manuscrito até o século XIX sem que se saiba, ao certo, o
porquê32. Todavia, se devem levar em consideração, também, as críticas que faz às formas de
colonização e de povoação do território.

30
OLIVEIRA, Historia do Brazil de frei Vicente do Salvador: história e política no Império Português do século
XVII, Op. cit., p. 120.
31
Nos conta Bouza Álvarez em Portugal no Tempo dos Filipes: Política, Cultura, Representações (1580-1668)
que o Portugal dos Filipes é uma invenção portuguesa. Em Lisboa havia fidalgos que apoiava a transferência da
capital de Madri para lá. As elites preferiram que Filipe ficasse no comando português, invés de D. Antônio,
pois, alguns portugueses defendiam que a solução para a crise portuguesa viria de fora. Já na América
Portuguesa, essa proposta fica clara na Historia do Brazil, Op. cit., p.145. 104
32
Mas, uma das hipóteses que Capistrano de Abreu nos apresenta é a que “Seu livro afinal é uma coleção de
documentos, antes reduzidos que redigidos, mais histórias do Brasil do que história do Brasil. Isto que talvez
Para Vicente do Salvador, esses governantes foram espelhos pelo conjunto das suas
facetas no projeto colonizador. Cada um tem uma característica específica: Tomé de Sousa foi
gentil; D. Duarte da Costa foi sereno, calmo; Mem de Sá foi implacável na administração e na
guerra contra os franceses. Mas, mesmo elencando fatores positivos, não deixa de lado alguns
eventos negativos do governo de Tomé de Sousa e D. Duarte da Costa. O primeiro suplicava
ao rei a fim do seu regresso33. Já no governo de Duarte da Costa, Frei Vicente relata o confronto
que aconteceu, durante sua chefia, no que tange os gentios e os jesuítas. É válido destacar que
no governo de Duarte da Costa, Salvador não evidencia o real motivo dos conflitos, mas o autor
supõe que pode ter ocorrido por causa da morte do Bispo D. Pedro Fernandes pelos “Caités”34.

Trazendo à tona questões como povoação e fortificação das cidades de Salvador e do


Rio de Janeiro, guerra contra os franceses, conversão dos índios e administração, Frei Vicente
soube dar ênfase àquilo que queria mostrar: o Brasil e suas potencialidades, colocando
“administradores exemplares” que souberam explorar a terra naquilo que ela podia dar de si
para os Portugueses. É um projeto político muito bem balanceado e centrado, cujas marcas
centrais de um texto histórico da época aparecem de forma bastante estampada. No livro A
fabricação do rei: A construção da imagem pública de Luís XIV, escrito por Peter Burke, temos
um dos porquês de se louvar algo/alguém:

As idéias do século XVII sobre a relação entre arte e poder podem ser
dispostas ao longo de um espectro. De um lado havia os escritores que
pareciam conferir à imagem real seu valor nominal, fossem eles poetas a
escrever odes ao rei, historiadores a narrar suas vitórias ou eruditos a descrever
as decorações de Versalhes. Descreviam estátuas e outros monumentos como
meios para “instruir o povo”, incentivando-o a amar seu príncipe e obedecer-
lhe35.

Então, guardadas as devidas proporções entre o poder que Vicente do Salvador atribuiu
aos três governantes e o que os “marqueteiros” de Luís XIV deram a ele, podemos,
hipoteticamente, ter uma ideia de o porquê dar ênfase aos eventos narrados na Historia do

esmoreceu o entusiasmo de Manuel Severim de Faria, acostumado a obras vazadas em outros moldes, [...]”.
SALVADOR, Historia do Brazil, Op. cit., p. 39.
33
“Movido el-rei dos rogos e importunações do governador Tomé de Sousa, acabado o triênio do seu governo,
lhe mandou por sucessor D. Duarte da Costa” SALVADOR, Historia do Brazil, Op. cit., p. 147.
34
SALVADOR, Historia do Brazil, Op. cit., p. 148.
35
SCHWARCZ, L. Peter Burke. A Fabricação do Rei: A construção da imagem pública de Luis XIV. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1994, p. 17. 105
Brazil. É ser útil para o povo, mas também fazer valer a pena para a instrução da Corte. Fazendo
um empréstimo do termo “Fabricação”, vemos que frei Salvador tentar fazer o mesmo com a
imagem e a memória de Tomé de Sousa, D. Duarte da Costa e, sobretudo, de Mem de Sá.

Assim sendo, explorar essas representações, de modo a especificar cada uma delas, nos
traz aquilo que a escrita da história da época nos apresentava: a narrativa dedicada a príncipes,
governantes, etc., se deleitando de um poder discursivo apropriado e legitimando a posteriori.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

BOUZA ÁLVAREZ, FERNANDO J. Del escribano a la biblioteca: la civilizión escrita


europea en la Alt Edad Moderna (siglos XV-XVII). Madri: Editorial Sintesis, 1997.

____________. Portugal no Tempo dos Filipes: Política, Cultura, Representações (1580-


1668). Lisboa: Editora Cosmos, 2000.

BOXER, Charles R. O império marítimo português (1415-1825). São Paulo: Companhia da


Letras, 2002.

GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo: história de uma mundialização. Belo


Horizonte: Editora UFMG, São Paulo: Edusp, 2014.

____________. Os mundos misturados da monarquia católica e outras connected histories.


Topoi, Rio de Janeiro, pp. 175-195, 2001.

MARCCOCI, Giuseppe. Primeiras imagens oficiais do Império. In: A consciência de um


Império: Portugal e o seu mundo (sécs XV-XVII). Coimbra, PT: Imprensa da Universidade de
Coimbra, 2012.

OLIVEIRA, Maria Lêda. A história do Brazil de Frei Vicente do Salvador: história e política
no Império Português do Século XVII – Rio de Janeiro: Versal; São Paulo: Odebrecht, 2008.
106
SALVADOR, Vicente do. História do Brasil (1500-1627). Rio de Janeiro: Itatiaia, 1982.
SCHWARCZ, L. Peter Burke. A Fabricação do Rei: A construção da imagem pública de Luis
XIV. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994.

SILVA, Kléber Clementino. Política e historiografia nas narrativas lusocastelhanas


seiscentistas da guerra holandesa no Atlântico Sul. 2016. Tese (Doutorado em História)
Universidade Federal de Pernambuco, CFCH, Programa de Pós-Graduação em História, 2016.

107
A IMPORTÂNCIA DAS MULHERES PARA A PERMANÊNCIA DO
CRIPTOJUDAISMO EM PERNAMBUCO NO FINAL DO SÉCULO XVI.

Priscila Gusmão Andrade

Doutoranda em História pela Universidade Federal de Pernambuco.

E-mail: priscilaandrade28@gmail.com

Este artigo que ora apresentamos é fruto de uma pesquisa de mestrado, que foi
desenvolvida e apresentada no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Campina Grande ao longo dos anos entre 2014 e 2016. A mesma teve, enquanto
objetivo, a análise do papel que a mulher criptojudia exercia para a transmissão de um judaísmo
possível em Pernambuco e suas capitanias adjacentes em fins do século XVI, a partir dos
documentos que foram fruto da Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil.

O texto que aqui trazemos, faz parte de uma das considerações que chegamos no
caminhar dessa pesquisa, ao percebermos o importante papel que as mulheres marranas
exerceram para a transmissão e perpetração do criptojudaísmo no interior de seus lares, dentro
da região e período trabalhados.

O Santo Ofício vai passar a funcionar em Portugal no ano de 1536, sua atuação só se
inicia quando, há tempos, já não haviam mais judeus vivendo oficialmente em Portugal.
Contudo, sendo em grande medida, mas certamente que não exclusiva, por conta da figura do
cristão-novo e das denúncias e querelas no que diz respeito a suas atividades de seguidores do
judaísmo de forma secreta, que a Santa Inquisição é efetivada no país tendo em vista que nesse
período essa religião já se encontrava proibida de ser reproduzida nessa região

O tribunal Inquisitorial português não vai ter como função regular apenas as
transgressões dos cristãos-novos, mas também as faltas dos cristãos-velhos, agindo assim sobre
o “mundo cristão” que era administrado por Portugal. Era um tribunal de Fé, que agia sobre
crimes como bigamia, apostasia, judaísmo, sodomia, bruxaria, entre outros que se
relacionassem com os preceitos da fé católica. Após sua consolidação se encontra
regulamentado com os seguintes ministros e oficiais:
108
Em todas as Cidades deste Reino, onde residir o S. Officio, haverá três
inquisidores, quatro deputados com ordenado e sem ele, os mais que nos
parecer, um Promotor, quatro Notários, dois Procuradores de presos, e os
Revedores que forem necessários, um Meirinho, um Alcaide e quatro Guardas
no cárcere secreto, um Porteiro, três Solicitadores, três Despenseiros, três
Homens do Meirinho, dois Médicos, um Cirurgião, um Barbeiro, um Capelão,
um Alcaide, e um Guarda no cárcere da penitenciária. Haverá mais em cada
um dos lugares marítimos um Visitador das navios de estrangeiros, com
escrivão de seu cargo, um Guarda e um Interprete; e em cada uma das cidades,
vilas e lugares mais notáveis, um comissário com seu Escrivão, e os Familiares
que forem necessários. 1
Podemos claramente perceber o alto número de funcionários necessário para o
funcionamento do Santo Oficio. Certamente que a medida que o mesmo se consolidou e se
difundiu pelos espaços portugueses, os cidadãos passaram a ficar sob os olhares vigilantes do
Tribunal. Em teoria, todos estavam sujeitos aos seus processos de punição, fruto da sua ampla
liberdade de ação. Desde o camponês mais afastado, do colono no Brasil ao nobre cortesão,
mostrando a constante pressão a qual vivia esta população.2

Os inquisidores consideravam que era preciso levar sua presença para todos os distritos
do reino, fazendo-se conhecidos e assim temidos por toda a população, e assim, após a
implantação do Santo Ofício, os tribunais distritais eram os de Évora, Coimbra, Lamengo,
Tomar, Porto e Lisboa. Entretanto esse número vai sofrer alterações, e no ano de 1547 deixam
de funcionar os de Lamengo, Tomar e Porto; sendo criado em 1560 o tribunal de Goa, que era
o único que se encontrava no mundo colonial, e agia sobre as possessões asiáticas, enviando
visitadores a locais como África Indica, China, Japão e Ormuz. A América portuguesa e demais
terras portuguesas no Atlântico ficavam sob alçada de Lisboa.3
Os visitadores inspecionavam a obediência à ortodoxia, coletando denúncias e
confissões a respeito de desvios da conduta estabelecida. Mas, é certo que não havia
possibilidade de visitarem e principalmente com frequência todas as possessões que se
designavam para cada tribunal, além das Visitações exigirem um custo muito dispendioso para
o Santo Ofício, observemos a dificuldade de locomoção na época abordada e a abrangência
designada a esses tribunais; o de Goa, por exemplo, deveria agir sobre “todas as possessões
asiáticas do reino”, o que não era como se deslocar da cidade do Porto para Coimbra, eram
grandes distâncias para se percorrer. Esses espaços separados e a dificuldade de locomoção,

1
Regimento do Santo Ofício da Inquisição, dos reinos de Portugal. In. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico brasileiro. Rio de Janeiro, ª 157, Nº 392, jul/set 1996, Livro I, Titulo I. P. 694. Regimento de 1640. 109
2
CAMPOS, 2002, p. 64.
3
Idem, p. 68.
tornava necessário a disseminação de agentes inquisitoriais, tais como os familiares locais e os
comissários.
Na América portuguesa ocorreram três visitações do tribunal, a primeira é a que faz
parte do universo de análise desse artigo, sendo no dia 9 de junho de 1591, que chega por essas
terras o Deputado do Santo Ofício Heitor Furtado de Mendonça, aportando na Bahia, onde ficou
até 2 de setembro de 1593 e depois partindo para Pernambuco, Itamaracá e Paraíba,
sucessivamente. Para voltar a Portugal no ano de 1595. O visitador veio ao Brasil como
representante oficial da inquisição, para escutar os crimes que se enquadravam na alçada do
Santo Ofício, e mandar para o reino as transgressões maiores, principalmente as que se
enquadrassem no crime de judaísmo.

A presença de Heitor Furtado nas capitanias do Norte açucareiro é inaugural enquanto


visitação do Tribunal as terras brasileiras, marcando um momento de diversas denúncias e
confissões de crimes atinentes ao Santo Ofício. Pensar a chegada do visitador a essas partes é
levar em consideração o sentimento que se apossou dos cristãos-novos, que aqui estavam “mais
preocupados com o resguardo que a distância de Portugal poderia lhes proporcionar” 4, e assim
podiam produzir relações e vivências que não eram possíveis em meio às pressões que se
marcavam no reino.

Em livro sobre os “judaizantes” no Nordeste açucareiro Elias Lipiner vai defender o


argumento de que a política da metrópole de atração de colonos para as terras brasileiras
impediu a princípio, a instalação de um Tribunal no Brasil, e que essa política havia criado
condição para a vinda de levas de cristãos-novos, fossem como degredados ou fugidos, para a
região5. Também a esse respeito Geraldo Pieroni fala:

Mas será que o confisco dos bens dos cristãos-novos não seria suficiente para
cobrir as “ditas despesas”? Os motivos “políticos” eram claros: vários setores
da economia brasileira dependiam dos “judeus” (alguns engenhos de açúcar e
sobretudo o comércio), e um tribunal poderia provocar a fuga de muitos
cristãos-novos que levariam consigo seu capital – tal como aconteceu em
Portugal em 1496 com o batismo forçado – e, portanto, haveria uma
desestabilização da economia.6
É válido que o argumento, tanto de Lipiner como de Pieroni, tenham sua razão para ser
defendido, em meio às dificuldades de povoamento da região não havia interesse por parte da
Coroa portuguesa de que os cristãos-novos que vinham para o Brasil se sentissem amedrontados

4
SILVA, 2007, p.14. 110
5
LIPINER, 1969, p. 16-17.
6
PIERONI, 2000, p. 68
com a presença do Santo Oficio, a ponto de fugirem da região. Mas também os altos custos para
a permanência de um tribunal em terras brasileiras não nos parece um ponto que possa ser
desprezado ao pensar nessa temática, tendo em vista os elevados gastos que eram necessários
para a manutenção do mesmo. Era vantajoso para a Coroa a instalação de um tribunal distrital
na América portuguesa? Parece-nos que a falta de um, ao longo do período que o Santo Ofício
esteve em funcionamento, nos diz que não.

Mas também, quando se trata dos cristãos-novos, nos parece que nem sempre a política
de atração de moradores para a colônia era continuamente tão inclusiva dos mesmos. Basta
lembrarmos que as querelas que envolviam a situação do grupo no reino eram sempre recheadas
de “altos e baixos” com a coroa, e que o jogo de permissão e proibição para que se retirassem
de Portugal, era deveras conturbado. Na verdade a própria ordem de expulsão dos judeus
assinada por D. Manuel, esteve recheada de manipulações, que findaram na conversão forçada.

Após a conversão e as saídas constantes do grupo para outras regiões, a coroa proibiu
que se retirassem de Portugal, a partir de duas ordenações de 20 e 24 de abril de 1499. Logo
depois da revolta popular de 15067, que resultou na morte de um expressivo número de cristãos-
novos a coroa lhes permitiu o “privilégio” de se retirarem do país em um decreto datado em 1º
de março de 15078. Já no ano de 1532 foram novamente proibidos de se retirar do reino, a não
ser que conseguissem uma licença régia. Em lei de 15 de julho de 15479 a ordem permanece a
mesma, só podendo se retirar algum neoconverso de Portugal se fosse por meio de licença.
Pouco mais de 32 anos depois no dia 2 de janeiro do ano de 158010nova lei é implantada e os
cristãos-novos são totalmente proibidos de saírem do país, mas sete anos depois, em 1587, é
revogada a lei de 1547 e podem ir embora, desde que seja a partir de fiança ou de licença real.

Lei de 26 de janeiro de 1587, publicada na Chancellaria mór a 2 de Março do


mesmo ano, em que se renovam, e revalidam as determinações, e Leis
anteriores do Senhor Rei D. Sebastião de 30 de Junho de 1567, e de 2 de Junho
de 1573, nela insertas confirmatórias e ampliatorias das do Senhor Rei D. Joao
III de 14 de Junho de 1535, e de 15 de julho de 1517; a respeito de não
poderem sair os Cristãos novos destes Reinos por mar nem por terra, (com
casa movida, ou sem ela), sem licença Regia, ou sem darem racionável fiança
de voltarem.11

7
Citada no tópico anterior deste trabalho.
8
KAYSERLING, 1971, p. 22-34.
9
Grafia Atualizada; Lei de 1547 sobre cristãos-novos. In. INSTITUTO DO AÇUCAR E DO ÁLCOOL.
Documentos para História do açúcar. Vol. I. Legislação (1534-1596). Rio de Janeiro: Instituto do Açúcar e
Álcool, 1954. p.41. 111
10
Lei de 18 de Janeiro de 1580 sobre cristãos-novos. Op. Cit. p. 311
11
Lei de 26 de Janeiro de 1587 sobre cristãos-novos. Op. Cit. p. 319
Verifica-se várias leis, alvarás e provisões que permitia e proibia que os cristãos-novos
saíssem de Portugal, e com autorização que ocorria normalmente a partir de determinadas
condições, que certamente envolvia o jogo de interesses da Coroa portuguesa. Criando assim,
uma notável indefinição de posicionamento sobre o tema, por parte do governo lusitano.

Possivelmente a explicação de não instalação de um Tribunal Inquisitorial por essas


terras, se encaminhe mais para o que nos coloca Anita Novinsky em seu livro “Cristãos-novos
na Bahia”, a de que o problema liga-se menos a vontade régia ou dos Inquisidores do que a
pouca compensação de se introduzir e sustentar tão dispendiosa instituição por essas terras, nos
primórdios de sua formação12. Sendo mais vantajoso deixar os pecadores sobre a
responsabilidade dos bispos locais.

Entretanto, é incontestável a presença marcante de cristãos-novos nas capitanias do


Norte da América Portuguesa. Não é em vão que uma diversidade de historiadores, clássicos e
mais recentes, se interessaram pela temática. Janaina Guimarães em sua dissertação de mestrado
sobre os cristãos-novos em Pernambuco no século XVI, destaca o alto número entre eles, que
embarcou clandestinamente quando eram proibidos de sair de Portugal; “As fugas eram
facilitadas também por uma parcela de funcionários corrompidos, envolvidos no lucrativo
negócio movimentado pelas saídas”13.

Também os degredos “carregavam” esses indivíduos e outros acusados de diferentes


crimes, não apenas para a América portuguesa, mas também para as outras possessões lusitanas.
Geraldo Pieroni em seu livro “Os excluídos do Reino” faz uma análise sobre essa “pena”,
principalmente em Portugal, e escreve:

Nos últimos anos do Antigo Regime, várias legislações da Europa adotaram,


com regularidade, a condenação às galés, a degredo perpétuo ou temporário,
[...] A história do degredo em Portugal adquiriu novos rumos com a expansão
marítima dos séculos XV e XVI. Os indesejáveis do Reino podiam doravante
ser banidos para as novas terras do além-mar. (PIERONI, 2000, p. 30).
É esperado que após a conversão forçada e o clima de descontentamento que havia com
o grupo de cristãos-novos, era desejável sair do país e buscar morada aonde pudessem encontrar
ânimos mais favoráveis para a reconstrução de suas vidas. Ir em busca de outros espaços era
preferível para alguns cristãos-novos, em detrimento das pressões e preconceitos que sofriam
no reino. Novinsky coloca o preconceito que havia com esse grupo em Portugal, e destaca os

112
12
NOVINSKY, 1972, p. 108-109.
13
SILVA, 2007, p. 42.
traumas produzidos por essas relações estigmatizadas, transcreve um parágrafo do livro de
Antônio Nunes Ribeiro para exemplificar essa desigualdade, o trecho diz:

Tanto que um menino Cristão novo é capaz de brincar com os seus iguais,
logo começa a sentir a desgraça de seu nascimento, porque nas disputas que
nascem o dos brincos daquela idade, já começa a ser insultado com o nome de
Judeu e de Cristão novo. [...] todas essas ações fazem tão grande impressão no
ânimo, quer por toda a vida é força que fique mal disposto para quem foi a
causa; acresce a este mal que a distinção de Cristão novo, com suma desonra,
é publicamente notória, a todos aqueles que vivem naquela Comarca, e que
ficará para sempre na sua memória14.
Fosse por conta das pressões que sofriam, de razões religiosas ou econômicas, um
notável número de cristãos-novos preferiu se retirar de Portugal, e inclusive de forma
clandestina, tendo em vista as leis e alvarás de proibições para a saída dos mesmos do reino,
gerando um mercado de fugas ilícitas nos portos portugueses, com facilitadores que ficaram
conhecidos como passadores15. Janaina Guimarães defende que as possibilidades de lucro,
fosse com o açúcar ou com o pau-brasil, e a presença de uma estrutura mais aberta para uma
ascensão social, tornava o Brasil um país de destino atrativo para o grupo. Sendo Inclusive, de
propriedade do cristão-novo Diogo Fernandes, um dos cinco primeiros engenhos de
Pernambuco16. Discorrendo sobre os criptojudeus na colônia, Angelo Assis nos fala:

Assim, não é errado afirmar que, até a última década do séc. XVI, com a
chegada do primeiro visitador do Santo Ofício, o licenciado Heitor Furtado de
Mendonça, os criptojudeus da colônia, embora procurassem constantemente
dar provas públicas de sua real aceitação católica, mantivessem (nem sempre)
em segredo, sem maiores ameaças ou perseguições, as práticas e ritos
referentes à fé dos antigos parentes judeus. Situação esta que, malgrado os
anos de convivência relativamente harmônica ao longo de todo o período do
Quinhentos, seria abruptamente interrompida, como vimos, com o
desembarque dos representantes da Inquisição na colônia.17

Podemos então considerar que havia em terras brasileiras uma estrutura que permitia
aos cristãos-novos uma maior liberdade em termos de vivência e integração na sociedade de
cristãos-velhos, com um grau menor de preconceito. Situação tal que vai sofrer abalos com a
chegada de Heitor Furtado por essas terras, tendo em vista o alto número de denúncias que vão
se apresentar para o visitador, contra os neoconversos da região.

14
NOVINSKY, 1972, pp. 61-62. Gráfia atualizada; Antônio Nunes Ribeiro Sanches, Christãos Novos e Christãos
Velhos em Portugal, Lisboa, 1956, p. 6. Apud Novinsky, Anita. Cristãos-novos na Bahia: 1624-1654. São Paulo:
Perspectiva/Edusp, 1972.
14
SILVA, 2007, p. 42
15
Idem, p. 42. 113
16
Idem, p. 41.
17
ASSIS, 2012, p.309. Grifos Nossos.
Das 279 denúncias que se apresentaram ao visitador durante o tempo que ele esteve
nessas regiões, 118 se deram contra pessoas que diziam ser de “raça cristã-nova”, o que
certamente não é um número inexpressível. Se nos ativermos a análise de Tarcizio Quirino, que
conclui que nesse período haviam em Pernambuco um total de 3.200 portugueses, e que entre
esses é estimado que haviam 400 pessoas que descendiam dos judeus18, essa quantidade de
denúncias nos parece ainda mais expressivo.
Certo que a análise da quantidade de cristãos-novos por parte de Quirino, é baseada nas
fontes de origem inquisitorial, o que não nos permite ter um número mais exato da quantidade
de pessoas, pois não temos como saber se todas ou quantos indivíduos que eram de origem
neoconversa e se encontravam nessas capitanias, haviam sofrido denúncias ou se encaminhado
para confessar-se com o visitador. Situação essa, que também não nos impede de perceber o
alto número de denúncias contra essa gente.
E entre essas denúncias, as acusações contra as cristãs-novas também não se mostraram
inexpressivas, foram mulheres que souberam alargar as brechas das vivências cotidianas em
uma sociedade vigilante e punitiva. Ao falar sobre a temática Assis destaca o alto número de
acusações contra os cristãos-novos nos dizendo o seguinte sobre as mulheres: “o número, dentre
eles, de mulheres delatadas não seria desprezível – fato que comprova o papel de destaque
reservado à mulher para a divulgação criptojudaíca”19.
No Livro da Primeira Visitação do Santo Oficio as partes do Brasil, que se refere a
Pernambuco, encontramos um total de 38 denúncias contra mulheres cristãs-novas, desse
número, 36 pessoas se encaminharam à mesa do Visitador para denunciar alguma cristã-nova
que tivesse cometido alguma prática judaizante. E entre as repetições, pois algumas mulheres
foram denunciadas mais de uma vez, ficamos com um total de 34 mulheres de descendência
judaica, que foram denunciadas por cometer algum ato judaico. E 5 pessoas do sexo feminino,
confessas pelo mesmo crime. Ou seja, entre 118 denúncias contra os cristãos novo, 32,2% foram
contra mulheres cristãs-novas, e entre essas 28,8% por judaísmo.

Entendemos então que se essas mulheres foram tão notavelmente denunciadas, é porque
se mostraram enquanto figuras notáveis para a transmissão e manutenção desse judaísmo
oculto, como nos falou Angelo Assis. Em meio ao monopólio católico, sua atuação no interior
do lar, na privacidade da casa, foi de fundamental importância para a perpetração de práticas

114
18
QUIRINO, 1966, p. 38.
19
ASSIS, 2012, p. 280.
judaicas. Em artigo sobre a atuação feminina para a transmissão e permanência do
criptojudaísmo, Anita Novinsky coloca:

Mulheres cristãs-novas apresentaram no Brasil uma resistência passiva e


deliberada ao Catolicismo. Foram prosélitas, recebiam e transmitiam as
mensagens orais e influenciavam as gerações mais novas. O Judaísmo
persistiu no Brasil durante 285 anos como expressão religiosa e como
mentalidade, [...] Dois fatores foram fundamentais: a mulher e a Memória. Os
Inquisidores sabiam que as mulheres eram as principais transmissoras da
heresia judaica e logo nos primeiros interrogatórios lhes propunham a questão:
quem foi que lhes ensinou?20 (NOVINSKY, 1995, p. 554- 555).

Os inquisidores questionavam nos interrogatórios e nos interroga Novinsky em seu


texto: “quem foi que lhes ensinou?”, trazendo-nos uma problemática essencial para entender
essas mulheres, pois compreendemos que as tradições culturais de origem judaica, não eram
aprendidas sozinhas ou nos espaços públicos da região. Afinal, em fins do século XVI, o Brasil
era um ambiente de proibições e monopólio católico, aonde as vigilâncias se viam presentes no
dia a dia da população.

Em meio à sociedade de microvigilâncias cotidianas em que viviam as mulheres cristãs-


novas, elas souberam encontrar brechas para subverter o que lhes era imposto. As denúncias e
confissões se entrelaçam muito em relações familiares, em situações que são vivenciadas no
interior dos lares, na “segurança” das casas, são relações que se produzem com a construção de
burlas, de táticas, frente aos olhares vigilantes que cercam os indivíduos, vindos de diferentes
lados. Não era fácil ser mulher em uma sociedade em que as amarras vinham de diferentes
espaços.

Eram cristãs-novas e assim sofriam dos estigmas dedicados ao grupo, que se


consolidavam desde o tempo que eram livres praticantes da religião judaica, o “batismo de pé”
concretizado por D. Manuel não retirou o descontentamento que a população tinha sobre os
mesmos, as desconfianças continuaram e em algumas vezes até se agravaram, pois deveriam
ser católicos, mas nem sempre assim se faziam, e a população de cristãos velhos muito menos
acreditava na sinceridade dos cristãos-novos nos preceitos da nova fé, situação que em muito
contribuiu para a implantação do tribunal Inquisitorial em Portugal.

Aos cristãos-novos que mantiveram a fé na lei judaica, a proibição para que houvesse
judeus no país e a inabalável desconfiança da população de cristãos velhos em cima desse

115
20
NOVINSKY, 1995, pp. 554- 555
grupo, forçou que a passagem da religião de seus antepassados existisse da forma mais discreta
que era possível se ter, na proteção das casas, e na esperança que os olhares vigilantes não
alcançassem esses espaços, “a transmissão do saber e do fazer mosaicos efetuou-se, depois de
1497, em Portugal, através da linguagem materna, da afetividade. Dificilmente era desprezada
esta aprendizagem”21.

A vinda para a América, uma possessão que se encontrava tão distante do Reino, e era
tão difícil de chegar, tendo em vista a dificuldade de atravessar grandes espaços nesse período,
lhes proporcionou uma maior distância das pressões sofridas em Portugal pelo status de cristãs-
novas. Mas também lhes colocou novas pressões, pois se encaixavam no papel dedicado a
mulher portuguesa no projeto de colonização. E assim tinham um papel que deveriam seguir, o
que ao mesmo momento que as colocava sob a pressão de casar, ser mãe, organizar a casa para
que o marido tivesse o máximo de conforto possível quando estivesse dentro do lar, ter filhos
para povoar e consolidar a presença portuguesa na região. Também facilitava a vida das cristãs-
novas portuguesas que passaram a ter maior perspectiva de interação na sociedade de cristãos
velhos, com a consolidação de casamentos entre os dois grupos, e outras vivências que se viam
necessárias em meio as dificuldade da região, o que diminuía o estigma sobre a “raça” cristã
nova.

Diminuía mas não excluía, pois os olhares de vigilância estavam presentes nos mais
singelos momentos do cotidiano e muito antes da chegada do visitador a essas terras, como
pudemos encontrar na documentação com as mais diversas denúncias que se deram a partir da
observação de situações que haviam acontecido há dez, cinco anos atrás e por vezes até há trinta
ou quarenta anos passados, e que em muitos momentos vinham acompanhadas de declarações
que afirmavam que o indivíduo acusado só foi observado por ser cristão novo. Afinal a distância
entre o Reino e o Brasil e as particularidades que envolviam a vida na região diminuíam, mas
não faziam esquecer as diferenças que existiam entre os grupos de cristãos-novos e cristãos
velhos.

Mas as cristãs-novas se renderam frente aos estigmas e vigilâncias? Nos parece que não,
pois aonde há proibições também podemos encontrar as burlas que se apresentam, falam,
tentam gritar em silêncio, pois precisam ser as escondidas a realização de determinadas práticas,
mas ai o silêncio se esvai e muitas vezes sem que percebessem estavam fazendo barulho e
chamando a atenção do olhar do outro, pois acabaram surgindo na documentação. Tanto nas
116
21
GARCIA, 2006, p. 40.
denúncias como nas confissões, seus costumes foram relatados, suas ações foram em diferentes
momentos destrinchados para o representante do Santo Ofício, e essa é uma característica
traiçoeira da vigilância, pois nem sempre percebemos que estamos sendo vigiados.

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118
AS PROBLEMÁTICAS DA ALMOTAÇARIA NA CÂMARA MUNICIPAL DO
RECIFE NAS DÉCADAS DE 1710-1740.
João Vitor Caldas de Souza
Graduando de Licenciatura em História – Universidade Federal de Pernambuco)
joaovitorcaldasouza@gmail.com

Introdução e Referencial Teórico

Como o tema do artigo já aponta, serão trabalhadas as problemáticas que circundam a


almotaçaria em Pernambuco. Além do debate referencial que será estimulado entre os autores
que discutem a administração e organização social da colônia, observaremos e analisaremos o
Livro número I - 1714 a 1738 (Livro segundo de Vereações – Livro de Acórdãos do Senado
da Câmara do Recife – 1738). O documento em questão, está no arquivo da câmara municipal
do Recife – PE, foi transcrito pela professora Virgínia Amoêdo e Vera Acioly e continua
inédito.
Contudo, nesse primeiro momento, precisamos esclarecer as funções que ocupam o
cargo de almotacés e todo o contexto, no qual, será tratado ao longo da narrativa, sendo assim,
precisamos de uma definição sobre o próprio cargo. Dessa forma, o almotacés:
Desempenha uma das funções mais importantes e cruciais para o concelho:
aprovisionamento dos bens necessários para o abastecimento da população
urbana. Além disso, cuidavam da fiscalização dos preços determinados pelo
concelho, assim como controlavam as medidas de tamanho e peso utilizados
pelos comerciantes locais. (...) observar o cumprimento das leis municipais
(posturas) referentes à disposição dos edifícios e ao ordenamento das ruas. A
manutenção da higiene, também, estava dentro de suas prerrogativas.
(SOUZA, 2015, p. 72).
Além das atribuições presentes no trecho anterior, observamos outras funções cotidianas, como
a fiscalização de uma série de leis municipais que pretendiam regulamentar as posturas já
mencionadas e o cuidado na escolha do gado que serviria para o abate e abastecimento dos
centros urbanos.
Dessa forma, precisamos nos apropriar dessas definições e debater sobre a importância
não só do cargo em si, mas como essa função acaba por desempenhar um papel de liderança,
influência e poder daqueles que o ocupam. Pois, os próprios almotacés vão ganhar um
determinado prestígio social a partir da sua inserção na câmara municipal. Prestígio esse,
concebido em sua própria influência correlacionada com suas atribuições, havia todo um

119
contexto do Brasil colonial que imbicava na sede pelo poder e ascensão política. 1 Observemos
que, o “(…) poder de administrar a localidade materializava-se no também secular direito da
almotaçaria, exercidos pelos juízes almotacés”.2
Diante disso, com o conhecimento das problemáticas que envolvem as demandas
atendidas pelos almotacés e as consequências causadas pela ocupação dos cargos e a própria
disputa que o circunda, podemos compreender de forma mais minuciosa a administração
colonial e suas questões.
Pois, como já foi demonstrada, a almotaçaria intercala seu trabalho administrativo em
diversos setores da sociedade, como por exemplo, quando observamos suas atribuições ligadas
ao comércio, tratando dos pesos e medidas. Também podemos presenciar a almotaçaria na
agropecuária, ao fiscalizar o corte do gado e o abastecimento urbano, além disso, o almotacés
regulamentava as posturas3 e a higiene no município4. Função essencial em uma sociedade
católica que buscava os costumes de sua metrópole europeia como uma maneira de reafirmar
seu status social diante da elite colonial.
Sem mencionar que dentre as suas atribuições cabia a posição de juiz mediador que
arbitrava certas sentenças 5, envolvendo-se na resolução desses diversos conflitos cotidianos.6
Estabelecendo um poder interessante aos almotacés, sendo eles responsáveis por resolverem
pequenas querelas, conferindo-lhes um status de um personagem importante naquele seu raio
de influência.
Ainda diante da perspectiva do estudo da almotaçaria em Pernambuco, é bastante
importante a questão da análise dos documentos. Não só pela própria apropriação das fontes
documentais disponíveis nas diversas plataformas e institutos presentes no Estado e nas

1 Vale salientar que uma das formas, nas quais, os habitantes do Brasil colônia conseguiam se estabelecer com
algum prestígio social eram os cargos camarários, pois desempenhavam funções de fiscalizações e administração.
2 SCHMACHTENBERG, 2014, p. 232.
3 Faz-se necessário esclarecer que as posturas recorrentes na escrita se tratam de leis morais e cívicas que tentam
regulamentar o comportamento dos habitantes que fazem parte das problemáticas municipais. Pois, como é de
conhecimento comum, o Brasil colonial estava inserido em um contexto de colonização católica, com uma série
de recomendações e leis clericais que pretendiam manter a população colonial dentro de um comportamento cristão
e considerado civilizado para a época. Imbicando em formas de vestimenta, de fala, de dança e de costumes que
foram impostos pela aculturação ibérica católica. Posturas essas que podem ser observadas pelas normas centrais
das ordenações Filipinas.
4 Essa questão da higiene também é bastante interessante, já que, a sociedade da época ainda discutia a ideia dos
miasmas, odores que eram considerados determinantes nos aparecimentos de doenças que circundavam as
sociedades coloniais. Sendo assim, seria de grande importância o cuidado para a eliminação desses odores, por
isso, a relevância da higiene nas cidades e a atribuição do almotacés em fiscalizar o “mau” cheiro.
5 SCHMACHTENBERG, 2014, p. 232. 120
6 Vale salientar que segundo o SCHMACHTENBERG (2014), os próprios juízes de vintena apoiavam a atuação
dos almotacés nesses pequenos casos de conflito.
universidades. Mas, observar também o diálogo, no qual, essas fontes primárias podem ser
trabalhadas.
Pois, essas fontes podem vir a demonstrar uma série de elementos que compõe toda a
problemática da organização administrativa colonial. Já que, “Entre os documentos escritos, os
produzidos pelo poder institucional são bastante usuais na pesquisa historiográfica” 7,
documentos esses que por meio da pesquisa, obtêm uma grande riqueza de informações que
constroem o imaginário da administração colonial brasileira.
Vale salientar que dentre o período destacado no presente artigo, há uma enorme
dificuldade no ato da coleta de dados acerca da sociedade colonial. Sendo assim, é relevante
enfatizar a importância do Livro de Acórdãos nesse presente artigo e na pesquisa acerca da
almotaçaria recifense no período colonial. Pois, dentre os estudos do séc. XVIII, nos resta se
concentrar em fontes de arquivos legislativos, possibilitando o aprofundamento na própria
sociedade colonial brasileira e em sua administração. Pois, ao acompanhar as atas de sessões,
os pesquisadores:
(…) podem acompanhar as discussões dos mais variados projetos legislativos,
com os vereadores, deputados e senadores defendendo seus pontos de vista.
(…) Além disso, São fontes importantes, também, as séries de Registros de
Câmaras municipais, onde todo o tipo de documentação relativa à atuação das
câmaras é copiado: correspondência recebida e enviada, ordens régias e
legislação, entre muitas outras. (BACELLAR, 2005, p. 34-35).
Pensando nisso, podemos exemplificar tal questão, quando trabalhado a figura dos
almotacés como arrecadador de valores para as câmaras municipais. SCHMACHTENBERG
(2014) nos mostra que em livros de correções de almotacés “encontra-se a menção de que os
valores das multas aplicadas por eles seriam destinados às obras públicas do município” 8.
Nos fazendo perceber, uma nova atribuição da almotaçaria, intrinsecamente ligada a
situações que perpassam as particularidades da fiscalização, mas também para obtenção de
valores a partir das próprias multas aplicadas. Utilizando esse dinheiro para obras que teriam
interesse público e, principalmente, dos homens bons que compõem a câmara e a sociedade
colonial.
Dentre a nossa historiografia colonial, temos vários autores que marcaram época e até
hoje servem de exemplos para os trabalhos e as pesquisas produzidos por novos autores que
estudam o tema. Contudo, dentro do âmbito da administração colonial, nós temos alguns
impasses.

121
7 BITTENCOURT, 2004, p. 342.
8 SCHMACHTENBERG, 2014, p. 230.
Há um grande debate historiográfico sobre a presença e a relevância da participação das
ordenanças reais da coroa portuguesa em relação à organização do espaço administrativo nas
colônias. Contudo, para a produção do artigo e para a própria crítica historiográfica, nos
limitemos ao debate sobre o funcionamento das câmaras, pois é nas câmaras municipais que o
principal objeto do texto em questão está inserido e atua: o almotacé.
Sendo assim, necessitamos construir um diálogo que explane e trabalhe a representação
de poder real e camarário nas decisões coloniais em meio às leis e regras que eram vigentes no
Brasil colonial da primeira metade do séc. XVIII. Além de perceber ao longo das referências,
as funções, atribuições, prestígios concedidos e conquistados pelos personagens históricos que
ocuparam cargos dentro da própria almotaçaria.
Importante relatar que “Os estudos sobre as câmaras municipais no Brasil Colonial não
tiveram grande sobressaltos na segunda metade do século XX” 9, o que dificultou a edificação
dos espaços camarários como locais de autonomia administrativa, mesmo que, obviamente, a
presença das ordenanças reais regimentassem a câmara e a sociedade colonial.
Contudo, a partir dos “estudos monográficos alentados no século XXI, quando Avanete
Pereira Sousa (2003) e George Félix Cabral de Souza (2007) defenderam teses de doutorado
sobre as câmaras” 10, foi possível obter uma interpretação diferente das composições de relações
de poder entre as decisões camarárias que antes não eram pensadas ou construídas.
Podemos assim, representar os espaços, nos quais, os almotacés estavam inseridos como
um campo de poder que demonstram a própria administração colonial realizada nos trópicos,
mas não somente como uma realidade de fiel obediência ao poder real e as ordenações
ultramarinas. Contrapondo assim, narrativas que serviram por muito tempo como estruturas
basilares em nossa historiografia colonial do Brasil, como podemos perceber em NOVAIS
(1979):
Podemos, pois, particularizando esta primeira descrição do sistema colonial
dizer que ele se apresenta como um tipo particular de relações políticas, com
dois elementos: um centro de decisão (metrópole) e outra (colônia)
subordinada, relações através das quais se estabelece o quadro institucional
para que a vida econômica da metrópole seja dinamizada pelas atividades
coloniais. (NOVAIS, 1979, p. 62).
Ao nos depararmos com tais afirmações, descortinamos uma série de obras que se
constituíram ao longo do tempo, criando uma imagem de universalização do jogo de poderes

9 RAMINELLI, 2015, p. 69. 122


10 RAMINELLI, 2015, p. 70.
entre as instituições coloniais e os regimentos da coroa.11 Imagem essa que perdurou na
historiografia brasileira durante algumas décadas.
Dessa forma, podemos pensar que os debates historiográficos entre a relação de poder
e decisão das normas e leis que regiam o município estão sendo gradualmente aquecidos com
as novas produções, reconstruindo o imaginário administrativo das instituições coloniais, em
especial, as câmaras.
Outro ponto que se faz necessário perceber como uma importante discussão
historiográfica circundante acerca dos almotacés é sua própria origem, função e modificação
ao longo do tempo histórico na colônia. Sendo que, “As atribuições básicas dos almotacés foram
mantidas em todas as colônias portuguesas, bem como o termo pelo qual eram designados” 12,
mas, a almotaçaria surgiu em meio à idade média e se apresentou como uma instituição
altamente adaptável ao longo da fundação das estruturas coloniais e em suas atribuições como
membro das câmaras municipais.
Ao longo das sociedades muçulmanas13, portuguesas e espanholas encontramos amplos
significados e determinações do cargo de almotacés, percebendo-o como uma estrutura da
administração colonial ibérica que foi se construindo e reconstruindo ao longo do tempo, mas,
sempre a partir das necessidades e características das instituições que se formavam nos séculos
passados. Pois,
Apesar de ter variado quanto à forma de indicação, duração de mandato ou
mesmo sua importância na estrutura de cargos administrativos das cidades,
não podemos deixar de nos surpreender com essa espantosa continuidade de
nome e função. (PEREIRA, 2001, p. 79-80).
Ainda assim, ao longo das leituras e pesquisas foram observadas diversas funções e
atividades dos almotacés na estrutura colonial brasileira. E, é a partir de leituras críticas como
essa, que nós podemos discutir, debater e enxergar quem eram os sujeitos que participavam
dessa dança de cadeiras dos cargos camarários (falando-se principalmente dos almotacés),
destacando os cargos que esses personagens ocupavam anteriormente a sua posse propriamente
dita e, a recorrência da ocupação dessas funções na câmara pelos próprios ocupantes.

Desenvolvimento

11 Vale salientar que dependendo da proximidade das câmaras municipais, as influências nas decisões que
circundam o meio camarário eram modificadas, pois de acordo com o prestígio que o personagem político detinha
dentro do seu contexto, conseguia mercês e decisões favoráveis das cortes reais; vale salientar que as câmaras
ibéricas tinham mais pedidos atendidos nos clamores se comparada às câmaras ultramarinas, clamores esses que
são encontrados nas pesquisas sobre os documentos de tais instituições. 123
12 PEREIRA, 2001, p. 81.
13 Nas cidades invadidas pela ofensiva dos mouros em meio a Península Ibérica.
A pesquisa tem como objetivo a observação das diversas funcionalidades dos almotacés
dentro do meio camarário. Além disso, pretende-se interpretar as relações de poder que os
próprios almotacés tinham nas decisões e fiscalizações dentro dos limites dos municípios,
percebendo as diversas maneiras que esses componentes administrativos construíam e
participavam das instituições coloniais dentro da própria sociedade do século XVIII.
Dessa forma, se faz necessário discutir e observar as várias problemáticas que
circundam o mundo da organização colonial, pois, com o desenvolvimento das pesquisas, em
meio aos documentos e ao longo debate historiográfico entre os autores e suas escolas de
pensamento acerca da administração, enxergaremos situações que constroem e desconstroem o
imaginário camarário e sua relação com o poder real. Relação essa que vai ser a responsável
por produzir o ambiente de posturas, leis, impostos e fiscalizações da sociedade do séc. XVIII
no Brasil.
Outra expectativa que está inserida no contexto da pesquisa é a observação dos
personagens coloniais e suas ambições dentro do seu meio social. Pois, ao estudar os
documentos, podemos conceber os almotacés como indivíduos com desejos próprios, ambições
que faziam parte do desejo de ascender socialmente frente a ocupação de tais cargos.
Diante disso, é interessante observamos que do ano de 1714 a 1738, a extrema maioria
daqueles que ocuparam o cargo de almotacés são capitães, se consideramos os homens que
aparecem com algum título nas declarações de sua posse, 66,4% dos cidadãos eram capitães,
seguidos de 10,6% (Alferes) e 8,3% (Sargento Mor), o restante está dissipado por cargos como
tenente, doutor e coronel 14 Na verdade, a partir das leituras sobre o funcionamento das câmaras,
ficam evidentes que as escolhas dos almotacés estão atreladas as funções que lhes eram
atribuídas anteriormente.
Ou seja, para torna-se almotacés era necessário algum tipo de influência no mercado e
câmara local, fazendo com que, cidadãos que trabalhassem como pequenos profissionais
liberais não aparecessem entre aqueles que ocupavam tais cargos ou, ocupassem a câmara na
função em questão, muito discretamente. Tal afirmação se desenho como um claro momento
de controle e manipulação dos braços administrativos da câmara e da elite local. Destacando
assim, a preservação da própria elite e a composição de um círculo de poder, privilegiando um
determinado grupo na administração colonial.

124
14 Tais dados foram coletados a partir de uma pesquisa quantitativa do Livro número I - 1714 a 1738 (Livro
segundo de Vereações - Livro de Acórdãos do Senado da Câmara do Recife – 1738).
No ano de 1715, encontramos tal afirmação “se elegerem dois árbitros para se por o
preço do açúcar pela parte do negócio” 15
. Demonstrando que a posição de almotacés está
diretamente relacionada ao cotidiano mercantil da colônia, pois quando a valorização de um
cargo camarário não era suficiente, as particularidades que o cotidiano de cada cidadão
apresentam se faz presente. Pois, é evidente o interesse de manter o preço do açúcar naquela
região bem controlado.
Vale ressaltar que os vereadores e grandes donos de engenho da região, construíram seu
prestígio, negócios e sua autoridade a partir da produção do próprio açúcar. Açúcar esse que
vem das lavouras de cana, que marcaram séculos de produção agrícola em Pernambuco,
caracterizando-se pelas plantations. É evidente que essa forma de produção está voltada para
exportação do próprio produto, contudo, o abastecimento interno também era um dos mercados
prospectados pelos donos de engenho.
Entretanto, quais eram os cargos (ou posições) que ocupavam antes? Por quantas vezes
eles exerciam a mesma função? Quais eram as formas de impedimento e ascensão a tal posição?
Esses questionamentos podem nos ajudar a compreender o funcionamento da câmara municipal
e da sociedade colonial de forma geral. Apesar da primeira pergunta já tenha sido trabalhada,
vale problematizar as diversas problemáticas da própria câmara recifense.
Uma instituição tão complexa. Mas, que tinha suas próprias singularidades, pois na
leitura do documento: Livro número I – 1714 a 1738 (Livro segundo de Vereações - Livro de
Acórdãos do Senado da Câmara do Recife – 1738) 16, encontramos tal trecho:

Ao primeiro dia do mês de janeiro de mil setecentos e vinte e nove anos, nesta
Vila de Santo Antônio do Recife nas Casas da Câmara dela onde estavam os
oficiais juntos, apareceram o Comissário Geral José Rodrigues Pereira o
Capitão Cristóvão de Freitas Guimarães e o Sargento mor Domingos
Gonçalves Reis, que haviam saído no Pelouro que se abriu em vinte e um de
dezembro o ano passado de 1728 para servirem os cargos de Vereadores, e
Procurador deste Senado no qual Pelouro também saiu por Vereador o Doutor
Baltazar Gonçalves Ramos e logo apresentarem as suas cartas de usança
corrente para se lhe dar posse os seus lugares. (p. 264)

Apesar de o trecho não conter nenhuma afirmação relevante, ao não ser a apresentação de cartas
de usança corrente para a posse dos cargos dos referidos senhores do trecho acima, trata-se de
uma prova escrita que em determinados anos, as necessidades das câmaras faziam com que seus
17
funcionários trabalhassem nos primeiros dias do ano . Tornando-se, no mínimo, um objeto

15 P. 39.
16 O Livro está presente nas fontes do artigo. 125
17 Vale salientar que a importância do 1º dia do ano é mais vistosa aos olhos da sociedade no contexto
contemporâneo. Contudo, ainda assim, fazia parte dos dias de festas do Brasil Colônia.
curioso, pois é bastante difícil imaginar repartições públicas, mesmo dentre o contexto colonial,
funcionando normalmente nesse dia em especial.
Entretanto, no decorrer da pesquisa, enxergamos a comunidade camarária como um
círculo de pessoas não tão grande ou espesso, pois há uma clara repetição de nomes na função
de almotacés. Como por exemplo: o Capitão João Gonçalves Reis, atuou como almotacé de
Recife nos anos de 1715 e 1720, sendo que, no ano de 1715, atuou mais de uma vez 18.
O que na verdade, não é novidade na câmara, pois era padrão aqueles que são indicados
ao cargo de almotacés, disporem, em um curto espaço de tempo, duas oportunidades de exercer
a função. O que leva ao almotacés em questão ser responsável pelas diversas responsabilidades
já citadas anteriormente durante um terço do ano, levando em consideração que o mandato
comum dos almotacés em Recife dura dois meses.
Entretanto, lendo o documento já citado, encontramos tal caso: “(…) fizeram Almotacés
primeiramente nomearão para os meses de julho agosto e setembro o Coronel Francisco Alemão
de Mendonça e o Coronel Francisco de Almeida”19 E, novamente observamos no ano de 1728:
Elegeram para servir de almotacés os meses de julho agosto e setembro ao
Sargento mor José Gomes Ferreira e o Sargento mor Manuel da Silva Ferreira,
o primeiro morador nesta vila e o segundo na freguesia da Muribeca. Elegeram
para os meses de outubro novembro e dezembro ao Capitão Baltazar Ferreira
Passos morador nesta vila e ao Capitão Ambrósio Machado da Cunha morador
na freguesia de Ipojuca. (p. 245).

Percebendo assim, que em determinados meses, a duração do cargo em questão estava


relacionada às necessidades e especificidades das problemáticas vivenciadas na câmara do
Recife e dos seus gestores.20 Ou, podemos verificar tal questão quando se é modificada a
quantidade de almotacés que serviram em um determinado tempo. Pois, encontramos outra
divergência no trecho a seguir:
(…) fizeram eleição de Almotacés para servir nos meses seguintes a saber para
os meses de julho e agosto e setembro o Sargento mor Luís Nunes da Silva e
o Capitão Vicente Gorjão e o Capitão Belchior de Castro Lima (p. 177).
Dessa forma, podemos reafirmar um apontamento anterior, a almotaçaria é uma função
administrativa que vai se moldando de acordo com as demandas locais, seja no quesito das
atribuições ou, no que se refere à duração do próprio cargo.

18 P. 36 e 47.
19 P. 161
20 Vale ressaltar que como o caráter do documento é discricionário, por muitas vezes podemos perceber
discrepâncias nas decisões ou, informações se comparados a normalidade que se apresenta no próprio documento. 126
E, infelizmente, mais detalhes não são informados, seja pela ausência de informações nos próprios escritos ou,
pela deterioração do Livro em questão, forçando assim, um caráter mais interpretativo nas análises do texto.
Diante observações como essas, podemos destacar a partir da leitura interpretativa das
Atas de Câmaras, a possibilidade de se extrair uma série de informações que podem vir a
contribuir para com pesquisas futuras e bancos de dados já existentes, avolumando o conjunto
de informações acerca da administração colonial. Reafirmando, construindo e reconstruindo
interpretações que estudam e aprofundam a importância das câmaras no Brasil Colonial do séc.
XVIII.

Considerações finais

Ao longo do texto, tentamos manter o debate historiográfico presente e atuante, no


sentido de embasar a escrita e demonstrar as diferentes concepções das relações entre poder e
prestígio na administração com as câmaras e as ordenanças reais. Junto a isso, trabalhamos as
funcionalidades da figura dos almotacés e sua adaptação ao meio da administração colonial ao
longo do tempo histórico no Brasil e em Portugal.
Fizemos isso, destrinchando autores já renomados e suas teorias sobre a organização
das leis e posturas que estavam presentes no contexto social brasileiro do século XVIII,
confrontando-os com autores que atualizaram o debate histórico acerca da autonomia e
representação política na colônia. Construindo uma releitura do espaço camarário como centro
importante de resoluções de conflitos e administração das contas públicas coloniais.
Entretanto, para a coleta das informações acerca das funções, das datas referentes à
inserção de novos membros do corpo de almotacés e suas problemáticas, deve-se aprofundar a
leitura e interpretação do Livro número I – 1714 a 1738 (Livro segundo de Vereações – Livro
de Acórdãos do Senado da Câmara do Recife – 1738). Observando esses dados e construindo
a narrativa acerca das funcionalidades e contribuições dos almotacés na câmara. Sem esquecer
da relevância dos dados presentes nas atas e em outras fontes coloniais, pois como foi afirmado,
apesar de escassez, todos esses documentos detêm uma relevância enorme para o estudo da
administração colonial brasileira.
Diante disso, a partir dos diversos casos analisados no documento, podemos observar
uma série de características e singularidades presentes no cotidiano da função de almotacés,
podendo destacar-se as contrariedades na natureza do almotaçaria, bem como discrepâncias nos
dados relativos as suas características em si. Já que, demonstramos que em alguns momentos,
a quantidade de almotacés indicados era diferente a normalidade encontrada no próprio
documento. Sem falar nos casos em que os meses que lhes eram designados também se 127
modificavam, convertendo de dois para três meses.
Portanto, dialogando com as interpretações do documento, autores basilares do estudo
do Brasil Colônia e as novas narrativas criadas acerca das funcionalidades das câmaras. Esse
artigo teve como objetivo, debater e demonstrar as problemáticas que envolvem a almotaçaria
nas câmaras municipais do Recife na primeira metade do séc. XVIII, diante da produção
histórica sobre a administração camarária colonial nas primeiras décadas do séc. XVIII.

Referências bibliográficas

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul –
séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
BACELLAR, Carlos de A. P. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassanezi
(Org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: Fundamentos e Métodos / Circe
Maria Fernandes Bittencourt – São Paulo: Cortez, 2004 – (Coleção docência em formação.
Série ensino fundamental).
FRAGOSO, João; GOUVÊA, M. F. (org.). Na trama das redes: política e negócio no império
português (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
NOVAIS, F. A.. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). 1. Ed.
São Paulo: Hucitec, 1979.
PEREIRA, M. R. M.. Formas de controle do quotidiano da população urbana setecentista: o
direito de almotaçaria. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 27, n.1, p. 75-102, 2001.
RAMINELLI, Ronaldo José, 1962 – Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico,
séculos XVII e XVIII / Ronaldo Raminelli. – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.
SCHMACHTENBERG, R.. A arte de governar, vigiar e disciplinar na Província do Rio
Grande de São Pedro: o poder da Câmara Municipal da Vila de Nossa Senhora do Rio Pardo e
dos juízes almotacés nas primeiras décadas do século XIX. História: Debates e Tendências, v.
14, p. 224-238, 2014.
SOUZA, George F. Cabral de. Elites e exercícios de poder no Brasil colonial: a Câmara
Municipal do Recife, 1710-1822 / George F. Cabral de Souza. – Recife: Editora UFPE, 2015.

Fontes:

Livro número I – 1714 a 1738 (Livro segundo de Vereações – Livro de Acórdãos do Senado da
128
Câmara do Recife – 1738). Não publicado
O CUSTO DA GUERRA: PRODUÇÃO E ABASTECIMENTO DE VÍVERES PARA A
COMPANHIA DAS ÍNDIAS OCIDENTAIS (1630-1654) 1.

Matheus Vila Nova Nunes


Graduando UFRPE
matheusvilanunes@gmail.com.

Um dos temas mais discutidos pela historiografia nacional, a ocupação do Brasil pela
Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais (West-Indische Compagnie - WIC) foi abordada
sob vários vieses. No entanto, várias lacunas podem ser observadas na vasta bibliografia
produzida sobre o tema. A produção interna de alimentos e as várias tentativas da administração
da Companhia em sanar a recorrente escassez de comida estão entre essas ausências. É nesse
sentido que o projeto intitulado Custo da Guerra: produção e abastecimento de víveres para a
Companhia das Índias Ocidentais (1630-1654) que tem como objetivo traçar como estava
estruturado o abastecimento de provisões da Companhia das Índias Ocidentais e remontar a
organização da produção interna na colônia, assim como mapear as zonas produtoras de
alimentos a partir de dados cartográficos produzidos durante a ocupação, quantificar a produção
interna e identificar os níveis de interação entre produtores e a Companhia das Índias
Ocidentais. Todavia, dada à extensão do nosso projeto, nesse artigo trataremos de um tema que
circunda toda a nossa temática, que é como a guerra de conquista neerlandesa estava conectada
às zonas de produção de alimentos e das sucessivas tentativas da companhia em conquistar
outras áreas para sanar as suas deficiências alimentares, já que havia uma escassez alimentar
endêmica devido a crise de abastecimento, causadas, logicamente, pelo próprio processo da
guerra. Para isso, a fim de esquematizarmos melhor a nossa discussão, dividiremos nossa
discussão dentro dos três períodos utilizados pela historiografia clássica, são eles: conquista
(1630-1637), expansão (1637-1644) e declínio (1644-1654).

Guerra e abastecimento – primeiro momento (1630-1637)

A vinculação entre guerra e abastecimento é percebida logo nas primeiras


movimentações de tropa da WIC no Brasil. O comandante geral das tropas da WIC no Brasil
entre 1630 e 1632, Diederick van Waerdenburgh, além dos inúmeros relatos das penúrias
129
1
Orientador: Prof. Dr. Bruno Romero Ferreira Miranda
passadas pela tropa, relata – indiretamente – que a escolha de alvos militares levava em
consideração sua capacidade produtiva e seu papel como áreas de fornecimento de alimentos
das tropas opositoras.2 Em consonância com o relato de Waerdenburgh, o soldado Ambrosius
Richshoffer, que esteve no Brasil entre 1630 e 1632, apresenta em seu diário várias passagens
que demonstram que as tropas inimigas também direcionavam suas ações para locais que
serviam ao provimento de víveres para a gente da WIC. 3 Joannes de Laet, diretor da Companha
que escreveu sobre os primeiros seis anos de ocupação do Brasil, igualmente trata das muitas
emboscadas tramadas pelos luso-brasileiros em áreas de acesso à alimentos. Parte das tropas de
Matias de Albuquerque postavam-se rotineiramente nos acessos ao interior para emboscar as
tropas da WIC que intentassem obter alimentos.4 Essa estratégia das tropas opositoras à WIC
foi uma constante durante o período de impasse militar (1630-1632). A disputa pelas áreas de
provimento levou Claude Papavero a nomear a disputa entre portugueses e neerlandeses de
“Guerra dos pomares”.5
A partir de 1633, a WIC fincou seus pés ainda mais no território, ampliando suas
possessões fora de Pernambuco. Buscando diminuir a força da tropa luso-brasileira estacionada
majoritariamente no Arraial do Bom Jesus, foram feitas investidas contra os moradores do
interior, sobretudo em áreas distantes de serem socorridas pelos portugueses. Moradores foram
pilhados, outros entraram em acordo com a WIC na Paraíba. Itamaracá, vizinha a Pernambuco,
foi atacada não apenas por conta dos engenhos de Igarassu, mas com o objetivo de ter acesso a
alimentos.6 No geral, isso foi importante para arrefecer os problemas crônicos de abastecimento
de víveres da WIC:

Este lugar de grande ajuda para os nossos homens, em razão das provisões
frescas que dali eram [sic] trazidas, tendo os nossos nenhuma outra vitualha.
Pois a que havia trazido da Holanda sendo salgada e defumada, causava
grandes enfermidades, e muitos ficaram cegos. Estas frutas ajudaram
muitíssimo. Chegaram muitos homens e provisões da Holanda. (...) Pois, aqui
desde o início nossos homens morriam por ferimentos muito leves, sendo
atacados por uma enfermidade chamada chagas. Ela surgia por falta de
provisões frescas e pelo enfraquecimento (...) mas agora nos últimos anos por
termos carne fresca e frutas ela não ocorre mais (ou muito raramente). 7

2
Documentos Holandeses. Documentos coletados por Joaquim Caetano da Silva e traduzidos por Abgar Renault.
Rio de Janeiro: Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Saúde, 1945.
3
RICHSHOFFER, Ambrosius. Diário de um soldado. Recife: Secretaria de Educação e Cultura, 1977.
4
LAET, Joannes de. História ou annais dos feitos da Companhia Privilegiada das Indias Ocidentais. 2 vol., Trad.
De José Hygino Duarte Pereira e Pedro Souto Maior, Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1916, p. 236.
5
PAPAVERO, Claude Guy. Mantimentos e víveres: o domínio colonial holandês no Brasil. São Paulo: Dissertação
de mestrado da Universidade de São Paulo, 2002. 130
6
PUDSEY, Cuthbert op. Cit, folio 16 r.
7
Ibidem, op. Cit, folio 13r.
Evaldo Cabral já alertara para a importância dessa capitania no abastecimento das tropas
luso-brasileiras desse período. A saída dos lavradores da Várzea do Capibaribe em
consequência da guerra fez essa zona se tornar uma espécie refúgio para as tropas de Matias de
Albuquerque.8
Em finais de 1633 os neerlandeses tomaram o Rio Grande. Depois, o Pontal de Nazaré
no Cabo de Santo Agostinho. A Paraíba tinha caído antes, conforme mencionado. Tanto a
Paraíba como os engenhos do Cabo exportavam açúcar e eram áreas produtoras de víveres.
Tinham, portanto, importância vital para manter as tropas de Matias de Albuquerque. Com a
conquista dessas áreas, a guerra começou a pender favoravelmente para a WIC. 9
Com a tomada de áreas externas ao Recife, os neerlandeses acabaram estorvando as
tropas portuguesas de obter alimentos e forçando as tropas a se deslocar para o sul da capitania
de Pernambuco. Na marcha para o Sul, foram solicitados aos moradores auxílio em víveres,
especificamente carne e farinha de mandioca.10
Assim posto, as tropas portuguesas foram forçadas a encontrar zonas de abastecimento
alternativas para suprir suas carências. O mestre de campo, Giovanni Vincenzo di San Felice –
conde de Bagnuolo –, que participou da defesa do Sul de Pernambuco após a queda do Arraial
do Bom Jesus, teve, entre outras prerrogativas, a proteção da zona de Porto Calvo, rica em
currais de gado vacum e roças de mandioca. Porto Calvo foi fundamental para a manutenção
das forças portuguesas anos antes e seria recorrentemente descrita por sua abundância. Frei
Manuel Calado relata que um dos abastados proprietários de engenho da região, Antônio de
Abreu, fora capaz de prover os soldados ibéricos com 2 mil alqueires de farinha de mandioca,
suficiente para manter tal grupo por 2 meses. O caso de Abreu não é isolado, pois outras
narrativas dão conta da existência de farinha e gado, vacum e miúdo.11
O general Luís de Rojas y Borja, que liderou tropas ibéricas no Sul de Pernambuco,
também teve tropas estacionadas em Porto Calvo, de onde esperava sustentar 1.600 homens.

8
MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada. Op. Cit., p. 193: “A escassez atingiu particularmente aguda a
farinha de mandioca, devido ao abandono das roças pelos moradores que acorriam para a defesa da companhia.
Mas da capitania de Itamaracá e de algumas freguesias da de Pernambuco chegavam alguma ajuda: sobretudo em
farinha e peixe seco”.
9
O Frei Manuel Calado, sempre atento nos encalços da guerra, relata essa guinada favorável aos holandeses: “Não
perdeu o inimigo as estribeiras, antes com sua armada foi sobre a fortaleza do Rio Grande, e a tomou e tomou
também a ilha de Itamaracá, e a Paraíba”. Frei Manuel CALADO, op. Cit, p. 55. 131
10
MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada. Op. Cit., p. 197.
11
CALADO, Frei Manuel. Op. Cit, p. 49.
Com a sequência de derrotas ao norte da capitania, Porto Calvo, e as Alagoas, passaram a ser
última área produtiva da capitania.12
Mas abundância não era uma constante nessa zona. A guerra e a circulação de grandes
grupos militares drenavam os recursos da região. Por isso, as tropas portuguesas instituíram um
sistema de contribuições obrigatórias aos moradores. Cada um ficava obrigado a manter um
certo número de soldados. Com a saída dos portugueses, anos depois, seria a vez dos
neerlandeses instituírem um sistema parecido, com, finta da mandioca editada no governo de
Maurício de Nassau em janeiro de 1647. As contribuições em farinha pedidas pelos ibéricos
foram lançadas por dois meses em outubro de 1636. Seriam prorrogadas sempre que as tropas
sentissem a necessidade de alimentos.13
As movimentações das tropas ibéricas e napolitanas – que também compunham a força
de defesa do Brasil – não passariam despercebidas pelos comandantes da WIC. Christoffel
Arciszewski, juntamente com o conselheiro político Jacob Stachhouwer, deram ordens para que
suas tropas arrancassem roças de mandioca nas Alagoas e queimassem covas novas junto com
canaviais. Também as tropas da WIC receberam instruções para evacuar a população do campo,
numa tentativa de negar ao inimigo comida. As medidas não devem ter surtido efeito completo,
já que Bagnuolo, mesmo sitiado em Porto Calvo, enviava expedições para obter farinha de
mandioca. Era um território muito amplo para ser defendido com eficiência.14
Se a área ao Sul estava em franca disputa, o Norte já permitia a coleta e até mesmo
algum comércio de alimentos. Pouco tempo depois da rendição do Arraial do Bom Jesus, o
secretário do Conselho Político do Brasil registra em uma Ata Diária de abril de 1635:

Hoje de manhã cedo aqui chegaram 40 soldados com provisões, vindas de


Itamaracá (...) Em seguida chegou de Itamaracá a chalupa “Duizendbeen” (a
Centopéia) com o carregamento de 320 cocos, dos quais a metade era da
propriedade de Barttholomeus, homem livre desta região, e a outra metade da
Companhia. Estes foram oferecidos diretamente a Govert Leendertsen Clock,
que não queria comprá-los pela soma de 5 stuivers cada, porque a demanda é
muito pequena, uma vez que o país está parcialmente aberto para poder se
trafegar e as pessoas tem bastante acesso a líquido. 15

No entanto, nem sempre as negociações por comida eram fáceis. Afora os problemas de
fornecimento, usualmente afetado pelo conflito, a WIC tinha uma dificuldade recorrente: a falta

12
MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada. Op. Cit., p. 199.
13
Ibidem, p. 201.
14
Ibidem, pp. 199-200. 132
15
Ata Diária do Governo do Brasil de 13 de abril de 1635. Fundo José Hygino, Instituto Arqueológico, Histórico
e Geográfico Pernambucano.
de numerário para pagar os fornecedores. Muitos deles se recusavam a entregar farinha a
crédito, haja vista calotes dados pela própria WIC. Nesse caso, açúcar e outros bens entravam
como “moeda” para obter comida para as tropas, como se vê numa ata do Conselho Político de
março de 1636:

Na reunião compareceu o Senhor Paulus Mazeur, que relatou que ele não
conseguia mais achar farinha disponível em Muribeca, a menos que ele tivesse
dinheiro ou bens para negociar. Depois de uma deliberação foi decidido, tendo
em vista que não dispomos mais de meios líquidos, de se adquirir alguns bens
dos comerciantes livres e pagá-los com açúcar pelo preço de mercado.16

É importante lembrar que mesmo presente em novas áreas, a WIC não deixou de obter
comida por meio do saque, sobretudo de regiões que não tinham entrado em acordo com a
administração neerlandesa. Ademais, a pilhagem era uma maneira de negar aos inimigos acesso
a alimentos.

Guerra e abastecimento – segundo momento (1637-1645)

O governo de Johan Maurits van Nassau-Siegen seria marcado por crises contínuas no
fornecimento de víveres. Em parte, é possível atribuir o problema ao inchaço populacional do
Brasil sob sua administração. A conquista relativamente mais estável iria atrair milhares de
imigrantes e, consequentemente, mais bocas para drenar os recursos da terra. Ademais, o Brasil
sob governo de Nassau seria expandido para muito além das fronteiras de Pernambuco. Sergipe,
Ceará e Maranhão fariam, por períodos distintos, parte do território da WIC, que também
incursionou em Angola. Em cada uma dessas localidades, centenas de homens dependiam dos
armazéns centrais do Recife. Mesmo as operações navais precisavam de comida usualmente
obtida na capital da WIC no Brasil.
Tal dependência explica as razões pelas quais os comandantes da WIC tomavam sempre
em consideração, em suas operações militares, a passagem e acesso por zonas de produção de
víveres. A investida na região do Rio São Francisco, por exemplo, fora feita não apenas para
afastar as tropas portuguesas para Sergipe, mas para capturar mais de 3 mil cabeças de gado e
fincar os pés numas das áreas mais importantes para a alimentação da Capitania de Pernambuco.

133
16
Ata Diária do Governo do Brasil de 12 de março de 1636. Fundo José Hygino, Instituto Arqueológico, Histórico
e Geográfico Pernambucano.
A área também era vizinha à Sergipe, também famosa pelos rebanhos de gado vacum. 17
Posteriormente, a guarnição do São Francisco ver-se-ia às voltas com os guerrilheiros
provenientes da Bahia, em um vai-e-vem continuo de tropas e gado.
Ainda sobre os problemas acarretados pelas grandes expedições montadas à custa dos
armazéns do Recife, vale recordar a operação de cerco à Salvador, em 1638. Na ocasião, os
armazéns da WIC no Recife foram praticamente esvaziados para alimentar os milhares de
soldados empregados no ataque à capital.18 Apesar dos armazéns do Recife terem sido
esvaziados, faltou comida para a tropa que empreendia o cerco à cidade, como relatou Nassau
em carta aos Estados Gerais:

21 de abril enviei o major Van den Brand com alguma gente pela praia a
incorporar o forte de S. Felippe, que se rendeu ainda na mesma tarde com 5
peças, e de mesmo modo, no dia 22, um outro de nome S. Bartholomeu, com
13 peças, ambos praças muito fortes e de que tínhamos grande necessidade,
porquanto doutra forma não poderíamos chegar aos nossos navios e por falta
de víveres seriamos forçados a retirada, tanto mais quanto só podíamos
conduzir conosco mantimentos para 8 dias.19

As tropas comandadas por Nassau na Bahia também buscaram privar os luso-brasileiros


de obter gado e refrescos na cidade, acreditando que se obtivessem êxito nesse quesito, toda a
cidade cairia. No entanto, nada conseguiram fazer em relação a isso, já que o gado continuou
entrando na cidade. Precavidos em relação ao abastecimento da cidade, reses eram sempre
escoltadas em grandes comboios militares que seguiam pela praia que fica ao norte da cidade
de Salvador. Devido ao extenso perímetro a defender, as forças navais neerlandesas eram
incapazes barrar a entrada do gado. A farinha de mandioca também era levada com grande
facilidade para a cidade sitiada, principalmente ao cair da noite, quando a capacidade de
interceptação do exército diminuía. Segundo o próprio Nassau, essa incapacidade de evitar com
que os víveres entrassem na cidade, somadas a desmoralização de suas tropas devido à fome,

17
NIEUHOF, Joan, Memorável Viagem Marítima e terrestre ao Brasil; traduzido do inglês por Moarcir N.
Vascolancelos; confrontos com a edição holandesa de 1682, introdução, notas, crítica bibliográfica e bibliografia
por José Honório Rodrigues – Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo Ed. da Universidade de São Paulo, 1981,
p.36
18
PAPAVERO, Claude Guy. Mantimentos e víveres: o domínio colonial holandês no Brasil. São Paulo:
Dissertação de mestrado da Universidade de São Paulo, 2002, p.147
19
Cartas Nassovianas. Correspondência do Conde João Maurício de Nassau, Governador do Brasil Hollandez,
com os Estados Gerais (1637-1646). In: Revista do Instituto Archeologico e Geographico Pernambucano. Recife,
Vol. X, 1902; Cartas Nassovianas. Correspondência do Conde João Maurício de Nassau, Governador do Brasil
Hollandez, com os Estados Gerais (1637- 1646). In: Revista do Instituto Archeologico e Geographico
Pernambucano. Recife, Vol. XII, 68, 1906. Há de se considerar também que o cerco tenha se prolongado mais do
que o estipulado. Usualmente tropas que partiam para esse tipo de operação levavam vitualhas para vários meses 134
e precisavam contar com linhas de abastecimento sem qualquer interrupção. A tropa que assedia Salvador não
tinha esse problema, mas enfrentava o rotineiro desabastecimento em seu domínio.
foram pontos culminantes na sua decisão de retornar ao Recife sem concluir o objetivo traçado,
no qual foi bastante criticado e levantou dúvidas sobre sua capacidade militar e administrativa. 20
Recorrente, os problemas logísticos da WIC durante operações podem ser observados
durante as investidas no Maranhão, Angola, São Tomé e lugares circunjacentes, em 1641.
Apesar das operações militares terem sido bem sucedidas, diferentemente do que ocorreu na
Bahia, elas também deixaram os celeiros da Companhia no Recife exauridos.21 Frei Manoel
Calado ainda complementa que essas conquistas acentuaram a fome no Brasil, pois a
administração neerlandesa passou a enviar farinha de mandioca, entre outros víveres, para essas
zonas.22
Não era apenas longe da sede da WIC que os problemas de abastecimento se
avolumavam. Joan Nieuhof, autor da “Memorável Viagem Marítima e terrestre ao Brasil” faz
um relato sobre a decisão do governo em estabelecer em São Lourenço um acampamento
permanente, com o objetivo de manter uma importante área de abastecimento de farinha de
mandioca. Vale lembrar que a WIC já tinha, por dificuldade em manter seguro, decidido
abandonar São Lourenço. Vizinho ao que se chamava de sertão, São Lourenço era rota segura
para guerrilheiros portugueses que rotineiramente entrava em território neerlandês para obter
comida e sabotar o sistema produtivo. A WIC, carente de alimentos por conta do
empreendimento de grandes operações militares, não podia abrir mão de uma área produtora.
É nítido, contudo, como a possessão neerlandesa estava fragilizada, pois não podia manter
segura terras nem tão distantes assim da sede.23
Pouco tempo depois de decidir manter um grupo de soldados em São Lourenço, o Alto
e Secreto Conselho voltou atrás e transferiu a tropa para a Muribeca, mesmo quando a primeira
tinha melhores números de produção. O cálculo dos conselheiros era que a Muribeca era área
estrategicamente mais importante, pois estava a meio caminho do Cabo de Santo Agostinho,

20
Cartas Nassovianas. Correspondência do Conde João Maurício de Nassau, Governador do Brasil Hollandez,
com os Estados Gerais (1637-1646). In: Revista do Instituto Archeologico e Geographico Pernambucano. Recife,
Vol. X, 1902; Cartas Nassovianas. Correspondência do Conde João Maurício de Nassau, Governador do Brasil
Hollandez, com os Estados Gerais (1637- 1646). In: Revista do Instituto Archeologico e Geographico
Pernambucano. Recife, Vol. XII, 68, 1906. Soma-se ainda a epidemia de disenteria bacilar que acometeu a tropa.
Cf. MIRANDA, Bruno Romero Ferreira. Gente de Guerra, Op. Cit..
21
NIEUHOF, Joan, Memorável Viagem Marítima e terrestre ao Brasil; traduzido do inglês por Moarcir N.
Vascolancelos; confrontos com a edição holandesa de 1682, introdução, notas, crítica bibliográfica e bibliografia
por José Honório Rodrigues – Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo Ed. da Universidade de São Paulo, 1981,
p.109
22
CALADO, Frei Manuel. Op. Cit., Vol. I, pp. 315, 325-6.
23
Ata Diária do Governo do Brasil de 13 de outubro de 1638. Fundo José Hygino, Instituto Arqueológico,
Histórico e Geográfico Pernambucano; NIEUHOF, Joan, Memorável Viagem Marítima e terrestre ao Brasil;
traduzido do inglês por Moarcir N. Vascolancelos; confrontos com a edição holandesa de 1682, introdução, notas, 135
crítica bibliográfica e bibliografia por José Honório Rodrigues – Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo Ed. da
Universidade de São Paulo, 1981, pp.145-146.
onde se localizava importante porto. Calculavam que da Muribeca a tropa podia dominar a área
dos Guararapes até o Cabo, mantendo-se com os alimentos produzidos ali e enviando-os
também para o Recife. Deslocamentos e reposicionamentos de tropas influenciados por
questões logísticas demonstram que no Brasil pesava nas decisões dos comandantes o controle
estratégico de áreas produtivas essenciais para a manutenção do território.24

Guerra e abastecimento – terceiro momento (1645-1654)

Com a eclosão da Insurreição Pernambucana em 1645, parte das zonas produtoras são
desmanteladas em decorrência da sabotagem das tropas portuguesas. Mesmo com a destruição,
João Fernandes Vieira, um dos líderes dos insurrectos, esperava que os produtores de açúcar
portugueses passassem a produzir farinha de mandioca para as tropas insurgentes.25
Essas ações aparentemente eram de conhecimento e preocupavam os neerlandeses, a
julgar pelo que escreveu Joan Nieuhof em 1645: “se o adversário conseguisse dominar o
interior, forçaria os habitantes a se congregar em torno dele e nos privaria de todas as provisões,
sem o que não poderíamos subsistir por muito tempo”.26 Tal prognóstico foi se confirmando
gradativamente, o que levou a WIC a solidificar posição em outras zonas para se manter, já que
a zona rural – notadamente as Alagoas – fora tomada rapidamente e tenha ficado de fora da
rede de provimentos internos da colônia. Em consequência, o Recife e outras praças afundaram
em uma grande fome, conforme aponta a passagem de maio de 1646:

A penúria se acentuava diariamente no Recife; a tal ponto que tudo quanto se


considerasse comestível, quer nos armazéns quer na posse de particulares, era
requisitado para uso comum. Contudo, não sendo de mais de uma libra, per
capita, a ração semanal de pão, muita gente morria de inanição. O indício de
morte próxima consistia na inchação das pernas. Os gatos e cachorros, dos
quais tínhamos então abundância, eram considerados finos petiscos. Viam-se
negros desenterrando ossos de cavalos, já meio podres, para devorá-los com
incrível avidez.27

24
Ibidem, p. 146.
25
MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada. Op. Cit., p. 220.
26
NIEUHOF, Joan, Memorável Viagem Marítima e terrestre ao Brasil; traduzido do inglês por Moarcir N.
Vascolancelos; confrontos com a edição holandesa de 1682, introdução, notas, crítica bibliográfica e bibliografia
por José Honório Rodrigues – Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo Ed. da Universidade de São Paulo, 1981, p. 136
165.
27
Idem, p. 285.
Em decorrência da guerra e da fome, que se alastravam cada vez mais nas áreas
ocupadas pela Companhia, houve a necessidade de traçar novas estratégias para a sobrevivência
alimentar dos moradores e, principalmente, das tropas. Como zonas importantes para o
abastecimento das tropas ficavam em zonas de litígio como Sergipe, São Francisco, Alagoas e
a Várzea do Capibaribe, e os incêndios nas roças e nos canaviais estavam cara vez mais
constantes nas terras do Norte, como a Paraíba, a Companhia passou a concentrar seus esforços
na manutenção de áreas fáceis de proteger e que em tese poderiam suprir a demanda de
alimentos. O Rio Grande e a Ilha de Itamaracá crescem em importância nessa fase da ocupação
neerlandesa.
A ilha de Itamaracá, por seu posicionamento estratégico e maior facilidade de proteção,
foi um dos locais favoritos para se transformar em celeiro do Brasil holandês nesse período.
Em uma expedição do Alto Conselheiro Simon Beumont do dia 4 de fevereiro de 1649 foram
contabilizados alguns produtores de farinha e as remessas que foram negociadas com a
Companhia para o envio ao Recife. Entre outros produtores, foram relacionados Pieter Marring,
fornecendo 60 mil covas, Johan Lestry, fornecendo 40 mil covas, Balthasar van Dortmont,
fornecendo 60 mil covas, Jean Arragon fornecendo 30 mil covas, Capitão Cosmo de
Moucheron, fornecendo 40 mil covas.28
O Rio Grande por sua vez, era conhecido por ser uma zona de pecuária, Durante os
últimos anos do Brasil holandês, essa área foi de importância ímpar no fornecimento de carne
para a colônia, até porque Itamaracá seria afetada por pragas e estiagem. Segundo Johan
Nieuhof, o Rio Grande acabou se tornando

A única região de onde se recebiam quantidades ponderáveis de farinha e gado


que minoravam em parte a escassez de gêneros reinante no Recife, cujo estado
sanitário só devido à orientação prudente do Conselho podia ser mantido em
situação passável, enquanto não chegavam os socorros provenientes da
Metrópole.29

Dado os fatos expostos acima, ficam claras as diversas tentativas da WIC em sanar as
deficiências alimentares da conquista através de sucessivas incursões militares às zonas
produtoras, cabe mencionar ainda os editais da finta da mandioca, outorgada em janeiro de 1637

28
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos, Op. Cit., p. 162. Há também um mapa de autor
desconhecido que parcela as áreas da ilha de Itamaracá em lotes de produção de vários gêneros alimentares.
29
NIEUHOF, Joan, Memorável Viagem Marítima e terrestre ao Brasil; traduzido do inglês por Moarcir N.
Vascolancelos; confrontos com a edição holandesa de 1682, introdução, notas, crítica bibliográfica e bibliografia 137
por José Honório Rodrigues – Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo Ed. da Universidade de São Paulo, 1981, p.
302
e os editais da carne, sendo os dois editais frutos da insistência do Maurício de Nassau, que
insistia em arrendamento mais controlado na produção e entrega da farinha da mandioca, como
do controle do corte da carne fornecida às regiões conquistadas, haja vista a maior densidade
populacional das zonas urbanas.

REFERÊNCIAS

LAET, JD. História ou annais dos feitos da Companhia Privilegiada das Indias Ocidentais. 2
vol., Trad. De José Hygino Duarte Pereira e Pedro Souto Maior. Rio de Janeiro: Biblioteca
Nacional, 1916.

MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada. Guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654.
[1975] Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.

MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos. Influência da ocupação holandesa
na vida e na cultura do norte do Brasil. [1947] Recife: Topbooks, 2001.

NIEUHOF, Joan, Memorável Viagem Marítima e terrestre ao Brasil; traduzido do inglês por
Moarcir N. Vascolancelos; confrontos com a edição holandesa de 1682, introdução, notas,
crítica bibliográfica e bibliografia por José Honório Rodrigues – Belo Horizonte: Ed. Itatiaia;
São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1981.

PAPAVERO, Claude Guy. Mantimentos e víveres: o domínio colonial holandês no Brasil. São
Paulo: Dissertação de mestrado da Universidade de São Paulo, 2002.

IMPRESSAS

Atas Diárias do Alto e Secreto Conselho do Brasil (1635-1654). Fundo Documental José
Hygino. Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano.

CALADO, Manuel. O Valeroso Lucideno e triunfo da liberdade. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987

Cartas Nassovianas. Correspondência do Conde João Maurício de Nassau, Governador do


Brasil Hollandez, com os Estados Gerais (1637-1646). In: Revista do Instituto Archeologico e
Geographico Pernambucano. Recife, Vol. X, 1902; Cartas Nassovianas. Correspondência do
Conde João Maurício de Nassau, Governador do Brasil Hollandez, com os Estados Gerais
(1637- 1646). In: Revista do Instituto Archeologico e Geographico Pernambucano. Recife, Vol.
XII, 68, 1906.

138
Documentos Holandeses. Documentos coletados por Joaquim Caetano da Silva e traduzidos
por Abgar Renault. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação do Ministério da Educação e
Saúde, 1945.

RICHSHOFFER, Ambrosius. Diário de um soldado. Recife: Secretaria de Educação e Cultura,


1977.

139
A INVASÃO QUE NÃO ACONTECEU: A GUERRA DOS SETE ANOS E O
IMPACTO NO SISTEMA DEFENSIVO DE PERNAMBUCO ENTRE 1762 E 1763.

Lucas Alves da Rocha

(Arqueólogo, UFPE. E-mail: lucas-alves107@hotmail.com)

Izabela Pereira de Lima

(Mestranda em Arqueologia, UFPE. E-mail: izabelapereiradelima@hotmail.com )

Introdução

Esse trabalho surgiu durante o levantamento documental relacionado a um projeto dos


autores: “muralhas que defendem a memória: identificação e catalogação das fortificações de
Pernambuco 1500-19601”, projeto esse, que visa o resgate da história das fortificações que já
existiram em Pernambuco, do período colonial até a segunda guerra mundial.

Uma dúvida surgiu, quando algumas fortificações, retratadas em plantas, foram


evidenciadas no Arquivo Histórico Ultramarino, mas não era mencionado o motivo de terem
sido erguidas ou a razão de não se encontrava referências em trabalhos sobre o tema, sabia-se
que foram levantadas ou alteradas em 1762, mas qual acontecimento seria tão grave a ponto de
ser estruturado um novo sistema defensivo na capitania de Pernambuco?

O Governador e a invasão: O sistema defensivo da capitania de Pernambuco (1762-1763)

Ao se debruçar sobre as fontes relativas ao século XVIII, diversos governadores e outras


“personas” chamam atenção, mas o caso do governado Luís Diogo Lobo da Silva é um caso à
parte, não só pelo período de governo que foi de “16 de fevereiro de 1756 até 8 de setembro de
1763” (BARBOSA; ACIOLI; ASSIS, 2006: 108), mas, pela própria pessoa e conhecimentos
que expressa nas correspondências enviados a metrópole.

Contemporâneo dos anos inicias do governo, Domingo Loreto Couto, descreve em livro
“Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco”, no capítulo dedicado as memórias dos
governadores e capitães gerais de Pernambuco, o último governador é Luís Diogo, do qual

1
Tanto o presente trabalho como o projeto são dedicados ao prof. José Luís da Mota Menezes, pesquisador que 140
dedica sua vida em defesa do patrimônio e utilização de técnicas de sobreposições para orientar os estudos sobre
a evolução do Recife e a preservação dos sítios arqueológicos ali encontrados.
registra dados sobre sua genealogia, condecorações, além de seus atributos morais e
administrativos. (LORETO COUTO, 1981: 216-217)

Diversos fatos aconteceram durante seu governo: a descoberta das minas na ribeira do
Araripe e a criação e extinção da companhia das minas de ouro de São José dos Cariris,
(SOUZA, 2012: 203), o impacto do sismo de Lisboa (Terramoto de 1755 ) na costa de
Pernambuco, que acabou causando um alagamento em Itamaracá e Tamandaré; A criação da
Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba; a expulsão dos jesuítas; os conflitos
contra indígenas e por último o tema do presente trabalho: a entrada de Portugal na Guerra dos
Sete Anos.

A Guerra dos Sete Anos (1756 –1763) dividiu a Europa em dois grandes blocos: Os
aliados do Rei Luís XV e a monarquia de Habsburgo, que contava com aliados como o império
Russo, Saxônia, Império Sueco e Espanha e do lado oposto os aliados da Grã-Bretanha, como
o reino da Prússia, o reino de Hanôver e Portugal. (POSSAMAI, 2018: 234-235; 244-245)

Portugal e Espanha entraram na fase final da guerra (1760-1763), tomando lados


opostos, inclusive por questões internas como o rompimento do tratado de Madri (1761) e a
negação de Portugal em assinar o “pacto da família”, documento assinado pelas monarquias
espanhola e francesa de ajuda mutua contra a Inglaterra, já que o marques de Pombal já havia
deixado claro que não iria desfazer a antiga aliança anglo-portuguesa. (HOLANDA (Ogr.),
2003: 406-408; BOXER, 2011: 185)

Todos esses impasses geraram reflexos no mundo, observando que essa disputa também
visava o domínio do comercio marítimo e das colônias, da Ásia a América, diversas batalhas
vinham sendo travadas, e com a inclusão de Portugal no eixo da Inglaterra, as suas colônias se
tornariam alvos de ataques.

Quando a notícia chega a Pernambuco, o governador intensifica as medidas de reparo


das fortificações, que já vinha sendo executadas durante seu governo, durante os anos de 1756
a 1761, diversas correspondências informavam a situação: das fortificações; estruturas das
milícias; conservação dos apetrechos bélicos; disponibilidades de fardamento entre outras
coisas necessárias ao melhoramento da defesa da capitania.

Nos ofícios de 1 e 2 de agosto de 1762, Luís Diogo, descreve as ações tomadas para que
a capitania não sofresse um ataque surpresa, mencionando: as trincheiras e fortins na marina de
Olinda; as fortificações na Ilha de Fernando de Noronha, além da construção de uma nova 141
fortificação “Na baia da traição em que se acha situada uma povoação de índios, havia
cometido a sua fortificação ao capitão-mor da Paraíba Francisco Xavier de Miranda
Henriques (...)”, mas pelo que descreve a carta o mesmo não executou tal obra.

Outros pontos foram escolhidos pelo governador para que fossem ou melhorados ou que
fossem feitas as fortificações necessárias para impedir o desembarque dos inimigos, em especial
os espanhóis e franceses, que graças ao “pacto da família”, assinado entre as duas monarquias,
se tornaram aliados contra Portugal.

O interessante dos pontos escolhidos pelo governador, coincidem com pontos descritos
para incursões militares durante o período holandês (1630-1654), em carta ao conde da Torre
de 14 de setembro de 1638, Filipe IV de Espanha descreve como deveria proceder o
desembarque de tropas e munições na região do Cabo de Santo Agostinho ou em portos
desprotegidos:

Passaram a Camaragibe de Porto Calvo, havendo prevenido alguns batimentos


para entra em Camaragibe a socorrer os nossos, ou no porto dos Franceses,
barra das Alagoas, ponta de Jararagua (...) deve chegar nossa armada por 7
graus e 2 terços avistando Itamaracá pela parte de Catuama (...) E tendo o
inimigo as praças sem guarnição, atirará gente em terra na Vila de Olinda na
Guarita do Carmo; e todas outras guarnecidas (...) tendo o inimigo fortificado
suas praças e guarnecendo-as, ira desembarcar na Candelária (...) e logo
devem encaminhar todas as nossas forças para o Cabo de Santo Agostinho (...)
E chegando ali, se procurara logo (ganhando o alto e [a]barra que estão quase
sem defesa) tomar posto na primeira trincheira que o inimigo fez no pontal, e
a artilharia e demais coisas se irão desembarcar em Gaibu ao norte do cabo ou
em [I]Tapoama, aonde primeiro deve estar nossa gente, tendo sempre nossa
armada dado fundo em frente ao Recife para que o inimigo pareça satisfeito
com o que terá sempre sua mira principal no Recife e não poderá socorrer o
cabo, e como no Pontal a somente um reduto e uma bateria que será fácil
ganhar, quando este será também fácil passar-se a ilha de Tatuoca aonde a um
forte que se ganhara em poucos dias (...) ( SALVADO;MIRANDA (ed.),
2001: 35)
Vale salientar que além de se basear na “guerra dos holandeses”, o mesmo governador
possivelmente não deixou de consultar os relatórios de engenheiros que trabalharam em
Pernambuco, como Luís Francisco Pimentel, que deixou um relatório sobre os pontos que
deveriam ser melhores fortificados na capitania2.

Do período deste governador, se dispõe de dois conjuntos de plantas que mapearam as


fortificações e algumas vilas que estavam sob a jurisdição da capitania de Pernambuco, o
conjunto que iremos nos dedicar no presente estudo é o segundo dos conjuntos relacionado com

142
2
AHU_ACL_CU_015, Cx. 21, D. 1975.
o seguinte título: “Coleção de onze plantas e quatro mapas estatísticos referentes a
fortificações feitas na costa da Capitania de Pernambuco” Faria (2011: 129)3

Estranhamente esse conjunto contém 22 plantas, divididas em 11 “duplas”, isso é, que


existe duas plantas de cada trincheira ou forte ali representados, no entanto, cada planta
apresenta diferenças entre si, seja quanto ao detalhe do acabamento ou na legenda, cada planta
deve ser observada como uma fonte de informação independente, mas que possui ligação com
o conjunto a qual está inserida.

Um exemplo disso foi feito em duas breves menções, mas bastante observadoras de dois
pesquisadores das fortificações de Pernambuco, a primeira mencionada por Mello Neto (1981:
88-89) referida ao apontamento do historiador J. A. G. Mello, acerca das duas plantas do
conjunto que se refere as fortificações na região da praia de Gaibu, e aponta diferença entre os
dois documentos. Já a segunda de autoria de J. L.M. Menezes e M. R. R. Rodrigues (1986: 113)
sobre a presença de uma planta do forte de Nossa Senhora dos Prazeres de Pau Amarelo, a qual
transcreve parte da legenda. Mas nenhum dos dois pesquisadores mencionaram o autor das
traças, e nem nas plantas foram notadas as presenças de assinaturas.

No oficio de 2 de agosto de 1762, sabe-se que parte das plantas foram executadas pelo
mestre de campo Luiz Xavier Bernardo4, que ficou responsável pelas obras das fortificações
entre a enseada de Jaraguá e Pajuçara em Alagoas, neste mesmo documento podemos perceber
os pormenores sobre o estado das fortificações, mapas de bens necessários e descrição de cargos
a ser preenchidos no efetivo nas fortificações e companhias (novas e antigas).

Já no oficio datado de 5 de agosto de 1762, ao conde de Oeiras, o governador informa


sobre as ações tomadas para construção e reformada das fortificações e trincheiras, sabe-se
graças à algumas plantas que parte destas trincheiras e baluartes foram construídos com “faxina,
estacaria e terra”, além disso, convocou os oficiais disponíveis e dividiu as obras em “doze
léguas para o sul, e igual distancia para o norte pela sua marinha”5 para que as mesmas fossem

3
As plantas estão disponíveis em: https://www.academia.edu/s/f577872893/a-invasao-que-nao-aconteceu-a-
guerra-dos-sete-anos-e-seu-impacto-no-sistema-defensivo-de-pernambuco-entre-1762-e-1763?source=link
4
Sobre Luís Xavier Bernardo, podemos mencionar a breve biografia feita por Tavares (2000: 192), que o descreve
já atuando como capitão engenheiro na capitania da Paraíba em 1716. Graças a documentos encontrados no AHU,
podemos fornecer mais dados a sua biografia militar. Atuou como sargento-mor e engenheiro na Alagoas do Norte,
em 1735, possivelmente foi professor na “Aula de Fortificação” de Pernambuco antes de 1739, neste ano foi um
dos engenheiros que deu seu parecer sobre o projeto da cidadela do Recife feito pelo brigadeiro João Macé (ou
Massé). Antes de 1742, foi tenente do mestre de campo general de Pernambuco, cargo em que atuou até o ano
1753, quando se tornou mestre de campo general da dita capitania. É mencionado pela última vez em um
requerimento de seu filho, Francisco Xavier Cavalcanti de Albuquerque, coronel de milícias da cidade de Olinda 143
ao príncipe regente D. João em 20.I.1801.
5
AHU_ACL_CU_015, Cx. 98. D. 7688
executadas o mais rápido possível. Ainda assumindo a responsabilidade de vistoriar todas as
obras nas fortificações e trincheiras, tanto na região continental, como na ilha de Fernando de
Noronha.

Ao analisar as cartas, ofícios e requerimentos feitos pelo governador entre 1762 e 1763,
podemos perceber mais sobre como o governador pensava e como defendia suas ações
baseando-se em acontecimentos históricos, em trecho do oficio de 30 de novembro de 1762 6,
registra:

Julgo indispensável para a defesa do país a construção das sobreditas


trincheiras e me lembro do muito que a história da guerra dos holandeses me
ensina, custou a expulsa-los pelo acharem desprevenido quando o invadiram
em que se não animarão os seus habitadores a disputar-lhe a entrada a peito
descoberto, antes mas pararão vergonhosamente um general tão distinto pela
sua experiência e merecimentos como Mathias de Albuquerque (...).
Não seria a única vez que o governador7 iria mencionar episódios da história da
capitania, em um oficio anterior, datado de 15 de junho de 1762, junto com o capitão mor da
Paraíba, faz menção a necessidade dos ministros serem experientes em relação as questões da
guerra, usando como exemplo o caso do ouvidor geral Antão de Mesquita Oliveira, durante o
ataque a Bahia em 1624, “como mostra Francisco de Brito Freyre em sua Nova Lusitana (...)”,
outras citações a episódios históricos são mencionadas na carta, assim como outros livros como
o tomo nono do Santuário Mariano, de Frei Agostinho de Santa Maria e História da América
Portuguesa de Sebastião Rocha Pitta. O mais interessante das citações é a correta menção dos
capítulos e páginas referente aos registros desses episódios. 8.

Ainda no oficio de 30 de novembro, o governador pede que sejam enviados mais


engenheiros a capitania, pois os que aqui estavam não eram suficientes para executarem as
obras necessárias para defesa da capitania.

Entre os meses de dezembro de 1762 até a primeira metade de março 1763, percebeu-
se poucas noticia, mas o oficio de 24 de março de 1763, Luís Diogo comunica a entrega das
novas diretrizes da organização militar portuguesa enviadas através de uma frota da Bahia.
Essas novas diretrizes se baseiam nas regras implementadas pelo conde de Lippe, esse militar

6
AHU_ACL_CU_015, Cx. 99. D. 7722
7
Nem seria o único a conhecer antigas fontes da história de Pernambuco, segundo Mello (2008: 63-87) existiram
episódios como o que em 1732 na câmara de Penedo, em que se utilizou o Castrioto Lusitano, para reivindicar
certas regalias. Mello e Albuquerque (1997:13-14) ressalta que no séc. XVIII, o comerciante Antônio Marques da
Costa Soares, conseguiu algumas cópias de cartas escritas por Duarte Coelho, e que o governador Caetano Pinto
de Miranda Montenegro, no séc. XIX, não recomendava que tais documentos caíssem em mãos do povo de 144
Pernambuco, para que “Não viessem a ter conhecimento dos direitos outorgados (...)”
8
AHU_ACL_CU_015, Cx. 98. D. 7674
veterano de origem alemã ficou responsável por reorganizar o exército português para os
confrontos relativos a Guerra dos Sete Anos, trouxe consigo mercenários estrangeiros e
consolidou penas mais duras para desertores, como a aplicação do polé 9. (POSSAMAI, 2018:
244-245)

Nos ofícios de 14 e 17 de abril de 1763, enviado ao secretário de estado da Marinha e


Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, o mesmo governador, descreve as ações
contra a entradas de navios franceses e espanhóis nos portos da capitania, além de notificar as
notícias chegadas da colônia de Sacramento e a vitória das tropas lusas no embate ocorrido no
rio Prado, os ataques espanhóis em grande escala se focaram na região Sudeste e Sul, em
especial caso na colônia de Sacramento.

Quando Luís Diogo entrega o comando da capitania ao sucessor, o conde de Vila Flor,
conforme dá a entender em mapas e nos últimos ofícios, deixando-a preparada para resistir a
qualquer ataque que, com um sistema fortificado bem elaborado, mas que foi esquecido,
esperando um ataque que não aconteceu.

O sistema defensivo da capitania de Pernambuco retratado nas plantas

As fontes do século XVIII, retratam uma visão de expansão do sistema defensivo da


capitania, os erros cometidos antes do período holandês não poderiam ser repetidos, como foi
visto acima, e novas embates internos como guerra dos Mascates, mostraram a necessidade de
ser fortificar em caso de existir a chance de novos conflitos internos ocorrerem. (SANTOS,
1981:182-185)

Entre 1720 a 1740, os engenheiros, como João de Macedo Corte Real e Diogo Silveira
Veloso, projetaram estruturas como o caso da “cidadela do Recife10”, para aumentar o perímetro
de defesa da sede da capitania, já as fortificações descritas a seguir, que foram retratada nas
plantas estudadas, tiveram como missão proteger a capitania em seus pontos mais debilitados
contra os possíveis ataques dos espanhóis e franceses. :

A) Sistema defensivo de Olinda

9
AHU_ACL_CU_015, Cx. 99. D. 7749, AHU_ACL_CU_015, Cx. 99. D. 7767. Polé é um instrumento de tortura,
no qual se prende a vítima pelos membros, elevando à uma certa altura e fazendo despencar, causando escoriações
como, distensões musculares, rompimento de nervos e até mesmo amputações. 145
10
AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3483, AHU_ACL_CU_015, Cx. 55, D. 4764
O sistema defensivo de Olinda é anterior a 1599, e no decorrer do tempo sofreu diversas
modificações e foi registrado por diversos engenheiros, como Diogo Campos Moreno e Pieter
van Buren.

O conjunto de plantas fornece uma vista de todo o sistema que protegia a marinha de
Olinda, construído com base em paliçadas e a técnica construtiva da taipa de pilão, como
descrevem as legendas das plantas, evidenciando a emergência e as limitações financeiras com
as quais as estruturas foram levantadas ou também a escolha do engenheiro responsável pelo
material empregado nas obras.

Os pontos chaves são descritos nas duas plantas como: A trincheira do rio Tapado (onde
existiu um forte no séc. XVII) a bateria anciã de São Francisco, presença de Baluartes e
trincheiras na marina, convento dos frades Carmelitas, convento dos frades do Desterro
Religiosos de Santa Tereza, bicas de agua doce e o caminho pelo istmo que ligava Olinda e
Recife.

As trincheiras do Rio Doce, que Farias (2011) identifica equivocadamente como “Forte
do Rio Doce”, mostram os entrincheiramentos nos dois lados da ponte, algumas próximas ao
mar enquanto outras mais próximas a terra, defendendo assim tanto a passagem como a barreta.
Luís Francisco Pimentel, em sua “Demonstração da costa de Pernambuco da cidade de Olinda
até Itamaracá” (c. 1707), já descrevia o plano de se fazer um fortim nesta região, como também
sugeriu Antônio Correia Pinto, na segunda metade do séc. XVII.

Pereira da Costa (1958: 260-261) refere que entre 1822 e 1823 ouve uma restruturação
do sistema defensivo, o litoral norte ficou sobre responsabilidade do engenheiro Firmino
Herculano de Morais Ancora, reergueu as estruturas defensivas como baterias, uma no rio Doce
e outra no rio Tapado.

B) Forte de Pau Amarelo

Esse fortim, aparece nas duas plantas como “forte de Nossa Senhora dos Prazeres de
Pau Amarelo”, esse foi o local de desembarque das tropas da Companhia das Índias Ocidentais
(WIC), em sua incursão para tomada da capitania de Pernambuco, o local contava somente com
pequena bateria.

Existe uma planta de 1702, de Luís Francisco Pimentel, na qual descreve a fortificação
com dois meios baluartes e um fosso, mas pelo que mostram as plantas confeccionadas em
146
1762, tal fosso não só foi realmente aberto, mas, ainda foram incluídos um revelim à frente da
estrutura e duas baterias anexas.

Na “Demonstração da costa de Pernambuco da cidade de Olinda até Itamaracá” (c.


1707), também é mencionado um forte na região de Pau Amarelo.

Pereira da Costa (1958: 260-261) menciona que no relatório dos engenheiros Firmino
Herculano de Morais Ancora e Conrado Jacob Niemeyer, que classificam o forte de Pau
Amarelo como sendo de 3º ordem.

C) Sistema fortificado do Recife (Fora de Portas)

Esse sistema fortificado é um dos mais interessantes e também o que possuíamos


pouquíssimas informações (GANEM,2016), graças as duas plantas que indicam as trincheiras
e baluartes na marina do Recife, desde o forte do Brum até os quarteis das juntas que existiam
no início da Rua do Pilar.

Através de mapa, do acervo da Biblioteca Nacional, sabe-se que um dos baluartes


construído foi denominado “Baluarte de Nossa Senhora do Pilar”, guarnecido com 4 peças.
Provavelmente após esse período, parte destas estruturas foram adaptadas de taipa de pilão pode
algumas partes terem sido revestidas de tijolos ou cantaria, e sendo integradas ao contexto
urbano da região.

Aqui vale apontamento, sobre o forte de Santa Cruz do Mar (ou da barra), segundo
diversos autores essa fortificação seria antiga guarita de João de Albuquerque ou guarita dos
judeus, que se localizava na praia dos Milagres em Olinda, mas na realidade tal fortificação se
situava em Recife.

Segundo Santos (1986:14) refere-se a esse forte como sendo o forte de São Francisco
da Barra ou do Picão, situado no arrecife da vila do Recife, em uma consulta de 15 de dezembro
de 1757, o Conselho Ultramarino declara a José I a necessidade do preenchimento dos cargos
de tenente e cabo dessa fortaleza. Em um mapa datado de 1763, sobre as principais fortificações
da Capitania e regiões anexas, está registrado: “Forte de Santa Cruz do Mar, Picão. 7 peças” 11.

D) Forte do Motocolombó

147
11
AHU_ACL_CU-Cod.1989
Farias (2011) descreve esse forte sendo o forte Guilherme ou forte dos Afogados,
construído no período holandês e que defendia a barreta dos Afogados, mas não podemos
afirmar que era essa mesma fortificação.

Possivelmente não seja, pois Santos (1986:46) menciona um “arraial dos Afogados”,
que possivelmente seria uma reminiscência do forte dos Afogados, mas tal assunto, será
abordado em próximos trabalhos.

Existe um projeto, de 1739, do engenheiro-mor de Pernambuco João Macedo Corte


Real, que fortificou parte da Boa Vista e Santo Antônio durante a Guerra dos Mascates, no qual
existe uma fortificação assinalada no outro lado dos Afogados, próximo a ponte.

E) Trincheiras da Candelária

Essas plantas se dedicam a retratar as trincheiras que se encontravam na barra da


Candelária, ponto bastante conhecido dos navegadores desde o séc. XVI. Foi mencionado como
ponto de embarque de açúcar para o Recife, durante o domino holandês, pois em suas
proximidades existiam vários engenhos.

Em uma das plantas, no que descreve Faria (2011: 141), ao lado da escala encontra-se a
seguinte frase: “ que só serve para a medida das trincheiras. ”, o que mostra que o autor se
dedicou a retratar a fortificação e não o espaço ao seu redor com a fortificação.

Essas trincheiras ainda são mencionadas no séc. XIX, segundo Pereira da Costa, as
trincheiras eram guarnecidas com 6 canhões e foram reformadas entre 1822-1823, pelo
engenheiro Conrado Jacob Niemeyer.

F) Trincheiras de Porto de Galinhas


Essas trincheiras, segundo o que foi retratado e a legenda das plantas, tinham anexo um
armazém ao qual eram estocadas as caixas de açúcar dos engenhos da região de Ipojuca, e um
trapiche para embarque e desembarque não só de açúcar.

Não é a primeira vez que é mencionada uma fortificação em Ipojuca, segundo Nieuhof
(1981: 162-163), sob o comando do tenente-coronel Haus começou a ser erguida uma
fortificação na região em 1645.

Essas trincheiras estavam quase destruídas no séc. XIX, mas foram reconstruídas por
Conrado Jacob Niemeyer, convém lembrar que o mesmo reformou a fortificação que existia na
148
Ilha de Santo Aleixo, que no início do séc. XIX, era armada com 3 peças de artilharia.
G) Fortim e trincheiras de Catuama

Essa fortificação data do período holandês, foi mencionado em relatórios e mapas deste
período, e segundo documentos do AHU, ainda estava em atividade no final do séc. XVII e
início do XVIII.

Nas plantas, ele apresenta a forma de revelim, com duas baterias anexas, no mapa que
se encontra na Biblioteca Nacional, apresenta a seguinte legenda: “ Na trincheira da barra de
Catuama, 3 peças de artilharia”.

Pesquisas arqueológicas na localidade identificaram vestígios de possíveis estruturas


que pertenciam a essa fortificação

H) Forte São Francisco Xavier e trincheiras da praia

Essa fortificação possui uma série de problemas relacionadas a sua origem, em sua
maioria, os autores datam a fortificação ao período holandês, mas Mello Neto (1981) e Rocha
(2017), bem possivelmente não data deste período, exemplo disso é o trecho mencionado acima
da carta de Felipe IV ao conde de Torre, na qual recomenda que se procedesse o desembarque
na praia de Gaibu, o que sugere que possivelmente era um trecho desprotegido.

Mello Neto, continua a descrever que após recomendações de Luís Francisco Pimentel,
a área recebeu uma fortificação, mas a mesma se localizava na região da praia, a suspeita surge
quando se analisam as plantas, e as mesmas assinalam que a “bateria anciã”, o forte São
Francisco Xavier, estão assinalados em um baluarte que estava na praia e não no alto do monte,
que aparece como “monte fortificado”.

As trincheiras retratadas tomam uma grande área das praias vizinhas, já que subentende-
se pelos documentos e pelas plantas que elas iriam até a praia do Xaréu, mostrando um cuidado
para evitar pontos cegos.

Dois documentos indicam a evolução desta estrutura defensiva, o primeira é a “idéa da


população de Pernambuco (...) em 1774”, que descreve que:

Na enseada do Gaibu, podem dar fundo embarcações, e haver desembarque,


razão por que o governador que foi desta capitania Luís Diogo Lobo da Silva,
mandou levantar um reduto sobre o penedo alto com quatro peças de artilharia
(cujo reduto se acha incompleto) (...). (IDÉA, 1918: 43)
Em 1799, José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, faz o “Mappa
topographico do lugar do Gayabú : no qual se mostra o plano do Reducto de N. S. do Monte 149
do Carmo e St. Thomé, sobre a Ponte do Gayabú (...)” no qual descreve um fato interessante:
“Teve princípio a obra deste reduto e quarteis a 20 de novembro de 1797, e terminou em
Janeiro de 1799 (...) ” o que mostra que a fortificação hoje em ruina sobre o afloramento
rochoso é originaria do séc. XVIII. Neste mesmo documento existe topônimos locais como:
“calhetinha”, “ponta do rapa” e “estrada do boto”, que até hoje são mantidos pela população
local, já outros como o riacho do “Macayo”, foi transformado em um canal de esgoto.

I) Sistema defensivo entre a enseada de Jaraguá e Pajuçara (Alagoas)

Nesta coleção possui duas “duplas” relativas a essas fortificações: Um forte construído
na ponta de Jaraguá com suas trincheiras e baluartes, feito em faxina e estacadas, em um local
que poderia observar ambas enseadas, e duas plantas, dedicadas a um reduto na região sul da
enseada de Jaraguá, contudo, as duas plantas possuem singulares diferenças entre elas.

Essas fortificações ficaram sobre a responsabilidade do mestre de campo Luís Xavier,


mas as plantas, como mencionado acima, mostram uma singular simplicidades, que as
diferenciam das demais, exceto a “dupla” de plantas relativas ao forte de Catuama.

O interessante é que esse forte também sobreviveu, pois na “planta das enseadas de
Jaragua e Pajusara” de Jose Fernandes Portugal, feita em Pernambuco no ano de 1803, ele é
marcado na ponta, entre as enseadas.

Não sabemos se possui ligação com o forte de São Pedro, que segundo Barreto (2014:
96), feito em taipa de pilão na região do porto de Jaraguá, mas somente através do estudo da
evolução urbana e do porto, com base em sobreposições de plantas chegaremos ao uma
resposta.

Considerações Finais

A missão deste trabalho é trazer a toma um episódio que impactou o sistema defensivo
da capitania, mas que era quase desconhecido, servido como guia para trabalhos sejam de
história como de arqueologia, sobre as fortificações aqui apresentadas, como para dados sobre
a influência da guerra dos Sete Anos no Brasil, as novas diretrizes do exército português na
colônia e os personagens envolvidos neste evento, abaixo encontra-se o mapa que descreve
algumas fortificações e seus apetrechos12.

150
12
Essa “relação” faz parte de um documento que possui 8 mapas e relações sobre os assuntos administrativos do
governo de Luís Diogo Lobo da Silva em Pernambuco (1756 -1763), sendo que nesta relação não consta algumas
Quadro 1: Relação de toda a artilharia e morteiros, pertencente ao governo de Pernambuco, Capitanias
anexas e das fortalezas e portos que lhe respeitão, na qual se compreendem 336 peças e 3 morteiros em
que se acham 27 diversos calibres, e entre todas só 105 e os 3 morteiros de bronze por serem todas as
mais de ferro.

Na praça da casa de residência do governo 2


No forte do Brum cito13 na marinha fronteiro a barra 30
No forte do mar cito na barra 7
No forte do buraco cito na marinha que defende a barra 15
No baluarte de N. Snrª do Pilar que defende a barra feito na trincheira que 4
cobre a marinha do Recife do forte do Brum até os quartéis da Junta
No baluarte do senhor Bom Jesus das portas, que defende a barra e uma 6
parte considerável da marinha.
No forte das Cinco pontas, que defende a entrada por terra da praça e a 12
Barreta da parte do sul.
No fortim de S. Francisco de fronte da barra da cidade de Olinda, que se 4
cobriu por toda a sua marinha com trincheira.
Na trincheira do Rio doce que vem dar ao mar com a qual se corta o paço 4
por terra e a da ponte que vem para Olinda
No forte de Pau amarelo cito na marinha de fronte da barra do mesmo 6
nome
No forte da barra de [I]tamaracá 28
Na trincheira da Barra de Catuama 3
Na trincheira de Motocolombó, que serra o paço para a praça do Recife 4
Na trincheira da enseada do Gaibu fronteira a sua barra 4
Na trincheira da ponte14 do monte do Xaréu, que defende a barra e referida 2
enseada do Gaibu
Na trincheira da enseada de Calheta, e ponte do monte que []ota ao mar, 2
e defende a sua barra
No forte da Barra de Nazaré 7
No forte da Barra de Tamandaré 28
Na trincheira da Barra de Jarguai15 3
No forte do Ceará grande 6
No presidio da Ilha de Fernando de Noronha 69
No forte de Cabe[de]lo na capitania da Paraíba 67
No forte dos 3 Reis Magos até a capitania do Rio grande do Norte 14

Total de toda a artilharia de Bronze e Ferro 336

Fonte: CNC_MS618_15_32

fortificações, as quais foram enviadas plantas a metrópole, são elas: As trincheiras da barra da Candelária, a
Trincheira de Porto de Galinhas.
13
Onde se ler “cito” em diversas passagens, podemos ler como: “ situado” ou “se localiza”
14
Onde se ler “ponte”, talvez possa ser interpretado como “ponta” 151
15
Deve-se refere-se a Jaraguá e as estruturas ali presente: fortaleza, reduto ou trincheiras entre as enseadas de
Pajuçara e Jaraguá (Alagoas)
REFERÊNCIAS

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AHU_ACL_CU_015, Cx. 21, D. 1975.

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AHU_ACL_CU_015, Cx. 98. D. 7688.

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Biblioteca Nacional

CNC_MS618_15_32

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154
NOTAS SOBRE A ATUAÇÃO DE FRANCISCO MUNIZ TAVARES NA
ASSEMBLEIA GERAL, CONSTITUINTE E LEGISLATIVA DO IMPÉRIO DO
BRASIL DE 1823.

Fred Cândido da Silva1


Mestrando em História (UFPE)
fredcandidosilva@hotmail.com

Introdução.
Pelas Instruções de 19 de junho de 1822, a província de Pernambuco deveria eleger
treze deputados para a Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Império de 1823, 2 sendo
a segunda província, ao lado da Bahia, com o maior número de representantes, ficando atrás de
Minas Gerais, com vinte.3 Francisco Muniz Tavares, respaldado no §3 do capítulo IV das
Instruções, foi eleito deputado à Assembleia Constituinte de 1823, que assegurava a
participação dos eleitos, ainda que estivessem nas Cortes Gerais, Extraordinárias e
Constituintes da Nação Portuguesa de 1821-1822, em Lisboa.4 Muniz Tavares tinha tomado
assento nas Cortes da Nação Portuguesa, juntamente com os deputados pernambucanos, em 29
de agosto de 1821, logo depois de ser libertado da prisão por conta da Revolução Pernambucana
de 1817, pela mesma corte, em 1822.5 Estando no Brasil, em 1823, se fez presente na
Assembleia Constituinte desde a primeira sessão preparatória em 17 de abril, fazendo parte de
uma das duas comissões responsáveis por verificar os diplomas dos deputados eleitos. 6

1
Agradeço ao CNPq pelo apoio financeiro para esta pesquisa.
2
Por conta da extensão da denominação da Assembleia, ao longo do trabalho nos referiremos como “Assembleia
de 1823”. Sobre esta assembleia consultamos os Annaes do Parlamento Brazileiro da Assembléa Constituinte
[sic], os quais citaremos ao longo do trabalho como Anais da Assembleia de 1823, constando a data da sessão, o
tomo e a página. Esta documentação se encontra no Arquivo Histórico da Câmara dos Deputados Federais,
Brasília. Disponível em: https://arquivohistorico.camara.leg.br/index.php/assembleia-geral-consituinte-e-legislat
iva-do-imperio-do-brasil-1823, consultados entre 02/07/2018 e 04/11/2018.
3
Coleção das Leis do Império do Brasil (1822). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1887. Instruções, a que se
refere o Real Decreto de 3 de Junho do corrente ano que manda convocar uma Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa para o Reino do Brasil. 19 de Junho de 1822, pp.42-49, p. 46. Toda documentação referente às leis,
alvarás, decisões, decretos etc. foi consultada na Coleção das Leis do Império do Brasil, referentes a vários anos,
disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/publicacoes/doimperio. Para a lista
dos deputados eleitos por Pernambuco ver: RODRIGUES, José Honório. A Assembleia Constituinte de 1823.
Petrópolis: Ed. Vozes, 1974, p. 303. No apêndice desta mesma obra há uma cópia dessas mesmas Instruções, em
que informa incorretamente que o número de representantes por Pernambuco seria de 15, p. 296.
4
Sobre as Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa de 1821-1822, ver: CARVALHO,
Manuel E. G. de. Os Deputados Brasileiros nas Cortes Gerais de 1821. Brasília: Edições do Senado Federal,
vol. 12, 2003 (1912). BERBEL, Márcia R. A nação como artefato: deputados do Brasil nas Cortes Portuguesas.
1821-1822. São Paulo: Hucitec, 1998. 155
5
CARVALHO, Manuel E. G. de. Op. cit., p. 92.
6
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 17 de abril, tomo I, p. 01.
Muniz Tavares participou de várias discussões e propôs alguns projetos. Para o escrito
que se segue tivemos de fazer escolhas dado o volume da documentação referente às sessões
na Câmara, dado o objetivo de tentar encontrar na sua participação – ainda que não englobe
toda ela – referências sobre suas ideias inseridas nas modificações do período, e o espaço textual
disponível. Desse modo, optamos por elencar algumas discussões, todas antecedentes ao
projeto da constituição. A primeira se refere ao discurso de D. Pedro, proferido na abertura dos
trabalhos da Assembleia; a segunda diz respeito à lei de anistia, proposta pelo deputado do Rio
Grande do Sul Antônio Martins Bastos; a terceira, sobre o projeto de lei acerca das sociedades
secretas, proposta pelo deputado João Antônio Rodrigues de Carvalho; e a quarta, ao projeto
proposto pelo próprio Muniz Tavares, sobre a naturalização dos portugueses.

Francisco Muniz Tavares em alguns projetos na Assembleia de 1823.


Uma discussão exposta na sessão do dia 06 de maio pode ser representativa daquilo que
iria culminar com a dissolução da Assembleia em 12 de novembro, com a cisão entre o
imperador e a Assembleia. Esta cisão tem um exemplo prático nas discussões acerca do discurso
de D. Pedro, proferido na Assembleia em 03 de maio, o qual constou da afirmação de que
defenderia a constituição se ela fosse digna do Brasil e dele mesmo.7 Não obstante, discordando
de uma concepção teleológica da história, compreendemos que a única opção ao longo da
assembleia para o imperador, obviamente, não era a cisão entre os dois. Entretanto, ao
analisarmos a totalidade de seus Anais, percebe-se que eles fornecem vestígios acerca dos
conflitos com D. Pedro desde o início de seu funcionamento. Como notara Honório Rodrigues:
“A Assembleia Constituinte oferecia o perigo de arrogar-se, como se arrogará, a encarnação da
soberania nacional, sobrepondo-se ao príncipe, Defensor Perpétuo”.8
A discussão se inicia a partir da interpretação do deputado José Custódio Dias sobre a
fala de D. Pedro. Demonstra o deputado uma valoração excessiva do imperador a si mesmo,
em detrimento da importância da Assembleia, como representante da “população” e daquilo
que ela estava incumbida de criar. Na opinião de Dias, a “dignidade” da constituição a ser criada
perante a nação só poderia ser assim julgada pela própria Assembleia, e não por D. Pedro, do
contrário, poder-se-ia haver invasão de poderes. O que se sobressai nas entrelinhas dos dizeres
de Dias, também ditas explicitamente pelo imperador, é uma alusão à equidade dos poderes,

156
7
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 03 de maio, tomo I, p. 16.
8
RODRIGUES, José Honório. Op. cit., p. 22.
isto fica claro quando Dias questiona: “Demais, se nós confiamos tudo dele, porque não confia
ele também tudo de nós?”9
Muniz Tavares, que tinha discursado antes de Custódio Dias, defendera a supremacia
do imperador frente aos outros poderes. Para ele, a constituição construída só teria vigência
com a assinatura de D. Pedro. Posteriormente, em resposta ao argumento de José Antônio da
Silva Maia, que se deveria convidar o imperador para ir novamente à Assembleia para fornecer
bases para a constituição que viria a ser criada, com o intuito de torná-la “digna” dele, Muniz
Tavares retruca com veemência:
Sr. presidente, nós fomos eleitos para fazer uma constituição; e para a
fazermos não se nos mandou pedir bases; uma proposição tal não deve jamais
consentir-se que passe entre nós. Se o monarca por infelicidade nossa, (o que
não creio) julgar que a constituição, que com desvelo pretendemos fazer, não
merece a sua aprovação, ele seguirá o que a sua consciência lhe ditar; preferirá
antes deixar de reinar entre nós; fará o que a prudência lhe aconselhar,
entretanto que nós vamos também fazendo aquilo de que somos incumbidos .10

Logo após esta fala, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva toma a palavra
para concordar com Muniz, dizendo: “mas irmos mendigar suplicantes as bases da constituição,
nunca o admitirei”. Mais ainda, tenta informar os deputados as principais funções daquela
assembleia: “A nação, Sr. presidente, elegeu um imperador constitucional, deu-lhe o poder
executivo, e o declarou chefe hereditário; nisto não podemos nós bulir; o que nos pertence é
estabelecer as relações entre os poderes, de forma porém que se não ataque a realeza”.11
Relação de poderes que não chegou a ser equalizada, pois no momento em que o
imperador viu suas prerrogativas sob ameaça, estabeleceu o fechamento da Assembleia,
sobrepondo-se ao poder legislativo, fugindo assim das expectativas de parte dos deputados que
acreditavam no aceitamento da Constituição pelo imperador. Talvez, esperava-se que a atitude
de D. Pedro seria a de deixar de reinar como dissera Muniz Tavares no trecho acima. De todo
modo, este é um exemplo de como já no início dos trabalhos da assembleia a relação conflituosa
com o imperador foi se instalando. Nas palavras de Honório Rodrigues:
Desde então está estabelecido este conflito entre os que consideram a assembleia a
fonte de todo o poder, recebido diretamente do povo, e os que acham que o imperador
é um poder senão superior, pelo menos igual. [...] Mas o conflito ficará vivo e latente,
não até a dissolução, mas até a abdicação.12

9
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 06 de maio, tomo I, pp. 23-24. Quanto à fala de D. Pedro que denota
equidade entre os poderes, ver: Anais do Império, sessão de 03 de maio, tomo I, p. 16.
10
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 06 de maio, tomo I, p. 24. 157
11
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 06 de maio, tomo I, pp. 24-27.
12
RODRIGUES, José Honório. Op. cit., p. 44.
Quanto a Muniz Tavares, seus posicionamentos, que denotam defesa ao príncipe,
somados a sua não participação na Confederação do Equador, irão lhe render críticas por Frei
Caneca no Typhis Pernambucano, acusando-o não sem razão de ser monarquista e contra as
revoluções, como veremos na próxima seção. Por outro lado, seus posicionamentos também
demonstram suas articulações sociais e políticas, na medida em que compartilha das mesmas
ideias de outros componentes. Tomemos essa assertiva mais de perto.
Na segunda sessão, o deputado eleito pelo Rio de Janeiro, Antônio Luiz Pereira da
Cunha, futuro marquês de Inhambupe, solicitara a instalação de uma comissão de constituição,
responsável pela apresentação do projeto das atribuições do texto constitucional. Na votação
para a composição desta comissão foram eleitos sete deputados, Muniz Tavares se elegeu com
16 votos. Infere-se se sua eleição demonstra sua articulação político-institucional para além dos
deputados pernambucanos, pois, o número de votos recebidos por ele ultrapassa o número de
deputados desta província?13 A hipótese para esta questão é que as ligações de Muniz Tavares,
que possibilitaram sua articulação político-institucional, foram estabelecidas antes mesmo da
primeira sessão na Assembleia de 1823, dada a participação, nesta mesma assembleia, de
deputados representantes de outras províncias que também participaram das Cortes Gerais em
Lisboa.
A exemplo disso, se tomarmos como referência a comissão da constituição de1823, que
fora composta de sete deputados, e compararmos com os também sete deputados brasileiros às
Cortes de Lisboa que assinaram os manifestos de 20 e 22 de outubro de 1822, em Falmouth,
vê-se que dois deles – Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva e José Ricardo da
Costa Aguiar e Andrada – participaram de ambos os momentos. Embora em nenhum dos dois
manifestos apareça a assinatura de Muniz Tavares, Pereira da Costa afirma que Muniz “[...]
firmou com eles o célebre manifesto de 22 de outubro de 1822”.14 Se ampliarmos o foco, será
possível visualizar que mais deputados participaram das duas legislaturas, como Pedro de
Araújo Lima, que ainda que seu nome não se vincule aos manifestos de Falmouth, ele foi um
dos deputados eleitos pela província de Pernambuco para as Cortes em Lisboa, e fizera parte da

13
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 05 de maio, tomo I, p. 22.
14
COSTA, Francisco A. P. da. Dicionário biográfico de pernambucanos célebres. Recife: Ed. Fundarpe, Coleção
Recife, vol. XVI, 1982 (1882), p. 344. Para os manifestos em Falmouth, ver o periódico: Correio Braziliense ou
Armazém literário: “Protesto dos deputados de São Paulo, abaixo assinados” e “Declaração de alguns deputados
do Brasil, nas Cortes de Portugal, que de Lisboa se passaram à Inglaterra”. Vol. XXIX, nº 174, novembro de 1822, 158
pp. 530-539. Consulta efetuada por meio da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional:
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acessado em 17 de outubro de 2018.
comissão de constituinte de 1823.15 O projeto viria a ser apresentado na sessão de 01 de
setembro, constando de 272 artigos, dos quais, foram aprovados 24 até 11 de novembro. 16

*****
Na sessão de 05 de maio, o deputado pelo Rio Grande do Sul Antônio Martins Bastos
propôs que se nomeasse uma comissão para anistiar todos os sujeitos que tinham tido alguma
espécie de expressão contra a independência. No dia 09, Martins Bastos apresenta o projeto.
Proponho: 1º Que se conceda plena, e completa anistia a todos aqueles que
direta, ou indiretamente se tenham envolvido em objetos políticos, pelo que
respeita à sagrada causa da independência e ao sistema de governo
monárquico constitucional que felizmente temos adotado; quer se achem
presos, ausentes ou expatriados. 2º Que a presente anistia seja extensiva a
todas as pessoas, contra quem se tenham já começado processo, ou
pronunciado sentenças.17

O projeto começou a ser debatido em 21 de maio, com poucos defensores e muitos


avessos por vários motivos. Martim Francisco Ribeiro de Andrada acreditava que, a
Assembleia, ao aprovar tal projeto, estaria avançando para além de suas atribuições, pois, “[...]
o direito de agraciar compete ainda ao monarca”. Já José Martiniano Alencar defendia que o
projeto poderia ser aprovado como medida de prevenir revoluções, acreditava ele que as
punições seriam motivos de ações de rebeldia contra o Império brasileiro.
Por seu turno, Andrada Machado, que fizera o discurso mais longo em relação à matéria
da anistia, votou contra o projeto por três motivações: a primeira, seria a de que feria-se a lógica
crime e punição dos atos, que o transgressor deveria cumprir a pena pelo que fez; a segunda,
por ser impolítico nas condições de conflitos que algumas regiões ainda estavam passando; e a
terceira, por crer que haveria um conflito entre o monarca e a Assembleia, caso o projeto fosse
aprovado.18 Quanto a Muniz Tavares, ele acreditava que se o projeto fosse aprovado, traria
graves incômodos, e demonstrou que sua maior preocupação não era com o Império, mas com
a província de Pernambuco:
O que digo, é, que se certos homens voltarem a Pernambuco, não sei, o que
será daquela província. [...] logo que é solto das prisões desta corte, voltando
a Pernambuco, promove ali imediatamente a revolta, a sedição, e anarquia?
Ah! Sr. Presidente? [sic] Causa-me horror só ouvir falar em revolução;
exprimo-me francamente como um célebre político dos nossos tempos – Les

15
CARVALHO, Manuel E. G. de. Op. cit., p. 92; Anais da Assembleia de 1823, sessão de 05 de maio, tomo I, p.
22.
16
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 01 de setembro, tomo V, pp. 06-16. 159
17
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 05 e 09 de maio, tomo I, pp. 21 e 40 respectivamente.
18
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 21 de maio, tomo I, pp. 83-88.
revolutions me sont odieuses parce que la liberte m’est chere19 – odeio
cordialmente as revoluções, e odeio-as, por que amo em extremo a liberdade;
o fruto ordinário das revoluções é sempre, ou uma devastadora anarquia, ou
um despotismo militar crudelíssimo; a revolução sempre é um mal, e só a
desesperação faz lançar mão dela, quando os males são extremos. 20

No seu dizer, Muniz Tavares deixa claro seu posicionamento contra as revoluções,
fundamentando assim as críticas efetuadas por Frei Caneca em 1824.21 Obviamente que a
preocupação com a província que estivera representando não foi exclusividade de Muniz
Tavares, muito embora na discussão dessa matéria pareça ser. Esse bairrismo na Assembleia de
1823, como assim chamou Honório Rodrigues, fica mais claro nas discussões sobre a
implementação de uma universidade no Império – algo que não será tratado no presente trabalho
–, quando os deputados solicitam a instalação em suas respectivas províncias, salvo algumas
exceções.22 Transcendia assim os sentimentos provinciais, em detrimento das aspirações
nacionais que a assembleia teria de cumprir.
Na continuidade da discussão sobre a anistia, no dia 22 de maio, José Custódio Dias
interrogara os deputados se a Assembleia tinha o poder para concedê-la. Talvez, impelido pela
fala de Martim Francisco no dia anterior – “[...] o direito de agraciar compete ainda ao monarca”
–, Dias tenha suscitado a dúvida, daí sua proposta de primeiro analisar se os constituintes tinham
tal poder, para depois votarem a favor ou contra o projeto de Martins Bastos. No entanto, essa
proposta foi duramente criticada por Muniz Tavares, alegando que se deveria votar tão logo em
relação ao projeto, caso fosse aprovado, verificaria sua validade.23
O que transparece nesta discussão é a relação conflituosa de poderes e atribuições
envolvendo o legislativo, na forma da Assembleia, e o executivo, na pessoa do imperador. A
dúvida girava em torno de quem poderia conceder a liberdade aos sujeitos, se os deputados ou
o príncipe regente, embora, de todo modo, a concessão teria de passar pela assinatura do
imperador, até porque, ela requeria necessariamente o seu perdão. Com isso, a primeira
preocupação por parte dos deputados era saber se D. Pedro iria aceitar tal projeto se ele tivesse
aprovação na Assembleia, a segunda, era se caso ele não aceitasse, quais conflitos surgiriam

19
Esta frase está contida na obra de Henri-Benjamin Constant de Rebecque. Des Réactions politiques, In:
__________________. Cours de politique constitutionnelle. Bruxelles: Société Belge de Libraire, Imprimerie,
Papeterie, etc. Hauman, Cattoir Et Comp e. 1837, p. 469. Este texto foi publicado primeiramente em 1797.
Acessado por meio do Google books, em 18 de outubro de 2018.
20
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 21 de maio, tomo I, p. 90.
21
Cf. CANECA, frei Joaquim do A. D. Typhis Pernambucano. In: MELLO, Antônio Joaquim de. Obras
políticas e literárias de frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Recife: Tipografia Mercantil, vol. II, 1876, os
números do Typhis são: IX, 26 de fevereiro, pp. 475-477; XI, 11 de março, pp. 489-495; XIII, 1 de abril, pp.
507-516; XV, 15 de abril, pp. 524-530. Todos de 1824. 160
22
RODRIGUES, José Honório. Op. cit., pp. 84-99.
23
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 22 de maio, tomo I, p. 93.
dele com os deputados, e qual interpretação ele faria dessa proposta, já que envolvia diretamente
sujeitos que atuaram de alguma forma contra suas ações. Era uma linha tênue entre a harmonia
e o conflito no início do estabelecimento da Assembleia Constituinte.
Boa parte dos deputados acreditava que a Assembleia tinha o poder de conceder a anistia
e que deveria votar sobre ela, mas, também tinham a convicção de que aquele não era o
momento mais oportuno para sua aprovação, o discurso do padre Venâncio Henriques Rezende
exemplifica bem isto.
A anistia é de absoluta necessidade quando, depois de uma grande luta em que
grandes partidos se chocaram, e foram-se às mãos, [sic] estando tudo já
tranquilo, é preciso opor uma carreira à geral perseguição de uma parte do
povo contra a outra. A nossa luta continua ainda: a Bahia está como se sabe;
o Piauí em briga; o Pará e Maranhão não tem ainda aderido [à independência];
a extremidade do Sul também convulsa; e nossos inimigos ainda com
proporções para perturbar-nos.24

Esta afirmação concorria com a segunda motivação apresentada por Andrada Machado,
de que naquele momento era impolítica a aprovação do projeto, sendo rejeitado por 35 votos
contra 17 que passasse para segunda discussão.25 No meio dos debates deste projeto, foi
apresentado outro, que também levava em consideração uma espécie de anistia, o projeto sobre
as sociedades secretas, que ao contrário do de Martins Bastos, tomou bastante tempo da
Assembleia de 1823.

*****
Em 30 de março de 1818, o então rei D. João VI baixava um alvará em que tornava
“criminosas e proibidas todas e quaisquer sociedades secretas de qualquer denominação que
elas sejam, ou com os nomes e formas já conhecidas, ou debaixo de qualquer nome ou forma,
que de novo se disponha ou imagine”.26 Após cinco anos de contínua aplicação, este alvará foi
posto em xeque na Assembleia de 1823 pelo deputado cearense João Antônio Rodrigues de
Carvalho, que argumentara que o mesmo tinha como uma das motivações principais de sua
criação a Revolução Pernambucana de 1817, a qual tinha contado com vários componentes
dessas sociedades.27
Ao apresentar o projeto de decreto que revogaria o alvará de 1818, Rodrigues de
Carvalho suscitou uma grande discussão. Apresentou três artigos, o primeiro contendo a

24
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 22 de maio, tomo I, pp. 93-95.
25
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 22 de maio, tomo I, p. 100.
26
Coleção das Leis do Império do Brasil (1818). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889. Alvará de 30 de 161
março de 1818, que proíbe as sociedades secretas de baixo de qualquer denominação que seja, pp. 26-28, p. 26.
27
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 17 de maio, tomo I, p. 62.
revogação; o segundo propunha a anulação dos processos em andamento e os que já tinham
sido decididos, e deixava explícito o caráter retroativo de sua proposta; e o terceiro,
demonstrava que tal decreto seria uma decisão provisória, tendo a Assembleia de estabelecer
uma lei que regulamentaria as sociedades secretas posteriormente. Em meio à discussão do
caráter emergencial da proposta, mais uma vez surgiram as dificuldades em estabelecer os
limites das prerrogativas da Assembleia, que se supunha adentrar nas atribuições do poder
judiciário na medida em que dava o caráter de retroação ao projeto. 28 A matéria se tornou de
caráter urgente. Embora Muniz Tavares tenha votado contra tal urgência, defendeu o projeto de
Rodrigues de Carvalho, mas ao que parece, com receios, disse Muniz Tavares:
Sim senhores, o alvará de 30 de março de 1818 é a prova mais decisiva do
aviltamento a que tínhamos chegado; ele é o detestável estigma da nossa
antiga escravidão, escravidão que não voltará jamais, é preciso portanto fazê-
lo desaparecer para sempre dentre nós, e com isso temos conseguido não
pouco. Falando eu, porém, desta maneira, poder-se-ia julgar a primeira vista
que sou o elogiador das sociedades secretas; não, Sr. presidente, não sou nem
posso ser, tendo a ventura de viver presentemente em um país livre; eu falo
somente contra a desproporção das penas impostas no precipitado alvará, falo
contra essa barbaridade que a legislação filosófica tanto condena, e com
razão.29

Na primeira sentença transcrita acima, Muniz Tavares ataca de forma veemente o alvará.
Defende sua eliminação, comparando o tolhimento da liberdade proporcionado pelo documento
com o regime da escravidão. Talvez, não devêssemos esperar o contrário de uma defesa dessas
em se tratando de um sujeito que possuía ligações com indivíduos que se reuniam em
sociedades secretas. Em 1817 Muniz Tavares era capelão da agonia do Hospital de Nossa
Senhora do Paraíso, o qual teria servido como local de reuniões envolvendo os participantes da
Revolução Pernambucana deste ano. As chamadas academias, tanto a do Paraíso, quanto a dos
Suassunas, lembra Dennis A. de M. Bernardes, para o movimento de 1817, foram importantes
núcleos de sociabilidade em Pernambuco, nos quais, Muniz Tavares esteve inserido. 30 Mais

28
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 07 de maio, tomo I, pp. 34-36.
29
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 17 de maio, tomo I, p. 62.
30
Cf. BERNARDES, Denis A. de M. O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São Paulo:
Hucitec, 2006, pp. 151-187. Segundo Bernardes, as academias seriam núcleos de sociabilidade política e
intelectual, que difundiam conhecimento entre seus participantes. Foram também redutos para conspirações e
para a própria Revolução de 1817. Alguns dos seus componentes eram Domingos José Martins – “líder” da
revolução –, padre João Ribeiro Pessoa de Mello Montenegro – que em 1817 era o administrador do Hospital do
Paraíso –, e os irmãos Suassunas, responsáveis pela conspiração de mesmo nome em 1801 e participantes em
1817. Sobre os irmãos Suassunas e essa conspiração ver: CADENA, Paulo H. F. Ou há de ser Cavalcanti, ou há
de ser cavalgado: trajetórias políticas dos Cavalcanti de Albuquerque (Pernambuco, 1801 – 1844). Recife: Ed.
UFPE, 2013; Coleção Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Ministério da Educação e Cultura, divisão
de obras raras e publicações, vol. CX, 1955. Em especial a Explicação da Conspiração dos Suassunas, escrita 162
por José Honório Rodrigues, pp. 02-14. Consulta efetuada por meio da Hemeroteca Digital da Biblioteca
Nacional.
tarde, em 1840, quando ele publica seu livro sobre a Revolução de 1817, dirá que para este
movimento as lojas maçônicas em Pernambuco, já em 1816, também foram importantes. Ao
todo eram quatro sob a direção da Grande Loja Provincial.31
Todavia, parece que Muniz Tavares tinha receio em defender as sociedades secretas, e
isso é perceptível na segunda sentença transcrita acima, quando afirma que parece ser um
elogiador. Contudo, ele consegue defender seu argumento ao dizer que acredita em uma
desproporcionalidade das penas impostas frente ao crime cometido, algo que foi discutido ao
longo dos debates sobre o projeto de Rodrigues de Carvalho.
Comparando os projetos de Martins Bastos, discutido anteriormente, e o de Rodrigues
de Carvalho, se no primeiro a anistia foi negada, no outro, “os processos pendentes em virtude
do mesmo alvará ficam de nenhum efeito, e se poriam em perpétuo silêncio, como se não
tivessem existido”. Porque posicionamentos distintos tanto de Muniz Tavares quanto de outros
deputados em relação às duas matérias? Uma resposta simples para os dois posicionamentos é
o de que no caso do projeto de Martins Bastos estariam anistiando sujeitos que lutaram contra
a independência, e no de Rodrigues de Carvalho, sujeitos que não representavam ameaças, por
talvez, terem atuado em prol da independência ou por tais sociedades não serem úteis, em
relação a este ponto, isto fica claro em uma fala do autor do projeto: “É preciso que eu confesse
que não gosto de sociedades secretas, já fui membro de uma, nunca lhe achei utilidade: os
membros que eram bons, bons continuavam a ser, e os que eram imorais persistiram em sua
conduta; não vi pois que os maus se tornassem melhores”.32
Importante ressaltar que embora o texto final do projeto de Rodrigues de Carvalho não
deixe claro se teria caráter retroativo, este foi adotado pelos deputados. O primeiro texto teve
em seu artigo segundo a informação clara da retroação, porém, nas discussões, os deputados
preferiram retirar do texto final, já que no primeiro artigo informava a revogação do alvará e
que com isso, ficava subentendido o caráter retroativo do mesmo, no entanto, a constituição
dessas sociedades continuava sendo proibidas, como mostra o artigo terceiro.33
A bem da verdade, o artigo segundo foi o ponto mais discutido em relação a este projeto.
Na sessão de 02 de junho, Muniz Tavares, com outros deputados, declarou que tal artigo não
deveria passar para segunda discussão, ainda que tivessem as últimas palavras suprimidas –

31
TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução de Pernambuco em 1817. Recife: Cepe, 5º edição, 2017
(1840), pp. 128-129.
32
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 20 de maio, tomo I, p. 76. 163
33
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 17, 20 e 31 de maio, tomo I, pp. 66-68, 77-79, 144-148
respectivamente.
justamente referentes ao efeito retroativo. 34 Tal declaração não obteve sucesso, passando o
artigo para segunda discussão e sendo sancionado, até mesmo com voto favorável de Muniz
Tavares.
Quanto ao projeto como um todo, se Rodrigues de Carvalho apresentou somente três
artigos para ser debatidos, com o enfoque na revogação do alvará, a Assembleia acabou criando
uma lei mais extensa sobre as sociedades secretas, contendo dez artigos, definindo o que seria
uma sociedade secreta e até mesmo as punições para os membros das mesmas, o que acabou
tornando a discussão bastante longa, finalizada somente em 04 de setembro.35

*****
Após o sete de setembro de 1822, em 18 do mesmo mês e ano, o príncipe regente baixou
um decreto informando que todo português que abraçasse a causa brasileira deveria usar por
distinção um símbolo no braço esquerdo, contendo a frase “Independência ou Morte”, e todo
aquele que fosse contra possuiria um prazo para deixar o país.36 Por este decreto, D. Pedro não
só tentava apaziguar a relação com os portugueses, como também reconhecia o perigo que os
sujeitos contrários à independência representavam ao propor a saída deles. Em 14 de janeiro de
1823 é publicado outro decreto, regulamentando a entrada dos portugueses ao Brasil,
solicitando a comprovação de comportamento idôneo e o juramento de fidelidade ao Brasil e
ao imperador.37 Muniz Tavares, que vivenciara a aversão aos portugueses no Pernambuco de
1817 e a dos portugueses aos brasileiros nas Cortes Gerais em Lisboa, apresentou na
Assembleia de 1823 um projeto que seguia a mesma direção dos decretos do príncipe. Nas
palavras de Honório Rodrigues, tal projeto mostrava que o ranço de Muniz aos portugueses se
mantinha em 1823.38
Segundo Muniz Tavares, o projeto pretendia “[...] distinguir os bons dos maus
portugueses, e os portugueses ora residentes no Brasil dos que para o futuro vierem residir”. O
projeto constava de quatro artigos. O primeiro informava que os portugueses que residiam no
Brasil, que quisessem permanecer e se comprovasse adesão à independência seriam declarados

34
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 02 de junho, tomo II, p. 01.
35
Para o texto final deste projeto, ver: Anais da Assembleia de 1823, sessão de 01 de setembro, tomo V, p. 03. A
votação da sanção do projeto foi efetuada na sessão de 04 de setembro, tomo V, p. 30. Sua aprovação se deu por
37 votos a favor, 13 contra.
36
Coleção das Leis do Império do Brasil (1822). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, s/d. Decreto de 18 de
setembro de 1822, concede anistia geral para as passadas opiniões políticas; ordena o distintivo –
Independência ou Morte – e a saída dos dissidentes, p. 46.
37
Coleção das Leis do Império do Brasil (1823). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, s/d. Decreto de 14 de
janeiro de 1823, sobre as condições com que podem ser admitidos no Brasil os súditos de Portugal, p. 06. 164
38
RODRIGUES, José Honório. Op. cit., p. 56; Anais da Assembleia de 1823, sessão de 22 de maio, tomo I, p.
91.
cidadãos brasileiros; o segundo, que os que não quisessem permanecer ou tivessem conduta
suspeita teriam três meses após a aprovação do decreto para sair do país; o artigo terceiro
regulava sobre a entrada dos portugueses, informando aos que objetivassem adentrar ao Brasil,
que só poderia se tornar cidadão depois de sete anos de moradia no país e com propriedade
particular, para assim ter acesso a algum cargo; o quarto e último tratava de não revogar o
decreto de 14 de janeiro. Estava claro no projeto que para Muniz Tavares o momento ainda era
bastante conflituoso entre brasileiros e portugueses, e que era necessário tão logo regular a
relação de cidadania entre ambos, já que, atraídos pelo velho hábito, os portugueses poderiam
desfrutar as honras e os empregos que o Império do Brasil oferecia.39
As discussões acerca do projeto de Muniz Tavares se iniciaram em 19 de junho. Embora
o autor afirmasse que em sua proposta seria possível ver moderação e generosidade, ele foi
duramente criticado. O padre Henriques de Rezende questiona como seria possível aos
portugueses fornecer provas que comprovassem sua vontade em permanecer e sua adesão à
independência? Questionamento que se torna recorrente nas discussões. 40
Logo depois da fala de Henriques de Rezende, José Martiniano Alencar lembra que no
início de 1822 eram todos portugueses os que residiam na América lusa, e que não somente os
nascidos nesta parte do império luso teriam auxiliado no processo de ruptura, mas também
vários nascidos em Portugal, que acabaram automaticamente se tornando cidadãos brasileiros.
Alencar também questiona quem julgaria as mostras de adesão? Termina por afirmar que Muniz
Tavares não só estava representando os nascidos no Brasil, mas também vários de Portugal. 41
É de se notar que nesta primeira discussão os deputados tratam da matéria como se já
estivessem no segundo debate, analisam artigo por artigo, algo percebido por Muniz Tavares,
que lembra que os deputados “[...] deveriam se limitar a considerar se a medida era útil ou não”
naquele momento, mas não tendo sido feita dessa forma pelos outros deputados, Muniz Tavares
sentiu-se no direito de responder de igual maneira. Partindo do primeiro artigo, afirmara que
em toda nação, para se obter o foro de cidadão, era necessário demasiado sacrifício. 42
Em relação ao segundo artigo, a afirmação que encadeia toda sua defesa é a de que
“quem quer os fins, quer necessariamente os meios”. A argumentação se fundava, sobretudo,
na ideia de que para se obter progressão com a independência, e colhimento de bons frutos

39
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 22 de maio, tomo I, pp. 91-92.
40
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 19 de junho, tomo II, p. 78.
41
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 19 de junho, tomo II, pp. 79-80. Importante perceber que Alencar
demonstra que Muniz Tavares efetua uma distinção entre brasileiros e portugueses, ainda que não esteja clara no
projeto, por meio do local de nascimento, enquanto o próprio Alencar considera brasileiros também aqueles 165
residentes no Brasil que nasceram em Portugal.
42
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 19 de junho, tomo II, pp. 81-82.
advindos dela, como a consolidação do “sistema monárquico constitucional”, eram necessárias
algumas medidas extremas, pois, haviam ainda portugueses que conspiravam em favor do
domínio luso no Brasil. E de fato haviam, tanto é que o próprio padre Henriques de Rezende,
em discurso citado neste trabalho,43 votara contra o projeto de anistia de Martins Bastos por
conta das lutas ainda existentes no Império do Brasil afora. Para Muniz Tavares, parecia que os
deputados tinham se esquecido que o momento ainda era delicado.44 Quanto ao artigo terceiro,
ele esperava que não fosse tão logo combatido, a motivação disso ele deixa clara:
[...] parecia-me que todos nós cansados de suportarmos preterições dos
portugueses, não quereríamos [sic] que os que daqui em diante viessem,
atalhassem a porta franca para um pleno ingresso; [...] consideremos Srs. que
pelo estado, em que se acha Portugal, nós nos havemos de ver cercados de
portugueses solicitando empregos; eles ainda não se desenganaram de que já
perderam o que por tantos anos desfrutaram; todas as precauções a este
respeito não são demasiadas.45

Para Muniz Tavares, o fim de consolidar a independência justificava precauções que


não seriam demasiadas, nem mesmo a expulsão de alguns indivíduos nascidos em Portugal.
Logo, para ele, definir e declarar quem eram os cidadãos seriam tarefas necessárias e urgentes.
É nesse sentido que em um segundo momento da sessão ele questiona os decretos do imperador,
perguntando se deles “[...] se pode[ria] concluir que são cidadãos brasileiros todos os que
ficaram? A lei o declara expressamente? Não; logo é preciso que nós o declaremos”.46
O único a concordar com Muniz Tavares, embora com várias ressalvas, foi Antônio
Carlos Ribeiro de Andrada Machado, que explanou: “[...] A nossa situação é nova, e requer
mais cuidado do que pensamos. [...] Sr. presidente, falemos claro, é quase impossível em regra
que um português possa amar de coração uma ordem de coisas, que implica a ruína da sua pátria
de origem, e nodoa a sua dignidade [sic]”. Andrada Machado foi o único a votar para que o
projeto passasse para segunda discussão, ao que consta nos Anais. Para ele, “o fim do ilustre
autor do projeto é estabelecer que a simples habitação no Brasil não faz brasileiro, e que desde
a independência do Brasil, os portugueses são estrangeiros e não cidadãos”.47 Andrada
Machado achou pertinente a proposta de Muniz Tavares, para ele, o problema maior estava na
forma como o projeto foi exposto e na impraticabilidade de alguns pontos, isto fica claro na
sessão de 25 de junho, diz ele:
Não deixarei de confessar que o 2° artigo é escuro e o terceiro impraticável
[sic]; mas também não pode negar-se que redigido por diverso modo, não será,

43
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 22 de maio, tomo I, pp. 93-95.
44
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 19 de junho, tomo II, p. 81.
45
Idem. 166
46
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 19 de junho, tomo II, p. 85.
47
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 19 de junho, tomo II, pp. 85-87.
como se tem dito, nem inútil, nem injusto. [...] Emende-se pois este defeito; e
a esse fim considero precioso o projeto, como reforma desses éditos e
decretos, para se conceder categoricamente os direitos de cidadão aos
portugueses que abraçaram a nossa causa.48

Ainda nesta mesma sessão, Andrada Machado apresentou uma proposta de emenda ao
projeto de Muniz Tavares, que mais pareceu ser um novo projeto, contendo não mais três
artigos, mas dez, os quais demonstraram ainda mais sua preocupação com a formalidade de
definir quem eram os cidadãos brasileiros.49 No entanto, os discursos inflamados dos
pernambucanos Pedro de Araújo Lima e Manoel Maria Carneiro da Cunha,50 somados ao do
deputado Carneiro de Campos, que até forneceu outra possibilidade – a de haver maior
vigilância da polícia e tornar prisioneiros de guerra aqueles que não aderissem à causa da
independência51 –, ajudaram para que tanto a emenda de Andrada Machado, quanto o projeto
de Muniz Tavares fossem rejeitados, não passando para segunda discussão. 52

Considerações finais.
Podemos retirar inúmeros significados acerca das representações dos deputados. Se por
um lado ainda havia um conflito latente com os portugueses, por outro, havia também o
apaziguamento das relações. Isto fica claro na proposição de naturalização dos portugueses. A
leitura de vários deputados era a de que Muniz Tavares estava atacando os lusos e os seus
direitos naturais. A enorme repulsa deste projeto mostra que os deputados já não viam a relação
de uma forma tão conflituosa, embora ainda houvesse receios aos portugueses. A fala de
Carneiro de Campos no intuito de transformar indivíduos em presos de guerra, a rejeição ao
projeto apresentado por Martins Bastos, dentre outros exemplos, denotam a preocupação com
a solidificação da independência.
Podemos considerar a partir das discussões acerca dos quatro pontos elencados para
análise neste trabalho, que há uma ligação entre eles, principalmente no que tange os três
últimos – projeto de anistia, lei sobre as sociedades secretas, projeto de naturalização dos
portugueses –, dada pelo tratamento dos deputados a cada uma das matérias. Tal ligação é
justamente uma linha tênue acerca do tratamento aos portugueses, que faz surgir o

48
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 25 de junho, tomo II, p. 121.
49
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 25 de junho, tomo II, p. 122.
50
Anais da Assembleia de 1823, tomo II. Para o discurso de Araújo Lima ver sessão de 25 de junho, pp 116-121.
Para o de Carneiro da Cunha ver sessão de 19 de junho, p. 85.
51
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 20 de junho, tomo II, p. 95. Há uma dúvida em relação a quem
proferiu este discurso, pois, a documentação não informa se foi José Joaquim Carneiro de Campos, deputado
pelo Rio de Janeiro, ou Francisco Carneiro de Campos, deputado pela Bahia, já que consta os dois últimos
sobrenomes. Na análise sobre esta matéria em sua obra, Honório Rodrigues também não esclarece a dúvida. 167
RODRIGUES, José Honório. Op. cit., pp. 56-59.
52
Anais da Assembleia de 1823, sessão de 25 de junho, tomo II, p. 122.
questionamento de como equacionar a relação deles com os brasileiros no trato historiográfico?
Para isso, seria necessário primeiramente definir o que seriam considerados portugueses e os
brasileiros, já que se tinham as possibilidades de se levar em conta o nascimento e/ou a
declaração de adesão à independência.
Dentro da conjuntura de libertação ao jugo luso, percebemos que a consolidação do
Império do Brasil se deu sobre bases instáveis. Nas palavras de Muniz Tavares, principalmente
referentes ao projeto de anistia proposto por Martins Bastos, percebe-se o forte provincianismo,
que como dissemos não foi exclusividade dele. Por ser uma assembleia que legislava acerca de
um império recém-constituído, os deputados talvez devessem legislar sobre interesses que
envolvessem todas as províncias, mas isto não foi seguido à risca.
Em relação à estrutura de governo, tão logo Muniz Tavares tomou posição ao defender
a monarquia, demonstrando uma modificação ideológica em relação a 1817, modificação que
foi duramente criticada. Outros deputados seguiram a mesma linha, mas não impediram que
transparecesse a dificuldade em estabelecer os limites de prerrogativas entre a Assembleia e o
monarca. Na análise dos projetos, esta discussão várias vezes esteve presente, demonstrando
mais um ponto de instabilidade após a independência.
Ao defender as sociedades secretas, Muniz Tavares defendia grupos sociais que ele
parecia simpatizar, talvez não pelo caráter conspiratório que alguns vieram a ter, mas por serem
recintos de conhecimento e intelectualidade, como foi no Hospital Paraíso e no Engenho
Suassuna. Muniz defendeu sujeitos que a partir da atuação em grupos intelectuais defrontavam
com o status quo da até então América portuguesa, embora muitas vezes, revestidos do viés
republicano de governo, como ele em 1817, e não monarquista. Possivelmente Muniz Tavares
deduzia isso, logo, não é possível estabelecermos até que ponto ele de fato era um monarquista,
por que se ele defendia as sociedades secretas, sabendo das ideias circulantes nas mesmas,
indiretamente ele defendia alguns princípios republicanos. Obviamente que isso é somente
conjectura a partir dos registros deixados por ele, como seus dizeres e as possíveis redes de
sociabilidade que ele estava inserido, redes nas quais auxiliaram em seu processo formativo
ideológico, ainda mais se tratando de um período de modificações bruscas naquilo que era
América portuguesa e passava a ser Império brasileiro.

Fontes:
Annaes do Parlamento Brazileiro da Assembléa Constituinte [sic]. Arquivo Histórico da 168
Câmara dos Deputados Federais. Brasília, s/d. Tomos: I, II, e V. Disponível em:
https://arquivohistorico.camara.leg.br/index.php/assembleia-geral-consituinte-e-legislativa-do
-imperio-do-brasil-1823. Consultados entre 02/06/2018 e 04/11/2018. Citados como Anais da
Assembleia de 1823.

Coleção das Leis do Império do Brasil (1818, 1822, 1823). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.
Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/publica
coes/doimperio. Consultados entre 06/06/2018 e 04/11/2018.

Coleção Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Ministério da Educação e Cultura,


divisão de obras raras e publicações, vol. CX, 1955. Consulta efetuada por meio da Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/, Acessado em 12
de outubro de 2018.

Correio Braziliense ou Armazém literário: Vol. XXIX, nº 174, novembro de 1822, pp. 530-
539. Disponível em Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional: http://bndigital.bn.gov.br
/hemeroteca-digital/. Acessado em 17 de outubro de 2018.

Bibliografia:
BERBEL, Márcia R. A nação como artefato: deputados do Brasil nas Cortes Portuguesas.
1821-1822. São Paulo: Hucitec, 1998.

BERNARDES, Denis A. de M. O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São


Paulo: Hucitec, 2006.

CADENA, Paulo H. F. Ou há de ser Cavalcanti, ou há de ser cavalgado: trajetórias políticas


dos Cavalcanti de Albuquerque (Pernambuco, 1801 – 1844). Recife: Ed. UFPE, 2013.

CANECA, frei Joaquim do A. D. Typhis Pernambucano. In: MELLO, Antônio Joaquim de.
Obras políticas e literárias de frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Recife: Tipografia
Mercantil, vol. II, 1876.

CARVALHO, Manuel E. G. de. Os Deputados Brasileiros nas Cortes Gerais de 1821. Brasília:
Edições do Senado Federal, vol. 12, 2003 (1912).

COSTA, Francisco A. P. da. Dicionário biográfico de pernambucanos célebres. Recife: Ed.


Fundarpe, Coleção Recife, vol. XVI, 1982 (1882).

RODRIGUES, José Honório. A Assembleia Constituinte de 1823. Petrópolis: Vozes, 1974.

TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução de Pernambuco em 1817. Recife: Cepe,


5º edição, 2017 (1840).

169
PARTE III
DIREITO, JUSTIÇA E ADMINISTRAÇÃO NA
AMÉRICA PORTUGUESA.

CONTROLE E ADMINISTRAÇÃO: AS CORPORAÇÕES DE OFICIO EM RECIFE


E OLINDA ENTRE 1773 – 1802.
Gabriel Felipe de Andrade1
Graduando UPE
g-biel2012@hotmail.com

No início do século XVIII, muitas capitanias se encontravam em evidência, e


Pernambuco era uma delas, isso acontecia devido ao aumento comercial transatlântico, aos
surtos migratórios de portugueses e o aumento constante do tráfico escravo, Kalina Silva, traz
uma abordagem sobre a formação dos centros urbanos do açúcar no primeiro capítulo de sua
tese:
As razões para que o século XVIII se apresente como um momento de considerável
crescimento populacional para a América Portuguesa, estão ligadas a um surto
migratório reinól, ao próprio crescimento interno da população colonial, e ao tráfico
de escravos2

Como podemos observar na citação acima, Silva, traz essa perspectiva em um ambiente
mais amplo, de América Portuguesa, no entanto, podemos fazer um recorte e aplicar a capitania
de Pernambuco. Muitas gentes de cor começaram a fazer parte desse ambiente, temos que ter o
entendimento que não era apenas o tráfico de escravos que tinha aumentado, se trata de um
período onde muitos escravos já haviam comprado sua carta de alforria, alguns eram livres, e
sem ter para onde ir acabavam indo viver como mendigos nas ruas das vilas e cidades
açucareiras3. Todos esses acontecimentos são mais uma causa para a super lotação dessa
capitania, sendo um destaque dentro desta perspectiva de aumento comercial e populacional.

1
Graduando em Licenciatura Plena em História pela Universidade de Pernambuco; Bolsista de Iniciação CNPq.
Orientadora: Kalina Vanderlei Silva (Universidade de Pernambuco; kalinavan@uol.com.br) Doutora em História,
Professora Adjunta da Universidade de Pernambuco, orientadora da pesquisa.
2
SILVA, Kalina Vanderlei. ‘Nas solidões vastas e assustadoras’- Os pobres do açúcar e conquista do sertão de
Pernambuco nos séculos XVII e XVIII.Recife: UFPE, 2003. p. 65. 170
3
SILVA, Kalina Vanderlei. A GENTE DE COR E A VIDA URBANA AÇUCAREIRA: COTIDIANO E
INSTITUIÇÕES EM PERNAMBUCO E BAHIA NOS SÉCULOS XVII E XVIII in, SILVA, Kalina Vanderlei;
Para compreender como funcionavam as vilas e cidades açucareiras, é necessário
entender que se trata de uma sociedade totalmente estratificada e hierárquica, fazendo parte
dessa elite os imigrantes portugueses, senhores de engenho que ao mesmo tempo são
representantes nas câmaras, sendo estes juntamente com o governador, representantes da coroa
na capitania, assim podemos notar uma constante forma de controle de um grupo no domínio
político desses espaços, além desses, também se constituíam como elite os eclesiásticos e todos
os representantes da Igreja Católica.
Muitos destes migrantes portugueses se tornaram comerciantes, um posto indesejado
dentro dessa hierarquia por ser considerado da plebe, no entanto, a maior parte da população é
composta por homens e mulheres, livres, escravos, pretos, pardos, forros, que constituem esses
núcleos, transformando-os em ambientes sociais e culturais miscigenados. Esses povos sem ter
o que fazer ou para onde ir, fazem das ruas seu lugar de trabalho. Entretanto, é importante
compreender que o trabalho mecânico, que vão ser exercidas pelas gentes de cor é indesejado.
A busca pelo distanciamento das atividades produtivas manuais revestiu-se de
um verdadeiro sentido ritualístico que reforçou o senso de desvalorização do
trabalho e o escravismo acentuou ainda mais a sua degradação porque
adicionou a noção de que “o trabalho se associa, nos hábitos de pensamento
dos homens, à fraqueza e à sujeição a um senhor”7 , portanto, o trabalho
manual passou a ser compreendido como atividade indigna para um homem
livre. Sendo assim, a necessidade de demonstrar a capacidade ou a
possibilidade de se ver isento da obrigação de sujeição ao exercício dos ofícios
e trabalhos físicos passou a ser encarado como meio e requisito de
dignificação e distinção social.4

Como Paulo Filho nos permite ver, o trabalha manual, ele vai ser totalmente
desvalorizado. Em uma sociedade que se baseia numa cultura européia, sendo bem generalista,
reinol, de plumas, ostentação e riquezas, do oficio manual relacionado condição de escravo e
de uma cultura até sua linhagem sanguínea é analisada, com o propósito de manter um domínio
puramente português “o trabalho se associa, nos hábitos de pensamento dos homens, à
fraqueza e à sujeição a um senhor”,5 Logicamente, associado a figura do escravo.
Sabendo que nem todo português era rico ou nobre para ser mais específico, muitos
exerciam ofícios mecânicos como diz Russel-Wood “Não pode haver dúvidas de que, durante

NASCIMENTO, Rômulo Xavier; MELO, Maria do Carmo Barbosa de. (org.). Fragmentos de Histórias do
Nordeste: visões socioculturais do mundo ao sertão. Recife – EDUPE, 2012. Pág, 103.
4
FILHO, Paulo Alexandre da Silva. DESVALORIZAÇÃO E DESPREZO AO TRABALHO MANUAL E
MECÂNICO NA SOCIEDADE ESCRAVISTA COLONIAL; V Encontro de História do Nordeste, V Encontro
Estadual de História. ANPUH, Recife, 2004. Pág. 03. 171
5
CUNHA, Luiz Antônio. O ensino de ofícios artesanais e manufatureiros no Brasil escravocrata. São
Paulo/Brasília: Editora UNESP/FLACSO, 2000. p. 48.
o período colonial do Brasil, os chamados ‘ofícios mecânicos’ eram dominados por artesãos
brancos e que as pessoas de cor livres não eram aceitas como profissionais do mesmo nível.” 6
Uma vez que existe um aumento de escravos, muitos deles vão ser comprados por esses homens
brancos, que iram ensiná-los seus ofícios e colocá-los nas ruas em seu lugar, dessa forma eles
continuam ganhando e seu status é elevado, já que agora ele possui escravos trabalhando para
ele.
Evidente que vai acarretar uma suma de problemáticas causadas pelos escravos aos seus
senhores, situações de fuga, situações onde o escravo exercer o ofício por um valor maior do
atribuído pelo senhor, assim juntando dinheiro e futuramente, comprando sua carta de alforria,
ou até mesmo comprando outro escravo para se, entre outras situações reveladas historicamente,
Russel-Wood cita três possibilidades das gentes de cor ganhar a vida:
A primeira era tirar a máxima vantagem de quais quer oportunidades
comerciais e obter a independência financeira dentro da sociedade
competitiva. A segunda era fazer algumas concessões, permitindo-se a
reabsorção no sistema escravocrata como feitor ou trabalhador assalariado. A
terceira era rejeitar o desafio de enfrentar a pesadíssima desvantagem do
indivíduo de cor livre e descair para os biscates e a vagabundagem .7

A citação acima abre nossas mentes para além dos trabalhos mecânicos, para que
possamos entender que nem todos os livres e forros seguiam o mesmo caminho para gerar
renda. Dito isto, com o grande aumento de escravos livres e forros, os quais encontravam nestes
trabalhos mecânicos, uma forma de renda e de possível ascensão social, fez com que as áreas
urbanas fossem cada vez mais dominadas pelas gentes de cor, uma vez que esses ofícios eram
essenciais para o funcionamento da capitania.
A inserção dos pretos na vida econômica da sociedade setecentista, por meio
dos ofícios, representava mais do que a busca por oportunidade de trabalho.
Tanto cativos, quanto libertos e pobres livres, procuravam no estabelecimento
das relações sociais, através das atividades exercidas no espaço urbano,
elementos que modificassem seu status e, especialmente, sua condição
jurídica. 8

Assim como Marcos Tomé fala, além de ser uma forma de trabalho servia como controle
social e ao mesmo tempo como forma de ascensão dos pretos - esse assunto será mais abordado

6
RUSSEL-WOOD, A.J.R. ESCRAVOS E LIBERTOS NO BRASIL COLONIAL. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005. Pág. 93.
7
RUSSEL-WOOD, A.J.R. ESCRAVOS E LIBERTOS NO BRASIL COLONIAL. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005. Pág. 86.
8
MONTE, Marco Tomé Costa. ORDEM, PRESTÍGIO E TRABALHO: UM OLHAR SOBRE AS
CORPORAÇÕES DE OFÍCIO DE PRETOS NAS VILAS AÇUCAREIRAS PERNAMBUCANAS 172
SETECENTISTAS. In Anais do II Encontro Internacional de Historia Colonial. Caicó (RN), v. 9. N. 24, Set/out.
2008. Pág. 03.
nos próximos capítulos – as corporações de ofícios se encontram como, agentes na organização
destes trabalhadores mecânicos, e a partir das cartas patentes disponíveis no APEJE podemos
obter algumas informações sobre elas; quantas são, quais ofícios tinham, quem as ganhavam,
se eram pretos ou brancos, tendo em vista que todas essas informações não são uma totalidade,
pois se trata de uma nomeação, então possivelmente muitos governadores não ganhavam, além
de provavelmente existirem ofícios que não são descritos por não possuir corporações, essas
são hipóteses que devemos levar em conta neste trabalho.

1.2 DESCREVENDO AS CORPORAÇÕES DE OFÍCIO

Analisando os treze (12) livros de cartas patentes provinciais disponíveis no Arquivo


Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE), obtemos uma seleção de informações, sendo
demonstradas nos quadros a seguir:

Quadro 1
PATENTES DE CORPORAÇÕES DE OFÍCIOS DO ARQUIVO PUBLICO
ESCRITOR JORDÃO EMERENCIANO (APEJE)9
Livro Folha Nome Cor Cargo Corporação Lugar Ano
P. p.
02 133v Ventura de Preto Governador 1776
Souza Gracez
02 198 Manoel Preto Governador Mercadores de 1776
Nunes da Caixas de
Costa Açúcar
03 49 Domingos Preto Governador Ganhadores Desta 1777
Ferreira Praça
Ribeiro
03 92 Germano Pardo Governador Pescadores Vila do 1778
Soares Recife

173
9
coleção dos livros de cartas patentes provinciais disponíveis no Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano
(APEJE).
03 158 Feliciano Preto Governador Ganhadores Praça do 1778
Gomes dos Forro Recife
Santos
03 166v Thomas Governador Pescadores Vila do 1778
Francisco Recife
04 124 Cosme de Preto Governador Ganhadores Recife 1781
Azevedo
05 06 João de Preto Governador Pescadores 1784
Assumpção
05 22 Gaspar Preto Governador Ganhadores Desta 1784
Correia Lima Praça
05 40 Ignacio Preto Governador Canoeiros Cidade de 1785
Botelho Olinda
05 61v Francisco de Governador Mercadores Recife 1785
Assys do
Santos
05 172v Joze Dias Preto Governador Ganhadores 1788
05 262v Francisco de Governador Mercadores Desta 1788
Assis dos Praça
Santos
06 74 João Gomes Governador Pescadores Olinda 1788
da Silveira
06 75v Bernada Governadora Boceteiras e 1788
Eugênia de comerciantes
Souza
06 102v João Manoel Preto Governador Canoeiros Repartição 1788
Salvador de Olinda
07 51 Antônio Preto Governador Cavoeiros Recife e 1791
Duarte Olinda
07 116 Domingos da Preto Governador Camaroeiros Desta Vila 1792
Fonseca

174
08 01 Agostinho Governador Pescadores Ilha de 1794
Ferreira Itamaraca
Cardoso
08 11v Joaquim da Preto Governador Canoeiros Desta Vila 1794
Cruz e Cidade
de Olinda
09 136 José Nunes de Preto Governador Canoeiros 1797
Santo Antônio
09a 06 José Preto Capataz Mercadores Desta Vila 1799
Henriques das Caixas de
Martins Açucar e
Sacos de
Algodão
09a 13v João de Mello Preto Governador Canoeiros 1799
10 76v Bernardo Preto Governador Ganhadores Da Parte 1799
Henriques do Recife
11 195 Francisco de Preto Capataz Mercadores Praça de 1802
Silva Xavier das Caixas de Recife
Junior Açucar e mais
Generos
11 270v Domingos Preto Governador Canoeiros 1802
Machado
11 279 Josefa Lages Preta Governadora Pombeiras 1802
Forra

Neste primeiro quadro podemos observar as informações básicas, que as patentes


direcionadas a governadores de corporações podem nos fornecer, servindo como uma ementa,
no entanto muito mais pratica, facilitando para um pesquisador que, por exemplo, vá pesquisar
por um personagem especifico, dentro das patentes províncias disponíveis no APEJE.
Fazendo um levantamento geral da coleção de cartas patentes, encontramos mais de seis
mil ( 6.000) patentes províncias, dentre elas temos nomeações para: capitão de forasteiros,
capitão de companhias, capitão de granaduros, capitão de terço,capitão dos enriques, capitão de
campo, capitão de infantaria, capitão da cavalaria, capitão reformado, capitão da ordenança, 175
capitão das entradas, capitão comandante, coronel das ordenanças, cabo de esquerda, alferes,
alferes de companhia, alferes do terço, sargento mor, sargento supra, sargento capitão, tenente
general, mestre de campo, ajudante do terço, ajudante das entradas, auxiliar, governador,
capataz entre outras nomeações descritas.
É notável a quantidade de informações que essas patentes pode nos proporcionar.
Analisando esses quadros podemos identificar e concluir muitas questões envolvendo o período
destacado e a sociedade urbana. No quadro 1, a primeira situação que identificamos é que em
relação aos quase 20 anos analisados, deveríamos ter uma quantidade de patentes maior as
apresentada, uma vez que, muitos outros ofícios são identificadas e citados no século XVIII por
cronistas e historiadores, como, Henry Koster e Russell-Wood, Clara de Araújo, Kalina Silva,
entre outros, que não possuem patentes, durante os 20(vinte) anos de documentação analisada,
como: barbeiro, carpinteiro, alfaiates, sapateiros, fressureiras.
Mesmo esses sendo citados no inicio do século XVIII e estamos trabalhando com o final
dele, e alguns citados para outras regiões como a Bahia, são ofícios que podemos identificar
como indispensáveis, dentro de uma capitania, logo, tendo em vista tais perspectivas, podemos
supor que muitos destes são esquecidos e/ou deixam de ser executado, o que possivelmente não
deve acontecer, dentro de um período tão curto como um século é negligente dizer que ofícios
são extintos, sabendo que nos dias atuais ainda são exercidos.
Não era qualquer preto ou pardo que poderia ganhar uma carta patente, só aqueles que
de acordo com as próprias cartas, tivessem um bom procedimento diante de seu grupo, da
sociedade e um bom exercício de sua função, sabendo disso, podemos encontrar ai, uma
possível explicação para a falta de patentes nomeadas, quando observamos que a nomeação é
uma forma de controle do governo, e a descrição feita pela patente não deixa explicito como é
feito essa escolha, qual é o parâmetro de bom procedimento obtido?
Outra situação encontrada quando analisamos as fontes, são as irregularidades e
inconsistência nas datas de nomeação, em algumas das documentações encontramos duas
evidencias do período que um governador/governadora passaria no cargo, no primeiro
momento temos na patente concedida ao “Preto Manoel Nunes da Costa”10 onde está escrito
que: o mesmo exercerá sua função enquanto “proceder como deve”, em relação ao bom
procedimento. Já em outro momento encontramos a patente concedida para “Germano
Soares”11, que ocupou o cargo pela alegação do governador anterior, Manoel dos Santos, não

10
O Preto Manoel Nunes da Costa governador dos pretos mercadores de caixas de açúcar. Coleção de Patentes
Provinciais. Volume 02, folha 198. Arquivo Público Jordão Emerenciano – APEJE. 176
11
Germano Soares governador dos pescadores da Vila do Recife. Coleção de Patentes Provinciais. Volume 03,
folha 92. Arquivo Público Jordão Emerenciano – APEJE.
ser capaz de exercer suas funções e pelas continuas “desordens causada”, descumprindo o bom
procedimento.
Dentro desta perspectiva, podemos entender, que em certo momento não existia algo
consistente no qual podíamos confirmar o tempo de vigência do governador, no entanto, esse
“bom procedimento” descrito em algumas cartas, nos revela ainda mais, sobre como essas
nomeações serviam efetivamente como forma de controle das gentes de cor, para o governo.
No segundo momento, temos uma descrição, onde o governador Joze Joaquim Nabuco de
Araújo concede duas patentes, uma para o Preto Domingos Machado12 e outra para a Preta
Forra Josefa Lages13, onde ambos passaram 3(três) anos exercendo o cargo. Diferente das
patentes anteriores, nessas, fica claro o período de vigência. Logicamente, podemos concluir
este acontecimento como uma nova forma de organização e de controle nas corporações, que
estar sendo estabelecida, com o passar dos anos, já que só encontramos essa descrição nas
ultimas cartas patente, no ano de 1802, reforçando assim o controle dessas gentes de cor.
Quadro 214
DADOS DE COR E QUALIDADE RELATIVOS ÀS
PATENTES DE CORPORAÇÕES DE OFICIO

Homens Mulheres
Pretos 18
Pardos 01
Forros 01 01
Sem definição 05 01
Total 27

Quando analisamos fato de existirem corporações de mulheres e governadoras já


demonstra uma “resistência”, partindo de pensamento atual, de gênero, em um período onde as
mulheres, principalmente as de cor, eram colocadas em uma posição de extrema submissão em
relação aos homens, mesmo que sejam poucas as corporações encontradas, apenas 2(duas)
como demonstra o quadro acima.

12
O Preto Domingos Machado governador dos canoeiros. Coleção de Patentes Provinciais. Volume11, folha 270v.
Arquivo Público Jordão Emerenciano – APEJE.
13
A Preta Forra Josefa Lages governadora das pombeiras de repartição fora das portas. Coleção de Patentes
Provinciais. Volume 11, folha 279. Arquivo Público Jordão Emerenciano – APEJE. 177
14
RESULTADO QUANTITATIVO DOS DADOS COLETADOS NOS 12 LIVROS DE PATENTES
PROVINCIAIS DESCRITOS NO QUADRO
No entanto, Russel-Wood, quando trabalha com o inicio dos trabalhos de escravos e
libertos no ambiente urano das sociedades açucareiras, nos revela um ponto importante dentro
desta perspectiva:
As primeiras eram mulheres de cor que levavam bandeias de doces e outros alimentos
para vender pelas ruas de toda cidade ou vila brasileira... Mulheres de cor livres
mantinham ligação com soldados ou oficiais subalternos que simplesmente
requisitaram a pesca com o pretexto de que era para seus superiores , mas na verdade
entregavam o peixe para suas amantes venderem15

Como podemos observar na citação acima, Russel-Wood analisa como as mulheres


começaram com esse processo de trabalho das gentes de cor nesse ambiente urbano, revelando
sua importância dentro deste contexto, e como mesmo assim, ainda encontramos tão poucas
patentes nomeadas a governadoras. Isso pode acontecer pelo fato de claramente, com a analise
documental e bibliográfica, os ofícios ocupados por mulheres são específicos, evidenciando
que, mesmo as patentes sendo uma forma de reconhecimento e ascensão social, as mulheres e
os homens tem seus lugares delimitados, onde tal trabalho é para mulher, tal trabalho é para
homem.

178
15
RUSSEL-WOOD, A.J.R. ESCRAVOS E LIBERTOS NO BRASIL COLONIAL. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005. Pág. 90-91.
Imagem 1: Negras vendedoras de rua, de Carlos Julião (Iconografia Biblioteca Nacional).

Na imagem acima Julião retrata mulheres vendedoras, que são descritas nas patentes
como boceteiras, podemos observar uma representação fidedigna dos balaios e caixas utilizas
para carregar as miudezas que seriam vendidas pelas ruas.
Podemos identificar que claramente são mulheres, intensificando a distinção de trabalho entre
os sexos, talvez houvesse alguma mulher que exercesse um ofício dito para os homens ou vice-
versa, mas não temos como fundamentar essa hipótese. No quadro abaixo podemos observar as
descrições de todos os ofícios encontrados nas patentes e descritos anteriormente.

Quadro 3

DESCRIÇÕES DOS OFÍCIOS ENCONTRADOS NAS CARTAS PATENTES16


Mercadores Carregadores e distribuidores de caixas, cesta ou sacos de produtos
como: açúcar, algodão entre outros.

179
16
Mores e Silva, dicionário de língua portuguesa, Lisboa, 1789.
Ganhadores O que ganha com seu trabalho.
Pescadores Aquele que pescam os peixes.
Boceteiras e Mulheres que faziam comércio e vendiam miudezas em boceta que
comerciantes são caixas pequenas ou balaios de papelão, madeiras ou palha.
Canoeiros Trabalhavam com o transporte de pessoas, objetos, mercadorias e
água entre os vários rios que compunham a geografia da capitania
de Pernambuco.
Cavoeiros Não encontrado.
Camaroeiros Covão de pegar camarão.
Pombeiras Escravas que vendiam peixe.

A primeira patente relacionada a corporação encontrada na documentação refere-se aos


pretos da Costa da mina, sem esclarecer qual era o ofício que eles exerciam, apenas que é
direcionado ao Preto Ventura de Souza Gracez, Governador dos Pretos da Costa da Mina. Dito
isto podemos compreender que se trata de uma separação étnica, sabendo que a denominação
mina se refere a uma região distante de Angola, Congo.
O fato de existir uma corporação voltada a um grupo étnico específico, nos revela que
existe uma divisão dentro dos próprios pretos, onde uns não aceitam os outros dentro de suas
corporações, no caso, os pretos de mina ou não se misturavam com os de outras origens, ou os
outros pretos não aceitavam eles em suas corporações, existia uma relação de distanciamento e
superioridade entre eles. Também revela que por receberem patentes províncias, se tratava de
um grande grupo, ao qual merecia atenção do governo.
Observando a historiografia não encontramos em apenas um momento, afirmações
sobre a existência de cargos ou não dentro das corporações, Clara Maria Farias de Araújo em
sua dissertação nos revela uma indicação ao qual podemos relacionar a sua existência, quando
diz que eles tinham uma organização hierárquica composta por aprendizes a mestres;
informações que poderiam supor uma a presença de cargos, contudo, ela também diz:
Dada as tentativas de substituir os governadores por “capatazes”, acreditamos
tratar-se dos mesmos personagens, que aceitam a substituição para protegerem
suas hierarquias ante a cassação das patentes, perseguições e tentativas de
desmantelamento das hierarquias de cor pó parte do governador Caetano
Pinto.17

17
ARAUÚJO, Clara Maria Farias de Araújo. GOVERNADORES DAS NAÇÕES E CORPORAÇÕES: 180
CULTURA POLÍTICA E HIERARQUIAS DE COR EM PERNAMBUCO (1776-1817). UFF, Niterói, 2007.
Pág. 48.
Como pode ser visto acima, ela interpreta as duas categorias como a mesma (Capataz e
Governador), contudo, as fontes não nos deixa pensar apenas dessa forma, no quadro 1,
encontramos duas patentes com nomeações designadas à capataz, situação que nos deixou no
primeiro momento da pesquisa confusos, no entanto, transcrevendo as patentes,
compreendemos que se trata de um cargo, onde a documentação não deixa clara as suas
responsabilidades dentro das corporações, mas revela que se trata de um cargo sem
remuneração.
Datando os primeiros do século XVI e os últimos do XIX, cada cabildo tinha
seu rei, a quem também chamavam capataz ou capitão, e que desfrutava de
considerável poder “dentro do curto raio de ação que lhe deixava livre o poder
social dos brancos”.18

Trouxemos essa citação para exemplificar que, o “Capataz” também é utilizado em


outros contextos, neste caso, referido ao rei do cabildo19, um personagem que possui
semelhanças com um governador de corporação, no entanto, se aproxima mais da figura do rei
do Congo. Por esses fatores, identificamos que talvez aja uma incoerência dentro do ponto de
vista de Clara Araújo, que não nos permite seguir por essa linha, mas, pode ser que realmente
se trata da mesma figura de líder da corporação.
Analisando as bibliografias e as próprias fontes, podemos observar que não encontramos
muitas informações de como as corporações se organizavam, basicamente nada, além das que
foram informadas aqui. Sabendo que se trata de uma fonte totalmente tendenciosa, usada como
forma de controle e dessa maneira seletiva e excludente, o que caracteriza muito bem a
sociedade açucareira, de extrema hierarquia e segregação social.

REFERÊNCIAS

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1994.
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POLÍTICAS E ESTRATÉGIAS ADMINISTRATIVAS NO MUNDO ATLÂNTICO. 1.
ed. Recife, Ed Universitaria UFPE, 2012.
ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro; SILVA, G. C. M; Marília de Azamburja Ribeiro (Orgs.).
CULTURA E SOCIABILIDADES NO MUNDO ATLÂNTICO. 1. ed. Recife: Editora
Universitária/UFPE, 2012.

18
SOUZA, Mariana de Mello e. REIS NEGROS NO BRASIL ESCRAVISTA: HISTÓRIA DA FESTA DE 181
COROAÇÃO DE REI CONGO. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. Pág.. 170.
19
Nomeação utilizada em Cuba para designar associações que agrupam africanos de um mesmo grupo étnico.
ARAUÚJO, Clara Maria Farias de Araújo. GOVERNADORES DAS NAÇÕES E
CORPORAÇÕES: CULTURA POLÍTICA E HIERARQUIAS DE COR EM
PERNAMBUCO (1776-1817). UFF, Niterói, 2007.
BURKE, Peter. .HISTÓRIA E TEORIA SOCIAL. São Paulo: ed. Unesp. 2002.
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Tese de doutorado em história. Universidade Federal de Pernambuco. 2003.
SOUZA, Mariana de Mello e. REIS NEGROS NO BRASIL ESCRAVISTA: HISTÓRIA
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SOUZA, Mariana de Mello e. REIS DO CONGO NO BRASIL XVIII E XIX. Departamento
de História – USP; revista de história. 2005. 182
TORRES, Cláudia Viana. UM REINADO DE NEGROS EM UM ESTADO DE BRANCOS
ORGANIZAÇÃO DE ESCRAVOS URBANOS EM RECIFE NO FINAL DO SÉCULO
XVIII E INÍCIO DO SÉCULO XIX (1774 – 1815). Recife: UFPE, 1997. (Dissertação de
Mestrado em história).

183
A JUSTIÇA NO SERTÃO COLONIAL DA CAPITANIA DE PERNAMBUCO (1700-
1760).

Juliane Tavares Monteiro


Graduanda em História UFRPE
julianeMonteiro09@outlook.com1

Tendo um crescimento populacional lento em relação à zona do açúcar de Pernambuco,


o sertão não ficou estagnado em relação a justiça em tempos coloniais, nossa investigação se
debruça no aparato judicial deste espaço na primeira metade do século XVIII, onde a
implantação das poucas instituições de poder formal, acompanharam o ritmo de crescimento da
espacialidade. Compreender o espaço físico do sertão como as estruturas judiciais que
compõem o campo jurídico neste espaço, e captar o juízo de sertão para a colônia. O sertão
colonial é um espaço ainda pouco abordado da perspectiva judicial pela historiografia e para
caracterizar esta temática destacamos a relação interouvidorias desenvolvidas nos espaços das
chamadas capitanias do norte, para entender as divisões de justiça e conceber a área judicial de
nosso enfoque. No século XVIII havia na pratica uma atuação da ouvidoria de Pernambuco,
atendendo não só a interesses da Coroa na busca de obter controle, bem como dos agentes que
se dispunham a ampliar sua influência. Em nossa pesquisa, foi fundamental o levantamento de
localidades que constituíam a jurisdição da Ouvidoria no sertão de Pernambuco, através de
menções ao institucional em documentos. A construção do mapeamento destas localidades traz
uma visão ampla do território judicial das câmaras, bem como sua influência. Mediante um
processo lento de instauração das Câmaras, e da presença do juiz ordinário, sendo este um
oficial que representa um poder formal civil no sertão, e da carência de agentes da justiça, nestes
espaços dilatados começaram a surgir novas preocupações das autoridades. Constatamos que a
distância territorial não anulava a presença judicial no sertão, mas influenciava em uma
dinâmica diferente. Visto como um local desprovido de justiça, o sertão colonial mostra
estruturas judiciais montadas e dinamizadas. Estas estruturas contrastam com a visão
dicotómica vigente no período, onde o sertão é visto como espaço não civilizado, onde a
característica de povoamento mais lento se comparado ao o padrão do povoamento nas
principais zonas litorâneas, não ficou inerte em relação as instituições de justiça.

184
1
A autora é bolsista PIBIC- CNPQ – Trabalho orientado pela Profa. Dra. Jeannie da Silva Menezes, UFRPE
Introdução

A ideia de terra sem lei é recorrente em atribuições ao sertão colonial, mas, são poucos
os trabalhos que se debruçam a entender como se dava as relações judiciais nestes espaços. Para
compor as demandas institucionais de natureza judicial que se mantinham nos julgados do
Sertão, é necessária a compreensão das representações que o sertão das Capitanias do Norte
detinha. Paulo Guedes em sua tese No íntimo do sertão: Poder político, cultura e transgressão
na Capitania da Paraíba (1750-1800), (2013), coloca sobre a justiça neste espaço, a
cristalização da ideia do sertão como terra-sem-lei – na qual a violência e a impunidade foram
suas maiores marcas – em razão do poder estatal, não estar presente de forma efetiva para impor
a ordem, coibindo abusos e transgressões 2". Nosso estuda prioriza o sertão da capitania de
Pernambuco e é através da presença institucional que buscamos entender como se davam as
dinâmicas de justiça no sertão da Capitania.
Os dados pesquisados sobre a situação do judicial no sertão da Capitania de Pernambuco
foram selecionados a partir de fontes manuscritas, do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa
(Projeto Resgate) e das fontes impressas, dos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
A pesquisa também contou com mapas que remetem para o espaço estudado no seu recorte
espacial. Em princípio se fez importante entender a área espacial do espaço trabalhado, assim
como as perspectivas que a colônia tinha sobre o sertão, em nosso recorte temporal. Com isto
foi possível um levantamento de localidades que constituíam a comarca de Pernambuco, a
partir, das instituições, dos agentes e indícios que constituíam uma base judicial nestas
localidades.

O sertão colonial e a relação interouvidorias

Para entender as dinâmicas de justiça no sertão, priorizamos em nosso estudo a


compreensão de suas interpretações, as referências ao território ocupado e seu aparato judicial.
Para compor o espaço ocupado selecionamos a historiografia de Capistrano de Abreu, para o
autor pode-se chamar os sertões pernambucanos, de sertões de fora, desde a Paraíba até o
Acaracu no Ceará; O sertão de dentro seriam os referentes aos sertões baianos, diz o autor que
entre os sertanejos de um grupo e outro deve haver diferenças sensíveis 3. A expansão territorial
para o sertão foi um processo que teve em sua demanda, conflitos entre os portugueses e

2
GUEDES. Paulo H. M. No íntimo do sertão: poder político, cultural e transgressão na capitania da Paraíba (1750- 185
1800), 2013. 319.f. tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Pernambuco. Recife. p.20
3
ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de história colonial. São Paulo: Itatiaia, 1988, p. 141-21
indígenas nas disputas de território, sendo o alargamento dessa localidade voltada também para
a base pecuária.
Yan Morais tratando dos sertões da Paraíba, coloca que, a fé, a lei e a ordem que vieram
com os conquistadores e passaram a reordenar aqueles sertões sob perspectiva lusitana, além
de buscar a quebra das estruturas sociais indígenas ali existentes, deram abertura para que os
súditos da Coroa portuguesa pudessem exercer cargos da governança e da administração
colonial que surgiram naquelas distantes paragens. 4
O imaginário da colônia sobre sertão como terra desabitada, era uma ideia própria dos
agentes da metrópole que no século XVIII foram incumbidos de implantar lei e ordem do
Império no interior do Brasil. Sobre os conceitos que o espaço carregava, como informa a
historiadora Kalina Vanderlei (2010), criou-se uma dicotomia entre o espaço considerado
civilizado e aquele considerado selvagem.5 Ao referir-se a sua missão no sertão, o capuchinho,
Frei Martinho de Nantes descreve o sertão como aterrorizante: " Entrando nas solidões vastas
e assustadoras, fui surpreendido por um certo medo" 6 esse horror é devido as características da
flora e fauna, como do vazio do lugar:

tanto mais quando não havia uma folha sobre árvores e pareciam com nossas,
em tempos de inverno e não se cobriam de folhas senão quando vinham as
chuvas, nos meses de fevereiro ou março. O canto lúgbre de certos pássaros
aumentava ainda esse terror, tudo isto me parecia como a imagem da morte. 7

Neste espaço, a área açucareira ditou o padrão de civilização para o imaginário colonial,
até o apogeu da região mineradora no século XVIII, enquanto os interiores passaram a ser
designados como sertão, área desocupada que abrangia todo continente para além da zona da
cana e do litoral8. Esse imaginário influenciou diretamente na ideia que se tinha da justiça
referente a este espaço, mas é possível perceber que mesmo com um caráter tardio e muitas
vezes disperso do povoamento, se comparado ao o padrão do povoamento nas principais zonas
litorâneas, o sertão colonial não se permaneceu numa completa ausência de poder formal.

4
MORAIS, Yan Bezerra. “È por ser de conhecida a nobreza”: Elites locais e deres de reciprocidade no sertão do
Piancó, Capitania da Paraíba do Norte, 1711-1772. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal
Rural de Pernambuco. Recife, p.15-194, 2018.
5
SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. ‘Nas solidões vastas e assustadoras’: a conquista do sertão de Pernambuco
pelas vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII. Recife: Cepe, 2010. p. 112
6
Idem, p. 123 186
7
NANTES, Martinho. Relação de uma missão no Rio de São Francisco. São Paulo. Editora Nacional. 197. P.123
8
SILVA, 2010. Op. Cit, p. 112
Relação interouvidorias no sertão de Pernambuco

Nosso primeiro indício de atuação de um poder formal neste espaço se dá através das
comarcas. Mafalda Soares, em “Territorialização e poder na América portuguesa, a criação
de comarcas, séculos XVI-XVIII9”, analisa a organização política no território da América
portuguesa, apontando as comarcas e as divisões judiciárias, fazendo sua reconstituição de
acordo com as fases políticas e da construção do aparelho judiciário da coroa 10. Para nossa
investigação, entender essas divisões de justiça se torna importante para conceber a área judicial
de nosso enfoque, como a autoridade judicial que ela emanava para os termos, não só próximos
de sua cabeça, como os situados no sertão. Percorrendo ainda os apontamentos de Mafalda
Soares, as comarcas ou ouvidorias-gerais nem sempre coincidiu com a das capitanias do século
XVI e nem sempre seguiu os ritmos da criação das novas capitanias no século XVIII 11. A
comarca de Olinda tinha em seu termo dezenove freguesias, sendo localizadas no sertão:
Ararobá, Cabrobó e Rio Grande do Sul. Encontramos na informação geral da Capitania, uma
descrição pormenorizada de seu recorte físico “Pelo sertão se estende esta comarca, a quase
quatrocentas legoas até o Rio Carunhanha que faz Barra no Rio de São Francisco, e serve de
baliza, que separa este governo do das Minas12” Esta comarca mantinha uma extensa
jurisdição.
Na comarca das Alagoas, os ouvidores deveriam fazer uso do mesmo regimento da
Capitania de Pernambuco, sendo a cabeça da correição eleita, a Villa do Rio de São Francisco,
por esta, necessitar da ação da justiça e estar mais próxima do sertão.13 Essa comarca, foi criada
para atender as necessidades da parte Sul da Capitania, tendo em vista a distância entre a cabeça
da comarca localizada em Olinda, como o crescimento da região. Soares apresenta
igualmente acerca da incapacidade de um só oficial cobrir territórios tão extensos. Abordando
a terceira fase da criação das comarcas, em meados do século XVIII coloca o “fechamento” das
fronteiras de certas comarcas, que passaram a ter um espaço muito menor e bastante mais
delimitado. Mas, como veremos adiante, mesmo com a comarca de Alagoas subordinada a de
Pernambuco, elas mantinham uma relação estreita entre as jurisdições, muitas vezes não
respeitando limites. O primeiro ouvidor geral das Alagoas foi Jozé da Cunha Soares, provido

9
CUNHA, Mafalda Soares. Territorialização e poder na América portuguesa. A criação de comarcas, séculos
XVI-XVIII. Tempo, Rio de Janeiro, v. 22, n.39, p 01- 30, jan-abr. 2016. p. 8
10
CUNHA, Mafalda Soares. Territorialização e poder na América portuguesa. A criação de comarcas, séculos
XVI-XVIII. Tempo, Rio de Janeiro, v. 22, n.39, p 01- 30, jan-abr. 2016. p. 8
11
Idem, p. 8
12
Informação geral da capitania de Pernambuco, 1749. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol 187
XXVIII, 1906. p. 460
13
Idem, p. 462
em 1711. Em 1710, o barão e futuro ouvidor de Alagoas, manda um requerimento ao rei,
pedindo ajuda de custo em razão de ter sido promovido a Ouvidor-Geral da Capitania de
Alagoas. A documentação mostra a jurisdição deste ouvidor no sertão ao dizer “Diz o, barão
Jozé da Cunha Soares V. Majestade lhe fez garantido no cargo de ouvidor geral da Capitania
dos Alagoas com Jurisdição nas vilas de Porto Calvo e Rio São Francisco, sertões de
Pernambuco"14. No Arquivo Histórico Ultramarino (Projeto Resgate), também obtivemos uma
informação acerca da Comarca de Alagoas: O ouvidor, João Vilela em 1716 também pedindo
ajuda de custo, coloca sob a jurisdição de Alagoas: “Merce do lugar de ouvidor das Alagoas
Rio de São Francisco, sertões de Pernambuco15. Concluindo assim, que parte da
responsabilidade do sertão da Capitania de Pernambuco era de Alagoas.
Sobre os magistrados atuantes nas comarcas, pode-se aferir a ausência de registros nos
regimentos regulamentando a atuação do Ouvidor de Pernambuco em relação aos julgados do
sertão. Mas, a partir da documentação foi constatada a atuação deste magistrado no território
referenciado, se fazendo presente nos conflitos, e levando informações para a coroa. Como no
caso de Ararobá, em que os moradores incomodados com as autoridades de justiça de Penedo
se queixam ao ouvidor, com um abaixo assinado, o ouvidor manda uma carta ao rei informando
do atrito e diz “Pelo termo junto o remeto declarando que este mais convém serem da jurisdição
do Ararobá por ser desta comarca, que é distante só cinquenta legoas16”. A vila do
Ararobá, compreendia as freguesias de Buíque e Garanhuns, parte do sertão pernambucano
colonial. O ouvidor noticia ao rei que os moradores defendiam que a capitania não poderia estar
sujeita a jurisdição da vila das Alagoas e sim de Pernambuco, por ser distante da Capitania das
Alagoas e Villa do Penedo mais de cem legoas, e a Vila do Recife, Capitania de Pernambuco
cinquenta legoas, E assim, seria impossível adequar sua justiça, tanto na ouvidoria das Alagoas,
como na vila do Penedo.

Dinâmicas judiciais no sertão

14
REQUERIMENTO do barão José da Cunha Soares ao rei [D. João V], pedindo ajuda de custo, em razão de ter
sido provido no cargo de ouvidor geral da capitania de Alagoas com jurisdição nas vilas de Porto Calvo, Rio de
São Francisco e sertão de Pernambuco. Ant. 1710. AHU_ACL_CU_015,CX.23,D.2132
15
CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João V, sobre o pedido do bacharel João Vilela do Amaral,
provido como ouvidor das Alagoas e do rio São Francisco no sertão da capitania de Pernambuco, de uma ajuda de
custo para embarcar com sua família. Anexo: 1 ant. 1716. AHU_ACL_CU_015, CX 24, D.2230
16
CARTA do ouvidor geral da capitania de Pernambuco, Antônio Rodrigues da Silva, ao rei [D. João V], sobre as
queixas dos moradores de Buíque e Garanhuns, capitania do Ararobá, contra as inquietações das autoridades de 188
Justiça da vila de Penedo, e pedindo para terem jurisdição independente daquela vila. Ant. 1732. AHU_CU_0,15.
CX 42, D. 3826
Também é possível ver uma atuação do ouvidor de Pernambuco, com os presos do
sertão. Sendo perceptível que sua ação no sertão, não diverge da atuação no litoral, neste
contexto no documento de 1747 referente à representação da câmara do Recife para que os
presos do sertão sejam ouvidos perante o ouvidor-geral. Em carta enviada pelo governador da
Capitania de Pernambuco, D. Marcos José de Noronha e Brito ao rei D. João VI, se diz:

Dom João por graça de Deus, rei de Portugal e dos Algaves da quem de além
mar e da Africa senhor de Guiné. Faz soberano o soberano governador Capitão
General da Capitania de Pernambuco. Que vendo-me a representação que me
foi as dos oficiais da Câmara da Vila do Recife em quatorze de maio do
presente ano. E com esta remete e o que pedem seja servido mandar que os
presos vindos do sertão por ordem, virinham com vadios e vagam, sejam então
da execução da dita ordem ouvidos primeiro perante ouvidor geral de
Pernambuco. 17

Além das Comarcas, se fez necessário investigar as Câmaras e seus oficiais da justiça,
na extensão do território sertanejo. A historiadora Cristina Nogueira em seu livro, explana a
reorganização do território português, falando a respeito dos concelhos ou câmaras, coloca que
em Portugal, as câmaras concelhias eram as instancias políticas que superintendiam em quase
tudo o que dizia a respeito à vida quotidiana as populações, desde o aprisionamento de víveres
até ao tabelamento dos preços e salários18. Sobre as funções judiciais da câmara, a historiadora
Virginia Almoedo revela que as câmaras extrapolavam o que hoje se entende ser a função
jurisdicional, mostrando que suas atribuições ultrapassavam as funções administrativas. 19

Território jurisdicional das câmaras

Outro resultado dessa busca pela ação da Ouvidoria de Pernambuco no sertão foi o
levantamento de localidades que constituíam a comarca de Pernambuco, a partir, das
instituições, dos agentes e indícios que constituíam uma base judicial nestas localidades.
Abaixo, construímos uma representação geográfica, apontando a localização de cada Câmara
encontrada no sertão de Pernambuco.

17
CARTA do [governador da capitania de Pernambuco, conde dos Arcos], D. Marcos José de Noronha e Brito, ao
rei [D. João V], sobre representação da Câmara do Recife para que os presos do sertão sejam ouvidos perante o
ouvidor geral, [Francisco Correia Pimentel] Ant. 1747. AHAU_ACL_CU_0,15, CX. D5530
18
SILVA, Ana Cristina. O modelo espacial do estado moderno: reorganização territorial em Portugal nos finais
do antigo regime. Editora estampa Portugal, 1998.p.54 189
19
ALMOEDO, 2001. Op. Cit, p. 194 (texto em revisão para publicação)
Disposição das Câmaras encontradas no sertão colonial de Pernambuco no século
XVIII

Fonte: Mapa das disposições das Câmaras encontradas no sertão colonial de Pernambuco no século XVIII,
elaborado a partir da base de dados do Google Maps e de informações contidas nos Anais da Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro. (Intervenção nossa). Acesso em: 28. Fev. 2017

O mapeamento das instituições do sertão, encontradas e instituídas ao longo do século


XVIII, foi um processo lento de instaurações de cargos de oficiais e das Câmaras, essas
nomeações acompanharam o desenvolvimento do sertão. Entende-se também que cada uma
destas instituições, somaram administração a justiça nas freguesias próximas. O território
jurisdicional das Câmaras no sertão era vasto, tendo em vista as distancias entre localidades, e
vilas que as encabeçavam, isto fazia com que o controle dessas instituições se ampliasse a
medida que tinha que dar assistência a povoados e freguesias, esse controle, como foi visto na
documentação, era fundamental para que se mantivesse a ordem e administração da justiça.
Em 1747 o governador da Capitania de Pernambuco, D. Marcos José "sugere que
conceda uma câmara a esta freguesia, dizendo ao rei “Se faz dificultosa a administração da
justiça de Vossa Majestade nestes homens, o que não sucederá havendo uma Câmara 20”. No

20
CARTA do ouvidor geral da capitania de Pernambuco, Antônio Rodrigues da Silva, ao rei [D. João V], sobre as
queixas dos moradores de Buíque e Garanhuns, capitania do Ararobá, contra as inquietações das autoridades de 190
Justiça da vila de Penedo, e pedindo para terem jurisdição independente daquela vila. Ant. 1732. AHU_CU_0,15.
CX 42, D. 3826.
pedido do governador, podemos constatar que a criação de uma câmara além da representação
de poder formal, colocaria fim nas dificuldades de administrar a justiça, assim, trazia equilíbrio
à localidade, sendo o principal expoente de justiça para aqueles sertões. O governador também
pede que seja concedido oficiais de justiça, dizendo “O juiz ordinário que ali assiste não tem
oficial algum de justiça e a Câmara que Vossa Majestade seja servido concedê-la deve ter
aqueles oficiais que a ela são prometidos.”21 No documento exposto, o governador cita a falta
de oficiais para o juiz ordinário, e pede que a Câmara concedida, tenha os oficias que lhe são
prometidos. Nestes espaços dilatados, a falta de oficias camarários geravam preocupações,
principalmente em circunstancias de crescimento populacional e pontos próximos a outras
capitanias e rotas de comércio. Os oficias camarários tinham entre suas atribuições, tirar
devassas de mortes, fugas de presos, destruições de cadeias, resistência, ofensa e justiça, entre
outras coisas22. O olhar individual para cada vila mapeada, nos faz concluir que mesmo
aparelhadas com alguns oficiais, há ausência dessas autoridades de justiça neste espaço tão
vasto.

Estrutura do aparato judicial no sertão de Pernambuco

Para um controle e administração de justiça nas localidades, se fazia fundamental um


quadro de agentes que contemplassem as exigências. No quadro abaixo, podemos comparar as
instituições e seu quadro de auxiliares de justiça durante nosso recorte temporal.

Análise Comparativa das instituições e auxiliares


do judicial nas vilas do sertão colonial

21
Idem. 191
22
ALMOEDO, 2001. Op. Cit,. p. 194 (texto em revisão para publicação)
A falta de oficiais no sertão implicava não só no desempenho das instituições de justiça,
como a vida da população que era controlada por ela. No quadro, é perceptível a falta de oficiais
para essas câmaras, em Ararobá contava-se com câmara, pelourinho e cadeia, o juiz ordinário
que lá assistia, tinha como seu oficial um escrivão, a câmara também contava com o capitão-
mor; Pilão Arcado, mantinha câmara, juiz ordinário e escrivão. Em Rodelas, além da câmara,
o juiz ordinário, contava com um escrivão. Em Rio Grande do Sul a presença era da câmara,
com juiz ordinário e dos órfãos, escrivão e meirinho.
O quadro de agentes também revela que o juiz ordinário se faz presente em todas as
vilas. Os juízes ordinários se encontravam nos termos, ou municípios, menor divisão
administrativa, eram eleitos pela câmara municipal, com alçada sobre as demandas que surgiam
no espaço da jurisdição da comarca23. Nomeados trienalmente, servindo no período de um ano
os ocupantes deste cargo não eram ‘letrados’, isto é, não tinham formação jurídica. Entre as
atribuições do cargo de juiz estão o domínio da manutenção da ordem pública, da defesa da
jurisdição real, da contenção dos abusos dos poderosos e policias e ainda deveriam assistir aos
vereadores e almotacés. Tendo sua presença concisa nas localidades do sertão, podemos afirmar
que além de sua influência para esses espaços dilatados, esse juiz era a representação de um
poder formal civil no sertão, contemplando a extensão de seus julgados, acentua a necessidade
deste magistrado, para a justiça. Ainda sobre a influência destes oficiais, o estudo de Yan
Morais, afirma que esses cargos e ofícios não davam apenas autoridade para seus ocupantes,

192
23
SALGADO, Graça.(coord) Fiscais e Meirinhos: a administração no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985. p.75
mas antes legitimavam sujeitos que estavam construindo distinção e prestigio para si através do
serviço real na conquista ou no aumento de cabedal pela obtenção de largas extensões de terra24.
Virgínia Assis diz que alguns historiadores chegaram a ver na figura dos juízes
ordinários os representantes mais autênticos do terceiro estado da sociedade portuguesa,
entretanto a realidade é diversa. Na verdade, esses magistrados ‘populares’ eram recrutados,
tanto no Reino como no Brasil, apenas entre os estratos superiores das sociedades locais, até
serem substituídos por aqueles de nomeação régia.25 A instituição destes cargos nestas
localidades também nos mostra o discernimento no olhar para o sertão em termos da
importância da presença de juízes nos espaços coloniais.

Conclusões

A pesquisa tentou trazer o sertão pelo olhar da justiça, que mesmo sem uma ordem
estruturada, é presente neste espaço, através das instituições judiciais e embates que o sertão
colonial de Pernambuco, assim como o das outras Capitanias do Norte, registram. As fontes
revelaram informações fragmentadas, indícios sobre conflitos de jurisdição, sobre as
instituições e os mandos da metrópole. Entretanto, a documentação nos permite concluir que, a
área referente ao controle da ouvidoria de Pernambuco era privilegiada em instituições de
justiça em contraste com a ouvidoria de Alagoas, sobretudo em relação ao número de agentes.
Desse modo, reforçando a ideia de sede da ouvidoria de Pernambuco. Também é
possível perceber que havia na prática uma atuação da ouvidoria desta capitania no sertão, que
atendia aos interesses da Coroa em buscar controle deste espaço e também aos interesses dos
agentes da Capitania em ampliar o seu próprio controle. No período estudado, o sertão cresceu
também, pelas vias institucionais, ainda que de forma lenta, pelo menos, até a metade do século
XVIII, quando há mais formações de vilas, algo semelhante acontece com a justiça, pois a partir
do povoamento a necessidade de controlar foi se tornando na medida do crescimento dos
espaços. A distância territorial que se tinha não anulava a presença judicial, mas influenciava
numa dinâmica diferente. Assim como ocorreu com as autoridades de Pernambuco que atuaram
no judicial do sertão que estudamos.

24
MORAIS, 2018. Op.cit.p 167. 193
25
ALMOEDO, 2001. Op. Cit, p. 194 (texto em revisão para publicação)
Referências

ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de história colonial. São Paulo: Itatiaia, 1988, p. 141-
21

ALMOEDO, Virgínia Maria Assis. Palavra de rei – autonomia e subordinação na capitania


hereditária de Pernambuco. Tese de doutoramento defendida no ano de 2001. Recife, UFPE

CUNHA, Mafalda Soares. Territorialização e poder na América portuguesa. A criação de


comarcas, séculos XVI-XVIII. Tempo, Rio de Janeiro, v. 22, n.39, p 01- 30, jan-abr. 2016.

GUEDES. Paulo H. M. No íntimo do sertão: poder político, cultural e transgressão na


capitania da Paraíba (1750-1800), 2013. 319.f. tese (Doutorado em História), Universidade
Federal de Pernambuco. Recife.
NANTES, Martinho. Relação de uma missão no Rio de São Francisco. São Paulo. Editora
Nacional. 197. P.123
MORAIS, Yan Bezerra. “È por ser de conhecida a nobreza”: Elites locais e deres de
reciprocidade no sertão do Piancó, Capitania da Paraíba do Norte, 1711-1772. Dissertação
(Mestrado em História). Universidade Federal Rural de Pernambuco. Recife, p.194, 2018.
SALGADO, Graça (coord.) Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. Editora
Nova Fronteira. Rio de Janeiro: 1985.
SILVA, Ana Cristina. O modelo espacial do estado moderno: reorganização territorial em
Portugal nos finais do antigo regime. Editora estampa, Portugal,1998.
SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. ‘Nas solidões vastas e assustadoras’: a conquista do
sertão de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII. Recife: Cepe,
2010.

194
“QUE POR FALECIMENTO DO SEU PAI LHE PERTENCE REQUERER: A
PATRIMONIALIZAÇÃO E A DINÂMICA DO CARGO DE JUIZ DE
ÓRFÃOS NA CAPITANIA DE PERNAMBUCO (1726-1750)”

Jéssica Menezes1
Mestranda,UFRPE
jessicamsmenezes@gmail.com

Introdução

Este artigo pretende debruçar sobre um aspecto da história da administração da justiça


portuguesa no espaço colonial de Antigo Regime. A partir de uma abordagem que procure
traçar as maneiras pelas quais se deram a dinâmica do cargo de juiz dos órfãos, especificamente,
no que tange a forma de prover este ofício. As maneiras de prover o ofício que pretendemos
analisar não ocorreram de maneira uniforme nos diversos territórios do Reino de Portugal, dessa
forma seguiram lógicas diversas. Assim, reconstruir as maneiras encontradas para a Capitania
de Pernambuco nos possibilitará compreender a dinâmica do cargo, dentro de um contexto
particular desta capitania no setessentos.
Desse modo, estudar um aspecto de uma instituição dentro do organograma do Império
Português, revela-se um importante caminho para compreender as complexas relações entre o
reino e suas colônias, bem como, a estrutura e organização do aparelho administrativo e judicial
ultramarino. Assim, teremos meios para ponderar a eficácia quanto à garantia do bom governo
nos espaços das conquistas, como também a regularidade de agentes atuando no juízo.
Neste ínterim, pretende-se discutir a importância do encartamento da propriedade de um
ofício a partir de um contexto socioeconômico, visto que, possibilitava, além de um prestígio
social, uma forma de ascensão econômica daqueles que conquistavam a propriedade de um
ofício da administração régia. Somado a isto, tem-se a garantia à sucessão hereditária. Apoiada
nesta expectativa da hereditariedade, pretendemos entender a importância para a família, tendo
em vista as estratégias de manutenção da propriedade do ofício dentro da mesma família.

Patrimonialização e hereditariedade dos ofícios no Antigo Regime Português

Os ofícios intermédios, do qual fazia parte o cargo de juiz dos órfãos, eram numerosos
e estratégicos para a administração portuguesa. Estes foram aqueles cujas características
195
1
Esta pesquisa é fomentada pelo CNPQ e orientada pela Profª. Drª. Jeannie da Silva Menezes, UFRPE.
consistiam em ser remunerados, não honoráveis, ainda que não incompatíveis com a nobreza.
Entretanto apesar de possuírem uma natureza trienal, estes foram frequentemente concedidos
em forma de propriedade (STUMPF, 2014, p. 620). Em vista disso, temos para essa forma de
prover um ofício régio, ou seja, a dada do cargo em propriedade, preservara-se a vantagem
quanto à expectativa dos herdeiros de herdarem a propriedade, mesmo esta não se tratando um
bem, essencialmente, patrimonial.
Como também nos alertou Mafalda Soares da Cunha, para o fato dos oficios locais
serem aqueles cuja ocorrência da patrominialização era mais frequente. Atrelado a este fato o
entendimento que existia era que aos filhos pertencia o direito de herdar os ofícios dos pais.
Nas linhas que se seguem pretende-se, portanto, desenvolver acerca de tal mecanismo de
provimento (CUNHA, 2012, p.28).
As palavras, patrimonialização e propriedade, precisam ser melhores compreendidas
para o contexto do Império Português em análise. Koseleck adverte para a utilização de
palavras, cujos conceitos precisam vir acompanhados de certo nível de teorização e
contextualização. Articulando-se, assim, ao contexto do Antigo Regime, patrimonialização e
proprietário de ofícios não são entendidos como nos dias atuais (KOSELLECK, 1992).
A patrimonialização refere-se a uma modalidade de prover um cargo da administração
da justiça régia. Somente no reino e exclusivamente pelo monarca, eram expedidas as cartas
que oficializavam a obtenção da propriedade do ofício. Segundo o estatuto jurídico do
proprietário, este não podia dispor do ofício da forma como quisesse, pois, detinha apenas sua
administração, sendo o domínio exclusivo do Soberano (STUMPF, 2014, p.624).
Entretanto, a patrimonialização de cargos existiu em observância ao direito de sucessão
dos filhos dos proprietários2. O que, por sua vez, reproduzia uma expectativa, e a partir dela,
ficava a coroa impedida de violar a cadeia de sucessão hereditária, de fato, o soberano não
costumava contrariar tal "expectativa". (HESPANHA, 1982, p.327)
A propriedade de um ofício não era considerada um bem particular, não constava, por
exemplo, nos inventários daqueles que a possuíam. Sobre este aspecto, ficava o Soberano,
desobrigado de qualquer satisfação, caso pretendesse retirar o ofício de quem o possuísse
(STUMPF, 2014, p.624).
Apesar de não se conceber em um bem particular, os cargos providos em propriedade
eram, segundo o costume e a doutrina, hereditários. Pelo direito consuetudinário, manteve
resguardadas as prerrogativas dos herdeiros dos proprietários de “herdarem” os cargos. Como

196
2
A transmissibilidade não trazia benefícios apenas aos filhos varões, dessa forma atendeu também as expectativas
de viúvas ou de filhas mulheres em forma de dote.
se observa de uma provisão régia, passada no ano de 1741, constando que “[...] quando falecer
algum proprietário sem culpa ou erro de oficio, tendo filhos a quem pelo direito consuetudinário
pertença o requerer a mercê do oficio, e entretanto haver a terça parte do rendimento dele;[...]”
(ABNRJ, 1906. p.385).
Neste ínterim, é importante pontuar que a transferência do ofício para os herdeiros não
ocorria de maneira automática. Primeiramente, deveria haver uma solicitação feita pelo
proprietário, ainda em vida, ou pelo seu herdeiro, constando já do falecimento do titular. Logo
em seguida era necessário fazer o encaminhamento do pedido ao Reino e aguardar a
confirmação régia para a validação da transmissão e posterior encartamento da propriedade de
um ofício3 (MIRANDA, 2012, p. 94).
Aqueles que recebiam um ofício em forma de propriedade pelo rei não eram habilitados
para alienar seus cargos, ou seja, passar para outro dono por venda ou outro modo, o que apenas
usufruía ou administrava (BLUEAU, 1789, p.59). Embora a renúncia, neste caso, a abdicação
de possuir ou exercer o cargo nomeando alguém (BLUTEAU, 1789, p.322), fosse possível.
Dessa forma, a alienação poderia vir transvestida de uma renúncia. Mesmo assim, era essencial
para a validade do ato a autorização do reino. As Ordenações Filipinas determinavam que
“qualquer oficial não possa vender os ofícios, que de nós tiverem, sem transpassar, nem
renunciar em outro sem nossa especial licença”. O que se pretendia evitar era uma negociação,
de algum lugar da administração régia, feita entre dois particulares. Servindo, a coroa, como
um meio de controle, cujo [...] objetivo expresso de garantir qualidade no exercício dos cargos.
Por isso estava estabelecido que os ofícios não deviam ser vendidos e que o oficial provido
devia servir por si e não ceder o cargo a qualquer serventuário" (CUNHA, 2012, p.21).
A condição para se confirmar a hereditariedade de um ofício patrimonial tinha como
base uma análise prévia referente à idoneidade do sucessor, bem como ao modo como o
antecessor havia servido. Por conseguinte, carecia de uma confirmação régia que pretendia
reapreciar a oportunidade da doação, além de verificar os requisitos de sucessão, provocando,
dessa forma, o reconhecimento da autoridade que nomeia por pela pessoa que está sendo
nomeada. Sublinhando, mais uma vez que, o soberano 4 não costumava contrariar as
“expectativas dos filhos” (HESPANHA, 1982, p.327).

3
Existia o mecanismo, decorrente da lógica patrimonial, da concessão de alvarás "de lembrança" para os filhos
dos oficiais. O alcance deste mecanismo resultava no fortalecimento dos laços familiares, assim como no
desenvolvimento de um meio de acesso aos cargos especial
4
A opinião consagrada pela doutrina repousa no fato de que o rei possuía um dever deontológico, inclusive, de 197
continuar as doações de seus antecessores. Hespanha aponta que nos séculos XVI e XVII, a confirmação se
verificava para quase totalidade dos casos.
Apesar da necessidade de uma previa autorização régia, a tradição da hereditariedade,
conferiu ao monarca uma posição de dependência em relação aos seus oficiais, no que concerne
à efetivação de sua própria vontade política. Dessa forma, o que a doutrina apresentava como
delegação do poder do soberano, assistiu na prática, a dispersão deste poder pelo oficialato
régio.
Portanto, este jogo de poderes no Antigo Regime, foi marcado, de um lado pela ampla
proteção ao direito dos particulares, cuja segurança estava amparada na doutrina, que garantia
a inviolabilidade do direito adquirido. Sendo que, no outro pólo, estava o poder, neste aspecto,
limitado de intervenção da coroa portuguesa. Consiste em um sistema paradoxal, como alerta
Hespanha, "sistema que ao mesmo tempo era monárquico e pluralista", segundo o autor deriva
do fato da "manifestação, neste campo, do modo como o pensamento medieval, entendeu, em
geral a unidade" (HESPANHA, 1982, p.527)
A doutrina dominante entendia que o oficial proprietário não poderia ser afastado do
ofício sem ter dado uma causa justa. Além disso, existia uma proteção, já mencionada, quanto
à obrigação do príncipe de dar aos filhos os ofícios dos pais. Logo, mais do que uma
indisponibilidade régia em vida do titular, tem-se uma indisponibilidade do rei também na
morte daquele. Na visão de Hespanha, configura-se “um domínio privilegiado quanto à
proteção dos direitos face ao poder” (HESPANHA, 1982, p.328).
Multiplicavam-se as formas de prover um ofício quando este era concedido, pela coroa,
em propriedade. Apesar de não estarem vinculados aos bens particulares dos proprietários, eram
frequentemente transferidos aos seus herdeiros, como já vimos. Além disso, podiam ser ainda,
renunciados ou arrematados, constituindo-se em “[...] bens transacionais, gerando renda a seus
proprietários” (STUMPF, 2014, p. 625).
Pela perspectiva régia, a patrimonialização de ofícios, ao reconhecer o direito dos filhos,
estabeleceu um obstáculo à venda dos ofícios pela própria coroa (HESPANHA, 2010, p.67).
Mesmo assim a economia de mercê e a venalidade existiram de forma indissociável, para
atender tanto aos interesses do reino, quanto dos súditos. O problema da venalidade, em um
contexto onde a economia de mercê era o princípio base da sociedade, assentava no fato da
possibilidade de compra de uma honra dizimar o esforço do vassalo, desse modo, a venda
significaria a compra de um privilégio (OLIVAL, 2003). A prerrogativa da monarquia, quanto
à venalidade, foi sempre da "cautela e a prudência parecem ter sido regra comum" 5 (STUMPF,

5
Roberta Stumpf, informa-nos que, mesmo que ampliemos o sentido de venalidade de ofícios, ainda assim é 198
difícil afirmar que a coroa portuguesa tenha empregado-a de forma recorrente. Sendo lograda apenas como um
"recurso último, como um mal menor" dentro de uma "urgência financeira". STUMPF, Roberta. 2012: 282).
2012, p. 283). A transmissão concretizava-se quando o proprietário cedia o exercício do cargo
em favor de seu serventuário, este, segundo o dicionário de Bluteau era "o que serve o ofício
em vez do proprietário" (BLUTEAU, 1789, p.396). Ainda assim, o rei precisava homologar a
nova nomeação. Cabe, neste momento, apontar as circunstâncias para a dita confirmação:
Procurava-se, pois garantir a qualidade do desempenho, evitando
transferências no seu exercício não controladas pela Coroa. Daí que as
situações de impedimentos, que podiam até desembocar em renúncias do
exercício do cargo por parte do titular, tivessem que ser bem justificadas e
feitas nas mãos do rei, no que se tentava evitar transações entre particulares.
(CUNHA, 2012, p. 21)

Utilizando o referencial teórico de A. M. Hespanha, temos, que a “teoria feudal do cargo


publico” através de sua concepção patrimonial-feudal dos ofícios, absorveu a “teoria funcional-
corporativa do ofício”. Segundo o pesquisador português do direito e das instituições, nesta
perspectiva, a noção de honra sobressaiu à ideia de função, a fidelidade se impôs a competência
e a patrimonialização afastou a ideia de revocabilidade (HESPANHA, 1982).
À vista disso, os ofícios foram sendo incorporados ao patrimônio dos oficiais. Mediante
uma proteção das suas garantias e privilégios, face ao impedimento do Rei em dispensar, sem
justa causa. Cujas, autonomia e jurisdição foram resguardadas, frente às tentativas régias de
impor a sua vontade (HESPANHA, 1982, p.394-400).
Tratando da patrimonialização de ofícios, A. M. Hespanha ressalta ainda que, a
vantagem da continuidade dos herdeiros era o de estabelecer uma “tradição familiar” do serviço
público, o que concorreria para o desenvolvimento de uma “cultura administrativa” da
hereditariedade dos ofícios. Esta iria “consolidar a sua própria autoridade (proprietário),
estabelecer a ideia transpessoal do serviço publico e desenvolver um corpo de regras técnicas e
deontológicas que racionalizavam o exercício de cada cargo” (HESPANHA, 1982, p.393).
Os desempenhos dos vassalos nos cargos públicos eram meios de ascensão social,
através da oportunidade de préstimos de serviço na administração régia. Além disso, as
continuidades das fórmulas desempenhadas pelos proprietários se constituíram como uma
forma de prolongar a exploração econômica e dominação política dos detentores dos cargos
(CUNHA, 2010, p.143,144).
No Antigo Regime, a patrimonialização dos ofícios, era amplamente defendida pelos
juristas favoráveis ao tema. Acreditavam ser este um mecanismo que poderia garantir um bom
e regular funcionamento da administração régia, por possibilitar um ajustamento dos interesses
do rei junto com os dos proprietários. De acordo com a lógica cultural da política de Antigo
Regime o recebimento de uma mercê real implicava em gratidão como resposta ao soberano, 199
nesse sentido, daqueles que recebessem uma propriedade esperava-se maior gratidão, esperava-
se também, que estes melhor administrassem seus cargos.
A coroa em matéria sobre os proprietários servirem seus ofícios, apresentou a seguinte
ordem, em 1662. Nela é possível observar a insistência régia para que os titulares proprietários
assumam seus cargos e desempenhem suas funções.

[...]Por duplicadas vezes se tem ordenado que sirvam ai seus ofícios os


proprietários deles pelos inconvenientes, que do contrario se segue ao meu
serviço, e ao bom governo desse estado, pois e certo que sempre estes hão de
fazer melhor a sua obrigação, que os serventuários. Vos encomendo de novo
que assim os façam executar em toda essa capitania , e que os proprietários
sirvam seus ofícios. (ABNJR, 1906, p.354, 355)

Fica claro a posição régia sobre o assunto, assim como a reiterada preocupação em
relação à matéria. As funções serem exercidas, preferencialmente, pelos seus proprietários se
explica em razão destes exercerem uma melhor administração de seus cargos. A convicção da
coroa portuguesa era de que a serventia dos ofícios seria um caminho para a incompetência, por
isso a preocupação. Apesar de o costume contar com uma grande autonomia por parte dos
funcionários proprietários a coroa buscou mecanismos que não permitissem que o processo
escapasse de seu controle.
Neste sentido é interessante destacar a importância da “economia de mercê” para a
administração régia nos territórios ultramarinos. Esta economia se fundou a partir de um sistema
de relações que tinham como base trocas recíprocas de favores entre o rei e seus súditos. E
assim, se constituiu como a lógica básica do exercício do poder régio em seus domínios. A
mercê era adquirida através da soma de um determinado número de anos de serviços prestados
a Coroa Portuguesa. Sendo, portanto, uma forma de recompensa aos serviços, “à mercê
correspondia a um direito e um valor material, não apenas um código de distinções” (OLINAL,
2003 p.748).
Os grupos favorecidos com o provimento dos ofícios intermediários dados em
propriedade foram aqueles que ocupavam a camada intermediaria da sociedade. Por
conseguinte, entendemos grupos intermédios como aqueles pertencentes ao funcionalismo
colonial de segundo escalão (ALMEIDA, 2005). Estes estavam em uma posição mediana entre
nobres e plebeus, entretanto se aproximavam mais do estilo de vida nobre, sendo conhecidos
por “viver a maneira da nobreza”, considerados, portanto, “nobres de ínfima espécie”
(DURÃES, 2013, p.327). Para estes, os cargos intermédios, representaram uma via de ascensão
social, alcançada pela oportunidade de serviço régio e pela consequente remuneração.
200
Para estes grupos a aquisição de uma propriedade se constituiu como uma estratégia de
ascensão e manutenção social. A importância se dava dentro do contexto social e familiar. Já
que era possível captar renda para o sustento familiar, seja através do exercício efetivo do cargo,
recebendo os salários correspondentes a função, ou através da concessão de serventias, pelas
quais recebiam parte da remuneração.
As justificativas sociais para a sucessão hereditária da propriedade dos ofícios
depreendem da necessidade de manutenção social deste grupo intermediário e do consequente
equilíbrio social da sociedade. Ao cruzarem por momentos de incertezas, decorrente da morte
do titular ou seu impedimento, percebiam ser a sucessão familiar do ofício, ou sua serventia
uma maneira de manter o sustento familiar.
A sucessão hereditária de um cargo régio poderia ocorrer pela transmissão direta, esta
passada de pai para filho, ou de maneira indireta, por sucessão feminina, como dote, para o
consorte. Neste caso, tornando-se, inclusive, um fator atrativo para as ocorrências matrimoniais.
Quando as herdeiras eram mulheres, o ofício oferecido como dote, era uma forma de
ingresso no mercado matrimonial. O casamento ainda promovia a segurança e estabilidade para
estas mulheres. Neste sentido, o matrimônio assistiria como forma para alcançar desejos e suprir
necessidades (CARLO, 2014, p.23).
O caminho que fez com que a obtenção de cargos régios auferisse um sentido
patrimonial foi à instituição dotal (MENEZES, 2013). A trajetória do cargo de juiz dos órfãos
de Pernambuco não fugiu a esta regra, como se observa na carta de propriedade, que diz fazer:
“[...] mercêr a Duarte de Albuquerque da Silva da propriedade de Juiz dos órfãos de
Pernambuco por lhe haver dotado Feliciano de Araujo de casar com sua filha Dona Maria de
Araujo[...]” , segundo consta, a propriedade concedida a Feliciano, se justifica pela “ satisfação
dos serviços que fez nas guerras”, desse modo, apresentado também como uma resposta ao
súdito em favor préstimos em favor da coroa Portuguesa (AHU_CU_015, Cx. 33, D. 2999).
Neste ponto da analise, cabe adentrarmos no contexto da capiania de Pernambuco, no
marco temporal entre os anos de 1726 a 1750. A partir da investigação empreendida para o
ofício de Juiz de órfãos, onde procuraremos elucidar as dinâmicas que se desenharam
localmente.

“Sem embargo de já estar assim determinado”: a propriedade do ofício de juiz dos órfãos
da Capitania de Pernambuco.

O Juizado dos Órfãos, importante corpo administrativo-judicial do reino, era destinado,


201
especialmente, para o enfrentamento de questões envolvendo o amparo e regularização dos
menores de idade, ou seja, os menores de 25 anos, como também daqueles considerados
incapazes, que ficavam órfãos de pai (apenas), decorrente do falecimento, ou ainda, por sua
insuficiência. Sua jurisdição estava atrelada a todos os feitos cíveis em que os órfãos fossem
autores ou réus. O ofício que superintendia este juízo era o de Juiz dos órfãos.
O Livro Primeiro, título 88, do código das Ordenações Filipinas figura a regulamentação
do cargo de juiz dos órfãos, embora, já estivesse inserida nas Ordenações Manuelinas, a
designação do cargo para toda vila ou termo que contasse com mais de quatrocentos vizinhos,
e onde não houvesse esse contingente serviria ao cargo um juiz ordinário.
A criação do cargo de juiz dos órfãos se deu por alvará de 2 de maio de 1731, e pode
ser assegurado para Pernambuco através da carta, datada de 19 de março de 1732, do ouvidor
geral de Pernambuco, Antonio Rodrigues da Silva, a D. João V, informando da eleição para o
cargo de juiz dos órfãos e seus escrivães, realizada separadamente da eleição para o cargo de
juiz ordinário nas vilas de Igarassu e Serinhaem, sendo cumprido, assim, o referido alvará. Na
verdade, há informações sobre o ofício no século XVI, entretanto em 1685, temos referência
do juízo dos órfãos em Pernambuco, na carta que o ouvidor geral da capitania, Dionísio Ávila
Vareiro, escreve a D. Pedro II, relatando sobre a criação do cargo de Meirinho para execuções
do Juízo dos Órfãos.
O ano de 1702 marca o estabelecimento da Justiça mais especializada e técnica em
Pernambuco com a chegada dos juízes de fora. Entretanto, o incremento de magistraturas
letradas coexistiu com as judicaturas não letradas, conhecidas como ordinárias. Entendia-se que
os juízes ordinários ficavam à mercê de forças políticas locais, fato que interferia no
desenvolvimento de suas atividades. Enquanto que os juízes de fora, letrados e com formação
doutrinária em Coimbra, ao menos na teoria, ensejavam controlar os embates com os poderes
locais, sustentando e estendendo a base do governo régio nas colônias e na metrópole (ROCHA,
2016).
Os juízes dos órfãos, a partir do século XVI foram sendo substituídos por juízes letrados,
no nível municipal. Entretanto, em Pernambuco, foi concedida a propriedade do ofício de juiz
dos órfãos, sendo este cargo exercido por juízes não letrados, como consta na documentação do
Arquivo Histórico Ultramarino, referente a requerimentos da carta de propriedade do ofício.
Interessante destacar que para os diversos territórios do Reino Português, a evolução e
organização deste cargo não ocorreram de maneira linear, sendo observadas particularidades
nas formas de prover este ofício, das quais trataremos adiante.
A trajetória da propriedade do cargo de juiz dos órfãos de Pernambuco teve inicio 202
mediante a instituição dotal. A lógica que se segue será a sucessão direta de pai para filho.
Visitando a documentação do Arquivo Histórico Ultramarino nos deparamos com um
requerimento, de 1726, feita pelo herdeiro do coronel Duarte de Albuquerque Silva, o Sargento-
mor Jacinto de Freitas Acioli de Moura. Nas linhas enviadas ao Rei, D. João V, requere a carta
da propriedade do ofício de Juiz dos órfãos da Capitania de Pernambuco. Para tanto se declara
“apto e capaz para bem exercitar o dito ofício”. Diante disto, acrescenta em seu pedido, “[...]
que por falecimento do seu pai [...] lhe pertence requerer carta de propriedade do ofício [...]
como consta do inquérito de justificação que apresenta” (AHU_CU_015, Cx. 33, D. 2999)
A coroa admitia serem as qualidades dos titulares proprietários superiores as dos
serventuários. A conveniência da hereditariedade favorecia a “preservação da memória e da
prática administrativa”, portanto, havia uma previsão quanto à eficiência administrativa como
resultado das transmissões hereditárias. Aqui, podemos fazer uma análise comparativa com os
ofícios mecânicos, em que a aprendizagem era transmitida pelos mestres aos seus aprendizes
(STUMPF, 2014, p.622). Entretanto, este não era o único e dominante fator pela preferência do
provimento em propriedade dos ofícios. Outros como, a consequente retribuição dos serviços
prestados pelos vassalos, a regularidade e a continuidade da administração, também são
importantes condicionantes.
Como vimos os proprietários não dispunham de um direito formal de transmitir os seus
ofícios aos seus herdeiros, mesmo este tendo se tornado um costume doutrinal, onde
frequentemente, a coroa respondeu de forma positiva ao atender as expectativas dos herdeiros.
Assim, o que nasce a partir de um aspecto temporário dos cargos de nomeação régia, passa a
carregar um caráter patrimonial. O que demonstra também a existência de uma forte ligação
familiar.
Como já assinalado, os proprietários possuíam direitos formais que permitiam a
nomeação de serventuários, com os quais dividiam parte da remuneração. Deste modo, quando
não exerciam seus ofícios, mesmo assim, tinham o direito de receber a parte que lhes cabia da
propriedade. Para tanto, deveriam comunicar os motivos, sendo de força maior, pelos quais
estavam impedidos de servir aos seus ofícios. Fato que podemos constatar nessa ordem régia,
de 1668, passada para a Capitania de Pernambuco. Nas linhas que se seguem o que fica exposto
é que muito do que acontecia com estes cargos, dados como propriedade, fugia do controle da
coroa.

[...] Sou informado que muitos dos proprietários dos ofícios da justiça e
fazenda com qualquer leve ocasião deixam ai de servir seus ofícios, e os dão
em serventia; e porque isto é contra todo o bom governo e em dano do meu
serviço, e das partes: vos encomendo muito que ordene ao provedor da 203
fazenda desta capitania, e ao ouvidor geral dela, que cada um, pelo que lhe
toca, me enviem logo uma relação dos ofícios, que se servem de serventia,
porque ordens, e quão são os proprietários, e a causa, porque não os servem,
ordenando que sejam notificados, que sirvão seus ofícios, ou dêm a causa
porque o não fazem, para que sendo justa e recorrendo a mim o haja assim por
bem, e não o sendo os mandarei então prover em quem me parecer[...]
(ABNRJ, 1906, p.357)

No ano de 1729, o proprietário do ofício de Juiz dos órfãos da Capitania de Pernambuco,


Jacinto de Freitas Acioli de Moura, solicita que seja pago a parte que lhe cabe, já que,
encontrava-se impedido de atuar no seu ofício por motivos de saúde. O cargo, então, estava
sendo exercido por um serventuário.
Ele argumenta que vem “exercitando o suplicante o ofício com todo o zelo, e bom
procedimento”, entretanto justifica que está impedido de continuar exercendo a função, pois
“lhe sobreveio queixa, que totalmente lhe impede poder andar a cavalo”. Continua e afirma ser
“a dita queixa tão grave e perigosa, não pode o suplicante com tanto detrimento de sua saúde e
perigo dever continuar na serventia do dito ofício, o qual tem algumas diligências que
necessariamente se devem fazer a cavalo” (AHU_CU_015, Cx. 39, D. 3543).
Segundo consta, o requerente anexa certidão que comprova seu estado de saúde, passada
por um médico e cirurgião que acompanha o seu caso. Segundo ele, “o seu serventuário
duvidaria contribuir-lhes com a sua direita parte, e justo emolumento”. Apontando, o suplicante,
ser este um costume praticado pelos proprietários de todos os ofícios. Na continuidade de seu
requerimento, ele argumenta, “sem embargo de estar já assim determinado por sua lei
extravagante que o sereníssimo S. D. Afondo IV mandou promulgar sobre esta idêntica matéria
e urgente dúvida” (AHU_CU_015, Cx. 39, D. 3543).
Cabe assinalar que a forma de prover o ofício de juiz dos órfãos se desenvolveu de
maneira diferente em outros contextos das extensões territoriais de Portugal. Estes juízes
poderiam ser eleitos, assim como eram os ordinários ou serem nomeados pelo prazo de três
anos pela coroa. Ainda poderiam adquirir o cargo de forma vitalícia, hereditária ou em
serventia. Segundo as Ordenações Filipinas, era requisito o oficial ter a idade mínima de 30
anos (Ordenações Filipinas, Livro 1, Título 88)
Nuno Camarinhas, ao desenvolver um estudo prosopográfico de fôlego sobre os
ministros da justiça de Portugal, define ser o cargo de juiz dos órfãos exercido no nível
concelhio, eleito localmente e sem letramento, entretanto, admite exceção para casos em que
eles eram letrados e nomeados pela coroa (CAMARINHAS, 2013).
Dialogando com outros contextos coloniais, se verifica que no Rio de Janeiro, o juizado
dos órfãos foi praticamente monopolizado pela família Telles de Menezes. Para tanto se admite 204
que quanto à organização e funcionamento do cargo, o ofício de juiz dos órfãos não teve uma
evolução linear e simples, havendo lugares que seguiram lógicas diferentes (MACHADO,
2010, p. 45).
Em uma provisão régia com matéria do cargo de juiz dos órfãos, de 1736, passada para
a Capitania de Itamaracá, fica clara a coexistência destas formas. A coroa se posiciona contrária
à realização de eleição para o cargo de juiz dos órfãos, pelo fato deste cargo ter um proprietário:

me pareceu dizer-vos que obrastes bem em não deixar servir este oficio (juiz
dos órfãos) pelo nomeado pela câmara visto ter o mesmo oficio proprietário,
ao qual deveis obrigar a servir o seu ofício, e quando tenha justo impedimento
a vós vos toca prover a serventia dele na forma dos mais ofícios; porque a lei
somente manda fazer eleição de juiz dos órfãos nas terras , aonde os não há
proprietário. (ABNRJ, 1906, p. 353)

Para o caso especifico da capitania de Pernambuco, mais especificamente para o lugar


de juiz de órfãos de Olinda e Recife, interpretamos, tomando como base os requerimentos
encontrados no AHU, pela alternância entre duas situações. A primeira em que o exercício do
cargo estava sob a administração de um juiz proprietário e a segunda, em que, nos casos de seu
impedimento, serviria ao cargo um serventuário. Lembrando que, serventuários eram
considerados, ordinariamente, como aqueles que serviam os ofícios no lugar dos proprietários
(BLUTEAU, 1789, p.396).
Indícios apresentados na documentação nos fazem indicar que o juiz de fora se
apresentava como serventuário do cargo, quando de algum impedimento do proprietário. O que
estaria, neste caso, de acordo com as determinações das Ordenações Filipinas, que sobre a
matéria prescrevia: “sendo impedido, ou suspenso o juiz dos órfãos de qualquer lugar, servirão
os juízes ordinários, ou o juiz de fora, se houver, enquanto nós não mandarmos o contrário”
(Ord. Filipinas, Livro I, Título XCVIII, parágrafo 8º).
Os documentos referentes a propriedade do cargo e a sua dinâmica dão rastros da
ocorrência de possíveis querelas que ocorriam entre os juízes de fora, que acumulavam o cargo
de juiz dos órfãos. Estas disputas se davam em razão da falta do pagamento das terças partes
que cabia ao proprietário. Segundo Decreto Régio, passado em 23 de dezembro de 1723, a
requerida parte deveria ser paga “em quanto não se proverem as ditas propriedades, se nomeiem
as serventias deles, contribuindo os serventuários no fim do ano com a terça parte de tudo o que
render dentro do dito tempo”.
No requerimento de Jacinto Acioli de Moura, citado acima, é pedido a sua majestade o
cumprimento do pagamento da parte que lhe cabe, pois este “atendendo ao justificado
205
impedimento com que o suplicante se acha para não poder continuar no exercício do dito ofício
e por evitar novas contendas”. O suplicante apresenta sua justificativa assente em um atestado
médico, confirmando às razões do seu impedimento. Ocorrência que condiz com a exigência
régia referente à matéria. Acrescenta também sua insatisfação quanto ao não pagamento dos
rendimentos do seu cargo. Além de assinalar para disputas ocasionadas pela dinâmica do cargo
(AHU_CU_015, Cx. 39, D. 3543).
Outros percalços delinearam a dinâmica do cargo de juiz de órfãos. No ano de 1744 o
cargo é solicitado ao rei, D. João V, pelo tenente-coronel, Simão Gonçalves Ribeiro. Afirma o
requerente que o cargo é de propriedade do seu enteado menor, Felipe Francisco Rolim Acioli
de Moura, de quem ele é tutor. Ele se apresenta “hábil e ter os requisitos para o bem servir do
dito oficio; e ter em sua companhia o dito menor seu enteado a quem educa com toda a
grandeza.” Segundo ele a serventia poderá lhe proporcionar meios para “com maior facilidade
assistir a criação e educação do dito menor seu enteado” (AHU_CU_015, Cx. 60, D. 5160).

Esta solicitação apresenta-nos indícios, quanto aos argumentos utilizados pelo tutor do
menor, visto à expectativa do menor herdar a propriedade, como justificativa do pedido da
serventia. A sua primeira alegação se fundamenta no fato do solicitante permanecer na
companhia do proprietário do cargo, que pela sua menoridade encontrava-se impedido de
exercer o seu ofício. Assim, poderíamos inferir que este argumento toma como base a
concepção de uma continuidade administrativa, sendo o tutor uma espécie de mestre para o
menor que seria seu aprendiz, e dessa forma, se consolidaria em um treinamento para o serviço
régio pela mão de um parente próximo (MIRANDA, 2012).
Caso o requerimento do tutor do menor, filho do ultimo proprietário do cargo de juiz
dos órfãos, tivesse sido atendido, seria possível se estabelecer uma continuidade das fórmulas
utilizadas na administração do cargo, consolidado através do prolongamento da “exploração
econômica e de dominação política” (SALGADO (coord.), 1985, p. 144), desenvolvida dentro
do ambiente familiar. Além disso, ele assinala serem os devidos pagamentos um meio de manter
e educar o menor. Desse modo, os motivos apresentados se justificariam, também, pela
necessidade da manutenção social e sustento familiar.
Segundo consta na carta do Governador de Pernambuco, D. Marcos José de Noronha e
Brito, passada em 1747, o cargo de juiz dos órfãos estava sendo exercido pelo juiz de fora. A
carta apresenta o parecer do governador sobre o requerimento de Felipe Francisco de Moura
Acioli, filho de Jacinto Acioli de Moura.
Consta no documento que o “requerimento do proprietário se funda em que o juiz
serventuário lhe pague a terça parte do ofício”. Nota-se, mais uma vez, a necessidade de recorrer 206
ao rei para o devido cumprimento do pagamento das partes de direito do proprietário. Alega o
governador, que o “juiz de fora se tinha introduzido nesta serventia sem titulo” e, ainda
denuncia que o juiz de fora estaria “atendendo ao grande dano que receberia a fazenda dos
órfãos”. Sobre estas disputas é necessária a realização de uma investigação mais aprofundada
para a melhor compreensão acerca dos meandros das disputas que envolviam tais agentes régios
(AHU_CU_015, Cx. 66, D. 5616).
A importância da manutenção de uma propriedade de ofícios na família se dava pela
captação de renda e manutenção ou ascensão social auferida junto com o encartamento de um
ofício. Com o ofício de juiz de órfãos de Pernambuco não foi diferente. Em seu pedido, Felipe
de Moura Acioli assevera “não ter outra forma de que possa alimentar-se nem vestir-se”, e dessa
forma estaria dependente da satisfação dos pagamentos referente ao cargo de sua propriedade.
As estratégias de manutenção do cargo dentro da família serviram, neste caso, como
salvaguarda do sustento e dignidade social da família.
A partir de 1732, o ofício de juiz dos órfãos da Capitania de Pernambuco ficou vago em
decorrência do falecimento de Jacinto de Freitas Acioli de Moura. Neste intervalo de tempo,
percebe-se a ocorrência de diversos requerimentos solicitando a serventia do cargo, sendo que,
os juízes de fora foram aqueles que se estabeleceram e serviram de serventuários, acumulando,
desta forma, ambos os cargos.
Em 1749, dezessete anos havia se passado da morte do ultimo proprietário, e o
governador da Capitania remetia carta referente a dúvidas sobre a ocupação do cargo de juiz
dos órfãos. Segundo consta, o cargo era ocupado de forma temporária pelo juiz de fora, João
de Souza Menezes Lobo. Mas, também estaria sendo reclamado pelo filho do proprietário
falecido, Felipe Francisco Acioli de Moura. Além de ter sido colocado em arrematação por um
valor que lhe era superior (AHU_CU_015, Cx. 69, D. 5822).
Após a morte de Jacinto de Freitas Acioli de Moura, o cargo que superintendia o Juízo
dos órfãos atravessou por um período de inconstâncias. Neste contexto, a patrimonialização
também serviria como um mecanismo para garantir um regular funcionamento da
administração régia, sobretudo em espaços afastados.
A estabilidade, advinda da propriedade do cargo, voltou a ocorrer quando em 1750
estava assente no cargo, Felipe Francisco Acioli de Moura. Desse modo, sendo atendida sua
expectativa como herdeiro do último proprietário.

207
Conclusão
As fontes utilizadas para analisar o provimento do cargo de juiz dos órfãos na Capitania
de Pernambuco nos permitem dizer que o ofício foi concedido em propriedade. O ofício provido
em propriedade não fazia parte dos bens patrimoniais dos seus detentores. Dessa forma, ficava
garantido o direito da coroa em reaver seu ofício após a morte do titular, entretanto, estas
propriedades, frequentemente, não vagaram com a morte do titular, já que era respeitado, pela
doutrina e pelo direito consuetudinário, o privilégio do herdeiro, quando este requeria a
propriedade de um ofício.
A consolidação familiar do cargo de juiz dos órfãos da Capitania de Pernambuco foi
detectável, nesta pesquisa, até a terceira geração. Através dos pedidos encaminhados ao AHU,
bem como pela constatação de uma carta de propriedade em nome do proprietário da primeira
geração, da qual buscamos analisar. Ao percorrer o caminho tomado pelo cargo, no contexto
particular da Capitania de Pernambuco, pode-se aprofundar o entendimento acerca da
administração régia na primeira metade do século XVIII.
A análise sobre a patrimonialização do ofício de juiz dos órfãos não foi esgotada neste
trabalho. Pelo contrário, a partir dele se indaga formas de desdobramento que nos permita
passear por novas indagações e perspectivas relativas ao cargo de juiz dos órfãos.
Buscar uma compreensão mais verticalizada referente aos serventuários que serviram
ao cargo, bem como um aprofundamento das querelas que eles travaram com os proprietários
é de grande importância para a continuidade da análise, mesmo não sendo o foco desta
investigação, especificamente. Desse modo será possível traçar uma compreensão mais clara
sobre a dinâmica do cargo.

Fontes de pesquisa

Manuscritas
AHU_ACL_CU_015, Cx. 33, D. 2999. Documentos de Pernambuco 10/01/1726
AHU_ACL_CU_015, Cx. 39, D. 3543. Documentos de Pernambuco 26/11/1729
AHU_ACL_CU_015, Cx. 42, D. 3811. Documentos de Pernambuco 19/03/1732
AHU_ACL_CU_015, Cx. 13, D. 1335. Documentos de Pernambuco 14/08/1685
AHU_ACL_CU_015, Cx. 60, D. 5160. Documentos de Pernambuco 11/09/1744
AHU_ACL_CU_015, Cx. 66, D. 5616. Documentos de Pernambuco 02/10/1747

208
Impressão ou digitalizadas
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BLUTEAU, D. Rafael. Diccionario da Lingua Portugueza. Tomo segundo, L-Z. Lisboa.
Officina de Simão Thaddeo Ferreira,1789
SILVA, Dr. Manoel Cicero Peregrino. Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Volume XXVIII, 1906.
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210
RAZÃO DE ESTADO: A CULTURA POLÍTICA DO ANTIGO REGIME NA
RETÓRICA DO ADVOGADO MANUEL ÁLVARES PEGAS (1671).

Juarlyson Jhones S. de Souza (Doutorando em História pela UFPE,


bolsista CAPES, juarlyson.historia@gmail.com)

Virgínia Mª Almoedo de Assis (Professora Associada do


Departamento de História da UFPE, virginiaalmoedo@gmail.com)

1. Manuel Álvares Pegas: entre a advocacia e a cultura letrada

Diogo Barbosa Machado no tomo III de sua Bibliotheca Lusitana1, publicada em 1752,
nos forneceu em forma de verbete um breve panorama acerca da trajetória de Manuel Álvares
Pegas, advogado e jurista português que foi responsável por uma razoável produção escrita na
área da cultura jurídica do Antigo Regime, durante o século XVII. Evidentemente o tom
laudatório da narrativa do bibliógrafo criou uma espécie de relato de vida coerente – uma ilusão
retórica – que nos provoca a olhar para os dados biográficos do Manuel Álvares Pegas com
necessária desconfiança. Porém, considerando o estágio inicial em que nossa investigação se
encontra, vamos dialogar criticamente com o texto escrito por Barbosa Machado tendo em vista
nossa necessidade de contextualizar o Manuel Álvares Pegas no interior de um dado universo
institucional e letrado.

Algumas considerações sobre os usos da biografia pela História precisam ser lembradas.
Optamos, neste momento, por utilizar a biografia como recurso, não para meramente apresentar
o sujeito e conhecer sua história de vida, mas para, a partir de sua trajetória como homem de
letras, entender o contexto das práticas políticas e retóricas e as condições de uso dos
mecanismos institucionais existentes em uma sociedade de Antigo Regime, como a portuguesa,
em meados do Seiscentos. É neste ponto em particular que a biografia se distingue da História.
Segundo Sabina Loriga, “ao contrário da biografia, gênero literário serenamente baseado na
unicidade de uma existência, a História deve reconstituir um tecido social e cultural mais

1
MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana: História, crítica e cronológica. Tomo 3. Lisboa: Officina 211
de Ignacio Rodrigues, 1752, p. 174.
vasto.”2 Neste primeiro momento, a trajetória de Manoel Álvares Pegas, portanto, nos servirá
como um meio, e não um fim em si mesmo.

Percebemos que não podemos buscar compreender os sujeitos históricos exigindo deles
coerência, ainda que dentro de sua própria lógica de existência. A experiência histórica e social
é caracterizada pela multiplicidade. Assim, mais uma vez fazemos coro com Sabina Loriga
quando em sua reflexão sobre as implicações dos usos da biografia para a História nos alerta
acerca dos milhares de “eus” presentes no indivíduo3. Para a autora, a própria ideia de
integridade individual, característica geralmente presente na biografia, é um simulacro. Sobre
este aspecto também refletiu Pierre Bourdieu, para quem o relato coerente de uma história de
vida é “conformar-se com uma ilusão retórica”4.

Segundo Diogo Barbosa Machado, Manoel Álvares Pegas teria sido natural da região
de Beja, mais especificamente da vila de Estremoz. Apesar de não precisar o dia do seu
nascimento, o autor nos informa que foi em 4 de dezembro de 16355 que Álvares Pegas teria
recebido a “primeira graça”, expressão católica para designar o batismo. Seus pais, Manoel
Martins e Maria Álvares Pegas, também teriam sido naturais da região de Estremoz e Beja,
respectivamente, e seu pai exerceu o ofício de Feitor do Conde de Figueiró. Barbosa Machado
não mostra informações sobre as condições materiais da família, mas podemos deduzir que eles
possuíam renda suficiente para custear os estudos de Álvares Pegas, considerando que ele teria
“estudado na pátria os primeiros rudimentos [e] passou à Universidade de Coimbra”6.

Segundo suas informações de matrícula constantes no Arquivo da Universidade de


Coimbra (AUC), Álvares Pegas estudou Cânones entre 1652 e 1658 e a informação de que era

2
LORIGA, Sabina. A biografia como problema. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da
microanálise. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998, pp. 247.

3
LORIGA, Sabina. A biografia como problema. Op. Cit., pp. 245.
4
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta (coord.). Usos e abusos
da História Oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1998, pp. 185.
5
Outros autores do século XIX, como Manuel Pinheiro Chagas (Portuguezes Ilustres, 1873) e Theodoro José da
Silva (Miscellanea historico-biographica, 1877) informam que 4 de dezembro de 1635 foi o dia do nascimento de
Manuel Álvares Pegas. Barbosa Machado (Bibliotheca Lusitana, 1752), no entanto, afirma que esta data é a do
seu batismo e não informa o dia do seu nascimento.
212
6
MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana. Op. Cit., p. 174.
natural da região de Estremoz é confirmada7. Ao concluir seus estudos em 1658, quando
recebeu o grau de Bacharel em Cânones, Manuel Álvares Pegas enveredou pelos campos
jurídicos secular e eclesiástico, seja por meio de sua produção letrada ou de sua atuação como
Advogado. O exercício da advocacia parece ter sido um destino mais atraente do que a
magistratura, considerando que somente encontramos registros de suas atividades nesta área do
campo jurídico. O Archivo Popular (1842), menciona um relato segundo o qual “el rei D, Pedro
2º o mandara convidar para desembargador da casa da supplicação, que elle regeitou, por lucrar
mais com a advocacia que com a toga”8. Apesar disto, Álvares Pegas realmente atuou na Casa
da Suplicação, mas como Advogado, apesar de ter conseguido privilégios de Desembargador a
partir de uma mercê concedida pelo mesmo monarca.

Sua trajetória profissional sempre esteve ligada ao exercício da advocacia, motivo pelo
qual Barbosa Machado o nomeia como “Patrono das Causas Forenses”, com atuação nos foros
eclesiástico e secular “entre litigantes da primeira jerarchia” 9. Álvares Pegas conciliava a
prática profissional da advocacia com uma razoável produção de obras escritas. Dentre elas, a
que talvez tenha exigido maior fôlego foram os seus comentários às Ordenações com o título
de Commentaria in Ordinationes Regni Portugalliae, escrita em 14 tomos – em latim – e
publicadas ao longo de sua vida como jurisconsulto e
mesmo postumamente, entre 1669 e 1703.

Imagem 01: Folha de rosto do primeiro tomo da obra Commentaria in


Ordinationes Regni Portugalliae, de Manuel Álvares Pegas, publicada
em 1669. Biblioteca da Faculdade de Direito da USP.

Como um dos mais proeminentes Advogados de


sua época, Álvares Pegas parece ter atuado na advocacia
com uma profícua relação com a cultura letrada jurídica.

7
PT/AUC/ELU/UC-AUC/B/001-001/P/001741
8
ARCHIVO POPULAR. Leituras de Instrução e Recreio. Semanario Pintoresco. Volume VI. Lisboa: Na
Typografia de A. J. C. da Cruz, 1842, p. 366
213
9
MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana. Op. Cit., p. 174.
As peças jurídicas as quais escreveu são permeadas com citações de vários autores, muitos dos
quais estrangeiros10. Álvares Pegas era um Advogado letrado no sentido de que manteve em
alta sua produção escrita especializada ao longo de sua trajetória profissional. O fato de ter sido
um autor do Direito amplamente citado póstuma e internacionalmente fez com que em torno de
si fosse construída uma representação como um letrado altamente capacitado. Já no século XIX
o Archivo Popular (1842) – 146 anos depois de sua morte – menciona a seguinte história
envolvendo Álvares Pegas:

Ocasião houve, em que divertindo-se com outros amigos no jogo da espadilha,


veio uma parte a pedir-lhe, que lhe defendesse uma causa importante; chamou-
se o amanuense, dictava Manuel Álvares Pegas continuando o jogo; porém a
parte imaginando que elle não punha cuidado no que dictava, se queixou de
que a sua causa ia defendida sem advertência nem premeditação; ao que
occorreu promptíssimo Pegas, e mandou que tirassem tal e tal livro das
estantes, e que lessem as folhas tantas e tantas, e nellas achárão tudo o que
Pegas dictara.11

Não sabemos se este relato é verdadeiro, ele foi escrito de forma temporalmente distante
do período em que viveu Manuel Álvares Pegas. Porém, é importante ressaltar a representação
em torno do letrado como alguém que possuía profundo conhecimento nos livros jurídicos e
que os utilizava na construção da defesa da parte que lhe contratava. Tratava-se do recurso à
autoridade, bastante comum nos arrazoados jurídicos do Antigo Regime para fundamentar um
posicionamento12. Manuel Álvares Pegas, portanto, estava distante da imagem oferecida por
Jean Pierre Didieu (2005), para o Advogado no contexto espanhol, segunda a qual “o advogado
era quase um letrado. (...) era um técnico, um técnico de alto nível, mas um técnico” 13. Como
produtor do discurso jurídico, Álvares Pegas não exercia a advocacia apenas em sua dimensão
técnica – no sentido prático ou protocolar do termo. O fato de ter sido contratado por
importantes famílias da fidalguia portuguesa para atuar em casos ligados à posse e domínio dos

10
Gustavo Cabral realizou o levantamento dos autores citados por Manuel Álvares Pegas em uma de suas obras
intitulada Alegação de Direitos por parte dos Senhores Condes de Vimiozo (1671). Citações de autores italianos
predominam (42%) seguidos pelos autores espanhóis (35%), portugueses (19%) e franceses (4%). Os autores
italianos Giacomo Menochio e Baldo de Ubaldi e o espanhol Juan Bautista Valenzuela y Velásquez estão entre os
autores mais citados. Cf. CABRAL, Gustavo César Machado. Pegas e Pernambuco: notas sobre o direito comum
e o espaço colonial. Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N. 2, 2018, p. 697-720.
11
ARCHIVO POPULAR. Leituras de Instrução e Recreio. (1842) Op. Cit., p. 366

12
“(...) no Antigo Regime o poder de convencimento estava intimamente relacionado aos argumentos de
autoridade”. CABRAL, Gustavo César Machado. Pegas e Pernambuco. Op. Cit., p. 697-720.

13
DIDIEU, Jean Pierre. La muerte del Letrado. ARANDA PÉREZ, Francisco José (coord.). Letrados, juristas y
burócratas em la España moderna. Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, 2005, pp. 479- 214
512.
seus patrimônios, além da já mencionada publicação de várias obras de razoável
reconhecimento letrado, nos ajuda a entender que Álvares Pegas não se tratava de um Advogado
comum e que no interior da Advocacia no Antigo Regime existiam profissionais do Direito que
se encontravam em diferentes níveis de prestígio e especialidade letrada.

A produção de Manoel Álvares Pegas obteve recepção positiva por parte de alguns
escritores citados por Diogo Barbosa Machado. Termos como “doctissimus jurisconsultus”,
“doctissimum”, “eruditissimus”, “magni nominis advocatus” e “famoso jurisconsulto” são
algumas das expressões elogiosas encontradas por Barbosa Machado na bibliografia
consultada, em latim, em espanhol e em português 14. O elogio mais completo citado pelo autor,
vem de um escritor espanhol, o Marquez de Merojada, que sobre Álvares Pegas escreveu:
“celebre escritor destos tiempos, que sus muchos, y doctos escritos acreditan bastantemente sus
grandes estudios, e erudicion”15.

Nossa intenção em mencionar a forma como Álvares Pegas é citado nesta bibliografia
apresentada por Barbosa Machado não é a de reforçar o tom laudatório do bibliógrafo, mas de
tentar situar o advogado neste universo jurídico letrado. Desde o século XV, na lexicografia
espanhola, o termo latino “iurisconsultus” designava o “letrado bueno em derecho” 16, em uma
referência ao conhecimento especializado na cultura jurídica letrada. Álvares Pegas também é
classificado como “doctissimus” e “eruditissimus” que, segundo o dicionarista português do
século XVII Agostinho Barbosa 17, são expressões para designar um “letrado grande”, ou seja,
um sujeito altamente especializado em determinada área do conhecimento. São expressões que
denotam uma forma de distinção dentro da categoria mais ampla de letrado. Este conceito,
portanto, não pode ser compreendido como uma referência a um grupo monolítico de sujeitos,
e a própria lexicografia da época admite formas de distinção entre os que eram “descobridores,

14
MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana. Op. Cit., p. 175.

15
Idem.
16
NEBRIJA, Elio Antonio. Vocabulario Español-Latino. Madrid: Real Academia Española (facsímile), 1551,
pp. 134. Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/obra/vocabulario-espanollatino--0/. Acesso em
15/06/2015.

17
BARBOSA, Agostinho. Dictionarium Lusitanico Latinum. BNP. Disponível em: http://purl.pt/14016. Acesso 215
em 15/06/2015.
produtores e disseminadores do conhecimento”18 e os que apenas operacionalizavam o sistema
jurídico dotados de algum saber técnico ou de algum nível de especialidade.

A opção de escrever tratados jurídicos em latim facilitava a internacionalização do


escrito e conferia um status letrado. Esta era a linguagem erudita, o principal meio através do
qual o conhecimento letrado era produzido e disseminado na Época Moderna. Álvares Pegas
escreveu muitas obras em latim, pois sua produção destinava-se a um público especializado na
cultura jurídica. Por isso, da mesma forma que escreve em latim, é igualmente citado em latim,
como o demonstra parte das citações selecionadas por Barbosa Machado. É possível que as
obras de Álvares Pegas tenham sido lidas na Universidade de Coimbra. Não por acaso, em sua
lápide está gravado um epitáfio escrito por Bernardo Pereira da Silva, lente do Digesto no
Colégio de Sâo Paulo da Universidade de Coimbra e desembargador da Casa da Suplicação,
onde possivelmente teria trabalhado com Álvares Pegas 19.

Do ponto de vista institucional Álvares Pegas atuou como Advogado da Casa da


Suplicação, tendo conseguido, por meio de uma mercê do rei D. Pedro II, privilégios de
Desembargador. Apesar desta significativa projeção política e judiciária, este advogado não se
limitou à esfera civil. Seu trânsito na esfera eclesiástica se verifica, segundo Barbosa Machado,
a partir de sua atuação como Procurador da Mitra de diversas dioceses do reino (a mitra é uma
referência simbólica ao poder eclesiástico de um bispo católico). A posse deste cargo ofereceria
a chance de atuação como representante jurídico da Igreja a partir de seus interesses no âmbito
diocesano ou local e nos tribunais da Coroa. Álvares Pegas atuou como Procurador das Mitras
das dioceses de Lisboa, Braga, Évora, Lamego, da Capela Real e das Igrejas do Padroado. Além
disso, atuou também como Promotor da Bula da Cruzada 20. Sua formação em Cânones e sua
experiência jurídica a serviço da Igreja lhe permitiu escrever obras sobre questões referentes ao

18
BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2003, pp. 25.

19
MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana. Op. Cit., p. 175.
216
20
Ibidem, p. 174.
21
foro eclesiástico como o Tratado histórico e jurídico sobre o sacrilego furto (1710) e
Opusculum de alternativa beneficiorum provisione sede Papali plena (1697)22.

Posicionado em uma das mais importantes instituições da justiça e bem relacionado com
a Igreja, Álvares Pegas distribuiu sua prole nessas duas esferas. Teve seis filhos com Catherina
Salema de Lacerda, dois deles com ofícios na justiça e os outros quatro inseridos na vida
religiosa. Nenhum deles, contudo, obteve tanta projeção como o próprio Álvares Pegas, fosse
no âmbito institucional ou no da cultura letrada, conforme demonstra o quadro a seguir:

Quadro 1: Relação dos filhos de Manoel Álvares Pegas e suas respectivas ocupações e
locais de atuação23.

Nome Ocupação Local


Luiz Pegas Provedor Beja
João Pegas Juiz de Fora Santiago de Cassem, Ourique
Pior do Convento dos
Carmelitas Calçados de
Beja
Vigário Prior Comissário
José Pegas Beja, Évora, Algarve, Tentugal
dos Terceiros de Évora
Confessor das Freiras do
Algarve e Tentugal
Visitador (por duas vezes)
Francisco Pegas Religioso Carmelita Brasil
Freira do Convento de
Joanna das Montanhas Lisboa
Chelas
Freira do Convento de
Thereza Evangelista Lisboa
Chelas

Como Advogado que atuou tanto na esfera civil quanto na eclesiástica e que apresentou
uma razoável produção letrada, Manuel Álvares Pegas encontrava-se socialmente bem
relacionado e adquiriu projeção em Portugal. Pensar o lugar social e simbólico ocupado por
este letrado nos ajuda a mensurar razoavelmente seus textos e a natureza política de sua

21
PEGAS, Manuel Álvares. Tratado histórico e jurídico sobre o sacrilego furto. Execrável sacrilégio que se
fez em a Parochial Igreja de Odivelas, termo da Cidade de Lisboa, na noyte de dez para onze do mez de Mayo de
1671. Lisboa: Na Officina Real Deslandense, 1710.
22
PEGAS, Emmanuele Alvarez. Opusculum de alternativa beneficiorum provisione sede Papali plena. Lisboa: Ex
Typographia Michaelis Deslandes, 1697.
217
23
Idem.
argumentação retórica. Foi no reino que Álvares Pegas trabalhou como representante dos
interesses dos herdeiros de uma das mais emblemáticas regiões de conquistas portuguesas no
Atlântico: a Capitania de Pernambuco.

2. Uma Capitania atlântica em disputa judicial

Em 1647 o rei D. João IV destituiu a Capitania de Pernambuco do domínio senhorial de


Duarte de Albuquerque Coelho. Durante o processo da Restauração Portuguesa (a partir de
1640), os Albuquerque Coelho estavam divididos entre os Habsburgos na Espanha e a nova
dinastia que tentava se consolidar em Portugal. Ao passo que Matias de Albuquerque Coelho
havia, em alguma medida, se alinhado ao movimento representado pelo duque de Bragança 24,
Duarte de Albuquerque Coelho, seu irmão e donatário de Pernambuco, mantinha relações com
a corte espanhola. Era um momento em que a fidalguia portuguesa de modo geral estava
dividida entre a lealdade aos Habsburgos e o apoio aos Bragança.

Apesar da ambiguidade do jogo político, havia se disseminado na corte a versão de que


a família dos Albuquerque Coelho teria sido a principal responsável pela tomada da Capitania
de Pernambuco pelos holandeses. A ineficácia da estratégia de resistência no combate aos
invasores neerlandeses adotada por Matias de Albuquerque, administrador do seu irmão Duarte
de Albuquerque Coelho – o real donatário daquelas terras – reforçou a versão que
responsabilizava a família donatarial. Apesar disso, Duarte de Albuqerque Coelho se fez valer
de táticas cortesãs na construção de uma narrativa laudatória ao desempenho do seu irmão e
que ressaltava a insuficiência do apoio régio à resistência. A obra Memorias Diarias de la
Guerra del Brasil25, publicada no ano de 1654 em Madrid, teria sido uma tentativa de oferecer
uma versão alternativa que contrapunha à que havia se disseminado.

Ainda que esta tenha sido uma polêmica iniciada quando Portugal estava sob o controle
da Monarquia Católica, após a Restauração Portuguesa, iniciada em 1640, a Coroa, já sob o
comando dos Bragança, utilizou precisamente o argumento de responsabilização da família
donatarial pela invasão neerlandesa à Capitania de Pernambuco para promover o seu esbulho –

24
SILVA, Kalina Vanderlei. O retrato do Conde de Alegrete: Matias de Albuquerque, general no Estado do Brasil
e cortesão da Espanha seiscentista. Domínios da Imagem, Londrina, v. 9, n. 17, p. 86-100, jan./jun. 2015.
218
25
COELHO, Duarte de Albuquerque. Memórias Diárias da Guerra do Brasil [1654]. São Paulo, Beca, 2003.
isto é, a retirada – do controle de Duarte de Albuquerque Coelho, seu último donatário. Dessa
forma, a família donatarial teria sido golpeada pelas duas monarquias perdendo a posse sobre a
mais importante capitania do açúcar do norte do Brasil.

Não mais adotando estratégias cortesãs de cultura letrada com o objetivo de limpar o
nome, e agora para reaver a posse e o domínio sobre suas terras, a família donatarial recorre aos
mecanismos institucionais da Justiça. Em um processo movido contra a Coroa na Casa da
Suplicação, a família donatarial agora representada pelo sexto Conde de Vimioso, D. Miguel
de Portugal, casado com a única filha e herdeira do último donatário de Pernambuco, Dona
Maria Margarida de Castro e Albuquerque. O processo judicial se estendeu até 1713 e resultou
em um acordo entre a Coroa e a família donatarial, agora representada por D. Francisco de
Portugal, sétimo do Conde de Vimioso, que como compensação recebeu um título nobiliárquico
maior: o de Marquês de Valença26. É importante ressaltar que Dona Maria Margarida de Castro
e Albuquerque não teve filhos, e deixou sua herança para os filhos do seu marido, que os havia
criado27.

O processo se encontra atualmente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT),


na coleção Raúl Duro Contreiras28 e neste conjunto processual nos interessa especificamente
uma peça jurídica que o integra. Trata-se da Alegação de Direitos de autoria de Manuel Álvares
Pegas, o Advogado que atuou representando a família donatarial, desta vez representada pelos
Condes de Vimioso. Como Álvares Pegas era um letrado com um número razoável de obras
publicadas no mercado editorial português entre os séculos XVII e XVIII, a peça a que nos
referimos acabou sendo publicada em livro em 1671 com o título Allegaçam de Direitos por

26
Carta de Marquez do Conde D. Francisco de Portugal, de que consta a transacção, que fez com a Coroa, sobre
a Capitania de Pernambuco, copiada do original. SOUSA, António Caetano de. Provas da história genealógica
da Casa Real Portugueza. Tomo V. Lisboa: Regia Officina Sylviana, 1746, pp. 701-702.

27
“Maria Margarida de Castro e Albuquerque, condessa de Vimioso, educou os bastardos do marido e, não tendo
filhos, legou ao primogênito a propriedade da capitania, que, contudo, já fora desde a expulsão dos holandeses
incorporada ao patrimônio da Coroa, o que deu origem a prolongada contenda judiciária”. MELLO, Evaldo Cabral.
O nome e o sangue: uma parábola genealógica no Pernambuco colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009,
p. 233. D. Francisco de Portugal e sua irmã Maria de Portugal eram filhos de D. Miguel de Portugal, conde de
Vimioso com Antônia de Bulhões, “donzela nobre e limpa, que depois foi freira em Santa Ana de Lisboa” Cf.
SOUZA, Antonio Caetano. História Genealógica da Casa Real Portuguesa. Tomo X. Lisboa: Na Régia Officina
Sylvania, 1743, p. 774-775; SOUZA, Antonio Caetano. Memórias históricas e genealógicas dos grandes de
Portugal. Lisboa: Na Régia Officina Sylvania, 1755, p. 214.
219
28
PT/TT/RDC/1/1. Cópia microfilmada. Portugal, Torre do Tombo, mf. 4499.
parte dos Senhores Condes de Vimiozo sobre a sucessam da Capitania de Pernambuco 29. A
obra parece ter sido publicada posteriormente (1738) em uma coletânea que reunia outras
Alegações de Direitos escritas pelo mesmo Advogado 30.

3. A cultura política do Antigo Regime na Alegação de Direitos (1671)

Apesar de estarmos tratando de um texto pretensamente jurídico, integrante de um


processo judicial e escrito com o objetivo de persuadir juízes, Manuel Álvares Pegas adotou
reiteradamente argumentos cuja natureza remetem à cultura política de sua época. Neste
sentido, cabe enfatizar que no interior de uma sociedade de Antigo Regime não é possível fazer
uma distinção clara entre o jurídico e o político (e isto nos ajuda a esclarecer àqueles que, com
espanto, veem e reclamam atualmente de uma judicialização da política e/ou de uma politização
da justiça). O rei, como a cabeça do corpo político da monarquia, possuía a função primeira de
administrar a Justiça31, sendo esta concebida segundo a lógica do “dar a cada um o que lhe é
devido”. Álvares Pegas fez questão de transformar este aspecto em um argumento quando, na
Alegação de Direitos, afirmou que “Sua Magestade (...) fizesse justiça, não criando Deus os
Reis para outra couza se não para o fazerem e esta he a sua prova e principal obrigação.”32

Álvares Pegas argumentava a partir de uma concepção da ordem jurídica assumida


como preexistente ao próprio poder do Príncipe, que não dava origem em si mesmo à esta
ordem, mas era o responsável por gerenciá-la com o objetivo de manter e conservar os
equilíbrios sociais33. É evidente que este discurso, apesar de refletir uma representação social,
tinha em suas instituições formativas os órgãos responsáveis por reproduzi-lo e legitimá-lo
através da cultura letrada. Afinal, como Advogado formado pela Universidade de Coimbra,

29
PEGAS, Manuel Álvares. Allegaçam de dereito por parte dos senhores Condes do Vimiozo sobre a
sucessam da Capitania de Pernambuco. Evora: Officina da Universidade, 1671.

30
PEGAS, Manuel Álvares. Allegaçoes de Direito. Tomo 1. Lisboa: Officina de Antonio Isidoro da Fonseca,
1738.

31
SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus
superiores, 1609-1751. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 34-35.

32
PT/TT/RDC/1/1. Cópia microfilmada. Portugal, Torre do Tombo, mf. 4499.
33
CARDIM, Pedro. “Administração” e “governo”: uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime. In:
BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de governar: idéias e práticas políticas no 220
Império Português, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005, pp. 56-57.
Álvares Pegas apresentava argumentos que estavam fundamentados no tomismo-aristotélico
que ainda predominava na formação acadêmica34. E sua relação com a cultura letrada permeou
toda a sua trajetória profissional, como um Advogado que fazia uso constante de vários autores
letrados nos seus arrazoados jurídicos.

Ainda sobre a relação entre política e justiça no Seiscentos, é importante ressaltar que a
famosa separação iluminista dos poderes proposta por Montesquieu foi posterior a este período.
Assim, precisamos fazer o esforço de pensar na alteridade dos modelos institucionais, jurídicos
e políticos daquela época, fazendo uma verdadeira antropologia política do Antigo Regime, no
dizer de Nuno Camarinhas (2010)35. É necessário considerar que se tratava de uma sociedade
onde os órgãos judiciais possuíam primazia e centralidade na atividade administrativa da Coroa.
Segundo Pedro Cardim, “a governação estava subsumida à autoridade judicativa, e os órgãos
que mais se destacavam na gestão dessas matérias eram, sem dúvida, os tribunais” 36. A origem
desta prática política era originária da anteriormente mencionada concepção, reiterada por
Álvares Pegas, de que cabe ao Rei a função de aplicar a justiça. A partir dela deriva uma
estrutura administrativa de Estado cujo fim é a justiça sendo, portanto, o modelo institucional
dos órgãos de perfil judiciário, como os tribunais, os mais próximos para se alcançar este
objetivo.

No que diz respeito à natureza do Príncipe, Manuel Álvares Pegas, além de relembrar a
sua atribuição judiciária, menciona um aspecto fundamental da cultura política do Antigo
Regime: a remuneração. Segundo o Advogado dos Condes de Vimioso, era da “propria natureza
do Rey, premiar os Vassalos, que o servem, e remunerar os serviços, que se lhe fazem” 37. O
que estava em discussão na Alegação de Direitos era a posse e o domínio da família donatarial
sobre a Capitania de Pernambuco, concedida ao primeiro donatário como uma remuneração
pelos seus serviços prestados à Coroa.

34
O’MALLEY, John W. Os Primeiros Jesuítas. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos; Bauru, SP: Edusc, 2004.
pp. 381-382.

35
CAMARINHAS, Nuno. Juízes e administração da Justiça no Antigo Regime. Portugal e o Império Colonial,
séculos XVII e XVIII. Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, pp. 22.

36
CARDIM, Pedro. “Administração” e “governo”. Op. Cit., pp. 56.
221
37
PT/TT/RDC/1/1. Cópia microfilmada. Portugal, Torre do Tombo, mf. 4499.
Contudo, a argumentação de Álvares Pegas apontou que a doação da Capitania de
Pernambuco não constituiu um ato gratuito de remuneração. O estabelecimento da exigência
de povoamento, por exemplo, teria feito com que esta ação perdesse o sentido de uma doação
remuneratória para adquirir o status de contrato oneroso. A revogação da doação da Capitania
pela Coroa, portanto, somente teria sentido se a doação fosse um ato gratuito e voluntário, e
não um ato contratual como verdadeiramente o foi, segundo Álvares Pegas. Neste sentido, ainda
que a remuneração tenha sido nomeada juridicamente como uma doação (daí vem o próprio
documento que dá nome ao ato, a Carta de Doação), na prática, teria sido um contrato oneroso.
E para justificar sua argumentação o letrado recorre a um princípio tomista-aristotélico quando
afirmou que “as couzas nam deixam de ser o que sam; posto que se lhe mudem os nomes, nam
se lhe muda a substancia dellas”38.

Isto reforça nosso entendimento de que Manuel Álvares Pegas foi um Advogado que,
ao exercer a advocacia, mantinha uma relação com saberes especializados restritos ao
conhecimento dos letrados e argumentava segundo uma lógica política que predominava em
sua época. Dito de outra forma, Álvares Pegas teria sido um Advogado que fazia uso discursivo
da cultura letrada e da cultura política do Antigo Regime em um nível especializado, e tais
aspectos teriam contribuído para que adquirisse maior distinção no universo profissional da
Advocacia no Portugal seiscentista.

Através da remuneração o Príncipe zelava pela manutenção da própria monarquia,


segundo Álvares Pegas. Dessa forma, o letrado confere centralidade à política de remunerações
como estratégia necessária para a manutenção do domínio monárquico, uma vez que esta prática
poderia ser entendida como razão de Estado. Não se trata apenas de um argumento de natureza
política, mas também moral, tendo em vista que era através das remunerações que ocorria a
confiança e a lealdade dos vassalos à figura do Príncipe. A partir do momento em que a Coroa
atuava contra este modo de ação política ela poderia atentar contra sua própria legitimidade:

Não há Reyno sem Vassalos, seus serviços reaes, e pessoas sam os que
sustentam o pezo da Coroa, e pera a conservação das Monarchias he rezão de
estado premiar os Vassallos, e observa-lhe as mercês: porque desta
observância consegue o seguro na lealdade do serviço dos Vassallos, e pera
os estranhos fica ilesa também a consciência pela obrigação, que tem, da
observância de soberania da Magestade, que tanto he maior, quanto mais se
assemelha á de Deus, que não pode fazer couza injusta. (...) he razam de estado

222
38
Idem.
no Príncipe guardar as Doações, porque, se as não guardar, nam haverá quem,
o queira servir por faltar na inobservância, a justiça”39.

Manuel Álvares Pegas teorizou sobre uma prática política incrustada na realidade social
do Antigo Regime utilizando para isto o discurso letrado. O conceito de cultura política é
geralmente empregado pela historiografia para “explicar ou compreender o comportamento
político de atores individuais e coletivos, privilegiando suas próprias percepções, lógicas
cognitivas, memórias, vivências e sensibilidades”40. O uso deste conceito para analisar a
natureza dos argumentos de Álvares Pegas na Alegação de Direitos nos permite entender que
o Advogado não cria discursivamente um modelo de ação política, mas que realiza um decalque
de uma prática sociopolítica consolidada na relação da monarquia com os seus vassalos. Ao
extrair esta experiência da realidade social, no entanto, Álvares Pegas não faz apenas uma
constatação, mas confere a ela legitimidade através do uso do discurso letrado, considerando a
sua posição como jurista.

É importante destacar também que Álvares Pegas pertencia a uma tradição jurídica
portuguesa na qual, segundo Antônio Manuel Hespanha, os juristas desde o “século XII em
diante, (...) informados pelo pluralismo jurídico, tradicionalismo e casuísmo – elaboraram
doutrinas jurídicas, que, globalmente, favoreceram os poderes periféricos ante os poderes do
monarca”41. Neste sentido, o Advogado dos Condes de Vimioso se fundamentava em uma
cultura política e em uma cultura jurídica no sentido de reforçá-las através de sua pena de
letrado. Porém, é necessário ainda destacar que na Alegação de Direitos Álvares Pegas escreve
como um Advogado e, portanto, representa os interesses de uma das partes em um processo
judicial. Ele faz um uso específico da cultura política e da cultura jurídica porque lhe era
conveniente naquele momento. Basta pensarmos que, na qualidade de Procurador da Coroa no
mesmo processo judicial, o Tomé Pinheiro da Veiga era igualmente um Advogado formado na
mesma Universidade e pela mesma tradição jurídica de Álvares Pegas, mas que em seu cargo
representava pretensamente os interesses régios. É neste ponto que ocorre uma das diferenças
fundamentais, ao menos teoricamente, entre os Magistrados e os Advogados: segundo Jean

39
Idem.
40
ABREU, Martha. SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Orgs). Cultura política e leituras do passado:
historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 14.
41
HESPANHA, Antônio M. Antigo regime nos trópicos? Um debate sobre o modelo político do império colonial
português. In: FRAGOSO, João; GOUVEA, Maria de Fátima. Na trama das redes: política e negócios no império 223
português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 46.
Pierre Didieu, “o advogado era interessado. Não buscava a justiça, mas o interesse de sua parte,
e o seu próprio. (...) Lhe interessava as leis, não o espírito delas, mas a sua letra na medida
estrita em que a podia usar em seu proveito” 42.

A historiografia quando menciona o uso pela Coroa portuguesa da Razão de Estado faz
uma associação desta estratégia política a uma postura de maior intervenção régia sobre a esfera
social em detrimento de outros poderes periféricos. Antônio Manuel Hespanha faz referência a
uma concepção corporativa de monarquia que ele considera válida até metade do século XVIII,
“quando outro modelo político – Polizeistaat, Etat de Police – começou a se desenvolver”43.
Em seu entendimento, ao longo do Setecentos, uma monarquia corporativa teria dado lugar a
um modelo político mais centralizador e coercitivo. Maria Fernanda Bicalho, (baseando-se em
Pedro Cardim e Ângela Xavier), no entanto, destaca que já a partir da segunda metade do século
XVII começou a existir uma convivência tensional entre duas formas de concepção política que
marcariam um período de transição entre ambas: a primeira, de tradição católica, baseada no
paradigma corporativo, e uma segunda, que exigia maior rapidez na decisão política e que se
baseava na razão de Estado44. Ainda que a historiadora destaque que neste período o processo
de centralização política tenha sido “longo e contínuo”, há uma associação da ideia de razão de
Estado à ação centralizadora da Coroa.

Contudo, é importante destacar que a Razão de Estado não deve ser confundida com
uma ação específica, mas compreendida como toda dinâmica adotada que garanta a
conservação do domínio da Monarquia. Assim, a partir de Álvares Pegas, podemos considerar
que durante o Antigo Regime havia uma forma própria de razão de Estado, que era o de garantir
a conservação da Monarquia através da premiação dos vassalos, das remunerações: “he razam
de estado no Príncipe guardar as Doações, porque, se as não guardar, nam haverá quem, o queira
servir”45. Assim, desejamos reiterar que a razão de Estado não deve ser confundida com uma
forma específica de ação da Coroa, no caso, necessariamente centralizadora e intervencionista,

42
DIDIEU, Jean Pierre. La muerte del Letrado. Op. Cit., pp. 494.
43
HESPANHA, Antônio M. Antigo regime nos trópicos? Op. Cit., pp. 46.

44
BICALHO, Maria Fernanda. As tramas da política: conselhos, secretários e juntas da administração da Coroa
portuguesa e de seus domínios ultramarinos. In: FRAGOSO, João; GOUVEA, Maria de Fátima. Na trama das
redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010,
p. 365.
224
45
PT/TT/RDC/1/1. Cópia microfilmada. Portugal, Torre do Tombo, mf. 4499.
mas toda estratégia política que lhe permita a manutenção do seu poder, inclusive quando ela
se comporta segundo o paradigma jurisdicionalista. Afinal, teria sido no próprio quadro deste
modelo de ação política “que se processou o alargamento da esfera de intervenção da Coroa”46.
Além disso, o princípio de ação política conhecido como “autoridade negociada”, já conhecido
pela historiografia, também foi utilizado pela Monarquia para garantir o seu domínio nas
regiões de conquistas ultramarinas. Assim, Álvares Pegas não usa a ideia de razão de Estado
apenas como um elemento retórico para persuasão, mas como um argumento que estava
plenamente alinhado à cultura política do Antigo Regime.

O processo movido pelos Condes de Vimioso contra a Coroa é bastante representativo


porque traduz um momento de coexistência tensional entre um paradigma corporativo e uma
ação mais incisiva da Coroa, conforme explicou Maria Fernanda Bicalho. De um lado o
interessado Álvares Pegas argumentando segundo a lógica política do Antigo Regime, do outro,
a própria Coroa que destituiu a posse e o domínio da família donatarial sobre a Capitania de
Pernambuco, uma postura que foi compreendida como retaliação e que privilegiou a
necessidade em detrimento da justiça47. Considerando que nós compreendemos a razão de
Estado como qualquer estratégia de ação régia para garantir a dominação, o esbulho da
Capitania também pode ser enquadrado neste modelo de ação política, pois o principal
argumento dos Procuradores da Coroa foi o de responsabilização da família donatarial pela
perda da Capitania para os holandeses. Para garantir a manutenção dos domínios da monarquia,
a Coroa esbulhou a Capitania de Pernambuco dos seus donatários e, como resposta, Álvares
Pegas tentou demonstrar que a razão de Estado era a manutenção das relações com os vassalos
através das remunerações e não por meio de um comportamento atípico e estranho à cultura
política do Antigo Regime. Ao considerar ser razão de Estado a premiação dos vassalos,
Álvares Pegas não apenas lhe conferiu centralidade como também situou os vassalos como o
fundamento da própria monarquia: “não há Reyno sem Vassalos, seus serviços reaes, e pessoas
sam os que sustentam o pezo da Coroa”48.

46
CARDIM, Pedro. “Administração” e “governo”. Op. Cit., pp. 60.
47
“o prevalecer da necessitas sobre a iustitia.” XAVIER, Angela; CARDIM, Pedro. D. Afonso VI, Lisboa,
Círculo dos Leitores, 2006, p. 115. Apud BICALHO, Maria Fernanda. As tramas da política. Op. Cit., p. 353.
225
48
PT/TT/RDC/1/1. Cópia microfilmada. Portugal, Torre do Tombo, mf. 4499.
A APOSENTADORIA DOS OUVIDORES (SÉCULO XVIII).

Paulo Fillipy de Souza Conti1


Doutorando pelo PPGH/UFPE
paulofconti@gmail.com

Ao longo do Antigo Regime português, servir ao rei era uma tarefas das mais
honoríficas, apesar de também ser vista como uma obrigação dos vassalos ao demonstrar a sua
fidelidade. Ainda assim, boa parte dos postos disponíveis no serviço régio exigiam
qualificações específicas e a candidatura ao serviço. Esse é o caso dos ministros de letras,
responsáveis por administrar a justiça em nome do rei, o que demandava formação em Direito
Civil e/ou Canônico pela Universidade de Coimbra e a já mencionada candidatura ao serviço
através do processo de leitura de bacharel, realizado pelo Desembargo do Paço.

Eram diversas as razões que levaram à escolha de uma carreira no campo da


magistratura, com destaque especial para as escolhas feitas como estratégia de ascensão social
e econômica de uma família. As “castas” de magistrados, mais recentemente, passaram a
chamar atenção dos historiadores e alguns trabalhos foram ou estão sendo produzidos no
sentido de revelar a carreira e a vida de personagens já conhecidos da nossa História e outros
menos notórios. Desta forma, quando apontamos e reforçamos a escolha da magistratura como
estratégia de ascensão social e econômica, somos automaticamente levados a pensar nos ganhos
possíveis em determinados postos. Ainda que o principal ponto nesse processo seja o lugar
social ocupado pelos magistrados, afinal, mesmo fora de posto de serviço, era conservado
tratamento dispensado. Para além do que havia sido regulado como ordenado anual e dos ritos
da vida cotidiana, também eram previstos outros tipos de custo para premiação e manutenção
dos ministros quando serviam longe do seu espaço natal.

Na documentação ultramarina nos chamou atenção os diversos pedidos por


aposentadorias, tema frequentemente citado pela nossa historiografia, mas pouco
problematizado. Na virada da primeira para a segunda metade do século XVIII em Pernambuco,
a razão de ser do pagamento da aposentadoria dos ouvidores foi questionada. O que foi seguido
por uma discussão que envolveu proibições do recebimento das aposentadorias e tentativas de
mostra-la como parte dos direitos fruto da posição de ouvidor da capitania. Assim, no presente

226
1
Membro do Núcleo de Estudos do Mundo Atlântico (NEMAt) e do grupo de pesquisa do CNPq “O Mundo
Atlântico”. Bolsista da Capes. Orientação: Prof.ª Dr.ª Virgínia Maria Almoêdo de Assis.
artigo discutiremos a aposentadoria dos ouvidores da capitania de Pernambuco ao longo do
século XVIII, baseados, sobremaneira, no processo de esclarecimento de como deveriam ser
cobrados e executados os pagamentos.

Antes que nos detenhamos sobre o caso específico que aqui desejamos tratar, são
necessários alguns esclarecimentos. Nós não podemos confundir o que se chama de
aposentadoria no século XVIII com o que hoje chamamos de aposentadoria. Ou seja, quando
falamos de aposentadorias no contexto histórico em questão, não estamos falando de uma
pensão por contribuição pelo tempo de serviço. Estamos, na verdade, tratando de um recurso
direcionado ao pagamento da estadia ou moradia de um oficial. Ao ato de dar aposento.
Segundo o padre Rafael Bluteau, no seu Vocabulário Portuguez & Latino, aposentadoria diz
respeito ao ato de “tomar casa por aposentadoria” e, nesse caso, é impossível não nos
lembramos do termo “aposento” como referência à casa ou a um outro espaço privado 2.

Por hora, o cuidado com o esclarecimento do termo só foi encontrado por nós no
trabalho de dissertação de mestrado da professora Avanete Pereira de Sousa, que versa sobre a
Câmara de Salvador no século XVIII. Ao caracterizar a aposentadoria como recurso para
hospedagem dos juízes, foca no reforço ao impedimento que havia em relação à fixação de
moradia pelos juízes, o que iria de encontro ao caráter transitório dos cargos. Inclusive, mostra
como os juízes de fora de Salvador, na primeira metade do século XVIII, conseguiram, segundo
exposto nos pedidos feitos pelo Dr. José Camello de Sá, que o valor das suas aposentadorias
fosse de 40$000 réis para 80$000 réis, tendo por justificativa a insuficiência do valor para a
manutenção dos juízes na cidade em boas condições 3. Temática que se aproxima do que
trataremos mais adiante.

Ainda segundo o Bluteau, e trazendo uma contradição para o nosso texto, podemos
comentar ainda o termo “aposentado”. Porque, consoante Bluteau, aposentado não é apenas
aquele que já tomou aposento, é também aquele que serviu à República e, por razões de idade,
por culpa ou sem culpa e/ou por achaque (doença), não pode mais continuar em determinado
posto, mas, ainda assim, mantem o título, os privilégios e o ordenado 4. O que significa dizer
que temos sim, ao menos no século XVIII, certa proximidade com o nosso entendimento atual

2
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico [...]. V. 1. Coimbra:
Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712.p. 434-435.
3
SOUSA, Avanete Pereira de. Poder local e cotidiano: a Câmara de Salvador no século XVIII. Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia [dissertação de mestrado]. Salvador, 1996. p. 227
45-46.
4
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. p. 435.
sobre o tema, mas com uso diferente. Em sua tese de doutoramento, Claudia Cristina Azeredo
Atallah, comenta rapidamente sobre as aposentadorias sendo usadas como estratégia política
do então Conde de Oeiras, Sebastião José de Carvalho e Melo, para afastar alguns homens da
corte e do serviço régio. “Desse modo, alguns desembargadores foram alijados do poder e do
convívio político do novo ministério por meio de inúmeras aposentadorias compulsórias
concedidas [...] a partir de 1758”5. Em novas palavras, o recurso de aposentadoria de um oficial
poderia ter a sua justificativa em uma mudança de governo ou de regime, visto que um novo
grupo responsável pela gestão das coisas e das gentes, costumeiramente, tende a colocar pessoas
da sua confiança nos cargos mais importantes.

Esse dado, que de certo modo aproxima o entendimento das aposentadorias do


século XVIII daquelas que conhecemos hoje, não compromete o nosso entendimento quando
partimos para a análise da documentação disponível no Arquivo Histórico Ultramarino. Uma
busca simples pelo termo “aposentadoria”, gera 254 ocorrências, dessas, buscamos, por hora,
verificar a temática dos documentos referentes à Bahia e a Pernambuco, conjunto com pouco
mais de 53 referências. Nos documentos que nós conseguimos analisar até agora, nenhum deles
traz o conceito de aposentadoria contemporâneo ou até mesmo o sentido de aposentado que já
havia no século XVIII e que comentamos a pouco. Todos eles se referem ao pedido de aposento
para custear a circulação ou a manutenção de um oficial no lugar para o qual foi designado. E,
são mais comuns entre os militares e os magistrados.

Partindo para uma abordagem mais voltada para a problematização do conteúdo


que desejos discutir, precisamos pensar em algumas funções relacionadas ao serviço dos
magistrados, mais especificamente dos ouvidores de comarca.

Conforme sabemos,

Os ouvidores-gerais ou ouvidores de comarca eram os magistrados que


estavam à frente das comarcas, que recebiam uma nomeação régia para as
ouvidorias e tinham jurisdição sobre todo o território dessa instituição. Eram
os principais responsáveis por acompanhar as atividades das câmaras e pela
realização das correições. Para os territórios ultramarinos, a Coroa portuguesa
nomeava ouvidores-gerais que, na prática, tinham competências semelhantes

5
ATALLAH, Claudia Cristina Azeredo. Da Justiça em nome d’El Rey: Ouvidores e Inconfidência na capitania de 228
Minas Gerais (Sabará, 1720-1777). Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense
[tese de doutoramento]. Niterói, RJ, 2010. p. 179.
aos corregedores do reino, inclusive deveriam seguir os mesmos capítulos das
Ordenações6.

Nas Ordenações Filipinas, consoante Isabele de Matos Pereira de Mello, o mesmo


título (LVIII) que trata dos corregedores das comarcas do Reino, serviu de base para o trabalho
dos ouvidores e ouvidores-gerais do ultramar. E, pelo título seguinte, as Ordenações
estabelecem que um ouvidor nomeado para uma cidade ou vila, “quando estiver no lugar de sua
ouvidoria, conhecerá de todo o que conheceria o corregedor da comarca, e usará de todo o que
o corregedor por seu regimento pode usar [...] no lugar de seu julgado” 7. Logo, dentro desse
espaço jurisdicional, os ouvidores eram os principais responsáveis por “fazer justiça” e, uma
das formas de executar essa missão era através das correições.

Para Pernambuco, ficaram registradas no Arquivo Histórico Ultramarino


importante conjunto de pedidos, resultados e confusões, fruto das correições realizadas. Entre
os documentos analisados, nos chamou especial atenção a necessidade de cobertura da maior
área possível. Em 1708, o então governador de Pernambuco, Sebastião de Castro e Caldas,
sugeriu ao ouvidor da Paraíba, Jerônimo Correia do Amaral, que além de realizar correição em
Itamaracá e Rio Grande, também a estenda até a capitania do Ceará8. Outro ponto interessante
que pode ser visualizado através da documentação é o uso das correições para cumprimento de
atividades secundárias. No início da década de 1760, o juiz de fora de Olinda e Recife, enquanto
realizava correições no “sertão do norte”, aproveitou para fundar novas vilas e lugares de índios.
Fato que nos dá exemplo da interiorização da administração da justiça e, igualmente, da
manutenção dos cuidados em relação à conversão dos povos nativos 9.

Temos também dados sobre correição realizada na cabeça da comarca. Sobre o caso
específico, nenhum detalhe nos salta aos olhos, senão outro cuidado. O responsável pela
correição foi o desembargador Manoel da Fonseca Brandão, então ouvidor interino em
Pernambuco. Em agosto de 1751, quando escreveu ao rei D. José, fez questão de reforçar o seu
justo procedimento durante os interrogatórios e que, era possível que algum cidadão escrevesse

6
MELLO, Isabele de Matos Pereira de. Os Ministros da Justiça na América Portuguesa: ouvidores-gerais e juízes
de fora na administração colonial (séc. XVIII). Rev. Hist. (São Paulo), São Paulo, n. 171, p. 351-381, Dec. 2014.
p. 355.
7
TÍTULO LIX. Codigo Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal, Livro I. 14ª edição. Rio de Janeiro:
Tipografia do Instituto Filomático, 1870. p. 112.
8
CARTA do governador da capitania de Pernambuco, Sebastião de Castro e Caldas, ao rei [D. João V], sobre a
correição do ouvidor da capitania da Paraíba, [Jerônimo Correia do Amaral], nas capitanias de Itamaracá e Rio
Grande, sugerindo que siga ainda para o Ceará. Pernambuco, 05 de junho de 1708. AHU_ACL_CU_015, Cx. 23,
D. 2067.
9
OFÍCIO do Bispo de Pernambuco, [D. Francisco Xavier Aranha], ao [secretário de Estado do Reino e Mercês] 229
Conde de Oeiras, [Sebastião José de Carvalho e Melo], sobre a correição no sertão norte e a fundação de novas
vilas e lugares de índios. Olinda, 20 de junho de 1761. AHU_ACL_CU_015, Cx. 96, D. 7543.
ao rei dizendo o contrário. Visto que, segundo justifica Brandão, “em Pernambuco e na presente
conjuntura, tudo se acomoda ao sentido a que cada um o quer aplicar”. Ainda segundo as
informações fornecidas pelo desembargador, a última correição realizada em Olinda acontecera
em 1745, talvez daí o costume de se aplicar aos casos resolução mais conveniente do que justa10.

No mesmo ano de 1751, outra andada em correição voltou a estimular a


comunicação entre o desembargador Manoel da Fonseca Brandão e o rei D. José. No entanto,
dessa vez, com a introdução de uma polêmica. Apesar de ter acontecido em 1751, as cartas
trocadas de lado a lado do Atlântico tiveram início no ano seguinte, quando já estava em
Pernambuco o ouvidor João Bernardo Gonzaga, nomeado para cargo de ouvidor geral da
capitania de Pernambuco. Gonzaga, na sua passagem por Pernambuco, buscou através de cartas
enviadas ao Reino mostrar e assegurar privilégios financeiros relacionados a sua função. Logo,
a mencionada polêmica introduzida por Brandão deu novas razões para Gonzaga escrever ao
Reino sobre outros valores que, segundo ele, lhe eram devidos. Tal discussão, na realidade, teve
início ainda quando ocupava interinamente a ouvidoria da capitania de Pernambuco o
desembargador Manoel da Fonseca Brandão.

Aproximavam-se as festas do Natal de 1751 quando o desembargador recebeu


através do governador Luís José Correia de Sá, uma certidão em nome do “povo” da vila de
Sirinhaém, pela qual era solicitado o “remédio de correição”, o que não ocorria a quatro anos.
Prontamente, Manoel da Fonseca Brandão decidiu seguir para Sirinhaém durante as férias do
Natal para “administrar justiça” na região.

Durante o processo, Brandão diz que

[...] tomando contas aos oficiais da Câmara dos quatro anos antecedentes,
achei que os ouvidores, que fizeram correições de dois e mais anos, levaram
de cada um deles aposentadoria de vinte e cinco mil réis, que tem pelos bens
daquele Conselho, e entre eles praticou o mesmo Francisco Correia Pimentel,
um dos Ministros mais distintos em letras, desinteresse, e pureza de
consciência, que tem servido a Vossa Majestade no Brasil11.

Por ter encontrado a despesa nas contas de anos anteriores, segundo informa,
Brandão abonou as aposentadorias referentes aos quatros anos nos quais não foram realizadas
correições. Por isso, ofereceu o desembargador um “desconto” à Câmara de Sirinhaém, pois,

10
CARTA do desembargador e ouvidor interino da capitania de Pernambuco, Manoel da Fonseca Brandão, ao rei
D. José, sobre a correição que realizou em Olinda e da devassa que tirou. Recife, 16 de agosto de 1751.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 72, D. 6048.
11
CARTA do desembargador e ouvidor interino da capitania de Pernambuco, Manoel da Fonseca Brandão, ao rei 230
D. José, sobre a correição que realizou na vila de Sirinhaém e sobre as aposentadorias dos ouvidores da capitania
(documento anexo). Recife, 26 de abril de 1752. AHU_ACL_CU_015, Cx. 79, D. 6573.
para os três anos anteriores, cobrou 18$000 réis para cada e 25$000 réis pelo ano corrente. Além
dos 79$000 réis que levou da Câmara pela correição, Brandão ainda estabeleceu valor a ser
pago ao escrivão (8$000 réis), ao meirinho (4$000 réis) e “outro tanto para o escrivão da vara”.
Desses valores foram abatidos os gastos pessoais dos oficiais durante a correição, período de
tempo não especificado pelo desembargador. Mesmo após receber os valores, Brandão
reconhece não ter certeza se agiu dentro da lei e, exatamente por essa razão, escreveu ao rei
para saber se havia alguma irregularidade no seu procedimento12.

Pelo cruzamento de informações disponíveis nos documentos avulsos do Arquivo


Histórico Ultramarino, é possível perceber que Manoel da Fonseca Brandão ainda estava em
Pernambuco quando João Bernardo Gonzaga assumiu seu posto na ouvidoria da capitania.
Logo, não é improvável que Gonzaga tenha tomado conhecimento da querela acerca do
pagamento das aposentadorias através do desembargador. Inclusive, a provisão de 17 de
setembro de 175313, que proibia o ouvidor-geral de receber as aposentadorias e que foi
mencionada por Gonzaga na sua carta de 12 de maio de 1754, parece muito mais ser uma
resposta à carta de Manoel da Fonseca Brandão do que uma resposta à pedidos feitos por João
Bernardo Gonzaga. Na verdade, os argumentos de Gonzaga vão de encontro ao que foi
praticado pelo desembargador. Que, segundo diz Gonzaga, entendeu que as aposentadorias
deveriam ser pagas pelos títulos, quando, as provisões que vigoravam em Pernambuco
garantiam o direito para pagamento do aluguel da casa onde viviam os ouvidores da comarca.
Pelas informações levantadas por João Bernardo Gonzaga,

[...] desde a criação desta ouvidoria [de Pernambuco] se concedeu por Vossa
Majestade aos seus ouvidores 100$000 réis de aposentadoria anual para as
suas casas, os quais se acham partidos pelas câmaras da comarca, como nesse
Reino se pratica; pagando a Câmara de Olinda 40$000 réis; a do Recife
16$000 réis; a de Igarassu 19$000 réis e a de Sirinhaém 25$000 réis14.

Para comprovar a sua argumentação, o ouvidor-geral recorreu aos livros de registro


das câmaras. Na de Sirinhaém, até mesmo pelo que foi exposto por Brandão, havia a previsão
de pagar aposentadorias no valor de 25$000 réis, o que mudou de um ouvidor para o outro foi
a razão de ser do pagamento. Em meio aos esclarecimentos para saber como deveriam proceder
os ouvidores, João Bernardo Gonzaga conseguiu que as câmaras de Olinda e Igarassu

12
AHU_ACL_CU_015, Cx. 79, D. 6573.
13
Reforçada por outra provisão datada de 14 de dezembro de 1754. AHU_ACL_CU_015, Cx. 79, D. 6573.
14
CARTA do ouvidor geral de Pernambuco, João Bernardo Gonzaga, ao rei [D. José], sobre o pagamento da sua 231
aposentadoria pelas câmaras de Sirinhaém, Igarassu, Recife e Olinda (documento anexo). Recife, 12 de maio 1754.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 79, D. 6573.
apontassem nos seus livros as aposentadorias como forma de pagar a casa onde os ouvidores
costumavam viver na “cabeça” da comarca. No entanto, longe de ter sido resolvida
rapidamente, a questão se arrastou até novembro de 1757 e, ainda se arrastava pela burocracia
do Conselho Ultramarino em meados de agosto e dezembro de 1758, quando Gonzaga já havia
sido nomeado para outro posto15.

A demora na resposta não significa que ele tenha ficado privado das aposentadorias
por todo esse período. O governador da capitania de Pernambuco, Luís Diogo Lobo da Silva,
já havia dado parecer favorável aos argumentos de Gonzaga em abril de 1757 e a confirmação
da Câmara de Olinda foi feita no ano anterior. Por fim, a consulta do Conselho Ultramarino
define que as aposentadorias devem “continuar sendo pagas”. Ou seja, enquanto o caso não
tomou resolução final, as provisões 17 de setembro de 1753 e 12 de maio de 1754, que
proibiram o pagamento das aposentadorias, foram constrangidas pela anterioridade das
provisões assentadas nos livros de registro das câmaras da comarca.

Com essa decisão, chegou o rendimento anual do ouvidor-geral de Pernambuco ao


valor bruto de 700$000 réis, fora o que era arbitrado para os magistrados a cada julgamento.
Através da argumentação baseada nas leis vigentes, Gonzaga conseguiu tornar o seu ordenado
superior e muito mais interessante do que os 300$000 réis previsto nos alvarás de 1715. E, não
é absolutamente uma novidade considerarmos, ao tratar de sujeitos históricos, os interesses
pessoais diante de uma oferta de trabalho ou até mesmo durante o exercício dessa atividade
laboral. Conforme aponta a historiadora Elisa Caselli para a realidade espanhola, aqueles que
compravam ou recebiam um cargo, o faziam esperando retorno maior do que o investimento
realizado para conseguir o posto, fosse o investimento a própria compra ou a formação
universitária (já que os custos para a formação e cerimônias de graduação tinham valores
consideráveis). Assim, no que se refere aos

[...] ingresos de los jueces, debemos recordar que además de los beneficios
por exenciones tributarias, derechos de aposentamiento y consideraciones
honoríficas, los jueces y oficiales de justicia, en general, contaban con los
ingresos provenientes de su salario o quitación, de los aranceles por cada acto
procesal, del décimo de las ejecuciones y de la participación proporcional en
las penas pecuniarias destinadas al acusador cuando este no existía y se
actuaba de oficio. En la práctica, la manera de asegurar (e incrementar) sus
ingresos adquiría un claro carácter privado: los jueces y oficiales vinculados
a la justicia tenían en sus manos optimizar sus recursos y la forma de lograrlo

15
CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. José, sobre o dinheiro que anualmente recebe de aposentadoria 232
o ouvidor-geral de Pernambuco, João Bernardo Gonzaga, das câmaras de Sirinhaém, Recife, Olinda e Igarassu.
Lisboa, 07 de novembro de 1757. AHU_ACL_CU_015, Cx. 86, D. 7045.
parece bastante evidente. Expresado de un modo más llano: cuantos más
juicios tratara un juez, mayores serían sus ingresos 16.

Inclusive, outros registros documentais apontam as correições – temática que em


Pernambuco abriu espaço para discutir as aposentadorias – como forma de aumentar o salário.
Em maio de 1757, por exemplo, o ouvidor geral de Itamaracá, Manoel Fernandes de Campos,
acusou o ouvidor da Paraíba, Domingos Monteiro da Rocha, de ter dado sentenças maiores que
as devidas durante a correição em Goiana. Durante a correição, Domingos Monteiro da Rocha
também deveria tirar as devassas de morte, ou seja, os crimes de assassinato. Pelas informações
apresentadas pelo ouvidor de Itamaracá, o ouvidor em correição passou a

[...] tirar todas as devassas de morte e ainda algumas de muitos anos, de que
os delinquentes estavam livres, sem que por estas devassas houvesse outros
culpados de novo, senão os mesmo já compreendidos, levando por cada
devassa sessenta mil réis de salário, sendo todas tiradas dentro da vila, fazendo
vir testemunhas de mais de oito léguas a jurar com grande detrimento de suas
pessoas [...]17.
Além da reabertura de alguns processos, Domingos da Rocha fez oficiais de justiça
e milícia agirem contra os acusados que se recusaram a pagar pelos custos das ações. Vexados
de tal forma, alguns moradores foram obrigados a vender bens para honrar as dívidas, o que,
consoante relato de Manoel de Campos, deixou a capitania assolada, situação que deu razão
para as suas queixas18. Por sua vez, Domingos da Rocha diz ter agido apenas dentro das suas
atribuições e alerta para existência de pessoas de natureza vil, provavelmente, aqueles que
acusaram-no de mal procedimento. Diz, inclusive, haver em Goiana, pessoas que usavam os
processos para “tirar o sangue dos pobres”19. Deixando de lado a problematização sobre quem
tinha razão nessa disputa, por não termos mais elementos de análise, podemos observar que, no
final das contas, os dois lados apontam para o uso das atividades jurídicas como forma de
conseguir mais dinheiro. O que nos dá indícios de um padrão de procedimento da administração
da justiça em Pernambuco, onde nem sempre a base dos juízes eram as Leis e a finalidades das
ações era a Justiça.

16
CASELLI, Elisa. Vivir de la Justicia. Los réditos del oficio de juzgar y su incidencia en las disputas
jurisdiccionales (Castilla en la temprana Edad Moderna). In: Justicias, agentes y jurisdicciones. De la Monarquía
Hispánica a los Estados Nacionales (España y América, siglos XVI-XIX). Fondo De Cultura Económica De
España, 2017. Edição do Kindle, locais 4095-4101.
17
CARTA do ouvidor geral da capitania de Itamaracá, Manoel Fernandes de Campos, ao rei [D. José], sobre as
arbitrariedades cometidas pelo ouvidor geral da capitania da Paraíba, Domingos Monteiro da Rocha, durante
correição em Goiana. Goiana, 28 de maio de 1758. AHU_ACL_CU_015, Cx. 86, D. 6988.
18
AHU_ACL_CU_015, Cx. 86, D. 6988. 233
19
CARTA de Domingos Monteiro da Rocha, [ouvidor da capitania da Paraíba], ao rei [D. José], sobre a correição
que tirou em Goiana (documento anexo). Paraíba, 06 de abril de 1757. AHU_ACL_CU_015, Cx. 86, D. 6988.
Considerações finais

Ao recorrer às Câmaras da comarca, João Bernardo Gonzaga consegue apresentar


a justificativa de pagamento da aposentadoria dos ouvidores de Pernambuco. Inclusive,
apresenta uma tradição, através da exibição das resoluções registradas em período, segundo diz,
imemorial. Ainda assim, não fica claro pela documentação disponível se na década de 1750 o
pagamento das aposentadoria voltou a ser feito depois de um período sem pagamento, ou se ele
nunca parou de ser feito. De qualquer maneira, o esclarecimento do caso abre ou retoma, via
cadeia argumentativa, um precedente, que é a confirmação do pagamento tendo por finalidade
a quitação do aluguel da moradia onde costumaram viver os ouvidores de Pernambuco. E, como
costuma acontecer no universo jurídico, aberto o precedente, os benefícios recebidos por
Gonzaga não saíram mais da pauta de interesse dos seus sucessores.

Através de um pedido feito por um dos sucessores de Gonzaga é possível notar que
a questão do pagamento das aposentadorias em Pernambuco não ficou restrita àqueles que dele
esperavam benefício imediato. Em 1765, quando foi nomeado para a ouvidoria de Pernambuco
o fidalgo João Marcos de Sá Barreto, um requerimento do ouvidor nomeado foi apresentado ao
rei D. José, pelo qual foi solicitado o adiantamento do ordenado, ajuda de custo para o
embarque, no valor de 50$000 réis e “porque se lhe não passou provisão para a sua
aposentadoria, por não constar que se desse a seus antecessores, que talvez por inadvertências
ou omissão sua deixaram de a requerer”, o que não deveria prejudicar a ele suplicante. A base
do pedido está no conhecimento do pagamento para outras ouvidorias, como Bahia, Rio de
Janeiro, Ceará, Alagoas, Pará e Maranhão; como também para o juiz de fora de Olinda e
Recife20. Consideramos improvável que João Marcos tivesse informações sobre a situação do
pagamento da aposentadoria do juiz de fora e não tivesse sobre a situação da ouvidoria. A sua
abordagem no requerimento – tipo de formato documental pouco flexível – nos parece mais
uma estratégia argumentativa do que desconhecimento da real situação. Afinal, em meados de
novembro de 1758, o caso da aposentadoria dos ouvidores de Pernambuco ainda estavam sendo
discutidas no Reino. E, por ser Pernambuco um dos destinos mais importantes e cobiçados pelos
magistrados, as informações sobre as condições do serviço na região tinham boa circulação.

20
REQUERIMENTO do ouvidor nomeado para a capitania de Pernambuco, fidalgo João Marcos de Sá Barreto, 234
ao rei [D. José], sobre o adiantamento do seu ordenado, ajuda de custo para o embarque e sobre as aposentadorias
dos ouvidores em Pernambuco. Sem localização, 07 de maio de 1765. AHU_ACL_CU_015, Cx. 102, D. 7949.
Por fim, gostaríamos de reforçar que em tempos como o nosso, no qual muitas
análises são feitas sobre o ponto de vista moral, que aqui não buscamos entender se o pagamento
das aposentadorias dos ministros de letras no séculos XVIII era moralmente aceitável ou não.
Até mesmo porque, vista a circulação desses profissionais, costumeiramente distantes de casa
e frequentemente substituídos, conforme dados de José Subtil21, a existência de um recurso
financeiro para garantir um lugar de morada era uma necessidade real. O que de fato nos
interessa é visualizar, além do esclarecimento da razão de ser das aposentadorias em
Pernambuco no período, o quanto os profissionais nomeados para o serviço régio na Justiça
precisavam estar atentos aos direitos fruto das posições que ocupavam, tanto no que diz respeito
aos privilégios como, igualmente, aos deveres e possíveis desentendimentos.

Referências
Arquivo Histórico Ultramarino

AHU_ACL_CU_015, Cx. 23, D. 2067.

AHU_ACL_CU_015, Cx. 72, D. 6048.

AHU_ACL_CU_015, Cx. 79, D. 6573.

AHU_ACL_CU_015, Cx. 86, D. 6988.

AHU_ACL_CU_015, Cx. 86, D. 7045.

AHU_ACL_CU_015, Cx. 96, D. 7543.

AHU_ACL_CU_015, Cx. 102, D. 7949.

ATALLAH, Claudia Cristina Azeredo. Da Justiça em nome d’El Rey: Ouvidores e


Inconfidência na capitania de Minas Gerais (Sabará, 1720-1777). Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal Fluminense [tese de doutoramento]. Niterói, RJ, 2010.

BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico [...].
V. 1. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712.

CASELLI, Elisa. Vivir de la Justicia. Los réditos del oficio de juzgar y su incidencia en las
disputas jurisdiccionales (Castilla en la temprana Edad Moderna). In: Justicias, agentes y
235
21
Ver SUBTIL, José. Os ministros do rei no poder local, ilhas e ultramar (1772-1826). Penélope, nº27, 2002.
jurisdicciones. De la Monarquía Hispánica a los Estados Nacionales (España y América, siglos
XVI-XIX). Fondo De Cultura Económica De España, 2017.

MELLO, Isabele de Matos Pereira de. Os Ministros da Justiça na América Portuguesa:


ouvidores-gerais e juízes de fora na administração colonial (séc. XVIII). Rev. Hist. (São
Paulo), São Paulo, n. 171, p. 351-381, Dec. 2014. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-
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PORTUGAL. Codigo Philippino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal, Livro I. 14ª


edição. Rio de Janeiro: Tipografia do Instituto Filomático, 1870.

SOUSA, Avanete Pereira de. Poder local e cotidiano: a Câmara de Salvador no século XVIII.
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia [dissertação de
mestrado]. Salvador, 1996.

SUBTIL, José. Os ministros do rei no poder local, ilhas e ultramar (1772-1826). Penélope,
nº27, 2002.

236
PARTE IV

INDÍGENAS E MISSIONÁRIOS: FORMAÇÃO DA


SOCIEDADE COLONIAL E AÇÃO
INTELECTUAL, SÉCULOS XVI-XIX.

ALIADOS ESSENCIAIS: TROPAS INDÍGENAS E A COMPANHIA DAS ÍNDIAS


OCIDENTAIS NO NORDESTE DO BRASIL (1630-1654)

Bruno Romero Ferreira Miranda


Departamento de História da UFRPE
mirandabruno@gmail.com

Lucas de Lima Silva


Graduando de Licenciatura Plena em História e Bolsista PIBIC/CNPq - UFRPE.
lucaslimasht@gmail.com

O artigo que será apresentado é fruto de uma pesquisa de Iniciação Científica em


desenvolvimento financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) em parceria com a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE)
para os anos 2018 e 2019. A pesquisa está inserida institucionalmente no plano de trabalho,
intitulado “Tupis, tapuias e holandeses: as alianças batavo-indígenas e a conquista e
manutenção do território da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil (1630-1654)”, sendo
executada pelo bolsista Lucas de Lima Silva. Por sua vez, o plano de trabalho está subordinado
ao Projeto de Pesquisa do Prof. Dr. Bruno Romero Ferreira Miranda de nome “Mantendo um
exército: Abastecimento de víveres durante a ocupação da Companhia das Índias Ocidentais no
Brasil (1630-1654)”. Os autores são muito gratos pelo apoio do CNPq e da UFRPE a esta
pesquisa.
A motivação central para a elaboração deste artigo é poder fomentar discussões
acerca do emprego militar generalizado de indígenas que viviam nos aldeamentos coloniais1

1
Daqui em diante referidos neste texto como “brasilianos”. Tradicionalmente o termo é utilizado pela 237
historiografia para se referir aos indígenas de fala Tupi que habitavam as aldeias coloniais já estabelecidas pelos
portugueses quando da conquista holandesa de Pernambuco, tendo os invasores se utilizado e perpetuado a sua
durante o período da segunda invasão holandesa ao Brasil. Tal debate justifica-se pela incipiente
discussão promovida por historiadores que se debruçaram sobre o tema. Apesar dos trabalhos,
antigos e recentes, que tratam do assunto, ele ainda não recebeu a atenção de uma pesquisa
sistemática cujo objetivo central seja o estudo das relações de teor político-militar entre povos
indígenas e neerlandeses durante o período supracitado. Pretensão que é a desta pesquisa em
andamento e cujos resultados preliminares estão expostos aqui.

Alianças entre Europeus e Indígenas na Conquista da América

Desde os primeiros momentos de contato com o território recém-descoberto, os


europeus que circularam no Brasil estavam cientes de que qualquer empreitada, mesmo que
esporádica, dependia e necessitava de algum nível de relacionamento com as populações locais.
Foi assim com portugueses e franceses, que envolvidos nas disputas por território e zonas de
comércio na costa do Brasil, dispuseram continuamente e consideravelmente do apoio de seus
aliados indígenas ao longo de todo o século XVI, até a destruição das pretensões colonialistas
francesas direcionadas ao Brasil, com o acordo que levará à dissolução final da França
Equinocial, já na primeira metade do século seguinte (HEATH, 1998: 107-108; ALMEIDA,
2013; 47-81)

Os franceses, mesmo quando não tentavam estabelecer colônias territoriais extensas


no Brasil, interagiam intensivamente com grupos indígenas e tomavam parte nas querelas destes
grupos com os portugueses, pretendendo dessa maneira minar o avanço luso sobre o território
na costa brasileira. Tais alianças entre franceses e diversos grupos Tupi, como os Tamoio no
Rio de Janeiro, os Potiguar na Paraíba e os Tupinambá no Maranhão, exemplificam bem a
necessidade do apoio em terra provido por ameríndios para a sustentação da empresa francesa
de exploração do pau-brasil nos quinhentos. O investimento dos europeus em seus aliados
muitas vezes era considerável, dada a existência de relatos de boas fortificações, construídas
com a ajuda de engenheiros franceses, e de oficinas de trabalho com ferro, à disposição de
vários indígenas aliados, para auxiliar na luta contra os portugueses. (HEATH, 1998: 107-108;
HULSMAN, 2006: 65; HEMMING, 2007: 249-251)

Desse modo, não seria diferente com os neerlandeses, cujo contato com indígenas
em áreas do atual Amapá, do Pará e na região das Guianas (HULSMAN, 2011: 179-182)
238
estrutura. Para uma caracterização bem fundamentada acerca dos grupos que eram considerados “brasilianos”, cf.:
HULSMAN (2006: 41, 42; 51).
antecedeu a própria criação da Companhia das Índias Ocidentais, responsável direta pela
ocupação de parte do nordeste do Brasil entre 1630 e 1654. De fato, já em 1601 dispomos de
documentação que confirma a presença neerlandesa em área da colônia portuguesa, como já
apontava José Antônio Gonsalves de Mello, no capítulo Atitudes dos holandeses para com os
índios e a Catequese, do seu estudo clássico Tempo dos Flamengos (1947).2 Desde a escrita da
obra de Gonsalves de Mello, foram feitos avanços na percepção do envolvimento dos grupos
indígenas com as decisões e o destino das ações de europeus na América – incluindo as áreas
do “Brasil holandês”, que por muito tempo esteve na historiografia associado à uma visão
estreitamente vinculada à política estatal, diplomática e militar. Prova disso são os trabalhos
que já cobrem alguns dos vazios historiográficos já apontados no livro de Mello. Hoje, podemos
afirmar que a presença de neerlandeses na região amazônica foi intensa desde fins do século
XVI e princípios do século XVII, e já apontava na direção de contatos e trocas consideráveis
com as populações locais. Boxer já alertava, de maneira tímida, em Os Holandeses no Brasil,
(1957), a influência neerlandesa na região Amazônica no começo dos seiscentos. As pesquisas
recentes de Hulsman (2011) e Alírio Cardoso (2017) chamam a atenção para a influência
significativa que esta presença teve na região. Hulsman traz à baila majoritariamente as relações
econômicas firmadas entre neerlandeses – e também ingleses, irlandeses e outros povos do
Norte da Europa – e ameríndios na região do Amapá e da Bacia das Guianas, e trata destas
interações como basilares para os próximos momentos da presença europeia na região. A
ocorrência inesperadamente frequente de ameríndios em viagens à Europa, com o intuito de
aprender as línguas europeias e atarem melhor os laços comerciais com as nações que
interagiam economicamente na América é fator elucidativo sobre a força que tais interações
podiam ter. Hulsman (2011: 189) também aponta que a troca de produtos não só mudou os
hábitos dos ameríndios com os quais estes europeus interagiam. O autor afirma que a economia
que se desenvolveu em torno de tal operação comercial americana era tão pujante, que alguns
produtores europeus passaram a se especializar em produzir manufaturados para serem trocados
com os indígenas. Cardoso (2017: 412-414) aponta três fases da presença neerlandesa no
Maranhão e a conexão mais intrincada desta zona geográfica com o comércio na região do
Caribe e das Guianas no começo e até meados do século XVII, adentrando o período de domínio
da WIC sobre o território.

239
2
Mello se refere ao contato estabelecido no Ceará, entre neerlandeses e os indígenas, na Baía do “Moucuru”.
(2001: 207)
Mesmo durante esse período, anterior à invasão de Pernambuco, alguns
personagens que ficarão famosos mais à frente, durante o domínio da WIC sobre o Brasil, já
ensaiavam seus primeiros passos no teatro americano. Este é o caso de Gedeon Morris de Jonge,
figura importante e autor de rico relato sobre o Maranhão à época do domínio da WIC. Morris
de Jonge parece ter alguma proximidade ou simpatia para com os indígenas, já que em 1642
chama a atenção para a escravidão disfarçada em que viviam os indígenas do Maranhão, sendo
tal motivo depois reconhecido pela própria Companhia como razão da rebelião de indígenas em
1644, revolta esta que vitimará o próprio Morris de Jonge (MELLO, 2001: 219; HULSMAN,
2006: 44; 66, 67).3 Contudo, muito antes de seu fim, Morris de Jonge já se aventurava pela
região, quando foi preso em 1629, no Amapá, e passou 6 anos prisioneiro em São Luiz
(HULSMAN, 2011: 181). Junto a ele, também temos a figura de Roelof Baro, importante
intérprete junto aos aliados Tapuias4 comandados por Janduí, na década de 1640. Baro, segundo
o relato de Pierre Moureau e as notas do Senhor Morisot ao relato de viagem do próprio Baro,
teria sido enviado ao Brasil muito jovem e teria aprendido a língua dos Tapuia. Apesar disso,
Mello (2001: 213, 214) afirma que Baro só aparece no radar da Companhia a partir dos anos de
1643, onde assumirá inicialmente o posto de explorador de terras, e, posteriormente, ocupará o
lugar vacante de Jacob Rabbi como emissário junto a Janduí. É nesta segunda posição que Baro
escreverá um relato importante sobre o Rio Grande, logo após a eclosão da rebelião dos
portugueses, onde ele destaca sua estadia entre os Tapuia de Janduí e demonstra a importância
das alianças com os indígenas da região.5

3
Hulsman aponta Gedeon como “defensor” dos indígenas. (HULSMAN, 2006: 44). Embora o relato de Morris de
Jonge se refira ao Maranhão e a rebelião tenha acontecido no Ceará, podemos perceber similaridades entre estas
regiões à época. As Atas Diárias, demonstram a ocorrência de um fluxo de informações e de indígenas entre as
regiões do Maranhão e do Ceará (Atas Diárias de 08-03-1644, 09-03-1644, 20-03-1644, 21-03-1644) no período
da revolta. José Antônio Gonsalves de Mello também afirma que a política indigenista oficial da WIC era
naturalmente fragilizada pela distância, o que facilitava a ocorrência de abusos em áreas geograficamente distantes
e de ocupação não tão intensa quanto a da zona açucareira de Pernambuco, Paraíba e Itamaracá (MELLO, 2001:
219, 220).
4
O grupo é preferencialmente referido como Tarairiú na historiografia que trata do domínio neerlandês no Brasil.
Contudo, também utilizaremos aqui o termo “tapuia” por este aparecer frequentemente no corpus documental que
utilizamos para elaborar este artigo, majoritariamente nas Atas Diárias do Conselho Político e do Alto e Secreto
Conselho. Contudo, tal uso não implica ignorância por parte dos neerlandeses em perceber as diferenças entre os
diversos grupos “Tapuia” da colônia. De fato, Morisot afirma, nos seus comentários do relato de Baro (1979
[1651]), que Johannes de Laet, no seu livro “História das Índias Ocidentais” – impresso de 1625 e ainda sem
tradução para o português – apontou a existência de “cerca de 76 nações de Tapuia” no Brasil. Por vezes, as Atas
Diárias também se referem aos Tapuias como “papayos” ou “papoyos”, mas estas menções só ocorrem no ano de
1644 e não estamos certos de sob quais critérios de identificação específicos.
5
Morisot aponta que Baro seguiu para as Índias Ocidentais na Armada de 1617. Contudo, dado a raridade de
informações acerca desta figura, alguns aspectos parecem contraditórios. Mello afirma que ele se casará em
Amsterdã no ano de 1644, contudo, Moureau não faz menção à presença de Baro na frota que parte dos Países
Baixos para socorrer o Brasil em 1646, estando ele já em serviço da Companhia em 11 de março de 1647, ainda 240
segundo Mello. Aparentemente, mesmo tão jovem entre os indígenas, Baro não parece ter se integrado tanto aos
ameríndios de Janduí quanto o seu predecessor, Jacob Rabbi, e ainda mantinha alguns vínculos com a Europa. De
Com a fundação da WIC, em 1621, o estabelecimento de alianças com as
populações nativas do Brasil foi incorporado à política oficial da Companhia das Índias
Ocidentais, como vemos na Carta Patente da Companhia emitida pelos Estados Gerais que
resguarda em seu segundo ponto à Companhia o direito de:

em nosso nome e autoridade pode fazer contratos, pactos e alianças com os


príncipes e naturais dos países compreendidos dentro dos limites já
mencionados, e igualmente ali construir algumas fortalezas ou fortificações,
admitir gente de guerra, nomear governadores e funcionários de justiça e
outros (LAET, 1908 [1644]: 8; OCTROY, 1623)
A procura por aliados indígenas era uma preocupação constante para os Diretores
da Companhia, e a elaboração de uma política voltada para estas interações antecedeu a invasão
de Pernambuco, como nos mostra Mello (2001: 209-210; 214-215), ao destacar a afirmação da
liberdade dos índios presente no Regimento das Praças Conquistadas, de 1629, como um
instrumento que a WIC acreditava dar-lhe a vantagem no trato com os ameríndios diante dos
opressivos portugueses.6 Certamente a formulação de tal política também está relacionada a
uma experiência prévia, esta, já não tão distante da Companhia das Índias Ocidentais. Como
nos mostra Pablo Magalhães (2016), no seu artigo A Guerra Defensiva na Capitania da Bahia
(1625-1654), a invasão de 1624 foi frustrante para a Companhia, entre outros, pela incapacidade
de forjar alianças sólidas com os grupos indígenas locais. Talvez, um dos principais motivos
para tal tenha sido a falta de expertise necessária para a sistematização de uma rede política
mais consistente, que desse conta de englobar aliados indígenas enquanto os descolasse de seus
associados europeus anteriores, os portugueses. Como bem aponta Magalhães, a estrutura dos
aldeamentos do Recôncavo já estava deveras consolidada quando da chegada da WIC – cenário
diferente do que era descrito para a região Amazônica e das Guianas, no mesmo período –
apesar de algumas demonstrações de fragilidade e desgaste, principalmente no que concerne à
prática da “Guerra Brasílica” e o seu confronto com o poder marítimo da Companhia.
(MAGALHÃES, 2016: 95, 96) Todavia, ainda existem indícios de que a Companhia teve algum
sucesso na negociação de aliados indígenas durante a sua estadia na Bahia, como aponta
indiretamente Rômulo Luiz Xavier do Nascimento (2007: 133), ao resgatar no relato de
Francisco de Brito Freyre a ocorrência de punições a brasilianos após a capitulação neerlandesa
em Salvador.

acordo com Mello, sua viúva pedirá pensão, da Europa, à WIC em 1650, após a sua morte (MELLO, 2001: 213;
MOUREAU, 1979 [1651]: 66).
6
Tal elemento, de fato, parece ter tido algum peso nas alianças com ameríndios, visto que diversas foram as
pressões feitas pelos brasilianos ao Governo da WIC contra a escravização de seus semelhantes, mesmo aqueles 241
que teriam submetidos enquanto inimigos da Companhia. (HULSMAN, 2006: 41, 45, 66; MELLO, 2001: 216-
218)
Guerreiros indígenas nos contingentes militares da WIC

Apesar do fracasso na Bahia, os funcionários da Companhia das Índias


Ocidentais progressivamente avançarão na sua capacidade de arregimentar aliados indígenas
no Brasil, e no mesmo ano de sua expulsão do Recôncavo, darão um passo importante para tal.
A iniciativa, porém, partiu de índios Potiguar na Capitania da Paraíba. Eles aproveitaram uma
parada de navios da Companhia que retornavam para a Europa para contatar os estrangeiros e,
nas palavras de Joannes de Laet, oferecer “seus serviços contra os portugueses, cujo jugo
suportavam mal sofridos” (LAET, 1908 [1644]: 96). Ao longo de vários dias, esses índios
colaboraram ativamente com a gente da WIC e desse grupo saíram alguns para os Países Baixos
(LAET, 1908 [1644]: 96-97; HULSMAN, 2006: 42; MELLO, 2001: 208).7

Desse pequeno grupo, alguns nomes despontaram nas fontes: “Marzial, Takou,
Ararova e Matauve”, segundo Joannes de Laet (apud HULSMAN, 2006: 42). Em outro
momento, os nomes desses índios aparecem em versões mais aproximadas das citadas em
documentos da Companhia, como Caspar Paraupaba, Pieter Poty, Antonio Guirawassauay,
Andreus Francisco, Antonio Francisco e Luis Caspar, conforme escreveram Gonsalves de
Mello e Marcus Meuwese. Os nomes de Pieter Poty e Antônio Paraupaba começaram a
despontar com frequência em textos da Companhia (MELLO, 2001: 208; MEUWESE, 2003:
84 e Atas Diárias de 15-03-1639, 23-08-1639, 06-02-1641). Gaspar Paraupaba, pai de Antônio
e liderança importante entre os índios do Ceará (SCHWALKWIJK, 2004: 208), também
apareceria em outros textos deixados por gente da Companhia (HAJSTRUP, 2016). Eles seriam
importantes elementos de conexão da Companhia no estabelecimento de alianças entre índios
do Brasil e neerlandeses, o que renderia aos últimos, soldados para as guerras que acometeram
o Nordeste entre 1630 e 1654 (MEUWESE, 2003).
É difícil sintetizar a participação militar de índios dos Brasil nas guerras coloniais,
sobretudo porque elas confundem-se com as próprias lutas entre os vários povos nativos. Uma
análise superficial irá usualmente apontar para a instrumentalização desses índios para objetivos
europeus na colônia, embora a historiografia recente comece a mostrar que a participação de
indígenas nos conflitos coloniais não pode ser pensada de maneira tão simplista. No caso das
guerras neerlandesas, fica evidente que os Potiguar, dentre outros grupos aldeados e não
aldeados, tinham planos próprios e esperavam contar com seus novos aliados para subjugar

242
7
A entusiasmada colaboração destes Potiguar aos holandeses, pelo que apontam as fontes, rendeu forte punição a
esse povo e está vinculada a recente história de lutas deles contra os portugueses no século anterior.
seus inimigos recentes, os portugueses. Pelas narrativas que despontam em textos escritos por
alguns desses nativos, sobressaem-se, além dos objetivos próprios, a lembrança do morticínio
causado pelos portugueses no século anterior, quando esses avançaram no litoral para garantir
amplas porções de terras para as plantações de cana de açúcar, bem como a escravização dos
grupos resistentes ao avanço português nas capitanias de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba. As
brigas de portugueses, Potiguar, Caeté e Tabajara estavam vivas na memória desses índios que
topavam com os holandeses (HEMMING, 2007: 419-422; HULSMAN, 2006: 41, 42;
VAINFAS, 2009: 148-150, 158). Ainda assim, alguns Potiguar não cederam a tentação de
passar para o lado desses novos invasores europeus, e permaneceram garantindo aos primeiros
invasores proteção e auxílio militar durante o novo ciclo de guerras coloniais de europeus no
Brasil (MAGALHÃES, 2016: 93-108; NASCIMENTO, 2007: 134-136).
Até o hoje não se fez um estudo que demonstre o impacto da participação indígena
nas guerras entre portugueses e neerlandeses. Sequer os números dos contingentes mobilizados,
bem como suas funções foram alvo de pesquisa detalhada. Não é, todavia, uma participação
negligenciada. Sabe-se e aponta-se a importância dela para ambos os lados em contenda
(MELLO, 2001: 207-236; BOXER, 1961: 26, 73, 259; HEMMING, 2007: 417-454), embora
não se dimensione o quão vital ela foi.8 No caso dos holandeses, parece certo apontar que parte
do interior da colônia prescindia da ajuda deles, conforme indiciam as várias iniciativas
neerlandesas para firmar alianças para com os índios (Atas Diárias de 24-05-1635, 28-01-1636,
13-12-1638, 14-12-1638, 18-10-1640; Arquivo da Casa Real, doc. 1454, fólio 148; MELLO,
2001: 207-215) e o próprio direcionamento, uma vez alcançadas as alianças, para atividades
estritamente militares, o que nem sempre se fez sem o prejuízo dos próprios indígenas
(HULSMAN, 2006: 66; Atas Diárias de 07-06-1637, 23-07-1639, 18-10-1640, 27-11-1640, 18-
01-41).9
Logo nos primeiros momentos após a conquista da Vila de Olinda e de seu porto, o
Recife, os neerlandeses procuraram restabelecer contato com indígenas de áreas circunvizinhas.

8
José Antônio Gonsalves de Mello, ao transcrever em nota de rodapé os “censos” da população das aldeias e de
seus homens capazes de servir na guerra para os anos de 1639 e 1645 aponta a estimativa de 1.923 guerreiros
disponíveis para o ano de 1639 como “quantidade insignificante”, o que discordamos principalmente quando
comparamos com os contingentes europeus mobilizados no Brasil (MELLO, 2001: 227).
9
A mobilização intensiva de contingentes indígenas acabava causando desabastecimento nas aldeias, que saiam
em sua totalidade para a guerra, conforme observado no relato do comandante de indígenas Johannes Listrj. Ele
notificou o Alto Conselho de sua fracassada tentativa de recrutar 200 arqueiros brasilianos, por resistência dos
mesmos em abandonar suas aldeias, já desabastecidas pelas ações de guerrilheiros portugueses (Ata Diária 18-10-
1640; WAGNER, 1997 [1640]: 184-185). O problema parece ser persistente, pois em 27 de novembro de 1640, o
Alto e Secreto Conselho recebeu um pedido de socorro para aliviar a “miséria” dos “brasileiros”. Falou-se até 243
mesmo na extinção do grupo pela falta de auxílio em alimentos. Pediam ajuda médica, remédios e cobertores. No
ano seguinte uma requisição de teor semelhante foi feita, conforme Ata Diária de 18 de janeiro de 1641.
Alguns desses índios que embarcaram na Paraíba, de volta ao Brasil e já convertidos ao
calvinismo, serviram de interpretes dos neerlandeses e fizeram suas primeiras viagens para
firmar acordos com povos nativos. Além desse papel, forneceram informações sobre o território
e povos nativos, o que auxiliou a Companhia em seus primeiros passos nas capitanias que
viriam a ser invadidas. Junto a esses índios vieram, anos depois, alguns pastores da igreja
reformada, bem como funcionários civis que foram se adaptando a vida e costume dos nativos,
assumindo o importante papel de intermediários e comandantes de tropas de índios aldeados
(SCHALKWIJK, 2004: 209; MEUWESE, 2003: 87-93).
Alguns dos índios que foram aos Países Baixos serviram de mediadores da
Companhia, em 1631, entre índios da Paraíba, Rio Grande e Ceará que se mostraram desejosos
em se aliar aos neerlandeses. A aliança, todavia, não se materializou de imediato, para a irritação
das autoridades neerlandesas, talvez pelo fato de que esses índios quisessem esperar a
consolidação dos neerlandeses no território, uma precaução importante dada a experiência
verificada em 1625. Contatos foram travados durante vários anos. Os Tarairiu do Rio Grande
procuraram a Companhia, ainda em 1631. Índios Potiguar serviram de interpretes (MEUWESE,
2003: 94-97). Outros atuaram militarmente, como se observa na perseguição a tropas
portuguesas lideradas por D. Luís Rojas y Borja em Porto Calvo, em 1636 (Ata Diária de 21-
01-1636; MELLO, 1998: 288).
De acordo com José Antônio Gonsalves de Mello, com a chegada de Johan Maurits
van Nassau-Siegen, em janeiro de 1637, a participação militar dos indígenas será ampliada,
com o objetivo de garantir a presença e a autoridade da WIC no interior e nas regiões de
fronteira, bem como contramedida à penetração das tropas móveis portuguesas (MELLO, 2001:
212-214). Observa-se que índios desempenharam importante papel nas investidas contra os
portugueses, tanto como força regular de combate no campo de batalha, como na função de
tropas especiais e irregulares – isto é, atuando na escolta e na guerrilha. Também atuaram no
reconhecimento do terreno e como guias (MEUWESE, 2003: 158-159, NASCIMENTO, 2007:
135, 136).
Alguns exemplos dessas atuações foram observados em documentos da Companhia
ou em narrativas de gente que esteve no Brasil, a exemplo da participação de forças indígenas
lideradas por Antonio Paraupaba no expurgo de tropas portuguesas nas imediações da Ilha de
Itamaracá, em janeiro de 1637. Paraupaba também atuou como um dos cinco capitães de aldeia
que liderou centenas de tupis na conquista de Porto Calvo, um confronto de grandes proporções
que selou o destino dos portugueses no Sul da Capitania de Pernambuco. De lá, eles foram 244
varridos até o Rio São Francisco, que se firmou como fronteira do Brasil sob domínio da
Companhia das Índias Ocidentais. (ARCISZWESKI, 1869 [1637]: 309-310; Ata Diária, 25-07-
1637; Arquivo da Casa Real, doc. 1454, fólio 148; MEUWESE, 2003: 159)
Paraupaba não atuou sozinho. Pieter Poty e vários outros tupis foram referidos
como líderes de unidades que atuavam nas capitanias da Paraíba e de Itamaracá. As tropas
comandadas por Poty e Paraupaba consistiam em unidades pequenas e mistas, seguindo a
cultura Tupi de guerrear. Foram computadas em suas tropas, respectivamente, 138 homens e
40 mulheres e 84 homens e 21 mulheres. Tudo isso parecia estranho aos oficiais da Companhia,
que se mostravam relutantes em permitir mulheres entre as tropas, mas os homens Tupi
insistiam nessa participação. Eles dependiam delas para o preparo dos alimentos. (MEUWESE,
2003: 159-160; WAGNER, 1997 [1640]: 184-185)
No tempo da conquista da porção Sul da Capitania de Pernambuco, as aldeias
próximas ao Recife reuniam cerca de 400 homens e 130 mulheres. Essa gente tinha sido
aglomerada por Nassau para dar suporte ao coronel Sigismundus von Sckhoppe, que fez
expedições à Sergipe para agir contra portugueses e seus aliados indígenas que atuavam nessa
área (Atas Diárias de 29-09-1637 e 04-11-1637). Conforme apontou Meuwese (2003: 160),
esperava-se mais uma vez contar com as qualidades bélicas desses indígenas e suas práticas de
guerra de guerrilha para eliminar seus oponentes. E mesmo quando a pedido de predicantes
calvinistas, os indígenas da aldeia Nassau, nas proximidades do Recife, tiveram o seu fardo
“nos campos de guerra ou nos engenhos” aliviado, ainda lhes cabia alguma obrigação na defesa
da região, caso se identificasse atividade de saqueadores nas proximidades. (Ata Diária de 10-
10-1639).
Nada era feito sem recompensa. Soldados e mulheres Tupi eram usualmente
recompensados pelos seus serviços com linho, algodão e roupas. Já os capitães – inclusive Poty
e Paraupaba – receberam itens de valor mais elevado, ou “de prestígio”,10 como apontou
Meuwese (2003: 160). Isso certamente era uma maneira de fortalecer as relações dos
neerlandeses com as lideranças, essenciais não apenas militarmente, mas politicamente, pois
eles eram o nexo com os vários povos aliançados com a Companhia. Quando remunerava em
dinheiro, a Companhia também fazia distinção entre soldados e oficiais indígenas. Alguns
documentos consultados demonstram que o Alto Conselho usava uma tabela de salário para os
oficiais, distinguindo-os entre capitão, tenente, alferes e sargento. (Atas Diárias de 02-02-1636;
18-06-1638; 06-02-1639; 25-09-1641; 18-10-1641; 20-02-1642)

245
10
Meuwese (2003: 160) fala de chapéus, sapatos e roupas europeias de elevado valor.
Essa distinção nos valores pagos, que também existia na tropa branca, pode ser
verificada em vários documentos. Em fevereiro de 1639, Pieter Poty, o capitão Pantaleão Correa
e André de Souza e suas respectivas companhias foram recompensadas por atuarem junto ao
almirante Cornelis Willemsen por dois meses. Os oficiais índios receberam 30 florins por mês
e os soldados ordinários 4 florins (Ata Diária de 06-02-1639). Já o tenente brasiliano Gaspar
Correia recebeu, em outubro de 1641, 20 florins por 27 dias de serviço entre os meses de
setembro e outubro. Seu alferes, denominado apenas de “Mandu” na ata, venceu 15 florins,
enquanto que outros 31 soldados brasilianos angariaram 4 florins (Ata Diária de 18-10-1641).
Outro brasiliano, o sargento Philippe Cavalcanti recebeu, por sua vez, soldo de 10 florins,
enquanto cada um dos 5 soldados sob seu comando angariaria 4 florins, conta aprovada pelo
comandante branco Johannes Listrj (Ata Diária de 25-09-1641).
Numericamente, e diferente do que foi apontado por José Antônio Gonsalves de
Mello, as tropas indígenas tinham importância fundamental para a Companhia. Uma simples
comparação entre os contingentes de brancos e de índios mobilizados ao longo de alguns anos
permite afirmar que em certas áreas do território os soldados brasilianos correspondiam a parte
substancial dos efetivos empregados. As atas do governo da Companhia no Brasil nos indiciam
esse caminho: em janeiro de 1636, o capitão Maulpas estacionou em Ipojuca com sua tropa de
100 homens. Eles estavam sendo auxiliados por 150 brasilianos (Ata Diária de 17-01-1636).
Meses depois, na área de Goiana, Ippo Eijssens relatou ao Conselho Político que tinha sob seu
comando 50 soldados brancos, 40 tapuias e 100 brasilianos.
Mas esses são exemplos isolados de tropas acantonadas no interior da conquista,
área prioritária de defesa, conforme pode-se observar pela disposição das aldeias no território.11
Os melhores números para comparação são os dos levantamentos de populações aldeadas feitas
por Frans Leonard Schwalkwijk (2004: 210) para os anos de 1635, 1639 e 1645 que podem ser
diretamente comparados aos números das tropas brancas da Companhia no Brasil nesses
mesmos anos. No primeiro desses levantamentos, de 1635, os 7.900 aldeados das capitanias do
Rio Grande, Paraíba, Itamaracá e Pernambuco podiam fornecer para a Companhia 2.450
soldados indígenas, enquanto que a própria Companhia tinha entre suas hostes 4.409 infantes.
Para o ano de 1639, aproximadamente 6 mil aldeados podiam mobilizar 1.923 homens. A

11
Para mais detalhes, observe-se o mapa de George Marcgrave, que tem as indicações de aldeamentos das
capitanias da Paraíba, Rio Grande e Itamaracá. Em algumas áreas, a organização dos aldeamentos para fins de
defesa é óbvia. Na região de Goiana, as aldeias formam um semicírculo perfeito, voltado para o interior, que
defende não apenas a cabeça da Capitania de Itamaracá, mas também boa parte dos engenhos da região. PEREIRA,
Levy. Georreferenciamento do mapa do Brasil Holandês de George Marcgrave, o BRASILIA QUA PARTE 246
PARET BELGIS. In: BiblioAtlas - Biblioteca de Referências do Atlas Digital da América Lusa, 2010. Disponível
em: http://lhs.unb.br/atlas/Levy_Pereira.
Companhia tinha entre seus contingentes europeus 3.730 soldados. Em 1645, no ano da eclosão
da rebelião dos portugueses, os números apontam para uma dependência ainda mais avultada.
Os 3.583 aldeados de 15 aldeias montam 1.383 soldados. A Companhia, capengando após a
saída de Nassau, tinha apenas 2.017 soldados para dar conta de um território gigantesco.
(MIRANDA, 2001: 38). A situação de anos posteriores não pode ser acompanhada com
números exatos, haja vista a contínua movimentação das populações indígenas após a rebelião
dos lusos.12 Os índios, aldeados ou não, continuavam a garantir o interior, ao menos das
capitanias da Paraíba, Rio Grande e Ceará, para os holandeses13 (BARO; MOREAU, 1979: 51;
Atas Diárias de 01-01-1644, 08-03-1644, 09-03-1644). Para quem viveu nessas áreas, a situação
aparentava ser menos arriscada do que aquela enfrentada no Recife, onde os neerlandeses se
espremiam na cidade sitiada, situação que perdurou até janeiro de 1654, mês da capitulação.

Conclusões

Procuramos fomentar nesse texto, de maneira introdutória, a perspectiva de que


os debates acerca do período da dominação neerlandesa no Brasil e da agência indígena na
História14 devam levar em consideração a importância qualitativa e quantitativa dos grupos
aldeados e dos indivíduos indígenas para o episódio da dominação neerlandesa sobre parte da
América Portuguesa. A importância e função militar dos aldeamentos – já exposta em outros
trabalhos, mas nunca quantificada comparativamente ou abordada de maneira específica – é
chave para a compreensão da manutenção do território pela WIC, o que era percebido tanto por
neerlandeses quanto por portugueses, onde os últimos procuraram minar ao máximo as relações

12
A menção, tanto no relato de Roeloff Baro, quanto nas Atas Diárias, de diversos brasilianos fugidos dos
aldeamentos coloniais costeiros vivendo entre os Tapuia no Rio Grande – alguns dos quais submetidos à autoridade
do “Rei”, como é mencionado na documentação, Janduí – são prova desta movimentação populacional intensa,
causada, entre outros motivos, pelas pressões da guerra e pelo atrito com capitães de aldeia (BARO; MOUREAU,
1979: 95; Ata Diária de 27-11-1640).
13
Mesmo após a rebelião indígena de 1644, que massacrou neerlandeses em terra e atacou navios ao menor sinal
de desembarque na costa, a Companhia se empenhará em reconquistar a confiança de seus aliados, distribuindo
presentes e “cartas de perdão”, e retomará atividades no Ceará (Ata Diária de 21-03-1644; XAVIER. 2007: 53-
55).
14
Nota-se que as comunidades de historiadores brasileiros que se desenvolveram em torno dos temas citados são
diferentes e possuem filiações e referenciais teóricos e bibliográficos diversos. A comunidade de autores mais
próximos ao período da dominação neerlandesa é mais antiga e carrega uma produção historiográfica diversa, indo
da história social, à econômica e política. Por muito tempo, foi círculo restrito de produção de conhecimento, mas
vem se renovando nas últimas décadas. Em comparação, a recente comunidade de historiadores que visa as ações
dos grupos indígenas ao longo da História do Brasil possui diálogos mais intensos com outras ciências,
notadamente a Antropologia e apesar de englobar recortes temporais diversos, é guiada por uma perspectiva teórica 247
mais ou menos homogênea, ainda que também varie nos campos historiográficos nos quais se insere. Assim sendo,
também é nossa intenção, neste trabalho, de aproximar e relacionar tais campos de discussão.
dos aldeados com os invasores das Províncias Unidas.15 Também expusemos as dinâmicas
gerais das alianças e relações sobretudo político-militares dos neerlandeses com seus associados
brasilianos, dinâmicas estas que produziram lideranças indígenas de prestígio, inseridas
sistematicamente na hierarquia militar e nos sistemas de pagamento da Companhia, bem como
na gênese da ocorrência única na História do Brasil Colonial da deliberação de Câmaras e
Regedores indígenas, enquanto uma estrutura política por si só, tal como ocorreu em 1645, com
a Assembleia de Índios na aldeia de Itapesserica (HULSMAN, 2006: 44, 45). Esperamos, desta
maneira, contribuir para o avanço e aprofundamento da discussão supracitada, ao apontar suas
potencialidades e lacunas segundo o que já foi produzido e o que pode ser encontrado na
documentação aqui exposta.

Referências

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15
Evaldo Cabral de Mello aponta a presença de pequenos contingentes de brasilianos nos engenhos, para proteção
contra as ações de guerrilha dos luso-brasileiros. Encontramos referências a este emprego na Ata Diária de 22-03-
1641. Também percebemos as diversas tentativas dos luso-brasileiros de fragilizar, com ataques diretos às aldeias,
destruição de provisões ou motivação de deserções, as aldeias sob o domínio da WIC, comprovando a interpretação
de que estas eram concebidas como objetivo estratégico importante por ambos os lados, tendo a Companhia 248
tomado contramedidas diante desta atuação dos portugueses (MELLO, 2007: 307, 310; Ata Diárias de 03-12-1639,
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251
BARREIRAS DO SERTÃO: DESLOCAMENTOS DE ALDEIAS E
ARREGIMENTAÇÕES DE TROPAS INDÍGENAS NA CAPITANIA DE
PERNAMBUCO ENTRE 1670-1700.

Wesley de Oliveira Silva (Graduando UPE)1


E-mail: wesley_oliveira18@outlook.com

INTRODUÇÃO
O presente artigo busca analisar os deslocamentos de aldeamentos e também
arregimentações de tropas indígenas na capitania de Pernambuco entre 1670 e 1700, período
marcado por conflitos que a administração portuguesa travou contra vários grupos indígenas
que viviam nos interiores das capitanias do norte da América portuguesa e também contra o
quilombo dos Palmares, este último localizado dentro da capitania de Pernambuco, fazendo
fronteira com a sociedade açucareira.
Durante essa série de conflitos, os aldeamentos indígenas tornaram-se fundamentais
para efetivação da expansão para os sertões, uma vez que foram desses espaços que saíram os
flecheiros, ou seja, indígenas de várias etnias que eram arregimentados para lutar em qualquer
que fosse o conflito travado. E a atuação desses indígenas não ocorreu de forma tímida. Ao
analisar as documentações, percebemos, na grande maioria dos casos, que o número de
flecheiros recrutados superava o contingente de todas as outras tropas burocráticas somadas.

DESLOCAMENTOS E LOCALIZAÇÕES DOS ALDEAMENTOS


Durante a Guerra dos Bárbaros, que ocorreu contemporaneamente a destruição do
Quilombo dos Palmares, era constante o pedido de ajuda a outras capitanias, especialmente
quando os inimigos estavam fazendo muitos ataques. Os aldeamentos da capitania de
Pernambuco ganharam destaque durante esse período, mudando de local e oferecendo muitos
soldados para combater os inimigos nas diversas batalhas que ocorriam nos sertões das
capitanias do norte.
A solicitação de soldados (regulares e irregulares) foi constante, e várias eram as
estratégias que as tropas eram submetidas, como o ataque direto aos povoamentos inimigos e o
deslocamento para locais que necessitassem de um socorro rápido. É por causa disso que
haviam pedidos para que aldeamentos inteiros se mudassem, já que eles serviam muito bem

252
1
O autor é Graduando em História pela Universidade de Pernambuco – Campus Mata Norte. Orientadora: Prof.ª
Dra. Kalina Vanderlei Silva.
como barreiras ou muralhas defensivas2, que deveriam ser colocadas em algum lugar
estratégico para evitar invasões às urbes portuguesas. É complicado, porém, diferenciar nas
documentações os deslocamentos, pois esse termo é atribuído tanto para aludir mudanças de
indígenas quanto de aldeias inteiras.
É mais comum achar documentações sobre mudanças de aldeamentos em casos de
“pedidos de socorro”. Sobre a conquista dos Palmares, o governador-geral Afonso Furtado de
Castro do Rio de Mendonça, em 18 de setembro de 1674, escreveu uma carta para o governador
de Pernambuco, D. Pedro de Almeida, relatando alguns inconvenientes que ocorreram durante
a mudança de aldeias das capitanias de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande, de suas regiões
originais para outros locais. A carta nos mostra duas importantes informações sobre os
deslocamentos: queixas de indígenas que estavam inconformados com a mudança e o auxílio
militar entre as capitanias em caso de necessidade. Como a parte da correspondência que relata
essa informação está muito destruída, certamente Afonso Furtado estava alertando ao
governador de Pernambuco para que houvesse cautela na locomoção dos indígenas, uma vez
que a geografia do lugar muda, “evitando a queixa que terão os mesmos índios [...] daqueles
lugares em que a natureza os criou [...] para outro”.3
As reclamações acerca das mudanças geográficas são explicadas facilmente pela
conceituação, já feita, de sertão. Não se trata somente de um interior, mas de muitos interiores
de várias capitanias, cada qual com suas diferenças climáticas, hidrográficas, de vegetação.
Muitas “nações” que se encontravam aldeadas nas costas brasílicas, não se acostumavam
facilmente com o clima semiárido da caatinga, isto é, caso seu aldeamento fosse transferido
para lá. O modo de vida se altera quase completamente. Decerto, o citado governador-geral já
tinha conhecimento de outros casos como esse, por isso o alerta. As consequências trazidas pelo
desrespeito dessa questão podem ser muito grandes, começando pela revolta dos aldeados, o
que seria capaz de causar deserção das tropas, fuga das aldeias e também, nesse caso específico,
fortalecer Palmares, melhor dizendo, caso as fugas fossem feitas especificamente para lá.
A segunda informação que podemos tirar desta correspondência é o auxílio que as
capitanias faziam umas às outras em caso de necessidade. Neste caso, aldeamentos foram
mudados para atacar Palmares, porém, o sentido é duplo: ao mesmo tempo que provocam
ataques, também defendem as povoações de invasões, ou poderiam, provavelmente,
impossibilitar as fugas que eram muito comuns naquele período.

2
Kalina Vanderlei Silva atribui o termo “muros do sertão” a este propósito dos aldeamentos. Cf. SILVA, Kalina 253
Vanderlei Paiva da. op. cit. 2010, p. 147.
3
Documentos Históricos da Biblioteca Nacional (a partir de agora DHBN), v. 3, p. 114.
Falar em localização dos aldeamentos neste recorte temporal é algo um pouco
complexo. Como pode ser percebido, era um período difícil; muitos confrontos eram efetuados
contra indígenas e quilombolas. A indispensabilidade de mudar aldeamentos para regiões que
precisassem de ajuda se tornava uma vital medida de resistência. Isso tornou os deslocamentos
a principal estratégia utilizada pela Coroa para aproveitamento da força indígena, não somente
em Pernambuco, mas também em outras capitanias, como a Bahia, que em 1657, remanejou
quinze aldeias pacificadas, da “nação” paiaiase, para as fronteiras do Recôncavo Baiano afim
de servir como barreiras, impedindo o avanço dos bárbaros.4
Em 18 de setembro de 1674, o já citado Affonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça
escreve uma carta para o Governador da Paraíba, Manuel Pereira de Lacerda, sobre a
transferência de indígenas de lá para batalharem contra Palmares, localizado no sertão da
capitania de Pernambuco. Uma curiosidade bastante interessante mencionada na carta é que
somente os homens vão lutar, ficando as mulheres para cuidar das roças e conservar as aldeias.
Quando o combate fosse encerrado, todos os homens seriam restituídos. Além do respeito a
esse traço da cultura indígena (a divisão do trabalho entre os sexos), que era muito parecido
com o português, o motivo para que só homens tenham saído da aldeia está ligado a
indispensabilidade de proteção das vilas, engenhos e cidades. A saída de aldeias inteiras
deixaria a capitania de onde elas foram removidas mais frágil, consequentemente, o risco de
ataques inimigos seria maior, piorando a situação.5
Deste modo, com ainda mais frequência, eram feitos deslocamentos dos flecheiros, ou
seja, ordenava-se a saída de soldados indígenas dos aldeamentos, sem precisar locomover
aldeias inteiras. Os potiguaras, por exemplo, ao se aliarem aos portugueses, foram várias vezes
descolados ao decorrer do século XVII. Esse método se tornou mais eficaz do que provocar
mudanças de aldeamentos inteiros, uma vez que várias resistências indígenas acompanhavam
os deslocamentos, como a fuga, a revolta e ardilosas estratégias. Em 1658, os já citados
paiaiases inconformados com sua situação após a locomoção das suas aldeias de Jacobina para
o Recôncavo Baiano, certamente servindo como mão de obra barata para os colonos da região,
forjaram ataques tapuias na Serra do Orobó, sabendo que a administração colonial utilizava a
estratégia de locomoção de aldeamentos para, então, planejar voltar a sua terra natal. Todo esse
esquema, no entanto, foi descoberto pelo governo-geral no ano seguinte ao mandar tropas para

4
SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. “Nas solidões vastas e assustadoras” – os pobres do açúcar e a conquista 254
do sertão de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. – Recife: Cepe, 2010, p. 147-148.
5
DHBN, v. 3, p. 116-118.
o local.6 Situações parecidas certamente aconteceram não apenas na Bahia, mas em toda
colônia.
Como resultado dos deslocamentos, outras regiões eram ainda mais povoadas. A
capitania do Rio Grande, por exemplo, durante a Guerra dos Bárbaros, solicitava muito o
socorro de outras capitanias, pedindo tropas para lutar contra os bárbaros do sertão ou
populações para ajudar a povoar toda a capitania. Escreveu o governador-geral António Luís
Coutinho da Câmara, em 3 de outubro de 1692, uma carta para Sebastião Pimentel, capitão-
mor do Rio Grande, dizendo o seguinte:
Bem me parece que se povoe o Assú, e haja para oposição dos bárbaros, e dos tapuias
que se rebelaram nas partes mais convenientes as aldeias, ou estâncias de índios em forma de
arraiais que o mestre de campo com o parecer de vossa mercê assentar; e para este efeito ordeno
ao senhor Marquês Governador de Pernambuco [que] mande vir do Ceará Grande [o] capitão
Francisco Pinheiro que se obriga (como a Câmara dessa Cidade me escreve em carta de 30 de
agosto deste ano indo ordem minha) a trazer seus parentes e outros índios para aquela fronteira,
e vir das Capitanias de Pernambuco e Paraíba todos os índios que houver, e que o mestre de
Campo Domingos Jorge Velho lhe restitua todos os paulistas, soldados e oficiais que da sua
obediência se levantaram. E deste modo creio que poderá subsistir o mestre de campo Mathias
Cardoso na campanha onde se acha até Sua Majestade, manda-o socorrer com a grandeza que
o merecimento daquela gente está pedindo. Também ordeno o mesmo ao Governador mande
logo a infantaria que é estilo para essa fortaleza, e para nela se conservarem os soldados lhes
negará Vossa Mercê as licenças que costumam pedir, e são a causa de Vossa Mercê se achar
sem eles.7
Ao locomover aldeias e deslocar tropas indígenas para outras regiões, Pernambuco
desempenhou um papel fundamental na defesa de toda sua jurisdição. E mesmo que o envio
flecheiros fosse mais comum, os deslocamentos continuaram a ser praticadas regularmente.
Toda essa estratégia de mudar aldeias para os focos de combate contra os bárbaros e Palmares,
servindo como barreiras do sertão, somando-se também as fugas e deserções tão comuns nesse
período, provocaram uma forte influência ao proporcionar um desenraizamento espacial e
cultural que está totalmente associado a grande diversidade cultural existente no sertão
nordestino.8

6
SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. op. cit. 2010, p.148-150.
7
DHBN, v. 38, p. 292.
8
SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. op. cit. 2010, p. 143 e MEDEIROS, Ricardo Pinto. O Descobrimento dos 255
Outros: Povos Indígenas do Sertão Nordestino no Período Colonial. Recife, Tese de Doutorado em História,
Programa de Pós-Graduação em História - UFPE. 2000, p. 189.
AS TROPAS E O RECRUTAMENTO PARA A GUERRA
O trabalho indígena era muito disputado, seja por colonos ou missionários. As aldeias
atraíam muitos holofotes, uma vez que de lá saiam muitos trabalhadores para os muitos serviços
no campo, nos povoamentos portugueses e, sobretudo, soldados para proteção da sociedade
colonial. Os ofícios exercidos dentro de um aldeamento eram vários. Um desses serviços era o
de cortadores de madeira, primeira função dadas aos indígenas, que se perpetuou até o século
XIX, com intensidades diferentes, é claro. Outro trabalho muito comum era o de agricultor, na
qual gerava muitos conflitos entre colonos e missionários, como foi visto. Os indígenas
trabalhavam também como remeiros, carregadores, faziam serviços domésticos, entre outras
funções. Em Pernambuco, por exemplo, a perseguição ou luta contra as resistências de escravos
fugitivos ganhou um relativo destaque dentre as funções dos indígenas aldeados, pois os sertões
também eram encarados como espaços de fuga; Palmares se encontrava lá, para dar um
exemplo. Os serviços eram cobrados tanto pelo setor público quanto pelo privado. 9
Chamados de flecheiros, os soldados indígenas eram o maior contingente bélico das
tropas que marcharam durante a Guerra dos Bárbaros. Retirando o Terço de Camarão, que era
a maior força indígena e uma tropa regular a serviço da Coroa, as outras tropas que saiam das
aldeias eram fornecidas de forma irregular.10 As diferenças entre uma tropa regular e irregular
eram muito claras: enquanto as tropas regulares eram institucionalizadas dentro dos moldes da
estrutura militar lusa, as tropas irregulares lutavam em qualquer conflito que fossem
arregimentadas, sem uma preocupação com sua estrutura, embora muitas vezes a justificativa
do porquê recrutar indígenas aldeados era de que os mesmos, agora catequisados, eram vassalos
da Coroa, tendo a mesma obrigação de defender o território que outros colonos. Essa mão de
obra bélica foi amplamente utilizada durante a segunda metade do século XVII. 11
Essas convocatórias partiam do governador-geral sempre que fosse necessário força
militar em um determinado território. Sendo assim, arregimentações de soldados ou de aldeias
inteiras para dar auxílio nos conflitos eram comuns. Mas nem sempre a documentação deixa
claro quantos flecheiros eram convocados ou de quantas aldeias saíam esses soldados. Um bom
exemplo sobre essa forma de convocação para dar socorro a capitania do Rio Grande, durante
a guerra dos bárbaros, ocorreu em 1688. Escreveu o governador-geral Mathias da Cunha ao
Coronel Antônio de Albuquerque da Câmara:

9
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2003, p. 237-239. 256
10
SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. op. cit. 2010, p. 142-143.
11
Ibidem.
Ordenei ao Governador de Pernambuco João da Cunha de Souto Maior por carta que
este mesmo correio lhe leva, que a toda a pressa mande 200 infantes escolhidos com
quatro Capitães, o Governador da gente preta com cem soldados, e o Capitão-mor dos
índios com 400 por mar a essa Capitania a ordem de Manuel de Abreu Soares a quem
remeto Patente de Capitão-mor de toda aquela gente sobre que só há de ter jurisdição:
e assim a ele como a Vossa Mercê todas as armas, e munições necessárias para essa
guerra, com faculdade de despender 600$000 da Fazenda Real nas conduções e
aprestos necessários, e mais 300 para se darem cento aos pretos, e 200 aos Índios a
disposição dos seus Governador e Capitão-mor. [...] Para aumentar as forças a Vossa
Mercê ordeno ao Capitão-mor dessa Capitania que dos oitenta infantes que de
Pernambuco se lhe mandarem para a dita fortaleza, remeta logo cinquenta a Vossa
Mercê com um Cabo e ao Capitão-mor da Paraíba que reconduza todos os índios que
para a Aldeia da Preguiça fugiram de Mepubú, Cunhan, e Guarairas, segurando-lhes
os hei por livres se forem assistir nessa guerra, e os remeta a Vossa Mercê. [...] Mas
para esses moradores terem entendido quanto me desvelei em socorrê-los, e os
soldados que acompanharem a Vossa Mercê o façam com maior alegria, saibam que
também do Rio de São Francisco mando marchar pelo sertão ao Governador das
Armas Paulista com 300 homens entre brancos e Índios, para o qual deu também o
Senado da Câmara 100$000 e a Fazenda Real as armas e munições necessárias: e os
dois Capitães-mores da jurisdição de Pernambuco Domingos Jorge Velho e André
Pinto, que estava de caminho para os Palmares, entre os quais há mais de 600 homens
também independentes uns dos outros para por diversas partes invadirem os Bárbaros
das campanhas interiores da Paraíba, Rio Grande e Ceará das quais se entende
descerem as nações que se uniram aos Jandinis, e a todos ordenei se consumassem
com Vossa Mercê, e com Manuel de Abreu Soares. 12

Percebemos com esta carta dois tipos de arregimentações diferentes: (a) solicitação
exata do número de flecheiros que sairão para o combate e (b) recrutamento de todos os
indígenas disponíveis ou encontrados no caminho. No primeiro caso, observa-se que nem
mesmo somando todos os infantes e pretos (que somam trezentos soldados) superam o grande
contingente de indígenas (quatrocentos homens) que marcharam lutar contra os bárbaros que
constantemente assolavam a capitania do Rio Grande. Compreende-se claramente que a força
bélica indígena foi indispensável durante todo o conflito, e o elevado número de indígenas nas
tropas comprova isso.
Outra importante característica que podemos tirar desta correspondência são as
arregimentações feitas ao decorrer do caminho. Ao avaliar, nas documentações, os
recrutamentos de tropas indígenas, identificamos que todo o contingente era modificado ao
decorrer do caminho, especialmente porque muitas aldeias que estavam próximas ao local de
conflito forneciam seus flecheiros. No caso desta carta, que tem o propósito de oferecer auxílio
militar, o número de soldados que saem de Pernambuco vai ser alterado pela soma de muitos
indígenas que serão oferecidos pelas aldeias da Paraíba e Rio Grande, além da tropa dos
paulistas, novamente, repleta de soldados indígenas.
Em 1691, por exemplo, o governo de Pernambuco ordena a arregimentação dos índios
da aldeia do Ararobá, assim como uma tropa de chocós, carnijós e carapotós, pondo-
os sob o comando do capitão mor João de Oliveira Neves para combater os tapuias
hoés hoés entre o rio Pajeú e Buíque, em Pernambuco. Para reforçar esse contingente,
257
12
DHBN, v. 3, p. 276-280
o governador ordena ainda a mobilização da aldeia dos urumarus, e os 'índios' e
tapuias do Pajeú, integrando-os ao corpo de tropa comandado pelo capitão Antônio
Gomes Brandão com as ordenanças do próprio Pajeú.13

A citação acima apresenta a mesma tendência: arregimentações sem mencionar sequer


um número estimado de indígenas que saíam para os esparsos conflitos nos sertões. Nesse caso
específico de uma batalha travada no sertão de Pernambuco, provavelmente, fora a aldeia do
Ararobá, os indígenas que combateram os hoés hoés vinham de aldeias localizadas, hoje em
dia, na região do agreste pernambucano, local onde foram criadas missões para catequizar esses
povos. Falando em número de soldados, é extremamente complexo até pensar em uma
estimativa, pois a carta não deixa claro informações essenciais como a urgência do envio de
tropas ou se os hoés hoés eram muito populosos, além de que também não se sabe a quantidade
de indígenas presentes em cada aldeia, e mesmo tentando fazer uma estimativa baseada em leis
que regulamentam a quantidade de famílias aldeadas, não se sabe se parte dos indígenas dessas
aldeias marcharam para outro local.
De toda forma, mesmo se baseando somente em números determinados de flecheiros
que eram arregimentados para as batalhas, ainda é surpreendente a superioridade numérica dos
indígenas. Escreveu o governador-geral, Mathias da Cunha, em 14 de março de 1688, para
Paschoal Gonçalves de Oliveira, Capitão-mor da Capitania do Rio Grande, sobre o socorro que
o governador de Pernambuco estava enviando:
Com toda a pressa ordeno ao Governador de Pernambuco João da Cunha de Soto
Maior que remeta de socorro a essa Capitania a ordem do Capitão-mor Manuel de
Abreu Soares a quem mando patente minha 150 infantes com quatro Capitães da praça
de Holiday; 25 de Itamaracá, e 25 que ordeno ao Capitão Amaro Velho mande da
Paraíba; o Capitão-mor dos índios com 400, e o Governador dos pretos com cento, e
as armas e munições necessárias; e mando ordem para as despesas da Fazenda Real
que importa 900$000. E Câmaras das três Capitanias hão de sustentar nessa, a
infantaria que sair da sua praça, assim, e da maneira que nelas a haviam de sustentar;
e pelos povos das Capitanias ha de correr o sustento dos Índios, e negros, ficando essa
livre desta contribuição, e pelo sertão mando marchar do Rio de São Francisco um
Governador das Armas Paulista com $300 homens armados; e dos Capitães-mores da
jurisdição de Pernambuco, um deles que estava para ir aos Palmares com mais de 600,
para cada um fazer guerra aos Bárbaros por sua parte independentes uns dos outros: e
creio que obrarão muito pelo interesse dos prisioneiros que declarei por cativos a todos
os que os tomarem nesta guerra. E para acrescentar gente ao Coronel Antônio de
Albuquerque da Câmara mando publicar o Bando que será com esta em todas as
Capitanias, o que Vossa Mercê fará também nessa, e formar companhia de pardos ao
Ajudante que veio com as cartas, e que da Paraíba lhe remetia o Capitão-mor todos os
índios que estão na Aldeia da Preguiça, fugidos das de Mapebú, Cunhãn, e Guarairas.
E tanto que chegarem a essa fortaleza os 80 infantes que ordeno ao Governador de
Pernambuco lhe remeta para nela ficarem permanentes. 14

Retirando alguns recrutamentos que são feitos no caminho, nessa carta pede-se
especificamente uma quantidade exata de guerreiros indígenas, que são quatrocentos homens,
258
13
Ibidem, p. 146.
14
DHBN, v. 3, p. 270-272.
superando a quantidade dos outros que os acompanhariam na caminhada rumo à batalha no Rio
Grande. Outra curiosa informação dada nesta correspondência é a quantidade de soldados que
marcharam sob as ordens dos paulistas, em especial porque normalmente as tropas paulistas
eram compostas em sua maioria por indígenas aldeados. 15
Enquanto ao pagamento dessas tropas, depois de serem convocados por ordens do
governo-geral, eles eram colocados sob ordem de um oficial burocrático e seu pagamento vinha
na base de resgates, ou seja, eram dados utensílios como facas, machados, podais, enxadas,
foices, entre outros.16 Porém, nem sempre é deixado claro nas documentações o que vai ser
oferecido como “resgate”, muito menos a quantidade de material que vai ser distribuída:
Porquanto os Capitães Agostinho da Silva Bezerra e Matheus Fernandes marcham
com os seus soldados pela mata de São João, a se ir ajuntar no Tapoeurú, na casa do
Capitão Manuel Ferreira para irem juntos a ordem do Capitão Fernão Carrilho, a uma
diligencia do Serviço de Sua Alteza e lhe levam resgate para os tapuias, e pólvora, e
bala: e convém para conduzir isto se lhe vá dando um cavalo, de cinco em cinco
léguas. Ordeno a qualquer morador que o tiver, [...] lhe dê o cavalo [...]. E por toda a
parte por donde passarem se lhes dará o favor necessário [...] para seu sustento até
chegarem donde o dito Fernão Carrilho está cobrando recibo seu do mantimento que
lhe derem para o cobrarem a seu tempo. 17

Esta carta foi escrita pelo governador-geral Alexandre de Sousa Freire sobre um ataque
que farão aos mocambos que se encontram no sertão. O governador não especifica nada
referente ao resgate nessa carta, somente garante que serão dados aos tapuias que estão
marchando para batalhar. Uma coisa muito interessante mencionada na carta é que por onde as
tropas marchavam, os moradores locais deveriam dar mantimentos para seu sustento.
Ainda sobre esta correspondência citada, o governador-geral não informou o valor que
seria gasto para compra dos resgates, algo que geralmente é mencionado nas documentações
referentes a expedições, como na portaria que o governador-geral passou ao padre Jacobo
Rolant, em 27 de maio de 1676:
Porquanto o Padre Jacobo Rolant Religioso da Companhia de Jesus vá a missão da
Jacobina a conversão dos índios. O Provedor-mor da Fazenda Real deste Estado
mande dar ao dito Padre trinta mil Reis para levar de resgates para o mesmo intento.18

E podemos perceber que a variedade desses utensílios não se resume a armas, mas
também a objetos de uso diário:
O Provedor-mor da Fazenda Real deste Estado mande dar seis milheiros de anzóis e
seis dúzias de facas de resgate para os índios amigos e vinte facões para os soldados

15
Vários autores abordam essa característica. Por isso, vamos citar aqui duas importantes bibliografias: cf. SILVA,
Kalina Vanderlei Paiva da. op. cit. 2010 e PUNTONI, Pedro. A guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a
colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo. Hucitec: Editora da Universidade de São Paulo:
Fapesp. 2002.
16
DHBN, v. 38, p. 5. 259
17
DHBN, v. 7, p. 409-410.
18
DHBN, v. 7, p. 410.
que vão à entrada que mandou a Jacobina. E por esta com recibo seu se levarão em
conta ao Thesoureiro Geral.19

Esse texto mostra uma portaria dada ao Provedor-mor da Fazenda Real do Brasil, em
17 de setembro de 1664, o Conde de Óbidos informa que anzóis deveriam ser dados como
resgate, ampliando ainda mais o que já foi citado como objetos que eram dados aos indígenas.
O que chama atenção nesse caso é a menção a quantidade dos utensílios que serão dados como
resgate. Com tudo isso posto, percebe-se que os resgates eram, assim, objetos de uso diário,
preferivelmente de metal (visto a escassez desse material entre os indígenas) como machados e
anzóis, que tinham um baixo valor para a Coroa, mas apreciados pelos indígenas. Serviam
também para apaziguar os aldeados constantemente descolados de lugar. 20
Analisando bem o que era dado, os resgates não eram concedidos individualmente a
cada indígena. Partindo da informação que foi oferecida pelo último caso, meia dúzia de facas
e seis milheiros de anzóis não era um pagamento pensado para dar de forma individual,
justamente porque, como foi visto, as tropas indígenas que marchavam para os conflitos sempre
eram muito numerosas. Logo, os resgates certamente eram dados aos principais de um
aldeamento afim de satisfazer a todos que estavam prestando serviço.
De toda forma, outras formas de “pagamento” também eram oferecidas aos indígenas:
E não apenas a Coroa costuma apelar para a transferência de aldeias indígenas como
recurso defensivo contra outros indígenas, mas os próprios colonos também recorrem
a esse expediente. Os moradores do Recôncavo chegam a prometer cabeças de gado
para os principais da aldeia do Gayraru, em troca do assentamento da aldeia nas
proximidades das vilas de Maragugipe, Cachoeira e Sepora. Uma estratégia
condizente com a prática administrativa de pagar os índios em gênero, através dos
chamados resgates.21

Falando na organização das tropas indígenas, havia uma simples hierarquia a ser
seguida. Ao analisar documentações referentes as arregimentações, constatamos que as tropas
eram comandadas por capitães-mores, aquele que recebia e repassava ordens aos indivíduos de
seu aldeamento. No entanto, enxergamos que cargos como sargentos, ajudantes, alferes,
também existiam.
O Terço dos Índios, por exemplo, seguia uma rígida hierarquia militar. Isso porque,
formado através da aliança entre portugueses e potiguaras para lutar contra os invasores
holandeses, foi a única tropa indígena organizada e institucionalizada pelos portugueses.
Incialmente sendo comandada por Felipe Camarão, por isso é também conhecido como Terço
de Camarão, a tropa se tornou a principal força indígena a serviço da Coroa.

19
DHBN, v. 7, p. 193. 260
20
SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. op. cit. 2010, p. 151.
21
Ibidem.
Normalmente, a nomeação de cargos acontecia entre os indígenas de aldeias aliadas,
porém, em alguns momentos, alguns líderes tabajaras, como d. Antônio Arcoverde, também
recebiam nomeações de cargos. Estas duas etnias alternavam-se no poder nos cargos de capitão,
tenente e sargento, concedidos através de mercês régias. Esses cargos normalmente eram
adquiridos de forma hereditária, mas as patentes também poderiam ser transferidas por outros
motivos:
Em virtude da morte de outro líder indígena, que poderia ser parente ou não
(“Confirmação de patente de Domingos Pessoa Perrasco, tenente do gov. dos índios
da capitania de PE, por falecimento de Antônio Pessoa Arcoverde”); por via de
promoção (“Carta patente de confirmação de D. Antônio Domingos Camarão no posto
de capitão do terço dos índios, que vagou por promoção de Manuel Pessoa
Arcoverde”); ou ainda por brigas e desentendimentos.22

A distribuição desses cargos pela Coroa também dizia muito do seu interesse: para
manter indígenas aldeados contentes, unidos e prontos para lutar nas batalhas que fossem
arregimentados, era preciso estabelecer e manter confiança dos indígenas. Por isso a concessão
desses cargos a líderes militares era uma excelente forma de estabelecer uma aliança mais sólida
com os indígenas. No caso do Terço dos Índios, os potiguaras e tabajaras.
Mesmo em consonância com a tradição tupi de “chefe guerreiro” (aqueles que
promoviam e coordenavam o curso das guerras), agora aldeados, os maiorais indígenas não
possuíam total autonomia. Eles eram restringidos de fazer guerra que não fosse defensiva, assim
como não tinham total liberdade de governar seus subordinados (os indígenas de seu
aldeamento). Desta maneira, conquistar estes cargos militares representava mais uma obtenção
de status do que necessariamente poder, e assumir tais postos era sinônimo de inserção na
hierarquia da sociedade colonial.
De forma parecida eram organizadas as demais tropas indígenas. O principal da etnia
que se encontrava aldeada poderia se tornar, como já foi abordado, capitão-mor do seu
aldeamento. No entanto, não existia apenas um principal em um grupo indígena, e levando em
consideração todo um aldeamento, muitos líderes poderiam ser contabilizados. Deste modo, é
provável que os principais disputassem entre si para conseguir patentes militares como tenente,
sargento ou alferes.
Como o tratamento aos flecheiros nas documentações é muito genérico, é muito difícil
encontrar documentações que se refiram a tropas irregulares fazendo uma detalhada descrição

22
SILVA, Geyza Kelly Alves da Silva. Teias de alianças, lealdade e dependência: tabajaras e potiguaras 261
aliados/aldeados na capitania de Pernambuco. Clio – Série Revista de Pesquisa Histórica – N. 25-2, 2007, p.
192.
de seu funcionamento. Mas também não é impossível. Em 1691, o governador-geral Antônio
Luís Gonçalves da Câmara Coutinho escreve a seguinte carta:
O que posso responder a Vossa Mercê sobre a sua carta de 31 de agosto que trouxe o
Alferes índio; é estimar muito o bom sucesso que teve a tropa que Vossa Mercê
mandou em seguimento dos Bárbaros, e sentir haver dado o sarampo no Arraial de
Mathias Cardoso: mas com o parecer de Vossa Mercê creio que elegerá o Mestre de
Campo, para o conservar, a paragem que Vossa Mercê me diz lhe há de apontar por
melhor. Do estrago que Vossa Mercê me diz que o Mestre de Campo Domingos Jorge
Velho fez na detença que teve em partir, e irá fazendo até chegar aos Palmares, não
duvido que seja igual ao costume daquela gente. Se ele ou outros tiverem vendido
(como Vos- sa Mercê me diz que fizera) índios prisioneiros, com esta remeto a Vossa
Mercê Alvará que mandei passar para em todo o Brasil se ter entendido, quão sagrada
quer El-Rei, meu Senhor, que seja a liberdade dos índios. Vossa Mercê o faça publicar
nessa Capitania e observar inviolavelmente, remetendo a Secretaria do Estádio
certidão de se haver promulgado nessa Capitania. Já considero terem partido da
Paraíba as munições que ali se remeteram desta praça, para a fronteira dos Bárbaros,
donde já não haverá falta. Para essa fortaleza mando nesta sumaca de João Alvares
um condestável, e um artilheiro. Para se açudar aos reparos, não são, ainda que
pareçam, bastantes admissíveis os efeitos que Vossa Mercê aponta, porque estão
consignados a diferentes despesas inescusáveis. E para esta se acha a Fazenda Real da
Bahia em termos de não poder mandar de cá as carretas feitas. Vossa Mercê me avise
se há nessa Capitania, ou na mais vizinha, oficial que as saiba fazer, para as obrar
dentro da fortaleza e se se podem serrar lá os champrões, para com mais pronta
comodidade se montar a artilharia, e daqui se mandar fazer a despesa por conta da
Fazenda Real desta praça suprimido a que não houver nessa Capitania. Pela nomeação
dos postos milicianos, que Vossa Mercê me propôs, mandei passar todas as patentes,
que pela Secretaria do Estado se remetem a Vossa Mercê. Do mesmo modo iriam
também as provisões das serventias dos ofícios se Vossa Mercê remetera pela mesma
Secretaria as provisões que delas tenha passado; mas não se fez cá petição senão de
Escrivão da Fazenda Real, e fica Sua Majestade perdendo os direitos da meia anata, e
chancelaria; e se Vossa Mercê seguiu justamente o parecer do Ouvidor Geral da
Paraíba, por não parar o curso das causas, os serventuários têm procedido mal, porque
estão servindo nulamente, em prejuízo da Fazenda Real, e direito das partes. E assim
os deve Vossa Mercê obrigar a que mandem procurar as provisões, por pessoas que
as procure, e satisfaçam uns e outros direitos. Da petição que por parte de Vossa Mercê
se fez sobre os 70$ do ordenado, se suprirem pelo meio que Vossa Mercê nela apontou
(que também se remete a Vossa Mercê pela Secretaria) e do que os Ministros da
Fazenda Real informaram, e responderam, ficará Vossa Mercê entendendo quão
impossível era o despacho a seu favor: desejando eu muito que Vossa Mercê
experimentasse o meu no edifício deste negócio: mas a novidade do requerimento o
fez mais invencível. Ao Alferes índio, e ao soldado que com ele veio, mandei dar dez
mil reis para o caminho, pela recomendação que Vossa Mercê me fez da vontade com
que vinha. Deus guarde a Vossa Mercê.23

Escrita para Cesar de Andrade, capitão-mor da capitania do Rio Grande, a carta informa
sobre o alvará de liberdade de indígenas que foram cativados pelos paulistas. É interessante
notar que quem envia essa carta é um alferes indígena, confirmando o que já foi dito até aqui
sobre a organização das tropas irregulares. Se existiram flecheiros como alferes, certamente
também haviam indígenas como sargentos-mor ou tenentes, por exemplo, em razão da posição
hierárquica do alferes, que se encontra abaixo das patentes mencionadas.

262
23
DHBN, v. 3, p. 414-416.
Outra curiosa informação que podemos retirar desta correspondência é o pagamento de
dez mil réis que foi dado aos soldados indígenas que enviaram a carta ao governador-geral. Ou
seja, além dos resgates que eram dados aos flecheiros como uma forma de pagamento por
marcharem e lutarem nas batalhas, muitos outros trabalhos (individuais ou não) eram feitos por
indígenas fora de um aldeamento.
O trabalho de indígenas aldeados fora de aldeamentos eram permitidos por lei, e os
colonos souberam muito bem aproveitar da mão de obra indígena. Ao trabalhar nas lavouras,
por exemplo, o pagamento do indígena era normalmente menor que o do que outros
trabalhadores assalariados, como negros livres, isto é, quando o pagamento era em dinheiro. É
por essa questão que muitos colonos não se agradavam dos descolamentos de aldeias que
fossem próximas a sua propriedade, chegando a pagar por deslocamentos e entrar em conflitos
para que os indígenas não marchassem para as batalhas. Sobre essa questão, os moradores de
Porto Calvo, em 1689, solicitaram o seguinte:
Se ordenasse ao Governador do gentio domestico, Antonio Pessoa Arco Verde
ajuntasse todo o gentio de sua nação que estiver da parte do Norte (que este lhe denega
o domínio dos Padres da Companhia de Jesus e de S. Bento) e que faça situar três
aldeias de cem casais cada uma nas cabeceiras de Serinhaem, e Porto Calvo, e
Alagoas, que são as que confinam com o sertão em que habitam os ditos bárbaros,
para que assim tenha aquele povo sossego e a fazenda Real grande aumento.24

Mas uma vez observamos descolamentos sem associação com a estratégia da Coroa
portuguesa em colocar aldeamentos como barreiras defensivas. Nem todas as estratégias
utilizadas durante a Guerra dos Bárbaros e nos confrontos contra Palmares deram certo ou
serviram apenas como táticas de guerra. Os deslocamentos apresentam-se como bons exemplos,
pois embora tivessem sido pensados como tática para defender urbes portuguesas e atacar os
inimigos, as vezes colonos pagaram para que aldeias se locomovesse dependendo do seu
interesse.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estudos sobre as tropas e aldeamentos indígenas localizados na capitania de
Pernambuco ainda são muito poucos, especialmente se tratando deste recorte temporal. Embora
tenham decidido os rumos das batalhas travadas nos sertões durante a Guerra dos Bárbaros ou
na destruição do quilombo dos Palmares, por muito tempo a historiografia relegou a
participação dos indígenas nesses conflitos, simplesmente ignorando sua forte participação.25

24
Requerimento dos Oficiais da Câmara de Porto Calvo, 1689 apud SILVA, Kalina Vanderlei. Flecheiros,
Paulistas, Henriques e os Homens do Litoral: Estratégias Militares da Coroa Portuguesa na 'Guerra dos 263
Bárbaros' (sec XVII). CLIO. Série História do Nordeste (UFPE), v. 27-2, p. 305-333, 2009, p. 319.
25
Ibidem, p. 310.
Amplamente usados nos esparsos combates exercidos nesse momento, os flecheiros
assumiram papéis principais. Arregimentados dos aldeamentos, ou seja, aldeias construídas
para que fossem catequizados pelos missionários, os indígenas eram almejados não somente
pela administração portuguesa, mas também por colonos. Como os recrutamentos acabavam
também sendo feitas nas aldeias encontradas no caminho em que as tropas marchavam, os
flecheiros acabavam sempre sendo o maior contingente de toda a tropa. E eles acabavam dando
os rumos dos conflitos. Portanto falar na guerra dos bárbaros ou na destruição do quilombo dos
Palmares sem fazer uma abordagem desses guerreiros, além de ser muito imprudente é também
desonesto.
Durante a pesquisa, pode-se observar que muita coisa ainda precisa ser analisada,
especialmente se tratando das estratégias militares que os indígenas foram submetidos. O uso
de aldeamentos como barreiras defensivas, para dar um exemplo, é dificilmente trabalhado
pelos historiadores. E através de tudo o que foi analisado, os aldeamentos saem da pequena
esfera de espaços de somente doutrinação e passam a ser pensados também como locais
construídos para diversos, especialmente de caráter militar, bastante mencionados nessa
pesquisa. Diante disso, é preciso uma pesquisa de maior fôlego que procure analisar todas essas
dúvidas apresentadas aqui, desenvolvendo ainda mais o tema abordado nessa pesquisa e
explorando melhor as fontes, facilmente encontradas tanto na coleção Documentos Históricos
da Biblioteca Nacional quanto no Arquivo Histórico Ultramarino, especialmente esse último.

REFERÊNCIAS

Fontes:
● Documentos Históricos da Biblioteca Nacional:
DHBL: Livro 3.
DHBL: Livro 7.
DHBL: Livro 38.

Bibliografia:
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas
aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2003.

CAVALCANTI, Alessandra Figueiredo. Aldeamentos e política indigenista no bispado de


Pernambuco – séculos XVII e XVIII. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2009. 264
MEDEIROS, Ricardo Pinto. O Descobrimento dos Outros: Povos Indígenas do Sertão
Nordestino no Período Colonial. Recife, Tese de Doutorado em História, Programa de Pós-
Graduação em História - UFPE. 2000.

PUNTONI, Pedro. A guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão


nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo. Hucitec: Editora da Universidade de São Paulo:
Fapesp. 2002.

SILVA, Geyza Kelly Alves da. Teias de alianças, lealdade e dependências: tabajaras e
Potiguaras aliados/aldeados na capitania de Pernambuco. Clio – Série de Revista de
Pesquisa Histórica – N. 25-2, 2007.

SILVA, Kalina Vanderlei. Flecheiros, Paulistas, Henriques e os Homens do Litoral:


Estratégias Militares da Coroa Portuguesa na 'Guerra dos Bárbaros' (sec XVII). CLIO.
Série História do Nordeste (UFPE), v. 27-2, p. 305-333, 2009.

SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. “Nas solidões vastas e assustadoras” – os pobres do
açúcar e a conquista do sertão de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. – Recife: Cepe,
2010.

265
DIÁLOGOS DAS GRANDEZAS DO BRASIL: O OLHAR ALTERNATIVO DE UM
CRISTÃO-NOVO SOBRE OS GENTIOS DO BRASIL NO SÉCULO XVII

Arthur Feller Rigaud Cardoso1


Graduando em História
Universidade Federal Rural de Pernambuco
arthur_feller@hotmail.com

Introdução

A obra Diálogos das Grandezas do Brasil permaneceu manuscrita até meados do século
XIX, quando Francisco Adolfo de Varnhagen trouxe uma cópia do apógrafo da obra,
encontrado na Biblioteca de Leiden, sendo publicada integralmente somente no século XX em
edição da Academia Brasileira de Letras com introdução de Capistrano de Abreu. Encontrada
sob a autoria de Bento Teixeira, a obra passou por diversos estudos e debates a respeito do
verdadeiro autor da obra, uma vez que a passagem que atribuía sua autoria estava escrita com
uma caligrafia diferente do apógrafo2.

Por fim, Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia chegaram à conclusão que o provável
autor seria o cristão-novo e senhor de engenho Ambrósio Fernandes Brandão, após minucioso
trabalho se baseando em trechos da obra considerados autobiográficos. Posteriormente, José
Antônio Gonsalves de Mello retomou o debate, se utilizando de um apógrafo encontrado no
Arquivo da Universidade de Leiden, publicando posteriormente uma edição baseada no
apógrafo de Leiden em 1962, inserindo uma Introdução aos Diálogos reunindo todas as
informações conhecidas do provável autor da obra, Ambrósio Fernandes Brandão 3.

Das fontes conhecidas sobre Brandão, se tem conhecimento de que morava em Olinda
desde 1583, trabalhando contratado pelo cristão-novo Bento Dias de Santiago na coleta de
impostos relativo ao comércio do açúcar. Em 1585, participou de incursões militares na Paraíba

1 Orientador: Prof. Dr. Kleber Clementino, NEIC/Departamento de História – UFRPE


2 Capistrano de Abreu trabalha a questão da autoria da obra Diálogos das Grandezas do Brasil, abordando a
diferença de caligrafia em ABREU, Capistrano de. Ensaios e Estudos (Critica e História). 1ª série. Rio de Janeiro:
Sociedade Capistrano de Abreu, 1931.
266
3 BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogo das Grandezas do Brasil. Apresentação de José Antônio Gonsalves
de Mello. Recife: Editora Universitária, 1966.
como capitão da brigada de mercadores contra franceses e índios potiguares. Voltou a morar
em Portugal entre 1597 e 1607, exercendo o cargo de Tesoureiro-Geral da Fazenda dos
Defuntos e Ausentes, mantendo contato com altos funcionários da esfera governamental luso-
espanhola. Posteriormente, morou na Paraíba, se tornando senhor de engenho, sem se ter
conhecimento da data de sua morte. Todas essas informações foram comparadas ao interlocutor
Brandônio da obra, o qual seria um senhor de engenho, teve contato com autoridades da Coroa
luso-espanhola, participou de incursões militares na Paraíba, teria vindo de Portugal e tinha
conhecimentos no comércio e botânica.

Brandão se envolveu com o Santo Ofício diversas vezes: foi denunciado duas vezes à
Inquisição, na primeira quando morava em Olinda em 1591, e a segunda em Portugal no ano
de 1606, sendo, porém, inocentado em ambas as vezes, bem como sendo testemunha na defesa
para inocentar Bento Teixeira em 1595 4. Seria nos arquivos inquisitoriais que se teria
conhecimento da sua qualidade de cristão-novo. Os documentos, escritos em momentos
diferentes, apresentam denúncias referidas, por exemplo, a Brandão frequentar a “esnoga” de
Camaragibe, não trabalhar nos dias de sábado, bem como profanar dias santos.

O autor e sua obra se inserem no período da união dinástica das coroas ibéricas sob o
reinado dos reis Filipe II (1581-1598) e III (1595-1621) de Habsburgo. Como apontado por
Sonia Siqueira, essa época é marcada pelo impulso missionário e evangelizador. O Concílio de
Trento (1545-1563), ao lado da fundação da Companhia de Jesus (1540) trouxe uma renovação
missionária em Portugal e seus domínios, retratada nos escritos de diversos escritores, letrados,
cronistas, naturalistas, ao lado de cartas de membros de ordens religiosas, expondo a luta contra
as heresias e a catequização dos pagãos. Esse impulso acompanhava a mentalidade portuguesa
desde o princípio das Grandes Navegações, quando os portugueses, se transferindo de seu país
de origem para a América, traziam consigo sua cultura, pensamento, mentalidade, preconceitos
e fé, de uma forma a qual é frequente encontrar tais temas nos escritos da época 5.

É na ausência desses aspectos de profissão da religião católica que se dá a


particularidade de Brandão e sua obra, uma vez que ele não se insere nesse impulso religioso.
Gabriel Mordoch analisou diversos pontos nos Diálogos que poderiam ser consideradas uma

4 Teria sido a partir dos documentos inquisitoriais que se teria informações preciosas de Brandão, como por ter
quarenta anos em 1595, bem como ser morador de Olinda, o local de sua moradia em Portugal, os atos denunciados
tanto em Olinda quanto em Lisboa, além de constar que se considera “cristão-novo”. José Antonio transcreveu boa
parte dos documentos contendo tais informações em sua Introdução à obra. Ver: BRANDÃO, Diálogo das 267
Grandezas do Brasil. Op. cit., p. xiii-liii
5 Ver: SIQUEIRA, Sonia A. A Inquisição Portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978.
manifestação criptojudaica por parte de Brandão, como a relação dos dias representados nos
seis diálogos, fazendo uma alusão ao sabá judaico entre os dias da semana 6, bem como a
preferência a citar passagens unicamente do Velho Testamento, desconsiderando o Novo
Testamento em sua narrativa. Para Käthe Windmüller, o fato de Brandão, ao contrário da onda
de exaltação da atividade missionária da época, não fazer nenhuma alusão positiva ou dar uma
atenção à atividade conversão de almas em sua obra, confessaria, através dessa omissão, sua
real profissão de fé7.

Apesar do fato de que a obra permaneceu em seu formato manuscrito, sem ter sido
publicada até meados do século XX, Bouza Álvarez nos mostra que isso não era um empecilho
para sua circulação, uma vez que as obras tanto manuscritas quanto impressas eram utilizadas
na Idade Moderna8. Exemplo disso é o apógrafo encontrado por José Antonio, encontrado na
Biblioteca da Universidade de Leiden, que havia pertencido ao filósofo holandês Isaac Vossius,
que compunha a corte da Rainha Cristina da Suécia. Dessa forma, podemos considerar que a
obra, apesar de manuscrita, teria seu objetivo. Sendo uma obra que aborda diversos temas, que
vão desde a geografia, fauna e flora do Brasil, até sua economia, costumes dos moradores e
nativos, podemos analisar os diferentes argumentos propostos pelo autor em cada um desses
temas, podendo ter influenciado no fato da obra ter permanecido manuscrita e anônima por
tanto tempo.

Feita as reflexões iniciais, proponho seguir a análise dos argumentos centrais feitos por
Ambrósio Fernandes Brandão em sua obra Diálogos das Grandezas do Brasil, no tocante a
questões relacionadas aos costumes dos indígenas, ou “gentio da terra” como citado na obra,
bem como questões relacionadas à fé católica e à missionação no Brasil. Se considerando
cristão-novo, analisar sua visão sobre os indígenas, bem como a forma que o autor trata das
questões relacionadas a fé, pode nos ajudar a construir hipóteses sobre os motivos que fizeram
sua obra não ser publicada, bem como ter permanecida anônima.

6 Sendo cada Diálogo passado durante um dia da semana, o Diálogo Quarto inicia com uma reclamação de Alviano
pela falta de Brandônio no dia anterior, tendo Brandônio justificado que o mesmo estaria ocupado em um estudo.
Daí a hipótese de Mordoch a considerar esse dia de estudo como o sabá, estando numa posição estratégica no meio
dos sete dias que teriam ocorrido ao longo dos Diálogos. Ver: MORDOCH, Gabriel. Discurso cristão-novo e
expansão imperial portuguesa no princípio da era moderna: os casos de Garcia d'Orta, Fernão Mendes Pinto,
Ambrósio Fernandes Brandão e Pedro de León Portocarrero. TESE (Doutorado em Estudos Lusófonos – Ohio
State U). Orientador: Profª. Drª. Lúcia Helena Costiga, 2017.
7 Ver: WINDMÜLLER, Käthe. “Omissão como confissão: Os Diálogos das Grandezas do Brasil de Ambrósio
Fernandes Brandão”. In: NOVINSKY, Anita; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (Org.) Inquisição: Ensaios sobre
mentalidade, heresias e arte. São Paulo: Expressão e Cultura – Edusp, 1992, 408-417 268
8 Ver: BOUZA ÁLVAREZ, Fernando J. Del escribano a la biblioteca: la civilazión escrita europea en la Alta
Edad Moderna (siglos XV-XVIII). Madri: Editorial Sintesis, 1997.
MISSIONAÇÃO E INDÍGENAS NOS DIÁLOGOS

No Diálogo Segundo, é levantada por Alviano a questão da origem do indígena.


Segundo Brandônio, os indígenas originariam de embarcações de israelitas que teriam se
perdido, vindo de Ofir (região a qual Brandão considera ser Mina, na África) trazendo materiais
para a construção do templo de Salomão:

Pois, passando isto assim, quem duvida que algumas das náus da tal armada,
que de fôrça, à tornada, às águas e tempos a deviam de chegar ao Cabo a que
chamamos de Santo Agostinho, desse à costa nesta terra do Brasil, e que da
gente que dela se salvasse tivesse origem a povoação de tão grande mundo? 9

Para a época, essa teoria foi passiva de diversas refutações, como a do jesuíta José de
Acosta. Acosta, em seu História Natural y Moral de las Indias, de 1589, tinha uma influência
majoritária sobre os debates das teorias da origem dos indígenas na época. Foi “um best-seller
naquela época e para aquela geração”10, sendo uma das principais obras norteadoras dos debates
sobre a origem do indígena da época, ao lado de Gregorio García com seu Origin de los indios
de el nuevo inundo, e lndias occidentales, de 160711.

Nele, Acosta também ataca a teoria da origem hebreia do indígena, uma vez que não
acreditava que um povo com rígidos costumes e tradição teria deixado todo seus costumes ao
chegar em solo americano, “pues ya la historia de Esdras (si se ha de hacer caso de escrituras
apócrifas) más contradice que ayuda su intento, porque allí se dice que las diez tribus huyeron
la multitud de gentiles, por guardar sus ceremonias”12.

É conhecido também uma segunda teoria difundida na época, citada por Frei Vicente do
Salvador em sua obra História do Brasil como sendo de autoria de D. Diogo de Avalos 13, de

9 BRANDÃO, Diálogos das Grandezas do Brasil, Op. Cit., p. 126.


10 BOXER, Charles R. O império marítimo português (1415-1825). São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.
64.
11 Ver: Huddleston, Lee Eldridge. Origins of the American Indians: European Concepts, 1492- 1729. Austin –
London: University of Texas Press – Institute of Latin American Studies, 1967.
12 ACOSTA, Josef de. Historia Natural y Moral de las Indias. Edición crítica de Fermín del Pino-Diáz. Madri: 269
CONSEJO SUPERIOR DE INVESTIGACIONES CIENTÍFICAS, 2008. p. 40-41.
13 Ver: SALVADOR, Vicente do. História do Brasil. 6. ed. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1975. p. 77.
acordo com o qual a origem do indígena se daria por povos bárbaros provenientes da região da
atual Espanha, teoria essa comumente usada para destacar direitos que indígenas da América
Hispânica teriam por serem descendentes do reino espanhol, da mesma forma que indicava a
bíblica região de Ofir como sendo uma região próxima ao território do atual Peru14.

Sobre essas questões, Brandônio parece respondê-las indiretamente, ao afirmar que,


quanto aos costumes e tradições, “os primeiros pais deveram de mostrar e ensinar a seus filhos
e netos o uso das artes e policia que tinham”15, porém, por conta da falta de material escrito,
tendo de ser repassada apenas oralmente, “não podia passar à memória de tão comprida
geração”16. Dessa forma, os costumes foram sendo esquecidos ao longo do tempo e das
gerações, até esses remanescentes “ficarem do estado em que de presente os conhecemos” 17.

Ao trabalhar a relação de Ofir a algum território da América Hispânica, que sustentaria


uma teoria que defende os direitos dos indígenas dessa região, Brandão refuta argumentando:

Brandônio: […] é de saber agora adonde estava êste Ofir de que a Escritura
trata, na região de Tharsis. E, pois, êste nome Tharsis no frasis grêgo significa
África, na tal costa devia de estar o pôrto de Ofir; pelo que Vatablo Parasiense
errou sumamente em dizer que o Ofir era uma ilha situada no mar do Sul da
costa do Perú descoberta por Cristovão Colombo, chamada Espanhola. 18

Percebe-se, assim, que Brandão tinha conhecimento dos principais debates norteadores
sobre as teorias da época acerca das origens dos indígenas. Porém, ao tomar posição de uma
em específico, a da origem hebreia dos indígenas da região do Brasil, passa-se a questionar os
seus motivos, uma vez que ela foi atacada por Acosta, considerado a principal autoridade sobre
a questão. As argumentações usadas por Brandão, em suma, defendem uma teoria da origem
hebreia dos indígenas do Brasil, baseando-se em passagens do Antigo Testamento, ao passo

14 É necessário destacar que as teorias sobre a origem dos indígenas estavam sempre atreladas às Sagradas
Escrituras, tida como base dos relatos históricos da humanidade. Tomando como princípio geral que todo ser
humano era proveniente de Adão e Eva, era comumente usado o termo “Filhos de Adão” ao destacar a proveniência
indígena. Luis Guilherme Assis Kalil destaca que o ponto comum mais utilizado para remontar a origem dos
indígenas era o dilúvio global e os filhos de Noé, a qual uma maldição teria acometido o filho Cam, o que traria
uma explicação para a questão do indígena e seu afastamento para a América. Ver: KALIL, Luis Guilherme Assis.
Filhos de Adão: análise das hipóteses sobre a chegada dos seres humanos ao Novo Mundo (séculos XVI e XIX).
TESE (Doutorado em História - UNICAMP). Orientador: Prof. Dr. Leandro Karnal, 2015.
15 BRANDÃO, Diálogos das Grandezas do Brasil. Op. cit., p. 127.
16 Idem, Ibidem, p. 127. 270
17 Idem, Ibidem, p. 127.
18 Idem, Ibidem, p. 124.
que em um segundo momento ataca uma teoria que seria usada para legitimar os direitos
intrínsecos dos indígenas na América Hispânica, também se baseando em passagens do Antigo
Testamento.

Posteriormente no Diálogo Sexto, capítulo dedicado ao costume dos indígenas,


Brandônio ataca o pensamento difundido na colônia sobre a vinda de São Tomé ao Brasil e ter
ensinado o uso da mandioca aos indígenas. Seu raciocínio pode ser considerado contraditório
em sua defesa pela teoria da origem dos indígenas, uma vez que Brandônio se utiliza da falta
de escritos para argumentar a falta de provas da vinda de São Tomé, mas também a falta de
material escrito justificaria a origem hebreia dos indígenas do Brasil.

Brandônio: […] afirmam que têm por tradição de seus antigos passados, que
São Thomé lhes mostrara o uso da mandioca, de que se sustentam, que dantes
não usavam dela, nem conheciam a sua qualidade, mas isso sem nenhum
fundamento.
Alviano: [Isso não devia] de ser; pois não sabemos, nem lemos de São Thomé
que passasse nestas partes.
Brandonio: Isso podia Deus fazer quando fôsse servido, como fez que
Abacave levasse o comer ao profeta Daniel ao lago dos leões, aonde estava
encerrado; mas, como disse, êstes índios não dão, em prova do que querem
dizer, alguma razão que concluinte seja. 19

A história também é citada por Frei Vicente do Salvador em sua obra História do Brasil,
tendo em sua narrativa a menção da falta de provas escritas, mas com um contraponto em citar
as diversas pegadas supostamente deixadas pelo santo, consideradas umas das principais
provas, explicando:

Também é tradição antiga entre eles, que veio o bem-aventurado Apóstolo


São Tomé a esta Bahia, e lhes deu a planta da mandioca [...] Mas como estes
gentios não usem de escrituras, não há disto mais outra prova, ou indícios, que
achar-se uma pegada impressa em uma pedra naquela praia, que diziam ficara
do santo quando se passou à ilha, onde em memória fizeram os portugueses
no alto uma ermida do título, e invocação de São Tomé20.

271
19 Idem, Ibidem, p. 299.
20 SALVADOR, História do Brasil. Op. cit., p. 28.
No único momento em que um personagem do Novo Testamento é citado, ele é
considerado falso, tendo seu contraponto num exemplo do Velho Testamento. Como podemos
ver, o argumento usado para invalidar esse pensamento é a falta de prova escrita, também
considerada sem fundamento. Ora, ao defender a origem hebraica do indígena, também não
havia nada escrito que sustentasse a teoria, ainda mais sobre a explicação dada da falta de polícia
do indígena, tendo como explicação a falta das escrituras.

Como apontado por Thiago Leandro Vieira Cavalcante, a vinda de São Tomé à América
do Sul seria apontada na hagiografia como um precursor das ordens religiosas e suas atividades
civilizatórias no Novo Mundo, bem como era frequente os escritos a respeito relatarem as
supostas pegadas deixadas pelo santo, como uma forma de provar a veracidade do caso 21.
Brandão chega a omitir a existência de pegadas que comprovariam a vinda do santo ao Brasil,
ao passo que, ao tentar refutar essa história, estaria também atacando um marco do catolicismo
no Brasil, o qual a citada pedra contendo a “pegada” de S. Tomé seria de valor simbólico para
os religiosos e moradores locais.

Passando para os costumes dos indígenas, ao citar um do qual o indígena buscava a


aprovação dos pais de uma pretendente, novamente é relacionado um conhecimento do indígena
a algo que ocorreu no Antigo Testamento:

Brandônio: […] para isso se usa um modo assás galante, o qual é que o
mancebo que se namora de qualquer donzela, o remédio mais certo de alcança-
la é ir-se ao mato com um machado e fazer lenha, sem o fazer a saber a
ninguém; a qual, depois de feita, acarretam às costas em feixes, e a vai lançar
ao rancho aonde habitam o pai e mãe da sua afeiçoada: e em semelhante
exercício continua por espaço de alguns dias, com o qual dão a entender sua
tenção, e nunca por esta via se lhe nega a esposa.
Alviano: Devem de ter logo êstes noticia do modo com que Jacó ganhou a sua
amada Raquel, e parece que neste uso o querem imitar. 22

Essa não é também a única referência antiga à qual o autor relaciona o entendimento
dos indígenas. Posteriormente, é mencionado o ato da castidade de garotas indígenas que, não
se casando, passam sua vida dedicando-se à caça e atividades manuais. Alviano, novamente,

21 Ver: CAVALCANTE, Thiago Leandro Vieira. As pegadas de São Tomé: Ressignificações de Sítios 272
Rupestres. Revista de Arqueologia, 21, n.2: 2008. p. 121-137
22 BRANDÃO, Diálogos das Grandezas do Brasil. Op. cit.., p. 302.
associa a uma história antiga, relacionando à mitologia romana sobre Diana e as ninfas: “Estas
tais deviam de ouvir contar de Diana e de suas ninfas, e que para imitar tomam a caça por
exercício”23.

Não há uma explicação sobre a forma que os indígenas teriam aprendido esse costume,
ao lado de que o conhecimento de Jacó e seu ritual teria prevalecido pelo conhecimento da
antiga tradição judaica a qual os antepassados dos indígenas teriam contato, mas, novamente,
entraria em contradição com o argumento de que os indígenas não lembrariam dos costumes e
práticas para manter a polícia pela falta de escrituras.

Por fim, em suas últimas páginas, é retratado na obra um relato um tanto quanto
sarcástico sobre a missionação por parte dos jesuítas aos gentios:

Brandônio: Os Padres da Companhia ensinaram a um dêstes índios, por


sentirem nele habilidade, a ler e a escrever, canto e latinidade, e ainda algum
pouco das artes, mostrando-se êle em tudo muito ágil e de bons costumes,
chegaram a lhe fazer dar ordens menores, e cuido que ouvi dizer que também
as de epístola e evangelho, para o ordenarem em sacerdote de missa. Mas o
bom do índio, obrigado de sua natural inclinação, amanheceu um dia despido,
e se foi, com outros parentes seus para o sertão, aonde exercitou seus bárbaros
costumes até a morte, não se alembrando dos bons que lhes haviam dado.24

No único momento onde é citado o trabalho de missionação da Companhia de Jesus, é


relatado a natural inclinação do indígena, de largar tudo o que havia aprendido e retornar aos
seus antigos costumes. Novamente, o autor traz uma visão negativa de questões relacionadas à
missionação e do Novo Testamento. Se utilizando do termo “o bom do índio”, também é
possível considerar uma sátira ao fracasso da atividade missionária, que estaria fadada ao
fracasso. Portanto, além de se trazer uma visão negativa, desesperançosa da conversão do
gentio, tão em voga nos escritos da época, o autor também ridiculariza o ato.

É interessante apontar que, como explicado por Giuseppe Marcocci, também estava em
discussão na época a capacidade ou não do indígena para receber a fé, comumente encontrado
nos debates em cartas jesuíticas. A não aceitação do gentio à fé católica abriria a possibilidade
de sua redução à escravidão25. Como debatido no Diálogo sobre a conversão do gentio, escrito

23 Idem, Ibidem. p. 316.


24 Idem, Ibidem, p. 319-320. 273
25 Ver: MARCOCCI, Giuseppe. A consciência de um império: Portugal e o seu mundo (sécs. XV-XVII). Coimbra:
Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012
pelo padre jesuíta Manuel da Nóbrega em 1557, procura-se provar que o indígena, mesmo com
sua natural inclinação, permanece sendo capaz de aceitar a fé, através do trabalho constante dos
missionários. A obra fora produzida no momento das primeiras missões de catequização no
Brasil, onde diversos missionários eram desencorajados pela dificuldade da conversão do
gentio.

Como visto, Brandão em sua obra mostra uma visão negativa da atividade missionária,
reforçando a ideia da ineficácia da atividade missionária e da busca de almas para a fé católica.
Como citado anteriormente, a impossibilidade da catequização do indígena trazia a
oportunidade da escravização do indígena, o que provavelmente estaria ligado ao interesse de
Brandão, se tratando de um senhor de engenho que ascendeu a partir de outros ofícios 26.

REFLEXÕES FINAIS

Dados os indícios apresentados, é perceptível que o autor possuía um domínio dos


principais assuntos em voga na época que tocavam a respeito dos debates de cunho moral e
religioso. Sendo um típico erudito humanista, conhecedor das letras, latim e ciências, Brandão
se utilizou do estilo dialógico para apresentar ideias e refutar outras, prática comum entre os
letrados de sua época, porém se utilizando dela para expressar opiniões e teorias que por vezes
iam de contra a uma prática ou crença.

Pelo seu conteúdo, o material exposto permite a consideração de que seu autor produzia
uma narrativa que desagradaria autoridades religiosas da época, o qual serviam à Coroa luso-
castelhana. José Antonio chegou a levantar a hipótese que teria sido Brandão um dos cristãos-
novos que teriam contribuído com a entrada dos holandeses ao Brasil 27, porém vale ressaltar
que, como apontado por Evaldo Cabral de Mello, os filhos e netos de Brandão foram os únicos
cristãos-novos que não se aliaram aos holandeses no período da invasão28.

26 Evaldo Cabral de Mello analisa a situação da “açucarocracia” no período anterior ao domínio holandês no Norte
do Brasil. No período a qual Brandão estava inserido, cada vez mais a classe senhorial era composta não por
herdeiros dos primeiros donatários, uma vez que muitos faliram e fracassaram, mas sim a partir de pessoas
envolvidas em outros ofícios que foram capazes de juntar cabedal suficiente para começar na atividade açucareira.
Ver: MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. São Paulo: Alameda,
2008.
27 MELLO, José Antonio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos. Influência da Ocupação Holandesa na Vida e na 274
Cultura do Norte do Brasil. Rio de Janeiro: TopBooks, 2001.
28 MELLO, Rubro Veio, Op. Cit., p. 438
A obra também se mostra precedendo um outro embate de sua época, a qual seria a
mudança de foco do Império Marítimo Português ao Brasil, em detrimento às Índias Orientais,
ideia essa reforçada constantemente pelo autor em sua obra. Considerado “the first effort to
speculate on Brazil’s place in the Portuguese empire and the world”29, Brandão produz sua obra
num período em que muito se debate as dificuldades existentes nos territórios pertencentes à
Coroa dos Habsburgos, ao lado de diversos autores que trabalham também com obras em estilo
de Diálogos, como o caso de Diogo do Couto em seu Soldado Prático (1610), Garcia da Horta
em seu Colóquios dos Simples e Drogas das Indias (1567) e Luís Mendes de Vasconcelos em
seu Diálogo do Sítio de Lisboa (1608), cada um trabalhando diferentes visões a respeito das
posses coloniais Ibéricas.

Como apontado por Charles Boxer, o século XVII presenciou diversos conflitos que
contribuíram para os debates sobre os gastos, perdas e fracasso das missões nas Índias Orientais,
trazendo os olhares às possibilidades existentes no Atlântico30. Sendo Brandão um dos
primeiros a destacar o Brasil como melhor lugar para se habitar e investir pela Coroa, autores
trabalharam em hipóteses quanto à sua motivação, sendo trabalhado por Gabriel Mordoch como
sendo os Diálogos uma obra produzida para atrair cristãos-novos à colônia, sendo um lugar
mais seguro e sem a repressão da Inquisição31.

Porém, discordo com a premissa:

[…] All of these texts were written by authors whose probable lack of political
and religious commitment to the official approaches and discourses of Iberian
overseas expansion allowed them to represent the colonization process in an
alternative, non-triumphalist fashion32.

29 LEVINE, Robert M. Historical Dictionary of Brazil. Metuchen: Scarecrow Press, 1979. p. 35


30 BOXER, Charles R. O império marítimo português (1415-1825). São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
31 Ver: MORDOCH, Gabriel. Discurso cristão-novo e expansão imperial portuguesa no princípio da era
moderna: os casos de Garcia d'Orta, Fernão Mendes Pinto, Ambrósio Fernandes Brandão e Pedro de León
Portocarrero. TESE (Doutorado em Estudos Lusófonos – Ohio State U). Orientador: Profª. Drª. Lúcia Helena
Costiga, 2017
32 “[…] todos esses textos foram escritos por autores cuja provável falta de compromisso político e religioso com
as abordagens e discursos oficiais da expressão ibérica no interior lhes permitiu representar o processo de
colonização de uma forma alternativa, não-triunfalista.” MORDOCH, Gabriel. Discurso cristão-novo e expansão 275
imperial portuguesa no princípio da era moderna: os casos de Garcia d'Orta, Fernão Mendes Pinto, Ambrósio
Fernandes Brandão e Pedro de León Portocarrero. Op. cit,. p. iii-iv.
Uma vez que, como pudemos analisar, Brandão não esteve alheio às discussões de cunho
político e religioso da época. Ascendendo na carreira de senhor de engenho, bem como tendo
um contato com as autoridades políticas da época, Brandão estivera num lugar de destaque e
influência no mundo colonial da época. Dessa forma, o autor dos Diálogos estava inserido num
contexto a qual havia forte envolvimento com as questões políticas e religiosas da época, onde
sua obra alcançaria um público leitor, o que, como pudemos analisar, seus argumentos e visões
expostas em sua obra muito provavelmente influenciaram para que, de alguma forma, ela
permanecesse no anonimato e apenas manuscrita.

Dessa forma, podemos considerar que o autor dos Diálogos, Brandão, produziu sua obra
não com uma ausência de objetivo. Mas sim, com argumentos e teorias bem elaboras que,
apesar de aparentemente trazer ideias que contrariariam autoridades eclesiásticas da época, foi
elaborada num contexto que permitia sua circulação e uma possível influência nos debates e
querelas envolvendo senhores de engenho e missionários. De que forma o manuscrito circulou,
quem o possuía e de que forma ela foi utilizada, incluindo chegando à Suécia sob o reinado da
Rainha Cristina, ainda é uma questão a ser trabalhada. Os Diálogos das Grandezas do Brasil
se mostram uma fonte rica de teorias, argumentos e suposições que nos permite entender mais
das demandas da época, bem como de que forma os diferentes escritores a interpretavam na
época.

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278
OS DOIS MUNDOS DE DIEGO DURÁN

Eliana da Silva
Mestranda
Universidade Federal de Alagoas
eliana.silva.cebi@gmail.com

O presente trabalho é parte da minha pesquisa de mestrado onde busco analisar a obra
do frei dominicano Diego Durán, que viveu no México do século XVI conquistado pela coroa
Espanhola.

Durán se mudou para o a região ainda criança, entre 1542 e 1544, algumas décadas
depois da chegada dos espanhóis. Se estabeleceu em Texcoco e cresceu em meio a construção
de uma sociedade nova erigida sobre os escombros do mundo pré-hispânico. Na região
provavelmente estudou e aprendeu a língua nahuátl, como também muitos dos costumes
indígenas. Em uma passagem da crônica ele cita que quando criança comia um determinado
tipo de alimento mexicano:

Llaman á este primer día del sesto mes etzalcualiztli que quiere decir el día
que se permitía comer etzally y porque en mi niñez lo comí muchas veces es
de saber que es unas puchas de frijol con maiz cocido entero dentro una
comida tan sabrosa para ellos(...)”. 1

Entrou para a ordem dos pregadores aos 20 anos e durante a sua vida como missionário
viveu em diversos conventos dominicanos espalhados pela região conquistada.

Contundo, em se tratando do nosso personagem só podemos ficar no terreno da


especulação pois quase não há informações sobre a sua vida. Teria ficado anônimo não fosse a
descoberta de um manuscrito de sua autoria quase três séculos depois de sua morte.2

O documento, Historia de las Indias de Nueva España y Islas de tierra firme, é um


tratado sobre a história do povo mexica, seus deuses, ritos e calendário. Faz parte de um

1
DURÁN, Diego. Historia de las Índias de Nueva España y islas de tierra firme. México: Imprenta de Ignacio
Escalante, 1880, Tomo II, p. 281.
2
O manuscrito de Diego Durán foi encontrado na Biblioteca Nacional de Madri em 1850, no contexto dos esforços 279
de intelectuais mexicanos na recuperação de documentos sobre o período colonial do México. A sua descoberta é
creditada ao intelectual José Ramírez que também foi responsável pela sua primeira publicação.
conjunto de escritos denominados crônicas coloniais produzidos desde o início da chegada dos
europeus às terras chamadas americanas a fim de descrever os primeiros contatos com a
população nativa, o território e suas riquezas naturais, assim como as pessoas que o habitavam.
Tais documentos tiveram um papel importante na descrição da realidade nova e desconhecida
que conquistadores e religiosos encontraram deste lado do mundo, sendo as primeiras tentativas
de construção de sentido para um mundo diametralmente oposto ao que estavam acostumados.
Foi uma busca por acomodar tal mundo dentro dos quadros de inteligibilidade do universo
europeu. Neste sentido são fundamentais para a compreensão dos processos que fizeram dois
mundos tão diferentes entrelaçarem suas histórias, marcadas por dominação, imposição
cultural, tentativa de destruição do universo cultural indígena, mas também de miscigenação,
justaposições, releituras, etc.
A obra de Durán, como outras crônicas do período são testemunhos escritos desse
momento e por isso importantes para análise das relações estabelecidas entre espanhóis e
indígenas. Para além do processo de dominação, os documentos escritos no período apontam
problematizações que passam pela compreensão do processo instalado com esse encontro e os
entendimentos que foram construídos a partir do choque cultural. Elas também retratam a
maneira como os territórios novos foram apreendidos pelos que aqui chegaram e refletem a
complexidade imbricada nos encontros/desencontros, pois ao falar das novas terras, seus
autores também revelaram muito de si mesmos, muito da Europa e da necessidade de situar o
Outro na compreensão que tinham da realidade. Além de tudo, elas também desvelam que para
além do genocídio, desmonte cultural indígena e exploração; houve espaço de comunicação,
negociações e incorporações de práticas culturais, tanto de um lado, como do outro.3
A obra de Diego Durán, portanto faz parte deste corpus documental surgido no
nascedouro da América e tem como objetivo principal servir de guia para seus confrades na
tarefa evangelizadora. Para ele apesar de passados alguns anos desde a chegada dos espanhóis
e da missão evangelizadora os indígenas continuavam a praticar seus antigos costumes e ritos
religiosos. Por trás de uma pretensa conversão, para um observador mais atento, seria fácil
verificar que eles não haviam abandonado por completo sua religião antiga, praticando-a à
revelia dos missionários que na maioria das vezes, por desconhecê-la, não faziam conta de tais

3
Leandro Karnal afirma que as crônicas coloniais apesar de serem “um espelho do novo mundo”, são também
registro dos novos territórios levando os europeus a reconfigurarem os “caminhos da alteridade trilhados até então. 280
KARNAL, Leandro. “As crônicas ao sul do Equador”. In: Revista Ideias. Campinas, 2006, ano 13 [2], p. 19
ocorrências. Para o frei dominicano a única forma de extirpar definitivamente a idolatria dos
índios era conhecer profundamente sua cultura, como deixa claro num trecho da crônica:

A me movido christiano lector á tomar esta ocupación de poner y contar por


escrito las ydolatrias antiguas y religión falssa con que el demonio era
servido antes que llegasse á estas partes la predicación del santo evangelio el
aver entendido que los que nos ocupamos en la dotrina de los yndios nunca
acavaremos de enseñarles á conocer al berdadero Dios si primero no fueren
raídas y borradas totalmente de su memoria las superticiossas cerimonias y
cultos falssos de los falssos Dioses que adoraban, de la suerte que no es
posible darse bien la sementera del trigo y los frutales en la tierra rnontuossa
y llena de breñas y maleça sino estuviesen primero gastadas todas las raizes
y cepas que ella de su natural producía.4

É com este objetivo que ele se lança numa investigação detalhada da cultura dos antigos
mexicas produzindo sua obra Historia de las Indias de Nueva España y islas de tierra firme. A
obra dividida em três tratados traz a narração da história do povo mexica desde a sua saída de
Aztlán, seu estabelecimento no vale do México até a chegada dos espanhóis, a descrição das
festas e ritos dos principais deuses do panteão mexica e a forma como o tempo era contado a
partir da explicação de seu calendário. Durán se vale de variadas fontes para construir sua
narrativa: entrevistas com os antigos anciãos indígenas, consulta e reprodução dos códices
pictográficos, utilização de uma suposta história mexicana para recontar a saga daquele povo,
relatos de conquistadores e primeiros missionários.

Um aspecto importante ao estudar a sua crônica é a interpretação que ele faz da cultura
indígena a partir da história da salvação cristã presente na Bíblia. Ela é fonte e modelo que
permeia o sentido dado aos relatos indígenas. Tida como verdade histórica Diego Durán busca
incorporar sua dinâmica à tradição indígena. Em vários momentos ela é utilizada para dar
significado a realidade. Contudo, o frei dominicano não inaugura este modelo interpretativo,
mas está em conformidade com o pensamento corrente a época, onde a Bíblia ocupava um papel
central. Por isso em vários momentos do seu trabalho recorre a ela para explicar e entender a
cultura nova hispânica. Por exemplo quando atribuiu aos mexicas descendência judaica, relendo
na perspectiva nova hispânica a antiga busca pelas dez tribos perdidas de Israel quando do exilio
assírio, novamente impulsionada pela descoberta do Novo Mundo. Para Durán tal explicação
estaria na justificação da missão da Espanha que ao descobrir aquelas gentes teria o papel de

4 281
DURÁN, Diego. Historia de las Índias de Nueva-España y Islas de Tierra Firme. México: Imprenta de
Ignacio Escalante, 1880, Tomo II, p.68-69.
através da sua dominação e cristianização realizar a vingança divina pelos pecados do povo
hebreu através do sofrimento dos indígenas, seus descendentes, além de proporcionar-lhes a
salvação final pelo acolhimento da mensagem de Cristo.5

Outro exemplo, é a associação que faz de Topiltizin, divindade mexicana, com o


apóstolo Tomé, conhecido como aquele que passou pelo continente e pregou o evangelho para
os seus habitantes e que é expulso do território. Para Durán, e outros missionários, não era
possível conceber que os índios não tenham tido contato com a pregação do Evangelho, visto
que Jesus enviou os apóstolos a pregar por todo mundo (Marcos 20,15). A identificação de São
Tomé como o apóstolo dos gentios já aparecia em escritos do século VI e o mito é transferido
para a América tanto portuguesa, como espanhola ao se ligar à histórias indígenas de heróis
civilizadores associadas a pegadas humanas encontradas em diferentes regiões (os petroglifos,
artefatos rupestres que foram atribuídos ao apóstolo). Durán, provavelmente leu a história
escrita por Manuel da Nobrega que associa Tomé ao Sumé dos índios guaranis do Brasil e
ressignifica o mito relacionando Topiltzin com o apóstolo.6

O frei dominicano como participante deste contexto compartilhava as ideias que


circulavam na época. Muitos temas atravessaram o Atlântico desde o início. Cristóvão Colombo
inaugurou a era em que os sonhos europeus encontraram terreno fértil para se desenvolver no
novo mundo. O pensamento apocalíptico milenarista e a ideia do final dos tempos que se
realizaria com a volta de Cristo, a idade de ouro e o paraíso terrenal que foi identificado com o
novo continente, uma nova igreja cristã baseada nos valores das primeiras comunidades, como
ideal desejado pelos missionários mendicantes que viram nos territórios novos, espaço ideal
para seu surgimento. Enfim, a América se constituiu um caldeirão multiétnico e pluricultural
onde sonhos e desejos cresceram em meios a conflitos e necessidades concretas de organização
da sociedade, acomodando os mais diversos interesses:

Milenarismo joaquimita, filosofia hermética, messianismo judaico,


profetismo, gurras santas internas e externas para a vitória sobre o anticristo,
poderio onipresente da Inquisição, intrigas universitária e palacianas: eis o
mundo onde habita Cristóvão Colombo, cujas cartas, diários de viagem,

5
A ideia de que as 10 tribos de Israel dispersadas com o exilio assírio esteja na origem dos povos pré-colombianos
reacendeu com a descoberta dos novos territórios e foi uma forma de relacionar os indígenas aqui encontrados
com a Europa. Inspirada em autores antigos ela teve inúmeros adeptos na Península Ibérica. ROMEIRO, Adriana.
Um visionário na corte de D. João V. Revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo Horizonte. Ed. UFMG,
2001, p. 115-119. 282
6
CAVALCANTE, Thiago Leandro Vieira. Tomé: o apóstolo da América. Índios e jesuítas em uma história
de apropriações e ressignificações. Dourados, MS. UFGD, 2009, p. 30-35.
anotações e documentos exprimem as contradições de uma sociedade
frequentemente assolada pela peste, pela fome, pela guerra, tentada pelos
objetos técnicos e pela imaginação mágico-hermética de divinização do
humano, arrogante e degradada e da evangelização que, inseparáveis,
formarão o império ibérico de ultramar.7

Diego Durán é tomado por essa realidade e ao se aprofundar nos costumes daquela
sociedade reflete os dilemas de seu tempo. O conhecimento das sociedades indígenas lhe
possibilita construir aproximações, perceber semelhanças com o mundo europeu e, em
determinados momentos, chega a sentir admiração por aspectos presentes na cultura daqueles
povos.

Alguns estudiosos que se debruçaram sobre Historia de las Indias y islas de tierra firme
aludem ao fato de ele ter crescido em meio a sociedade indígena, uma explicação para
determinados posicionamentos expressos nos seus escritos. Até 1925 a ideia de que Durán fosse
mexicano acomodou a interpretação de que como “filho da terra” ele estivesse mais propenso
a fazer uma leitura de aproximação ao universo indígena. Este olhar marcou profundamente a
interpretação da sua crônica e, mesmo com a descoberta de que ele era na verdade espanhol, a
análise passou a considerar o crescimento em terras mexicanas como fator explicativo de seus
escritos. Ao ler seu manuscrito, contudo, o processo de mestiçagem com a cultura indígena fica
a cada página mais evidente.
Nessa linha se inseriram os estudos de Tzvetan Todorov que viu na figura de Diego
Durán o mexicano por adoção. O autor búlgaro, ao estudar a sua obra, constatou que as
aproximações feitas por ele da cultura indígena com o judaísmo, por exemplo, quando afirma
serem os mexicas originários do povo hebreu responde, além de outros elementos, ao fato de
ele ser descendente de cristãos-novos. Ou a forma como vê semelhanças em determinados
aspectos da cultura indígena com o cristianismo católico, consequência do fato dele ter vivido
sempre num ambiente multiétnico. Todorov reflete como Durán se apropria da cultura do outro
diferente da sua e a ressignifica a partir da sua própria história de vida8.
A maioria dos estudos segue esta linha, mas há outros que problematizam tal visão,
questionando este posicionamento em que a vida serve para explicar a obra. Seguindo os passos
dos estudos sobre biografia de Giovanni Levi, Pierre Bordieu, a escrita da vida de uma pessoa

7
CHAUÍ, Marilena. Profecias e tempo do fim. In: NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do homem e do
mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 459-460. 283
8
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 178-
179
não pode ser traçada como um caminho linear, cronológico, que tem um sentido, um objetivo
único, já estabelecido desde o princípio. Neste sentido, ao usar determinado trecho da obra do
frei dominicano não é possível estabelecer relação automática com a sua vida. Um exemplo que
pode retratar tal problematização é a associação dos elogios que Durán faz à terra com um amor
que ele cultivou por ter sido criado nela. Afirmação que desconsidera a imagem dos novos
territórios como lugar do paraíso terrestre, presente no imaginário europeu desde o início da
conquista e, portanto, partilhado pelo dominicano9.
Fator importante dessa discussão são as análises que tratam o sujeito histórico, no caso
Diego Durán, como partícipe de um contexto amplo em que as interferências recebidas partem
de um processo dinâmico e múltiplo, que é caracterizado pela infância vivida na Nova Espanha,
pela formação recebida como membro de uma ordem religiosa, pelo contato diário com os
indígenas no trabalho evangelizador, pelas representações culturais construídas tanto de um
lado como do outro. Todas essas imbricações são refletidas na forma como o frei dominicano
se apropriou dos elementos culturais daquele contexto, tentando acomodá-los na sua própria
trajetória como missionário e sendo, ao mesmo tempo, transformado neste processo.
Serge Gruzinski, ao estudar esse contexto, aprofunda o conceito de mestiçagem cultural
que se realiza em meio ao que denomina “ocidentalização” do México. A sociedade que se
configurava nascida do caos imposto pela violência da dominação, caracterizava-se pela grande
diversidade de personagens que buscavam reconstruir suas trajetórias a partir de uma nova
realidade que se impunha. O mundo que nascia destes escombros não era cópia da Europa,
como queriam os espanhóis, e para os indígenas representava a destruição da sua cultura e a
luta pela sobrevivência que passava pela recepção da cultura imposta pelo invasores. Junto a
isto o elemento da resistência se fazia presente na forma como se dava tal apropriação: a
reprodução da sociedade espanhola pelos indígenas foi marcada pela assimilação e
ressignificação das técnicas, das práticas e das crenças aprendidas. Ao entrar em contato com a
cultura espanhola eles realizavam a mescla com seu sistema cultural, “davam significados e
sentidos novos, às imagens e noções que eles captavam”. Ao incorporar nos rituais católicos

9
Ao tratar da questão biográfica me baseio nos estudos realizados por Giovanni Levi e Pierre Bourdieu, publicados
na obra de Janaína Amado e Marieta Ferreira. Cada um com suas especificidades, introduzem novas maneiras de
analisar as biografias, problematizando-as e tomando-as como conhecimento histórico. Levi utiliza a abordagem
de “biografia e contexto”, onde a vida da pessoa e o seu contexto são analisados em relação dinâmica. Bourdieu
denominou de “ilusão biográfica” a construção em que a vida de uma pessoa se torna um conjunto coerente,
orientado para um acontecimento que faz parte de um projeto presente desde o início da vida da pessoa. AMADO, 284
Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (orgs.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de janeiro: Editora FGV,
2000, p.
elementos da sua antiga religião, ele buscava dar sentido a essa nova crença que lhe era imposta,
associando-a àquilo que ele já conhecia.10
Um aspecto interessante para ilustrar esse dilema é a acusação que faz à Inquisição a
respeito de um confrade. O documento foi determinante para a descoberta do local de
nascimento de Durán. Contudo, ele traz um outro aspecto da relação do frei com seus irmãos
da ordem que ainda não tinha aparecido, nos dando a oportunidade de ampliar o campo de
análise. Lendo a peça inquisitorial ficamos sabendo que a denúncia é feita a um confrade de
nome Andres Ubilla. Segundo o documento, o frei escandalizava seus irmãos e até membros de
outras ordens com um comportamento contrário aos valores cristãos fundamentais. Ele foi
acusado de proibir a doação de esmolas aos pobres, da retirada das imagens dos altares e
colocação delas em lugares de menos prestígio, do recolhimento de relíquias de ouro e de prata
e a destinação às pessoas que as profanavam, de possuir família, de não se confessar e mesmo
assim rezar missa, de falar com o demônio e não respeitar a Inquisição. Uma série de acusações
que Durán afirmou ter testemunhas para as comprovar.
Não foi possível aferir o que aconteceu com a denúncia, se o tribunal levou adiante as
acusações e se houve desdobramentos. Mas este episódio serve para entendermos uma faceta
de Durán que aparece por várias vezes na sua crônica, refletindo a forma como ele encarava a
missão evangelizadora. Em contato com a cultura indígena ele afirma a necessidade de ser
rígido quanto à não tolerância em aceitar a crenças e práticas rituais:

Hemos dado fin á lo que toca á las fiestas de sus dioses y á la celebración de
ellas y aunque brevemente hemos dicho la veneración ritos y religión con que
los honraban dando aviso á los Religiosos y Sacerdotes de todo lo que
antiguamente se hacía para que estén sobre aviso en desterrar y estirpar
cualquier genero de supesticion y idolatría que haya quedado (...). 11

Rigidez que também aparece na relação com os membros da sua própria ordem e na
crítica aos comportamentos inadequados. No texto da denúncia à Inquisição ele afirma fazer
não por “ódio mas pelo que deve a serviço de Deus”. O que parece ir de acordo com esse zelo
demonstrado por Durán no que tange a difícil tarefa que o missionários tem pela frente. Em
outros momentos da crônicas ele chama a atenção de religiosos por não serem mais firmes com
as práticas dos índios:

10
GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 200, p. 93. 285
11
DURÁN, Diego. Historia de las Índias de Nueva-España y Islas de Tierra Firme. México: Imprenta de
Ignacio Escalante, 1880, Tomo II,, p. 246.
(...)habido Religiosos que han puesto dificultad en que no hay necesidad de
echalles las fiestas de entre semana, lo cual tengo por inconveniente y no muy
acertado supuesto que son cristianos es justo que lo sepan y que si quisieren
guardallo y oir misa como tales lo guarden y si quisieren usar de su privilegio
usen declarándoles lo que el tal privilegio les concede y primero por delante
la obligación que de cristianos tienen pues es ya razón lo sean con el rigor que
nos obliga para que si algún olor de lo antiguo hay entre ellos ó en algunos de
ellos se acabase de desarraigar para lo cual los ministros habian con devotas y
frecuentes persuasiones incitallos á la observancia de nuestra divina ley 12.

Todorov afirma que o dominicano escolhe o rigor para dar conta da sua missão e
adverte com censuras os religiosos que não percebendo como agem os índios, minimizam
determinadas práticas, contribuindo para a permanência da idolatria e para a contaminação da
pureza da religião cristã. Para o autor, Durán é um “cristão rígido, intransigente, defensor da
pureza religiosa”, contudo, ao mesmo tempo que prega a manutenção das diferenças entre as
duas culturas, em seguida reconhece similaridades em determinadas expressões religiosas 13.
Para ele Duran seria um mestiço que faz a ponte entre as duas culturas e essas aproximações
resultam do entendimento que vai construindo sobre os dois mundos. “Um cristão convertido
ao indianismo que converte os índios ao cristianismo”.
A título de conclusão podemos situar o frei dominicano Diego Durán como produto
da mistura que ele tenta analisar e descrever em sua obra. Como espanhol de nascimento e
formação ele utiliza as ferramentas do seu mundo para dar conta de entender a sociedade que
se constrói ao seu redor. Ao mesmo tempo o fato de ter crescido no México em meio a uma
religiosidade que mesmo condenada, ainda se fazia presente em diversas práticas cotidianas,
lhe permite estabelecer aproximações entre esses dois mundos. A tarefa de entender tal cultura
se utiliza da Bíblia como norteadora do processo. Ao explicar o universo indígena a partir das
categorias das sagradas escrituras ele cria um entendimento que acomoda a sua dubiedade de
fascínio e condenação, identificando personagens da histórias bíblicas com os das histórias
indígenas. Movimento que faz a cultura indígena continuadora da tradição judaica e, ao mesmo
tempo, alimenta o sentido da sua missão que é fazer esses nativos superar tal tradição e abraçar
a mensagem de Cristo, se tornando assim participantes da salvação eterna propagada pela igreja
cristã católica da época. Assim ele cria uma história indígena com leituras e significados de
acordo com a sua visão de mundo. Mas ao mesmo tempo ele, como membro daquela sociedade

12
DURÁN, Diego. Historia de las Índias de Nueva-España y Islas de Tierra Firme. México: Imprenta de
Ignacio Escalante, 1880, Tomo II,, p. 201 286
13
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 3ª ed., 1993,
p. 177.
nascente, não deixa de sofrer as influências das transformações em curso que acabam por
promover releituras e ressignificações das tradições envolvidas no processo.

Referências Bibliográficas:

BERNAND, Carmen e GRUZINSKI, Serge. História do Novo Mundo: da descoberta à


conquista, uma experiência europeia, 1492-1550. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1997.
BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina – América Latina Colonial. São
Paulo/Brasília: Edusp/Fundação Alexandre de Gusmão, 2004, v. 1.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de
Moraes (orgs.). Usos e abusos da História Oral. Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.p.
183-191.

CAVALCANTE, Thiago Leandro Vieira. Tomé: o apóstolo da América. Índios e jesuítas


em uma história de apropriações e ressignificações. Dourados: UFGD, 2009, p.30-35.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel e


Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
CHAUÍ, Marilena. “Profecias e tempo do fim”. In: NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do
homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
DURÁN, Diego. Historia de las Índias de Nueva-España y Islas de Tierra Firme. México:
Imprenta de J. M. Andrade y F. Escalante, 1867, Tomo I.

DURÁN, Diego. Historia de las Índias de Nueva-España y Islas de Tierra Firme. México:
Imprenta de Ignacio Escalante, 1880, Tomo II.

GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo, Companhia das Letras, 200, p. 93.
KARNAL, Leandro. “As crônicas ao sul do Equador”. In: Revista Ideias. Campinas, 2006, ano
13 [2].

LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes
(orgs.). Usos e abusos da História Oral. Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000 p. 167-182.

ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V. Revolta e milenarismo nas


Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p.115-119. 287
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins
Fontes, 3ª ed., 1993.

288
PRIMEIRAS NOTAS DE PESQUISA: A EXIGUIDADE DA
JUSTIÇA REAL COM OS ÍNDIOS NA AMÉRICA PORTUGUESA.

Iviana Izabel Bezerra de Lira 1


Mestranda, UFRPE
izabelira82@gmail.com

Introdução

Navegar pelas discussões concernentes ao exercício da justiça e das ações promovidas


pelas instituições judiciais foi o gênese do nosso olhar sobre os nativos na América portuguesa.
Através das atuações empreendidas pelos colonos e magistrados régios responsáveis por
administrar a justiça foi possível perceber o trato que era reservado os nativos. Ponderar a
respeito da justiça nos primeiros anos de colonização nos permitiu percebê-la como o atributo
mais importante imputado ao Rei, o ser justo. Não suprimindo também as nuances de uma
sociedade do Antigo Regime, que concebia ao monarca à representação divina, destinava para
a justiça real duas perspectivas, uma já citada, a de ser justa e a outra de proteção aos súditos
do Império lusitano.
Neste sentido, segundo Stuart Schwartz, a aplicabilidade da justiça no Brasil, outorgava
as leis régias exclusivamente aos europeus e à população indígena a supressão do governo civil
e consequentemente das vias judiciárias do ordenamento jurídico português, contrariando o
atributo real. Segundo o autor, quando os índios procuravam proteção junto aos funcionários
judiciais, sentiam que a balança pesava contra eles, pois não apenas o testemunho de um nativo
apresentava peso inferior ao disputado com um português, como maximamente não havia por
parte dos colonos nenhum temor a represálias sobre seus atos (SCHWARTZ, 2011, p.48).
È nesta perspectiva que nosso trabalho demanda florescer, através dos relatos
promovidos pelos missionários e viajantes que circularam nos espaços aldeados, perceber as
minúcias da justiça colonial, sobretudo na percepção de uma escassez da aplicação desta justiça.
Para além, temos como pretensão, investigar na legislação difundida pelo governo português,
o princípio da lei em contrapartida à prática que era exercida pelos administradores régios.

As crônicas e testemunhos religiosos

289
1
Este estudo é orientado pela Profª. Drª. Jeannie da Silva Menezes, DEHIST -UFRPE
Em carta de 10 de agosto de 1549 2, Manoel da Nóbrega escrevia de Salvador ao também
jesuíta, Martín de Azpilcueta Navarro, como os portugueses administravam justiça à população
indígena. Nóbrega historiou sobre a detenção de um índio que havia cometido o assassinato de
um português, como punição e certamente para causar temor entre os outros indígenas, o
acusado foi executado sendo posto na boca de um canhão e feito em pedaços.
[...] Mas quis o Senhor, que do mal sabe tirar o bem, que os mesmos índios
trouxessem o homicida e apresentaram-no ao governador, o qual logo o
mandou colocar à boca de uma bombarda e foi assim feito em pedaços: isto
pôs grande medo aos outros todos que estavam presentes (NÓBREGA, 1549).

Narrativas similares apresentada por Nóbrega e a prática de uma justiça punitiva não
eram eventos incomuns na América portuguesa. No mesmo estudo, Schwartz apresenta trechos
dos relatos produzidos pelo padre, Fernão Cardim, em 1625 e dispostos na carta pertencente a
Samuel Purchas:

Houve sempre uma justiça rigorosa contra os índios. Já foram enforcados,


cortados aos pedaços, esquartejados, já lhe foram decepadas as mãos, já foram
queimadas com tenazes quentes e colocados nas bocas dos canhões por terem
matado [...] portugueses (que por ventura o tenham merecido). Mas havendo
pessoas, e não são poucas no Brasil, como sempre houve, e ainda há,
notoriamente infames por saquearem, roubarem, marcarem a ferro quente,
venderem e matarem muitos índios, até hoje nunca houve demonstração de
castigo, e é para se temer que, já que ele falta na Terra, caia do Céu sobre
todos os habitantes do Brasil. (SCHWARTZ, 2011, p. 48).

Charles Boxer utilizou da mesma carta exposta por Schwartz ao dizer, que Fernão
Cardim criticava severamente o modo como os portugueses maltratavam e escravizavam os
ameríndios apesar das reiteradas ordens reais e da legislação oficial que proibiam tais
atrocidades. Em sua explanação, Boxer expõe que o relato-testemunho de Cardim foi um dos
muitos documentos seiscentistas e setecentistas que descreveram com detalhes como os
ameríndios eram assassinados, escravizados ou explorados pela maioria dos colonos e dos
funcionários da Coroa, enquanto os jesuítas eram praticamente os únicos que tentavam proceder
de alguma forma como protetores dos indígenas (BOXER, 2002, p.106).
Na mesma ótica, para Stuart Schwartz os jesuítas ofereciam um sistema legal
paternalista aos indígenas, no qual de algum modo os castigos realizados eram menos severos
e exercidos pelos próprios índios, na função de meirinhos ou principais. Maria Regina Celestino
disserta acerca deste elo entre nativos e jesuítas na ocorrência da punição pelas mãos dos
indígenas e não pelas mãos dos padres, para que neles fossem mantido o respeito e a autoridade,
assim, eram efetuados “cuidados especiais com os castigos, para manter as boas relações com

2
Manuel da Nóbrega. Cartas do Brasil: 1549-1560. Rio de Janeiro: Officina Industrial Graphica, 1931, pp. 88- 290
96
os índios e evitar indisciplinas maiores foram objetos de atenção das autoridades civis e
eclesiásticas ao longo de todo período colonial” (ALMEIDA, 2003, p.163).
A historiadora utiliza ainda o relato do Padre José Anchieta para exibir um exemplo do
modo como eram imputados os castigos nas aldeias “È dado por seus meirinhos [...] e não há
mais que quando fazem alguns delitos, o meirinho os manda meter em tronco um dia ou dois,
como ele quer, não tem correntes ou outros ferros de justiça” (idem), em outro momento
Antônio Vieira expõe:
procedamos paternalmente, e sem modos, que cheiram a Império, não
chamando em nenhum caso nomes aos índios, nem os castigando por nossas
mãos [...] os castigos que merecerem se lhe dará por meio dos principais [...]
convém que não o façamos imediatamente por nós, senão pelos principais de
sua nação, os quais com isso se satisfazem, e nos acrescentando respeito e
autoridade” (ALMEIDA, 2003, p.163).

As ações reveladas pelos missionários evidenciaram o apartamento que existia entre o


indicativo das leis e a prática na colônia. A inquietação demonstrada pelos religiosos assenta o
olhar para uma ausência da justiça como proteção, no entanto acentua uma justiça que era
desvelada como instrumento punitivo. Novamente através do discurso do jesuíta Fernão
Cardim, encontramos o haver da justiça colonial na América portuguesa à luz dos missionários
e viajantes:
No que diz respeito à justiça, que era usada com os índios, o rei nosso senhor
tem de compreender que embora Sua Majestade, como todos os reis seus
antecessores, recomende sempre este assunto dos índios aos governadores
acima de tudo como o seu dever principal, com muitas palavras eficazes,
mesmo assim a justiça que até agora tem existido no Brasil em relação a eles
foi nenhuma ou muito pouca, como se vê facilmente, pelos assaltos, roubos,
cativeiros e outros vexames que sempre lhe foram feitos e que ainda agora o
são. (BOXER, 2002, p.107).

As ações reveladas pelos alóctones evidenciam o afastamento que existia entre o


indicativo das leis e a prática na colônia, assim, perceber estes pormenores é a discussão que
promovemos adiante.

O princípio da lei e a prática colonial


Em Burocracia e sociedade colonial (2011) e no estudo da implantação do Tribunal da
Relação no Brasil, Schwartz afirma que ela estava ligada a política indigenista dos Habsburgo,
que dispunha para os índios do Novo mundo, serem vistos como homens livres e que não
deveriam ser escravizados. A política que também tencionava limitar o uso e abuso de poder
sobre os indígenas por parte dos colonos. Neste sentido, leis foram criadas com a tentativa de
proibir determinadas práticas e também para regular as relações entre portugueses e índios. A 291
lei de 1570 proibia a captura e a escravização de índios, salvo quando capturados em “guerra
justa”, e a lei de 1574, segundo o autor, era um reforço à primeira. Destacamos ainda a lei de
1595 que apresentava como discussão o uso indevido designado pelo aspecto da guerra justa
(p.117).
Nos estudos de Rodrigo Otávio de meados do século XX intitulado: Os selvagens
americanos perante o direito (1946), é possível encontrar menções há outros documentos e leis
produzidas anteriormente às indicadas por Schwartz. Para Otávio as leis existentes eram
confusas e contraditórias. O autor apresenta dois documentos, uma carta régia de 1537 que
versava sobre a ordem para a redução da escravidão aos indígenas e o regimento da criação do
governo geral, em 1548 que atribuía ao titular do governo geral a recomendação de tratar os
índios com doçura e de castigar como delinquentes àqueles que os fizessem mal. Na
interpretação do autor e opinião comum a muitos historiadores, a aparente proteção ou interesse
de serem os índios bem tratados, era pela intenção de convertê-los à fé católica, umas das razões
que se explicaria a colonização da América portuguesa.
Evidenciar a existência de elaborações de leis que ambicionavam regular o trato com os
indígenas, nos leva a refletir a condição sócio-jurídica dos povos originários e do mesmo modo
o desejo de apreender como esses sujeitos estavam incorporados em um ordenamento jurídico
que em princípio não apresentava espaço definido para eles, visto que, não sendo súditos do
Rei, estariam fora das leis projetadas.

A discussão sócio-jurídica dos índios


Estudo anterior3 possibilitou perceber as ações que eram direcionadas aos ouvidores4 da
capitania de Pernambuco e na análise do regimento designado para estes magistrados régios,
encontramos apenas uma referência de atribuição para os agentes, relativo ao trato com os
indígenas:
Dos casos crimes de escravos e índios tereis alçada em todas as penas de
degredos e açoites, que aos malfeitores pelas Ordenações são postas, e nos
casos de morte julgareis até morte inclusive, de que dareis apelação e agravo
para a dita relação do Brasil.5

3
Projeto PIBIC-FACEPE 2017-2018 As dinâmicas da ouvidoria: a centralidade de Pernambuco na interface entre
as comarcas das Capitanias do Norte do Estado do Brasil 1655 -1760 (BIC 2017-2018). Orientados pela Prof.ªDr.ª
Jeannie da Silva Menezes.
4
Os ouvidores foram os ministros nomeados para administrar a justiça em nome do Rei. 292
5
Regimento dos ouvidores da Capitania de Pernambuco, 1668, artigo 13. Informação geral da capitania de
Pernambuco, 1749. Anais Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol XXVIII, 1906 p. 451.
Aparentemente ao que se refere aos crimes cometidos por índios, visualizamos uma
condição jurídico-social equiparada aos escravos. Considerando novamente a esfera penal,
examinamos o último livro das Ordenações Filipinas, instrumento legal que vigorou na colônia
desde os primeiros anos do século XVII ao início do período imperial, regendo a vida civil,
fiscal, militar e penal dos indivíduos no reino e na América portuguesa. No livro V das
Ordenações, encontramos dispostos 143 títulos e 12 aditamentos. Evidentemente não
encontramos uma referência específica para os indígenas, visto que, estes sujeitos não estavam
inseridos na realidade reinol, para onde as Ordenações foram promovidas. Diante do exposto,
inferimos ser uma tarefa um tanto morosa tipificar de forma adequada as ações cometidas pelos
indígenas. A discussão de um ordenamento jurídico que revele um olhar sobre os índios nos
remete a estudos teóricos sobre o direito e a justiça para além da América Portuguesa e que nos
conduziu para um debate teológico direcionado aos indígenas.

Uma discussão teológica


Para António Manuel Hespanha, o direito português da época moderna estava pautado
pela tradição jurídica do direito comum (ius commune) europeu, no caso de Portugal, com
algumas especificidades, a observância do direito pátrio (ordenações6 e legislação
extravagante) teria levado este a uma prevalência sobre o primeiro. (HESPANHA, 2006,
p.139). Entretanto, Hespanha acrescenta que na prática havia uma inversão, especialmente
porque os juristas eram formados em escolas de direito romano e canônico, com uma tradição
literária muito mais próxima do direito comum. Desse modo, “a principal fonte para o
conhecimento do direito efectivamente vigente em Portugal não (era) a lei, mas sim a mole
imensa de literatura produzida (e não apenas a portuguesa) durante os séculos XIV a XVIII”
(IDEM, p. 140).
O olhar dos juristas, tratadistas e teólogos espanhóis, nortearam as soluções doutrinárias
nos impérios ibéricos, pois a Espanha possuía uma forte tradição jurídica promovida pela Escola
de Salamanca e influenciou o entendimento jurídico em outras sociedades.
O frade Bartolomé de Las Casas foi um dominicano formado na Escola de Salamanca e
é conhecido como defensor dos índios na condição de homens livres, e foi protagonista de um
dos debates mais acirrados do século XVI na cidade espanhola de Valladolid6. A discussão foi
instituída para legitimar as conquistas espanholas e especialmente decidir sobre o impasse
acerca da natureza dos nativos americanos. O opositor de Las Casas no debate foi Juan Ginés

293
6
Ver FIGUEIREDO JÚNIOR, Selmo Ribeiro. Valladolid: A Polêmica indigenista entre Las Casas e Sepúlveda,
2011.
de Sepúlveda, autor do Tratado de las justas causas de la guerra contra los índios. Sepúlveda
buscava respaldo teórico para justificar a escravização dos indígenas na teoria da servidão
natural de Aristóteles.
Em concordância com o pensamento de Las Casas, o jurista e teólogo Francisco de
Vitória7 em contraposição ao pensamento aristotélico8 “proclamou o direito natural dos índios
americanos à liberdade e defendeu a obrigatoriedade da Coroa de protegê-los da exploração”
(FIGUEIREDO JÙNIOR, 2011, p.102). Contudo, Vitória não se afastava completamente do
pensamento de Aristóteles, reconhecia sua autoridade, e a defesa da existência de um direito
natural, surgia do próprio filósofo grego e sua teoria do “justo por natureza”.9 Desta maneira,
Francisco de Vitória mesmo reconhecendo a soberania do Estado e que a este Estado pertenceria
o atributo da liberdade, apontava que essa soberania não seria maior que ao direito natural que
era superior as leis criadas e formalizadas pelo homem e denominadas como direito positivo.
O direito natural influenciou as interpretações e decisões jurídicas há muitas gerações.
Para Norberto Bobbio, o direito natural era imaginado como um sistema jurídico perfeito, pois
seria capaz de preencher os possíveis hiatos do direito positivo. De forma que o legislador
positivo deveria não apenas recorrer, mas se inspirar no direito natural, especialmente nas
situações em que se configuram lacunas no direito positivo (BOBBIO, 1982, p. 147). São estas
interpretações que nos orientam a refletir e questionar qual a compreensão dos que promoviam
a justiça colonial e como enxergavam os sujeitos sociais.
O jurista espanhol Luis de Molina foi discípulo dos ensinamentos de Francisco de
Vitória e concordava no descarte da hipótese de haver homens que, por natureza, estavam
destinados a servir (Aristóteles e os “servos naturais”). Mas, ao mesmo tempo, arranjou um
lugar teórico ou [uma categoria social] para esses homens que, no ultramar como na Europa,
pareciam estar como os menores, destinados a ser dirigidos por outrem. (HESPANHA, 2010,
p. 138). No que se refere à condição de liberdade ou escravidão do índio, temos as contribuições
de Carlos Alberto Zeron e de Rafael Ruiz. Em Linhas de fé: a Companhia de Jesus e a
escravidão no processo de formação da Sociedade Colonial (Brasil, Séculos XVI e XVII),

7
Francisco de Vitoria, el gran teólogo español, fundador del Derecho internacional, nació hacia 1486 em la capital
de la provincia de Alava, de la que tomo e l sobrenombre que ha llevado a lacelebridad, y murió el 11 de agosto
de 1546. Sabio catedrático de la Universidad de Salamanca, restaurador de la Teología em España, su papel es
único em la historia de la cultura, si em dos uno table y avanza da concepción jurídica del Derecho de gentes la
base precursora de toda la legislación moderna. (VITORIA, Relecciones sobre los índios y el derecho de guerra,
1975)
8
Ver MONTES D’OCA, Fernando Rodrigues. Francisco de Vitoria e a teoria aristotélica da escravidão natural,
2014 294
9
Ver ALVES, Rogério Pacheco. O conceito de justo em Aristóteles, 2015.
Zeron expõe as reflexões sobre a escrita de Molina no tratado De justitia et jure. Nele, o
espanhol distingue o dominium jurídico do dominium de propriedade, no qual para ele havia
uma confusão entre a noção de tutela e a de escravidão (ZERON, 2011, p.274).
Acreditamos na contribuição dos estudos a respeito da América hispânica para perceber
diferentes perspectivas acerca da temática predita. Rafael Ruiz, em análise dos tratados de
Francisco de Vitória, aponta, que o professor da Escola de Salamanca teria sugerido a inserção
dos ameríndios, sob a dominação dos espanhóis, na igualdade de direitos, e na equiparação à
condição de súditos, em que o índio como pessoa capaz, era titular de direitos e, como tal, sua
vontade era livre para criar direitos, dentro da lei (RUIZ, 2011)”
O mesmo estudo ainda faz referência aos legalistas espanhóis no seu processo de
conquista. Assim conclui Ruiz:
O legalismo dos espanhóis, por vezes, iria beirar os limites do ridículo. Só
muitos anos depois, com o contínuo combate jurídico apresentado por Vitoria,
Las Casas e outros, é que se começaria a deixar de lado o Requerimiento; mas
durante a primeira etapa da Conquista era praxe a leitura da declaração oficial
do Requerimiento, perante escravidão, para dar-se ciência aos índios -?- (..).
Caso os índios se negassem a aceitar o domínio de Suas Majestades,
legalmente já havia “justa causa” para a declaração de guerra. (RUIZ, 2002,
p. 37).

Desse modo, assim como a religião, o ordenamento jurídico também foi um artifício
utilizado pelos espanhóis e portugueses para a realização da conquista e colonização dos nativos
aos domínios americanos.
No tocante à condição social do indígena a partir do consenso da contemporaneidade,
estabelece como prerrogativa do direito a igualdade da lei entre os indivíduos. No entanto, todo
o ordenamento do direito luso-brasileiro apresenta no Antigo Regime os indivíduos
diferenciados de acordo com suas posições sociais. António Hespanha em O Direito letrado no
Império Português assinala que para o direito romano o universo dos possuidores de direito não
era composto por universos de pessoas, mas pela ordem dos “estados” ou status que elas
ocupavam na sociedade (HESPANHA, 2006, p.42-43).
Decerto, uma possibilidade de interpretação da inserção do indígena nas normas
jurídicas é apontada também por Hespanha, como sujeitos isentos do direito português. “Esse
era o caso dos índios “bravos” do Brasil, cuja única obrigação - aquela de aceitar o comércio e
o catolicismo – derivada da lei das nações (ius gentium) e não de uma submissão colonial
particular” (HESPANHA, 2010, p. 55).
Os debates teológicos e as interpretações sobre as fontes do ordenamento jurídico foram
295
instrumentos utilizados pelos espanhóis e portugueses para a realização da conquista e
colonização dos nativos nos domínios americanos. Por outro lado também é possível pensar a
possibilidade como os ameríndios utilizaram de estratégias para participarem da dinâmica
imperial. A historiografia tem mostrado, que muitas vezes aliar-se aos interesses da coroa ou
aceitar o domínio do Rei poderia ser uma forma de modificar a condição social, para além de
um mecanismo de resistência, mas também como um processo de protagonismo e incorporação
na realidade colonial.

Considerações finais
Acreditamos que as considerações a serem apontadas, podem, sobretudo, propor
reflexões acerca do exercício da justiça ao estabelecer o olhar sobre a condição jurídica do
sujeito paralela a condição social. Desse modo, refletir sobre a existência da distinção de
qualidade social dos índios na comparação com os outros indivíduos da sociedade, nos permite
compreender que havia também uma distinção no exercer da justiça sobre estes sujeitos
históricos.
Em nossa percepção, se não havia uma uniformidade da prática judicial à luz da
sociedade colonial, que deveria ser regida por diversas fontes de direito, nos inquieta perceber,
como o indígena que não possuía clara definição como sujeito era percebido no exercício da
justiça e no ordenamento jurídico. Pontuamos não ser uma observação simples, visto que, o
olhar sobre o indígena não possui concordância jurídica nem mesmo nos dias atuais.

Referências
Fontes manuscritas ou impressas
ALMEIDA, Cândido Mendes de. Edicao Fac-simile das Ordenacoes Filipinas, Rio de Janeiro,
14.a edicao, 1870. Ordenações Filipinas. 5 vols. Lisboa: Fundacao Calouste Gulbenkian, 1985.

Manoel da Nóbrega. Cartas do Brasil: 1549-1560. Rio de Janeiro: Officina Industrial Graphica,
1931, pp. 88-96.

Regimento dos ouvidores da Capitania de Pernambuco, 1668, artigo 13. Informação geral da
capitania de Pernambuco, 1749. Anais Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol XXVIII, 1906
p. 451.

Bibliografia
ABBEVILLE, Claude D’(1614). História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do
Maranhão. Traduzida e anotada pelo Dr. Cezar Augusto Marques. Maranhão. 1874 296
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas
aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.

BOXER, Charles. Império colonial português. 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras,
2002.

HESPANHA, António Manuel. O Direito dos letrados no Império Português. Florianópolis:


Fundação Boiteux, 2006.

__________, António Manuel. Imbecillitas. As bem-aventuranças da inferioridade nas


sociedades de Antigo Regime. São Paulo: Annablume, 2010.

__________. Antigo regime nos trópicos? Um debate sobre o modelo político do império
colonial português. In FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs), Na trama das
redes. Política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010.

OCTÁVIO, Rodrigo. Os Selvagens americanos perante o direito. Rio de Janeiro, Companhia


Editora Nacional (Brasiliana) 1946.

RUIZ, Rafael. Francisco de Vitoria e os direitos dos índios americanos - A evolução da


legislação indígena castelhana no século XVI. Porto Alegre: Edipucrs, 2002.

SCHWARTZ, Stuart. B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da


Bahia e seus desembargadores, 1609-1751. Tradução de Berilo Vargas. São Paulo: Companhia
das Letras, 2011.

297
OS FILHOS BASTARDOS DA COMPANHIA DE JESUS. 1

Daniel Ribas Sepúlveda Alves


Mestrando
Universidade Federal Fluminense
sepulveda2009@gmail.com

Em 29 de março de 1549, um pequeno grupo de padres integrantes da Sociedade de


Jesus aportava no litoral da América portuguesa, junto com o primeiro governador do Brasil,
Tomé de Souza (1503-1579), para fundar a cidade de Salvador da Bahia, como sede do novo
Governo Geral. Manuel da Nóbrega (1517-1570), Superior da Companhia, levava consigo
apenas três padres e dois irmãos, com o primeiro objetivo de iniciar os processos de
apaziguamento dos índios mais arredios, ameaça principal ao projeto colonizador. O grupo de
missionários deveria também, concomitantemente, dar inicio à obra de conversão do gentio e
de polimento dos portugueses que já habitavam por lá. O que acontecia no litoral da América
portuguesa neste momento, também se dava, em grande parte das conquistas ibéricas
ultramarinas, mas também, no Velho Mundo, onde empresas evangelizadoras buscavam
salvaguardar a única fé legitima, e disseminá-la por todo o mundo conhecido. No momento do
desembarque dos primeiros jesuítas no Brasil, não havia um plano evangelizador pré-
determinado, esperando para ser colocado em prática, a Companhia tinha apenas quinze anos
de existência e se encontrava envolta em movimentos de tentativas, acertos e erros, que
determinavam os caminhos mais seguros para levar a sagrada palavra. Agora, estas
experimentações, que já aconteciam em território europeu, africano e asiático, seriam colocadas
em prática também na América. Em resumo, tratamos aqui dos primeiros dez anos de missão
evangelizadora na América portuguesa. Número reduzidíssimo de padres jesuítas, condições
geográficas inóspitas, suporte régio constantemente prometido porém sempre insuficiente,
insalubridade generalizada (em termos de habitação, saneamento, alimentação, transporte e
condições em geral) e resistência dos nativos, que se mostravam interessados em absorver os
valores ocidentais cristãos, porém sem abandonar seus antigos costumes: a poligamia, a nudez,
o nomadismo e o canibalismo, todos estes tidos pelos padres como costumes contra-natura.
Lançar luzes sobre as inovações implementadas por esses primeiros missionários, no afã de
conter a inconstância dos silvícolas e de frequentemente reorganizar o direcionamento de suas

298
1
Pesquisa orientada pelo Professor Doutor Renato Júnio Franco.
empresas catequéticas, ajuda a entender sua busca na legitimação e na preeminência de sua
ordem religiosa no projeto civilizacional desenvolvido.
Em 1550, a missão passa a contar com um reforço de mais quatro padres. Nesta
armada, além dos jesuítas, vinham sete órfãos portugueses, que somados aos dois já em terra
brasilis, formariam um contingente mirim de nove pequenos evangelizadores. Estas crianças
deveriam auxiliar os missionários na labuta catequética, sendo fortalecidas, por mais um
pequeno grupo de meninos desvalidos, no ano seguinte. Francisco Pires ficou encarregado da
lida com essas crianças na Bahia, e das que foram enviadas para Porto Seguro e São Vicente,
onde assumiu a administração do colégio dos meninos. Notamos que a instrumentalização da
infância é praticamente imediata nesta nova empresa evangelizadora, sabendo-se que os órfãos
lisboetas desembarcaram na Bahia menos de um ano após a chegada dos primeiros jesuítas,
com a missão de auxiliarem os padres nos processos de catequese. Em 1552, Nóbrega partiu
em direção à São Vicente, levando quatro dos órfãos enviados de Portugal, onde fundou a aldeia
de Piratininga. Em 1555, estes poucos jesuítas receberiam o reforço infantil mais expressivo
até então, uma comitiva contando com dezoito ou vinte órfãos degredados vindos de Portugal,
o que praticamente dobraria o contingente de missionários. Seriam estes meninos pregadores,
distribuídos por Nóbrega, conforme as necessidades das vilas e capitanias, a solução encontrada
para a debilidade de contingente e para muitas outras barreiras nos movimentos de
evangelização.
Em cenário de começo de valorização da guarida infantil, os meninos órfãos,
perdidos a vagar pela Lisboa do século XVI, agora recolhidos e sob o cuidado dos padres
jesuítas, já estavam adestrados pela piedade cristã para serem submissos à divina providência e
estavam prontos para servir aos desígnios divinos, a eles revelados pelos próprios padres, seus
tutores e salvadores. Tomar estes pequenos como auxiliares no processo de conversão no litoral
da América portuguesa foi um artifício inserido no processo adaptativo dos missionários que
aqui viveram, tanto no que diz respeito a falta de contingente, quanto às estratégias de
conversão, o que envolve tanto as crianças da terra, quanto as vindas do reino para tal. Os
meninos foram muito mais bem acolhidos no seio indígena pelos nativos adultos que os padres,
assim, esses jovens eram usados como agentes evangelizadores de extrema importância no
processo.
Muitas são as circunstâncias que apontam a presença dos órfãos entre os padres
jesuítas como fundamental para o desenvolvimento da catequese nos Brasis. Elementos como
contingente, acesso, carisma, comunicação e exemplo são aspectos interdependentes que se 299
estudados em conjunto tendem a revelar a considerável dimensão participativa destes pequenos
missionários. Tanto os órfãos portugueses quanto os meninos índios eram admirados pelos
adultos de ambas as culturas, que sem perceber, afrouxavam seus mecanismos de resistência,
permitindo que a reciclagem de suas convicções tomasse rumos mais dinâmicos, permeando os
rascunhos de uma cultura prestes a surgir. Através dos meninos órfãos cativava-se os meninos
índios e através dos meninos índios chegava-se até os adultos. Esperava-se que os pequenos
invasores convidassem os pequenos nativos para juntarem-se a eles, abrindo oportunidades para
ensiná-los seus costumes e doutrinas de forma lúdica e inicialmente informal. Assim, estas
crianças que pertenciam a realidades tão diferentes, juntas eram capazes de criar uma realidade
inédita, aprendiam e ensinavam seus respectivos idiomas, danças e brincadeiras, agregando
leveza ao processo de aculturação.
A língua da terra foi considerada por Gilberto Freyre como “o instrumento mais
poderoso de intercomunicação entre as duas culturas: a do invasor e a da raça conquistada” 2.
Segundo o autor, “o padre serviu-se principalmente do culumim, para recolher de sua boca o
material com que formou a língua tupi-guarani”3. Os meninos índios e mamelucos, em contato
frequente com os órfãos vindos de Lisboa, aprendiam o português muito mais rápido que os
adultos, enquanto que os órfãos aprendiam o tupi muito mais rápido que os padres. Seriam essas
crianças então a “pedra de roseta da mata atlântica” por se transformarem nos melhores
intérpretes disponíveis. Sem o intermédio do órfão lusitano, a interação entre Jesuíta e menino
índio tornar-se-ia muito mais difícil. Se o idioma foi o instrumento mais poderoso, os órfãos
portugueses e as crianças mamelucas foram o atalho mais seguro, que levou os jesuítas ao
conhecimento, e consequente domínio do idioma nativo, “porque andam pelas aldeias com
pregações e cantigas de Nosso Senhor pela língua, que muito alvoraça a todos, do que
largamente se escreverá por outra via”4
Estes pequenos missionários foram o modelo perfeito do cristão puro. O menino
português inserido na empresa colonizatória servia à missão jesuítica como um exemplar
imaculado do notável e primoroso homem católico. Exibindo a todo o tempo o esmero e o
primor de seus meninos, os padres despertavam o interesse dos selvagens pelos valores
ocidentais, ao passo que buscavam expor a vergonha e fazer brotar a culpa cristã nos colonos
lusitanos, indivíduos de modos religiosos subversivos, por viverem já há muitos anos distantes
da metrópole e refratários ao ideário romano original. Os pequenos silvícolas, acostumados a

2
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. São Paulo: Global Editora, 2011, p. 219.
3
Ibidem.
4
P. Manuel da Nóbrega, carta 48, 1552, apud LEITE, S. I. Serafim. Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil (1538- 300
1553). Volume I. Comissão do IV centenário da cidade de São Paulo. São Paulo: Serviço de Comemorações
Culturais, 1954, p. 350.
se agruparem com outros da mesma idade, inseriam-se no processo de aprendizagem quando
passavam a categoria de Kunumy, “tendo uma idade variável entre oito e quinze anos.”5 É
sabido que em Portugal: “a confraria da corte deveria tomar para si o sustento de todas as
crianças de até sete anos (...), ficando depois dessa idade a cargo do juízo de órfãos.”6 Notamos
que, coincidentemente, ou não, os pequenos que chegavam de Lisboa estavam, na maioria das
vezes, na mesma faixa etária dos meninos índios e mestiços, facilitando, e muito, a interação
entre todas as crianças.
A estratégia de fazer uso de órfãos degredados foi utilizada por Nóbrega e sua
equipe na primeira década de missão nos Brasis, quando os governos de Tomé de Souza e de
Duarte da Costa caracterizavam-se por considerável negligência quanto aos costumes tidos
como contra natura, e quando os jesuítas ainda acreditavam na estratégia da evangelização pelo
amor, nutrida de certa paciência e tolerância. Após frequentes decepções no trato com indígenas
inconstantes e renitentes, e após inúmeros conflitos com os colonos portugueses residentes, a
tática do amor deu lugar a coerção agressiva. A partir de 1558, surge um novo “plano
civilizador”, engendrado por Nóbrega e respaldado pelo novo Governador Geral Mem de Sá
(1500-1572), que empenhou-se para combater as práticas do gentio pela força. Assim, com as
perseguições bélicas, e com a nova estratégia de aldeamentos, a participação das crianças
“brancas” no processo evangelizador e civilizacional nos Brasis perdeu sua força.
Assim como os aldeamentos, os artificio da dramaturgia e da música, a
instrumentalização da infância também foi uma arma de conversão. Tal instrumentalização
contribuiu para sanar diversos percalços, assim como para ajudar a transpor ou até mesmo a
derrubar, algumas das barreiras que os padres encontraram pela frente. Estes órfãos lusitanos,
uma vez degredados para o litoral da Bahia, eram distribuídos entre as capitanias conforme suas
necessidades, e utilizados pelos padres como pequenos missionários, auxiliares indispensáveis
na lida com os nativos. A população desvalida, utilizada para fins de razão de Estado, através
do degredo, e as novas noções de infância da Época Moderna, contribuíram no processo de
cristianização, através das inovações metodológicas dos missionários. A transformação da
criança portuguesa em um exemplar perfeito do católico puro é uma construção inaciana, e uma
análise dessa política evangelizadora se torna assim inevitável. A Companhia de Jesus é um dos
mecanismos que compõe uma rede de redirecionamentos e reorganizações populacionais, logo,

5
FERNANDES, Florestan. Organização social dos Tupinambá. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1963, p.
134.
6
FRANCO, Renato. Pobreza e caridade leiga – as Santas Casas de Misericórdia na América portuguesa. Tese 301
(Doutorado em História Social) Universidade de São Paulo, 2011, p. 45.
os órfãos lisboetas em degredo devem ser pensados como um fenômeno da Era Moderna, mas
também como uma estratégia inaciana de evangelização.
A nova nação que surgia, era construída pelas mãos dos colonos que haviam
deixado sua terra natal para trás, em movimentos que poderiam ter sido voluntários ou não.
Uma vez do outro lado do Atlântico, pouco importava quem estava ali por vontade própria ou
banido, eram todos colonos: “o espadachim vadio, o homicida por paixão, o desprezador dos
bons costumes, o pecador renitente, o cristão novo, o criado fugido, o devedor perseguido pelo
meirinho, o clérigo egresso do convento, o jogador, o perjuro, o rufião ...”7 Na falta de material
humano disponível, nos primeiros anos de ocupação, qualquer um destes poderia ocupar cargo
político ou administrativo de considerável relevância, colocando de lado, por necessidade, a
forte tradição ibérica de hierarquização e exclusão, pois agora, sem a participação ativa dos
indivíduos considerados de qualidade inferior, as empresas ultramarinas se comprometeriam.
Aqueles de sangue impuro 8, por questões religiosas, raciais ou por defeito mecânico9, não
seriam mais imediatamente excluídos, pois na inédita realidade colonial dos primeiros anos,
qualquer participação seria bem vinda, quando prostitutas já velhas e doentes podiam se tornar
respeitadas senhoras casadas, índios rudes viriam a ser condecorados por feitos de guerra, e até
mesmo crianças de oito anos de idade poderiam se tornar agentes catequéticos indispensáveis
na propagação da Fé.
Os “pobres” precisavam ser úteis, e tê-los como força tarefa auxiliar na expansão
dos valores ocidentais era uma saída mais que conveniente, assim, os desvalidos também foram
inseridos no processo de conquista, ocupação e preservação de territórios, através de
banimentos dentro da Europa e também do exílio nos trópicos. Dentre estes grupos humanos
que aguardavam para agregar contingente de pronto, dependendo da demanda que surgisse em
cada um dos territórios ocupados, estavam as crianças órfãs portuguesas. Degredar crianças e
dar utilidade a elas foi uma manobra inserida nesta vasta conjuntura política e social, que

7
PIERONI, Geraldo. Os excluídos do reino. São Paulo: Editora Universidade de Brasília, 2000, p. 33.
8
Apesar de tentativas vãs, como a busca de marca saliente no formato do nariz, não era possível apontar os judeus
apenas pelo seu fenótipo, ou através de conhecimentos pseudocientíficos, como seria feito nos séculos XIX e XX.
Ao contrário do negro ou do mourisco, o cristão-novo precisava de um outro símbolo, um signo de apelo tão forte
quanto a cor da pele. Foi quando uma biologia ilusionista, mítica e fantasiosa elevou a herança sanguínea ao
patamar de documento jurídico, capaz de atestar a qualidade intelectual e moral dos seres humanos. A identificação
de sangue impuro no histórico familiar era suficiente para impedir o excluído de assumir cargos públicos ou até
mesmo de ingressar em universidades.
9
Durante o Antigo Regime a elite demonstrava total desprezo pela labuta braçal classificada como defeito
mecânico, atividade sempre antagônica aos ares nobilitantes. Essa repudia incluía atividades de agricultura,
manufatura, comércio, entre outras, e aqueles que ganhavam a vida através de atividades braçais eram tidos como 302
de sangue impuro e qualidade humana inferior. Tal julgamento só começou a ver sinais de reconsideração no
acender das luzes do século XVIII.
perpassava as questões meramente missionárias ou catequéticas. Tratava-se de utilizar a
população desvalida como elemento colonizador, situado dentro do jogo político dos impérios
ultramarinos. Crianças brancas, recolhidas nas ruas de Lisboa, e crianças índias, recolhidas nas
trilhas da mata atlântica, teriam seus destinos entrelaçados pelas mãos dos missionários jesuítas,
levando-se em consideração que “de todos os tipos de recolhimento, o que prevaleceu no Brasil
foi o ocorrido na Europa no fim do século XV, especialmente recomendado pelas autoridades
eclesiásticas e monárquicas para retirar os jovens europeus da perambulação.” 10
Sem o auxílio dos meninos, os padres muitas vezes eram recebidos com
desconfiança e animosidade nas aldeias que visitavam. Relata o missionário Vicente Rodrigues:
“os gentios com medo que tinham de nós pensando que lhes traríamos a morte, não nos
recebiam nem ousavam de nos dar do que tinham”11 No entanto, o carisma dos órfãos era muitas
vezes capaz de exercer grande influência nas relações entre jesuítas e índios. Como verdadeiros
anjos da guarda da caravana missionária, os meninos cantantes iam a frente da comitiva,
despertando compaixão nos selvagens, que na maioria das vezes, de muito bom grado traduziam
essa compaixão em hospitalidade. Mostrava gratidão por acolhimento, em uma carta, o mesmo
padre Vicente Rodrigues: “era penoso para quinze meninos que levávamos sem ter o que comer,
e quando anoitecia, quase sem esperar, vinham pelo caminho nos receber, chamavam-nos para
suas casas para descansar, e nos acomodavam com grandessíssimo amor” 12
Vestidos de branco e entoando melodias sublimes, os meninos passavam, sem
muito esforço, uma imagem de inocência, paz e amor. No momento em que chegavam às
aldeias, traziam certo alívio aos índios, que esperavam receber, a qualquer momento, a visita
agressiva dos europeus adultos, encontro que representava sentimentos opostos àqueles trazidos
pelas crianças. Manter os meninos nas primeiras linhas das comitivas era praticamente uma
garantia de ingresso no mundo dos selvagens: “ganharam grande crédito os meninos entre eles,
e agora importunam que lhes mandem lá e fazem-lhes caminhos tão largos, por montes muito

10
FAVACHO, André Marcio Picanço. O recolhimento dos meninos: por uma genealogia da ordem pedagógica
brasileira. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 2008, p. 28.
11
“los getiles con miedo que tenian de nós pensando que les traíamos la muerte no nos recebiam ni osavam de nós
dar de lo que tenían” (carta 55, 1552, apud LEITE, 1954, Vol I, p. 413).
12
“Era lástima de quince ninnos que levávamos sin tener qué comer, y quando nos anochecía quasi sin lo esperar
venían al caminho a nós recibir y llamarnos para sus casas a reposar y nos aposentavam con grandíssimo amor” 303
(Ir. Vicente Rodrigues, carta 55, 1552, apud LEITE, 1954, Vol. I, pp. 413-414).
ásperos, como a estrada de Coimbra.”13 O carisma dos pequenos missionários inseridos nas
aldeias era um grande trunfo para os jesuítas.
A competência nas suas pregações e a segurança de suas convicções faziam destas
crianças desvalidas verdadeiros membros honorários da Companhia de Jesus: “estando assim
todos juntos, lhes pregou um menino destro nisso, declarando-lhes o mistério da cruz, na qual
pregação deu nosso senhor fervor e lágrimas ao principal, de maneira que se pôs a chorar e deu
um seu filho aos padres”.14 Os missionários tendiam a recorrer aos artifícios que mais
facilmente penetravam o universo dos índios para assim cristianizar seus valores, e “observando
seus costumes, logo perceberam o forte traço lúdico da sua cultura e talvez por essa razão
começaram a investir em atividades centradas principalmente na música, na dança, na
“teatralidade” da vida tribal”.15 Os instrumentos musicais confeccionados pelos índios, tinham
como matéria prima os poucos elementos disponíveis. Era comum encontrarmos instrumentos
trabalhados em madeira, mas também aqueles desenvolvidos a partir de pedaços de ossos,
retirados dos corpos de seus contrários, devorados em cerimonias antropofágicas: “na crônica
do padre Bettendorf, índios tapuias roubam um osso do cadáver do padre Bernardo Gomes para
fazer uma gaita.” Pode-se imaginar a indignação de Pedro Fernandes Sardinha, o primeiro bispo
do Brasil, ao ver as crianças portuguesas, vestidas de branco, adentrando a igreja, misturadas
aos índios nus, com alguns destes instrumentos bizarros na boca, a soprá-los em melodias
sacras.
O surgimento da escola, ou colégio, no formato moderno, foi responsável pela
segregação das crianças, que agora deveriam habitar um ambiente isolado, que as preparasse
para ingressar na vida adulta. A educação não se daria mais pelo exemplo direto e cotidiano,
mas sim em processos formais, ocorridos em salas de aula, e coordenados por um único adulto,
responsável conjuntamente pelo êxito de diversos aprendizes. Os meninos desvalidos lusitanos,
ao atravessarem o Atlântico, continuavam sendo seguidores de exemplo, sem abandonar o
aprendizado com os padres nos Colégios, exatamente como acontecia em Portugal. No Brasil,
porém, adquiriam certo protagonismo, ao se tornarem também modelos de beatitude cristã, ao
se tornarem exemplos a serem seguidos pelos nativos e colonos, uma situação híbrida e muito
particular. A ideia central era formar jesuítas bilíngues que aprendessem o tupi na infância, em
contato direto com outras crianças, e na década de 80 do século XVI, encontramos alguns destes

13
P. Vicente Rodrigues, carta 12, 1552, apud PEIXOTO, Afrânio. Cartas avulsas (1550 – 1568). Rio de Janeiro:
Officina Industrial Graphica, 1931, p. 118.
14P. Vicente Rodrigues, carta 12, 1552, apud PEIXOTO, 1931, p. 119. 304
15
BITTAR, Marisa; JÚNIOR, Amarílio Ferreira. Pluralidade linguística, escola de bê-a-bá e teatro jesuítico no
Brasil do século XVI. Educação & Sociedade, v. 25, n. 86, 2004, p. 185.
órfãos, já na fase adulta, atuando como “línguas”, sendo frequentemente requisitados para
pregações, e em alguns casos, ocupando postos elevados na hierarquia da Ordem de Loyola. 16
Ao buscarmos comparar os processos catequéticos nos diferentes territórios
subjugados pelos impérios ibéricos, entendemos que o artifício de instrumentalização infantil
era muito mais caro aos missionários atuantes nos Brasis, na década de 1550. O que não
significa que casos também não tenham ocorrido em outros territórios subjugados, ou mesmo
na Europa, em diferentes momentos, porém em volume menos expressivo. Quanto mais vertical
e constante fosse a estrutura da sociedade invadida, menos necessidade de instrumentalizar a
infância teriam os invasores, ao longo do processo civilizacional em progresso, no entanto
sabemos que tal prática não foi facilmente dispensada. Na seara hispânica do Novo Mundo, por
exemplo, havia uma “política de valorizar as elites indígenas, de estabelecer um ensino superior
para os mestiços e de formar nos habitantes uma elite de formação, no Brasil Colonial não
houve nem cátedras, nem um prelo de impressão.” 17 Os ameríndios nos Brasis não eram regidos
por um governo comum a muitas aldeias, pois cada uma delas era administrada pelo seu
principal, que não se submetia a uma figura de autoridade superior, emanadora de um poder
centralizado. Na falta de uma estrutura política de pronta identificação, na ausência de líderes,
que uma vez convertidos, converteriam eles mesmos seus súditos, os evangelizadores nos
Brasis precisavam entrar no universo ameríndio pelas janelas abertas, mirando os alvos mais
fáceis, como era o caso das crianças.
Com grande pesar constatamos que as cartas jesuíticas, nosso corpo documental
majoritário, não nos permitem contar a trajetória individual destes pequenos evangelizadores,
que atuaram como precoces mediadores religiosos e culturais, depois de bravamente
atravessarem o atlântico. Porém, valendo-se das pesquisas de certos historiadores, em arquivos
europeus da Companhia de Jesus, podemos chegar a alguns nomes de meninos órfãos
portugueses, que crescendo em degredo nos Brasis, desenvolveram as qualidades necessárias
para assumirem, depois de adultos, funções importantes em campo missionário luso americano,
exatamente como fora planejado originalmente. Em 13 de setembro de 1564, o padre Antônio
Blasquez escreve para o padre Diego Mirón, em Lisboa, que esteve envolvido diretamente no
envio dos meninos: “são estes dos órfãos que vossa reverendíssima mandou a esta terra há 9 ou

16
CASTELNAU-L`ESTOILE, Charlottte de. Operários de uma vinha estéril. Os jesuítas e a conversão dos
índios no Brasil, 1580 – 1620. São Paulo: Edusc, 2006.
17
MAINKA, Peter Johann. Historiografia alemã sobre a Companhia de Jesus. Pesquisas recentes sobre os jesuítas 305
e a sua atuação nas Américas portuguesa e espanhola. Diálogos-Revista do Departamento de História e do
Programa de Pós-Graduação em História, v. 15, n. 1, 2011, p. 217.
10 anos, e saíram, pela bondade do Senhor, idôneos ministros da conversão das gentes.” 18 Neste
documento, Blasquez regozija da atuação de um Diácono e de um Subdiácono, ambos padres
da Companhia, frutos abençoados e colhidos dentre os jovens que vieram de Lisboa, para
auxiliarem no processo de catequese dos índios: “chama-se um deles Antônio Pina, e o outro
João Pereira. Este tem agora a função de ir pregar na Vila Velha, todos os domingos e festas,
aos escravos dos cristãos, e até os confessar quando suas necessidades demandam. O outro
reside na povoação de Santiago, encarregado daquela casa”. 19 Segundo o historiador Timothy
Coates, Antônio Pina e João Pereira aparecem em muitas outras cartas como jesuítas ordenados
e muito bem sucedidos.20
Serafim Leite publicou, no quarto volume de sua Monumenta Brasiliae, o catálogo
da província do Brasil do ano de 1568, onde os padres e Irmãos atuantes são listados e
classificados. Neste documento encontramos o nome de três eclesiásticos que vieram
degredados ainda meninos, e viveram sob a tutela da Ordem de Loyola, até o momento de
tornarem-se padres. Em Salvador, Simão Gonçalvez é citado como “sacerdote, escolar, de 28
anos, há 13 que entrou na Companhia no Brasil. Foi um dos meninos órfãos que aqui foram
enviados de Portugal. Estudou pouco latim. Sabe a língua dos índios. É professor de Noviços.” 21
No Rio de Janeiro, aparece Luis Valente, que agora com 30 anos, atuava oficialmente como
padre da Companhia desde os 21, também “estudou um pouco de latim. Sabe a língua. Foi dos
meninos órfãos.”22 O terceiro missionário catalogado é Manuel Viegas, sacerdote de 28 anos,
que atuava em São Paulo de Piratininga, tendo entrado na Companhia como Irmão aos 16 anos,
e este, “que foi com os órfãos”, também é louvado por ser um missionário língua.
O campo de missão aqui delimitado para análise foi o litoral da América portuguesa
entre 1549, ano da chegada dos padres, e 1558, ano que inaugura uma campanha secular

18
“son estos de los huérfanos que V. R. mandó a esta tierra avrá 9 ó 10 anos, y an salido por la bondad dei Senor
idóneos ministros de la conversión de las gentes”. (P. Antônio Blasquez, carta 07, 1564, apud, LEITE, Serafim.
Monumenta Brasiliae. Monumenta Historica Societatis Iesu (1563-1568). Volume IV. Coimbra, 1956, p. 76).
19
“llámasse uno dellos Antonio de Pina, el otro Joán Perera. Éste tiene aora cargo de hir a predicar a la Villa Vieja,
todos los domingos y fiestas, a los esclavos de los christianos, ultra de confessarlos quando sus necessidades lo
demandan. El otro reside en la población de Santiago, teniendo cargo de aquella casa”. (P. Antônio Blasquez, carta
07, 1564, apud, LEITE: 1956, Vol. IV, p. 77).
20
COATES, Timothy J. Convicts and orphans. Forced and state-sponsered colonizers in the portuguese empire,
1550-1755. California: Stanford University Press, 2001, p. 129.
21
“sacerdote, escholar, de 28 anos, a 13 que entró en la Companía en el Brasil. Fue de unos ninos huérfanos que
allá fueron imbiados de Por-togal. Studió poco latín. Sabe la lengua de los índios. Es Maestro de Novitios” (P.
Antônio Blasquez, carta 07, 1564, apud, LEITE: 1956, Vol. IV, p. 476).
22
"a estudiado hum poco de latín. Sabe la lengua. Fue de los ninos huéríanos”. (P. Antônio Blasquez, carta 07, 306
1564, apud, LEITE: 1956, Vol. IV, p. 481).
belicista, inserida em um novo plano de estratégias evangelizadoras. Dentro deste recorte
geográfico-cronológico, podemos afirmar, sem susto, que a instrumentalização de meninos
portugueses foi uma estratégia adotada pelos jesuítas, sendo esta, um dos muitos movimentos
inseridos no processo de acomodação da primeira geração de evangelizadores inacianos nos
Brasis. Sem embargo, podemos encontrar outros exemplos da relação dos padres com as
crianças, que também apresentam-se como um desdobramento da capacidade adaptativa desses
missionários jesuítas, seja em campo missionário, seja em movimentos evangelizadores de
natureza distinta.
Nos territórios tocados pelas pretensões universalistas romanas, a relação dos
padres com as crianças estava geralmente ligada a um projeto de poder politico, onde os jesuítas
se ocupavam de tutelar os filhos da elite local, garantindo assim participação ativa nas tomadas
de decisão. Outro caso muito comum era a procura por jovens nascidos nos campos de atuação
missionaria, dispostos a ordenarem-se padres, para que assim pudessem converter seus iguais,
fazendo uso de caminhos persuasivos particulares, sempre pregando no idioma local, como no
caso dos padres bilíngues em Gandia, na Espanha, que pregavam em árabe, por terem sido
mouriscos enquanto crianças, e recolhidos pela Ordem para educarem-se nos colégios
jesuítas,23 mais um exemplo da eterna e incansável busca por missionários línguas, dispostos a
entregarem suas vidas à Companhia.
A apropriação da orfandade desvalida para fins de evangelização é uma constante
nos territórios subjugados e também na península. De acordo com nossas pesquisas, mesmo
que o degredo para tal fim pareça uma especificidade brasílica da década de 50 do século XVI,
encontramos alguns poucos indícios de crianças órfãs enviadas também para a Índia, pelas mãos
do Padre Doménech, responsável pelo colégio dos meninos órfãos de Lisboa, e pelo envio
destes a Salvador. Uma passagem citada, em nota de rodapé, por Serafim Leite, revela que em
9 de março de 1551, nove meninos órfãos teriam sido enviados à Índia, conforme relato de
Domenech em carta enviada a Loyola. Além, tal trecho dá a entender inclusive, que a dupla de
meninos que inaugurou os degredos para os Brasis, nos primeiros dias de 1550, deveria ter sido,
originalmente enviada para Índia. Infelizmente esta carta de Domenech não foi publicada por
Serafim Leite. Segue o único trecho que disponibilizou o erudito jesuíta: “trabalhamos de criar
outras plantas, e são bem necessárias, porque depois enviei dois ao Brasil, os quais me diziam
que, pois o Senhor fora servido que eles não fossem à Índia, que ao menos os enviasse ao Brasil,
de onde folgavam mais de ir que à Índia, porque na Índia poderia ser que a cobiça que lá anda

307
23
PATUZZI, Silvia. Uma monarquia em um corpo universal. A identidade da Companhia de Jesus no Tempo de
Claudio Acquaviva. Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011, p. 101.
os enganasse.”24 Ainda, na carta de 27 de janeiro de 1550, onde é relatado o embarque dos
órfãos para salvador, Domenech afirma claramente, que a missão destes pequenos
evangelizadores não era apenas tratar dos gentios mas também de infiéis, o que confirma sua
intenção de utilizar os meninos não apenas na América portuguesa, mas também em outras
partes do ultramar, ou mesmo na própria Europa, confiante na inquebrantável resiliência de
seus pupilos.
Entendemos assim, que uma busca por casos semelhantes, em outros dos territórios
que integravam o Império português, é de vasta pertinência no campo de estudos sobre o
degredo de desvalidos, e sobre a instrumentalização infantil, ambos objetos inseridos nas
estratégias missionarias de acomodação, tema que insiste em se mostrar inesgotável.

Bibliografia

BITTAR, Marisa; JÚNIOR, Amarílio Ferreira. Pluralidade linguística, escola de bê-a-bá e


teatro jesuítico no Brasil do século XVI. Educação & Sociedade, v. 25, n. 86, 2004.

CASTELNAU-L`ESTOILE, Charlottte de. Operários de uma vinha estéril. Os jesuítas e a


conversão dos índios no Brasil, 1580 – 1620. São Paulo: Edusc, 2006.

COATES, Timothy J. Convicts and orphans. Forced and state-sponsered colonizers in the
portuguese empire, 1550-1755. California: Stanford University Press, 2001.

FAVACHO, André Marcio Picanço. O recolhimento dos meninos: por uma genealogia da
ordem pedagógica brasileira. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 2008.

FERNANDES, Florestan. Organização social dos Tupinambá. São Paulo: Difusão Europeia do
Livro, 1963.

FRANCO, Renato. Pobreza e caridade leiga – as Santas Casas de Misericórdia na América


portuguesa. Tese (Doutorado em História Social) Universidade de São Paulo, 2011.

308
24 P. Pedro Doménech, apud: LEITE: 1954, Vol. 1, p. 215.
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. São Paulo: Global Editora, 2011.

LEITE, S. I. Serafim. Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil (1538-1553). Volume I. Comissão
do IV centenário da cidade de São Paulo. São Paulo: Serviço de Comemorações Culturais,
1954.

LEITE, Serafim. Monumenta Brasiliae. Monumenta Historica Societatis Iesu (1563-1568).


Volume IV. Coimbra, 1956.

MAINKA, Peter Johann. Historiografia alemã sobre a Companhia de Jesus. Pesquisas recentes
sobre os jesuítas e a sua atuação nas Américas portuguesa e espanhola. Diálogos-Revista do
Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História, v. 15, n. 1, 2011

PATUZZI, Silvia. Uma monarquia em um corpo universal. A identidade da Companhia de


Jesus no Tempo de Claudio Acquaviva. Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, 2011.

PEIXOTO, Afrânio. Cartas avulsas (1550 – 1568). Rio de Janeiro: Officina Industrial Graphica,
1931.

PIERONI, Geraldo. Os excluídos do reino. São Paulo: Editora Universidade de Brasília, 2000.

309
PARTE V

POLÍTICA, SOCIABILIDADE, ESCRAVIDÃO E


LIBERDADE NO SÉCULO XIX: FONTES,
TEMAS E PERSPECTIVAS DE ESTUDOS.

HARMONIAS EM CONFLITO: MEMÓRIAS DA RIVALIDADE ENTRE AS


FILARMÔNICAS CENTENÁRIAS, CURICA E SABOEIRA, DE GOIANA-PE (1870-
1889).

Marcus Vinícius da Luz Rocha Sousa 1


Mestrando em História (UFRPE)
viniciusluz1112@gmail.com

GRAVANDO

O século XIX é bastante emblemático para o mundo e o Brasil, para o nordeste e


Pernambuco, e sim, para Goyanna. Esta, durante o império, foi, depois de Recife, a cidade mais
importante da província pernambucana. Sua região era repleta de engenhos de açúcar, o
comércio era forte, a imprensa atuante, sociedades artísticas animavam a vida cultural da
sociedade e sua população participou das principais revoluções e lutas em solo pernambucano.
Por ter sido uma região onde existiram muitos engenhos de açúcar, a mão de obra negra
escravra foi muto recorrente. Nas senzalas, o batuque emitia sons e sentimentos, ecoavam gritos
de experiências e resistência. A musicalidade africana fez a travessia pelo atlântico e chegou a
terras pernambucanas, imprimindo suas características nas bandas de música que surgem desde
os tempos coloniais nas fazendas e se intensificam durante o período oitocentista, o que
abordaremos mais á frente neste artigo.

1
310
Orientadora Prof.ª Dr.ª Maria Emília Vasconcelos dos Santos (UFRPE)
Escolhemos Goyanna como espaço, e a segunda metade do século XIX como recorte
temporal, assim como essa temática, pelos diversos motivos acima citados e por tantos outros
que surgiram ao longo desse texto. A participação de negros em bandas de música no século
XIX é um fator relevante para também pensarmos esta rivalidade, e um estudo que ainda
apresenta certa dificuldade a ser explorado pelos historiadores e musicólogos brasileiros, seja
pela escassez das fontes ou pela dificuldade em saber quem foram esses músicos negros.
Contudo, percebemos a presença destes na Curica, já na Saboeira não encontramos registros, o
que pressupomos que seja por ela está ligada ao Partido Liberal, fazendo parte da elite urbana.
Terra das Heroínas de Tejucupapo, dos Caboclinhos, de Nunes Machado, das
filarmônicas centenárias e rivais, das Irrmandades religiosas, dos engenhos, do Maestro Duda,
são alguns dos epítetos atribuídos a Goyanna. Esta cidade se configura na história de
Pernambuco como um polo econômico (importante produtora de cana-de-açúcar) e cultural.
Desde o período colonial Goyanna já se destacava, sendo sede por duas vezes da Capitania de
Itamaracá.
Podemos notar essa importância, por exemplo, quando o imperador D. Pedro II visita
no dia 06 de dezembro de 1859 a zona da mata norte pernambucana, onde se hospedou em um
sobrado e conheceu os principais pontos do município, encantando-se com as igrejas e atraindo
a visitação da população local e circunvizinha. Teve diversas honrarias, entre elas, uma
recepção da banda Curica.
A visitação do monarca á estas terras, pode ser comprovada no seu Diário de viagem e
também no Jornal Diário de Pernambuco, que noticiou no dia 10 de dezembro daquele mesmo
ano que a Guarda Nacional “esteve reunida com mais de 700 praças e boa música”. A
corporação musical Curica na época, foi cooptada pelo Estado a ser a banda de música do
batalhão, o que marcou profundamente a cultura do povo goianense.
Vale lembrar que a Guarda Nacional foi criada pela lei de 18 de agosto de 1831, e em
1850 quando foireorganizada por decreto, as bandas de música foram oficialmente permitidas
e a partir de então se espalham pelo Brasil, o que se torna comum cada regimento ter sua banda
(BINDER, 2006, p.100). As bandas de música militares no período oitocenticista, foram
fundamentais para a difusão de uma cultura musical nas cidades interioranas. Estas forneceram
elementos para a formação das bandas de música civis.
Como suporte teórico, utilizamos em um primeiro momento o conceito de memória
coletiva do socióligo francês, Maurice Halbwachs. O historiador tem como matéria prima a
memória, pois esta é um produto social. Ele busca construir por meio de um processo intelectual 311
uma representação seletiva do passado que é reconstruído e se insere num determinado
contexto. Sobre memória:

Maurice Halbwachs afirma que a lembrança é uma reconstrução do passado com o


auxílio de dados cedidos pelo presente e, além disso, preparadas por outras
recosntruções feitas em ocasiões anteriores e de onde a imagem de outrora se explanou
bem deformada. Segundo este autor, a lembrança pode, a partir da convivência em
sociedade, ou em grupos dentro de uma sociedade, ser construídas e simuladas. Esta
simulação acontece quando as lembranças entram em contato com as lembranças de
terceiros sobre assuntos em comum que por sua vez implicam na percepção do
passado, aumentando a quantidade de informações sobre o mesmo fato. Halbwachs
completa afirmando que não existe uma memória que seja uma “imaginação pura e
simples” ou representação histórica que não passe pelo sujeito referencial. A memória
pode apresentar-se de forma documentada ou ainda adquirida através da oralidade,
por meio de depoimentos, testemunhos, contos, entre outras modalidades.
(HALBWACHS apud VALES, 2010).

Tomando como ênfase os ressentimentos que as memórias produzem, analisamos como


os conflitos e rivalidades entre as filarmônicas em estudo, praticadas na segunda metade do
século XIX, se disseminaram em permanências no passar do tempo através da oralidade de
geração a geração, constituindo nos dias de hoje o que foi o imaginário de disputas musicais e
políticas na época oitocentista que nos propomos pesquisar.
Pierre Ansart, em seu artigo: “História e memória dos ressentimentos” (2004), relata
que segundo Sigmund Freud, o ressentimento é algo intrínseco ao indivíduo, para ele, os
homens criam os ressentintimentos para poderem viver em sociedade. Consideramos, pois, as
rivalidades, rancores, como elementos históricos, portanto “os ressentimentos em relação a
algum fato do passado faz deste um eco no futuro (VALES, 2010). Nosso objeto de estudo,
assim como os sujeitos envolvidos, se constitui num âmbito de disputas que por ora eram
motivadas por diversos fatores que compõem um imaginário de sociabilidades de uma época.
Tomando as implicações acima citadas, temos as bandas filarmônicas, Curica e
Saboeira, pertencentes a um determinado lugar social, político e cultural, com interesses que
concerne nas relações de poder que os conflitos propuseram. Este espaço de disputa política e
musical, só é possível quando analisamos os agentes envolvidos. Liberais de um lado,
conservadores do outro. Aristocracia rural de um lado, elite urbana do outro. Pretos e brancos
participando de uma associação musical, a serviço de partidos políticos.
Outra chave teórica que utilizamos para esta pesquisa é a de Estrutura de Sentimento de
Raymond Williams. Este autor parte de um sentimento sociocultural, vivido e sentido numa
determinada época, para chegarmos e entendermos essa Estrutura de Sentimento.
312
Para Williams, há uma estrutura de sentimento por detrás dos acontecimentos sociais.
Segundo o mesmo, os acontecimentos sociais não podem, simplesmente, serem minimizados a
um sentimento que ficou no passado. Tendo em vista isto, sentimos as reverberações de um
passado que chegam ao presente em constante transformação. Nas agressões físicas e verbais
entre as duas bandas musicais, compreendemos um contexto sociocultural tomando de partida
os sentimentos nele envolvidos.

Muitas vezes, quando essa estrutura de sentimento tiver sido absorvida, são as
conexões, as correspondências, e até mesmo as semelhanças de época, que mais
saltam á vista. O que era então uma estrutura vivida é agora uma estrutura registrada,
que pode ser examinada, identificada e até generalizada. [...] O que isso significa na
prática é a criação de novas convenções e de novas formas. (WILLIAMS apud
TEXEIRA, 1979, p. 18).

Entendemos, pois, não só um elo entre uma geração e uma época, mas, alguns
fenômenos socioculturais, cujas convenções se renovam. Abordamos, então, a estrutura de
sentimento diante da rivalidade e dos conflitos entre a Curica e Saboeira, buscando seus
desdobramentos e reflexos, com o intuito de se mostrar os sentimentos implícitos nos
acontecimentos de algo que se passou e que se renova.
Para o desenvolvimento dessa pesquisa utilizamos a abordagem qualitativa, que
permitiu a análise dos dados coletados. Quanto aos objetivos, optamos pela pesquisa
exploratória e explicativa, pois buscamos explorar fontes no intuito de evidenciarmos os
conflitos e rivalidades entre as filarmônicas, Curica e Saboeira, assim como as socaibilidades
da população goianese oitocentista.
Com relação aos procedimentos adotamos a pesquisa bibliográfica e pesquisa
documental. Na pesquisa bibliográfica e documental, buscamos por fontes como: jornais;
documentos; livros; artigos; dissertações, com o objetivo de identificarmos as percepções
diversas sobre o tema investigado, buscando referências teóricas com o intuito de obtermos
informações sobre o problema a respeito do qual se procura a resposta.
Em “História e Memória” (2003), Jacques Le Goff aponta que o
Documento/monumento, são os materiais da memória coletiva e da história. O que sobrevive
do passado não é uma cópia real do que existiu, mas, uma escolha efetuada “quer por aqueles
que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se
dedicam a ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores”. LE GOFF (2003, p. 525).
Segundo essa concepção, o monumento seria uma herança do passado, tendo o poder de 313
evocar este passado e se perpetuar no tempo. Já o documento, seria uma escolha do historiador,
que por sua vez, elabora-o de forma intencional para impor as sociedades futuras uma imagem
de si mesma. O que fizemos na nossa metodologia é o que o próprio Le Goff (2003) nos induz:
uma problematização dos nossos documentos, das nossas fontes, tendo em vista que estes
materiais são produzidos por homens de seu tempo, que falavam de determinado lugar social e
que estão cercados de interesses polítcos-econômico-sociais. Tanto o documento quanto o
historiador, são construções/invenções de seu tempo, portanto, não há neutralidade na História.
Com a ajuda do livro “Fontes históricas” (2005), organizado por Carla Bassanezi
Pinsky, entendemos a diversidade e a ampliação das fontes adotadas a partir do século XX no
campo historiográfico, o que nos ajudará a traçar diversas linhas interpretativas, para a nossa
pesquisa, assim, como releituras das fontes e dados coletados. Este livro, nos seus oito ensaios,
nos oferece uma discussão teórica sobre o método na pesquisa histórica.
Tal como Baudelaire, que definiu o flâneur como um observador da vida urbana e
através disso escreveu diversas obras descrevendo o cotidiano parisiense no século XIX, me
proponho a descrever o cotidiano goianense na segunda metade do século XIX, através de uma
viagem subjetiva. Como um legítimo flâneur, fui caminhando, observando e imaginando a vida
urbana goianense, mas ao invés de buscar asilo na multidão, busquei asilo na tranquilidade da
vida pacata da provinciana cidade das heroínas de tejucupapo.

NO RITMO DO COMPASSO: As bandas de música no período oitocentista.

A iniciação musical no Brasil nos remonta aos tempos coloniais, quando tinhamos as
“bandas de música das fazendas” e as chamadas “bandas de barbeiros”, apontado por José
Tinhorão (1972, p.71). A primeira era formada por escravos que disponibilizavam seus dons
musicais, animando a vida social nas fazendas, fora delas e nas festas religiosas, a segunda por
ex-escravos que concialavam o exercício da profissão com o de músico. Era motivo de prestígio
social, o dono de fazenda que possuísse sua própria banda de música, pois:

[...]os escravos animavam as festas, de forma que mais riquezas eram acumuladas pelo
organizador dos conjuntos musicais, devido à cobrança de determinada quantia às
irmandades e aos outros fazendeiros pelo fornecimento de música. Isso chamou a
atenção dos senhores de terra, fazendo com que todo fazendeiro rico desejasse ter o
seu próprio grupo musical. Assim, a formação de pequenas orquestras foi se tornando
um ato cada vez mais comum. Tais atividades variavam desde tocar numa simples
recepção a um visitante até em eventos de grande porte, como batizados, missas e 314
funerais. Possuir suas próprias bandas também lhes enriqueciam mais, pois ao levarem
seus grupos de músicos para as festas religiosas e demais eventos, era cobrada uma
quantia ás irmandades e aos outros fazendeiros pela música ofertada [...] (AREIAS,
2011: 245).

Seja por vocação ou resistência, ou ambas, os sons produzidos pelas charamellas 2,


sacabuxas3, marimbas4 e trombetas, ecoavam nos diversos espaços (festas civis e religiosas) a
cultura afro. A música soava como uma forma de consolo e resistência, de manterem suas raízes
de alguma forma viva. Também podia ser uma maneira de se livrarem do serviço braçal, mais
pesado, uma tática da qual se utilizavam que lhes permitiam estar no campo minado do inimigo,
mas, burlar as estratégias do sistema de ordem dominante da época (CERTEAU, 1998).
Os espaços de sociabilidades eram criados e praticados. A Igreja Católica juntamente
com os senhores de escravos, contribuíram para a vocação dos africanos trazidos ao Brasil
(AREIAS, 2011: 244). Nas festividades religiosas, ás Irmandades contratava esses grupos de
músicos, chamados “tocadores de charamelas”, e assim, estes animavam a vida cultural após as
missas nas portas das igrejas. Em Pernambuco:

Os conjuntos instrumentais dos charamelleyros é que nunca devem ter faltado às


festividades da Senhora do Rosário, como também, muito provavelmente, deviam
abrilhantar o dia da coroação dos reis e rainhas, angolas ou crioulos. As charamelas
constituíam especialidade dos negros, escravos ou não. Trata-se seguramente de uma
herança direta da cultura portuguesa, implantada no nordeste brasileiro já desde
remotas eras [...] (DINIZ, 1971, p. 28 apud SILVA, 2008, p. 38).

Constata-se, mais uma vez, a efetiva presença de negros e a importância dessa presença
nesses conjuntos musicais. Estes imprimiam a musicalidade africana na execução dos
instrumentos de sopro e percussão, promovendo uma mistura de ritmos e gêneros musicais,
contribuindo para o desenvolvimento e o enrequicemento da música brasileira. Os
charameleiros proveram elementos para a constituição das denominadas “bandas de
barbeiros”. Conforme AREIAS (2011, p. 245):

Os barbeiros tiveram grande importância no desenvolvimento da música popular, pois


contribuíram para a criação do maxixe, devido à mistura cultural dos brancos
(portugueses, em particular) e dos negros. Esses grupos também foram os grandes

2
Choromela ou charamela é um termo de origem francesa – chalumeus que se designa a um instrumento de sopro.
“O termo „choromelleyro‟ ou „charamelleyro‟ abrangia não só os tocadores de chararamela (instrumentos de
palha dupla, de sons estridentes do qual descendem o oboé e o fagote), mas também de outros instrumentos de
sopro” (KIEFER, 1977, p. 14-15 apud AREIAS, 2011, p. 243).
3
Instrumento de sopro de metal, precursor do trombone de vara (ANDRADE, 1989, 466). 315
4
Instrumento de percussão de origem africana, com traves ou arcos de madeira sobre os quais são apoiados
teclas de madeira e cabaça (ANDRADE, 1989, 308).
incentivadores e influenciadores do choro, samba e outros gêneros musicais
brasileiros. Além disso, contribuíram para a difusão de danças e gêneros musicais tais
como: a polka, a valse, a mazurka, a scottish, a gavotte, a quadrille, que chegavam ao
país pelo porto do Rio de Janeiro, imprimindo características nativas a esses gêneros.
Esse tipo de conjunto musical teve intensa participação nos estados da Bahia e do Rio
de Janeiro.

Como podemos observar a contribuição cultural africana no Brasil, se deu também,


através da arte musical propiciada pelas bandas de música, que em um primeiro momento, nos
tempos coloniais, denominavam-se “bandas de música das fazendas”, depois “bandas de
barbeiros”, chegando ao século XIX intituladas como “bandas dos Regimentos de Primeira
Linha”, “bandas militares”, até chegarem ás chamadas “bandas civis”, uma fornecendo
elementos formadores á outra. Em todas estas, a histografia musical constata a participação de
negros, ou, como alguns colocam, homens de cor, escravos ou livres. Ao retratar a tradição na
cidade de Goiana, Mário Santiago coloca que:

Tocarem os escravos sem nenhum conhecimento de teoria musical (mesmo em


funções “sacras”), sendo seus instrumentos: piston (ou equivalente); requinta,
clarinete, trombone, baixo, triângulo, pífano, tíbales, bandurra, pandeiro, gaita-de-
foles, ocarina, bombos (SANTIAGO, 1948, p. 6-8, apud, SILVA, 2008, p. 54).

As bandas de música foram importantes celeiros de músicos, fornecendo instrumentistas


para as grandes orquestras, comumente, foram celeiros de diversos gêneros musicais, como já
mencionado nesse texto, abrigou e contibuiu para o desenvolvimento da música brasileira. Em
fins do século XIX, vamos ter no Recife o frevo, que se constitui por meio de uma mistura de
gêneros musicais, e se apresenta como uma dança de rua e um produto musical da banda de
música com a efetiva participação de negros e também chamado “capoeiras”. Sobre o frevo:

Na capital pernambucana, no final do século XIX, o processo de civilização do


carnaval de rua, acontecia de forma mais criativas possíveis, tais como grupos usando
máscaras improvisadas, vestindo-se de fantasias, sacos de estopas e tecidos de baixo
custo, eram acompanhados de bandas de música, geralmente militar, contratada por
organizações civís. Estes agrupamentos musicais eram cortejados, entre tantos, por
grupos de malabaristas (capoeiristas) ou passistas como é atualmente chamados,
dando uma conotação de balizas, entretanto, gerando violentos conflitos entre os
grupos ou clubes rivais (SILVA, 2008, p. 21).

Os capoeiras atuavam como uma espécie de “exército”. Eram negros que por meio de
gingados e golpes de capoeira, usavam a dança como luta ou vice versa. Era comum em locais 316
onde existiam duas ou mais bandas de música haver rivalidade entre elas, uma rivalidade, por
sua vez, que levavam as bandas a terem seus “protetores”, os célebres capoeiras. Em terras
pernambucanas:

A existência de duas bandas rivais, na cidade do Recife, serviu para os grupos de


capoeiras começaram a demonstrar suas agilidades á frente das bandas do Quarto
(Banda do 4º Batalhão de Artilharia) e do Espanha (Banda da Guarda Nacional),
quando no exercício de suas funções, manobras militares e incursões na vida pública
da cidade, aproveitavam-se das músicas, os capoeiras, para elaborar complicadas
coreografias, que viriam a culminar no gênero de música e dança que passaria a
chamar-se de frevo (SILVA, 2008, p. 21).

Os capoeiras tiveram importante atuação nas bandas de música do século XIX em


Recife, e também na cidade de Goyanna (espaço que escolhemos para esta pesquisa), atuando
á frente das bandas Curica e Saboeira, ambas deste mesmo município, e que rivalivam-se ao
ponto de na execução de suas retretas, quando se encontravam, ocorria enfrentamentos,
agressões físicas e provocações.
As bandas de música proliferam-se durante o século XIX ganhando grande repercussão
e receptividade. Entre os vários fatores para essa proliferação, temos os novos métodos
industriais que possibilitaram a produção de instrumentos em larga escala e a acessibilidade dos
mesmos pelas diversas classes sociais (COSTA, 2010).
As Liras tornaram-se modernas, pois a instrumentação rudimentar foi substituída por
uma mais performática, como ocorrido de forma pioneira na França no reinado de Luís XIV,
quando Jean Baptiste Lully (1632-1687), no reinado de Luís XIV (1638-1715) substitui as
antigas charamellas pelos oboés e fagotes (BINDER, 2006, p. 8). Outro determinante para a
expansão das bandas foi à adaptação das válvulas aos instrumentos de metais, o que deixou os
instrumentos com uma maior projeção para ambientes abertos, além da facilidade de transportá-
los á tira colo, uma vez, que as bandas de música oitocentistas, sejam elas militares ou civis, se
apresentavam geralmente em ambientes abertos e em movimento, marchando pelas ruas das
cidades.
As bandas de música surgem na Europa e chegam ao Brasil no século XIX. A vinda da
Corte para os trópicos no ano de 1808 produziu marcas profundas na vida cultural, social,
política e mental da sociedade brasileira. Ainda que a iniciação musical do nosso Brasil remonte
aos tempos coloniais, quando temos as “bandas das fazendas”, as bandas de barbeiros e as
bandas dos regimentos de primeira linha, vai ser nos oitocentos que as práticas musicais vão
317
intensificar-se, popularizando-se entre os grandes centros urbanos e as cidades do interior.
“Viva a Curica, Morra a Saboeira, ou, vice-versa”: Rivalidade entre as bandas
centenárias goianenses.

Tendo como data de suas fundações, Curica (1848) e Saboeira (1849), ambas,
representaram a linha tênue entre o amor e ódio das pessoas que em Goyanna viviam e
alimentavam uma rivalidade, como quem torce por um time de futebol e torna-o sua grande
paixão. Os confrontos que as envolveram e essas disputas musicais serviram ao jogo de
interesses político-partidário da época em estudo. Com base nas palavras da Maria de Jesus,
entenderemos com mais detalhe esta rivalidade:

Vale ressaltar que a história das bandas musicais de Goiana se misturam com sua
história política e social a ponto de, durante os anos do Império, ocorrerem disputas
entre as rivais Curica e Saboeira, uma Liberal e a outra Conservadora, ou seja,
estiveram estritamente ligadas á sorte de seus partidos, como nos anos do governo
Dutra (1946-1951) quando a Curica apoiava a UDN, e a Saboeira o PSD comungando,
por conseguinte, de seus triunfos e fracassos, inclusive vindo a ocorrer mortes, pois
os capoeiras usavam desse contexto político para desenvolverem suas próprias lutas.
(SILVA, 2015. p. 68).

Pressupomos que esta rivalidade teve início por motivos políticos, já que a Curica era
do Partido Conservador e a Saboeira do Partido Liberal, e pelo viés social, pois a primeira
sempre foi apoiada pela aristocracia rural, com participação de negros em seu corpo musical,
enquanto a segunda pertencia a elite urbana. Ás vezes as brigas eram entre os componentes de
cada corporação, como observamos já no século XX com o maestro Diógenes Soares, da
Curica, e maestro da Saboeira Antônio Araújo. De acordo com Irmão (1970, p. 72-73):

Certa vez em 1928 ou 29, Diógenes Soares, compositor inspirado que era,
escreveu uma valsa – “Ao fugir do Luar”. Para criticar aquela página musical
o mestre Araújo da Saboeira fez uma outra valsa com o título – “O Luar
Fugiu”. O mestre Diógenes escreveu ainda a marcha – “Aprendiz de Música
Audaciosa”.

O episódio acima culminou em um incidente entre ambos, no dia 3 de janeiro de 1933,


no local conhecido como “Bomba de Arnaud” quando o mestre Antônio Araújo atinge o mestre
318
Diógenes “com uma pequena faca de ponta”, ocasionando-lhe profundo golpe ao nível do
estômago. O ocorrido foge do nosso recorte temporal, porém, ajuda-nos a compreender como
essa rivalidade iniciada no seculo XIX promoveu permanências. Por sua vez, em mais uma das
suas crônicas o “Jornal do Recife”, de 24 de agosto de 1871, noticiava o seguinte:

Por ocasião da procissão saída da Igreja da Soledade e quando a música levava


a guarda de honra para o quartel, os moleques entusiasmados com vivas á
“Curica”, morra a “Saboeira” e vice versa, travaram-se de razões e houve
cacete a valer, saindo alguns feridos. Foram recolhidos á cadeia dois ou três
dos chefes desordeiros para serem castigados, visto serem escravos e se
fizessem sempre assim como todos, bom seria por que só assim se acabava
com os abusos que existem (CALVACANTI apud SILVA, 2008, p.98).

Destacamos, também, que a Curica quando ia ás ruas levava seus protetores, os célebres
capoeiras e, em cada tocata, eles compareciam, defendo-a, brigando, morrendo se fosse
necessário (NASCIMENTO, 1996, p. 142). Geralmente, era comum nos lugares onde existiam
duas ou três bandas, os políticos se aproveitarem. Cada um procurava ficar do lado de uma
delas. Dessa maneira, é claro que tinham de surgir às disputas entre elas. E no primeiro encontro
ou na primeira retreta as bandas começavam as discussões apresentando as suas “peças de
harmonias”. Vários foram os conflitos entre as duas, relatados pela oralidade das gerações
passadas, por jornais como o Diário de Goyanna, O Mercantil, Diário de Pernambuco, e etc.
Assim como em livros memorialistas, como é o caso do IRMÃO (1970).
A seguir, utilizamos estrofes do poema de Josué Antônio Fonseca de Sena cujo título:
“Goiana no Cotidiano do Passado e do Presente em Sextilhas”, encontra-se em seu livro
“Goiana em Versos e Prosas” (2008, p. 493-500) que reproduz grande parte de toda redação
do nosso texto:

Goiana musical proclamada “A Milão Pernambucana”, Das centenárias e


decanas bandas Curica e Saboeira, Antes, dos desfiles e retretas em finais de
semana, Dos Coretos, concertos, saraus e modinhas fagueiras [...] Goiana,
outrora, dividida, partidária, briguenta e esquentada. Das afinadas Bandas
Musicais orgulhosas e rivais, De seguidores apaixonados de irada torcida
polarizada, Curica conservadora num lado, noutro, Saboeira dos liberais, Das
lutas, tabefes, gritos de guerra, insultos e pancadas, Acirramento dos tempos
avoengos [...] Goiana das Bandas e dos desafios “Quarto e Espanha”, Dos seus
partidários e das provocações afoitas e insultantes, Despertando neles a
rivalidade e sanha tamanha, Que de mãos nuas ou de cacetes, iam lutar em
instantes, Liderados pelos escolados, escolhidos por sua força e manha, Daí
correrias, quedas, gritos, prisões e feridos manifestantes.

319
Observamos neste poema, as produções de sentidos que a Curica e Saboeira deram aos
espaços da cidade de Goiana, e de como essa rivalidade desembocava em briguas e confrontos.
No poema acima, temos as expressões: “Quarto” e “Espanha”, que representavam os gritos de
guerra de cada banda que estavam associadas aos seus regimentos.
As filarmônicas, Curica e Saboeira, pertencem a um determinado lugar social, político
e cultural, com interesses que concerne nas relações de poder que os conflitos propuseram. Este
espaço de disputa política e musical, só é possível quando analisamos os agentes envolvidos.
Liberais de um lado, conservadores do outro. Aristocracia rural de um lado, elite urbana do
outro. Pretos e brancos participando de uma associação musical, a serviço de partidos políticos
e dos seus prórios interesses.

Arranjos finais

As bandas de música oitocentistas foram se tornando populares nas cidades, vilas,


povoados, sítios e fazendas. Nas cidades do interior, estas, tornaram-se parte integrante do
cotidiano da população, estão presentes nos momentos mais importantes da cidade, seja nas
festividades cívicas e/ou religiosas.
Durante o século XIX, Pernambuco viu surgir várias corporações musicais, entre as mais
antigas e ainda presentes no cenário musical do Estado temos a Sociedade Musical Curica, de
Goiana (1848), que reivindica o título de mais antiga do Brasil em atuação ininterrupta 5;
a Saboeira, também de Goiana (1849); a 22 de Novembro, de Paudalho (1852); a Santa Cecília,
de São Bento do Una (1854); a Sociedade Musical Pedra Preta, de Itambé (1870); a Banda de
Música da Polícia Militar de Pernambuco, do Recife (1873); a Euterpina Juvenil
Nazarena, conhecida como Capa-Bode, de Nazaré da Mata (1884); a Nova Euterpe
Caruaruense, de Caruaru (1896); a São Sebastião, de Belo Jardim (1887); a Isaías Lima, de
Triunfo (1890); a 15 de Novembro, de Gravatá; a Filarmônica Dinon Pires de Carvalho, de
Belém de São Francisco e a Comercial de Caruaru – 1900, (GASPAR, 2009).
As bandas proporcionam momentos de integração social, pelo encanto e prazer que a
melodia produz, e ao mesmo tempo, configuram-se como centros de disputas políticas e socias

5
Outras bandas de música além da Curica, reivindicam o título de mais antiga do Brasil, como é o caso da
filarmõnica Nossa Senhora da Conceição de Itabaiana/SE fundada em 1745. A atual Banda de música da Polícia
Militar do Estado do Piauí figura também como uma das mais antigas do Brasil, fundada em 1848. A Banda
Euterpe Cachoeirense, fundada em 25 de Outubro de 1856, no distrito de Cachoeira do Campo/MG, é considerada
pela Secretaria de Cultura do Estado de Minas Gerais como a banda civil mais antiga em trabalhos ininterruptos. 320
Não há, porém, documentos que provem qual foi a primeira banda brasileira. (Disponível em:
<http://www.campoecidade.com.br/a-historia-comeca-em-sergipe/>. Acesso em: 6 nov. 2018.
na comunidade, carregando em si um discurso simbólico construído a parir de uma realidade
social. A banda de música é uma instituição social e fenômeno cultural (AREIAS, 2011). Certa
vez, Heitor Villa Lobos disse que as bandas de interior são verdadeiros conservatórios, pois,
atuam como espaços de aprendizagem de músicos, formando profissionais para os grandes
centros urbanos, ou, apenas alimentando o cotidiano dos indivíduos na sociedade, criando
assim, espaços de sociabilidade.

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323
É PRECISO PROTEGER OS ALIADOS: CLIENTELISMO POLÍTICO E
RECRUTAMENTO MILITAR NA PROVÍNCIA DA PARAÍBA NA DÉCADA DE 18601.

Alysson Duarte Cabral


Mestrando (PPGH-UFPE)
Email: alyssonduarte21@gmail.com

O recrutamento militar para as forças armadas não se trata de algo exclusivo do período
imperial brasileiro, ao longo da história registra-se esse procedimento em territórios ou nações que
se encontravam em campanhas militares, inclusive, nas duas grandes guerras do século XX
(Primeira e Segunda Guerra Mundial). Entretanto, lançar mão do recrutamento nem sempre era fácil,
tendo em vista o fato de esse processo afetar as bases políticas e sociais vigentes onde foi posto em
prática.
Durante boa parte do século XIX, principalmente após o processo de independência em
1822, período em que o Brasil precisou tomar as rédeas de um Estado autônomo e forte, com a
necessidade de manter uma estabilidade política e territorial o país enfrentaria vários reveses, de
rebeliões internas a guerras externas. O clima de instabilidade e incertezas levaria o estamento
governamental a tomar decisões e baixar decretos que sacudiria às bases políticas imperiais nas
diversas esferas administrativas, da Corte até a mais distante Paróquia. Entre as mais variadas
determinações tomadas na capital do Império estavam àquelas ligadas ao recrutamento militar para
as forças armadas, que ganhavam mais fôlego na medida em que as campanhas militares tomavam
contornos decisivos. Nesse trabalho, analisamos a situação do recrutamento militar na Paraíba no
período da Guerra do Paraguai, ressaltando, no entanto, que o recrutamento para defender a pátria
estava previsto na Carta Magna de 1824, que destacava quem recrutar e como as autoridades
governamentais deveriam prosseguir nesse processo.
É bom lembrar que ao findar a década de 1820 o Império brasileiro estava envolvido na
disputa pela Cisplatina, balançando a instabilidade do seu território nos arredores do Cone Sul, tendo
seus últimos desdobramentos no ano de 1828 a Campanha deixaria um grande marco de fracasso e
inoperância sob o Exército imperial. As consequências da guerra nas fronteiras do Sul atingiriam
também, de forma negativa, o cenário político, inclusive com a abdicação do imperador em nome
do filho em 1831.
Os anos seguintes trouxeram ainda mais instabilidade. O trono vazio na Corte (em razão do
herdeiro ter apenas cinco anos de idade) e as incertezas ocasionadas pela falta de uma figura central

324
1
Esse trabalho é parte integrante da dissertação de mestrado em desenvolvimento no PPGH – UFPE, sob a
orientação do professor Dr°. Cristiano Luís Christillino e sobre fomento do CNPq.
no poder constituíram os principais motivos para as constantes inflamações das elites regionais por
toda parte do Império. Aos poucos as revoltas foram se somando uma a uma, ameaçando a
integridade do território, passados apenas cerca de 10 anos da proclamação da independência a
fragmentação era iminente e uma posição deveria ser tomada em medida de urgência. Para atender
os ensejos dessas elites a Regência que governava o Brasil adotou algumas medidas que favorecesse
os potentados locais, destaque para uma maior autonomia provincial e mais liberdades para os
chefes que compunham as esferas políticas nas paróquias.
Outra importante determinação tomada no período regencial foi à criação da Guarda
Nacional em agosto de 1831. Auxiliar o Exército nas rebeliões internas e nas guerras externas estava
entre as atribuições da Guarda, no entanto, a criação da instituição demonstra também o que estamos
defendendo: caindo em descrédito na Campanha da Cisplatina o Exército brasileiro precisaria de
uma segunda força que pudesse o auxiliar quando fosse preciso. Além disso, por não gozar de
prestígio e espaço dentro do cenário político da época, o Exército poderia oferecer perigo aos
governantes, caso se bandeasse para o lado dos revoltosos nas diversas rebeliões que se sucediam
do Norte ao Sul do Império. Criando a Guarda Nacional, ao qual seria gerida pelos chefes políticos
locais o alto escalão do Estado brasileiro instituía também uma milícia armada para defender seus
interesses e privilégios quando necessitassem.
Em meio a esse clima de instabilidade o recrutamento militar foi algo constante. A década
de 1840 traria a maioridade do imperador e uma estabilidade maior para o Império, todavia, as
rebeliões não cessariam por completo, voltando à tona com força nas províncias de Pernambuco e
Paraíba em fins da década. A Revolta Praieira (ou da Praia) como foi denominada, foi apaziguada
graças a habilidades e conchavos políticos empreendidos entre a elite regional das províncias que
se levantaram em armas e o Governo Central, mas os próximos anos reservariam campanhas
militares ainda mais longas e densas.
Ao longo da década de 1850 o Império brasileiro se embrenharia em conflitos que pareciam
não ter fim com as repúblicas platinas, ensanguentando as coxilhas, testando as diplomacias e a
força militar dos países vizinhos. As guerras no Cone Sul tinham como principais motivações as
instabilidades políticas entre os territórios que compunham o antigo Vice-Reino da Prata, onde logo
após a independência nas primeiras décadas do século XIX reinavam intrigas e discórdias, esses
impasses impactavam de forma direta nas relações diplomáticas e comerciais desses países com o
Brasil.
Logo nos primeiros anos da década seguinte o panorama na região chegou a contornos de
dramaticidade. Por muitos anos preenchendo um papel de Estado tampão (dividido entre argentinos 325
e brasileiros) na América do Sul, o Estado Oriental do Uruguai constituiu o principal estopim das
desavenças registradas naquele período. Motivados pela situação política e econômica na região os
desacordos chamaram a atenção do governante paraguaio que já há alguns anos almejava uma saída
para o mar, visando o escoamento da erva mate, principal riqueza da República.
Diante de tamanha instabilidade política na região, Solano López percebeu a oportunidade
para pôr em prática seu plano audacioso. A sanha conquistadora do governante levou-o a
amadurecer a idéia e ao adentrar a década de 1860 ele tomou posicionamentos mais concretos,
inclusive se opondo a invasão do Uruguai, onde quis arbitrar e interferir nos conflitos da região,
posição que foi mal vista e mal interpretada pelas duas potências locais (Brasil e Argentina). No ano
de 1864, López invade uma parte do território brasileiro, o lado Oeste da Província de Mato Grosso
(antiga província do Itatim, pertencente aos espanhóis até 1817), poucos dias depois se dá a invasão
de São Pedro do Rio Grande do Sul, onde através do rio Uruguai os paraguaios comandados pelo
Coronel Antônio Estigarríbia conseguem adentrar na Província por meio do Cabo de São Borja,
marchando logo em seguida sobre Itaqui e Uruguaiana. É o estopim para a Guerra do Paraguai
(1864-1870), último grande conflito bélico na região.
O cenário apresentado acima demonstra o quanto era necessário manter um Exército de
prontidão no Brasil, cessadas as revoltas internas era hora de provar a hegemonia política no Cone
Sul. Manter um Exército forte, equipado e preparado para entrar em campo a qualquer momento
não era fácil para um país recém independente como era o caso do Brasil, por isso ao estourar a
Campanha do Paraguai à força de primeira Linha imperial estava desfalcada e mal armada. Com o
passar dos meses e o prolongamento do conflito a situação complicou-se ainda mais, as constantes
baixas ocasionadas por ferimentos e doenças nos campos de batalhas preocuparam a classe política
do Império, a saída foi apelar para o Corpo de Voluntários da Pátria. Todavia, os ensejos para se
tornar voluntário logo perderiam força e o remédio foi uma intensificação sem precedentes no
recrutamento militar para a composição das forças de primeira Linha.
A constituição de 1824 trazia em seu capítulo 08° as prescrições em torno da força militar
imperial. Conforme ressaltava no art. 145: “Todos os brasileiros são obrigados a pegar em armas
para sustentar a independência e integridade do Império, e defendê-lo dos seus inimigos externos
ou internos”.2 Sendo assim, o recrutamento estava previsto na constituição e pôr o mesmo em prática
era uma obrigação das autoridades, cumpri-lo cabia a todos os brasileiros. Contudo, angariar braços
para suprir às baixas nas fileiras não era uma tarefa fácil para os representantes do Governo imperial,
o processo do recrutamento sofreu resistências em todo o Brasil.

326
2
BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil. Carta de Lei de 25 de março de 1824.
A aversão ao recrutamento militar, no entanto, não foi típica do período imperial, muito
menos dos anos da Guerra do Paraguai, essa era uma situação que vinha de longa data. O Brasil
herdava essa resistência do povo português, ao longo dos séculos por diversas vezes as forças
armadas lusas sofreram com as negativas do seu povo em fazer parte das mesmas. Analisando a
temática em Portugal do final do século XVIII, o pesquisador Fernando Dores Costa ressalta que:

No ano de 1796, a mobilização extraordinária de forças combatentes é urgente


e a tarefa de recrutá-las vai ser entregue ao intendente geral de Polícia. Ao fazer
essa atribuição, o próprio governo reconhece e consagra a falência do regime
de recrutamento baseado na rede de ordenanças. 3

Assim como a Guarda Nacional imperial as ordenanças portuguesas “constituíam um dos


suportes fundamentais da estruturação das relações de poder a nível local”. 4 No Brasil do século
XIX o recrutamento era atribuição do Corpo Polícial, todavia, quando as forças armadas
necessitavam de um maior efetivo a Guarda Nacional era solicitada para prestar auxílio. Portanto,
tratava-se de um esquema oposto ao que era registrado em Portugal no século anterior, considerando
que as redes de ordenanças referidas por Costa consistiam numa milícia armada com características
e atribuições similares a Guarda Nacional imperial. Em Portugal, por muitos anos, o recrutamento
coube as ordenanças, quando estas se mostraram ineficiente a Polícia assumiu a responsabilidade.
Ainda conforme Dores Costa:

O alvará de 24 de fevereiro de 1764 define regras gerais da acção de


recrutamento: destina as áreas de levantamento de forças de cada regimento,
condição básica de repartição equilibrada do ônus, e delimita as isenções,
tentando precaver a extensão abusiva de um reconhecimento da utilidade
económica e social de certas actividades. Esta é, uma das dimensões
fundamentais do problema do recrutamento. Há privilégios inerentes à
qualidade (ou seja, à preeminência social) dos indivíduos e que recaem também
sobre os seus subordinados. Outros têm a sua justificação na referida utilidade
econômica da actividade desenvolvida. Contudo, nem o recrutamento pode ser
avaliado pela lei, nem as ordenanças pelas tarefas que lhes estão conferidas. 5

Recrutar com bases em regras não foi uma exclusividade da segunda metade do século
XVIII. Isenções e privilégios com fundamentos sócio-econômicos atravessaram os tempos em
estados e nações onde vigoraram o processo, características que resplandeciam também nas

3
COSTA, Fernando Dores. Os problemas do recrutamento militar no final do século XVIII e as questões da
construção do Estado e da nação. Análise Social, vol, XXX (130), 1995, pp. 121-155. 327
4
Idem
5
Ibidem, p. 122.
atividades e obrigações das autoridades que compunham as milícias armadas. Analisando a
cidadania e o recrutamento militar no Brasil imperial Regina Helena de Faria destaca que:

Na letra de lei, o recrutamento, isto é, o alistamento forçado para as tropas


profissionais, seria o recurso utilizado quando o número dos alistados
voluntariamente não alcançasse a demanda decretada pelo Governo. Na prática,
como o serviço militar no Exército e na Marinha era repudiado e temido, o
recrutamento era a forma corriqueira de suprir de homens essas duas forças
armadas, sendo executado de maneira arbitrária, penalizando os pobres livres e
libertos. 6

Os limites e as garantias de cidadania concedida pela Constituição de 1824 encontram-se no


Título VIII dessa Carta, que trata “Das Disposições Gerais e Garantias dos Direitos Civis e Políticos
dos Cidadãos Brasileiros”. O Art. 179 ressalta trinta e cinco disposições, visando garantir a
inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, tendo por base a liberdade, a
segurança individual e a propriedade. Trata ainda de questões ligadas a liberdade de pensamento e
de credo, da residência ser o asilo inviolável do cidadão, do direito de ninguém poder ser preso sem
culpa formada, exceto em flagrante delito. 7 Todavia, a alínea 10 desse artigo deixa brechas para as
arbitrariedades do recrutamento militar. A mesma preceitua que:

O que fica disposto acerca da prisão antes da culpa formada não compreende as
Ordenanças Militares, estabelecidas como necessárias à disciplina e
recrutamento do Exército, nem os casos que não são puramente criminais, e em
que a lei determina todavia a prisão de alguma pessoa, por desobedecer aos
mandados da justiça, ou não cumprir alguma obrigação dentro de determinado
prazo. 8

As prisões para as forças armadas foram uma constante nos anos de efetivas campanhas no
Império, fossem elas internas ou externas. Durante a década de 1860 esse processo alcançou altos
índices, devido a Campanha do Paraguai, como supracitado. Conforme as determinações das
Instruções de 10 de julho de 1822, que regulamentavam o alistamento nas tropas regulares no Brasil
estavam sujeitos à prestação do serviço militar todos os homens livres e solteiros com idade entre
18 e 35 anos. O processo do recrutamento deveria ser realizado “sem detrimento das Artes, e
Navegação, Commercio, e Agricultura, fontes da prosperidade publica”, devendo compreender

6
FARIA, Regina Helena Martins de. Cidadania e recrutamento militar no Brasil império. XXIX Simpósio de
História Nacional, contra os preconceitos: História e Democracia, p. 06. 328
7
BRASIL. Constituição de 1824. Art. 179.
8
BRASIL. Constituição de 1824. Art. 179, alínea 10.
apenas os “indivíduos, que por nenhuma publica ocupação, ou legal industria, viveiros de criminosa
occiosidade, só lhes servem de impedimento”.9
É importante ressaltar, que embora as Instruções determinassem que todos os homens livres
e casados, com idade entre 18 e 35 anos, estivessem aptos ao serviço nas forças armadas, elas
também resguardavam, em alguns pontos, as estruturas familiares, assim como a produção,
protegendo o universo do trabalho livre. Do ponto de vista da estrutura familiar ficavam isentos os
filhos únicos de viúvas, desde que fossem encarregados da subsistência das mesmas; os irmãos mais
velhos de órfãos, desde que fossem os responsáveis por sua criação, educação e subsistência; os
filhos únicos de lavradores e, no caso destes ter mais filhos, eles tinham o direito de escolher um
para auxiliá-lo na agricultura, o qual ficava isento do recrutamento; e os homens casados de
comportamento condizente com sua situação.10
No que diz respeito aos níveis de estruturas de produção e economia, nas Instruções
encontram-se isentos os feitores e administradores de fazendas com mais de seis escravos,
pescadores, marinheiros, canteiros, grumetes, carapinas, caixeiros das casas de comércio – grosso
trato, três indivíduos; de segunda ordem, dois e nas de pequena ordem, um – arraes efetivos de
embarcações que conduziam mantimentos e outros gêneros e para concluir, estudantes aplicados em
seus estudos.11
Ao longo de todo o século XIX encontramos nos periódicos da Paraíba pedidos dos
familiares, acompanhados dos despachos do Governo Provincial. Esses contêm em seu teor aspectos
ligados ao recrutamento militar nos diversos recantos do território paraibano, a exemplo, de pedidos
de dispensas por variados motivos, uns atendidos pelo Estado, outros não. Nos anos da Guerra do
Paraguai essas solicitações aumentavam, o risco iminente de serem enviados para o front no Cone
Sul reforçavam os pedidos enviados aos representantes do Governo. Os motivos alegados para esses
são variados, desde ser pai de família, filho único, responsável pela segurança alimentar da casa, ou
mesmo possuir isenções do recrutamento.
Ficar isento do serviço militar no Brasil durante a Campanha do Paraguai era um privilégio
para poucos. Todavia, na Paraíba, naquele mesmo período, as famílias, correligionários, amigos e
membros dos potentados políticos locais eram detentores de vários privilégios, entre eles, ficar
imune ao recrutamento. Essas imunidades eram adquiridas por meio de alianças e redes entre a elite
local e os representantes do Governo Central na Província, essa mesma elite também costurou
conchavos para dificultar esse processo, o principal deles constituía-se na subida de seus membros

9
BRASIL. Ministério da Guerra. Instrução de 10 de julho de 1822. 329
10
BRASIL. Ministério da Guerra. Instrução de 10 de julho de 1822.
11
BRASIL. Ministério da Guerra. Instrução de 10 de julho de 1822.
para preenchimento de cargos burocráticos, desde inspetores de quarteirão a Presidente da
Província, passando pelos Chefes de Polícia e Comandantes Superiores da Guarda Nacional.
Em outubro de 1865, o periódico, O Publicador, trazia o expediente do Governo Provincial
da Paraíba referente ao dia 18 daquele mês. Em seu ofício, o presidente Felizardo Toscano de Brito
se dirigia ao Chefe de Polícia com o seguinte teor:

Dando sciencia a V. S. de que nesta data mande pôr em liberdade o recruta de


nome Joaquim Pedro de Mello, a quem se refere o seu officio n° 1060, de 11 do
corrente, remettido pelo delegado do termo do Ingá, por ser casado com filhos
e viver maritalmente, tenho a recommendar a V. S. que faça sentir ao
subdelegado do Umbuseiro que deve cohibir-se de recrutar pessoas que se
acharem em taes circumstancias, processando aquelles que porventura tenhão
commettido algum crime, pois não é o recrutamento meio legal de punição dos
criminosos. 12

De acordo com o Presidente, no termo de Umbuzeiro, Agreste da Província, o subdelegado


estava processando os criminosos com o recrutamento para o serviço militar, prática que não era
recomendada em lei. Imagino que o representante do Estado assumia essa posição sob influência
dos potentados, por certo, o amputado não estava sob proteção clientelística desses, por sua vez, os
chefes políticos locais intermediava para que o criminoso seguisse para o Exército em tempos de
Guerra.
No mesmo expediente, Toscano de Brito ressalta ao Chefe de Polícia:

Communico a V. S. para sua intelligencia e fins convenientes, que nesta data


expeço ordem para ser transferido do quartel do destacamento da guarda
nacional para a cadeia desta capital o individuo de nome Paulino Marcelino de
Oliveira, que tendo sido preso no termo de Independencia para o recrutamento,
deve para ali regressar afim de ser processado pelo respectivo delegado por
crime de espancamento praticado na pessoa de um soldado do destacamento
daquelle lugar. 13

Também podemos notar na fala do Presidente, que tanto no caso de Umbuzeiro como no que
diz respeito a Paulino Marcelino de oliveira na vila de Independencia, a preocupação era a mesma:
preservar os criminosos em prisões da Província. Ser recrutado para o serviço militar no Império
brasileiro a partir de 1865 significava envio quase certo para o front no Paraguai, porém, na Paraíba,
a elite local se movimentou para barrar esse processo, os casos apresentados acima demonstram esse
fato.

330
12
Hemeroteca Digital. O Publicador. Parahyba do Norte, 18 de outubro de 1865.
13
Hemeroteca Digital. O Publicador. Parahyba do Norte, 18 de outubro de 1865.
Em fevereiro de 1866, O Publicador trazia em sua coluna de noticiários um fato acontecido
no termo do Ingá. Vejamos:

O Sr. José de Brito Jurema em uma justificação, em que juraram somente


vervelhos, incluidos aquelles aos quaes se attribuia haverem comprado a
soltura, e despensa do recrutamento, e com um abaixo assignado de pessoas
grados do mesmo partido, em número de 15, destruio cabalmente tudo quanto
contra sua reputação tem dito o celebre correspondente do Pilar para o Jornal
da Parahyba. Apesar dos meios, de todas as especies, empregados, como comsta
da mesma justificação, para obrigar aquelles indivíduos o confirmar o que a
respeito d’elle disse o correspondente, nada poderam obter os inimigos políticos
do Sr. Jurema. Taes são os meios dignos, e honestos, empregados para
disconsiderar a situação, e as auctoridades, assim como os homens honestos. 14

Leal aos ditames adotados pelo Governo da Província o periódico saía em defesa de Jurema,
ao mesmo tempo em que atacava o Jornal da Parahyba, ferrenho adversário na imprensa paraibana.
Se o senhor Jurema realmente comprou a dispensa do recrutamento (o que era bastante comum na
época) o Publicador tratou de abafar a situação para não causar a discórdia da população da
Província com os governantes, desmentindo não só o jornal adversário, como também os inimigos
políticos daqueles que comandavam a Paraíba.
Esse não foi o único caso de discórdia que encontramos envolvendo os dois jornais da
Província. Em abril de 1867, O Publicador atacava novamente o Jornal da Parahyba e o teor da
investida outra vez seria o recrutamento militar na Província. Conforme o periódico governista:

O “Jornal da Parahyba”, por mais que reina os materiaes á sua disposição, só


confirma as banalidades de que se serve contra o governo do Exm. Sr. Dr.
Americo, e contra o partido liberal que o apoiou, e sustenta, a bôa situação de
ambos, a justiça, a moralidade, e prudência com que se portarão S. Exc. o
referido partido. Quanto as parcialidades do recrutamento e do contingente de
guerra basta ver, que S. Exc. suspendeu os capitães Francisco Luiz Nogueira de
Moraes, e João Cavalcante Tavares de Mello, submettendo-os a conselho de
disciplina, por opporem embaraços as ordens do governo sobre a remessa do
contingente de guerra, para se avaliar da sem razão do “Jornal da Parahyba”. S.
Exc. ao contrário, do que diz este jornal, não só ordenou as autoridades policiaes
que deixassem de recrutar nos batalhões que tinham completado seus
contingentes, como que por todos os meios a seu alcance enviou auxilios aos
respectivos commandantes para a captura dos designados. S. Exc. teve tantas
attenções para com os batalhões que souberão comprehender seus deveres e se
portaram com patriotismo, que como viram todos, dispensou do aquartelamento
o 1° da Capital, que por sem duvida é digno dos maiores elogios. E onde está
pois a parcialidade do Exm. Sr. Dr. Americo? O recrutamento foi e é feito com
todo escrupulo e o proprio “Jornal da Parahyba”, se não fôra caprichoso e
desconhecido, o confessaria. O exemplo citado do recruta Manuel de Oliveira
do Nascimento é a melhor prova da falta de motivos para as accusações desse
jornal contra o Exm. Sr. Dr. Americo. Não foi provado que Nascimento era
331
14
Hemeroteca Digital. O Publicador. Parahyba do Norte, 27 de fevereiro de 1866.
casado e vivia maritalmente com sua mulher, porque o vigario nada podendo
certificar, deu um attestado, e bem sabem todos que casamento se prova com
certidão do livro de assento das freguezias. No entanto nunca appareceu a
mulher de Nascimento, reclamando-o, e não só o subdelegado, que o recrutou,
como outras pessoas, accusão Nascimento de um famoso ladrão de cavalos. 15

Governava a Província naquele período o paulista Américo Brasiliense de Almeida Melo,


membro do Partido Liberal, ele fazia parte da ala de políticos imperiais que defendiam uma
aproximação cordial entre liberais e conservadores. O Jornal da Parahyba ao denunciar a
parcialidade do Presidente diante do recrutamento aponta uma situação que foi corriqueira na
Paraíba ao longo dos anos da Guerra do Paraguai, o ataque ao Dr. Américo nos leva a imaginar que
partiu de algum potentado político local insatisfeito com os rumos que a política tomava na
Província.
Quanto ao caso do recruta Manoel de Oliveira do Nascimento, que tentou em vão se livrar
do fantasma do recrutamento nos mostra mais uma vez como as eleições estavam imbricadas de
interesses, onde as redes políticas locais se movimentavam para defender seus correligionários.
Nascimento não teve a mesma sorte que muitos paraibanos tiveram naquele período, e o fato dele
não conseguir se livrar das mãos dos recrutadores demonstra que ele estava do lado oposicionista
dos representantes do Governo Central na Paraíba. As rivalidades da época das eleições
resplandeciam em todos os setores no cotidiano do cidadão paraibano, no momento do recrutamento
não era diferente.
No pleito eleitoral de 1864 ocorreram motins na freguesia de Cabaceiras, Cariri da Província.
Em expediente de 15 de setembro daquele ano o presidente Sinval Odorico de Moura dirige-se ao
Juiz de Paz da referida freguesia:

De posse de seu officio de 8 do corrente, em que Vme. me êxpoz as ocourrencias


que ahi se derão no pleito eleitoral, e motivarão a sua retirada e de dous
membros da mesa parochial por vme. organisada, a qual em informa, por um
dos juizes de paz da freguezia de Natuba, tenho em resposta a dizer-lhe que trato
de averiguar os factos constantes do seu dito officio para resolver a respeito o
que for de lei. 16

Infringir a ordem e a lei em nome dos interesses locais constituiu algo comum ao longo de
todo o período imperial, não foi típico de Cabaceiras e muito menos do interior da Paraíba. Em todos
os seus ditames e posicionamentos os representantes do governo contaram com o apoio da imprensa,
nesse sentido, na Paraíba, O Publicador foi um grande sustentáculo, defendendo e se portando do

332
15
Hemeroteca Digital. O Publicador. Parahyba do Norte, abril de 1867, n° 1383.
16
Hemeroteca Digital. O Publicador. Parahyba do Norte, 19 de setembro de 1864.
lado legalista. Dessa forma, estabelecia-se uma estratégia em detratar os periódicos oposicionistas,
caso do Jornal da Parahyba, citado nos exemplos acima.
Em um balanço crítico sobre a historiografia da imprensa periódica nas primeiras décadas
do século XIX, o professor Marco Morel destaca que:

Para um melhor dimensionamento do estudo da imprensa na primeira metade


do século XIX é instigante compreendê-la como um dos mecanismos que
transcendiam a palavra impressa, como: pertencimento às sociabilidades
(institucionalizadas ou não), lutas eleitorais e parlamentares, exercício de
coerção governamental, movimentações nas ruas, mobilização de expressivos
contingentes da população, recursos à luta armada (através de motins, rebeliões,
etc.) e, sobretudo, formas de transmissão oral e manuscrita tão marcantes nas
sociedades daquela época. A compreensão da imprensa do início dos oitocentos
sob essa ótica indica, portanto, um circuito no qual a palavra impressa estava
inserida e não uma espécie de papel sagrado ou exclusivamente ‘elitista’, já que
seus conteúdos podiam relacionar-se de forma dinâmica com a sociedade,
apesar dos diferentes públicos a que cada periódico podia pretender alcançar, o
que se verifica por certa variedade de linguagem, estilo e preço. 17

Assim como ocorreu na época da Independência, a imprensa exerceu um papel fundamental


na campanha para a conciliação da política imperial imprimida após 1853 pelo Marquês de Paraná.
O mesmo, podemos afirmar no que consiste aos apelos e pedidos de voluntários da pátria nos anos
de baixas no Exército imperial nos campos de batalhas paraguaios, onde a imprensa a todo momento
instigou o cidadão brasileiro ao alistamento militar. Quando os apelos não surtiam o efeito esperado
a solução era apoiar os representantes do governo no recrutamento forçado, encobrindo os aliados
políticos e correligionários de quem estava no poder e atormentando o cotidiano dos adversários.
Nos tempos de pleitos eleitorais a situação não era diferente, os periódicos impressos
assumiam seu papel de principal veículo de informação de massa, atingindo vilas e povoados. Como
todos não eram alfabetizados as informações dos jornais circulavam de boca a boca, é bem verdade,
que a velocidade do conhecimento das mesmas não era grande, entretanto, elas chegavam a todos
aqueles que almejavam ter conhecimento sobre as atitudes e os ditames tomados pelo Estado. É
nessa perspectiva, que se engaja os posicionamentos dos periódicos, uns apoiando o Governo, outros
o rebatendo, mas todos portando uma determinada posição.
Em novembro de 1866, o jornal O Publicador trazia um apelo do Governo Provincial. Dessa
vez o mesmo faz referência a bravura do soldado paraguaio e as dificuldades enfrentadas pelo
Exército na Guerra:

333
17
MOREL. Marco. Independência no papel: a imprensa periódica. In: Independência: história e historiografia.
São Paulo: Hucitec/FAPESP, 2005, p. 01.
Somente a prolongação da guerra seria bastante a fazê-lo render-se, mas os
nossos bravos tambem sofrem com ella, e desejam anciosamente voltar a seus
lares, tendo acabado antes com aquelle poder funesto. A patria chama mais
alguns de seus filhos, o governo lhes oferece grandes vantagens, querendo evitar
o odioso recrutamento forçado. 18

Esgotados os ânimos patrióticos a força de primeira Linha urgia por reforços, principalmente
nas divisões da Infantaria que se encontravam bastante desfalcada pelo fogo da artilharia inimiga.
Os anos entre 1866 e 1868 foram os mais cruéis da Campanha do Paraguai, período em que inúmeras
batalhas travadas ao longo dos meses dizimavam rapidamente as fileiras. Esse fato motivou o
engrossamento do recrutamento, na Paraíba nesse período constantes pedidos eram enviados aos
representantes do Governo, seja as autoridades policiais fossem para os Comandantes de quartéis
da Guarda Nacional.
No início de setembro de 1866, O Publicador trazia o apelo do presidente João José
Inocêncio de Poggi, que dirigia-se para o delegado da Capital pedindo urgência no recrutamento.
Conforme Poggi:

Para cumprimento de instante recommendação do governo, determino a Vme.


que com o maior empenho e actividade promova o recrutamento no termo de
sua jurisdicção, e bem assim a acquisição de Voluntarios da Patria, cujo
alistamento ainda continua aberto com todas as vantagens do decreto n. 3371
de 7 de janeiro de 1865 e mais a gratificação de cem mil réis annunciada por
edital da secretaria da presidencia de 30 de junho ultimo em virtude da lei
provinsial n. 191 de 31 de agosto tambem do anno passado; fazendo Vme.
outrosim prompta remessa á mesma presidencia dos individuos, que assim fôr
obtendo, como é de esperar do seu zelo e interesse pelo serviço publico. Igual
aos demais delegados e a todos os juizes municipaes da Provincia. 19

Como podemos perceber o Presidente endereçava o ofício não apenas para o delegado da
Capital, mas para todos os delegados e juízes municipais da Província, naqueles anos de penúria
coube aos juízes auxiliar os delegados na empreitada. No início do ano 1867, o Presidente Américo
de Melo se dirigia aos Comandantes Superiores da Guarda Nacional, o tom de apelação era o mesmo
que tinha feito para os delegados. Vejamos:

Em consequencia de novas recommendações que acabo de receber do governo


para a prompta remessa de individuos destinados ao serviço do exercito em
operações contra a republica do Paraguay, determino á V.S. que faça activar a
apresentação das praças exigidas dos batalhões desse commando superior para
semelhante fim, esperando no entanto a presidencia, que continua a ser exigido

334
18
Hemeroteca Digital. O Publicador. Parahyba do Norte, novembro de 1866, n° 1261.
19
Hemeroteca Digital. O Publicador. Parahyba do Norte, 07 de setembro de 1866.
da guarda nacional e o seu patriotismo será motivos mais que bastantes para o
bom cumprimento desta ordem. 20

As práticas clientelísticas envolvendo o mandonismo local e os oficiais da Guarda Nacional


emperraram o quanto puderam no recrutamento militar de cidadãos que compunham suas fileiras.
Como a resistência era mais forte nos batalhões do interior da Província, encontramos no
Publicador, vários ofícios que eram endereçados aos comandantes desses.
Em outubro de 1866, o periódico trazia o ofício de Inocêncio de Poggi, no mesmo ele se
dirigia ao Comandante do batalhão de Cuité. De acordo com ele:

Tendo-se recommendado a esse commando pelo officio de 18 de setembro


proximo findo, a que se refere o de V.me. de 12 do corrente, apenas a
apresentação de guardas nacionaes para contingente de guerra, parecem
somente paleativos as ponderações, que me fez em o seu dito officio com
referencia ao recrutamento, e pois, de novo lhe recommendo a prompta remessa
do numero de praças, que lhe foi exigido, fazendo punir com prisão os
commandantes de companhias que o deixarem de auxiliar para semelhante fim,
e cujos nomes me remettera. 21

Não era só em Cuité, na divisa com a província do Rio Grande do Norte, que a Guarda
Nacional adotava essa posição. Em janeiro de 1868, o presidente Inocêncio Seraphico de Assis
Carvalho dirigia um ofício ao Comandante do 10° quartel, localizado em Campina Grande. Segundo
Carvalho:

Sendo conveniente organisar o batalhão n. 29 da guarda nacional da freguezia


de Natuba, desse comando superior, creado por decreto de 30 de setembro
ultimo, momento nas circumstancias actuaes, em que ha urgente necessidade de
se completarem os contingentes que deve dar a guarda nacional, recommendo
á Vme. que remetta quanto antes com sua informação a proposta que lhe foi
apresentada pelo tenente-coronel commandante do dito batalhão, da qual já
existe uma copia na secretaria desta presidencia. 22

Seja em Natuba ou em Cuité, Campina Grande ou na Capital, o recrutamento forçado foi de


encontro ao clientelismo político vigente nos municípios, vilas e paróquias paraibanas. Com isso os
ditames do Governo Central encontraram uma grande barreira para concretizar-se, seus próprios
representantes tiveram que barganhar com o poder local para conseguir governar, as falas
supracitadas, por exemplo, demonstram toda a pressão política advinda da Corte. Encurralados entre
as duas esferas de poder restaram aos presidentes que se sucederam no cargo na Paraíba apelar para
os comandantes de batalhões, chefes de polícia, delegados e subdelegados. A publicação dos

20
Hemeroteca Digital. O Publicador. Parahyba do Norte, março de 1867, n° 1435. 335
21
Hemeroteca Digital. O Publicador. Parahyba do Norte, 25 de outubro de 1866.
22
Hemeroteca Digital. O Publicador. Parahyba do Norte, 25 de janeiro de 1868.
expedientes diários em um jornal legalista, exemplo do Publicador, tinha a missão de auxiliar o
Presidente, demonstrando para a população provincial e para os superiores na Corte que os esforços
empreendidos em torno do recrutamento não cessaram, sendo uma constante, inclusive na Guarda
Nacional. Todavia, despachos, atas, ofícios e outras documentações referentes às instâncias
burocráticas na Paraíba durante esse período comprovam o contrário.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil. Carta de Lei de 25 de março de 1824.

________. Decreto imperial de 07 de janeiro de 1865. Cria o Corpo de Voluntários da Pátria. Rio
de Janeiro: Typographia Nacional, 1865. (Coleção de Leis do Império do Brasil de 1865).

________. Decreto imperial de 21 de janeiro de 1865. Destaca a Guarda Nacional para a Guerra
do Paraguai. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1865. (Coleção de Leis do Império do Brasil
de 1865).

________. Lei imperial de 18 de agosto de 1831. Cria as Guardas Nacionais e extingue os corpos
de milícia, guardas municipais e ordenanças. Rio de Janeiro: Typographia Nacional. (Coleção de
Leis do Império do Brasil de 1831).

________. Lei imperial de n° 602, de 19 de setembro de 1850. Dá nova organização à Guarda


Nacional do Império. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1850. (Coleção de Leis do Império do
Brasil de 1850).

________. Ministério da Guerra. Instrução de 10 de julho de 1822.

CARVALHO, José Murilo. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de Sombras:
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Jornais

O Publicador, Parahyba do Norte.

337
VAQUEIROS E TRABALHADORES LIVRES: DINÂMICAS SOCIAIS NO SERTÃO
NORDESTINO EM MEADOS DO SÉCULO XIX.

Thâmara Brenda Lopes de Souza1


Graduanda em História Licenciatura – Universidade Federal de Pernambuco

thamarabrendasouza@gmail.com

O sertão
Durante muito tempo a colonização se limitou as terras mais próximas ao litoral da
Colônia brasileira, efetivando-se a partir de um processo de repovoamento e também da
implementação de um sistema de aproveitamento econômico pertencente à Ordem
Mercantilista. É importante notar que ainda no século XVI, o início das penetrações de colonos
se deu no interior da Colônia, tendo como objetivo inicial o conhecimento e incursões pelo
território, e posteriormente, a tentativa de descoberta de minerais, como o ouro e a prata.
Nas nomenclaturas portuguesas à época, as áreas territoriais situadas mais distantes da
costa litorânea eram denominadas de Sertão. Ao longo dos anos e com o desenvolvimento do
progresso de colonização, o conceito de Sertão foi sendo ampliado e passou a contemplar
características climáticas apresentadas aos habitantes dessas regiões. Surgiram, portanto, os
sertões. Ao Norte, o sertão das drogas que circularam por toda a Colônia; o sertão das Gerais,
na região central; e o sertão nordestino, onde surgiram os Sertões de Dentro e os Sertões de
Fora, tendo por base os caminhos trilhados e encontrados pelos processos de penetração.
O sertão nordestino, principalmente o de Dentro passou a ser identificado como uma
região de natureza hostil e de uma sociedade violenta. Isto se deve por essa região apresentar
altas temperaturas, baixos índices de precipitação pluviométrica e sucessivos e castigantes
períodos de secas.
Essa concepção de sertão foi-se delimitando ao longo dos séculos XVII e XVIII, período
em que foram se intensificando as guerras contra os índios, chamada de Guerra dos Bárbaros,
o combate aos quilombos e aumento dos conflitos entres colonos pelo domínio da terra. Em
meio a esse cenário, devemos destacar a figura dos trabalhadores livres e escravos no sertão
nordestino, importantíssimas para a construção da cultura e economia dessa região.

1
Sob orientação da Profª. Drª. Tanya Maria Brandão, professora-adjunta do Departamento de História da 338
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Trabalhadores livres e escravos
Tomando por base a necessidade de vastas quantidades de terras e dos choques entre a
cultura da criação de gado e das lavouras de açúcar, a Carta Régia de 1701 proibiu a criação de
gado à distância de 10 léguas a partir da costa marítima2. Contudo, antes desse período já havia
áreas no Sertão de Dentro onde a pecuária se desenvolvia. A pecuária foi ocupando terreno no
sertão nordestino, ganhando importância nas exportações, não com menos importância do que
o algodão e o fumo. Além do imenso espaço que os sertões poderiam oferecer para a criação de
animais, sabe-se que um dos principais motivos se deu por não ser necessário o emprego de
capitais empregados para o funcionamento de um engenho e não carecia de grande número mão
de obra.
A pecuária não exigiu o emprego de grandes capitais, esses reforços são bem reduzidos
considerados aos que são necessários para montar o aparelhamento dos engenhos de açúcar.
Segundo Gorender3, o fundo inicial demandava em certa quantia de cabeças de gado, cerca de
200 a 300 reses, com cerca de 25 a 30 cavalos. Além disso, com as pastagens naturais era
dispensável a preparação de alimentação para o gado, exceto nos períodos de seca, onde há
maior carência de manejo para a nutrição dos animais.
É importante salientar que as criações de animais não eram voltadas exclusivamente à
criação de bovinos, o gado do sertão também era constituído pela criação de caprinos (na maior
parte, para consumo próprio), os equinos participavam do trabalho com a lida nas fazendas e
no transporte, estes eram encontrados em menor quantidade nas fazendas.
A atividade agrícola no sertão se voltava para o abastecimento das populações locais,
sendo de fundamental importância para o desenvolvimento da atividade pecuária. Somando-se
a essa atividade, nota-se no sertão a atividade voltada para o cultivo de algodão que ganhava
certa expressividade nos períodos de seca, quando se dificultava a atividade pecuarista.
Segundo Borges4, boa parte do gado que era utilizado no sertão era comprado no Piauí,
de onde seguia para as feiras em outras províncias, como Bahia, Paraíba e Pernambuco. As
viagens para as feiras onde o gado seria vendido duravam por volta de 3 a 4 meses, enfrentando
a escassez de água e de pastos para o gado. O aumento do interesse pela criação de cabras no
sertão de modo geral, com a grande seca que assolou a região Nordeste durante os anos de

2
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978.
3
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978.
4
BORGES, Cláudia Cristina do Lago. Cativos do sertão: um estudo sobre a escravidão no Seridó – Rio Grande 339
do Norte/Cláudia Cristina do Lago Borges. – Franca, SP, 2000.
1877-1879. O gado caprino possui maior resistência à seca do que outras espécies de gado,
somando-se a isso, a procura por sua pele nas feiras locais e no mercado externo5, em sua
utilização na confecção de móveis e outros artigos.
No que se refere à demanda da mão de obra utilizada nas atividades pecuárias,
Gorender6 afirma que a rotina produtiva é reduzida, carecendo de 15 ou 20 homens de trabalho.
O sertão nordestino também se caracteriza pela administração das grandes fazendas ficarem a
cargo de vaqueiros e foreiros dos grandes proprietários. Isso porque os donos das fazendas por
vezes não residiam nelas, também possuíam casas em cidades litorâneas, onde também
possuíam plantações de cana-de-açúcar ou por preferirem gastar suas rendas em regiões mais
populosas e mais luxuosas.
Retomando a afirmação de que os cuidados das fazendas ficavam a cargo dos vaqueiros
e dos foreiros dos grandes proprietários, Gorender em sua obra O escravismo colonial7, cita as
observações de Spix e Martius8 em sua viagem pelo sertão baiano, onde afirmam que
“raramente os proprietários dessas grandes fazendas viviam no sertão. Gastam as rendas
em distritos mais populosos, muitas vezes com luxo incrível, deixando a fiscalização a
um mulato…”9.

A pecuária se distingue entre as atividades econômicas no quadro da economia colonial,


a afirmação acima evidencia a chamada divisão social do trabalho na pecuária, proposto por
Gorender10. Em oposição aos sistemas estabelecidos nas regiões de plantação, voltados para o
mercado externo, para Gorender, a pecuária construía uma dinâmica interna própria, criando
vínculos mais consistentes dos que encontramos nas áreas urbanas e nas lavouras.
A utilização da mão de obra escrava no sertão e na pecuária é alvo de muitas discussões.
Nelson Werneck Sodré em suas afirmações sobre o sertão nordestino afirmava que a pecuária
era incompatível com a escravidão. E, nessas regiões “relações feudais” paralelas às relações
escravistas. O autor não esclarece quais os motivos que tornam a escravidão incompatível com
a atividade pecuária11. Ou no que consistiam essas relações feudais.

5
GALLIZA, Diana Soares de. O Declínio da Escravidão na Paraíba 1850 – 1888. João Pessoa: Editora
Universitária/UFPb, 1979.
6
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978.
7
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978 (apud SPIX e MARTIUS, p. 48).
8
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978. p 413.
9
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978. p 413.
10
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978. p 413.
340
11
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978 (apud SODRÉ, 1962, p. 123 e 125).
Outros autores, como A. P. Guimarães argumentam que as fazendas dispensavam o
trabalho escravo devido à ausência dos proprietários, como já dito por vezes os donos dessas
grandes fazendas não residiam nelas. Fato que impossibilitava a vigilância direta,
caracterizando o Nordeste como “feudal”, embora se adotassem sistemas de arrendamentos
considerados mais próximos do capitalismo agrário.
Essas discussões sobre a utilização da mão de obra escrava são apontadas por Gorender
no capítulo O escravismo na pecuária12. Podemos observar o exemplo Domingos Afonso
Mafrense, viveu no Piauí e deixou em testamentos escravos e cavalos. Apontando a utilização
da mão de obra escrava na pecuária. Levantamentos realizados na região apontam a presença
de escravos negros, e não índios.
Além disso, também aponta a pouca presença de mulheres negras trabalhando nas zonas
da pecuária. Essas escravas eram empregadas em serviços domésticos em sua maioria, devido
à falta de exigência de trabalhadores no trabalho produtivo pecuarista. Ao longo do século XIX
há uma acentuação do caráter escravista, devido ao estabelecimento das fazendas das
Companhias de Jesus, como também das fazendas pertencentes à Coroa.
O papel desempenhado pelo negro na economia sertaneja é de muita expressividade, a
realização de suas atividades permitiram o desenvolvimento e a continuidade do sistema da
pecuária. Também há poucas atribuições a sua importância na organização do trabalho no sertão
nordestino. Capistrano de Abreu indica que a presença de negros africanos era justificada “não
como fator econômico, mas como elemento de magnificância e fausto”13. O autor se utiliza
dessa justificativa para se referir ao trabalho escravo no sertão no período colonial, porém pode
ser aplicada ao século XIX, tendo em consideração que as estruturas coloniais permaneceram
durante o período imperial.
O autor Irinêo Joffily14, sobre a presença do negro no sertão afirma que “foi sempre
fraca porque para os trabalhos pastoris era muito mais apropriado o americano”. Em
contrapartida a essa afirmação, Galiza15 afirma que no ano de 1871, constatou-se em municípios

12
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978.
13
GALLIZA, Diana Soares de. O Declínio da Escravidão na Paraíba 1850 – 1888. João Pessoa: Editora
Universitária/UFPb, 1979. (apud. ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial, Rio de Janeiro,
Editora Civilização Brasileira, 1976, p. 129.)

GALLIZA, Diana Soares de. O Declínio da Escravidão na Paraíba 1850 – 1888. João Pessoa: Editora
14

Universitária/UFPb, 1979. (apud. Joffily. p. 153.)

GALLIZA, Diana Soares de. O Declínio da Escravidão na Paraíba 1850 – 1888. João Pessoa: Editora
15
341
Universitária/UFPb, 1979. p. 81.
do sertão paraibano que a população escrava era superior à de alguns municípios canavieiros, e
ainda assim, esses municípios sertanejos não reconheciam a participação dos escravos na
economia da região.
Galiza traz em sua obra também a afirmação do ministro José Américo de Almeida,
onde ressalta a quase exclusão do negro do sertão devido às condições do meio que não
permitiam a realização do trabalho agrícola, sendo assim, o indígena, natural do meio, o mais
apto para o trabalho de pastoreiro. Clóvis de Moura afirmou ser “a presença do negro naquela
área não foi fundamentada no trabalho, mas que ele lá apareceu” sendo “como perturbador da
economia, fugitivo, como quilombola”.
O estudo de Galiza baseado na análise de inventários e documentos da época “atestam
que o escravo foi peça importante na economia da região”. Seus estudos e análises apontam que
no município de São João no sertão paraibano, havia um número acentuado de cativos do sexo
masculino e mais da metade dessa população estavam na idade de trabalho. Ao longo da
segunda metade do século XIX, a população cativa masculina no sertão sofrerá uma diminuição
devido à procura da mão de obra escrava na região centro-sul, dedicadas às atividades cafeeiras.
O estilo de vida no sertão nordestino não permitiria a ideia de que o escravo negro seria
um sinal de ostentação, os fazendeiros sertanejos possuíam vida simples. Além disso, o escravo
no sertão exerceu atividades essenciais à economia da região. Não se dedicando à atividade
criatória, podemos ver a figura dos escravos entre cozinheiras, trabalhadores de enxada,
costureiras, vaqueiros, rendeiras, agricultor, lavadeira, ferreiro, sapateiro, criado, mucama,
pagem, pedreiro, serviços domésticos, faxineiros, entre outras profissões. Essas profissões
exercidas por escravos no sertão denotam como eram necessários para a manutenção das
fazendas.
Além disso, também desenvolveram obras essenciais e necessárias para à criação de
gado, como a construção de currais, açudes, cercas, entre outros. Esses instrumentos
beneficiavam não só à pecuária, como a lavoura de subsistência, atividades desenvolvidas nas
“vazantes” dos açudes, sendo desenvolvidas de maneira eficiente, uma vez que o gado preso
não poderia danificá-la.
Os utensílios, vestimentas e objetos deveriam se desenvolver e produzir nas regiões do
sertão, devido as deficiências das estradas e do transporte. Objetos e bens corriqueiros e
indispensáveis seriam produzidos nessa região, daí a dedicação de escravos às atividades como
pedreiros, ferreiros, carpinteiros, fiar e tecer panos de algodão, destinados ao uso deles próprios
e dos proprietários. Essas atividades são visualizadas também na região do Seridó, região do 342
atual Rio Grande do Norte, onde o escravo se dedicava às diversas atividades.
Durante o início da atividade pecuária no sertão nordestino, nota-se a presença do
escravo negro concomitante com a presença da escravização do índio. No século XIX, a
presença do índio entra em declínio na atividade pecuária, devido ao ritmo acelerado das
vítimas da guerra, de doenças e do próprio regime em que este estava submetido. Este declínio
acentuou-se a partir do século XVIII, devido aos regimes de escravidão e a diminuição de seu
aumento quantitativo.
No sertão nordestino e na pecuária se encontrou espaço para a população livre,
substituindo ou não os trabalhadores escravos, ou trabalhando ao mesmo tempo, sob as formas
primitivas do que seria o trabalho assalariado. O vaqueiro e o arrendatário constituíram novas
formas de trabalho na pecuária nordestina. O primeiro era a pessoa encarregada de olhar o
rebanho e administrar as fazendas e sítios, pessoas livres, em sua grande maioria, sem posse de
terras, nem gado, nem escravos.
Neste cenário, surge o sistema de quarta, inspirado à semelhança dos sistemas das
colônias inglesas e francesas, caracterizando uma associação entre o proprietário da terra e o
vaqueiro. O sistema consistia no recebimento do vaqueiro da quarta parte da criação dos
proprietários paga após cinco anos de trabalho na fazenda. Dependendo do número dos currais
nas fazendas, o número de vaqueiros aumentava, além de seus auxiliares, onde a quarta era
repartida de forma proporcional.
Segundo Gorender, o vaqueiro não era um trabalhador assalariado, “mas sócio menor
do proprietário, parceiro nos resultados da produção.”16. O vaqueiro poderia realizar
acumulações pessoais, com isso, chegando a se converter a sitiante ou até mesmo chegando a
posição de proprietário. Ser vaqueiro era ter um status maior do que o trabalhador livre comum.
Além disso, ainda segundo o autor, o sistema de quarta brasileira era a representação de um
contrato análogo ao sistema de parceria, considerada como uma relação pré-capitalista, não
chegando a se caracterizar como um tipo social específico.
Para Brandão17, o posto de vaqueiro era bastante ambicionado no sertão nordestino, isso
porque a função do vaqueiro oferecia estabilidade de emprego, além da consideração e do apoio
dispensados pelos fazendeiros e pelas demais pessoas. A posse de escravo se reservava a
possibilidade de o vaqueiro algum dia se tornar dono de curral. A mobilidade social era uma
possibilidade reservada aos vaqueiros.

16
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978. p. 423.
17
BRANDÃO, Tanya Maria Pires. O escravo na formação social do Piauí: perspectiva histórica do século 343
XVIII. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí. 2014. p. 115.
Também é apontada a possibilidade de o vaqueiro continuar nas fazendas dos
proprietários com seu gado, somada a possibilidade de continuar como arrendatário ou posseiro.
Ou ainda sair da fazenda de seu patrão e montar sua própria fazenda, levando em consideração
que o vaqueiro é livre e supondo que tenha renda para montar sua fazenda. O número de
vaqueiros não era tão expressivo, dependia da quantidade de fazendas e sítios instalados nas
regiões. No Piauí, o posseiro constituía elemento social. De condição jurídica social livre, o
posseiro se instalava nas terras conquistadas, dedicando-se à agricultura e a pecuária.
Brandão18 afirma que ser vaqueiro no século XVIII, por exemplo, era um trabalho
compatível com o homem livre. Esses trabalhadores viam na profissão a possibilidade de
ascender socialmente, edificar suas próprias fazendas e até possuir um número de escravos.
Evidenciando o caráter escravista da população pobre e livre no Piauí.
Esses trabalhadores livres ficavam à espera do cargo do vaqueiro, caso o da fazenda
falecesse ou desistisse de sua função, ou caso não houvesse a construção de novos currais. Os
agregados eram grupos de famílias moradoras das fazendas (como morador na fazenda, ajudava
na estruturação da fazenda, também se dedicando à agricultura de subsistência), faziam parte
da clientela dos proprietários, chegavam até ser responsáveis pela execução de tarefas violentas,
além de defender a família do proprietário da fazenda. Tais homens atualmente são conhecidos
como capangas, especializados em matar e realizar outras atividades relacionadas ao uso da
força.
O posseiro não possuía título das suas posses e não pagava foro, demonstravam maior
independência que os sitiantes e os vaqueiros. Além dos posseiros, os agregados também
constituíram a sociedade sertaneja, estabeleciam-se em latifúndios, cultivavam em pequena
quantidade alguns gêneros alimentícios, e também viviam agregados a uma família, convivendo
como uma pessoa da casa. O agregado no Piauí é um fruto e constituí um elemento da sociedade
escravista paternalista.
Em meados do século XIX com o início do processo de abolição gradual da escravidão
e devido a força de mão de obra livre e barata disponível na região, o trabalho escravo foi sendo
substituído pela mão de obra livre, sem concessões aos trabalhadores livres. Os trabalhadores
que residiam nas terras dos grandes proprietários continuaram com suas obrigações, como a
prestação de serviços em determinados dias nas terras dos fazendeiros por um preço muito
baixo. O trabalho assalariado não foi no sertão uma das maneiras mais comuns de contratação

18
BRANDÃO, Tanya Maria Pires. O escravo na formação social do Piauí: perspectiva histórica do século 344
XVIII. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí. 2014. p. 156.
de mão de obra. As necessidades e demandas de determinadas regiões sertanejas não condiziam,
nem se encaixavam com o trabalho assalariado.
A escassez dos escravos e seus elevados custos em meados do século XIX, levaram aos
fazendeiros a tomar medidas que prendessem o pequeno produtor rural à terra. Dessa maneira,
grandes dívidas se estabeleceram entre fazendeiros e trabalhadores livres devido a compra de
equipamentos para trabalho, sementes, e outras necessidades que viessem a surgir para atender
as demandas do trabalhador livre. Segundo Cabral19, “a visão do trabalho que se tinha do ex-
escravo estava intrinsecamente ligada à ideia do trabalhador livre na ordem escravocrata”,
evidenciando o papel do trabalhador livre na sociedade brasileira no período em questão.
A escravaria entrou em processo de declínio a partir da proibição do tráfico internacional
de escravos e da mudança do eixo econômico da região Nordeste para a região Centro-sul,
principalmente nas regiões produtoras de café. Atender a grande demanda cafeeira fez com que
o aumento da procura da mão de obra escrava crescesse, apesar do Bill Aberdeen (1845), a
utilização de força de trabalho escravo na região Sul cresceu expressivamente, fazendo com
que os proprietários de escravos vendessem seus cativos.
A partir de meados do século XIX, proprietários de escravos do sertão nordestino
passaram a libertar seus escravos antes mesmo do decreto da Lei Áurea (1888), como é o caso
do Barão de Serra Branca, proprietário de fazenda, gado e com sua clientela no sertão do Rio
Grande do Norte, assinou a abolição de seus escravos em 30 de março de 1888, dessa data em
diante, havendo só trabalhadores livres em sua fazenda 20. O Barão de Serra Branca foi agraciado
com seu título meses após libertar seus escravos, pagando quinze mil réis ao Tesouro Estadual.
Assim como Felipe Néri recebeu seu título de barão, como muitos outros proprietários de terras
e escravos também realizaram essa prática em busca de um título de nobreza.
É fato que a utilização do escravo negro na pecuária no sertão nordestino foi essencial
para seu funcionamento e manutenção. O trabalhador escravizado esteve presente na construção
de toda a estruturação das grandes fazendas criatórias. É fato que sua utilização na pecuária foi
inferior nos engenhos de açúcar nas regiões litorâneas. Sua presença não estava marcada para
demonstrar a riqueza e o fausto de seus proprietários, a escravidão no Brasil também tem como
característica o grande número de pessoas sendo proprietária de apenas um escravo.

19
KENNEDY EUGÊNIO, João (org.). Escravidão Negra no Piauí e temas conexos. Teresina: EDUFPI, 2014. p.
106.
20
CASCUDO, Luís da Câmara. O Livro das velhas figuras – (6 vol.) 1989 – Inst. Histórico e Geográfico do RN. 345
p. 62 e 63.
Além disso, devido as grandes distâncias entre as regiões litorâneas e o sertão, a
sociedade sertaneja empregou o trabalho escravo na fabricação de utensílios essenciais e
necessários para o cotidiano, a exemplo disso podemos ver o grande número de cativos
empregados em tarefas domésticas, como costureiras, faxineiras, rendeiras, ferreiros e outras
profissões. Também na construção de estruturas necessárias à manutenção da pecuária,
construindo açudes, cercas e currais.
É fato que sua utilização diretamente na criação e no manejo dos animais não foi regra,
mas sim sua participação em todo esse sistema foi direta e essencial. A utilização da mão de
obra escrava indígena não foi tão expressiva devido às guerras travadas no sertão com os
fazendeiros e os nativos, além das doenças e da diminuição do contingente dessas populações.
Não que o nativo não tenha sido empregado nessas atividades, mas sua presença não foi tão
duradoura.
Com o passar dos anos no século XIX e com as leis e medidas que eram impostas ao
Brasil para acabar com a escravidão, o número de cativos negros vai sofrendo com o fim do
tráfico atlântico de escravos. Na região do sertão, sofre com o tráfico interprovincial de escravos
para atender às demandas das regiões produtoras de café, fazendo com que grande número de
cativos homens na idade de trabalho fosse transferido para o Centro-sul. Isso gerou uma crise
de cativos na região do Nordeste, somando-se a isso, a prática dos proprietários de escravos
venderem suas posses devido o aumento do preço e porque já não era mais vantajoso possuir
apenas um escravo, quando este poderia ser vendido por um bom preço para trabalhar com café.
Para sanar a crise de escravos no sertão, os trabalhadores livres passam a ganhar espaço
expressivo. O trabalhador livre foi penalizado, estava ligado à terra e ao proprietário dela. Por
vezes, o pagamento poderia ser a permissão para se construir uma moradia nas terras do
fazendeiro, sob o regime de um contrato. Se é que poderia ser considerado livre, já que
dependiam de seus patrões. Sendo agregados ou posseiros, vivendo em volta das fazendas
mesmo sem ter nenhum vínculo com estas, almejavam um dia ocupar o cargo de vaqueiro. Este
cargo na sociedade sertaneja possuía grande prestígio e possibilidade de ascensão social.
Porém, este cargo não era numeroso, o número de vaqueiros dependia do número de
fazendas instaladas na região. O vaqueiro, em geral, era um homem livre e de confiança do
fazendeiro, com quem dividia o fruto de sua criação após alguns anos a partir do sistema de
quarta. Ao vaqueiro estava resguardada a possibilidade de montar sua própria fazenda com seu
gado, chegando até a possuir escravos para lhe auxiliar no manejo da propriedade. Também aos
foreiros e agregados se destinavam pequenas porções de terras para que estes pudessem se 346
dedicar às atividades agrícolas para atender a população local.
A sociedade sertaneja, diferentemente da sociedade litorânea, possuía suas próprias
estruturas de relações de poder e sua dinâmica econômica autônoma. Caracterizando-se como
uma sociedade desenvolvida sem vínculos diretos com o mercado externo, constituindo uma
ameaça ao sistema mercantilista. Além disso, os personagens dessa sociedade constituíram
bases para a cultura sertaneja e o seu modo de vida, desprendido de grandes riquezas, mais
simples, voltada ao trabalho com os animais e com relações mais estreitas e afetivas com a terra.
Sendo fator da construção de identidades que estruturaram a diversidade da população e da
cultura brasileira.

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347
A AMA DE LEITE MÔNICA: UMA ANÁLISE DAS QUESTÕES GERACIONAIS
ACERCA DE SUAS FOTOGRAFIAS NO RECIFE DO SÉCULO XIX (1860 E 1877-
1882).
Hygor Francisco Carvalho Gonçalves
Graduado em História pela UNICAP
Aluno da Especialização em História do Nordeste do Brasil pela UNICAP
hygorfcgoncalves@gmail.com

1. INTRODUÇÃO
Um olhar penetrante e desafiador é o que nós encontramos ao nos depararmos com as
antigas fotos das amas de leite. Na impossibilidade de identificarmos quem foram essas
mulheres, quais foram as vivências sofridas por elas e quais circunstâncias individuais as
levaram até o ato de serem fotografadas no estúdio, nos restam as suas representações, o que
essas imagens nos mostram, quais os sentidos dos sutis gestos encenados na imagem e o que
podemos extrair desse olhar.
Como esclarece Lorena Telles (2018), assim como as quitandeiras, lavadeiras e demais
categorias de mulheres escravizadas, as amas de leite foram inseridas dentro de uma complexa
rede de relações pessoais, uma tensa rotina de trabalhos supervisionados e práticas
dominantemente patriarcais, exacerbadas por estarem inseridas dentro do âmbito doméstico.
Presas num sistema escravista rígido, com deveres bem definidos, essas mulheres conviviam
numa tensa rede social definida por humilhações e ataques deferidos em grande parte por seus
donos e donas, sempre posta, em contraponto, às concessões de melhor alimentação, vestuário
e a promessa de ganho de alforrias.
Alocadas dentro da casa senhorial e condicionada aos cuidados domésticos, não é
errôneo pensar que as amas de leite também protagonizaram em certo grau complexas relações
de intimidade e afeto com seus senhores, principalmente com os filhos destes, mas sempre
reguladas pelas questões inerentes à condição de escrava. Muitas destas permaneceram aos
cuidados da mesma família durante toda a vida.
Caberá a este artigo analisar estas questões geracionais, que envolvem a amamentação
de uma família por uma ama de leite. Tomaremos como objeto de análise, as fotografias de
Mônica, ama de leite que viveu na cidade do Recife durante o século XIX e que teve sua imagem
perpetuada em duas fases de sua vida: a primeira sendo datada de 1860 ao lado do menino
Augusto Gomes Leal e a segunda vez em meados de 1877-1882, agora já mais velha, ao lado
348
de Izabel Adelaide Leal Fernandes, uma jovem da mesma família do menino. A partir da análise
da figura de Mônica, procuramos compreender as complexas relações de poder que circundam
a imagem da ama de leite.
Para tal análise, será necessário primeiramente fazer uma contextualização sobre as
amas de leite, investigando de que modo eram inseridas no meio familiar e social do Brasil
oitocentista, assim como o modo no qual a fotografia foi introduzida na sociedade, quem a
adquiria, para que fins eram encomendados os retratos e o que representava ter em sua coleção
um retrato da ama de leite com a criança ao lado. Na segunda parte do artigo, serão analisadas
as fotos de Mônica, investigando a construção da pose, as vestimentas, os sentidos gerados com
o gestual; para fazê-lo, serão operacionalizados alguns conceitos do autor Roland Barthes
(1984), interessado em estudos de imagem. Ao fim faremos uma comparação entre uma
imagem e outra, analisando assim as significações e diferenças impostas pelo tempo para
representação da mesma mulher em duas épocas distintas, assim como as possíveis
similaridades na fabricação das imagens.

2. FOTOGRAFIA E A SOCIEDADE BRASILEIRA NO SÉCULO XIX


A chegada da fotografia no Brasil se deu em meados da década de 1840, quando a
sociedade buscava modernizar-se sob forte influência da Europa. D. Pedro II, grande entusiasta
das ciências e tecnologias, logo que soube do aparecimento do daguerreotipo 1, preocupou-se
em trazer a novidade para o país. Deste modo, uma grande quantidade de fotógrafos
especializados e cheios de novidades adentraram as grandes cidades do império e a sociedade
passou a se deixar fotografar2. Sandra Koutsoukos (2010), em seu livro Negros no Estúdio do
Fotógrafo, nos descreve bem sobre como se dava o protocolo da fabricação das imagens. Era
um processo lento e inconveniente, dependente da luz do sol, em que o cliente precisaria ficar
por até 20 minutos exposto à luminosidade. Não era possível qualquer sinal de movimento e
muitas vezes as pessoas eram fotografas de olhos fechados, tendo seus olhos retocados durante
o processo e representados abertos no resultado. Ela nos diz ainda que, para que a foto desse
certo e o cliente não fosse apenas um grande borrão na imagem, ele teria que manter a pose
rígida, como um morto.
Em pouco tempo, a fotografia virou uma epidemia nacional: independente da camada
social, todos buscavam ter representações suas em papel. Logo, os fotógrafos ficariam atentos
também às necessidades do público, procurando sempre fornecer os melhores serviços e
mantendo-se sempre atualizados acerca das novidades sobre métodos sofisticados de produção

1
Método universalizado por Louis Jaques Mandé Daguerre em meados de 1839 (ROUILLÉ, 2005). 349
2
Estas informações acerca da chegada da fotografia do Brasil partem de um cruzamento entre os autores Sandra
Koutsoukos (2010) e Luís Felipe de Alencastro (1997)
de imagens. Deste modo, os estúdios viraram locais de fantasias, onde seria possível
experenciar novos lugares e estados, através dos vários cenários, plantas exóticas e animais
raros empalhados, sempre à disposição e a gosto dos clientes que frequentavam o
estabelecimento, como bem nos diz Koutsoukos (2010) em seu texto.
Foram vários os métodos e tipos de fotografias que surgiram durante toda a segunda
metade do século XIX, mas houve um em especial que foi o mais procurado pela sociedade
brasileira, desde senhores até escravizados e libertos, o modelo carte-de-visite3. O fato deste
modelo de retrato ter feito tanto sucesso, deve-se às vantagens que ele veio a oferecer, como
por exemplo, a aquisição a partir de quatro unidades de uma só vez e também por permitir que
as pessoas fossem fotografadas de corpo inteiro, dando a possibilidade de exploração do espaço
que sobrasse por cenários montados, assemelhando-se às pinturas.
A partir disso, é importante perceber e entender o furor que a fotografia causou na
sociedade, principalmente para as camadas aristocráticas. Seria na imagem fabricada,
possibilitada pela fotografia, que a elite reafirmaria seu status e poder social, num jogo de
representação bem elaborado através dos variados cenários e acessórios disponíveis. As
camadas menos abastadas, tendo os retratos também ao seu acesso, tentariam incorporar-se a
essa trama e também recorreriam aos cenários e à manipulação da imagem para elaborar para
si uma autorrepresentação digna de ser perpetuada no papel.
Como também aborda Luiz Felipe de Alencastro (1997), é possível constatar que a
fotografia durante grande parte do século XIX brasileiro foi tratada como receptáculo da
memória e dos costumes de uma sociedade escravocrata e hierárquica, rigidamente ordenada
por vínculos de parentesco, na qual o poder condutor da máquina do estado era retido nas mãos
dos grandes patriarcas rurais. Com a popularização da fotografia, facilitada pelo fácil acesso de
aquisição, ter um retrato seu ou de toda sua família, em porta retratos em cima do piano, da
mesa de cabeceira ou álbuns bem ornamentados, virou símbolo de status e sinônimo de
elegância e elogios recebidos daqueles que adentrassem em suas casas. Era o privado, o que
durante muito tempo permaneceu guardado dentro de uma espécie de reclusão familiar, que
abria finalmente suas portas para encontrar-se com o público. E em meio a esse contexto de
experimentações, reorganizações sociais e transformações nos modos de convívio é que
aparecerá um dos grandes documentos acerca das representações feitas em torno da escravidão:
os retratos das amas de leite com seus pupilos, lado a lado numa pose fabricada. Aos olhos de

350
3
Modelo criado pelo francês Adolphe Eugène Disdéri em 1854. O retrato media aproximadamente 6cm x 9,5cm.
hoje, é notório perceber o poder que aquela criança já exerce sobre aquelas mulheres
escravizadas, mediante o que o simples toque entre aqueles corpos pode exprimir.

3. AS AMAS DE LEITE NA FOTOGRAFIA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX


Maria Helena Machado (2018) nos traz um questionamento bastante pertinente para
nosso estudo: a autora argumenta que as questões referentes às condições de vida, trabalho e
saúde, por exemplo, são tratadas tradicionalmente de maneira generalizada quando se pensa a
escravidão, sem dar conta das densas redes de relações existentes dentro do complexo sistema
escravista. Relações essas que se definem a partir da comunicação entre senhor(a) – escravo(a)
ou relações estabelecidas na lavoura entre os próprios escravos ou até mesmo nas constituídas
dentro da senzala. Inseridas dentro destas questões relacionais, encontram-se as amas de leite,
que, dispostas em um lugar bastante específico – o privado –, experenciavam o sistema
escravista de uma forma bem particular – em meio a famílias brancas –, tendo seus corpos e
maternidades submetidas a diferentes níveis de opressão. Inclusive, as tensões que permeavam
as amas não partiam somente de dentro das casas em que elas estavam alocadas, mas muitas
vezes provinham também dos outros escravizados de sua comunidade, por terem a visão de que
por estar dentro das residências senhoriais, seriam elas mais privilegiadas. Relacionado ao
argumento de Maria Machado, Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala (2003) já deixa
claro a aura fetichista que girou em torno das mulheres negras e especialmente destas mulheres
em questão, que o próprio autor vai se referir como “mãe preta”4 em sua obra, termo hoje
bastante problematizado como sendo discriminatório, mas que até pouco tempo era
recorrentemente empregado em certos setores da sociedade.
Para além das questões levantadas acima, um dos questionamentos mais pertinentes que
surge acerca das representações fotográficas das amas de leite é justamente o que levou os seus
senhores a levarem essas mulheres aos estúdios. Questionamento que vai ser levantado
novamente por Koutsoukos (2010), quando ela diagnostica o processo de montagem dessas
imagens, reconhecendo que a retratação das amas é estranha às representações comumente
associadas aos povos escravizados. Afinal, ao se valer dos cenários, vestimentas e poses
elaboradas, será na encenação da pose que o fotografo criará a sua representação. Para as amas
de leite, o aspecto mais comum é o das Madonnas, configuração semelhante à das pinturas à
óleo tão populares anteriormente, no qual a ama, de prostra altiva e serena, aparece com a

4
Mais um termo que Gilberto Freyre (2003) ressalta em sua obra. Geralmente apelido dado pelas crianças 351
criadas pelas amas. O termo foi popular até meados do século XX, quando passou a ser fortemente criticado e
tensionado por não reconhecer os processos de opressão racial.
criança ao seu colo ou em pé ao seu lado, a exemplo da foto de Mônica, que analisaremos em
breve.
Mas qual seria, enfim, supostamente, as intenções de toda esta orquestração? Cabe aqui
uma pequena contextualização social que envolvia diretamente as amas de leite em fins do
século XIX: mesmo frente o movimento eugenistas, que estava em voga e começava a propagar
os supostos malefícios da amamentação negra e a instituição da amamentação “higiênica”, as
amas de leite eram vistas socialmente como artigos de luxo. Em consideração a isso, pode-se
constatar que um dos principais propósitos destas representações das amas seja a criação do que
Koutsoukos (2010) vai chamar de “máscara social”, uma artimanha dos senhores em querer se
autoafirmar socialmente e difundir a ideia de uma escravidão amena.
Outro aspecto bastante pertinente para nosso diagnóstico imagético é o afeto, muito
abordado, apesar de bastante romantizado, nas obras e escritos e diversos autores, como
Gilberto Freyre (2003) e Joaquim Nabuco (2012), por exemplo. A questão afetiva se faz
importante pensar se partirmos da ideia de que aquelas mulheres, por mais cruéis que tenham
sido as separações e os desmames dos seus próprios filhos, ou mesmo aquelas que ainda
conseguiram permanecer com os seus, ainda nutriram um certo carinho e cuidado por suas
crianças brancas. Koutsoukos (2010) entra justamente no ponto que nos interessa investigar
aqui, indicando a questão geracional em torno das amas: sabe-se que era comum encontrar amas
que permaneceram a vida inteira no seio de uma única família, como é o caso de Mônica, e a
partir disso conseguiam construir um elo concreto com os familiares com os quais morava.
Talvez, muitos desses senhores, movidos por tal afeto ou, se nos é permitido dizer, por
agradecimento a essas mulheres, tenham encomendado, nestes retratos, um arquivo onde estaria
registrada a representação de um tempo feliz ou, o que para muitos foi um ente querido e
respeitado; constroem assim, a memória de um tempo feliz: a infância, apagando a opressão
que constitui o cotidiano das amas. Isto também nos faz pensar que foi em meio a este molde
de afeto exacerbado, que levou os senhores a quem sabe até participar na montagem da
encenação, pondo suas amas vestidas elegantemente, com cenários elaborados e bem tratadas
diante da câmera; verdadeiras Madonnas Negras, o que em tudo as diferenciava
representativamente dos outros escravizados da casa.
Assim, abordando as questões que levaram as amas a serem representadas de modo tão
específico nos estúdios, estão as ideias encenadas de “reciprocidade” e “gratidão”, além do
processo de “autoafirmação” e de apagamento de violências. Ainda ligado diretamente à
questão do afeto, o apego recíproco dos senhores pela ama e vice versa é algo que Freyre deixa 352
escapar em diversos momentos de seus escritos de Casa-Grande & Senzala (2003), quanto
evoca as lembranças da velha ama, a mãe preta, que tanto dizia amar e que tanto contribuiu
tanto para seu crescimento, quanto para o crescimento dos filhos senhoriais. É esse afeto
desmedido e apaixonado que Koutsoukos (2010) volta a argumentar em seu texto, quando nos
atenta para o fato de que esse afeto era duradouro enquanto a ama o retribuísse em igual
tamanho nos cuidados das crianças. O que nos leva a pensar também a fotografia das amas de
leite como uma forma de recompensa, algo merecido; a velha negra “mereceu” estar presente
nas lembranças daquela família, registrada de forma permanente na memória visual de uma
linhagem familiar. Entregar uma das cópias das suas próprias fotografias, seria visto como um
grande presente, algo extremamente especial para as amas. Então não seria qualquer ama que
seria levada a ser fotografada pelos seus senhores, mas sim aquelas que realmente “fizeram por
merecer” estar ali; a foto era uma recompensa por um trabalho sofrido. O que não descarta de
modo algum a ideia de alguns senhores terem levado suas amas aos estúdios pelo simples
modismo, estratégia de reafirmação de poder e status, já que uma das serventias que era dada a
essas imagens era a troca entre amigos e parente próximos, como cartões colecionáveis. Mas
voltando à ideia de recompensação das amas, a autora também explora o argumento de que
muitas delas, além do afeto muitas vezes genuíno pelas crianças, permaneciam leais à família
durante toda a vida, havendo possíveis casos de algumas que, dentro do tenso contexto
escravista, viam nas famílias sua fonte de segurança e sobrevivência.
Então, é partindo dessas ideias acima discorridas, que iniciaremos a análise acerca das
imagens da ama de leite Mônica, num jogo de representação tanto por parte dos senhores, que
por algum motivo a levaram ao estúdio, do fotógrafo que formulou a encenação e da própria
Mônica, que se fez presente na imagem, transformando mais uma entre as diversas fotos de
amas em uma fotografia sua. As fotos de amas de leite não são, afinal, simplesmente uma forma
de retratar as mulheres em cena de maneira passiva, mas também uma autorrepresentação, já
que suas presenças agentes podem modificar a imagem.

4. ANALISANDO MÔNICA
Para o estudo de análise das fotos de Mônica, se faz necessário, primeiramente, atentar
para o fato de que era raro nas fotografias das amas de leite uma identificação tão precisa das
pessoas que estavam ali representadas, especialmente a partir da nominação daquela mulher
que havia se deixado representar. No caso de Mônica (principalmente em seu primeiro registro
datado de 1860), curiosidades são despertadas sobre o que levou o seu senhor ou até mesmo o
próprio fotógrafo a identificá-la pelo próprio nome. Infelizmente não temos acesso a esta
353
resposta, mas o que essa questão nos passa é justamente a ideia de importância que Mônica
conseguiu estabelecer no seio da família Gomes Leal e que se relaciona diretamente com a
questão do afeto trabalhado por Koutsoukos (2010) e que já foi explanado acima. Esta ideia de
importância estabelecida entre a ama e a família da qual serviu, no caso de Mônica, por toda a
vida, é reafirmada em seu segundo registro datado entre 1877 e 1882, onde já é representada
bem mais velha.
Para instrumentalizar a análise sobre os registros fotográficos de Mônica, usaremos a
metodologia baseada nos conceitos de Studium e Punctum de Roland Barthes (1984) em A
Câmara Clara. Para isso, é pertinente também abordar outros argumentos que o autor traz em
seu livro, como, por exemplo, o questionamento que ele faz sobre em qual parâmetro artístico
a fotografia se encaixa. Para ele, o retrato fotográfico, por mais que se inspire nos antigos
retratos pintados a óleo, vai encontrar no teatro a real semelhança. É justamente na elaboração
de cenários, figurinos, posturas verdadeiramente encenadas, em que tudo se assemelha a um
quadro teatral, que vão ser construídas as primeiras fotografias do século XIX. Objetos que
colocados em uma cena específica determinarão de quem a fotografia se trata. Assim, no caso
das amas, por exemplo, o que identifica que as negras da foto ocupam esta função é a presença
das crianças.
É incorporando a discussão sobre fotografia enquanto um artifício teatral, que Barthes
(1984) vai aplicar o seu conceito do que seria o Studium, significando, a grosso modo, tudo
diretamente ligado ao aspecto cultural da fotografia, o modo como o fotografo preconcebe a
imagem, procurando sempre seguir o que está em voga, dando plano às suas intenções diante
dos desejos exprimidos pelos clientes e procurando mobilizar com seu trabalho um resultado
harmônico, o que também nos leva a perceber o que é enquadrado na imagem e fixado pelo
retrato, dizendo respeito a como a fotografia produz uma cena.
Complementando o seu conceito anterior e a certo modo vindo a o contrapor, Barthes
vai estabelecer o conceito de Punctum, que é o que tange o espectador a se identificar com a
imagem, o elemento “X”, um detalhe que prende quem vê a imagem, fazendo aflorar
sentimentos e intensificando a relação com a fotografia. O autor também diz que não é possível
estabelecer uma regra de ligação entre o Studium e Punctum, já que o segundo, ao mesmo tempo
que pode dizer algo, pode dizer nada, além de ser um detalhe subjetivo à cada pessoa. O
Punctum de uma mesma imagem pode, assim, ser completamente diverso entre os espectadores,
apesar de recorrentemente o Studium de uma imagem projetar um Punctum específico, apesar
de enquadramento, foco e demais características técnicas.
Boris Kossoy (2001) complementa os argumentos de Barthes (1984) sobre o Studium 354
quando diz haver sempre uma história por trás da fotografia, que surge como fruto da intenção
de alguém fazer o registro de algo importante, um fragmento de memória, algo real que não
pode ser esquecido. Essa intenção pode provir tanto do fotógrafo, quanto da pessoa que vai ao
seu estabelecimento procurá-lo. No caso de Mônica, evidentemente, não foi ela que se dirigiu
ao estúdio, mas foi levada pelos pais da criança, os quais, como já foi dito, tiveram a intenção
de registrá-la, não apenas uma, mas duas vezes, o que descarta, ao meu ver, a ideia de que o
registro foi feito apenas para ostentação e trocas colecionáveis. De qualquer forma, foi dentro
do formato carte de visite que as fotografias de Mônica foram produzidas pelos estúdios
fotográficos recifenses de João Ferreira Villela em 1860 e Alberto Henschel entre 1877 e 1882.
Tendo introduzido os instrumentos de análise, partiremos agora para o estudo de seu
primeiro registro fotográfico, através do Studium. Na fotografia em questão, ela é apresentada
sentada de forma centralizada no retrato, mas não há como saber o tipo de assento. Com o braço
esquerdo apoiado numa mesinha forrada com um elegante pano floral, Mônica usa um vestido
senhorial completo (provavelmente de seda), um anel no dedo esquerdo e um colar, além de
um rico xale posto a cobrir apenas o ombro e o braço direito, cobrindo as costas e perpassando
por debaixo do braço esquerdo, onde as pontas se encontram devidamente arrumadas em seu
colo. Ao seu lado direito, encontra-se Augusto Gomes Leal, criança de quem Mônica foi ama
de leite; o menino permanece em pé ao lado da ama, recostado em seu ombro coberto pelo xale.
Ele traja um elegante indumento infantil, cabelos arrumados de lado, como era comum às
crianças da época, e é estrategicamente posto a tocar levemente o braço esquerdo no ombro da
ama; o braço direito recosta sobre o braço também coberto de Mônica, numa cena
provavelmente encenada para que nada saísse fora do devido lugar. De modo a enfatizar os
personagens, a cena não dispõe de um cenário elaborado para a imagem, sendo os únicos
elementos do registro a mesa forrada, na qual Mônica repousa seu braço, e um tapete; o fundo
da imagem é um fundo claro, mas sem paisagens que identifiquem um local específico, tão
comum em outras fotografias.
Dois aspectos são pertinentes de serem abordados, principalmente nesta primeira
descrição da imagem. O primeiro deles é o fato dos pés de Mônica não estarem à vista, já que
a possibilidade de ela estar calçada, ou não, determinaria o status dela dentro da casa de
Augusto. Mas o fato de querer transparecer se ela ainda era escrava ou não, ao que parece, não
era importante para quem encomendou o registro. Outro aspecto é como o xale é abordado na
cena: seria uma forma de estabelecer uma referência à africanidade de Mônica, lembrando o
modo como as mulheres africanas montavam suas composições de vestuário, como aborda
Koutsoukos (2010)? Seria também proposital a escolha do ombro e braço direito estarem 355
cobertos por motivo, na construção da cena, de ser onde Augusto estaria recostado e impor um
limite de até onde o contato entre aqueles corpos poderiam ser significados no ato da imagem?
Acredito que estas são questões que permeiam sempre os espectadores que param para observar
e questionar mais atentamente a imagem. Independentemente de ser proposital ou não, o fato
de o menino não ter tocado diretamente a ama contribui efetivamente para como as amas de
leite são representadas aos olhos de quem hoje e à época observa suas imagens.
Figura 1 - Mônica e Augusto Gomes Leal. Recife, 1860.

Fonte: Acervo Fundaj, Recife. CFR 1795.

Mônica posa para a foto elegantemente sentada, como uma senhora distinta. Sua postura
altiva e imponente, juntamente ao modo como coloca seus braços em cena, colaboram para a
ideia de que tanto os senhores, quanto o fotografo, procuraram fazer dela uma figura que ao seu
modo impõe respeito a quem a olha, diferentemente de Augusto que, mesmo tocando nela de
modo que pudesse vir a significar uma ideia de “posse”, levando em conta a sua posição social,
ainda mantém visível o seu aspecto infantil. A centralidade de Mônica na disposição fotográfica
passa a imagem de que seria ela quem detinha o poder sobre aquela criança, aspecto que, dentro
da realidade das amas, era bastante crível, já que era ela quem detinha os cuidados sobre o corpo
do menino e não o contrário. Talvez também tenha sido esse o motivo de terem escolhido deixar
as mãos dela semifechadas, passando uma ideia de rigidez e segurança; quem viesse a observar
o retrato acharia que Augusto foi criado por uma ama de mãos firmes. Provavelmente, a
356
importância que Mônica teve para a família Gomes Leal ao cuidar do menino a fez ser
representada como tal, uma rainha negra em seu trono simples, porém simbólico.
Mas não é apenas a importância familiar e o afeto que fizeram as fotografias de amas
de leite serem tão trabalhadas. A aparência social também faz seu jogo, por isso o formato da
carta de visita foi tão procurado: ele era prático de ser acondicionado e servia muitas vezes para
cunho colecionável, como já foi visto acima. Então corroborando para essas diretrizes, é
possível que a imagem de Mônica não tenha sido apenas guardada pelos pais do menino no
álbum de família, ou talvez até exposto em um porta-retratos na sala de estar da casa, mas
também distribuído aos familiares distantes que buscavam acompanhar, através das fotografias,
o crescimento de Augusto. Finalizando a análise acerca do Studium de Barthes (1984), vamos
procurar compreender o Punctum da imagem, que como já foi dito acima, é o que nos prende à
imagem, algo específico que nos desperta interesse, nos emociona na fotografia.
Ao meu ver, esse ponto X seria o olhar austero que Mônica lança à câmera. Podendo ser
algo que o fotógrafo deixou escapar durante a fabricação teatral da cena ou mesmo sido
proposital, para averiguar um tom sóbrio. A severidade da ama pode sim ter sido também
fabricada para a cena, numa tentativa de passar a ideia de que a ama seria capaz de educar a
criança dentro do rigor exigido na época, mas também pode ter sido realmente um ato
despercebido tanto pelo fotógrafo, quanto pelos senhores, uma linha de fuga encontrada por
Mônica para registrar na imagem as insatisfações e obrigações de sua condição, a difícil carga
vital que ela teve que suportar durante toda sua vida, a exemplo da possível tristeza por não
estar sendo ali retratada ao lado de seu próprio filho e sim com um “filho” postiço, de quem
não se pode negar de todo a falta de afeto por parte dela. De qualquer forma, independente da
intenção, o olhar de Mônica atravessa a fotografia e permite que fabulemos a sua condição
enquanto sujeito.
Já no segundo registro, Mônica não aparece mais como a figura central na imagem,
percebe-se que o fotografo, um outro que não o primeiro, desta vez, preferiu não colocar o foco
direto em nenhum dos personagens registrados, fazendo com que ela e a criança, de certa forma,
“disputassem” igualmente o espaço. Como dito, desta vez, Mônica não aparece mais com
Augusto ao seu lado, mas com uma menina (ou adolescente) de nome Izabel. Não se sabe ao
certo o grau de parentesco dos dois, mas poderia ser sua irmã mais nova ou talvez uma prima;
o que nos cabe especular é que Mônica provavelmente dedicou sua vida a uma única família,
talvez motivo mais que suficiente para que fosse necessário um segundo registro seu.
A concepção imagética, em síntese, foi bastante parecida com a anterior: adotou-se mais 357
uma vez um fundo claro e sem paisagem para que o olhar do espectador não fosse desviado dos
personagens. Os objetos parecem se repetir: uma nova mesa toma o lugar da que antes Mônica
pousava seu braço esquerdo, aparecendo agora do lado direito, forrada com um pano liso, de
aspecto também claro, e, para completar o simples cenário, um tapete também compõe o
quadro. Mônica aparece trajada de um vestido claro, novamente no estilo das damas senhoriais,
simples e de pouca ou nenhuma estampa. Seu xale também claro e com sinais de algumas
estamparias, cobre ambos os ombros, fechando-se na parte da frente, impedindo o diagnóstico
de o vestido de Mônica ter ou não um decote; nota-se também o detalhe do brocado branco que
desce pelo ombro esquerdo dela e que é elegantemente arrumado no colo da ama. Juntamente
ao xale brocado, uma gargantilha e algo que se pode identificar como um anel ornamentam
novamente Mônica e quebram um pouco a simplicidade de suas vestimentas.
Outro elemento bastante peculiar que aparece nesse registro é o elegante espaldar da
cadeira, em madeira bem elaborada, assemelhando-se a um trono. Mais uma vez, Mônica não
tem os pés visíveis, uma vez que seu vestido, novamente, os cobre. Izabel, por sua vez, aparece
com cabelos devidamente arrumados e cacheados, como era costume para as garotas da época,
suas vestes escuras assemelham-se muito aos das senhoras adultas, conferindo-lhe um ar mais
adulto. Ainda assim trata-se de uma vestimenta de modelo infantil, o que se nota pelo
comprimento das saias menores que o normal, o que proporciona espaço para que a menina
exponha sua elegante bota.
Analisando a imagem, assim, identificamos que os objetos utilizados pelo fotografo para
a composição do cenário são praticamente os mesmos tipos de objetos que compuseram o
primeiro registro, com exceção clara da cadeira que, ao contrário da primeira foto, mostra o
espaldar rebuscado atrás da ama. Mônica, porém, aparece sentada mais ao canto, sua pose já
não é mais altiva e imponente como na primeira vez, seus ombros já não estão mais tão firmes
e seu cabelo está completamente branco; ela parece cansada. Izabel completamente ereta ao seu
lado, tem, por sua vez, uma expressão grave e diferente da infantilidade de Augusto; um paço
atrás da ama, Izabel recosta levemente o braço direto no ombro esquerdo de Mônica, tendo sua
mão direita levemente tocada por sua mão esquerda. Mas, voltando à figura da ama, Mônica já
parece cansada de uma vida de obrigações e cuidados dados, sua expressão já não possui a
mesma firmeza de outrora, embora se porte dignamente mantendo a pose o mais firme que
consegue diante da câmera (notemos que ela não encosta na cadeira); Mônica já é uma senhora
que dedicou sua vida às crianças da família Gomes Leal e agora retorna ao estúdio fotográfico,
levada novamente, supostamente, pelos pais da menina para ter mais um registro seu anos após
o primeiro. 358
Figura 2 - Mônica e Izabel Adelaide Leal Fernandes. Recife, 1877-1882.

Fonte: Acervo Fundaj, Recife. CFR 2139.

Em suma, Mônica, notadamente mais velha, já poderia não ser mais escrava na casa dos
Gomes Leal, até porque a menina Izabel, por seu tamanho, já havia desmamado há alguns anos.
Mas o que levou os pais da menina a levar Mônica novamente ao registro fotográfico?
Retomaremos a ideia de afeto explorada por Koutsoukos (2010); Izabel, sendo da família de
Augusto, provavelmente teve seus cuidados iniciais pelas mãos de Mônica, então,
possivelmente, com a ama de leite já idosa, a família agradecida pelos seus serviços, prestaria
sua gratidão com um novo registro. Mônica entraria nos álbuns da família como ama de leite
de mais de uma geração dos Gomes Leal. Nesta imagem, vemos em Mônica uma figura pequena
em relação a figura de Isabel, que mesmo sendo bem mais nova (e provavelmente bem mais
baixa), parece ser bem maior do que Mônica. Levando em consideração o que foi dito, o que
essa nova imagem de Mônica nos traz?
Diversos pontos podem ser sugeridos como resposta a esse questionamento, o primeiro
deles pode ser o fato de Izabel ser representada como uma criança forte e saudável ao lado de
Mônica já velha e cansada, passando a ideia de que Mônica realmente dedicou-se aos cuidados
da menina e agora, já cansada, registra o resultado dos seus cuidados. Ela seria vista em sua
359
trajetória como uma boa ama de leite, ainda mais levando em conta que esse segundo registro
acompanharia o seu retrato com Augusto nas disposições do álbum da família, dando uma ideia
de trajetória. Outro viés pode ter a ver com o fato de que, já que Mônica dedicou sua vida inteira
a uma única família, a família Gomes Leal a tenha acolhido e passado a dispender cuidados a
quem foi durante anos a sua ama de leite. Neste ponto, a figura de Izabel representaria na
imagem esse afeto e cuidados que são dispendidos a Mônica, um agradecimento familiar, ao
modo da época. Um terceiro viés, e talvez o mais impactante, seria o interesse de registrar pura
e simplesmente a velhice de Mônica, partindo da ideia que era raro um escravizado chegar à
idade avançada, como Mônica demonstra ter alcançado. Nesta ideia, Izabel aparece como a
representante familiar, a última criança cuidada pela velha ama, a qual a família elegeu para
que fosse representante de toda a preocupação que a família possuía por seus escravos, uma
casa onde, se encena, todos são bem cuidados e acalentados. Mônica aí representaria o resultado
executado perfeitamente pela família, a propagação da ideia de uma escravidão branda, como
já foi abordado no início deste artigo. Com estas hipóteses, finalizamos nossa analise acerca do
Studium do segundo registro fotográfico de Mônica.
Partindo agora para a analise do Punctum da imagem, diferentemente da primeira
imagem, não há apenas um ponto que pode nos chamar a atenção, mas alguns. O primeiro deles
é o olhar que Mônica dispende para a câmera, um olhar que não lembra em nada a austeridade
do registro anterior. Nessa foto, o olhar dela é calmo, sereno, mas ao mesmo tempo cansado,
como quem carregou um grande fardo a vida inteira. Em sintonia com o olhar, temos o que
podemos identificar como sendo um esboço de sorriso, como se ali estivesse acesa uma centelha
de alegria por ter mais uma criança bem cuidada e crescida ao seu lado; estaria Mônica feliz,
de certo modo, pelas criações que fora responsável?
Ao questionar isso, outro pensamento surge, o de que, mais uma vez, Mônica soube
habilmente usar a linha de fuga da câmera e dar sua contribuição para a imagem; um olhar
sereno, cansado, acompanhado de um esboço de sorriso. E se esse olhar sereno e o quase sorriso
foi milimetricamente estudado e ensaiado pelo fotografo na hora da montagem da cena? Estaria
Mônica aí, a mando do fotografo ou de quem a levou, forçosamente simulando uma felicidade
ao lado de Izabel para que a repercussão da foto fosse justamente a de que ela tivera uma vida
feliz no seio da família, que fora bem cuidada? Estas são questões fabuladas, mas que, pela
própria natureza da ideia de representação, permanecerão sem respostas.
Voltando ao diagnóstico dos vários Punctuns que venho relatando, estão as mãos de
Mônica, que já não passam mais a ideia de firmeza e se escondem quase que completamente
por dentro do xale, que na verdade a cobre o colo inteiro, escondendo o provável decote que o 360
vestido possuía; isso passa a nos remeter a um certo recato justificado pelo visível
envelhecimento que Mônica apresenta com seus cabelos completamente brancos. Ao seu lado
encontra-se Izabel, que com seus trajes elegantes e sóbrios, traz em seu olhar uma seriedade
construída. A pose da menina, diferentemente da de Augusto, não remete em nada à
espontaneidade, dá a entender que ela foi induzida a parecer mais adulta do que sua idade
realmente permite. Deste modo, podemos averiguar outro ponto divergente em relação a
primeira foto: Mônica, agora frágil e envelhecida, não exerce mais poder sobre o corpo da
menina, agora Izabel é a detentora do poder que emana sobre os corpos representados na foto.
Com base no que foi discorrido acima, o grande diferencial que delineia as duas
fotografias, é a passagem de tempo sofrida por Mônica, a sua trajetória como uma mulher altiva
de olhar austero a uma senhora idosa, de olhar complacente e cansado. De tutora dos corpos
infantis dos filhos de seus senhores a tutelada dos adultos que ajudou a formar. É interessante
pensar nas fotografias de Mônica como exemplo de como se dava o envelhecimento do
escravizado, já que raros são os registros de uma mesma pessoa escravizada em duas fases da
sua vida, levando em conta que muitas vezes os escravizados não chegavam a envelhecer,
devido às altas atrocidades entalhadas pelo trabalho servil. Mônica foge à regra e sai do lugar
de provedora de cuidados e assume o lugar de detentora desses cuidados. A fragilidade do corpo
idoso de Mônica expõe um processo duplo: a acentuação de sua vulnerabilidade, mas também
a longevidade de sua sobrevivência.

5. CONCLUSÃO
Para além dos detalhes e questionamentos que cada imagem nos traz em separado são
as questões levantadas quando elas são postas lado a lado que parecem assumir real importância
analítica, já que nos permite perceber questões geracionais que permeiam as relações entre as
duas fotografias. Claramente, Mônica é um dos raros exemplos de registros feitos de amas de
leite e nos ajuda a compreender finas relações de poder presentes nas representações a partir do
seu processo de envelhecimento.
As instâncias de representação, diferente do dia-dia escravo, constituem um ambiente
que permite que Mônica seja representada ora com poder, ora com vulnerabilidade. E isto
certamente age sobre o imaginário que construímos historicamente sobre os corpos negros e
sobre a escravidão. Optando por fazer um estudo de representação, como é caro para a História
Cultural, não pretendo encerrar as questões sobre a escravidão, mas iniciar uma discussão sobre
os processos históricos que atravessam esses registros estéticos e que eternizam
controversamente o momento da escravatura, um dos mais cruéis do país. É importante, em
361
suma, olhar para este período tentando dar conta de suas densidades e da complexa rede de
relações que o forma.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALENCASTRO, Luiz F. (org.). História da vida privada no Brasil vol.2. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.

ARAÚJO, Rita de Cássia B; MOTTA, Tereza A. (orgs.) O retrato e o tempo: Coleção


Francisco Rodrigues, 1840-1920. Recife, Fundação Joaquim Nabuco, Ed. Massangana, 2014.

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1984.

FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala – formação da família brasileira sob o regime
da economia patriarcal. São Paulo: Ed. Global, 2003.

KOSSOY, Boris. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

KOUTSOUKOS, Sandra S. M. Negros no estúdio fotográfico: Brasil, segunda metade do


século XIX. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010.

MACHADO, Maria H. P. T. Mulher, corpo e maternidade. In GOMES, Flávio; SCHWARCZ


Lilia M. (orgs) Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
p. 334-340.

NABUCO, Joaquim. Minha formação. São Paulo: Editora 34, 2012.

TELLES, Lorena F. S. Amas de leite. In GOMES, Flávio; SCHWARCZ, Lilia M. (orgs)


Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 99-105.

362
A GENTE NEGRA NA GUARDA NACIONAL DA PARAÍBA NO SÉCULO XIX
(1831-1850).

Lidiana Emidio Justo da Costa


Mestrado, UFPB
leejusto@hotmail.com

INTRODUÇÃO

Em todos os níveis, as instituições militares brasileiras eram extremamente


permeáveis à sociedade civil. Certamente, isto caracterizava as milícias e
mais ainda a Guarda Nacional civil que as substituiu em 1831. (KRAAY,
2011, p.19).

A citação anterior do pesquisador Hendrik Kraay é muito pertinente quando


refletimos sobre as instituições da ordem formadas no Brasil. Como observou o autor, essas
instituições foram permeáveis à sociedade civil, com efeito, os estudos sobre os corpos militares
têm mostrado intensa participação de pessoas, oriundas dos diferentes segmentos social e
étnico-racial, na composição das respectivas organizações. 1
Os corpos militares formados durante o período colonial brasileiro seguiram o
modelo português, portanto, encontravam-se divididos em Corpos Regulares (Tropa paga ou
de 1ª Linha), Milícias Auxiliares e Ordenanças. Na colônia, os corpos de Infantaria das Milícias
eram divididos por critérios raciais, os chamados Terços de brancos, pardos e negros libertos,
divisão étnica que a lei de criação da Guarda Nacional em 1831 modificou, atitude que, naquele
momento histórico, repercutiu e provocou acaloradas discussões.2
Os sujeitos africanos ou seus descendentes integrantes dessas forças da ordem
foram nomeados na documentação de diversas maneiras: “pardos, mulatos, mestiços, negros e
pretos” (KRAAY, 2011, p. 13). Um dos casos mais referenciados na historiografia é o do
capitão Henrique Dias, ex-escravo alforriado, que lutou nas guerras holandesas e chegou a ser

1
Dentre os diversos estudos sobre a temática, cabe mencionar os de: CASTRO, Jeanne Berrance de. A milícia
cidadoa: A Guarda Nacional de 1831 a 1850. São Paulo: Ed. Nacional, 1977. COTTA, Francis Albert. Negros e
mestiços nas milícias da América Portuguesa. Belo Horizonte: Crisálida, 2010; KRAAY, Hendrik. Política Racial,
Estado e Forças Armadas na época da Independência: Bahia 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2011; MOREIRA,
Vânia Maria Losada. De índio a guarda nacional: cidadania e direitos indígenas no Império (Vila de Itaguaí, 1822-
1836). Revista Topoi, jul-dez, 2010, v. 11, n. 21. p. 127-142 e NUNES, Herlon Ricardo Seixas. A Guarda Nacional
na Província Paraense: representações de uma milícia para-militar (1831-1840). São Paulo: Pontifícia
Universidade Católica, Dissertação de Mestrado em História, 2005.
2
Jornal O Mulato ou o Homem de Cor é do ano de 1833; O Brasileiro Pardo, de 1833; O Exaltado, de 1831-1833; 363
o Diário Fluminense, de 1830-1833; O Evaristo, de 1833, e Aurora Fluminense, de 1830-1833. Todas essas
publicações são do Rio de Janeiro (LIMA, 2001).
condecorado com a comenda “Cruz da Ordem de Cristo”. No ano de 1639 foi reconhecido em
Carta Patente como governador dos crioulos, negros e mulatos, Dias chegou a receber da coroa
portuguesa a quantia de 40 cruzados mensais pela sua prestação de serviços.
Sendo assim, como se pode perceber, Henrique Dias teve uma trajetória de intensa
dedicação à coroa e seu falecimento em 1662, conforme analisou Kraay (2011), o consagrou
como herói - “A partir de então diversos corpos militares compostos por negros passariam a ser
denominados Henriques” (2011, p. 25). O caso de Henrique Dias é bem interessante quando se
analisam as formas de mobilidade encontradas pelos homens negros inseridos nessa sociedade
brasileira escravagista e hierárquica, tornando-se, durante muito tempo, algo corrente no
imaginário social.
No século XIX, a Guarda Nacional, milícia cidadã e de manutenção da ordem
interna, ainda que sob outro formato, foi também um canal de inserção desses homens de cor.
A proposta deste trabalho é analisar a Guarda da Paraíba e tomá-la como fio condutor,
convidando o leitor/pesquisador a olhar pela frincha da instituição buscando perceber os perfis
étnico-raciais dos sujeitos que a compuseram.
Mas, antes de seguir para o próximo tópico, é preciso salientar que a documentação
analisada para este artigo, constituiu-se de listas de qualificação para o serviço da Guarda
Nacional da Paraíba; Cartas Patentes e correspondências oficiais, as quais podem ser
encontradas no Arquivo Histórico Waldemar Bispo Duarte (AHWBD-PB).3 Também foi
importante na reconstituição da trajetória do miliciano Vicente Fernandes de Luna, o “Banco
de dados dos registros de Batismos da freguesia Nossa Senhora das Neves/Parahyba, 1833-
1860”.4

O CENÁRIO OITOCENTISTA PARAIBANO E SEUS ATORES SOCIAIS

De acordo com a literatura sobre a História da Paraíba, a Cidade da Parahyba


apresentava, no início do Oitocentos, caracteres de aglomerado urbano, uma capital ainda
atrasada, assim como muitas capitais do Império brasileiro. 5 Cenário que começou a ser
modificado somente a partir de meados do Século XIX.

3
Ao longo do texto o nome Paraíba, será utilizado para se referenciar à província, e Parahyba, à cidade.
4
Banco de dados dos registros de Batismos da freguesia Nossa Senhora das Neves/Parahyba, 1833-1860.
Resultados de Pesquisa do Projeto Gente Negra na Paraíba Oitocentista: redes sociais e arranjos familiares.
Coordenado pela Profa. Solange P. da Rocha (DH/PPGH/NEABI). PIBIC/CNPq/PRPG/UFPB-2009-2011. CD- 364
ROM.
5
DINIZ, Ariosvaldo da Silva. A Maldição do Trabalho. João Pessoa: Manufatura, 2004. p. 154.
Caminhar pelas ruas da cidade era se defrontar com um espaço no qual
combinavam-se diversões, trocas culturais, bem como punições e vigilâncias por parte das
autoridades. As festas negras, acompanhadas de seu “batuque e do samba, os Maracatus, os
Congos, os Cabindas” (LIMA, 2010, p.112), inquietavam as autoridades policiais que,
frequentemente, viam a ordem citadina sendo alterada pelos distúrbios advindos dessas festas,
como brigas ou embriaguez.
E foi nesse ambiente que se destacou uma figura que acabou sendo alvo dos
mexericos de muitos bisbilhoteiros da cidade. Chamava-se Simplício Narciso de Carvalho,
proprietário do sítio Boi-só, local considerado à época um “celeiro alimentício da cidade,
suprindo-a de frutas, verduras e cereais” (RODRIGUEZ, 1994, p. 21). Simplício era casado
com Maria Juliana Teixeira, da qual não se encontrou na documentação consultada, maiores
informações.
Juntando peças como para um mosaico, encontramos relatos sobre Simplício em
alguns memorialistas paraibanos, os quais não deixaram-no passar despercebido, a exemplo de
Rodriguez (1994). Segundo o autor, Simplício era “um homem de cor” que se consolidou como
um abastado proprietário, possuindo alguns domicílios na cidade da Parahyba. Em muitas
ocasiões, foi alvo dos comentários dos seus concidadãos de que, de tão rico que era, só comia
em baixelas de prata. A esposa fazia o mesmo quando se encontravam em desarmonia. Verdade
ou não, o fato é que o mexerico tornou-se corrente entre os seus conterrâneos. Mas questiona-
se, por que tanto burburinho sobre sua vida privada?
Assim, seguindo pistas e rastros de Simplício, foi possível verificar que sua história
acabou tracejando relações com aquela que se tornou uma espécie de lenda no bairro do Tambiá
e seus entornos, tratava-se da preta africana Maria “Jararaca”, que tivera dois filhos e ficara
num estado de depressão profunda, quando o rico e avarento Coronel José Narciso de Carvalho,
os vendeu para o sul do Brasil no contexto do tráfico interprovincial.
Essa atitude fez com que ela tivesse constantes acessos de fúria, razão pela qual
recebeu a alcunha de “jararaca”, só acalmando quando se encontrava na presença de meninos
brancos ou de cor (MEDEIROS, 1994). O então coronel José Narciso de Carvalho era pai de
Simplício e como muitos homens da elite de seu tempo, fora provedor da Santa Casa de
Misericórdia, nos anos de 1843 a 1844 e 1844 a 1846, conforme destacou Wilson Nóbrega
Seixas (1987). A realidade é que Simplício herdou bens de valor que, de alguma maneira, o
projetaram na sociedade de seu tempo. É possível que os comentários sobre sua pessoa
perpassem por essas tessituras, pois tinha ascendência africana, era filho de um rico e 365
proeminente proprietário, do qual também era um dos herdeiros.
A pesquisadora Solange P. da Rocha (2009) identificou Simplício Narciso de
Carvalho em sua tese. Segundo a autora, diferentemente dos outros proprietários, os quais
batizavam os bebês escravizados em dias festivos, ele costumava batizar essas crianças em sua
propriedade, especificamente, nos dias dos festejos de São João e Natal, para o evento chegava
a convidar padrinhos escravos e madrinhas. Esse comportamento peculiar, segundo Rocha,
consistiu em se afirmar naquela sociedade, já que se tratava de um homem de cor. Mesmo
assim, cabe uma ressalva, ele não era um iniciante no universo dos senhores escravistas,
porquanto já o integrava (ROCHA, 2009).
E dentro desse universo escravagista, encontramos Simplício, no rol do oficialato
da Guarda Nacional da Paraíba, talvez “atestado” social de sua relevância e prestígio. Em
pesquisa de mestrado realizada entre 2010 a 2013, no AHWBD, foi encontrada em meio ao
vasto corpus documental sobre a Guarda Nacional, uma Carta Patente endereçada a esse
personagem.
A Carta Patente era concernente ao ano de 1845, entregue pelo então Presidente da
província da Paraíba, Frederico Carneiro de Campos, o qual outorgou o posto de Alferes da 1ª
Companhia do 2º Batalhão da 2ª Legião da Guarda Nacional da cidade da Parahyba a Simplício
Narciso de Carvalho.6 Conforme dizia o documento, ele deveria receber todas as “honras,
direitos, isenções e franqueza”.7
Nesse mesmo ano, ele apareceu numa proposta de oficiais ao então Presidente,
elaborada pelo comandante Amaro Victorino da Gama, para que o então Alferes Simplício
ocupasse o posto vago de Tenente-ajudante, anteriormente ocupado por João Teixeira de
Vasconcelos, tendo em vista que ele não havia tirado sua patente e nem se fardado a tempo. 8
Segundo o comandante, Simplício Narciso de Carvalho era “ativo e capaz de desempenhar o
cargo”.9 Os respectivos reconhecimentos por parte do presidente de província e do comandante
da Guarda, acabam sendo indícios de que Simplício, um sujeito de ascendência africana,
conseguiu ingressar no concorrido posto de oficial da milícia.

6
Carta patente de Simplício Narciso de Carvalho, de 1845, para ocupar o posto de Alferes da 1ª Companhia do 2º
Batalhão da 2ª Legião da Guarda Nacional da cidade da Parahyba, pelo então Presidente da província, Frederico
Carneiro de Campos. AHWBD/PB, Cx: 022, Ano: 1845.
7
Carta patente de Simplício Narciso de Carvalho, de 1845, para ocupar o posto de Alferes da 1ª Companhia do 2º
Batalhão da 2ª Legião da Guarda Nacional da cidade da Parahyba, pelo então Presidente da província, Frederico
Carneiro de Campos. AHWBD/PB, Cx: 022, Ano: 1845.
8
Relação de oficiais propostos pelo comandante do 2º Batalhão da 2ª Legião da Guarda Nacional da cidade da
Parahyba, Amaro Victorino da Gama, em 10 de julho de 1845. AHWBD/PB, Cx: 022, Ano: 1845. 366
9
Relação de oficiais propostos pelo comandante do 2º Batalhão da 2ª Legião da Guarda Nacional da cidade da
Parahyba, Amaro Victorino da Gama, em 10 de julho de 1845. AHWBD/PB, Cx: 022, Ano: 1845.
A este respeito, o que chama atenção sobre a pessoa de Simplício é que em nenhum
momento a sua cor é mencionada, mas foi possível chegar à mesma a partir dos memorialistas
paraibanos Coriolano de Medeiros (1994) e Walfredo Rodriguez (1994). Algo que de certa
maneira não é de se assustar, pois como se sabe, na maioria das vezes, a pigmentação da pele
desaparecia quando a pessoa de cor tinha posses (FARIA, [s.n.t.]) ou quando o que estava em
mérito eram as condições necessárias, ou seja, a posse, os bens ou a riqueza.
O caso de Simplício, provavelmente, não foi o único na província da Paraíba. Uma
pessoa de ascendência africana ocupando um posto no oficialato, pois como discutido na
introdução desse texto, nas antigas milícias coloniais isso já ocorria. No entanto, diferentemente
delas, a Guarda “rompeu” com as ditas “divisões raciais”, abrindo a possibilidade de pessoas
de cor através do sistema eletivo inicial, chegarem a um posto de comando na milícia. Embora
no ano de 1837, um decreto provincial tenha alterado tal sistema, passando essa atribuição para
as mãos dos presidentes de província.10
Feita esta observação, a Carta Patente de Simplício, que datava de 1845, era
posterior ao decreto de 1837 e por isso conferida pelo presidente de província. Os indícios
documentais e os memorialistas corroboram no sentido de compreender que ele era alguém
reconhecido naquela sociedade oitocentista, já que esta promoção passava pelo crivo dos
“méritos necessários”, principalmente, no que concerne ao status social ou teias de
relacionamentos da qual esse sujeito fazia parte (COSTA, 2013).
Outras evidências sobre a participação de pessoas negras na Guarda Nacional da
Paraíba, podem ser conferidas na documentação concernente ao ano de 1833 a 1836. Essa
documentação apresenta diversas listas de qualificação no AHWBD/PB, constando
informações diversas, tais como a cor dos sujeitos, detalhes sobre suas ocupações e em outras,
apenas o nome do cidadão alistado. Desta feita, como não havia uma padronização oficial,
pode-se observar que os responsáveis acabavam tendo maior autonomia para fazer o
alistamento conforme achassem mais pertinente. Algumas listas apresentavam as seguintes
designações: nome do cidadão, qualidade (para se referir à cor), estado (especificando se era
casado ou não), idade e ocupação. Outras, dependendo do qualificador, ainda informavam sobre
o número de escravos, foreiros e reservava um campo para possíveis observações. 11

10
Provavelmente, uma consequência das inúmeras críticas que a respectiva lei sofrera, principalmente, daqueles
que a consideravam demasiadamente liberal (CASTRO, 1979), ainda assim, as divisões continuaram extintas. O
tal decreto acabava sendo uma forma do governo ter um maior controle sobre os postos de oficiais, algo que, em
1850 se transformará na Lei n. 602 de 19 de setembro de 1850, a qual subordinou a milícia ao ministério da justiça
e presidentes de província (COSTA, 2013). 367
11
Ver listas de qualificação (AHWBD/PB, 1833-1836).
Para este artigo, será analisado o processo de qualificação de cidadãos para o
serviço ordinário das Guardas Nacionais do Distrito de N. S. das Dores de Alagoa Grande de
1833. Essa lista chama atenção pela quantidade expressiva de pessoas não brancas, sendo algo
recorrente em outras listas de qualificação, mas que neste breve texto não é possível analisar.
Dessa forma, o que se quer é chamar atenção para a presença de pessoas de cor que formaram
o efetivo da milícia.

Tabela 1- Cor dos guardas alistados no Distrito


de N. S. das Dores de Alagoa Grande, em 1833
Cor Número
Pardos 40
Pretos 12
Brancos 12
Total 64

Fonte: AHWBD/PB, Cx: 10, Ano: 1830/1833.

Atente que os cidadãos identificados como brancos constam doze pessoas, já os


incluídos na categoria de pardos e pretos totalizam cinquenta e duas pessoas. Um número
expressivo e que se confirma em listas de qualificação que abrange o recorte de 1833 a 1836.
No entanto, entende-se que mesmo não chegando a ser uma novidade, tendo em vista estudos
sobre a população paraibana realizados por pesquisadores como Medeiros (1999), Rocha
(2009) e Lima (2009), a informação é importante, pois permite vislumbrar e até tentar lançar
luz sobre os questionamentos a respeito da composição do efetivo presente na Guarda Nacional
paraibana, instituição da ordem e dita cidadã.
Dados mais específicos sobre a população de pardos e negros foram discutidos por
Rocha (2009). A autora analisou que em 1811 havia na província da Paraíba uma população
estimada em torno de 122.407 indivíduos, categorizados como pardos, pretos, indígenas e
brancos. Desse total, 73.794 eram negros, dos quais 61.458 pessoas foram designadas como
sendo pardas e 12. 336 eram pretas.
Ao longo do Oitocentos, o grupo de pardos tornou-se predominante no conjunto da
população livre e cativa. Realidade bem diferente para os grupos formados por indígenas e pela
população branca. Segundo Rocha (2009, p. 111) os indígenas no ano de 1811 “representavam
apenas 2,8% da população total, e os brancos se mantiveram em crescimento, mas não
conseguiram superar a população negra (parda e preta), que permaneceu 60%”. Nas décadas 368
seguintes, principalmente com o censo de 1872, que arrolou a população por cor da pele, esta
realidade se confirmou, pois do total da população de 376.226 habitantes, a maior parte era
constituída por pessoas negras (pardos e pretos).12
Esse perfil étnico-racial da população paraibana, constituída em sua maior parte por
pessoas de ascendência africana, também foi percebido na província vizinha (Pernambuco).
Ana Corolina Teixeira Crispin (2011) analisou a presença de pardos e pretos nas instituições da
ordem em Pernambuco, destacando de um lado que isso fazia parte do projeto metropolitano
para promover a inserção desses sujeitos e evitar distúrbios sociais. E, ao mesmo tempo, essas
instituições acabavam sendo espaços nos quais se obtinham “honrarias, privilégios e
reconhecimento social” (2011, p.5). Crispin destacou que em Pernambuco e em toda região
nordeste, a população livre de cor “predominavam sobre o número de escravos já em inícios do
século XIX” (2011, p.19), observação que dialoga com o que pesquisou Rocha (2009) a respeito
da Paraíba.
Essas informações corroboram no sentido de compreender a acentuada presença de
pessoas negras na Guarda Nacional paraibana, ainda que essa cor apareça na documentação sob
a denominação diferente do recorrente (brancos, pardos e pretos), como foi o caso de um
miliciano de cor semibranca. Nesse sentido, procurando pistas sobre a presença dos sujeitos
afrodescendentes na milícia paraibana, encontramos em um “Assento de praças dos Cornetas 13
do Batalhão de Guardas Nacionais da Villa de Bananeiras” do dia 22 de outubro de 1833, a
seguinte comunicação:

3ª Companhia- Cornêta José Antonio Francisco para o lugar do Cosme


Marinho de Araujo natural da cidade da Parahyba, casado, com 25 anos de
idade quando sentou praça, tem quatro pés de altura, cabellos e olhos pretos,
cor negra [...]. 1ª Companhia- Cornêta Antonio Ferreira Lima para o lugar de
Salvador Soares natural da Villa de Bananeiras solteiro com 20 anos de idade
que sentou praça tem quatro pes e meio de altura cabellos e olhos pretos, Indio
[...]. 3ª Companhia- Cornêta Joaquim Ferreira de Andrade para o lugar de
Manoel Ferreira, natural de Jaguaribe Província de Ceará, casado com 21 anos
de idade quando sentou Praça com três pes e meio de altura, semi-branco,
cabelos pretos, e olhos azuis [...].14

12
O censo de 1872 foi o primeiro recenseamento que ocorreu no Brasil. As informações estão disponíveis em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo?id=225477&view=detalhes. Acesso em: 26 nov. 2018.
13
Silva (1789) definiu a corneta como um “instrumento de couro ou de marfim para fazer som, usado dos rústicos
e caçadores, e dos cavalleiros andantes”. Esse serviço deveria ser pago pelo governo da província quando não
pudesse ser gratuito.
14
“Assento de praça dos Cornetas do Batalhão de Guardas Nacionais da Villa de Bananeiras”, assinado pelo 369
Tenente-coronel Leonardo Bezerra Cavalcante e datado de 22 de outubro de 1833. AHWBD/PB, Cx: 011, Ano:
1830/1833. Grifos meus.
Ter pessoas habilitadas para o posto de corneta na milícia era muito difícil,
observamos que os comandantes em seus relatórios aos presidentes de província, além de
inúmeras requisições de papéis para confecções de listas e mapas, também informavam sobre
a necessidade do instrumento e de cidadãos aptos para executá-los. Pode-se afirmar que os
cidadãos José Antonio Francisco, Antonio Ferreira Lima e Joaquim Ferreira de Andrade eram
milicianos instruídos nessa arte, portanto, provavelmente indispensáveis para o andamento do
serviço da Guarda Nacional.
Na citação anterior, a cor dos guardas foi destacada, mais uma vez lançando luz
sobre a composição étnico-racial desses sujeitos, podendo-se identificar que se tratava de um
negro, índio e semibranco, respectivamente. Os dois cornetas José Antonio Francisco substituto
de Cosme Marinho que, dentre outras características elencadas, tinha cor negra e Joaquim
Ferreira de Andrade, um semibranco, substituto de Manoel Ferreira Jaguaribe, são mais indícios
dessa participação da gente negra na Guarda Nacional paraibana.
Tratava-se de um momento de renovação dos quadros de corneta na Guarda da
Villla de Bananeiras, função que, conforme percebeu Costa (2013), era uma queixa constante
dos comandantes, pois poucos eram preparados e, para completar, o governo provincial deixava
a desejar com a manutenção da milícia. Chamamos atenção para José Antonio e Joaquim
Ferreira, sujeitos que, como se pode atentar, possuíam ascendência africana, ocupando um
cargo de relevância na Guarda se era por necessidade ou não, o fato é que eles supriram tal
necessidade. A cor semibranca conforme Diana Galiza (1979), Solange Rocha (2009) e Sandra
Monteiro (2011) servia para indicar que se tratava de alguém de ascendência africana.
Não passa despercebida a presença do índio Joaquim Ferreira de Andrade na
Guarda Nacional, algo que ilustra o aspecto da convivência étnica na milícia. No entanto,
ocorreu de forma esparsa, pelos menos foi o que pode-se perceber na documentação
concernente ao recorte de 1831 a 1850.
Sobre essa participação indígena na Guarda, o pesquisador Herlon Ricardo Seixas
Nunes (2005), no estudo intitulado: A Guarda Nacional na província paraense: representações
de uma milícia para-militar (1831-1840), relatou o caso do índio João Botelho que chegou a
ser um comandante da Guarda Nacional no Pará, e que inclusive apoiou a Revolta dos Cabanos
(1835-1840). Afora esse caso de um índio no comando da Guarda, também analisou que devido
à adesão de muitos guardas à revolta, houve momentos no quais as autoridades provinciais
acabaram optando pelo indígena para compor o efetivo da milícia. Cabe mencionar que a
inserção do índio não escapava ao olhar civilizador, em que na ausência de gente considerada 370
apta, o elemento bárbaro deveria ser civilizado para melhor servir aos interesses da nação,
conforme destacou Nunes (2005).
Uma curiosidade sobre o recrutamento de indígenas para o Exército na província
da Paraíba, é a forma ríspida com que as autoridades se referiam aos mesmos. No ano de 1839,
o Presidente da província, João José de Moura Magalhães, ordenou que fosse comunicado ao
subprefeito de Alhandra sobre como proceder no recrutamento dos índios, dizendo: “faça
prender para o serviço do Exército alguns índios vadios, solteiros e sem ocupação que me consta
nos lugares denominados Timbaúba e Sapé”.15 E alertava ao prefeito, Francisco Xavier de
Albuquerque que, caso os índios se retirassem sem licença, deveriam ser punidos “visto se não
poder tolerar que desamparem o trabalho, para o qual forão engajados, não lhe faltando com o
salário estipulado”.16
O que se pode inferir com base nesses discursos do Presidente da província, é que
aqueles índios considerados vadios, possivelmente, eram pessoas sem ocupação, portanto,
deveriam, como punição, ser recrutados para o Exército. Esse comportamento intolerante, de
certa forma, explica a ojeriza que muitos indivíduos sentiam em relação a essa instituição
militar.
A Guarda Nacional também não escapou da malquerença dos milicianos. Em
Salvador, por exemplo, muitos cidadãos alistados para o serviço na milícia no ano de 1831
rejeitaram a nova corporação (KRAAY, 2011) e, quando da eclosão da Sabinada (1837-1838),
as antigas milícias e suas divisões raciais foram restauradas. Kraay verificou que muitos não
queriam ser cidadãos para não servirem na milícia por acharem o serviço degradante, havendo
casos extremos, como foi o de um ex-soldado da milícia preta que “não compareceu às
instruções cortando seu uniforme ao meio e enviando os pedaços ao seu oficial” (2011, p. 332),
o mesmo mostrava-se saudoso das milícias coloniais.
Na Paraíba, não encontramos nenhuma manifestação dos cidadãos pretos e pardos
em favor das antigas milícias, no entanto, foram muitos os casos de guardas que tentaram
escapar do serviço, alegando moléstias e escondendo-se sob vários subterfúgios. Algo que de
certa maneira se justificava, pois nem sempre os guardas sentiam-se confortáveis quando

15
Correspondência do Presidente da provincial da Paraíba, João José de Moura Magalhães, para Francisco Xavier
de Albuquerque, prefeito interino da Comarca da Paraíba, determinando que fosse ordenado ao subprefeito de
Alhandra o recrutamento de índios vadios para o Exército, concernente a 23 de fevereiro de 1839. AHWBD/PB,
Cx: 017, Ano: 1839.
16
Correspondência do Presidente da provincial da Paraíba, João José de Moura Magalhães, para Francisco Xavier 371
de Albuquerque, prefeito interino da Comarca da Paraíba, determinando que os índios deveriam ser novamente
engajados no trabalho do Exército, concernente a 25 de fevereiro de 1839. AHWBD/PB, Cx: 017, Ano: 1839.
convocados, tendo em vista que perdiam os dias de serviço, seja na lavoura e/ou em outros
ofícios, ocupações que garantiam seu sustento e de toda a família (COSTA, 2013).
Um episódio bastante significativo envolvendo alegação de “moléstias”, ameaças
de volta ao cativeiro e perseguição política, ocorreu com o miliciano Vicente Fernandes de
Luna. Este caso foi relatado em um requerimento do Procurador, Francisco de Seixas,
endereçada ao Comandante da Guarda Nacional da cidade da Parahyba. Vale a pena a leitura
do referido documento,

Vicente Fernandes de Luna qualificado na 3ª Companhia do 1º Batalhão da 1ª


Legião da Guarda Nacional do comando de V.S. vem representar que sendo
natural d’essa Cidade, não fora alistado nas antigas milícias na Guarda
Nacional, por padecer de moléstias que o inabilitavam [?]. Que na ultima
qualificação, fora o suplicante qualificado por intrigas [...]. Por ali, existe o
Capitão João Francisco da Natividade, que procurava com impaciência pelos
cartórios dessa Cidade se o suplicante era escravo. O Capitão Caetano Daniel
de Carvalho, que estando o suplicante prezo, no Quartel da 1ª Legião, fora, a
vista do suplicante, falar com o Comandante do Quartel, o falecido Coronel
Sabino, para mandar carregar agora de gargalheira ao pescoço [pelo Alferes
Bento José] espancara bastante na rua, e o mandara arrastar com violência
para o Coronel da 1ª Legião, como é público. E passado dias sendo o
suplicante solto, fora cercado na Rua Direita d’essa Cidade, pelo referido
Alferes, com uma Patrulha de Polícia [...] Assim na necessidade de implorar
a V.S. seja servido remove-lo para outro Corpo d’esse Município, pois não é
possível que o suplicante sirva a um Corpo onde os oficiais, d’elle com mui
poucas exceções são inimigos íntimos do suplicante, quando o suplicante foi
espancado deitou bastante sangue pela boca [...] espera que V.S. atendendo ao
que alega mande passar para outro corpo da Guarda Nacional, até que em
outro alistamento passe para a reserva, ou obtenha baixa pella impossibilidade
que alega.17

Conforme informou o requerente, Luna padecia de “moléstias” e fora qualificado


por intrigas de adversários do Quartel em que servia. Sobre isso, é inevitável a seguinte
indagação: qual era o problema desse guarda nacional, para ter sido alvo de adversários que
procuravam, por todos os meios, prejudicá-lo? O que levou o Capitão João Francisco da
Natividade a buscar, em todos os cartórios da cidade, documentos que comprovassem que Luna,
na verdade, não era um cidadão, e sim, um escravo?

Assim, com estas questões em mente foi necessário recorrer ao “Banco de dados
dos registros de Batismos da freguesia Nossa Senhora das Neves/Parahyba, 1833-1860”,18 esse
instrumento possibilitou encontrar Luna e descobrir a sua condição jurídica e étnica. Os

17
Requerimento do procurador Francisco de Seixas endereçado ao comandante da Guarda Nacional da cidade da 372
Parahyba. AHWBD/PB, Cx: 022, Ano: 1845.
18
Ver nota 4.
respectivos dados trouxeram informações que permitem conjecturas para responder a alguns
desses questionamentos.

Luna era um liberto e também crioulo - descendente de africano nascido no Brasil


(ROCHA, 2009), casado com Thereza Fernandes de Jesus, também crioula/liberta. O casal
possuía duas filhas, uma chamava-se Ana e foi batizada no dia 14 de janeiro de 1837. No
registro sobre a mesma, foi mencionado a sua cor e condição jurídica, era preta e liberta. No
ano seguinte (1838), o casal mencionado, batizou outra filha de nome Idalina, sobre ela
constava somente sua condição jurídica livre. 19

Foi interessante perceber a atuação de Luna naquela sociedade, observamos que ele
apadrinhou inúmeras crianças escravas, o que permite inferir que ele continuou vinculado às
pessoas que ainda se encontravam sob o jugo do cativeiro. Rocha (2009) analisando as relações
de compadrio na província da Paraíba, especificamente nas paróquias da Zona da Mata,
percebeu que os pais e mães escravos costumavam escolher para padrinhos e madrinhas de seus
filhos, pessoas livres. Ilustra isso, o fato de Luna, que tinha o estatuto jurídico de liberto
apadrinhando crianças escravas.

Com essas informações a respeito do crioulo liberto Vicente Fernandes de Luna,


verifica-se que as suspeitas de que ele poderia ser um escravo não foram infundadas, tendo em
vista que, em outros tempos, fora um escravizado. O que assusta nesse caso, é que mesmo sem
provas ele fora exposto ao ridículo, com plena conivência do Coronel. E, como punição, foi
carregado com gargalheiras20 pelas ruas da cidade, agredido fisicamente e arrastado com
violência pelo Alferes Bento José.

Finalizando sua arguição em defesa de Luna, o requerente pediu para que se


transferisse o suplicante para outro corpo da Guarda Nacional e que, na próxima qualificação,
ele fosse posto na reserva. Nota-se, que os adversários de Luna se valeram de instrumentos
legais para colocar em prática seus maus intentos. A qualificação, por exemplo, foi uma
estratégia para promover a perseguição, afinal, tratava-se de alguém que não havia sido alistado
outras vezes, por ter justificado, em outras ocasiões, que não estava habilitado para executar o
serviço, verdade ou não, sua justificativa agora estava sendo questionada.

De qualquer forma, pelo que consta na documentação, ele fora preso justamente por
ter faltado aos seus deveres de guarda nacional (pelo menos foi esse o argumento usado pelos

373
19
Idem.
20
A gargalheira é um instrumento que remete à condição de cativo.
seus opositores para puni-lo). Em se tratando desse caso, a lei punia com prisão, cabos, oficiais
inferiores e superiores e guardas nacionais que se omitissem em algum serviço e infringissem
suas regras.21

Esse acontecimento remete às considerações de Maria Sylvia de Carvalho Franco


(1997) sobre os homens livres pobres. Ela fala a respeito do exercício da autoridade e da
influência pessoal desfrutada por alguns indivíduos na sociedade e que, “integrado a esse
sistema de dominação, [estava] a transferência da inimizade pessoal para o plano das
organizações de governo, usadas como armas contra adversários” (FRANCO, 1997, p. 138).
Portanto, como parte das práticas políticas vigentes no período, uma maneira de perseguir um
desafeto era denunciá-lo aos quadros institucionais ao qual ele estivesse vinculado, e isso
aconteceu não só na Guarda Nacional, mas também no Exército, onde esse era um
comportamento bastante comum.

Nessa perspectiva, em meio a questionamentos e reflexões sobre o caso desse


guarda nacional, uma outra correspondência reforçou ainda mais o requerimento, dizia o
seguinte:

Informo a V. Ex.ª, que o que ele alega é tudo verdade; ele não foi alistado nas
Milícias, não foi qualificado guia desde que ela se criou nesse Município,
morando sempre nessa cidade, e só agora é que o chamarão, estando ele nas
mesmas ou piores circunstâncias de rendas, por ter sido barbaramente
espancado por uma patrulha da polícia comandada pelo Alferes Bento Jozé
Ferreira Ponteiro, do que resultou deitar sangue pela boca [ilegível], como é
bem sabido e público. [...] digne-se manda-lo passar para 2ª Companhia do
Corpo de Artilharia, por ser mais próximo da cidade pelos motivos que
alega.22
Esse requerimento traz informações importantes sobre o estado em que ficou
Vicente Fernandes de Luna, logo depois do espancamento sofrido pela patrulha da polícia. A
mando de um alferes, possivelmente ligado aos oficiais que o perseguiam no Batalhão, entre
eles, Caetano Daniel de Carvalho e o Capitão João Francisco da Natividade. O estado da vítima,
como pode-se sentir, era lamentável, mas se explicava pelo fato de ele ter burlado a lei, portanto,
estava passível de ser punido para que a ordem fosse instaurada.

As informações sobre o que realmente aconteceu foram escasseando pelo menos no


recorte temporal aqui proposto, desse modo não se encontrou nenhum documento em resposta

21
Lei de 18 de agosto de 1831, art. 85, parágrafo 1 a 7.
22
Ofício requerendo que Fernandes Vicente Luna fosse mandado para 2ª Companhia do Corpo de Artilharia da 374
capital da província da Paraíba. AHWBD/PB, Cx: 022, Ano: 1845.
ao pedido do requerente. O fato é que os seus opositores tentaram a todo custo encontrar os tais
papéis que comprovariam a condição de escravo do respectivo guarda nacional, talvez pelo fato
de duvidarem da condição jurídica de Luna, que, como sabemos era um liberto crioulo, e
comprovar sua condição de cativo era uma maneira de, se não conseguisse pô-lo no serviço
ativo, ao menos humilhá-lo publicamente e institucionalmente, - excluindo-o do rol da guarda
nacional - afinal, ser cidadão era um pré-requisito para servir na milícia.

Resta-nos, então, perceber, por meio dos roteiros construídos por esses sujeitos nas
vicissitudes das situações em que se inseriam, traços de uma sociedade marcada pela influência
pessoal de um grupo para perseguir alguém. Fazer com que Luna fosse alistado e prestasse
serviço na Guarda seria uma forma de seus inimigos pessoais o punirem, pois ele alegava que
era doente. Sendo possível conjecturar que esse personagem além de ter sido vítima de
perseguições políticas, fora tratado com hostilidade por ter uma condição jurídica anterior
vinculada ao cativeiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os casos expostos neste artigo permitem-nos olhar para a Guarda Nacional


paraibana, para além de uma instituição mantenedora da ordem e partícipe do processo que
levou à unidade do Estado nacional brasileiro. À medida que se busca perceber os personagens
que a integraram, compreende-se como os sujeitos afrodescendentes e outros grupos estavam
inseridos no universo social marcado pela discriminação racial. Sendo possível por um lado
afirmar que ocorreu a convivência étnica na Guarda Nacional paraibana, mas nem sempre uma
convivência pacífica, tendo em vista os conflitos e perseguições ocorridos como exemplificou,
em alguns momentos, o caso de Vicente Fernandes de Luna.

A presença negra se fez sentir nos quadros da milícia (que não apresentava as
subdivisões das forças da ordem do período colonial), os quais podiam concorrer ao oficialato
como pretendia a Lei de criação da Guarda Nacional de 1831. Na prática, não conseguimos
identificar de que forma isso ocorreu e quais empecilhos enfrentados ou não para essa ascensão.
A alteração do sistema eletivo ocorreu em 1837 a partir de um decreto provincial e foi ratificada
nacionalmente na Lei n. 602 de 19 de setembro de 1850, mostra que de alguma maneira
pretendia-se ter nos comandos da milícia pessoas afinadas com o governo central. O critério
racial não foi mencionado, porém como se tratava de uma sociedade escravagista e hierárquica 375
será que isso também contou?
O caso de Simplicío Narciso de Carvalho, homem rico e afrodescendente, que
chegou ao oficialato da Guarda Nacional, evidencia que a cor podia desaparecer quando se
tratava de alguém abastado, nas listas em que seu nome aparece em nenhum momento é
destacada a cor da sua pele. Como bem analisou Peter Eisenberg (1989), é provável que o
dinheiro embranquecesse uma pessoa de cor, assim sendo, há uma possibilidade de que outros
Simplícios, desde que integrante/influente no universo escravagista, tenham recebido a
honorífica patente de oficial da Guarda Nacional na província da Paraíba, os indícios sugerem
essa possibilidade.

REFERÊNCIAS

CASTRO, Jeanne Berrance de. A milícia cidadoa: A Guarda Nacional de 1831 a 1850. São
Paulo: Ed. Nacional, 1977.
COSTA, Lidiana Justo da. Cidadãos do Império, Alerta! A Guarda Nacional na Paraíba
oitocentista (1831-1850). Dissertação (Mestrado em História). João Pessoa: UFPB, 2013.
COTTA, Francis Albert. Negros e mestiços nas milícias da América Portuguesa. Belo
Horizonte: Crisálida, 2010.
CRISPIN, Ana Carolina Teixeira. Além do acidente pardo: os oficiais das milícias pardas de
Pernambuco e Minas Gerais (1766-1807). Dissertação (Mestrado em História). Rio de Janeiro:
UFF, 2011.
BRASIL, Leis e Decretos. Leis s/n. de 18 de agosto de 1831. Rio de Janeiro, Typografia
Nacional, 1875.
DINIZ, Ariosvaldo da Silva. A Maldição do Trabalho. João Pessoa: Manufatura, 2004.
EISENBERG, Peter L. “Ficando livre: as alforrias em Campinas no século XIX”. In: Homens
Esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil – séc. XVIII e XIX. Campinas: Editora
da UNICAMP, 1989.
GALLIZA, Diana S. O declínio da escravidão na Paraíba, 1850-1888. João Pessoa: UFPB,
1979.
KRAAY, Hendrik. Política Racial, Estado e Forças Armadas na época da Independência:
Bahia 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2011.
LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no Brasil. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 2003. 376
LIMA, Maria da Vitória Barbosa. Liberdade interditada, liberdade reavida: escravos e libertos
na Paraíba escravista (século XIX). Tese (Doutorado em História). Recife: UFPE, 2010.
MEDEIROS, Coriolano de. Tambiá da minha infância. João Pessoa: Conselho Estadual de
Cultura/SEC, 1994, p. 01-110.
MONTEIRO, Sandra. Pessoas negras livres e libertas na Freguesia Nossa Senhora das Neves,
1851-1860. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em História). João Pessoa: UFPB,
2011.
NUNES, Herlon Ricardo Seixas. A Guarda Nacional na Província Paraense: representações
de uma milícia para-militar (1831-1840). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica,
Dissertação de Mestrado em História, 2005.
ROCHA, Solange Pereira da. Gente negra na Paraíba oitocentista: população, família e
parentesco espiritual. São Paulo: UNESP, 2009.
RODRIGUEZ, Walfredo. Roteiro Sentimental de uma Cidade. 2. ed. João Pessoa: Conselho
Estadual de Cultura/SEC, A União, 1994. (Edição Fac-similar).

377
DINÂMICAS SÓCIO-RELIGIOSAS E EXPERIÊNCIAS NEGRAS NA FORMAÇÃO
REPUBLICANA (MACEIÓ, AL-1889-1900).

Lilia Rose Ferreira1


Mestranda em História- UFRPE.
E-mail: liliarose943@gmailcom

Em 07 de dezembro de 1892, o jornal Cruzeiro do Norte publica uma noticia sobre uma
suspeita de envenenamento ou caso de feitiçaria, relatando que Francisco de Souza desconfiado
de ter sido vítima de “feitiçaria”, procurou uma “bruxa” para cuidar do problema em questão,
assim, foi até a residência de Maria da Conceição (preta mina Felicidade, como também é
identificada pelo jornal) na Rua do Conde d`Eu n° 230, solicitar seus serviços. Em Seguida, as
autoridades policiais foram acionadas e o tenente coronel Lino, seguiu para a casa da
“curandeira” apreendendo seus materiais de cura: chifres de boi e carneiro, ervas, bebidas,
farinhas desconhecidas. De acordo com o periódico, os objetos foram apreendidos e o sujeito
doente foi encaminhado para a Santa Casa de Misericórdia. Ainda na matéria do jornal o
presente texto acompanha a narrativa do ocorrido:
Parece incrível que ainda haja quem acredite nas feitiçarias, nas rezas e nos
remédios estapafúrdios das pretas velhas, que, sob pretexto de salvar a alma
dos endemoniados ou a alma dos seus semelhantes. Não fazem muitas vezes
senão limpar-lhes as algibeiras e envenená-los com seus remédios suis
generis, como ainda hontem aconteceu. 2

O trecho acima é enfático no que concerne a rejeição das crenças dos africanos alegando
que ainda houvesse quem procurasse esse tipo de medicina. O tom da notícia demonstra repulsa
ao tipo de crença descrita como se esta representasse símbolo de atraso social.
Para nossa pesquisa, os jornais são as fontes mais relevantes para a investigação sobre
comunidades de terreiros/ afro-religiosas por termos poucos relatos em primeira mão para o
século XIX feitos pelos participantes. As comunidades religiosas de resguardavam seus rituais
em segredo e pelo fato de ser um grupo com poucas pessoas escolarizadas que deixaram poucos
registros escritos.

1
Trabalho orientado pela Profa. Dra. Maria Emília Vasconcelos dos Santos. Pós-doutora em História pela UFPE
(2017). Doutora em História Social (Unicamp, 2014). Mestra e Licenciada em História (UFPE, 2007 e 2003) 378
2
Cruzeiro do Norte, 07 de dezembro de 1892. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
Como indicado por João José Reis3 os jornais e os registros policiais são as fontes onde
se encontram registros sobre as experiências religiosas de matriz africana da população negra
no Brasil nos oitocentos. Não podemos esquecer que esses registros eram marcados pelo olhar
do exótico e da depreciação das práticas e modos de vida dos afro-brasileiros e por isso mesmo
são registros limitados e quando esses relatos são analisados juntos aos estudos de especialistas
em religiosidades negras no campo da antropologia e da história poderemos ir além da
vigilância e da perseguição e nos aproximar das experiências religiosas da população negra
urbana de Maceió na Primeira República. Até o presente o momento, a maioria da
documentação disponível sobre as práticas e os praticantes negros de religiosidade de matriz
africana se encontra em periódicos, no Arquivo Público de Alagoas e na Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional Digital do Brasil.
Para entender à perseguição às práticas de cura e crença da população negra presentes,
cabe observar o contexto da época, que se apresentava com um ideal de modernização/
civilização acompanhando a República recém-proclamada, sinalizando assim, que por se tratar
de uma crendice considerada obsoleta pelo jornal, Maria Cristina Wissenbach sublinha,
De maneira geral, uma visão excludente e elitista, carregada de preconceitos
e de desvalorização, atingiu tudo aquilo que não contivesse as marcas da
modernidade ou que não deixasse transparecer um certo ar europeizado que
se buscava, entre outros projetos, nas reformas urbanísticas que reedificaram
as cidades brasileiras da época. (WISSENBACH, 1997, P. 17)

Outro entendimento que pode ser tomado nesse contexto, é o de considerar a ascensão
da ideologia higienista com o projeto de branqueamento da população. Sidney Chalhoub (1996)
nos ajuda a pensar isso observando a problemática da destruição dos cortiços no Rio de Janeiro
ao problematizar uma carta escrita por Rui Barbosa falando sobre a imunidade da população
negra contra a febre amarela, acusando assim os negros de serem responsáveis pela devastadora
morte dos europeus que vinham para o Brasil, em particular ao Rio de Janeiro.
A República não implicava necessariamente na melhoria de vida da população,
sobretudo das camadas pobres minadas por homens e mulheres ex- cativos. A figura dos
africanos e da população negra ilustrava os resquícios do atraso social, de um passado que se
tentava apagar. Na impossibilidade de se branquear a pele, disciplinava-se as aparições. A
denúncia da feitiçaria praticada por pretos e pretas, é entendido aqui, como o clamor pela
aniquilação ou pelo menos a acomodação desses sujeitos.

3
Algumas obras de João José Reis como REIS, J. J. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão,
liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Cia. das Letras, 2008. Apontam com muita precisão 379
o uso desses jornais e documentos policiais para perseguir e analisar trajetórias dos africanos e afro-brasileiros
no Brasil oitocentista.
Segundo Craveiro Costa (1981), o processo de modernização da cidade de Maceió se dá
com a chegada da República, pois com o novo regime os municípios começam a ganhar
autonomia financeira e administrativa. Contudo, para Douglas Tenório (1987) a modernização
da cidade se inicia com a chegada das ferrovias. Sobre a povoação da cidade, de acordo com
Osvaldo Maciel (2004) a cidade de Maceió era basicamente composta por quatro bairros
“Maceió, Jaraguá e Levada, que ficavam na parte baixa da cidade, e o Alto do Jacutinga.”
A região portuária de Maceió, esta que compreende bairros como Jaraguá e Levada, é
anunciada em um periódico4 como “côva de caco dos escravos fugidos”. A formulação desse
discurso no periódico sobre africanos nessa região, provavelmente se dava em razão do
crescimento da cidade e o fluxo de escravos fugidos para dentro das cidade, que se
intensificaram na segunda metade do século XIX, como demonstra (ARAÚJO, et al, 2006).
Sobre o Jaraguá, Irinéia Santos (2016) chamará de “pequena África”, pois segundo a
autora é assim que o bairro era comumente conhecido. Sobre essa “pequena África”, pensamos
com Moreira (2006) na obra Cidades Negras ao chamar de “cidades negras” aquelas cidades
em que a população escrava e negra liberta não eram só números. “Tinham suas próprias
identidades, reinventadas cotidianamente. Africanos e crioulos não eram necessariamente uma
multidão ou massa escrava nos centros urbanos.” (ARAÚJO, et al, 2006, p. 13)
No processo de modernização da cidade da Maceió será notável o crescimento da
imprensa, como aponta Tenório (1987). Nesse sentido, os jornais serão importantes meio de
divulgação sobre os acontecimentos ligados aos africanos, crioulos e consequentemente às
práticas mágico-religiosas desses atores na cidade. Dessa forma, é imprescindível a análise
crítica do discurso impresso, uma vez que este explicita uma realidade social e culturalmente
construída.
Para Michel Foucault o discurso é a apresentação de uma verdade em construção,
mesmo que esta expresse tão somente o olhar de quem a declara,
O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante
de seus próprios olhos; e quando tudo pode enfim, tomar a forma do discurso,
quando tudo pode ser dito a propósito de tudo, isto se dá porque todas as
coisas, tendo manifestado intercambiado seu sentido, podem voltar à
interioridade silenciosa de consequências de si. ( FOUCAULT,1996, pág. 48-
49)
O discurso é produtor e é produzido. A ação criadora do discurso evoca poder, a
materialização de desejos, de ideologias. O discurso é a materialização de desejos, de
sentimentos, que pode por sua vez, ocultar a realidade. O sábio uso do discurso pode dominar

380
4
Orbe, Maceió, 1887. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
comunidades inteiras. Saber manipular o discurso é direcionar o sentido da história, é exercer
formas de poder. Através do discurso, os sujeitos elaboram a si mesmos a realidade em volta.
“O autor é aquilo que dá inquietante linguagem de ficção suas unidades ponto seus nós de
coerência, sua inserção no real. (FOUCAULT, 1996, pág. 28).”
Por via das ponderações de Foucault, que se pretende analisar os discursos impressos
nos periódicos, observando o contexto de produção e a realidade que se pretende explicitar por
meio deles.
Em 22 de agosto do ano de 1896 na cidade de Maceió-AL o Jornal O Gutenberg: Orgão
da Associação Typographica Alagoana de Socorros Mutuos 5 noticiará mais uma atividade de
“feitiçaria” pelas imediações portuárias do bairro do Jaraguá, referindo-se a um pacote
identificado na agência dos correios do Jaraguá, o volume vindo do Rio de Janeiro endereçado
ao Félix da Costa.
O título do texto chamado “Feitiçaria” relata que os carteiros abriram o pacote de Félix
da Costa encontrando “diversas orações de bruxaria, uns dez réis xanxão, um pedaço de
mortalha suja [...] sementes desconhecidas” dentre outros objetos. O texto alerta 6: livre-se de
comer caruru, vatapá, angú, e tudo mais que estes patifes africanos lhes offerecer quando algum
dos taes lhe for desafeccto”. O texto continua com uma afirmação: “Decididamente nos querem
enfeitiçar, a julgar pelos avisos recebidos” e finaliza “Basta de feitiço!”. A notícia do jornal se
passa depois de que, os dois carteiros que abriram o pacote de Félix da Costa, segundo o
periódico, adoeceram e foram encaminhados aos cuidados médicos sob suspeita de
envenenamento, contudo o texto do jornal ressalta a ação de feitiçaria, pois sendo de fato
envenenamento não passaria despercebido. Dias depois o jornal volta a noticiar o caso:
[...] A nossa notícia de hontem sobre os supersticionismo e aburdos boatos de
que a morte dos dous carteiros de Jaraguá e molestia grave fora provocada por
feitiçaria, provocou hontem duas cartas que nos foram dirigidas. A primeira
pede que conversemos com os medicos assistentes dos dous carteiros
fallecidos e diz que o terceiro já está de pé e quase restabelecido.
A segunda por interessante e original é a seguinte: “Snr. Dr. Redactor.
– Não é bom duvidar de um facto que se está verificado. Esta coincidência de
morrerem dentro de trez dias dous moços que abriram o pacote das feitiçarias
é espantosa! [...] Tome as suas cautelas porque esta história de feitiçaria entre
os pretos da Costa e alguns creoulos é mais séria do que muita gente pensa.
Não havendo feitiço, bem pode haver envenenamento e outras cousas para
fazer mal. [...]7

5
O Gutenberg: Orgão da Associação Typographica Alagoana de Socorros Mutuos. 1896. Disponível em:
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
6
Ainda não identificamos o redator dos textos publicados sobre “Feitiçaria”. O mesmo assina com o pseudônimo
de Assignante. 381
7
Gutenberg, Maceió, 21 de agosto de 1896. Feitiçaria. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-
digital/
Sendo verdade ou não o ocorrido sobre a chamada feitiçaria, nos prende a atenção à
ênfase dada em torno dos “pretos da Costa” e a ocorrência de atividades mágicas ligadas a eles
expressa na redação. O discurso que se pretende explicitar é do perigo que os “pretos da Costa”
apresentam para a sociedade maceioense, haja vista a contínua prática de feitiçaria destes, que
é considerada como motivo de alerta. Vê-se que feitiçaria e africanos são denominações
imediatas associadas, construindo uma imagem onde é “feitiçaria” se liga automaticamente a
africanos ou pretos e crioulos. O mesmo ocorre no sentido oposto.
A história da feitiçaria noticiada pelo jornal passa pela descrença do fato enquanto uma
prática mágica que tenha efetividade em sua ação e pelo medo da feitiçaria veridicamente ter
funcionado causando a morte dos carteiros. Se por um lado o jornal trata como “superstição e
boatos absurdos”, por outro, as cartas recebidas e reproduzidas na matéria demonstram
preocupação e temor ao considerar a realização da “ feitiçaria” que teria supostamente levado
os carteiros a óbito.
Esses fragmentos de matérias dos jornais cunham algumas das formas com o que os
periódicos da época se pronunciavam em torno das práticas aqui nominadas como afro-
religiosas8. Nesse sentido, nosso objetivo é propor uma leitura sobre algumas experiências afro-
religiosas dos sujeitos aqui citados no contexto do imediato pós-abolição, observando os anos
iniciais da formação republicana do Brasil, com recorte na cidade de Maceió-AL, através do
uso de jornais.
Nossa implicação central para este trabalho se baseia na busca de analisar como a
sociedade e suas instituições, em particular a imprensa alagoana lidava com a presença das
práticas afro-religiosas no decorrer do período de 1889-1900.
Para Irineia Santos (2016, p. 83) o “fim da escravidão (1888) e da monarquia (1889)
não significou plena liberdade de movimento e ação para os negros, nem legitimação de suas
práticas culturais”. No início da República tem ainda a formulação do Código Penal dos Estados

8
A escolha do termo afro-religiosidade neste trabalho ocorre pela opção de não utilizar as alcunhas identificadas
nos periódicos, haja vista, que neste momento, os jornais executavam um trabalho evidente de depreciação às
manifestações negras. Nesse sentido, nossa escolha se dá em virtude da tentativa de não reforçar a ideia impressa
pelos jornais da época. Irinéia Santos (2016) nos chama atenção para isto, ao sublinhar que o termo “religião”
precisa ser tratado com cuidado ao considerar o fato do termo ser inicialmente cunhado para as religiões cristãs.
Dessa forma, cabe ponderar junto a autora referindo ao termo “religião” que “ o esforço reside para não se incluir
na análise e perspectiva teológica judaico-cristã, eurocêntrica ou etnocêntrica presente” (SANTOS, 2016, P. 66).
Isto posto, o termo afro-religiosidade se constituí no sentido de não tratar com menor importância a religiosidade 382
afro-brasileira, ao mesmo tempo em que se busca transparecer os significados e processos históricos e sociais da
religiosidade dos africanos e afrodescendentes brasileiros.
Unidos do Brazil de 1890, dentre seus artigos o artigo 157 9 é claro ao referir-se as práticas
mágico-religiosas:
Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e
cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de
moléstias curaveis ou incuraveis, em fim, para fascinar e subjugar a
credulidade publica: Penas – de prisão cellular por um a seis mezes e multa de
100$ a 500$000.

Cristina Wissenbach (1997) observa que, “de imediato, a condição de homem livre seria
concretizada na realização de desejos e na posse de objetos aos quais haviam sido impedidos
como escravos (p, 24). Posteriormente cita o exemplo da posse de um “magnífico par de
sapatos”. Para a análise da autora, possuir um par de sapatos era símbolo da liberdade, uma vez
escravizados, os sujeitos não podiam usar sapatos. O uso de sapatos e de outros objetos criava
uma distinção entre quem era livre e quem não era. A liberdade de circulação e de posse não
era o suficiente para um exercício pleno da liberdade, havendo um duro processo de
disciplinarização para coibir as manifestações dos africanos e seus descentes, ainda que, possuir
e circular significava uma mudança nos quadros das sociabilidades.
Apesar do imediato fim da escravidão e da proclamação da República com a
Constituição Republicana, em teoria garantindo liberdade de crença, o Estado Brasileiro, como
já dito, gozava da vigência do então Código Penal de 1890, claramente criminalizando as
crenças religiosas identificadas em nossas análises como de origem dos africanos como também
limitando a liberdade de locomoção de homens e mulheres de pele escura. Segundo Maria
Emília Vasconcelos dos Santos que estudou uma área rural em Pernambuco entre a abolição e
o imediato pós-abolição, os egressos do cativeiro experimentaram uma série de restrições nos
seus deslocamentos cotidianos:
A pecha de vadio pairava sobre as pessoas que fossem pegas em atos como
perambular sem destino, jogar, estar envolvido em bebedeiras e não executar
atividades laborais regulares na lavoura canavieira. A circulação de indivíduos
em um mundo fortemente marcado pela escravidão por vezes resultou em
constrangimentos e interdições no ir e vir dos homens de cor. (SANTOS,
2016, p.77)

A criminalização da não atividade laboral regular nas áreas açucareiras, como observou
Santos (2016), bem como a limitação da liberdade de circular dos negros têm sua origem
fortemente marcada pela escravidão, criminalizando e constrangendo os sujeitos, resultando
igualmente na perseguição das práticas culturais, estas consideras também como atos de
vadiagem. Colocando em xeque a conquista maior da abolição, a liberdade. Em acordo com

383
9
Código Penal dos Estados Unidos do Brazil de 1890. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm
essa questão, Wissenbach (1997) sublinha que, além de um ex-cativo que não praticava
nenhuma atividade laboral nas plantações, o que mais incomodava os ex-senhores agora
patrões, eram aqueles cujo sustento se dava por conta própria sem submeter-se ao mando
senhorial/patronal. Pode-se pensar inclusive, o exercício da prática mágico-religiosa em
paralelo a outras atividades laborais enquanto uma forma de garantir a sobrevivência. Isso pode
ser constatado no caso alagoano, quando ponderamos as informações contidas na matéria do
jornal O Cruzeiro do Norte e este informa que Joana da Conceição vivia exclusivamente das
curas que realizava10.
As notas presentes nos jornais alagoanos acerca das práticas afro-religiosas, suas
manifestações públicas ou não públicas no contexto republicano podem ser percebidas como
experiências da liberdade na conjuntura pós-abolição. Problematizar as condições de
sociabilidade dos negros na República implica em pensar o imediato pós-abolição e as
permanências de costumes e pensamentos escravistas. Desta feita, a experiência religiosa dos
negros maceioenses na República do final do século XIX foi marcada pela herança
escravocrata, assinalada pelo Código Penal de 1890 e na forma de lidar cotidiana da população,
que pode ser percebida aqui através dos discursos desqualificadores impressos nos periódicos.
Os jornais alagoanos reivindicaram incessantemente para que algo fosse feito em
relação aos ditos “feiticeiros” e estes feiticeiros não por acaso eram africanos e negros. O jornal
O Holophote em 1897 dirá, que para os feiticeiros não há outro caminho senão a detenção. Isto
se exemplifica em um pequeno texto publicado sobre Félix da Costa que diz: “Enquanto ao tio
Félix o fim de feiticeiro é a Detenção-Macaco.”11. A expressão macaco, utilizada por quem
escreveu para publicar no jornal, é refletida aqui como uma expressão que evoca um sentimento
desumanizante quando se refere aos povos negros, aplicada de modo satírico.
Os discursos dos jornais expõem a representação de uma ideia socialmente construída,
suas formas de dizer revelam o pensamento de um contexto, de uma sociedade em transição,
que ainda não superou o fim da escravidão, tampouco incorporou o ideal republicano. Murilo
de Carvalho (1987) problematizará a República e dirá que esta “República que não foi”, nem
os costumes, a política e nem o povo tinham cara de República dentro do que se concebe como
República nos moldes europeus. Restava da República, a representação que se forjou, mas em
conteúdo real, estava distante daquele existente nos países da Europa.
De forma resoluta, uma representação pode ser definida como algo ausente, que pode
não existir de fato, ou por alguém existente, mas não presente. Ginzburg ressalta que, “Por um

384
11
Jornal Holophote. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
lado a representação faz às vezes a realidade representada e, portanto, evoca a ausência; por
outro, torna visível a realidade representada e, portanto, sugere a presença” (GINZBURG, 2001,
p.85).
Chartier observa nesse sentido que,
as entradas da palavra “representação” atestam duas famílias de sentido
aparentemente contraditórias: de um lado, a representação manifesta uma
ausência, o que supõe uma clara distinção entre o que representa e o que é
representado; de outro, a representação é a exibição de uma presença, a
apresentação pública de uma coisa ou de uma pessoa (CHARTIER, 2002, p.
74).

Representação de acordo com os dois autores, pode ser entendida como a ação de
nomear, de exercer uma postura taxativa sobre um grupo, algo ou alguém. A representação cria
uma verdade, que não é necessariamente o real sobre algo, a representação pode constituir uma
realidade própria com sentido próprio de acordo com os interesses de quem a produz.
Em outro momento Chartier destaca;
A relação de representação é assim turvada pela fragilidade da imaginação,
que faz com que se tome o engodo pela verdade que considera os sinais
visíveis como indícios seguros de uma realidade que não existe. Assim
desviada, a representação transforma-se em máquina de fabricar respeito e
submissão, em um instrumento que produz uma imposição interiorizada,
necessária lá onde falta o possível recurso a força bruta (CHARTIER, 2002,
p.75).

É perceptível que uma representação é produzida também como mecanismo de poder,


controle, submissão. A representação de algo implica em se considerar quem está na posição
de representante ou construtor da ação de representar.
Os jornais analisados neste trabalho exercem esse papel de ação produtora de uma
representação acerca das manifestações religiosas dos negros na cidade de Maceió, que
constitui uma representação com sentido pejorativo ao nomeá-las como “feitiçaria”, “bruxaria”,
“curandeirismo”. Contudo, cabe ainda ressaltar que toda representação provém do mundo social
e das suas experiências. Assim, “As representações do mundo social assim construídas, embora
aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos
interesses de grupo que as forjam.” (CHARTIER, 2002, p. 17).
Thompson (1981) por sua vez, evoca a noção de “experiência percebida”. Essa
experiência percebida que seria a consciência social, através da experiência vivida que é
resultado das ações concretas, mas das impressões, da ideologia, de uma consciência imposta,
historicamente construída. Assim sendo, a ideia cunhada sobre a perigosa “feitiçaria” praticada
por africanos e crioulos, igualmente anunciada pelos jornais, assomam a experiência percebida, 385
que não condiz precisamente com a realidade concreta, mas se articula desempenhando forma
de poder através do discurso. Tanto a noção de representação quanto experiência percebida
dialogam em nosso trabalho para se refletir a edificação da imagem que se formulou sobre o
exercício da afro-religiosidade dos africanos e seus descendentes, imagem esta exposta e
debatida em jornais alagoanos.
O uso de periódicos em nossa pesquisa, tanto é utilizado como fonte de análise da
representação, da consciência social, das ideias construídas, discursos e práticas, quanto para
perseguir experiências, trajetórias, e estratégias de sobrevivência dos sujeitos. Se por um lado
os jornais tratavam pejorativamente a religiosidade dos negros e negras alagoanos, por outro
evidenciavam a atuação das pessoas e seus modos de sobrevivência, de negociações e conflitos.
Pensando com (SANTOS, 2016, p. 102), se por uma via: “a elaboração fantasiosa ou
não do ocorrido, ao mesmo tempo em que apresentava um discurso negativo das práticas afro-
brasileiras, reforçava em contramão o poder de Tio Félix”. O “medo” parece ter sido
ressignificado pelos afro-religiosos em Maceió como mecanismo de sobrevivência.
Essa ressignificação de sentidos, refletindo com Thompson se articula através da
experiência partilhada desses sujeitos, tanto dos afro-religiosos quanto daqueles que exploram
o tempo para depreciá-los, é então resultado daqueles que, “sentem e articulam a identidade de
seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (geralmente se opõem)
dos seus,” (THOMPSON, 2004, p. 10).
Ainda que não haja a fala direta dos sujeitos em nossas fontes até o presente momento
analisadas, percebemos os embates travados no seio da sociedade maceioense no que se refere
aos africanos e negros praticantes de uma religiosidade de matriz africana.
A representação dessa religiosidade transmitida pelos jornais em vários momentos como
“feitiçaria”, ora em tom de alerta sobre a periculosidade, ora com desdém pelo atraso social que
representa, desdenhando por se tratar de mera superstição e boatos absurdos da eficácia de seus
feitos. As alcunhas, especialmente a alcunha de feitiçaria e o modo como é reproduzida tanto
reflete o imaginário construído por alguns setores da sociedade movidos pelo sentimento de
inferiorização e demonização das tradições não católicas desde a escravidão, quanto o processo
de disciplinarização e acomodação desses sujeitos no contexto emergente do pós-abolição em
consonância com o ideal republicano de modernidade/ civilização, que outrora se agarrava a
tentativa de desqualificação das práticas religiosas e culturais de modo amplo da “população de
cor”, no intuito de como já discutido anteriormente, disciplinarizar e acomodar com o imediato
pós-abolição e o início do regime republicano acompanhado à teoria de modernização e
civilização da sociedade brasileira. 386
BIBLIOGRAFIA:

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388
DE OLHO NAS PRAIAS: UM ESTUDO SOBRE OS ANOS FINAIS FO TRÁFICO
ATLÂNTICO DE ESCRAVOS PARA PERNAMBUCO (1849-1855).

Aline Emanuelle De Biase Albuquerque


Mestre em História
Professora do Instituto Federal do Sertão Pernambucano
alinedebiase@gmail.com

Em 29 de agosto de 1849, o patacho Diligente entrou no porto do Recife, vindo da Bahia


e consignado a “Novaes & Companhia”, empresa estabelecida na rua da Cruz, nº 37. A chegada
e ancoragem desse navio teria sido rotineira se não fosse um interessante detalhe: ao invés de
desembarcar africanos boçais em alguma praia afastada, como era comum na ilegalidade, os
audaciosos traficantes envolvidos com esse patacho resolveram inovar e desembarca-los no
porto do Recife. Os 23 cativos transportados foram apreendidos e encaminhados ao Quartel do
Corpo de Polícia, onde o comandante ficou responsável por alimentá-los até que lhes fosse dado
o devido destino. No dia 31 de agosto, o chefe de polícia Jerônimo Martiniano Figueira de
Mello apresentou ao presidente da província o “Auto do reconhecimento dos 23 africanos” e a
reclamação feita pelos consignatários “Novaes & Companhia”. Na sua investigação, o chefe de
polícia concluiu que dos 23 africanos, 14 eram boçais (não falavam e nem entendiam o
português) de nação nagô, haussá ou tapa, oito eram ladinos – mas suas idades revelavam que
eles tinham sido importados após 1831 – e, por fim, o menino Inácio de 16 anos foi declarado
como escravo crioulo nascido em Salvador. 1
Sobre a reclamação de “Novaes & Cia”, Figueira de Melo comunicou que os
negociantes do Recife estavam exigindo nove negros (os oito “ladinos” e o crioulo) sob a
justificativa de que eles possuíam passaporte regular e haviam sido enviados por pessoas da
Bahia. O chefe de polícia contestou a autenticidade dos passaportes, afirmando que dois dos 14
classificados como boçais, os negros Belchior e Maria, também possuíam passaportes. A
substituição de negros ladinos com passaporte por africanos boçais, fora da barra do porto de
Salvador, parece ter sido uma estratégia dessa empresa negreira, visto que quase um ano após
a chegada do patacho Diligente, os comerciantes “Novaes & Cia” se envolveram numa situação
parecida. Em 16 de julho de 1850, o iate Amélia desembarcou 33 africanos no porto do Recife.

1
ARQUIVO PÚBLICO ESTADUAL JORDÃO EMERENCIANO (doravante APEJE), Coleção de Polícia Civil, 389
v. 24, p. 314-318.
A carga também era consignada a “Novaes & Cia” e o episódio era quase idêntico: os negros
tinham sido despachados com passaportes na Bahia e, no meio dos “ladinos” havia oito boçais.
Segundo o delegado do 1º distrito do Recife, em carta ao presidente de Pernambuco, em 10 de
agosto de 1850, muitos africanos eram ladinos, “mas oito destes foram julgados boçaes e sem
duvida trocados depois por aquelles que tinham sido despachados pela polícia da Bahia” [sic].
No fim, os africanos foram declarados livres e contratados para os serviços públicos. Já Antônio
Ricardo do Rego e Manoel Francisco da Silva Novaes, membros da “Novaes & Cia” foram
processados mas, aparentemente, não com o rigor determinado pela lei de 1831 e o Código
Criminal.2 Visto que, logo após o episódio de julho de 1850, o iate Amélia aparece em
sucessivas notícias do Diário de Pernambuco vindo da Bahia e novamente com carga
consignada aos mesmos negociantes.3
Tanto o patacho Diligente quanto o iate Amélia chegaram causando escândalo em um
momento complicado para o Estado Imperial. Em 1845, a Bill Aberdeen, lei inglesa que
considerou o comércio de escravos pirataria e os traficantes passíveis de julgamento em
qualquer tribunal britânico, aumentou a cruzada da Marinha inglesa na costa do Brasil. A partir
de então, as relações entre as duas nações estavam abaladas e o Estado brasileiro precisou agir
com urgência para tomar as rédeas da repressão do tráfico em defesa da soberania nacional.
Partindo desse contexto de aumento das medidas repressivas, este trabalho analisa a
organização do comércio ilegal para Pernambuco nos anos finais do tráfico para o Brasil. Nesse
sentido, três pontos serão explorados ao longo do texto. Primeiro, a atuação de proprietários de
terra e negreiros nos desembarques do período. Depois, a origem e a faixa etária dos africanos
transportados no período. E, por fim, analisaremos a atuação das autoridades policiais no
contexto de aumento da repressão e a forma de punição aos criminosos. A partir das
correspondências entre a polícia e o presidente da província e das notícias publicadas na
imprensa, investigaremos traficantes, autoridades e africanos resgatados, no período de 1849 a
1855, em meio ao drama do Estado Imperial de definitivamente cumprir seus tratados e leis e
abolir o abominável comércio.

2
LABORATÓRIO DE PESQUISA E ENSINO DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE
PERNAMBUCO (doravante LAPEH), Diário de Pernambuco, “Parte Official - Ministérios dos Negócios
Estrangeiros. Documentos a que se refere a nota do Sr. Paulino José Soares de Souza”, 21 de fevereiro de 1851;
O caso do Amélia já tinha sido citado por Bruno Câmara, que explorou os comentários feitos pelo liberal Ignácio
Bento de Loyola sobre a carga do iate. Ver CÂMARA, Bruno Augusto Dornelas. O “retalho” do comércio: a
política partidária, a comunidade portuguesa e a nacionalização do comércio a retalho, Pernambuco 1830- 390
1870. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2013, p. 254.
3
LAPEH, Diário de Pernambuco, 19 de abril de 1851.
A organização do tráfico de escravos em Pernambuco (1849-1855).

Na década de 1850, após a Bill Aberdeen e o aumento das atividades da marinha inglesa
na costa brasileira, o Estado Imperial resolveu tomar as rédeas da repressão ao contrabando de
africanos. Nesse contexto, além da aprovação da lei Eusébio de Queirós, o governo passou a
receber informações de Alcoforado, antigo informante da legação britânica, sobre a
movimentação de navios negreiros e traficantes estabelecidos no Brasil. 4 Toda essa
organização, no entanto, concentrava-se no litoral próximo ao Rio de Janeiro, então o maior
porto negreiro do mundo. A rigorosa vigilância da marinha inglesa e das autoridades brasileiras,
ambas auxiliadas pelas delações de Alcoforado, acontecia essencialmente no Sudeste brasileiro.
No relatório feito por Alcoforado, inclusive, não há informações acerca de desembarques ilegais
e contrabandistas na costa da Bahia e de Pernambuco.5 Desse modo, nos últimos anos do tráfico,
a área do atual Nordeste brasileiro apresentava-se como um destino quase seguro para as
transações negreiras e esse fato logo se tornou visível aos ingleses. Em agosto de 1850, ao
comentar o escândalo do iate Amélia, acima citado, e a artimanha dos africanos boçais com
passaportes vindos da Bahia, James Hudson, o ministro plenipotenciário britânico, reclamou da
ineficácia brasileira quanto à supressão do tráfico e afirmou “que nenhum obstáculo” se opunha
ao contrabando de africanos, “especialmente da Bahia ao longo da costa das Alagoas e
Pernambuco”6.
Apesar da fala da autoridade inglesa, reclamando da facilidade dos desembarques no
Nordeste do Brasil, a presente pesquisa esbarra na falta de dados quantitativos que corroborem
o testemunho do cônsul geral no Rio de Janeiro. Como já foi destacado pela historiografia,
apesar de ter sido a terceira maior praça do Brasil e quarta das Américas, Pernambuco é o ponto
de recepção menos estudado e que, consequentemente, possui menor número de dados no banco
norte-americano sobre o tráfico transatlântico de escravos. 7 Pernambuco recebeu africanos

4
BETHELL, Leslie. A abolição do comércio brasileiro de escravos. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 397.
5
Sobre a “Delação Alcoforado” ver PESSOA, Thiago Campos. A Delação Alcoforado e o comércio ilegal de
africanos no Vale do Café: notas de pesquisa. In: XAVIER, Regina; OSÓRIO, Helen (Orgs.). Do tráfico ao pós-
abolição: trabalho compulsório e livre e a luta por direitos sociais no Brasil. São Leopoldo: Oikos, 2018. E-
book.
6
LAPEH, Diário de Pernambuco, “Parte Official - Legação Britannica de 11 de janeiro de 1851”, 19 de fevereiro
de 1851, nº 41.
7
DOMINGUES DA SILVA, Daniel Barros; ELTIS, David. The Slave Trade to Pernambuco, 1561-1851, in David
Eltis e David Richardson (orgs.), Extending the Frontiers: Essays on the New Transatlantic Slave Trade
Database. New Haven e Londres: Yale University Press, 2008; CARVALHO, Marcus. A rápida viagem dos
“berçários infernais” e os desembarques nos engenhos do litoral de Pernambuco depois de 1831. In: XAVIER, 391
Regina; OSÓRIO, Helen (Orgs.). Do tráfico ao pós-abolição: trabalho compulsório e livre e a luta por direitos
sociais no Brasil. São Leopoldo: Oikos, 2018. E-book.
ilegalmente escravizados até o ano de 1855, mas o The Transatlantic Slave Trade Database,
por exemplo, só possui registros até o ano de 1851.8 Mesmo com essas ressalvas, é possível
observar no banco de dados um significativo aumento na última década do tráfico em relação à
década anterior. Para o ano de 1850, por exemplo, foi registrado o desembarque de 2.300
africanos, o maior número para a província desde o ano de 1840, que teve um total de 5.683
desembarques.
Nesse sentido, outras fontes permitem observar a intensidade dos desembarques
negreiros nas praias de Pernambuco e os negociantes envolvidos. Como a década de 1850 foi
marcada pela repressão comandada pelo governo imperial, principalmente após a Lei Eusébio
de Queiróz em setembro de 1850, é possível encontrar informações mais detalhadas de
empenhadas investigações sobre os desembarques clandestinos e seus envolvidos nos relatórios
das autoridades e na imprensa. Essas fontes, inclusive, mostram que o tráfico sofreu algumas
transformações naquele contexto. No caso de Pernambuco é possível destacar, em primeiro
lugar, a saída da maioria dos traficantes experientes, a consequente entrada de novos
negociantes, como a ousada firma “Novaes e Cia”, e a maior atuação de senhores de engenho
na organização de viagens negreiras. Ainda no final da década de 1840, traficantes
especializados no trato como, por exemplo, Angello Francisco Carneiro e seu cunhado Elias
Baptista da Silva9, vão desaparecendo das fontes do contrabando ou escondendo melhor suas
atividades. Dentro dessa categoria de criminosos de longa data, os únicos que se mantiveram
aparentes na documentação foram Gabriel Antônio e Francisco José de Magalhães Basto.
De origem portuguesa, assim como a maioria dos contrabandistas, Gabriel Antonio
iniciou sua carreira no comércio como capitão de navio negreiro e na década de 1830 já era tido
como um dos maiores traficantes de Pernambuco.10 Na última década do contrabando, as
artimanhas desse negociante e seus sócios eram destaque na imprensa. Em 28 de maio de 1850,
o “Conciliador” destacava que a mando de Gabriel Antonio haviam sido desembarcados 238
africanos na praia de Pau Amarelo. Para o sucesso da empreitada, uma propina de 200 mil-réis
“por cabeça” de africano foi concedida aos delegados e subdelegados.11 Já em 22 de janeiro de

8
Ver as estimativas do The Transatlantic Slave Trade Database (doravante TSTD). Disponível em
<http://www.slavevoyages.org/assessment/estimates>. Acesso em: 3 nov. 2018.
9
Sobre Angello Francisco Carneiro ver ALBUQUERQUE, Aline E. De Biase. De “Angelo dos Retalhos” a
Visconde de Loures: a trajetória de um traficante de escravos (1818-1858), Dissertação (mestrado) - Universidade
Federal de Pernambuco, CFCH, Pós-Graduação em História, Recife, 2016.
10
CARVALHO, Marcus J. M. de. O “galego atrevido” e “malcriado”, a “mulher honesta” e o seu marido, ou
política provincial, violência doméstica e a Justiça no Brasil escravista. In. SOIHET, Raquel; BICALHO, Maria
Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). Culturas Políticas: ensaios de história cultural, história política 392
e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005.
11
CÂMARA, Bruno. O “retalho” do comércio, Op. Cit, p. 255.
1851, “A Imprensa” publicou uma notícia criticando uma “súcia de ordeiros” que eram
responsáveis pelos desembarques de cativos e recebiam apoio das autoridades locais. Na nota
assinada pelo “Justus” dizia-se que esses traficantes desembarcaram africanos “na ponta de
Serrambi”, “com o maior escândalo do mundo”, sabendo-se as pessoas que auxiliaram no
desembarque e os engenhos para onde foram os escravos. Mas, segundo o “Justus”, nada seria
feito, pois o delegado do lugar era o português José Antônio da Rocha que havia estabelecido
uma sociedade no engenho Junqueira com Gabriel Antônio, a quem classificou como um
“audacioso português” que “nunca teve outro negócio senão importar africanos”. Como
explicou o “Justus”, com toda ironia, apesar de José da Rocha ser o dono do engenho Mundo-
Novo, que lhe dava boas safras, ele aceitou o convite de Gabriel Antonio e foi morar no engenho
Junqueira “só pela possibilidade das pescarias que oferecia este engenho por ficar a beira da
praia”.12
Na última década do tráfico, apesar de casos ousados como o patacho Diligente e o iate
Amélia no porto do Recife, as praias afastadas da cidade continuaram a ser o principal cenário
dos desembarques ilegais. Como já foi destacado por Marcus Carvalho, nos diversos portos
naturais das praias pernambucanas, os desembarques aconteciam com o auxílio de jangadeiros
e moradores livres e pobres da praia e a armazenagem dos africanos novos era feita nos
engenhos de aliados, próximos ao local onde ancorava o navio negreiro. Todo esse cenário
criado pela ilegalidade era um espaço privilegiado para a atuação de “plantadores-traficantes”.
A categoria de “plantadores-traficantes”, destacada por Carvalho, abarca senhores de engenho
que se envolviam constantemente ou periodicamente na armação de navios negreiros e na
posterior venda de “escravos-novos”.13 Ao longo deste trabalho é possível perceber a frequente
atuação desses proprietários de terra e, em alguns momentos, suas alianças com negreiros
experientes, como no caso das duplas José Antonio da Rocha e Gabriel Antonio e de Manuel
de Barros Wanderley e Francisco José Magalhães Bastos, como veremos a seguir.
Em dezembro de 1850, três meses após a Lei Eusébio de Queirós, um novo desembarque
organizado por um “plantador-traficante” em sociedade com um negreiro experiente aconteceu
na praia de Cacimbas, em Ipojuca. Na ocasião, as autoridades afirmaram que todos os africanos
da embarcação foram roubados.14 Posteriormente, apenas seis deles foram resgatados no
“engenho Coelhos”, pertencente a Manoel Cirillo de Barros, e no “engenho Canto-Escuro” de
Francisco de Barros, ambos localizados em Sirinhaém. Os donos desses engenhos eram filhos

12
APEJE, A Imprensa, 22 de janeiro de 1851, nº 17, p. 2 “Notícias Locais”.
13
CARVALHO, Marcus. O desembarque nas praias: o funcionamento do tráfico de escravos depois de 1831. 393
Revista de História, São Paulo, nº 167, 2012.
14
APEJE, Coleção de Polícia Civil, v. 33, 1850, p. 252.
de João Manoel de Barros Wanderley que seria o consignatário do palhabote de Sirinhaém, o
último desembarque de africanos em Pernambuco, em 1855.15 O negociante sócio nesse
desembarque era o português Francisco José de Magalhaes Bastos, que tinha uma empresa
negreira de longa data com seus irmãos José Antonio e Antonio José Magalhães Bastos. Para
prender Francisco Magalhães Bastos, pelo “crime de introduzir africanos no Império”, as forças
policiais de Pernambuco e Alagoas tiveram que se unir em uma grande operação para a captura
do traficante. Pelo desembarque em Cacimbas, seriam processados ele, João Barros Wanderley
e os filhos. 16
Após o desembarque em Cacimbas, o chefe de policia expediu uma ordem, em 8 de
fevereiro de 1851, para que os delegados dos Termos de Rio Formoso, Serinhaém, Cabo,
Olinda, Igarassu e Goiana ficassem de olho nas praias para impedir desembarques, resgatar
africanos e punir contrabandistas. Na mesma época em que esse desembarque em Cacimbas
estava em evidência, outros casos chamavam a atenção da sociedade pernambucana. Em 24 de
julho de 1851, a entrada de 60 a 70 africanos boçais no agreste da província, escandalizou as
autoridades. Segundo os registros policiais, os africanos foram desembarcados em Alagoas, e
depois distribuídos pelas fazendas de Garanhuns. Os parentes do 2º juiz de paz de Águas Belas
e os irmãos do 1º suplente da delegacia de Garanhuns estavam envolvidos tanto no desembarque
quanto na distribuição dos escravos. É provável que esses africanos fizessem parte dos 500
restantes, de uma carga de 640 cativos comprados na Costa do Benim e desembarcados pelo
iate Sílfide em Alagoas.17 Os índios de Águas Belas foram “testemunhas oculares da entrada de
africanos em alguns lugares da freguesia” e além de denunciarem o fato, ajudaram o delegado
de Garanhuns a resgatá-los.18 Em 17 de outubro, às 7 horas da manhã, o sargento João Francisco
da Silva encontrou dois africanos: Antônio, que tinha 18 anos e João, 20 anos. No dia 6 de
novembro, mais 27 africanos foram encontrados “em um mocambo de palha” na fazenda
“Retiro” de propriedade de João José d’Araújo Cavalcante, no cimo da Serra da Quixaba. O
caso terminou com João José Cavalcante, parente do 2º juiz de paz, sendo processado e
Lourenço Bezerra Cavalcante de Albuquerque, superior da Guarda Nacional, e o Major José de
Albuquerque Maranhão sendo presos.19 Os 29 africanos foram escoltados por 50 praças até o

15
APEJE, Coleção de Polícia Civil, v. 35, p. 235-238.
16
APEJE, Coleção de Polícia Civil, v. 35, p. 11. Sobre Francisco José de Magalhães Bastos e sua prisão ver
CÂMARA, Bruno. O “retalho” do comércio, Op. Cit, p. 256.
17
TSTD, # 4784
18
Sobre esse caso em Garanhuns ver APEJE, Coleção de Polícia Civil, v. 36, p. 212; APEJE, Coleção de Polícia 394
Civil, v. 40, p. 114-116.
19
APEJE, Coleção de Polícia Civil, v. 40, p. 114-116; v. 41, p. 161-164.
Recife.20 Provavelmente se juntariam aos africanos do desembarque em Cacimbas na
Repartição da polícia.
A origem comum desses africanos alojados no Quartel de Polícia nos leva ao segundo
ponto da nossa investigação: a frequente presença de africanos da Costa do Benim em
Pernambuco na década final do tráfico. Assim como aqueles desembarcados no porto do Recife
com passaportes e consignados a “Novaes e Cia” nos casos do Diligente e da Amélia, e aquelas
trazidas pelo esquema Alagoas/Garanhuns, as pessoas do desembarcadas em Cacimbas vinham
do Golfo do Benim. No auto de reconhecimento realizado em 28 de dezembro de 1850, os seis
homens com idade entre 12 e 30 anos, que tinham sido desembarcados em Cacimbas e
encontrados nos engenhos dos filhos de João Manuel Barros Wanderley, foram classificados
como de nação nagô, haussá, mina e ioruba. Além disso, a maioria não soube responder
nenhuma pergunta além dos nomes de batismo dados pelos traficantes. Um, no entanto,
conseguiu declarar que eles tinham vindo da África há quatro luas, ou seja, quatro meses 21. Já
os 13 homens e 14 mulheres encontrados no “mocambo de palha” em Garanhuns foram todos
tidos como de nação nagô, com idades entre 10 e 32 anos. 22 A presença constante de africanos
vindos da África Ocidental nos desembarques investigados, pode significar, por um lado, uma
maior parceria entre os negreiros de Pernambuco e os reinos da costa do Benim na década de
1850. Por outro lado, no entanto, é necessário destacar que essas pessoas podem ter vindo da
Bahia, onde os traficantes tinham alianças de longa data com chefes e negreiros atuantes na
região23, sendo redistribuídas a partir do comércio de cabotagem, como no caso do patacho
Diligente e do iate Amélia. Segundo Bruno Câmara, em 1851, Magalhães Bastos (não sabemos
qual dos irmãos) estava andando pelos engenhos do sul da província anunciando “uma porção
de africanos novos” que ele iria receber da Bahia.24 Essa chegada de africanos boçais a partir
do tráfico interprovincial entre Pernambuco e Bahia também aparece na história do africano
Vicente.
A versão de Vicente é apresentada no dia 10 de abril de 1852, quando o chefe de polícia
levou o seu caso ao conhecimento do presidente da Província de Pernambuco. Vicente, de nação
haussá, havia sido enviado pelo delegado do Termo de Sirinhaém, que estava pedindo
ressarcimento por conta dos gastos tidos com o africano desde o dia 30 de janeiro de 1852. No

20
APEJE, Coleção de Polícia Civil, v. 38, p. 235 – 243.
21
APEJE, Coleção de Polícia Civil, v. 34, p. 4-6.
22
APEJE, Coleção de Polícia Civil, v. 38, p. 235-243.
23
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os 395
Santos dos séculos XVII a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987.
24
CÂMARA, Bruno. O “retalho” do comércio, Op. Cit, p. 256.
mesmo dia 10, o chefe fez seu reconhecimento, destacando que ele devia estar na província há
mais ou menos um ano, pois sabia responder algumas perguntas em português. Mesmo assim,
foi preciso chamar Maria do Rosário, também haussá, como intérprete, para ajudar as
autoridades no exame. Vicente disse a Maria do Rosário que havia saído da sua terra há três
anos, “que fora primeiramente para a Bahia” e que de lá veio em uma embarcação que foi
perseguida por um navio inglês, mas que conseguiu chegar ao Recife com sucesso.
Inicialmente, Vicente ficou em uma casa do bairro do Recife, “perto da maré” e depois foi
“enviado para o mato”, onde trabalhou em três engenhos de propriedade de Manoel Joaquim
Carneiro da Cunha, de quem falaremos adiante.25 Vicente e os demais africanos dos
desembarques anteriormente mencionados seriam considerados “africanos livres”, categoria
que causaria um novo abalo nas relações entre Brasil e Inglaterra e que foi detalhadamente
trabalhada por Beatriz Mamigoniam.26 No Recife, se esses homens e mulheres vindos da África
Ocidental fossem muçulmanos, encontrariam acolhimento em uma comunidade articulada no
Recife, onde o alufá Abuncare, ou Rufino, servia de guia espiritual, autoridade nos
ensinamentos do Corão e mestre de cerimônias.27
Observando os documentos policiais, com diligências acerca dos desembarques e do
paradeiro dos africanos, a imagem que se tem é de empenho absoluto das autoridades em fazer
cumprir a recente lei Eusébio de Queirós. No entanto, a realidade era mais complexa. Havia
também corrupção e silêncio por parte dos juízes de paz, delegados, subdelegados e moradores
da praia. Reprimir o tráfico de africanos no Brasil era tarefa difícil em um contexto onde as
autoridades e os criminosos estavam ligados por laços de amizade, de sangue ou de
clientelismo. O jornal “A Imprensa”, por exemplo, noticiou que no julgamento de João Manuel
de Barros Wanderley, por causa do desembarque em Cacimbas, houve depoimentos contra ele,
contra um tal Lourenço de Sá e contra o subdelegado de Ipojuca, Paulino Pires Falcão. Segundo
uma das testemunhas, o subdelegado lhe dissera que “havia sido convidado para proteger e
assistir a um desembarque de africanos”. Ao ser perguntado sobre o fato, o subdelegado
confirmou que recebera o convite e que não aceitou por ser empregado do governo, mas também
não impediu o desembarque “por serem as pessoas envolvidas nesse negócio, de sua amizade,
e merecerem muita consideração”. Ou seja, mesmo como um agente público, Paulino Falcão
julgava que merecia mais sua consideração os proprietários de terras criminosos do que os

25
APEJE, Coleção de Polícia Civil, Ofício do Chefe ao presidente em 10 de abril de 1852, v. 42, p. 82-83.
26
MAMIGONIAN, Beatriz G. Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017. 396
27
REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel. O Alufá Rufino:
Tráfico, Escravidão e Liberdade no Atlântico Negro (1822-1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
africanos vitimados e declaradamente livres desde a lei 1831. O subdelegado Paulinho não foi
punido. Como vimos, apenas João Manoel Barros Wanderley, seus filhos e Francisco
Magalhães Bastos foram processados. Contudo, não seriam punidos com a prisão de três anos
a nove anos, pena corporal e as despesas de reexportação dos africanos para a África como
determinava a lei de 1831 e o Código Criminal. Wanderley e seus filhos ficariam livres para
organizarem outros desembarques, como o de Sirinhaém em 1855.
Outro episódio absurdo de desobediência às leis em nome da amizade ou aliança política
foi protagonizado por Figueira de Mello, o chefe de polícia da província e futuro senador do
Império. O caso envolveu João Manuel Carneiro da Cunha, futuro barão de Vera Cruz, dono
dos engenhos São João, Bom Jesus e São Caetano e possuidor de muitos “africanos-novos”.
Anos antes do depoimento do haussá Vicente na delegacia do Recife, que declarou ter tido
Carneiro da Cunha como senhor, a imprensa já havia noticiado outro escândalo envolvendo o
proprietário. Em 1851, ao pretender visitar o engenho São João, o chefe de polícia avisou a
Carneiro da Cunha “que retirasse os escravos novos que tinha no seu engenho, pois que lá ia
jantar”. Depois que os escravos foram levados para o engenho São Caetano, o chefe apareceu
com outras autoridades na propriedade do amigo. 28 Vicente pode ter sido um dos africanos
retirados do engenho São João naquele fim de tarde. O episódio mostra que Figueira de Mello
sabia das compras ilegais do amigo, e mesmo não pretendendo tomar as providências
necessárias, quis manter as aparências e resguardar sua posição de autoridade policial.
Apesar da corrupção e indolência das autoridades no combate ao contrabando, o tráfico
teria seu fim na década de 1850. A lei Eusébio de Queirós selou, pela segunda vez, o
compromisso do Estado Imperial em acabar com a migração forçada de africanos, mas também
protegeu e legitimou a propriedade ilegal dos donos de terra e escravos brasileiros. Talvez por
isso, Figueira de Mello não teve nenhum interesse em apreender os africanos que já eram tidos
como propriedade do amigo Carneiro da Cunha. A proteção aos proprietários de terra significou
uma total impunidade dos criminosos. Por outro lado, também é preciso afirmar que a
articulação da repressão, mesmo falha em alguns casos, evitou desembarques tanto nas praias
quanto no porto do Recife. Após o caso do Diligente e da Amélia, por exemplo, as autoridades
de Pernambuco e da Bahia conseguiram impedir o desembarque do brigue Ligeiro, que
transportava africanos boçais com passaportes utilizando-se da mesma artimanha dos
passaportes autorizados pela polícia baiana.

397
28
APEJE, A Imprensa, 25 de fevereiro de 1851, nº 45, p. 2, “Comunicado” (notícias do Cabo, 16 de fevereiro).
Nas praias, os boatos de desembarques continuariam. No entanto, nenhum parece ter se
efetivado a ponto de ser registrado pela polícia nos anos de 1852, 1853 e 1854. O silêncio nas
fontes explica mais o sucesso das transações negreiras do que da repressão, visto que é quase
impossível que os negreiros da província tenham passado três anos sem articular a chegada e
venda de africanos novos. Esse hiato documental só termina com o caso do palhabote em
Sirinhaém em 1855. A armação desse navio e o embarque de 240 africanos aconteceram em
Angola por intermédio do negociante português Antonio Severino d’Avelar. 29 O transporte
dessas 240 pessoas, em um navio que comportava no máximo 180, resultou em 31 mortes
durante a viagem. Em 11 de outubro de 1855, o palhabote chegou ao litoral pernambucano
ancorando, inicialmente, na Ilha de Santo Aleixo e depois na barra de Sirinhaém. Como já
destacou Marcus Carvalho, o insucesso dessa empreitada foi fruto da atitude atrapalhada da
tripulação que, ao invés de levar o navio para as terras do engenho de João Manuel Barros
Wanderley, o consignatário, foi parar no engenho de Gaspar Drummond, ex-delegado de
Sirinhaém.30 A embarcação foi apreendida, mas 47 africanos foram roubados pelos donos de
engenho das redondezas, antes da chegada das autoridades. Dentre os 162 regastados, 10 eram
mulheres. Ao final, foram indiciados Antonio Vasconcelos de Drummond, dono do Engenho
Anjo, filho do apreensor e amigo do cônsul inglês, e Antonio Severino de Avellar. O tribunal
da Relação de Pernambuco absolveria todos os envolvidos diretamente e indiretamente
envolvidos no desembarque, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros em relatório de
1856.31
Após o desembarque em Sirinhaém as autoridades ficaram mais atentas àquela região.
Entre novembro e dezembro de 1855, o chefe de polícia solicitou a demissão das autoridades
do Termo de Sirinhaém, por julgar que a área estava muito acessível ao tráfico de africanos, e
expediu ordens para que todas as autoridades do litoral ficassem atentas a qualquer embarcação
que entrasse e saísse daqueles portos. Apesar disso, em 1856, o perigo voltou a rondar. No dia
12 de maio, o delegado da Vila de Sirinhaém remeteu ao presidente da província as suspeitas
do consulado português de que o patacho Roberto, saído de Portugal em 9 de março, tentaria
desembarcar africanos naquela jurisdição. Em agosto de 1856, às 8 horas da manhã, o inspetor
de quarteirão da Barra de Sirinhaém enviou um ofício ao delegado do Termo avisando sobre

29
Sobre Antônio Avellar e o desembarque de Sirinhaém ver LEITE, Alfredo Carlos Teixeira. O tráfico negreiro
e a diplomacia britânica. Caxias do Sul: EDUCS, 1998; Sobre algumas negociações de Antonio d’Avellar ver
TSTD, viagens do Paquete de Luanda, nº 1593, nº 1748, nº 2044, nº 2147 e nº 4821.
30
CARVALHO, O desembarque nas praias, Op. Cit., p. 244.
31
CENTER FOR RESEARCH LIBRARIES. Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros apresentado 398
à Assembleia Geral Legislativa na primeira sessão da décima legislatura. Rio de Janeiro: Tipografia Universal
de Laemmert, 1857, p. 16. Disponível em: < https://www.crl.edu/>. Acesso em: 10 nov. 2018.
um possível desembarque, tendo como indício desse fato “sinais feitos na Ilha de Santo Aleixo”,
propriedade do inglês John Doneley. Os sinais de bandeira eram uma das formas de
comunicação entre os que estavam em terra e os navios negreiros perto de atracar. Durante a
investigação, o delegado interrogou um oficial de pedreiro, cujo nome não foi mencionado, mas
que residia na ilha há pouco tempo. A autoridade perguntou o motivo de ele ter “içado uma
bandeira americana, que estava colocada num mastro no cume de um monte do lado sul da
ilha”, ao que o rapaz respondeu que o fez por ordem do dono da ilha, com o objetivo de dar
sinal aos navios americanos que ali passassem. Por fim, ele ainda acrescentou que Donnelly
possuía na ilha várias bandeiras “indicativas de sinal de navios”. John Donnelly, por sua vez,
confirmou que mandou levantar a bandeira americana “como demonstração de júbilo ou
contentamento (...) e que isso lhe não era proibido tanto mais quando era ele vice-cônsul
americano”. A explicação não satisfez ao delegado. Para ele, apesar da ilha de Donnelly ser
deserta e não ter água potável, ela era propícia para desembarques, pois os navios podiam
fundear bem próximos a ilha. Além disso, continuou, nenhuma barcaça pertencente ao inglês
era vistoriada pelas autoridades devido a sua respeitosa posição. Apesar da historiografia já ter
destacado o financiamento norte-americano do tráfico brasileiro32, a atuação de John Donnelly,
como inglês, cônsul dos Estados Unidos e apoiador do contrabando é bem emblemática. As
evidências mostram que sua ilha pode ter sido utilizada como ponto de apoio por outros navios,
além do palhabote de 1855.
Aparentemente, o desembarque de 1856 na ilha de Santo Aleixo não aconteceu. O
delegado reconhecia que não tinha uma força policial suficiente para coibir o contrabando na
área, mas fez o que pode. Não sabemos, portanto, se o cônsul americano teve sucesso na sua
trama negreira. Mas após esse episódio um quartel de destacamento foi colocado em Santo
Aleixo, sendo pago um aluguel ao dono da ilha.33 Desse modo, o desembarque de Sirinhaém é
oficialmente o último desembarque de africanos em Pernambuco. À polícia caberia as
diligências para encontrar Barros Wanderley e os africanos roubados e privados de sua
liberdade pelos proprietários de terra. Para José da Silva Paranhos, ministro dos Negócios
Estrangeiros, os esforços das autoridades em fazer cumprir a lei “no extenso e despovoado
litoral do Brasil”, rodeado por um interior “coberto de matas e privado de vias de comunicação”,

32
GRADEN, Dale T. O Envolvimento dos EUA no comércio transatlântico de escravos para o Brasil, 1840-1858.
Revista Afro-Ásia, Salvador, v. 35, 2007. 399
33
HEMEROTECA DIGITAL DA BIBLIOTECA NACIONAL (HDBN), Diário de Pernambuco, 3 de maio de
1858. Disponível em < http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 11 nov. 2018.
indicava o sucesso da repressão e mostrava que o fim do tráfico era um “fato consumado e
irrevogável”.34
Realmente não se pode negar o empenho de algumas autoridades no cumprimento do
seu dever na repressão ao comércio negreiro durante a década de 1850. No entanto, como foi
destacado ao longo deste trabalho, sabemos que a corrupta e amigável aliança entre
proprietários de terras, traficantes e algumas autoridades, permitiu o sucesso negreiro e impediu
que muitos africanos desembarcados nas praias fossem resgatados da escravidão ilegal.

Considerações finais

A década de 1850 trouxe uma nova configuração ao comércio de escravos. O tráfico


transatlântico durou quatro séculos e, apesar da miséria e do sofrimento que causou a mais de
5 milhões de africanos, forçadamente transportados em navios para o Brasil, esse comércio foi
responsável pelo enriquecimento e ascensão social de comerciantes estabelecidos na Europa e
no “Novo Mundo”. Não foi o foco deste trabalho entrar na discussão historiográfica acerca das
inúmeras causas que podem ter levado o Estado Imperial a finalmente abolir o tráfico após 20
anos de conivência com o crime. Dessa vez, no entanto, o sucesso e ousadia dos traficantes em
conjunto com a atitude silencioso de alguns membros do corpo de polícia não seriam garantias
de manutenção do tráfico por mais do que cinco anos.
O objetivo deste trabalho foi analisar a organização do tráfico para Pernambuco nesse
contexto de aumento da repressão. A partir das fontes da Coleção de Polícia Civil, pretendeu-
se sanar as lacunas em relação aos dados quantitativos e apresentar o cenário do comércio
negreiro para a província no período. Assim, destacamos a audácia dos contrabandistas,
considerando não só homens experientes, como Gabriel Antonio e Magalhães Basto, mas
também novos investidores como “Novaes e Cia”, e os donos de engenho, que articulados com
outros traficantes e as autoridades locais mantinham o fluxo de africanos novos para suas
propriedades. Nesse sentido, também destacamos como a aplicação da lei manteve-se leniente
diante da amizade e parentesco entre contrabandistas, compradores de negros-novos e as
autoridades locais.

34
CENTER FOR RESEARCH LIBRARIES. Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros apresentado
à Assembleia Geral Legislativa na quarta sessão da nona legislatura pelo respectivo ministro e secretário
de Estado José Maria da Silva Paranhos. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1856, p. 19.
Disponível em: < https://www.crl.edu/>. Acesso em: 10 nov. 2018; CENTER FOR RESEARCH LIBRARIES.
Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros apresentado à Assembleia Geral Legislativa na primeira 400
sessão da décima legislatura. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1857, Op. Cit.
Por outro lado, analisamos ainda os africanos resgatados pelas autoridades. Apesar do
reduzido número de resgates, tanto pela conivência das autoridades com senhores de engenho,
quanto pelos frequentes roubos de africanos logo após os desembarques, foi possível conhecer
um perfil desse grupo. Desse modo, vimos a variada faixa etária desses homens e mulheres
trazidos e também suas origens, sendo que esse último ponto pode significar uma maior parceria
entre Pernambuco e Bahia nos anos finais do tráfico. Desse modo, mesmo que a polícia
estivesse vigilante nas praias, africanos foram continuamente desembarcados e poucos seriam
libertados da escravidão ilegal. À Generosa, Mônica, Januária, Damião, Jorge, Vicente e outros
africanos resgatados dos desembarques, de nação haussá, mina ou nagô, caberia um longo
caminho de resistência cotidiana na busca pela liberdade.

Referências
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trajetória de um traficante de escravos (1818-1858), Dissertação (mestrado) - Universidade
Federal de Pernambuco, CFCH, Pós-Graduação em História, Recife, 2016.
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2002.

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1561-1851, in David Eltis e David Richardson (orgs.), Extending the Frontiers: Essays on
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CÂMARA, Bruno Augusto Dornelas. O “retalho” do comércio: a política partidária, a
comunidade portuguesa e a nacionalização do comércio a retalho, Pernambuco 1830-
1870. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2013.
CARVALHO, Marcus J. M. de. A rápida viagem dos “berçários infernais” e os desembarques
nos engenhos do litoral de Pernambuco depois de 1831. In: XAVIER, Regina; OSÓRIO, Helen
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sociais no Brasil. São Leopoldo: Oikos, 2018. E-book.

_________________________. O desembarque nas praias: o funcionamento do tráfico de


escravos depois de 1831. Revista de História, São Paulo, nº 167, 2012.

_________________________. O “galego atrevido” e “malcriado”, a “mulher honesta” e o seu


marido, ou política provincial, violência doméstica e a Justiça no Brasil escravista. In. SOIHET,
Raquel; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). Culturas Políticas:
ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad,
2005.
401
GRADEN, Dale T. O Envolvimento dos EUA no comércio transatlântico de escravos para o
Brasil, 1840-1858. Revista Afro-Ásia, Salvador, v. 35, 2007.

LEITE, Alfredo Carlos Teixeira. O tráfico negreiro e a diplomacia britânica. Caxias do Sul:
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MAMIGONIAN, Beatriz G. Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 2017.

PESSOA, Thiago Campos. A Delação Alcoforado e o comércio ilegal de africanos no Vale do


Café: notas de pesquisa. In: XAVIER, Regina; OSÓRIO, Helen (Orgs.). Do tráfico ao pós-
abolição: trabalho compulsório e livre e a luta por direitos sociais no Brasil. São Leopoldo:
Oikos, 2018. E-book.

REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel. O Alufá
Rufino: Tráfico, Escravidão e Liberdade no Atlântico Negro (1822-1853). São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia
de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987.

402
A FLOR DA INDEPENDÊNCIA: O ANIVERSÁRIO DE S.A.I. A PRINCESA D.
JANUÁRIA PÓS 1835.

Janaina Rita Silva de Souza1

Nos últimos 30 anos os estudos de História da mulher tem ganhado mais notoriedade,
suas trajetórias e seu papel vem sido rescrito depois de anos de negligência de uma
historiografia machista que só valorizava os feitos realizados pelos homens, deixando para a
mulher um papel secundário, sendo apenas filhas e mães, elas foram apagadas da escrita da
história.

Quebrando esse silêncio, temos diversos autores que dão voz a essas narrativas,
mostrando a trajetória de seus sujeitos no tempo correspondente, suas perspectivas, esperanças
e impressões, as mulheres estão sendo descobertas, em sua totalidade, não apenas em seus
“papeis correspondentes” no meio social.

Não é sempre que alguém é lembrado, a memória é seletiva, a história cultural já nos
diz isso, nossa personagem é a prova disso, não podemos apenas falar da princesa imperial, a
filha de reis, mas da mulher Januária Maria de Bragança, como ela foi durante algum tempo a
herdeira de um trono constituído de homens ao seu entorno, porém em um mundo masculino,
como o Brasil do século XIX, onde os costumes patriarcais foram herdados do período colonial.

Nesse embate sobre os silêncios da história, há alguns grupos que foram deixados de
lado por décadas, Dona Januária está entre eles, não é uma discursão sobre biografias, mas
sobre a voz e a perspectiva de um sujeito histórico e sua lembrança, na dicotomia bem e mal,
ela sempre foi a segunda filha, a princesa que ambicionava o trono com o esposo Italiano, anos
depois, aquela com quem as relações com o irmão ficaram complicadas pós 1844, mas nunca
falam dela, vamos falar de Januária, vamos ter uma nova visão sobre a sua figura.

Quem é essa pessoa? Apenas mais uma princesa da casa imperial do Brasil, como as
várias que vieram após ela, não, ela não é só uma princesa, que por sua condição de mulher
servia como acordo diplomático em um casamento dinástico, produziria herdeiros a sua casa,
cumprindo o papel que lhe foi imposto pela sociedade da época, nesse contexto e temporalidade

1Graduanda em História pela Unicap, e-mail para contato: rahnut@gmail.com


403
que este trabalho analisa, ela era uma garota, mas ao mesmo tempo diferente das outras garotas
pelo seu nascimento, esse trabalho se propõe analisar as notícias em torno de suas festas de
aniversário, ocorridas entre 1835, antes da lei que lhe confere o título de Princesa Imperial do
Brasil, em 1836 pós lei do ano anterior e fervor do movimento pela regência de Dona Januária,
em 1837 ano do regresso conservador com o governo do regente Pedro de Araújo Lima,
terminando em 1838 no governo do mesmo.

A nossa personagem nasce em um contexto conturbado, o momento anterior a


Independência do Brasil, quando ainda estava na barriga de sua mãe, a mesma foi obrigada a
fugir com seus filhos pequenos para a Fazenda Santa Cruz, por conta do levante das tropas
Portuguesas pós dia do fico, depois que a Princesa Dona Leopoldina e o príncipe regente D.
Pedro voltaram a cidade do Rio de Janeiro, no mês seguinte falece o seu irmão, o príncipe Dom
João Carlos, provocando muita dor em seus pais, como a carta para José Bonifácio do dia 03
de fevereiro de 18222, onde o príncipe dizia a ele:

José Bonifácio,

Chorando escrevo esta a dizer-lhe que venham amanhã aqui, no despacho, ás


horas do costume, porque eu lá não posso ir, visto o meu querido filho [estar]
exalando seu último suspiro, e assim não durará uma hora. Nunca tive, e Deus
permita que não tenha outra, ocasião igual a esta como foi o dar-lhe o último
beijo e deitar-lhe a derradeira benção paterna. Calcule, pelo amor que tem a
sua família e ao meu filho, qual será a dor que transpassa o coração.

Deste seu amo e amigo.

Pedro

São Cristóvão,

3 de fevereiro de 1822, ás 8 horas e um quarto da noite.

Diante de uma imensa dor a Princesa Dona Leopoldina escreve a carta de 12 de fevereiro
de 1822, contando a seu pai sobre o ocorrido, como o trecho citado abaixo3:

404
2
Carta Citada em (Rezzutti 2015).
3
Trecho da Carta Citado em (Norton, 1979).
[...] Deus seja lovado---- desabafa a princesa,--- estou de boa saúde e animosa
contra as todas as adversidades; entretanto devo confessar, Deus o sabe, o
quanto sofro moralmente desde algum tempo.

Para falar francamente, os negócios políticos, por qualquer face que


sejam considerados, são extremamente críticos e mal sucedidos e receio possa
acontecer que o fim seja muito feio. O que mais me aflige são os meus pobres
filhos, que vão crescendo tão robustos e não merecem tantos males. Tenho
pena do meu marido, mas a dizer a verdade foi ele que os procurou [...]

[...] Seria impossível deixar passar o dia de hoje, tão alegre e caro para
todos nós, sem vos apresentar, caro pai, os mais sinceros votos de felicidade.
Se o Altíssimo me ouvir, gozarei da maior alegria e boa saúde, e para mim
peço que me conserve o vosso amor paternal e graça, para o que tendem do
coração todos os meus esforços. Soube pela condessa Lazansky, com o mais
profundo prazer, que todos vós gozais boa saúde e tranquilidade, e isso é um
verdadeiro consolo para mim, na situação penosa em que me acho, pois
desagraçadamente visto estarmos cercados do espirito revolucionário, podem
os diplomatas dar o nome que quiserem, trata-se de guerra civil por todos os
lados, que aqui se subjugou por algum tempo, eu, porém, como europeia,
representando potência militar, sou tida como suspeita, porque existe uma
demasiada rivalidade e ódio entre ambos os partidos, não sem motivos que
procuram a primazia.

Morreu-me o meu filho de uma espécie de mal curada inflamação do


fígado em convulsões durante 28 horas. Tudo isto motivado por nossa forçada
fulga para Santa Cruz, distante 12 milhas. A pobre criança sofreu
horrivelmente de uma calor de 96 º graus, de modo que se pode atribuir a isto
a sua prematura morte. Não lhe posso esconder a minha dor, somente a
religião, afirme confiança no altíssimo que tudo faz para o bem dos homens,
me dão alguma resignação e sossego, mas é preciso tempo. Como vai acabar
isto, só Deus o sabe, nós ficamos aqui, não há mais dúvida alguma, e parece-
me que para sempre [...].

Nesse contexto de muita tristeza e caos político, que em 11 de março de 1822, nasce
Dona Januária de uma forma bem distinta de seus irmãos, ela nasce com a sua mãe agarrada ao
pescoço do pai e é um parto feito por ele, porque o médico não chegou a tempo, alguns dias
depois Dom Pedro Informou a Dom João VI o nascimento de uma nova infanta portuguesa, ela 405
nasce ligada a família real de Portugal, as crianças mais novas que já nascem inseridas na casa
Imperial do Brasil, mas ela já nasce imersa nesse contexto político pré Independência, seu nome
foi uma homenagem a cidade do Rio de Janeiro, como aconteceria com as princesas D. Paula
Mariana e D. Francisca.

1822 é um ano que vai ficar pra sempre marcado na História, pois após o nascimento da
pequena princesa, em março D. Pedro viaja para minas para buscar apaziguar a província,
regressando em maio de 1822, em agosto do mesmo ano, ele parte outra vez, só que agora para
São Paulo, onde realiza uma visita muito parecida com a de Minas, mas um fato muda tudo que
é o recebimento das cartas de José Bonifácio e de D. Leopoldina contando sobre as novas ordens
das cortes e a deliberações do conselho de estado ocorrido em 02 de setembro 1822, no dia 07
de setembro ocorre o famoso grito do Ipiranga, onde o Brasil se separa de Portugal, em 12 de
outubro desse mesmo ano ocorre a aclamação de D. Pedro como imperador e sua sagração no
dia 01 de dezembro de 1822.

De sua terna infância só temos os relatos nas cartas de D. Leopoldina e algumas


documentações presentes no acervo do Museu Imperial de Petrópolis, se D. Januária deixou um
livro de memórias como era comum no fim do século XIX, ele não está no Brasil, mas para
uma criança de 4 anos que não sabia escrever fica bastante difícil expressar algum pensamento
por meio de fontes escritas sobre a morte de sua mãe em 11 de dezembro 1826, mas esses
eventos que ocorriam dentro e fora do paço geravam bastante impactos sobre a vida dessas
crianças, como veremos mais tarde com o governo regencial.

Em 16 de outubro de 1829 D. Januária com 7 anos, recebe a madrasta D. Amélia de


Leuchtenberg, sabe-se por toda uma historiografia que discute sobre esse acontecimento que a
segunda imperatriz do Brasil, foi uma figura muito presente na vida de seus enteados e para os
mais jovens a única figura materna que conheceram.

Pelo contexto gerado a partir das medidas absolutistas de D. Pedro I, do sentimento de


antilusitanismo do período depois da independência, a constituição outorgada de 1824 e
algumas outras coisas, contribuíram bastante para arranhar a imagem do imperador e ainda
temos a questão dinástica portuguesa que contribuiu bastante para o 07 de abril 1831, aqui
temos uma menina na puberdade com 9 anos, que fica com os irmãos menores e nos anos
seguintes, cresce no paço com eles, em 1834, D. Januária fica órfã de pai aos 12 anos, só via o
seu irmão mais novo, apenas uma vez por dia.

Até 1835 Dona Maria da Glória, numa situação análoga ao pai tinha as duas coroas, 406
porque depois do nascimento do futuro D. Pedro II, o título de princesa imperial era da mesma,
com o a regência liberal de Feijó é concretizada essa separação das casas reais que ficarão
separadas, Recife nesse momento era muito parecida, com as descrições dos viajantes que
estiveram aqui nesse período, como Vauthier, que descreve a cidade e seus espaços de
sociabilidade e suas elites, que serão o público alvo dessas festas de aniversário durante o
período de tempo mencionado á cima.

Em 1835, o aniversário da então princesa real do Brasil foi celebrado em Recife muito
discretamente em comparação ao de 1836, como mostra esse anuncio de 18354:

Hoje quarta feira 11 de março. Em Anniversario aos faustíssimos anos da


Augusta Princesa Brazileira a senhora D. Januária, se representará um drama
alegórico á mesma Augusta Senhora; cantando-se o hyno patriotico perante o
Emblema da liberdade do Brazil; logo depois se representará a peça --- Santa
Isabel rainha de Portugal; principará á chegada de ss. Excs. Que será
anunciada por uma girandola de fogos do ar.

Nota-se no documento acima, a peça que foi representada no evento, Santa Isabel rainha
de Portugal, mas longe do ideal de monarquia piedosa, mas uma construção deum papel
feminino nesse sentido, que ela deveria ser: boa, piedosa, tal qual a santa, percebe-se então essa
construção de sociedade em torno das senhoras e seu lugar de fala, pois deveriam atender a
esses anseios, lembrando que a bisavô de D. Januária, D. Maria I antes de ter a alcunha de “a
louca”, era conhecida como “ a viradeira”, a avó de nossa princesa era D. Carlota Joaquina que
de forma alguma se encaixava nesse estereótipo, D. Leopoldina também teve seu momento de
quebrar paradigmas, com sua imensa contribuição no processo de independência, então essa
normatização era necessária em torno dessas mulheres, para que elas se encaixassem nesse
padrão, tudo com muito respaldo dessas elites patriarcais.

O projeto de lei apresentado em 15 de junho 1835, separa as coroas de uma vez por
todas, como mencionado acima, a lei com base e uma outra lei de 1826, retira o título de
Princesa Imperial do Brasil de Dona Maria da Glória, então Maria II de Portugal nessa época e
passa esse título a Dona Januária, nesse ano há a regência liberal de Feijó, essa experiência
republicana será conturbada, pois no ano anterior 1834, é aprovado pela mesma câmara o ato
adicional que descentraliza o poder e dá autonomia as províncias, ocorrendo assim em 1835 as
revoltas regenciais, Balaiada, Cabanagem, Farroupilha, a Sabinada (1837) ocorreu também por

4 Diário de Pernambuco: Ano 10 ED N° 57, 11/03 de 1835.


407
conta do ato adicional, ou seja era um tempo em que as disputas de poder permeavam o cenário
político, com isso as crianças não sabiam o que as rodeava, pois estavam isoladas no ambiente
austero do paço, mas as pessoas que as rodeavam sabiam muito bem manipular as rédeas do
poder.

As pessoas de Pernambuco ficaram tomando conhecimento do projeto de lei em 18 de


setembro de1835, com um pequeno artigo que fala sobre a naturalização de D. Maria II como
Portuguesa e a perca de seu direito dinástico na Casa Imperial do Brasil, depois como vemos
abaixo seguem a lei que dá o título a D. Januária com então 13 anos5:

<<A commissão de constituição em obediencia aos [Incisos] terceiro e quinto


do artigo 15 da constituição, que conferem á Assembleia Geral as atribuições
de reconhecer o Príncipe Imperial como Sucessor do trono, e de resolver as
duvidas que ocorrem sobre a sucessão da Corôa, observa, que pela elevação
do snr Pedro II ao trono do Brazil, o titulo de Príncipe Imperial caberia a D.
Maria da Glória, se ella não aceitasse a Coaôa de Portugal.

<< Como porém pelos princípios de Direito Publico Universal, o rei he


ser cidadão da Nação que ele governa, e com cujos interesses elle tem o dever
de identificar-se; e por outra parte pelos princípios de direito das gentes,
ninguém póde ser ao mesmo tempo Cidadão de duas Nações; he manifesto
que a senhora D. Maria II tendo aceitado o Trono Portuguez por facto seu
próprio exercitado, livremente e depois de sua maioridade, naturalisou-se
Portugueza, e conseguimente perdeu os direitos de Cidadão Brazileiro na
forma do Artigo 7 [Inciso] primeiro da Constituição, pelo qual he ella
declarada estrangeiria, e como tal excluída da sucessão da Corôa do Brazil,
em observância do Artigo 119 da Constutuição.

<< Da sobredita exclusão resulta immediatamente, e pela ordem regular de


sucessão ao Trono estabelecida no artigo 117 da Constituição, que a Senhora
D. Januária he a herdeira presumptiva do Império, a quem o artigo 105 da
Constituição confere o Titulo de Príncipe Imperial. E porque o artigo 15
[Inciso] 3 da Constituição, e a Lei de 26 de agosto de 1826, exigem da
Assembleia hum acto especial de reconhecimento do Príncipe Imperial; a

5 Diário de Pernambuco: Ano 10 ED N° 176, 18/09 de 1835.


408
Commição tem a honra de submeter á deliberação desta Augusta Camara o
seguinte Projeto de Lei:

<< A Assembleia Geral Legislativa Decreta:

<< Art. 1º . A Senhora Dona Maria II Rainha de Portugal tem perdido o direto
á sucessão a Corôa do Brazil pelo facto de entrar em posse do Trono Portuguez
.

<< Art. 2º. A Senhora Dona Januária, Filha Legitima do Senhor D. Pedro I,
será reconhecida Princeza Imperial na forma do artigo 15 [Inciso] 3º. da
Constituição e da Lei de 26 de agosto de 1826, como Sucessora do Trono do
Brazil Depois de S.M. o Imperador o Senhor D. Pedro II, e de sua legitima
descendencia.

<< Paço da Camara dos Deputados, 15 de junho de 1835. --- Luiz Cavalcanti.
H. H. Carneiro Leão. --- C. J. de Araujo Vianna>>.

Nota-se o seguinte termo no documento á cima “Filha Legitima do Senhor D. Pedro I”


é mais do que só um reconhecimento de paternidade e legitimidade, lembrando que um homem
com uma descendência ilegítima com o nosso primeiro imperador, merece um grifo especial a
esse termo, perceba que são duas mulheres o objetos central desse documento, sendo D. Maria
II uma das únicas monarcas femininas do século XIX, a lei é aprovada em 29 de outubro na e
no senado e chega aos Pernambucanos apenas em 03 de fevereiro de 1836, nesse momento um
novo movimento ganha corpo: O Januárismo, favorável a regência da princesa, com então 13
anos de idade, mas olhando para dentro do movimento, nós temos elites e pessoas de todas as
camadas populares que estavam insatisfeitas com o governo Feijó.

Um jornal vai surgir no cenário de Pernambuco, A Gazeta universal de 1836 e 1837 é


um jornal que dava apoio a causa da regência de D. Januária, mas uma verdadeira incógnita nos
arquivos, pois ninguém falou sobre ele, ninguém trabalha sobre ele, esse arquivo estava
simplesmente perdido na Hemeroteca Nacional e antes disso no APEJE.

Em 1836 o Aniversário de Dona Januária torna-se uma grande festa cívica, com todo o
suporte do movimento, na Gazeta Universal, são publicados diversos artigos sobre o aniversário
da princesa, sempre sendo solícitos a sua causa, conversadores em sua maioria alijados do poder
e que queriam voltar ao mesmo, enquanto isso no Diário de Pernambuco, publicavam-se textos 409
de junção dos partidários da coroa na figura de D. Pedro II com 10 anos nesse momento.
Em 9 de março de 1836, a Gazeta Universal publicava que haveria festa na cidade para
comemorar o aniversário da Princesa, um cortejo até o palácio para assistir a celebração, em 10
de março se anuncia uma festa de grande gala no teatro, com um espetáculo pomposo, com
direito ao busto de D. Januária, com hino nacional e uma peça francesa sobre uma princesa
medieval Leonor de Luzianan, outra obra de uma princesa boa, atende as características de
normatização social da mulher mencionadas acima.

No dia 11 de março publica-se um texto de conclamação dos partidários em torno desse


dia e contra o governo Feijó, chamado pelo autor do texto “Ditadura”, colocando a Princesa
como uma alternativa salvadora nesse contexto, para os partidários dessa causa um verdadeiro
discurso, mas temos de pensar o que as crianças imperiais estavam fazendo nesse momento?
Ou se sabiam de dessa comoção em volta delas? É uma pergunta que só a continuidade dessa
pesquisa trará, nesse mesmo dia, há duas portarias que falam sobre uma salva de canhões da
fortaleza da cidade e outra chamando as senhoras de Olinda para assistir o cortejo que ocorreria
pela manhã.

Quase dois meses após o 11 de março, o jornal publica no dia 29 de abril de 1836, uma
serie de hinos patrióticos, compostos em honra da princesa6:

Que sua Alteza Imperial a Princeza Brazileira Senhora Dona Januária.

O.D.C.

As suas reverentes patrícias

Salve, ó dia onze de março!

Nossa sorte é já propicia!

Lustros tres menos um anno

Completa a nossa Patricia!!

Senhora, escuta

6 A Gazeta Universal: Ano 1 EDNº 64, 29/04 de 1836.


410
As Brazileiras

Que prazenteiras

Rendem te amor.

Ao mundo bem raras vezes

Manda o Céo tão grande mimo:

Foi o ceo que Te formou

Para ser da pátria arrimo.

Senhora, escuta &c

Forão Pedro e Leopoldina

Os que, no apuro de Amor,

Do ceo cumprindo a missão,

Gerárão tão linda flor.

Senhora, escuta &c

D´Um c D´Outro os grandes dotes

Os talentos e a bondade

Ella herdou, Ella os conserva

Mesmo na triste orfandade.

Senhora, escuta &c

Ha tres annos que, saudosa,


411
Do seu Pai no Anniversario,
Não podendo fazer Graças,

Libertou terno canario

Senhora, escuta &c

Posto que ainda na infancia,

Quiz assignalar tal dia,

Sabendo que a Liberdade,

E´ o dom de mór vallia.

Senhora, escuta &c

Se Ella â deo a um passarinho,

Por saber que a apreciava,

Dos inimigos do Regresso

Liberta a Nação escrava.

Senhora, escuta &c

Fórão Elles que tolherão

O que seu Pai começou!

Salve a filha pressurosa

A Nação que o pai fundou.

412
Senhora, escuta &c
Lá nas Elisias Campinas

Seus Altos progenitores

Pedem ao Deos do Brazil

para Ella os seus favores.

Senhora, escuta &c

A Corôa e Seetro Augusto

Assim não se hão- de quebrar:

Tendo o Brazil JANUÁRIA,

A facção há-de expirar.

Senhora, escuta &c

Deixai, queridas Patricias,

Hoje a domesticalida:

Hynnos entoai no dia

Que triste Brasil traz vida.

Senhora, escuta &c.

Nesse poema podemos claramente ver que a base do movimento era conservadora, e
que se mencionam mulheres que não tinham direito ao voto, mas eram engajadas politicamente
quando necessário, o casal imperial na memória coletiva, mobilizados para atender a demanda
política em torno da princesa, vemos que a corte também vai ser um dos focos do movimentos,
se chegaram a princesa, os jornais de Pernambuco não sabem, a palavra Regresso aparece
grifada, ou seja os conversadores já o desejavam, desde longa data. 413
Já o jornal totalmente ligado ao governo Diário de Pernambuco, publica no dia 07 de
março, portanto dias antes da Gazeta universal, falando sobre o cortejo que ocorreria no dia 11,
pela notícia pode entender que haveria uma parada militar durante a celebração, dia 10 de março
comunicam sobre a festa no teatro, no dia do Aniversário da princesa, o jornal publica um texto
chamando a comemoração, mas com uma ressalva de união entre todas as facções políticas,
típica ideia de uma elite patriarcal que se sentiu ameaçada pela figura de uma mulher no
comando do Império, o Januárismo declina após 1837, pois nesse ano é eleito um regente
conservador Pedro de Araujo Lima, o regresso é concretizado e os Liberais deixam a cena
política.

Tendo acalcado os objetivos, a figura de Dona Januária já não serve mais aos propósitos
conservadores, o jornal pró Januária é encerrado em 1837, e em Pernambuco cessam as
menções a regência dela, o Diário de Pernambuco publica apenas uma pequena nota de 6 linhas,
sobre a comemoração no teatro, em 10 de março de 1837, sem menção as atrações7:

Sabbado 11 do corrente se festeja com toda a pompa o Anniversario de S. A.I.


a Senhora Dona Januária Herdeira pressumptiva do trono do Brazil: os
camarotes e bilhetes se estão vendendo na Rua da Florentina D S.

Nessa comemoração discreta que não se sabe maiores detalhes, vemos como as crianças
imperiais estavam à mercê dessa elite que as usavam como fantoches, alguns anos mais tarde
temos a maioridade do menino Imperador, nesse cenário as revoltas acabam restando somente
a Farroupilha e Sabinada que eclode nesse ano, mas os conservadores conseguem acabar com
as revoltas e promover o clima de “segurança”, já a princesa com seus 15 anos, coube aguardar
um casamento dinástico e cumprir seu papel de mulher que a sociedade esperava para ela.

Em 1838 publica-se no diário uma nota do presidente da Província pedindo uma salva
de canhões no aniversário de Dona Januária8:

Dito- ao capitão comandante da fortalesas do Brum, authorissando- o para dar


no dia 11 deste mez Anniversario natalício de S. A. A Senhora Dona Januária
Princeza Imperial as trez salvas de custume.

7 Diário de Pernambuco: Ano 12 ED N° 56, 10/03 de 1837.

8Diário de Pernambuco: Ano 13 ED N°58 , 13/03 de 1838.


414
A princesa com 16 anos anos no momento, acabou sendo afastada das disputas de poder
se é que um dia ela quis estar lá, pouco sabemos como ela ficou até a maioridade do irmão.

Em 23 de julho de 1840 através de um golpe D. Pedro II, não sabemos como ela reagiu
a isso, depois tem-se a busca de noivos e o casamento, Dona Januária teve um início de
casamento ainda muito difícil, pois a mesma manipulação que ocorria no paço de São Cristovão
e suas intrigas, fazem ela e o esposo deixarem o Brasil.

O que fica do Januárismo é que a mobilização política no Império que subvertia ideias
que foram postas por um patriarcado sumiam no ar, as mesmas voltaram em 1844 para
assombrar a princesa, poucas vezes na História do Brasil, mulheres estiveram em posição de
comando, mas ninguém se lembra de Dona Januária, enterrada nas areias do tempo, sua História
deve ser recontada, ela não é apenas alguém que simplesmente foi embora, mas alguém que foi
prejudicada pelos jogos de poder de uma elite, uma flor que desabrochou na corte de Nápoles.

Referencias:

Bibliografias:

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Editora Unesp, 2002.

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JUNIOR, Manuel Nunes Cavalcanti: “O EGOÍSMO, A DEGRADANTE VINGANÇA E O


ESPÍRITO DE PARTIDO”: A HISTÓRIA DO PREDOMÍNIO LIBERAL AO MOVIMENTO
REGRESSISTA (PERNAMBUCO, 1834-1837), UFPE, Recife, 2015.

NASCIMENTO, Luiz do: História da Imprensa de Pernambuco (1821/1954) Vol I Diário de


Pernambuco, 2ª ED, Recife, Imprensa Universitária Universidade Federal de Pernambuco,
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OLIVEIRA, Gabriel Alíbio de Lima: Cronistas e Atlantes: Justiniano José da Rocha, Firmino
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_________, Paulo: D. Leopoldiana: A História Não Contada, São Paulo, Leya, 2017.

SCHWARCZ, Lilia Moritz: As Barbas do Imperador, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

VAUTHIER, Louis Léger: Diário Íntimo do Engenheiro Vauthier (1840-1846), MEC, Rio de
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Periódicos e Jornais:

BN Digital:

Diário de Pernambuco: Ano 10 ED N° 57, 11/03 de 1835.

Diário de Pernambuco: Ano 10 ED N° 176, 18/09 de 1835.

Diário de Pernambuco: Ano 11 ED N° 26, 03/02 de 1836.

Diário de Pernambuco: Ano 11 ED N° 53, 07/03 de 1836.

Diário de Pernambuco: Ano 11 ED N° 57, 11/03 de 1836.

Diário de Pernambuco: Ano 12 ED N° 56, 10/03 de 1837.

Diário de Pernambuco: Ano 13 ED N°58 , 13/03 de 1838.

A Gazeta Universal:

A Gazeta Universal: Ano 1 EDNº 30, 09/03 de 1836.

A Gazeta Universal: Ano 1 EDNº 31, 10/03 de 1836.

A Gazeta Universal: Ano 1 EDNº 32, 11/03 de 1836.

A Gazeta Universal: Ano 1 EDNº 64, 29/04 de 1836.

416
Título Anais Eletrônicos do III Encontro Nacional do Núcleo de
Estudos do Mundo Atlântico (NEMAt) e I Encontro Nacional
do Núcleo de Estudos Impérios Coloniais: Impérios Atlânticos
e suas Dinâmicas Históricas, séculos XVI-XIX.

Organização e Paulo Fillipy de Souza Conti


Projeto gráfico

Créditos da Vista da Cidade do Recife e parte de Olinda tomada da ladeira


Capa da Misericórdia. Cromolitografia, 483 x 589 mm. Impressa na
oficina de Braunsdorf de Dresden. Inscrição: Lith. Anstalt v. J.
Braunsdorf, Dresden. Vista de Pernambuco. c. 1847.

Revisão dos Dos Autores


Textos

Formato Digital

Fontes Agency FB, Calibri (Corpo), Great Vibes, Times New Roman.

Recife, Brasil, Dezembro de 2018.

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